O Alto Jacuí na Pré-História - Subsídios para uma Arqueologia das Fronteiras

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Apesar do considerável aumento quantitativo do fluxo de pesquisas arqueológicas observado no Rio Grande do Sul nos últimos anos, atualmente a bacia hidrográfica do Alto Jacuí figura entre as regiões sobre as quais dispomos de escassas informações acerca dos processos de povoamento humano ocorridos ao longo da pré-história. O objetivo desta pesquisa é sistematizar os dados arqueológicos, históricos e etnohistóricos, compondo um panorama geral da colonização pré-histórica da região. Os dados disponíveis nos permitem atribuir o início do povoamento aos grupos de caçadores-coletores que se instalaram nestas paisagens aproximadamente no início do período holocênico. Novas levas populacionais compostas por grupos ceramistas-horticultores teriam atingido a região há cerca de dois mil anos atrás, alterando consideravelmente a dinâmica de povoamento nos vales do Jacuí e nas matas de araucária do planalto. Sua inserção geográfica na porção centro-norte do Estado caracteriza a região como uma zona de convergência e transição de diversas características do meio físico e biótico. O tratamento analítico e interpretativo das informações nos permite atribuir um caráter de fronteira ao Alto Jacuí. As interações culturais entre as sociedades humanas pré-históricas se refletiam, entre outras instâncias, em sua cultura material. A perspectiva da arqueologia contextual nos permite integrar a semiologia e abordar a cultura material considerando também seu conteúdo simbólico no contexto cultural, onde a evidência de contato é também interpretada em razão de sua função social, como elemento identitário construído e articulado numa zona de fronteira.

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Fabricio Jos Nazzari Vicroski

O Alto Jacu na Pr-Histria: subsdios para uma arqueologia das fronteiras

Passo Fundo, setembro de 2011

Fabricio Jos Nazzari Vicroski

O Alto Jacu na Pr-Histria: subsdios para uma arqueologia das fronteiras

Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Histria, do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade de Passo Fundo como requisito parcial e final para obteno do grau de mestre em Histria sob a orientao do Prof. Dr. Luiz Carlos Tau Golin.

Passo Fundo 2011

AGRADECIMENTOSGostaria de registrar minha gratido e apreo por todos aqueles que contriburam para o desenvolvimento desta pesquisa. Meus agradecimentos ao prof. Dr. Tau Golin pela oportunidade de contar com a sua orientao, aos professores Gerson Trombetta, Pedro Igncio Schmitz e Jairo Rogge pelas sugestes que enriqueceram o trabalho. Aos demais professores e colegas, e Jnifer de Brum Palmeiras, secretria do PPGH/UPF. Agradeo CAPES pela concesso da bolsa de estudo. Agradeo Vera Trommer Thaddeu pelas orientaes em minha atuao profissional na rea de arqueologia, que de forma indireta tambm contriburam em meus estudos. Agradeo especialmente aos meus pais, que sempre incentivaram e proporcionaram o desenvolvimento de minha trajetria acadmica. Expresso ainda minha gratido Dara pela parceria, e principalmente minha esposa Cristine pelo companheirismo, compreenso, pacincia e contribuio a esta pesquisa.

"Gdy ganie pami dalej mwi kamienie".

ludzka,

"Quando se apaga a memria humana, as pedras comeam a falar". Stefan Wyszyski (1901 - 1981)

RESUMOApesar do considervel aumento quantitativo do fluxo de pesquisas arqueolgicas observado no Rio Grande do Sul nos ltimos anos, atualmente a bacia hidrogrfica do Alto Jacu figura entre as regies sobre as quais dispomos de escassas informaes acerca dos processos de povoamento humano ocorridos ao longo da pr-histria. O objetivo desta pesquisa sistematizar os dados arqueolgicos, histricos e etnohistricos, compondo um panorama geral da colonizao pr-histrica da regio. Os dados disponveis nos permitem atribuir o incio do povoamento aos grupos de caadores-coletores que se instalaram nestas paisagens aproximadamente no incio do perodo holocnico. Novas levas populacionais compostas por grupos ceramistas-horticultores teriam atingido a regio h cerca de dois mil anos atrs, alterando consideravelmente a dinmica de povoamento nos vales do Jacu e nas matas de araucria do planalto. Sua insero geogrfica na poro centro-norte do Estado caracteriza a regio como uma zona de convergncia e transio de diversas caractersticas do meio fsico e bitico. O tratamento analtico e interpretativo das informaes nos permite atribuir um carter de fronteira ao Alto Jacu. As interaes culturais entre as sociedades humanas prhistricas se refletiam, entre outras instncias, em sua cultura material. A perspectiva da arqueologia contextual nos permite integrar a semiologia e abordar a cultura material considerando tambm seu contedo simblico no contexto cultural, onde a evidncia de contato tambm interpretada em razo de sua funo social, como elemento identitrio construdo e articulado numa zona de fronteira.

Palavras-chave: Pr-Histria, Alto Jacu, Arqueologia, Fronteira, Contato.

ABSTRACT

Even with the increase in archaeological research observed in Rio Grande do Sul in recent years, the watershed of the Alto Jacu is among the regions we have little information about the processes of human settlement occurred along prehistory. The aim of this research is to systematize archaeological, historical and ethnohistorical data, giving an overview of prehistoric colonization of this region. The available data allow us to assign the beginning of occupation to the groups of hunters and gatherers who settled these landscapes around the beginning of the Holocene period. New population, composed of farmers and potters groups, would have come to the region about two thousand years ago, changing the dynamics of settlement in Jacu valley and araucaria forests in the highlands. Its geographical localization in the north central portion of the State characterizes the region as a zone of convergence and transition of several characteristics of the physical and biotic environment. The analytical and interpretative processing of information allows us to ascribe a boundary character to the Alto Jacu region. The cultural interactions between prehistoric human societies is reflected, among other instances, in their material culture. The contextual archaeology perspective allows us to integrate the semiotics considering the symbolic content of material culture in the cultural context, in which the evidence of contact is also interpreted as a result of their social function as an identity element constructed and articulated in a boundary zone.

Keywords: Prehistory, Alto Jacu, Archaeology, Boundary, Contact.

LISTA DE ILUSTRAESFigura 1 - Periodizao da Pr-Histria na Regio do Alto Uruguai ........................................... 31 Figura 2 - Bacia Hidrogrfica do Rio Grande do Sul ................................................................... 41 Figura 3 - Bacia Hidrogrfica do Alto Jacu e seus principais afluentes...................................... 43 Figura 4 - Diviso Poltica da Bacia Hidrogrfica do Alto Jacu ................................................. 44 Figura 5 - Animais da Megafauna extintos entre o Pleistoce e Holoceno.................................... 50 Figura 6 - Configurao da paisagem ao final da ltima glaciao ............................................. 51 Figura 7 - Configurao atual da paisagem no sul do pas ........................................................... 55 Figura 8 - Conjunto de Stios Arqueolgicos com petroglifos no Rio Grande do Sul ................. 59 Figura 9 - Painel com arte rupestre no stio Abrigo do Barreiro Ivor/RS................................ 60 Figura 10 - Detalhes dos petroglifos no Abrigo do Barreiro Ivor/RS ...................................... 61 Figura 11 - Localizao aproximada das 18 redues do primeiro ciclo missioneiro ................. 67 Figura 12 - Caminho das Misses cruzando as nascentes do rio Jacu no detalhe....................... 69 Figura 13 - Crnio do Homem de Toumai ................................................................................... 74 Figura 14 - Possveis rotas migratrias do Homo Sapiens Sapiens .............................................. 78 Figura 15 - Exemplos de painis com arte rupestre encontrados no Brasil.................................. 80 Figura 16 - Reconstituio do rosto de Luzia realizada com base em seu crnio ........................ 81 Figura 17 - Artefatos arqueolgicos encontrados no Brasil (Acervo do Museu Nacional) ......... 83 Figura 18 - Aspecto externo da paleotoca .................................................................................... 87 Figura 19 - Principais etapas do processo de lascamento............................................................. 92 Figura 20 - Elementos da indstria ltica e sseoa associados a tradio Umbu ......................... 94 Figura 21 - Formas comuns de artefatos lticos da tradio Humait .......................................... 96 Figura 22 - Artefatos lticos associados a tradio Humait ........................................................ 97 Figura 23 - Provveis rotas de expanso da tradio Tupiguarani ............................................... 99 Figura 24 - Stios arqueolgicos guarani na rea de transio entre o Alto e o Baixo Jacu ..... 100 Figura 25 - Formas recorrentes na indstria oleira Tupiguarani ................................................ 103 Figura 26 - Principais etapas do processo de confeo de um recipiente cermico ................... 104 Figura 27 - Taquapi utilizado como bomba de chimarro ......................................................... 106 Figura 28 - Indstria ssea guarani ............................................................................................ 107 Figura 29 - Indstria ltica associada aos horticultores guarani ................................................. 108 Figura 30 - Representao de uma aldeia com casas subterrneas ............................................ 110 Figura 31 - Indstria ltica associada s casas subterrneas ....................................................... 111 Figura 32 - Artefatos lticos polidos ........................................................................................... 112 Figura 33 - Tipologia recorrente na indstria oleira dos horticultores do planalto .................... 113 Figura 34 - Provveis rotas de deslocamento dos povos ceramistas .......................................... 123

LISTA DE TABELASTabela 1 Escala geolgica....................................................................................................47

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AP Antes do Presente BP Before Present BPA Banco de Portaria de Arqueologia CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior CEPA - Centro de Ensino e Pesquisas Arqueolgicas COAJU - Comit de Gerenciamento da Bacia Hidrogrfica do Alto Jacu CONAMA Conselho Nacional do Meio Ambiente FAPERGS - Fundao de Amparo Pesquisa no Rio Grande do Sul IAP - Instituto Anchietano de Pesquisas (IAP/UNISINOS) IPHAN Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional LEPA - Laboratrio de Estudos e Pesquisas Arqueolgicas LT Linha de Transmisso MG Minas Gerais NDH - Ncleo de Documentao Histrica do PPGH/UPF PPGH/UPF Programa de Ps-Graduao em Histria da UPF PRONAPA Programa Nacional de Pesquisas Arqueolgicas PUC - Pontifcia Universidade Catlica UCG - Universidade Catlica de Gois UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul UHE Usina Hidreltrica UNESCO - Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura UNESP Univesidade Estadual Paulista UNISINOS - Universidade do Vale do Rio dos Sinos UPF Universidade de Passo Fundo

