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127 O Baralho das Cartas Mudas e Mortíferas, de Helder Macedo O Baralho das Cartas Mudas e Mortíferas, de Helder Macedo Ana Maria Vasconcelos Martins de Castro * Resumo: “O que me contaste, bom, é óbvio que tu queres que faça parte do jogo”, diz o narrador à sua protagonista em Vícios e virtudes. Dizemo-lo também nós a Helder Macedo sobre seu livro. A obviedade das referências envolvendo as três Joanas – tudo isso antes intriga do que esclarece. “Evidente demais”, diz o narrador ao final do livro, duvidando de do texto acontece a dança das cartas “mudas e mortíferas”, brincadeira perigosa que força a mudança de valor entre os duplos e os múltiplos: a criatura passa a ser criadora, o narrador se deixa conduzir pela personagem, com este livro de possíveis. Este trabalho é uma delas. Palavras-chave: Helder Macedo. Vícios e virtudes. Ficção e realidade. Abstract: At the end of the book, the narrator of Vícios e virtudes tells Joana be part of her game. We say the same to Helder Macedo. The autobiographic the three Joanas – it all does not clarify any question. Again the narrator * Mestranda em Literatura Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bolsista da CAPES. E-mail: [email protected]

O Baralho das Cartas Mudas e Mortíferas, de Helder Macedo

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Artigo de Ana Maria Vasconcelos Martins de Castro

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    O Baralho das Cartas Mudas e Mortferas, de Helder Macedo

    O Baralho das Cartas Mudas e Mortferas, de Helder Macedo

    Ana Maria Vasconcelos Martins de Castro*

    Resumo: O que me contaste, bom, bvio que tu queres que faa parte do jogo, diz o narrador sua protagonista em Vcios e virtudes. Dizemo-lo tambm ns a Helder Macedo sobre seu livro. A obviedade das referncias

    envolvendo as trs Joanas tudo isso antes intriga do que esclarece. Evidente demais, diz o narrador ao final do livro, duvidando de

    do texto acontece a dana das cartas mudas e mortferas, brincadeira perigosa que fora a mudana de valor entre os duplos e os mltiplos: a criatura passa a ser criadora, o narrador se deixa conduzir pela personagem,

    com este livro de possveis. Este trabalho uma delas.

    Palavras-chave: Helder Macedo. Vcios e virtudes. Fico e realidade.

    Abstract: At the end of the book, the narrator of Vcios e virtudes tells Joana

    be part of her game. We say the same to Helder Macedo. The autobiographic

    the three Joanas it all does not clarify any question. Again the narrator

    * Mestranda em Literatura Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bolsista da CAPES. E-mail: [email protected]

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    have doubts about them. We have our doubts too. The bright half hides the

    dangerous game makes doubles and multiples change their values the creature becomes a creator, the narrator leaves himself in the hands of the

    Keywords: Helder Macedo. Vcios e virtudes

    O mistrio das almas so os corpos.(Vcios e virtudes)

    Um baralho de possveis

    Este texto poderia chamar-se Vcios e virtudes: uma escrita que se quer como pquer. Ou: Vcios e virtudes: modos de jogar. Por-que justamente assim que este livro de Helder Macedo se oferece: como lugar de apostas e de mltiplos possveis. Mas preferi destacar no ttulo a imagem das cartas mudas e mortferas (que nada mais so do que curingas), metfora surgida do prprio texto e que me parece a mais acertada para ilustrar o processo de construo das personagens e de desdobramento dos nveis narrativos que s na sua superfcie se querem meramente especulares.

    Apostas e blefes

    J no seu ttulo, Vcios e virtudes anuncia o que est para acontecer: um jogo de duplos e mltiplos. As expectativas do leitor erguem-se e estilhaam-se ciclicamente. O romance vai preparando um terreno aparentemente slido para depois repetidamente revolv-lo, desesta-bilizando-o. No cho narrativo se dispem os elementos tradicionais

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    narrador, personagens, enredo, tempo, espao que se desdobram inesperadamente conforme o livro avana. Teresa Cristina Cerdeira descreve esse movimento: confronta-se o leitor no com a anulao do modelo romanesco, mas com a sua dissoluo in presentia, no pela ruptura, mas pela negociao destorcida do esperado (CERDEIRA, 2002, p.188). O que se nos oferece a multiplicao da narrativa e a consequente perda do seu eixo central.

    desdobra o romance em vrios nveis narrativos, fazendo com que

    intradiegticos um de autoria do prprio narrador-personagem e outro escrito por seu amigo, Francisco de S. A esta altura de Vcios e virtudes, em que tais romances se nos do a conhecer, a protagonista Joana s mostrada (tanto para ns quanto para o prprio narra-dor) atravs do discurso de Francisco, nico que ento a conhece

    que a encobri-la num vu, imagem que ser explorada ao longo da narrativa.

