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O autor descreve momentos cômicos, emocionantes ou ......I – Esses eu assisti 1- Improviso e Emoção Em 2017, minha esposa e eu estávamos de férias em Londres. Fui então procurar

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O autor descreve momentos cômicos, emocionantes ou

simplesmente curiosos ocorridos em salas de ópera e teatro, que

presenciou ou lhe contaram.

Ilustrações:

Laura Levi Costa Sousa

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PREFÁCIO

Neste momento tão difícil por que passa

nosso país, optei por tornar este texto

livremente acessível para todos os interessados

em distrair um pouco seu pensamento dos

nossos tão sérios problemas diários.

Espero que os leitores se divirtam com esta

leitura, e quem tiver episódios semelhantes

para relatar, se quiser pode me enviar, quem

sabe este livro possa ter uma continuação no

futuro....

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DEDICATÓRIA

A TODOS OS PROFISSIONAIS DE SAÚDE DO BRASIL

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AGRADECIMENTOS

A meu filho José Eduardo Levi pelo preparo

deste material tornando possível sua

divulgação.

A minha neta Laura Levi Costa Sousa pelo seu

empenho no preparo da capa e ilustrações e

pela qualidade de sua contribuição.

A Sra. Michelle Rosa, pela paciência e cuidado

na digitação do texto.

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SUMÁRIO

I - ESSES EU ASSISTI

1- Improvisação e Emoção

2- Lady Macbeth e o Felino

3- Aida na Via Veneto

4- O Índio e a Árvore Traiçoeira

5- Engano Fatal

6- De Crianças e Pretzels

7- O Barbudo e a Mulher

8- A Alcoólatra

II - ESSES ME CONTARAM

9- Histórias de Dois Sobreviventes

10- Na Arena de Verona

11- Onde Está Wally, Digo Cacilda?

12- Mortes no Teatro Mambembe

13- Interferência Inesperada

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I – Esses eu assisti

1- Improviso e Emoção

Em 2017, minha esposa e eu estávamos de férias em Londres. Fui

então procurar quais eram as atrações musicais na nossa semana de

permanência. Como é obvio para aquela cidade, encontrei vários concertos

musicais (inclusive com show pirotécnico) e... duas óperas. Na terça feira

Covent Garden ia apresentar La Traviata. Três tenores estavam se

revezando no papel masculino principal, o de Alfredo Germont. Naquela

terça feira o papel estaria a cargo de Atalla Ayan, de quem eu tinha bem

poucas informações.

A apresentação foi de excelente qualidade, como costuma ser no

Royal Opera House, e o tenor saiu-se muito bem, com uma voz forte e

quente que logo conquistou a plateia. Só minha esposa resmungou que

apesar da bela voz, ele tinha pouca mobilidade no palco. Atribuímos o fato

à sua evidente juventude, talvez responsável por uma ainda incompleta

desenvoltura no palco.

Dois dias depois tínhamos ingressos para o mesmo local, com a

apresentação do L’elisir d’amore. No papel principal masculino, o de

Nemorino, um tenor já consagrado, Roberto Alagna, famoso não só pelas

suas qualidades vocais, mas também pelos seus dotes teatrais.

De fato, desde o início ele se movimentou muito à vontade, inclusive

com cambalhotas e malabarismos. Quanto à voz, para mim estava perfeita.

Mas minha mulher, que tem ouvido melhor que o meu, comentou que ele

deveria estar com algum problema vocal, porque às vezes sua voz “raspara”

um pouco.

Terminada a primeira metade, fomos informados pelos alto-falantes

que teríamos 20 minutos de intervalo. E 20 minutos na Inglaterra são 20

minutos mesmo! Pois para nossa surpresa passaram-se 15 minutos sem a

chamada para a reentrada do público, a seguir 20,25,30,35, até que após

40 minutos de intervalo fomos informados que a segunda parte teria início.

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Após todos se sentarem, veio andando para o centro do palco aquela

figura que quase sempre traz más notícias, o porta voz do teatro. E de fato,

ele veio nos informar que o tenor Roberto Alagna, devido a uma inflamação

na garganta, sentiu-se impossibilitado de cantar na segunda parte.

Mas, e aí veio a surpresa, eles encontraram na plateia assistindo a

ópera, o tenor Atalla Ayan, que muito gentilmente aceitou assumir a parte

cantada, enquanto Roberto Alagna manteria a atuação teatral.

E assim puseram uma estante com a partitura, com uma lâmpada em

cima, no canto do palco. E a ópera prosseguiu com Alagna se

movimentando no centro do palco, enquanto Ayan cantava no canto. E o

improviso funcionou muito bem.

Até que chegou o momento culminante, a ária Una Furtiva Lacrima.

E Ayan deu perfeita conta do recado, cantando com extrema emoção.

Quando ele chegou na metade da ária Alagna parou de se movimentar no

palco. Em seguida, começou a dirigir-se com pequenos passos em direção a

Ayan, até alcançá-lo no final da ária. Então, abraçou-o e beijou-o. Ayan

emocionado retribuiu, o público começou a aplaudir freneticamente, com

muitos espectadores em lágrimas. E no final da ópera os dois foram juntos,

de mãos dadas, receber a ovação da plateia.

Quando voltei ao Brasil achei que precisava contar esta história a

algum grande amante de ópera. Convidei então Sergio Casoy, para um

almoço. Ao final do meu relato, ele me perguntou: “E você sabe quem é

Atalla Ayan? “. Confessei que não sabia e assim fui informado de um jovem

brasileiro, natural de Belém do Para que começou cantando em casamentos

e, após algumas bolsas para aperfeiçoamento no exterior, conquistou seu

lugar nos maiores palcos operísticos do mundo.

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2 - Lady Macbeth e o Felino

Muita expectativa na plateia. Afinal, apresentações do Macbeth em

teatros de ópera brasileiros não é acontecimento frequente. E a soprano,

italiana com muita ligação com o Brasil, estava no auge de sua carreira.

