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MICHEL CUTAIT NETO O AUXÍLIO-DOENÇA NO DIREITO BRASILEIRO MESTRADO EM DIREITO PREVIDENCIÁRIO PUC/SP SÃO PAULO 2005

O AUXÍLIO-DOENÇA NO DIREITO BRASILEIRO...MICHEL CUTAIT NETO O AUXÍLIO-DOENÇA NO DIREITO BRASILEIRO Dissertação apresentada à Banca Exami-nadora da Pontifícia Universidade Católi-ca

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MICHEL CUTAIT NETO

O AUXÍLIO-DOENÇA NO DIREITO BRASILEIRO

MESTRADO EM DIREITO PREVIDENCIÁRIO

PUC/SP

SÃO PAULO

2005

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MICHEL CUTAIT NETO

O AUXÍLIO-DOENÇA NO DIREITO BRASILEIRO

Dissertação apresentada à Banca Exami-

nadora da Pontifícia Universidade Católi-

ca de São Paulo, como exigência parcial

para obtenção do título de Mestre em Di-

reito Previdenciário, sob orientação do

Professor Doutor Wagner Balera.

PUC/SP

SÃO PAULO

2005

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Banca Examinadora

___________________________________________

___________________________________________

___________________________________________

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Dedico este trabalho ao Professor Wagner Balera, meu primeiro e

magnânimo mestre, homem dileto e exemplar, pessoa humana generosa,

caridosa e honesta, profissional competente e comprometido, por quem me foi

concedida a incomensurável honra de sua orientação, de seus ensinamentos e

de suas lições na Ciência do Direito, em especial, no Direito Previdenciário, que

me permitiram realizar a mais importante descoberta da minha vida: o Magistério,

inovando e alterando profunda e positivamente todo o meu destino.

A ele, meu mestre, guardo perenes e indestrutíveis meu profundo

respeito, fiel admiração e absoluta gratidão.

Também dedico este trabalho à Professora Giselda Maria Fernandes

Novaes Hironaka, verdadeira mestra, alma iluminada, ser humano incomparável,

mulher guerreira e mãe exemplar, fonte de vida, força e alegria para seus pupilos.

A ela, minha querida professora, a quem serei eternamente grato com

minha dedicação e lealdade incondicionais, devo as mais decisivas

oportunidades da minha vida, inclusive esta.

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Agradeço à minha família, meu pai Michel, minha mãe Heliana, meus

irmãos Victor e Arthur, que são parte indissociável de mim e que, com seu

sincero amor, fizeram-me permanecer firme, reto, orgulhoso, austero e corajoso

diante de todos os desafios da vida.

Também agradeço ao Dr. Antonio Carlos Caricatti, homem lutador e

responsável, que me acolheu como filho, que me ofereceu seus melhores

conselhos, que me favoreceu nos momentos mais difíceis e que me permitiu

desbravar com dignidade minha honrosa trajetória profissional.

Por fim, agradeço a Deus, Pai Todo Poderoso, que é maior do que todos

e que tem abençoado minha alma, iluminado minha mente, aberto meu coração e

me protegido com sua infinita bondade.

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RESUMO

Fundamentada na solidariedade humana, como conjunto de ações que

visam a oferecer proteção social aos indivíduos da sociedade, mantendo incólu-

mes os valores do bem-estar e justiça sociais, sustentáculos da Ordem Social,

emerge do ordenamento jurídico brasileiro a seguridade social, consubstanciada

nos serviços de previdência social, assistência social e saúde.

Cada um desses serviços oferece determinados instrumentos de prote-

ção social que podem satisfazer as conseqüências geradas por determinadas

situações da vida, definidas como risco social, garantindo que a sociedade este-

ja segura, amparada e protegida, favorecendo que cada um dos indivíduos te-

nha garantido seu desenvolvimento humano com dignidade.

Nesta concepção, a previdência social manifesta sua proteção por meio

de benefícios e serviços, prestações concretas oferecidas aos indivíduos, as

quais se justificam como específicos instrumentos de proteção social que aten-

dem a cada uma das causas de risco social que a sociedade enfrenta no mundo

da vida.

As conseqüências do risco social de determinadas situações da vida geram

necessidade aos indivíduos da sociedade, que, dinamicamente, repercutem efeitos

sistêmicos não somente na esfera individual, mas também na esfera coletiva, são

reconhecidos em muitas situações, como por exemplo, no risco social da idade

avançada, da morte, da incapacidade, e tantas outras que afetarem a sociedade.

Particularmente, dada a fundamental repercussão social que a incapaci-

dade para o exercício do trabalho repercute na sociedade, este trabalho revela-

rá as razões pelas quais esta situação se perfaz merecedora da proteção ofertada

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pela Previdência Social, instrumentalizada por meio de um benefício previ-

denciário específico, denominado auxílio-doença, disciplinado e normatizado pela

Lei n. 8.213/91 e ancorado como resposta direta das disposições constitucio-

nais brasileiras.

No estudo do benefício previdenciário auxílio-doença este trabalho bus-

cará revelar os elementos essenciais para a conformação deste instrumento de

proteção social, suas características, suas amplitudes fáticas, suas causas, suas

conseqüências, suas finalidades, suas críticas e todas as delimitações de sua

natureza jurídica de benefício previdenciário.

Sendo assim, ao final, alocado no bojo da seguridade social e ofertado

pela previdência social, o benefício auxílio-doença surge como um instrumento

específico que visa a garantir proteção social do risco social da incapacidade

para o exercício do trabalho, permitindo que os entes protegidos, os indivíduos,

possam desenvolver sua condição humana com dignidade, condição mínima

para concretizar os ideais de bem-estar e justiça sociais buscados pela ordem

social e pela sociedade.

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ABSTRACT

Based on human solidarity, as a set of actions that aims offering social

protection to the individuals of the society, keeping whole the values of Well-

Being and Social Justice, props of the Social Order, Social Security emerges

from the Brazilian judicial law, consolidated in the Social Welfare, Social Assistance

and Health.

Each one of these services offer certain social protection instruments that

could satisfy the consequences generated by certain situations in life, defined as

social hazard, ensuring that the society is safe, supported and protected, favoring

for each one of the individuals to have ensured his human development with dignity.

In this concept, Social Welfare manifests its social protection by means

of benefits and services, concrete services offered to the individuals, which are

justified as specific instruments of social protection that meet each one of the

causes of social hazard that the society faces in the world of life.

The consequences of the social hazard of certain situations in life generate

needs for the individuals of the society, which dynamically reflect systemic effects

not only in the individual sphere, but also in the collective sphere, are

acknowledged in many situations, such as for example, in the social hazard of

advanced age, death, disability, and so many others that may affect the society.

Particularly, given the fundamental social repercussion that disability for

working reflects in the society, this work will reveal the reasons why this situation

is deserving of the social protection offered by the Social Welfare, instrumented

by means of a specific welfare benefit, called Sick Assistance, instructed and

ruled by Law No. 8.213/91, and anchored as a direct answer from the Brazilian

constitutional provisions.

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In the study of the welfare benefit of the Sick Assistance, this work will seek

to reveal the essential elements in conforming this instrument of social protection,

its characteristics, its phatic amplitudes, its causes, its consequences, its purposes,

its criticism and all delimitations of its juridical nature of welfare benefit.

Thus, in the end, allocated in the core of the Social Security and offered

by the Social Welfare, the Sick Assistance benefit appears as a specific instrument

that aims ensuring social protection for the social hazard of disability for work,

allowing for the protected ones, the individuals, to be able to develop their human

condition with dignity, as minimum condition to make concrete the ideals of Well-

Being and Social Justice sought by the Social Order and by society.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

1. SOLIDARIEDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16

2. SEGURIDADE SOCIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22

2.1 Evolução histórica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24

2.2 Conformação conceitual. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30

2.3 Princípios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34

2.4 Entes envolvidos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48

2.5 Finalidades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50

2.6 Bem protegido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52

2.6.1 Risco social . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54

2.6.2 Cobertura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56

3. SERVIÇOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58

3.1 Previdência social . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58

3.2 Assistência social . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63

3.3 Saúde . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64

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4. BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66

4.1 Conformação conceitual. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66

4.2 Relação jurídica dos benefícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67

4.3 Materialidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

4.4 Sujeitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71

4.4.1 Beneficiários . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73

4.4.2 Segurados obrigatórios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74

4.4.3 Segurados facultativos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77

4.4.4 Dependentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78

4.5 Objeto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80

4.5.1 Prestação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81

4.5.2 Obrigação de pagar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83

4.5.3 Elementos característicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84

4.5.3.1 Tempo do pagamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84

4.5.3.2 Lugar do pagamento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85

4.5.3.3 Valor do pagamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87

4.6 Carência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92

5. RISCO SOCIAL DA INCAPACIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97

5.1 Abrangência da incapacidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100

5.2 Nexo causal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102

5.2.1 Causas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103

5.2.1.1 Comuns . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105

5.2.1.2 Acidentárias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

5.2.2 Conseqüências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112

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6. AUXÍLIO-DOENÇA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115

6.1 Considerações iniciais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115

6.2 Auxílio-doença comum . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117

6.3 Materialidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117

6.4 Sujeitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120

6.5 Objeto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 122

6.5.1 Pagamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 122

6.5.2 Tempo de pagamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

6.5.3 Lugar do pagamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130

6.5.4 Valor do pagamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131

6.6 Carência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137

7. AUXÍLIO-DOENÇA ACIDENTÁRIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141

7.1 Materialidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 142

7.2 Sujeitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 144

7.3 Objeto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 148

7.4 Outros aspectos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150

CONCLUSÕES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 154

BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159

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INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objeto o estudo do benefício previdenciário

auxílio-doença como instrumento de proteção social na atuação da Seguridade

Social, segundo os ditames constitucionais e legais do ordenamento jurídico

brasileiro.

Sendo o benefício previdenciário auxílio-doença destinado a proteger a

situação de necessidade decorrente da incapacidade para o exercício do trabalho,

seu estudo se justifica pela potencial e impactante conseqüência que a incapa-

cidade para o exercício do trabalho tem repercutido na sociedade brasileira.

A possibilidade de ocorrência de acidentes e acometimento de doenças,

ou com nexo causal diretamente relacionado ao trabalho ou não, gera uma

situação periclitante à manutenção do nível de proteção social e principalmente

acarreta a prejudicialidade dos objetivos e valores que o bem-estar e a justiça

social, assentados sob o primado do trabalho, oferecem para a ordem social.

Sendo assim, compreender de forma sistemática as delimitações, os

alcances, as características, as finalidades, as conseqüências e os aspectos

críticos do benefício auxílio-doença pode ser esclarecedor e profícuo, espe-

cialmente, se esses aspectos forem analisados sob o prisma do regramento

constitucional e da disciplina normativa.

Esta metodologia tem o fim de compreender a relevância do auxílio-

doença como instrumento de proteção social destinado a alcançar os fins pró-

prios do sistema de seguridade social em sua manifestação exercida pela pre-

vidência social.

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Para tanto, este trabalho discutirá a questão da solidariedade e dos

valores essenciais para a manutenção da ordem social, justificando o desenvol-

vimento de um sistema de seguridade social.

Depois revelará a concepção do sistema de seguridade social que se

desenvolveu historicamente no ordenamento jurídico brasileiro, bem como os prin-

cípios norteadores, os entes envolvidos, as finalidades buscadas e o bem pro-

tegido pelo sistema de seguridade social em sua atuação protetiva para a

manutenção da ordem social.

Especificará quais são as formas de atuação da seguridade social, pelos

serviços da previdência social, da assistência social e da saúde como vértices

imprescindíveis do sistema concebido pela Constituição Federal de 1988.

Mais especificamente considerada, a previdência social se revela pela

prestação de determinados instrumentos de proteção social, que podem ser mani-

festados pela prestação de serviços e benefícios, sendo estes últimos o objeto

relevante e principal no atendimento das situações de necessidade que os mem-

bros da sociedade enfrentam durante o desenvolvimento de suas vidas, das

relações sociais que vivenciam e da preservação das condições propícias para

o exercício do trabalho, que só poderão ser protegidas pelo eficaz beneplácito

dos benefícios previdenciários.

Serão estudados os elementos componentes das relações jurídicas dos

benefícios previdenciários, tanto em seu aspecto pessoal, pelos sujeitos envol-

vidos, e em seu aspecto material, pela justificativa concreta das situações de

necessidade que são protegidas, quanto em relação ao objeto, a prestação em

si, nos seus elementos característicos e outros dados relevantes para a perfeita

conformação desta relação jurídica.

Ainda, na esteira deste processo dedutivo e analítico, serão identificadas

as situações de necessidade específicas que decorrem do risco social da inca-

pacidade, por considerações históricas, e a compreensão substancial do nexo

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causal que impõe a especial relação de causalidade entre causas e conseqüên-

cias, e que nas causas encontram uma dicotomia decorrente da afetação que

elas mantêm com o exercício do trabalho, estabelecendo um tratamento jurídico

diferenciado em cada uma dessas causas, tendo, ainda, a conseqüência como

um fenômeno comum a ambas as causas, ou seja, a conseqüência de compro-

meter a capacidade para o exercício do trabalho, que é, em suma, a situação

de necessidade a ser protegida por instrumentais adequados prestados pela

previdência social.

E por fim, como questão central deste trabalho, será apresentado o

benefício previdenciário auxílio-doença, conforme a divisão causal que se esta-

belecerá pela discussão do nexo causal antes mencionado, manifestado pelo

auxílio-doença comum e pelo auxílio-doença acidentário, compostos por todos

os aspectos estruturais que são próprios das relações jurídicas previdenciárias,

como seus sujeitos, sua materialidade e seu objeto na conformação jurídica

prevista, sistematizada e disciplinada pela Lei n. 8.213/91 e pela Constituição

Federal de 1988.

Ao final, este trabalho tentará de maneira comprometida, dedutiva e

analítica apresentar e concluir que o benefício previdenciário auxílio-doença é

um eficaz instrumento de proteção social prestado pela previdência social na

atuação da seguridade social em busca da manutenção da ordem social, e da

garantia de paz, dignidade e do desenvolvimento humano para toda a sociedade

de um Estado democrático de direito.

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CAPÍTULO 1

SOLIDARIEDADE

Antes do estudo da Seguridade Social como o instrumento do Estado

democrático de direito que permite a manutenção da ordem social em condi-

ções favoráveis ao desenvolvimento humano, outra questão relevante que se

enfrenta, desde logo, é a expressão da solidariedade.

Esta questão não tem o condão de especificar com plenitude o que se

passa na Seguridade Social, nem tampouco pretende estabelecer todos os

limites da idéia da solidariedade. É, pois, um marco, um objetivo que estimula

a sociedade a caminhar segundo os ditames da justiça, do bem-estar e da

igualdade social.

A solidariedade se manifesta de várias formas numa sociedade demo-

crática, e isso foi conquista e fruto da história e da evolução social que diver-

sas nações enfrentaram para que esse fundamento pudesse ser transpassado

a sociedades distintas, cada qual por sua trajetória democrática.

A idéia da justiça, que há muito se discute pela filosofia, pela sociologia

e por todas as ciências dos valores humanos, está adstritamente ligada ao

conceito de solidariedade, não porque a justiça encontre seus fundamentos na

solidariedade, mas porque a solidariedade, sim, depende da idéia da justiça.

Esta relação se torna presente quando se compreende a justiça como

a justiça social, a justiça que vincula pessoas e estabelece entre elas uma

série de valores que alcançam as próprias prerrogativas, que estabelece limites

para a fruição dos bens, objetos nas relações sociais, e cria a relação interpessoal

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não somente baseada no individualismo como exercício maior da própria

existência humana, mas sim como uma relação social, em que várias pessoas po-

dem relacionar-se de acordo com ditames de liberdade e independência.

Subsiste, portanto, a idéia de que a sociedade tem em comum determi-

nados anseios que justificam que as pessoas, individualmente, lancem mão

dos seus direitos e das suas prerrogativas em prol de valores que lhes são

uníssonos, como a preservação da vida digna, o respeito ao próximo, a compai-

xão pelas mazelas sociais, a valorização do ser humano como parte de um todo,

sem o qual o todo (a sociedade) não é capaz de seguir seu rumo no caminho

da evolução e da manutenção da espécie humana.

Mas, concomitantemente com as engenhosas relações interpessoais exer-

cidas pelos “atores sociais” que compõem a sociedade, está a figura do poder

público como instrumento que torna possível a concretização do ideal da justiça.

Por esta razão que assevera de maneira inquestionável o mestre Wagner

Balera:1

De outra parte, o Poder Público deverá criar mecanismos de con-

trole da atividade econômica que permitam afinamento constante

das estratégias sociais com vistas a ajustá-las aos objetivos ex-

pressos na Carta Magna.

E, ainda, sobre a justiça social:

[...] Esse ideal, implica na elaboração de mecanismos de prote-

ção social que, não sendo embora sucedâneos da justiça que

deva ser atingida e do progresso e do desenvolvimento que de-

vam ser alcançados, permitem equacionamento eficiente – de

conformidade com os axiomas constitucionais já referidos – das

contingências que o desenvolvimento provoca.

1 BALERA, Wagner. Introdução à seguridade social, p. 19.

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Nesses aspectos é que a justiça está intimamente ligada à solidariedade

que permeia o conceito da seguridade, porque é pela justiça que a solidariedade

estabelece entre as pessoas uma relação de ajuda mútua, em que o valor de

cada um pode ser acrescido do valor do outro, se o objetivo de ambos é alcançar

um estado social mais propício para a manutenção de todos.

A justiça oferece à solidariedade a legítima condição para que as pes-

soas estejam todas ligadas ao mesmo ideal, e para o qual a divisão de suas

prerrogativas, bem como o compartilhamento de seus anseios, seja capaz de ga-

rantir condições favoráveis para que cada pessoa, em sua individualidade,

possa perfazer sua natureza humana.

Mas a solidariedade não depende tão-somente da Justiça, ela também

envolve a questão do bem-estar social.

O bem-estar social, assim considerado como o estado presente de uma

sociedade democrática, vale-se dos propósitos maiores do ser humano para

que todos estejam conformados segundo aquilo que a história da evolução

humana sempre travou as maiores batalhas, a garantia de uma vida digna, a

especial garantia da dignidade.

Tanto que a Carta da Declaração Universal dos Direitos do Homem, fruto

dessa conquista social dos povos, já deixava muito sensível a idéia da dignidade

humana.

A dignidade como corolário direto do bem-estar social é o valor crucial

para que as pessoas, inseridas numa sociedade, possam exercer sua existência

humana com tranqüilidade, livres da violência, livres da miséria, da pobreza,

da marginalização e de qualquer forma de discriminação entre uns e outros.

A dignidade é mais que um objetivo, ela é o próprio estado da vida, é a

condição presente e imediata para que o ser humano perfaça sua vida com liber-

dade, independência e mais-valia.

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A solidariedade oferece a dignidade ao bem-estar social um instrumento

poderoso para que todos possam usufruir as mesmas condições de vida, porque

cria entre todos uma espécie de código, um vínculo moral que condiciona a vida

de cada um ao respeito à vida do outro, e, mais que isso, um liame entre as pessoas

que possibilita um efeito multiplicador quando todos têm os mesmos objetivos.

Solidarizar é, antes de tudo, compartilhar, e compartilhar pode ser, como a

própria história dos homens já mostrou, um comportamento muito eficiente quan-

do se pretende manter a paz entre os povos e, nos povos, entre seus membros.

Isso é um dado muito importante na evolução da sociedade: a solidarie-

dade. Exercitando a imaginação, pode-se conceber uma sociedade de pessoas

egoístas e individualistas, em que cada pessoa se vale da própria e exclusiva

existência para sobreviver, pouco importando o outro ou a sobrevivência alheia.

Nestas condições, a probabilidade da evolução humana é muito remota porque

reinaria a barbárie, a violência, a sobrevivência indiscriminada do mais forte, e

porque, em diversas situações de perigo que o ser humano enfrenta em sua

existência, manter-se egoísta, individualista e afeto às necessidade pessoais é

muito arriscado se o objetivo é sobreviver, e sobreviver com dignidade.

Da mesma forma, uma sociedade de doadores e altruístas sofre do

revés, ou seja, corre riscos iminentes de que sua sobrevivência esteja prejudi-

cada pela cessão indiscriminada de suas riquezas, pelo oferecimento gratuito

dos bens da vida, e pela minimização da condição humana à exploração sub-

serviente, como já ocorreu na história grotesca da escravidão de alguns povos.

Esta sociedade também não satisfaz ao objetivo humano, da manuten-

ção da vida, porque sacrifica todos os seus membros ou a maior parte deles.

Agora, em contrapartida ao que foi explicitado nestas hipóteses, tam-

bém vale a imaginação para conceber uma sociedade solidária, cujo valor do

bem-estar social está implícito no comportamento de todos, fazendo com que

cada um, individualmente, ofereça ao outro a condição para que este também

possa exercer a própria existência, porque nessa sociedade solidária o outro não

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é o limite, o outro é a ponte, a porta, a oportunidade de multiplicação da riqueza,

da divisão das dificuldades, da pulverização dos riscos contra a vida digna, do

compartilhamento das forças que fazem a sociedade viver melhor, e viver mais.

A solidariedade é uma ferramenta poderosa para a consecução do bem-

estar social.

E, por fim, valendo-nos dos pressupostos iniciais, temos também a

questão da igualdade social como um valor insofismável, que faz do ser humano

o único ser vivo capaz de relacionar-se segundo regras que privilegiem o

respeito ao próximo e busquem harmonia na diversidade humana e, que

compreende que a desigualdade no tratamento de uns e outros é um preço

muito custoso para todos.

Mais do que a própria consideração de que, como seres humanos, todos

são iguais em direitos e deveres, a igualdade social oferece um potente meca-

nismo de sobrevivência para que uma pessoa possa exercer sua dignidade e

sua vida em condições favoráveis para seu desenvolvimento pessoal.

Não é por outra razão que ecoa entre as sociedades civilizadas a idéia

de que todos são iguais em origem, raça, sexo, cor, idade e qualquer outra

forma de distinção.

Conceber seres humanos distintos como iguais é uma conquista fabu-

losa porque permite que cada um, em suas desigualdades, exerça sua indivi-

dualidade em consonância com a individualidade do outro.

Esta consideração sobre a igualdade foi bem esclarecida por Moacyr

Velloso Cardoso de Oliveira:2

2 OLIVEIRA, Moacyr Velloso Cardoso de. Política social e seguridade social. Debates Sociais,

Rio de Janeiro, n. 32, 1981, p. 39.

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A igualdade jurídica é, não obstante, um imperativo da verdadeira

democracia e, como corolário, a igualdade de oportunidades, ou

seja, a todos e a cada um devem ser proporcionados meios, os

instrumentos para a obtenção da realização plena na sociedade,

sem discriminação alguma. A utilização desses meios cada um a

fará conforme as próprias possibilidades e aptidões pessoais. O

essencial, porém, é que a oportunidade de utilizá-los lhe seja efe-

tivamente proporcionada. Isto é fundamental para o êxito de uma

política social.

A solidariedade também faculta à igualdade social um mecanismo muito

eficiente para garantir que as oportunidades sejam compartilhadas entre todos,

segundo suas desigualdades, e respeitadas as condições próprias de cada

um que são a essência da condição humana, porque pela solidariedade as

desigualdades se dissipam entre a divisão das tarefas, entre o compartilhamento

dos esforços e entre a multiplicação dos resultados decorrentes disso tudo.

A partir desse entendimento, avulta diante deste trabalho a imperiosa

necessidade de conceituação da seguridade social, cujas características princi-

pais estão intimamente ligadas à idéia de solidariedade, haja vista que a própria

Constituição Federal de 1988, quando trata da ordem social, já a privilegia em

seu artigo 193, no qual esta tem como objetivo o bem-estar e a justiça sociais,

e que tais valores, disseminados pela solidariedade, serão alcançados (ou pelo

menos buscados) pela seguridade social.

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CAPÍTULO 2

SEGURIDADE SOCIAL

A seguridade social, no bojo da solidariedade antes discutida, nasce des-

sa idéia e se conforma no conjunto de iniciativas entre os membros da sociedade

visando ao atendimento da previdência social, da assistência social e da saúde.

Este é o conceito básico que se depreende do artigo 194 da Constituição

Federal de 1988, dispositivo constitucional que está inserido no Título VIII, Da

Ordem Social, no Capítulo II, Da Seguridade Social, em suas Disposições Gerais.

Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado

de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, des-

tinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e

à assistência social.

Nesse conceito legal se verificam muitos elementos importantes para a

conceituação e o perfeito entendimento da seguridade social.

Ora, sendo um conjunto de integrado de iniciativas dos poderes públicos

e da sociedade, há considerado explicitamente que a seguridade social se mani-

festará por meio de ações, por meio de atos concretos a ser realizados pelos

poderes públicos e também pela sociedade.

Se assim será, então resta claro que há uma divisão de tarefas entre os

atores sociais, ou seja, entre os membros que compõe a sociedade, que, em

outras palavras, correspondem ao Estado (como organismo ficto que invoca o

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poder de todos por meio de representantes da sociedade), aos trabalhadores,

às empresas e também àqueles cidadãos que usufruam algum ou qualquer

um dos serviços da seguridade social.

Aí está a primeira tangente da solidariedade que permeia a seguridade

social, porque a seguridade social será exercida por todos, pela manifestação

concreta dos membros da sociedade segundo as próprias condições e segundo

os “papéis sociais” que cada um exerce na vida em comum.

Outro elemento importante do conceito legal é a idéia de que tais iniciativas,

tais ações serão muito mais do que atos isolados, compreenderão uma série de

atos concatenados, harmônicos, estruturados, sistematizados, organizados e bem

configurados, seja pela adoção de procedimentos formais, seja pela aglutinação

de vários desses procedimentos para a consecução de um determinado fim ou,

ainda, pela disciplina harmoniosa que esses atos devem seguir, e também pela

proficiente configuração dessas ações conforme uma estrutura administrativa, siste-

matizada pela lei e organizada com o intuito de servir de instrumento para aquilo

que é o objetivo principal da seguridade social, notadamente, o bem-estar e a

justiça sociais a que se referia o artigo 193 da Constituição Federal de 1988.

Ainda do conceito legal, encontra-se como objetivo primeiro, pelo qual será

possível alcançar o objetivo principal antes mencionado, assegurar a todos o aten-

dimento dos serviços relativos à saúde, à previdência social e à assistência social,

temas que serão tratados individualmente, mas que, neste momento, servem para

marcar o horizonte da seguridade social, e, mais que isso, servem para confirmar

o aspecto instrumental da seguridade social como um mecanismo de garantias

sociais, voltados para manter a sociedade protegida por níveis especiais de justiça,

bem-estar e igualdade sociais.

Não é por outra razão que já elucidava este caminho Jean-Jacques

Dupeyroux:3

3 DUPEYROUX, Jean-Jacques, O direito à seguridade social, p. 27.

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Deste modo, à medida que a seguridade social se torna um serviço

público, no qual se expressa uma solidariedade não profissional e

sim nacional, e à medida que o Estado se incumbe da organização

dessa solidariedade e aparece como devedor das prestações

concedidas aos atingidos pelos riscos, a idéia da seguridade so-

cial como garantia das rendas declina em favor do conceito de

uma seguridade social como garantia de um mínimo vital.

2.1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA

A evolução histórica da seguridade social é importante porque o passado

pode revelar com muita percuciência quais eram os valores e as intenções da-

queles que lutaram para conquistar uma sociedade mais justa, igualitária e hu-

mana, e porque, pelo desenvolvimento histórico, a compreensão do presente (e,

por que não, o vislumbre do futuro) pode ser muito melhor desenvolvida, pois,

bem ajustado na conformação de alguns valores e especialmente na configu-

ração do conceito de seguridade social que se desenvolveu na história, o caminho

necessário para trilhar no sentido do bem-estar e da justiça sociais já não será

um caminho obscuro e inóspito.

Para tanto e para garantir a proficiência deste trabalho, a evolução

histórica partirá da realidade nacional, ou seja, do desenvolvimento do nosso

Direito pátrio, pois, na história dos povos, a evolução da seguridade social é

um tópico que valeria muito mais que um trabalho de dissertação sobre um

tema específico dentro deste manancial de assuntos e objetos de estudo, va-

leria muito mais, positivamente, um trabalho único, desenrolando todos os pro-

gressos conceituais, doutrinários, factuais e filosóficos que a seguridade social

tem por imprescindíveis.

Assim, dentro desse espírito de especificidade, e considerando que o

tema abordado neste trabalho é um braço muito específico de toda a seguri-

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dade social, a evolução histórica a ser tratada será a do ordenamento jurídico

pátrio.

A evolução legislativa da seguridade social, no Brasil, é bem notada

pela evolução das Constituições brasileiras.

Na Constituição de 1824 pouco havia sobre a seguridade social na forma

como se afigura atualmente; havia, sim, a previsão muito discreta no artigo 179,

inciso XXXI, de que se estabeleceria uma política de socorros públicos volta-

dos para o atendimento das pessoas carentes pelos chamados montepios,

casas de socorros públicos e conventos.

Houve por esse tempo o estabelecimento de outras normas que prote-

giam determinados grupos da sociedade, mas eram ações muito pontuais,

como o Decreto n. 3.397, de 24 de novembro de 1888, que estabeleceu a Caixa

de Socorro para os trabalhadores das estradas de ferro. Houve também o aten-

dimento aos trabalhadores dos Correios, das Oficinas da Imprensa Régia, mas

tudo baseado na ajuda mútua de seus participantes, no mutualismo muito pre-

coce sobre as idéias da solidariedade e do conceito da seguridade social.

Já a Constituição de 1891, por seu artigo 75, cria o primeiro “benefício”

(aqui entendido somente como uma vantagem econômica) em favor do funcio-

nário público, assegurando uma aposentadoria em caso de invalidez no servi-

ço à Nação.

Importante ato normativo que surgiu em 1923, e segundo a doutrina,

tornou-se o marco do Direito Previdenciário, foi a Lei Eloy Chaves, Decreto n. 4.682,

de 24 de janeiro de 1923, que criou o primeiro sistema de previdência social

para atender, especificamente, aos trabalhadores ferroviários, com as denomi-

nadas Caixas de Aposentadoria e Pensões dos ferroviários, garantindo a eles

a proteção em caso de invalidez e morte, além de proteção a título de assis-

tência médica.

A Lei Eloy Chaves abriu caminho para a proteção a outros trabalhadores,

que se seguiu em atos normativos posteriores, como o dos portuários, os dos

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trabalhadores dos serviços telegráficos, do serviço de energia elétrica e transpor-

te e do serviço público.

O Brasil, coadunado com os movimentos políticos e sociais que pulsa-

vam em outros países pelo mundo contemporaneamente à conquista de diver-

sos direitos sociais voltados ao trabalhador pela criação da Organização Interna-

cional do Trabalho (OIT) em 1919, também passou por um processo de extensão

dos direitos incipientes que nasceram da Lei Eloy Chaves, cuja modificação

mais relevante foi a reformulação das Caixas de Aposentadoria e Pensões

pelo Decreto n. 20.465, de 1o de outubro de 1931, em que se modificou a

organização daquele sistema inicial, de responsabilidade de cada empresa e ser-

viço envolvido, para fazer com que os benefícios da época fossem divididos

por categorias profissionais.

Cada uma das categorias teve, então, organizado o próprio fundo, por

meio dos Institutos de Pensões, cuja manutenção era realizada por meio de contri-

buições dos três principais membros da sociedade, os empregadores, o empre-

gado e o Estado.