SUMRIO

INTRODUO ........................................................................................................................... 11 1 CONCEPES TERICO-CONCEITUAIS ....................................................................... 14 1.1 Arqueologia: contextualizao e paradigmas terico-conceituais ...................................... 14 1.2 Histria e Pr-Histria: Conceituao e Periodizao ........................................................ 23 1.3 Periodizao da Pr-Histria no Alto Jacu ........................................................................ 29 1.4 A Delimitao do Espao em Pesquisas Pr-Histricas ..................................................... 32 2 O ALTO JACU E O CONTEXTO AMBIENTAL ............................................................. 40 2.1 Breve Caracterizao da Bacia Hidrogrfica do Alto Jacu ............................................... 40 2.2 O Paleoambiente no Perodo Pleistocnico ........................................................................ 45 2.3 O Meio Fsico e Bitico no Perodo Holecnico ................................................................ 51 3 FONTES DE PESQUISA ........................................................................................................ 56 3.1 Histrico das Principais Pesquisas Arqueolgicas ............................................................. 56 3.2 Referncias Etnohistricas .................................................................................................. 65 4 O SURGIMENTO DA ESPCIE HUMANA E SUA EXPANSO ................................... 73 4.1 O surgimento do homo sapiens sapiens ............................................................................. 73 4.2 Expanso e chegada ao continente americano .................................................................... 76 4.3 Pr-Histria do Brasil ......................................................................................................... 79 5 O ALTO JACU NA PR-HISTRIA ................................................................................. 89 5.1 Caadores-Coletores ........................................................................................................... 89 5.2 Ceramistas-Horticultores ................................................................................................... 98 5.3 O Alto Jacu como um espao de fronteira ....................................................................... 115 CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................... 126 REFERNCIAS ........................................................................................................................ 130

INTRODUO

Apesar do considervel aumento do fluxo de pesquisas arqueolgicas observado no Rio Grande do Sul nos ltimos anos, atualmente a bacia hidrogrfica do Alto Jacu figura entre as regies sobre as quais dispomos de escassas informaes acerca dos processos de povoamento humano ocorridos ao longo da pr-histria. Em geral, foram desenvolvidos estudos de licenciamento arqueolgico de forma pontual, raramente publicados e/ou articulados com os dados j produzidos, alm de espordicos estudos de arqueologia acadmica, em sua maioria publicados. As pesquisas desenvolvidas sistematicamente desde meados do sculo XX privilegiaram, sobretudo, o baixo e o mdio curso do Jacu, com algumas excees isoladas, a exemplo dos trabalhos realizados em virtude da implantao da UHE Dona Francisca, mesmo assim, circunscritos a extremidade sul da rea em questo, eventualmente denominada de Mdio Jacu. A insuficincia de informaes se mostra ainda mais evidente nas terras altas do planalto mdio e adjacncias do interflvio entre as nascentes dos rios do Peixe, Guapor, Passo Fundo e Jacu. Diante deste cenrio no dispomos de um esforo de sistematizao e interpretao das esparsas informaes. O objetivo desta pesquisa suprir em parte esta lacuna, congregando os dados arqueolgicos, histricos e etnohistricos, compondo um panorama geral da colonizao pr-histrica da regio, articulando na medida do possvel, uma tentativa inicial de interpretao da regio do Alto Jacu sob a perspectiva das fronteiras entre as populaes pr-coloniais. Os dados disponveis nos permitem atribuir o incio do povoamento aos grupos de caadores-coletores que se instalaram nestas paisagens aproximadamente no incio do perodo holocnico. Novas levas populacionais compostas por grupos ceramistas-horticultores teriam atingido a regio h cerca de dois mil anos atrs, alterando consideravelmente a dinmica de povoamento nos vales do Jacu e nas matas de araucria do planalto. Sua insero geogrfica na poro centro-norte do Estado caracteriza a regio como uma zona de convergncia e transio de diversas caractersticas do meio fsico e bitico.

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O tratamento analtico e interpretativo das informaes nos permite atribuir um carter de fronteira ao Alto Jacu. Com a definio dos padres de assentamento destas populaes, podemos relacionar cada grupo a um determinado ambiente, porm, a mobilidade sazonal, a fisso tnica, o crescimento populacional, a necessidade de expanso territorial, entre outros fatores, impulsionaram os fenmenos de contato nas reas de limites entre esses ambientes. As interaes culturais entre as sociedades humanas pr-histricas se refletiam, entre outras instncias, em sua cultura material. A perspectiva da arqueologia contextual nos permite integrar a semiologia e abordar a cultura material considerando tambm seu contedo simblico no contexto cultural, onde a evidncia de contato tambm interpretada em razo de sua funo social, como elemento identitrio construdo e articulado numa zona de fronteira. A interpretao das informaes arqueolgicas pautada sob este vis pode nos fornecer indcios acerca das formas de interao, integrao e organizao social ocorridas em reas de fronteira. Neste sentido, estruturamos a pesquisa em cinco captulos, onde so apresentadas as concepes terico-conceituais, a delimitao geogrfica e temporal do objeto de estudos, as fontes utilizadas e o contexto de surgimento da espcie humana, sua expanso e a ocupao do Alto Jacu. No captulo inicial, destacamos brevemente o desenvolvimento da cincia arqueolgica e suas principais correntes tericas, bem como as concepes de histria e prhistria utilizadas, alm de uma breve abordagem sobre a aplicabilidade do conceito de regio em pesquisas arqueolgicas. O segundo captulo destinado apresentao e descrio do Alto Jacu. Levando em conta a abrangncia temporal da pesquisa, consideramos vlida uma apreciao sucinta do contexto ambiental, partindo desde o final da ltima glaciao no perodo pleistocnico, destacando seus principais aspectos relativos fauna e flora, alm de elementos paleoclimticos, abrangendo o perodo holocnico, a configurao da paisagem e seus principais eventos climticos. As fontes bibliogrficas e documentais que subsidiaram a elaborao de um panorama geral do povoamento pr-histrico do Alto Jacu so abordadas no terceiro captulo, onde compilamos os resultados das principais pesquisas arqueolgicas, e realizamos o cruzamento dos dados bibliogrficos e documentais de cunho etnohistrico e antropolgico.12

O penltimo captulo destinado ambientao da temtica central, a partir de uma abordagem que compreende o perodo de tempo que vai desde o surgimento do homem, a sada do continente africano, e a chegada dos primeiros grupos humanos ao Brasil e Rio Grande do Sul. Por fim, no captulo final apresentamos um panorama geral dos processos de povoamento analisados sob a perspectiva do registro arqueolgico e dos padres de assentamento das populaes pr-coloniais, de forma articulada s caractersticas do meio fsico e bitico, onde contextualizamos o Alto Jacu como uma importante rota de migrao, difuso cultural e contato inter-tnico, enfim, uma zona de fronteira.

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1. CONCEPES TERICO-CONCEITUAIS

Tendo em vista que o conhecimento humano no absoluto, mas resultado de uma relao dialtica em constante gestao, fruto de interpretaes influenciadas por ideias, experincias, valores, entre outros fatores inerentes ao seu contexto histrico, compreensvel que determinados conceitos sejam interpretados ou at mesmo reformulados a fim de se adequar ao objeto de estudo. Percebe-se ento que certas estruturas do conhecimento no so absolutas, no decorrer de uma pesquisa logo percebemos muitas palavras, conceitos e teorias com significados em constante mutao. Partindo do pressuposto que, um indivduo ao se expressar, dificilmente o faz de forma dissociada de suas concepes de mundo, mesmo que seu objetivo seja a imparcialidade, torna-se necessrio esclarecer alguns conceitos e pressupostos terico-conceituais que pautaram o desenvolvimento da presente pesquisa. Pretende-se neste captulo inicial, elucidar brevemente o desenvolvimento da cincia arqueolgica e suas principais correntes tericas. Em seguida apresentamos as concepes de histria e pr-histria aqui utilizadas, e, por fim, realizamos uma breve abordagem sobre a aplicabilidade do conceito de regio em pesquisas arqueolgicas.

1.1 Arqueologia: contextualizao e paradigmas terico-conceituais

Em se tratando do estudo das populaes pr-histricas, praticamente impossvel no recorrer Arqueologia, uma cincia que desde seu surgimento tem contribudo de forma decisiva para a compreenso do passado remoto das sociedades. A arqueologia se consolidou como uma cincia social no sculo XIX. Em sua origem etimolgica significa o "estudo do antigo". As sociedades constituem seu foco de estudo, mais especificamente, ela se dedica ao estudo dos costumes, da cultura, do desenvolvimento evolutivo, enfim, do modo de vida das sociedades passadas, as quais no so necessariamente extintas, pois o passado recente de sociedades contemporneas tambm fornece subsdios para a pesquisa arqueolgica.14

Quanto ao surgimento desta cincia e seu reconhecimento como tal, evidente que seja resultado de um processo de amadurecimento. "A Arqueologia deve sua origem aos colecionadores de antiguidades. Somente no sculo XIX voltou-se para a pr-histria e histria, ocupando-se da reconstituio da histria humana remota e ajudando historiadores a conhecer os perodos pouco esclarecidos pelos relatos escritos1" (KACZANOWSKI & KOZOWSKI, 1998, p. 14). Em seus primrdios, portanto, os colecionadores tiveram um papel importante. No entanto, neste perodo, no havia qualquer preocupao com uma anlise mais acurada dos objetos. Eles apenas eram reunidos com o intuito de compor uma coleo, desconsiderando o fato de que uma anlise detalhada dos vestgios no contexto em que foram encontrados poderia resultar no levantamento de informaes acerca dos povos e culturas que desenvolveram tais objetos, permitindo realizar uma associao com sua origem e compreender, pelo menos parcialmente, o modo de vida destas populaes, e no apenas constituir uma coleo de objetos sem qualquer relao com seus artfices. Tal preocupao somente manifestou-se de forma expressiva quando lideranas polticas e econmicas perceberam certa convenincia no estabelecimento de relaes entre as civilizaes passadas e contemporneas com o intuito de defender interesses nacionalistas e imperialistas. Para o arquelogo Pedro Paulo Funari (2003, p. 9-10), a arqueologia surgiu no bojo do Imperialismo do sculo XIX, como um subproduto da expanso das potncias coloniais europias e dos Estados Unidos, que procuravam enriquecer explorando outros territrios. O imperialismo encontrava-se extremamente latente no sculo XIX. Pases como Alemanha, Frana, Reino Unido, Itlia, Japo e Estados Unidos, desejavam estender seus domnios subjugando o maior nmero possvel de povos e territrios, visando constituir verdadeiros imprios. A efervescncia deste desejo imperialista, tambm chamado de neocolonialismo, acabou levando ecloso da Primeira Guerra Mundial em 1914. Na poca no havia territrios suficientes para serem colonizados, o desejo de expanso era praticamente ilimitado. Era preciso encontrar uma forma de legitimar a ao imperialista sobre territrios pertencentes a outros pases. Vislumbrou-se uma possibilidade atravs da cincia arqueolgica.1

As citaes de originais escritos em lngua inglesa, espanhola e polaca, foram traduzidas livremente pelo autor. 15

Neste perodo comearam a ser desenvolvidas algumas pesquisas com a finalidade de estabelecer um elo entre os atuais imprios e os povos do passado, ou seja, caso determinada nao provasse que seus ancestrais ocupavam o territrio de um pas vizinho, e investissem na valorizao de seus feitos reconhecendo-se como herdeiros daqueles antepassados, poderiam argumentar que tinham o direito primordial sobre determinada poro territorial. Numa outra faceta, naes dominadas poderiam fortalecer seu sentimento nacionalista, reconhecendo sua identidade e ensejando a independncia. A Itlia, por exemplo, poderia lanar-se na conquista de territrios outrora dominados pelo Imprio Romano. Este projeto, inclusive, foi posto em prtica pelo lder fascista Benito Mussolini, atravs de um regime poltico totalitrio. Felizmente, sua iniciativa acabou sendo frustrada. A relao entre arqueologia e poltica muito estreita. Frequentemente a primeira utilizada para legitimar a segunda. A "Arqueologia sempre poltica, responde a necessidades poltico-ideolgicas dos grupos em conflito nas sociedades contemporneas" (CLIVE GABLE apud FUNARI, 2003, p. 100). Para Philip L. Kohl, o controle do passado propicia a legitimao do controle do presente2 (1998, p. 236). A partir do momento em que determinada cultura apresenta-se desprovida de conhecimento acerca de seu passado, cria-se um campo frtil para a introduo de ideologias polticas calcadas na manipulao da identidade nacional, posteriormente utilizada para legitimar eventuais prticas autoritrias ou at mesmo expandir domnios territoriais abarcando regies caracterizadas pela pluralidade de identidades. No mbito das pesquisas arqueolgicas orientadas sob este vis, as populaes nativas eram vistas como provas vivas de estgios primitivos da humanidade, e qualquer elemento que representasse um desenvolvimento avanado da cultura local era prontamente relacionado origens externas, remetendo preferencialmente s origens do colonizador.

