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O Autor na Raça Um embrião de ensaio-reportagem com a memória do projeto Paloma Klisys (2008)

O Autor na Praça

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Um embrião de ensaio-reportagem com a memória do projeto escrito por Paloma Klisys, uma das fundadoras do Projeto junto com Edson Lima, principal articulador da proposta que completa 15 anos em maio de 2014

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Page 1: O Autor na Praça

O Autor na Raça Um embrião de ensaio-reportagem com a memória do projeto

Paloma Klisys

(2008)

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7

SUMÁRIO

Introdução __________________________________________________________ Página 8

Capítulo 1.

Panorama - Do Global ao Local

Língua, literatura e economia do livro____________________________________Página 9

Page 3: O Autor na Praça

8

Capítulo 2

O projeto em Foco____________________________________________________Página 10

2.1 Memórias e Reflexões:

Não-lugares, apropriação cidadã do espaço público e memória social_________ Página 23

Referências__________________________________________________________Página 29

Page 4: O Autor na Praça

9

INTRODUÇÃO

Esta publicação tem como foco a história do projeto “O Autor na Praça”, que existe é

realizado quinzenalmente na Praça Benedito Calixto, situada no bairro de Pinheiros, na cidade

de São Paulo, desde 1999. Este documento é o esboço de uma proposta de livro-reportagem, é

uma colcha jornalística de retalhos provocativos e fragmentos de memória viva que propõem

reflexões à partir da pluralidade de autores e atores sociais envolvidos nessa iniciativa.

O projeto em foco tem como proposta incentivar a leitura, promover a inclusão cultural

criando espaços alternativos para a difusão da literatura integrada a outras manifestações

artísticas, em locais populares: praças, parques, estações, etc., através do encontro informal

entre as pessoas, quebrando o distanciamento entre o escritor, artista e o público, em

contraponto aos eventos realizados em espaços fechados, que restringem o acesso de um maior

número de pessoas.

Trata-se da realização de um modesto registro inédito da memória do projeto,

contemplando conteúdos trazidos à tona durante a problematização de aspectos que entram em

pauta quando a discussão envolve um projeto que propõe um modo de apropriação do espaço

público e que utiliza a cultura e a literatura como instrumentos de afirmação da cidadania,de

promoção de igualdade e também de respeito às diferenças.

O formato de livro-reportagem como suporte de registro do projeto em questão foi

escolhido pelas possibilidades de ampliação e aprofundamento de debate e reflexão que

oferece. A intenção é que um livro sobre o AUTOR NA PRAÇA possa contribuir para

resgatar e democratizar a memória social, através do registro de um projeto que vem

contribuindo para a difusão da literatura, ainda em pequena escala, embora carregue em si o

potencial de ser multiplicado.

Ao abordar a trajetória do projeto através dos próprios autores participantes, torna-se

inevitável o desdobramento e, perguntas simples como qual a importância da iniciativa,

culminam em reflexões a cerca da nossa língua, dos nossos processos políticos e de lutas

democráticas, da formação do público leitor, do papel da literatura, da produção, circulação e

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leitura de obras literárias, dos desafios do mercado editorial, da necessidade de elaboração de

políticas públicas capazes de driblar o triste retrato da leitura no Brasil.

Daí a necessidade de, ao menos esboçar um panorama capaz de situar o leitor nos

contextos global e local, contemplando alguns aspectos que atuam de modo significativo na

nossa realidade e, de modo indireto no modus operandi do “O Autor na Praça” determinando o

alcance de sua atuação dentro de um contexto mais amplo.

O referencial teórico que fomenta reflexões em relação aos espaços públicos, à

apropriação cidadã do espaço público, às interações entre os escritores e o público e à

memória social, é destacado no segundo capítulo que, por sua vez, constitui parte do Projeto

Experimental de Jornalismo, mesclando o tom coloquial com o tom acadêmico apresentado

nas seguintes páginas.

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CAPÍTULO 1

Panorama – Do Global ao Local

Língua, literatura e economia do livro

Na era da globalização, em que algumas línguas se transformaram em línguas globais,

é fundamental que as locais também sejam preservadas. O Português ocupou, até ao início do

século XX, uma posição relativamente modesta entre as línguas maternas mais importantes no

mundo. Foi somente a partir das primeiras décadas de 1900 que começou a obter expressão

significativa, evolução que tem vindo a acentuar-se progressivamente.

De acordo com os dados fornecidos pelas instituições responsáveis pelo recenseamento

geral da população de países de língua oficial portuguesa, pode-se apontar para uma cifra da

ordem dos 200 milhões de falantes de Português como língua materna, distribuídos pelos

continentes americano, europeu, africano e asiático. 1

A Língua Portuguesa encontra-se particularmente bem posicionada no contexto da

disputa lingüística que atualmente se trava no panorama internacional, sendo um dos raros

idiomas que detém o estatuto de língua materna em estados ou territórios de quatro

continentes. O Brasil é um paradigma de como culturas que estavam apartadas, se

reaproximaram, se juntaram em contato, em contágio, em conflito, em comércio, e

transformaram umas às outras.

Um País que abriga muitas culturas é um pólo responsável pela grande entrada

demográfica da África nas Américas. O mundo pode se redesenhar a partir de ações em que a

influência brasileira se manifeste em direções polares com metas e projetos culturais, sociais e

lingüísticos, tendo por base políticas estruturadas para atingir os meios desejados.

O Brasil pode contribuir de maneira significativa para a afirmação nacional e

internacional do idioma através da promoção de estratégias de preservação e de difusão da

Língua, favorecendo sua presença no mundo com aposta em sua expansão, desempenhando

assim um papel político-lingüístico de grande relevância no contexto de um novo mapa de

interação lingüística e social.

