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O Aprendiz de Assassino - Saga - Robin Hobb

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Incrível inicio da Saga do Assassino, onde conhecemos Fitz e as intrigas do poder;

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    Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel.

  • Ficha Tcnica Robin Hobb 1995

    First published in Great Britain by Harper Collins Publishers 1995Todos os direitos reservados.

    Verso brasileira Texto Editores Ltda., 2013Ttulo original: Assassins Apprentice

    Diretor editorial: Pascoal SotoEditora executiva: Tain Bispo

    Editora assistente: Ana Carolina GasonatoProdutoras editoriais: Fernanda S. Ohosaku, Renata Alves e Mait Zickuhr

    Preparao de texto: Poliana OliveiraReviso: Andra Bruno e Iraci Miyuki Kishi

    Adaptao de capa: Vivian OliveiraIlustrao de capa: Jackie Morris

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)Anglica Ilacqua CRB-8/7057

    Hobb, RobinO aprendiz de assassino / Robin Hobb; traduo de

    Orlando Moreira. So Paulo: LeYa, 2013.(Saga do Assassino)

    ISBN 9788580448177Ttulo original: Assassins apprentice

    1. Literatura americana 2. Fico 3. Fantasia I. Ttulo II.Moreira, Orlando

    13-0470 CDD813ndices para catlogo sistemtico:

    1. Literatura americana2013

    Texto Editores Ltda.Uma editora do Grupo LeYa

    Rua Desembargador Paulo Passalqua, 8601248-010

    Pacaembu So Paulo -SP

    www.leya.com.br

  • Para GilesE para Raphael e Freddy,

    Os Prncipes de Assassinos.

  • CAPTULO UM

    O Comeo da Histria

    Uma histria dos Seis Ducados , necessariamente, uma histria da sua famlia regente, osVisionrios. Uma narrao completa remeteria para alm da fundao do Primeiro Ducadoe, se tais nomes fossem lembrados, seria contado sobre a invaso dos Ilhus vindos do mar,tomando como piratas uma costa de clima mais moderado e agradvel do que as praiasgeladas das Ilhas Externas. Mas no sabemos os nomes desses primeiros antepassados.

    Do primeiro verdadeiro rei resta pouco mais do que o nome e algumas lendasextravagantes. Chamava-se Tomador, e talvez assim tenha comeado a tradio de nomearas filhas e filhos da sua linhagem de forma a moldar suas vidas e personalidades. Ascrenas populares alegam que os nomes eram dados aos recm-nascidos por magia e quedevido a isso os de ascendncia real no podiam trair as virtudes que lhes eram assimatribudas. Passados por fogo, mergulhados em gua salgada e oferecidos aos ventos doar: assim eram dados os nomes a essas crianas escolhidas. Assim nos foi contado. umalenda bonita e talvez h muito tempo tenha existido um ritual como este, mas a histria nosmostra que isso nem sempre foi suficiente para vincular uma criana virtude que lheserviu de nome...

    A pena falha e em seguida cai dos meus dedos nodosos, deixando um rastro de verme feito emtinta sobre o papel de Penacarrio. Estraguei mais uma folha do fino material naquilo quesuspeito ser uma tentativa intil. Pergunto-me se serei capaz de escrever esta histria ou se acada pgina haver uma intromisso furtiva da amargura que eu pensava estar morta h muitotempo. Penso-me curado de todo o rancor, mas, quando toco no papel com a pena, a ferida deum garoto sangra com o fluxo de tinta marinha, at que suspeito que cada letra negracuidadosamente formada esfola a cicatriz de uma antiga ferida escarlate.

    Tanto Penacarrio como Pacincia ficavam to entusiasmados sempre que se discutia umrelato escrito sobre a histria dos Seis Ducados que acabei por me persuadir de que escreversobre isso seria um esforo que valeria a pena. Convenci-me de que esse exerccio afastariameus pensamentos da dor e me ajudaria a passar o tempo, mas cada evento histrico de queme lembro apenas desperta as minhas prprias sombras de solido e perda. Receio ter delargar por completo este trabalho ou aceitar reconsiderar tudo o que moldou aquilo em que metornei. E assim comeo de novo, e de novo, mas acabo sempre por descobrir que escrevosobre as minhas prprias origens em vez de escrever sobre as origens desta terra. Nem sequersei a quem tento me explicar. A minha vida tem sido uma teia de segredos, segredos estes quemesmo agora so perigosos de compartilhar. Deverei coloc-los neste fino papel para fazerdeles apenas chamas e cinzas? Talvez.

    As minhas primeiras memrias remontam aos seis anos de idade. Antes disso no h nada,apenas um abismo que nenhum exerccio da minha mente alguma vez foi capaz de penetrar.Antes daquele dia no Olho da Lua no h nada. Mas nesse dia as minhas memrias

  • subitamente se iniciam, com uma claridade e detalhe arrebatadores. Algumas vezes parecemcompletas demais e eu me pergunto se sero realmente minhas. Estaria eu recordando tudoisso com base na minha prpria experincia ou nas dzias de relatos repetidos por legies decriadas de cozinha, exrcitos de copeiros e bandos de rapazes do estbulo, ao explicarem aminha presena uns aos outros? Talvez tenha ouvido o relato tantas vezes, de tantas fontes, queagora o recordo como se pertencesse s minhas prprias memrias. Ser o detalhe resultadoda percepo que uma criana de seis anos tem de tudo o que a rodeia? Ou ser que aperfeio dessas memrias causada pelo uso do Talento e das drogas que um homem tomapara controlar a sua dependncia, drogas estas que trazem consigo suas prprias dores ensias? Esta ltima hiptese muito possvel. Talvez seja at a mais provvel. O melhor esperar que no seja esse o caso.

    A reminiscncia quase fsica: a fria cor cinzenta do dia moribundo, a chuva sem remorsoque me ensopava, a calada glida nas ruas da cidade desconhecida, at a aspereza calosa damo enorme que agarrava a minha, pequena. s vezes me pego pensando nessa mo. A moera dura, rude, formando uma concha envolvente que aprisionava a minha. E, contudo, eraquente e sem maldade na maneira como segurava. Apenas firme. No me deixava escorregarno piso gelado, mas tambm no me deixava escapar ao meu destino. Era implacvel, como achuva cinzenta e gelada que abrilhantava a neve pisoteada e o gelo do caminho de cascalho,que ficava diante das enormes portas de madeira do edifcio fortificado que se erguia comouma fortaleza dentro da prpria cidade.

    As portas eram altas, e no s para um garoto de seis anos de idade: um gigante poderiapassar por elas, e faziam o velho esguio a meu lado parecer um ano. Alm disso, eramestranhas para mim, embora no consiga imaginar que tipo de porta ou habitao seriafamiliar. Mas essas, entalhadas e presas por dobradias de ferro negro, decoradas com umacabea de cervo e uma aldrava de bronze brilhante, estavam totalmente alm da minhaexperincia. Lembro que a neve meio derretida havia encharcado minhas roupas, uma vez quemeus ps e pernas estavam molhados e frios. E, contudo, mais uma vez, no consigo melembrar de ter andado muito para chegar ali em meio s ltimas pragas do inverno, nem de tersido transportado. No, tudo comea ali, em frente s portas do forte, com a minha pequenamo aprisionada dentro da mo do homem alto.

    quase como o comeo de um teatro de marionetes. Sim, consigo ver assim. As cortinas seabrem e ali estamos ns, perante as grandes portas. O velho ergueu a grande aldrava de bronzee bateu uma, duas, trs vezes na base de metal, que ressoou com as pancadas. E ento, dosbastidores, fez-se ouvir uma voz. No do outro lado das portas, mas atrs de ns, no caminhode onde tnhamos vindo.

    Pai, por favor a voz de mulher implorava.Virei-me para olh-la, mas tinha comeado a nevar outra vez, um vu rendado que se

    agarrava aos clios e s mangas do casaco. No consigo me lembrar de ter visto ningum.Tenho, contudo, a certeza de que no lutei para libertar a minha mo da do velho, nem griteiMe, me. Em vez disso, fiquei quieto, um espectador, e ouvi o som de botas dentro da torree o destrancar do ferrolho da porta.

    Ela chamou uma ltima vez. Ainda consigo ouvir as palavras com perfeio, o desesperonuma voz que agora soaria jovem aos meus ouvidos.

    Pai, por favor, eu imploro!

  • Um tremor sacudiu a mo que agarrava a minha, mas se era de ira ou de qualquer outraemoo nunca saberei. To veloz quanto um corvo apanhando um pedao de po atirado, ovelho inclinou-se e agarrou um pedao de gelo sujo. Atirou-o sem palavras, com muita fora efria, e eu me encolhi de medo. No me lembro de ter chorado. O que me lembro de como asportas se abriram para fora, de tal forma que o velho teve de se mover depressa para trs,puxando-me com ele.

    E aqui h uma coisa. O homem que abriu a porta no era um criado da casa, como eupoderia ter imaginado se apenas tivesse ouvido isso numa narrativa. No, a lembrana memostra um homem de armas, um guerreiro, j um pouco grisalho e com a barriga mais feita debanha que de msculo, e no um criado com boas maneiras. Olhou-nos, a mim e ao velho, decima a baixo, com a desconfiana treinada de um soldado, e ento ficou ali, silencioso,esperando que dissssemos ao que vnhamos.

    Penso que a sua atitude perturbou o velho, incitando-lhe no ao medo, mas ira. Porquede repente ele largou a minha mo e, em vez disso, agarrou-me pelas costas do casaco e mejogou para a frente, como se eu fosse um cozinho a ser oferecido a um novo dono.

    Eu te trouxe o garoto disse numa voz rouca.Quando o guarda da casa continuou a olh-lo fixamente, sem julgamento ou mesmo

    curiosidade, explicou-se com mais detalhes: Dei-lhe de comer minha mesa durante seis anos e nunca recebi uma palavra do pai, ou

    uma moeda, ou uma visita, embora a minha filha tenha me dado a entender que ele sabe que fezum bastardo nela. No mais lhe darei de comer nem partirei as costas no arado para prroupas nele. Que o alimente aquele que o fez. Tenho gente o bastante para cuidar, com a minhamulher envelhecendo e a me deste aqui para manter e alimentar. Porque no h homem que aqueira agora, no com este cozinho sempre grudado na barra da sua saia. Portanto, pegue-o eo entregue ao pai.

    Ele me soltou to de repente que eu me estatelei no ptio de pedra aos ps do guarda.Sentei-me rapidamente, no me lembro de ter machucado muito, e olhei para cima para ver oque aconteceria a seguir entre os dois homens.

    O guarda olhou para mim, com os lbios ligeiramente apertados, tentando me avaliar, semcrtica ou aprovao.

    Filho de quem? perguntou, e o seu tom no revelava curiosidade, apenas a necessidadede obter mais informaes para relatar adequadamente a situao a um superior.

    De Cavalaria disse o velho, que j estava virando as costas para mim, descendo apassos medidos pelo caminho de cascalho. Prncipe Cavalaria disse, sem se virarenquanto acrescentava o ttulo de nobreza. Aquele, o Prncipe Herdeiro. Foi ele quem o fez.Pois ento que faa por ele e que se d por contente de ter conseguido ser pai de uma criana,em algum lugar qualquer.

    Por um momento, o guarda ficou olhando o velho ir embora. Depois, sem dizer nada,inclinou-se para me agarrar pelo colarinho e arrastou-me para fora do caminho para quepudesse fechar a porta. Ele me soltou durante o instante em que checava a porta. Tendo feitoisso, ficou olhando para mim, sem mostrar surpresa, apenas a estoica aceitao de um soldadoem relao aos aspectos mais bizarros do seu dever.

