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O boi piou e outros escritos 1 a . Edição Agosto de 2017 Amlap Ed Egroj Capa : foto do pixabay.com/pt/

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O boi piou

e outros escritos

1a. Edição Agosto de 2017

Amlap Ed Egroj

Capa : foto do pixabay.com/pt/

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ÍndiceCapítulo 1................................................................................................4Delírios do profeta na carta para o boi dormir.........................................4Capítulo II................................................................................................8Carta aos Prometheus que ia emagrecer..................................................8Capítulo III............................................................................................10Carta de São Paulo a Belém..................................................................10Capítulo IV............................................................................................13Curto e grosso tal qual a carta aos cartunistas cartesianos....................13Contos....................................................................................................15Na palma da mão...................................................................................16A cantata natalina do Pedrinho..............................................................24Dois olhos, duas vidas...........................................................................28Guerra em Exu.......................................................................................40O homem que andava de costas.............................................................57A bala perdida........................................................................................63A musa disse não...................................................................................65Infinito prazer........................................................................................67Natureza erótica.....................................................................................70O corredor..............................................................................................72Relato de um viajante............................................................................75O roubo perfeito.....................................................................................78Gêmeos..................................................................................................81Um homem muito bom..........................................................................82O tiro no escuro.....................................................................................84Os leões..................................................................................................86Um dia ainda vamos rir.........................................................................88Estória mineira.......................................................................................90A viagem da mula sem cabeça...............................................................92Pacientes................................................................................................95Explicações............................................................................................96Raciocínio rápido...................................................................................98Amor impaciente.................................................................................100Médicos milagreiros............................................................................101Genaro e o Fusquinha..........................................................................103Nomes incomuns.................................................................................104

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Márcio, o piadista................................................................................106The flash..............................................................................................107Estragos do tempo...............................................................................108Uma estória antiga...............................................................................110O médico zombeteiro...........................................................................113O escolhido da Bárbara........................................................................115Ela só precisa de uma desculpa...........................................................117Acompanhantes....................................................................................119O paciente do quarto 21.......................................................................122O bicentenário do estetoscópio............................................................124Escritos do Zé Pirata............................................................................126O ladrões que caíram do galho............................................................127O telefonema........................................................................................128O Balão de Italalé................................................................................129Nomes de bares inspiram o Zé............................................................131Assistência aos mortos.........................................................................134Frases do Zé Pirata..............................................................................137Os amigos do colunista........................................................................141Procurando um antigo amor................................................................143Como surgiu o Zé Pirata......................................................................145Poesias.................................................................................................148 Meu canto...........................................................................................182

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Capítulo 1

Delírios do profeta na carta para o boidormir

1 - O boi piou naqueles dias. O carro acelerou, grande velocidade,bateu contra nada. Uma lagarta rastejou sobre a terra até encontrar ahorta verdejante. Decidiu comer todas as folhas. Começaria pelaprimeira que avistou não fosse o grito da coruja. Vaidosa ela começoua mudar de cores. Arrancou a penas vermelhas e usou um mantomarrom. Naqueles dias o boi piou sobre a terra. E o profeta disse: ascoisas se renovarão. 2 - Cansado de ficar inerte, o elefante decidiu dar um pequeno passopara a humanidade e, sem querer, pisou no formigueiro. Do ponto devista das formigas foi uma tragédia de grandes proporções. Foi como seuma nave gigantesca caísse sobre o solo aprofundando-se edestruindo tudo. Naqueles dias o boi piou menos sobre a terra. 3 - Estava tudo espalhado, partes, partículas, partituras, tudo partido.Eram pedaços de alguma coisa querendo se juntar novamente. Jamaisem universo algum houve tanta necessidade, tanta velocidade, tantaênfase! Seria absurdo se não fosse lógico! 4 - Então aconteceu. Roubaram tudo, a nave espacial, o bolo de fubá.O carro voou longe e o galo cacarejou. Naqueles dias o sol ficava maistempo sobre a terra. Houve couve, mas acabou. Comeram tudo, desdeo tubo até o duto. As pastas alimentícias ficaram em falta.Documentos? Não ficou pasta sobre pasta.

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5 - O cavalo escoiceou, a bananeira caiu e a macacada fugiu. Naqueletempo o boi piou novamente sobre a terra. Era época de esquecimentoe fantasia. Época em que nem diferença fazia. 6 - Houve um tempo em que as chuvas eram escassas. Rios secaram ecobras rastejavam sobre a terra. Choveu, o homem ficou tão feliz comoum bebê se lambuzando com mingau! E surgiu a lama. A carruagem defogo que pousava escorregou. Bateu num barranco. Naquela regiãonem tinha boi. 7 - Mas um dia teve uma traficante de drogas, tipo uma feiticeira, quevendia produtos da terra, das plantas, para aliviar dores, acalmar seres.Tão parecida como céu, era a situação em que ela "deixava" aspessoas, que a chamavam de Celeste. 8 - Os meninos que um dia chegaram naquela terra aprenderam adefender Karina, a carruagem de fogo que os transportou. Com opassar dos tempos tornaram-se os lendários Defensores de Karina. Elesviram quando animais se espalharam pelo mundo. Cada menino tinha um animal como padrinho. Um deles era afilhadodo boi. Jumério, por sua vez, era afilhado do jumento e gostava deexibir sua espada, mesmo em tempos de paz. 9 - Milhares de séculos depois, quando a polícia decidiu prenderCeleste, a informação vazou. O veículo com policiais seguia pela ruaprincipal. Mas outros veículos começaram a "aparecer" na frente emmenor velocidade. Saiam da próxima esquina, da próxima garagem,saíam "do nada" e ficavam na frente. Os policiais jamais chegaram àcasa de Celeste. Já houve muita violência no planeta mas nunca umamulher foi queimada como bruxa. Queimar um ser é um ato insano emqualquer mundo! É coisa de boi arrepiar... 10 -Naqueles tempos, quando já havia energia elétrica, o casaldecidiu comprar um fogão moderno. Depois de instalado, a mulhergirava o botão, vazava gaz, mas fogo não acendia. Ela foi reclamar naloja. Queria um fogão prático. Você gira o botão e ele abre o gás e jáascende. -Esse que a senhora está falando é um fogão inteligente. -E só agora você me diz que eu comprei um fogão burro?

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11 - Profeta, o que é um defensor de Karina? - Quando chegamos ao planeta, a nave mãe estava desgastada dagrande viagem. Ficou quase que abandonada, diante do interesse peloque havia ao redor, plantas, animais, água, terras... Mas aos poucosalgumas pessoas começaram a entrar na nave e pegar coisas queprecisavam. Se alguém não tomasse alguma providência, um dia anave mãe estaria totalmente destruída. Assim foi criado o primeirogrupo de defesa da nossa carruagem de fogo. Você tem cara de quegostaria de ser um Defensor de Karina, quer ser? Joab sorriu. 12 - A primeira batalha de Joab, aliás, uma das primeiras que oprofeta se lembrava, aconteceu quando o jovem completou 20 anos.Uma multidão defendia o direito de entrar na nave e pegar o quequeria. Afinal, Karina era deles. Outra parte defendia a integridade danave mãe. Sem suas partes íntimas, ela nunca mais funcionaria e deque adiantaria sua existência? Velocidade, energia, força. Naquelestempos os seres jugavam ser covardia usar armas para se defrontarem.Cada um era o guerreiro em si. Lutar significava usar o próprio corpona defesa ou no ataque. Os defensores de Karina preferiram usar asmãos para repelir os inimigos. Mas houve traição. Alguém pegou umalança e Joab, o menino do profeta, morreu. O fato em si, a covardia, avergonha, a desonra, parou a guerra por muitos anos. E Karinapermaneceu intacta graças a Joab, o jovem guerreiro. Assim chorou ecantou o profeta! Naqueles tempos o boi PIROU. 14 - Nunca se soube direito, mas os defensores de KARINA lutarampor milhares de anos, até que um dia a NAVE MÃE, que por tantotempo, permanecera calada, voltou a falar de coisas lindas emaravilhosas, que tinha em sua memória eletrônica. Havia todo ummundo novo a descobrir. Um mundo para os novos profetas. As coisasse renovariam. 15 - Em uma época, houve um canto na terra. Muitos gravaram ecantaram a mesma canção. Mas ninguém, jamais conseguiu lembrar,sequer, o nome daquela mulher, a flor da noite na Boate Azul. Ela, quecurava os doentes de amor, passou para os anais da crença como ASanta Esquecida.

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16 - Um dia, o profeta bradou: A lei é branda e o ladrão é manso. Foi-se o tempo de "se gritar pega ladão, não fica um, meu irmão". Hoje emdia ou mesmo à noite, ninguém foge. Sai o listão dos indiciados e todosficam por aí como se não houvesse nada a temer. Ali bla bla bla e osquatrocentos ladrões, mansos como cordeiros... 17 - Orai e louvai que os tempos são outros cheios de falsos profetas.Se tornassem mais fácil seria menos difícil. Mesmo assim há novosoceanos ao lado de velhas estrelas na galáxia. Cada pedaço procurandoa sua parte. 18 - Como falar coisa com coisa se cada uma é diferente da outra e oshomens insistem em criar chifres na cabeça de cavalos. Se fosse difícilnão seria fácil! Postergai a posteridade. 19 - Assim falou o profeta: Fulano gerou Beltrano, que gerou Ciclano,que gerou Cipriano. Pô, só tinha homem naquele lugar? O boi piounaqueles tempos. O profeta mascou plantas da terra e teve delírios,devaneios, vislumbres, reminiscências do que poderia ser um reinocom uma linda crença. Quem sabe um dia as feministas poderiamrestaurar os velhos escritos. O profeta ficaria honrado se uma lindaprofetiza restaurasse os seus pensamentos. 20 - E vislumbrou o profeta. Quando caiu sentado em um terrenocom lama, o homem criou a primeira forma anatômica em baixorelevo. 21 – Uma visão do futuro. Cinco mil amigos no Facebook, quem nãotem? Para que servem? Talvez, para ver o boi dormir… 22 – Nova visão do futuro. Milhões de pessoas aplaudindo o grandeastro no dia em que ele foi sepultado. Imaginem o quanto ele se sentiufeliz ao ver tanto reconhecimento! Naquele dia até o boi piou! Foi umagrande e profunda piada!

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Capítulo II

Carta aos Prometheus que ia emagrecer

1 - Naqueles tempos muitos se chamavam Joab, que significa Joab,como uai (uai é uai, uai!). Num dia de outono, Joab, o gordo, notouque seu cachorrinho também estava acima do peso normal e decidiuunir o útil ao desagradável: levar o cachorrinho para passear em longascaminhadas. Começou contando 30 passos, que foi aumentando com opassar dos dias. Pequeno, mas forte, o cão ia arrastando Joab. Quandovoltavam, cansados, o cãozinho bebia bastante água e tirava umcochilo. Joab tomava o seu café da manhã caprichado e, como não erade ferro, também ia dormir um pouquinho. Passado algum tempo,Joab, o gordo e o cãozinho foram para a balança. Na média ficou tudoigual. O cachorro emagreceu dois quilos e Joab engordou dois.Naqueles tempos o boi cochilou sobre a terra. 2 – Houve uma fase em que as lulas povoaram a terra. Era lula daqui,lula de lá e até existiu um governante lula, que fez muitas coisas peloreino, inclusive criar o príncipe lulinha. Este ao contrário do pai nãoqueria saber de ficar no palácio. Era uma espécie de Rei Midas e tudo oque tocava virava ouro. Era devoto do boi. Foi devido a ele que surgiu alenda do boi de ouro, tão forte que era conhecido como Triboi. Mas overdadeiro boi não deu um pio. Descobriu que apesar das falácias nopalácio, a carne era fraca e não quis saber de piadas. 3 – E dizem as falácias do palácio que a riqueza era tal e o pessoalficou tão desencanado indo e vindo buscar dinheiro de brasília amarelaque quando alguém comentou que ia tomar um banho “voando”, ooutro perguntou: Que voo você vai pegar?

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4 – Foi naquela era, que outro profeta, conhecido como Nóia, nãogostou do que viu na terra e decidiu mandar uma praga e transformara água do rio em sangue. Manobrou erroneamente o seu cajado e umanave espacial carregada com preciosos barris caiu na cabeceira do rio etransformou as águas em vinho. Foi uma bebedeira geral. Seria umaconfusão pra Confúcio, se não fosse um “barato” que saiu caro.Alguém teve que reabastecer a adega real. 5 – Naqueles dias, numa localidade próxima, Joab, o jogador defutebol (como gostava de peladas!), visitou a mãe e disse: “Do coração,eu não morro. Fui ao médico, fiz todos os exames e ele disse que estátudo muito bem”. Depois foi para casa, conversou com a mulher,sentou-se no sofá e teve um infarto fulminante. Foi sepultado no diaseguinte apesar de “tudo muito bem”. 6 – Então o profeta teve uma profunda reflexão. Se os olhos nãoveem, o coração não sente. Mas e no caso de uma pessoa morta, ocoração não sente porque os olhos estão mortos, ou os olhos nãoveem porque o coração está morto? O profeta aguardou umaresposta, e também desta vez, o boi não piou. 7 – Depois de muito tempo calado, o profeta se manifestou: Pensarnão dói e não custa nada. Lembro-me de um rapaz que não gostava detrabalhar e dizia que quando dava vontade de ir ao trabalho, ele ficavabem quietinho e esperava a vontade passar. Assim também é com opensador. Quando começa a pensar muito, fica cansado e pensa torto,em excesso, fora de rumo e fora de prumo criando coisas que nãoprecisam existir. Às vezes é preciso deixar que os outros pensem e nãoser o único e exclusivo pensador. Afinal, o boi pia para todos, ou não? 8- Profecia com ressalva. Daqui a 120 anos, se não encontrarem oelixir da juventude, todos os homens hoje vivos na, face da terra,estarão mortos. As mulheres também. Graças ao Criador, este profetanão terá mais que fazer profecias.9- Daqui a menos tempo, este profeta não terá mais que ficar falandode naves e carruagens de fogo depois de ficar pirado lendo o VonDane-se.

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Capítulo III

Carta de São Paulo a Belém

Leitura obrigatória aos pés da cama.(Pode ser lido com fundo musical de Rio Negro e Solimões)

1 – São Paulo ficou pequena e abafada e por isso alguém pegou anave do Erik Von Dane-se e seguiu para a estrela de Belém, em cujaconstelação havia o planeta de um pequeno príncipe. Não, não eraaquele que adorava o boi de ouro. Era um pequeno príncipe quegostava de flores e leitura. Por isso a nave foi carregada de livros sobredeuses astronautas. Quem quiser saber mais sobre esta parábolaparanoica pode ler o Von Dane-se. 2 – E o profeta volta ao versículo 3, capítulo I e lhe vem à mente aletra da música “Oh pedaço de mim, oh metade afastada de mim”.Então vem a dúvida. Porque trazer um morto para ser enterrado naregião onde nasceu? Por mais que o conduzam sempre estarão noplaneta original. Nasceu e morreu neste mesmo planeta redondinho,que cabe dentro de uma internet. Se ele fosse de outro planeta atéfaria sentido. Mas o morto teria sentido? 3 - Retrocedendo. Capítulo I, versículo 5 : Era época de esquecimentoe fantasia. Época em que NEM DIFERENÇA FAZIA. Mas no fundo, quediferença faz sobre quem puxou o gatilho e quem morreu, quem

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matou, quem se arrependeu, se o tempo transforma todos emmortos? 4- Lembra do tempo em que o homem ficava 20 anos escrevendo umlivro, dez anos cultivando uma árvore, horas para derrubar a árvore,tempos para produzir o papel, muito mais tempo para imprimir o livroe usava intensa estrutura para distribuição?. Hoje o profeta escreveuisso que você está lendo em segundos e salvou em poucos bytes,diretamente on line. Faz sentido ficar rezando para o santo Yuri,matador de dragões que defendia a virgem e usava espada, que nemera de laser? Ou era? Von Dane-se. 5 - Mas um dia o profeta tropeçou e caiu de nariz no chão. Chãosagrado onde o império prosperou com um nariz sangrando. Era tantosangue daquele nariz, nariz, nariz que virou um chafariz. Mas o sangueera redentor. E veio a redenção! 6 - Teria que começar tudo de novo. Os planetas balançaram nagalaxia como se fosse um batida . Uma caipirinha com pinga, limão egelo. Tudo balançando e entrando cada qual no seu lugar. O sistema sesistematizou. Era a ordem. E o profeta resolveu tirar uma soneca.Bebeu cerveja na caneca. Deu um chute na perereca. E por fim disse“Eca!”. O mundo estava estabilizado! 7- Como nada se acaba , nem Limeira ou Sorocaba, vem o banco e obarranco pra tudo se arrebentar. E qual dupla sertaneja, canta fruta, acereja, até o dia acordar. E se o mundo acabar num barranco, numbarranco, vamos todos retornar. 8- Quando a nave escorregou na lama e bateu no barranco, suamemória eletrônica sofreu pane e ficou parada por muito tempo. Masum dia ela voltou e mostrou um mundo para o infinito impensável.Agora tudo é possível. Até amar aquele ser que não quer ser amado.. 9- Mas a curiosidade de Joab, o novinho, não estava satisfeita. -Mestre, por que o boi piou E o mestre não se fez de rogado. -Porque ele é bom de bico -Profeta, por que morrer encostado no barranco?