A criação desses Institutos e suas configurações davam o pontapé inicial

para o novo sistema previdenciário brasileiro, mas ainda estava descentralizado,

com a organização e gerenciamento desses fundos pelos próprios agentes, ain-

da muito afetos ao sistema de mutualismo que fora concebido outrora.

Com o advento da Constituição de 1934, os Institutos receberam o res-

paldo constitucional, e os benefícios obtidos até então foram legitimados pela

Carta Magna, por suas disposições constantes nos artigos 121 e 170, que

traziam o direito à assistência médica, a direitos sociais e o direito a benefícios

como a aposentadoria dos funcionários públicos.

Nesse diploma constitucional, a idéia do financiamento do sistema dos

Institutos de Pensões ficou explícito pela repartição do ônus entre os membros

da sociedade, o que intensificava ainda mais o caráter econômico do sistema,

que, nesse momento, foi denominado previdência.

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A Constituição de 1937, por sua vez, outorgada após três anos da anterior,

não representou um grande marco histórico na evolução dos direitos previdenciários

ou modernamente chamados direitos da seguridade social, tanto que timida-

mente dispunha sobre determinados “seguros” a certos trabalhadores protegi-

dos em casos de velhice, invalidez, vida e para acidentes do trabalho, confor-

me se depreendia do artigo 137 daquele diploma constitucional.

Quase dez anos depois, nasceu para o ordenamento jurídico brasileiro

o Diploma Constitucional de 1946.

Essa Constituição formalizou a idéia da previdência social, quando assim

a denominou inserida no Título V, Da Ordem Econômica e Social, nas garantias

previstas no artigo 157, que tratava especificamente da legislação trabalhista

e da previdência social.

Dentre os 17 incisos do artigo 157, emergia o inciso XVI.

Art. 157. A legislação trabalhista e a da previdência social obede-

cerão nos seguintes preceitos, além de outros que visem a

melhoria da condição dos trabalhadores:

[...]

XVI – previdência, mediante contribuição da União, do emprega-

dor e do empregado, em favor da maternidade, e contra as con-

seqüências da doença, da velhice, da invalidez e da morte,

além do inciso XVII, que obrigava a instituição do seguro pelo empregador con-

tra os acidentes do trabalho.

Importante notar que a Constituição de 1946 nascia no bojo de uma

sociedade marcada pela revolução dos paradigmas sociais e trabalhistas que

garantiram aos trabalhadores uma série de direitos e prerrogativas sociais que

ainda não tinha sido legitimada pelo poder e pelo Estado, e que pela Constituição

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de 1946 passou a ser considerada como direitos essenciais da dignidade do

trabalhador e, conseqüentemente, do bem-estar e da justiça social.

Vale, ainda, relembrar que essa conformação sobre os direitos trabalhis-

tas e muitos dos direitos previdenciários atuais subsiste desde aquele momento

histórico, haja vista que a própria Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), o

Decreto-lei n. 5.452, de 1o de maio de 1943, é vigente até hoje.

Importante conquista legislativa para a evolução da previdência social

fora a instituição da Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS), Lei n. 3.807,

de 26 de agosto de 1960, que sistematizava a previdência social, criava e expan-

dia benefícios, estendia o direito à assistência social a outras categorias de traba-

lhadores, e compunha a disciplina quase completa de todos os direitos e garan-

tias sobre a previdência social.

A LOPS vigeu até 1991, quando surgiram as atuais leis previdenciárias,

e, assim sendo, temos como a lei antepassada mais próxima do que se afigura

hoje como previdência social e mais adiante seguridade social.

Importante adendo à Constituição de 1946 foi a implementação da

Emenda n. 11, de 1965, que criou formalmente a idéia da “regra de contrapar-

tida”, cujo entendimento será tratado mais adiante, mas que, adredemente,

tem seus vértices na idéia de que “nenhuma prestação de serviço de caráter

assistencial ou de benefício compreendido na previdência social poderá ser

criada, majorada ou estendida sem a correspondente fonte de custeio total”, exa-

tamente nos termos do acréscimo ao artigo 157 daquele diploma constitucional.

A Constituição de 1967, alterada posteriormente pela Emenda n. 1, de

1969, sofreu pouquíssimas modificações quanto aos direitos previdenciários,

sendo mais relevantes, naquela época, os atos normativos expedidos pelo Poder

Executivo, como decretos-lei, leis ordinárias e leis complementares que amplia-

vam a proteção constitucional à outras categorias de trabalhadores e acrescen-

tavam novas sistematizações a respeito da matéria previdenciária.

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Em 1988, fruto de um dos maiores momentos históricos da sociedade bra-

sileira, foi promulgada a vigente Constituição da República Federativa do Brasil.

Especificamente quanto à evolução da previdência social, houve, enfim,

a sistematização efetiva de um programa sociopolítico-econômico que estabe-

leceu as diretrizes fundamentais para a formação, criação, organização e dis-

ciplina de um sistema próprio, um sistema autônomo e universal, o denominado

Sistema da Seguridade Social, entabulado no Título VIII, Da Ordem Social,

Capítulo II, Da Seguridade Social, pelos artigos 194 e seguintes até o artigo

204, tratando da seguridade social bem como da previdência social, da saúde

e da assistência social.

Com a Constituição de 1988 o ordenamento jurídico brasileiro formaliza

e institui o Sistema de Seguridade Social, como resultado da evolução histó-

rica que formou o arcabouço jurídico necessário para que a sociedade brasileira

tivesse garantidos seus direitos e prerrogativas em prol da justiça, do bem-estar

e da igualdade social.

A partir de 1988, muitas outras leis e atos normativos legais surgiram disci-

plinando a questão da seguridade e, nesta oportunidade, seria muito dispen-

dioso e prolixo estender o conhecimento de uma a uma das regras que disci-

plinam o Sistema da Seguridade, sendo, porém, oportuno fazer menção às

Leis ns. 8.212 e 8.213, ambas de 24 de julho de 1991, consecutivamente, respon-

sáveis pela instituição do Plano de Custeio e do Plano de Benefícios a que se

referia o artigo 59 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, con-

forme dispositivo a seguir:

ADCT

Art. 59. Os projetos de lei relativos à organização da seguridade

social e aos planos de custeio e de benefício serão apresentados

no prazo máximo de seis meses da promulgação da Constituição

ao Congresso Nacional, que terá seis meses para apreciá-los.

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Há críticas sobre a questão do prazo em que as Leis ns. 8.212 e 8.213

foram instituídas, porém, de alguma forma, atualmente, depois de uma série

de reformas, alterações normativas e inclusive acréscimos por meio de emendas

constitucionais (a saber, principalmente a Emenda Constitucional n. 20, de 1998),

tanto a Constituição Federal de 1988 como as duas leis aqui referidas são as

principais fontes de direito que guarnecem o Sistema da Seguridade Social.

2.2 CONFORMAÇÃO CONCEITUAL

O Sistema da Seguridade Social estabelecido pela Constituição Federal

de 1988 representou um avanço sobre os programas de proteção social ofere-

cidos à sociedade, e sua conformação correspondeu ao novo conceito que se

pretende para a idéia da seguridade social desenvolvido em várias nações

estrangeiras, que sempre foram, nesse aspecto, a vanguarda do desenvolvi-

mento sistemático dessas garantias, principalmente pela realidade histórica que

se afigurou nesses países, que muitas vezes não correspondia à evolução que

se operou no Brasil.

Essa nova concepção, por assim dizer, da seguridade social pode ser

muito bem delineada pela esclarecedora conclusão de G. Mazzoni in artigo

traduzido da revista I Problemi della Sicurezza Sociale:4

[...]

a) a seguridade social é um princípio ético-social não redutível a

um sistema de exclusão de outros: existem, com efeito, outros

sistemas de seguridade social, mas o escopo mínimo da segu-

ridade social é a libertação do homem da indigência e da miséria.

Tal objetivo concretiza o princípio inscrito no artigo 22 da Decla-

ração dos Direitos do Homem, isto é, do direito de cada indivíduo,

4 MAZONI, G. Existe um conceito jurídico de seguridade social? Texto traduzido da revista

Problemi della Sicurezza Sociale, n. 2, mar./abr. 1967.

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na qualidade de membro da sociedade, à proteção da seguridade

social;

b) a prevenção dos riscos sociais, a generalização da cobertura

das necessidades essenciais a toda a população, o automatismo

das prestações, a unidade de orientação ou da gestão adminis-

trativa, a participação financeira do Estado não são características

absolutas da seguridade social, mas podem caracterizar um dado

sistema, por exemplo, de base seguradora obrigatória ou de ser-

viço público, mas deve tratar-se sempre de um serviço público

divisível, isto é, exeqüível através de uma pluralidade de presta-

ções individuais;

c) a seguridade social nada mais é que um dos aspectos do “Es-

tado Social” no qual se insere como elemento essencial, mediante

o pressuposto de uma solidariedade social que permita uma rela-

tiva distribuição da renda;

d) a seguridade social não exclui que, em uma “sociedade de

bem-estar”, possam ser utilizados, de forma autônoma, quer os

instrumentos da previdência (obrigatória, mutualística ou volun-

tária, integrativa ou supletiva, de categorias profissionais ou parti-

culares), quer os de assistência (pública e privada, inclusive o

“serviço social”) ou, ainda, os de cobertura de determinados riscos,

mediante contrato, pelo contraente mais abonado;

e) se a seguridade social não encontra na Constituição italiana

uma norma que a ela se refira expressamente, tal fato não impede

que toda a nossa Constituição seja inspirada, em suas normas

fundamentais, na garantia dos cidadãos e, em suas normas

programáticas de tutela social, nos princípios da seguridade social;

f) e, finalmente, é de considerar a repercussão que a introdução

de um sistema de seguridade social pode causar sobre as rela-

ções de trabalho. Pode-se prever, alem do mais, que o empre-

sariado seria aliviado dos “ônus sociais” de competência da comu-

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nidade, pelo princípio da solidariedade geral, tais como a doen-

ça, a invalidez (não a devida a acidentes ou a doenças profissio-

nais) e a velhice; ficariam, contudo, a seu cargo os riscos profis-

sionais propriamente ditos e os riscos derivados da posição de

subordinação do trabalhador (riscos de perda de emprego),

exceto, conforme dissemos acima, as formas voluntárias ou com-

plementares da previdência, decorrentes dos contratos coletivos

ou de medidas de âmbito empresarial.

Embora extensa a citação, é mister que se faça neste ponto uma corre-

lação entre esses conceitos ao Sistema de Seguridade Social estabelecido

pela Constituição de 1988, para que, dentro de uma interpretação teleológica,

seja possível verificar se o modelo instituído pela Constituição de 1988 encon-

tra amparo no moderno conceito da seguridade social.

Efetivamente o Sistema de Seguridade Social que foi desenhado na

Constituição de 1988 não é a única forma de proteção e atendimento aos

anseios mínimos da sociedade atinentes às garantias individuais para a obten-

ção de uma vida digna e livre; há outras formas, tanto por disposições de conteú-

dos trabalhista, cível e penal e, ainda, outras de caráter geral que compreen-

dem um substrato fértil para a manutenção dos níveis mínimos de proteção aos

membros da sociedade.

A seguridade social no Brasil não corresponde a um determinado e único

serviço de proteção social, pelo contrário, a política de proteção social oferecida

pelo sistema brasileiro alcança diferentes níveis de proteção, seja quanto aos

entes protegidos (os sujeitos), seja quanto ao objeto oferecido à proteção dos

sujeitos, seja, também, quanto aos riscos e bens jurídicos relevantes que são

a justificativa para a concepção de um sistema de serviços públicos divisíveis,

autônomos e independentes, segundo os critérios da lei.

A seguridade social no Brasil também se afigura um dos aspectos do

“Estado social”, e tem como fundamento a questão da solidariedade como um

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caminho para o atendimento dos reclames da justiça, do bem-estar e da igual-

dade sociais, cujo estudo fora objeto de explicitação no item 1 deste trabalho.

Da mesma forma que as considerações citadas não excluem da

seguridade social o atendimento pela previdência social ou pela assistência

social, com a possibilidade ainda de cobertura por outras formas particulares

de atendimento dos riscos, também, assim o é o Sistema da Seguridade Social

que se propôs ao ordenamento jurídico brasileiro, e mais que isso, porque

ainda há a previsão de o sistema atender além dos dois primeiros, também, à

cobertura dos riscos próprios da saúde como mais um serviço público, sem

olvidar ainda a possibilidade da previdência privada e a previdência comple-

mentar, que estão bem definidas dentro do Sistema da Seguridade Social tra-

zido pela Constituição Federal de 1988.

Diferentemente da realidade normativa italiana a que se referia o texto

citado, a Constituição Federal trouxe expressamente a disciplina e a sistemá-

tica da seguridade social, evitando, para a perfeita compreensão do conceito

moderno, que os caracteres do sistema sejam, somente, deduzidos por regras

e princípios internos de normas fundamentais, pois, no Brasil, esses caracteres

estão bem delimitados pela Constituição.

Outro elemento importante lembrado pela grandiosa citação de Mazoni,

é a repercussão que a previsão de um sistema de seguridade social acarreta

para a questão das relações de trabalho, pois, pela idéia da solidariedade, todos

os membros da sociedade participam das ações e iniciativas do sistema, pois,

de uma forma ou de outra, todos têm interesse naquilo que o artigo 193 da

Constituição Federal de 1988 adotou como primado de toda a ordem social,

seja, pois, o “trabalho”, uma vez que é pelo trabalho que a sociedade alcança

a dignidade, o bem-estar e a justiça sociais.

Considerar o trabalho como um primado garante que todos os envolvi-

dos nesta relação social estejam envolvidos nas questões decorrentes desse

“contrato”, especialmente, quanto ao “ônus social” que deverá ser repartido,

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solidariamente, entre todos os membros da sociedade para a garantia de co-

bertura, proteção e atendimento às situações de risco que nascem pelo fato

do trabalho.

Desse modo, segundo o novo conceito de seguridade social que foi

alcançado historicamente por diversas nações do mundo, temos que o Sistema

da Seguridade Social oferecido ao ordenamento jurídico pátrio encontra funda-

mento nos anseios da sociedade, que desenvolvida a partir da idéia da solida-

riedade, da justiça, do bem-estar e da igualdade, satisfaz o desenvolvimento

humano e social.

2.3 PRINCÍPIOS

A Constituição Federal de 1988 é o depositário das normas fundamentais

e essenciais para a conformação do ordenamento jurídico de uma nação basea-

da no Estado democrático de direito, tanto que Hans Kelsen já estruturava o

ordenamento jurídico a partir de uma norma hipotética fundamental, que servia de

base, fundamento e legitimação à norma hierarquicamente inferior, notadamente,

a Constituição de uma nação, como se dá nos países de tradiçãojurídica do

direito posto, estruturado por leis e organizado segundo um sistema hierárquico

e harmonioso de regras sobrepostas umas sobre as outras, uma servindo de

validade para a seguinte e assim sucessivamente.

Nessa concepção, tem a Constituição Federal de 1988 papel fundamental

para estabelecer o espírito programático dos operadores e aplicadores do Di-

reito, sejam os legisladores, sejam os magistrados, sejam os “instrumentistas”

das leis, sejam os estudiosos, pois para cada um deles o espírito da lei deve

servir de base hermenêutica, de fundamento normativo e também de horizonte

legislativo, indicando a todos o caminho pelo qual a sociedade brasileira, por seu

“Estado democrático de direito”, pretende seguir na busca e na consecução

dos seus valores mais fundamentais.

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Para tanto, a Constituição Federal de 1988 desenvolveu um rol de obje-

tivos no parágrafo único do artigo 194, que correspondem ao valores pelos

quais a seguridade social deve transpor para atingir os fins a que ela se destina.

Tais objetivos podem ser, corretamente, tratados de verdadeiros princí-

pios, pois têm em seu bojo a essência e o espírito daquilo que o legislador

constituinte assumiu como responsabilidade para o desenvolvimento do Sistema

da Seguridade Social.

São princípios porque determinam um conteúdo programático, ilumi-

nam o caminho dos aplicadores do Direito e mostram os valores ideais que a

seguridade social pode alcançar. É a luz no caminho da ordem social quando

se aventura na busca pela justiça e bem-estar social.

Art. 194.

[...]

Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei,

organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos:

I – universalidade da cobertura e do atendimento;

II – uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às po-

pulações urbanas e rurais;

III – seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e

serviços;

IV – irredutibilidade do valor dos benefícios;

V – eqüidade na forma de participação no custeio;

VI – diversidade da base de financiamento;

VII – caráter democrático e descentralizado da administração, me-

diante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores,

dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos

colegiados.

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A cada um desses incisos corresponde um princípio próprio da seguri-

dade social, e assim, ditos, pois estão, cada um deles, e todos eles, em perfeita

consonância lógica e sistemática para compor um arcabouço normativo condi-

zente, estruturado e organizado, pautado pela complementaridade de cada

um dos princípios que se sobrepõem e se completam numa formação holística

e harmoniosa.

Como este trabalho trata da questão específica da prestação dos serviços

da seguridade social, especialmente, e desde já anunciado, do benefício previ-

denciário auxílio-doença, objeto principal deste estudo, é relevante e interessante

a compreensão do teor teleológico de cada um desses princípios.

A universalidade da cobertura e do atendimento corresponde ao princípio

primeiro que traz, desde então, a diretriz essencial do Sistema da Seguridade

Social.

Universalidade é a qualidade daquilo que é universal e, portanto, daquilo

que envolve um universo de coisas, de bens e de sujeitos, todos uníssonos na

mesma realidade, ou seja, a universalidade é a característica do sistema que

assegura e engloba o universo social de uma sociedade, ou, então, é a qualidade

que denota ao sistema a afetação geral e irrestrita ao membros da sociedade,

às relações jurídicas entre eles, e aos objetos que correspondem aos vínculos

sociais.

Se a universalidade se dá na cobertura, é necessário verificar a abran-

gência da idéia de cobertura, nascida do instituto do seguro do Direito Civil

(ponto de partida para a nova concepção da seguridade social, que no passado

se organizava na forma de seguro social), que está relacionado à proteção de

determinados bens relevantes para o desenvolvimento da sociedade; na verdade,

a cobertura garante a proteção às situações da vida sujeitas ao risco de causar

algum tipo de necessidade social às pessoas ou membros que compõem a

sociedade.

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Como a seguridade pretende oferecer uma proteção aos membros da

sociedade, para que protegidos todos tenha melhores condições de vida e digni-

dade para o desenvolvimento pessoal e social, quanto mais cobertura puder ser

garantida às situações que comprometem essa segurança social, tanto mais

objetiva e eficiente será a proteção da seguridade social.

A expressão da universalidade na cobertura esta intimamente ligada à

idéia do risco, e, neste mister, do risco social, assim chamado o risco que tem

sua afetação ligada às contingências sociais e que será objeto de estudo mais

detalhado logo a seguir.

Mas a universalidade também está dirigida ao atendimento e, quando

se concebe o atendimento, o complemento necessário é o atendimento às pessoas,

portanto, a universalidade do atendimento amplia, ou quer ampliar, a proteção

das pessoas sujeitas aos riscos, para evitar que fique comprometido o desenvol-

vimento regular e saudável da sociedade, o que afastaria os objetivos da justiça

e do bem-estar social.

No âmago deste princípio está a questão da Isonomia, sentinela cons-

tante erigida pelo artigo 5° da Constituição Federal, ou seja, de que

[...] todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer na-

tureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residen-

tes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igual-

dade, à segurança e à propriedade, [...].

Tal isonomia é que guarnece a abrangência da universalidade, pois pre-

tende garantir a todos um tratamento igualitário perante a lei e as instituições

sociais, independentemente de suas qualidades distintivas, o que, em última

análise, mantém o ideário da justiça social em constante evolução.

Consecutivamente, há o princípio da uniformidade e equivalência das

prestações, portentoso princípio que também pode ser avaliado segundo uma

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divisão escorreita de seus vértices, ou seja, avaliado pelo prisma da uniformi-

dade e pelo da equivalência.

Nota-se, entretanto, que na Constituição há uma qualificação específi-

ca para este princípio que é sua afetação no tratamento entre trabalhadores

urbanos e rurais, que deverá ser pautado por esses mecanismos de proteção,

e, por que não, de isonomia.

A expressão uniformidade corresponde à forma comum entre dois ob-

jetos, ou seja, significa que, no tratamento entre os trabalhadores urbanos e

os rurais, as leis e seus aplicadores devem ficar atentos à questão da uniformi-

dade, impedindo que as prestações vertidas tanto a uma categoria de traba-

lhadores como a outra sejam e respeitem a mesma forma.

Em outras palavras, uniformidade nas prestações é a garantia de que

tanto trabalhadores urbanos como rurais terão direito ao mesmo manancial de

instrumentos de proteção social a ser prestados pela seguridade social. Por-

tanto, se um trabalhador urbano tem direito a determinado benefício de natureza

previdenciária, também o terá o trabalhador rural, pois entre eles não há mais

nenhuma distinção de tratamento.

Já a expressão equivalência está intimamente ligada à questão do va-

lor das prestações, pois a qualidade da equivalência, em sua raiz morfológica,

tem a igualdade como valor destinado a dois pólos distintos.

Portanto, a equivalência das prestações oferecidas aos trabalhadores

urbanos e aos rurais está adstrita ao aspecto e conteúdo financeiro e econômico

das prestações, notadamente, sobre a questão do valor, e mais que isso, so-

bre o critério utilizado para a valoração e mensuração das prestações, pois

equivalente é aquilo que tem o mesmo critério de valência, isto é, tem coinci-

dência na forma como são mensuradas e computadas as prestações.

Como restará esclarecido adiante, o critério para a mensuração das pres-

tações da seguridade social é baseado na “remuneração” decorrente da relação

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do trabalho, pois, à exaustão, o trabalho é o primado da ordem social e sobre o

qual toda a sociedade encontra seu sustentáculo, porque a partir do trabalho é

que se torna possível a manutenção individual da sobrevivência pessoal e do

desenvolvimento humano, conforme já restou debatido anteriormente.

Na seqüência estabelecida pela Constituição Federal de 1988 encontra-se

a seletividade e distributividade das prestações.

Novamente, é pertinente tratar deste princípio segundo um entendi-

mento dicotômico, mas não oposto, e sim complementar, pois a seletividade é

o primeiro passo para a distributividade.

Pela seletividade das prestações a seguridade social encontra o funda-

mento para a justa classificação dos eventos que sujeitam os membros da

sociedade a situações de necessidade que urgem gritantes pelos instrumentos

de proteção social.

A qualidade da seletividade se manifesta na faculdade do legislador ou

do operador do Direito de avaliar dentro da sociedade quais são os eventos ou

situações da vida que merecem cobertura, ou seja, é a qualidade de selecio-

nar quais riscos sociais serão protegidos quando efetivamente surgirem no

mundo dos fatos, e que incidentes sobre os membros da sociedade prejudicam

a manutenção da segurança social e da dignidade humana.

Reconhecidas e classificadas as situações a ser protegidas pelas presta-

ções da seguridade social, compete ainda ao legislador ou operador do Direito

a correspondente atribuição para cada uma dessas situações de um determi-

nado, específico e eficiente instrumento de proteção social, a que se denomina

prestação social, ou, como se verá adiante, de benefício (neste pormenor, quando

se tratar de questão relacionada à previdência social).

Pois bem, se a seletividade garante o reconhecimento das situações a

ser protegidas, bem como oferta a cada uma delas uma prestação específica

como garantia de proteção social, é necessário que tal proteção seja instrumen-

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talizada de maneira eficiente, e segundo critérios justos, pautados pela isonomia

já referida antes, o que se dará pela distributividade.

A distributividade é a justa aplicação da seletividade, ou seja, é o ofere-

cimento de cada uma das prestações sociais às pessoas e membros da socie-

dade que estiverem sofrendo as selecionadas situações de risco social.

Portanto, se a seletividade é a avaliação do campo de atuação da segu-

ridade social, a distributividade é a aplicação dos instrumentos de proteção

social eleitos para garantir os níveis de segurança, bem-estar e justiça sociais.

Em ambos os prismas está a concepção da isonomia, por isso que os

princípios devem manter a interação entre seus corolários, porque, concomitantes

e sucedâneos a cada etapa principiológica, a compreensão teleológica dos

Sistema de Seguridade Social fica mais clarividente e profícua.

Seguindo a ordem apresentada pela Constituição Federal de 1988, há

o princípio da irredutibilidade dos benefícios.

Benefícios são as prestações pecuniárias que perfazem a proteção so-

cial e instrumentalizam as finalidades da seguridade social no atendimento

das situações que geram necessidade aos membros da sociedade.

Neste mister, a irredutibilidade dos benefícios surge como a garantia

de que a proteção social oferecida à sociedade terá respeitado a garantia mí-

nima de manutenção do seu conteúdo econômico, não somente como corolário

do direito adquirido estabelecido no inciso XXXVI do artigo 5° da Constituição

Federal de 1988, mas também para assegurar que a proteção oferecida e pres-

tada pela seguridade social atinja as finalidades que lhe são próprias, seja na

manutenção da dignidade humana, seja na consecução do bem-estar e da

justiça sociais.

Pela irredutibilidade, tanto se verifica na responsabilidade do legislador

e do aplicador do Direito de respeitarem níveis mínimos de proteção, não per-

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mitindo que haja redução nos patamares econômicos já conquistados pelos

membros da sociedade, os entes protegidos pela seguridade, daí sim como

corolário do direito adquirido, como também se afigura na manutenção cons-

tante e atualizada do poder econômico das prestações.

Ora, numa sociedade marcada pela inconstância econômica, financeira

e monetária, que também influencia na avaliação atuarial, cujo critério envolve

questões políticas, econômicas, sociais e demográficas, é contingente a possi-

bilidade de que o benefício (que tem caráter pecuniário) sofra instabilidades em

seu real poder econômico, e, portanto, não basta a garantia de que ele não sofra

redução, é necessário, também, que seu valor mensurável e pecuniário se man-

tenha atualizado e efetivo no cumprimento dos fins propostos, especificamente,

de oferecer aos entes protegidos a condição necessária para que eles mante-

nham a própria dignidade.

Quanto ao segundo aspecto, vale notar que a Constituição Federal, em

seu artigo 201, § 4°, estabelece que:

[...]

§ 4o É assegurado o reajustamento dos benefícios para preser-

var-lhes, em caráter permanente, o valor real, conforme critérios

definidos em lei.

Voltado ao vértice eqüidistante da conformação da seguridade social

está o princípio da eqüidade na forma de participação do custeio.

Como o próprio nome sugere, esse princípio está relacionado ao pro-

blema do custeio, que fora visto anteriormente, quando mencionada a Lei n.

8.212/91, Lei do Custeio, ato normativo que estabelece e disciplina toda a ques-

tão do financiamento da seguridade social, que é a condição necessária, den-

tro da conformação conceitual já aventada, para que o sistema mantenha vivos

e operantes os instrumentos de proteção social, pois seus conteúdos pecuniá-

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rios exigem que na contrapartida esteja um sistema garantido pelo lastro finan-

ceiro e econômico que suporte as despesas e os gastos necessários para imple-

mentar os serviços de previdência social, de saúde e assistência social.

Este enfrentamento será mais adiante tratado.

Não obstante, a eqüidade no custeio é o tratamento a ser dado na ques-

tão da participação dos membros da sociedade em suas feições solidárias de

financiamento do Sistema de Seguridade Social.

Esse financiamento, possível graças ao caráter contributivo do sistema

pela arrecadação de contribuições sociais, verdadeiros tributos vertidos dos

esforços da sociedade como forma de iniciativa desta para a realização da

seguridade social, deverá ser pautado pela eqüidade.

Na questão do financiamento e da participação dos membros da socie-

dade no custeio do sistema, a eqüidade avulta duas características essenciais

que são a isonomia e a capacidade econômica dos contribuintes, ou, vistos de

outro foco, os entes protegidos que contribuem para o sistema.

Na eqüidade da participação do custeio, a isonomia surge como o marco

relevante quando os contribuintes são considerados um a um em condições

de igualdade, quer dizer, cada contribuinte, na quota de sua participação para

financiar a seguridade social, deve receber um tratamento isonômico, não só

pela consideração de suas desigualdades, mas pela verificação de que deter-

minados contribuintes, ou determinadas categorias de contribuintes têm con-

dições muito distintas e, portanto, merecem um tratamento pautado pela iso-

nomia e pela garantia de que a justiça social será bem pactuada entre todos os

participantes do sistema.

Mas não basta a isonomia, também se revela imprescindível para o aten-

dimento da eqüidade que essa isonomia esteja de acordo com a capacidade

econômica do contribuinte.

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A capacidade econômica é a versão aperfeiçoada da chamada capaci-

dade contributiva que sempre regeu o Direito Tributário, mas que ganhou um

conteúdo mais especial, conforme previsão do artigo 145, § 1o, da Constitui-

ção Federal de 1988, em que se estabelece:

Art. 145.

[...]

§ 1o Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e

serão graduados segundo a capacidade econômica do contri-

buinte, facultado à administração tributária, especialmente para

conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os

direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendi-

mentos e as atividades econômicas do contribuinte.

Ora, mais do que simplesmente atribuir uma carga tributária mais ro-

busta a quem tenha melhor capacidade contributiva, no tão mencionado

brocardo “quem ganha mais paga mais”, a capacidade econômica considera

não só o aspecto contributivo, mas qualifica este aspecto conforme as condições

econômicas do contribuinte, segundo seu patrimônio, seus rendimentos e a

atividade econômica exercida por ele.

Tais elementos são muito apropriados para a verificação da real condi-

ção contributiva do contribuinte e também porque, por estas características

econômicas, é possível a avaliação da justa aplicação da isonomia, visto que

determinados contribuintes oferecem ou são responsáveis por níveis elevados

de incidência de riscos sociais, ou, ainda, pela efetiva sujeição dada a outros

entes protegidos nas situações da vida que geram necessidade de proteção

social, como é o caso das empresas.

A eqüidade vale desses dois aspectos para atribuir a cada um dos

contribuintes uma determinada quota de participação no financiamento da

seguridade social, seja estabelecendo um tratamento diferenciado na arreca-

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dação, seja conferindo a determinados contribuintes condições especiais de

financiamento ou de incentivos fiscais.

Exemplo disso é o § 9° do artigo 195 da Constituição Federal de 1988,

acrescido pela Emenda Constitucional n. 20, de 1998, segundo o qual:

Art. 195.

[...]

§ 9° As contribuições sociais previstas no inciso I [Contribuição

Social das Empresas] deste artigo poderão ter alíquotas ou ba-

ses de cálculo diferenciadas, em razão da atividade econômica

ou da utilização intensiva de mão-de-obra. [grifo nosso]

Portanto, a diferenciação no tratamento tributário dado pelo § 9° do

artigo 195 deverá levar em consideração a razão da atividade econômica ou a

utilização intensiva de mão-de-obra daquele determinado contribuinte, o que

para este dispositivo se aplica às empresas. Exemplo disso é o acréscimo no

percentual de alíquota que as chamadas instituições financeiras devem supor-

tar no pagamento da sua contribuição social sobre a folha de salários, confor-

me estabelece o § 1° do artigo 22 da Lei n. 8.212/91.

Ainda tratado sobre a questão do custeio, há o princípio da diversidade

da base de financiamento.

