20
JOELTON NASCIMENTO O AVESSO DO CAPITAL Ensaios sobre o direito e a crítica da economia política

O Avesso do capital - PerSe · O avesso do capital : ensaios sobre o direito e a crítica da economia política / Joelton Nascimento. – São Paulo : PerSe, 2012. ... Juridificação

  • Upload
    lamdang

  • View
    215

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: O Avesso do capital - PerSe · O avesso do capital : ensaios sobre o direito e a crítica da economia política / Joelton Nascimento. – São Paulo : PerSe, 2012. ... Juridificação

JOELTON NASCIMENTO

O AVESSO DO CAPITAL

Ensaios sobre o direito e a crítica da economia política

Page 2: O Avesso do capital - PerSe · O avesso do capital : ensaios sobre o direito e a crítica da economia política / Joelton Nascimento. – São Paulo : PerSe, 2012. ... Juridificação

1

Page 3: O Avesso do capital - PerSe · O avesso do capital : ensaios sobre o direito e a crítica da economia política / Joelton Nascimento. – São Paulo : PerSe, 2012. ... Juridificação

2

JOELTON NASCIMENTO

O AVESSO DO CAPITAL

Ensaios sobre o Direito e a crítica da Economia Política

2012

PerSe Editora

São Paulo

Page 4: O Avesso do capital - PerSe · O avesso do capital : ensaios sobre o direito e a crítica da economia política / Joelton Nascimento. – São Paulo : PerSe, 2012. ... Juridificação

3

Copyleft © Joelton Nascimento

Setembro de 2012

O AVESSO DO CAPITAL

Ensaios sobre o Direito e a crítica da Economia Política

Capa elaborada a partir de foto da obra de Wendel Gabriel A Fita de

Moebius.

FICHA CATALOGRÁFICA

N244a Nascimento, Joelton.

O avesso do capital : ensaios sobre o direito e a crítica da

economia política / Joelton Nascimento. – São Paulo : PerSe,

2012.

196 p. ; 14x21 cm.

Bibliografía: p. 186-196.

1. Capitalismo. 2. Marxismo. 3. Economia política. 4.

Direito – Teoria. I. Título. II. Ensaios sobre o direito e a

crítica da economia política.

CDU – 330.342.14

Ficha elaborada por Rosângela Aparecida Vicente Söhn –

CRB-1/931

ISBN 978-85-8196-129-3 (Impresso)

ISBN 978-85-8196-130-9 (Ebook)

Page 5: O Avesso do capital - PerSe · O avesso do capital : ensaios sobre o direito e a crítica da economia política / Joelton Nascimento. – São Paulo : PerSe, 2012. ... Juridificação

4

Apresentação

Nunca vivemos tantas crises ao mesmo tempo. Em meio

a colapsos permanentes e globais de segurança e a uma aguda

emergência ecológica que se aprofunda, vemos aparecer uma

abrupta crise econômica e uma crescente crise alimentar.

Para além da falsa sensação imediata de normalidade, nutrida

constantemente pela indústria da cultura, os pilares da

modernização capitalista vitoriosa sofre fortes abalos que vêm

de seu subsolo. Desmoronou de uma vez por todas a

convicção, professada até pouco tempo, de que havíamos

deixado para trás as grandes crises econômicas e que uma

relação estável entre o capital e o Estado havia sido atingida

de uma vez por todas.

Os diversos grupos e focos de contestação à ordem

global vigente, entretanto, de modo fragmentário e

desconexo, têm tido muita dificuldade em (re)apresentar uma

crítica abrangente e contundente desta ordem de coisas. Em

consequência dessa grave falta, estes grupos e focos são cada

vez mais mastigados e digeridos pelos aparatos de

comunicação massivos que há muito pintam estes

movimentos como um panteão de excentricidades, ou quando

Page 6: O Avesso do capital - PerSe · O avesso do capital : ensaios sobre o direito e a crítica da economia política / Joelton Nascimento. – São Paulo : PerSe, 2012. ... Juridificação

5

muito, apenas como um conjunto curioso de ideias lançadas

ao vento (a expressão corrente para designá-los, “movimentos

antiglobalização”, é testemunha disso). Há, certamente,

aqueles que admitem que tal descentralidade dos

movimentos de contestação global são um de seus pontos

positivos, mas observadores e militantes atentos já

perceberam muito bem que a fragmentação e a desconexão

podem também servir para tornar os movimentos de

contestação mais vulneráveis do que as organizações que eles

pretendem superar, ou seja, os partidos social-democratas e

de trabalhadores tradicionais.