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A definição de língua a ser usada por uma nação também depende do alcance social da

comunidade nas relações internacionais. O Português e o Espanhol são línguas que coabitam

territórios lingüísticos e um vasto território político, o Mercosul é exemplo disto.

O Brasil é um país de proporções continentais, contudo, apesar da vasta extensão

territorial e das diferenças e peculiaridades de cada região, temos um idioma em comum: a

Língua Portuguesa. Tocar na nossa Língua contribui para a compreensão do contexto no qual

estamos inseridos. Vale lembrar que as questões lingüísticas constituem um dos temas de

debate da maior atualidade no seio dos organismos internacionais relacionados com a cultura e

a educação.

Desempenhando as línguas uma função crucial na formação das culturas compreende-

se a importância que o tema da defesa do patrimônio lingüístico tem adquirido em diversas

instituições internacionais, entre elas a Unesco. 2

Compete aos estados, às regiões, às sociedades e às organizações de interesse sociais e

culturais, com o apoio de organismos nacionais e internacionais, adotar medidas que visem

preservar as línguas, uma vez que estas constituem um patrimônio inestimável,

desempenhando um papel fundamental na preservação da identidade de numerosas

comunidades em diversos continentes, sendo, também, fatores imprescindíveis para garantir a

diversidade cultural.

O projeto “O Autor na Praça” é uma iniciativa que caminha no sentido de afirmação do

idioma a medida que promove a difusão da produção de autores nacionais. Os sucessivos

alertas de lingüístas e outros cientistas sociais, bem como de organizações internacionais e

responsáveis governamentais de diversas partes do mundo vêm sublinhando, com crescente

intensidade, a função crucial das línguas maternas para o desenvolvimento da criatividade

humana, das capacidades de comunicação, de elaboração de conceitos e, sobretudo, o seu

papel de primeiro fator de identidade cultural. Estas preocupações encontraram eco na

Declaração Universal dos Direitos Lingüísticos (DUDL) aprovada em Barcelona, a 6 de

Junho de 1996, no decurso da Conferência Mundial dos Direitos Lingüísticos.

A Língua é, ao mesmo tempo, a parte da linguagem que existe na consciência de todos

os membros da comunidade lingüística, a soma dos marcos depositados pela prática social de

inúmeros atos e falas concretos, um museu histórico e cultural, um documento do relevante

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e/ou modesto papel que desempenham os povos que a falam na vida do mundo. Sendo um

produto social, será sempre uma forma de expressão dos usos e costumes da sociedade que a

utiliza.

Trata-se de uma entidade dinâmica. Se é que se pode exercer algum controle sobre a

língua, essa circunstância se restringe, de modo específico à sua forma ortográfica. O princípio

da variação lingüística mostra a existência de diversidades no interior de uma língua, assim

como o fato de que o desempenho lingüístico dos falantes pode variar de acordo com os

contextos.

Em outras palavras, a língua é auto-determinada pelos seus usuários. É como é e não

como deveria ser. Ao pensarmos a Língua, estamos num lugar de afirmação de sensibilidades

e mundivivências de profundo significado humano. Para preservar uma língua é preciso

difundi-la porque a vitalidade de uma língua depende de sua utilização efetiva.

A Literatura, por sua vez, é um instrumento de difusão da língua, bem como um meio

de aquisição de conhecimento e humanização do leitor. Apesar de ser um estudioso da

linguagem e não da literatura, o semiologista francês Roland Barthes percebe a literatura como

uma de suas vertentes e vê nela a expressão das estruturas de poder as quais estamos

submetidos: “Esse objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade humana, é: a

linguagem – ou, para ser mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua”. (BARTHES,1978)

De acordo com a teoria de Barthes, uma vez que a língua leva à aceitação obrigatória

de suas estruturas para a completa comunicação, ela faz parte de uma estrutura de poder a qual

todos estão submetidos, obrigados.

O ser humano parte sempre em busca da liberdade. Então, quando se considera que a

liberdade é uma desvinculação total do poder a que se é submetido, dentro do universo

lingüístico não há maneiras de ser livre. Só resta, pois, ao homem, a fuga da linguagem por

meio de uma trapaça lingüística utilizando-se da própria língua: Essa trapaça, salutar, essa

esquiva [...], eu a chamo: literatura”.3 (BARTHES, 1978, p. 16).

A concepção de Roland Barthes de que a literatura é a utilização da linguagem não

submetida ao poder, deve-se ao fato de que a linguagem literária não necessita de regras de

estruturação para se fazer compreender.

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Enquanto a utilização da linguagem cotidiana requer uma estrita obediência de sua

estrutura – deve-se enquadrar o pensamento nas estruturas lingüísticas, para que haja uma

perfeita comunicação -, a linguagem literária não obedece a qualquer regra estrutural fixa. O

autor, que se utiliza dessa linguagem, não é obrigado a emoldurar seus pensamentos nas

estruturas lingüísticas; ele é livre para escolher e criar uma estrutura própria, que lhe

proporcione a clara expressão de suas idéias e sentimentos.

Assim, construindo o texto de acordo com seus próprios desejos, o escritor consegue

que sua criação tenha uma novo valor – passa da simples utilização comunicativa da

linguagem à uma utilização artística da mesma – e a um novo poder. O poder assumido pela

nova linguagem é um poder ligado ao novo valor artístico. A linguagem literária assume

aspectos de representação e demonstração.

