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DIAS GOMES
O BEM-AMADOfarsa sociopolítico-patológica
em 9 quadros
12.ª edição
Rio de Janeiro | 2014
O Bem-Amado 12ª prova.indd 3 29/07/2014 17:29:04
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PRIMEIRO QUADRO
Pequena praça de uma cidadezinha de veraneio do litoral baiano. Há uma grande árvore, um coreto e uma venda. Sob a árvore, sentado no chão, Chico Moleza dedilha molemente o violão. Em frente à vendola, Seu Dermeval remenda uma rede de pescar. É um mulato gordo e bonachão, de idade já avançada.
Passa-se meio minuto. Entram Mestre Ambrósio e Zelão carregando um defunto numa rede. O enterro é acompanhado apenas por uma beata, velhinha, enrugada como um jenipapo, e um cachorro, um magro vira-lata, que vem amarrado à rede. Mestre Ambrósio é um velho pescador de tez moreno-aver-melhada, curtido do sol. Musculatura batida, chapelão de palha, calças de algodão branco, sua figura infunde respeito. Zelão é um negro reluzente, mais moço do que mestre Ambrósio, pescador como ele. Traz vários amuletos no pescoço e um bom humor constante. A velha reza baixinho enquanto os dois pescadores avançam até ao centro da cena, com o passo não muito firme, e aí depositam o féretro. Moleza para de tocar e descobre-se, em sinal de respeito. O apelido o define bem: gestos lentos, descansados, fala mole, é ele um retrato vivo da cidade, onde a vida passa sem pressa.
MESTRE AMBRÓSIO
Vamos molhar um pouco a goela na venda de seu Dermeval, Zelão.
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ZELÃO
É bom.
DERMEVAL
(Indicando o defunto.) Mestre Leonel?
MESTRE AMBRÓSIO
É. Embarcou, coitado.
DERMEVAL
(Dirige-se à venda.) No mar?
MESTRE AMBRÓSIO
Qui-o-quê. Janaína quis saber dele não. Esticou em terra mesmo.
ZELÃO
É de hoje que não entrava num saveiro. Mal aguentava com um caniço. Quase cem anos no costado, sabe como é.
MESTRE AMBRÓSIO
Tava que nem saveiro velho, cheio de ostra pelo casco, fazendo água por todo lado. Precisava mesmo ir pro estaleiro.
DERMEVAL
Também entornava um bocado.
MESTRE AMBRÓSIO
Pra esquecer. Sabe o que é um mestre de saveiro respeitado como ele foi chegar ao fim da vida tendo quase que pedir esmolas?
ZELÃO
A gente sempre dava para ele as sobras da pescaria: pititinga, chicharro, peixe miúdo.
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MESTRE AMBRÓSIO
Morreu sem ter dinheiro nem pro caixão.
DERMEVAL
Tinha parente não?
MESTRE AMBRÓSIO
Ter, tinha. Botou um bocado de filho no mundo, o falecido, que a terra lhe seja leve. Mas tudo levantou âncora. Uns foram pra Salvador, outros pra São Paulo. Por aqui só aparecia mesmo, de vez em quando, a filha mais nova. Uma que caiu na vida.
ZELÃO
E que pedaço de mau caminho, seu mano! Tenho uma sede nela!
MESTRE AMBRÓSIO
Oxente, Zelão, respeita o defunto!
ZELÃO
Que o finado me desculpe, mas é mesmo. E um dia eu ainda pesco um cação de três metros, boto o dinheiro no bolso e vou me afogar naquelas águas. (Ri.)
MESTRE AMBRÓSIO
Dá mais um porongo.Dermeval enche os dois copos. Eles bebem de um trago. Dermeval torna a
enchê-los. Enquanto isso, Moleza levanta-se com a sua característica lentidão, aproxima-se do defunto, descobre-o.
MOLEZA
Coisa besta é a vida; ontem tava vivo, hoje tá morto. Que merda!