A ordem capitalista global, profunda e sensivelmente

interconectada e automatizada, onde a produção sistemática

de mercadorias se tornou um fato social tão “total”, nunca foi

tão merecedora de uma crítica ampla e profunda de seu modo

“total” de existir. Mas é neste momento, paradoxalmente, que

impera a proibição de pensar em qualquer perspectiva

“totalizadora”, que abarque os diversos fenômenos distintos

em uma crítica da base mesma da sociedade produtora de

mercadorias. Refeitos da “surpresa” de uma grande crise

econômica próxima do final da primeira década do século

XXI – que se soma à ecológica, à alimentar e a uma nova era

de guerras – devemos reconstruir a crítica da modernização

capitalista global? Devemos participar de uma esforço

coletivo para (re)construir uma ponte segura entre esta crítica

Page 7: O Avesso do capital - PerSe · O avesso do capital : ensaios sobre o direito e a crítica da economia política / Joelton Nascimento. – São Paulo : PerSe, 2012. ... Juridificação

6

e a contestação organizada globalmente contra os

dilaceramentos sociais do capitalismo global? Minha resposta

a ambas as questões é um firme “sim”!

Também no campo de estudos do direito e do estado as

crises de nosso tempo demandam uma reconstrução da

crítica da modernização capitalista global e de seus rumos. Se

a crise econômica tomou de assalto a mentalidade dos

economistas conservadores como um terrível raio em um céu

azul de verão, também as recentes “desregulações” globais

têm intrigado os juristas e políticos conservadores. A criação

e a violação sistemática de tratados e acordos internacionais,

a guerra (terrorista) contra o terrorismo e o estado de

emergência econômica que tem se tornado a regra, são os

mais candentes paradoxos contemporâneos e têm

surpreendido a muitos. Como podem os aparatos de

regulação da sociedade contemporânea servir tão bem ao

propósito de promover um des-regulado funcionamento dos

processos sociais? Ou ainda: como as leis e as instituições têm

servido como pretexto e alavanca para um paradoxal controle

da (e na forma de) desordem? Haveria alguma ligação entre

crise econômica e crise jurídico-normativa?

Os ensaios recolhidos neste livro pretendem contribuir

para responder tais questões. Ressalte-se, entretanto, que

contribuir para que uma questão seja respondida não é o

mesmo que respondê-la. É preciso admitir que tais questões

Page 8: O Avesso do capital - PerSe · O avesso do capital : ensaios sobre o direito e a crítica da economia política / Joelton Nascimento. – São Paulo : PerSe, 2012. ... Juridificação

7

ainda permanecem plenamente abertas. Cremos que é

chegado o momento de colocar nossa reflexão a serviço de

uma emancipação profunda, que penetre fundo nas bases de

nossa realidade social que, apesar de se ver em crise, parece

atônita quando se trata de agir na direção de um novo

começo. Neste sentido, ao levar adiante as reflexões deste

livro nos encontramos plenamente de acordo com o filósofo

francês Alain Badiou, quando este percebe e nomeia o que

vivemos hoje como “a época da refundação da hipótese

comunista”1.

Nenhum dos ensaios aqui presentes é inédito. A maioria

deles já foi publicada na revista Sinal de Menos2. Uma versão

diminuída de A igualdade jurídica sob suspeita, já saiu como

resenha na Crítica Marxista, e uma versão de A justiça que

vem, já saiu na Revista Plural. Estes textos aparecem aqui

sem alterações significativas.