Por este princípio fica esculpida a idéia da necessidade do Sistema de

Seguridade Social de manter em sua base financeira as condições monetárias

favoráveis para arcar com todas as formas de proteção social oferecidas, seja

pelos instrumentos da previdência social, seja pelos da saúde e da assistência

social.

Para sua perfeita atuação, a seguridade social tem por imprescindível o

financiamento anterior e adredemente estabelecido, e não foi outra razão que o

legislador constituinte determinou no artigo 195 da Constituição Federal que o

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Sistema de Seguridade Social será financiado pela sociedade, de forma indi-

reta e de forma direta.

De forma indireta, o financiamento se dá pelo Estado, por meio de dota-

ções orçamentárias, ou seja, transferência financeira do orçamento do Estado

para o orçamento da seguridade social, conforme disciplina orçamentária pre-

vista na Constituição e especificada na lei.

De forma direta, o financiamento se dá pela arrecadação das contribui-

ções sociais vertidas pela sociedade civil, precisamente pelos trabalhadores e

pelas empresas, isto é, pela arrecadação de um tributo, chamado contribuição

social, pelo qual o sistema encontra o lastro financeiro necessário para a manu-

tenção e expansão dos níveis de proteção social a ser ofertados aos entes

protegidos.

Esta foi, aliás, a forma consagrada desde 1934 pela legislação brasileira,

que desde então envolveu como participantes e colaboradores do sistema de

seguridade o triunvirato formado pelos trabalhadores, pelas empresas e pelo

próprio Estado.

Como as contingências da seguridade social, no exercício do seu papel

de fomentador, garantidor e protetor da ordem social, são muito custosas, e

sabidamente, onerosas, o financiamento se faz absolutamente necessário, o

que, neste diapasão, justifica o princípio da diversidade.

Diversidade nas bases de financiamento é a característica imprescindí-

vel para que o sistema tenha seu financiamento pulverizado e, portanto, multipli-

cado por diversas fontes de receita.

Normalmente são adotadas como diversidade a objetiva e a subjetiva,

pois a diversidade pode ser tanto sobre as bases de cálculo, ou seja, os fatos

incidentes da atividade tributária, como subjetiva, quando a diversidade recai

sobre diversos sujeitos de direito que são convocados pela lei a participar do

financiamento do sistema.

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Pode-se adotar, com propriedade também, o critério da diversidade hete-

rogênea ou diversidade homogênea, sendo a primeira a diversidade que ocorre

entre dados sujeitos específicos, variando o pólo subjetivo pelo qual se obtém

o financiamento, e sendo a segunda homogênea porque o financiamento se dará

diversificado dentro de cada um desses pólos, ou seja, cada sujeito contribuinte

terá por sua responsabilidade várias formas de financiamento, diversificando

as bases de cálculo.

Como a contingência pode ser maior do aquela esperada pelas técni-

cas da ciência atuarial, a Constituição Federal estabeleceu no § 4° do artigo

195 a possibilidade da competência residual para a instituição de outras for-

mas de custeio e financiamento, segundo certas condições formais e legais,

ampliando ainda mais a abrangência da diversidade da base de financiamen-

to, conforme os termos da lei:

Art. 195.

[...]

§ 4° A lei poderá instituir outras fontes destinadas a garantir a

manutenção ou expansão da seguridade social, obedecido o dis-

posto no artigo 154, I.

Importante asseverar que o exercício da competência residual citado aci-

ma está afetado e exclusivamente destinado à finalidade de manter ou expandir o

Sistema de Seguridade Social, ou seja, para garantir o cumprimento do princípio

da universalidade na cobertura e no atendimento que foi esclarecido antes, pois

esta é a forma de manter ou expandir a proteção social oferecida.

Democratização é mais do que o reflexo de um Estado democrático de

direito, democratização na gestão do Sistema de Seguridade Social é a garantia

efetiva de que os membros da sociedade ou os entes protegidos sejam, este-

jam, participem, discutam, decidam e façam parte da gestão que organiza, es-

trutura, sistematiza, administra e comanda a máquina estatal chamada de Sistema

de Seguridade Social.

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Esta democratização é fruto da conquista da sociedade que outorga a

seus representantes os poderes necessários para que ela mesma, a socie-

dade, seja organizada por um ente fictício, denominado Estado, que funcio-

na como o alicerce material para a consecução dos fins únicos de todos os

povos organizados, que é seu pleno desenvolvimento, seja no aspecto social,

no econômico, no político, seja ainda no aspecto do desenvolvimento humano.

Já a feição da descentralização na gestão da seguridade social, segundo

o desenho constitucional ofertado pela Magna Carta, deveria ser o alicerce es-

trutural e crucial para o perfeito desempenho do sistema.

Pela descentralização, a Constituição Federal de 1988 garantiu que a

gestão, a organização e a aplicação dos serviços oferecidos pela seguridade

social tenham a independência e a autonomia necessária para que esta,

paralelamente, ao Estado, possa desempenhar suas funções com o máximo de

performance, eficiência, eficácia e agilidade no atendimento aos entes

protegidos.

Tanto que foi estabelecido um orçamento próprio para a seguridade

social, conforme disposição do artigo 165, § 5°, inciso III, da Constituição Fe-

deral de 1988, pelo qual a lei orçamentária compreenderá “o orçamento da

seguridade social...”.

Faz parte do princípio da descentralização, também, a formação de um

instituto próprio e independente para gerir o sistema de seguridade, fruto da

união dos antigos Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assis-

tência Social (IAPAS) e Instituto Nacional da Previdência Social (INPS), na

escorreita trilha da Constituição Federal de 1988, conforme o novo desenho

apresentado pelo legislador constituinte para a concepção da seguridade social,

foi criado pela Lei n. 8.029, de 12 de abril de 1990, e regulamentado pelo Decre-

to n. 99.350, de 27 de junho de 1990, o denominado Instituto Nacional do Segu-

ro Social (INSS), cuja atuação, também descrita na lei, tem hoje papel funda-

mental na aplicação e prestação dos serviços protetivos da seguridade social.

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2.4 ENTES ENVOLVIDOS

Importante referência sobre a abrangência da seguridade social é a deli-

mitação dos entes envolvidos na organização, participação e fruição dos servi-

ços oferecidos pelo sistema.

Pode-se dividir os entes envolvidos segundo o critério da forma que

cada ente, cada sujeito se insere no bojo do Sistema de Seguridade Social.

Há os entes que se perfazem na organização, ou seja, os gestores do

sistema, que já foram brevemente apontados aqui, e são encabeçados pelo

Estado, como ente representativo da sociedade, do qual surge o Instituto Nacio-

nal do Seguro Social (INSS), autarquia federal, que tem por fim os atributos

conferidos no Decreto n. 99.350/90, especificamente no seu artigo 3°, conforme

segue:

[...]

Art. 3o Compete ao INSS:

I – promover a arrecadação, fiscalização e cobrança das atribui-

ções incidentes sobre a folha de salários e demais receitas a elas

vinculadas, na forma da legislação em vigor;

II – gerir os recursos do Fundo de Previdência e Assistência

Social (FPAS);

III – conceder e manter os benefícios e serviços previdenciários;

IV – executar as atividades e programas relacionados com em-

prego, apoio ao trabalhador desempregado, identificação profis-

sional, segurança e saúde do trabalhador.

O INSS é estruturado por uma série de níveis administrativos, com-

postos por uma presidência, procuradoria, auditoria e diretorias, todas, por si,

compostas por diversos agentes públicos que desempenham suas funções

segundo os comandos legais.

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Quanto à participação no sistema, conforme convocação referida no

artigo 194 da Constituição Federal de 1988, a seguridade social contará com a

participação e iniciativa pelas ações dos poderes públicos (nos níveis federal,

estadual e municipal) e da sociedade.

A efetiva participação dos poderes públicos e da sociedade envolve a

descentralização na gestão como já fora asseverado no item dos princípios e,

mais precisamente, envolve a participação no financiamento da seguridade

social, que dividido entre o triunvirato do governo (poder público), dos trabalha-

dores e empresas (sociedade), discriminam uma determinada quota de

participação, por meio de instrumentos tributários, e segundo as formas previstas

em lei, como manifestação do conceito de solidariedade que é o fundamento

para todo o Sistema de Seguridade Social.

E, também, são considerados entes envolvidos, conforme o critério da

fruição, os sujeitos de direito que usufruem os serviços e os instrumentos de

proteção social oferecidos pelo sistema da seguridade, chamados de

beneficiários.

Na esfera da previdência social, entre os beneficiários estão os segu-

rados e os dependentes.

Os segurados são os sujeitos de direito que mantêm com a previdência

social um vínculo, uma relação jurídica chamada de “filiação”, estabelecida

pelo exercício de deveres e direitos, e que têm a obrigação de participar do

financiamento da seguridade social e, em contrapartida, têm o direito de usu-

fruir todos os serviços garantidos pela previdência social.

Os dependentes, por sua vez, são os sujeitos escolhidos pela lei como

aqueles sujeitos que, por sua especial relação com o segurado, relação marcada

pela dependência econômica que os sujeita aos auspícios e cuidados do segu-

rado, merecem, por conta dessa dependência e segundo critérios de seletividade

e distributividade, ser protegidos pela previdência social como sujeitos de direito,

exercendo, somente, a prerrogativa de usufruir determinados e limitados benefí-

cios da previdência social.

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Na esfera da saúde e da assistência social, os beneficiários correspon-

dem a todos os sujeitos de direito que, independentemente, de suas participa-

ções no financiamento da seguridade social, podem usufruir os serviços, bene-

fícios e instrumentos de proteção social oferecidos pela saúde e pela assistência

social, cujo conteúdo, muito próximo do antigo assistencialismo histórico já apre-

sentado, tem o condão de erradicar a miséria, prevenir e tratar das doenças,

desequilibrar as injustiças sociais, e garantir a todas as pessoas níveis mínimos

de sobrevivência digna para seu desenvolvimento humano.

2.5 FINALIDADES

A seguridade social, como conjunto de ações voltadas à prestação de

serviços de previdência social, de saúde e de assistência social, tem, implícitas

em sua natureza de garantidora do perfeito atendimento aos ditames da justiça,

bem-estar e igualdade sociais, o foco, o objetivo, a meta, a finalidade de atingir

níveis satisfatórios tendentes a manter os entes envolvidos em perfeita harmo-

nia e, principalmente, de proporcionar as condições mínimas necessárias para

que os sujeitos protegidos permaneçam incólumes quando sofrerem as conse-

qüências das situações da vida que geram necessidades sociais.

Por essa razão, a finalidade da seguridade social, além de prestar os

serviços de previdência social, de saúde e de assistência social, alcança um

efeito contagiante no seio da sociedade, porque guarnece aos membros da socie-

dade a efetiva garantia de preservação das condições mínimas para o desenvol-

vimento de sua existência humana, com dignidade, liberdade, independência,

segurança e paz social.

Este campo frutífero para o desenvolvimento humano condizente com os

reclames universais de respeito aos direitos do homem, já tão combatidos na

história das civilizações, haja vista normas capitulares como a Declaração Univer-

sal dos Direitos do Homem, a Norma Mínima de Seguridade Social (Convenção

102) estabelecida pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e tantas ou-

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tras cartas, conferências e comissões que germinaram inúmeros documentos e

programas formais que dispunham, e ainda dispõem, sobre aqueles que são os

principais objetivos da seguridade social como fenômeno internacional de prote-

ção do ser humano, e que representam a verdadeira finalidade dos sistemas de

seguridade social desenvolvidos em cada país soberano e civilmente organizado.

Como exemplo, em portentoso trabalho concebido por Maria de los San-

tos Alonso Ligero,5 comentando sobre a Convenção 102 da OIT, tem-se que

“[...]

El Convenio 102 estableció uma adecuada complementación de

las prestaciones de base contributiva, propias de la Seguridad

Social u otras formas de Previsión Social obligatoria, com

beneficios gratuitos para personas de recursos modestos, pro-

porcionados por la assistencia social.

Dentro del âmbito de la Organización Internacional del Trabajo, di-

versas resoluciones han propiciado el desarrollo de servicios sociales

destinados a mejorar las condiciones de vida y trabajo, proveer a um

mayor bienestar humano y lograr uma coodrinacion eficiente entre

los Servicios de la Seguridad Social y otros servicios sociales.

E ainda referindo-se ao comentário de Dupeyroux (apud Sécurité sociale,

p. 75, Dalloz, Paris, 1969), sobre os artigos 22 e 25 da Declaração Universal

dos Direitos do Homem, Ligero menciona que

Para Dupeyroux, el artículo 22 parece inspirado en la tendência a

considerar que la finalidad profunda y original de la política de

Seguridad Social tiende al florecimiento de la personalidad del

individuo, mientras que el articulo 25 sugiere dos direcciones: um

5 LIGERO, Maria de los Santos Alonso. Estúdios – Los servicios sociales y la seguridad

social. Revista Iberoamericana de Seguridad Social, n. 6, nov./dez. 1971, p. 1.559-1.560.

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derecho a um nível de vida suficiente y um derecho a uma

protección particular contra ciertas eventualidades.

Daí se permite concluir que a finalidade da seguridade social está divi-

dida e compartilhada entre duas versões de direitos, um de abrangência geral

e outro de abrangência específica.

A abrangência geral da finalidade da seguridade social alcança os va-

lores sociais mais profundos e essenciais, que são o direito à vida, ao desen-

volvimento humano e a garantia de que cada indivíduo possa exercer sua per-

sonalidade com bem-estar social e dignidade humana.

Mas, também, se infere da abrangência específica da finalidade que

haja o atendimento particular ao indivíduo ou sujeito de direitos, quando este,

enfrente as conseqüências decorrentes de certas eventualidades, fatos da vida

e situações concretas que lhe furtem quaisquer dos valores ou dos bens a ser

protegidos pela seguridade, em especial aquelas situações referidas como si-

tuações de risco social, que, embora de repercussão social, sejam enfrenta-

das individualmente por cada um dos membros da sociedade, e para quem a

solidariedade ofertada na Seguridade Social tem condições de garantir o sus-

tentáculo para a manutenção desses mesmos valores e direitos, sem os quais

a vida e o desenvolvimento humano de cada indivíduo estariam provavelmente

sacrificados.

2.6 BEM PROTEGIDO

Na seguridade social as finalidades são baseadas na proteção, no aten-

dimento e na manutenção de determinados bens da vida, bens juridicamente

relevantes pelos quais toda a vida humana se perfaz, bens que devem ser

protegidos pela sociedade, para que ela mesma permaneça em estado de jus-

tiça, bem-estar e paz sociais.

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Tais bens protegidos estão previstos na Constituição Federal de 1988,

mas são reportados, cada qual, num dos serviços públicos instrumentais da

seguridade social, os serviços de previdência social, saúde e assistência social.

Há que se notar que os bens protegidos, todos eles, têm correlação

direta com a vida, com a dignidade e com o desenvolvimento humano, e foram

eleitos como bens protegidos porque representam os faltos pelos quais os

indivíduos carecem de proteção, pois, individualmente, não conseguiriam su-

portar as mazelas e os infortúnios das conseqüências quando esses bens pro-

tegidos estivessem ameaçados.

A prestação da seguridade social representa a ação concreta sobre

determinados objetos, os bens protegidos, considerados em seu aspecto es-

tático, quer dizer, são bens protegidos os fatos concretos e estáticos que o

indivíduo enfrenta no desempenho de sua existência, e que não estão ponde-

rados sob o prisma da conseqüência que esses fatos geram no mundo da

vida, tão-somente, portanto, considerados como fatos da vida, sem que, ainda,

tenha sido realizada a verificação dos efeitos materiais e causais decorrentes

deles.

Assim, e considerando que tais bens serão melhor tratados quando forem

estudados, especificamente, cada um dos serviços da seguridade social, surgem

como bens protegidos na previdência social os eventos de doença, invalidez, morte

e idade avançada, outros como a maternidade, o desemprego involuntário, a re-

clusão de quem mantém dependentes, e ainda acidentes do trabalho.

Na saúde, o bem protegido é a saúde como direito de todos, visando à

prevenção e ao tratamento das doenças e de outros agravos a que estão sub-

metidos os indivíduos.

E, na assistência social, são bens protegidos a família, a maternidade,

a infância, a adolescência, a velhice, a empregabilidade no mercado de traba-

lho, as deficiências física e mental dos indivíduos e a sobrevivência de deficien-

tes e idosos sem condições de sustento e manutenção próprios.

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2.6.1 Risco social

Quando os bens protegidos surgem no mundo da vida, e, agora sim,

considerados de forma dinâmica, eles geram determinadas conseqüências que

afetam sobremaneira a vida e a sobrevivência dos indivíduos que vivem em

sociedade.

Tais conseqüências são causadas por situações da vida que geram

necessidade de proteção social, cuja expectativa de sua ocorrência é chama-

da de risco social.

Por melhor justeza de entendimento à baila a conceituação ofertada

por Armando de Oliveira Assis in Em busca de uma concepção moderna de

risco social.” 6

[...] é que uma nova concepção de “risco social” como propomos,

a noção fundamental será a de que o perigo que ameaça o

individuo se transfere para a sociedade, ou, por outra, se ameaça

uma das partes componentes do todo, fatalmente ameaçará a

própria coletividade, o que faz com que as necessidades daí

surgidas, além e acima de serem apenas do indivíduo, se tornem

igualmente necessidades da sociedade. De tal forma se nos pa-

tenteia esse fato, que nos chega a parecer mais apropriado de-

signar o perigo potencial de “necessidade social”, ao invés de

“risco social”.

Dessa forma, o risco social é o perigo, a expectativa de ocorrência de

situações da vida que gerem necessidade de proteção social.

6 ASSIS, Armando de Oliveira. Em busca de uma concepção moderna de risco social. Tra-

balho apresentado para o Concurso de Monografias, extraído do Compêndio de Seguro

Social. Rio de Janeiro: Serviço de Publicação da Fundação Getulio Vargas, p. 28.

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Este perigo é relevante como um fato social porque a repercussão que

ele traz em suas conseqüências acaba sendo compartilhada na sociedade por

todos, e não simplesmente por cada um dos seus membros individualmente

considerados, até porque tais situações estão a ocorrer a todo o momento

numa sociedade dinâmica e ativa.

Ora, se muitos indivíduos em situações de vida semelhantes, ou seja,

em situações de exposição ao risco de comprometimento dos bens protegidos

mencionados, sofrerem o mesmo infortúnio, certamente, os efeitos dessa ocor-

rência, e a amplitude das conseqüências dessas situações, repercutirão de

maneira solidária entre os outros membros da sociedade, prejudicando a or-

dem social e gerando instabilidades sociais que tumultuam a vida coletiva,

ameaçam igualmente tanto os indivíduos como a sociedade, infeccionando a

paz e a segurança social e sacrificando a manutenção de uma sociedade equi-

librada e saudável.

Dado o aspecto dinâmico dessas situações, o risco social não deve ser

considerado como um fenômeno limitado e inerte nas dimensões de tempo e

lugar, pelo contrário, é dinâmico e mutável, devendo ser concebido de acordo

com a realidade social que suporta as contingências ameaçadoras dos bens

protegidos por determinada sociedade.

Assim, segue o douto Armando de Oliveria Assis:7

[...] porque o “risco social” assim considerado não é nenhum

estalão que se aplique indiscriminadamente a qualquer comuni-

dade; pelo contrário, ele se mimetiza ao ambiente em que for

introduzido. Essa adaptabilidade é, aliás, um dos característi-

cos marcantes dos que ornam o conceito teórico em estudo. A

7 ASSIS, Armando de Oliveira. Em busca de uma concepção moderna de risco social, cit.,

p. 30.

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dimensão do “risco social” variará, assim, segundo as circuns-

tâncias de tempo e espaço, e conservando todas as suas quali-

dades específicas. Ele se contrairá ou expandirá de acordo com

o nível cultural da comunidade a que se destine, acompanhará

a média de bem-estar nacional, e, sobretudo, assumirá o porte

que o permitir a pujança da economia que lhe servir de base.

Nesse diapasão é que se encontram alguns dos princípios próprios da

seguridade social, conforme concepção delineada pela Constituição Federal

de 1988, especialmente quando vislumbra a universalidade na cobertura e no

atendimento, como forma de manutenção e expansão da seguridade social.

Ou seja, quanto mais abrangentes forem os riscos sociais protegidos,

ou, rigorosamente, quanto maior for o respaldo protetivo oferecido pela seguridade

social aos membros da sociedade nas situações de ocorrência dos riscos sociais,

tanto mais eficaz e responsável será o programa de política social que se desti-

ne a garantir aos indivíduos a segurança da justiça e do bem-estar social que

favorecem o desenvolvimento humano enquanto fenômeno social.

2.6.2 Cobertura

Como conseqüência direta da suposição dos riscos sociais, nasce na

esfera político-administrativo-jurídica da seguridade social a expressão deno-

minada de cobertura, que, conforme restou definido no item 2.3, refere-se ao

fenômeno de proteção às situações que geram risco social, ou seja, as situa-

ções da vida que geram necessidade de proteção e, portanto, de atuação dire-

ta daquele que foi eleito e concebido pela Constituição Federal como o conjun-

to de iniciativas dos membros da sociedade visando ao atendimento dos

serviços da previdência social, da saúde e da assistência social, o Sistema de

Seguridade Social.

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A cobertura é a manifestação própria e específica da seguridade social

na prestação de suas finalidades precípuas.

Própria porque pela cobertura são oferecidos e prestados pelo Sistema

de Seguridade Social – como contrapartida pela participação dos membros da

sociedade em seu financiamento – os instrumentos de proteção social ne-

cessários para prevenir e remediar as situações de risco social que porventura

venham a ocorrer no mundo da vida, e que, se ocorrentes, sacrificam, corrom-

pem e prejudicam os bens protegidos, gerando instabilidade e insegurança

para a sociedade.

Específica, pois a cobertura deverá atender a determinadas situações

concretas, insurgidas contra sujeitos individualmente considerados, segundo

fórmulas e critérios da lei, que, nesta especificidade, representa a necessida-

de de cada um dos indivíduos que enfrentem as situações de risco social.

Portanto, a cobertura se instrumentaliza por medidas próprias (prestadas

pela seguridade social) e específicas (conforme cada caso concreto) chamadas

de benefícios e serviços, tendo cada qual, implícita, uma prestação correspon-

dente, ou seja, uma prestação revelada por uma “obrigação de dar” quando

forem benefícios ou uma “obrigação de fazer” quando forem serviços, indepen-

dentemente do âmbito da previdência social, da saúde ou da assistência social.

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CAPÍTULO 3

SERVIÇOS

Na aplicabilidade do Sistema de Seguridade Social estão os serviços

próprios oferecidos como verdadeiros instrumentos de atuação na ordem social,

que se dividem, de acordo com as finalidades empossadas pela seguridade,

entre os serviços públicos da previdência social, da saúde e da assistência

social, cada qual organizado em suas estruturas organizacionais, e regidos

por regras e leis específicas que delimitam o campo de atuação e conferem a

cada um deles o arcabouço jurídico necessário para que se manifestem em

favor da sociedade.

Assim, emergem os propósitos para o entendimento de cada um desses

serviços, suas qualidades, suas finalidades e seu campo de atuação material.

3.1 PREVIDÊNCIA SOCIAL

Na seguridade social uma de suas manifestações mais pujantes e elo-

qüentes é a previdência social, serviço de natureza pública, que atende à co-

bertura de situações de risco para a proteção dos indivíduos mediante a pres-

tação de determinados instrumentos protetivos, chamados benefícios, como

também serviços previdenciários.

Pelo artigo 201, caput, da Constituição Federal de 1988, a previdência

social foi caracterizada por determinadas qualidades que, grosso modo, esta-

belecem os limites basilares do seu campo de atuação.

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Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de

regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, ob-

servados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial,

e atenderá, nos termos da lei, a: [...]

Avultam, desde logo, quatro características principais da conformação

estrutural da previdência social: a organização sob a forma de regime geral, o

caráter contributivo, a filiação obrigatória e o equilíbrio financeiro e atuarial.

Pela organização sob a forma de regime geral fica determinado que a

previdência social deverá seguir e atender ao regime geral dentro da sistemá-

tica do poder público, isto é, seu campo de atuação e o ambiente sobre o qual

suas prestações irão se desenvolver devem ser adotados em benefício de to-

dos, sem distinções de categorias profissionais, sociais e/ou políticas, abran-

gendo a totalidade e a generalidade dos indivíduos que compõem a sociedade

civil, desde que, segundo os critérios da lei, tais indivíduos possam exercer

tais direitos subjetivos de ordem pública.

No contraponto do regime geral está o regime próprio que vincula não

a totalidade dos membros da sociedade, mas tão-somente aqueles sujeitos

escolhidos pela lei conforme determinados critérios que justificariam a organi-

zação própria, por meio de organismos próprios e cuja sistematização está

deslocada das regras gerais, por exemplo, os regimes próprios de previdência

instituídos nas esferas estaduais.

Na concepção constitucional, o regime geral é praticado pelo ente fe-

deral, instituído, organizado, mantido e disciplinado pela União em favor de

todos os brasileiros.

Já o elemento do caráter contributivo é a característica histórica da

socialização dos riscos, mediante a qual cada um dos indivíduos, chamados

aqui de entes protegidos, participam do sistema por meio de financiamento

dos serviços a ser revertidos em favor de todos os protegidos.

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O caráter contributivo se justifica pela idéia da solidariedade e denota a

necessidade que o ente protegido verta e contribua financeiramente para a pre-

vidência social, porque somente com lastro financeiro suficiente e robusto é pos-

sível a prestação dos benefícios e serviços como contrapartida desse custeio.

Há que se notar que o caráter contributivo só é exigido para a fruição

dos serviços da previdência social, enquanto os serviços da saúde e da assis-

tência social são tidos por gratuitos ou desonerados dessa obrigação.

Em verdade, portanto, é o caráter contributivo da previdência social

que garante a sobrevivência da seguridade social, inclusive para a prestação

dos outros serviços de proteção social já mencionados.

A característica da filiação obrigatória compreende o aspecto compul-

sório na participação da previdência social.

Tal fato se dá pela sujeição de determinados indivíduos, identificados e

escolhidos pela lei, para participar da composição sistemática da previdência

social.

Não só porque a eles corresponde a obrigação resultante do caráter

contributivo, que é a exigência do recolhimento de tributos para a fruição dos

instrumentos de proteção social ofertados pela previdência, mas também por-

que, atendendo aos ideários da seguridade social, a ausência dessa sujeição

obrigatória proporcionaria a potencial e perigosa ocorrência daquelas situa-

ções previamente definidas como risco social, que, se levadas a efeito, gerariam,

na falta de proteção, a insegurança e a instabilidade social repudiada pela

própria sociedade, cuja reação institucional foi a de prover tais contingências

de um sistema organizado intitulado seguridade social.

Portanto, pela filiação obrigatória, determinados sujeitos são chamados

a participar da previdência social, seja atuando no financiamento da seguridade

social, seja usufruindo de determinados instrumentos de proteção social.

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E, por fim, a característica do equilíbrio financeiro e atuarial é a expres-

são condicional da solvabilidade e da liquidez da previdência social, que, organi-

zada pela intercessão do financiamento e da prestação de benefícios e serviços,

precisa garantir que tais contingências estejam em perfeito equilíbrio financeiro

e atuarial.

Pelo equilíbrio financeiro e como resultado dele a Constituição Federal

de 1988 estabeleceu no artigo 195, § 5°, a chamada “regra de contrapartida”

pela qual “[...] Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser

criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total”.

Ou seja, a concessão de benefícios e serviços pela seguridade social, e,

mais precisamente, pela previdência social, deverá manter, adredemente relaci-

onado, um custeio total, não voltado a cada uma das prestações como se fosse

um “regime de caixa” ou de “capitalização”, mas um custeio ou financiamento

suficiente para atender a todas as contingências sociais que serão protegidas

pela previdência social.

Nesse sentido, também é verdadeira a dedução contrario sensu de que

não poderá haver incremento de financiamento e custeio se isso não se reverter

na criação, majoração ou ampliação dos benefícios e serviços ofertados pela

previdência social, e também pela seguridade social.

Já o equilíbrio atuarial é o dado concreto que determina qual será a

abrangência da proteção social a ser oferecida, e, conseqüentemente, qual de-

verá ser a fonte de custeio total necessária para arcar e suportar as despesas e

a prestação dos benefícios e serviços pela previdência social.

Esse dado é obtido pela ciência atuarial, que lança mão de vários elemen-

tos objetivos, como elementos estatísticos, demográficos, populacionais e outros

que se sobrepõem um ao outro, apresentando um panorama social fecundo

para a previsão dos níveis de proteção que poderão atender às contingências

sociais que se apresentarem na sociedade durante determinado período de

tempo, segundo o horizonte do desenvolvimento e do crescimento da população.

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Todas essas características servem para estruturar aquilo que a previ-

dência, efetivamente, tem a oferecer como meio instrumental de proteção social,

que no mesmo artigo 201, em sua parte final, faz menção à expressão “atendi-

mento” dirigida a determinados fatos já convencionados de bens protegidos,

conforme os termos da lei:

Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de

regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, ob-

servados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial,

e atenderá, nos termos da lei, a:

I – cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade

avançada;

II – proteção à maternidade, especialmente à gestante;

III – proteção ao trabalhador em situação de desemprego

involuntário;

IV – salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos

segurados de baixa renda;

V – pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao côn-

juge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no

§ 2o.

Estes são os bens a ser protegidos pela seguridade social, pois ofere-

cem risco social à sociedade considerada como um todo, na expressão de cada

um dos indivíduos que estão sujeitos a suas ocorrências e seu enfrentamento.

Para cada um desses bens protegidos haverá uma correspondente pres-

tação, seja por meio da concessão de benefícios (prestações cujo conteúdo é

uma obrigação de pagar), seja por meio do oferecimento de serviços (cujo

conteúdo é uma obrigação de fazer).

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Vale dizer que a Previdência Social é organizada e disciplinada pelas

Leis ns. 8.212 e 8.213, ambas vigentes a partir de julho de 1991, cujas regras e

mandamentos serão oportunamente debatidos neste trabalho.

3.2 ASSISTÊNCIA SOCIAL

Outra forma de atuação da seguridade social é o chamado serviço pú-

blico da assistência social.

Pela Constituição Federal de 1988, precisamente no artigo 203, caput,

está a delimitação essencial da abrangência da assistência social, que de forma

genérica contenta-se pela hipótese de atendimento a quem dela necessitar.

Mas, na conjugação dos incisos que sucedem a previsão do caput, há,

daí sim, a previsão das finalidades da assistência social como meio de proteção

social, pelo qual:

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessi-

tar, independentemente de contribuição à seguridade social, e

tem por objetivos:

I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência

e à velhice;

II – o amparo às crianças e adolescentes carentes;

III – a promoção da integração ao mercado de trabalho;

IV – a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de defi-

ciência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pes-

soa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não pos-

suir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida

por sua família, conforme dispuser a lei.

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Verifica-se, portanto, que a assistência social traduz a vontade da socie-

dade de manter, quando necessário, uma atuação assistencial, gratuita e geral

como ferramenta da manutenção dos níveis mínimos de condições de vida dig-

na, de desenvolvimento humano e consecução da justiça e do bem-estar soci-

ais, que foram reportados no início deste trabalho.

Ou como bem definiu Jose Manuel Almansa Pastor:8

[...] sla assistencia no es más que el instrumento protector de que

se vale la sociedad para remediar y proteger contra la indigencia.

