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25/6/2014 O ator no cinema brasileiro - Revista Interldio
http://www.revistainterludio.com.br/?p=4774 1/3
segu nda-feira dez 17, 2012
O ator no cinema brasileiro
O ator japons Yoshi Oida cita um colega do teatro kabuki, no livro O Ator Invisvel, ao falar sobre tcnicas de
interpretao: Posso ensinar-lhe o padro gestual que indica olhar para a lua. Posso ensinar-lhe como fazer o
movimento da ponta do dedo que mostra a lua no cu. Mas da ponta do seu dedo at a lua, a responsabilidade
inteiramente sua.
uma simbologia simples, voltada principalmente para o teatro, mas muito pertinente para definir o trabalho dos
atores no cinema brasileiro das ltimas duas dcadas. Talvez a mais importante modificao na produo
cinematogrfica do pas, aps o baque sofrido na era Collor, no incio dos anos 1990, foi a reinveno do papel do
ator.
O trajeto entre a ponta do dedo e a lua foi bastante alargado, a ponto de criarmos funes praticamente
inexistentes no cinema nacional, como o preparador de elenco. Depois de Iracema, uma Transa Amaznica, a
mescla de profissionais e amadores se intensificou, tornando-se uma variante bem-sucedida, como revelamCidade
de Deus e Mutum.
O documentrio cooptou o ator na sua metamorfose para borboleta, ganhando outros coloridos ao brincar de
falso e verdadeiro e colocar em xeque a veracidade que sempre foi atrelada ao gnero. o que pode ser extrado
em Jogo de Cena, Viajo porque Preciso, Volto porque Te Amo e Uma Longa Viagem, entre outros exemplos.
O maior ganho, porm, est no prprio ator como coautor do filme, reconhecimento tardio de um cinema que
estendeu demais sua Politique des auteurs, expressando to somente a viso de seu diretor. O ator era apenas
um veculo do discurso do realizador, adequando-se ao que ele tinha em mente.
O melhor exemplo dessa funo subordinada do ator Glauber Rocha gritando atrs da cmera os dilogos de
Paulo Gracindo em Terra em Transe. Muitas vezes o intrprete dava voz a uma espcie de alter-ego do cineasta,
como os vrios Marcelo de Walter Hugo Khouri ou os personagens de Paulo Jos nos trabalhos de Domingos de
Oliveira.
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Havia excees, claro. Mas que apenas comprovavam a regra. Leila Diniz levava para o set a sua personalidade
forte e libertria. Jece Valado era o macho e o Wilson Grey o eterno antagonista. Alm do Cinema Novo e do
Cinema Marginal, o cinema de autor prevalecia em todos os gneros, at mesmo na pornochanchada.
Essa relao se inverte completamente no cinema da retomada. O diretor continua sendo o mentor do projeto,
mas divide com o ator os mritos da autoria, do filme como realizao. O discurso visvel no mais importante,
pois interiorizado nos atores. Troca-se uma exploso retumbante por uma imploso que provoca estilhaos por
todos os lados.
Por esse efeito, seria mais bem-sucedido? Sim e no. Os tempos anteriores, da ditadura em especial, precisavam
dessa hecatombe. No se podia esperar chegar lua. Eram tempos urgentes. Hoje o radicalismo e a suavidade
esto num patamar idntico, mas fato que o espectador (de um cinema de repertrio) quer ser tocado e no
lobotomizado.
Beleza espiritual
Em busca de um tempo prprio, que no o tempo narrativo, mas sim o de decantao do personagem, os
diretores devolveram essa funo ao ator, dono de origem do papel. O diretor s pode chegar ao Yu, a existncia
usando novamente uma citao de Yoshi Oida, que, no mesmo livro, descreve as observaes de um sbio chins.
O ator seria uma bandeja especial usada para oferendas aos deuses. Entre os objetos preciosos que l constam,
esto o Yu (a existncia) e o Mu (o nada). O primeiro o efeito visvel da ao o que vemos, ouvimos e
reconhecemos. J o Mu a forma, difcil de detectar. onde est o mais elevado nvel da existncia.
No s a sua presena que importa, mas a ausncia tambm, j que o personagem est incorporado a cada
fotograma. Essa , portanto, a principal caracterstica dos filmes no setor da atuao. O maior avano do cinema
brasileiro est no que Oida define (valendo-se de uma classificao feita pelo mestre zen Zeami) como beleza
espiritual.
O trabalho do ator dividido em trs conceitos pele, carne e osso. O primeiro diz respeito beleza externa, o que
surge imediatamente no campo de viso do espectador. J o segundo envolve o ritmo e as palavras, enquanto o
terceiro, o mais importante, aponta para uma qualidade inata, que age sobre o pblico de maneira mais interior.
no cinema da retomada que foi permitida a realizao desses trs estgios de forma completa. As razes para
isso acontecer no so fceis de serem detectadas, mas muito provavelmente vm de um conjunto de fatores,
partindo da exigncia de uma profissionalizao do cinema para que possa se autossustentar.
O entendimento do diretor como criador nico da obra tambm se modifica substancialmente. Dependente de
uma fonte de recursos hbrida, que mescla poder pblico e iniciativa privada, o cineasta deixa de ser o senhor da
razo, vendo suas experincias formais ficarem limitadas para se adequar a um mercado.