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-Porque se todos morrerem encostados na previdência, não háreforma que restaure. 10 -Fim do terceiro capítulo, por falta de argumentos, semarrependimentos.

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Capítulo IV

Curto e grosso tal qual a carta aoscartunistas cartesianos

1- Dando uma pausa, o boi não pia mais no mundo de hoje e talvezseja por isso que acontecem coisas estranhíssimas. Nesse meio tempoo profeta descobriu a origem do maior ladrão das galáxias. Hoje emdia, até os roubos não são mais como antigamente, ou no futuro, jáque a relação tempo/espaço é meramente temporal. Aquele jovemque envelheceu sonhando ser escritor famoso, e não ficou rico,resolveu furtar as obras dos outros. 2- O grande ladrão das galáxias começou roubando livros inteiros.Muito fácil. Fazia uma cópia da internet, colocava seu nome epublicava de novo na própria internet, terra neutra, onde ninguém éde ninguém. Mas achou que poderia ser descoberto. passou a furtaruma frase daqui, outro trechinho dali, alguma idéia muito boa, outranem tanto para disfarçar, uma frase esparsa e leve, outra bemcompacta e pesada, até que passou ao processo final, do furto maisapurado e perfeito, Partiu para o furto da obra prima, tia, sobrinha, ouseja lá quem for: a palavra. Mas então teve que juntar as ditas cujas..E ai, com grande dificuldade, começou a criação original.... Hoje ele

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combina as palavras e produz a sua própria obra, autêntica enaturalmente furtada, palavra por palavra... 3 - Indo para o passado ou para o futuro, ou vice-vera, o profetachegou a conclusão de que em certo tempo, com roubo ou sem roubo,haverá muitos robôs. E isso é muito bom. Os robôs não se alimentamde produto animal ou vegetal. Assim não terão motivo para querertirar alguma coisa dos humanos. Eles não se alimentam como seresvivos; não precisam de comida. Podem até precisar de uma fonte deenergia, mas não processam os alimentos e não soltam fezes e gasmetano. Não haverá necessidade de tantos sanitários, tanta água paradescarga e nem ocorrerá tanta poluição na terra e nos rios. Além disso,nunca ninguém poderá dizer que um robô fez alguma coisa erradaporque tinha merda na cabeça.4 - Profeta, preciso de um conselho. Escrevi um livro. Que editora devoescolher? E o profeta responde. "Nunca vendi um livro, mas agoraestou chic, Estou na Amazon Internacional. Vendendo ou nãovendendo, pelo menos é em dolar, menos ou mais dolorido."

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Contos

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Na palma da mão

Assim começou a escrever: Ao ler o conto “Cantiga de Esponsais” um clássico, de Machado deAssis, que descreve os derradeiros momentos de um músico o qualsabia tocar maravilhosamente, mas não conseguia criar uma melodiasequer, Sartel sentiu uma punhalada no fígado. Era a personificação desi mesmo. Houve tanta dor, tanta desesperança, que achou que teria o mesmofim melancólico do músico. Com 60 anos, vivendo em um mundo maismoderno, desabou. Sempre fora capaz de escrever muito bem. Sabia oportuguês, conhecia gramática e até tinha revisor ortográfico nocomputador. Fazia atas como ninguém. Até reportagens chegou aescrever quando necessário. O grande problema era criar uma estória. Lia todos os livros quantosfosse possível. Mas não sabia criar os enredos, as intrigas, asrevelações, como os grandes escritores. Percebera com o tempo, que para escrever um livro teria que criarvárias personagens. Algumas teriam que ser más. Nos livros e nosfilmes de ação, quanto mais maldosos forem os "bandidos" mais sejustificam as ações dos "mocinhos". Quanto mais sofrimento os mausimpingirem aos bons, mais satisfatório é o sabor da vingança no final. ESartel não se via criando uma coisa assim. Sartel poderia ser descrito como um velho amigável. Hoje em dia, com a moderna tecnologia e leitura pela internet, por Pdf, Epub e outros formatos, poderíamos de pronto inserir a sua imagem ou fazer um link. E todos veriam Sartel como ele realmente é, um velho simpático. Por isso é inútil descrevê-lo. Como acontece com todos os seres humanos, ele envelheceu.Arrependeu-se do que fez, e principalmente, do que não fez. (Ah,aquela moça... Se eu tivesse...) Mas se recuperou a tempo e guardouconsigo o que tinha de mais importante: as suas lembranças.

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Só se arrependia de não ter registrado tudo e feito um backup porqueultimamente, sua mente lhe pregava peças. Mesmo aquilo que tinhaescrito há muito tempo, em um computador, não tinha sido registrado,porque a empresa onde trabalhou, estava atrasada e só seinformatizou completamente, mantendo todos os arquivos na interneta partir do ano 199.... Por isso ele guardava a mágoa de não ter escrito nada. Nada criado, nada gravado, nada que se pudesse dizer ser um livreto de sua autoria. Ultimamente passava muito tempo no notebook, sua última aquisição. No começo se empolgou com a Internet e o tal de Facebook.A princípio pisou no acelerador, para conseguir amigos. Chegou aos 450. Achava isso importante, para o caso de ter que comunicar alguma coisa impressionante. Mas depois ficou de saco cheio. "Nada se cria, tudo se compartilha", constatou ao ver que tudo era cópia de mensagens de auto ajuda, ou de cunho religioso. As fotos e as ilustrações, sim, eram legais. Mas o resto era resto. Deixando a introdução, Sartel só começou a perceber alguma coisa estranha no dia em que, como em todas as suas folgas, foi tomar uma cerveja no bar da esquina, da Cidade A, onde morava. O leitor sabe que em todo bairro, existe um bar de esquina. Pois foijustamente naquele bar, que ele começou a sentir a sensação de quealguma coisa estava diferente. Uma impressão profunda forçava a queele se dirigisse para o cemitério de sua cidade natal, a cidade B. Sartel vivia acabrunhado com o seu relacionamento com a esposa. Como não tinha com quem discutir, ela era a última esperança. Discutia por tudo e por nada. Um exemplo era a toalha da mesa. Quando comprou uma mesa com superfície plastificada, para a cozinha, ele imaginou que teria paz. O que sempre o perturbou foi que, ao fazer o seu prato, derrubava alguma coisa na toalha. Ficava chateado com aquela mancha horrível. Com a mesaplastificada, era só passar um pano úmido. Mas a esposa insistia emcolocar a toalha na mesa nova e daí vinha a desavença. Com o tempoSartel descobriu não tinha raiva da mulher, nem da mesa, nem datoalha. Tinha raiva de si mesmo por tomar bebida alcoólica e derrubar

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coisas ao preparar o prato, principalmente quando se tratava demacarrão ao molho. Mas a bem da verdade, isso acontecia mesmoquando não bebia. Sartel se empolgou certa vez ao ler a estória da tábua. Uma famíliatradicional fazia lanches há muitos anos. Eram os lanches maisgostosos da região. Quando uma grande empresa multinacional quiscomprar a empresa, a família vendeu e passou a receita. Mas o lanchenunca foi igual ao o original. Só depois de muito tempo é que amultinacional descobriu que a família preparava o lanche em umamesa, que nada mais era que o tronco de uma arvore centenária. Todoo sabor do lanches estava concentrado ali, no tronco da árvore morta.Por isso, com as técnicas modernas, o lanche nunca seria igual Sartel se animou com a estória. Um dia, contou-a, empolgado para Mariana, e ela respondeu:. -Está certa a multinacional. Imagine quantos micróbios se acumularam naquele tronco de árvore... O certo é cortar carnes e legumes em base de vidro, plástico ou aço, que é muito mais higiênica. A resposta de Anamaria foi inteligente, mas não foi romântica e serviu como mais uma argumentação do contra. Naquela tarde, de folga, com a mulher na cozinha e para não brigarpor causa da toalha, ou por causa da tábua, ele decidiu ir até o bar daesquina. Foi então que veio aquela vontade louca de ir ao cemitério de sua cidade natal. Ele nunca foi dessas coisas, de sentimentalismos. Mas como sentiu forçoso ter de viajar, de ir até o cemitério, telefonou para Anamaria. Ela atendeu imediatamente e quando ele explicou o seu desejo e perguntou se ela queria acompanhá-lo a resposta foi imediata. -Eu vou, mas você sabe que dia é hoje? -Não faço a mínima ideia - respondeu Sartel, -Pois é o aniversário de nascimento de seu pai. O comentário de Anamaria o chocou profundamente. O pai de Sartelhavia falecido há mais de 20 anos. A imagem que ele tinha na menteera uma foto tirada em um momento festivo. Quanto a datas, nunca se

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preocupou nem mesmo com seu próprio aniversário. Viviaesquecendo. Para Sartel, o importante eram fatos e não datas. Sempreachou que o importante em uma vida não era esse ou aquele dia, massim a soma de todos eles. Mas Anamaria não era assim. Ela lembravaos aniversários de nascimento e de outros eventos da maioria defamiliares e amigos. Por isso, quando ela disse que era aniversário do pai de Sartel,involuntariamente, ele teve uma crise de choro. Fosse lá o efeito dopouco álcool que havia ingerido, fosse a lembrança do pai, fosse asensação estranha de sentir vontade de ir ao cemitério. A verdade éque chorou como não tinha feito quando o pai morreu. Com Anamaria ao lado, viajou 40 quilômetros para chegar ao cemitério. Quando se aproximava da Cidade B, sua mente viajou, e ele começou a rir. Anamaria perguntou o que estava acontecendo e ele disse que eramos fantasmas do passado. Na verdade eram fantasmas, do tipo do tipoGasparzinho. Sartel se viu novamente com nove anos, rodeado decrianças, que iam assistir a mais uma das peraltices do Gazuza. Omenino, com mais ou menos a mesma idade do grupo, vivia de"experiências". Naquele dia, afirmou que ia subir em uma árvore epular de paraquedas. Mas como não tinha o paraquedas, levou umguarda-chuva. Pediu a todos que, quando ele pulasse, batessempalmas e gritassem: "Muito bem, que grande feito!" Quando pulou, oguarda-chuva se revirou todo e Gazuza se arrebentou no chão. Comoestava combinado, os coleguinhas aplaudiram e sintetizaram: "Bemfeito! Bem feito!" Sartel soube ainda mais algumas coisas sobre Gazuza. A última“experiência" era que ele estava procurando uma garrafa transparentepara soltar gases intestinais. Ele queria saber a cor do pum... Antes de chegar ao túmulo de seus avós, Sartel, começou a ver, nas fotografias, muita gente conhecida. Eram seus amigos, vizinhos, moradores da cidade, que haviam falecido nos últimos 30 ou 40 anos. Sentiu paz. Sentiu alegria em "revê-los". Foi então que teve a ideia de criar o "Cemitério Virtual". Bastaria fotografar todos os túmulos,

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focando principalmente as fotos e as informações sobre os mortos. Depois seria só inserir tudo em um site. Quem não quisesse ir até o cemitério, poderia entrar na internet e digitar: www.cemitériodacidadeB.com.br. Acreditando que os falecidos vivem quando alguém pensa neles, Sartel ainda teve a ideia de inserir no site algumas histórias para que os mortos fiquem mais vivos. Além disso os sepultados seriam globalizados com o cemitério virtual. Ao chegar ao túmulo dos avós, revolveu-se em um mundo de lembranças. Se viu novamente criança, acompanhando a vó, no caminho para aquele mesmo cemitério. Na estrada, que naquele tempo era de terra, eles iam caminhando quando a vó perguntou: -Você sabe por que não tem o mesmo sobrenome que os seus primos? O menino Sartel não sabia. Então a vó explicou; -Quando meu casei com seu avô, José Sartel, tudo parecia maravilhoso. Nós dois éramos jovens e achávamos que o mundo tinha tudo de bom. Foram seis meses de felicidade e eu fiquei grávida de seupai. Mas um dia, um grupo de ciganos apareceu na vila, vendendo coisas. Sempre acontecia isso e a gente não estranhava. A gente acabava se misturado e trocando ideias. Foi quando uma cigana pegou a minha mão e disse que ia ler a minha sorte. Não me preocupei porque era feliz e acreditava no futuro. Naquele momento, Sartel deu um fundo suspiro. Ao lembrar o que avó contou a seguir ele estremeceu. A vó prosseguiu: Ao ver a minhamão, a cigana foi incisiva e disse que eu perderia a minha felicidade norio, em seis meses. -E o que aconteceu, vó? -Aconteceu, que eu fui lavar roupa no rio e perdi a minha aliança. Aágua a levou e também a minha felicidade.... -Mas foi só uma aliança.... -Sim, mas um mês depois, o seu avô morreu de um infarto do coração, antes de seu pai nascer... -Credo, vó, mas o que tem isso a ver com os meus primos. E ela contou: Foi então que me casei como o J.B. e tive outros filhos. Eles são seus primos, mas não têm o sobrenome de seu pai e avô

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- Mas vó, e se a cigana insistir e a gente não quiser saber do destino. -Você dá a costa da mão.... Sartel entendeu. Seria como dar as costas para o destino. Agora ao ver a foto da vó, no túmulo, sentia uma inveja ao lembrar como ela sabia contar uma história. Mas não pode conter o riso ao ver a foto do avô, que não era o seu avô de verdade. Devia ser aposentado para viver tão tranquilamente. Por isso Sartel tinha a impressão de vê-lo sempre na rua, jogando conversa fora. O J.B. era terrível e foi um dos precursores da "tolerância zero" umavertente do humor. Uma vez, caminhava na rua principal do povoado,quando um amigo perguntou: -E aí JB. o que acontece? -Eu estou voltando do enterro do M.C. E o interpelante replicou admirado: -Mas o M.C. Morreu? J.B. respondeu sem pestanejar: -Não, enterramos ele vivo! De outra feita, J.B. se encontrou com Nho Barbino, o homem de um braço só. Também devia ser aposentado porque sempre tinha algum dinheiro no bolso e vivia sem trabalhar. Estavam em um açougue e apareceu um inseto. J.B pegou o inseto e disse que apostava X em dinheiro que o engoliria. Nho Barbino duvidou e bancou a aposta. J,B. pegou o inseto, enfiou-o na boca, deu uma mastigada rápida e oengoliu. Depois disse: -Isso é para você deixar de ser idiota. - E apanhando o dinheiro do Nho Barbino, saiu rapidamente do local. Sartel nunca soube se o avô realmente engoliu o inseto Mas a cada dia admirava mais o homem que era, mas não era o seu avô. Depois disso houve uma tragicomédia. Só pode ser descrita assimporque J.B. era quem ele era. Por muitos anos, o Coríntians FutebolClube não conseguia ganhar do Santos F.C. Pois bem, o J.B. eracorintiano roxo. No dia em que o Coríntians "quebrou o tabu". Houveuma grande festa na então já Cidade B. Todo mundo correndo pelasruas e soltando fogos.