Onde quer que os colonos europeus estivessem empenhados em estabelecerse em meio a populaes nativas, o desenvolvimento da arqueologia tinha muito em comum. Presumia-se que as sociedades nativas eram estticas e as evidncias de mudanas no registro arqueolgico, quando notadas, eram atribudas a migraes, e no ao dinamismo interno. O racismo subjacente a determinadas interpretaes era sempre mais implcito que declarado. Fosse2

Traduo livre. 16

como fosse, a arqueologia colonialista servia depreciao das sociedades nativas que os colonizadores europeus queriam dominar, ou substituir: oferecia aos colonizadores testemunhos de que, em tempos pr-histricos, faltara aos colonizados iniciativa para desenvolver-se por conta prpria (TRIGGER, 2004, p. 141).

Percebe-se, uma forte relao entre poltica e arqueologia. "No se trata apenas de justificar certas relaes de poder, ou de fortalecer certas ideologias, mas de legitim-las pela presena de testemunhos materiais que dem sustentao cientfica a essas pretenses" (FUNARI, 2003, p. 101). No Brasil, temos como exemplo a ao imperialista dos Estados Unidos atravs da aplicao do Programa Nacional de Pesquisas Arqueolgicas (PRONAPA), criado durante o perodo da ditadura militar, em parceria com instituies de pesquisas brasileiras, mas comandado pelos norte-americanos. Tal programa pretendia utilizar a arqueologia para fortalecer sua supremacia no continente, concedendo aos Estados Unidos uma espcie de "direito legtimo" sobre o restante do continente, o que no apenas justificaria como tambm legitimaria sua frequente poltica de interveno em pases latino-americanos. O reflexo desta poltica perceptvel ainda hoje no senso comum da maioria dos brasileiros, segundo o qual as populaes pr-histricas que aqui viviam no passavam de culturas arcaicas, sendo recorrente a busca de um ponto de referncia para o imaginrio do indgena americano na cultura estadunidense. A atuao do PRONAPA foi ajustada aos pressupostos da escola terica HistricoCultural, modelo extremamente difundido na arqueologia mundial at os dias atuais, pautado pela influncia do evolucionismo cultural e dos preceitos do determinismo ecolgico e ambiental. O projeto foi desenvolvido durante os anos de 1965 e 1970, sendo o responsvel pela qualificao de muitos pesquisadores que se tornaram expoentes na arqueologia durante as dcadas seguintes. Posteriormente teve sua continuidade num programa dedicado exclusivamente a pesquisas na Amaznia. No entanto, segundo Funari (2003, p. 26), seus coordenadores, "Betty Meggers e Cliford Evans treinaram alguns brasileiros em uma prtica de campo defasada, sem nenhuma preocupao interpretativa, deixando de lado qualquer pretenso universitria". Em termos de abrangncia territorial, financiamento e stios arqueolgicos prospectados, este programa singular, at o momento no foi superado. Betty Meggers17

estendeu as pesquisas a outros pases da "rea de influncia" dos Estados Unidos, a exemplo da Colmbia, Venezuela, Mxico e Chile, este, assim como o Brasil, encontrava-se em pleno perodo da ditadura militar, sob o comando do Augusto Pinochet. notria a ao dos militares em relao a intelectuais que contestavam o regime. No caso da arqueologia no foi diferente. Alguns pesquisadores realmente comprometidos com desenvolvimento desta cincia, orientando-se sob uma tica crtica e humanista, foram perseguidos e forados a se exilar, sendo em seguida substitudos por outros arquelogos representantes de uma produo cientfica compatvel com os ideais do regime poltico vigente, os quais, obviamente, favoreciam o projeto norte-americano. Houve, contudo, tentativas de se introduzir alternativas tericas e metodolgicas para o desenvolvimento de pesquisas arqueolgicas no Brasil. Cabe destacar a importncia da Misso Franco-Brasileira, coordenada por Anette Laming-Emperaire, iniciada na dcada de 1970 e atuante ainda hoje, sobretudo, no Piau. fruto de um convnio entre um centro de pesquisas francs e instituies brasileiras de ensino e pesquisa. A vertente arqueolgica francesa, inspirada no estruturalismo, teve um grande desenvolvimento no perodo entre guerras. O arquelogo Andr Leroi-Gourhan considerado seu principal expoente, responsvel pela introduo de mtodos de pesquisa que conferem grande relevncia a interpretao do contexto geral em que os vestgios arqueolgicos so encontrados, contando com o auxlio de abordagens etnogrficas. As descobertas resultantes da Misso Franco-Brasileira so de extrema importncia, pois ampliou-se significativamente o conhecimento acerca do povoamento do continente americano. No Brasil, alm da influncia das escolas tericas histrico-cultural e francesa, percebemos o desenvolvimento de abordagens associadas a pelo menos outras duas tendncias, a escola processual e a ps-processual. A escola processual, tambm conhecida como Nova Arqueologia (New Archaeology), surgiu na dcada de 1960 nos EUA como reao ao carter historicista da arqueologia histrico-cultural, considerada pouco analtica e meramente descritiva. Nesta corrente terica, apoiada numa perspectiva processualista e funcionalista, a arqueologia tratada como uma vertente da antropologia, privilegiando interpretaes materialistas, onde as diversidades culturais adquirem pouca relevncia (FUNARI, 2007). Defende a utilizao de modelos interpretativos que conferem um carter cientfico anlise dos processos culturais e das18

mudanas ocorridas nas culturas arqueolgicas, eixo central do trabalho do arquelogo. Entre os principais responsveis pela sua popularizao encontramos o arquelogo estadunidense Lewis Binford, que identificava o objeto da arqueologia como sendo o mesmo tradicionalmente consignado antropologia: explicar o amplo espectro de semelhanas e diferenas no comportamento cultural (TRIGGER, 2004, p. 287). Por sua vez, a chamada arqueologia ps-processual ou contextual, capitaneada pelo ingls Ian Hodder, propicia uma reaproximao com a histria, que neste momento j tem seu campo de atuao dilatado pelas propostas da Escola dos Annales e mais especificamente da Nova Histria, onde os aspectos culturais e os vestgios arqueolgicos, entre outros elementos, adquirem um carter de documento, propiciando novas interpretaes. Seus postulados nortearam o desenvolvimento da presente pesquisa, tendo como principais implicaes a interdisciplinaridade, a interpretao integrada dos vestgios arqueolgicos com o contexto do meio fsico, e, sobretudo, a possibilidade de considerar a importncia dos elementos de ordem cultural no processo de estabelecimento de redes de interao e fronteiras sociais. Esta nova postura terico-metodolgica de carter interdisciplinar faz uso de tcnicas de escavao em grande escala, a exemplo da corrente francesa, alm de incorporar mtodos de pesquisa oriundos de outras disciplinas capazes de contribuir para a interpretao contextual dos stios e vestgios arqueolgicos (biofatos, ecofatos, artefatos) e, consequentemente, dos processos de ocupao humana, buscando integrar os diversos achados num contexto de associao de informaes. Ao contrrio da Nova Arqueologia, o ps-processualismo renuncia busca pela verdade absoluta atravs do mtodo cientfico. Procura estimular a pluralidade de interpretaes e descarta a possibilidade de abordagens imparciais, enfatizando a necessidade de interpretar os vestgios materiais levando em conta a amplitude de seu contexto cultural. O enfoque contextual baseia-se na convico de que os pesquisadores precisam examinar todos os aspectos possveis de uma determinada cultura arqueolgica afim de compreender o significado de cada uma das suas partes (TRIGGER, 2004, p. 340). Nesta conjuntura, uma abordagem apoiada na articulao dos elementos locais com o contexto regional produzir um panorama abrangente das formas de ocupao e interao com o espao.

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Sob este vis, para reconstituir o modo de vida das geraes passadas, preciso, antes de tudo, analisar a multiplicidade de vestgios por elas deixados, levando em conta, inclusive a funo social da cultura material das populaes pr-histricas. Neste caso, o conceito tradicional de documento histrico relativizado, e passa a ser substitudo por elementos de ordem cultural. As definies de cultura so deveras abrangentes e variadas, estabelecer uma conceituao de cultura que seja considerada unnime praticamente uma tarefa impossvel, j que as opinies so to diversas quanto a prpria cultura (MALLMANN VICROSKI, 2009, p. 9). Tendo em vista sua importncia para esta pesquisa, nos deteremos rapidamente ao esclarecimento das concepes da terminologia aqui adotada. Para Alfredo M. de Souza (1997, p. 41), cultura um termo polissmico e de difcil apreenso, cultura pode ser entendida como cada uma das atividades humanas, seja representada por um objeto, utenslio ou artefato (cultura material), seja um costume, uma crena (cultura no material). Entende-se por cultura material o conjunto de vestgios palpveis resultantes da ao humana, seja uma pedra lascada, um recipiente cermico, um canal para desviar a gua de um rio, um quilombo, uma moradia, as runas de uma antiga cidade, armas, utenslios domsticos, entre outros, enquanto a cultura imaterial abarca os elementos intangveis, como uma cano, um poema, topnimos, culinria, tradies, festas, danas, organizao social, religio, folclore, enfim, ambos os conceitos englobam praticamente toda e qualquer representao da atividade humana. Estes vestgios constituem, em certo ponto, o reflexo das sociedades que os produziram, e sua anlise aliada interpretao do contexto ambiental do stio arqueolgico permite realizar inferncias acerca de seus valores, crenas, costumes, entre outros fatores. Na arqueologia, sobretudo, na perspectiva histrico-cultural, o termo cultura tambm utilizado como denominador de um conjunto de elementos semelhantes, resultantes das atividades humanas, que ocorre de forma associada e peridica, representando um determinado povo ocupando um espao fsico especfico ao longo de um perodo temporal. J para a Arqueologia Processual, a cultura entendida como um sistema com atributos interativos que formam um conjunto, sua anlise pode possibilitar a identificao de padres de funcionamento de um organismo social.