Através dessa linguagem, pode-se refletir sobre a própria língua com liberdade. A

linguagem literária permite que as palavras assumam vida própria, com novas significações

que não aquelas a elas conferidas usualmente. A linguagem passa a ter “sabor”. Enquanto no

discurso científico a linguagem é direta e não permite ambigüidades, na linguagem literária as

palavras assumem novos significados e representações.

E é por essa característica de assumir novos significados e representações que a

literatura também pode ser uma “literatura de dois gumes”4, conforme a reflexão proposta por

Antônio Cândido onde ele defende a idéia de que traçar um paralelo puro e simples entre o o

desenvolvimento da literatura brasileira e a história social do Brasil seria perigoso, porque

poderia parecer um convite para olhar a realidade de maneira meio mecânica: “ como se os

fatos históricos fossem determinantes dos fatos literários, ou como se o significado e a razão-

de-ser da literatura fossem devidos à sua correspondência aos fatos históricos”. (CANDIDO,

1987)

O outro gume é o que desvela a percepção de que a criação literária traz como

condição necessária uma carga de liberdade que a torna independente sob muitos aspectos, de

tal maneira que a explicação dos seus produtos é encontrada, sobretudo, neles mesmos.

Como conjunto de obras de arte a literatura se caracterizariam, segundo Cândido, por

essa liberdade extraordinária que transcende as nossas servidões: “mas na medida que é um

sistema de produtos que são também instrumentos de comunicação entre os homens, possui

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tantas ligações com a vida social, que vale a pena estudar a correspondência e a interação

entre ambas”. (CANDIDO, 2000)

Marisa Lajolo e Regina Zilberman, co-autoras do livro Literatura Rarefeita, adquirem

um tom reflexivo e provocativo muito interessante quando pontuam que quando examinamos

os intercâmbios entre a literatura e a sociedade: “ não importa apenas a maneira como os

textos representam as relações sociais engendradas por determinado modo de produção, mas

importa, também e principalmente, a forma como o texto encena sua inserção no sistema de

produção”5. (LAJOLO, 1991)

As autoras deixam no ar uma pergunta nada fácil de ser respondida: como dar certo em

países como o Brasil, periféricos e dependentes, onde o processo de aburguesamento não se

completa nunca ou, dizendo de outra maneira, onde o aburguesamento concretiza-se apenas

parcialmente em alguns segmentos sociais, deixando outros inalterados?.

No contexto da sociedade moderna, vale lembrar que a literatura não pôde se constituir

em prática social difundida e incorporada ao cotidiano antes da descoberta da imprensa, no

século 15, e de seu aperfeiçoamento, no século 18, adequando sua tecnologia à produção e

distribuição, em escala industrial, de livros, revistas, jornais e veículos similares, convertidos

em portadores legítimos de textos escritos.

No mesmo sentido, foi igualmente necessária a consolidação de um sistema de

comercialização desses objetos, postos em circulação por editoras, distribuidoras, livrarias.

Satisfazendo ou criando a demanda de um contingente de consumidores, tais instâncias, de

cunho privado ou público, mobilizaram um mercado e transformaram a literatura em

mercadoria.

Foi preciso também desenvolver legislação que regulasse o funcionamento das

diferentes e sucessivas etapas do processo econômico, da produção ou importação do papel à

implantação de um parque gráfico, da fixação dos direitos do autor à remuneração dos

intermediários que participam da industrialização e comercialização de obras escritas.

Outras exigências incluíram a formulação de uma política educacional que

patrocinasse efetiva e indiscriminada alfabetização da população infantil, existência e

expansão de uma rede escolar eficiente, criação e apoio a instituições que democratizassem o

Page 11: O Autor na Praça

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acesso aos livros, fundação e fortalecimento de organismos que difundissem e defendessem

essa mesma política de que são fruto.

Quando se examinam os intercâmbios entre a literatura e a sociedade, não importa

apenas a maneira como os textos representam as relações sociais engendradas por determinado

modo de produção, mas importa, também e principalmente, a forma como o texto encena sua

inserção no sistema de produção.

Um outro pressuposto incide sobre as sutis relações entre a literatura e a sociedade,

relações essas que não se visibilizam por meio de categorias, nem de procedimentos de ordem

estritamente textual, embora uma tradição estética privilegie essa dimensão. Na tentativa de

superar a estreiteza de tais categorias, cabe fazer um viés que veja a literatura como prática

social específica de escrita e leitura.

Prática que, se supõe a existência de um texto que recebe o atributo de literário, supõe,

aquém e além dele, uma rede, cujas malhas, menos ou mais fechadas, proporcionam

intercâmbio entre diferentes esferas, instâncias, formações, tecnologias, saberes, instituições e

projetos que integram e delimitam o campo no qual um texto se literariza ou se desliterariza.

Assim como a dificuldade de acesso ao livro, a promoção do hábito de leitura também

integra a complexidade de fatores quando abordamos os problemas de circulação e leitura de

obras literárias e formas de inserção social da literatura. As questões levantadas pelos autores

citados acima estão relacionadas há uma série de pontos da Economia do Livro. Os

pesquisadores Fábio Sá Earp6 e George Kamis7, do Grupo de Pesquisas em Economia do

Entretenimento do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,

desenvolveram a Pesquisa “A Economia do Livro. A crise atual e uma Proposta de Política”,

o material dá uma idéia da complexidade de questões que entram em jogo desde a produção

até a circulação dos livros no País.

De acordo com a pesquisa, os livros brasileiros são caros demais para o poder

aquisitivo da população e as políticas governamentais são importantes, mas não são

suficientes. A principal característica da economia do livro é o descompasso entre a oferta

global crescente e a limitada capacidade de absorção das bibliotecas e a limitadíssima

capacidade de absorção do consumidor individual. No Brasil existem cerca de 3.000 mil

editoras, 15 mil gráficas e 1.500 livrarias, dentre as quais 350 (23%) pertencem a 15 redes.