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J.B. também participou. Soltou tantos fogos, que um dos "rojões" estourou em sua mão. Foi grave e teve que ser conduzido para o hospital da cidade vizinha, mais desenvolvida. Quando voltou, sabendoque ele havia perdido um dedo da mão direita, Sartel foi visitá-lo. Ao entrar no quarto do avó, com a cara triste e preocupado, ouviu quandoJ.B, disse bem firme: -Não fique preocupado, meu neto. Se o Corintians ganhar de novo, eu não faço contas de perder mais um dedo.... Agora, ao ver a foto do avô no túmulo, Sartel tinha novamente vontade de rir. E a ideia do Cemitério Virtual ganhou mais força. Realmente poderiam ser acrescentadas histórias, para manter os mortos mais vivos.... Ao regressar à cidade A, estranhamente Sartel se sentiu mais feliz.Parecia mais livre. Era como se não estivesse mais tão só. Havia algumacoisa dentro de si, que ele não sabia explicar. Mas o deixava maisconfiante. Naqueles dias, Sartel estava relendo "Demian". de Hermann Hesse" . Não se sentia com a marca dos cainistas, mas lembrava-se de que, quando lera o livro pela primeira vez, sentira força. Era jovem, aprendeu hipnotismo com o monsenhor L.F.A. Estudou auto sugestão com o seu amigo Al e chegou a sentir que tinha alguma força mental. Hipnotizou amigos para experiências. Mas era muito jovem e a força damãe foi maior. À base de chineladas, teve que abandonar tudo, para não se passar como O Bruxo de B. Nunca fora muito religioso. Acreditava na mente, mas não tinhacerteza das coisas espirituais. Teria mesmo o chamado ao cemitérioprovindo de seu pai, ou Anamaria teria pensado nisso com tantodesejo, que ele se sentira chamado. Não importava. Estava feliz. Não sesentia só. Ao mesmo tempo passou a se recordar do pai, quase quediariamente, até que se lembrou de uma foto antiga. Era de seu pai,solteiro, morando na Capital, trajando um terno preto e um chapéu defeltro. Magro e alto parecia personagem de algum filme. Com quemestaria aquela foto?

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Sartel guardou as lembranças para si. Mas alguns dias depois, uma prima que estava doente, faleceu. Como sempre acontece nestas ocasiões especiais, reúnem-se parentes dos mais diversos locais. Depois do funeral, já em sua casa, Anamaria contou a Sartel quehavia ganhado dois "presentes" da irmã dele, que veio da cidade B.Mostrou-lhe então duas fotos. Uma era um close de seu pai com orosto sereno. A outra era a foto do pai com o chapéu de feltro.... Anamaria disse que o presente era para ela e guardou as fotos. Sartelestava tão boquiaberto, tão surpreso com a feliz coincidência, que nemsequer argumentou nada. Levantou-se com os olhos lacrimejando e foipara seu quarto... Não se importava que a foto ficasse nas mãos de Anamaria. O queimportava é que a tinha visto novamente e que estava em casa. “Vou trabalhar mais feliz”, pensou, e continuou relendo "Demian". Novamente sentiu o poder da força. Quando chegou em casa, naquela tarde, as fotos de seu pai estavam literalmente coladas na tela de seu notebook. Anamaria as colocara ali. Por que? Ele não perguntou. Pegou a foto olhou com carinho. Sentiu que havia uma conspiração cósmica a seu favor. E, de repente, teve um estalo. Já sabia o que fazer. Lembrou-se da avó. Não daria a costa para o destino. Estava tudo ali, na palma de sua mão. E assim começou a escrever…

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A cantata natalina do Pedrinho

A movimentação na cidade, naquela véspera de Natal não eranormal. -Você vai para a fazenda? - perguntou o jovem ao deixar umalanchonete. -Vou – respondeu o colega. -Eu também vou – disse o primeiro . Em outro ponto da cidade, O padre acabava de fazer uma celebração e deixava a Igreja, quando alguém lhe perguntou: -O sr. vai para a fazenda? -Estou indo para lá agora.... Entre os protestantes, o pastor comentou: -Não posso deixar de ir... Na Vila Maria, o maestro Joaquim Silveira recebeu um telefonema: -Nós vamos para a fazenda? -Sim, vamos todos juntos, no ônibus. Em vários outros locais as pessoas comentavam sobre o mesmoassunto. E a movimentação de veículos em direção à Fazenda Helenaacabou se tornando muito mais intensa do que em anos anteriores. A história toda começou, quando, numa véspera de Natal, DiogoPeixoto, o rico fazendeiro, proprietário da Fazenda Helena, ondemuitos moradores do município trabalhavam, foi passear em umacidade próxima, com a mulher Mariana e o filho Pedro, de cinco anos.Por uma dessas coincidências da vida, ele acabou ficando, na horacerta, no local certo e juntamente com sua família, assistiu a umacantata de Natal. Pedrinho ficou impressionado. Quis saber o porque daquela música, quis saber tudo sobre o menino Jesus e gostou tanto das músicas natalinas que pediu ao pai que o levasse lá no dia seguinte. -Não é assim, meu filho, isso é uma coisa tão especial que só acontece uma vez por ano, no Natal, quando se comemora o nascimento do menino Jesus. O menino Pedro entendeu, mas quando voltou para a fazenda, sófalava na cantata natalina. Comentou com funcionários da fazenda,

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com filhos dos funcionários, com os empregados da casa. Depoisperguntou ao pai: -Por que a gente não faz uma cantata aqui na fazenda, para quetodos ouçam o que a gente ouviu? O fazendeiro sorriu. Adorava o filho e até achou a ideia tão pura e detanta beleza, que o abraçou. Mas teve que explicar que certas coisasnão são feitas de um dia para o outro. É preciso contratar um coral, oupreparar um, acertar com um maestro. Os cantores precisam ensaiar.Enfim, demora um certo tempo. Mas Pedrinho retrucou: -Então a gente faz no próximo natal! O pai concordou. Afinal, tinha um ano pela frente e com tanto serviçona administração da fazenda, esqueceu o assunto. Pedrinho não esqueceu. No meio do ano, ouviu músicas natalinas de CDs que encontrou em casa. E cobrou a promessa do pai. Peixoto decidiu ir à cidade e falou com alguns amigos. Explicou a ideia do filho e eles indicaram que que ele procurasse um jovem, Joaquim Silveira, que estudava música e preparava-se para um dia realizar o seu sonho de ser maestro. O fazendeiro encontrou-se com Silveira. Disse saber que todos os corais tinham sua agenda cheia, principalmente no final do ano e perguntou se ele poderia formar o Coral da Fazenda Helena. Disse que sua empresa patrocinaria o coral e que Silveira não devia se preocupar com os custos. Foi assim que alguns meses depois, estava tudo preparado para aPrimeira Cantata Natalina na Fazenda Helena. Pedrinho, quefrequentava a escola na cidade, convidou todos os seus amigos. Nafazenda, comunicativo que era, conversou com todos que viu, desdegerente, até o mais humilde empregado e convido-os para ir até àsede, no dia 24 de dezembro, às 20hs. A maioria das pessoas, atendeuo seu convite. No dia do evento, Pedrinho já estava com seis anos. Empolgadoagradecia a todos pela presença e quase chorou de emoção, quando ocoral cantou as primeiras músicas. Ao final aplaudiu muito, abraçou o

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pai, abraçou a mãe, abraçou o maestro e apertou as mãos doscantores. Sentia-se o dono, o promotor de toda aquela linda festa.Depois, foi brincar com as outras crianças. Em meados do próximo ano, Peixoto começou a programar umaviagem com a família. Aproveitaria as férias de dezembro para ir paraMiami. Mas encontrou firme resistência de Pedrinho. -Se a gente viajar como fica a cantata de Natal?. Pedrinho estava cada vez mais esperto e mais bonito. Olhos azuis epele rosada como a mãe. Os cabelos eram pretos e encaracoladoscomo os do pai. Era uma figura extraordinária! O pai o amava demais esabia que ele não promovia aquela cantata por vaidade. Queria dividiro seu Natal com as outras pessoas. Mariana, obviamente apoiava ofilho e assim, a viagem ficou para outra oportunidade. A fazendacontinuaria a promover e realizar a Cantata de Natal. E assim aconteceu nos próximos anos. O encontro virou umatradição, atraindo pessoas de toda a região. Foram vários anos em quea véspera de Natal era a data máxima na fazenda. Mas agora acontecera o inesperado. Com 12 anos, Pedrinhoadoeceu. A doença era grave. Ele sofria de leucemia. A princípio forampoucos sintomas. Depois a situação foi se agravando e ele passou afaltar às aulas. Mas à media em que os meses passavam, cada vez maisdebilitado, ele continuou a cobrar o pai, a realização da Cantata deNatal. O povo da região, como sabia que era ele quem pedia arealização do evento, passou a chamar a celebração como “CantataNatalina do Pedrinho”. Quando Peixoto foi falar com Pedrinho sobre a possibilidade decancelar a cantata naquele ano, porque ele estava muito doente, ogaroto sorriu e disse. “Se o menino Jesus quiser que eu vá brincar comele, eu vou. Se ele não quiser, eu fico aqui e a gente canta”.A situação ficou assim. Como o pai poderia discutir? No dia 24 de dezembro, às 16 horas, segundo sua própria concepção, Pedrinho foi brincar com o menino Jesus. A notícia correu de boca em boca, por telefone, por radio, por internet, por toda a região. Tristeza geral. Pedrinho se fora e não

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haveria cantata. Mas nem por isso o povo deixou de ir à fazenda. Todosqueriam prestar uma última homenagem ao menino. Ao cair da noite, eram luzes de veículos surgindo de todos os lados dafazenda. Colegas de escola, idosos que gostavam da cantata,integrantes do coral, empregados da fazenda, amigos e familiares dofazendeiro, curiosos. O corpo do menino, num pequeno caixão, foicolocado em um rancho na frente da casa, onde todos pudessem vê-losem atropelos. O maestro Silveira estava em uma dúvida cruel. Tinha até vontade defazer a cantata em homenagem ao menino. Mas como poderia pediraos seus amigos que cantassem “Noite feliz”, em um momento como aquele? Às 20h, houve um grande silêncio porque ninguém sabia o que fazer, Então, todos ouviram, a princípio baixo, e depois mais alto, uma músicanatalina vinda do interior da residência. Peixoto e Mariana, que já haviam chorado muito pelo filho, começaram a acompanhar a música. O maestro deu sinal para os seus músicos e todos passaram a cantar. E assim, por quase duas horas, a multidão cantou em torno do corpo do menino. Quando acabou toda a comoção, as pessoas procuraram entender o que havia acontecido. Empregados da casa contaram então que a música inicial veio de um gravador, onde Pedrinho gravara a cantata doano anterior. Mas juraram que ninguém havia apertado a tecla play. Só podia ser um milagre! Outra versão, apresentada posteriormente, pelos mais céticos, é que Pedrinho havia deixado uma programação no calendário de seu celular.Na noite certa, na hora certa, numa véspera de Natal, como um despertador, o aparelho tocou a música escolhida: “Noite feliz”. Ele não ia perder uma cantata natalina que tinha sidopreparada com tanto carinho durante o ano todo....

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Dois olhos, duas vidas

I - Estes olhos

Ele havia chegado de manhã e durante todo o dia ficou sentado,chorando, à beira de um túmulo. Estava em total desânimo. Não teriamais que quinze anos. As pessoas que entraram no cemitério naquele dia viram a mesa cena e o fato acabou chegando aos ouvidos do pároco da cidade. Assim, quando ia anoitecer o menino ainda estava lá e o padre resolveu ir conversar com ele. Talvez a sua presença pudesse consolá-lo e resolver seus problemas. Do portão do cemitério via-se o menino de costas. O padreaproximou-se devagar e perguntou: -Posso conversar com você? No início o menino pareceu surpreso, mas depois concordou. -Sim padre, eu quero confessar e comungar, pois nesta noite eumorro. -Ora, não diga isso - exclamou o padre, admirado - você ainda é jovem e tem muito o que viver. Conte-me os seus problemas. -Eu vou contar, padre - e o menino pôs-se a falar - o senhor está vendo estes olhos? Estes olhos que me fazem ver toda poesia e beleza e toda a maldade da terra? Estes olhos que e guiaram até esta sepultura, que já fizeram parte de outro ser, estes olhos, eu sinto vontade de arrancá-los. Eu não sei se devo odiá-los, todavia eu tive um grande amor por uma parte destes olhos! O bom padre não entendeu o que o menino queria dizer. Contudo, abraçou-se a ele e ajudou-o a levantar-se. Depois, convidou-o: -Vamos, vamos para a minha casa e lá você me contará toda essahistória. Um tanto contrariado, o menino que se chamava Ricardo, abençoou-se diante do túmulo, murmurou algumas palavras e seguiu junto ao padre.

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II - Quando tudo era belo Eu adorava a nossa fazenda. De manhã, bem cedo, quando tudo erasilêncio lá nas goiabeiras e os pardais ainda estavam dormindo, eu melevantava e, depois de tomar café, ia para o estábulo buscar o Veloz.Era o meu cavalo mais estimado. Era marrom, bem clarinho e todas asmanhãs ele percorria a fazenda levando-me em seu dorso. Assim eupassava as primeiras horas. Depois pegava meu estilingue e ia atirarpedras nos pardais. Gostava das andorinhas. Dos pardais, não. Papai me dissera que, quando ele era jovem, milhares de andorinhasviviam no velho engenho até que chegaram os pardais. Elesmultiplicaram-se rapidamente e acabaram expulsando as andorinhas.Por isso eu não gostava deles e, quando estavam fazendo festa lá nasgoiabeiras, eu lhe atirava pedras com o meu estilingue. Gostoso também era subir na jabuticabeira, chupar as frutinhas edepois mergulhar nas águas do ribeirão que passava quase embaixo daformosa árvore. Todavia, não era só de divertimento que eu vivia. Ajudava a tirar leitedas vacas, tratar dos animais e, às vezes até ia cortar cana juntamentecom outras pessoas da fazenda. Quando a tarde caia, aprontava as lições da escola e meu pai me levava para o ginásio da cidade próxima. Mais tarde, meu pai, ou o Juca, meu irmão, ia me buscar na cidade. Geralmente, retirava livros da biblioteca e levava para ler sob asombra de um maravilhoso pé de ipê amarelo. Tudo era belo e calmo.O vento balançava as pequenas flores amarelas e algumas caíam sobreo livro aberto em minhas mãos. Mas então, quando amava toda aquelanatureza, que ela ameaçou desaparecer para sempre de minha vida.Foi então que caiu sobre mim a ameaça de ficar cego.