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Para o desenvolvimento desta pesquisa foi de grande valia a concepo de cultura atrelada ao conceito de documento histrico, onde qualquer forma de registro da presena humana na terra, seja ele material ou imaterial, passvel de anlise, e passa a ser entendido como um documento.Com a multiplicao dos documentos interpretativos sobre o passado, a histria se ligou a outras cincias, preponderando hoje em certos trabalhos historiogrficos a contribuio de cincias auxiliares, que possibilitaram aos historiadores o contato com fontes antes distantes da Histria e os levaram a assuntos mais especficos. As fontes histricas da cultura material humana ainda hoje esto ligadas Arqueologia, pois, essa pretende cientificamente coletar vestgios materiais que o homem produziu e dot-los de sentidos conectando interdisciplinarmente os conhecimentos que possam auxiliar nessa busca pelo passado (SANTOS, 2010, p. 221-222).

Nem todas as sociedades passadas nos legaram documentos escritos, neste caso os vestgios materiais e imateriais adquirem carter de fonte documental, permitindo ampliar a construo do conhecimento acerca do cotidiano das sociedades humanas remotas. Segundo a concepo de Santos (2010, p. 224), a abordagem histrica orientada sob este vis recua rumo ao passado longnquo do desenvolvimento social humano, chamada Pr-Histria, que no deixou documentos escritos compreensveis para a interpretao contempornea do homem, mas construiu uma cultura material gigantesca e riqussima. Cultura e documento so entendidos aqui como conceitos amplos, representando elementos dotados de historicidade. Podem apresentar variaes e diferentes usos de acordo com os pressupostos das tendncias terico-conceituais. Outro elemento a ser considerado no processo de definio e aplicao de determinados conceitos e procedimentos metodolgicos est frequentemente relacionado aos objetivos da pesquisa. No caso especfico do Brasil, o atrelamento da pesquisa arqueolgica ao licenciamento ambiental mais um fator a ser somado. A partir da dcada de 1980, atravs de uma resoluo do Conselho Nacional de Meio Ambiente3 (CONAMA), tornou-se obrigatrio o desenvolvimento de estudos de impacto ambiental visando o licenciamento de empreendimentos potencialmente causadores de impactos negativos ao meio ambiente, como obras de infra-estrutura relacionadas construo de usinas hidreltricas, rodovias, linhas de transmisso de energia eltrica,

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aeroportos, gasodutos, ferrovias, aterros sanitrios, entre outros. Incluiu-se nestes estudos a necessidade do desenvolvimento de programas de avaliao do patrimnio arqueolgico ameaado pelas obras, objetivando assim, "avaliar o grau de impactos que o patrimnio poder sofrer, com a execuo do empreendimento, propondo alternativas que minimizem as perdas" (CODEIRO, 2005, p. 42). Os stios arqueolgicos, independente do local onde esto situados, seja em rea pblica ou privada, constituem bens da Unio, protegidos por Lei Federal. No caso de stios arqueolgicos ameaados, torna-se imprescindvel o desenvolvimento de um projeto que vise o resgate deste patrimnio. Os vestgios arqueolgicos ali presentes devero ser removidos e enviados para estudos, as informaes resultantes de sua anlise podero retornar sociedade. Seu acesso pode ser possibilitado atravs de instituies como museus, casas de cultura e universidades, em caso de inexistncia de tais espaos, os responsveis pelo empreendimento podero, como contrapartida, possibilitar a criao de tais locais. Esta legislao representou um importante avano em termos de preservao ambiental, propiciando o desenvolvimento da chamada arqueologia de contrato e/ou arqueologia em obras de engenharia, aumentando consideravelmente o fluxo das pesquisas arqueolgicas, at ento limitadas ao meio acadmico. A arqueologia de contrato possui suas limitaes. Muitas vezes precisa se adequar a cronogramas incompatveis, o espao pesquisado restrito, limita-se rea de influncia do empreendimento, o que nem sempre corresponde abrangncia dos vestgios, resultando numa interpretao parcial do contexto arqueolgico. Contudo, registram-se experincias positivas, onde so desenvolvidas pesquisas de qualidade, comprometidas com a construo e difuso do conhecimento, com contribuies significativas ao desenvolvimento da arqueologia no Brasil. Esta conjuntura tem propiciado a aplicao de uma variedade de paradigmas e procedimentos terico-metodolgicos. As principais escolas aqui descritas ramificam-se em diversas correntes interpretativas. Segundo Funari (2007), este contexto de convivncia entre diferentes e at mesmo contraditrias teorias arqueolgicas, atualmente constitui uma caracterstica salutar desta cincia. Este breve panorama do desenvolvimento e afirmao da cincia arqueolgica ora apresentado serviu para introduzirmos a temtica bem como explicitar os posicionamentos3

CONAMA N 001/86, de 23 de janeiro de 1986. 22

terico-conceituais adotados. Dentro das possibilidades tericas descritas, e considerando a natureza da linha de pesquisa do programa de ps-graduao, tomamos como pressupostos norteadores ao desenvolvimento da presente pesquisa, os preceitos difundidos pela escola ps-processual ou contextual, que alm de propiciar uma fecunda aproximao entre histria e arqueologia, alinhada aos objetivos da pesquisa, tambm permite a ampliao das possibilidades interpretativas e da insero dos elementos analisados num contexto amplo e articulado com elementos de ordem imaterial.

1.2 Histria e Pr-histria: Conceituao e Periodizao

Ao iniciarmos uma investigao sobre o passado humano remoto, logo percebemos a variabilidade de alguns conceitos. Dentre os mais polmicos, certamente, podemos citar o termo pr-histria, discutvel tanto pela sua frgil fundamentao como pela sua aplicabilidade em contextos distintos de sua utilizao original. A fim de elucidar e, sobretudo, fundamentar a definio de pr-histria aqui adotada, abordaremos brevemente alguns aspectos relacionados ao desenvolvimento cientfico do conhecimento histrico. As discusses em torno das metodologias e tcnicas utilizadas para a produo historiogrfica produziram uma srie de reflexes que possuem hoje sua prpria trajetria histrica, onde argumenta-se no apenas sobre sua significao, mtodos e funes, mas tambm sobre a classificao ou no da histria como cincia. Em sua origem etimolgica, a palavra histria significa investigao. Atualmente a utilizamos para definir o estudo da ao humana ao longo dos tempos. Para Edward Carr (1996), a definio de histria uma concepo particular, e pode variar de acordo com a viso que cada um tem de seu tempo e da sociedade em que est inserido. Devemos considerar a importncia do conhecimento acerca da existncia humana e as formas de interao com o mundo. Segundo o historiador britnico Eric Hobsbawn "o passado e a Histria podem e so usados para legitimar aes do presente, aes polticas de diferentes cunhos, nacionalistas, tnicos, etc" (apud Silva & Silva 2006, p.184).

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H tambm as concepes de histria que buscam questionar sua cientificidade, como as abordagens defendidas por Paul Veyne e Hayden White, onde rotulada como um gnero literrio, comparvel fico. Portanto, mais prxima da arte do que da cincia, relativizando assim, a cientificidade histrica como nico conhecimento possvel. J no entendimento de Borges (2007), histria pode ser entendida como a totalidade dos acontecimentos ocorridos no universo, suas constantes transformaes e o estudo destes eventos. Desde seus primrdios, a funo atribuda histria foi a de fornecer sociedade informaes acerca das transformaes ocorridas ao longo do tempo, e o papel do homem nestas mudanas, ou seja, a histria busca uma explicao sobre ela mesma (BORGES, 2007). No podemos apresentar uma definio rgida para a histria, em virtude de sua conceituao varivel. A prpria discusso em torno de sua classificao insere-se numa perspectiva de constante mutao, atrelada a transformaes de carter social, poltico e cultural. Estes fatores, no entanto, no impedem que a pesquisa histrica seja desenvolvida, independentemente de sua classificao como cincia ou disciplina, ela possui valor social. necessrio, porm, delimitar o foco da abordagem e a corrente historiogrfica a ser adotada, permitindo uma anlise coerente do objeto de pesquisa. Nos servimos dos pressupostos conceituais da Nova Histria, visando a pluridisciplinaridade, sobretudo, a aproximao entre histria e arqueologia, alm de sua concepo de que toda atividade humana portadora de histria, bem como a possibilidade de ampliao do conceito de documento histrico, onde o registro arqueolgico pode ser visto como documentao involuntria. Nesta concepo, preconizada pela Escola dos Annales, a histria vista como uma cincia. A Nova Histria representa uma renovao na concepo de tempo e histria, busca uma aproximao com as demais cincias sociais e serve-se de todas as fontes documentais para preencher as lacunas no conhecimento, integrando assim o registro arqueolgico, etnohistrico, pictogrfico, iconogrfico, oral, enfim, toda forma de registro material e imaterial, privilegiando a documentao massiva e involuntria em detrimento da documentao oficial.A Escola dos Annales mudou radicalmente o conceito de interpretao histrica e conseqentemente a noo de documento como fonte fidedigna do passado histrico. Os trabalhos desenvolvidos pelos historiadores dos Annales renovaram totalmente as fontes documentais, agora vistas como24

tudo o que o homem fez, e no apenas aquilo que escreveu. No havia mais o documento verdadeiro e inquestionvel, pois, tudo o que a humanidade produziu nas suas mais variadas formas agora era visto como fonte de interpretao, como formas de representao da mentalidade humana, e foram produzidas voluntria ou involuntariamente para represent-los. Para os fundadores dos Annales as reflexes sobre a Histria teriam que ter um carter interdisciplinar e a gama de possibilidades de se fazer um trabalho historiogrfico agora passaria por vrios domnios cientficos (SANTOS, 2010, p. 223-224).

Alm de dilatar a abrangncia do conceito de documento histrico, o estudo do passado das sociedades americanas exige que se faa alguns esclarecimento, sobretudo, com relao a periodizao da histria ocidental. Em virtude da colonizao do continente americano pelos europeus, sua histria sempre foi atrelada sociedade europia, tida como central e padro de desenvolvimento, em detrimento da valorizao das sociedades nativas com conhecimento histrico baseado na oralidade. Buscou-se na histria europia, acontecimentos importantes para serem tomados como marcos histricos da evoluo humana, estabelecendo-se assim uma linha de evoluo cronolgica.

Em funo disso, no Ocidente, tornou-se tradicional seguir a diviso da histria baseada nos marcos da histria europia, em: Idade Antiga, Idade Mdia, Idade Moderna e Idade Contempornea. O marco inicial corresponde inveno da escrita, por volta de 5000 a.C. Toda a trajetria anterior dos homens, desde o aparecimento dos homindeos sobre a face da Terra, tem sido tradicionalmente denominada de Pr-histria (MOTA & BRAICK, 2005, p. 14).