    Levante-se e ande, garoto disse.E assim o segui, descendo por um corredor sombrio e passando por quartos mobiliados de

  • forma espartana, com janelas ainda fechadas por causa do frio do inverno, para finalmentechegar a uma srie de portas tambm fechadas, feitas de madeira valiosa e delicada, adornadacom entalhes. Ao chegar a, fez uma pausa e rapidamente ajeitou suas prprias roupas.Lembro-me com bastante clareza de como se ajoelhou para alisar a minha camisa e ajeitar omeu cabelo com um ou dois tapas grosseiros; mas se fez isso por algum impulso de bomcorao, para que eu causasse uma boa impresso, ou se foi meramente devido preocupaode mostrar que tinha tomado conta da sua encomenda, nunca saberei. Levantou-se de novo ebateu uma vez s portas duplas. Tendo batido, no esperou por resposta, ou pelo menos eu noa ouvi. Empurrou as portas, conduziu-me como uma ovelha sua frente e fechou-as atrs de si.

    Esse quarto estava to quente quanto o corredor era frio, e to cheio de vida quanto osoutros cmodos estavam desertos. Lembro-me da quantidade de moblia que havia ali, tapetese tapearias, e prateleiras de rolos de pergaminhos, um quarto forrado pela desordem que seinstala em qualquer aposento bem usado e confortvel. Havia fogo ardendo na grande lareira,enchendo o quarto de calor e de um agradvel aroma de resina. Uma mesa enorme estavacolocada obliquamente lareira e atrs dela sentava-se um homem robusto que, desobrancelhas franzidas, curvava-se sobre o mao de papis sua frente. No ergueu os olhosimediatamente quando entramos e, por causa disso, pude estudar por instantes o emaranhadodo seu cabelo escuro.

    Quando finalmente olhou para cima, pareceu ter visto a mim e ao guarda num s relance dosseus olhos negros.

    Ento, Jaso? perguntou, e mesmo naquela idade eu conseguia perceber sua resignaodiante de uma interrupo inesperada. O que isto?

    O guarda me deu um leve empurro no ombro, lanando-me um passo em frente na direodo homem.

    Um velho lavrador deixou este garoto, Prncipe Veracidade. Diz que um bastardo doPrncipe Cavalaria, senhor.

    Por um momento, o homem atrs da escrivaninha continuou a me observar com algumaconfuso no olhar. Ento algo parecido com um sorriso divertido aliviou-lhe a expresso.Ergueu-se e contornou a escrivaninha para se colocar na minha frente com os punhos na alturada cintura, baixando os olhos para me ver. No me senti ameaado pelo seu olhar examinador;na verdade, foi como se alguma coisa na minha aparncia lhe agradasse bastante. Curioso,ergui os olhos para observ-lo. O homem usava uma barba negra curta, to espessa edesarrumada como o seu cabelo, e a sua pele estava habituada s agruras do tempo e ao arlivre. Largas sobrancelhas erguiam-se sobre os seus olhos negros. Seu peito parecia um barrile os ombros esticavam o tecido de sua camisa. Os punhos eram quadrados e marcados comcicatrizes de trabalho, e havia manchas de tinta nos dedos da mo direita. Enquanto me olhava,o seu sorriso aumentava gradualmente, at que finalmente soltou um riso que mais parecia umronco.

    Raios me partam disse, por fim. O garoto tem um qu do Cav, no tem? AbenoadaEda. Quem teria acreditado que tal coisa viria do meu ilustre e virtuoso irmo?

    O guarda no lhe deu nenhuma resposta, o que j era esperado. Continuou alerta, esperandoa prxima ordem. Um soldado um soldado.

    O outro homem continuou a me olhar com curiosidade. Quantos anos tem?

  • O lavrador disse seis. O guarda levantou a mo para coar o rosto e, de sbito,lembrou-se de que estava se reportando a um superior. Baixou a mo. Senhor acrescentou.

    O outro no pareceu ter percebido o lapso de disciplina do guarda. Os olhos negros mepercorreram, e o divertimento do seu sorriso cresceu.

    Consideremos, portanto, mais ou menos sete anos, contando com o perodo de gravidez.Caramba. Sim. Esse foi o primeiro ano em que os Chyurda tentaram fechar o desfiladeiro.Cavalaria andou por esses lados trs, quatro meses, convencendo-os a abrirem-no para ns.Parece que no foi a nica coisa que convenceu a se abrir. Caramba. Quem que pensaria talcoisa dele? fez uma pausa e depois perguntou de sbito: Quem a me?

    O guarda agitou-se em desconforto. No sei, senhor. Estava apenas o velho lavrador entrada, e tudo o que disse foi que este

    era o bastardo do Prncipe Cavalaria e que no ia mais aliment-lo nem vesti-lo. Disse queaquele que o fez deveria tomar conta dele de agora em diante.

    O homem deu de ombros, como se no fosse caso de grande importncia. O garoto parece bem tratado. Dou-lhe uma semana, quinze dias no mximo, at que ela

    venha gemer porta da cozinha, com saudades do seu cachorrinho. Ento eu descobrirei,seno antes. Ei, garoto, como que te chamam?

    Uma fivela detalhada, com a forma de uma cabea de cervo, fechava a jaqueta dele.Mudava de cor, oscilando entre o bronze, o dourado e o vermelho, conforme o movimento daschamas na lareira.

    Garoto eu disse.No sei se eu simplesmente estava repetindo aquilo de que ele e o guarda tinham me

    chamado, ou se eu realmente no possua outro nome alm daquela palavra. Por um momento,o homem pareceu surpreso, e uma expresso que podia ser de compaixo perpassou seu rosto,mas desapareceu com a mesma rapidez, deixando-o com um semblante que me parecia ser dedesconcerto, ou de ligeira enervao. Olhou de relance para o mapa que ainda o esperava emcima da mesa.

    Bem disse em meio ao silncio. Algo tem de ser feito com ele, pelo menos at que oCav volte. Jaso, assegure-se de que o rapaz seja alimentado e alojado em algum lugar, pelomenos hoje noite. Pensarei no que fazer com ele amanh. No podemos ter bastardos reaisacumulando-se pelas provncias.

    Senhor disse Jaso, sem concordar ou discordar, simplesmente acatando as ordens quelhe eram dadas. Ps uma mo pesada no meu ombro e virou-me em direo porta. Eucomecei a andar com alguma relutncia, pois o quarto estava to bem iluminado, agradvel equente. Os meus ps frios comearam a formigar e eu sabia que, se pudesse ficar ali umpouquinho mais, aqueceria o corpo todo. Mas a mo do guarda era inexorvel e guiou-me parafora do aposento quente, de volta escurido fria dos corredores desolados, que pareciamainda mais interminveis e escuros depois do calor e da luz, enquanto eu tentava acompanhar apassada do guarda que fazia o seu caminho por eles.

    Talvez eu tenha choramingado ou talvez ele tenha se cansado do meu passo mais lento, poisse virou subitamente, agarrou-me e atirou-me para cima do seu ombro todespreocupadamente como se eu no pesasse nada.

    Cozinho ensopado comentou, sem rancor, e carregou-me pelos corredores afora,contornando curvas, subindo e descendo degraus, dirigindo-se finalmente rumo a uma luz

  • amarela que pouco depois revelou se tratar de uma larga cozinha.Ali, meia dzia de guardas relaxava em bancos e comia e bebia numa grande mesa

    desgastada, diante de uma fogueira duas vezes maior que a do escritrio. O cmodo cheirava comida, cerveja, ao suor dos homens, a roupas de l molhadas, fumaa da lenha e dagordura que escorria da carne para as chamas. Tonis e pequenos cascos alinhavam-se contraa parede, e as peas de carne defumada eram formas negras penduradas nas vigas. A mesaexibia um amontoado de comida e pratos. Um pedao de carne girava num espeto sobrechamas e escorria gordura para a lareira de pedra. O meu estmago apertou-se subitamentecontra as costelas ao sentir o cheiro da comida.

    Jaso colocou-me com firmeza no canto da mesa mais prximo do calor do fogo, sacudindoo cotovelo de um homem cuja face estava escondida por uma caneca.

    Ei, Bronco disse Jaso. Este cachorrinho agora seu.E virou as costas para mim. Eu observei com interesse, enquanto ele partia um pedao de

    po preto to grande quanto o seu punho e desembainhava a faca para cortar uma fatia de umqueijo redondo, empurrando-os para as minhas mos. A seguir, dirigiu-se lareira e comeoua serrar uma poro generosa de carne assada. Ao meu lado, o homem chamado Broncodescansou a caneca na mesa e virou-se para olhar Jaso.

    O que isto? perguntou, soando bastante como o homem do aposento aquecido. Tinha amesma escurido indisciplinada na barba e no cabelo, mas a sua cara era angular e estreita. Acor da face revelava um homem que andava com frequncia ao ar livre. Os seus olhos erammais castanhos do que negros, e as suas mos eram geis e de dedos longos. Cheirava acavalos, ces, sangue e couro.

    Quem vai tomar conta dele voc, Bronco. Assim diz o Prncipe Veracidade. Por qu? Voc o homem de confiana do Cavalaria, no ? Cuida do cavalo, dos ces e dos

    falces. E? E acabou de receber o seu bastardozinho, pelo menos at que o Cavalaria volte e faa

    alguma coisa com ele.Jaso ofereceu-me a fatia grossa de carne escorrendo gordura. Eu olhei para o po e para o

    queijo que tinha nas mos, detestando a ideia de largar qualquer um deles, mas desejandotambm a carne quente. Ele encolheu os ombros ao ver o meu dilema e, com a praticidade deum homem de batalhas, atirou despreocupadamente a carne para cima da mesa, perto do meuquadril. Enfiei o quanto pude de po na boca e desloquei-me para onde pudesse ficar de olhona carne.

    O bastardo de Cavalaria?Jaso deu de ombros, ocupado em servir-se de po, carne e queijo. Assim disse o velho lavrador que o deixou aqui. Ele colocou a carne e o queijo sobre

    uma fatia grossa de po, deu uma enorme dentada e falou enquanto mastigava. Disse queCavalaria devia era ficar contente por ter conseguido semear um filho, fosse onde fosse, e queteria de aliment-lo e tratar dele de agora em diante.

    Um silncio inusitado invadiu subitamente a cozinha. Os homens pararam de comer e de seservir do po, das canecas e das tbuas de cortar, e todos os olhos se viraram para o homemchamado Bronco. Este ps a caneca cuidadosamente longe da borda da mesa. A sua voz era

  • calma e nivelada, as suas palavras precisas. Se o meu senhor no tem herdeiro, vontade de Eda e no culpa da sua virilidade. A

    Dama Pacincia sempre foi frgil e... Isso mesmo, isso mesmo concordou Jaso rapidamente. E ali est a prova de que no

    h nada de mal com ele enquanto homem, que era o que eu estava dizendo, s isso. Elelimpou com pressa a boca na manga. To parecido com o Prncipe Cavalaria quanto algumpode ser, foi o que o irmo disse h pouco. No culpa do Prncipe Herdeiro se a DamaPacincia no consegue carregar a sua semente at o fim...

    Bronco levantou-se de repente. Jaso recuou um ou dois passos ligeiros antes de perceberque era eu o alvo de Bronco, e no ele. Bronco agarrou-me pelos ombros e virou-me para ofogo. Quando apertou firmemente o meu maxilar na sua mo e ergueu a minha face paraaproxim-la da sua, assustou-me, e eu deixei cair o po e o queijo. Ele no deu a mnima paraisso, inclinando o meu rosto na direo do fogo e estudando-me como se eu fosse um mapa. Osseus olhos encontraram os meus e havia algo de selvagem neles, como se o que visse na minhaface fosse uma ferida que eu lhe infligira. Comecei a tentar fugir daquele olhar, mas as mosdele no me largavam. Ento fixei os olhos nele, em desafio, e vi a sua preocupao misturar-se subitamente com uma espcie de fascnio relutante. Finalmente, fechou os olhos por umsegundo, encobrindo certa dor.