III - E eu conheci Estela

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O pátio do hospital também era bonito. Tinha árvores e passarinhos.De certo modo compensava a manhã que tinha perdido de passar nafazenda. O que estava faltando ali era o meu estilingue. Se estivessecom ele, aqueles pardais não estariam fazendo aquela festa e todoaquele barulho. Mas também até que era bom vê-los cantando evoando de um lado para outro, pois o que seria dos doentes queestavam naqueles quartos se não pudessem escutar o gorjear dospássaros? Foi então que me entristeci. O que poderia fazer se ficasse cego.Como iria atirar pedra nos pardais? Como iria cavalgar o Veloz? Eracerto que os livros, o Juca poderia ler para mim, mas de que adiantariaisso se eu não pudesse mais ver e sentir a poesia da própria natureza? Aquele temor me assaltava. Para não ficar em pânico, desviei a atenção para as árvores e os pardais. Mas nem aquilo veria mais se a minha doença não fosse curada. Justamente quando nada mais conseguia me entreter, surgiu nopátio, como por encanto, aquela maravilhosa menina de cabelosdourados e olhos azuis. Então o milagre aconteceu. Esqueci de minhadoença e a imagem dela tomou conta de meus pensamentos. Ela veio devagarzinho e arriscou com delicadeza: -Bom dia -Bom dia! - respondi admirado. Era a primeira vez que ia via Estela eentão iniciava a nossa primeira conversa. -Você mora aqui na Capital? -Não - respondeu ela - moro no interior, mas como estou doente,meus pais me trouxeram para fazer uma consulta médica e você? -Meu caso é o mesmo, mas espere ai, eu ainda não seu o seu nome - disse ao mesmo tempo perguntando. -Estela - respondeu a menina e com um sorriso replicou: - E o seu nome, eu posso saber? Mas é claro que ela poderia saber e a todas as perguntas que me fez,respondi com satisfação. O mesmo se deu com ela. Estela falou-me de sua doença, mas eu desviei logo a conversa para um assunto mais alegre. Falei-lhe sobre a minha vida e sobre toda a beleza e poesia de nossa fazenda. Notava nos lidos olhos azuis a

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satisfação que ela sentia e percebi também que tudo o que eu lhe contava fazia surgir nela o desejo de conhecer a fazenda de meus pais. Conversávamos animadamente quando meu pai apareceu. Notei queele estava preocupado, contudo forçou um sorriso quando me viu. Tãologo ele se aproximou, apresentei-lhe Estela. -Ah então você é a Estela - disse meu pai - eu já conheço seus pais. Eles me falaram de você enquanto estávamos na sala de espera do hospital. É um prazer conhecer a filha de tão distinto casal. Papai continuou conversando conosco. Falamos de diversas coisas e então ele surpreendeu a mim e a Estela dizendo: -Estela, você gostaria de passar uns dias em nossa fazenda? - Oh sim! - respondeu Estela surpresa e feliz - mas não sei se meus pais deixarão. -Certamente que deixarão - assegurou meu pai. -Mas eu estou doente - replicou Estela. Meu pai é determinado. Quando punha alguma coisa na cabeça, insistia e insistia mesmo! -Uns dias na fazenda vão lhe fazer bem. O ar do campo é bom para a saúde. Pode ficar sossegada que eu falarei com seus pais.E falou mesmo!

IV - Quando tudo era mais belo

Três dias depois eu me encontrava embaixo do ipê amarelo. Agora jánão lia mais poesia e sim passava o tempo compondo versos. Paratodos a fazenda continuava bela, como sempre. Mas para mim estavameio apagada. Parecia que estava faltando algo... Faltava alguém cuja beleza excedia a toda a beleza da fazenda. Durante os três dias que passaram depois que voltei de São Paulo, todas as manhãs eu montava o Veloz e galopava com ele um bom trecho da estrada que conduzia à cidade. Ia sempre com a esperança de encontrar um carro, vindo para a fazenda, porém voltava desanimado. Esses dias passaram-se tristes para mim. Já não me importava com ospardais. Meu estilingue jazia esquecido em um canto.

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É estranho, como uma simples conversa com alguém pode mudar tanto a vida da gente! Assim, quando entrei em casa naquela tarde, estava mais desanimado como nunca. Encontrei papai sorridente. Uma leve esperança apossou-se de mim.Então eu não sei se ele deu a notícia tão rapidamente ou se eu a ouviantes dele dizer: -Estela telefonou dizendo que virá amanhã, -Eu, que já esperava alguma coisa assim, quase não acreditei. Aquiloera ótimo, era bom demais. E tudo transformou-se de repente. Euestava novamente feliz. No dia seguinte, horas antes dos pardais cantarem nas goiabeiras, eujá estava acordado. Para dizer a verdade, pouco dormira durante anoite e ainda assim sonhara com ela. Por fim, o sol sorriu para tudo e quando isso se deu eu já estava juntoao Veloz. Pouco depois íamos pela estrada. Tudo parecia mais belo e os pensamentos me saiam pela boca comose não coubessem dentro de mim: Vai, Veloz, vai galopandoVai, Veloz , cortando os campos Vai no seu dorso levandoUma alma cheia de encantos Vai,Veloz, vai galopando Que tem fim a primavera Mas o ipê ainda espera Conservando as suas flores Para ofertar para Estela Vai, Veloz, vai galopando Que a tristeza já tem fimE os campos estão belos E conservam-se assim Esperando por Estela Esperando por Estela".

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Todos nós estávamos esperando. Parecia que até o Veloz estava feliz.Certamente a minha alegria o estava contagiando, ou não sei se eraimpressão minha, mas tudo era mais belo. Então, ao longe, divisei uma poeira. Era a poeira levantada pelos pneus de um automóvel.

V - Dias Felizes

Estela chegou! Estela chegou! Eu via tudo gritando estas palavras. Ovento, as árvores, as flores, os passarinhos. Tudo para mim gritava:Estela chegou! Como ela estava linda! E como eu estava feliz! Mais ainda fiquei ao saber que ela ia ficar três dias na fazenda. Aqueles foram os dias mais felizes de minha vida. Meu programas diário mudou completamente. Já não tinha hora para fazer nada e sim fazia tudo o que Estela queria. E ela nem era exigente. Eu lhe mostrei o rio onde eu nadava, os versos que fiz enquanto esperava por sua vinda, o pê de ipê e tudo de belo que havia na fazenda. -Ricardo - Você gosta mesmo de mim, ou você é poético assim com todo mundo! - Ela me fez esta pergunta depois que lhe entreguei uma rosa vermelha. Segurei as mãos dela e respondi: -Estela, você leu os versos que fiz depois de conhecê-la. Você não viu como eles demonstram a tristeza e ansiedade que passei depois que a conheci no hospital? -Sim, Ricardo, eu também ansiei o momento de conhecer a sua fazenda, eu também estou feliz... eu também gosto de você... E assim dizendo, ela deu um beijo na rosa e colocou-se sobre o peito, enfiando-a no bolso de sua blusa branca. Era um contrate maravilhoso. Dai então conversávamos maisfrequentemente. Falávamos de tudo e de todos.

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No segundo dia em que estava na fazenda, fui esperá-la junto ao rio efiquei atirando pedras nos pardais. Dali a poucos instantes ela chegou.Usava uma blusa azul e calças compridas. Estava linda, maravilhosa. Ela aproximou-se de mim e tomou o meu estilingue, dizendo: -Ora, Ricardo, ontem você estava tão poético! Por que hoje você estáatirando pedra nos passarinhos? -Não são em todos os passarinhos, que eu atiro pedras. Eu só nãogosto dos pardais. -Mas por que? - replicou ela - Eles também não têmuma vida como os outros? Eles também não tem filhotinhos paratratar? Acabei concordando com ela. Como não iria concordar? Está bem,Estela, vou aposentar o meu estilingue. Mas a alegria durou pouco. Os três dias passaram rápidos demais.Como foi triste aquela partida! Foi então que comecei a pensar: Como os últimos acontecimentoshavia modificado a minha vida! Todavia tudo fora tão fácil, tãoespontâneo! Bastou uma conversa de meu pais com os pais dela paraque eles deixassem ela vir passar uns dias numa fazenda de estranhos.Tudo bem que agora não éramos mais estranhos, mas e antes? Por fim,deixei de pensar nisso. Contudo não sabia da estranha e tristeverdade...

VI - Dias Negros

Nos primeiros dias depois que Estela partiu, caiu sobre a fazenda umvê de tristeza. Não me sentia bem em lugar algum. Nem as poesias meinteressavam mais. Não tinha mais inspiração. Como se não bastasse atristeza pela ausência de Estela, veio o que eu mais temia! Vieram osdias mais negros de minha vida! Algum tempo depois que Estela foi embora, quando caminhavapróximo do rio, tropecei e cai. Quando tentei me levantar, tive a maior

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surpresa de minha vida. Tudo estava escuro, negro como a mais negradas noites. Sentia dor nos olhos e na cabeça. -Estou cego! Estou cego! - Eram as únicas palavras que conseguiaarticular. Tentei andar, mas para onde?: -Pai, mãe, me acudam. Estou cego... Gritava desesperado, porém o tempo passou e, só depois de umahora é que fui encontrado. Levaram-me imediatamente para SãoPaulo, no mesmo hospital onde eu havia visto Estela pela primeira vez. No outro dia, bem cedo, estava ainda mais triste. Ouvia apenas ocantar dos pássaros lá fora e, de vez ou outras, a conversa de alguémque passava pelo corredor do hospital. Que solidão. Ah se ao menos pudesse ouvir a voz de Estela... Súbito alguém entrou no quarto. Devia ser a enfermeira e ela anunciou: -Visita para você, Ricardo. Instantes depois, mais alguém entrou no quarto e, minha mãe, que estava junto de mim, falou: -Advinha quem é, Ricardo. -Não sei, não sei não - resmunguei baixo, como se a falta de visão tirasse também a minha voz. Então ouvi aquela voz maravilhosa: -Oi Ricardo. Meu coração saltou no peito e antes de tomar conhecimento já estava sentado na cama. Era Estela! Era Estela! Só podia ser ela. Aquelavoz meiga e calma eu a reconheceria no meio de mil. Ah! Que falta me fazia a visão naquela hora! Eu não podia veraqueles lindos olhos azuis e o seu sorriso maravilhoso. -A sua visita me deixa muito feliz. Estou muito agradecido - falei. Estela conversou comigo mais algum tempo, mas eu notei que a voz dela tinha um tom de fraqueza. Mas mudei logo de pensamento, pois devia ser impressão minha. -Logo que ficamos sabendo, papai me trouxe para cá, para vê-lo - comentou.

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Contudo parecia que estava sendo forçada a dizer aquelas palavras. Será que era porque ela estava triste e surpreendida com aquele acontecimento? Sim, deveria ser isso. -Você vai ficar bom, Ricardo, vai voltar a ver as maravilhas de suafazenda, vai voltar a ver... Aí ela parou. Tive a impressão que desviou a atenção para outra coisaVoltei a ouvir novamente sua voz: -Bem, Ricardo, eu tenho que ir - segurou minha mão e continuou: Tchau e felicidades... E saiu, devagarinho do quarto.

-Tchau! - murmurei e minha mão ficou estendida na cama como quequerendo alcançá-la. Ouvi um soluço atrás de mim. Será que minha mãe estava chorando? Eu não compreendia aquilo... O que será que Estela não terminara de falar? Será que ela ia dizer que eu voltaria a vê-la novamente? Que eu voltaria a enxergar parecia ser certo, porque os médicos iriamfazer em mim um transplante de córneas, mas e Estela, será quevoltaria a vê-la novamente? Continuei por muito tempo na escuridão. Até que um dia soube queos médicos havia encontrado as córneas que seriam transplantadas emmim e a cirurgia foi marcada imediatamente.

VII - A verdade

Passaram-se dez meses. Já me encontrava novamente na fazenda. Viatudo novamente, mas me faltava algo. Faltava o essencial, faltavaEstela. Os dias transcorriam sem novidade. Quando me atrevia a perguntar sobre Estela, meu pai respondeu: -Naquele dia em que o visitou, ela ia mudar-se para Minas Gerais. -Criei coragem e insisti: -Mas por que a família dela ia mudar para tão longe?

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-Por que o pai dela é gerente de banco e ele foio transferido para Belo Horizonte. Aquilo tinha lógica, mas eu não me conformava. Por que é que Estela não havia me falado nada? Como que adivinhando meus pensamentos, meu pai continuou: -Estela não lhe falou nada porque você deveria passar pela cirurgiaela queria que você estivesse feliz e esperançoso. Meu pai estava com um tom estranho na voz. Contudo eu concordeicom ele. Estela me fizera um favor. Deixara-me preparado para vencera batalha que eu teria que travar até deixar o mundo das trevas. E tudoteria acabado assim, se ninguém tivesse falado mais nada.

Todavia a verdade era completamente outra. Estela me deixarammuito mais que saudades e lembranças. Passava horas no meu quarto,escrevendo versos, exprimindo a minha dor. Foi quando a verdade veioà tona. Um dia, sai para dar uma volta na fazenda, mas já não sentia o prazerde outrora. Faltando Estela, faltava tudo. Regressei triste para casa,pensando. Quando tiver mais idade, vou procurá-la. Quando entrei no meu quarto, vi minha mãe chorando com unspapeis nas mãos. Naqueles papéis estavam os meus versos maistristes. Então, eu não me contive e falei sem parar: -Mãe, porque você está chorando? Por que você chorou tambémnaquele dia em que Estela foi me visitar no hospital? Por que Estelaparou de falar e foi embora? Eu preciso saber a verdade. Dei-me conta que estava gritando. Mamãe dava profundos soluços. -Perdoe-me mãe, perdoe-me, eu não queria gritar com a senhora,mas eu sinto que alguma coisa está errada... Eu preciso saber averdade. -Ricardo - era meu pai e ele falou-me brandamente: -Esta bem Ricardo, você já não é mais criança, você já é um moço. Eu vou lhe contar tudo o que aconteceu. E dos lábios de meu pais, de um rústico fazendeiro, saíram aspalavras que jamais poderia imaginar:

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-Ricardo, Estela é um anjo, Estela é um símbolo da pureza de coração,é um símbolo da bondade e do amor. Estela é a luz de sua vida. As córneas transplantadas nos seus olhos, são dos olhos de Estela. É triste, mas Estela está morta. Não era possível! Não era possível que meu pai estivesse falando aquilo. E minhas mãos dirigiram-se para meu olhos. Eu iria arrancá-los se meu pai, adivinhando minhas intenções não me segurasse. Derramando lágrimas, ele continuou: -Deixe seus olhos em paz, Estela queria assim. Ela queria assim... Aos poucos fui me acalmando e em meu cérebro surgiram as perguntas: Por que? Como? Papais olhou para minha mãe e deu-lhe um sinal. -A carta? - peguntou ela. -Sim, a carta - afirmou ele. Instantes depois minha mães voltava com um envelope que me entregou. Angustiado eu o abri e comecei a ler. "Ricardo, Minha doença é fatal. Era por isso que ultimamente meus pais faziamtudo o que eu pedia. Foi por isso que eles me deixaram ir passear nafazenda. Logo depois que voltei, a doença piorou e fui internada nomesmo hospital em que nos conhecemos. No dia em que você chegou,duas pessoas entraram no meu quarto e, pensando que eu estivessedormindo, comentaram: pobre menina, tão jovem e condenada amorrer assim. Foi naquele momento que fiquei sabendo a verdadesobre a minha doença. Desesperada pedi a meus pais para chamá-lo.Assim eles foram obrigados a me contar que você estava no hospital.Disseram-me que você estava cego e esperando para fazer umtransplante de córneas, mas estavam faltando o doador. Insisti e consegui que eles me deixassem ir visitá-lo. Quando entreino seu quarto, a fraqueza estava me dominando. Conversei só umpouco com você porque a enfermeira me chamou e tive que ir-me. Aovoltar ao meu quarto, já havia me decidido. Iria me suicidar. Escreviesta carta para você e outra aos médicos do hospital para que, quandoeu estivesse morta, meus olhos fossem transplantados em você.Compreenda Ricardo, que de todo modo eu iria morrer mesmo. Não

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queria ver meu corpo se deteriorando. Fazendo isso, eu deixaria maisdo que uma lembrança para você. Algo de meu próprio corpo, algomeu, viveria sempre em você. E continuaria vendo o mundo da formamaravilhosa que você vê. Seja feliz, Ricardo. Adeus". Terminei de ler a carta. Papai olhou para mim e concluiu: -Sim Ricardo, Estela suicidou-se -Onde ela está enterrada, pai? -No cemitério de sua cidade. -O senhor tem razão, pai, Estela é um anjo!