Evidente que no s a histria antiga das sociedades locais, mas a prpria populao autctone em geral foi desconsiderada. As relaes de alteridade entre nativos e europeus predominantemente acabaram refletindo no mundo ocidental o ponto de vista do colonizador, que, salvo raras excees, qualificou os povos americanos como inferiores, em comparao com a sociedade europia, a qual tomavam como referncia exemplar. Este pensamento eurocntrico, revestido de preconceito, presente na sociedade ocidental, impregnou a historiografia da poca, sendo perpetuado ainda hoje, mesmo com menor intensidade, pode ainda ser percebido em livros e at mesmo em polticas pblicas que desconsideram os

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remanescentes destas populaes, muitas vezes pela mesma razo de outrora, a incompreenso e consequente desvalorizao de sua organizao social. Os processos de desenvolvimento das sociedades humanas observados no continente americano so distintos daqueles ocorridos na Europa (onde tampouco foram homogneos). Consequentemente, a aplicao de uma cronologia histrica eurocntrica para a Amrica seria de pouca serventia. Um exemplo da fragilidade desta cronologia - questionada inicialmente por Claude Lvy Strauss e Marcel Mauss - a diviso entre pr-histria e histria, tendo como marco delimitador a inveno da escrita. Alm de no produzir resultados satisfatrios ainda contribui para o desenvolvimento de um sentimento de inferioridade em relao prhistria, sugerindo a existncia de uma organizao social arcaica entre as populaes grafas, desconsiderando a complexidade de sua cultura e as diversas formas de comunicao existentes.

Existe uma certa dose de preconceito nessa definio, que coloca margem da histria todos os povos que no fazem uso da escrita. Hoje em dia, existem grupamentos que desconhecem a escrita e, apesar disso, so agentes de sua prpria histria. A mesma coisa ocorreu no passado. Sendo assim, se acreditarmos que o sujeito da Histria o homem, ento ele fez histria desde que surgiu no planeta (MOTA & BRAICK, 2005, p. 14).

Os problemas de incompatibilidade resultantes da aplicao desta cronologia para o estudo da pr-histria em nosso continente so inmeros. No caso do Brasil, o "fim" da prhistria e o "incio" da histria possuem at mesmo uma data estabelecida: um fim de tarde, no dia 22 de abril de 1500; ou seja, o dia da chegada dos portugueses em territrio brasileiro, quando desembarcaram trouxeram consigo a escrita. Isto se considerarmos que esta data realmente corresponda chegada dos portugueses em solo brasileiro, j que nas ltimas dcadas as revises historiogrficas acerca do perodo das grandes navegaes resultaram em importantes contribuies e reformulaes. A verso tida como oficial, at pouco tempo transmitida pelos livros de histria e difundida nas escolas brasileiras, do conta de que a esquadra comandada por Pedro lvares Cabral teria chegado ao Brasil por mero acaso, devido a um desvio de rota. Hoje esta idia amplamente refutada, as pesquisas apontam no apenas para o carter sigiloso e premeditado da expedio, como tambm para a chegada do europeu ao Brasil antes mesmo de 1500. O26

que se percebe uma tendncia ao enfraquecimento desta viso tradicional, onde apenas o europeu o sujeito da histria. Certamente, a chegada dos portugueses inaugurou um novo perodo nos processos de ocupao deste territrio, mas isto no se deve apenas ao surgimento da escrita, mas sim a uma srie de mudanas resultantes do processo de colonizao. Os colonizadores europeus acreditavam que a histria era feita somente a partir do estudo dos documentos escritos, e, portanto, determinaram a periodizao corrente. Segundo T. Cuyler Young Jr. (1988), a distino feita entre histria e pr-histria no segue nenhum critrio prtico significativo. A utilizao do surgimento da escrita como marco divisor artificial e de pouca serventia, j que a escrita constitui apenas uma entre tantas outras formas de comunicao utilizadas pela humanidade ao longo de sua existncia. Hoje possumos indcios suficientes que atestam a utilizao da escrita em continente americano antes da chegada dos colonizadores, at mesmo no Brasil. "Na verdade, muitos povos americanos tinham sistemas de registros comparveis escrita, como os povos nambiquaras e tupis, na forma de pinturas corporais, adereos e decoraes de objetos" (FUNARI & NOELLI, 2002, p.13). O estabelecimento de marcos histricos com o intuito de se delinear a trajetria humana na terra foi elaborado com o propsito de facilitar a pesquisa e o dilogo entre os pesquisadores. Todavia, preciso esclarecer que a evoluo humana, em termos do desenvolvimento de sua adaptabilidade ao meio fsico e social, nem sempre ocorreu de forma sistemtica em todas as partes do mundo, havendo assim ressalvas generalizao de determinadas classificaes. Contudo, quando bem utilizada, uma cronologia histrica pode contribuir para o desenvolvimento das pesquisas. Por isso no devemos descartar tal critrio, nem tampouco aplic-lo de forma indiscriminada. preciso, antes, avaliar sua compatibilidade com o contexto histrico em questo, e, quando necessrio, reestrutur-lo. Ao tratar da pr-histria do Brasil, Funari e Noelli (2002) discorrem inicialmente sobre o que o Brasil. Este pas, como o conhecemos hoje, ou seja, com a atual organizao social, poltica e econmica teve seus primrdios no ano de 1822, quando foi proclamada sua independncia.

[...] o Brasil uma inveno, por assim dizer, recente e que quando se fala em "Brasil colonial", como aprendemos na escola e nos livros, estamos transpondo para o passado um conceito de nao brasileira que nosso, de27

nossa poca, para um perodo em que no existia o pas (FUNARI & NOELLI, 2002, p.10).

De certa forma, poderamos denominar de pr-histria o perodo que vai desde o surgimento do homem neste territrio at a proclamao da independncia no ano de 1822 (FUNARI & NOELLI, 2002). Atualmente dispomos de uma variedade de denominaes para designar este perodo histrico. Dentre os mais usuais temos a histria pr-colonial, histria indgena, histria pr-cabralina ou histria antiga americana, que surgem como alternativas utilizao da nomenclatura tradicional, com o intuito de extinguir ou pelo menos amenizar a conotao pejorativa que o termo pr-histria adquiriu ao longo do tempo. Tais denominaes podem ser tratadas como sinnimos, sem prejuzos pesquisa histrica, o que na prtica j vem sendo observado de forma progressiva na historiografia contempornea. preciso considerar que os significados e juzos de valor no so inerentes s palavras, mas atribudos de forma a corresponder necessidade de comunicao da sociedade, de maneira que valores e preconceitos podem migrar de uma expresso outra, j que a simples substituio de palavras no garante a troca de significados com relao ao elemento a ser denominado. No caso da pr-histria, no apenas a expresso tem sido usada como sinnimo de algo arcaico, mas, sobretudo, o perodo histrico a que se refere e as populaes humanas representativas deste contexto, tornando mais coerente a utilizao contextualizada do termo a fim de reforar sua imagem positiva, ao invs de promover sua substituio por termos que eventualmente podero perpetuar as mesmas concepes de cunho negativo, privilegiando assim a desvinculao da imagem pejorativa da sociedade em relao ao perodo pr-histrico e no somente em relao terminologia a ele relacionada. Em virtude da consolidao da expresso pr-histria no meio acadmico, e sua utilizao recorrente na bibliografia consultada, optamos pela manuteno do termo ajustando-o de acordo com as perspectivas tericas adotadas e o contexto histrico em questo.

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1.3 Periodizao da Pr-Histria no Alto Jacu

consensual que a colonizao do Brasil no ocorreu de maneira uniforme em todas as regies. Ainda hoje existem reas praticamente inabitadas. Sob esta perspectiva, a fim de delimitar temporalmente as pesquisas histricas e arqueolgicas, torna-se til o estabelecimento de uma cronologia para a regio do Alto Jacu. A proposta do estabelecimento de uma periodizao histrica visa apenas facilitar o estudo dos processos de ocupao humana, buscando constituir uma cronologia compatvel com o contexto regional, fundamentada, sobretudo, em pesquisas arqueolgicas, etno-histricas e histricas. Naturalmente no se trata de uma periodizao invarivel nem tampouco definitiva, j que foi estabelecida com o intuito de delimitar temporalmente a presente pesquisa, com base nas informaes disponveis. Contudo, os dados levantados no so absolutos. Futuras abordagens desenvolvidas sob novas perspectivas ou at mesmo a continuidade das pesquisas arqueolgicas na regio eventualmente podero subsidiar a reformulao ou complementao desta cronologia. O conceito de pr-histria regional aqui adotado deve ser entendido como um perodo da histria que vai desde os primrdios do povoamento humano do Alto Jacu, partindo da transio entre o pleistoceno e holoceno, at o momento em que iniciou a colonizao efetiva da regio pelos imigrantes europeus. Nesta poca as populaes nativas viram-se definitivamente foradas a abandonar seu modo de vida tradicional, enfraquecendo sua identidade cultural e, portanto, dando incio ao processo de desaculturao dos grupos indgenas. Sob esta tica, este termo pode ser entendido como sinnimo de histria prcolonial, com enfoque regional, englobando, portanto, todo o perodo de tempo correspondente ao povoamento humano anterior a chegada do colonizador europeu a partir do sculo XVI. uma cronologia pautada por dois extremos, onde a data mais antiga remete aos primrdios da ocupao humana. Diante da insuficincia de dataes de stios arqueolgicos relativos ao perodo pleistocnico na bacia do Alto Jacu, tomar-se- como referncia o

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contexto de ocupao do Rio Grande do Sul, com dataes oscilando em torno de doze mil anos AP (Antes do Presente4). No outro extremo desta cronologia, pontuamos os primeiros sinais da presena do colonizador europeu no Rio Grande do Sul, neste primeiro momento representados predominantemente pelos portugueses e espanhis. O sculo XVI representa os primrdios do contato entre nativos e europeus, ainda que espordico. Sua presena s foi registrada de forma efetiva a partir do sculo XVII. Evidentemente a penetrao do colonizador no Estado no ocorreu de forma anloga em todas as regies, tampouco dispomos de subsdios documentais que possibilitem a realizao de inferncias precisas sobre o impacto decorrente dos primeiros contatos no cotidiano das sociedades locais. No entanto, sabemos que a chegada do elemento europeu reduziu as fronteiras indgenas, sejam elas culturais ou polticas, promovendo alteraes substanciais na dinmica das populaes locais. Para a pesquisadora tala Basile Becker, ao tratar do Rio Grande do Sul como um todo o processo geral de colonizao, responsvel pelas mudanas, comea no sculo XVI com os portugueses e espanhis, terminando, em tese, com os alemes no sculo XIX (apud SCHMITZ, 1991, p. 136). Especificamente para a regio do Alto Jacu, alm da presena de imigrantes germnicos, foi observada em grande escala a chegada de outros grupos tnicos ao longo dos sculos XIX e XX, provenientes principalmente da pennsula itlica e da Europa Central. O sculo XVI constituiu-se como o marco inicial do processo de transio entre o perodo pr-histrico (marcado pela autonomia das populaes nativas) e o perodo histrico (pautado pela emergncia da colonizao europia e o declnio do modo de vida tradicional das populaes indgenas). Entre os dois extremos cronolgicos apresentados, assinalamos ainda as importantes transformaes ambientais observadas no holoceno mdio e final (timo Climtico) e a emergncia das sociedades de ceramistas-horticultores, representada pelas migraes de populaes associadas s famlias lingusticas tupi-guarani e j meridional. Com base nos elementos apresentados, foi possvel compor uma periodizao para a pr-histria na regio do Alto Jacu (Ver figura 1), visando situar temporalmente as sociedades humanas ora pesquisadas.