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A maior parte dos livros não proporciona retorno ao editor. Alguns livros terão grande

venda e cobrirão as perdas com a maioria, de forma que as editoras que puderem imprimir

grande número de títulos e simultaneamente desencadear ações de marketing terão vantagens

sobre as demais. Por outro lado os livros capazes de atingir grandes tiragens serão mais

baratos, contudo as grandes tiragens não são garantia de lucro e os editores acabam correndo o

risco de encalhe de grande parte da produção.

A luta contra o encalhe é feita mediante a busca de autores com público próprio que,

por sua vez, são mais caros e atuam no padrão star-system. A venda de grande parte do

estoque em consignação é outro agravante e isso leva algumas editoras a aplicação de uma

fórmula que permite cobrir os custos vendendo apenas 40% da tiragem. Trata-se de somar os

custos de papel, gráfica, diagramação, revisão, tradução (quando houver necessidade) e capa e

dividir pelo número de exemplares da tiragem pretendida e assim obter o custo unitário do

livro, sem os direitos autorais. Este valor deve ser multiplicado por 5 ou 6 para se chegar ao

preço final.

Um ponto a ser considerado é a distribuição do preço de capa de um livro no Brasil:

direitos autorais: 10%; custos editoriais e manufatureiros 25%; lucro da editora 15%;

distribuidor: 10% e livreiro: 40%. As características dos participantes da cadeia produtiva

também merecem atenção. A cadeia está estruturada em oligopólios: edição, gráfica, papel,

distribuição e livrarias. O setor editorial brasileiro tem de 2 a 3 mil empresas das quais 500

publicam ao menos 5 títulos anuais. A distribuição não é uniforme, só no sub-setor de livros

didáticos existem empresas de grande porte, sendo que a maioria dos livros é vendida ao

governo.

A produção de livros requer uma planta industrial específica com equipamentos e

serviços que demandam atualização constante e as gráficas enfrentam uma série de

dificuldades para a obtenção de créditos. No Brasil existem cerca de 15 mil gráficas, no

entanto meia dúzia acaba responsável pela impressão de livros que é um negócio especializado

no campo gráfico.

A modernização resultou num aumento da capacidade de controle sobre a impressão e

maior qualidade gráfica, mas o sucateamento tecnológico se dá em média em apenas sete anos,

implicando em obsolência do parque gráfico e limitando a capacidade de obter novas reduções

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de custos e ganhos de escala. Entre 1999 e 2003 observou-se a quebra de 14 empresas gráficas

expressivas no eixo Rio – São Paulo, associada a um processo de fusões e aquisições com

participação expressiva do capital estrangeiro, que hoje controla o segmento gráfico editorial

no país.8

A distribuição é feita basicamente de duas maneiras: vendas diretas das editoras ao

governo e vendas diretas às livrarias em geral com a intermediação das distribuidoras. Uma

alternativa que se apresenta as formas de acesso ao consumidor é a possibilidade de

eliminação das livrarias e a realização de vendas diretamente nas escolas e em pontos

estratégicos, com prática de descontos sobre a margem usualmente apropriada pelas livrarias.

Lembre-se que os distribuidores operam com margem de lucro de 10% a 15% do preço de

capa, o que torna inviável remeter pequenas quantias para pontos distantes dos grandes centros

editoriais.

Este quadro evidencia a relevância do projeto “O Autor na Praça” como uma

alternativa viável à promoção de acesso ao livro e a literatura e nos permite vislumbrar o

potencial de multiplicação da proposta em outros estados e municípios. A ocupação de

espaços públicos, a aproximação entre os livros e os leitores parece precisar sem estimulada

com estratégias mais informais e flexíveis. As bibliotecas, espaços muitas vezes restritivos e

pouco atraentes, constituem o segmento mais atrasado na cadeia do livro, não são poucas, mas

são mal administradas e em sua maioria incapaz de atender a demanda do público leitor.

Quanto à demanda, a escolaridade é uma característica que, inevitavelmente merece ser

pontuada. Valorizada socialmente, a leitura não é porém associada ao lazer pelos leitores de

baixa escolaridade; e nem mesmo é considerado uma forma atualizada de transmissão de

conhecimentos, 69% declaram ter acesso a formas mais modernas de atualização.

A imagem da importância do livro não se converte em hábito de leitura. Os dados da

pesquisa Retrato da Leitura no Brasil revelam que 61% dos brasileiros adultos alfabetizados

têm muito pouco ou nenhum contato com livros. Dos 17 milhões de pessoas que não gostam

de ler livros, 11, 5 milhões possuem oito anos de instrução.