ZELÃO
Vem tomar um mata-bicho, Moleza.
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MOLEZA
(Vai à venda.) Como foi?Dermeval serve uma cachaça.
MESTRE AMBRÓSIO
A gente voltava da pescaria, hoje de manhã, eu mais Zelão, encontramos ele estendido na praia, o cachorro lambendo a cara.
MOLEZA
Lambendo a cara, Mestre Ambrósio?
MESTRE AMBRÓSIO
E chorava. Chorava de correr lágrima.
MOLEZA
O cachorro?
MESTRE AMBRÓSIO
Oxente, gente, já viu defunto chorar?
MOLEZA
Nem defunto nem cachorro.
MESTRE AMBRÓSIO
Quero que esta luz me cegue, se não é verdade.
ZELÃO
Verdade, sim. O bicho parecia que sabia que o velho tinha espichado. Chorava como gente.
MESTRE AMBRÓSIO
De cortar o coração, seu Moleza.
DERMEVAL
(Referindo-se à velha.) E a velha?
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MESTRE AMBRÓSIO
Sei lá. Nós viemos, ela veio atrás.
DERMEVAL
Será que ela e o velho…?Zelão solta uma gargalhada imoral.
MESTRE AMBRÓSIO
Capaz. Quando era moço, de saia mesmo mestre Leonel só respeitava padre e santo de andor. (Todos riem.) Vamos se chegando, Zelão, que ainda temos três léguas pela proa.
DERMEVAL
Três léguas. Quando chegarem lá, em vez de um defunto vão ter dois pra enterrar.
MESTRE AMBRÓSIO
Isto é uma terra infeliz, que nem cemitério tem. Pra se enterrar um defunto é preciso ir a outra cidade.
MOLEZA
Não era melhor jogar o corpo no mar?
MESTRE AMBRÓSIO
Pra quê? Pra vir dar na praia de manhã?
MOLEZA
Jogava bem longe, em alto-mar. Fazia de conta que tinha morrido afo-gado. Mestre Leonel, que era pescador, ia se sentir até melhor acomodado.
MESTRE AMBRÓSIO
Vinha dar na praia do mesmo jeito. Não vê que se dona Janaína não quis ele quando era moço, não ia querer agora? Janaína gosta é de gente nova, sadia.
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DERMEVAL
Falar em Janaína, sabe do caso do sujeito que se encontrou com a mãe- d’água no meio do mar?
ZELÃO
Sei não. Como é?
DERMEVAL
Quando ele viu aquele mulherão pela frente, toda nua, mulher do umbigo pra cima e peixe do umbigo pra baixo, perguntou: “Siá dona, será que vosmicê não tem uma irmã que seja ao contrário?”
Todos riem exageradamente. Estão já bastante bêbedos. Moleza dedilha o violão.
MOLEZA
(Canta:)
Dona Janaína princesa que é Filha das águas do Abaité Dona Janaína i nanã ê
MESTRE AMBRÓSIO, DERMEVAL E ZELÃO
(Coro:)
I nanã ê I nanã êOdorico entra, suando por todos os poros. Não é propriamente um belo
homem, mas não se lhe pode negar certo magnetismo pessoal. Demagogo, bem-falante, teatral no mau sentido, sua palavra prende, sua figura impres-siona e convence. Veste um terno branco, chapéu-panamá.
ODORICO
Ah, lá estão! Ainda cheguei a tempo.
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DERMEVAL
Bom-dia, Coronel Odorico.
ODORICO
Bom-dia, minha gente.Ao verem Odorico, Mestre Ambrósio e Zelão deixam o balcão. Moleza
para de tocar.
MESTRE AMBRÓSIO
Bom-dia, Coronel. Fizemos uma parada rápida, pra molhar a goela. Vamos ter que gramar três léguas.
ODORICO
Três léguas. Pra se enterrar um defunto é preciso andar três léguas.