Mas com la notoria particularidad de que, em su prístina acepción,

se dirige rectamente a subvenir contra los estados de privación o

necessidad en que la indigência consiste y no a remediar ex ori-

gine los motivos que la provocam. [...]

A assistência social está disciplinada no ordenamento jurídico brasileiro,

principalmente, pela Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993, a chamada Lei

Orgânica da Assistência Social.

Como subterfúgio didático, e para a proficiente adequação do tema des-

te trabalho, evitando, assim, ilações prolixas sobre temas tão fecundos e fartos

como este, dignos de teses e estudos muito mais aprofundados, este item será

desenvolvido nestes breves apontamentos.

3.3 SAÚDE

E como terceiro vértice da seguridade social, emergem os serviços pú-

blicos da saúde, que têm como proposição o atendimento das contingências

sociais enfrentadas no aspecto específico da saúde dos membros da socie-

8 PASTOR, Jose Manuel Almansa. Derecho de la seguridad social, p. 34.

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dade, conforme se depreende do artigo 196 da Constituição Federal de 1988,

pelo qual:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido

mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do

risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e

igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e

recuperação.

Pela previsão constitucional a saúde é mais que uma contingência so-

cial, expandindo seus efeitos a todos os membros da sociedade como sendo

um direito universal, cujo encargo e dever estão decididamente vinculados à

atuação estatal, que se manifestará pelo oferecimento e atendimento de políti-

cas sociais e econômicas, tendo por objetivos principais a prevenção e o trata-

mento de doenças e outras mazelas que afetem de forma determinante fato-

res que compreendem desde a alimentação, passando pelo meio ambiente,

pelo trabalho e pelo lazer da população.

A saúde como serviço organizado e estruturado na forma de um sistema

único corresponde ao conjunto de ações e serviços prestados por órgãos e

instituições federais, estaduais e municipais, em todos os níveis da adminis-

tração direta ou indireta e das fundações mantidas pelo poder público, chamado

de Sistema Único de Saúde.

Tal sistema de saúde é disciplinado e normatizado pela Lei n. 8.080, de

19 de setembro de 1990, que dispõe sobre as condições para a promoção,

proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos servi-

ços correspondentes como instrumento de proteção social, que se manifesta

como um direito fundamental do ser humano e, por isso, encontra total legi-

timação no ideário da justiça e do bem-estar social como o caminho necessá-

rio para o desenvolvimento humano e pessoal dos indivíduos que compõem

uma sociedade civilizada e democrática.

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CAPÍTULO 4

BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS

4.1 CONFORMAÇÃO CONCEITUAL

Na trilha da sistematização que este trabalho pretende seguir como um

processo dedutivo até alcançar o tema principal, há, neste momento, a

especificação necessária para o desafio de compreender como a previdência

social, mecanismo que está inserido num conjunto mais abrangente chamado

Sistema de Seguridade Social, instrumentaliza a proteção social que pretende

garantir a segurança e a estabilidade dos indivíduos que compõem a sociedade.

Por isso que, dentro da previdência social, foram mencionadas duas

formas básicas para o atendimento dessas finalidades, que são as prestações

chamadas benefícios e os serviços.

Para manter a justa delimitação do tema, ainda, há que se fazer uma

limitação perfunctória nesta matéria, porque os serviços, prestações de nature-

za obrigacional, cujo conteúdo encerra uma obrigação de fazer e que junto com

os benefícios fazem parte do instrumental protetivo da previdência social, serão

deixados a contento pela conceituação já referida, uma vez que sua plenitude

não seria tratada de maneira condizente com sua importância na ordem social.

Então, especificamente, emerge a questão dos benefícios em matéria

de previdência social, que será o próximo ponto a ser debatido.

Sua compreensão, ainda genérica, partirá da idéia da relação jurídica,

definindo elementos estruturais, como a materialidade, os sujeitos e o objeto,

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tradicionalmente, como se faz na análise das relações jurídicas desde os

primórdios do estudo do Direito, porque essa metodologia deverá satisfazer o

entendimento do tema.

4.2 RELAÇÃO JURÍDICA DOS BENEFÍCIOS

Os benefícios são os instrumentos pelos quais a seguridade social, em

sua manifestação pela previdência social, realiza, pratica e torna efetiva a pro-

teção social para os entes protegidos, e, assim, garante que a ordem social e

os valores da justiça, do bem-estar e da igualdade estejam incólumes, ou pelo

menos previdentes quando as situações de necessidade surgirem diante de

cada um dos indivíduos que compõem a sociedade.

Em verdade, os benefícios são verdadeiras prestações, e como presta-

ções envolvem uma série de características que são fundamentais para sua

composição e para sua efetiva materialização no mundo da vida.

Portanto, os benefícios existem no mundo da vida, no mundo dos fatos,

e são institutos que nascem a partir dos fatos da vida.

Superada a diferenciação de fato naturais e fatos jurídicos, sendo certo

que o fato natural, quando ganha a autenticação da lei ou quando repercute

em efeitos concretos que têm relevância econômica ou social, então passa a

ser tomado por fato jurídico, na apropriada conceituação que se depreende do

Direito privado.

Os fatos, tidos por fatos sociais, e que se manifestam no seio da socie-

dade, representam as situações da vida que geram efeitos, cujos reflexos são

escolhidos pelo Direito como sendo reflexos que merecem determinados

regramentos, para que eles sejam absorvidos pela sociedade como reflexos e

conseqüências toleráveis, suportáveis, solúveis e factíveis, afastando a inse-

gurança e a instabilidade social que surgiria se essas conseqüências não re-

cebessem o amplexo jurídico.

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Por fatos sociais, e, portanto, por situações que geram conseqüências

sociais, temos, muitas vezes, determinadas situações cujas conseqüências e

efeitos na sociedade são ou devem ser repelidas como forma de garantir a

manutenção da ordem social.

Tais situações foram chamadas de situações de necessidade, que, em

sua iminência, são tidas por riscos sociais, cujo conceito já fora definido e

discutido anteriormente.

Mas esses fatos sociais, essas situações de necessidade não se con-

cretizam naturalmente, ou, melhor, não se materializam sem o envolvimento

daqueles estão diretamente envolvidos com suas conseqüências, que são os

sujeitos, o indivíduos.

Os sujeitos como agentes ou como receptores dos fatos sociais, esta-

belecem vínculos. Sejam vínculos que unem sujeitos com sujeitos, ou sujeitos

com os fatos da vida (também tidos por objetos), e sujeitos com a própria

natureza em si.

Quando essas relações ganham a proteção, o regramento e a discipli-

na do Direito, pois, como foi ressalvado, geram reflexos na sociedade que

devem ser absorvidos de maneira a mais condizente possível para os fins da

ordem social, então, são chamadas de relações jurídicas.

Ora, se os benefícios são o instrumento para garantir proteção social

quando da ocorrência de determinadas situações que, por sua vez, geram ne-

cessidades sociais aos sujeitos que a ela se submeterem, então, os benefícios

são verdadeiramente uma prestação dentro de uma relação jurídica bem delimi-

tada, que é a relação havida entre o sujeito, o indivíduo que sofre os efeitos da

situação social, cuja proteção e atendimento ficou a cargo e responsabilidade

de outro sujeito, a seguridade social, e nesta especificidade a previdência social.

Quer dizer, entre o sujeito protegido e a previdência social é formada

uma relação jurídica que tem como prestação um benefício, portanto, um be-

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nefício previdenciário, cujo conteúdo e características serão a seguir estudados,

segundo seus elementos principais, que correspondem à sua materialidade,

aos sujeitos e ainda ao seu objeto.

4.3 MATERIALIDADE

A materialidade dos benefícios previdenciários confunde-se com a própria

situação social a ser protegida, ou seja, a materialidade é a conseqüência con-

creta e material do fato social e juridicamente relevante que gera repercussões

na ordem social, causando, primeiro, risco social, e depois necessidade social.

Portanto, o conteúdo material, concreto e fático na relação jurídica dos

benefícios previdenciários pode ser identificado por materialidade.

Na atuação da previdência social, como já foi visto, há uma série de

situações, aqui chamadas de bens protegidos, que foram escolhidas pelo le-

gislador e indiretamente pela própria sociedade democrática como sendo as

situações relevantes para o atendimento do sistema protetivo, quando elas

ocorrerem, porque em todas elas há o elemento risco envolvido, risco social,

que se operante na sociedade gera uma série de conseqüências nefastas,

ameaçadoras e inseguras para a manutenção da ordem social, e, conseqüen-

temente, para a consecução dos fins essenciais da sociedade.

Como foi identificado no item referente à previdência social, a materia-

lidade dos benefícios são as situações definidas nos incisos do artigo 201, da

Constituição Federal de 1988, que foram identificados pelas situações, ou como

constou do texto da Lei Maior, pelo eventos de doença, invalidez, morte e ida-

de avançada (inciso I e V), maternidade (inciso II); desemprego involuntário

(inciso III) e as situações decorrentes da responsabilidade pela família em caso

de baixa renda ou reclusão (inciso IV).

Cada uma dessas situações e outras que porventura forem identificadas

pela lei como situações que merecem a proteção social, segundo inclusive o

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horizonte programático dos Princípios da Seguridade Social, especialmente

da universalidade da cobertura e do atendimento, serão tidos, na relação jurí-

dica de benefícios previdenciários, seu aspecto material, sua materialidade.

A materialidade de um benefício é sua própria razão de ser, é sua jus-

tificativa, é o motivo pelo qual os efeitos dessa relação jurídica de proteção

social se legitimam, e é também seu elemento teleológico, ou seja, é para

atender à finalidade dessas situações que os benefícios previdenciários en-

contram guarida para sua existência e efetiva aplicabilidade no mundo jurídico.

Vale notar que a eficácia dos benefícios previdenciários como instru-

mento de proteção social para as situações de necessidade será mais contun-

dente se, para cada uma dessas situações materiais identificada na Lei Maior,

houver a previsão e a prestação de um benefício específico, deveras, pela

própria especificidade de cada uma dessas situações que geram conseqüên-

cias muito distintas para os sujeitos e entes protegidos, e que só alcançarão

seus fins sociais, ou, em outras palavras, só serão perfeitamente protegidas e

sanadas, se lhes for conferida a justa e necessária prestação protetiva.

Tanto é que a Lei n. 8.213/91 trouxe um rol bem delimitado de benefícios

a ser prestados em favor dos sujeitos protegidos, o que fica bastante claro

pela enunciação do artigo 18:

Art. 18. O Regime Geral de Previdência Social compreende as

seguintes prestações, devidas inclusive em razão de eventos

decorrentes de acidentes do trabalho, expressas em benefícios e

serviços:

I – quanto ao segurado:

a) aposentadoria por invalidez;

b) aposentadoria por idade;

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c) aposentadoria por tempo de serviço;9

d) aposentadoria especial;

e) auxílio-doença;

f) salário-família;

g) salário-maternidade;

h) auxílio-acidente;

II – quanto ao dependente:

a) pensão por morte;

b) auxílio-reclusão;

[...]

Cada um desses benefícios identificados têm implícita em sua mate-

rialidade uma das causas, ou situações de necessidade, que foram adredemente

escolhidas, conforme aplicação do noticiado princípio da seletividade e

distributividade, pelo legislador constituinte.

4.4 SUJEITOS

Nesta relação jurídica do benefício previdenciário, como em qualquer

outra relação jurídica, há o elemento subjetivo que é o elemento pessoal, ou

seja, o elemento identificador daqueles que são os sujeitos entre os quais se

opera a relação jurídica, e que atuaram ou sofreram no mundo da vida, confor-

me lhes seja referido o objeto.

9 Vide nota de André Oliveira. In: Legislação previdenciária. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,

2004, p. 88: “Com o advento da EC 20/98 a aposentadoria por tempo de serviço, inclusive

a proporcional, fora expurgada do Texto Constitucional vigente, tendo sido substituída

pela aposentadoria por tempo de contribuição, devida após o período de 35 anos, para

homens, e de 30 anos, para as mulheres, consistindo a renda mensal em 100% (cem por

cento) do salário de benefício”.

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Se o sujeito atuar positivamente na relação, sendo o agente da ação, e,

portanto, aquele que pode exigir o efeito ou a prestação do objeto, então ele

será intitulado sujeito ativo, porque a atuação, a atividade, a ação lhe confere

direitos em relação ao outro sujeito.

Como sujeito ativo, pode ainda, caso o conteúdo da prestação tenha

aspecto obrigacional, notadamente com representatividade pecuniária, ser de-

nominado credor, pois sua atuação corresponde ao direito subjetivo de exigir

em detrimento do outro um legítimo direito de pretensão sobre o objeto que

deve ser incorporado ao âmbito pessoal e individual no mundo jurídico.

Por outro lado, e para complementar a idéia da relação jurídica, como

um vínculo entre sujeitos de direitos (excetuada a relação do sujeito com o

objeto), há o sujeito passivo, ou seja, que deve arcar com a prestação de deter-

minado objeto em favor do sujeito ativo, ou seja, sobre o sujeito passivo recai

a obrigação específica de atender à exigência e ao direito do sujeito ativo.

Do mesmo modo, quando a prestação tiver caráter obrigacional de natu-

reza pecuniária, o sujeito passivo pode ser chamado de devedor, como quem

deve prestar determinado objeto para satisfazer o direito de outro, liberando-se,

ele devedor, da obrigação que lhe competia na relação estabelecida entre ambos.

Na relação jurídica dos benefícios previdenciários também há a

vinculação entre dois sujeitos, o sujeito ativo, que são os entes protegidos, os

indivíduos selecionados pela lei para receber a prestação protetiva, e como

sujeito passivo a previdência, que tem o dever de prestar o instrumento protetivo,

neste mister, o beneficio previdenciário ao sujeito ativo.

A previdência social, sob o regime geral, já fora tratada em item pró-

prio, bastando, que lhe seja relembrada sua natureza institucional, como serviço

público devidamente instituído por lei, organizado segundo normas específi-

cas, estruturado e gerido de acordo com os aspectos democrático e descen-

tralizado, referidos no VII do artigo 194 da Constituição Federal, e ainda disci-

plinada a partir do artigo 201 da mesma Magna Carta e por suas leis orgânicas,

Leis ns. 8.212 e 8.213, ambas de 1991.

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Resta proficiente, nesta altura do trabalho, a perfeita compreensão dos

sujeitos ativos, os sujeitos de direito, os entes protegidos na relação jurídica

de benefícios previdenciários que foram nomeados pela lei por “beneficiários”.

4.4.1 Beneficiários

O artigo 10 da Lei n. 8.213/91 classifica:

Art. 10. Os beneficiários do Regime Geral de Previdência Social

classificam-se como segurados e dependentes, nos termos das

Seções I e II deste Capítulo.

Desde já, os beneficiários, gênero de sujeitos de direitos, que foram

anunciados neste trabalho como sendo os sujeitos ativos na relação jurídica

de benefícios previdenciários, em favor dos quais serão prestados os instru-

mentos de proteção social chamados benefícios (e/ou serviços, quando for o

caso), foram classificados e divididos pela lei entre duas espécies de sujeitos,

como segurados e dependentes.

Os segurados são os sujeitos ativos principais na relação jurídica de

benefícios previdenciários, pois são eles que mantém a relação jurídica propri-

amente dita com a entidade, e sujeito passivo, Previdência Social.

Esta relação entre segurados e previdência social, como já foi estuda-

do, nasce a partir da idéia da solidariedade, que legitima a participação de

todos os membros da sociedade na composição da seguridade social, para

garantir que a sociedade seja devidamente protegida quando seus membros,

individual ou coletivamente considerados, estejam em situação de necessidade.

Especificamente, por segurados, como se verá, estão os “atores sociais”

trabalhadores, por quem, todo o Sistema de Previdência Social pretende ga-

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rantir os níveis mínimos, essenciais e necessários para a sobrevivência digna,

e, mais que isso, para manter como primado, como valor fundamental da socie-

dade a questão do trabalho.

Portanto, o segurado tem por sua quota de participação não somente o

dever de financiar o sistema de seguridade, e, pelo regime contributivo, a pre-

vidência social, mas tem o direito de exigir que, na qualidade de trabalhador,

lhe sejam prestados os benefícios e serviços que o instrumental protetivo da

previdência social ofereça, como já fora apontado no item da materialidade.

O segurado exerce essa qualidade pela filiação obrigatória que é es-

sencialmente a própria relação jurídica estabelecida com a previdência social,

que o faz sujeito de direitos e obrigações apto a exercer um e outro diante da

Previdência Social, seja exigindo a prestação de benefícios e serviços como

seus direitos, seja oferecendo e vertendo os tributos denominados contribui-

ções sociais para financiamento da seguridade social, e da previdência social,

como sua obrigação principal.

A filiação, verdadeira relação jurídica, deve ser formalizada pela inscrição

do segurado no Regime Geral da Previdência Social, e segue os moldes e as

condições do artigo 17 e seguintes da Lei n. 8.213, que alude ao regulamento

vigente, no caso o Decreto n. 3.048, de 1999.

Os segurados foram, ainda, heterogeneamente considerados, distin-

guidos entre segurados obrigatórios e segurados facultativos, que serão trata-

dos a seguir.

4.4.2 Segurados obrigatórios

Os segurados obrigatórios são as pessoas físicas identificadas no artigo

11 da Lei n. 8.213/91.

Muito mais relevante do que apontar um a um quais são os segurados

obrigatórios identificados pela lei será a consideração do aspecto obrigatório

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que os faz manter, portanto, obrigatoriamente a relação jurídica com a previ-

dência social.

De maneira didática, conforme o artigo 11 aqui mencionado, os segura-

dos obrigatórios são os empregados efetivos e temporários (inciso I), os em-

pregados domésticos (inciso II), o contribuinte individual (inciso V), o trabalha-

dor avulso (inciso VI) e o segurado especial (inciso VII), cada qual regido de

acordo com as regras que disciplinam suas atividades.

Seria dispendioso e obtuso para o desenvolvimento regular e rítmico

deste trabalho (ainda que salutar) o desenvolvimento sistemático das caracte-

rísticas que cada uma dessas categorias mantém no exercício de suas

atividades.

O que mais interessa, em verdade, é o traço comum entre os segura-

dos obrigatórios, que, aliás, os faz, inclusive, obrigatórios na vinculação com a

previdência social.

O traço comum entre todos os segurados obrigatórios é o exercício de

uma atividade laboral.

Se a sociedade brasileira, em sua ordem social, tem como primado o

trabalho, tal fato reluz como um dado fundamental para o desenvolvimento da

sociedade, e, mais que isso, o trabalho como valor fundamental de uma socie-

dade civilizada e democrática é a condição essencial para que, individual-

mente, cada membro da sociedade conquiste a própria dignidade e possa se

desenvolver como ser humano, repercutindo diretamente por toda a socieda-

de, que terá incorporado os efeitos da justiça e do bem-estar sociais.

O que já asseverava o douto mestre Wagner Balera:10

10 BALERA, Wagner. O valor social do trabalho, Revista LTr, n. 10, v. 58, 1994.

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Constituindo, para o homem, verdadeiro valor moral, o trabalho

adquire conteúdo e significado que não se reduz à simples ex-

pressão monetária da respectiva retribuição.

Neste diapasão, o trabalho é o dado essencial que permite estabelecer

um critério razoável, justo e legítimo para a prestação de determinados instru-

mentos de proteção social, como os benefícios e serviços da previdência social,

pois, com o fim último de preservar o primado do trabalho é que toda a orla da

seguridade social é organizada, concebida, e oferecida em forma dos serviços

da previdência social, da assistência e da saúde.

É, pois, em razão do trabalho que a previdência social revela sua fina-

lidade mais importante, porque é para garantir que o trabalho como valor, como

primado da sociedade seja preservado, ou, se assim não for possível pela

inserção maléfica e ameaçadora dos riscos sociais, que, então seja substituí-

do por medidas e instrumentos que possam oferecer as mesmas vantagens

que o trabalho oferece, isto é, oferecer aos sujeitos protegidos, beneficiários,

aquilo que é a contraprestação direta pelo exercício do trabalho, a remuneração.

Quando a previdência social elege como segurados obrigatórios os

trabalhadores identificados aqui, sendo comum entre eles o fato de exerce-

rem atividades laborais, quer a previdência social garantir pela prestação de

benefícios e serviços que esses mesmos segurados estejam protegidos

quando, em razão dos riscos sociais ou das situações de necessidade (con-

seqüências sobre os bens protegidos), seus trabalhos sejam ameaçados,

tolhidos, sacrificados ou preteridos pela ocorrência de eventos naturais, eco-

nômicos ou sociais.

Os segurados obrigatórios são, por essas razões, obrigatoriamente con-

vocados a participar da previdência social, como sujeitos de direito, exercendo

direitos e obrigações.

Daí que suas filiações decorrem da lei, da compulsoriedade da lei que

exige a efetiva vinculação desses sujeitos ao Regime Geral de Previdência Social.

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4.4.3 Segurados facultativos

Já os segurados facultativos, conforme disposição do artigo 13 da Lei

n. 8.213/91, foram especificados como:

Art. 13. É segurado facultativo o maior de 16 (dezesseis) anos11

que se filiar ao Regime Geral de Previdência Social, mediante con-

tribuição, desde que não incluídos nas disposições do artigo 11.

Nesta disposição está refletida com propriedade o princípio da univer-

salidade da cobertura e do atendimento, porque amplia o atendimento aos

sujeitos de direito que, pela razão que for, independentemente do exercício de

atividades laborais como os segurados obrigatórios, pretendem por ato volitivo

fazer parte dos auspícios da previdência social sob o vestuário de segurados,

e, portanto, são detentores de direitos e obrigações na forma da lei.

Reza clarividente no artigo 13 que a qualidade de segurado facultativo,

faculdade espontânea e volitiva que se afigura, depende da contribuição obri-

gatória, ou seja, da prestação contributiva exigida dos outros partícipes da

previdência social, como corolário fundamental do regime, que contemporiza

os direitos aos benefícios e serviços a partir da contrapartida do dever de fi-

nanciar o sistema previdenciário.

A dedução óbvia desta regra é que, interrompida a participação do

segurado facultativo na forma de relação de contribuição e financiamento, ou

seja, contribuindo por meio de tributos (especificamente para a previdência

social – contribuições sociais), a justificativa que o mantém vinculado à previ-

dência social deixa de existir e sua qualidade de segurado ou sujeito de direitos

previdenciários também.

11 Em razão da Emenda Constitucional n. 20/98, a idade mínima passou a ser de 16 anos,

alterando, tacitamente, a redação desse dispositivo, pela modificação a que foi submetida

o art. 7°, inciso XXXIII, da Constituição Federal de 1988.

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4.4.4 Dependentes

Pela classificação oferecida pelo citado artigo 10 da Lei n. 8.213/91,

há, também, além dos segurados obrigatórios e facultativos, os chamados “de-

pendentes” como sendo a outra espécie do gênero beneficiário.

A existência dessa figura jurídica, revestida de direitos perante a previ-

dência social, tem sua relevância e propósito na relação parental mantida com

os segurados.

Quando a seguridade social, também manifestada pela previdência

social, visa atender aos entes protegidos, para lhes oferecer um instrumental

eficiente contra a sujeição aos riscos sociais e às situações de necessidade

que comprometem a ordem social, tal proteção engloba, também, aqueles que

são os primeiros a sofrer sas mazelas e infortúnios do incidentes sobre os

indivíduos, que são seus parentes, seus familiares e as pessoas, que, de algu-

ma forma, estão vivendo sob seus auspícios, responsabilidade e proteção.

O aspecto familiar é absolutamente privilegiado pela ordem social, tan-

to que, na Constituição Federal de 1988, inserido no Título da Ordem Social,

há o Capítulo VII, cuja regra matriz é o artigo 226:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do

Estado.

Os dependentes mantêm com os segurados a basilar relação familiar

com os segurados, cuja reverência tem status constitucional para o pleno de-

senvolvimento da sociedade brasileira e merece a proteção do Estado.

Ora, é exatamente por sua importância social que a relação familiar,

tratada não só pela relação sanguínea e parental, mas concebida na previdência

social como uma relação de dependência entre dois indivíduos, um eleito como

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segurado e o outro que mantém com esse segurado um vínculo econômico im-

prescindível para sua sobrevivência e pleno desenvolvimento humano.

Sobre essa dependência, e segundo esse prisma econômico que a lei

reputou como necessário, a consideração de que a dependência é também um

bem a ser protegido, porque, inadvertidamente frustrada ou ameaçada, repre-

sentará uma situação de necessidade e, como tal, justificadora da proteção ofere-

cida pelo instrumental da previdência social.

Oportuna a consideração exegeta do brilhante Professor Wagner

Balera,12 de que:

A dependência é, na relação de seguridade, fato econômico a

que as normas conferem relevância jurídica e, nessa medida,

merece ser considerada.

Ao identificar, na dependência econômica, a situação de neces-

sidade, o ordenamento jurídico cuida de conferir cobertura ao

dependente que, em certas e determinadas circunstâncias, se

verá investido da qualidade de sujeito de direitos previdenciários.

Assim, resultaram da Lei n. 8.213/91, no artigo 16 e incisos, os sujeitos

definidos, taxativamente, como dependentes dos segurados, sendo: o cônju-

ge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer con-

dição, menor de 21 anos ou inválido (inciso I); os pais (inciso II); e o irmão não

emancipado, de qualquer condição, menor de 21 anos ou inválido (inciso III).

Ainda sobre os dependentes, a legislação previdenciária estabeleceu

uma série de regras para disciplinar a ordem de preferência e as regras para

fruição dos benefícios e serviços destinados aos dependentes, de forma que

12 BALERA, Wagner. Da proteção social à família. Revista do Instituto dos Advogados, n. 7,

Legislação Comentada, p. 222.

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sejam prestigiados os dependentes efetivamente afetados pela situação de

necessidade enfrentada pelo segurado, e também porque a proteção indis-

criminada de todos eles poderia repercutir negativamente no equilíbrio finan-

ceiro e atuarial da previdência social.

Os dependentes definidos pela lei, conforme aqui explicitado, devem, tam-

bém efetivar suas inscrições no Regime Geral da Seguridade Social, conforme

as regras do mencionado artigo 17 da Lei n. 8.213/91 e do Decreto n. 3.048/99.

Cumpre aqui, novamente, por precaução de exegese e primor científico,

não estender em muito as considerações sobre os dependentes, bem como

sobre os segurados, pois ainda no horizonte uma série de portentosos

enfrentamentos conceituais, sistemáticos, legais e doutrinários a ser revelados,

que exigem do trabalho o respeito à delimitação do tema proposto.

4.5 OBJETO

Se a relação jurídica de benefícios previdenciários se estabelece entre

dois sujeitos de direito que mantêm um vínculo entre si, pelo qual um confere

ao outro determinada prestação ora como forma de benefícios, ora como for-

ma de serviços, imperioso que se analise o que é transmitido de um sujeito a

outro, isto é, qual a efetiva prestação que o sujeito passivo deve oferecer ao

sujeito ativo, e que na relação jurídica de benefícios previdenciários, já conce-

bida, corresponde à prestação que a previdência social concede e instru-

mentaliza em favor do segurado ou do dependente que fizer jus àquela deter-

minada prestação, ou, mais especificamente, àquele benefício previdenciário.

Este elemento chamado prestação é o que se convencionou adotar

como o objeto de uma dada relação jurídica, pois é o objeto o elemento

“transeunte”, a coisa oferecida, o bem prestado pelo sujeito que tem o dever

de prestar para aquele sujeito que tem o direito de exigir.

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A relação jurídica de benefício previdenciário corresponde exatamente

ao modelo tradicionalmente concebido para as relações jurídicas de conteúdo

geral, pois também, como já se viu, mantém o vínculo entre dois sujeitos ligados

pela obrigação de um em prestar determinado objeto ao outro que tem o poder

de, assim, exigi-lo, caso não lhe seja ofertado.

No campo de atuação da previdência social, duas são as formas de

prestação como modelos instrumentais de atuação com fim de garantir a pro-

teção social nas situações de necessidade que se apresentarem aos entes

protegidos, os sujeitos segurados e dependentes.

A prestação previdenciária, como objeto na relação jurídica previden-

ciária, poderá ser representada por uma obrigação de dar (dare) ou poderá ser

representada por uma obrigação de fazer (facere), segundo o conteúdo da

obrigação corresponda, respectivamente, à entrega ou dação de determinada

coisa, ou corresponda à realização de determinado fato.

Quando a prestação previdenciária for uma obrigação de dar o instru-

mento ofertado pela previdência social será chamado de “benefício”, e quando

for uma obrigação de fazer será denominado “serviço”.

Como se pretende focar o resultado deste estudo na análise da relação

jurídica de benefícios previdenciários, a análise perfunctória dos chamados “ser-

viços” será conscientemente olvidada, para centralizar a exegese no instrumento

“benefício”.

4.5.1 Prestação

A prestação consistente na obrigação de dar (dare) intitulada e deno-

minada “benefício” é o objeto da relação jurídica estabelecida entre o sujeito

passivo (previdência social) e o sujeito ativo (segurados ou dependentes).

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Bem lembrado também por Mattia Persiani:13

Le prestazioni previdenziali consistono nello svolgimento di

un’attività positiva di dare o di fare e sono determinate dalla legge,

in relazione ad ogni singolo evento protetto. Le prestazioni possono

essere economiche, cioè constituite da uma indennità in denaro,

oppure sanitarie, comprendenti de solito l’assistenza medico-

chirurgica, le prestazioni ambulatoriali, il riconovero in casa di cura,

la somministrazione de medicinali, e la fornitura di apparecchi di

protesi e di presidi terapeutici.

Mas o benefício previdenciário atua como uma prestação instrumental

que tem como objetivo sanar, remediar e proteger os segurados e os dependen-

tes quando estes sofrerem os efeitos e as conseqüências dos riscos sociais ou

das situações de necessidade que se apresentarem no mundo da vida, efetiva-

mente, ameaçadores e comprometedores do exercício de individualidade, seja

pela manifestação do trabalho, seja pela garantia de condições mínimas de so-

brevivência, seja, ainda, pela manutenção de uma vida digna.

Sendo assim, tanto mais eficaz será a proteção oferecida pela presta-

ção do benefício quanto maior for a possibilidade de absorção, enfrentamento

e reação contra as conseqüências das situações de necessidades, ou seja, o

benefício deverá representar um meio, um instrumento eficiente, útil, versátil e

flexível para que os segurados e dependentes possam reagir positivamente

em busca do restabelecimento de seus status quo ante, verificado pela norma-

lização do exercício de seus direitos e prerrogativas fundamentais.

Com essas características, a melhor prestação é uma prestação que

tenha conteúdo pecuniário, pois, em pecúnia, em moeda, ou cujo valor nela se

possa exprimir, os sujeitos poderão dispor e fruir da prestação da melhor maneira

13 PERSIANI, Mattia. Diritto della previdenza sociale. Manuali di scienze giuridiche. Padova:

Cedam, p. 96.

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que lhes aprouver, segundo suas prioridades na condução das soluções que

se lhes apresentem para o exercício social e individual de suas vidas.

Ainda sobre a vantagem do aspecto pecuniário, acuradamente, segue

Mattia Persiani:14

Questa funzione, infine, risulta anche dal fatto che, mediante

l’istituto delle revision, le prestazioni previdenziali sono adeguate

allo stato de bisogno anche nel tempo.

Daí que a prestação dos benefícios previdenciários, mais do que uma

obrigação de dar, é uma obrigação de pagar.