São Paulo é o maior mercado editorial brasileiro, calcula-se que 22% da população

alfabetizada é compradora de livros. A presença de compradores nos estratos de renda mais

elevada, porém 2/3 dos compradores são de classes B e C. Atualmente são desafios da

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indústria editorial brasileira: flexibilizar o preço de capa para aproveitar melhor os amplos

segmentos de baixa disponibilidade financeira; explorar adequadamente o universo cultural

mais restrito de público jovem e ensino médio; ampliar canais de distribuição e adequar os

existentes.9

____________________________________________________________________________ 1 Dado divulgado pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. 2 Unesco - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. 3 BARTHES, Roland. Aula. Trad. de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1978. 4 CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios, São Paulo: Ática, 1987. 5 LAJOLO, M., ZILBERMAN, R. A leitura rarefeita, livro e literatura no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1991. 6 Professor e Coordenador do Grupo de Pesquisa em Economia do Entretenimento do Instituto de Economia da

Universidade Federal do Rio de Janeiro. 7 Professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e membro do Grupo de

Pesquisa em Economia do Entretenimento da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 8 Dados extraídos da Pesquisa Economia do Livro: A Crise Atual e Uma Proposta Política, realizada em 2004

pelo Grupo de Pesquisas em Economia do Entretenimento do Instituto de Economia da Universidade Federal do

Rio de Janeiro. 9 Dados extraídos da Pesquisa Retrato da Leitura no Brasil, realizada em janeiro de 2001, mostra os hábitos de

leitura no País e fornece informações essenciais para o planejamento mercadológico e o estabelecimento de

políticas públicas. Patrocinada pela CBL, SNEL, ABRELIVROS e Associação Brasileira de Celulose e Papel

(BRACELPA).

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CAPÍTULO 2

O projeto em Foco

A visão da Literatura como necessidade existencial do ser humano1, pressupõe o

reconhecimento do potencial que uma obra tem de interferir também que o modo como

dialogamos com o universo de formas, sensações e idéias que a mesma nos oferece,

potencializa nossa capacidade de perceber, criar, compreender e nos comunicarmos com o

mundo. O projeto O Autor na Praça surgiu em 1999 com a proposta de se criar espaços

alternativos para fomentar o interesse pela leitura e a escrita.

Teve sua origem na Feira de Artes da Praça Benedito Calixto, no bairro de Pinheiros

na cidade de São Paulo. A idéia surgiu a partir de uma visita de Mário Lago a praça em

novembro de 1998, ocasião em que foi acompanhado até a casa em que viveu em 1949, onde

funciona hoje o restaurante Consulado Mineiro. A primeira edição do projeto foi concretizada

em 1º de maio de 1999, numa iniciativa coletiva envolvendo: o produtor cultural Edson Lima,

o poeta e jornalista Fred Maia, o designer gráfico Marcelo Max, o jornalista Mouzart Benedito

e, naturalmente, Plínio Marcos, além de outros colaboradores.

Na abertura o dramaturgo e escritor Plínio Marcos, esteve presente autografando uma

nova edição de Querô - Uma reportagem maldita. Plínio se tornou o padrinho do projeto,

motivo pelo qual, a tenda onde acontecem os eventos recebeu o nome de Espaço Plínio

Marcos. O Autor na Praça procura romper o distanciamento entre o autor e o público,

promovendo o encontro descontraído e informal em espaços populares: praças, parques, etc,

fugindo ao padrão e formato dos eventos realizados em lugares que - de certa forma -

restringem o acesso a um número maior de pessoas.

O objetivo principal é promover a literatura integrada a outras formas de manifestações

artísticas. Em seu conteúdo, o projeto procura privilegiar a cultura popular brasileira, num

movimento de abertura e não de sectarismo cultural. Desde o surgimento o projeto adotou

como prioridade a reflexão e a crítica e, como conseqüência o entretenimento e o lazer. Deste

modo, o perfil dos escritores e artistas participantes, temas desenvolvidos são coerentes com

essa prioridade. O que distancia de trabalhos de conteúdo estritamente comerciais. De fato, o

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objetivo maior é promover a inclusão cultural, por meio de uma programação que ofereça ao

grande público uma oportunidade de encontro informal com autores e artistas do cenário

nacional, conhecidos ou não do grande público, além de contribuir para o surgimento de novos

talentos.

De 1999, ano de início do projeto, até os dias de hoje, o projeto O Autor na Praça já

contou com a presença de mais de 800 convidados, entre escritores, cartunistas, músicos,

atores, artistas plásticos e outros artistas, tais como: Mário Lago, Plínio Marcos, Ignácio de

Loyola Brandão, Téo Azevedo, Jesus Gabriel, Eduardo Suplicy, Chico e Paulo Caruso, Nalú

Faria, Juca Kfouri, Washigton Olivetto, Verônica Tamaoki, José Nêumanne Pinto, Lourenço

Diaféria, Clara Charf, Toninho Vaz, Mouzart Benedito, Vivina de Assis Viana, Fernando

Bonassi, Regina Echeverria, Laerte Coutinho, Luciano Pires, Amaury Corrêa, Adão

Iturrusgarai, Rocco, José Eduardo Cardozo, Gepp & Maia, Ermínia Maricato, Marçal Aquino,

Frei Betto, Dom Paulo Evaristo Arns, Aloysio Biondi, Chico de Góis, Conceição Cahú, Nabil

Bonduki, Raquel Rolnik, Mauricio Cavalcante, Glauco Matoso, Fred Maia, Ulisses Tavares,

Aldaíza Sposati, Tatiana Belinky, Enio Squeff, Roberto Freire, Ferréz, Geraldo do Norte, José

Arrabal, Ziraldo, Gereba, Dinho Nascimento, Elisa Lucinda, Aguilar, Audálio Dantas, Xico

Sá, Marcelo Rubens Paiva, Mylton Severiano, Ester Góis, Ruy Castro, Alice Ruiz etc. Além

da presença de muitos outros artistas engajados em produções artísticas e culturais que

permanecem inacessíveis ao grande público e aos veículos de comunicação de massa.