A sigla A. P. utilizada como abreviao da expresso Antes do Presente. Entende-se por presente o ano de 1950, em meno dcada em que foi descoberto o mtodo de datao atravs do carbono 14. 30

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Figura 1 - Periodizao da Pr-Histria na regio do Alto Jacu

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O estabelecimento desta periodizao foi suscitado pela necessidade de delimitar cronologicamente o objeto de estudos, compondo um cenrio correspondente ao contexto da ocupao humana da regio. Cabe salientar que os processos de desenvolvimento humano no ocorrem de forma sistemtica, seguindo padres pr-estabelecidos, por isso a cronologia apresentada no pretende ser absoluta, nem tampouco definitiva, poder ser complementada e/ou reformulada de acordo com as necessidades e/ou objetivos de eventuais pesquisas futuras.

1.4 A Delimitao do Espao em Pesquisas Pr-Histricas

Pesquisas de cunho histrico e arqueolgico exigem dos pesquisadores uma capacidade de renncia de preceitos culturais que lhes acompanham praticamente desde seu nascimento. Tal desprendimento se faz necessrio a fim de no cometer anlises errneas de fatos histricos ou comportamentos intrnsecos a determinadas pocas e sociedades, impedindo a aplicao de um referencial de sociedade contempornea incompatvel com a poca e o objeto de estudos, evitando anacronismos. Naturalmente tal exerccio nem sempre possvel da forma como desejamos, pois o pesquisador muitas vezes se v impossibilitado de abdicar de determinados procedimentos, eles esto embutidos no processo de escolha do tema de pesquisa, ou ainda nos mtodos e tcnicas a serem utilizados. Quanto mais recuado no tempo estiver o elemento estudado, mais difcil se tornar esta tarefa. Nem sempre teremos a nossa disposio informaes precisas sobre a forma de pensamento e organizao social, poltica e econmica de sociedades antigas. Este um problema recorrente entre arquelogos e pr-historiadores, com exceo da arqueologia histrica que se ocupa do passado recente de sociedades contemporneas. Apesar dos avanos proporcionados pela cincia arqueolgica nas ltimas dcadas, ainda h lacunas que dificilmente sero preenchidas quando se trata do estudo de sociedades pr-histricas. Nas prximas pginas, pretende-se discorrer brevemente sobre os paradigmas que envolvem a definio e aplicao de um conceito de regio compatvel com a realidade32

estudada, e sua relao com a delimitao de reas arqueolgicas como recorte espacial aplicado s pesquisas pr-histricas. De acordo com Viscardi (s/d, p. 85) um dos primeiros problemas com o qual se defronta o pesquisador em histria regional refere-se definio de regio. Um segundo problema, decorrente do primeiro, refere-se aos critrios definidores do espao regional. Ao estabelecermos um recorte espacial a determinado objeto de estudos preciso, antes de mais nada, justificarmos nossa escolha e esclarecermos nossas acepes quanto aos critrios definidores do espao regional em foco. Segundo Heredia (1996), apesar das cincias sociais fazerem uso de uma mesma terminologia, no se tem uma linguagem comum. Por isso preciso esclarecer os conceitos, bem como seu sentido e contexto, sobretudo, quando ocupam um lugar de destaque no discurso. Houve um tempo na pesquisa histrica em que se falava de regio sem que os historiadores se perguntassem nem averiguassem seu real significado. Quando muito, recorriam geografia poltica tradicional, lanando-se assim a reconstruir questes histricas de determinados setores do planeta delimitados por coordenadas geodsicas ou por tratados polticos, denominando tais estudos de histria regional (HEREDIA, 1996).

Quando um historiador se prope a trabalhar dentro do mbito da Histria Regional, ele mostra-se interessado em estudar diretamente uma regio especfica. O espao regional, importante destacar, no estar necessariamente associado a um recorte administrativo ou geogrfico, podendo se referir a um recorte antropolgico, a um recorte cultural ou a qualquer outro recorte proposto pelo historiador de acordo com o problema histrico que ir examinar (BARROS, 2004, p. 152).

Segundo a concepo de Vera Silva (apud VISCARDI, s/d, p. 87), para se delimitar uma regio, no se deve levar em conta s os aspectos jurdicos-administrativos, nem somente aspectos exclusivamente econmicos, mas, os de ordem social e, sobretudo, poltica. Sabemos que as demarcaes polticas atuais inexistiam em tempos pr-histricos, portanto, em nada correspondiam aos limites espaciais adotados pelas populaes pr-coloniais. As nossas fronteiras municipais, regionais e/ou estaduais no teriam nenhum sentido para estes habitantes remotos, os quais, de acordo com o entendimento atual, procuravam estabelecer suas reas de domnio guiando-se geralmente por limites fsicos naturais, como rios, serras,33

vales, vegetao, alm de fatores como disponibilidade de alimentos, matria-prima para confeco de utenslios, clima, entre outros fatores. Ao longo do desenvolvimento da sociedade humana, diversas etapas evolutivas propiciaram o progresso at seu estgio atual, ampliando as possibilidades de interao com a natureza e, consequentemente, promovendo alteraes na forma de lidarmos com o meio que nos circunda, seja ele de ordem fsica ou social. As transformaes climticas ocorridas ao longo do perodo holocnico5 propiciaram a transio dos grupos humanos estruturados como caadores-coletores nmades para ceramistas-horticultores sedentrios ou semi-sedentrios. Em decorrncia deste

desenvolvimento gradual ocorreram diversas mudanas, entre as quais pode-se citar a produo de excedentes alimentares que propiciaram o escambo e acabaram por estimular as primeiras relaes comerciais, e por conseguinte a necessidade de domnio ou delimitao de fronteiras resguardando determinadas pores territoriais, alterando de forma substancial a relao do homem com a natureza. Desde ento a vastido territorial do planeta e a necessidade comum de utilizao dos recursos naturais no parecem constituir argumentos vlidos ao estabelecimento das formas de ocupao e domnio de territrios. Tal impasse deve-se em grande parte variedade de fatores que contribuem para a definio do conceito de regio. Segundo o entendimento desenvolvido pela geografia crtica a partir dos anos 1950, uma regio se organiza a partir da relao que o homem estabelece com a natureza, principalmente atravs do seu trabalho, resultando dessa troca espaos geogrficos, dotados de especificidades naturais, econmicas e humanas (REICHEL, 2006, p. 44). Da mesma forma, a histria contribui para a definio do conceito de regio, quando ela destaca que as relaes sociais, fundamentadas nas experincias vividas, nas ideias e nos sentimentos que os homens desenvolvem entre si, bem como a cultura por eles produzida, so igualmente importantes para configurar um espao delimitado ou, em outras palavras, para definir uma regio (REICHEL, 2006, p. 44). O processo de delimitao de uma regio extremamente dinmico, envolto numa srie de elementos resultantes das formas de ocupao do espao ao longo do tempo. Estendendo a discusso para a definio do conceito de fronteira, logo veremos que se trata de um fenmeno ainda mais complexo, pois alm da fronteira formal da linha, existem as

5

Perodo geolgico iniciado h aproximadamente dez mil anos. 34

fronteiras econmicas, sociais, culturais, ambientais, que podem limitar mais que a divisria (GOLIN, 2002-2004, p. 15). Para Ilmar Mattos, o espao regional socialmente construdo atravs das diferentes experincias histricas vividas por seus atores. Seus limites, antes de serem geogrficos, so limites sociais (apud VISCARDI, s/d, p. 87). A identidade tem, portanto, fundamental importncia neste processo, na medida em que atravs da manuteno de smbolos e rituais nutre, transmite e refora a memria da construo histrica da regio. Cabe salientar a multiplicidade de elementos que contribuem para a definio do conceito de regio, destacando ainda a subjetividade de tais fatores, que tambm no so estticos nem tampouco aplicveis a todas as culturas.

[...] nem todas as fronteiras e nem todos os componentes de qualquer fronteira so to objetivamente manifestos. Pode-se pensar nelas, em vez disso, como existentes nas mentes de seus observadores. As fronteiras tm carter simblico e envolvem diferentes significados de um povo para outro (GUIBERNAU, 1997, p. 91).

Heredia (1996) destaca a importncia da concepo de regio no apenas como um marco geogrfico, mas sim como uma categoria de anlise, um espao habitado e modificado pelo homem, onde se desenvolvem suas relaes sociais, constituindo, portanto, uma categoria de conhecimento do homem e no da natureza. O autor salienta tambm a importncia do imaginrio neste processo, de grande utilidade para recriar o meio natural e assim convert-lo em uma idia, em um conceito. O processo de construo de uma regio no deve ser entendido como espontneo ou desinteressado, mas sim como uma imagem construda pelos povos que habitam o espao, imagem esta vinculada apropriao, posse e proteo das fontes indispensveis sua sobrevivncia, ao bem-estar e desenvolvimento dos indivduos e da comunidade (HERERIA, 1996).

Comuma certa ousadia poderiamos dizer que o espao a ideia e a base com a qual o homem forma o conceito de regio, ou seja, uma criao do homem elaborada a partir de um olhar contemplativo e, portanto, subjetivo, do meio circundante, isto , daquele meio em que cada homem se sente como eixo e centro. Basicamente, em nvel de inteleco, a regio a ideia ou a composio sistemtica do conhecimento que se tem do meio ou do35

prprio ambiente, cuja extenso fsica e concreta compreende, obviamente, todo o espao em cuja compreenso o homem reconhece a persistncia e o predomnio daquilo que lhe pertence, que lhe familiar (HEREDIA, 1996, p. 296-297).