    Isso uma coisa que vai testar a fora de vontade de sua dama at os limites do prprionome dela disse Bronco suavemente.

    Ele soltou o meu maxilar e inclinou-se desajeitadamente para apanhar o po e o queijo queeu havia deixado cair. Espanou-os e entregou-me de volta. Olhei fixamente para o curativogrosso que se estendia da panturrilha ao joelho direito e o impedia de dobrar a perna. Voltou asentar-se, pegando uma jarra que estava sobre a mesa e enchendo novamente a caneca.Continuou a beber, observando-me por cima da borda da caneca.

    De quem que o Cavalaria arranjou o menino? perguntou incautamente o homem dooutro lado da mesa.

    Bronco virou os olhos para o homem enquanto descansava a caneca. Por um momento nofalou, e eu senti o silncio pairando ali outra vez.

    Eu diria que isso da conta do Prncipe Cavalaria, e no se trata de conversa de cozinha disse brandamente.

    Isso mesmo, isso mesmo concordou abruptamente o guarda. Jaso acenou com a cabeaem concordncia, num movimento repetitivo. Jovem como eu era, perguntava-me que espciede homem era este que, com uma perna enfaixada, conseguia impor respeito a um recinto cheiode homens dures, com apenas um olhar ou uma palavra.

    O garoto no tem nome disse Jaso, cortando o silncio. Atende apenas por garoto.Essa declarao pareceu deixar toda a gente, incluindo Bronco, sem palavras. O silncio

    arrastou-se enquanto eu acabava de comer o po, o queijo e a carne, empurrando-os parabaixo com um gole ou dois da cerveja que Bronco me ofereceu. Os outros homens foramgradualmente deixando a cozinha, em grupos de dois ou trs, mas ele continuava ali, sentado,bebendo e olhando para mim.

    Ora bem disse, por fim. Se conheo bem o seu pai, ele vai encarar a situao comodeve ser e tomar a deciso mais correta, mas s Eda sabe que deciso ele vai achar a maiscorreta numa situao destas. Provavelmente aquela que mais doer observou-me

  • silenciosamente por mais um momento. Chega de comer? perguntou, por fim.Eu indiquei que sim, e ele se levantou com firmeza, para me erguer da mesa e me pr no

    cho. Vamos l ento, Fitz1 ele disse e saiu da cozinha, descendo por um corredor diferente.A sua perna esticada tornava seu andar desajeitado, talvez a cerveja tambm ajudasse.

    Certo era que eu no teria problemas em acompanhar a sua passada. Chegamos finalmente auma porta pesada, onde um guarda nos acenou com a cabea ao passarmos, deixando sobremim um olhar de rapina.

    L fora, um vento frio soprava. Todo o gelo e neve que haviam amolecido durante o diatinham voltado a endurecer com a chegada da noite. O caminho estalava debaixo dos meusps, e o vento parecia encontrar cada fenda e cada buraco das minhas vestes. Os meus ps ecalas tinham se aquecido na fogueira da cozinha, mas ainda no estavam completamentesecos, e o frio apoderou-se deles outra vez. Lembro-me da escurido e do sbito cansao, daterrvel sonolncia chorosa que se apoderava de mim enquanto eu seguia o estranho com aperna enfaixada atravs do ptio escuro e frio. Havia muros altos nossa volta, e guardas quese moviam intermitentemente no seu topo, sombras escuras visveis apenas quando tapavamocasionalmente as estrelas no cu. O frio me consumia, e eu tropeava e escorregava nocaminho gelado, mas algo em Bronco me proibia de choramingar ou implorar piedade. Em vezdisso, segui-o obstinadamente. Por fim, paramos em frente a um edifcio, e ele arrastou apesada porta, abrindo-a.

    Calor, cheiros de animais e uma fraca luz amarela desembocaram do interior. O rapaz doestbulo, sonolento, ergueu-se sobressaltado e sentou-se no seu ninho de palha, piscando osolhos como um pssaro com as penas amarrotadas. A uma palavra de Bronco, deitou-se outravez, enrolando-se na palha e fechando os olhos. Passamos por ele, Bronco arrastando a portae fechando-a atrs de ns. Pegou a lanterna que ardia com uma luz fraca ao p da porta econduziu-me em frente.

    Entrei ento num mundo diferente, um mundo noturno onde os animais se mexiam erespiravam, onde os ces levantavam as cabeas de cima das patas dianteiras cruzadas que lheserviam de apoio para me olharem com olhos trmulos, verdes ou amarelos sob o brilhoplido da lanterna, e os cavalos se agitavam quando passvamos perto das baias.

    Os falces esto l no fundo disse Bronco, e eu acatei a informao que me foi dada,supondo que ele considerasse importante que eu a soubesse.

    Aqui disse, por fim. Isto vai servir. Por enquanto, pelo menos. No fao a mnimaideia do que mais fazer com voc. Se no fosse por causa da Dama Pacincia, at acharia queesta era uma bela pea que Deus tinha pregado ao meu senhor. Aqui, Narigudo, chegue para olado e d um lugar a este garoto na palha. isso, aninhe-se Raposa, a. Ela ir aceit-lo edar uma boa pancada em quem quer que pense em incomod-lo.

    Estava diante de uma baia espaosa, habitada por trs ces. Ao ouvirem a voz de Bronco,todos se levantaram e voltaram a deitar, com os rabos esticados batendo na palha. Deitei-mehesitantemente no meio deles e por fim acomodei-me ao lado da velha cadela com o focinhoesbranquiado e uma orelha rasgada. O macho mais velho olhou-me com certa suspeita, mas oterceiro era um cachorrinho ainda muito novo e foi este, Narigudo, quem me deu as boas-vindas, lambendo minhas orelhas, mordiscando meu nariz e dando-me muitas patadas. Pus umbrao sua volta para acalm-lo e aninhei-me entre eles, como Bronco havia me aconselhado.

  • Ele estendeu sobre mim um cobertor grosso que cheirava a cavalo. Na baia vizinha, um cavalocinzento muito grande agitou-se subitamente, batendo com um casco pesado contra a parede demadeira que separava os compartimentos, e enfiando a cabea por cima desta para espreitar arazo de toda aquela animao noturna. Bronco acalmou-o distraidamente com um afago.

    A acomodao desconfortvel para todos neste posto fronteirio. Voc vai descobrirque Torre do Cervo um lugar muito mais hospitaleiro, mas esta noite voc estar seguro eaquecido aqui. E permaneceu ali algum tempo, olhando para ns. Cavalo, co e falco,Cavalaria. Tomei conta de todos para voc durante muitos anos e o fiz bem. Mas este seubastardo... Bem, o que fazer com ele est fora do meu alcance.

    Sabia que ele no estava falando comigo. Observei-o por cima da extremidade do cobertorenquanto ele tirava a lanterna do gancho e saa andando, falando baixo consigo mesmo.Lembro-me bem dessa primeira noite, do calor dos ces, da comicho da palha, e mesmo dosono que finalmente veio, enquanto o cachorro se aninhava ao meu lado. Entrei na mente delee partilhei dos seus sonhos confusos de uma caada interminvel, perseguindo uma presa queno conseguia ver, mas cujo cheiro quente me impelia a seguir em frente, em meio a urtigas,silvas e pedregulhos.

    Com o sonho do cozinho, a preciso da memria vacila como as cores intensas e contornosntidos de um sonho entorpecente. O certo que os dias que se seguiram a esse primeiro noso muito claros na minha memria.

    Lembro-me dos dias midos do final de inverno em que aprendi o caminho entre o estbuloe a cozinha. Tinha a liberdade de ir e vir sempre que eu quisesse. s vezes havia umacozinheira em servio, enfiando carne nos espetos sobre a lareira, ou sovando o po, ouabrindo um tonel de alguma bebida. Na maior parte das vezes no havia ningum, e eu meservia do que quer que tivesse sido deixado sobre a mesa e partilhava a minha refeiogenerosamente com o cachorrinho, que depressa se tornou meu companheiro constante.Homens iam e vinham, comendo, bebendo e olhando-me, com aquela curiosidade especulativaque eu acabei por aceitar como normal. Eram homens todos parecidos, vestindo grosseirascapas de l e calas, de corpos robustos e de movimentos fceis, usando sobre o corao ainsgnia de um cervo saltitante. A minha presena fazia alguns se sentirem pouco confortveis.Fui me habituando ao murmrio de vozes que comeava sempre que eu deixava a cozinha.

    Bronco era uma constante nesses dias, dispensando-me os mesmos cuidados que dispensavaaos animais de Cavalaria; eu era alimentado, penteado e exercitado, o exerccio consistianormalmente em trotar, colado aos calcanhares, enquanto ele executava outras tarefas. Masessas memrias so desfocadas, e os detalhes, tais como o lavar ou mudar de roupas,provavelmente se desvaneceram devido s calmas suposies que uma criana de seis anosfaz acerca da normalidade dessas coisas. Certo que me lembro do cozinho, o Narigudo. Oseu pelo era avermelhado, lustroso, curto e eriado, de tal forma que me pinicava atravs dasminhas roupas, quando partilhvamos o cobertor de cavalo noite. Tinha os olhos verdescomo minrio de cobre, o nariz da cor de fgado cozido, e o interior da boca e a lnguasarapintados de rosa e negro. Quando no estvamos comendo na cozinha, lutvamos um como outro no ptio ou na palha da baia. Assim foi o meu mundo, por seja l quanto tempo queestive ali. Creio que no muito, pois no me lembro de o tempo mudar. Todas as minhasmemrias dessa poca so de dias frios e midos, de rajadas de vento e de neve e gelo queparcialmente derretiam de dia, mas que eram restaurados pelas geadas noturnas.

  • Guardo outra memria desses tempos, mas no ntida. Em vez disso, calorosa esuavemente colorida, como uma antiga e rica tapearia contemplada num quarto escuro.Lembro-me de ser acordado do sono pela agitao do cachorro e pela luz amarela de umalanterna erguida minha frente. Dois homens inclinavam-se sobre mim, mas, atrs deles,Bronco permanecia imvel, e no senti nenhum receio.

    Agora voc o acordou advertiu um, e era o Prncipe Veracidade, o homem do quartocalorosamente iluminado da minha primeira tarde ali.

    E? Voltar a adormecer imediatamente assim que tivermos partido. Diabos! Ele ostentatambm os olhos do pai. Juro que teria reconhecido o sangue que nele flui onde quer que ovisse. No ser possvel neg-lo a ningum que o veja. Mas nem voc nem o Bronco tm maisjuzo do que uma pulga? Bastardo ou no, por acaso se pe uma criana num estbulo entre osanimais? No havia nenhum outro lugar onde coloc-lo?

    O homem que falava assemelhava-se a Veracidade no queixo e nos olhos, mas assemelhanas acabavam a. Este homem era muito mais novo. No tinha barba, e o cabelo,perfumado e suavizado, era mais fino e castanho. Tinha as bochechas e a testa enrubescidaspelo frio noturno, mas era algo novo, diferente do rubor de Veracidade, causado pelasagresses do clima. Alm disso, Veracidade vestia-se como os seus homens, em roupasprticas de l, de trama resistente e cores pardas, ao passo que o jovem a seu lado brilhavaem escarlates e amarelo-esverdeados, e a sua capa estendia-se em duas vezes a largura detecido necessria para cobrir um homem. O gibo que surgia por baixo dela era creme erepleto de rendas. O leno que usava no pescoo segurava-se por um alfinete com a forma deum cervo saltitante, feito de ouro, com uma joia verde-cintilante no lugar do nico olho; e ascuidadosas voltas que dava s palavras eram como fios de ouro entrelaados, muito diferentesdos encadeamentos simples de vocbulos que Veracidade empregava.