Uma das características do projeto é realizar eventos relacionados a datas especiais,

personalidades, fatos históricos e temas de importância para a sociedade, incluindo exposições

temáticas. Alguns temas já apresentados: Dia Nacional da Luta Anti-manicomial, Dia

Internacional da Mulher, Dia Internacional de Luta pela Terra, Homenagem a Solano

Trindade, Cacaso 60 anos – Tarde Poética e Musical, Exposição Lampião – uma viagem pelo

cangaço, Consciência Negra, Movimento Humor pela Cidadania - Homenagem a Henfil, com

a exposição Henfil Baixou Aqui, Consciência do Voto e Invasão do Humor I, II e III. Além da

realização de eventos temáticos o projeto já teve alguns desdobramentos que obtiveram

sucesso junto ao público como "O AUTOR NO PARQUE", "O AUTOR NA ESTAÇÃO"

(trem), "O AUTOR NAS FEIRAS DE ARTES" (Vila Mariana, Pompéia, Pirituba, Vila

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Madalena e Preta in Festival) e “ARQUIBANCADA LITERÁRIA”, levando a literatura para

os torcedores do Corinthians, um dos maiores clubes do Estado de São Paulo.

Dentro da proposta de abrir espaço para novos autores e autores que não têm espaço

nos grandes veículos de mídia para a divulgação de seus trabalhos, O Autor na Praça promove

uma série de eventos para que o público possa ter acesso a produções de autores alternativos e

independentes que se dedicam a uma produção tida como Literatura Marginal.

Embora tenha surgido em uma praça privilegiada pela localização e a existência de

uma Feira de Artes, temos como objetivo estender o projeto para praças, parques, escolas e

locais alternativos nos bairros da periferia da cidade, procurando promover o hábito da leitura

e da escrita e, de certa forma, contribuir para a inclusão cultural e o pleno exercício da

cidadania através das mais diversas formas de manifestações artístico-culturais. A intenção é

realizar o evento nos bairros, com o cuidado de buscar parcerias com a comunidade da região,

respeitando e incentivando a produção cultural local, isto é, não apenas levar um evento pronto

e fechado, mas sim promover e criar um espaço para a reflexão, manifestação e expressão de

temas atuais e de importância para a formação do cidadão.

Para concretizar esta idéia é imprescindível o estabelecimento de parcerias com o

poder público, a sociedade, a iniciativa privada, através de patrocínio ou apoio institucional

que permita e produção e realização dos eventos. Dentro deste plano, um dos objetivos é a

contratação de pessoas da comunidade para a organização, realização e produção dos eventos,

gerando ocupação e trabalho. Após a implantação e consolidação das ações nos bairros, a idéia

é transferir para a comunidade a autonomia da realização dos eventos, tornando as pessoas

envolvidas agentes de sua própria transformação.

O maior desafio é ampliar o número de ações com a realização de ao menos 120

eventos por ano, atingindo um público maior, potencializando os objetivos na formação de

leitores.

Page 18: O Autor na Praça

23

2.1 Memórias e Reflexões:

não-lugares, apropriação cidadã do espaço público e memória social

O projeto “O Autor na Praça” encontra-se em movimento constante e atua, a seu modo

e com todas as suas peculiaridades, no processo de apropriação democrática da cidade através

do espaço público. Nas discussões travadas entre membros de movimentos culturais e sociais

sobre as relações entre o espaço urbano e a construção da subjetividade, destaca-se como

desafio: a formulação de estratégias de ocupação dos espaços públicos e de afirmação da

cidadania tendo como objetivos específicos o desenvolvimento da reflexão crítica partindo da

relação homem/mundo; possibilitando a superação da subjetividade passiva pela proposta de

participação crescente, responsável e livre; construindo condições para que se construa um

processo de equilíbrio da pessoa na sociedade atual, pela ação transformadora no seu contexto.

Marc Augé, antropólogo, etnólogo e professor francês aponta que a sociedade tal como

está configurada apresenta três figuras de excesso: superabundância factual, superabundância

espacial, individualização das referencias. Lugar é uma idéia parcialmente materializada

daqueles que o habitam, de sua relação com o território, com o outro. Talvez a relação com a

história esteja em vias de dessocializar-se e artificializar-se.2

“Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que

não pode se definir nem como identitário, nem como relacional e nem como histórico definirá

um não lugar”, conceitua Augé. (AUGÉ, 1994). O autor defende que a época atual é produtora

de não-lugares.

A cidade não tem mais a carga histórica. Enquanto o lugar está investido de memória/lembrança o não lugar se investe de velocidade/passagem, constituindo um espaço a um só tempo real e virtual, sem materialidade. O redimensionamento do espaço público para o teto domiciliar, ilustra a passagem de um lugar para um não-lugar e deste para um lugar esvaziado de sentido. A tela, em si, é a velocidade/passagem, instalada em um espaço real. A casa (um lugar) torna-se intervalo de tempo, suporte para se chegar a um não-lugar eletrônico.

No cotidiano na megalópole, somos imersos numa série de deslocamentos sem

lembrança. Nossos trajetos não recolhem fragmentos históricos dos lugares por onde

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passamos. Nos dedicamos a um caminhar pelo não-lugar, esvaziado de sentido conflito e

vínculos desenraizados. O máximo que um urbanóide pode construir é uma sucessão de não-

lugares desarticulados no tempo e no espaço, ou então articulados no espaço real.

Os não –lugares são tanto as instalações necessárias à circulação acelerada de pessoas

e bens, quanto os próprios meios de transporte e os grandes centros comerciais. Não lugares

por oposição à noção sociológica de lugar, aquela de cultura localizada no tempo e no espaço.