    Nos dois romances intradiegticos, Joana aparece espelhada, como a se multiplicar em vrias verses. Em AlterIdades (romance

    a da me de D. Sebastio (relatada tambm pelo documento histrico de Marcel Bataillon, citado no romance) que dar vida personagem principal. J no romance intradiegtico do prprio narrador, aquilo que ele fantasia sobre o que Francisco de S lhe conta sobre Joana que dar matria para seu texto, numa tentativa de ter acesso quela fascinante mulher que ainda no chegara a conhecer.

    H ainda, em Vcios e virtudes, captulos epistolares (as cartas so escritas no primeiro nvel narrativo, entre o narrador e Joana) e captulos de relatos da protagonista ento j ntima do narrador

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    romance, leem-se os cadernos do tio de Joana transcritos por ela e que, por sua vez, esto transcritos pelo narrador.

    Ciente da falsa solidez do romance, o leitor intui que talvez -

    explicaes (BENJAMIN, 1994, p. 203). Tais conexes, reveladas com excessiva transparncia ao longo do texto, parecem fazer parte de um grande blefe, e o leitor percebe que talvez justamente ali more um enigma. Muito embora o romance se queira como uma histria que,

    ao correr da pena1, sabemos que nenhuma narrativa natural, uma escolha e uma construo sempre presidiro seu aparecimento; um discurso, e no uma srie de acontecimen-tos (TODOROV, 2003, p. 82). Se seguimos com Todorov na ideia de que por mais que uma narrativa se queira natural, este movimento fatalmente se dar em traio (pois ela sempre ser um constructo),

    caso macediano, na desestabilizao da prpria ideia de verdade, e precisamente esse salto que vamos comentar.

    Aprendendo a jogar

    Nas pginas a que temos acesso do romance intradiegtico, de autoria do narrador, lemos um dilogo entre as personagens Fran-

    um jogo novo. A pensar em ti. Daqui em diante vai ser o nosso modo de conversarmos. O jogo dos vcios e das virtudes [grifo nosso] (MACE-

    das cartas representava os vcios e a outra metade, as virtudes. Mas

    1 No clebre prlogo das Viagens na minha terraassinam a apresentao nos falam que aquele livro fora escrito ao correr da pena, o

    cumplicidade do leitor.

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    cada vcio e correspondente virtude tinham a mesma imagem [...] e a mesma designao, no se podia distinguir o que era o qu s pela aparncia. (MACEDO, 2002, p. 47). A partir dessa explicao o leitor pode comear a supor que talvez essa indiscernibilidade entre os elementos do texto seja um modo de conversar com este livro.

    No entanto, o prprio jogo dos vcios e das virtudes que este Francisco-personagem prope Joana-personagem ser duplicado nos cadernos do outro Francisco, tio da outra Joana, esta a amiga do narrador. A autoria de tais cadernos e mesmo a existncia do tio de Joana questes merecedoras de maior ateno sero analisadas a

    denominado Low in the hole high low, um tipo diferente de pquer que Francisco aprendeu com um companheiro de guerra. Lemos:

    O americano comeou por explicar que a carta mais baixa das trs ocultas na mo (in the hole) era selvagem. Wild. [...] [N]o Brasil se chama curinga, palavra de origem africana

    [...] [E]m Portugal h quem lhe chame carta muda. Com a Pide a rondar por ali, percebeu logo por qu. [...] Com essa carta na mo, todas as cartas do mesmo valor na posse do jogador tambm se tornavam mudas e mortferas. (MACEDO, 2002, p. 110-111)

    Nessa verso do jogo dos blefes, a carta mais baixa da mo esta a muda, a mortfera, a selvagem torna todas aquelas iguais a si tambm em curingas. Assim o campo de possveis se alarga, e a tais cartas idnticas facultada a atribuio de novos valores conforme a estratgia do jogador. Esse outro valor pode ser igual ou diferente daquele conferido aos demais curingas podendo at mesmo manter--se o prprio. Vejamos como Francisco explica as regras:

    Assim, por exemplo, quem tivesse na mo s, Rei, Rei e, nas cartas expostas, [...] s, Rei, 3, 2, no tinham apenas um