4.5.2 Obrigação de pagar

A obrigação de pagar é em curta definição um pagamento.

Se, portanto, o benefício previdenciário é o objeto da relação jurídica

previdenciária prestado pela previdência social em favor dos segurados e de-

pendentes, cujo conteúdo é uma obrigação de pagar, então, o benefício previ-

denciário é, antes de tudo, um pagamento.

O pagamento é uma das obrigações mais fundamentais e primordiais

na sociedade civilizada, desde que, historicamente, um indivíduo oferecia uma

determinada res a outro, em troca de alguma outra res que lhe interessasse,

numa clara relação social de cooperação, mutualismo e sobrevivência.

Como pagamento, já consagrado em outros ramos da ciência jurídica,

em especial no Direito Civil, para ser tido como uma prestação efetiva, ele

14 PERSIANI, Mattia. Op. cit., p. 97.

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deve conter determinadas características próprias que delimitam, especificam

e concretizam sua eficácia.

Tais elementos são aqueles que se verificam pelos aspectos temporais,

espaciais e quantitativos, pois, esses aspectos são estruturais e fornecem todos

os dados necessários para que o pagamento repercuta nos efeitos jurídicos que

lhe são esperados.

4.5.3 Elementos característicos

Como foi apontado antes, o pagamento do benefício previdenciário de-

verá conter determinados elementos estruturais que podem ser convencionados

e compreendidos pelo tempo do pagamento, pelo lugar do pagamento e pelo

valor do pagamento.

Assim, os benefícios previdenciários serão analisados por esses as-

pectos conforme as definições que lhes foram outorgadas pelo ordenamento

jurídico pátrio, em nota, a Lei n. 8.213/91.

4.5.3.1 Tempo do pagamento

O benefício previdenciário como pagamento deverá ser prestado em

determinado tempo, segundo os critérios próprios determinados pela lei que os

estabelecer, neste caso, pela Lei n. 8.213/91, mas, como cada benefício

previdenciário atende a uma determinada contingência, isto é, atende a uma

determinada situação de necessidade, o tempo de pagamento desses benefícios

previdenciários, cujo rol ofertado pela legislação previdenciária brasileira já foi

mencionado, variará conforme se esteja diante de um determinado benefício.

A qualidade variável do tempo de pagamento do benefício previdenciário

ocorre porque cada bem protegido pelo benefício, sejam os eventos definidos

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no artigo 201 da Constituição Federal, sejam quaisquer outros bens juridica-

mente relevantes para a manutenção da ordem social, têm contingências pró-

prias distintas uma das outras.

Por exemplo, quando a Constituição Federal de 1988 afirma que a previ-

dência social atenderá à proteção ou cobertura dos eventos decorrentes da

doença, a necessidade que surgir do risco social ou da situação da vida que

ameaçar o segurado pelo evento doença ocorrerá no tempo em momento abso-

lutamente distinto do momento em que se efetivar o evento idade avançada.

Quer dizer, para a efetiva proteção do risco doença o tempo do paga-

mento só se mostrará útil e eficaz quando vier e for prestado no momento em

que o segurado sofra a primeira conseqüência dessa contingência, quando,

de outro modo, a conseqüência da idade avançada segue um ritmo de tempo

distinto, porque não se dá por acaso como a doença (na maior parte das ve-

zes), mas se dá pelo envelhecimento, pelo passar do tempo, pela continuida-

de avançada da vida.

Ora, neste exemplo, o tempo do pagamento do benefício que atenda

ao risco social doença é distinto do tempo do benefício previdenciário que

protege a situação da idade avançada.

Portanto, para cada um dos benefícios previdenciários haverá um as-

pecto temporal específico e distinto dos demais, pois sua ocorrência depende-

rá de cada um dos eventos ou situações de necessidade a ser protegidos e

garantidos pela previdência social em favor dos segurados ou dependentes,

conforme o caso, por seus instrumentos protetivos adequados e específicos.

4.5.3.2 Lugar do pagamento

Outro elemento estrutural fundamental para a definição do pagamento,

e, portanto, para a definição do benefício previdenciário é o lugar em que tal

instrumento protetivo será prestado ao segurado ou dependente.

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No aspecto espacial, o pagamento do benefício previdenciário segue a

interpretação sistemática que aborda a previdência social dentro de um sistema

mais amplo que é a seguridade social.

Aqui, a definição do lugar onde o benefício previdenciário será prestado

depende da sistematização da própria previdência social, pois, sendo uma obri-

gação inerente ao campo de atuação desse serviço, tal prestação será efeti-

vamente realizada no espaço e no âmbito em que se estender o instrumental

protetivo da previdência social.

Por conseguinte, é o prisma sistemático que fornecerá o elemento espa-

cial, porque a previdência social se insere e se conforma dentro do Sistema de

Seguridade Social de acordo com a composição estabelecida pela Constituição

Federal de 1988.

Voltando à análise da previdência social como um dos serviços de atua-

ção da seguridade social, basta que se identifique o lugar em que a seguridade

social tem como competência espacial para a consecução de suas finalidades,

que, pela lógica dedutiva, será possível identificar onde ou em que lugar os

benefícios previdenciários serão pagos, sendo eles um dos instrumentos de pro-

teção prestados pela previdência social, e esta, um dos vértices do Sistema de

Seguridade Social.

Como a seguridade social é um sistema, um conjunto integrado de ações

de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, cuja disciplina, organização,

manutenção e atuação é competência atribuída constitucionalmente à União,

como demonstra o artigo 22, inciso XXIII, da Constituição Federal de 1988, quando

trata do poder de legislar, então o ambiente espacial de sua atuação seguirá o

mesmo critério, senão vejamos:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

[...]

XXIII – seguridade social;

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Portanto, se é a União que tem o poder legiferante de estabelecer as

normas, regras e leis que disponham sobre o Sistema da Seguridade Social, por

interpretação sistemática, o âmbito, o ambiente, o lugar em que a seguridade

social estende sua proteção é o espaço da União, ou seja, o território nacional.

Dessa forma, por dedução lógica, o lugar do pagamento dos benefícios

previdenciários será o território nacional, dentro, portanto, dos limites geográ-

ficos que se estendem a soberania nacional brasileira, ou, em outras palavras,

em toda o espaço da República Federativa do Brasil.

Eventualmente, haverá, determinada situação, hipoteticamente prevista

no artigo 11 da Lei n. 8.213/91, em que determinados segurados, embora es-

tejam fora do território nacional, ainda assim, receberão a prestação decorrente

dos benefícios previdenciários, mas, com clareza, que nessas circunstâncias

excepcionais de extraterritorialidade, em verdade, só foram abrangidas como

hipóteses legais porque de maneira ficta o território nacional se estenderia

além dos domínios geográficos, como é o caso dos organismos oficiais brasi-

leiros ou internacionais dos quais o Brasil seja membro efetivo, bem como das

missões diplomáticas ou repartições consulares e diplomáticas brasileiras

sediadas em outras nações.

4.5.3.3 Valor do pagamento

Por fim, o último elemento estrutural a que se denota vetusta importân-

cia na definição do benefício previdenciário como verdadeiro pagamento é o

aspecto quantitativo, isto porque, sendo uma prestação cujo conteúdo é uma

obrigação de pagar, fundamental é a verificação do caráter pecuniário dos

benefícios previdenciários, expresso por um valor monetário, em moeda cor-

rente nacional, que, assim, será materialmente representado.

A questão do valor dos benefícios previdenciários foi debatida nas ques-

tões principiológicas enfrentadas no início deste trabalho, seja pela garantia

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de que o valor dos benefícios será irredutível, seja quando se estabeleceu equi-

valência na prestação dos benefícios entre trabalhadores urbanos e rurais.

Novamente se afigura pertinente a idéia de que o benefício previden-

ciário tem conteúdo pecuniário, e, portanto, tem representação valorativa em

moeda, porque sua intenção como instrumento protetivo é assegurar que os

segurados ou dependentes possam enfrentar as situações de necessidade

(e apesar delas), sem o comprometimento de sua subsistência financeira,

sem o prejuízo de sua liquidez e solvabilidade econômica, ou sem sofrerem

as conseqüências nefastas nas quais, possam incorrer pelo eventual afasta-

mento do trabalho enquanto indivíduos economicamente ativos e capazes

de exercer seus direitos e prerrogativas fundamentais.

Como prestações pecuniárias, os benefícios previdenciários foram com-

preendidos pela lei como uma renda mensal, pois, satisfaz, a contento, as

necessidades de subsistência dos segurados e dependentes enquanto enfren-

tarem as conseqüências dos riscos sociais concretizados no mundo da vida.

Por isso que o artigo 33 da Lei n. 8.213/91 estabelece e conceitua que:

Art. 33. A renda mensal do benefício de prestação continuada

que substituir o salário-de-contribuição ou o rendimento do traba-

lho do segurado não terá valor inferior ao do salário mínimo, nem

superior ao do limite máximo do salário-de-contribuição, ressal-

vado o disposto no artigo 45 desta Lei.

Esta disposição legal traz uma série de informações importantes sobre

o aspecto quantitativo dos benefícios previdenciários.

Primeiro, indica o benefício previdenciário como uma renda mensal, e

como tal, constitui determinado valor pecuniário em forma de renda cuja perio-

dicidade é mensal, isto é, uma fonte de renda oferecida mês a mês, segundo as

regras que lhe disciplinarem.

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Segundo que tais benefícios previdenciários como renda mensal serão,

ainda, tidos por prestações continuadas, quer dizer que duram enquanto dura-

rem as situações de necessidade que legitimem seu oferecimento, que podem

continuar no tempo por prazos indefinidos ou não, conforme a variante fática

em que se instaure a situação de necessidade a ser protegida.

Também, e mais especificamente, o terceiro dado relevante é que o

benefício previdenciário como renda mensal continuada terá o condão, a fina-

lidade precípua, como foi ressalvando anteriormente, de “substituir” o chamado

“salário de contribuição” ou rendimento do trabalho do segurado.

Esta informação é extremamente preciosa, pois comprova a finalidade

e a justificativa principal do caráter pecuniário com que foram concebidos os

benefícios previdenciários, pois sua razão teleológica é substituir o rendimento,

a remuneração ou o valor havido em contraprestação pelo exercício do traba-

lho, tido por primado, é um dos fatos mais relevantes para a manutenção do

desenvolvimento humano com dignidade, liberdade e independência.

E por fim, ainda, a disposição citada acima concebe certos limites quan-

titativos, para determinar que o valor dos benefícios previdenciários como renda

mensal continuada que substitua o rendimento decorrente do trabalho respeite

como limite mínimo o valor do salário mínimo e como limite máximo o valor do

maior valor do salário de contribuição previsto na legislação previdenciária.

Tais limites são convencionados dentre duas poderosas ferramentas

de direitos e garantias fundamentais dos indivíduos.

De um lado a garantia mínima assegurada pelo artigo 6°, em seu inciso

IV, denominado “salário mínimo”, ou, conforme texto constitucional:

Art. 6°

[...]

IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, ca-

paz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua

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família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, ves-

tuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes

periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada

sua vinculação para qualquer fim;

E de outro, como ferramenta para a manutenção do equilíbrio financeiro

e atuarial, salutar para a plena efetividade do Sistema de Seguridade Social, e

também da previdência social, está o salário de contribuição em sua máxima

expressão pecuniária permitida pela lei.

Vale anotar que o salário de contribuição é a convenção legal que

corresponde à base de cálculo, ao valor mensurável sobre o qual incidirá a

contribuição social, tributo destinado a financiar a seguridade social, arrecada-

do compulsoriamente dos partícipes da previdência social (segurados traba-

lhadores) e empresas (ou empregadores). O salário de contribuição definido

no artigo 28 da Lei n. 8.212/91 terá como limite máximo a base monetária

determinada no § 5° do mesmo artigo, com a ressalva de que será reajustado

a partir da entrada em vigor dessa lei indicada, na mesma época e com os

mesmos índices que os do reajustamento dos benefícios de prestação conti-

nuada da previdência social.

Ainda avulta outra questão importante na consideração do valor dos

benefícios previdenciários, que é a forma de cálculo do valor dos benefícios,

tratada a partir do artigo 28, agora da Lei n. 8.213/91, cuja principal estipula-

ção é a criação de um conceito pecuniário que servirá de base de cálculo para

a determinação do valor do benefício previdenciário.

Nesses termos:

Art. 28. O valor do benefício de prestação continuada, inclusive o

regido por norma especial e o decorrente de acidente do traba-

lho, exceto o salário-família e o salário-maternidade, será calcu-

lado com base no salário-de-benefício.

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E na seqüência entabula o artigo 29 da mesma lei que o salário de

benefício consiste, grosso modo, na média aritmética simples dos maiores sa-

lários de contribuição correspondentes a 80% de todo o período contributivo,

devendo, ainda ser multiplicado pelo fator previdenciário,15 quando os benefí-

cios considerados forem a aposentadoria por tempo de contribuição e a apo-

sentadoria por idade.

Regra importante para a definição do valor dos benefícios é § 2° do

mesmo artigo 28 e da mesma Lei de Benefícios, segundo o qual:

Art. 28.

[...]

§ 2° O valor do salário-de-benefício não será inferior ao de um

salário mínimo, nem superior ao do limite máximo do salário-de-

contribuição na data de início do benefício.

Se o teor dos dispositivos previstos no artigo 28 (e sucedâneos) e no

artigo 33 (e sucedâneos), ambos da Lei n. 8.213/91, forem analisados conjunta-

mente, restará definida a questão do valor dos benefícios previdenciários.

Dessa análise conjunta emergem duas questões relevantes, uma de

caráter conceitual e outra de caráter sistemático.

A questão de caráter conceitual se apresenta pela consideração de que

a definição do valor dos benefícios previdenciários, pelo mecanismo financeiro

determinado na base chamada salário de benefício, traz intrinsecamente em

seu bojo estrutural a alusão direta ao valor a ser apurado como salário de contri-

buição, o que, revela, de forma indubitável, a preocupação do legislador pátrio

15 Fator previdenciário é um multiplicador atuarial que leva em consideração as variáveis

idade, expectativa de sobrevida e o tempo de contribuição do segurado ao se aposentar,

mediante a fórmula descrita no § 11 do art. 32 do Decreto n. 3.048/99.

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em manter o equilíbrio financeiro, econômico e atuarial da previdência social

como já estipulava o artigo 201 da Constituição Federal de 1988.

Quer dizer, se o cálculo do valor dos benefícios previdenciários depende

da verificação de uma base financeira chamada salário de benefício e este,

sendo uma média aritmética e tendo como variante outra base financeira, cha-

mada salário de contribuição, cuja expressão irá definir e determinar o valor da

contribuição social (tributo constitucional destinado a financiar a seguridade

social), resta claro que o valor definido para o benefício previdenciário mantém

correlação, ao menos indireta, com aquilo que o Sistema de Seguridade Social

arrecadar a título de financiamento e custeio próprio.

Exatamente o que pretende a expressão denominada “regra de

contrapartida”, entabulada pelo § 5° do artigo 195 da Constituição Federal de

1988, cujo estudo já foi devidamente tratado em tópicos anteriores.

E a questão de ordem sistemática é que o valor dos benefícios, então

considerados segundo a fórmula matemática e financeira da expressão salá-

rio de benefício, terá de ser verificado e mensurado, sistematicamente, no côm-

puto específico de cada um dos benefícios previdenciários destinados a prote-

ger as diversas situações de necessidade amparadas pela previdência social,

segundo os elementos da base de cálculo (aqui definidos) e da alíquota, cujas

definições serão dadas pelas regras que disciplinem, especificamente, cada

um dos benefícios previdenciários e, ainda, segundo a vida contributiva de

cada um dos segurados protegidos.

4.6 Carência

Na relação jurídica de benefícios previdenciários, o sistema de segu-

ridade, mais precisamente, a normatização adotada pela previdência social

estabeleceu uma determinada condição formal para o pleno exercício dos di-

reitos por parte dos segurados e dependentes.

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Esta condição foi adotada da técnica do seguro do direito privado, con-

venientemente chamada de “carência”.

A carência como condição formal tem guarida na especial previsão que

os sistemas de seguro necessitam de garantia da liquidez, solvabilidade e equi-

líbrio financeiro quando se prestam a indenizar determinado evento da vida.

Na concepção do seguro no direito privado a relação de cobertura se

dá pela concomitância de vários elementos.

Na relação de seguro, há o segurador e o segurado, o primeiro com o

dever de prestar uma indenização ao segundo, quando este, nas condições

contratadas e previstas na apólice (documento em que se estabelecem expres-

samente as condições do contrato), é acometido pelo sinistro, ou seja, pela

ocorrência de determinado evento, cujas conseqüências foram previamente

escolhidas para receber a cobertura pela indenização do segurador.

Tal relação de cobertura de sinistros só se torna possível graças a socia-

lização dos riscos entre diversos indivíduos que necessitem da mesma prote-

ção, pois cada um deles, individualmente, irá colaborar com o pagamento de

determinado prêmio, cuja expressão pecuniária é avaliada conforme uma série

de estatísticas e previsões infortunísticas e atuariais, para representar uma

quota suficiente junto das outras no sentido de garantir a proteção prestada

pelo segurador.

Como o contrato de seguro ficaria muito prejudicado se a cobertura

contratada para o recebimento da indenização não estivesse satisfatoriamente

resguardada por uma reserva técnica financeira (obtido pelo pagamento do

prêmio), foi concebida a figura da carência, exigindo que o segurado, antes de

usufruir as benesses da cobertura, tenha, ao menos, contribuído com um nú-

mero mínimo de prêmios para que o seguro organizado por um segurador

esteja apto, equilibrado e líquido a indenizar o sinistro sofrido pelo segurado.

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Ora, nessa concepção, a carência é uma condição formal que presta,

somente, para resguardar o segurador e o fundo financeiro reservado para o

adimplemento das indenizações.

A carência foi alocada nas relações jurídicas dos benefícios previden-

ciários, como bem se percebe na disposição do artigo 24 da Lei n. 8.213/91:

Art. 24. Período de carência é o número mínimo de contribuições

mensais indispensáveis para que o beneficiário faça jus ao bene-

fício, consideradas a partir do transcurso do primeiro dia dos meses

de suas competências.

Da mesma forma, adaptados os conceitos para a realidade epistemo-

lógica dos elementos da relação jurídica de benefícios previdenciários, a ca-

rência é uma condição formal para o recebimento da prestação protetiva cha-

mada benefício previdenciário, em que tal prestação só fará parte do direito

subjetivo do beneficiário (segurado) se ele tiver, anteriormente à concessão do

benefício pela previdência social, contribuído (financiado, custeado) com o sis-

tema por meio do pagamento das suas contribuições sociais (tributo destinado

a financiar a seguridade social).

Porém, o Sistema da Seguridade Social é essencialmente diferente do

sistema que se apresenta no seguro do direito privado, porque na seguridade

existe o objetivo de atender à justiça e ao bem-estar sociais, garantindo não

somente a justa cobertura e proteção dos riscos sociais e das conseqüências

de determinadas situações e eventos da vida que geram necessidade aos mem-

bros da sociedade repercutindo entre todos, mas principalmente garantindo

que cada membro da sociedade possa, pela solidariedade compartilhada no

Sistema de Seguridade Social, exercer sua dignidade, seu desenvolvimento

humano e sua existência segundo os ditames da igualdade, da liberdade e da

independência, como alicerces básicos à sua plenitude.

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Por este fundamento, conjugado, aliás, pelos princípios da seguridade

social, já estudados anteriormente, que norteiam e estabelecem o horizonte

programático que deverá ser o ideal desse sistema de proteção social, verifi-

ca-se que a previsão da carência, em verdade, representa um empecilho, um

entrave, um obstáculo, um retrocesso na consecução de valores fundamen-

tais, como o ideal da universalidade da cobertura e do atendimento, que são o

tópico fundamental para a constante evolução, manutenção e expansão da

proteção social garantida pelo Sistema de Seguridade Social.

Condicionar a prestação do benefício previdenciário ao cumprimento

de determinada carência é contrario sensu impedir que a seguridade social

atinja os fins a que se destina, obstaculizando a plena, geral e universal cober-

tura das situações de necessidade e do atendimento de quem, nessas situa-

ções, esteja carente de proteção social.

A carência, neste entendimento, não se coaduna com as finalidades da

seguridade social, tampouco da previdência social, e representa verdadeiro

óbice à eficiente proteção social como garantia da manutenção e alcance da

justiça e do bem-estar sociais.

Não se questione que o Sistema de Seguridade Social entraria em co-

lapso financeiro e atuarial, porque, no âmago de sua instituição como se anotou

no artigo 59 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o legislador

deveria conceber planos de custeio e planos de benefícios segundo técnicas

financeiras e atuariais que garantissem a organização, a estruturação, e a eficiên-

cia do Sistema de Seguridade Social, na proteção das contingências sociais

enfrentadas pela sociedade, consideradas no tempo e no espaço, e segundo a

realidade social, econômica, política e cultural do Brasil.

Tais planos de custeio e planos de benefícios (que fragilmente foram

concebidos, respectivamente, pelas Leis n. 8.212/91 e n. 8.213/91), para

corresponder aos anseios da sociedade e da ordem social, já deveriam consi-

derar as reservas técnicas (financeiras e atuariais) necessárias para a pronta,

efetiva e justa proteção social oferecida pelo Sistema de Seguridade Social.

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De qualquer forma, a carência estabelecida no artigo 24 da Lei n. 8.213/

91 foi adotada e apontada segundo o critério do tipo de prestação social, ou

seja, para cada benefício previdenciário previsto no instrumental da previdência

social haverá a exigência ou não do cumprimento de determinado período de

carência para que o beneficiário faça jus ao benefício previdenciário pretendido.

Tais disposições estão no artigo 25, quando a concessão do benefício

previdenciário depende do cumprimento da carência, e no artigo 26, quando a

concessão independe do cumprimento da carência.

Essa diferenciação, segundo o arcabouço principiológico aventado, só

pode ser fruto da seletividade e distributividade que inspiram o legislador a

reconhecer na realidade social quais situações devem ser protegidas, como

devem ser protegidas, e em favor de quem a proteção deve surtir efeitos con-

cretos da prestação dos benefícios e serviços, seja, inclusive, condicionando

ou não o recebimento destes instrumentos de proteção social à exigência do

cumprimento da carência conforme o sopro da isonomia e da justiça social.

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CAPÍTULO 5

RISCO SOCIAL DA INCAPACIDADE

Seguindo uma metodologia dedutiva e analítica, a partir deste ponto,

efetivamente, começa o enfrentamento específico do tema que motivou este

trabalho e que não poderia ser tratado sem a delimitação, circunscrição e coloca-

ção de questões absolutamente necessárias para situar a matéria a ser desen-

volvida, como o são as idéias do sistema de seguridade e seus serviços, do

instrumental protetivo que é oferecido pela previdência social, dos próprios

instrumentos de proteção social prestados aos membros da sociedade, e, neste

mister, do desenvolvimento da relação jurídica de benefícios previdenciários,

como a verdadeira manifestação da atuação da seguridade social para manter

incólume a ordem social.

Tendo sido apresentados todos esses importantes vértices, o campo

de exegese está perfeitamente limpo, arado, semeado e preparado o real obje-

tivo deste trabalho, que é apresentar o benefício previdenciário chamado auxí-

lio-doença como instrumento de proteção social na atuação da seguridade,

segundo os ditames constitucionais e legais do ordenamento jurídico brasileiro.

Entretanto, questão crucial é a verificação do risco social da incapacidade.

O risco social foi apresentado em itens anteriores de maneira genérica,

como sendo aquelas situações da vida que geram necessidade de proteção

social, cujos bens protegidos foram indicados pela Constituição Federal de 1988.

Entre esses riscos sociais brilha de gigantismo o risco social da incapa-

cidade a que estão sujeitos os membros da sociedade.

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Como se viu, a Constituição não trouxe, expressamente no rol dos

incisos do artigo 201, a figura da incapacidade como evento que merecia a

proteção social da previdência social. Nem precisava trazer, porque a incapa-

cidade referida aqui é fruto daquilo que se convencionou adotar como primado

dentro da ordem social, o trabalho.

A incapacidade como risco social é fruto do trabalho, ou, mais precisa-

mente que isso, a incapacidade se refere ao trabalho, à especial situação que

retira, suprime, diminui e afeta o exercício do trabalho.

Este é o gravame fundamental quando se pretende proteger as situa-

ções de incapacidade, isto é, a situação de incapacidade que prejudica o per-

feito desempenho do trabalho.

Como o risco social da incapacidade para o trabalho pode se manifestar

no mundo da vida de várias maneiras, sob vários níveis e gravidades, e em

relação a diversos fatos, o legislador constituinte preferiu adotar na Constituição

Federal de 1988 um rol mais detalhado, com a identificação mais precisa dos

eventos que possam causar gravame ao exercício do trabalho.

E não seria demais supor, todavia, que os riscos sociais a ser protegi-

dos pelo sistema de seguridade estão todos relacionados ao trabalho.

Esta suposição está fundamentada na raiz da ordem social que se pre-

tende implantar na sociedade brasileira, porque, como já restou esclarecido, a

ordem social tem como base o primado do trabalho e como objetivo o bem-

estar e a justiça sociais, por singela lembrança do artigo 193 da Constituição

Federal de 1988.

Se o primado do trabalho é a base para a consecução da ordem social,

avulta a importância fundamental que o trabalho tem para o pleno desenvol-

vimento do ser humano e da própria sociedade.

Por esta razão, qualquer situação que manche de gravame o perfeito

desempenho e exercício do trabalho merece ser, prontamente, atendida pelo

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instrumental protetivo de que lança mão a seguridade social, e mais ainda a

previdência social.

O primado do trabalho é tão importante na concepção da previdência

social que não é exagerado afirmar que é o trabalho a principal preocupação

da previdência social quando se tem por objetivo garantir a ordem social.

Pode-se, a partir da especificidade da Constituição Federal, adotar como

gênero o evento incapacidade e como espécies três das quatro situações de

necessidade apontadas nos inciso I do artigo 201 da Constituição Federal,

quer sejam, a doença, a invalidez e a morte.

Excetua-se o evento idade avançada, porque, verdadeiramente, não

se pode deduzir que esse evento produza e acarrete, no mais das vezes, conse-

qüências de incapacidade para o exercício do trabalho. Tanto que a idade avan-

çada receberá tratamento próprio pela previdência social.

Portanto, quaisquer dos eventos, seja o acometimento de doenças,

seja a ocorrência da invalidez e definitivamente a morte, trazem em suas

conseqüências a potencial e contingente incapacidade para o exercício do

trabalho.

Como a incapacidade é contingência volúvel, há que se considerar que

haverá diferentes qualificadoras para a incapacidade, podendo ser total ou

parcial (qualificadora de gravidade) e ainda temporária ou permanente

(qualificadora de continuidade), mas não só isso, como também variando e

combinando de maneira simultânea as duas qualificadoras.

Cada combinação entre elas corresponde a uma determinada situação

da incapacidade para o exercício do trabalho, que, para a plena, eficiente e

adequada proteção, será ofertado pela previdência social um determinado be-

nefício previdenciário em favor do segurado ou dependente.

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5.1 ABRANGÊNCIA DA INCAPACIDADE

A incapacidade para o exercício do trabalho abrange diversas situa-

ções causais que têm em comum a conseqüência de acarretar, em menor ou

maior grau, durante breve ou longo período do tempo, gravames para o pleno

desenvolvimento do trabalho como atividade mestra na sociedade que pretende

a ordem social.

Torna-se relevante compreender quais são essas causas e quais são

essas conseqüências, e, nesse ponto, quais são as qualificadoras da incapa-

cidade para o exercício do trabalho que farão distinguir o instrumento protetivo

prestado pela previdência social.

Dessa forma, a incapacidade para o exercício do trabalho pode ser

total ou parcial, segundo o grau de gravidade que lhe seja afetado.

Se a incapacidade for total, o segurado (sujeito ativo na relação de

benefícios previdenciários) tem prejudicadas sua aptidões para o trabalho, mas

não somente reduzidas, isto é, o segurado que enfrenta a situação da incapa-

cidade total não tem nenhuma condição para o exercício do trabalho, nem

para o atendimento de suas funções profissionais, muito menos a plena apti-

dão e capacidade para desempenhar qualquer atividade laboral.

De outro modo, a incapacidade para o exercício do trabalho poderá ser

parcial.

Sendo parcial, a incapacidade assim considerada não afeta integral-

mente as aptidões de que se vale o segurado no desempenho do seu trabalho

ou da sua atividade profissional.

O grau de incapacidade parcial mantém determinadas condições físi-

cas e funcionais no conjunto de habilidades do segurado que permitem, com

maior ou menor grau de dificuldade, ainda que sacrificando outras funções

laborais, que o segurado desempenhe a contento determinadas atividades

laborais que lhe preservem a manutenção do trabalho.

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A incapacidade para o exercício do trabalho ainda pode ser considerada

sobre o grau de continuidade no tempo, ou seja, avaliada pelo tempo em que

subsistem seus efeitos em detrimento do exercício do trabalho.

Quanto ao grau de continuidade, a incapacidade poderá ser temporária

ou permanente.

A incapacidade temporária subsiste, como se depreende desta classifi-

cação, por determinado tempo, não importando, a princípio, se esse período

de tempo persistir em maior ou menor grau de continuidade, mas que seja

uma incapacidade pela qual o evento que lhe deu causa cesse em determinado

momento.

O cessar da incapacidade temporária poderá ser pela solução das con-

seqüências que limitavam a capacidade do trabalho, pela recuperação das

condições físicas ou funcionais limitantes que submetiam o segurado ao pleno

desenvolvimento de suas atividades, ou ainda pela evolução dos quadros de

gravidade que repercutam em efeitos de perda ou redução da capacidade para

o exercício do trabalho.

Em contraposição, a incapacidade para o exercício do trabalho poderá

se apresentar em grau de continuidade permanente, quer dizer, a incapacidade

deixa de ter solução no tempo, e permanece definitivamente consolidada como

gravame ao segurado no que se refere às suas condições físicas, funcionais e

em suas aptidões profissionais para o pleno exercício de suas atividades.

Não se confunda incapacidade total com permanente, nem parcial com

temporária, porque são situações distintas, que seguem conseqüências

díspares para o exercício do trabalho.

Como asseverado anteriormente, para a perfeita conformação e com-

preensão da abrangência dos efeitos da incapacidade para o exercício do traba-

lho, é necessário mesclar cada uma dessas qualificadoras, tornando possíveis

quatro hipóteses.

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Na primeira, da incapacidade total e temporária, o segurado num primeiro

momento, após a ocorrência de determinada causa, deixa de ter condições

para desempenhar suas atividades laborais e fica afastado do trabalho.

Na segunda, da incapacidade total e permanente, o segurado perde

todas as condições para o exercício do trabalho, seja para a função ou ativida-

de profissional que for, e ainda perde tais aptidões de maneira permanente,

portanto sem solução de continuidade, devendo se afastar permanentemente

do trabalho.

A terceira, da incapacidade parcial e temporária, e a quarta, da

incapacidade parcial e permanente, em verdade, fundem-se em uma situação

somente, pois o aspecto temporal de uma incapacidade parcial só se afigura

como uma possibilidade de recuperação, o que, de algum modo, tendo solu-

ção de continuidade e cessados os efeitos da incapacidade, se subsistir a

condição parcial, então, efetivamente, haverá somente a incapacidade parcial e

permanente.