VIII - Eu vou dormir

Ricardo terminou sua narrativa e acrescentou:

-Então padre, hoje bem cedinho eu fugi e vim para este cemitério,para ficar junto ao túmulo de Estela. Meu desejo é morrer para ficarcom ela. O padre esforçou-se para ficar sereno. -Ora, Ricardo, você não vai morrer não. O tempo apaga tudo, durma ali naquela cama e amanhã, quando você estiver bem, eu o levarei para a fazenda de seus pais. Ricardo quase não ouvia a voz do padre. Sua atenção estava voltada para o passado. -Na sua casa tem telefone? - A pergunta do padre fez com que elevoltasse à realidade. -Tem sim, padre, por que? -Vou ligar para seus pais, para tranquilizá-los. -Está bem padre, eu vou dormir. E foi dormir o jovem e tristonhopoeta, pensando que um dia lá no céu, cantaria seus versos para umanjo.

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Guerra em Exu

No dia 31 de outubro de 1977, cheguei ao Recife, após uma viagemde três dias. Vinha desiludido com a vida e ao mesmo tempo comnovas esperanças, uma vez que em São Paulo tivera dissabores. Recife representava algo novo. Mesmo com pouco dinheiro no bolsotinha expectativas de conhecer aquilo que já vira nos calendáriosturísticos: Recife das igrejas seculares, dos velhos sobrados e modernosedifícios, do sarapatel, da galinha-de-cabidela, da carne-de-sol, doPátio de São Pedro, da Praia de Boa Viagem, das cirandas, do frevo, doCarnaval enfim, todo um mundo novo para mim. Desembarcando no então Terminal Rodoviário de Santa Rita, percorripela primeira vez a rua do mesmo nome, pela qual passaria milharesde vezes. Ali decidi entrar em uma das inúmera pensões. Severino, umjovem magrinho e que depois se mostraria um bom amigo, olhou-mepor detrás de um pequeno balcão e sorriu me atendendo servilmente. Depois de cobrada a importância de três dias de pouso ele indicou-me o quarto, um cubículo, dividido por madeira, com apenas ummetro e meio de largura, por três de comprimento, onde cabia umacama de solteiro e uma pequena mesa. Naquele quartinho comeceivida nova. Só não imaginava a estranha história com a qual acabariame deparando. Nas próximas horas, aproveitei para conhecer as proximidades dapensão. Estive no famoso Mercado de São José, que guardava, aindana época, os traços originais de sua construção. Planejado peloarquiteto francês Luiz L. Walter, foi construído à imagem e semelhançado Graniele de Paris. Com 377 compartimentos, era formado por doispavilhões, onde se vendia de tudo desde alimentos, utensílios atéartesanato e outras expressões da arte folclórica do Nordeste.

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Quando voltei à hospedaria, encontrei Severino conversando com umrapaz alto e magro, de cabelos encaracolados, pele morena, barba bemfeita e um bigode bem aparado.

-Este é Carlos Amaro, ele é seu vizinho de quarto – disse Severino. Estendi a mão para Carlos e ele retribuiu, falando no sotaque nordestino, acentuando as primeira sílabas e reforçando os “erres”. -Muito prazer, espero que fique bom tempo por aqui. Assim terá oportunidade de conhecer bem o Recife. -Pretendo ficar mesmo! - respondi. E ele replico: -Pois então, se precisar de mim para qualquer coisa, pode contar comigo. Ficamos por ali conversando mais algum tempo e depois, enquanto subia para meu quarto, ele continuou conversando com Severino. Pela nossa conversa fiquei sabendo que ele trabalhava nos escritórios de uma firma exportadora. Era solteiro e se encontrava no Recife há alguns anos. Mais tarde, no pequeno quarto, passei a ler o jornal que haviacomprado durante o passeio pelo bairro São José e uma reportagemchamou-me a atenção. Segundo o texto, o prefeito de Exu, José Airesde Alencar, ou Zito Alencar , como era mais conhecido, defendia-se deuma série de acusações de crimes e acusava membros da famíliaSampaio de serem os provocadores e praticantes dos crimes a eleimputados. Mal sabia eu que dentro de alguns dias estaria pesquisando o assunto. Mas foi exatamente o que aconteceu. Em busca de um emprego, acabei entrando no prédio do velho Diário de de Pernambuco, o jornal mais antigo em circulação na América Latina. Ao sair dali já fazia parte de seu quadro de repórteres. Mas voltando ao dia primeiro de novembro, quando o futuro ainda era incerto para mim, encontrava-me no quarto, preparando-me para dormir, quando ouvi ruídos no quarto ao lado. Era Carlos chegando.

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Revivendo as emoções do dia, o sono demorou a chegar e, de vez emquando ouvia Carlos remexer-se na cama, pois a divisão de madeira não isolava os sons do quarto ao lado. Já era mais de meia noite quando ouvi Carlos resmungando: “Vocêde novo!”, pareceu-me ouvi-lo dizer. Várias outras palavras forampronunciadas a seguir, mas ele falava baixo e eu não pude entender osentido. Porém, depois ele ficou mais exaltado e elevou a voz: -Vai embora seu demônio. Eu já disse que tenho nada com você. Naquele momento ouvi forte ruído, como se ele tivesse dado ummurro na divisão de madeira. Assustei-me, porém fiquei quieto edepois tudo se tornou silêncio, até que adormeci. No dia seguinte encontrei Carlos na hora do almoço. Ele me convidoupara almoçarmos numa lanchonete nas proximidades e lá fomos nós.Conversamos sobre diversos assuntos como as festas de fim de ano noRecife, o carnaval, que já tinha sido rotulado como o melhor domundo, mas agora estava em decadência, apesar de manter ainda assuas tradições, etc. Pareceu-me que ele não se referiria ao fato ocorrido durante a noitecontudo, depois de algum tempo disse: -Espero que você não tenha se assustado ontem à noite. Tive um pesadelo e acabei esmurrando a parede. -Ah sim – repliquei – confesso que me espantei um pouco, mas isso não tem importância porque eu tenho sono pesado e logo adormeci. Ele sorriu e não disse nada. Então, para continuar o assunto perguntei: -Mas que sonho foi esse? Parece que você viu o diabo... O sorriso morreu em sua boca. Por um momento ele ficou tenso e nada disse como se tivesse receio de falar. Depois, um tanto forçado, sorriu novamente e comentou: -Pois é, a gente tem cada sonho besta. Eu sonhei mesmo com o bicho. Sabe eu acho que não é bom assistir muitos filmes de terror. Concordei com ele e logo em seguida mudamos de assunto.

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Nos dias seguintes não encontrei-me mais com Carlos. Ele havia viajado para Alagoas, a serviço da firma e só voltaria em dezembro.

Famílias em guerra

Um mês depois, trabalhando no Diário de Pernambuco, e sentiaambientado em meu local de trabalho e numa quinta-feira à noite, ochefe de reportagem me chamou e e apresentou a um homemdizendo: -Este moço é membro da família Sampaio. O pessoal dele estáreunido e quer fazer algumas declarações para a imprensa. Vá com elee leve bastante papel, porque vai ser uma reportagem arretada. E foiassim que, de repente me vi em um automóvel, rumando pela AvenidaConde da Boa Vista, para meu primeiro contato com a família Sampaio. O carro não rodou muito porque o encontro seria em um bar-restaurante na própria avenida. Os Sampaio estavam bebendo econversando mas tão logo fomos apresentados, todos se dirigiram aum apartamento onde poderiam falar com mais liberdade. Expulsos de Exu, eles estabeleceram-se no Recife, onde possuíamestabelecimentos comerciais. Agora, depois de uma entrevista de Joséde Alencar à imprensa pernambucana os Sampaio estavam exaltados equeriam contar as suas versões dos fatos. Na realidade, aproximavam-se as eleições e Zito Alencar que em1949 havia iniciado a guerra entre as duas famílias, ao assassinar opatriarca da família Sampaio, regressara a Exu depois de ficar muitotempo escondido em outros estados nordestinos. Ao se pronunciar àimprensa, ele provocou novamente a ira dos Sampaio. E foi assim que tomei meu primeiro contato com aqueles queparticipavam de uma guerra que já havia feito dezenas de mortos deambos os lados. Naquela entrevista em que participaram Maurício Sampaio, AvelarSampaio, Vitor Bacoral Soares e outros integrantes da família Sampaio,eles me contaram coisas horríveis como por exemplo o caso de ummembro da família que foi assassinado e enterrado em uma cova rasa

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no município de Exu. O crime só foi descoberto porque um cão,farejando comida, acabou aparecendo com um braço do defunto naboca. Aquela entrevista me fez também procurar mais dados sobre Exu. Foiquando fiquei sabendo que a povoação a se formar com a amizadeentre vaqueiros da Fazenda Torres, que ficava na circunvizinhança e atribo Ançu. Onde os índios viviam, no outro lado da encosta doAraripe, havia fontes e o terreno era propício à agricultura. Mudaram-se os fazendeiros para o local e logo depois os padres e jesuítasinstalaram-se fundando um abrigo e uma capelinha em homenagemao senhor Bom Jesus dos Aflitos. Em 1734, estava constituído o núcleoda população. Outro dado, só para ilustrar, é que em Exu nasceu o reido baião, Luiz Gonzaga. Em primeiro de dezembro a reportagem foi publicada e foijustamente naquele dia que voltei a encontrar Carlos. -Fiz a pergunta porque sabia que ele nascera em Exu e acompanharade perto certos acontecimentos convivendo mesmo com algunsmembros das famílias envolvidas. -De fato – comentou ele – muitas coisas aqui são verídicas, mas élógico que os Sampaio tentaram mostrar-se santos, pois só falaram doscrimes imputados aos Alencar, mas não citaram nada do que elestambém fizeram. Tive que concordar com ele e continuamos a falar sobre o assunto. Já fazia alguns dias que Carlos tinha voltado mas eu ainda não tiveraoportunidade de conversar com ele. Entretanto, em noite anterioresouvira estranhos ruídos em seu quarto. Conclui que o seu demôniocontinuava perturbando-o em seus sonhos, mas como ele não tocouno assunto, achei melhor não falar também. Estávamos no momento sentados a uma mesa de um bar do Pátio deSão Pedro, assistindo às tradicionais cirandas pré-natalinas. Eu estavaadmirado, pois em São Paulo só conhecia as cirandas infantis. MasPernambuco é um dos poucos estados do Brasil onde a gente vê estadança folclórica em que participam os adultos.

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Ali, no Pátio de São Pedro, crianças pobres e ricas, velhos, moças erapazes dão-se as mãos e durante horas dançam emcírculo, enquanto o cirandeiro canta bonitos versos populares. Lembro-me de uma composição que ouvi naquele dia:

“Hoje cedo no RecifeUm moço me perguntou Se na ciranda qu´eu estouTem muita moça bonitaE eu lhe respondiTem loira, mulata, morenaQue a morte mataE depois fica com pena”.

Carlos olhava para tudo aquilo como quem já se acostumara a ver amesma coisa ano após ano. Mas eu notei que ele não estava muitocalmo. Parecia inquieto e ao mesmo tempo sonolento. Vendo que os estava observando, comentou: -Já que você está mesmo interessado e Exu, eu me lembrei de que hámuitos anos li uma boa reportagem sobre o assunto. Não sei mesmo sefoi no Diário que eu vi, mas lembro-me que o jornalista contavaresumidamente toda história ocorrida lá nos últimos 30 anos . Seriabom você procurar no arquivo por esta reportagem e assim já teriameio caminho andado. -De fato é uma boa ideia – disse eu – acho que amanhã mesmo vou fazer isso, mas tem mais uma coisa que eu queria falar com você. Eu queria saber como é Exu, pois ainda não tive oportunidade de ir até lá. -E nem vale a pena – retrucou ele – a viagem é uma tristeza e lá sóhá um punhado de casas e tristes recordações. Não, não vale a pena... Notei que ele ficou pensativo e ao mesmo tempo uma pergunta nasceu em meu cérebro: “Tristes recordações... para todos ou só para ele?” Mas não disse nada a respeito. Ficamos por ali bebericando mais um pouco e assistindo as cirandas.

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De repente Carlos ficou pálido. Segui seu olhar e notei que ele dirigia os olhos esbugalhados para a roda de ciranda. Balbuciou algumas palavras que não entendi; olhou para mim em seguida e vendo meu espanto, perguntou: -Você acredita em demônio? -Acho que não – respondi. -Pois euestou vendo um... -Mas é o diabo mesmo ou você está falando figurativamente? -Achoque estou maluco, mas é o diabo mesmo. Olhei para a mesma direção que ele, mas não vi nada de anormal. Ocirandeiro continuava cantando e as pessoas dançavam em círculos demãos dadas. -Onde está o diabo – perguntei incrédulo. Bastante assustado ele respondeu com outra pergunta: -Você está vendo aquele rapaz de azul e aquela moça de amarelo? -Sim, estou vendo mas não vejo nada de espantoso. -Eles estão de mãos dadas com alguém? -Com pessoas normais, ora bolas, ela está segurando a mão de um velho e com a direita tenta alcançar o moço que lhe estende a mão esquerda. -Quer dizer então que há um espaço entre eles? -Sim – repliquei – mas não estou entendendo onde você quer chegar.-Neste espaço caberia outra pessoa? - continuou perguntando ele.-Sim. -Pois então, ali está o diabo que eu estou vendo. É ele que segura a mão direita da moça e a esquerda do moço. Ele está brincando de ciranda. -Quase dei uma gargalhada, mas me contive. Ainda não conheciaCarlos profundamente e não saberia dizer qual a sua reação sezombasse do que ele estava falando. No entanto fiquei olhando paraele com uma expressão que por certo, denotaria dúvida ouincredulidade. Depois disse: -Você não está zombando de mim? Ele me olhou sério. -Não, não estou, mas agora já não tem importância. Ele foi embora.

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Olhei para a roda de pessoas que brincavam e agora havia uma diferença. O moço de azul e a moça de amarelo estavam de mãos dadas... Voltamos a seguir para a pensão e naquela noite, pelo menos até 3 horas da madrugada, a visão do diabo não mais perturbou Carlos, pois durante todo o tempo eu fiquei ouvindo uma história incrível que ele me contou e que confesso, meu deu muito o que pensar. Na tarde seguinte eu estava novamente na redação do Diário. Lá maisde 30 repórteres e fotógrafos aguardavam as pautas do dia para iniciar o trabalho. Lembro-me que um deles comentou algo sobre um incêndio, mas não dei maiores atenções. Tinha, para aquele dia, uma boa reportagem sobre os favelados do Coque um dos mais pobres e problemáticos bairros do Recife e estava apenas aguardando a escala de um fotógrafo para me acompanhar. Tão logo isso foi resolvido, saí a trabalho e só voltei mais tarde, quando me pus a escrever o que havia apurado. Lembro-me que naquele momento um colega escrevia apressadamente uma nota sobre um incêndio que destruíra o depósitode uma firma exportadora e cujos prejuízos remontavam a mais de 10 milhões de cruzeiros, conforme o dinheiro da época. Durante a tarde também ouvira no rádio da perua do Jornal, algo a respeito deste incêndio. Conforme a note havia uma vítima que, até aquele momento, não havia sido identificada. Para inteirar-me do assunto perguntei ao colega ao lado: -Jáidentificaram a vítima? -Sim - respondeu-me ele – é um tal de Carlos Amaro, funcionário daempresa. O que senti naquele momento foi inexprimível. Pensei ter ouvido male repeti a pergunta. Devia ter uma expressão angustiada porque meucolega parou de escrever e deu-me mais atenção. -Carlos Amaro – repetiu e perguntou – era amigo seu? -Sim, era meu amigo, mas como aconteceu isso? -As causas do incêndio ainda não foram apuradas. Pode ter sido umcurto-circuito, como ocorre sempre.