A regio pode ser entendida como resultado de um processo histrico e dinmico, com aguda contribuio do imaginrio, onde o homem elabora sua imagem subjetiva do meio que o cerca. Seus limites estendem-se at onde o povo (que compartilha de uma mesma imagem de regio) reconhece a presena daquilo que seu, ou seja, daquilo que lhe identificvel e com o que cada indivduo se identifica. A hegemonia sobre este territrio constitui-se num requisito fundamental formao da identidade de um povo. Comumente as pesquisas arqueolgicas so realizadas dentro de limites espaciais jurdicos-administrativos e econmicos, ou, de forma mais coerente balisado por limites fsicos, como compartimentos topogrficos, bacias hidrogrficas, serras, litoral, planalto, entre outros. A opo por um recorte regional limitado de forma artificial por fronteiras polticas no constitui necessariamente um problema, desde que sejam feitas as devidas ressalvas e que a anlise esteja articulada com o contexto geral correspondente. Viscardi referindo-se a um problema recorrente no enfoque regional diz que a regio tende a vir isolada do contexto em que se insere. Poucas ou nenhuma relaes so feitas com outras regies ou com a totalidade (s/d, p. 95). Este problema muitas vezes transferido ao processo de delimitao de uma regio em pesquisas pr-histricas, onde o estudo de determinadas sociedades limita-se a reas demarcadas por processos poltico-administrativos contemporneos, desarticuladas do contexto macro. Se no podemos obter informaes suficientes sobre os fatores determinantes dos domnios territoriais regionais utilizados pelas populaes pr-histricas, devemos, ao menos, considerar que, independente da cultura estudada, a viso de regio deve exceder do concreto e fsico para o dinmico e flutuante, considerando assim a regio como um fenmeno histrico (HEREDIA, 1996). Colin Renfrew e Paul Bahn destacam a importncia da delimitao da rea de estudo como etapa inicial da pesquisa, para ento proceder a coleta de dados de acordo com a escala correspondente. "Em primeiro lugar, devemos delimitar a regio a ser estudada: as suas36

fronteiras podem ser naturais (como um vale ou uma ilha), culturais (no mbito de um estilo artefatual) ou meramente arbitrrias, embora os limites naturais sejam os mais fceis de estabelecer (1998, p. 68). As discusses que envolvem a problemtica em torno da relao dos grupos humanos pr-histricos com o espao e o ambiente vm progressivamente suscitando indagaes. O estabelecimento de reas Arqueolgicas determinadas de acordo com as caractersticas fsicas compartilhadas por uma regio ou microrregies, com fronteiras flexveis, constitui um mecanismo que contribui para a delimitao de uma unidade de pesquisa e sua posterior coleta de dados. Para a arqueloga Gabriela Martin, uma rea arqueolgica, como categoria de entrada para o incio e continuidade sistemtica de uma pesquisa, deve ser fixada dentro de uma unidade ecolgica que participe das mesmas caractersticas geo-ambientais (2005, p. 89). As caractersticas culturais e, quando possvel cronolgicas, tambm devem ser consideradas.

As microrregies que participam das caractersticas geomorfolgicas e climticas semelhantes, podero se transformar em reas arqueolgicas quando forem assinaladas ocupaes pr-histricas que apresentem caracterizadores culturais e cronologias absolutas, relativas ou estimadas, que evidenciem a permanncia de grupos tnicos pr-histricos durante longos perodos de tempo. O princpio terico que norteia a denominao de reas arqueolgicas mais conceitual que geogrfico. Assim, as reas arqueolgicas no podem ter limites rgidos. Devero ser, pelo contrrio, dinmicos e com fronteiras flexveis, na medida em que a rea de ocupao de grupos caadores pode ser bem diferente da ocupada por agricultores ou mesmo por levas de caadores que se estabeleceram na mesma regio. Nessas reas, considera-se como fim ideal da pesquisa a relao do homem com o meio, desde as origens do povoamento at o desaparecimento dos grupos indgenas ou a sua modificao cultural pela presso colonizadora (MARTIN, 2005, p. 89).

Na etapa seguinte pode-se proceder a delimitao de enclaves pr-histricos; ou seja, categorias culturais e cronolgicas estabelecidas com base nas informaes obtidas atravs do estudo sistemtico dos stios de uma rea arqueolgica, possibilitando o conhecimento acerca dos processos de adaptao dos grupos humanos pr-histricos num determinado espaotemporal: a rea arqueolgica pode ser fixada aprioristicamente pelo arquelogo, mas a determinao do enclave tarefa do pr-historiador auxiliado por trabalhos interdisciplinares (MARTIN, 2005, p. 89).37

Neste sentido, a delimitao de bacias hidrogrficas como unidades de pesquisa ou reas arqueolgicas tem se mostrado usuais entre a comunidade acadmica, praticamente inexistem cursos dgua que, com maior ou menor intensidade, no tenham sido explorados pelas populaes indgenas que ocuparam o atual territrio nacional antes de sua colonizao pelos europeus (CALDARELLI, 1997, p.1). Tais conceitos so teis na medida em que ampliam as possibilidades de compreenso das relaes dos grupos humanos com o espao circundante, no se limitando a anlise de um nico stio, mas ampliando a abordagem a um contexto de ampla interao com o seu entorno. Deste modo, ao aplicarmos um recorte regional de cunho poltico-administrativo, ou baseado em caractersticas geomorfolgicas ao estudo de populaes pr-histricas, estamos to somente optando por determinado enfoque, que deve estar articulado com o contexto geral no qual est inserido. As barreiras fsicas so de grande relevncia, mas diante da gama de possibilidades parecem estar longe de constiturem os principais limitadores dos domnios territoriais na pr-histria regional. O conceito de regio apresentado por Heredia, assim como o processo de definio de reas arqueolgicas e enclaves pr-histricos, parece contemplar o maior nmero de elementos formadores de um espao de interao humana, mostrando-se til como categoria de anlise.

O conceito de regio, ento, sem desvincular-se da natureza ou do meio geogrfico, ergue-se acima de tudo isso e adquire consistncia prpria, sintetizando os elementos provenientes da observao do meio e do substrato ideolgico das pessoas. Este fenmeno ocorre em cada indivduo interagindo com os demais, e assim multiplicando-se at formar o imaginrio social (HEREDIA, 1996, p. 296).

Os conceitos de regio ou reas arqueolgicas aplicados s pesquisas pr-histricas devem, portanto, buscar articular seus fatores delimitadores englobando aspectos de ordem social, ideolgica, poltica, econmica, natural, cultural, cronolgica, enfim, uma srie de elementos que devem contribuir para o estabelecimento de fronteiras flexveis, que no devem ser vistas como limitadoras, mas sim como um artifcio que ir contribuir para o desenvolvimento da pesquisa e a coleta de informaes de acordo com a escala prestabelecida. Subsidiando a compreenso do espao de forma condizente com a realidade em estudo, entendendo a regio analisada como um fenmeno histrico com caractersticas38

peculiares e variveis de acordo com a cultura de cada sociedade e seu respectivo espaotemporal.

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2. O ALTO JACU E O CONTEXTO AMBIENTAL

Destinamos este captulo a uma breve apresentao e descrio das principais caractersticas da rea em estudo, destacando a abrangncia da bacia hidrogrfica em questo, bem como os aspectos relacionados ao meio fsico. Levando em conta a abrangncia temporal da pesquisa, consideramos vlida uma apreciao sucinta do contexto ambiental partindo desde o final da ltima glaciao no perodo pleistocnico, destacando seus principais aspectos relativos fauna e flora, alm de elementos paleoclimticos, abrangendo o perodo holocnico, a configurao da paisagem e seus principais eventos climticos. Diante da insuficincia de estudos paleoclimticos e paleoambientais especficos para a regio do Alto Jacu, utilizaremos informaes de reas adjacentes, articulando, na medida do possvel, a descrio do contexto macro realidade regional.

2.1 Breve Caracterizao da Bacia Hidrogrfica do Alto Jacu

Os cursos dgua existentes no Rio Grande do Sul so divididos basicamente em dois grupos, representados por aqueles que correm em direo ao rio Uruguai e os demais que so drenados para o oceano Atlntico. Este conjunto constitudo por trs grandes bacias hidrogrficas (Ver figura 2), a bacia do Uruguai, a bacia Litornea e a bacia do Guaba. Esta ltima compreende a regio em estudo. Com o intuito de facilitar o gerenciamento dos recursos hdricos, entre outros benefcios, as bacias hidrogrficas so divididas em vinte e trs sub-bacias, de acordo com a distribuio espacial da rede hidrogrfica na natureza. Como resposta a necessidade crescente de discutir as formas de uso, qualidade e preservao da gua, dentre outros fatores, foram criados os Comits de Gerenciamento de Bacias Hidrogrficas, instrumentos de gesto e planejamento que permite populao e ao governo definir as melhores estratgias para utilizao e preservao dos recursos hdricos de cada regio.

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Atravs de um Decreto Estadual6 sancionado no ano de 2001, foi criado oficialmente o Comit de Gerenciamento da Bacia Hidrogrfica do Alto Jacu (COAJU). Os membros constituintes do comit compreendem trinta entidades entre representantes das trs esferas pblicas, usurios dos recursos hdricos e a populao em geral.

Figura 2 Bacias Hidrogrficas do Rio Grande do Sul Fonte: Secretaria do Meio Ambiente do Estado do Rio Grande do Sul

O rio Jacu o maior curso dgua do interior do Estado, e o principal contribuinte do esturio do Guaba (cerca de 85%). Suas nascentes esto situadas no municpio de Passo Fundo, na regio fisiogrfica do Planalto Mdio, onde as guas escoam para o sul, alterando posteriormente seu curso para o sentido leste na regio da Depresso Central (Baixo Jacu).6

Decreto Estadual n 40.822, de 11.06.2001.

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A Bacia Hidrogrfica do Alto Jacu (Ver figuras 3 e 4) corresponde poro situada na regio centro-norte do Rio Grande do Sul, compreendendo predominantemente a provncia geomorfolgica do Planalto Meridional e a zona de transio com a Depresso Central, entre as coordenadas geogrficas de 2808 a 2955de latitude Sul e 5215a 5350de longitude Oeste, abrangendo um territrio com 16.063,29 km2, totalizando 579.097 habitantes. A agricultura e a pecuria predominam como as principais atividades econmicas ligadas ao uso do solo nesta regio. Destaca-se a grande capacidade de aproveitamento hidreltrico do Alto Jacu, atualmente represado pelas barragens de Cotovelo do Jacu, Dona Francisca, Ernestina, Itaba, Maia Filho e Passo Real (COAJU, 2010, p.2).

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Figura 3 - Bacia Hidrogrfica do Alto Jacu e seus principais municpios Fonte: COAJU

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Figura 4 Diviso Poltica da Bacia Hidrogrfica do Alto Jacu Fonte: COAJU

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Segundo dados fornecidos pelo COAJU (2010), at o ano de 2008 o comit era composto por cinquenta e nove municpios, dos quais doze deles (Agudo, Cachoeira do Sul, Cerro Branco, Dona Francisca, Faxinal do Soturno, Ivor, Nova Palma, Novo Cabrais, Restinga Seca, So Joo do Polsine, Silveira Martins e Paraso do Sul) passaram a integrar o comit do Baixo Jacu. Atualmente quarenta e sete municpios integram a bacia do Alto Jacu, respectivamente: Alto Alegre, Arroio do Tigre, Barros Cassal, Boa Vista do Incra, Campos Borges, Carazinho, Chapada, Colorado, Cruz Alta, Ernestina, Espumoso, Estrela Velha, Fortaleza dos Valos, Ibarama, Ibirapuit, Ibirub, Itaara, Jacuizinho, Jlio de Castilhos, Lagoa Bonita do Sul, Lagoa dos Trs Cantos, Lagoo, Marau, Mato Castelhano, Mormao, No-meToque, Nicolau Vergueiro, Panambi, Passa Sete, Passo Fundo, Pejuara, Pinhal Grande, Quinze de Novembro, Saldanha Marinho, Salto do Jacu, Santa Brbara do Sul, Santo Antnio do Planalto, So Martinho da Serra, Segredo, Selbach, Sobradinho, Soledade, Tapera, Tio Hugo, Tunas, Tupanciret, Victor Graeff. Cabe ressaltar que para fins de planejamento e gesto dos recursos hdricos do rio Jacu, ele dividido em duas bacias hidrogrficas, correspondentes ao alto e ao baixo curso. Logo, para evitarmos interpretaes divergentes, preciso esclarecer que a regio eventualmente denominada como mdio Jacu em determinadas publicaes, abrange reas da bacia hidrogrfica do Alto Jacu e, sobretudo, do Baixo Jacu, visto que o mdio curso no constitui uma bacia a parte.