Auge entende o espaço antropológico como um espaço “existencial”, lugar de uma

experiência de relação com o mundo, de um ser essencialmente situado em relação ao meio.

produção individual de sentido é, portanto, mais que necessária, porém o caráter singular da produção de sentido, transmitido por `universos de reconhecimento´ e/ou `universos simbólicos´ que falam do corpo, dos sentidos, da vivencia individual, da política, cujo eixo é o tema das liberdades individuais, tem origem nos sistemas de representação que, individualizando as referencias, a faz em termos coletivos

O “Autor na Praça” promove o encontro entre o escritor e o público, não

necessariamente apenas entre o escritor e seu público leitor, mas também um público aleatório

que têm a oportunidade de ser apresentado a uma determinada obra pelas mãos do próprio

autor. Essa possibilidade de contato enriquece o autor, infelizmente não pelas vendas

propriamente ditas, mas pelo feedback da sua produção da perspectiva do seu leitor, e ao leitor

que, finalmente, pode remeter a obra lida a uma pessoa de carne e osso. Desse modo os

eventos do projeto propõem a ruptura com a lógica descrita pelo escritor e crítico literário

Antônio Cândido.

Resulta que o escritor vê a ele próprio e as palavras, mas não vê o leitor; que o leitor vê as palavras e ele próprio, mas não vê o escritor; e um terceiro pode ver apenas a escrita como parte de um objeto físico, sem ter consciência do leitor nem do escritor. Isso pode fazer com que o escritor suponha, irrefletidamente, que as únicas partes do processo sejam a primeira e a segunda; e o leitor suponha que o processo conste na segunda e terceira; e um crítico irrefletido, que a segunda parte é tudo

Para Cândido há um jogo permanente entre a obra, o autor e o público. O público dá

sentido e realidade à obra, e sem ele o autor não se realiza, pois é ele é de certo modo o

espelho que reflete a sua imagem enquanto criador. O Público é fator de ligação entre o autor e

sua própria obra*3. Para Candido não convém separar a repercussão da obra de sua feitura,

pois, sociologicamente ao menos, ela só está acabada no momento em que repercute e atua.

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[...] arte é um sistema simbólico de comunicação inter-humana. Todo o processo de comunicação pressupõe um comunicante, no caso o artista; um comunicado, ou seja, a obra; um comunicando, que é o público a que se dirige

A obra, vincula o autor ao público, pois o interesse deste é inicialmente por ela, só se estendendo à personalidade que a produziu depois de estabelecido aquele contato indispensável. Assim a série autor-público-obra, junta-se a outra: autor-obra-público. Mas o autor, do seu lado, é intermediário entre a obra, que criou, e o publico, a que se dirige; é o agente que desencadeia o processo, definindo uma terceira série interativa: obra-autor-público

É nessa série interativa: obra-autor-público, que o projeto “O Autor na Praça”

desenvolve sua atuação. A obra é o mote para que o autor vá à praça e exponha,

simultaneamente a obra e a si mesmo ao contato com o público. Quanto mais rico o espaço

público mais conflituoso, o que pode ser absolutamente saudável se houver a gestão

participativa dos conflitos.

O foco de registro desse trabalho contribui para a geração de espaço público cidadão.

O projeto é um ponto de identificação coletiva, e é também um espaço de intercâmbio que

fomenta o processo de produção do espaço público como uma apropriação coletiva. Nesse

sentido a praça é torna-se um centro cívico de encontro, um equipamento cultural.

Como a proposta do presente trabalho é a realização de um registro da memória do

projeto, convém realizar. O conceito de memória e a maneira como ela funciona vem sendo

tema dos estudos de filósofos e de cientistas há séculos. Este conceito vem se modificando e

se adequando às funções, às utilizações sociais e à sua importância nas diferentes sociedades

humanas.

A memória e a imaginação têm a mesma origem: lembrar e inventar têm ligações

profundas. O registro era visto como algo que contribuía para o enfraquecimento da memória,

ao transferi-la para fora do corpo do sujeito. Os gregos desenvolveram muitas técnicas para

preservar a lembrança sem lançar mão do registro escrito. Além disso, reservaram ao sujeito

que lembra um papel social fundamental de transmissor da história oral. O poeta resgata o que

é importante do esquecimento. É uma espécie de memória viva do seu grupo.

A invenção da imprensa, com tipos móveis, e a urbanização, com mudanças

fundamentais na organização e nas relações sociais, nas atividades, papéis e percepções do

indivíduo, trarão mudanças importantes para a memória individual e coletiva. De uma

sociedade baseada na transmissão oral dos saberes necessários ao trabalho e à vida em grupo,

Page 21: O Autor na Praça

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novas ocupações relacionadas ao comércio e à vida nas cidades demandam registros de

operações, de listas, de transações.

Desenvolvem-se a partir daí, artifícios cada vez mais sofisticados para guardar e

disseminar a memória em textos e imagens. Este processo culmina com o computador, capaz

de guardar grandes quantidades de informações e abarcar todos os meios inventados

anteriormente para registrar e armazenar a memória.

Na atualidade, o conceito e o funcionamento da memória ganharam importantes

aportes das ciências físicas e biológicas. Ao lado delas, as Ciências Sociais e a Psicologia

também têm a memória individual e coletiva como um dos seus campos de investigação. Os

estudos envolvem necessariamente os conceitos de retenção, esquecimento, seleção. Como

elaboração a partir de variadíssimos estímulos, a memória é sempre uma construção feita no

presente a partir de vivências/experiências ocorridas no passado.

Nas ciências sociais encontraremos estudos que relacionam a memória individual ao

meio social, fundamentais para os trabalhos, em que se articulam os relatos individuais à

memória local.