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-E ele, como pode ser morto assim? -Ele estava no depósito, conferindo uma lista de mercadorias. O incêndio deve ter inciado do lado da porta e o encurralado. O interessante é que o corpo ficou quase que totalmente queimado, comexceção do peito e da mão direita onde ele apertava um crucifixo. Deve ter passado momentos horríveis este seu amigo. Senti-me mal. O que tinha comido na hora do almoço parecia não querer mais parar no estômago. Levantei-me apressadamente e sai correndo. Não voltei mais ao jornal naquele dia. Fiquei vagando como um bobo pelo centro da cidade, até que entrei em um barzinho e tomei uma bebida forte. Depois fui para a pensão. Ali o ambiente era constrangedor. Carlos era muito conhecido eamigo de todos. Os comentários eram os ais diversos e Severino, alémde triste parecia mesmo meio assustado. -Dá para entender uma coisa destas? - perguntou olhando para mim.-A morte é sempre um mistério – repliquei. -Sim – disse ele – mas é que estou com umas ideias na cabeça. Umdia ele me contou uma história estranha e agora ela não me sai dopensamento, pois acho que pode haver uma relação, mas ao mesmotempo julgo que é uma idiotice minha. -Eu também sei da história, Severino, mas estou em dúvida e não seio que pensar. -Então ele lhe contou? Sim, Carlos havia me contado sua história na noite passada e agoraeu a estava reconstruindo mentalmente. Não posso afirmar que suaspalavras foram exatamente estas, mas tentarei dar uma visão global detudo o que ele me contou.

A história de Carlos

Há anos este medo me acompanha. Vejo em cada sombra, em cadachama, o rosto zombeteiro desta criança a me ludibriar, a meamaldiçoar a caçoar de mim. Vejo chispas de fogo em seus olhos,palavras obcenas saírem de sua boca e me contraio, fujo mas paraonde? Ele me persegue a cada instante e se torna bonito, às vezes. Tem

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então a aparência de um anjo e seu sorriso é algo celestial, mas derepente se torna malicioso, seu rosto se transfigura e eu me perco emdesespero. Ele gargalha, dá saltos, cambalhotas e me xinga de “cabrasafado”. Depois lança-me chispas de fogo que a cada dia são maiores,parecendo querer me engolir. Eu já tentei agarrá-lo, mas ele sobe pelasparedes pendura-se no telhado e fica rindo de mim. Depois desapareceem qualquer sobra para reaparecer, quando menos espero, emqualquer outro lugar. Há anos isso ocorre. Tudo por causa daquele dia em que fui fraco edeixei que o desejo me dominasse. Era uma tarde ensolarada como tantas outras em Exu e eu aguardavaansiosamente por Mariana a bela morena que morava na mesma ruaonde nasci e cresci.

Ela apareceu de repente, toda de amarelo, com um vestido leve e umalvo sorriso, mostrando uma fileira de dentes perfeitos. Seu sorrisotinha mesmo um leve toque de sensualidade e eu não podia vê-la semficar excitado, com uma vontade louca de beijá-la inteirinha. Tão logo se aproximou beijei-a apaixonadamente, mas ela se afastou dizendo: -Cuidado Carlos, estamos no meio da rua. De fato estávamos no meio da rua e sorrindo de mãos dadas fomos até o calçamento de minha casa. Já há mais de um mês estávamos de namoro e eu sabia que naquele dia teria de acompanhá-la a uma sessão de Umbanda. A mãe dela metera-lhe na cabeça que ela tinha mediunidade, ou seilá que outro dote religioso e, por ser muito mística, Mariana ia, todasas sextas-feiras até um “terreiro” num local ao sul da pequena cidade,para ali receber as entidades. Naquele dia fui com ela e o que vi não gosto nem de comentar. Durante algumas horas foi um tal de baixar espíritos em uns e outros e as mais diversas cenas aconteceram, como pessoas rolando pelo chão, falando coisas inteligíveis . Instrumentos de couro, atabaques ou pandeiros, não sei bem, marcavam o ritmo durante todo o tempo. Eu olhava para tudo bastante interessado e ao mesmo tempo cético. O

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que queria realmente é que acabasse logo para que pudesse passar mais uns momentos a sós com Mariana. Quando a sessão terminou já devia ser mais 23 horas e resolvemosvoltar para casa. As pessoas foram saindo todas e nós ficamos aindamais um pouco enquanto Mariana se despedia de seus amigos. Depois,em vez de se dirigir para a porta da frente, ela saiu pelos fundos, quedava para um descampado e ali, a sós, pude abraçá-la e dar-lhe umlongo beijo. Estávamos abraçados quando, de repente, ela estremeceu. Revirouos olhos e começou a balbuciar palavras estranhas enquantogesticulava como se conversasse com alguém. Depois jogou-se paratrás e só não caiu de costas ao chão porque amparei-lhe a queda.Tentei levantá-la, mas ela tinha uma força incrível. Deitada no chão,tremia-se toda, mostrando as penas morenas, bonitas e bemtorneadas. Tentei ajudá-la a levantar-se mais uma vez, mas ela deu-me um deseus sorrisos, que desta vez pareceu-me mais sensual do que nunca erecusou-se a levantar. Recomeçou a contorcer-se. Lutei, lutei comigo mesmo para não me aproveitar dela durante oque julgava ser um ataque doentio, ou induzido por sugestão pelo queocorrera durante a sessão do “terreiro”. Mas naquele momento ela passou a tremer e a retorcer-se mais agarrando-me com força. Rolei com ela no chão do sertão. Não tenho noção exata de quanto tempo ficamos ali. Quando acordeiela estava chorando para suas roupas rasgadas e sujas. Devia se maisde meia noite, mas o ambiente estava claro, pois do céu, uma luacheia e límpida iluminava tudo. -O que aconteceu? - perguntou-me com voz embargada -Você não selembra – retruquei. -Não, não me lembro. -Mas faz uma ideia, não – disse zombeteiro. -Eu só me lembro de quando ele chegou – disse ela , séria. -Elequem? -Exu – respondeu e, levantando-se, saiu correndo.

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Tentei alcançá-la, mas ela continuou correndo e gritando: “Vá embora”. Desisti da perseguição e fui andando para casa. Lá, meus paisdormiam sossegadamente. Tomei um banho e fui para cama. Porém,naquela noite não consegui mais dormir, pois a visão do que acontecerrepetia-se milhares de vezes no meu cérebro. No dia seguinte levantei-me cedo e bastante preocupado. Estavafazendo testes para obter emprego em uma empresa do Recife e teriaque viajar. Procurei ver Mariana, mas não consegui. Defronte à suacasa tudo estava quieto, e embora eu esperasse por mais de meiahora, nem ele e nem sua mãe saíram à rua. Por fim resolvi bater à porta e a mãe dela atendeu. -Bom dia, Carlos. -Bom dia, dona Ermínia - respondi e continuei – olha, eu vou viajarhoje e gostaria de saber como está a Mariana. Ontem à noite nóstivemos um problema e gostaria de saber se ela está bem. -Ah sim, ela me contou que recebeu a visita de uma entidade espiritual enquanto estava com você, mas agora ela está bem. Ela está dormindo. -Está bem, eu vou tomar o ônibus daqui a pouco, mas a senhor dizpra ela que daqui a alguns dias estarei de volta e venho procurá-la. Viajei para Recife mais tranquilo, pois certamente Mariana não contara para sua mão tudo o que acontecera e isso, talvez não tivesse maiores consequências. Mas estava enganado. Na semana seguinte ela não mais quis me vere depois disso comecei a passar mais tempo no Recife do que em Exu,o que tornou difícil o nosso encontro. Uma única vez que a encontreina rua, ela passou a correr tão logo me viu. Eu não entendia suaatitude e passei a sofrer muito, pois o que sentia por ela era um grandeamor, tanto que, depois disso nenhuma mulher me interessou. Três meses depois soube que ela estava grávida e numa noite,enquanto tomava um aperitivo num boteco, um amigo aproximou-sede mim e disse: -Escuta Carlos, acho que tu precisa tomar cuidado. Andamcomentando por ai que a Mariana tá prenha e que foi tu quem fez ela

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porque era com você que ela saia. Eu não tenho nada com isso, mascomo sou seu amigo, vim te avisar porque o irmão dela é u pistoleirodesses contratados para fazer serviço de morte. Dizem que ele estavarefugiado na Paraiba e agora está vindo para cá porque a mãe dela ochamou. Se eu fosse tu me mandava daqui, logo , logo”. Fiquei aturdido e depois me decidi. Fui até a casa de Mariana. Dona Ermínia abriu a porta e logo em seguida fechou. Logo depois ouvi Mariana gritando: -Vai embora daqui. Vai embora daqui eu não quero ver você. A criança não é sua. Entendendo que não adiantava insistir, fui embora e, no dia seguinte embarquei para o Recife. Agora já estava fixo no meu emprego, e não podia voltar a Exuconstantemente, pois muitas vezes viajava para a firma, indo mesmoaté o sul do país. Procurei esquecer Mariana, mas nunca consegui. Os mesespassaram-se e uma noite estava dormindo, no quarto de hotel, em SãoPaulo quando tive um pesadelo incrível. Revi novamente Exu com suascasas pobres e as ruas de terra. Havia gente correndo e um homemdava tiros para todos os lados como se estivesse louvo. Ao mesmotempo outra imagem aparecia. Era a de um menino deitado numberço, sorrindo e seus olhos brilhavam como fogo. Mariana olhavapara ele assustada. De repente saiu correndo também e ao atingir arua, uma bala disparada pelo pistoleiro a atingiu no peito. Naquelemomento eu revi seu rosto lindo como sempre fora e parecia que elaqueria dizer alguma coisa. Fez várias tentativas e depois, num sopro devoz, murmurou: -Carlos, Carlos, volte e mate o menino. Ele é filho do diabo. Naquele momento acordei assustado. Meu corpo estava totalmentemolhado de suor e as imagens do sonho estavam bem nítidas na minhamente. Eu fechava os olhos e revia novamente toda a cena: o tiroteio,os olhos de fogo e Mariana implorando a morte da criança.

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Continuei o meu trabalho fazendo contatos com várias firmas, masdurante todo o tempo que estava em São Paulo, não tive mais sossego.A cada instante revia Mariana à beira da morte. Voltando para Recife, pedi uns dias de licença e fui para Exu.Precisava saber a verdade e se tudo não passara de um simplespesadelo. Mas não fora. Mariana realmente estava morta e os comentários nacidade eram os mais desencontrados. Uns diziam que seu irmão seembriagara e depois de muitos tiros acertara-lhe o peito, matando-se aseguir. Outros, porém, disseram que ele não tinha bebido nadanaquela noite, mas que gritava ter visto o demônio e ficara como umlouco, tendo os olhos totalmente queimados, dando tiros às cegas. Procurei o delegado e a explicação dele também não foi satisfatória: -O que sabemos – disse ele – é uma declaração de dona Ermínia. Eladisse que seu filho se queimou com o fogareiro ficando cego e depois,louco e enraivecido, saiu atirando pela rua e uma das balas atingiuMariana. Depois ele deu cabo de sua vida, com um tiro na cabeça. Oque aconteceu dentro da casa , realmente nós não sabemos, mas amorte de Mariana e o suicídio isto sim, foi testemunhado por váriaspessoas”. -E dona Ermínia e a criança? - perguntei. Ora, eles continuam morando na mesma casa, mas dona Ermínia estámuito abatida. Ela quase não sai mais à rua e parece ter muito medode tudo e de todos. Quanto à criança, é muito bonita. Eu mesmo viquando estive fazendo as diligências necessárias para arquivar o caso. Nada mais tinha a comentar com ele. Sai da delegacia e me dirigipara a casa de dona Ermínia. Ao me atender ela tentou bater a porta,mas eu a impedi. Ela estava com uma aparência horrível. Parecia terenvelhecido muito desde a última vez que a vi. -Vai embora – gritou – você não tem nada a ver com a nossa vida. -Tenho sim, o menino é meu filho – retruquei para ver a reação dela.Ele não é é seu filho, é filho do... - mas sua voz morreu na garganta eela não disse mais nada. -Filho de quem ? - peguntei

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-Não interessa, mas ele não é o seu filho. Estávamos discutindo, mas eu jã havia tomado uma resolução. Queria ver o menino. Precisava tirar aquela dúvida que me atormentava. Dona Ermínia tentou impedir a todo custo que eu me aproximasse do berço, mas eu a empurrei com força e avancei em direção a um pequeno quarto. Ali estava ele! Era lindo, o mais lindo menino que já vi. Era meu filho, eu tinha certeza. Seu olhos negros vivos e brilhantes pareciam me reconhecer. Senti uma vontade imensa de acariciá-lo, de beijá-lo e de embalá-lo em meus braços. Mas naquele instante dona Ermínia aproximou-se de mim, como umafera lutando para defender seu filhote. Tinha uma faca na mão... -Vai embora, já disse, esse menino é meu neto e você não tem direitoalgum. Vai embora, senão o mato. Bastante a contragosto retirei-me da casa. Estava confuso. Eu revia omenino lindo e robusto como um anjo e ao mesmo tempo via Marianamorrendo e pronunciando aquelas palavras horríveis. Revia tambémaquela noite enluarada e a canção ao som de atabaques voltava aosmeus ouvidos. Afastando-me da casa ouvi um riso estranho. “Essa mulher deve estarlouca”, imaginei e rumei para minha casa. No dia seguinte enviei algumdinheiro para dona Ermínia, para ajudá-la nas despesas e voltei para o Recife, mas daí o inferno começou. Desde então o menino me persegue. Já se passaram sete anos eembora no início eu pensasse que tudo não passava de uma alucinaçãoagora sei que não é isso. É algo muito mais real do que sonhos eimaginação. Voltei muitas vezes a Exu e perguntei pela velha e o menino, mas asinformações eram imprecisas. Uns diziam que eles deixaram a cidade.Outros, que estão pelas redondezas, mas ninguém sabia ao certo. Uma vez encontrei um velho que me disse coisas horríveis. Contou-me que viu certa vez a velha e o menino andando pelo sertão eenquanto a criança carregava uma cobra nas mãos, alguns animaisferozes os seguiam.

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-De outra feita – disse ele – enquanto havia um tiroteio entremembros de duas famílias em uma fazenda das redondezas, eu vi omenino dando horríveis gargalhadas. Parece que ele gosta de fogo esangue... Procurei esquecer tudo isso e colocar um manto no passado, mas elenão deixou. De início, raramente, durante as noites. Aparecia derepente, quando eu menos esperava e senta-se aos pés da cama.Sorria para mim como se fosse um menino bonzinho e depois me davacutucões nos dedos dos pés. Depois dava uma gargalhada edesaparecia. Uma noite apareceu com uma cobra e jogou-a em minhacama. Seus olhos às vezes serenos e límpidos, mas depois se tornavamduas bolas de fogo e com tal intensidade que um dia, uma toalha queeu tinha nas mão incendiou-se. Várias vezes tentei agarrá-lo mas eledesaparecia gargalhando. Agora passou a aparecer até mesmo duranteos dias em qualquer lugar. Não me dá mais sossego. Está meenlouquecendo. O que ele quer de min, não sei, mas tenho aimpressão que ele quer me matar...

De volta à guerra

Isto foi o que Carlos me contara na noite anterior e agora estavamorto. Pensei muito no assunto, mas confesso que não cheguei aconclusão alguma. Quis continuar pesquisando o caso de Exu, porémdepois de alguns dias houve mudanças no meu horário de trabalho emeu tempo livre passou a ser escasso. Depois, aos poucos fuiperdendo o interesse, uma vez que já tinha uma visão global sobre oassunto e, talvez até soubesse demais... O que aconteceu com o filho de Carlos nunca fiquei sabendo, mas alguns repórteres, meus amigos, que em Exu estiveram tempos depois,me informaram que lá não estava acontecendo nada de anormal, isso se assassinatos pudessem ser considerados como fatos dentro da normalidade.