    Eu no pensei nisso, Majestoso. Que sei eu de crianas? Entreguei-o aos cuidados deBronco. Ele o homem de confiana de Cavalaria, e assim como tem cuidado dos...

    No foi minha inteno desrespeitar o sangue, senhor disse Bronco em honestaconfuso. Eu sou o homem de confiana de Cavalaria, e tratei do garoto o melhor que pude.Podia ter feito para ele uma cama de palha na caserna, mas ele me pareceu pequeno demaispara ficar na companhia desses homens, com as suas idas e vindas a toda hora, as suas brigas,bebedeiras e barulho. no tom das palavras dele ficava claro o seu prprio desagrado portais companhias. Instalado aqui, tem tranquilidade, e o cachorrinho j se afeioou a ele. E,com a minha Raposa tomando conta dele durante a noite, ningum tentar fazer mal a ele semque os dentes dela faam o intruso pagar bem caro pela ousadia. Meus senhores, eu mesmo seimuito pouco de crianas e pareceu-me...

    Est bem, Bronco, est bem disse calmamente Veracidade, interrompendo-o. Sealgum devia ter pensado nisso, devia ter sido eu. Deixei isso com voc e no acho que tenhacometido nenhum erro. mais do que muitas crianas tm neste povoado, Eda sabe disso.Neste lugar, e por enquanto, est bem.

    Ter de ser diferente quando ele for para Torre do Cervo disse Majestoso, noparecendo estar contente.

    Ento o nosso pai deseja que ele v conosco para Torre do Cervo? a pergunta veio deVeracidade.

    o que quer o nosso pai. Mas no o que quer a minha me.

  • Hum!O tom de Veracidade indicava que no tinha interesse em discutir mais aquele assunto. Mas

    Majestoso franziu as sobrancelhas e continuou. A minha me, a rainha, no est nada contente com toda essa situao. Tentou durante

    muito tempo aconselhar o rei, mas foi em vo. A minha me e eu preferamos deixar o garoto...de lado. apenas bom senso. No precisamos de mais confuso na linha de sucesso.

    No vejo confuso nenhuma at agora, Majestoso disse Veracidade numa voz serena. Cavalaria, eu e, em seguida, voc. Depois o nosso primo Augusto. Este bastardo seria umlongnquo quinto.

    Estou bem ciente de que voc precede a mim. No precisa alardear isso na primeiraoportunidade que aparece disse Majestoso friamente. E me encarou. Ainda considero queseria melhor no o ter solta por aqui. E se Cavalaria nunca chegar a ter um herdeiro legtimocom Pacincia? E se ele resolver reconhecer este... garoto? Poderia muito bem criar divisesentre os nobres. Por que brincaramos com fogo? Assim diz a minha me, e assim digo eu.Mas o nosso pai, o rei, no um homem apressado, como muito bem sabemos. Sagaz comoSagaz age, diz o povo. Ele proibiu qualquer tentativa de acabar com o assunto. Majestoso,disse-me daquele jeito que to seu, no faa o que no pode desfazer, at ter considerado oque no poder fazer depois de t-lo feito. Depois gargalhou. E o prprio Majestoso deuuma gargalhada curta e amarga. O humor dele me cansa tanto.

    Hum disse Veracidade outra vez, e eu continuei deitado e quieto, perguntando a mimmesmo se ele estava tentando compreender as palavras do rei ou refreando-se de responder squeixas do irmo.

    Voc percebe as verdadeiras razes dele, obviamente disse Majestoso. Que so...? Cavalaria ainda o seu favorito. Majestoso parecia inconformado. Apesar de tudo.

    Apesar do casamento insensato e da sua excntrica mulher. Apesar de toda esta confuso. Eagora pensa que isso deixar o povo entusiasmado, que aumentar a aprovao dos comuns emrelao a Cavalaria. Que provar a virilidade dele, a capacidade de fazer um filho. Ou talvezdemonstre que ele tambm um ser humano e que pode fazer besteiras como todos os demais. o tom de Majestoso revelava discordncia em relao a tudo isso.

    E isso far as pessoas gostarem mais dele e apoiarem mais o seu futuro reinado? Ter feitoum filho numa mulher selvagem antes de casar com a sua rainha? Veracidade pareciaconfuso pela lgica do irmo.

    Pude ouvir a acidez na voz de Majestoso. Assim parece pensar o rei. Ser que ele no se preocupa nem um pouco com a desonra?

    Mas eu suspeito que Cavalaria considerar de forma diferente a possibilidade de usar obastardo para tais propsitos. Especialmente por causa da querida Pacincia. Contudo, o reiordenou que o bastardo seja levado para Torre do Cervo quando voc retornar. Majestosoolhou para baixo, na minha direo, como se estivesse pouco satisfeito.

    Veracidade pareceu preocupado por um instante, mas assentiu. Pairava sobre as feies deBronco uma sombra que a luz da lanterna no conseguia dispersar.

    Meu senhor no tem uma palavra a dizer sobre isso? aventurou-se Bronco a protestar. Parece-me que se ele quiser acertar uma soma com a famlia da me do rapaz e afast-lo...Ento, claro que, em nome dos sentimentos da Dama Pacincia, tal discrio deveria ser

  • concedida a ele...O Prncipe Majestoso interrompeu-o com um bufo de desdm. O momento para discrio foi antes de deitar-se e rolar com a rapariga. A Dama

    Pacincia no ser a primeira mulher a ter de encarar o bastardo do marido. Toda a gente aquisabe da sua existncia; a falta de jeito de Veracidade tomou conta disso. No faz sentido tentarescond-lo. E, no que diz respeito a um bastardo real, nenhum de ns pode se dar ao luxo deter tais sentimentos, Bronco. Deixar o rapaz num lugar como este como deixar uma armapairando sobre a garganta do rei. Certamente que mesmo um tratador de ces podecompreender isso. E mesmo que voc no possa, o seu senhor com certeza compreender.

    Uma dureza gelada havia se apoderado da voz de Majestoso, e vi Bronco encolher-sediante daquela voz como eu nunca o tinha visto curvar-se diante de nada. Aquilo me deixoucom medo, e eu puxei o cobertor sobre a cabea e me enterrei mais fundo na palha. Ao meulado, Raposa rosnou de leve, no fundo da garganta. Penso que isso fez Majestoso dar um passopara trs, mas no tenho certeza. Os homens partiram pouco depois e, se falaram mais do queisso, no me resta nenhuma lembrana de tal conversa.

    O tempo passou, e penso que foram duas ou trs semanas mais tarde que eu me vipendurado, junto ao cinto de Bronco, e tentando pr as minhas curtas pernas em torno de umcavalo atrs dele, enquanto deixvamos aquele povoado frio. Assim comeava o que mepareceu ser uma viagem interminvel, rumo a terras mais quentes. Suponho que em certomomento Cavalaria veio ver o bastardo que havia gerado, talvez passando por algum tipo dejulgamento com ele mesmo, por minha causa, mas no possuo nenhuma lembrana de talencontro com o meu pai. A nica imagem dele que trago na memria a de um retrato numaparede em Torre do Cervo. Anos mais tarde, foi-me dito que a diplomacia dele tinha sido bempreservada, garantindo uma trgua que durou at a minha adolescncia, e ganhando o respeitoe at a admirao dos Chyurda.

    Na verdade, eu fui o seu nico fracasso naquele ano, mas um fracasso de proporesmonumentais. Ele seguiu nossa frente rumo a Torre do Cervo e, ao chegar, abdicou dodireito ao trono. No instante em que ns chegamos, ele e a Dama Pacincia j tinham partidoda corte para viver como Senhor e Dama da Floresta Mirrada. Estive uma vez na FlorestaMirrada. O nome no tem nenhuma relao com a aparncia do lugar. um vale quente, emtorno de um rio que flui suavemente, esculpindo uma larga plancie, aninhada entre montesainda em formao e de pouca altura. Um lugar para fazer crescer uvas, gros e crianasrechonchudas; uma propriedade tranquila, longe das fronteiras, longe das polticas da corte,longe de tudo o que havia sido a vida de Cavalaria at ento. Era um afastamento, um exliodiscreto e distinto para um homem que poderia ter sido rei. O sufocamento aveludado de umguerreiro e o silenciar de um raro e hbil diplomata.

    E assim cheguei a Torre do Cervo, o filho nico e bastardo de um homem que nunca viria aconhecer. O Prncipe Veracidade tornou-se Prncipe Herdeiro, e o Prncipe Majestoso subiuum degrau na linha de sucesso. Se tudo o que eu tivesse feito na vida fosse ter nascido e serdescoberto, ainda assim teria deixado uma marca em toda aquela terra, para todo o sempre.Cresci sem pai nem me, numa corte onde todos me conheciam como um divisor de guas. Eum divisor de guas me tornei.

    1 N.E.: Fitz, do latim filius, significa filho de, bastardo.

  • CAPTULO DOIS

    O Novato

    H muitas lendas sobre Tomador, o Ilhu que fez de Torre do Cervo o seu Primeiro Ducadoe fundou a linhagem real dos Visionrios. Uma que a viagem de saqueadores com quechegou a esta costa foi a sua primeira e nica excurso para fora da fria e dura ilha emque havia nascido. Diz-se que, ao ver as fortificaes de madeira de Torre do Cervo, teriaanunciado:

    Se houver fogo e comida ali, no vou mais partir.E havia, e ele no partiu.

    Mas os rumores que correm na famlia dizem que ele era pobre marinheiro, enjoado pelasondas do mar e pelas raes de peixe salgado que serviam de sustento aos outros Ilhus; queele e a sua tripulao tinham ficado perdidos por dias na gua, e que, se no tivesseconseguido tomar Torre do Cervo, a sua prpria tripulao o teria atirado ao mar. Dequalquer forma, a velha tapearia no Grande Salo representa-o como um homem forte emusculoso, sorrindo ferozmente sobre a proa do navio enquanto os remadores o impelem rumoa uma Torre do Cervo ancestral, feita de madeira e pedra mal trabalhada.

    No incio, Torre do Cervo era uma terra defensvel ao lado de um rio navegvel, na bocade uma baa com um excelente ancoradouro. Um chefe tribal insignificante, cujo nome seperdeu nas brumas da histria, viu a possibilidade de controlar o comrcio do rio a partirdali, e construiu a fortaleza original. Ostensivamente, teve de constru-la de modo que fossepossvel defender dos Ilhus salteadores tanto o rio como a baa, pois estes, a cada vero,vinham saquear as povoaes e embarcaes ao longo do rio, mas no se deu conta at sertarde demais de que os salteadores traidores tinham se infiltrado nas suas fortificaes. Eassim, os salteadores fizeram daquelas torres e muralhas a sua base. A partir dali, foramampliando sua zona de domnio, ocupando as terras ao longo do rio e reconstruindo o antigoforte de madeira com torres e muralhas de pedra, at por fim fazerem de Torre do Cervo ocorao do Primeiro Ducado e a eventual capital do reino dos Seis Ducados.

    A famlia governante dos Seis Ducados, os Visionrios, descendia desses Ilhus.Mantiveram, por vrias geraes, as suas ligaes com eles, fazendo viagens s Ilhas Externasem busca de esposas, e voltando para casa com noivas rolias e escuras do seu prprio povo.Por causa disso, o sangue dos Ilhus continuou a correr com vigor nas linhagens reais efamlias nobres, dando origem a crianas de cabelos negros, olhos escuros e membrosrobustos e musculosos. Com tais atributos, havia uma predileo pelo Talento e por todos osperigos e fraquezas inerentes a tal sangue. Eu tambm tinha a minha cota dessa herana.