H um deslocamento de interesse na forma como se quer contar uma histria. No se trata mais simplesmente da
cmera como o olho do realizador, mas ter no ator um veculo mais rico de ideias, como corpo que v, escuta, fala
e sente, explorando as contradies humanas. Os grandes personagens do perodo tm esse escopo.
Se pinarmos o Madame Sat de Lzaro Ramos (do filme homnimo), o Andr de Selton Mello (Lavoura Arcaica)
e o Neto de Rodrigo Santoro (Bicho de Sete Cabeas), em filmes produzidos na mesma poca (lanados em 2001)
para nos concentrarmos em apenas trs exemplos perceberemos nitidamente essa beleza espiritual acima de
qualquer discurso.
O que importa o embate interno que esses personagens carregam to fortemente, deixando seu turbilho mental
desaguar numa composio que nos faz sentir o Mu de cada um deles. Em Andr e Neto, so os conflitos familiares
envolvendo a tradio. Em Madame Sat, o conflito se amplia para a sociedade igualmente castradora.
O personagem de Lzaro Ramos afirma que carrega uma raiva que no tem fim e que no h explicao para ela.
Andr diz algo semelhante quando tenta definir ao irmo mais velho seus sentimentos, sobre o fato de se ver
diferente naquela famlia aparentemente unida. Em todos eles, h uma dor incomensurvel que brota de seu
mago.
Na parte final de Madame Sat, o protagonista encena um monlogo em que acontece a batalha entre um tubaro
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e Jamaci, cujo resultado a transformao deles em um s, refletindo assim as ambivalncias do personagem,
dono de uma grande raiva e capaz de perceber as sutilezas da arte. Entre a violncia extrema e a proteo s
pessoas prximas.
O corpo, mais do que em qualquer outra poca do cinema brasileiro, uma ferramenta fundamental. A
composio de Lzaro tem no fsico um poderoso instrumento de dilogo com o espectador. Toda a sua energia
passa por ali e perfeitamente assimilada por quem v. Assim como em Lavoura Arcaica, em que o corpo de
Selton praticamente se funde Natureza.
O diretor teatral polons Jerzy Grotowski descreve essa interpretao como a procura por uma corrente
essencial de vida em que os impulsos esto profundamente arraigados dentro do corpo e, ao despert-los,
acontece o desbloqueio que os encaminha para uma abundncia que no a mesma que utilizamos na vida diria.
Processos diferentes
O trabalho do ator se molda proposta esttica do filme, dando-lhe finalmente prioridade, tempo e material (o
preparador de elenco). Como deixa de ser um decalque do diretor, a construo do personagem dita a ao, com
uma abertura muito grande para que a histria e a narrativa se modifiquem durante a sua feitura.
A busca da realidade no s contamina o processo como interfere na escalao dos atores. Os cineastas buscam os
rostos que estampam a coexistncia entre o ator e o personagem. No so tipos, mas uma insero social prxima
ao que est sendo retratado. Caso do elenco de Cidade de Deus ou de O Cu de Suely, em que Hermila Guedes
atua.
O contexto regional tambm faz grande diferena, embora apenas num primeiro momento. Irandhir Santos
comeou em produes nordestinas bem como Hermila e Joo Miguel. Aos poucos, como atores revelados no
cinema, exibem uma profunda identificao com esse meio, servindo aos mais variados personagens e gneros.
Enquanto a primeira metade da Retomada viu o surgimento de uma gerao que se consagraria mais tarde
(seguida, na outra metade, por Juliano Cazarr e Nanda Costa), apareceram outras formas de os atores se
relacionarem com os personagens, apresentando novas propostas dramatrgicas que discutem,
fundamentalmente, o ser ator.
Um personagem que reconta a sua trajetria diante das cmeras, mas valendo-se de cdigos especficos do cinema
e aceitando a interferncia do diretor nos rumos da histria, de certa maneira ficcionalizando-a, seria um ator por
excelncia ou algum cooptado para um projeto cujo propsito provocar a dvida sobre o que real ou no?
Essas pessoas no precisam imitar a vida em cena, porque ela j est incorporada ao seu dia-a-dia, sem que lhes
sejam provocadas emoes. Mas at aonde essa vivncia promove uma contribuio efetiva da encenao? Essa
contribuio favorece mais a uma esttica ou persiste uma crena no que vivido, elemento fundamental do ator
como criador?
Uma resposta difcil de alcanar, pois parte de uma avaliao subjetiva sobre o trabalho de representao. Por
isso, mais eficiente estabelecer avaliaes tendo como base uma obra, traando ligaes entre um personagem e
outro e percebendo assim o que prprio do exerccio do ator e o que diz respeito ao desenvolvimento de um
filme em especfico.
Processo muito diferente de quando os atores so estimulados a improvisar dentro de um perfil e objetivos
conhecidos outro mtodo que ganhou fora no cinema da Retomada. Entre o incio e o fim propostos, os atores
tm ampla liberdade para criarem os dilogos e as emoes, proporcionando uma coexistncia mais forte entre
ator e personagem.
A Retomada possibilitou uma outra presena do ator na produo brasileira que no seria possvel sem o
surgimento de uma gerao de cineastas abertos ao processo colaborativo e que, principalmente, determinaram
um cinema calcado em personagens, estabelecendo uma nova discusso em torno do desequilbrio entre
atores/autores e diretores/autores: estariam esses se eximindo demais do papel criativo?
Paulo Henrique Silva