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Soube também que Zito Alencar foi morto com dois tiros na cabeçano dia 12 de maio de 1978, defronte a uma farmácia, no centro de Exu.Segundo os jornais, naquela sexta-feira, ele se encontrava em umacaminhonete C-10, acompanhado de José Adilsom de Souza, JoãoAlves Bezerra e Fernando Alencar, quando apareceu um sujeitomoreno, forte e baixo, trajando calça preta e camisa azul, empunhandoum revólver calibre 38. Ele fez dois disparos atingindo o prefeito noouvido e no rosto, matando-o instantaneamente. Chovia muito e não foi possível reconhecer o pistoleiro, que correu para uma matagal distante 50 metros perseguido pelos acompanhantes de Zito, que deram-lhe 12 tiros. O pistoleiro reagiu, atirando três vezes e atingindo em uma das orelhas de João Alves. Quase dez dias depois, um pistoleiro e presidiário, Gerson Ferreira, o “Joinha” foi acusado como o homem que matou Zito Alencar. Entre 40 detentos, colocados em fila no presídio de Juazeiro (BA) ele foi reconhecido por pessoas que presenciaram o assassinato. Recolhido em regime de prisão albergue, o pistoleiro apenas dormia no presídio ena sua ficha constava que ele se ausentou na quarta-feira, dia 10 de maio, somente apresentando-se na segunda-feira, dia 15. Além destas mortes e de muitas outras, resquícios da guerra entre as duas famílias nada de sobrenatural aconteceu em Exu. Pelo menos queeu saiba.

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O homem que andava de costas

Quando as pessoas viam aquele homem dando passos para trás, ouseja andando de costas, por vários quarteirões, julgavam que eleestava louco. Ele próprio chegou a pensar assim. Mas só começou aagir dessa forma depois que fatos o levaram a uma única conclusão.Teria que regredir. Tudo começou naquela tarde de outubro quando, como fazia sempre, José de Oliveira saiu do trabalho, por volta de treze horas e foi para casa. Possuía carro, mas por morara a apenas alguns quarteirões, foi caminhando. Ao chegar em sua residência, notou que havia um carro estranho na garagem e que sua chave não servia no cadeado do portão, que, obviamente havia sido trocado. Pensou em entrar de alguma forma, mas não conseguiu. Sabia que não havia ninguém em casa porque a mulher e os dois filhos estavam trabalhando naquele horário. Muitas vezes o filho utilizava o carro para ir ao trabalho. Por isso seu carro não estava ali. Mas mesmo assim, imaginando que algum deles tivesse voltado e estava com visitas, resolveu bater palmas. Um homem de aparência jovem saiu da casa e Oliveira ficou intrigado.Não o conhecia e por isso o cumprimentou: -Boa tarde senhor, poderia chamar alguém da minha família? Não sei do que o senhor está falando. Moro aqui há mais de um anoe não conheço ninguém de sua família - retrucou o homem. Oliveira ficou boquiaberto. A princípio não sabia o que dizer. Depoiscomeçou a rir e falou:~ -Isso deve ser alguma "pegadinha"! Eu é que moro aqui e o senhornão está me deixando entrar em minha casa.

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O outro replicou: O senhor deve estar enganado - E, em seguida, foi para o interior daresidência. Oliveira ainda quis falar alguma coisa, mas se conteve. Derepente imaginou o pior. Se não era brincadeira, então havia estranhosna sua casa, num momento em que ele e sua família haviam saído.Poderiam ser ladrões que foram pegos de surpresa com a sua chegadae estavam tentando disfarçar a situação. Por isso, resolveu chamar apolícia. Pegou o celular e discou para o 190. Um policial militar atendeu e ele explicou a situação. Deu o endereço e ficou aguardando. Depois de algum tempo, uma viatura apareceu no começo da rua. Ele deu sinal e os policiais se aproximaram. Quando Oliveira falou pessoalmente sobre o que estava ocorrendo,os policiais resolveram tomar precauções. Sacaram suas armas,aproximaram-se da casa, bateram palmas e, quando a porta estavasendo aberta um deles gritou: -É a polícia. Saiam com as mão para cima. O mesmo homem que atendera Oliveira antes saiu com as mãolevantadas, aproximou-se do portão e perguntou: -O que está acontecendo? -Nós é que perguntamos. O que o senhor está fazendo aí - falou um dos policiais. Eu moro aqui - respondeu o homem. O senhor pode provar? Mostre os seus documentos. O "morador" da casa abaixou as mãos, avisou que ia colocar a mão no bolso e sacou sua carteira. Entregou seus documentos aos policiais que o identificaram como Ricardo Silva e em seguida se prontificou a abrir o portão para que os policiais entrassem. Os policiais olharam para Oliveira e ele ficou sem saber o que dizer.Aquela era sua casa hã mais de três anos. Saíra cedo para ir trabalhar.Deixou o serviço às treze horas, como sempre fazia, e agora alguémdizia que era morador em sua casa. Silva fez questão que os policiais entrassem na casa, apresentou-lhessua esposa, um filho de dois anos e até um contrato de aluguel,comentando a seguir:

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-Este homem ai fora deve ser louco! É melhor vocês conversaremcom ele. Os policiais saíram da casa e se dirigiram até Oliveira, passando ainterrogá-lo: -O senhor está brincando conosco? - Não senhor, esta é minha casa. Eu trabalho num restaurante aquipróximo e o pessoal de la pode testemunhar que estou certo. Um dos policiais achou que seriam melhor seguirem até o restaurante. Mas o outro demonstrou preocupação: -E seu houve alguma coisa errada na casa a gente sai daqui? Por isso eles decidiram chamar outra viatura. Uma ficou em frente à casa e outra seguiu com Oliveira até o restaurante. Na medida em que a viatura ia seguindo, Oliveira começou a notaralguma coisas que o intrigaram. O posto de gasolina, por exemplo, queaté uma hora atrás estava em obras, agora parecia perfeito efuncionando normalmente. Em um terreno vazio pela manhã, haviasido construída uma casa. "Não é possível, devo estar sonhando",pensou ele. Quando chegaram ao restaurante, um dos policiais disse para Oliveiraficar na viatura enquanto ele ia falar com o proprietário. Wilson de Campos, o proprietário do restaurante não se surpreendeuquando viu uma viatura parar em frente ao prédio, porque, quase quediariamente, policiais vinham comprar marmitex no seuestabelecimento. Ele até fazia um desconto especial para os PMs. Masquando o policiais se dirigiu a ele, contou os fatos e citou um nome, eleficou admirado: - O José Oliveira? - exclamou! -Eu não acredito - disse o comerciante. E em sua cabeça uma série defatos, se repassaram. José Oliveira era seu funcionário há alguns anos.Abria o restaurante todas as manhãs e administrava tudo na suaausência. Não faltava ao serviço e não cometia falhas. Tudo ia bem atéaquele dia, hã dois anos, quando saiu do serviço às treze horas e nuncamais voltou. Wilson não pode deixar de pensar na família daquele

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funcionário desaparecido. "Meu Deus, quanto eles sofreram, será queagora tudo vai voltar ao normal? Foi pensando nisso que o comerciante, antes de comentar qualquercoisa, pediu aos policiais para ver José. Dirigiu-se até a viatura e ao vero velho funcionário, o cumprimentou: José ouviu aquela voz amiga e se sentiu calmo. Mas ao virar-se e vero rosto do amigo e patrão, não pode se conter: -Nossa, parece que você ficou mais velho de uma hora para outra. E o Wilson, com aquela calma de comerciante, meio político,retrucou: -Também pudera, faz dois anos que você não aparece... Para os policiais, aquele cena criou um novo impasse. Por isso elesdecidiram entrar no assunto e tentaram entender a história. Mas nãohouve entendimento. José dizia que deixara o serviço há pouco maisde uma hora e o comerciante alegava que o funcionário haviaabandonado o emprego hã dois anos. Um dos policiais chamou Wilson de lado e perguntou se ele tinha oendereço da família de José. -É lógico que tenho. Eles mudaram de casa, mas faz dois anos queestão procurando por ele. Com o endereço em mãos, os policiais resolveram levar José até acasa de seus familiares. Foi um reencontro contraditório. EnquantoJosé se sentia ao mesmo tempo feliz e confuso, sua mulher e doisfilhos diziam coisa que ele não conseguia entender. -O que aconteceu? Onde você esteve, pai? - disse o filho Mário, omais velho. -Ora, eu estava trabalhando, sai de casa cedo e, quandovoltei, tudo estava mudado. Foi então que José percebeu que seus familiares também pareciammais velhos. Haviam se mudado para uma casa menor, com apenastrês cômodos. Então perguntou: -Por que vocês se mudaram tão de repente? - Nós esperamos seis meses e como você não voltou, tivemos quemudar, por questão de economia. Tínhamos que pagar um aluguelmenor. -E como está sua mãe?

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-Ela ficou desesperada, procurou muito pelo senhor e por fimadoeceu. Está de cama. Está doente. José decidiu entrar na casa. Não era como a sua velha residência, naRua Inglaterra, mas reconheceu o jogo de estofados. Também pareciamais velho, como tudo o que via. Mas se sentiu reconfortado. Aomenos nem tudo havia mudado completamente. Quando entrou no quarto viu a esposa na cama. Sentiu vontade dechorar. E parecia estar dois anos mais velha, mas ficou emocionada aovê-lo. Umas dois horas atrás ele e ela pouco se falavam. Haviamperdido aquele amor da juventude. Mas agora ela tinha um rostosofrido e pareceu, apesar de muito judiada, feliz ao vê-lo. -O que aconteceu? Onde você esteve? - perguntou ela. -Eu fui trabalhar hoje de manhã e agora voltei para casa, como façotodos os dias - disse ele. Ela ficou confusa com a resposta, mas não quis discutir. -Está bem, enfim você voltou e parece que está bem - concordou ela. Com o passar dos dias e cada vez entendendo menos o que tinhaacontecido, José não se perdoava pelo que tinha acontecido a suamulher e a seus filhos. Não podia acreditar que havia negado a elesdois anos de sua vida, que os obrigara a entrar num regime decontenção de despesas, de se desfazer de bens, de mudar de casa, deficar doentes. Podia valer pouco no dia a dia, mas sempre estiverapresente. Sem pouco dizer, sempre os amara. Por outro lado, José não conseguia se culpar. Não fizera nada deerrado. Fora trabalhar e voltara para casa. O que teria acontecido?Quando os filhos o algum conhecido insistia em lhe perguntar sobre oseu desaparecimento, ele apenas dizia: "Eu fiz uma caminhada". Mas, aos poucos ele foi pensando e definiu: "Eu caminhei no tempo". Quando tudo ficou claro em sua mente, José chegou a umaconclusão. Se a caminhada para casa, o afastara do caminho e o levarapara longe através do tempo e do espaço, só havia uma forma dereparar tudo. Seria tentar descobrir o ponto em que tudo aconteceu.Mas depois de fazer a caminhada por dezenas de vezes, sem notar

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nada e sem acontecer nada de anormal, ele decidiu fazer o caminhocontrário. Como isso também não resolveu, pensou: "Quem sabe se eu caminhasse de costas, voltando à origem detudo?". E foi assim que ele passou a andar, sempre para trás.

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A bala perdida

Jonas Oliveira, estudante, 23 anos, tinha uma vida tranquila.Conseguira um bom emprego e ganhava o suficiente para cursar afaculdade. Esperava se formar no final do ano e, mais adiante, quemsabe, concretizar o casamento com Lúcia, a quem namorava há algunsanos. Por isso, naquela noite, ele tinha todos o motivos para estar feliz.Seguia para a faculdade, onde encontraria Lúcia. Caminhava pelaavenida, sorridente, sem preocupações, quando, parou abruptamente.Seu rosto ficou inexpressivo e ele tombou sobre a calçada. As pessoasque por alí passavam correram até ele para saber o que estavaacontecendo. Foi então que viram o pequeno orifício na testa, ondehavia um sangramento. Jonas estava morto. A princípio, as pessoas ficaram boquiabertas, mas depois começaramos comentários e as especulações. O jovem só poderia ter sido vitimade uma bala perdida. Mas o impressionante é que ninguém ouviratiroteio algum, embora isso fosse comum naquela região próxima dafavela. Poderia até ser disparo de uma arma com silenciador. A polícia técnica foi informada, fez perícia no local e encaminhou ocorpo para necrotério, onde seriam feitos os exames necroscópicos. Omédico que fez os exames encontrou um pequeno objeto na cabeça doestudante. Estava muito amassado e não parecia com as balastradicionais de revólveres e pistolas. Mas como tinha muitas outrasautópicias a realizar, ele guardou o objeto em um saco plástico, comoprova do crime a ser analisada posteriormente. Alguns dias depois,quando isso seria feito, foi descoberto que o objeto haviadesaparecido. Havia um buraco no saco plástico, como se tivesse sidoderretido. A morte de Jonas Oliveira jamais foi esclarecida. Em outra região muito distante dali, uma família também recebeuuma triste notícia na linguagem local: "Lamentamos informar que seufilho, este notável cientista, morreu em uma de suas missões dereconhecimento no novo mundo. Pelas últimas imagens transmitidas

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de sua nave, o aparelho onde estavam mais cinco membros natripulação, sofreu falha, ficou descontrolado e colidiu com a cabeça deum ser natural do planeta em estudo. Enviamos equipe para resgatedos corpos e destroços da nave, a qual deve voltar em breve"

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A musa disse não

A ilusão visitou-o ainda criança. Um dom vindo de Deus para quecertas pessoas produzam beleza para encantar as demais. Jean tornou-se poeta. Poeta da cabeça aos pés. Iludiu-se aos quinze anos. E tudopassou a ser poesia. Não fechou mais o dicionário. As palavras tinham vida e ele juntava-as emocionado, dizendo ao final de cada verso: Uma nova família. Criou famílias e mais famílias. Era um Deus criando seu mundo esorria, chorava, gritava com o que as famílias diziam. Inspirou-se em tudo e produziu pilhas e mais pilhas de folhasversejadas. Enamorava-se ora de uma moça, ora de outra, mas a grande paixãoera a poesia. Era ciumento; as querias só para si. Poucos viram seusversos, mas quem os viu entusiasmou-se. Que grande poeta era oJean! Um dia ele conheceu aquela moça. Examinou-a esteticamente comofazia com seus versos e chegou a uma conclusão: Era uma pequenadeusa. Só não a adjetivou de deusa, sem o "pequena", porque a suagrande paixão era a poesia. Contudo, a moça era uma perfeição. Sua admiração foi amentando efinalmente Jean apaixonou-se por uma obra que não era sua. Aquelamoça fugia de seu mundo mas ele a queria nele. E ela, unicamente elapassou a ser a sua fonte de inspiração. Produzia agora os melhoreversos de sua vida e agradecia á pequena deusa por isso. Mas com o tempo o platonismo não foi suficiente. Jean descobriuque além de poeta era homem e como homem queria aquela mulher.Mas ela disse: Não. Jean fugiu. Fugiu e voltou. Insistiu, mas ela disse não. Usou tudo quanto é ardil que empregam os enamorados. Tudo emvão. Resolveu fazer um grande poema: a maior obra de sua vida, naqual mostraria toda a sua capacidade literária e o seu imenso amorpela pequena deusa. Trabalhou durante três dias, sem descanso, sem

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comida, sem bebida. Perdeu três quilos de peso e produziu três quilosde poesia. Era como se o seu próprio corpo estivesse se transportandopara o papel. A moça nem leu... O pior veio depois. A pequena deusa casou-se. Casou-se com ummoço rico. Jean ficou abobalhado. Ele, como todo grande poeta nãocorria atrás do dinheiro. Não podia compreender isso... Contudo, oimpacto foi tão grande que seu mundo desmoronou. Em uma noite, ajuntou todos os seus escritos e levou-os para o fundodo quintal. Durou várias horas fazendo isso. Nos seus olhos brilhavafaíscas doidas. Lá no fundo do quintal ficou aquela montanha depoesia. Todo o seu mundo estava ali. Voltou para dentro de casa e surgiucom um galão de gasolina. Fez então tudo apressadamente. A noite se iluminou numa enorme e fulgurante fogueira poética. Jeanviu as folhas se contorcendo uma a uma no meio das chamas e chorou.Chorou como um deus que destrói o seu mundo. Sua grande ambição virou cinzas e as cicatrizes sararam um dia. Omundo ficou sem conhecer um grande poeta. Jean fez tudo paratransformar-se em um homem comum. Um homem como os outros,que correm atrás do dinheiro. Venceu. Tornou-se um grande fabricantede armas bélicas.