***

Não posso deixar de agradecer a Alysson Leandro

Mascaro, por seu ensino e amizade de anos. É gigantesca

minha dívida com ele. A Márcio Bilharinho Naves agradeço

1Badiou, 2009, p. 56. 2 Disponível em http://www.sinaldemenos.org.

Page 9: O Avesso do capital - PerSe · O avesso do capital : ensaios sobre o direito e a crítica da economia política / Joelton Nascimento. – São Paulo : PerSe, 2012. ... Juridificação

8

por seu incansável trabalho intelectual que tem inspirado a

tantos. Agradeço ainda a Sílvia Ramos Bezerra Nascimento,

pela leitura cuidadosa do manuscrito e pelos comentários. A

Alessandra Devulsky Tisescu, Cláudio R. Duarte, Daniel

Cunha, Raphael L. Alvarenga, Felipe Drago, Rodrigo Campos,

Paulo Marques Dias, Giselle Vianna e Natália Ramos Bezerra

pela leitura e comentários preciosos feitos aos ensaios

enquanto eram escritos.

***

Dedico o livro a meu pai, Josué Francisco do

Nascimento, in memorian.

Page 10: O Avesso do capital - PerSe · O avesso do capital : ensaios sobre o direito e a crítica da economia política / Joelton Nascimento. – São Paulo : PerSe, 2012. ... Juridificação

9

SUMÁRIO

Apresentação....................................................................... 4

I

Forma jurídica e forma valor ........................................12

1. A mercadoria e o valor ....................................................... 12

2. Da mercadoria ao sujeito de direito .................................. 21

3. A revolução russa e o “campo jurídico”: reabrindo

Pachukanis ............................................................................ 24

4. Pachukanis como jurista “esotérico” ............................. 34

5. Pachukanis diante de Rubin ............................................ 40

6. Emancipação e (ou da) forma jurídica ............................ 51

História e metafísica da forma jurídica ..................... 61

1. Direito e valor nas formações sociais pré-capitalistas ... 61

Page 11: O Avesso do capital - PerSe · O avesso do capital : ensaios sobre o direito e a crítica da economia política / Joelton Nascimento. – São Paulo : PerSe, 2012. ... Juridificação

10

2. Juridificação e transformação do dinheiro em capital ..92

3. Metafísica privada, invocação pública ........................... 100

4. Juridificação e transformações estruturais no capitalismo

tardio ................................................................................... 109

II

Nota sobre as origens da crítica do direito .............. 123

A igualdade jurídica sob suspeita ............................... 135

Notas sobre a filosofia do direito de Jürgen

Habermas ......................................................................... 147

III

A justiça que vem ou porque alguns princípios

arquijurídicos podem ser também princípios

pósjurídicos ...................................................................... 167

1. Utopia e pós-direito ......................................................... 171

2. Libertação, teologia, direito natural ................................ 174

3. Utopia jurídica liberal e utopia (pós)jurídica socialista 179

Referências Bibliográficas ........................................... 182

Page 12: O Avesso do capital - PerSe · O avesso do capital : ensaios sobre o direito e a crítica da economia política / Joelton Nascimento. – São Paulo : PerSe, 2012. ... Juridificação

11

I

Page 13: O Avesso do capital - PerSe · O avesso do capital : ensaios sobre o direito e a crítica da economia política / Joelton Nascimento. – São Paulo : PerSe, 2012. ... Juridificação

12

Forma jurídica e forma valor

“Hoje, a verdadeira liberdade de pensamento significa liberdade para questionar o consenso democrático-liberal 'pós-ideológico' dominante – ou não significa nada.”

Slavoj Žižek

1. A mercadoria e o valor

No primeiro capítulo de sua magnum opus, o próprio

Marx reconhece a dificuldade paradoxal de seu

empreendimento. Começar pela investigação da mercadoria

em geral e sua lógica, ou seja, o valor, não é começar com

uma tarefa demasiado abstrata, senão vaga demais? No

prefácio à primeira edição de O Capital Marx faz uma

metáfora, utilizando-se da Biologia, e compara a análise da

mercadoria à análise de uma célula: assim como é mais fácil

estudar as plantas e os animais completos do que suas

células, também é mais fácil estudar os dados econômicos e

sociais mais visíveis e amplos do que sua estrutura elementar.