Começa o espetáculo, e tudo corre como as melhores expectativas,

com a maravilhosa voz da soprando enchendo cada canto do teatro. E uma

espera crescente pelo seu grande momento, a ária de Lady Macbeth no

segundo ato. Quando ela inicia esse canto, o público já está totalmente

conquistado pela sua qualidade vocal e pela emoção que ela transmite ao

papel dessa terrível personagem.

Mas, eis que do silencio absoluto da plateia começam a pipocar

alguns risos. Surpresa geral, já que risos não combinam seguramente com

a dramaticidade do momento. Até que surge a compreensão dessa

inesperada manifestação. Pois do canto direito do palco, calmo e

imponente, surge um... gato, que tranquilamente caminha em direção à

soprano, e senta-se logo atrás dela, à direita de quem olha da plateia. Os

risos aumentam, até que a soprano incomodada, olha para a sua direita. E

nada vê, pois o gato estava do outro lado. Mais risos enquanto o gato se

movimenta para o outro lado da soprano, à esquerda dos espectadores. E

a cantora visivelmente irritada, volta-se para a sua esquerda. E mais uma

vez não encontra explicação para os risos. E então o gato, calmamente,

caminha para o lado oposto ao que entrara, e desaparece nos bastidores.

Risadas incontroláveis quando a pobre soprano vira a cabeça para todos os

lados, e seu olhar nada encontra.

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Felizmente era uma artista muito experiente. Continuou cantando

sua ária até o final, quando foi entusiasticamente aplaudida, em parte pela

beleza do seu canto, mas também com certeza pelo autocontrole

demostrado frente a um acontecimento que poderia ter levado qualquer

artista a uma crise nervosa em público.

No dia seguinte, as críticas dos jornais se derramaram em elogios à

maravilhosa atuação da soprano. Nenhum deu destaque ao intrometido

felino, que continua anônimo até hoje.

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3 - Aida na Via Veneto

As Termas de Caracalla, em Roma, construídas no terceiro século da

era atual, está entre as maiores maravilhas da arquitetura romana. Mas

foram praticamente destruídas pelos invasores do império três séculos

depois, e ficaram abandonadas até o século vinte.

Foi então que se procedeu à recuperação do local, que logo se tornou

uma das principais atrações para os turistas que visitam a Cidade Eterna.

No ano de 1937 lá foram iniciadas as apresentações operísticas. O

Teatro dell’Opera di Roma passou a fazer as récitas no seu grande palco

durante 45 dias por ano, de início de julho até meados de agosto,

aproveitando a temperatura propícia para apresentações ao ar livre.

No início deste século, em 2001, o palco foi transferido para os jardins

das termas, no meio das ruinas. Pelas suas notáveis dimensões, permitia

espetáculos grandiosos, inclusive com a presença de animais não habituais

em palcos de teatro, como cavalos e até elefantes. E a plateia passou a ser

alojada em uma estrutura de madeira desmontável, para evitar que as

ruínas fossem ainda mais danificadas.

Esses espetáculos, tão diversos do corriqueiro sempre atraíram

grande número de espectadores, incluindo aí turistas sem nenhum

conhecimento de ópera, mas interessados no exótico das apresentações. E

a ópera que melhor se enquadra nesse tipo de encenação, seguramente, é

a Aida, recordista de récitas nesse palco.

Confesso que também fui assistir a apresentação dessa ópera

dividido entre dois sentimentos: o de prazer pela música que ia ouvir, mas

também o de curiosidade pela encenação que prometia ser insólita. Para

aqueles que compareceram pelo primeiro motivo, nenhuma insatisfação.

Boa orquestra e cantores razoáveis, embora não de primeira linha, deram

bem conta da parte musical. E para os que foram atraídos pelo segundo

motivo: prato cheio! Equinos e elefantídeos encheram o palco de cascos e

probóscides para curioso nenhum botar defeito.

E assim tudo transcorreu normalmente até o intervalo. Após meia-

hora para satisfação de sedes e necessidades fisiológicas, todos a postos

para o segundo ato. Na verdade, nem todos. Pois já com a música em

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andamento, chega uma retardatária subindo as escadas com sapatos de

salto no mínimo sete. Chega então ao espaço na frente da primeira fila, à

procura da escada para chegar a seu assento, e ao caminhar sobre a

estrutura de madeira produz um toc-toc em alto som, causando murmúrios

de reprovação na plateia incomodada. E eis que de uma fila superior surge

uma voz de homem gritando altíssimo: “Che c’è? Siamo in Via Veneto? (o

que é isso, estamos na Via Veneto?) Risadas generalizadas, mas a

impontual jovem continuou impávida a sua caminhada, como se nada

daquilo lhe dissesse respeito. Finalmente chegou ao seu lugar, cessou o

infernal toc-toc, a platéia voltou a fazer silêncio e a prestar atenção ao que

ocorria no palco.

Felizmente o espetáculo só tinha um intervalo. Assim, a ópera

prosseguiu até o final sem intercorrências, e Radamés e Aída puderam

morrer abraçados em paz.

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4 - O Índio e a Árvore Traiçoeira

A apresentação daquela noite de “Il Guarani” não despertava grandes

expectativas. Cantores bons, mas encenação muito pobre.

Talvez por esse motivo o Teatro Municipal de São Paulo recebia um

público pequeno, os andares de cima quase vazios. Meu primo e eu, em

final de adolescência e duros como sempre, não tivemos dificuldade em

escolher bons lugares nas filas centrais da galeria, pois havia pouca gente

para disputá-los.

E a ópera ia transcorrendo como o esperado, agradável, mas morna,

com os cantores se esforçando ao máximo para, com suas vozes, fazer o

público esquecer da modéstia da montagem. Meu primo e eu, de nossos

altos lugares, tínhamos um privilégio adicional, qual seja ver o que ocorria

no fundo do palco, atrás da última linha do cenário. E eis que, atrás de uma

“cerca”, pudemos ver uma fileira de índios, agachados, passando de um

lado para o outro da cena, invisíveis para os espectadores da plateia, balcão

e foyer, mas totalmente visíveis para os raros “habitantes” da galeria e

anfiteatro. Estes soltaram um risinho frente ao insólito da cena, mas nada

que perturbasse o andamento da obra.