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    slido full-house mas, com os trs reis a viajarem incgnitos, nada menos do que uns imbatveis cinco ases. [...] [A] mo com os valores mais baixos passava a ter direito a metade dos ganhos da mo com os valores mais altos. Ganhava quem tivesse o high e quem tivesse o low. A menos que algum tivesse cartas que dessem simultaneamente para o high e para o low. Como as da nossa hipottica mo. [...] [O]s trs reis mudos tambm podiam servir o povo disfarados de 5, 4 e 3, o s [...] desdobrava-se num humilssimo 1, e a mesma mo resultava numa suprema misria triunfante: 5, 4, 3, 2, 1. O mesmo jogador tinha portanto o jogo mais baixo dos possveis jogos baixos ao mesmo tempo que o jogo mais alto dos possveis jogos altos. [...] O vcio e a virtude em simultneo. [grifo nosso] (MACEDO, 2002, p. 111-112)

    Percebe-se que a ideia do primeiro jogo no s encontra neste segundo uma imagem especular como aqui problematizada e levada s ltimas consequncias. O modo de conversarduplo para multiplicar-se em um nmero impreciso. E mais do que isso: o apagamento inicialmente localizado das fronteiras entre bem e mal se espraia incontrolavelmente e alcana o indivduo na sua

    -pria e alheia. Mais do que no distinguir vcio de virtude, agora o jogo consiste em incorporar simultaneamente o(s) vcio(s) e a(s) virtude(s).

    O baralho

    Enquanto o texto aponta em si prprio possveis modos de se jogar ou de se conversar com ele, o leitor percebe que pode montar sua mo com certos elementos do texto que se lhe oferecem como cartas e curingas.

    Desde o incio a voz do narrador se quer confundida com a do autor, e isso feito insistentemente: referindo-se a seu trabalho

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    como professor em Londres, mencionando a autoria de Pedro e Pau-la2, assinando bilhetes com um incontornvel H. Ora, professor que , Macedo parece nos ensinar a dar um salto alm, partindo da se-parao necessria entre autor e narrador para chegar imagem da dissoluo dessa fronteira. Se aprendemos com Umberto Eco que somente um leitor ingnuo3 confunde voz narrativa e voz autoral,

    dessa ideia: a desejadae civil. Mas este movimento necessariamente segundo: h que se superar primeiro a ingenuidade de que fala Eco entender que h as

    macediana na sua verdadeira complexidade.

    Claro que tudo isso faz parte do jogo narrativo no s o espelhamento narrador/autor, mas as consequncias curiosas dessa aproximao: a aparente transparncia do texto no anula, antes re-

    real, o narrador s pode lanar mo de recursos discursivos, porque isto o que ele : texto. De uma s vez, tal qual no jogo de Francisco, tio

    (sabendo-se inequivocamente literrio) a sua barreira com o exterior.

    narrativas autoconscientes exigem simultaneamente distanciamento

    (da me de D. Sebastio) ou factuais serem completamente incor-porados pelo discurso literrio. Independentemente do seu valor

    2 Romance de Helder Macedo anterior a Vcios e virtudes. Publicado em 1998.3 os livros escritos na primeira pessoa podem levar o leitor ingnuo a pensar que o eu do texto o autor. No evidentemente; o narrador, a voz que narra. (ECO, 1994, p. 19-20)

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    inicial, tornam-se, junto com os outros elementos discursivos, apenas construo, criao: muda e mortiferamente. Uma vez incorporados

    verdadeiros deixam de ser apreendidos sob esta perspectiva, j que a literatura no se presta ao teste da verdade:

    A literatura no um discurso que possa ou deva ser falso (...) um discurso que, precisamente, no pode ser submetido ao teste da verdade; ela no verdadeira nem falsa, e no faz sentido levantar essa questo: isso que

    apud HUTCHEON, 1991, p.146)

    E se agravarmos a ideia de Todorov, encontraremos em Vcios e virtudes um enunciado que se quer simultaneamente verdadeiro e falso. O que colocado de tal forma que se ser, ainda que, de fato, seja, o que faz de Helder Macedo um autor tambm

    consiste em, ainda recorrendo a Todorov, retirar a linguagem de sua transparncia ilusria, de aprender a perceb-la e de estudar ao mesmo tempo as tcnicas de que ela faz uso para (...) deixar de existir a nossos olhos. (TODOROV, 2003, p. 114-115).

    precisamente a obviedade do prprio movimento que impe-

    Antonio Candido et al. j nos alertavam sobre o paradoxo do desejo de transparncia da narrativa: [ a] intensa aparncia de realidade

    et al., 1968, p.17). Ou seja, quanto mais o texto se mimetiza ao correr da pena, mais se revela uma construo discursiva.

