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O avesso - gueto.files.wordpress.com · um arpão, sim, um arpão, que não se contentasse com só uma baleia ... ser meu brinquedo e eu não faço favores para quem em ... pudera

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O avesso

Wellington Müller Bujokas

selo gueto editorial

poesia anárquica, micronarrativas, fragmentos e afins colcha de retalhos manuscritos descarregada na rede

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© Wellington Müller Bujokas, 2018 Coleção #breves | Livro 11 Selo Gueto Editorial ® 2018 Edição e projeto gráfico Jerome Knoxville Edição e revisão Amanda Sorrentino Contatos https://revistagueto.com https://twitter.com/revistagueto https://www.facebook.com/revistagueto | [email protected] |

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livro onze ʘ

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I os olhos pretos do boi, os olhos brancos da mãe, e a gralha berrando: cego! cego! cego! (sem esquecer a voz de taquara rachada, por favor) O preto do boi nos olhos, a mãe branca e pálida. Os cegos veem tudo; eles, nada. uma vontade maldita de falar só palavrão, desabafar, e a merda de saber que é sempre artificial, um negocinho tosco! falta entonação! claro, claro, e força, e tato, sutileza! (sim, os palavrões demandam sutileza, excessiva sutileza, a formalidade, por oposto, recusa sutileza, a elegância e a erudição só covardemente nos protegem do erro), ainda que no fim das contas, mesmo na rua, abrindo a boca com raiva, saliva cuspida, os palavrões são pra lá de artificiais. Que o digam as putas, que viraram em entidades abstratas, e mais ainda seus filhos tolos xingados de mentirinha. Sim, sim, isso é raiva, ou pelo menos era essa a impressão que quero passar (já que estou com raiva, de fato, e isso não é problema teu!),

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e se me perguntar do porquê, vá lá começar tudo de novo, o espaço em branco, a frustração de não saber talvez (não vou saber, nunca) como utilizá-lo cego! cego! cego! : não soube causar guerra, incitar o meio termo do absurdo que é a guerra, nem atrair pelo extremo. Necessário ou não, a frustração do meio termo não absurdo, ou tão absurdo quanto o tudo. Da liderança não soube nada, sem talento, sem talento (papagaio), nem deixava de desconfiar de cada, falta meio termo, mal de qualquer jeito: o jeito, uma frustração a cada passo; (isso) não tão mal assim, teve dias bons, mesmo azedo.

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Candidamente lava roupa num tanquinho de brinquedo um monstrinho que, ainda que vivo, eu fazia de brinquedo. É um monstrinho, claro, porque não se deixava utilizar, não por resistência, mas pelo absurdo de sua cordeirice: as pernas presas pelo avesso da cabeça de um mundo avesso cujos braços insistem em melar (sem as mãos, enojadas do suco) o corpo inteiro (alheio ao mundo) da doçura candente que só dedos hábeis, de monstro, seriam capazes. Compensar a recusa dos dedos com doçura mais cândida, ainda maior, um árvore frondosa frente à morte inevitável desabrocha em fragrância e beleza, impossível, inexistente, ó pena, era só, só angústia, só angústia, só angústia que os braços davam ao corpo pobre preso ao mundo: não sei aonde vai chegar.

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E a angústia, e a raiva, não sei, já não há motivo que convença o prazer do descontrole (comportado no entanto), por que parar? (a preocupação) é a do espaço vazio, inutilizado, coisas que incomodam em mundos infinitos inutilizáveis um arpão, sim, um arpão, que não se contentasse com só uma baleia gigante de vítima, nem com a sequência que uma reta, ou uma curva em arpão fosse capaz de pegar, matar, arrastar A começar pelo pelo num microscópio a ferida aberta é vermelha assusta e é nada a serenidade do olhar as horas, parado na poltrona, inábil finge restaurar o vazio no meio do tudo, lento lento len-to

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sereno ao tédio não se inclina quem se delicia com o tempo como mordiscassem sua orelha, e sussurrassem bem baixo o que não lhe convém escutar. Esqueça. O mamilo beijado, sem sensualidade, sem fervor, nem atrativo, o tempo parado na pressa de quem não o segura os olhos pretos do boi, os olhos brancos da mãe, e a gralha berrando: cego! cego! cego! uma vontade maldita de falar palavrão, desabafar, e a merda de saber que impresso o negocinho é pavorosamente artificial... falta entonação! claro, claro, e força, tato, qualquer sutileza! (sim, palavrões demandam sutileza, excessiva sutileza, talvez nenhum outro termo requeira mais), ainda que, no fim das contas, mesmo na rua, a boca aberta babada de raiva, saliva cuspida, os palavrões são pura condescendência. Que o digam putas, as grandes entidades abstratas, e mais ainda seus filhos gordos xingados de mentira.