Para isso tivemos que esperar mais um pouco. Chegamos à cena em

que os aimorés amarram Peri a uma árvore, e executam uma dança cheia

de ameaças, antevendo o momento em que iriam devorar a carne desse

valente guerreiro, e assim adquirir também sua coragem e destemor frente

à morte.

Peri, então, reage com fúria, tentando se livrar das cordas que o

prendem e atacar seus malvados inimigos, enquanto estes continuam a

ameaçá-lo e ridicularizá-lo.

E eis que acontece o imprevisto. A árvore desaba sobre Peri, e ambos

vão se estatelar contra o chão, Peri embaixo do tronco ao qual estava

amarrado. Consternação geral! E agora, o que fazer?

Pois é, então, que ocorre o famoso jeitinho brasileiro. Os aimorés, até

então tão ferozes, têm um súbito ataque de gentileza, e vão até Peri para

levantá-lo do chão e certificar-se que nada de sério aconteceu com ele. Uma

vez constatada a ausência de contusões graves, amarram-no novamente à

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árvore, agora levantada, e lembrando-se de seu objetivo inicial retomam

sua dança da morte do inimigo.

E a ópera prossegue até o seu final sem outras intercorrências

notáveis, terminando com o aplauso bastante caloroso do público para os

cantores, e uma certa irritação para com o traiçoeiro vegetal, felizmente já

retirado de cena antes da cortina final.

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5 - Engano Fatal

Na década de sessenta do século passado Sorocaba era uma cidade

muito conservadora. Teatro e concertos, nem pensar. Quanto ao cinema,

havia um predomínio total de filmes tipo “sessão da tarde”. Quando,

finalmente uma das salas de cinema decidiu arriscar-se a apresentar filmes

proibidos a 18 anos, tomou a precaução de reservá-los a uma única sessão

semanal, nos sábados à noite, às 23 horas, com entrada permitida só para

homens.

Não é difícil entender, portanto, o sucesso do chamado “Show

Medicina”, espetáculo encenado uma vez por ano pelos alunos da

faculdade, com uma mistura de números musicais e esquetes cômicos.

Estes, embora às vezes um pouco apimentados, mantinham-se dentro dos

limites do aceitável pelos pais para permitirem aos seus filhos jovens ou

adolescentes assistirem ao Show sem maiores restrições, levando a uma

lotação total do Teatro Santa Rosalia, local do evento. Bem, pelo menos até

o ano em que aconteceu um imprevisto que levou a uma reviravolta na

aceitação do Show pela sociedade sorocabana.

Naquele fatídico ano de 1963, tudo corria bem como de costume. A

plateia demonstrava seu contentamento com risos e aplausos ao final de

cada número, em particular aqueles mais “ousados”. O ponto alto da

primeira metade foi o esquete em que Pedro Alvares Cabral se dirigia em

voz tonitruante a Pero Vaz Caminha: “Caminha, a rota” ao que Pero Vaz

responde pondo-se a andar pelo palco soltando fortíssimos arrotos. Como

se vê, tudo dentro dos limites do aceitável para a época.

Mas, na segunda parte acontece o desastre. Foi encenada uma piada

já velha, mas com sucesso garantido. O assunto era a ida de um jovem

repórter ao asilo para idosos da localidade com a finalidade de entrevistar

o indivíduo mais velho da cidade. Chegando ao asilo, logo dirige-se àquele

que, por seu aspecto muito acabado, lhe parece ser o mais idoso. Então lhe

pergunta: Qual sua idade? Resposta: noventa e dois anos. Segue com o

interrogatório: “Muito bem, e qual seu segredo para viver tanto tempo?”

Resposta: “arroz de manhã, arroz de tarde, arroz de noite”. Mas, moço eu

não sou o mais velho, não. O mais velho é aquele ali”. E aponta para outro

idoso com um aspecto, efetivamente, mais deteriorado. Novo

interrogatório: “Qual seu segredo?” Resposta: “Mingau de manhã, mingau

à tarde, mingau à noite”. “E qual idade o senhor tem?” Resposta: “Noventa

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e seis anos. Mas eu não sou o mais velho. Aquele ali é que é!” e aponta para

outro individuo realmente com aspecto bem mais acabado. A mesma

pergunta. Resposta: “Mulher de manhã, mulher de tarde e mulher à noite”.

O repórter, um pouco espantado: “Parabéns, e qual sua idade?” Resposta:

“Trinta e três anos”. E aí uma tempestade de risadas devia sacudir o teatro.

Mas acontece que os três atores, ou por estarem mal ensaiados, ou

por terem ingerido uma quantidade não desprezível de alcoólicos nos

bastidores durante o primeiro ato, se enganaram um pouco em suas falas,

sem perceber as consequências de sua variação do script original.

O primeiro “velho” respondeu ao repórter: “Eu como arroz de

manhã, como arroz à tarde, como arroz de noite”. O segundo foi no embalo:

“Eu como mingau de manhã, como mingau à tarde, como mingau de noite”.

E quando o terceiro, talvez ainda mais alcoolizado que seus companheiros,

seguiu a toada, ao final de sua fala, ao invés da chuva de risadas e aplausos,

o teatro foi tomado por um silencio constrangedor. Haviam sido

ultrapassados os limites do aceitável pela sociedade sorocabana da época.

O diretor do show, furioso com a “gafe”, escondido nos bastidores

pôs-se a gritar com o terceiro “velho”: “Cala a boca, seu desgraçado”. E a

seguir verbalizou sua opinião, nada favorável, diga-se de passagem, sobre a

mãe do coitado. Isso sem perceber que ao seu lado estava, microfone na

mão, o repórter de uma rádio da cidade que havia decidido levar o

espetáculo “ao vivo” para todos seus ouvintes. E assim esse mal falado

episódio penetrou na maioria dos lares sorocabanos, causando um estrago

fácil de imaginar.