Dessa forma, o segurado que enfrente incapacidade parcial e perma-

nente mantém determinadas aptidões e habilidades para o desempenho de

suas funções profissionais em condições reduzidas de capacidade, cujas limi-

tações serão tidas por consolidadas no tempo.

Cada uma dessas situações receberá uma determinada proteção social

instrumentalizada pelos benefícios previdenciários previstos pela lei, e que aten-

dem, cada um, ao efetivo risco social que os segurados enfrentarem.

O benefício previdenciário auxílio-doença atende à incapacidade total

e temporária. A aposentadoria por invalidez protege a incapacidade total e

permanente. E o auxílio-acidente se presta à incapacidade parcial e perma-

nente (ou temporária, enquanto dure a redução da capacidade).

5.2 NEXO CAUSAL

O risco social da incapacidade para o exercício do trabalho, considerado

pela abrangência dos seus efeitos, pode ser traduzido conforme verificado acima.

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De outro modo, a incapacidade como evento, como situação de neces-

sidade, tem, intrínseca à sua abrangência, o que se convém denominar de

nexo causal.

Como a incapacidade é uma situação de necessidade, um fato social

protegido pelo Direito, e em especial protegido pela previdência social, a

exemplo dos outros fatos da vida, ela pode ser compreendida segundo um

vínculo de causa e efeito, de causa e conseqüência.

Parece muito natural no mundo da vida que os fatos, as situações sejam

representadas por determinadas relações de causa e conseqüência. Se deter-

minado fato, aqui considerado fato social, nasce e se produz no seio da socie-

dade, ele repercute em conseqüências concretas e materiais, caso contrário

não receberia o beneplácito jurídico, muito menos receberia a coloração

protetiva prestada pelo instrumental da seguridade social.

A atuação protetiva só emerge como garantia da manutenção da ordem

social porque as situações da necessidade acarretam conseqüências dano-

sas, ameaçadoras e nocivas aos membros da sociedade, individual ou coleti-

vamente considerados.

Da observação empírica é que se torna possível a consideração da

incapacidade sobre o prisma do nexo causal, sobre a verificação de suas cau-

sas e conseqüências.

5.2.1 Causas

A incapacidade para o exercício do trabalho pode ser causada por di-

versas situações da vida, desde que tais situações acarretem lesões corporais

ou perturbações funcionais, pois é pela aptidão física e funcional que o ser

humano torna possível o exercício do trabalho.

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O comprometimento da aptidão física e funcional pode ser causado

pelas doenças ou pelos acidentes. Justamente dois eventos que foram conce-

bidos pela previdência social como situações de necessidade que merecem

determinados instrumentos de proteção social, de determinados benefícios.

A definição exata do que venha a ser compreendido como doença ou

como acidente já não avulta de importância didática e científica para o desenvol-

vimento deste trabalho porque tais insurgências são questões que se enfren-

tam na ciência médica, e seria por demais exaustivo se tais definições guarne-

cessem este estudo.

Porém, na consideração das doenças e dos acidentes, a contingência

teórica que se enfrenta, para fins da ciência do Direito Previdenciário, é outra,

que decorre não somente do mundo dos fatos, como também da lógica e da

própria lei, como se verá adiante.

Por tais considerações as doenças e os acidentes podem ser classifi-

cados segundo suas causas tenham ou não afetação direta e determinante

pelo exercício do trabalho.

Quer dizer, determinadas doenças e determinados acidentes só se efe-

tivam no mundo da vida em razão direta do exercício do trabalho ou não, e, de

outro modo, só se efetivam em razão de fatos que não têm relação direta com

o exercício do trabalho.

Quando a razão determinante para a manifestação das causas, doença

ou acidente, não estiver relacionada com o fato do exercício do trabalho, isto

é, quando ocorrerem sem nenhuma vinculação à atividade laboral, notadamente,

porque emergem de outro ambiente circunstancial, então serão consideradas

causas comuns, em alusão às circunstâncias da vida que são comuns e ordiná-

rias a todos os segurados, independentemente da questão do trabalho.

De outro modo, quando as doenças ou os acidentes tiverem sua causa

em razão de existir algum fato relacionado ao exercício do trabalho, ou mais preci-

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samente, algum nexo causal determinado pela efetiva, direta e imediata relação

com o exercício do trabalho e com as circunstâncias que envolvem o ambiente e

a relação do trabalho, então poderão ser classificados como de causas aciden-

tárias, em franca alusão à expressão utilizada para o evento acidente do traba-

lho que recebeu especial atenção do legislador constituinte, pela previsão do

inciso XXVIII do artigo 7° da Constituição Federal de 1988.

Embora a lei previdenciária não traga essa classificação didática, este

trabalho seguirá esse entendimento pelas razões já anunciadas e pelas outras

que seguirão adiante, todas inspiradas na propedêutica científica que permite

descodificar a epistemologia que envolve a matéria objeto deste estudo e

pesquisa.

5.2.1.1 Comuns

A Lei n. 8.213/91 não define o que compreenderiam as doenças e os

acidentes como causas comuns da incapacidade para o exercício do trabalho,

mas deixa alguns rastros lógicos, que poderão ser úteis neste propósito.

Historicamente, pela evolução legislativa das normas que atendiam às

questões relacionadas à seguridade social, à previdência social, e ao instru-

mental protetivo concebido materialmente em forma de prestações chamadas

benefícios, sempre identificaram duas questões díspares, de um lado a doença

e de outro o acidente do trabalho.

Não contava o ordenamento jurídico que, pela complexidade das rela-

ções sociais e pelo desenvolvimento do trabalho no bojo da sociedade, tais

situações, ditas doenças e acidente do trabalho, cada vez mais se aglutinassem

em causas muito próximas, exigindo da lei e das normas protetivas uma

especificidade ainda mais sofisticada.

Nas relações sociais, principalmente nas relações do trabalho, as doen-

ças também se tornaram causas muito recorrentes nas estatísticas dos eventos

que geram incapacidade para o trabalho.

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Antigamente, ao menos, de forma sistematizada e protegida, não havia

a consideração de que o exercício do trabalho em condições precárias poderia

ser a razão determinante para o deslinde de determinadas doenças, por exem-

plo, aquelas que se originam em razão de agentes ou fatores de risco de natu-

reza ocupacional relacionados com a sua etiologia, como o cloro, o flúor, o iodo, o

ruído e a afecção auditiva, o ar comprimido e tantos outros.

Objetivamente consideradas, as doenças eram decorrentes da vida, e

não do trabalho.

Mas esta realidade se afigura, absolutamente, muito mais complexa

nos dias atuais, porque, graças ao desenvolvimento das ciências, da medicina,

da engenharia, da física, da química e outras, tornou-se possível verificar, iden-

tificar, classificar e sistematizar um conjunto incomensurável de agentes físi-

cos, químicos e biológicos que se concretizam no mundo da vida, e cujos efei-

tos podem ser invocados a estes ou àqueles eventos circunstanciais, como o

exercício do trabalho.

Assim, o legislador, atento e sensível à evolução dos tempos e das

relações sociais, ampliou o entendimento do que se tem por doença e por

acidente do trabalho, inclusive prevendo que há, dentro dessas relações sociais,

alguns fatos que não têm como causa determinante o exercício do trabalho,

seja na modalidade doença, seja na modalidade acidente.

Ou seja, há no manancial das hipóteses empíricas uma série de situa-

ções que não estão vinculadas ao exercício do trabalho, mas que da mesma

forma repercutem na conseqüência incapacidade para o trabalho.

Infelizmente, por lacuna da lei, não há definições das doenças ou aci-

dentes que não ocorram pelo exercício do trabalho, mas, de maneira lógica e

sistemática, isto avulta relevante se confrontados o conceito disposto no artigo

19 da Lei n. 8.213/91 com a expressão utilizada pelo inciso II do artigo 26 do

mesmo diploma legal.

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Senão, vejamos restritivamente na parte que interessa a esta confrontação:

Art. 19. Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do

trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho dos

segurados referidos no inciso VII do artigo 11 desta Lei [...];

De outro modo:

Art. 26.

[...]

II – [...] nos casos de acidente de qualquer natureza ou causa [...].

Ou o legislador pretendia, realmente, diferenciar essas duas situações,

de um lado as “acidentes do trabalho” e de outro os “acidentes de qualquer

natureza”, ou o legislador criou uma confrontação por erro material e improprie-

dade terminológica.

Ainda que a conclusão resvale frágil, não parece que o legislador te-

nha, efetivamente, tropeçado em sua motivação quando cria duas expressões

distintas que atendem a fatos aparentemente distintos também, tanto que, para

suprir a lacuna criada pela falta de definição legal sobre o que se entende por

acidente de qualquer natureza, o Decreto n. 3.048/99, a par da discussão so-

bre sua legitimidade e eficácia com norma posta, supre essa carência pela

previsão do parágrafo único do seu artigo 30:

Art. 30.

[...]

Parágrafo único. Entende-se como acidente de qualquer natu-

reza ou causa aquele de origem traumática e por exposição a

agentes exógenos (físicos, químicos e biológicos) (...).

Por continência, pode-se supor que acidentes de qualquer natureza,

por sua generalidade, contêm os acidentes do trabalho, pois, dentre várias

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possibilidade quanto à natureza, o trabalho é uma delas, mas, ainda assim, e

mesmo no Decreto n. 3.048/99 há uma série de outros apontamentos específi-

cos da terminologia acidente do trabalho, sempre tidos como ressalva, como é o

caso do artigo 60, inciso IX, artigo 61, inciso III, artigo 167 etc.

Em atenção ao percuciente objetivo de clarear essa problemática, em ver-

dade, o grande responsável pela confusão terminológica foi a Lei n. 9.528/97,

que alterou o artigo 86 da Lei n. 8.213/91, cuja redação original era:

Art. 86. O auxílio-acidente será concedido ao segurado quando,

após a consolidação das lesões decorrentes do acidente do tra-

balho, resultar seqüela que implique [...]. [grifo nosso]

E com o implemento da Lei n. 9.528/97, o dispositivo citado ficou alte-

rado para:

Art. 86. O auxílio-acidente será concedido, como indenização,

ao segurado quando, após consolidação das lesões decorrentes

de acidente de qualquer natureza, resultarem seqüelas que im-

pliquem [...]. [grifo nosso]

Com esta alteração o benefício auxílio-acidente, historicamente desti-

nado a proteger as situações decorrentes do acidente do trabalho, ganhou

uma abrangência que antes não podia oferecer no atendimento da incapacidade

para o exercício do trabalho, ou seja, além de proteger as situações de acidente

do trabalho, também pode promover a cobertura àqueles acidentes que não

tenham como causa o exercício do trabalho.

Exatamente esse foi o espírito teleológico do legislador quando expan-

diu a idéia de acidente, para englobar não somente os acidentes do trabalho,

mas também todos aqueles que não tenham relação direta e determinante

como causas decorrentes do exercício do trabalho.

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A solução para essa questão não se encontra com melhor propriedade

no conflito terminológico ou na possível continência de uma expressão em

outra.

Encontra sim, e com propriedade, o necessário esclarecimento no mundo

da vida, no nexo causal, intrinsecamente considerado no aspecto causa, do

qual irrompem profundas diferenças entre as doenças ou acidentes que tenham

sido concebidos pelo fato do exercício do trabalho e por sua razão determinante,

em detrimento das doenças ou acidentes que tenham sido originados de outras

causas, outro nexo que não seja o exercício do trabalho, como exemplo, o acidente

ocorrido dentro de casa, enquanto o segurado desempenha e exerce seu direito

de lazer, ou, ainda, a doença contagiosa que tenha sido causada por determinado

agente biológico enquanto o segurado gozava de férias.

Assim, perfeitamente consideradas, as causas que repercutem na inca-

pacidade para o exercício do trabalho poderão ser classificadas como doenças

ou acidentes comuns quando seu nexo intrínseco não estiver relacionado ao

exercício do trabalho.

5.2.1.2 Acidentárias

Haja vista a classificação proposta, as causas que compõe o nexo cau-

sal das situações de necessidade de incapacidade para o exercício do traba-

lho também podem ser consideradas e denominadas causas acidentárias.

Portanto, as doenças e os acidentes que tenham relação direta e

determinante com o exercício do trabalho serão tratadas, especificamente, como

doenças profissionais e doenças do trabalho, e acidente do trabalho.

Sistematicamente, as definições de umas (doenças profissionais e do-

enças do trabalho) e outra (acidente do trabalho) foram especificadas pela Lei

n. 8.213/91.

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110

Primeiramente a definição de acidente do trabalho:

Art. 19. Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do

trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho dos

segurados referidos no inciso VII do artigo 11 desta Lei, provo-

cando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte

ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade

do trabalho.

E posteriormente, na seqüência, a definição das doenças profissionais

e doenças do trabalho:

Art. 20. Consideram-se acidente do trabalho, nos termos do artigo

anterior, as seguintes entidades mórbidas:

I – doença profissional, assim entendida a produzida ou desen-

cadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada ativi-

dade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério

do Trabalho e da Previdência Social;16

II – doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desenca-

deada em função de condições especiais em que o trabalho é

realizado e com ele se relacione diretamente, constante da rela-

ção mencionada no inciso I.

Nessas definições há inúmeros conceitos importantes para ser desen-

volvidos, valendo, ainda, notar que os acidentes do trabalho, além de empres-

tar às doenças profissionais e doenças do trabalho os efeitos legais que sobre

ele repousam, também tiveram outras situações consideradas por equipara-

ção a eles e que foram brindadas pelos mesmos efeitos que guarnecem o risco

social do acidente do trabalho.

16 Atualmente denominado Ministério do Trabalho e Emprego pelo art. 25 da Lei n. 10.683/03.

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111

Esta equiparação está no rol do artigo 21 da Lei n. 8.213/91 que traz as

hipóteses: do acidente ligado ao trabalho que, embora não tenha sido a causa

única, haja contribuído diretamente para a morte do segurado, para a redução

ou perda da sua capacidade para o trabalho, ou tenha produzido lesão que exija

atenção médica para a sua recuperação (inciso I); o acidente sofrido pelo segu-

rado no local e no horário do trabalho (inciso II); a doença proveniente de conta-

minação acidental do empregado no exercício de sua atividade (inciso III); e o

acidente sofrido pelo segurado, ainda que fora do local e horário de trabalho

(inciso IV).

O artigo supracitado é mais detalhista ainda, e além da previsão dessas

situações equiparadas, trás em seu bojo taxativamente a própria casuística que

será contemplada com os beneplácitos do acidente do trabalho.

A equiparação legal estabelecida no artigo 21 revela um dado comum

nas quatro hipóteses circunstanciais propostas, ou seja, revela a ausência, em

todas as situações descritas, do elemento volitivo do segurado na prática e ação

concreta que culmina na incapacidade para o exercício do trabalho, sendo equi-

parada, tão-somente, pela circunstancial vinculação que os segurados têm com

o ambiente do trabalho ou com suas relações com os demais colegas de trabalho.

Dessa forma, e atendidas as exigências do artigo 7°, inciso XXVIII, da

Constituição Federal de 1988, o acidente do trabalho será objeto de proteção

social pelo instrumental da previdência social quando acarretar incapacidade

para o exercício do trabalho.

Aliás, o mesmo dispositivo constitucional aqui referido, em seu teor, traz

outra justificativa para a classificação e separação da causa que faz gerar a

incapacidade para o exercício do trabalho, entre causas comuns e causas aci-

dentárias, quando estabelece que:

Art. 7°

[...]

XXVIII – seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empre-

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gador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quan-

do incorrer em dolo ou culpa;

A justificativa é o estabelecimento discriminado e específico de um “se-

guro”, ou, melhor conceitualmente explicitando, um sistema de proteção social

próprio financiado pelos empregadores como instrumento de proteção social

efetivo composto por benefícios e serviços especiais, destinados a segurados

discriminados pela lei, e sob organização formal distinto daquele a que se

submete o Regime Geral de Previdência Social, como será, oportunamente,

estudado.

Ora, se a Constituição Federal de 1988 estabeleceu, dentro do regime

de direitos sociais, um programa de proteção social a ser instrumentalizado pela

previdência social, vulgarmente conhecido por seguro acidente do trabalho (SAT)

financiado e custeado a cargo do empregador (ou empresas),17 era porque, no

seu modelo de proteção social, nos auspícios do seu arcabouço normativo, es-

tão contemplados os acidentes do trabalho como causas distintas de outros

acidentes (o mesmo se aplicando às doenças) quando ambos acarretem inca-

pacidade para o exercício do trabalho, como efetivamente proposto e discutido

neste trabalho.

5.2.2 Conseqüências

Em se tratando de nexo causal, o estudo do risco social determinado

como incapacidade para o exercício do trabalho só restará completo e satisfeito

se a relação de causalidade se demonstrar também pelo entendimento das

17 Como de fato, insurge-se artigo 22, inciso II, da Lei n. 8.212/91, pelo qual é instituída uma

Contribuição Social, adredemente destinada ao financiamento dos benefícios previstos

nos artigos 57 e 58 da Lei n. 8.213/91, e daqueles concedidos em razão do grau de

incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho se-

gundo os critérios da lei.

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conseqüências geradas pelos eventos: a) doença ou acidentes de qualquer

natureza; b) doenças profissionais e doenças do trabalho e acidentes do tra-

balho que foram estudados acima.

A conseqüência se confunde com a própria situação a ser protegida

como já fora anotado no enfrentamento das questões dos bens protegidos e

do risco social, e que, portanto, remanescentes dos conceitos e entendimentos

já firmados até aqui, dispensam maiores discussões teóricas e conceituais.

Na relação jurídica de benefícios previdenciários que tenha por fim a

especial proteção e cobertura dos eventos de incapacidade para o exercício

do trabalho, conforme as qualificações que o caso concreto revele à subsunção

da norma, o nexo causal, a relação de causalidade se forma pela ocorrência

do fenômeno causa, doenças ou acidentes comuns ou de qualquer natureza;

e de doenças ou acidentes do trabalho,18 conjugado e correlacionado ao fenô-

meno conseqüência, que se traduz efetivamente na incapacidade para o exer-

cício do trabalho.

A incapacidade para o exercício do trabalho pode ser dividida em dois

momentos distintos, que se desenrolam, consecutivamente, conforme a evo-

lução causal natural das contingências que a incapacidade laborativa acarreta

concretamente no mundo dos fatos.

No primeiro momento, há a ocorrência da doença ou do acidente que

deve repercutir e ocasionar determinadas lesões corporais ou perturbações

funcionais no segurado.

No segundo momento, consecutivamente ao primeiro, tais lesões ou pertur-

bações só se traduzem em fatos relevantes quando, concretamente, ocasio-

narem a morte, a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade

para o exercício do trabalho, o que se depreende do artigo 19 da Lei n. 8.213/91,

18 Conforme se estabeleça uma vinculação direta e determinante na ocorrência desses even-

tos com o efetivo exercício do trabalho, como restou demonstrado.

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bem como do parágrafo único do artigo 30 do Decreto n. 3.048/99 e que já foram

sistematicamente estudadas quando se enfrentava alhures o item da abran-

gência da incapacidade assim convencionado.

Desse modo, servem todos aqueles argumentos para finalizar e con-

cluir a questão do risco social da incapacidade como uma situação de neces-

sidade a ser protegida pelos instrumentais protetivos oferecidos pela previdência

social, que se consubstanciam nos benefícios previdenciários, destinados a

garantir a substituição dos rendimentos ou remunerações a que o segurado

faria jus pelo seu trabalho e, por uma razão ou outra decorrente da incapacida-

de, ficam prejudicados, e que, se o segurado não fosse devidamente laureado

pelos beneplácitos da seguridade social, comprometida estaria a ordem social.

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CAPÍTULO 6

AUXÍLIO-DOENÇA

6.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Delimitado o campo de atuação da seguridade social pela instrumen-

talização protetiva de seus serviços, em especial e para o desenvolvimento des-

te trabalho, da seguridade social, que mantém armadas e disponíveis determi-

nadas prestações, benefícios e serviços, para a garantia de proteção dos

segurados e dependentes que estejam submetidos aos efeitos de determinadas

situações de necessidade, como o é a incapacidade laborativa em suas diver-

sas abrangências fáticas, torna-se apropriado adentrar na exegese do benefício

previdenciário denominado auxílio-doença.

Seguindo o entendimento mantido sobre a questão de a incapacidade

laborativa ser a manifestação de um nexo causal fático entre dois elementos

essenciais para sua ocorrência no mundo da vida, seja um evento tido por causa

e outro por conseqüência e dividida a causa entre causa comum ou causa

acidentária, a análise específica do benefício previdenciário auxílio-doença re-

fletirá essa mesma divisão, e, portanto, ele será estudado em suas duas ver-

sões, como auxílio doença comum e acidentário. A começar pelo primeiro.

A estrutura proposta para o desenvolvimento desses temas específicos

será a mesma proposta quando estudada em sua generalidade, ou seja, como

uma prestação decorrente de uma determinada relação jurídica mantida entre a

previdência social e os segurados, cujo conteúdo se exprime pela obrigação

pecuniária de pagamento do benefício auxílio-doença.

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Não é demasiado lembrar do desenvolvimento histórico da legislação

brasileira, porque, pelas previsões normativas, é possível demonstrar como a

sociedade procurou pela evolução do tempo e amadurecimento democrático

manter determinadas situações protegidas por regras e instrumentos protetivos

que satisfizessem os anseios da segurança e estabilidade social, enfim, que

mantivessem exime a ordem social.

As Constituições brasileiras, desde a Constituição de 1946, tinham

apontado a doença como sendo uma situação de necessidade que deveria ser

protegida pela manifestação concreta do Estado.

A Constituição de 1946 previa no artigo 157, inciso XVI, entre outras

situações protegidas, o dever de proteção contra as conseqüências da doença,

segundo um regime de previdência.

Durante a vigência da Magna Carta de 1946 e imbuída do espírito das

revoluções institucionais por que passava o Estado brasileiro, em especial pelo

estabelecimento de diversas regras que disciplinavam as relações sociais, par-

ticularmente, as relações de trabalho, surgiu a Lei n. 3.807/60, que instituía a

prestação denominada auxílio-doença, segundo regras específicas em favor

dos segurados, dispostas a partir do artigo 24 até o artigo 26 dessa lei.

Em 1967, como já se anotou, surgiu nova Constituição que também

repetiu a proteção oferecida nos casos de doença, conforme se verifica da

expressa previsão do artigo 158, inciso XVI, recepcionando, indubitavelmente,

a Lei n. 3.807/60, já devidamente absorvida no ordenamento jurídico.

Pela Emenda Constitucional n. 1, de 1969, houve certas mudanças for-

mais e materiais da antecedente Constituição de 1967, mas não se extirpou a

proteção aos casos de doença de acordo com a robusta disposição do artigo

165, inciso XVI, que permaneceu inalterada em seu conteúdo material.

Durante os anos da década de 1970, foram promulgadas algumas leis

esparsas que alteraram topicamente a Lei n. 3.807/60, como as Leis ns. 5.890/

73 e 6.438/77, que trouxeram modificações ao artigo 24 já referido da antiga

Lei Orgânica da Previdência Social.

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A Constituição Federal de 1988, marco da evolução democrática brasi-

leira, dispõe sobre a proteção do evento doença no artigo 201, inciso I, man-

tendo a proteção conquistada pela história.

E a Lei n. 8.213/91, lastreada pela Lei n. 8.212/91, estabelece a partir

do artigo 59 até o 64 todas as disposições acerca do benefício previdenciário

auxílio-doença, com a regulamentação oferecida pelo Decreto n. 3.048/99.

Este é o arcabouço jurídico que insurge legitimamente o benefício auxí-

lio-doença.

6.2 AUXÍLIO-DOENÇA COMUM

O benefício auxílio-doença tem como regra matriz de sua estruturação

material a disposição do artigo 59 da Lei n. 8.213/91.

Art. 59. O auxílio-doença será devido ao segurado que, haven-

do cumprido, quando for o caso, o período de carência exigido

nesta Lei, ficar incapacitado para o seu trabalho ou para a sua

atividade habitual por mais de 15 (quinze) dias consecutivos.

Dessa disposição avultam, essencialmente, os elementos que compõem

a estrutura da relação jurídica do benefício previdenciário auxílio-doença e, a

partir dela, dos complementos que se seguem pelos artigos sucedâneos, po-

dem ser deduzidos todos os elementos desse instrumento de proteção social

prestado pela previdência social.

6.3 MATERIALIDADE

A materialidade do auxílio-doença, como já se convencionou esclare-

cer em tópico geral, corresponde à situação material de necessidade que o

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segurado enfrenta decorrente da incapacidade laborativa, ou, como quer a lei,

o fato de o segurado “ficar incapacitado para o seu trabalho ou para a sua

atividade habitual”.

Tal representação pela lei corresponde a um fato no modo verbal “ficar

incapacitado” porque a lei previdenciária visa proteger eventos concretos que

sujeitam o segurado durante sua existência e durante o exercício de sua ativi-

dade profissional.

Como já foi observada, a materialidade, em sua plenitude, desenvolve-

se pelo nexo causal entre uma causa e uma conseqüência concreta e material.

A causa da incapacidade pode ser a situação da doença e a situação do

acidente, e aqui, no benefício auxílio-doença, o acidente de qualquer natureza.

Como essas causas, tidas por comuns, não têm correspondência em

sua origem circunstancial com o exercício do trabalho, podem ser derivadas

de quaisquer situações da vida que façam o segurado se sujeitar à doença ou

ao acidente de qualquer natureza que lhe ocorra.

Essa amplitude é bem explicitada no parágrafo único do artigo 30 do

Decreto n. 3.048/99:

Art. 30.

[...]

Parágrafo único. Entende-se como acidente de qualquer nature-

za ou causa aquele de origem traumática e por exposição a agen-

tes exógenos (físicos, químicos e biológicos), que acarrete lesão

corporal ou perturbação funcional que cause a morte, a perda, ou

a redução permanente ou temporária da capacidade laborativa.

Tomados, a doença e o acidente de qualquer natureza, por expressões

equiparadas em suas manifestações concretas, variando apenas o agente cau-

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sador e o deslinde circunstancial do fato, eles são causas de origem traumáti-

ca e por exposição a agentes físicos (objetos, bens e coisas), químicos (subs-

tâncias) e biológicos (seres vivos em geral), que submetem o segurado a con-

seqüências que alteram seu estado de vida, especialmente, na relação do

trabalho.

Essa especial alteração é observada na conseqüência, cuja proteção

do auxílio-doença está afetada à incapacidade para o exercício do trabalho.

Já, na conseqüência, a abrangência da expressão incapacidade para

fins do auxílio-doença é a incapacidade total e temporária para o exercício do

trabalho.

A incapacidade é temporária porque as conseqüências geradas pela

materialização das causas de doença e acidentes de qualquer natureza que,

sobre as condições físicas e funcionais do segurado no desempenho de suas

atividades laborais, são passíveis de recuperação e, espera-se, devem durar

determinado período de tempo.

Mas, além de temporária, outra condição para a percepção do auxílio-

doença é a de que a incapacidade se manifeste de forma total, ou seja, que

represente obstáculo determinante para o afastamento do segurado das suas

atividades laborais.

Para tanto, é necessário que o segurado, após a ocorrência da doença

ou do acidente que lhe causem incapacidade para o exercício do trabalho,

seja afastado de suas atividades.

No caso dos segurados empregados, o contrato de trabalho ficará

suspenso pelo período que durar o afastamento decorrente da incapacidade,

conforme disposição, prevista no artigo 63 da Lei n. 8.213/91, de que: “o segu-

rado empregado em gozo de auxílio-doença será considerado pela empresa

como licenciado”, disposição que vem, concomitantemente prevista na Conso-

lidação das Leis do Trabalho.

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Já, para os demais segurados, o afastamento se operará de forma

natural, com a paralisação efetiva das atividades laborais que o segurado inca-

pacitado desempenhava.

O parágrafo único do artigo 59 dispõe uma ressalva muito importante

que limita a concessão do auxílio-doença, que é a de que não será devido o

benefício se o segurado já for portador da doença ou da lesão invocada como

causa, salvo quando a incapacidade for causada como reflexo da progressão

ou agravamento dessa doença ou lesão.

Não poderia ser de outro modo, pois a proteção social oferecida pelo

benefício previdenciário auxílio-doença atende ao verbo “ficar incapacitado” e

não “ser incapacitado”, isto é, o risco social protegido é a especial situação de

necessidade que altera o estado atual da vida do segurado, e não a situação a

que o segurado já esteja submetido, pois, assim, tal situação seria outra, e o

bem protegido também.

É o infortúnio da mudança circunstancial do estado de vida do segura-

do que é protegido, porque sobressai desse evento a sujeição ao prejuízo

imprevisto de o segurado perder sua capacidade para o trabalho, compro-

metendo, se não houvesse a proteção social do benefício, o seu sustento e a

sua sobrevivência.

Claro, também, que, no intuito de preservar aquelas situações em que,

embora portador de doença ou lesão, o segurado tenha condições de exercer

atividades laborais e efetivamente as exerça, a incapacidade decorra da pro-

gressão ou do agravamento da doença ou lesão preexistente, porque, nessas

circunstâncias, do mesmo modo, houve alteração do estado de vida do

segurado.

6.4 SUJEITOS

Na relação jurídica do benefício previdenciário, como qualquer relação

jurídica, há o estabelecimento de um vínculo entre dois sujeitos de direito, um

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sujeito ativo e outro sujeito passivo, respectivamente, um com o poder e o

direito de exigir determinada prestação do outro que tem o dever e a obrigação

de prestar o objeto que se estabelece na relação entre eles.

O artigo 59 da Lei n. 8.213/91 imputa ao segurado o direito de recebi-

mento do benefício previdenciário auxílio-doença. E, portanto, nessa relação

jurídica previdenciária, o segurado é o sujeito ativo em favor de quem o sujeito

passivo vai prestar o objeto dessa relação.

Por segurado, como já foi visto, foram tomados, pela Lei n. 8.213/91,

em seu artigo 11, os sujeitos que exercem determinadas atividades profissio-

nais (os trabalhadores em geral, sejam empregados, domésticos, avulsos,

contribuintes individuais e segurados especiais), chamados, por conseguinte,

de segurados obrigatórios, cuja participação na previdência social é obrigató-

ria, pela especial iniciativa de, como um dos membros da sociedade, participar

do financiamento da seguridade social como condição fundamental para a ma-

nutenção de sua qualidade de segurado, e, portanto, de sujeito de direitos

perante a previdência social.

Também são sujeitos ativos os segurados facultativos, ou seja, tam-

bém têm direito ao benefício previdenciário auxílio-doença os sujeitos que par-

ticipam da previdência social por manifesta e livre vontade, mas, respeitadas,

de qualquer forma, as condições para a manutenção da qualidade de segurado

a que estão submetidos os obrigatórios.

Por outro lado, se há um direito a ser prestado ao segurado, de outro,

há um sujeito passivo que tem a obrigação de prestar esse direito, que na

relação previdenciária será a previdência social, por sua autarquia e ente jurí-

dico de direito público, Instituto Nacional do Seguro Social, o INSS, conforme

a Lei n. 8.029/90.

A obrigação passiva da previdência social é fruto de toda a sistemática

que se apresenta para sua conformação jurídica, e rege-se tanto pelas dispo-

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sições constitucionais, como pelas disposições legais, que defluem a partir do

próprio artigo 1° da Lei 8.213/91, legitimado pelo artigo 7°, artigo 194 e artigo

201, todos da Constituição Federal de 1988.