Não havendo um “microscópio social” é preciso proceder a

tais análises elementares pela abstração do pensamento.

Page 14: O Avesso do capital - PerSe · O avesso do capital : ensaios sobre o direito e a crítica da economia política / Joelton Nascimento. – São Paulo : PerSe, 2012. ... Juridificação

13

Tentemos esquematizar ao máximo possível os

argumentos principais de Marx sobre o que ele chamou de

“forma valor”. Segundo Marx, a forma “celular” das

sociedades capitalistas é a “forma mercadoria”3. A mercadoria

é um objeto, simbólico ou material, que tem a enigmática

característica de portar um valor. Portanto, quando dizemos

que uma certa mercadoria, um casaco, por exemplo, “vale 100

reais” dificilmente percebemos as diversas implicações sociais

que estão pressupostas nesta simples frase. É de fato

espantoso o quanto a mera enunciação de algo

aparentemente tão prosaico implica em termos sociais.

Comecemos pela mercadoria. Qualquer mercadoria, diz Marx

no primeiro capítulo de O Capital, tem duplo aspecto. Em

primeiro lugar, toda mercadoria tem algum tipo de qualidade

útil ou desejável. Sendo esta qualidade útil ou o atendimento

de uma necessidade vital ou de um desejo qualquer, a

mercadoria tem uma utilidade ou característica desejável

intrínseca.4 A isso Marx, acompanhando Aristóteles dá o

nome de valor de uso. O valor de uso de um objeto está

fundado em sua qualidade, por isso é essencialmente

qualitativo, ou seja, é incomensurável. Pelas suas

características intrínsecas, não posso comparar um casaco

com um cavalo. Para comparar de modo resoluto dois

3Marx, 1988a, p. 130 4 “A natureza dessas necessidades, se elas se originam do estômago ou da fantasia,

não altera nada na coisa.” Marx, 1988a, p. 165.

Page 15: O Avesso do capital - PerSe · O avesso do capital : ensaios sobre o direito e a crítica da economia política / Joelton Nascimento. – São Paulo : PerSe, 2012. ... Juridificação

14

elementos qualitativamente distintos seria preciso um

terceiro elemento, homogêneo e constante que sirva como

referencial. É com um terceiro elemento que uma

comparação mensurável pode ter lugar. É preciso dizer que

um casaco vale tanto de algo homogêneo e constante e em

seguida, dizer o quanto deste algo um cavalo, por sua vez,

“vale”. É aí que posso afirmar quantos casacos “valem” um

cavalo.

Compreendemos assim como, na formação disto que

chamamos mercadoria, estes objetos qualitativamente

distintos podem ser trocados em um mercado. Isto é possível

em face do segundo aspecto, ou o segundo fator da

mercadoria: seu valor de troca. O valor de troca de um casaco

é o quanto do referencial homogêneo e exterior ele “vale”. Um

valor de troca, por conseguinte, é só a “forma de aparência”

da forma fundamental do valor. Podemos afirmar, então, que

o valor é a abstração segundo a qual determinados objetos

detêm em si uma certa quantidade de um referencial

homogêneo e exterior. O valor de troca é a forma da

aparência do valor. Quando dizemos que um cavalo vale dez

casacos, enunciamos uma grandeza qualquer para o cavalo,

damos a ele um valor de troca, e pressupomos aí que

podemos saber o valor do cavalo, a quantidade que ele

contém de um referencial homogêneo e exterior. Até então,

este conceito da Economia Política, muito conhecido, tinha

Page 16: O Avesso do capital - PerSe · O avesso do capital : ensaios sobre o direito e a crítica da economia política / Joelton Nascimento. – São Paulo : PerSe, 2012. ... Juridificação

15

sido pensado de forma equivocada, como Marx o demonstra.