Nos anos seguintes três ou quatro filas de estudantes da faculdade se

constituíram em todo o público presente no até então procuradíssimo

espetáculo. Levou anos para que o trágico episódio fosse esquecido, e

assistir o Show Medicina deixasse de ser considerado um atentado à moral

e aos bons costumes.

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6 - De Crianças e Pretzels

Pouco antes da queda do regime socialista, minha mulher e eu

fizemos nossa primeira (e única até hoje) visita a Budapeste.

Lá chegando, verificamos que as esperadas dificuldades com a língua na

realidade eram bem piores. Assim sendo, decidimos fazer um tour pela

cidade falado em inglês.

O inglês da guia era bem sofrível. E sabendo que nós éramos

brasileiros, ficou o tempo todo enfatizando que seu país era pobre, ao passo

que o nosso era muito rico. Ou seja, além da linguagem sofrível sua cultura

geral também deixava a desejar.

Na volta do tour, meio da tarde, decidimos ir comer doces na famosa

doceria Gerbeaud. Como era domingo, fomos temerosos de encontrar o

local lotado. Para nossa surpresa, aquele elegante estabelecimento, com

seus sofás e poltronas, estava praticamente vazio. Em contraste, do outro

lado da praça havia uma enorme aglomeração, composta principalmente

por jovens barulhentos. Perguntando do que se tratava fomos informados

que era a inauguração do primeiro McDonald’s da Hungria.

Assim pudemos comer nossos doces (deliciosos) em paz. Notei então

na parede um aviso que tinha algumas palavras conhecidas: Zoltan Kodaly,

Hary Janos, Operahaz.

Voltamos então ao hotel, informamos na recepção que gostaríamos

de assistir ao espetáculo, e pedimos instruções para chegar ao teatro. A

recepcionista nos orientou a atravessar a avenida, tomar o ônibus do outro

lado, que descia a rua, e descer na terceira parada. Estaríamos então na

frente do teatro. Na saída, atravessar de novo a avenida, tomar o ônibus

que subia e descer na terceira parada, bem na frente do hotel. E com uma

piscada e um sorriso maroto nos advertiu para não nos distrairmos na

contagem, pois se errássemos o ponto poderíamos ter muita dificuldade

para chegar ao nosso destino ou de encontrar nosso caminho de volta.

Arriscamos. Contamos até 3 e descemos em frente ao belíssimo

Teatro de Ópera de Budapeste. Não sei como conseguimos comprar nossos

ingressos, e entramos alguns minutos antes do início do espetáculo. E logo

chamou nossa atenção o grande número de crianças presentes. Isto não

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deveria ser surpresa, pois a ópera de Kodaly tem um grande apelo para o

público infantil.

Ficamos encantados, porem imaginando o barulho que essas crianças

iriam fazer durante a apresentação. No entanto, para nossa admiração, a

primeira parte transcorreu num silêncio total da plateia, interrompido só

ao final do ato por entusiásticos (e merecidos) aplausos. Intervalo. Saímos

para o saguão e vimos as crianças em uma longa fila em frente a um balcão

aguardando sua vez para receber (gratuitamente) um pacote de pretzels.

Como esse tipo de pão é muito barulhento ao ser mastigado, imaginamos a

sinfonia de crac-cracs que iria ocorrer no segundo ato.

Nova surpresa. As crianças comeram seus pretzels no intervalo, e se

sobraram alguns guardaram no bolso do paletozinho que todos vestiam. E

a segunda parte correu tão em silêncio quanto a primeira.

Ao final, novamente aplausos entusiásticos para orquestra e

cantores. Mas as minhas palmas eram também para aquelas crianças, pelo

exemplo de ordem e disciplina que muitas vezes não é visto em espetáculos

para adultos, como pode ser comprovado em alguns outros capítulos desse

livro.

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7 - O Barbudo e a Mulher Nua

Início da década de 1960. Cidade média (agora grande) do interior

paulista. Muito religiosa. Pouco lazer: futebol e cinema, teatro e concerto

nem falar.

Procurando aumentar seu número de espectadores, o proprietário

de um dos cinemas teve uma ideia bastante ousada para a época: passar a

incluir na programação filmes proibidos pela censura para menores de 18

anos de idade. Mas como a ousadia tem limites, esses filmes, que poderiam

atentar contra a moral vigente, seriam exibidos somente aos sábados à

noite, em sessões especiais às 23h.

Grande alvoroço entre a população local, particularmente os jovens,

com a perspectiva de assistir a tórridas cenas de sexo e de nudez. E assim,

na noite de estreia dessa nova programação, cinema lotado para a exibição

do filme “O terceiro sexo”.

A escolha do proprietário revelou-se bastante inadequada, pois o

filme, apesar do argumento forte para a época, era no mais bastante

púdico. Isso levou vários espectadores a se dirigirem à tela, alguns

chegando a subir no palco, para protestar, ofender atores e exigir aquele

algo mais que esperavam. Mas não obtiveram sucesso, e o filme terminou

com grande descontentamento da plateia.

Esta, no entanto, decidiu dar uma segunda chance ao cinema. Quem

sabe o próximo filme traria as tão desejadas emoções.

O proprietário programou para o sábado seguinte o filme “Asfalto”,

com Françoise Arnoul, mas agora em sessão exclusiva para o sexo

masculino. Muito promissor, e novamente cinema lotado.

O transcorrer do filme, porém , foi causando irritação progressiva na

plateia. Sem cenas tórridas, muito menos nudez. Novamente vários

espectadores se dirigiram ao palco exigindo que Françoise Arnoul se

despisse, e posteriormente, em desespero, que qualquer personagem,

masculino ou feminino, tirasse suas roupas ou pelo menos parte delas. Mas

não tendo sido atendidos, ao término do filme, quando se acenderam as

luzes do cinema, iniciou-se um verdadeiro quebra-quebra tendo por vítimas

os velhos assentos de madeira.