    Mas a minha primeira experincia em Torre do Cervo nada teve a ver com histria oulegado. Eu apenas conhecia o lugar enquanto destino final da minha viagem, um cenrio depessoas e rudos, de carroas, ces, edifcios e ruas tortuosas, pelas quais fui conduzido a umaimensa fortaleza de pedra, empoleirada sobre os rochedos que dominavam a cidade abrigada

  • debaixo deles. O cavalo de Bronco estava cansado, e os cascos escorregavam nas pedras,quase sempre sujas, da calada das ruas da cidade. Eu me agarrava com fora ao cinto deBronco, e estava cansado e dolorido demais para sequer me queixar. Ergui a cabea uma vezpara contemplar as torres e paredes altas e cinzentas do forte que se erguia diante de ns.Pareceu-me frio e severo, mesmo sob o calor da brisa martima. Encostei a minha testa nascostas dele e senti-me enjoado pelo cheiro de sal e iodo daquela imensido de gua. E assimcheguei a Torre do Cervo.

    Os aposentos de Bronco ficavam sobre o estbulo, no muito longe do ptio. Foi para lque ele me levou, juntamente com os ces e o falco de Cavalaria. Tratou do falco primeiro,pois estava lamentavelmente ensopado, desgrenhado e sujo da viagem. Os ces estavamtransbordando felicidade por chegarem em casa e pareciam insuflados de uma energia semlimites que era muito irritante para algum to cansado quanto eu. Narigudo empurrou-memeia dzia de vezes antes que eu conseguisse transmitir sua cabea dura de co que euestava cansado e meio enjoado e sem disposio para brincadeiras. Respondeu-me comoqualquer cozinho faria, procurando os antigos companheiros de ninhada e lanando-seimediatamente numa luta semissria com um deles, a qual foi subitamente interrompida por umgrito de Bronco. Ele era o homem de Cavalaria, mas, quando estava em Torre do Cervo, eratambm o senhor dos ces, dos falces e dos cavalos.

    Tendo tratado dos seus prprios animais, caminhou pelas baias, verificando tudo o quehavia sido feito, ou deixado por fazer, durante a sua ausncia. Como num passe de mgica,surgiram rapazes do estbulo, criados e falcoeiros para defenderem suas incumbncias deeventuais crticas. Corri atrs dele por quanto tempo pude. Foi apenas quando eu finalmentedesisti e me atirei, cansado, em cima de uma pilha de palha, que ele pareceu se dar conta deque eu estava ali. Um olhar de irritao seguido de um olhar de enorme cansao percorreu seurosto.

    Aqui, voc, Garrano. Leve o jovem Fitz cozinha, assegure-se de que ele se alimente, edepois o traga de volta aos meus aposentos.

    Garrano era um rapaz dos ces, pequeno e escuro, com cerca de dez anos de idade, quetinha acabado de ser elogiado pela sade de uma ninhada que tinha sido parida na ausncia deBronco. Momentos antes, tinha saboreado a aprovao de Bronco, mas ao receber essas novasordens, o seu sorriso se desfez e ele lanou para mim um olhar indefinido. Ns nos encaramosenquanto Bronco se dirigia s baias com o seu squito de tratadores nervosos. Ento o rapazencolheu os ombros e curvou-se para me encarar.

    Ento voc est com fome, no , Fitz? Vamos procurar alguma coisa para voc beliscar? perguntou convidativo, exatamente no mesmo tom que tinha usado antes para persuadir oscachorrinhos a irem para um lugar onde Bronco pudesse v-los. Eu concordei, aliviado porele no esperar de mim mais que de um cozinho, e o segui.

    Ele olhava para trs o tempo todo para ver se eu continuava a acompanh-lo. Assim queestvamos fora do estbulo, Narigudo veio saltitante para juntar-se a mim. A evidente afeiodo cachorro por mim fez com que eu subisse no conceito de Garrano, que continuou falandopara ns dois com frases curtas de encorajamento, dizendo-nos: h comida logo nossa frente,venha, ande, venha, no, no v para l atrs do gato, ande ali, venha, bons meninos.

    As baias estavam lotadas com os homens de Veracidade acomodando os cavalos eequipamentos, e Bronco apontava tudo o que tinham feito na sua ausncia e que no atendia s

  • suas expectativas. Mas, medida que nos aproximvamos da torre central, o vaivmaumentava. As pessoas passavam por ns de raspo, ocupadas com todo tipo de tarefas: ummoo carregando uma imensa pea de presunto sobre o ombro; um grupo de meninas dandorisadinhas; braos abarrotados de juncos e urzes; um velho de expresso carregada com umcesto de peixe; e trs jovens mulheres em trajes coloridos, com suas vozes soando toalegremente quanto o tilintar dos sinos que traziam pendurados nas vestes.

    Meu nariz me avisou que nos aproximvamos da cozinha, mas o trfego aumentavaproporcionalmente, at que beira da porta havia uma verdadeira multido entrando e saindo.Garrano parou, e Narigudo e eu paramos atrs dele, narizes ocupados avaliando a situao.Ele observou toda aquela gente porta e franziu as sobrancelhas.

    O lugar est cheio. Todos esto se preparando para hoje noite, para o banquete de boas-vindas a Veracidade e Majestoso. Toda a gente que algum veio a Torre do Cervo; asnotcias de que Cavalaria desistiu do trono se espalham depressa. Todos os duques vieram ouenviaram representantes para aconselhar sobre isso. Ouvi dizer que mesmo os Chyurdaenviaram algum, para terem certeza de que os tratados de Cavalaria sero honrados se ele jno estiver por a...

    Ele parou, subitamente desconcertado, mas se foi porque estava falando do meu pai paraaquele que era a causa da sua abdicao, ou porque estava se dirigindo a um cachorrinho e ummenino de seis anos como se eles tivessem inteligncia, no sei ao certo. Olhou ao seu redorde relance, reavaliando a situao.

    Esperem aqui disse-nos finalmente. Eu vou l dentro buscar alguma coisa para vocs.Menos chances de eu ser pisoteado... ou pego. Fiquem aqui.

    E reforou o comando com um gesto firme de mo. Recuei at um muro e fiquei ali, emccoras, fora do caminho do trfego. Narigudo sentou-se obedientemente ao meu lado.Observei fascinado como Garrano se aproximou da porta, fazendo o seu caminho pelo meio damultido e deslizando facilmente para dentro da cozinha.

    Com Garrano fora de vista, as pessoas que passavam chamaram a minha ateno. A maiorparte era composta de serventes e cozinheiros, alguns menestris, mercadores e entregadores.Observei-os chegando e partindo com uma curiosidade entediante. J tinha visto demaisnaquele dia para ach-los grande coisa. Quase mais do que a comida, desejava um lugarsossegado, longe daquela agitao toda. Sentei-me no cho, as costas apoiadas na parede datorre aquecida pelo sol, e descansei a testa sobre os joelhos. Narigudo encostou-se em mim.

    A cauda do cachorro batendo no cho me despertou. Levantei o rosto dos joelhos para notarum par de botas altas e marrons diante de mim. Os meus olhos moveram-se para cima,passando por uma cala de couro cru e uma camisa rstica de l, at alcanarem o rostodesgrenhado e barbudo, com um cabelo grisalho por cima. O homem me olhava, balanandoum pequeno barril sobre um dos ombros.

    Voc o bastardo, no ?Eu tinha ouvido aquela palavra tantas vezes que eu j sabia que ela se referia a mim, sem

    compreender exatamente o que significava. Concordei com a cabea, lentamente.A cara do homem se iluminou com interesse. Ei! disse ele alto, no mais falando comigo, mas com as pessoas que iam e vinham. O

    bastardo est aqui. O filho ilegtimo de Cavalaria, o Mais-Duro-Que-Um-Pau. Voc se parecemuito com ele, no acha? Quem a sua me, menino?

  • A maioria das pessoas que passavam continuou indo e vindo, sem deixar mais que um olharcurioso ao garotinho de seis anos sentado contra o muro, mas a pergunta do homem do barrilera evidentemente de grande interesse, porque mais do que umas poucas cabeas se viraram, evrios comerciantes que acabavam de sair da cozinha se aproximaram para ouvir a resposta.

    Resposta essa que eu no tinha. Minha me era a minha me e o que quer que eu soubessesobre ela comeava j a se desvanecer da minha memria. Portanto, no respondi, e apenasolhei para ele.

    Ei! Qual o seu nome ento, menino? e virando-se para o seu pblico, falou emsegredo: Ouvi dizer que ele no tem nome. Nenhum grandioso nome real para mold-lo, nemmesmo um nomezinho qualquer para insult-lo. verdade isso, garoto? Ou tem um nome?

    O grupo de espectadores crescia. Alguns mostravam compaixo nos olhos, mas ninguminterferiu. Um pouco do que eu estava sentindo passou para o Narigudo, que se deixou cair delado e mostrou a barriga em splica enquanto batia a cauda, naquele velho sinal canino quequer dizer: Sou apenas um cozinho. No posso me defender. Tenha piedade. Tivessem elessido ces, teriam me farejado, afastando-se a seguir, mas os humanos no tm dessas cortesiasinatas. E assim, quando no respondi, o homem aproximou-se mais, deu um passo frente, erepetiu:

    Voc tem nome, garoto?Levantei-me lentamente, e o muro, que tinha sido quente contra as minhas costas apenas um

    momento atrs, era agora uma barreira gelada que impedia minha retirada. Aos meus ps,Narigudo contorceu-se de costas na poeira e soltou um gemido suplicante.

    No eu disse suavemente, e quando o homem comeou a se debruar para ouvir asminhas palavras, gritei: No! e o repeli, enquanto me movia de lado pelo muro, como umcaranguejo.

    Vi-o cambalear um passo para trs, largando o seu barril, que caiu na rua pavimentada erachou-se. Ningum na multido conseguiu compreender o que tinha acabado de acontecer. Eu,com certeza, no. A maior parte das pessoas riu ao ver um homem-feito encolher-se de medodiante de uma criana. Nesse momento minha reputao de temperamento e atitude tornou-seconhecida porque, antes que a noite casse, a histria do bastardo confrontando seuatormentador j tinha se espalhado por toda a cidade. Narigudo levantou-se e fugiu comigo. Vide relance a cara de Garrano, tensa e confusa quando emergiu da cozinha, tortas nas mos, eviu Narigudo e eu fugindo. Se fosse Bronco, eu provavelmente teria parado e lhe confiado aminha segurana. Mas no era, e por isso eu corri, deixando Narigudo tomar a liderana.

    Fugimos em meio ao bando de criados, apenas mais um garotinho e o seu co correndo peloptio, e Narigudo levou-me para o que ele obviamente considerava o lugar mais seguro domundo. Longe da cozinha e da torre central, Raposa havia cavado um buraco no cho, no cantode uma construo anexa que parecia prestes a desmoronar, onde sacos de ervilhas e feijeseram armazenados. Aqui tinha nascido Narigudo, totalmente contra a vontade de Bronco, eaqui Raposa tinha conseguido manter sua cria escondida durante pelo menos trs dias. Oprprio Bronco a tinha encontrado aqui. O cheiro dele era o primeiro cheiro humano de queNarigudo conseguia se lembrar. O buraco que dava acesso ao espao debaixo da construoera extremamente apertado, mas, uma vez l dentro, o esconderijo era quente, seco e maliluminado. Narigudo aconchegou-se a mim, e eu pus o brao em volta dele. Escondidos ali, osnossos coraes logo acalmaram os batimentos descontrolados, e de inquietos passamos a um

  • sono profundo e sem sonhos, reservado para filhotes e tardes quentes de primavera.Acordei com arrepios, vrias horas depois. Estava j completamente escuro, e o calor tnue

    daquele incio de primavera tinha se dissipado. Narigudo acordou ao mesmo tempo que eu, ejuntos rastejamos para fora do esconderijo.