6.5 OBJETO

Neste ponto, a relação jurídica do benefício previdenciário auxílio-doença

se estabeleceu em razão da ocorrência da materialidade representada pela

incapacidade para o exercício do trabalho de determinados segurados, que

podem exigir da previdência social o direito ao recebimento do auxílio-doença,

como fruto da composição estabelecida entre direitos e deveres correspon-

dentes a ambos.

Sem delongas, o que se apresenta oportuno é a compreensão especí-

fica do próprio benefício previdenciário auxílio-doença como objeto a ser pres-

tado nessa relação jurídica estabelecida entre o segurado e a previdência social.

6.5.1 Pagamento

Como prestação a ser satisfeita pela previdência social, o auxílio-doença

é uma prestação de dar (dare) com a especial característica pecuniária, pois a

vocação de qualquer benefício previdenciário, na satisfação dos fins a que se

destinam, é garantir ao segurado a substituição do rendimento ou da remune-

ração que ficaram prejudicados pelo afastamento do trabalho.

Já foi apontada a questão pecuniária como sendo a forma mais apro-

priada para a proteção dos segurados, pois, com o recebimento de determina-

da pecúnia, de determinado valor em moeda, o segurado pode satisfazer suas

(e da sua família) necessidades de subsistência e sobrevivência, para manter

sua própria dignidade humana.

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Portanto, o benefício previdenciário auxílio-doença é um pagamento, e

como tal deve conter em sua previsão legal os elementos necessários para

sua perfeita identificação e efetiva prestação.

6.5.2 Tempo do pagamento

A Lei n. 8.213/91, no seu artigo 60 e parágrafos, estabelece o tempo do

pagamento, portanto, o momento que o direito ao recebimento do auxílio-doença

se insere no âmbito dos direitos subjetivos do segurado, e pode e deve, por

conseqüência, ser exigido pelo segurado.

Dispõe o artigo 60:

Art. 60. O auxílio-doença será devido ao segurado empregado

a contar do décimo sexto dia do afastamento da atividade, e, no

caso dos demais segurados, a contar da data do início da inca-

pacidade e enquanto ele permanecer incapaz.

Antes de esclarecer sobre a regra posta, é necessário aviventar uma

questão relativa à eficácia da lei em detrimento da efetiva concretização dos

fatos no mundo da vida.

A lei nem sempre reflete, quando estabelece questões relativas ao

tempo, o momento concreto em que se efetiva o fato juridicamente relevante,

mas, tem, por vezes, sua eficácia no tempo determinada por razões de ordem

prática, formal ou jurídica.

Como se percebe da descrição legal, a ser logo mais aprofundada, o

auxílio-doença é devido no tempo, por eficácia legal, a partir de determinado

tempo para os segurados empregados, por mera convenção legal, e não por

efetiva realidade material.

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A incapacidade para o exercício do trabalho a que se submete o segu-

rado e que lhe dá o direito ao auxílio-doença não tem nenhuma justificativa

concreta que o condicione à imposição legal dos 15 dias a que se refere a lei,

quando menciona o direito dos segurados empregados. A incapacidade não

espera 15 dias para surtir seus efeitos e suas conseqüências sobre o segura-

do empregado.

Portanto, o tempo conferido pela lei para tornar eficaz e plenamente

exigível o direito ao benefício auxílio-doença é pura convenção jurídica, e não

retrata a efetiva e concreta necessidade que a incapacidade gera para o segu-

rado empregado.

Mas essa convenção ganha lógica e coerência quando avaliada junta-

mente com outras regras, como se verá adiante.

O tempo do pagamento do benefício previdenciário auxílio-doença foi

diferenciado entre os sujeitos protegidos, os segurados, havendo duas previ-

sões, uma referente ao segurado empregado e outra referente aos demais

segurados.

O segurado empregado tem direito ao auxílio-doença após o período

de 15 dias consecutivos, ou seja, a partir do décimo sexto dia contado da ocor-

rência da incapacidade.

Já os demais segurados, todos os outros referidos no rol do artigo 11

da Lei 8.213/91, terão direito ao auxílio-doença a partir da ocorrência da inca-

pacidade para o exercício do trabalho.

Essa diferença entre segurados empregados e os demais é expressão,

conforme entendimento mantido nas questões principiológicas da seguridade

social, do princípio da seletividade e distributividade, provavelmente porque o

legislador pátrio encontrou uma diferença significativa entre esses segurados

que pode ser deduzida pela natureza do vínculo de trabalho que se dá de

forma diferente para os empregados e para os demais.

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O empregado está submetido ao vínculo empregatício, que, diferente-

mente dos outros segurados (com críticas ao caso dos domésticos), envolve

diretamente outro sujeito na relação social, que é o o empregador ou empresa

que mantém interesses diretos e indiretos na proteção do trabalhador, justifi-

cando, inclusive, sua participação no Sistema de Seguridade Social.

A razão para que o auxílio-doença seja prestado após 15 dias ao segu-

rado empregado é previsão do § 3° do mesmo artigo 60, pelo qual impõe à

empresa (ou empregador) a obrigação de pagar ao segurado empregado o

seu salário integral durante os primeiros 15 dias consecutivos ao do afasta-

mento da atividade por motivo de doença.

Em outras palavras, o auxílio-doença não é prestado imediatamente

após a ocorrência da incapacidade (como se deduziria por raciocínio lógico)

do segurado empregado, porque o interregno de 15 dias a que se refere a lei é

assumido às expensas da empresa ou empregador.

Mas a questão que não quer calar é por quê?

Por que a lei estabeleceu esse interregno formal de 15 dias?

Os dados estatísticos sobre a situação da incapacidade que importa no

afastamento do trabalho irrompem definitivamente para responder a essa per-

gunta, porque, a partir dos dados estatísticos e segundo uma série de variantes,

funções e informações colhidas pela previdência social, podem demonstrar,

como de fato demonstram, que parte significativa dos eventos causadores de

incapacidade são resolvidos durante o período de 15 dias. Tais informações

podem ser verificadas da Base de Dados do Anuário Estatístico da Previdên-

cia Social, que são públicas e amplamente noticiadas.

Bem verdade que mantém algum propósito esta justificativa, porque,

de outro modo, se para cada situação de incapacidade ocorrida nas relações

de trabalho o Sistema de Seguridade Social, pela previdência social, tivesse

de atuar e conferir seus instrumentais protetivos aos segurados, como é o auxílio-

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doença, ficariam comprometidas a efetividade, a eficácia e a adequada prote-

ção de todos, pois o interregno de 15 dias é tempo suficiente (em muitos ca-

sos) para que o segurado empregado se recupere da doença ou da lesão que

o afastou do trabalho.

Por isso que essa responsabilidade social é compartilhada com as em-

presas e empregadores, porque, em geral, contingências que duram 15 dias

podem receber uma proteção mais eficaz na relação social entre particulares,

sem a intervenção da seguridade social.

Assim, conforme o § 3° do artigo 60, a empresa é obrigada, no período

de 15 dias contados da incapacidade, a pagar ao segurado empregado seu

salário integral.

Há ainda uma disposição de caráter especial sobre o tempo em que o

auxílio-doença pode ser exigido pelo segurado que é a regra do § 1° do artigo

60, pela qual, tanto para os segurados empregados como para os demais, o

auxílio-doença será devido somente a partir do requerimento,19 quando este for

efetivado na previdência social após 30 dias do afastamento pelo fato da inca-

pacidade.

Esta regra tem, ao que parece, caráter duplo, seja como precaução,

seja como punição. Precaução para aproximar o segurado da proteção ofere-

cida pela previdência social, porque a sociedade tem interesse nessa proteção,

como amplamente discutido. E punição porque, de outro modo, a lei, como sói

vetusto no Direito, não ampara aquele que “dorme” no exercício de seus direitos,

ou seja, a lei previdenciária não confere efeito retroativo àquele segurado que,

por razões injustificadas, não se valeu do seu direito em tempo oportuno, como

lhe era possível exigir e exercer.

Na questão do tempo, ainda se mostra necessário compreender, conco-

mitantemente ao momento em que o auxílio-doença nasce na esfera subjetiva

19 Pedido formal que o segurado deve fazer dirigido à previdência social para ter direito ao

benefício, conforme regras estabelecidas na lei e no regulamento.

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dos direitos do segurado, também, o momento em que o benefício deixa de ser

devido.

Como o auxílio-doença é o benefício de protege as conseqüências da

incapacidade, parece lógico que ele será devido enquanto dure a incapacidade,

ou, como explicitou o final do citado artigo 60, “enquanto ele (segurado) per-

manecer incapaz”.

O conteúdo da expressão “enquanto ele permanecer incapaz” denota

uma série de proposições, segundo a solução que a ela se apresente.

A incapacidade pode ser finalizada ou pela recuperação, ou redução

ou agravamento das condições físicas e funcionais do segurado no desempenho

de suas atividades laborais.

Novamente, torna-se pertinente a consideração da abrangência da inca-

pacidade, pois é nela que se afiguram as possibilidades concretas e os graus

de gravidade ou de continuidade a que estão sujeitos os segurados.

Como se viu, aliás, a incapacidade do auxílio-doença tem sua abran-

gência definida pelo aspecto total e temporário, ou seja, se esses aspectos se

alterarem, a materialidade que justifica a concessão do benefício auxílio-doença

também se modifica, e outro instrumento protetivo deverá ser galgado em fa-

vor do segurado.

Assim, de forma didática, se a incapacidade do segurado for solucionada

pela recuperação das condições físicas e funcionais do segurado no desem-

penho de suas funções, então, simplesmente, o benefício cumpriu seu papel e

sua finalidade e deverão cessar seus efeitos em favor do segurado.

Por outra forma, se a incapacidade se agravar, ou seja, se a incapaci-

dade tornar-se total e permanente (ao invés de temporária), significa que o

segurado, definitivamente perdeu todas as condições para o exercício do tra-

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balho, e como dispõe o artigo 62 da Lei n. 8.213/91, quando se refere ao segu-

rado, em sua parte final, “... quando considerado não-recuperável, for aposen-

tado por invalidez.”

Esta é a hipótese em que o auxílio-doença é convertido em outro bene-

fício, a aposentadoria por invalidez,20 porque a materialidade, a situação de

necessidade se mostra diferente em sua contingência, merecendo, portanto,

um benefício previdenciário, um instrumento de proteção social mais adequado

para satisfazer às necessidade do segurado.

E, por fim, a incapacidade do segurado poderá transmudar-se de total

e temporária, como exige o auxílio-doença, para uma incapacidade parcial e

permanente, ensejando outro benefício, o auxílio-acidente,21 pois, a proteção

condizente a quem sofra das conseqüências de uma incapacidade parcial e

permanente, que é a qualificadora da materialidade que enseja o auxílio-aci-

dente, é diferente daquela que satisfaz a materialidade do auxílio-doença, até

porque no auxílio-acidente o segurado pode, ainda que em condições reduzidas,

exercer suas atividades laborais.

Informação extremamente importante que se mostra fundamental na

persecução da efetiva proteção social a ser buscada pela previdência social, é

a que deflui soberba do artigo 62 da Lei n. 8.213/91:

Art. 62. O segurado em gozo de auxílio-doença, insusceptível

de recuperação para sua atividade habitual, deverá submeter-se

a processo de reabilitação profissional para o exercício de outra

atividade. Não cessará o benefício até que seja dado como ha-

bilitado para o desempenho de nova atividade que lhe garanta a

subsistência ou, quando considerado não-recuperável, for apo-

sentado por invalidez.

20 A aposentadoria por invalidez está prevista no artigo 42 e seguintes até o 47 da Lei n. 8.213/91.

21 O auxílio-acidente, por sua vez, está previsto no artigo 86 a que se refere a mesma lei

indicada na nota 20.

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Como a incapacidade para fins de concessão do auxílio-doença é

aquela que se mostra total e temporária, a previdência social, para buscar a

recuperação do segurado ou garantir que ele desenvolva novas formas de

habilidades profissionais, que lhes sejam capazes de manter o desempenho

de suas atividades laborais, oferece outro instrumento de proteção social, o

serviço chamado “reabilitação profissional” de que dispõe a alínea c, do inciso

III, do artigo 18 da Lei de Benefícios.

A reabilitação profissional está disciplinada no artigo 89 da mesma lei e

visa, positivamente, proporcionar ao beneficiário (segurados e dependentes)

incapacitado para o trabalho e às pessoas portadoras de deficiência “os meios

para a (re)educação e (re)adaptação profissional e social indicados para par-

ticipar do mercado de trabalho e do contexto em que vive”.

A verificação da incapacidade para fins de concessão do auxílio-doença,

bem como para a comprovação da situação e das condições físicas e funcionais

do segurado, competem à empresa e à previdência social, conforme o caso.

À empresa, no caso dos segurados empregados, compete essa verifi-

cação, preferencialmente, quando esta dispuser de serviço médico próprio ou

em convênio, somente devendo encaminhar o segurado à perícia médica da

previdência social quando a incapacidade ultrapassar 15 dias, de acordo com

o § 4° do artigo 60 da Lei n. 8.213/91.

E à previdência social, tanto após os 15 dias mencionados acima, no

caso dos segurados empregados, como para todos, compete esta obrigação,

conforme se depreende do artigo 101 da mesma lei, que infere a responsabilidade

da previdência social de prestar e submeter os segurados a exame médico,

processo de reabilitação por ela prescrito e custeado, e tratamento dispensado

gratuitamente, exceto o cirúrgico e a transfusão de sangue, que são facultativos.

Portanto, é a perícia médica, oferecida como serviço pela previdência

social – observada somente a preferência do § 4° do artigo 60 mencionado aci-

ma –, que atesta e conclui sobre a real situação da incapacidade a que está su-

jeito o segurado, determinando, assim, qual a solução prática do caso, seja im-

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putando outro benefício previdenciário devido, seja fazendo cessarem os efei-

tos e a proteção do auxílio-doença.

6.5.3 Lugar do pagamento

O benefício previdenciário auxílio-doença, como um dos instrumentos

de proteção social prestados pela previdência social na atuação da seguridade

social que tem por objetivo a manutenção da ordem social, segue o mesmo

entendimento acerca do lugar do pagamento que foi discutido na regra geral

da relação jurídica de benefícios previdenciários no item 4.5.3.2 deste trabalho.

O lugar do pagamento do auxílio-doença decorre da interpretação siste-

mática que se instaura no entendimento do alcance da previdência social so-

bre a sociedade brasileira.

Dessa forma, ratificando o mesmo entendimento trilhado anteriormente,

o auxílio-doença deverá ser prestado, e, portanto, recebido em todo o território

nacional, a todos os segurados que assim mantenham com a previdência social

o vínculo da filiação obrigatória para uso e gozo dos benefícios previdenciários

e serviços postos a disposição como meio de proteção social.

Vale também a regra excepcional da extraterritorialidade que se insur-

ge da situação jurídica de alguns segurados obrigatórios indicados no artigo

11 da Lei n. 8.213/91, que, embora, fora dos limites físicos e geográficos, en-

contram-se sobre os auspícios da soberania do Estado brasileiro, e, desde

que filiados, também poderão fruir do benefício auxílio-doença.

A questão do lugar do pagamento do auxílio-doença não enfrenta ou-

tras dificuldades, como é cediço pelo âmbito de atuação da previdência social,

como ente organizado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que é

uma autarquia federal e segue o regime jurídico imposto pelas leis federais de

competência privativa da União.

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6.5.4 Valor do pagamento

Outro elemento fundamental para a compreensão do objeto a ser presta-

do na relação jurídica do benefício previdenciário chamado auxílio-doença é o

seu aspecto quantitativo.

Como se discutiu, os benefícios previdenciários são realmente presta-

ções que consistem numa obrigação pecuniária, portanto, uma obrigação de

pagar, e sendo assim, consistem num verdadeiro pagamento, realizado pela

previdência social em favor dos segurados, sejam eles obrigatórios ou faculta-

tivos, que, filiados e mantendo essa condição, tenham sofrido um dos eventos

materiais causais (doença ou acidente de qualquer natureza) e em decorrência

desses eventos lhes tenham acarretado lesões corporais ou perturbações funcio-

nais que culminem, no caso do auxílio-doença, na incapacidade total e tempo-

rária para o exercício do trabalho.

Assim, a lei previdenciária não poderia deixar de prever a forma pela

qual o valor do auxílio-doença deverá ser obtido, pois a partir desse cômputo é

que se tornará exigível uma prestação certa e determinada, representada em

moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, e que, efetivamente, possa servir

como um instrumento de caráter remuneratório para substituir o rendimento ou

remuneração a que o segurado faria jus se estivesse desempenhando suas

atividades laborais.

O artigo 61 da Lei n. 8.213/91 descreveu os elementos essenciais para o

cômputo do aspecto quantitativo do auxílio-doença, e a partir dessa descrição é

possível se verificar o valor do pagamento, a título de recebimento do auxílio-

doença, que o segurado terá direito a exigir da previdência social.

Art. 61. O auxílio-doença, inclusive o decorrente de acidente do

trabalho, consistirá numa renda mensal correspondente a 91%

(noventa e um por cento) do salário-de-benefício, observado o

disposto na Seção III, especialmente no artigo 33 desta Lei.

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Se o auxílio-doença consistirá numa renda mensal, então ele pode ser

deduzido aqui como uma prestação pecuniária compulsória de periodicidade

mensal, ou seja, um pagamento efetuado mês a mês, de acordo com a lei e o

regulamento quanto aos aspectos formais, em favor do segurado que sofrer a

descrição da hipótese legal que se afigura na materialidade do auxílio-doença,

a incapacidade total e temporária para o exercício do trabalho, enquanto per-

manecer sob os efeitos e conseqüências dessa situação.

O artigo 61 indica, ainda, dois elementos quantitativos fundamentais

para garantir a versatilidade do cálculo financeiro do auxílio-doença, que é a

composição do cálculo pela relação matemática entre duas variáveis, uma base

de cálculo e uma alíquota.

Nessa composição é fundamental a indicação exata do que consiste a

base de cálculo e a alíquota.

À base de cálculo se denota o valor sobre o qual determinada alíquota

deve incidir para, nessa operação, sobressair um valor certo e determinado,

que será exatamente o valor do pagamento do benefício auxílio-doença, ou

como quer a lei, o valor da renda mensal do benefício.

A base de cálculo, ainda que também possa variar, tem a função de

estabelecer um critério equivalente entre situações distintas, porque, se o cálculo

do auxílio-doença será apurado pela mesma base de cálculo para todos os

segurados, e sabendo que cada segurado exerce uma atividade profissional

distinta da dos outros, com relações de trabalho segundo regras próprias, com

remunerações de valores maiores e menores, e, portanto, sob circunstâncias

distintas, estabelecer um critério comum e equivalente é a garantia de que se

opere justiça social e tratamento isonômico entre sujeitos em situações desiguais.

Para tanto, a lei previdenciária estabeleceu que a base de cálculo será

o valor apurado no salário de benefício, que, conforme a previsão do artigo 29,

inciso II, é a “média aritmética simples dos maiores salários de contribuição

correspondentes a 80% de todo o período contributivo” do segurado, em fran-

ca vinculação à meta do equilíbrio financeiro e atuarial, entre o custeio e a

prestação dos benefícios.

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O valor do salário de benefício é uma média de tudo que o segurado

tiver contribuído em favor da seguridade social, excluídas as menores bases

de contribuição que representem 20% de tudo.

Vale lembrar que a Lei n. 8.213/91 foi alterada pela Lei n. 9.876/99

quanto à definição da fórmula do salário de benefício, porque, antes, na redação

da Lei n. 8.213/91 a média se fazia sobre os últimos 36 salários de contribui-

ção considerados nas contribuições sociais dos segurados, até o limite de 48.

A fórmula antiga permitia um desequilíbrio financeiro gritante para a

organização monetária do sistema de seguridade, porque, apesar de o sistema

não seguir critérios propriamente ditos na forma de capitalização como se dá

em outros países, muitos segurados esperavam os últimos três anos para enve-

redar contribuições sociais mais robustas (sobre salários de contribuição mais

altos em valor considerado) ao sistema, porque isso lhes garantia um benefí-

cio previdenciário mais elevado em valor.

Verdade que tal preocupação não se dá no auxílio-doença, porque ele

decorre de situações imprevisíveis, nem tampouco se refere aos segurados

empregados, porque estes têm suas contribuições sociais obtidas diretamente

da fonte de renda, impedindo que o salário de contribuição seja flexibilizado ao

alvedrio do contribuinte.

Mas, nos outros casos, em outros benefícios, como as aposentadorias,

e para outros segurados, como os contribuintes individuais, a alteração legal

teve uma intenção positiva se vista sob o prisma da manutenção do equilíbrio

financeiro do sistema, e acarretou, infelizmente, um efeito negativo sobre o

valor dos benefícios para os segurados, porque, expande sobremaneira o

período considerado para a obtenção do valor do salário de benefício.

O outro elemento descrito foi a alíquota, e esta, na sua função de apoio

fixo para o cálculo do valor do pagamento do auxílio-doença, teve especificada

a porcentagem de 91% a incidir sobre o valor apurado na média do salário de

benefício.

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A alíquota de 91% estaria em conformidade com a sistemática princi-

piológica e teleológica dos sistema de seguridade como meio fundamental para

a manutenção da ordem social?

E mais, a alíquota de 91% seria suficiente para retratar a finalidade

remuneratória do benefício previdenciário auxílio-doença, já que não alcança

a integralidade da garantia do máximo valor possível para o salário de benefício?

São perguntas poucas vezes respondidas, mas que têm, tanto uma

como outra, bons argumentos contrários.

Os princípios da seguridade social foram ponderados neste trabalho, e

deles se vislumbram os caminhos a que o legislador constituinte, e a socieda-

de indiretamente representada, pretendem galgar para atender aos objetivos

do bem-estar e da justiça sociais que marcam a ordem social.

Entre esses princípios destaca-se, para o propósito de responder a essas

perguntas, o princípio da universalidade de cobertura e do atendimento, e tam-

bém, de soslaio, o espírito do princípio da irredutibilidade do valor dos benefícios.

Ora, se o sistema de seguridade tem por finalidade buscar a expansão

da cobertura e proteção das situações de necessidade enfrentadas pelos entes

protegidos e pretende expandir cada vez mais o rol dos entes protegidos ga-

rantindo um atendimento geral e universal a todos que dele necessitarem, en-

tão, suprimir o benefício do auxílio-doença para um patamar inferior à integra-

lidade dos 100% é impor ao benefício o sentido contrário de todo o sistema, é

determinar que a proteção oferecida pelo auxílio-doença seja contraditória,

oposta e prejudicial à evolução dos níveis de proteção social que o sistema se

propõe.

E mais, garantir uma alíquota menor que 100% é afetar um corolário da

irredutibilidade do valor dos benefícios porque, mesmo sem diminuir e reduzir

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nominalmente o valor do benefício, incutir uma alíquota inferior aos 100% pos-

síveis é permitir que a defasagem, a desvalorização e a voracidade monetária

dos sistemas econômicos consumam pouco a pouco o real poder financeiro

do auxílio-doença, se a ele foram dadas a funcionalidade e finalidade de subs-

tituir (como proteção mínima) o rendimento ou a remuneração que o segurado

obtinha com seu trabalho.

Pode ser que o legislador não tenha percebido essas contradições

essenciais em detrimento da concepção moderna e pretendida para o Sistema

de Seguridade Social que foi desenhado na Constituição Federal de 1988.

Pode ser também que o legislador, simplesmente, tenha mantido na

atualidade, por distração, parcimônia e conservadorismo, o espírito caduco e

ultrapassado da lei que, ao seu tempo, tinha sido marco de profundas transfor-

mações sociais, como foi a Lei n. 3.807/60, que disciplinava a previdência

social naquela época.

Pela Lei n. 3.807/60 o valor do então auxílio-doença se traduzia na

expressão do § 1° do artigo 24, pelo qual:

Art. 24.

[...]

§ 1° O auxílio-doença importará em uma renda mensal corres-

pondente a 70% (setenta por cento) do “salário de benefício”

acrescida de 1% (um por cento) desse salário para cada grupo

de 12 (doze) contribuições mensais realizadas pelo segurado

até o máximo de 20% (vinte por cento), consideradas, como

uma única, todas as contribuições realizadas em um mesmo mês.

Pelo que se depreende da fórmula desse parágrafo, a alíquota ordiná-

ria do auxílio-doença seria à base de 70% subindo até 90% se o segurado

tivesse contribuído por pelo menos 20 anos, considerando que cada acréscimo

de 1% corresponderia ao período de contribuição de 12 meses.

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Mas, a realidade social que se mostrava nos anos da década de 1960,

ainda que sobre o peso das honrosas conquistas sociais duramente obtidas,

hoje, não mais se coaduna com o espírito da nova concepção da seguridade

social como meio de proteção social para a garantia mínima de proteção social

à sociedade e à manutenção da ordem social.

Quem sabe, ainda, o legislador, ao estabelecer uma alíquota à base de

91%, não tinha em vista outra regra que pode suprir essa defasagem em relação

ao possível patamar de 100% e conseqüente integralidade do benefício, espe-

cificamente a regra de “cooperação social” de que dispõe o parágrafo único do

artigo 63 da Lei n. 8.213/91.

Nesses termos:

Art. 63.

[...]

Parágrafo único. A empresa que garantir ao segurado licença

remunerada ficará obrigada a pagar-lhe durante o período de

auxílio-doença a eventual diferença entre o valor deste e a im-

portância garantida pela licença.

Por isso que este trabalho estabeleceu a denominação de “regra de

cooperação social”, porque a Previdência Social compartilha com as empre-

sas uma iniciativa de cooperação destas em favor da sociedade, tendo como

subterfúgio o apelo de proteção social do segurado, segundo regras de origem

trabalhista que refletem nas regras previdenciárias.

O complemento que a empresa é obrigada a pagar quando o segurado

estiver gozando de licença remunerada, a título da diferença entre a efetiva

remuneração (maior) e o valor devido a título de auxílio-doença (menor) não é

suficiente para atender aos anseios de proteção social da sociedade.

Ora, a licença remunerada em caso de incapacidade é exceção à regra.

Primeiro porque somente alguns segurados contam com a licença e a

suspensão do trabalho enquanto perdurar o acinte da incapacidade, ou seja,

somente os segurados empregados têm essa benesse.

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Segundo, porque a licença para afastamento por incapacidade, para

fins, inclusive, de gozo de auxílio-doença, tem por regra, conforme expressa

determinação do artigo 476 da Consolidação das Leis do Trabalho, uma licença

não remunerada.

A regra de licença é que ela não é remunerada, podendo ser quando

determinado acordo coletivo ou convenção coletiva disponham nesse sentido,

a fim de proporcionar ao trabalhador maior ou menor garantia trabalhista e

social. Mas não é regra.

Dessa forma, pela contundência dos argumentos explicitados nos pa-

rágrafos acima, também não se cogita lógico ou razoável que o legislador te-

nha se valido dessas defesas para estabelecer a alíquota de 91% para fins de

apuração do valor do auxílio-doença.

Embora a alíquota de 91% possa representar a flagrante contradição

aos princípios constitucionais, embora, também, possa ser fruto da herança

congênita e deficiente dos critérios que eram válidos para a realidade social de

uma lei pretérita, e, ainda, embora o legislador tenha compartilhado e agracia-

do as empresas à obrigação (cooperação social) de complementar a diferença

entre a remuneração e o valor do benefício, é certo que, na prática, e segundo

a hipótese legal do artigo 61 da Lei n. 8.213/91, o benefício auxílio-doença

será apurado pela aplicação da fórmula de incidência da alíquota de 91% sobre

a base de cálculo apurada no salário de benefício do segurado.

6.6 CARÊNCIA

Apesar da subsunção que a hipótese legal estabelece o direito do segu-

rado de receber o auxílio-doença nas hipóteses materiais que causarem a in-

capacidade para o trabalho, o artigo 59 da Lei n. 8.213/91 trouxe um empeci-

lho formal para a fruição do benefício pelo segurado, que é a carência prevista

na mesma lei.

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A carência é uma condição formal como já se ponderou e no caso do

auxílio-doença está prevista materialmente no inciso I do artigo 25, com a consi-

deração excepcional do inciso II do subseqüente artigo 26, ambos da lei refe-

rida acima.

A regra se infirma no inciso I do artigo 25, segundo o qual:

Art. 25. A concessão das prestações pecuniárias do Regime

Geral de Previdência Social depende dos seguintes períodos

de carência, ressalvado o disposto no artigo 26:

[...]

I – auxílio-doença e aposentadoria por invalidez: 12 (doze) con-

tribuições mensais;

Assim, para usufruir do auxílio-doença o segurado deverá, antes, ter

contribuído para o financiamento da seguridade social, por meio da contri-

buição social a seu cargo, pelo período de 12 meses, ininterruptamente, sob

pena de, assim não fazendo, não preencher um requisito formal e legal para o

recebimento do valor do benefício.

Já se argumentou o que a carência acaba representando para o deslinde

da prestação dos benefícios previdenciários, como também acontece no auxílio-

doença, pois, apesar de garantir certa segurança e lastro financeiro ao sistema

de seguridade social, fato é que a carência impede e obstaculiza o exercício

do direito do segurado, mesmo que este, materialmente, esteja sofrendo com

as conseqüências da incapacidade para o trabalho.

Enfim, o prazo de 12 contribuições mensais exigido por carência dever

corresponder à expectativa e à previsão que os estudos financeiros e atuariais

da seguridade social corroboraram quando do implemento da Lei n. 8.212/91 e

da Lei n. 8.213/91 na composição sine qua non dos planos de custeio e plano

de benefícios exigido para o fiel cumprimento dos fins sociais que se aviventa-

ram para o modelo do Sistema de Seguridade Social no Brasil.

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Pela previsão desse inciso I do artigo 25 não se pode deduzir, segundo

a divisão proposta para a causalidade do evento incapacidade, entre causas

decorrentes ou não do exercício do trabalho, apesar de ambas terem as mesmas

conseqüências, se a carência estipulada será exigida para o caso da incapaci-

dade por causas comuns ou por causas ligadas ao trabalho.

Quem permite essa compreensão é o inciso II do artigo 26, porque nele

se encontra a regra excepcional que outorga a determinados benefícios previ-

denciários, segundo certas circunstâncias materiais, a isenção e desneces-

sidade no cumprimento da carência.

Assevera o inciso II do artigo 26:

Art. 26. Independe de carência a concessão das seguintes pres-

tações:

[...]

II – auxílio-doença e aposentadoria por invalidez nos casos de

acidente de qualquer natureza ou causa e de doença profissio-

nal ou do trabalho, bem como nos casos de segurado que, após

filiar-se ao Regime Geral de Previdência Social, for acometido

de alguma das doenças e afecções especificadas em lista ela-

borada pelos Ministérios da Saúde e do Trabalho e da Previ-

dência Social 22 a cada três anos, de acordo com os critérios de

estigma, deformação, mutilação, deficiência, ou outro fator que

lhe confira especificidade e gravidade que mereçam tratamento

particularizado; [grifo nosso]

A exceção desse inciso se refere a duas causas que determinem o

benefício auxílio-doença: uma, quando a causa se der por “acidente de qualquer

natureza ou causa”; e outra, quando a causa for decorrente de “doença profis-

22 Atualmente denominado Ministério do Trabalho e Emprego pelo art. 25 da Lei n. 10.683/03.

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sional ou do trabalho” mais aquelas doenças especificadas pelo Ministério do

Trabalho e Emprego que sejam relacionadas ao exercício do trabalho.