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Ninguém podia prever até onde os protestos poderiam chegar. O

proprietário, apavorado, teve uma ideia genial. As luzes do cinema

novamente se apagaram e apareceu na tela um pedaço de algum filme não

identificado.

Uma mulher bonita apareceu galopando num cavalo branco. Parou

na beira de uma lagoa. Atrás de uma árvore um homem barbudo, com

aspecto suspeito, passou a mão pelo rosto e olhou para a mulher com

cobiça. Esta, sem perceber a sua presença, se despiu totalmente e após

exibir seu lindo corpo por alguns segundos, mergulhou na água.

Corte no filme, tela se apaga e novamente se acendem as luzes do

cinema. Mas agora em meio a uma euforia geral, com gritos e aplausos. O

futuro da sessão... estava garantido!

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8 - A Alcoólatra

Mesma cidade e mesma época que do capítulo anterior. Poucos

meses após os acontecimentos do cinema, outra novidade: um habitante

local com muito amor pelo teatro decidiu criar um grupo dramático com

jovens com que convivia socialmente. Após uma cuidadosa seleção, passou

a ensaiar exaustivamente o futuro elenco, enfrentando a tarefa de

transformar aqueles jovens inexperientes em atores respeitáveis. Atenção

especial para o principal personagem feminino, uma bonita moça que

exibia promissores dotes dramáticos (vamos chamá-la de Marisa). E eis que

chega a noite da estreia. Peça escolhida: “Um inspetor está lá fora”, de

Pinkerton. Escolha arriscada, por se tratar de um drama social bastante

intenso, que exige muito dos atores. Teatro montado no principal clube

local, e plateia totalmente lotada, principalmente por jovens curiosos de

ver seus amigos em cena.

Tudo corre bem no primeiro ato, com os atores dando o máximo de

si para convencer em seus papéis. E principalmente Marisa, cujo

personagem tinha que ingerir grandes quantidades de álcool, sem, no

entanto, perder a compostura.

Curto intervalo e começa o segundo ato. Marisa continua a beber o

que deveria ser whisky, e começa a demostrar o estado de abalo de seu

personagem.

Eis que a ação é interrompida por um jovem que se levanta da sua

cadeira e vai até a beira do palco com aspecto totalmente transtornado.

Logo ele é identificado como o noivo de Marisa na vida real. Inconformado,

põe-se a gritar em altos brados:

- Que é isso, Marisa. Para de beber. Você nunca foi disso. E ainda mais

em público, que vergonha!

Os atores, surpresos pelo imprevisto, se imobilizam no palco. A

plateia se divide entre os que aprovam e os que censuram a ação do noivo.

E este continua a gritar, inconformado, exigindo que Marisa largue o copo

que segura na mão.

Após um tempo que pareceu infinito, o diretor da peça corre até o

rapaz e tenta acalmá-lo, explicando que Marisa não estava ingerindo álcool.

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Que parecia estar, mas por ser exigência do papel. E que na realidade o

conteúdo dos seus vários copos ingeridos era somente água.

O noivo exita, não está muito convencido. Até que, para salvar a

situação Marisa vai até ele na beira do palco, com aspecto perfeitamente

sóbrio, e lhe entrega o copo. O rapaz toma um gole do líquido, sorri

encabulado, desculpa-se com o público e volta ao seu lugar. E a peça

prossegue até o final sem outras intercorrências, recebendo ao seu término

uma chuva de aplausos.

Mas, apesar do sucesso, passou-se mais de um ano até que o diretor

encontrasse coragem para uma nova aventura teatral.

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II – Esses me contaram

9 - História de Dois Sobreviventes

Num congresso de minha especialidade fiz amizade com um médico

americano que, logo descobri, era como eu um grande apreciador de

música clássica e de cinema. Assim, foi natural que ele me contasse a

interessante e comovente história de sua mãe. Ester, uma jovem judia

polonesa, estava muito excitada naquela noite de 1 de setembro de 1939.

Ia assistir no Teatro de Varsóvia a um recital de Wladyslaw Szpilman,

famoso pianista judeu polonês considerado um dos melhores, senão o

melhor pianista da Polônia naquela época.

O concerto começa, e de repente ocorre o inusitado. Uma mulher da

administração do teatro entra no palco e, para surpresa geral interrompe a

apresentação. E a seguir se explica: o exército alemão acabara de irromper

pela fronteira polonesa, dando início à invasão, sendo essa data

considerada pela maioria dos historiadores como o marco inicial da

segunda guerra mundial.

A partir desse momento as condições de vida dos judeus de Varsóvia

pioram progressivamente. São forçados a passar a viver agrupados num

pequeno espaço denominado Gueto de Varsóvia. Começa à operação de

extermínio, com a deportação para o campo de Treblinka.

Quando Szpilman estava para ser embarcado num trem para esse

destino, foi reconhecido e salvo por um policial seu amigo. Ele passa então

a ajudar a resistência, contrabandeando armas para dentro do gueto. Mas

quando o levante se inicia, em 1943, as forças nazistas invadem o gueto e

matam a maioria dos habitantes. Szpilman passa a viver escondido, até que,

em agosto de 1944, a resistência polaca inicia revolta contra a ocupação

alemã. Szpilman escapa do morticínio, e passa a viver nas sombras,

procurando alimentos nas casas abandonadas. Após um longo período de

fome, frio e abandono, é descoberto por um capitão da Wehrmacht.

Quando perguntado, Szpilman informa ser pianista. O incrédulo alemão

pede-lhe então que toque algo num piano vizinho, duvidando que aquele

maltrapilho com luvas furadas nas mãos para proteção contra o frio seja

realmente capaz de tirar algum som decente do instrumento, Szpilman toca

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então uma peça de Chopin , e o alemão, provavelmente um amante da

música, fica emocionado com a beleza de sua interpretação. Passa então, a

ajudá-lo, trazendo-lhe alimentos que garantem a sua até então improvável

sobrevivência.

Após algumas semanas os alemães se retiram, Szpilman começa a se

recuperar e prepara-se para voltar a tocar na rádio de Varsóvia.