A memória aparentemente mais particular remete a um grupo. O indivíduo carrega em

si a lembrança, mas está sempre interagindo com a sociedade, seus grupos e instituições. É no

contexto destas relações que construímos as nossas lembranças. A rememoração individual se

faz na tessitura das memórias dos diferentes grupos com que nos relacionamos. Ela está

impregnada das memórias dos que nos cercam, de maneira que, ainda que não estejamos em

presença destes, o nosso lembrar e as maneiras como percebemos e vemos o que nos cerca se

constituem a partir desse emaranhado de experiências, que percebemos como uma unidade

que parece ser só nossa.

As lembranças se alimentam das diversas memórias oferecidas pelo grupo, a que o

autor denomina 'comunidade afetiva'. E dificilmente nos lembramos fora deste quadro de

referências. Tanto nos processos de produção da memória como na rememoração, o outro tem

um papel fundamental. Esta memória coletiva tem assim uma importante função de contribuir

para o sentimento de pertinência a um grupo de passado comum, que compartilha memórias.

Ela garante o sentimento de identidade do indivíduo calcado numa memória compartilhada

não só no campo histórico, do real mas sobretudo no campo simbólico.

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A memória se modifica e se rearticula conforme posição que ocupo e as relações que

estabeleço nos diferentes grupos de que participo. Também está submetida a questões

inconscientes, como o afeto, a censura, entre outros. As memórias individuais alimentam-se da

memória coletiva e histórica e incluem elementos mais amplos do que a memória construída

pelo indivíduo e seu grupo.

Um dos elementos mais importantes, que afirmam o caráter social da memória, é a

linguagem. As trocas entre os membros de um grupo se fazem por meio de linguagem.

Lembrar e narrar se constituem da linguagem. A linguagem é o instrumento socializador da

memória, pois reduz, unifica e aproxima no mesmo espaço histórico e cultural vivências tão

diversas como o sonho as lembranças e as experiências recentes.

É interessante ainda apontar que a memória é um objeto de luta pelo poder travada

entre classes, grupos e indivíduos. Decidir sobre o que deve ser lembrando e também sobre o

que deve ser esquecido integra os mecanismos de controle de um grupo sobre o outro. Outro

aspecto importante acerca da memória é a sua relação com os lugares. As memórias individual

e coletiva têm nos lugares uma referência importante para a sua construção, ainda que não seja

condição para a sua preservação, do contrário povos nômades não teriam memória. As

memórias dos grupos se referenciam, também, nos espaços em que habitam e nas relações que

constroem com estes espaços. Os lugares são importante referência na memória dos

indivíduos, de onde se segue que as mudanças empreendidas nesses lugares acarretam

mudanças importantes na vida e na memória dos grupos.

Memória individual e coletiva se alimentam e têm pontos de contato com a memória

histórica e, tal como ela, são socialmente negociadas. Guardam informações relevantes para os

sujeitos e têm, por função primordial garantir a coesão do grupo e o sentimento de pertinência

entre seus membros. Abarcam períodos menores do que aqueles tratados pela história. Têm na

oralidade o seu veículo privilegiado, porém não necessariamente exclusivo, de troca. Já a

memória histórica tem no registro escrito um meio fundamental de preservação e

comunicação. Memória individual, coletiva e histórica se interpenetram e se contaminam.

Memórias individuais e coletivas vivem num permanente embate pela co-existência e também

pelo status de se constituírem como memória histórica.4

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O Autor na Praça está aprovado na Lei de Incentivo à Cultura e ainda assim sobrevive

sem patrocínio. Em seu conteúdo o projeto busca privilegiar a cultura popular brasileira, num

movimento de abertura e não de sectarismo cultural. Adota como prioridade a reflexão e a

crítica e, como conseqüência o entretenimento e lazer. Deste modo, o perfil dos escritores e

artistas participantes e temas desenvolvidos são coerentes com essa prioridade. “Isso nos

distancia de trabalhos de conteúdo estritamente comerciais. Acreditamos que a cultura é um

dos instrumentos mais valiosos para a construção da igualdade. A iniciativa é um sucesso,

pode e deve ser multiplicada, mas ainda precisamos de parceiros para ampliar o potencial do

projeto” afirma o cartunista Paulo Stocker, parceiro do “O Autor na Praça”.

Considerando o contexto, algumas questões merecem sercolocadas em pauta,

permeando a narrativa da história (que não seguirá uma linha cronológica) com reflexões cuja

origem se dá na discussão de algumas problematizações propostas, dentre elas: Como o autor

na Praça pode sobreviver sem patrocínio por tanto tempo? Como o entrosamento das

manifestações artísticas com os demais aspectos da vida social atua na produção dos eventos

do projeto? Por que uma iniciativa que, via apropriação do espaço público, utiliza a Cultura e a

Literatura como instrumentos de promoção da igualdade permanece sem patrocínio? Qual a

importância do projeto como ponto de identificação coletiva que faz com que a praça seja um

lugar de encontro e de intercâmbio? Qual é a função do artista como participante do projeto ,

qual sua posição e quais os limites da sua autonomia criadora? Qual a importância do público

do projeto como fator de conexão entre o escritor e a obra? Quais as contribuições do projeto à

memória social? __________________________________________________________________________________________________________________

1 “Sem palavras, sem escrita e sem livros não haveria história, não poderia haver conceito de humanidade”

Hermann Hesse 2 AUGÉ, Marc. Não- lugares: introdução a uma antropologia da super-modernidade. Trad. Lúcia Mucznik,

Bertrand Editora, 1994. 3 CANDIDO, Antônio. “Literatura e Sociedade”. Grandes nomes do pensamento brasileiro, São Paulo, Edifolha,

2000.

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4 HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vertice, 1990.

LE GOFF, J. História e Memória. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.

POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, v. 5, n.10, 1992.

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