DERMEVAL
Um vexame!
MOLEZA
Vexame pro defunto, ter que viajar tanto depois de morto.
ODORICO
E uma humilhação para a cidade, uma humilhação para todos nós, que aqui nascemos e que aqui não podemos ser enterrados.
MOLEZA
Muito bem dito.Entram Dorotéa e Judicéa. A primeira é professora do grupo escolar,
de maneiras pouco femininas, com qualidades evidentes de liderança. Paradoxalmente, Odorico exerce sobre ela terrível fascínio. Também sobre Juju esse fascínio se faz sentir. E isso poderia ser explicado por diferentes tipos de frustração.
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ODORICO
Quem ama sua terra deseja nela descansar. Aqui, nesta cidade infeliz, ninguém pode realizar esse sonho, ninguém pode dormir o sono eterno no seio da terra em que nasceu. Isto está direito, minha gente?
TODOS
Está não!
ODORICO
Merecem os nossos mortos esse tratamento?
DOROTÉA E JUJU
Merecem não.Entram Dulcinéa e Dirceu Borboleta, este com uma vara de caçar borbo-
letas e uma sacola. Odorico exerce sobre ela o mesmo fascínio que sobre suas irmãs Judicéa e Dorotéa. Quanto a ele, é um tipo fisicamente frágil, de óculos, com ar desligado.
ODORICO
(Já passando a um tom de discurso:) Vejam este pobre homem: viveu quase oitenta anos neste lugar. Aqui nasceu, trabalhou, teve filhos, aqui ter-minou seus dias. Nunca se afastou daqui. Agora, em estado de defuntice compulsória, é obrigado a emigrar; pegam seu corpo e vão sepultar em terra estranha, no meio de gente estranha. Poderá ele dormir tranquilamente o sono eterno? Poderá sua alma alcançar a paz?
TODOS
Não. Claro que não.Populares são atraídos pelo discurso de Odorico, que se empolga, sobe ao
coreto.
ODORICO
Meus conterrâneos, vim de branco para ser mais claro. Esta cidade pre-cisa ter um cemitério.
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TODOS
Muito bem! Apoiado!
DOROTÉA
Uma cidade que não respeita seus mortos não pode ser respeitada pelos vivos!
ODORICO
Diz muito bem dona Dorotéa Cajazeira, dedicada professora do nosso grupo escolar. É incrível que esta cidade, orgulho do nosso estado pela beleza de sua paisagem, por seu clima privilegiado, por sua água radioativa, pelo seu azeite de dendê, que é o melhor do mundo, até hoje ainda não tenha onde enterrar seus mortos. Esse Prefeito que aí está…
DOROTÉA, DULCINÉA E JUJU
(Vaiam.) Uuuuuu!
ODORICO
Esse Prefeito que aí está, que fez até hoje para satisfazer o maior anseio do povo desta terra?
DIRCEU
Só pensa em construir hotéis para veranistas!
DULCINÉA
Engarrafar água para vender aos veranistas!
ODORICO
Tudo para os veranistas, pessoas que vêm aqui passar um mês ou dois e voltam para suas terras, onde, com toda a certeza, não falta um cemitério. Mas aqui também haverá! Aqui também haverá um cemitério!
JUJU
(Grita histericamente:) Queremos o nosso cemitério!
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DOROTÉA, JUJU, DIRCEU E DULCINÉA
Queremos o cemitério! Queremos o cemitério!
ODORICO
E haveremos de tê-lo. Cidadãos sucupiranos! Se eleito nas próximas eleições, meu primeiro ato como Prefeito será ordenar a construção ime-diata do cemitério municipal.
TODOS
(Aplausos.) Muito bem! Muito bem!Uma faixa surge no meio do povo.
VOTE NUM HOMEM SÉRIO E GANHE SEU CEMITÉRIO
ODORICO
Bom governante, minha gente, é aquele que governa com o pé no pre-sente e o olho no futuro. E o futuro de todos nós é o campo-santo.