Enquanto tudo isso ocorria, a jovem Ester vai sobrevivendo com

enorme dificuldade. Por um período é abrigada numa casa de aldeia por

uma senhora não muito bondosa, em troca de um pagamento feito com os

poucos bens que Ester conseguiu levar escondidos. Sua vida se torna uma

aventura diária de sobrevivência frequentemente tendo que se esconder

em bosques gelados em momentos de perigo de ser aprisionada. Mas

conseguiu sobreviver até o fim da guerra, quando, então, voltou para

Varsóvia.

Após o final da guerra, iniciou-se a reconstrução do Teatro de

Varsóvia, que havia sido destruído pelos bombardeios alemães. Quando o

trabalho ficou pronto programou-se um grande concerto de reabertura. E

o solista convidado para tocar nessa grande noite não poderia ser outro

mais apropriado que Wladyslaw Szpilman.

E no meio do público, lá estava Ester, com lágrimas nos olhos

ouvindo-o tocar a Grande Polonaise como homenagem ao sofrido povo de

sua terra natal. E Ester pode finalmente assistir ao concerto de seu ídolo até

o final, desta vez tendo como única interrupção as palmas entusiásticas da

plateia.

Quem quiser conhecer a história de Ester em todos seus detalhes

poderá encontrá-la em seu livro autobiográfico “Hiding for our lives” escrito

em parceria com o marido. Publicado em 2009, pela editora Booksurge

Publishing, na atualidade está disponível só em inglês.

Wladyslaw Szpilman viveu até o ano 2000, sempre morando na sua

amada Varsóvia. Em 2002, foi lançado o maravilhoso filme de Romeu

Polanski “O Pianista”, baseado em sua autobiografia e disponível com áudio

em várias línguas.

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10 - Na Arena de Verona

A cidade de Verona é visitada anualmente por um enorme número

de turistas, atraídos principalmente por suas duas maiores atrações. Uma é

o famoso balcão de Julieta, local de seus encontros amorosos com Romeu

(embora na atualidade muitos coloquem em dúvida a sua autenticidade), a

outra grande atração é a Arena de Verona; anfiteatro romano construído

provavelmente no século I, e que pelas suas dimensões (pode abrigar cerca

de 30.000 pessoas) e excelente acústica, tornou-se a partir do século XX um

procuradíssimo centro para concertos e óperas. Estas são geralmente

apresentadas entre junho e agosto, pois sendo um anfiteatro ao ar livre é

importante que espetáculos ocorram em meses com temperatura

agradável.

Costumam ser apresentadas quatro óperas por ano, sendo a Aida de

Verdi uma das mais encenadas, pois a dimensão do palco permite que a

ópera seja apresentada em toda a sua grandiosidade.

O acontecimento que vamos descrever a seguir nos foi relatado pelo

amigo Sergio Casoy, que o ouviu diretamente da boca de Mario Del

Monaco, um dos tenores contratados para as apresentações da Aida

naquele ano.

Como já enfatizamos, as grandes dimensões do palco são uma

atração para os encenadores, permitindo-lhes inclusive a presença de

grandes animais, particularmente elefantes, na grande cena da marcha

triunfal comemorativa da vitória dos egípcios sobre os núbios que, não

bastasse a humilhação da derrota militar, tem seus prisioneiros

acorrentados e obrigados a participar do desfile em que se comemora sua

derrota.

Geralmente tudo corre bem, com o público encantado por essa tão

especial e rara cenografia. Mas na apresentação relatada por Mario Del

Monaco ocorreu o absolutamente imprevisto. Pois os elefantes, assustados

com o alto som das trombetas, não contiveram seus intestinos e inundaram

o palco com suas evacuações (piorando ainda mais a humilhação dos

prisioneiros núbios, arrastados agora por um mar não propriamente de

lama, despertando o riso pouco solidário dos espectadores).

Após essa meia tragédia cenográfica, a direção do espetáculo

percebeu a impossibilidade de correr o risco da repetição desse tipo de

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cena. Foi então decidido substituir os elefantes por dromedários, animais

que além de ter a capacidade de tolerar longos períodos de jejum inclusive

de água, tem também a característica de permanecer longos períodos (até

de semanas) sem eliminar suas secreções corporais.

Com essa troca de astros do mundo animal, no espetáculo seguinte

estavam todos tranquilos quanto à ausência de riscos semelhantes aos

causados pelos paquidermes. Mas, não contavam com aquele que ronda

todos os espetáculos artísticos e esportivos, à espreita para se intrometer

sem ter sido convidado: o senhor imponderável.

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Pois não é que os dromedários decidiram ter eles também um ataque

de pânico com o som das trombetas e eliminaram, em poucos instantes,

todo o líquido que normalmente eliminavam em um mês. O palco ficou

obviamente inundado, e apresentando ele um leve declive do fundo para o

fosso da orquestra, a urina dos dromedários escorreu nessa direção, e foi

escoar justamente para dentro daquele instrumento que normalmente fica

na última fila da orquestra, a tuba. O coitado que estava tocando o

instrumento só percebeu o que estava acontecendo após ter tido a

sensação de morrer afogado. Com a interrupção da apresentação para a

limpeza do palco decidiu que, com sua dignidade ofendida, teria que se

recusar a continuar a tocar.

Problema sério: como dar sequência à opera sem o som da tuba? Foi

então, o tocador cercado por todos os envolvidos no espetáculo, recebeu

ameaças e súplicas para que reconsiderasse sua decisão.

Finalmente, em respeito ao público que lotava a Arena, aceitou

continuar, não sem antes receber a promessa de que no dia seguinte

ganharia uma tuba nova.

E desde aquela data decidiu-se que cavalos são animais mais

confiáveis do que elefantes e dromedários, e mesmo não tendo o impacto

visual desses outros animais exóticos, passaram a ser preferidos para a cena

da Grande Marcha Triunfal da Aida, bem como para apresentações de

outras óperas em que o diretor de cena insistisse na obrigatoriedade da

presença de quadrúpedes no palco para o sucesso do espetáculo (ou seu,

pessoal).