    Um cu noturno pairava sobre Torre do Cervo, com estrelas luzindo, brilhantes e frias. Oodor da baa era mais forte, como se os cheiros diurnos de homens, cavalos e cozidos fossemcoisas temporrias que deviam se render cada noite ao poder do oceano. Percorremoscaminhos desertos, passando por ptios de exerccios, celeiros e lagares. Tudo estava quieto esilencioso. medida que nos aproximvamos da torre central, comecei a ver tochas aindaardentes e a ouvir vozes ainda envolvidas em conversa, mas tudo isso parecia tomado por umaespcie de cansao, os ltimos vestgios da folia perdendo a fora antes que o alvorecerviesse romper nos cus. Ainda assim, contornamos a torre central a uma longa distncia,encontrando gente de sobra.

    Dei por mim seguindo Narigudo de volta ao estbulo. Ao nos aproximarmos das portaspesadas, fiquei imaginando como entraramos, mas a cauda de Narigudo comeou a abanarrapidamente medida que nos movamos, e at o meu pobre nariz captou o cheiro de Broncono escuro. Ele se levantou do caixote de madeira em que estava sentado ao lado da porta.

    A est voc disse numa voz calma. Vamos l, ento. Vamos. E ficou parado ao ladodas portas pesadas, abriu-as e nos deixou entrar.

    Ns o seguimos pela escurido, entre as baias enfileiradas do estbulo, passando portratadores e adestradores que tinham sido acomodados ali para passar a noite, e depois pelosnossos prprios cavalos, ces e rapazes do estbulo, que dormiam entre eles, e ento por umaescadaria que interligava as baias e a falcoaria. Seguimos Bronco para cima, por degraus demadeira rangente, at alcanar outra porta que ele abriu. A luz amarelo-clara de uma veladerretendo sobre a mesa me cegou temporariamente. Continuamos seguindo-o, agora paradentro de um quarto de teto inclinado, que cheirava a Bronco, a couro e a leos, unguentos eervas que eram parte do seu trabalho. Ele fechou a porta com firmeza atrs de ns e, quandopassou por mim e Narigudo para acender uma nova vela em cima da outra que estava sobre amesa, quase acabada, senti nele o aroma adocicado do vinho.

    A luz se espalhou, e Bronco sentou-se numa cadeira de madeira em frente mesa. Pareciadiferente, vestido com um tecido fino e elegante, marrom e amarelo, e um gibo ornado comfio de prata. Ps uma mo no joelho, com a palma para cima, e Narigudo imediatamente foi atele. Bronco esfregou as orelhas cadas do cachorro e bateu carinhosamente nas costelas,rindo-se do p que se levantou do pelo dele.

    Vocs dois formam um belo par disse, falando mais para o cozinho do que para mim. Olhem para vocs. Sujos como vagabundos. Menti hoje para o meu rei por causa de vocs. aprimeira vez na vida que fao uma coisa dessas. Parece que a desgraa de Cavalaria vai melevar junto com ele. Disse-lhe que voc estava limpo e dormindo profundamente, exausto daviagem. No ficou nada contente por ter de esperar para te ver, mas, felizmente para ns, tinhacoisas mais significantes com que se preocupar. A renncia de Cavalaria deixou muitosnobres alvoroados. Alguns veem nisso uma oportunidade para tirar vantagem, e outros estodesapontados pela traio de um rei que admiravam. Sagaz est tentando acalmar a todos.Deixou espalhar o rumor de que foi Veracidade quem negociou com os Chyurda desta vez. Naminha opinio, queles que acreditam nisso no deveria ser permitido andar por a. Mas eles

  • vieram para olhar Veracidade com novos olhos e comear a imaginar se, e quando, ele ser onovo rei, e que tipo de rei ele poder ser. A desistncia e o refgio de Cavalaria para aFloresta Mirrada deixou todos os Ducados alvoroados, como se tivesse cutucado umvespeiro.

    Bronco ergueu os olhos do focinho vido de Narigudo. Bem, Fitz. Imagino que tenha experimentado um pouco disso hoje. Voc quase matou o

    pobre Garrano de susto, fugindo daquela maneira. Ora, ento est magoado? Algum te tratoumal? Eu devia saber que algum te culparia por todo esse alvoroo. Venha c, ento. Venha.

    Quando eu hesitei, ele foi at uma cama de cobertores preparada ao lado do fogo e deuumas batidinhas nela, com ares convidativos.

    V? J existe um lugar aqui, pronto para voc. E h po e carne na mesa para vocs dois.As palavras dele alertaram-me para uma travessa coberta sobre a mesa. Carne,

    confirmaram os sentidos de Narigudo, e eu fui subitamente tomado pelo aroma da carne.Bronco riu da nossa corrida alvoroada em direo mesa e silenciosamente aprovou a formacomo eu dei uma poro a Narigudo, antes de encher a minha prpria boca. Comemos atficarmos plenamente saciados, pois Bronco no havia subestimado o quanto um cozinho e umgaroto estariam esfomeados depois dos infortnios daquele dia. E ento, apesar da nossalonga soneca anterior, os cobertores ao p da lareira pareceram subitamente muitoconvidativos. De barrigas cheias, enroscamo-nos um no outro, com as chamas aquecendonossas costas, e adormecemos. Quando acordamos no dia seguinte, o sol j estava a pino, eBronco havia partido. Narigudo e eu comemos o que restava do po da noite anterior e roemosos ossos dos restos at limp-los, antes de descermos dos aposentos de Bronco. Ningumquestionou ou pareceu notar a nossa presena.

    Do lado de fora, outro dia de caos e folia comeava. A torre estava ainda mais cheia degente. Os passos levantavam p, e as vozes misturadas eram como uma sobreposio entre osussurrar do vento e o mais distante lamrio das ondas. Narigudo absorveu tudo isso, cadaodor, cada imagem, cada som. O impacto sensorial duplicado me deixou tonto. Enquantoandava, fui compreendendo, a partir de trechos de conversas, que a nossa chegada tinhacoincidido com um certo ritual primaveril que reunia as pessoas em festa. A abdicao deCavalaria ainda era o tpico principal, mas no impedia que os espetculos de marionetes emalabaristas fizessem de cada canto um palco para as suas brincadeiras. Pelo menos umaapresentao de marionetes j havia incorporado a queda de Cavalaria na sua comdialasciva, e eu permaneci annimo no meio da multido e me questionei sobre o significado deum dilogo sobre semear as terras do vizinho que fazia os adultos morrerem de rir.

    Mas logo as multides e o barulho se tornaram opressivos para ns; e eu deixei Narigudosaber que eu queria fugir daquilo tudo. Deixamos a torre central, atravessando o porto grossoda muralha e passamos pelos guardas interessados em flertar com as folis, enquanto estas iame vinham. Mais um garoto e seu co saindo atrs de uma famlia de peixeiros no era nada quechamasse a ateno. E, sem melhor distrao vista, seguimos essa famlia medida que elesfarejavam o caminho afora, pelas ruas que se afastavam da torre e levavam Cidade de Torredo Cervo. Ns nos deixamos levar mais e mais, medida que novos odores exigiam queNarigudo investigasse ao redor e em seguida urinasse em cada canto, at que ramos s ele eeu vagueando pela cidade.

    Torre do Cervo era ento um lugar spero e com muito vento. As ruas eram ngremes e

  • tortuosas, e as pedras do pavimento se moviam e escapavam dos seus lugares sob o peso dascarroas que passavam. O vento castigava o interior das minhas narinas com o cheiro de algase barrigadas de peixe, enquanto o gemido das gaivotas e das aves marinhas era uma melodiafantasmagrica sobre o murmrio rtmico das ondas. O povoado se agarrava ao rochedongreme e negro como os moluscos e crustceos se agarram s docas que se estendem pelabaa. As casas eram de pedra e madeira, e as mais elaboradas estavam entre as de madeira,construdas na parte mais alta da face rochosa, e mais profundamente incrustadas nela.

    A Cidade de Torre do Cervo estava relativamente sossegada, em comparao com asfestividades e multides na torre. Nenhum de ns tinha o bom senso ou a experincianecessria para saber que a regio da cidade em frente ao mar no era o melhor lugar parauma criana de seis anos e um cozinho vaguearem. Narigudo e eu explorvamos avidamenteos lugares, farejando o nosso caminho pela Rua do Padeiro, passando por um mercado quasedeserto e, depois, pelos armazns e galpes para barcos que ficavam na parte mais baixa dopovoado, onde havia gua por perto e andvamos nos cais de madeira com tanta frequnciacomo em areia e pedra. Os negcios aqui corriam como de costume, pouco influenciados pelaatmosfera carnavalesca que se fazia sentir l em cima, na torre. Os navios devem atracar edescarregar conforme permitem a subida e a descida das mars, e os que vivem da pesca tmde seguir os calendrios dos bichos de barbatanas e no os dos homens.

    Logo encontramos crianas, algumas ocupadas com as tarefas menores dos afazeres dosseus pais, mas algumas ociosas como ns. Eu me relacionei facilmente com elas, com poucanecessidade de apresentaes ou quaisquer outras regras de educao dos adultos. A maiorparte delas era mais velha do que eu, mas tambm havia aquelas da mesma idade ou maisnovas. Nenhuma pareceu achar estranho que eu andasse por ali sozinho. Fui apresentado atodas as vistas importantes da cidade, incluindo o corpo inchado de uma vaca que tinha sidolevada pelas ondas na ltima mar. Visitamos um barco novo de pesca em construo numadoca cheia de lascas enroladas de madeira e com forte cheiro de resina derramada. Umagrelha de defumar peixe, deixada a deus-dar, forneceu uma refeio do meio-dia para meiadzia de ns. Se as crianas com quem eu estava eram mais malvestidas e barulhentas do queas que passavam por ns, ocupadas com as suas tarefas, no me dei conta disso. E se algumtivesse me dito que eu estava passando o dia com um bando de fedelhos vagabundos,proibidos de entrar na torre por causa dos seus hbitos de mo-leve, teria ficado chocado.Naquela altura sabia apenas que era um dia subitamente animado e agradvel, cheio de lugaresaonde ir e coisas para fazer.

    Havia alguns meninos, maiores e mais arruaceiros, que teriam aproveitado a oportunidadede intimidar o recm-chegado se Narigudo no estivesse comigo e no tivesse mostrado osseus dentes ao primeiro empurro agressivo. Mas como no mostrei nenhum sinal de querercontestar a liderana deles, recebi permisso para segui-los. Alm disso, estavaconvenientemente impressionado com todos os segredos deles. Eu at arriscaria dizer que, nofinal da longa tarde, conhecia melhor o bairro pobre da povoao do que muitos dos quecresceram nele.

    No perguntaram o meu nome. Chamaram-me simplesmente de Novato. Os outros tinhamnomes to simples quanto Ricardo ou Quim, ou to descritivos quanto Picuinha e Sangra-Nariz. Esta ltima poderia ter sido uma menina muito bonita em circunstncias maisfavorveis. Era um ou dois anos mais velha do que eu, mas muito direta e esperta. Meteu-se

  • numa disputa com um menino grande de doze anos, mas no mostrou medo dos seus punhos, eos insultos da sua lngua afiada rapidamente fez todo mundo ficar rindo dele. Aceitou a vitriacalmamente e deixou-me maravilhado com a sua dureza. Mas os hematomas que exibia na carae nos braos magros tinham vrias nuances, em tons de roxo, azul e amarelo, enquanto umacrosta de sangue seco debaixo de uma orelha fazia jus ao seu nome. Mesmo assim, Sangra-Nariz era cheia de vida, e a sua voz era mais estridente do que o barulho das gaivotas querodopiavam em cima de ns. No final da tarde, estvamos eu, Quim e Sangra-Nariz numamargem rochosa para l das armaes dos pescadores que remendavam as redes, com Sangra-Nariz me ensinando a procurar nas rochas por moluscos bem agarrados, que ela desgrudavacomo uma perita com o auxlio de um pedao de pau afiado. Estava me mostrando como usar aunha para arrancar os interiores mastigveis para fora das conchas, quando outra menina noschamou com um grito.