MOLEZA
O campo-santo.
DULCINÉA
Que homem!
DIRCEU
(Repreende-a:) Du, tenha modos!
ODORICO
É preciso garantir o depois de amanhã, para ter paz e tranquilidade no agora. Quem é que pode viver em paz mormentemente sabendo que, depois de morto, defunto, vai ter que defuntar três léguas pra ser enterrado?
MOLEZA
É mesmo um pecado!
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ODORICO
Uma vergonha! Mas eu, Odorico Paraguaçu, vou acabar com essa vergonha.
MESTRE AMBRÓSIO
Seu doutor me disculpe, mas desde pequenininho que eu escuto falar nessa história de cemitério. E a coisa fica sempre na conversa. Todo mundo acha que deve fazer, mas ninguém faz.
ZELÃO
Lá isso é.Entra Neco Pedreira. É o dono do jornaleco da cidade, A Trombeta.
Jovem combativo, algo esclarecido, afora uma certa dose de charlatanismo, é um indivíduo positivo, um pouco acima da mentalidade da cidade. E a cons-ciência disso lhe produz certa frustração.
ODORICO
Mas eu vou fazer. Os que votaram em mim para vereador sabem que cumpro o que prometo. Prometi acabar com o futebol no largo da igreja e acabei. Prometi acabar com o namorismo e o sem-vergonhismo atrás do forte e acabei. Agora prometo acabar com essa humilhação para a nossa cidade, que é ter que pedir a outro município licença pra enterrar lá quem morre aqui. E vou cumprir.
Neco Pedreira disfarçadamente acende um “espanta-moleque” e o atira no meio da praça. As mulheres gritam, histericamente. O povo corre.
DOROTÉA
É ele! Não podia ser outro!
JUJU
Neco Pedreira!
DULCINÉA
Cafajeste!
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NECO
Quem morreu fedeu, Odorico.
JUJU
Minha Nossa Senhora, que heresia!
DOROTÉA
Com certeza vai escrever isso na sua imunda gazeta.
ODORICO
Eu sei que há muita gente que não respeita os mortos nem acredita em Deus. Não é para esses ateístas despenitentes que vamos construir o nosso cemitério.
NECO
Muito obrigado. Espero que você seja o primeiro a fazer uso dele.
ODORICO
(Para os pescadores:) Vamos seguir com o enterro.
MESTRE AMBRÓSIO
Vamos lá, Zelão. Pega na proa que eu vou no leme.Zelão e Ambrósio voltam a carregar o defunto.
MESTRE AMBRÓSIO
Tava pesado assim quando a gente veio, Zelão?
ZELÃO
Tava não, Mestre Ambrósio.
MESTRE AMBRÓSIO
Então o finado engordou.
ZELÃO
Acho que sim.
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MOLEZA
Diz que surra de chicote é bom: a alma sai e o defunto fica mais leve.
ZELÃO
Também já ouvi dizer.
MESTRE AMBRÓSIO
Vamos indo. Na estrada a gente arranja um cipó e dá um chá de vara nele.
DIRCEU
Você vai, Du?
DULCINÉA
Claro. Você não percebe que é importante, Dirceu? Minhas irmãs também vão.
DIRCEU
Eu vou pra casa.
DULCINÉA
Fazer o quê?
DIRCEU
Deixei as borboletas secando na janela, tenho medo dos gatos…Dulcinéa faz uma cara de fastio e une-se ao grupo que vai acompanhar
o enterro.O cortejo se movimenta. O defunto vai à frente, ziguezagueando em sua
rede, por mais esforço que façam Zelão e Ambrósio para caminhar em linha reta. O cão segue, amarrado à rede. E, mais atrás, a Velha, Odorico, Dorotéa, Juju e Moleza, que tira acordes no violão.
VELHA
Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres, bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus.
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