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11 - Onde Está Wally, Digo Cacilda

Em 1894, quando saiu publicado seu romance Poil de Carotte (em

português Pega-Fogo), que muitos consideram ter fortes tintas

autobiográficas, o escritor Jules Renard não imaginava que seu livro tivesse

sucesso tão grande. Mas teve, e isso o animou a fazer uma adaptação dele

para o teatro. E assim a história do menino ruivo de oito anos, maltratado

pelos irmãos, mas sobretudo pela mãe que não o ama, e com um pai que

assiste a isso com aparente indiferença, correu os palcos do mundo.

E em 1950, chegou ao Brasil. O Teatro Brasileiro de Comédia de São

Paulo decidiu apresentar a peça no seu Teatro das Segundas-Feiras,

enquanto de terça a domingo era apresentada uma outra peça, talvez

considerada mais promissora em termos de público.

E quem foi escolhida para interpretar o personagem principal foi

aquela que se tornou um dos grandes ícones do teatro brasileiro: Cacilda

Becker. Essa jovem magrinha (41Kg na época), com os cabelos pintados

ruivos e um pouco de vermelho na pele, teve uma interpretação tão

magistral que logo a peça passou a ser a encenação principal do teatro.

Quando o espetáculo foi apresentado em Paris no Teatro das Nações, o

crítico Michel Simon derramou-se em elogios, comparando-a a Charles

Chaplin e outros grandes ídolos da época. E assim, no longo tempo que

permaneceu em cartaz no TBC, a peça foi levada a várias cidades do estado

de São Paulo, onde chegou sempre cercada de enorme expectativa, pois

todos queriam assistir a tão elogiada interpretação de Cacilda.

Uma das cidades que recebeu o espetáculo foi Santos. E meu amigo

Pedro Bandeira, que desde criança sempre teve um enorme amor pelo

teatro, não iria perder essa apresentação por nada desse mundo.

E lá foi ele ao Teatro Coliseu, que ficou totalmente lotado...

Ao seu lado sentou-se um casal, e a mulher mostrava estar em estado

de grande euforia. Virou-se para o Pedro e confessou-lhe estar

excitadíssima com a oportunidade de ver esta tão falada Cacilda Becker

atuando no palco em frente a ela, “imagine só!”. E continuou falando sem

parar até que as cortinas se abriram e o espetáculo teve início.

Pedro ficou logo deslumbrado. Cacilda não parecia uma senhora de

30 anos, mas sim um garotinho de oito. E a sua interpretação transmitia à

perfeição o sofrimento contido, mas intenso, desse infeliz moleque,

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condenado a viver num ambiente de total ausência de amor, muito pelo

contrário, na melhor das hipóteses de indiferença, alternada

frequentemente com maus-tratos e humilhações.

E assim foi se desenrolando a peça, com o público comovido com a

triste história do menino Pega-Fogo. Mas a senhora vizinha do Pedro não

parecia comovida. Mexia-se inquieta, insatisfeita com alguma coisa. Até

que não mais se conteve, e, virando-se para Pedro, perguntou:

Afinal, quando é que essa Cacilda vai entrar em cena?

Algum artista poderia desejar um elogio à sua interpretação melhor

que esse?

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12 - Mortes no Teatro Mambembe

Estes relatos vieram da minha mãe. Sempre os achei um pouco

inverossímeis, mas como não fica bem filho duvidar da mãe, repasso-os

como ela me contou.

Local: uma cidadezinha pequena do Veneto (Itália), um pequeno

teatro velho e decadente.

Público: habitantes da cidade e redondezas, predominantemente

camponeses, pouco habituados a frequentar teatro.

Evento: apresentação de uma peça do tipo muito em voga na época,

com muitas paixões, violência e até mortes.

Com esse tipo de roteiro, a peça vai muito bem até a metade do

segundo ato, com o público vibrando com a tragédia. Mas eis que aí surge

um imprevisto: o vilão deveria atacar a heroína com uma faca, levando-a à

morte. Mas o contrarregra havia se esquecido de colocar uma faca na mesa,

ao alcance do vilão. Felizmente tratava-se de grupo experiente de atores

com vivência nesse tipo de situação. O vilão, na ausência de qualquer

instrumento pontudo ou cortante ao seu redor, desfere pontapé na

heroína. Esta solta um grito: “Maldito, tinhas o sapato envenenado”.

Contorceu-se em dores, e rapidamente, como diria nossa polícia, entrou em

óbito.

Esse covarde ataque provoca a fúria dos parentes e amigos da vítima,

que partem para o ataque ao agressor. Os amigos saem em sua defesa.

Estabelece-se verdadeira batalha campal, ao final da qual todos os

envolvidos ficam estendidos imóveis no assoalho do palco.

Mas o público aparentemente não compreendeu ser esse o final da

peça, e todos permaneceram sentados como que à espera de novos

acontecimentos. Os atores, loucos para ir beber uma grappa, como de

costume ao final dos espetáculos, deitados permaneceram impossibilitados

de se levantar enquanto o público não aplaudisse ou se retirasse.

Situação embaraçosa, mas eis que o contrarregra se dirige à frente

do palco e grita para a plateia:

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“Andate via, non vedete che son tutti morti?” (vão embora, não vêm

que morreram todos?).

Naquele momento, a tela de proteção do palco solta-se do alto e

atinge o contrarregra bem no meio da cabeça. Este cai estendido, e então

verdadeiramente estavam “tutti morti” (todos mortos).

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13 - Interferência Inesperada

Esta história me foi contada pelo seu personagem principal:

importante médico americano, (vamos chamá-lo de Daniel) morador numa

cidade do norte do país com clima caracterizado por frio e névoa quase

permanentes.

Desde criança sempre teve um grande amor pela música. Estudou

piano, porem percebeu não ter futuro em carreira de concertista,

apontando para isso dois motivos. O primeiro, por considerar

(modestamente) não ter talento suficiente para isso. O segundo a

recorrência de crises de ansiedade cada vez que se apresentava em público.