    A capa azul e limpa que ondulava em volta dela e os sapatos de couro nos seus ps adiferenciavam dos meus companheiros. No veio juntar-se nossa busca, mas apenas seaproximou o suficiente para chamar:

    Moli, Moli, ele est te procurando por todo lado! Acordou quase sbrio h uma hora ecomeou a te chamar por nomes feios assim que descobriu que voc tinha desaparecido e queo fogo estava apagado.

    Um olhar de desafio misturado com medo percorreu o rosto de Sangra-Nariz. V embora, Quita, mas leve os meus agradecimentos com voc. Eu vou me lembrar de

    voc da prxima vez que as mars descobrirem as tocas dos caranguejos.Quita baixou a cabea num breve sinal de compreenso, virou-se imediatamente e foi

    embora pelo caminho por onde tinha vindo. Voc est com algum problema? perguntei a Sangra-Nariz, que ainda no tinha voltado a

    revirar as pedras procura de berbiges. Problema? bufou de desdm. Depende. Se o meu pai conseguir se manter sbrio

    tempo suficiente para me encontrar, posso estar sim em maus lenis. Mas mais do queprovvel que hoje noite ele esteja bbado o suficiente para que nada do que ele atire contramim me acerte. mais do que provvel! repetiu firmemente quando Quim abriu a boca paracontestar. E, com isso, ela voltou praia rochosa e nossa busca por berbiges.

    Estvamos agachados sobre uma criatura cinzenta cheia de patas que tnhamos encontradoencalhada numa poa deixada pela mar, quando a batida de uma bota pesada nas rochascheias de crustceos nos fez erguer a cabea. Com um grito, Quim saiu correndo pela praia,sem olhar para trs. Narigudo e eu demos um salto, recuando, e Narigudo atirou-se para cimade mim, os dentes bravamente arreganhados enquanto a cauda fazia ccegas sua barriguinhacovarde. Moli Sangra-Nariz no foi to rpida para reagir ou conformou-se ao que iriaacontecer. Um homem desajeitado acertou uma pancada no lado da sua cabea. Era um homemmagrinho, de nariz vermelho, esqueltico, tanto que o seu punho era como um n no final dobrao ossudo, mas o golpe ainda assim foi suficiente para fazer Moli se estatelar no cho.Crustceos cortaram os joelhos dela, avermelhados pelo vento e, enquanto ela engatinhavapara o lado a fim de evitar o chute desajeitado que ele lhe apontava, estremeci ao ver osnovos cortes encherem-se de areia salgada.

    Cabrita infiel! No te disse para ficar em casa e tomar conta da mistura? E aqui venho teencontrar batendo perna na praia, com o sebo endurecendo na panela. Na torre vo querer

  • mais velas hoje noite, e o que que eu vou vender? As trs dzias que eu preparei esta manh. Foi apenas para essa quantidade que voc me

    deixou pavio, velho bbado! Moli tinha se levantado e o confrontava bravamente, apesardos olhos cheios de lgrimas. O que que eu ia fazer? Queimar todo o combustvel paramanter o sebo mole e a, quando finalmente me desse mais pavios, no teria como aquecer acaldeira?

    O vento soprou forte, fazendo o homem cambalear. Veio junto uma baforada do seu cheiro.Suor e cerveja, informou-me Narigudo sabiamente. Por um momento o homem pareceuarrependido, mas ento as dores da barriga e da cabea latejante o endureceram. Abaixou-sede repente e apanhou um galho esbranquiado de madeira trazido pelo mar.

    No fale assim comigo, sua fedelha insolente! Fica andando por a com vagabundos,fazendo sabe-se l o qu! Roubando das grelhas de defumao outra vez, aposto, e meenvergonhando mais ainda! Voc se atreve a fugir e por isso vai apanhar o dobro quando eu tepegar!

    Ela deve ter acreditado nele, pois apenas se encolheu enquanto ele avanava, primeirolevantando os braos magros para proteger a cabea e, depois, parecendo pensar melhornisso, escondendo apenas o rosto com as mos. Eu fiquei ali, petrificado de horror, enquantoNarigudo gania com o meu terror e fazia xixi nos meus ps. Ouvi o silvo da vara descendo.Meu corao pulou para fora do meu peito, e eu empurrei o homem, uma fora abruptasaltando estranhamente da minha barriga.

    Ele caiu, como tinha cado o homem do barril no dia anterior. Mas este homem tombouagarrando-se ao peito, a sua arma de madeira rodopiando para longe, inofensivamente.Estendeu-se na areia, um espasmo percorreu seu corpo todo e ficou quieto.

    No instante seguinte, Moli abriu os olhos, encolhendo-se do golpe que ainda esperava. Viuo pai inerte na praia rochosa e o espanto deixou seu rosto inexpressivo. Ela pulou na direodele, gritando:

    Papai, papai, voc est bem? Por favor, no morra, desculpe-me por ser uma menina tom! No morra, eu vou ser boazinha, eu prometo que vou ser boazinha.

    Ignorando os joelhos ensanguentados, ajoelhou-se ao lado do pai, virando o rosto dele paraque no respirasse na areia, tentando em vo faz-lo sentar-se.

    Ele ia te matar eu disse a ela, tentando compreender a situao. No. Ele me bate um pouco, quando eu sou m, mas nunca me mataria. E quando est

    sbrio e no est doente, chora e implora para que eu no seja m e que no o irrite. Devia termais cuidado para no deix-lo irritado. Oh, Novato, acho que ele est morto.

    Eu prprio no tinha certeza, mas, naquele momento, ele soltou um gemido horrvel eentreabriu os olhos. O ataque que o tinha feito cair parecia ter passado. Confuso, aceitou asautoacusaes de Moli e a sua ajuda ansiosa, e at o meu auxlio relutante. Escorou-se em nsdois, enquanto serpentevamos o nosso caminho pela praia rochosa de cho irregular.Narigudo nos seguia, ladrando e correndo em crculos nossa volta.

    As poucas pessoas que nos viram passar no prestaram ateno em ns. Imaginei que aviso de Moli ajudando o pai de volta para casa no era estranha a nenhum deles. Ajudei-osat a porta da pequena mercearia, com Moli pedindo desculpas em meio a soluos, a cadapasso do caminho. Deixei-os ali, e Narigudo e eu achamos o nosso caminho pelas ruastortuosas e uma estrada muito inclinada em direo torre, observando a cada passo as

  • andanas do povo.Tendo agora achado o povoado e as crianas mendigas, sentia-me atrado por eles como um

    m durante os dias que se seguiram. Os dias de Bronco eram ocupados com seus afazeres, eas noites, com a bebida e as comemoraes da Festa da Primavera. Por isso, prestava poucaateno s minhas idas e vindas, desde que a cada noite me encontrasse na cama de cobertoresem frente lareira. Na verdade, penso que no sabia o que devia fazer comigo, a no serassegurar-se de que eu estivesse suficientemente bem alimentado para crescer saudvel e deque dormisse seguro e confortvel noite. No deve ter sido uma boa poca para ele. Tinhasido o homem de confiana de Cavalaria, e agora que Cavalaria tinha se banido, o que seriadele? Tudo isso devia estar enchendo sua cabea. E tinha o problema da perna. Apesar dosseus conhecimentos de emplastros e curativos, no parecia ser capaz de fazer funcionarempara si prprio os tratamentos que rotineiramente empregava nos animais. Uma ou duas vezesvi seu ferimento descoberto e estremeci ao notar o corte rasgado que se recusava a cicatrizaraos poucos, mas que se mantinha inchado e mido. Em princpio, Bronco comeavaamaldioando-o, e toda noite cerrava os dentes com fora enquanto limpava o ferimento epunha um novo curativo, mas, medida que os dias passavam, olhava cada vez mais para omachucado com um desespero doentio. Finalmente, conseguiu fech-lo, mas a cicatrizpegajosa torceu a pele de sua perna e desfigurou seu andar. No de admirar que desse poucaateno a um pequeno bastardo deixado aos seus cuidados.

    E assim eu corria livre como apenas as crianas pequenas podem, sem ser notado na maiorparte das vezes. Quando a Festa da Primavera terminou, os guardas do porto da torre jtinham se acostumado s minhas andanas dirias. Provavelmente pensaram que eu era umgaroto de recados, pois a torre tinha muitos desses, apenas ligeiramente mais velhos do queeu. Bem cedinho, na cozinha da torre, aprendi a surrupiar comida suficiente para que Narigudoe eu tivssemos um belo caf da manh. Sair em busca de outros alimentos os pesqueimados dos padeiros, os berbiges e algas da praia, e o peixe defumado das grelhasabandonadas tornou-se uma componente regular das minhas atividades dirias. Moli Sangra-Nariz era a minha companheira mais frequente. Raramente vi o pai bater nela depois daqueledia; a maior parte das vezes estava bbado demais para encontr-la ou concretizar as suasameaas quando efetivamente a encontrava. Sobre o que eu tinha feito naquele primeiro dia,pensava pouco, a no ser para me sentir grato por Moli no ter percebido que tinha sido eu oresponsvel.

    O povoado havia se tornado o meu mundo, enquanto a torre era o lugar para onde eu ia nahora de dormir. Era vero, uma estao maravilhosa numa cidade porturia. Para onde querque fosse, a Cidade de Torre do Cervo estava viva com as idas e vindas. As mercadoriaschegavam pelo rio Cervo, oriundas dos Ducados do Interior, em barcos grandes e achatadosconduzidos por barqueiros suados. Estes falavam com autoridade de bancos de areia emarcos, e do subir e descer das guas do rio. A carga que traziam subia para dentro das lojasda povoao e dos armazns, e depois descia de novo para as docas, rumo aos pores dosnavios. Estes eram tripulados por marinheiros que praguejavam constantemente e quedesprezavam os homens do rio com os seus costumes de gente do interior. Falavam de mars ede tempestades e noites em que nem mesmo as estrelas davam o ar da graa para gui-los. Eos pescadores atracavam tambm nas docas de Torre do Cervo, e eram o grupo mais amistoso,pelo menos quando havia fartura de peixe. Quim iniciou-me nas docas e tabernas, e me

  • ensinou como um garoto de ps ligeiros podia ganhar trs ou mesmo cinco moedas por diapara levar mensagens correndo pelas ruas ngremes do povoado. Achvamo-nos espertos eousados, estragando o negcio dos rapazes mais velhos que pediam duas moedas ou at maispor um s recado. Penso que nunca fui to corajoso como naquele tempo. Se fechar os olhos,ainda posso sentir o cheiro desses dias gloriosos. Estopa, resina e lascas frescas de madeiradas docas secas, onde os construtores de barcos trabalhavam com as suas plainas e malhos. Oodor adocicado do peixe muito fresco e o cheiro venenoso de uma rede cheia, deixada forapor tempo demais num dia quente. Barris de carvalho de aguardente envelhecida de Orla daAreia confundindo-se com o cheiro de sacas de l ao sol. Fardos de feno espera de adoar aproa do navio misturavam os seus odores com caixas de meles duros. E todos esses cheirosrodopiavam com o vento da baa, temperado com sal e iodo. Narigudo chamava a minhaateno para tudo o que farejava, j que os seus sentidos mais aguados se sobrepunham aosmeus, mais fracos.