    No s o narrador que dialoga com o estatuto de realidade em Vcios e virtudes: a tensa relao entre o livro e a Histria um fato. Vcios e virtudes

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    -

    pois se recusa a recuperar ou desintegrar qualquer um dos lados da dicotomia e mesmo assim est mais do que disposta a explorar os dois. (HUTCHEON, 1991, p. 142). o que vemos no romance

    partido de um lado, mas para equipar-los, explorando ambos na via pela qual os dois se tocam: a do discurso. Helder Macedo parece,

    .

    Em Vcios e virtudes, o salto por trs das aluses ao sculo XVI est em quem as estabelece: a prpria Joana, uma personagem-

    do narrador), provocando mesmo que a contragosto, pelas vias que

    se tornar, dentro do romance Vcios e virtudes, personagem de outros dois romances, um publicado e outro falido, de autoria dos seres de papel - Francisco S e H. Trazendo ainda a imagem de Low in the hole high low como bssola, vale entender o processo pelo qual Joana multiplicada na narrativa.

    No primeiro captulo do livro, um medocre escritor de veleida-des ps-modernas Francisco de S Mendes vai contando a H., o amigo chegado de Londres, em discurso entrecortado de semi-embriaguez a histria de sua amiga Joana que daria uma personagem para seu futuro livro, AlterIdades. A histria que ela lhe havia contado como sua era, contudo, estranha e intencionalmente parecida com a da me de D. Sebastio, Joana dAustria, o que evidentemente no escapa ao amigo ouvinte, por acaso formado em Histria, que percebe de imediato o jogo para o qual vai sendo cooptado, e pensa: A meni-

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    na a gozar com a Histria, a gozar o Francisco de S. E a mim por tabela (MACEDO, 2002, p.28). S que, os ardis lanados, tambm

    -da no conhece, e que, intui ele, est possivelmente tambm ela a

    personagem-narrador, que ocupa dois captulos de Vcios e virtudes, e que gira em torno da evocao em transposio moderna da histria da me de D. Sebastio. No captulo posterior, a narrativa voltar

    pessoalmente Joana, estabelece com ela uma relao de amizade e tambm curiosamente de duplo estrutural porque desde ento a jovem que passa a contar histrias (cuja veracidade a todo momento posta em xeque) para o narrador, anti-hierarquicamente ganhando estatuto de criadora de realidade.

    Novamente percebe-se como a condio de mltiplo d poder personagem. A me de D. Sebastio aparece tanto historicizada

    sempre espelhada na outra Joana. Esta se desdobra em personagem de personagens e em voz narrativa que d rumo trama, subjugando

    sua vez a Joana intradiegtica aprofunda cada vez mais os ares qui-nhentistas e alarga sua condio de inveno de outro personagem.

    Assim como Joana se torna Joanas e por isso mesmo pode brin-car com seu estatuto de mltiplas personagens tambm isso acon-tece corte de personagens que a rodeiam entre os quais sobressai a

    Francisco S Mendes, -

    co, tal qual o seu duplo quinhentista teve como tutor o ex-Duque de Gndia, transformado no monge jesuta Francisco de Borgia. Posteriormente, ela transcreve para o narrador aquilo que seria um caderno do tal tio nvel narrativo no qual o leitor entra justamente

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    em contato com o jogo Low in the hole high low. Com isso, Francisco, j duplicado, agora se multiplica e mergulha em outro plano narrativo, ganhando contorno de personagem intradiegtico (cuja criadora Joana, e no mais o narrador), que, em ltima instncia, ganha voz narrativa, ainda que somente atravs de um dirio pretensamente

    textual em que se misturam tanto as revelaes quanto as incertezas com as quais nos deparamos ao longo do romance.

    Ento? Qual o vcio, qual a virtude? (p. 47)

    Ao explicitar seus prprios truques, o texto de Helder Macedo arrasta o leitor para a sua zona escura, tal qual uma carta de bara-

    sempre o avesso do que no dito, o lado sombrio, porque tambm o monstruoso parte de um jogo perverso que consiste justamente na impossibilidade de se distinguir o vcio da virtude.

    O narrador dizhistria da me de D. Sebastio sua. E no deixa de se perguntar sobre os rumos do romance este chamado Vcios e virtudes: Isto

    ou uma novela policial? (MACEDO, 2002, p.147). Ainda o narrador -

    ria, num jogo duplo de enaltecimento e dessacralizao desta para dilatar aquela. H que se ir sempre mais fundo nesse texto que, em convite ambguo ao leitor, abre as suas prprias fendas.