Assim, desistiu do piano e contentou-se em ser somente um brilhante

pesquisador e apreciado professor de imunologia na Universidade local.

Quanto à música, bem, sua cidade tem uma das principais orquestras do

país, cujos concertos ele assistia com assiduidade, e em suas viagens ao

exterior para participar de congressos sempre conseguia escapar dos

eventos programados pela organização do conclavee fugia para assistir

algum concerto ou ópera nos principais teatros locais.

Casou-se, teve filhos, e levou uma vida cheia de satisfações, até que...

Até que ao completar 60 anos começou a sentir uma certa inquietação cada

vez que ouvia música. No início não conseguia diagnosticar a origem dessa

inquietação, até que, finalmente, percebeu quem era o culpado por ela.

Pois não é que após tantas décadas de abandono, o piano começou a

chamá-lo de volta, e de maneira quase imperiosa.

Comprou, então, um piano simples, mas satisfatório, e para

desespero de sua esposa e dos seus cachorros, voltou a estudar do zero,

com intermináveis escalas que repetia por horas seguidas com alegria e sem

cansaço. E o seu entusiasmo renascido o levou a inscrever-se para aulas de

piano no conservatório musical da cidade.

E, assim, começou a progredir com uma certa rapidez. Passou das

escalas para peças mais simples, e a seguir começou a aventurar-se em

peças mais difíceis de Chopin, Schubert e Beethoven. Com muita dedicação,

chegou a dominar mesmo algumas peças mais longas, trechos dos quais

chegava a tocar de memória.

Tudo tranquilo, até que... Até que sua professora de piano lhe

informou que em três meses teriam um recital público com os alunos do

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conservatório, e ele seria um dos que iriam se apresentar. Sentiu

imediatamente uma ponta de pânico, lembrando-se de suas crises de

ansiedade quando devia tocar na infância para qualquer tipo de plateia,

mesmo que somente de parentes e amigos. Além disso, como ficaria ele,

sessentão, tocando ao lado de crianças e adolescentes?

Levou seu medo de fazer um papel ridículo à sua professora, que o

acalmou e garantiu que só tocariam nesse recital alunos de mais idade. E

informou-lhe que havia escolhido a peça que ele iria tocar: A Sonata ao

Luar, de Beethoven.

Após sair do estado de choque, Daniel decidiu deixar de lado seus

temores, afinal estaria muito velho para ter esse tipo de reação, e

empenhar-se a fundo para cumprir adequadamente sua apresentação.

Comprou um piano novo, bem melhor que o anterior, e duplicou suas horas

de treinamento. E começou até a sentir-se mais confiante.

Até que... chegou o dia da audição. O local seria uma linda igreja antiga,

famosa por seus vitrais, possuidora de um magnifico piano Steinway de

1914, e com excelente acústica.

E assim, num sábado nublado (como sempre naquela cidade), Daniel

se preparou para o recital. Comeu um almoço leve, com um copo de vinho,

e para maior segurança tomou um comprimido de beta-bloqueador. Vestiu

um terno, colocou um par de luvas para manter as mãos aquecidas, e

dirigiu-se à igreja onde ocorreria o evento, chegando lá com uma hora de

antecedência. Às 16h começaram as apresentações, algumas boas, outras

nem tanto, mas tudo num ambiente bem familiar que serviu para

tranquilizar Daniel. Finalmente às 17 h chegou sua vez. Sentou-se no

banquinho de piano, olhou para a plateia, procurando rostos familiares, e

sorriu para a professora que iria virar as páginas da partitura para ele.

Embora conhecesse a sonata toda praticamente decór, achou melhor não

arriscar. Melhor ter as notas à sua frente em caso de um possível lapso...

Começou a tocar um pouco nervoso. Mas o som maravilhoso que saia

daquele velho instrumento foi acalmando-o, e na metade da obra já se

sentia bem à vontade.

Até que... Até que ocorre um acontecimento absolutamente

imprevisto, ainda mais naquela cidade sempre nublada e cinzenta. Pois não

é que, surpreendentemente, o sol começa a brilhar forte, seus raios

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atravessam as nuvens, a seguir atravessam os vitrais da igreja, e vão direto

para os olhos de Daniel, embaçando totalmente sua visão e impedindo-lhe

a leitura da partitura.

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Após alguns instantes de hesitação, Daniel é obrigado a interromper

sua apresentação. Algumas almas caridosas correram a fechar as cortinas

dos vitrais, e Daniel foi lentamente recuperando a visão. Sua professora

incentivou-o a retomar a peça a partir do momento da interrupção, o que

foi feito. Mas a partir dai Daniel tinha perdido a segurança e a inspiração, e

terminou sua performance de maneira totalmente mecânica.

Encerrou sua apresentação com uma forte sensação de fracasso. Mas

seus parentes e amigos e mesmo alguns desconhecidos que estavam na

plateia vieram sorrindo elogiá-lo pela boa qualidade de toda a parte tocada

até o momento da interrupção, e demonstrando simpatia e compreensão

pela queda de qualidade causada pela interferência solar, Daniel aos

poucos foi se sentindo consolado, recuperando sua alegria no jantar regado

a vinho, e até começou a programar o que tocar em seu próximo recital,

mas não na mesma igreja.

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O AUTOR

Guido Carlos Levi é médico infectologista, tendo se dedicado nos últimos

anos principalmente ao campo das imunizações. Foi diretor-técnico do

Instituto de Infectologia Emílio Ribas de 1995 a 2001. É membro do Comitê

Técnico Assessor em Imunizações do Ministério da Saúde e da Comissão

permanente de Assessoramento em Imunizações da Secretaria de Estado

da Saúde de São Paulo, além de diretor da Sociedade Brasileira de

Imunizações (SBIm).

Desenvolve atualmente suas atividades profissionais na CEDIPI –

Clínica Especializada em Doenças Infecciosas, Parasitárias e Imunizações, da

qual é sócio fundador.

E-mail: [email protected]