    Quim e eu ramos chamados para ir buscar um marinheiro que tinha ido dizer adeus esposa ou para levar uma amostra de especiarias a um comprador numa loja. O chefe do portopodia nos enviar correndo para avisar uma tripulao de que algum idiota tinha atado mal aslinhas e que a mar estava prestes a levar o navio deles. Mas os recados de que eu maisgostava eram os que nos levavam s tabernas, onde os contadores de histrias e osbisbilhoteiros desempenhavam as suas funes. Os contadores de histrias narravam as lendasclssicas, de viagens de descoberta e tripulaes que se aventuraram por tempestadesterrveis e de capites insensatos que naufragavam os seus navios com todos os seus homens.Aprendi muitas lendas tradicionais, mas os relatos que mais me interessavam no vinham doscontadores profissionais, mas dos prprios marinheiros. Suas histrias no eram aquelascontadas lareira para todo mundo ouvir, mas sim avisos e notcias que passavam detripulao para tripulao, quando os homens partilhavam uma garrafa de aguardente ou umpo de plen amarelo.

    Falavam das capturas que haviam feito, de redes to cheias que quase afundavam o barco,ou de peixes maravilhosos e animais vistos apenas na passagem da lua cheia, que atravessavao rastro deixado pelo navio. Havia relatos de aldeias saqueadas pelos Ilhus, tanto na costacomo nas ilhas exteriores do nosso ducado, e histrias de piratas e batalhas no mar e naviosusurpados internamente, por traidores. Os relatos mais emocionantes eram os dos Salteadoresdos Navios Vermelhos, Ilhus que pilhavam e pirateavam, e que atacavam no s os nossosnavios e aldeias, mas at mesmo outros navios Ilhus. Alguns ridicularizavam a ideia denavios de proa vermelha e zombavam daqueles que contavam casos de piratas Ilhus que seviravam contra outros piratas, iguais a eles.

    Mas Quim, Narigudo e eu nos sentvamos debaixo das mesas com as costas apoiadas ssuas pernas, beliscando pezinhos doces que custavam uma moeda, e ouvamos de olhosesbugalhados as histrias de navios de proa vermelha com uma dzia de corpos balanandonos seus mastros, no mortos, no, mas homens presos que se contorciam e gritavam quando asgaivotas vinham para bic-los. Ouvamos histrias deliciosamente assustadoras, a ponto de astabernas abarrotadas nos parecerem geladas, e ento corramos de volta s docas para ganharmais uma moeda.

    Uma vez, Quim, Moli e eu construmos uma jangada com tbuas descartadas na costa enavegamos, com nossos remos improvisados, para c e para l debaixo das docas. Deixamo-

  • la ali atada e, quando a mar veio, uma parte inteira da doca se soltou, danificando doisesquifes. Durante dias morremos de medo que algum descobrisse que ns ramos osculpados. E, uma vez, o dono de uma taberna puxou as orelhas de Quim e acusou-nos deroub-lo. A nossa vingana foi um arenque fedido que colocamos embaixo dos suportes dotampo de uma das suas mesas. O peixe apodreceu, fedeu e atraiu moscas durante vrios diasantes que ele o encontrasse.

    Aprendi vrias habilidades durante as minhas andanas: comprar peixe, remendar redes,construir barcos e ficar toa. Aprendi ainda mais sobre a natureza humana. Tornei-me umrpido julgador de personalidades, identificando quem efetivamente pagava a moedaprometida por uma mensagem entregue, e quem apenas ria da minha cara quando eu voltavapara receber o pagamento. Sabia a qual padeiro podia mendigar e de que lojas era mais fcilroubar. E Narigudo estava sempre ao meu lado, to vinculado a mim agora que a minha menteraramente se separava por completo da dele. Eu usava os seus olhos, nariz e boca como sefossem meus e nunca passou pela minha cabea que isso fosse sequer um pouco estranho.

    Assim se foi a melhor parte do vero. Porm, num belo dia em que o sol cavalgava num cumais azul do que o mar, a minha sorte grande chegou ao fim. Moli, Quim e eu tnhamossurrupiado uma fileira inteira de linguia de fgado e amos fugindo pela rua abaixo com olegtimo dono atrs de ns. Narigudo estava conosco, como sempre. As outras crianasacabaram aceitando-o como parte de mim. Penso que nunca passou pela cabea delessuspeitar da nossa unio de mentes. Ns ramos o Novato e o Narigudo e, provavelmente, elespensaram que era apenas por meio de um engenhoso truque qualquer que Narigudo sabia, antesde eu atirar, para onde devia correr para apanhar sua parte da recompensa. Havia, portanto,quatro de ns correndo pela rua congestionada, passando as linguias da mo encardida para aboca mida e de volta mo, enquanto atrs de ns o dono gritava e nos perseguia em vo.

    Ento Bronco saiu de uma loja.Eu ia correndo na direo dele. Ns nos reconhecemos num instante de consternao mtua.

    A expresso sombria que surgiu no seu rosto me deixou sem nenhuma dvida sobre a minhaconduta. Fuja, decidi num flego, e esquivei-me das mos que se estendiam para mim, apenaspara descobrir, num sbito engano, que de alguma forma eu tinha corrido diretamente para osbraos dele.

    No gosto de falar do que aconteceu depois disso. Apanhei, no apenas de Bronco, mas dodono das linguias, que estava furioso. Todos os meus cmplices, com exceo de Narigudo,evaporaram pelos cantos e recantos da rua. Narigudo ficou rosnando para Bronco, e tambmapanhou e foi repreendido. Observei com agonia Bronco tirar moedas da bolsa para pagar ohomem das linguias. Ele me segurou firme pelas costas da camisa, de tal forma que quase meergueu no ar. Quando o homem das linguias partiu e a pequena multido que tinha se reunidopara ver a minha humilhao se dispersou, ele finalmente me libertou. Tentei interpretar oolhar de repugnncia que ele lanou sobre mim. Com mais uma palmada com as costas da mona parte de trs da minha cabea, ordenou-me:

    Para casa. Agora.Assim fomos, e mais depressa do que tnhamos ido qualquer outra vez. Encontramos a nossa

    cama de cobertores diante da lareira e esperamos ansiosamente. Esperamos durante toda alonga tarde e o incio da noite. Ficamos ambos com fome, mas sabamos que era melhor nosair dali. Tinha alguma coisa no rosto de Bronco que era mais assustadora que a fria do pai

  • de Moli.Quando ele chegou, j era noite. Ouvimos os passos na escada, e no precisei dos sentidos

    mais aguados de Narigudo para saber que Bronco tinha bebido. Encolhemo-nos quando eleentrou no quarto a meia-luz. A sua respirao estava pesada, e ele levou mais tempo do que decostume para acender todas as velas a partir da vela nica que eu tinha acendido. Em seguida,deixou-se cair num banco e olhou para ns dois. Narigudo ganiu e deitou-se de lado, numasplica de filhote. Desejei fazer o mesmo, mas me contentei em olhar para ele temerosamente.Passado um momento, ele falou:

    Fitz. O que que aconteceu com voc? O que que aconteceu com ns dois? Correndopelas ruas com ladres vagabundos, voc, que tem o sangue dos reis correndo nas veias. Emmatilha, como um animal.

    Permaneci calado. E eu sou to culpado quanto voc, eu imagino. Venha c, ento. Venha c, garoto.Eu me aventurei um passo ou dois em direo a ele. Eu no queria me aproximar demais.Bronco franziu a sobrancelha ao ver que eu titubeava. Voc est aleijado, garoto?Abanei a cabea. Ento venha c.Hesitei, e Narigudo ganiu numa agonia de indeciso.Bronco olhou para ele de relance, surpreendido. Eu podia ver a mente dele trabalhando em

    meio nvoa induzida pelo vinho. Seus olhos moveram-se do cachorro para mim e de volta aocachorro, e uma expresso de nojo tomou conta do seu rosto. Abanou a cabea. Lentamente,ergueu-se e caminhou para longe da mesa e do cachorro, acariciando a perna ferida. Numcanto do quarto havia uma pequena prateleira que continha uma variedade de ferramentas eobjetos empoeirados. Lentamente, Bronco esticou-se para pegar um objeto e traz-lo parabaixo. Era feito de madeira e couro e estava endurecido pela falta de uso. Balanou-o, e a tiracurta de couro estalou contra a perna dele.

    Sabe o que isto, garoto? perguntou com delicadeza, numa voz gentil.Eu abanei a minha cabea em silncio. Chicote para ces.Olhei para ele, atnito. No havia nada na minha experincia ou na de Narigudo que me

    dissesse como reagir quilo. Bronco deve ter notado a minha confuso. Abriu um largosorriso, e sua voz continuou amigvel, mas detectei que aquela atitude escondia algo, como seestivesse espera de alguma coisa.

    uma ferramenta, Fitz. Um instrumento de ensino. Quando voc tem um cozinho que nopresta ateno, quando diz a um cachorro Venha c e o cachorro se recusa a vir, bem,algumas chibatadas com isto e o co aprende a escutar e a obedecer. Bastam apenas algunscortes bem fundos para um cachorro aprender a prestar ateno.

    Falava casualmente enquanto baixava o chicote e deixava a tira curta de couro danarsuavemente pelo cho. Nem Narigudo nem eu conseguamos desgrudar os olhos daquilo e,quando ele subitamente moveu o objeto na direo de Narigudo, o cachorro soltou um ganidode terror e deu um salto para trs, correndo para se esconder atrs de mim.

    Bronco abaixou-se devagar, cobrindo os olhos enquanto se inclinava sobre um banco aolado da lareira.

  • Oh, Eda, murmurou entre os dentes, num tom entre prece e praga. Eu adivinhei, eususpeitei, quando vi os dois correndo juntos daquela maneira, mas malditos sejam os olhos deEl, eu no queria estar certo. No queria estar certo. Nunca na vida bati num cachorro comesta coisa maldita. O Narigudo no tinha nenhum motivo para ter medo. A menos que vocestivesse compartilhando a mente com ele.

    Qualquer que tivesse sido o perigo, percebi que havia passado. Eu me abaixei para mesentar ao lado de Narigudo, que rastejou para o meu colo e comeou a tocar meu rostoansiosamente com o nariz. Tentei acalm-lo, sugerindo que esperssemos para ver o queaconteceria a seguir. Garoto e cachorro, sentamo-nos, observando a quietude de Bronco.Quando ele finalmente levantou a cabea, fiquei impressionado ao ver que ele parecia estarchorando. Como a minha me, eu me lembro em pensamento, mas estranhamente no consigome recordar de uma imagem dela chorando. Apenas o rosto sofrido de Bronco.

    Fitz. Garoto. Venha c disse suavemente, e desta vez havia qualquer coisa na sua vozque no podia ser desobedecida. Eu me levantei e fui at ele, com Narigudo grudado em mim. No disse ele ao cachorro e apontou para um lugar ao lado das suas botas; mas a mim, eleme levantou e me sentou no banco ao seu lado.

    Fitz comeou e fez uma pausa. Inspirou profundamente e recomeou. Fitz, errado. ruim, muito ruim o que voc tem feito com este cachorro. antinatural. pior que roubar oumentir. Faz de um homem menos que um homem. Voc compreende?

    Olhei para ele com cara de nada. Ele suspirou e tentou outra vez. Rapaz, voc tem sangue real. Bastardo ou no, voc filho de Cavalaria, da antiga

    linhagem. E isso que voc tem feito errado. No digno de voc. Compreende?Abanei a cabea em silncio. A est, viu s? Voc no est mais falando. Agora fale comigo. Quem te ensinou a fazer

    isso? Fazer o qu? senti a voz trmula e desafinada.Os olhos de Bronco se arregalaram. Percebi o esforo que fazia para se controlar. Sabe o que eu quero dizer. Quem te ensinou a ficar com o co, com a mente dele, a ver as

    coisas com ele, a deix-lo ver com voc, a dizerem coisas um ao outro?Refleti sobre isso por alguns momentos. Sim, era isso que estava acontecendo. Ningum respondi, por fim. Simplesmente aconteceu. Passamos muito tempo juntos

    acrescentei, pensando que aquele fato ajudaria