    Vcios e virtudes um livro que diz de si para poder no se deixar ler, como a Joana amiga do narrador, que exerce a sua sexualidade numa forma algo contraditria de preservar-se para Joo, o amado morto e sempre evocado. Aqui volto epgrafe: na voz da Joana criada pelo narrador ouvimos profeticamente que o mistrio da alma so

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    os corpos (MACEDO, 2002, p.59), condensao de um poema do prprio Helder Macedo, que doa sua personagem a fala do sujeito lrico.4 E isso o que acontece no livro: o visvel que o segredo, o que est bvio e explcito que se mostra como jogo.

    Sendo assim somos levados a crer que [as] referncias autobio-

    o poder de tambm esconder. Ao jogar com a autorreferencialidade, o romance coloca a verdade no mesmo patamar de outros possveis, dessacraliza-a e rasga a sua mscara de discurso absoluto. O que se nos d, portanto, uma verdade passvel de ser metaforizada numa carta de baralho, cuja face visvel esconde e ao mesmo tempo acusa uma outra, sombria e velada. Tambm a verdade uma carta muda e mortfera neste jogo chamado Vcios e virtudes.

    Uma partida que no acaba

    Se o livro de Helder Macedo tambm um texto-pquer, suas personagens so as cartas que, ao se verem multiplicadas, ganham um poder outro que no aquele primeiro, de espelharem-se umas nas outras. O poder primeiro o bvio oferecido traidoramente pelo nar-rador: a referncia explcita da Joana quinhentista na Joana real; a

    a equiparao de valor. O poder que nasce da o da carta selvagem do jogo: o de ganhar qualquer outro valor independentemente do prprio, o de movimentar-se ignorando hierarquias, o de a personagem se poder

    Helder Macedo j nos avisava em Pedro e Paula que os escritores sabem perfeitamente que a certa altura as personagens passam a inventar o

    4 No h mistrio/ h corpos [] corpos apenas que no so embrulhos/ de alma. (MACEDO, 2000, p.69)

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    seu autor, no menos personagem do que elas. (MACEDO, 1998, p. 139). tambm o de um texto histrico (de Bataillon) se oferecer como

    revelar para se transformar muda e mortiferamente em texto.

    do amigo Francisco de S quando este pensa ter descoberto o segredo de Joana. Ao fazer isso, diz que o que parece evidente demais talvez,

    o narrador no faz apenas um comentrio sobre o que diz o outro, mas se refere tambm e sobretudo ao livro como um todo, s suas insistentes auto-explicaes, que, antes de realmente esclarecerem, confundem. Lembremo-nos ainda uma ltima vez de Candido et al.: em literatura, a aparncia da realidade no renega o seu carter de aparncia. (CANDIDO et al., 1968, p. 17).

    Em certa altura de Vcios e virtudes o narrador diz a Joana: O que me contaste, bom, bvio que tu queres que faa parte do jogo (MACEDO, 2002, p.122). Tambm ns o dizemos a Helder Macedo. As cartas mudas so o modo de jogar esse pquer, simultaneamente vicioso e virtuoso, porque nesta equiparao valorativa entre o que seja e o que fosse (MACEDO, 2002, p.145) que consiste a narrativa macediana.

    RefernciasBENJAMIN, Walter. O narrador: consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura. So Paulo: Brasiliense, 1994.

    CANDIDO, Antonio et al. (Org.). . So Paulo: Perspectiva, 1968.

    CERDEIRA, Teresa Cristina. Uma Joana ni gaie ni triste ou de Orfeu a Eurdice nas traseiras do inferno. In: CERDEIRA, Teresa Cristina (org). Helder Macedo: A experincia das fronteiras. Niteri: EdUFF, 2002. p.187-204.

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    ECO, Umberto. . So Paulo, Companhia das Letras, 1994.

    GARRETT, Almeida. Viagens na minha terra. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.

    HUTCHEON, Linda. Potica do ps-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

    MACEDO, Helder. Vcios e virtudes. Rio de Janeiro: Record, 2002.

    ______. Viagem de Inverno e outros poemas. Rio de Janeiro, Record, 2000.

    ______. Pedro e Paula. Rio de Janeiro: Record, 1998.

    TODOROV, Tzvetan. Potica da prosa. So Paulo: Martins Fontes, 2003.