Dessa forma, a carência exigida no auxílio-doença, aqui denominado

auxílio-doença comum, segundo a classificação proposta anteriormente, só

deverá ser observada quando a incapacidade total e temporária para o exercício

do trabalho sobrevier da ocorrência de uma doença comum, não relacionada

ao trabalho, porque nos outros casos (acidente do trabalho, acidente de qual-

quer natureza e doenças relacionadas ao exercício do trabalho) lhes foi eximida

esta obrigatoriedade.

Assim, se a relação jurídica do benefício previdenciário auxílio-doença

se materializar e se subsumir conforme as hipóteses da lei, então a prestação

desse benefício será, a princípio, um adequado instrumento de proteção soci-

al oferecido pela previdência social na atuação da seguridade social para

atender à situação de necessidade da incapacidade total e temporária para o

exercício do trabalho, garantindo, assim e topicamente, a manutenção da or-

dem social.

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CAPÍTULO 7

AUXÍLIO-DOENÇAACIDENTÁRIO

De acordo com o entendimento esposado acerca da questão do risco

social da incapacidade, como fruto da relação de causalidade entre dois fenô-

menos, um causa e outro conseqüência, sendo causa a ocorrência de uma

doença ou de um acidente, classificados pela especial circunstância do traba-

lho, e como conseqüência a concretização da incapacidade para o exercício

do trabalho.

Decorre desse entendimento, quanto à causa, que as doenças e os

acidentes podem ser separados em sua origem circunstancial como se afirmou,

fazendo surgir quatro espécies de situações, uma da doença comum compar-

tilhada com o acidente de qualquer natureza, e outra da doença profissional

ou do trabalho compartilhada com o acidente do trabalho.

Cada uma dessas situações, desde que gere a conseqüência incapa-

cidade para o exercício do trabalho, implica na instrumentalização específica

proporcionada pela previdência social que garante determinados benefícios

previdenciários conforme a necessidade do caso.

Assim também para o auxílio-doença, por isso, que, depois de estudado

o benefício auxílio-doença comum (em razão de doenças e acidentes comuns),

torna-se oportuno estudar o auxílio-doença acidentário, assim chamado porque

em sua causa está diretamente relacionado ao exercício do trabalho.

Ressalva seja feita que a Lei n. 8.213/91 não criou e estabeleceu, sepa-

radamente, dois benefícios de auxílio-doença, cada qual segundo regras próprias

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e específicas, mas, de outro modo, a lei criou duas materialidades distintas, e

se a materialidade – que é a razão de ser do benefício – explicita a hipótese

concreta da situação da vida a ser protegida, em verdade, ela acaba por estabe-

lecer, tacitamente, duas formas de proteção, pois, em sua raiz, em sua causa

originária, as situações são distintas como tentou demonstrar.

7.1 MATERIALIDADE

A materialidade do auxílio-doença acidentário, por sua vez, diferente-

mente da materialidade do auxílio-doença comum, tem uma especial vinculação

com a questão do trabalho, não somente na conseqüência incapacidade que

justifica sua existência, mas especialmente na causa, que é o evento de que

decorre a conseqüência.

O auxílio-doença acidentário visa proteger a situação de necessidade

que a incapacidade para o exercício do trabalho repercute na vida do segurado,

exigindo o afastamento de suas atividades laborais e prejudicando o recebi-

mento de sua remuneração.

Mas essa situação de incapacidade para ganhar o louro do tratamento

“acidentário” deve ter sido causada por uma das situações previstas pela Lei

n. 8.213/91 quando disciplina o acidente do trabalho.

Tais disposições estão previstas a partir do artigo 19 até o artigo 23 da lei.

Corroborando os argumentos já apresentados anteriormente, nota-se

que o ordenamento jurídico brasileiro sempre deixou claro o tratamento espe-

cial que as questões relativas ao acidente do trabalho traduzem para a socie-

dade, não é por outra razão que o trabalho foi erigido como um primado da

ordem social.

Tanto a Constituição Federal de 1988 como as leis previdenciárias fa-

zem questão de tratar o acidente do trabalho de maneira específica, com a

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previsão de conceitos próprios, a sujeição a regras distintas de situações co-

muns, estabelecendo um tratamento diferenciado e particularizando os efeitos

jurídicos sobre esse fato, como o disposto no § 10 do artigo 201 da Constitui-

ção Federal de 1988.

Art. 201.

[...]

§ 10 Lei disciplinará a cobertura do risco de acidente do trabalho,

a ser atendida concorrentemente pelo regime geral de previdên-

cia social e pelo setor privado.

E, realmente, assim a Lei n. 8.213/91 o fez quando disciplinou a questão

do acidente do trabalho a partir do artigo 19 até o artigo 23, como já indicado.

O auxílio-doença acidentário tem como causa ou o evento doença pro-

fissional ou doença do trabalho e principalmente o evento acidente do trabalho.

As definições legais já foram anunciadas e citadas quando estudado o

risco social da incapacidade, mas, ainda sim, e à exaustão, vale lembrar.

O acidente do trabalho, segundo o artigo 19 da Lei n. 8.213/91 é definido

como:

[...] o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa

ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso

VII do artigo 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturba-

ção funcional que cause a morte ou a perda ou redução, perma-

nente ou temporária, da capacidade para o trabalho.

Diferente do acidente comum, o acidente do trabalho ocorre pelo exercí-

cio do trabalho, em razão dele, por causa dele, sob suas circunstâncias e no

ambiente em que se desenvolve o trabalho.

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Também é devido o auxílio-doença acidentário quando a incapacidade

para o exercício do trabalho for decorrente da doença profissional ou doença

do trabalho, que estão definidas nos incisos I e II, respectivamente, do artigo

20 da Lei de Benefícios.

Mas não só as doenças que estão, genericamente, definidas por essas

disposições, como aquelas que são equiparadas por lei ao acidente do trabalho

e merecerão o mesmo tratamento.

O estudo de todas as vicissitudes do acidente do trabalho realmente

seria interessantíssimo, porém, tal feito exigiria outro trabalho da mesma enver-

gadura que este se propõe a ser, e, portanto, protegido pela escusa científica

que permite o respeito à especificidade do tema a ser estudado, o desenvolvi-

mento aprofundado das causas, das circunstâncias, das espécies e das regras

sobre o acidente do trabalho será limitado ao entendimento de que ele funda-

menta a concessão do auxílio-doença acidentário.

7.2 SUJEITOS

Como a Constituição Federal de 1988 pretendia, houve o disciplinante

cotejo da lei com a cobertura do acidente do trabalho, e tamanho entusiasmo

dirigiu o legislador que o tratamento jurídico dado ao acidente do trabalho

prestigia somente alguns dos segurados que o elenco do artigo 11 da Lei n.

8.213/91 organiza, define e indica como sujeitos protegidos na relação jurídica

de benefícios previdenciários.

A Lei de Benefícios não foi direta sobre quem são efetivamente os se-

gurados protegidos nas situações de acidente do trabalho, porque só fez essa

diferenciação no § 1° do artigo 18, quando enumera quais segurados poderão

beneficiar-se do auxílio-acidente (benefício concedido em razão da incapaci-

dade parcial e permanente para o exercício do trabalho), nestes termos:

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Art. 18.

§ 1° Somente poderão beneficiar-se do auxílio-acidente os se-

gurados incluídos nos incisos I, VI e VII do artigo 11 desta Lei.

O inciso I do artigo 11 identifica o segurado empregado, ou seja, o que

mantém vínculo empregatício com a empresa ou empregador, seja empregado

efetivo ou temporário, nos termos da legislação trabalhista.

Já o inciso VI indica o trabalhador avulso, que pela definição contida

nesse dispositivo, é o trabalhador que “...presta, a diversas empresas, sem

vínculo empregatício, serviço de natureza urbana ou rural definidos no

Regulamento”.

Já o regulamento, que é o Decreto n. 3.048/99, incrementa essa defini-

ção para explicitar que o trabalhador avulso é aquele que, sindicalizado ou

não, presta serviço de natureza urbana ou rural a diversas empresas, sem

vínculo empregatício, com a intermediação obrigatória do órgão gestor de mão-

de-obra, nos termos da Lei n. 8.630/93, ou do sindicato da categoria, assim

considerados: [...] e seguem as alíneas do inciso VI do artigo 9° do decreto

aqui referido, exemplificando as categorias desses trabalhadores, por exem-

plo, o trabalhador que exerce atividade portuária de capatazia, estiva etc.

E, na ordem assumida pelo § 1° do artigo 18, também serão contem-

plados os segurados do inciso VII do artigo 11, ou assim denominados os se-

gurados especiais.

Os segurados especiais são fruto da categorização criada pela lei

previdenciária, que identificou determinados trabalhadores e suas especiais

circunstâncias de trabalho, para quem, avessos à proteção previdenciária na

legislação anterior, ganharam força institucional, e foram identificados como

outra categoria de segurados obrigatórios a ser protegidos pela previdência

social.

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Os segurados especiais foram definidos como

o produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais, o garim-

peiro,23 o pescador artesanal e o assemelhado, que exerçam

suas atividades, individualmente ou em regime de economia

familiar, ainda que com o auxílio eventual de terceiros, bem como

seus respectivos cônjuges ou companheiros e filhos maiores de

14 (quatorze) anos24 ou a eles equiparados, desde que traba-

lhem, comprovadamente, com o grupo familiar respectivo.

Os segurados especiais foram expressamente mencionados na defini-

ção do acidente do trabalho contida no artigo 19 da mesma lei.

Os segurados empregado, trabalhador avulso e o segurado especial,

portanto, pela distribuição dada no § 1° do artigo da Lei de Benefícios, recebe-

rão o benefício auxílio-acidente.

Como já foi asseverado, a Lei n. 9.528/97 alterou a definição do bene-

fício auxílio-acidente, estendendo o benefício não somente à situação do aci-

dente do trabalho, mas a qualquer situação de acidente, ou a acidentes de

qualquer natureza.

Essa modificação trouxe uma série de confusões sobre a questão do

acidente do trabalho, porque o restante da lei não foi alterado, sendo mantidas

todas as disposições que disciplinam as situações decorrentes do acidente do

trabalho, o que, em verdade, faz surgir duas materialidades distintas.

Assim, o benéficio auxílio-acidente, antes da alteração de 1997, era

devido somente aos casos de acidente do trabalho, daí a justificativa para a

23 O garimpeiro está excluído por força da Lei n. 8.398, de 7/1/1992, que alterou a redação

do inciso VII do art. 12 da Lei n. 8.212, de 24/7/1991.

24 O inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal, na redação dada pelo art. 1º da Emenda

Constitucional n. 20, de 1998, estabelece 16 anos como a idade mínima para o trabalho

do menor.

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imputação específica desse benefício aos segurados empregado, trabalhador

avulso e segurado especial, como aduz o § 1° do artigo 18 da Lei n. 8.213/91.

Como o auxílio-acidente é benefício que decorre, no mais das vezes,

da evolução do quadro circunstancial da incapacidade total e temporária que

se verificou para a concessão do auxílio-doença, e que, por diversas razões,

tornou-se uma incapacidade parcial e permanente, representada pela consoli-

dação da lesão ou da perturbação funcional sofrida pelo segurado, a chamada

“seqüela”, em verdade, o que o legislador pretendia era imputar a proteção do

acidente do trabalho somente aos três segurados antes mencionados.

E como a proteção do acidente do trabalho envolve a concessão de

quatro prestações em forma de benefícios previdenciários, que são os instru-

mentos específicos para a proteção do risco social da incapacidade, ou seja, o

auxílio-doença, o auxílio-acidente, a aposentadoria por invalidez e a pensão

por morte, deduz-se por interpretação sistemática e teleológica que tais bene-

fícios, quando caracterizados pela especial ocorrência do acidente do trabalho

ou doenças equiparadas, somente serão devidos e prestados a esses segurados

identificados acima.

O Decreto n. 3.048/99 também não resolveu essa confusão legislativa,

identificando o tratamento diferenciado ao segurado empregado, ao trabalhador

avulso e ao segurado especial somente quando disciplina e esclarece o bene-

fício auxílio-acidente.

Seja como for, e pela impropriedade terminológica ou pela contradição

legal que a Lei n. 8.213/91 não foi clara o suficiente para esclarecer, o fato é

que as interpretações sistemática e teleológica resolvem essas problemáticas,

sendo necessário, somente, o foco e a atenção à questão da materialidade do

benefício, pois é na materialidade que se encontra a real situação a ser prote-

gida pela previdência social.

E pela materialidade, resta, ao menos, bastante razoável que no mundo

empírico, no mundo da vida há a incapacidade que decorre da causa acidente

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de qualquer natureza ou de doenças não relacionadas ao trabalho, mas tam-

bém da causa acidente do trabalho e doenças a ele equiparadas.

Tal evidência pode oferecer a resposta para tais problemáticas, permi-

tindo deduzir que o auxílio-doença acidentário somente é devido aos segurados

empregado, trabalhador avulso e segurado especial.

Há quem diga que o tratamento específico e especial dado a esses

segurados corrompa e subverta a isonomia, mas, se realmente forem levados

em consideração os princípios que regem a seguridade social, então se pode

sustentar que o tratamento diferenciado se baseia na aplicação concreta do

princípio da seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e

serviços.

Pela seletividade o legislador reconhece e identifica as situações de

necessidade que merecem a proteção social oferecida pelo instrumental da

previdência social, determina qual instrumento de proteção, ou seja, qual be-

nefício ou serviço atende ao propósito de proteger o risco social identificado,

como se dá na proteção do acidente do trabalho.

E pela distributividade, sucedânea da seletividade, o legislador aponta e

distribui os instrumentos de proteção a cada um dos segurados, que, a seu

critério e com base na isonomia e justiça social, merecem determinados trata-

mentos, seja por suas condições pessoais, seja por suas situações sociais, seja

ainda pela circunstância que envolve o desempenho de suas atividades profissio-

nais e laborais, exatamente como se dá para a proteção do segurado emprega-

do, trabalhador avulso e segurado especial nas situações de acidente do trabalho.

7.3 OBJETO

Pelo objeto se identifica a prestação oferecida, ou, melhor, se identifica

qual o instrumento de proteção social que se presta a atender à situação de neces-

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sidade a ser protegida, e que, pelos entendimentos anteriores, corresponde

ao benefício ou ao serviço quando estes se derem na relação jurídica

previdenciária.

O auxílio-doença acidentário como objeto da relação previdenciária que

forma entre a previdência social e os três segurados identificados acima, pres-

ta-se a atender à incapacidade total e temporária para o exercício do trabalho

decorrente da ocorrência do acidente do trabalho ou das doenças a ele

equiparadas.

Para tanto, o auxílio-doença acidentário, como prestação pecuniária

continuada, não recebeu nenhum tratamento diferenciado pela Lei n. 8.213/91

que alterasse o tempo do pagamento, o lugar do pagamento e o valor do paga-

mento, que já foram explicitados no benefício auxílio-doença comum.

Nem precisava ser diferente, porque, o que altera o benefício e justifica

o tratamento especial não são seus aspectos temporais, espaciais ou quantita-

tivos, mas sim o aspecto material, porque na materialidade é que se encontra

a situação de necessidade a ser protegida.

Portanto, o auxílio-doença acidentário também será prestado ao segu-

rado empregado após o 15° dia da ocorrência da incapacidade, aos demais (e

neste pormenor, ao trabalhador avulso e segurado especial) será devido a

partir da data da incapacidade, e para todos, se o requerimento for realizado

após 30 dias contados da data de ocorrência da incapacidade, então ele será

devido somente a partir da data do requerimento, recebendo somente os efei-

tos ex tunc da norma.

Essa disposição está, da mesma forma, prevista no caput e no § 1°,

ambos, do artigo 60 da Lei n. 8.213/91.

Quanto ao lugar do pagamento, o auxílio-doença acidentário também

será prestado no território nacional, com a ressalva da extraterritorialidade a

que alguns segurados do artigo 11 da Lei de Benefícios estão submetidos no

desempenho de suas atividades laborais.

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E por fim, quanto ao valor do pagamento, ao aspecto quantitativo do

auxílio-doença acidentário, também consistirá numa renda mensal correspon-

dente a 91% do salário de benefício a ser apurado para cada segurado, nos

exatos termos do artigo 61 da Lei de Benefícios.

Para todos esses aspectos valem as observações, os apontamentos,

as críticas e as considerações que foram explicitadas e combatidas quando

tratadas no benefício auxílio-doença comum, e que não serão novamente dis-

cutidas para que o trabalho não se torne deveras prolixo e fastidioso.

7.4 OUTROS ASPECTOS

Há dois aspectos, um de natureza formal e outro de natureza material,

a ser explicitados no estudo do benefício auxílio-doença acidentário que o dife-

rem do auxílio-doença comum.

Primeiro, no aspecto formal, avulta a questão da carência, instituto jurí-

dico já conceituado, que, conforme a disposição do inciso II do artigo 26 da Lei

n. 8.213/91, no que tange ao auxílio-doença acidentário, foi expressamente

dispensada para os eventos de acidentes de qualquer natureza ou causa e

para as doenças profissionais ou do trabalho, e ainda para aquelas que cons-

tem na relação do Ministério do Trabalho e Emprego.

Aqui novamente se enfrenta a questão da materialidade como único

critério suficiente e razoável para sanar e esclarecer as idiossincrasias legais

a respeito do acidente do trabalho, e que, tão exaustivamente discutida neste

trabalho, deve ser levada em consideração para alcançar a conclusão de que

não se exige o cumprimento de carência para o recebimento do auxílio-doen-

ça acidentário, desde que, obviamente, os segurados protegidos estejam efe-

tivamente inscritos e filiados à previdência social.

E segundo, no aspecto material, emerge a especial disposição legal do

artigo 118 da Lei n. 8.213/91, que impõe, mais do que um direito previdenciário,

um direito de natureza trabalhista ao segurado que sofrer acidente do trabalho.

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O artigo 118 explicita:

Art. 118. O segurado que sofreu acidente do trabalho tem garan-

tida, pelo prazo mínimo de doze meses, a manutenção do seu

contrato de trabalho na empresa, após a cessação do auxílio-

doença acidentário, independentemente de percepção de auxílio-

acidente.

Resplandecem três considerações importantes.

A primeira, tempestivamente, e para finalizar a discussão sobre se existe

ou não diferença entre auxílio-doença comum e acidentário, apesar dos argu-

mentos quanto à materialidade das causas que determinam um acidente do

trabalho e um acidente de qualquer natureza, nesse artigo o próprio legislador

demonstrou sua intenção manifesta quando denominou “auxílio-doença

acidentário” como terminologia necessária para distinguir dois benefícios dis-

tintos, como se tem defendido neste trabalho.

Segundo, que a disposição contida no artigo 118 aqui citado tem caráter

material porque efetivamente confere ao segurado empregado (e somente a

ele) o direito subjetivo de exigir a manutenção do seu contrato de trabalho com

a empresa pelo período de 12 meses, até que se opere a caducidade dessa

prerrogativa.

Esse direito se dá em razão do benefício auxílio-doença acidentário, e

somente pode ser exercido pelo segurado que fez jus e gozou do benefício,

pois a contagem dos 12 meses se opera a partir da cessação do recebimento

do benefício.

Esse momento é definido pela perícia médica da previdência social,

que confere um atestado de capacidade para o segurado, seja pela alta médica

que ateste a recuperação total do segurado, seja pela constatação de que a

incapacidade é parcial, podendo, em ambos os casos, garantir ao segurado

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que ele retorne a seu posto de trabalho, ou, no caso de reabilitação profissio-

nal, a outro que o segurado possa exercer.

Esse direito é chamado de “estabilidade”, porque garante a estabilida-

de do emprego pelo prazo de 12 meses.

Se essa estabilidade não for respeitada pela empresa, então, o segurado

tem garantido, pelas normas de direito do trabalho, que esse direito lhe seja

indenizado financeiramente como se estivesse regularmente usufruindo suas

benesses materiais.

Não é demais ponderar sobre a finalidade que inspirou o legislador a

dispor de um direito material de caráter protetivo como o da garantia à estabi-

lidade e manutenção do contrato de trabalho após a cessação do recebimento

do auxílio-doença acidentário, independentemente da percepção do auxílio-

acidente.

A finalidade repousa na especial consideração de que o segurado que

ficou afastado pela incapacidade para o exercício do trabalho decorrente do

acidente do trabalho ou das doenças a ele equiparadas pode, em muitos casos,

ficar ausente do mercado de trabalho por largo período de tempo, o que lhe

traz uma insegurança contundente e ameaçadora para ele se inserir nova-

mente em algum posto de trabalho.

Ademais, o afastamento só se deu pela ocorrência de um acidente do

trabalho, ou seja, no exercício do trabalho, e seria atroz e funesto abandonar o

segurado empregado na situação de desemprego involuntário, como se já não

bastassem todo o sofrimento, a dor e o enfrentamento em razão das conseqüên-

cias diretas da lesão corporal ou da perturbação funcional que o incapacitaram.

Há também a preocupação como aqueles segurados empregados que,

afastados da mesma forma, não se recuperam totalmente das mazelas do aci-

dente do trabalho ou das doenças equiparadas a ele, e que parcialmente recu-

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perados ou encaminhados pelo serviço de reabilitação profissional que lhes

garantiu nova habilidade profissional, ficariam ainda mais sujeitos ao desen-

gano do mercado de trabalho, cada vez mais opressor e reticente para a absor-

ção de novos trabalhadores, quanto mais de trabalhadores que sofram alguma

limitação ou deficiência permanente.

Para tanto, além da disposição do artigo 118, e atendendo ao universo

de segurados (sejam os empregados, sejam quais forem), na esteira dessa preo-

cupação social, brilha a disposição do artigo 93 e sucedâneos da mesma Lei

de Benefícios:

Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está

obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por

cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas

portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção:

[...]

Essa obrigação se traduz na imputação da função social a que as em-

presas devem atender em favor de uma sociedade democrática que tem como

primado o trabalho para servir de base ao bem-estar e justiça sociais, como

objetivos magnânimos da ordem social.

Oxalá outras disposições legais surjam para conferir e laurear os segu-

rados e trabalhadores com direitos e prerrogativas sociais tão sensíveis e im-

portantes como esta, e, mais, que sejam estendidas, inclusive esta, a uma

universalidade ainda mais abrangente de sujeitos protegidos e de situações

de necessidade que se apresentem no mundo da vida, porque assim estarão

resguardadas as condições imprescindíveis para o desenvolvimento do ser

humano e da vida digna, independente e livre.

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CONCLUSÕES

Ao final deste trabalho há conclusões muito satisfatórias a manifestar e

algumas críticas, sem perder de vista a real intenção e justificativa para o de-

senvolvimento do tema proposto, e para a verificação tópica do benefício

previdenciário auxílio-doença como instrumento de proteção social para o aten-

dimento das situações de necessidade decorrentes da incapacidade para o

exercício do trabalho, pois, nesse risco social, a sociedade enfrenta uma série

de contingências que comprometem o desenvolvimento digno de seus mem-

bros e que só serão protegidos pela atuação concreta da seguridade social em

busca da manutenção da ordem social.

1. Nestas conclusões avulta grandiosa a solidariedade como alicerce

essencial que justifica a organização do Sistema de Seguridade Social como

um conjunto de ações de iniciativa dos membros da sociedade, poder público,

empresas e empregadores e trabalhadores, todos envoltos na mesma finalidade

e sujeitos às mesmas contingências do mundo da vida, compartilhando do

mesmo interesse e da mesma necessidade, especialmente para a manutenção

da ordem social, que tem como primado o trabalho e como objetivos o bem-

estar e a justiça sociais, como, expressamente, determinou a Constituição Fe-

deral de 1988.

A seguridade social manifesta seus tentáculos protetivos pela atuação

direta e positiva da previdência social, da assistência social e da saúde, cada

qual pela prestação e oferecimento de instrumentos de proteção social, materia-

lizados por benefícios e serviços em favor da sociedade.

Esse Sistema de Seguridade Social está programado para buscar de-

terminados objetivos ideais que podem ser compreendidos como princípios e que

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dirigem e direcionam a atividade do legislador, do poder público, da sociedade

e de cada operador do direito, pois se revelam valores essenciais para a manu-

tenção de níveis adequados e apropriados de dignidade humana, sem os quais

toda a ordem social ficaria comprometida em sua compactação concreta no

Estado democrático de direito.

Foi possível, também, compreender a questão do risco social como o

elemento que justifica a atuação da seguridade social, pois, como situações

de necessidade que sujeitam os membros da sociedade ao enfrentamento de

diversas conseqüências nefastas e ameaçadoras para o desenvolvimento de

uma vida digna e, comprometedoras, para a evolução do ser humano.

2. Outra conclusão que sobressai deste trabalho é que o Sistema de

Seguridade Social depende da organização e da composição de dois vértices

basilares para sua sustentação e existência, baseados na idéia do financia-

mento ou custeio, e, em contrapartida, pela prestação de benefícios e serviços.

Tal composição, compreendida como “regra de contrapartida”, é a con-

dição essencial para a manutenção e existência do Sistema de Seguridade

Social, pela atuação da previdência social, assistência social e saúde, pois os

benefícios e serviços a ser oferecidos como instrumentos de proteção social

acarretam, em especial, despesas e custos que, repartidos entre todos os mem-

bros da sociedade, pela solidariedade já aventada, necessitam de um finan-

ciamento e custeio anterior, suficientes para o atendimento e proteção de todas

as situações de necessidade que a sociedade enfrenta na ordem social.

Assim, para o Sistema de Seguridade Social foi montado e desenhado

um sistema organizado, estruturado e apto, baseado no financiamento a ser

carreado pela sociedade segundo atividades fiscais que se baseiam, ou assim

deveriam se basear, nas contingências reveladas pelos estudos e dados

técnicos, financeiros, econômicos e atuariais obtidos da própria sociedade, como

a principal base para a justa verificação do que, como e quanto será prestado

a título de proteção social.

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É nessa concepção que surgem os benefícios previdenciários como

instrumentos de proteção social prestados pela previdência social na atuação

da seguridade social.

Especificamente, este trabalho apresentou o benefício previdenciário

chamado auxílio-doença e sobre ele muitas conclusões foram alcançadas, seja

sob a óptica da análise objetiva, seja sob o prisma da exegese crítica, a principal

conclusão foi que o benefício previdenciário auxílio-doença representa efeti-

vamente um instrumento de proteção social que atende de maneira adequada

à situação de necessidade decorrente das conseqüências da incapacidade

para o exercício do trabalho.

Na estruturação do benefício previdenciário auxílio-doença, considerado

como objeto de uma relação jurídica entre dois sujeitos, há o sujeito passivo

previdência social, que tem o dever de prestar o benefício, e o sujeito ativo,

segurados (obrigatórios ou facultativos) que têm o direito de exigir essa deter-

minada prestação quando satisfeitas as condições materiais que exige a Lei n.

8.213/91, e segundo as regras para a concreta prestação desse objeto.

Tais regras envolvem a questão da eficácia no tempo, o momento no

tempo em que o benefício pode ser exigido, o lugar onde deve ser prestado e,

na questão da aspecto quantitativo, que deve ser obtido e verificado pela apura-

ção do valor econômico do benefício a ser prestado, pois, como se viu, o auxílio-

doença é uma prestação cujo conteúdo compreende uma obrigação pecuniária,

e, portanto, o benefício previdenciário é um pagamento que deve ser satisfeito

pela previdência social em favor dos segurados.

Nessas considerações, criticamente, restou aventado que alguns desses

elementos estruturais estão em conflito com os valores principiológicos e com

o ideal de proteção social que marcam a atuação da seguridade social, como

o caso da exigência de carência como condição formal para o exercício do

benefício previdenciário, ou como o caso da estipulação da alíquota na base

de 91%, inferior, portanto, à integralidade que seria possível no cálculo do valor

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do benefício previdenciário, tendo em vista que as aparentes justificativas para

tais deficiências não se sustentam diante do desenho constitucional com que

foi concebido o Sistema de Seguridade Social, e a própria previdência social.

3. Outra questão que avulta relevante foi a conclusão de que o risco

social da incapacidade enfrenta a constatação de que na raiz dessa conseqüên-

cia está a causa material que a justifica, ou seja, na ocorrência de certos eventos

do mundo da vida, que são a doença e o acidente, pelos quais, os segurados

sofrem e são acometidos de lesões corporais e perturbações funcionais que

podem resultar na incapacidade para o exercício do trabalho em várias conse-

qüências fáticas, seja com a morte, seja com a perda ou redução, temporária

ou permanente, da capacidade para o exercício do trabalho.

Mas, na consideração da causa, restou demonstrado que as doenças e

os acidentes podem ou não ser decorrentes do especial exercício do trabalho,

ou seja, que a doença ou o acidente podem ser desenvolvidos ou enfrentados

em razão direta e determinante pelo exercício do trabalho, por suas atividades,

em seu ambiente e por suas conseqüências.

Essa consideração faz surgir duas causas distintas que merecem trata-

mentos distintos pela seguridade social, divididas em causas comuns (não

afetas ao exercício do trabalho) e causas acidentárias (quando motivadas em

razão do exercício do trabalho), exigindo a prestação de benefícios distintos,

voltados a garantir a proteção social em cada uma dessas situações materiais.

Bem verdade que o legislador tropeçou e criou certas confusões termino-

lógicas que complicam a interpretação do hermeneuta e do aplicador do direi-

to, como foi a alteração na materialidade do benefício auxílio-acidente (outro

instrumento de proteção social sucedâneo do auxílio-doença estudado neste

trabalho) que substituiu a expressão “acidente do trabalho” por “acidentes de

qualquer natureza”, como se um contivesse o outro. No rigor terminológico,

sim, mas no campo de verificação material, no mundo da vida, nas demonstra-

ções empíricas dos fatos, não, porque a incapacidade para o exercício do traba-

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lho ora pode ser causada por doenças ou acidentes que nada têm com o exer-

cício do trabalho, pois em campos absolutamente avessos a esse ambiente,

ora tem relação direta, em sua causa, com o exercício do trabalho.

Por isso, que, segundo essa conclusão, este trabalho preferiu o desen-

volvimento dicotômico no estudo do auxílio-doença, dividido em auxílio-doença

comum e auxílio-doença acidentário, conforme o caso.

4. De qualquer forma, e esta é a principal conclusão obtida neste traba-

lho, o benefício previdenciário auxílio-doença representa um adequado (ainda

que passível de aperfeiçoamento) instrumento de proteção social na atuação

da seguridade social, pela previdência social, no atendimento das conseqüên-

cias ameaçadoras que a situação de necessidade da incapacidade para o exer-

cício do trabalho (que no caso do auxílio-doença é uma incapacidade total e

temporária, como se demonstrou anteriormente) acarretam quando afastam o

segurado de suas atividades laborais, comprometendo seus rendimentos e

remunerações, condições essenciais para a subsistência, para a sobrevivência

e para o desenvolvimento humano de si mesmo e da sua família, como ex-

pressão concreta dos ideais do bem-estar e da justiça sociais que garantem a

manutenção da ordem social.

Assim, este trabalho, nos objetivos que se propunha desde o início, e

segundo os ditames constitucionais e legais, procurou atender e verificar todos

os elementos que envolvem o benefício previdenciário auxílio-doença, para

oferecer, humildemente, a compreensão de sua categorização e da sua existên-

cia no ordenamento jurídico brasileiro.

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