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Sim, sim, isso é pra ser raiva (apesar de a raiva ter ficado pra trás), ou pelo menos era essa a impressão que quero passar (estou/estava com raiva, é fato). E se me perguntar do porquê, ainda que eu não saiba, teremos que começar tudo de novo, o espaço em branco, a frustração de não saber talvez (não vou saber, nunca) como utilizá-lo cego! cego! cego! : não soube causar guerra, incitar o meio termo do absurdo que é a guerra, nem atrair pelo extremo, arrancando tudo com estes dentes fracos. Necessária ou não, a frustração do meio termo não absurdo, ou tão absurdo quanto o tudo. Liderança, nada, sem talento, sem talento (papagaio), nem deixava de desconfiar de cada (um que arrotava seus talentos), falta meio termo, mal de qualquer jeito: o jeito, frustração a cada passo; (isso) não tão mal assim,

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teve dias bons, azedo, quando, candidamente, tomou o tanquinho do monstrinho, o tanquinho que este precisava pra relaxar em seu mundo altista. É impossível (o monstrinho) ser meu brinquedo e eu não faço favores para quem em nada me serve, mesmo que a culpa seja a porra do absurdo da cordeirice do bicho: bote, sim, as pernas presas pelo avesso da cabeça de um mundo avesso e insista, sim, em melar os braços (enojadas ou não as mãos do suco), o corpo inteiro (alheio ao mundo) afunde, e agora nem sei como explicar pra que você entenda — é importante e não é ironia — a doçura candente que só ele pode exalar. Pare um pouco! Respire. Rápido (expire), lento (inspire), rápido, lento. Os dedos hábeis, de monstro, na falta de roupa, seriam, sonho, capazes de mudar o mundo, pudera fosse este seu brinquedo, o mundo. Compensar a recusa dos dedos com doçura mais cândida, ai, nem um pio pelo tanquinho!, ainda maior, um árvore frondosa frente à morte inevitável desabrocha em fragrância aos cegos da beleza, impossível (beleza? doçura?), inexistente, ó pena, era só, só angústia, só angústia, só angústia que os braços transmitiam ao corpo pobre preso ao mundo: não sei onde ou pra que chegar!

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II

P, filho do seo Pedro — dono de uma linda venda carcomida por velhos hábitos —, recebeu esse nome por causa das convicções renhidas de seu pai, que só não o chamou de I (i maiúsculo, como convém a um nome próprio) por causa dos insistentes apelos de dona Ivone, sua mulher, que não convenceu o marido, no entanto, a dar-lhe nome de duas sílabas, como prenúncio de que seria como o pai. Seo Pedro, apesar de orgulhoso da vida que levara, austera, correta, não se podia dizer feliz, muito menos satisfeito. Fez, portanto, todos seus esforços para que desde o início a marca da sorte acompanhasse seu filho. Ao ceder à mulher, tristemente, Pedro tornou-se — é absurdo, mas é verdade! — amargo, pela sensação de que oferecia menos ao filho do que gostaria. Como podem perceber, a vida de P foi um fracasso enquanto não pode abandonar os pais, frustrados por serem incapazes, na austeridade, de lhe dar tudo que julgavam necessário. Depois, a vida de P foi tormenta, pois não sabia viver sem o amor dos pais.

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III duas formas amorfas sobre um retilíneo, transparente-quase-inexistente plano estendido sob a imensidão do infinito rugoso, perceptível portanto (ainda que incompreensível por suas dimensões) Não se trata de contraste, harmônico, se compraz tampouco em diluir-se desequilibrado, as duas formas não indicam qualquer simetria. uma concepção simbólica não passaria de estupidez! e fora dela, só esse fastio frio, de duas noites roxas, com sorte, os olhos só veem o marasmo do novelo infindo da rotina (qual seja), intrincado e, sobretudo, pervasivo, nas tentativas simultâneas e não coordenadas de desembaraçá-lo (a rotina a ligar a todos, como eixo de destino impossível mas praticável) as mordidas modelam uma harmonia angulosa (os dentes exibidos na maçã, feita molde e apresentada para o público,

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já usava dentadura) do beirava um serrilhado com montes magros gulosos pelo avesso, despejam o que não pode ser criado e de repente um riso sai da maçã doce igualmente molde que não se esperaria do prazer da maçã, tão quase insípido, mesmo doce, tão quase bom, e mais só se a fome for tão grande e toda essa imensidão, cheia ou vazia, não sustente a vontade, a minha vontade, meus amigos.

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os olhos pretos do boi, um pasto; os olhos brancos da mãe, meus braços! a gralha em tudo, quisera fosse eu cego, minha mãe; e o pasto tão largo ou mais infindo que o plano inexistente : feito pra cegos fosse não seco, não verde, mas cheiroso não da merda dos bois mas das flores que nasceram do estrume

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Wellington Müller Bujokas cresceu em Barão de Antonina, interior de São Paulo. Em 2012, publicou Estudos (Travessa dos Editores), seu primeiro livro de poemas. É tradutor, jornalista e diplomata. Serviu em Astana (Cazaquistão) e Moscou (Rússia). Mora atualmente em Brasília. Wellington é o tradutor de Vladimir Maiakovski na coleção do nosso selo editorial em https://revistagueto.com/traducoes/

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este projeto digital é destinado a correr livre na rede levando versos, antiversos, protoversos, metaversos e multiversos para o reviramento do mundo