2.2 O Paleoambiente no Perodo Pleistocnico

O aumento gradual do fluxo de pesquisas arqueolgicos observado nos ltimos anos, bem como o desenvolvimento de novas tecnologias, a exemplo dos mtodos de datao absoluta, tem exigido uma reviso das teorias clssicas sobre o incio do povoamento humano no continente americano. Porm, com relao aos primrdios da ocupao do atual Estado do Rio Grande do Sul, face ausncia de novas descobertas no foram observadas maiores alteraes ou complementaes na concepo vigente nas ltimas dcadas, a qual situa o incio da presena humana ao final da ltima glaciao.

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Para facilitar nossa compreenso acerca do modo de vida e estratgias de adaptao ao meio circundante criadas pelos primeiros habitantes que aqui se instalaram, fundamental nos munirmos de informaes sobre a conformao do meio fsico naquela poca, completamente diversa da atual. O territrio que habitamos atualmente no possua no passado o clima de hoje. Durante a ltima glaciao, quando aqui chegaram os primeiros povoadores, outras eram as caractersticas ambientais vigentes (KERN, 1994, p.33).

No basta ter em mente apenas o atual comportamento ambiental da regio em questo. Ter a viso do ambiente da atualidade de grande valia, desde que no se perca de vista a sua configurao em tempos passados, principalmente por volta do final do Pleistoceno e incio do Holoceno (VERONEZE, 1992, p. 60).

O fenmeno climtico denominado glaciao, caracterizado pela diminuio da temperatura mdia da Terra, tem se repetido ao longo da histria, provocando o aumento das geleiras nas calotas polares e um grande acmulo de gelo, sobretudo, nas reas montanhosas, tendo como resultado imediato profundas alteraes de ordem ambiental, influenciando, por exemplo, a fauna, a flora, o relevo e at mesmo o nvel dos mares. Entremeio as glaciaes temos os chamados perodos interglaciais, como o que vivemos atualmente, onde a temperatura da Terra volta a subir e a natureza se recompe, porm, com novas configuraes. A poca geolgica em que vivemos hoje denomina-se holoceno, e foi precedido pelo pleistoceno, ambas divises geoclimticas integrantes do perodo geolgico quaternrio, da era cenozica (Ver quadro 1). O pleistoceno abrange um perodo de tempo que vai de dois milhes de anos a 12 mil anos antes do presente (AP), ao longo do qual ocorreram quatro grandes glaciaes. A ltima grande glaciao ocorreu no Pleistoceno Superior. denominada Wrm (Europa) ou Wisconsin (Amrica do Norte). Durou cerca de 60 mil anos (70.000 AP 10.000 AP), atingindo seu pice por volta de 18 mil anos atrs. Nesta poca, em virtude da formao de grandes geleiras, estima-se que o nvel do mar situava-se a cerca de 100 metros abaixo do atual, configurando um processo de regresso marinha. A situao contrria, ou seja, o aumento do nvel do mar, denomina-se de transgresso. Ambos foram eventos recorrentes durante o quaternrio.

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Naturalmente, os rios tambm foram afetados. Com a reteno de gua nas reas montanhosas houve a diminuio do fluxo hdrico e a formao de terraos fluviais mais profundos. O acmulo de gelo e seu consequente deslizamento tambm provocou deformaes no relevo, como o aprofundamento dos vales. A insuficincia de uma cobertura vegetal densa, ento limitada s reas de encostas mais abruptas e midas, estaria aprofundando os leitos do rio Jacu e de seus afluentes atravs dos processos de eroso mecnica (KERN, 1997).

Quadro 1 Escala geolgica

Infelizmente a carncia de pesquisas especficas sobre o paleoclima do Rio Grande do Sul ao final do pleistoceno, no possibilita afirmaes precisas. Porm, segundo o arquelogo47

Andr Prous (1992), a analogia com dados oriundos de pases vizinhos nos permite supor que a temperatura neste perodo deveria oscilar em torno de 4 C abaixo da mdia atual, algo aparentemente tolervel para uma idade do gelo. No entanto, suficiente para causar grandes alteraes climticas e ambientais. Basta lembrar que uma diminuio da temperatura pode causar a extino de espcies vegetais mais sensveis que eventualmente poderiam compor a dieta alimentar dos animais herbvoros, enfim, uma reao em cadeia que pode ter resultados desastrosos a longo prazo.

Esse perodo no permaneceu sempre mais frio do que o Holoceno, mas acredita-se que os seus ltimos milnios foram os mais rigorosos, e que os primeiros habitantes do atual territrio brasileiro devem ter conhecido, at 14 mil anos antes do presente, temperaturas de at 4 C mais baixas, havendo depois uma elevao at as condies atmosfricas atuais, aproximadamente h 6000 anos BP, tendo ocorrido at um aumento ligeiro da temperatura logo depois (PROUS, 1992, p. 121).

A diminuio do nvel do mar fez multiplicar o nmero de ilhas no oceano, alm de expor pores de terra atualmente submersas, criando novas rotas migratrias, a exemplo do Estreito de Bering entre a Sibria e o Alasca, uma ponte ocenica ligando os continentes asitico e americano. Este contexto propiciou tanto o deslocamento de grupos humanos como de animais. Algumas espcies faunsticas migraram em busca de um novo habitat, enquanto outras foram completamente extintas neste perodo. A fauna de ento se assemelhava de hoje, so conhecidos fsseis desse perodo pertencentes a animais como o porco-do-mato, capivara, tatu, anta, veado-campeiro, rates-do-banhado, e outros mais. A grande diferena fica por conta dos mamferos de grande porte, denominados de megafauna. So animais muitas vezes semelhantes fauna atual do Rio Grande do Sul, porm em propores bem maiores, como a preguia gigante, o tigre dente de sabre, o mastodonte, o tatu gigante, cervdeos, entre outros (Ver figura 5).

Os animais que com eles conviveram so conhecidos atravs de fsseis, encontrados em sedimentos relativos quele perodo. De concreto o que se conhece, so fsseis de moluscos e mamferos, a maioria desses de grande porte, conhecidos como megamamferos ou megafauna. Mesmo no sendo conhecidos fsseis, certo que aqui viviam insetos, crustceos, peixes,48

anfbios, rpteis e aves semelhantes aos atuais, que poderiam ter sido utilizados pelos primeiros povoadores (JACOBUS apud SCHMITZ, 1991, p. 163).

A vegetao da poca precisou se adaptar ao clima seco e frio. Para sobreviver a este ambiente, as plantas geralmente possuam razes profundas, poucas folhas, um talo grosso e espinhos, uma proteo contra os animais herbvoros, a exemplo dos atuais cactos e a vegetao rasteira da caatinga ou cerrado, configurando um cenrio similar as atuais savanas e estepes. J as florestas geralmente se limitavam a mata de galeria, estabelecidas ao longo dos cursos dgua e lagoas. Observou-se, no entanto, a expanso da mata de araucria em parte da regio norte do Estado, acompanhando as reas midas junto aos afloramentos rochosos (Ver figura 6). provvel que nesta configurao ambiental os primeiros grupos humanos que aqui chegaram ao final do pleistoceno necessitassem de uma dieta alimentar variada, incluindo desde pequenos animais e mamferos da megafauna, a frutos de cactceas alm de peixes e moluscos. A despeito das inmeras adversidades decorrentes das transformaes paleoclimticas encontradas na ltima era glacial, estes primeiros habitantes desenvolveram mecanismos de sobrevivncia e interao com o meio. As possibilidades de compreenso desta relao podem ser ampliadas se congregarmos a anlise dos fatores ambientais e fenmenos de adaptao humana. Segundo o arquelogo Arno Kern (1997, p. 15), tanto o conhecimento das condies de desenvolvimento das sociedades humanas bem como o das transformaes do meio ambiente so elementos complementares fundamentais para compreenso objetiva do passado pr-histrico. A partir da compreenso do contexto ambiental da poca, bem como da anlise dos vestgios de sua escassa cultural material, podemos ampliar o conhecimento acerca deste perodo remoto da histria humana na regio.

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Figura 5 Animais da megafauna extintos no perodo de transio entre o pleistoceno e holoceno Fonte: (JACOBUS apud SCHMITZ, p.174-178, 1991)

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Figura 6 Configurao da paisagem ao final da ltima glaciao Fonte: (KERN, 1994, p. 41-42)

2.3 O Meio Fsico e Bitico no Perodo Holocnico

Com o final da ltima glaciao do perodo pleistocnico ocorrida entre doze e dez mil anos, as alteraes climticas ocorridas a partir de ento passaram a corresponder a uma nova poca na escala de tempo geolgico, denominada holoceno, que se estende at os dias atuais. O holoceno representa um perodo de grandes mudanas ambientais, com alteraes significativas no clima, temperatura, nvel mdio do mar, com diminuio da fauna e aumento progressivo da vegetao, as espcies arbustivas passam a ceder espao s florestas subtropicais.

As condies ambientais iro gradualmente se transformar entre 13.000 e 10.000 A.P. Predominantemente glaciais, at ento, as temperaturas comeam a subir, gradativamente, provocadas por uma maior intensidade da51

radiao solar. Com o derretimento das geleiras, sobem os nveis marinhos. O processo de transgresso marinha invade a plancie litornea, inundando-a vagarosamente. Persistem os climas secos com pluviosidade restrita, mas cada vez mais quentes (KERN, 1994, p. 38).

Neste perodo ocorre um incremento na dinmica de subsistncia dos grupos de caadores-coletores, e possivelmente uma expanso para as regies ainda pouco exploradas. As redes hidrogrficas desempenhavam um importante papel no deslocamento destes grupos. As florestas subtropicais existentes nos vales de grandes rios como o Jacu e o Uruguai expandiam as possibilidades de caa e coleta, constituindo reas onde frequentemente estas populaes estabeleciam seus acampamentos, alm de propiciar a utilizao dos cursos dgua como vias de deslocamento e comunicao, com a garantia de condies de subsistncia. O ps-glacial caracterizado pelo aumento gradual da temperatura at atingir os ndices atuais. Os perodos de frio intenso ainda se faziam presente, porm nada comparvel aos padres pleistocnicos. A umidade passa a substituir o clima seco favorecendo a vegetao subtropical nos vales fluviais. A partir do derretimento gradual das geleiras, iniciase o processo de transgresso marinha que recobre parte da plancie litornea, porm, o aumento do nvel do mar ocorre de forma lenta. No incio do holoceno ainda no era possvel perceber grandes alteraes na paisagem, j que a predominncia de um clima temperado foi o resultado de um processo que se desenvolveu ao longo dos primeiros milnios. A paisagem estpica com espcies vegetais rasteiras e arbu