O que dá “valor” à mercadoria não são suas qualidades

intrínsecas, como parece claro. O que faz uma mercadoria

poder ser trocada por outra, como se estas equivalentes

fossem, é isto o que chamamos aqui de um referencial

homogêneo e exterior. “Deixando de lado o valor de uso dos

corpos das mercadorias, resta a elas apenas uma propriedade

que é a de serem produtos do trabalho.”5

Pois então, voltemo-nos para o trabalho. Em primeiro

lugar, o trabalho aplicado na coisa, tanto quanto a coisa em

sua característica de valor de uso, é algo qualitativo. Isto

significa o mesmo que vimos com os objetos: uma atividade

humana em seu existir mais essencial é incomensurável uma

com a outra. A atividade do jardineiro tem peculiaridades

próprias que não podem fazê-las imediatamente

identificáveis e, portanto, mensuráveis, com a atividade de

um adestrador de cavalos. Portanto, estas atividades são

impossíveis de serem comparadas sem um referencial externo

que as meça. No processo de criação da mercadoria temos de

um lado a coisa útil/desejável e o trabalho útil/empregável,

ambos qualitativos, que sofrem um processo peculiar de

abstração. No processo de formação da mercadoria tanto a

utilidade da coisa quanto o trabalho nela empregado são

abstraídos para e pelo processo de troca mercantil.

5Marx, 1988a, p. 167.

Page 17: O Avesso do capital - PerSe · O avesso do capital : ensaios sobre o direito e a crítica da economia política / Joelton Nascimento. – São Paulo : PerSe, 2012. ... Juridificação

16

A atividade humana, ao se converter em atividade de

“valorização” da coisa deve ser abstraída de sua peculiaridade

qualitativa. Ela passa a ser tomada apenas em face de todos

os demais trabalhos e passa a ser um “trabalho socialmente

necessário”, ou um “dispêndio abstrato de energia humana”.

A atividade qualitativa realizada na coisa se converte em

trabalho considerado pelo mercado, pelos demais “trabalhos”

nele oferecidos na forma de mercadorias. Os objetos

materiais e simbólicos são comprados e vendidos pela

comensurabilidade geral ocasionada por este trabalho

"abstrato”. Nas palavras de Marx, no mercado vemos que:

“Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho,

desaparece o caráter útil dos trabalhos nele representados, e

desaparecem também, portanto, as diferentes formas

concretas desses trabalhos, que deixam de diferenciar-se um

do outro para reduzir-se em sua totalidade a igual trabalho

humano, a trabalho humano abstrato”6.

A atividade útil e o seu objeto se transformam

respectivamente e numa relação mútua, em mercadoria e em

trabalho abstrato (sendo, este a atividade, ela própria,

transformada em mercadoria e considerada como tal). De

modo que a mercadoria adquire o status fundamental e

paradoxal de objeto sensível-supra-sensível, de objeto “físico

metafísico” como o diz Marx. O que significa isso? Significa

6Marx, 1988a, p. 168.

Page 18: O Avesso do capital - PerSe · O avesso do capital : ensaios sobre o direito e a crítica da economia política / Joelton Nascimento. – São Paulo : PerSe, 2012. ... Juridificação

17

que a mercadoria é sensível em seu caráter de bem

útil/desejável e, ao mesmo tempo, este caráter sensível é

suporte de seu valor que só é acessível por intermédio desta

abstração que ocorre como que “automaticamente” em cada

aparição da mercadoria como tal, uma abstração supra-

sensível. “Os sujeitos não executam conscientemente um tal

processo: é por trás das costas dos sujeitos que se passa a

inversão na qual o objeto concreto e sensível não conta senão

como incarnação do valor abstrato e supra-sensível.”7

O mais importante a ser pensado a partir disto é que

esta célula da sociedade capitalista, a mercadoria e sua lógica

intrínseca, o valor, são a quintessência do modo de

socialização desta sociedade, e essa quintessência a faz ser

uma socialização sempre invertida. Essa inversão se constitui

como uma projeção do concreto no abstrato, uma projeção do

sensível no supra-sensível. A mercadoria, essa forma

molecular da sociedade capitalista, aparece nesta duplicidade,

como forma natural e como forma de valor8.

Essa forma dupla na qual se mostra a mercadoria, a

rigor, diz-nos Marx, não é da mercadoria. “Caráter duplo da

mercadoria”, isso é uma forma abreviada de dizer que a

mercadoria é um “objeto de uso” e um “valor”. Este último, o

valor, é algo jamais constante no objeto, “porém sempre

apenas na relação de valor ou de troca com uma segunda

7Jappe, 2006, p. 36-37. 8Marx, 1988a, p. 176.

Page 19: O Avesso do capital - PerSe · O avesso do capital : ensaios sobre o direito e a crítica da economia política / Joelton Nascimento. – São Paulo : PerSe, 2012. ... Juridificação

18

mercadoria de tipo diferente. No entanto, uma vez conhecido

isso, aquela maneira de falar não causa prejuízo”9.

Compreendida esta forma simples do valor, basta deduzir

dela a forma valor desenvolvida, onde aparecem não só duas

mercadorias mas uma cadeia indefinida delas e a forma geral

de valor: nesta última etapa da formação é eleita uma

mercadoria em especial que possa servir de equivalente geral

e medir o valor (o trabalho abstrato nelas “contido”, ou

melhor dizendo, o trabalho abstrato nelas socialmente

“projetado”) de todas as outras. Se o único valor de uso desta

mercadoria é ser justamente este equivalente universal,

temos a forma dinheiro de onde voltamos ao ponto de

partida: “um casaco vale 100 reais”. Portanto, o segredo da

forma dinheiro se encontra já expresso na forma elementar

da mercadoria.

Mesmo a rigorosa apresentação de Marx precisa se

remeter à “região nebulosa da religião” para caracterizar o

que ele chama de fetichismo da mercadoria10. A culpa não é

9Marx, 1988a p. 188. 10“O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que

ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos” conclui então Marx que: “...a forma mercadoria e a relação de valor dos produtos de trabalho, na qual ele se representa, não têm que ver absolutamente nada com sua natureza física e com as relações materiais que daí originam. Não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens que para eles assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Por isso, para encontrar uma analogia, temos de nos deslocar à região nebulosa do mundo da religião. Aqui os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantêm relações entre si e com

Page 20: O Avesso do capital - PerSe · O avesso do capital : ensaios sobre o direito e a crítica da economia política / Joelton Nascimento. – São Paulo : PerSe, 2012. ... Juridificação

19

de Marx, mas de seu objeto: o fetichismo, a projeção social

das faculdades humanas nos objetos, projeção esta que

“adere” (Anklebt) aos produtos do trabalho, e que é

inseparável da produção de mercadorias só pode ser descrita

se se recorre à “região nebulosa da religião”. Trata-se de uma

projeção social secularizada e, por isso, essencialmente

semelhante à projeção religiosa e sagrada. Parece incômodo

encontrar nesta difícil apresentação da forma valor o viés

crítico que se quer destacar. O ponto de partida deste viés, a

contradição social elementar que ele apresenta, entretanto,

foi muito bem assinalado por Jappe11:

Na inversão que caracteriza logo a mercadoria singular, o concreto torna-se simples portador do abstracto. O concreto só tem existência social na medida em que serve ao abstracto para que este dê a si mesmo uma expressão sensível. E se a mercadoria é a “célula germinal” de todo o capitalismo, isso significa que a contradição entre o abstracto e o concreto nela contida regressa em cada estádio da análise, constituindo de algum modo a contradição fundamental da formação social capitalista.12

os homens. Assim, no mundo das mercadorias, acontece com os produtos da mão humana. Isso eu chamo fetichismo que adere aos produtos de trabalho tão logo são produzidos como mercadoria, e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias” Marx, 1988a, p. 198-199.

11Jappe, 2006, p. 37. 12Muitos pensadores se voltaram recentemente para este aspecto da teoria de Marx.

Uma excelente retomada crítica e didática da literatura da assim chamada “nova crítica do valor” iniciada sobretudo na Alemanha foi realizada por Anselm Jappe na op. cit. Ele esboça as preocupações comuns de uma tradição pouco reconhecida, que de Marx passou por Georg Lukács, Theodor Adorno, Herbert