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Infinito prazer

Ele mal se continha naquela tarde. Estava eufórico, ansioso emovimentava-se constantemente. Com tal ansiedade, queria que otempo passasse rápido. Logo depois preferia o contrário. Quanto maiso final do expediente demorasse a chegar, mais ele saborearia aqueleinfinito prazer, analisando todos os ângulos, todos os detalhes. Desde garoto Antônio sempre sentira aquele estranho prazer. Mas aimposição de regras, apreendidas na infância e a sua própria intuição olevaram a perceber que não podia usufruir daquilo a qualquer hora, aqualquer momento, em qualquer lugar. Era preciso ser esperto, agirdentro das regras da sociedade, seguir as leis e os costumes. Antônio lembrava de coisas erradas que fizera na sua infância e pelasquais fora repreendido. Várias vezes fora pego atirando pedras nospassarinhos. Conseguira um estilingue e com o tempo matou algunspardais e rolinhas. Gabava-se de sua pontaria, mas as pessoas orecriminavam pela morte dos pássaros. Outra vez divertiu-se muito quando encontrou um ninho com filhotesde ratos, jogou álcool e ateou fogo. Os ratos precisavam ser mortosporque transmitiam doenças, diziam os adultos. Por isso, daquela vezapesar de todo o prazer ao vez os bichinhos se contorcendo na chama,ele ainda foi elogiado. Assim, com o tempo foi apreendendo que podia desfrutar daqueleprazer de aumentar a emoção da vida, sentir a adrenalina com odesespero e a dor de outros, desde que o fizesse de forma aceitávelpela sociedade. Às vezes sentia um arroubo, um desejo de fazeralguma coisa grandiosa, uma chacina, criar uma sala de torturas. Maspercebia que estava fora de seu tempo. Imaginava-se sendo umcarrasco da era medieval ou ter nascido alemão na década de 40, ondepoderia atuar em experiências incríveis com pessoas. Sonhava ser umagente do governo na época que muitos desapareciam nos porões da

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ditadura. Mas aprendera que muitos foram incriminados, julgados,presos. Percebeu também que na mesma intensidade em que desejava esteprazer, temia ser privado definitivamente dele, com a morte ou aprisão. Por isso não se julgava covarde, mas sim cauteloso. Por muitotempo, como não tinha coragem e fazer coisas pelas quais seriaincriminado, contentava-se em frequentar velórios. É certo que osmortos não sentem nada. Mas os vivos, os parentes, estes simdemonstram muito sofrimento, muita dor. Antônio até aprendera afazer uma cara de triste, enquanto, intimamente saboreava aquelesmomentos de prazer e felicidade. Aliás, vinha fazendo isso há muitotempo, na escola, na faculdade, nas ruas. Sempre que via um acidente,alguém ferido, alguém gemendo ele dissimulava a sua satisfação. Com o tempo passou a ficar deprimido porque em todos estes casos,ele não era o agente, o responsável, pelo menos indiretamente,daquela dor. Chegou até cogitar de ir trabalhar em um hospital. Masdeduziu que, além de não ser o agente causador, em vez de saborear ador dos outros, ele teria de minimizá-la, confortá-los, em vez decutucar a ferida. Agora ele estava satisfeito. Quando foi convidado para trabalhar nodepartamento pessoal daquela empresa ele não imaginou que poderiaunir o útil ao agradável. Descobriu então que muito mais emocionanteque impingir a dor física era atingir o íntimo das pessoas, inferiorizá-las, destroçá-las. Quando se preparava para seu trabalho, Antônioantevia o sofrimento do trabalhador, a depressão, a humilhaçãoperante a sua família e os amigos. Por isso ele estava eufórico. Naquela tarde tinha uma missãoespecial. Conversar com um funcionário com quase dez anos detrabalho e que estava há poucos anos da aposentadoria. Antônio passou a tarde analisando cada detalhe daquele caso.Gozava intimamente prevendo a expressão do operário ao receber anotícia. Tentava antever a sua reação e mais do que tudo, ficavaembebido de felicidade ao prever o sofrimento de meses que passariaaquele homem. Teve o cuidado de saber se ele era casado, se tinha

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filhos, para saber a intensidade de sua ação. Tudo era muitoextraordinário, porque apesar de ter conversado com muitosfuncionários, agora havia um sabor especial: aquela era a primeira vezque ele ia informar uma demissão por justa causa.

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Natureza erótica

O vento soprou descompassadamente como um coraçãodescontrolado e os galhos das árvores foram se empurrando uns aosoutros até que lá no centro da floresta os últimos galhos derrubaramfolhas verdes no lago azul. Todos ficaram sabendo que Léia vinhabanhar-se. O lago empurrou rapidamente as suas águas sujas e ficou mais limpodo que nunca, deixando transparecer no fundo as pedras azuis que otornavam daquela cor e os peixes que nele viviam. Léia vinha banhar-se e toda a floresta temia que um dia ela nãoviesse mais. Por isso, o vento, depois das primeiras lufadas, soprava demansinho, empurrando de leve a menina moça para o meio dafloresta, enquanto as árvores dançavam ao canto dos passarinhos. Há algum tempo era assim. Léia nascera à beira da floresta e osprimeiros passos que dera foram em direção a ela. Tudo mudou paraaquela floresta triste onde só entravam homens com espingardas emachados nas mãos. Léia não tinha espingarda, nem machado. Afloresta encantou-se. Quando Léia conheceu o lago, ele não era tão bonito. Mas depois,conforme a menina ia crescendo e sua beleza se acentuando, eletambém foi ficando cada vez mais belo. Agora, Léia já era mais moça que menina e a floresta não sabia maiso que fazer para agradar a sua amada humana. Quando a moça começou a tirar a roupa, o sol afogueou-se, o ventodeu uma lufada rápida de inda e vinda, as árvores balançaram-se emregozijo e os pássaros erraram o canto. Os pés de Léia penetraram as águas do lago, que lançou pequenasondas de prazer. Eram pés pequenos e tão delicados que não pareciamcapazes de sustentar o peso de um corpo.

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Depois vieram as pernas, mais rosa que bronze, com graciosafirmeza. O lago lançou ondas maiores. Por fim possuiu-acompletamente quando nele penetraram as outras partes do corpo. De repente, um ruído estranho, que toda a floresta percebeu, menosLéia. A floresta aquietou-se em suspeita. Havia mais alguém por ali.Um vulto esgueirava-se cautelosamente por entre as árvores. Era ummoço loiro. Não trazia espingarda, nem machado, mas a florestainquietou-se. O moço aproximou-se do lago, despiu-se entrou devagarinho na águapara surpreender a moça que brincava distraidamente. A floresta estava tensa. Foi quando Léia percebeu a presença domoço. Deu um gritinho de susto e exclamou: -Oh, André! Que susto você me deu! Ele sorriu e disse: - Léia, este lugar é lindo, mas você não vai sentir falta dele. Nõsvamos morar numa cidade linda, cheia de coisas diferentes, que vocênunca viu, mas sei que vai gostar. -Está bem, mas como você chegou até aqui? -Ora, bobinha, eu a segui sem que você percebesse. Vim para apressá-la porque o seu pai já arrumou nossa bagagem e vamos partir logo. Então o sol esmaeceu; o vento soprou angustiado e algumas árvores que rodeavam o lago caíram sobre ele. E o lago azul ficou vermelho...

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O corredor

Um sorriso amarelo tinge a boca da noite. O leve colorido penetra noimenso corredor sem teto. Mas o que importa isso ao João? Não seimporta, caminha. Atrás dele, não muito próximo, caminha também um estranhosenhor inteiramente vestido de negro, barba negra, cabelos pretos.Passos lentos firme e pesados. Como João segue por ali porque é o seucaminho e não há possibilidades de ir por outro lugar. Ir para onde? Seem qualquer porta que se entra haverá sempre um regresso ao imensoe reto corredor sem teto? Para que se preocupar? Tudo está tãoquieto! João não pensa assim. Deixa o homem de negro cada vez maispara trás. Vê outros homens de banco, mulheres de vermelho, criançasde azul. Afinal, o que estão fazendo? Amando, odiando, chorando, gritando,cantando e andando. Andar paciente, andar triste, andar cansado,cismado, apresado, lento, manco, trôpego... João tem passos precipitados. Está a fim de achar um meio ou tempor princípio achar um fim? Nem uma, nem outra: ambas sãoimpossíveis para certos espíritos que não se acomodam com as simplestrocas de palavras. Palavras técnicas, políticas, filosóficas... De que adiantou aquele número infindável de ismos se nadaesclareceu nada? Se o corredor é imenso e a sua busca ou fuga nãotem solução plausível. Alcança uma senhora que já caminha com velhos passos. Vaipassando-a quando ouve em tom profético: -Você tem muita pressa, jovem... Ele pensa em continuar, porém interroga-a subitamente:Onde é o meio? A velha escancara um sorriso sem dentes. Caminha ainda maislentamente obrigando-o a esperá-la. Ele se contraria, contudo aguarda

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a resposta. Talvez esta velha, sem cultura aparente, lhe esclareçaalguma coisa. Espera a resposta. Finalmente a velha diz:

- Diga-me quais são as características e eu poderei lhe dar umaresposta. A revolta estoura dentro dele. Maldita senhora que o fezparar. -Mas nem isso a senhora sabe? Vai embora sem dizer mais nada. Quase correndo. "Velha ignorante.Perguntar quais são as características... Será que ele não sabe ou vemcom aquele maldito método de interrogar para corrigir depois dizendoa mesma coisa com palavras mais bonitas ou adequadas? Todos devemsaber ou ter uma ideia sobre as características: deve haver muitavastidão, sem vastidão, ou então deve ser bem pequeno, de formacircular, mas de uma maneira que tudo e todos caibam dentro dele. Nisto nota um andar trôpego. Reconhece a dona de infeliz andar. -Dorinha, você ainda está por aqui? -Sim. -Que aconteceu? Dorinha encara-o abobalhada e lança outra pergunta: -Com o que? -Com tudo - responde, perguntando João - com aquele seu canteiro de flores que havia lá no início, onde o corredor não tinha paredes de concreto, com os nosso amigos, você sabe... Está bem - replica Dorinha - as flores iam bem, mas depois começaram a sangrar, sangrar... -E os outros? -Uns estão indo na frente. Outros pararam. Você também deve terparado pois ainda está aqui. -Sim, eu entrei na biblioteca, li todos os livros, mas depois saícorrendo. -Por que? -Porque nada fiquei sabendo, mas você disse que alguns pararam... -Sim, o Robertinho parou... no hospital... -E ele já saiu de lá? -Sim. -Por onde? -Por cima... Mais alguém parou?

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-A Santinha, o Agostinho e o Mário. Ficaram na Igreja. Dizem que é um bom lugar. Eles gosta de lá. E Você? Estou indo e vindo.

João pensa um pouco e arrisca: -Você já sabe onde é o meio? Dorinha balança a cabeça negativamente. Termina a conversa. João segue. Está determinado. Vai até o fim. Divisa ao longe um vulto solitário. Há um cigarro na boca daquele indivíduo. Chega até ele respirando fundo e vai fazer-lhe a mesma pergunta que fez a todo mundo, desde que aprendeu a perguntar. Muda de ideia no último instante e, para não ficar chato, pede-lhe um cigarro, agradece e sai apressado. Deve haver um meio... Escureceu. Quantos mil cigarros já fumou? Quantas milhares de vezesfez a mesma pergunta. Não importa, não perguntará a mais ninguém. No escuro segue sem receio na retidão do corredor. Agora são passoslongos, rápidos, desenfreados, até que um grito sai de sua garganta,com as poucas forças do pulmão cansado: -Não sou louco... Apenas o eco repete-lhe o grito. Cairepentinamente sem poder ir adiante. A peça terminou. Levanta-secom tremendo esforço, tira a camisa de manga compridas, contorna-ano pescoço e puxa até perder as forças... Quando Dorinha passa por ali, na manhã seguinte, dá uma terrível gargalhada e grita: -Mais um saiu por cima!

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Relato de um viajante

Fomos aproximando-nos com a impressão de íamos vagarosamente,mas estávamos em vertiginosa velocidade.De longe o pequeno planeta dos Yellows assemelhava-se a umalaranja. O capitão Lanejuv informou que lá chovia frequentemente, mas opequeno planeta nunca perdia a sua cor amarelada. Em algmas horas, passadas com lentidão e com o ambiente ficandocada vez mais amarelo, a nave pousou com a delicadeza de umabailarina. Silêncio desanimador! Logo, olhos também amareladosespreitaram-nos com preguiçosa curiosidade. Planeta chato aquele! Epensar que precisávamos parar ali para reabastecer a nave... Desde que o viajante espacial George Mark o havia descoberto háduzentos anos, pouco ou nada a não ser nosso posto dereabastecimento havia mudado ali. Ninguém a não ser os yellowshabitavam o planeta. Vi uma vez no Universal Computer, que umcientista da Terra viveu no planeta durante cinco anos, porém o livroque trazia consigo foi destruído quando a nave, na qual viajava de voltapara a Terra explodiu por um defeito técnico indeterminado matandotodos os seus tripulantes. Os yellows receberam-nos como tinham recebido os poucos viajanteque ali haviam chegado antes, com aquela preguiçosa curiosidade nosolhos e sem se importar com mais nada. Jamais algum deles havia colocado a mão em nosso posto dereabastecimento. Através da neblina amarela eles aproximavam-se da mave e Naikanque precedera a chuva, o great father dos yellows, o mesmo querecebera George Mark, duzentos anos atrás, ainda vivia e foijustamente ele que veio receber-nos. Como todos os outros, ele tinha o corpo grande e a cabeça pequenademais. Em lugar da boca tinha uma espécie de focinho que se afinavaaté a espessura de uma caneta. Parecia um funil com a ponta para fora.

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Segundo nosso computador, eles alimentavam-se de uma espécie demel produzido por insetos gigantes que habitavam o planeta. Após dar-nos a ordem de colocar os equipamentos adequados paranossa saída da nave, foi conversar com Naikan. Conversar é modo dedizer, pois os yellow se comunicavam de uma maneira diferente detodos outros seres que conhecíamos. Com doze dedos, seis em cada mão, eles apertavam vários pontossobre o peito, como se estivessem tocando piano. Lenejuv assim comoeu e outros tripulantes o entendíamos perfeitamente pois ovocabulário dos yellows é muito pequeno. Sentí-me interessado em Naikan e assim que pude, pedi permissãoao capitão e fui "falar" com ele. Após um "bate papo" informa fiqueisabendo que sua filosofia de vida era simples: Vive e não prejudicar.Não se importavam com o tempo pois nem possuíam calendário. Cada mulher yellow deixava poucos descendentes que teriam a únicafunção de viver não prejudicar. As poucas lutas que haviam eram comos insetos gigantes porém, fora disso não havia mais nenhum motivopara brigas. E não havendo motivos, eles não brigavam pois seutemperamento calmo era constante. Não tive mais tempo de conversarcom Naikan, porque escureceu rapidamente e todos foram para suascavernas. No outro dia tivemos a única surpresa mista de alegria e tristezanaquele planeta. Naikan chegou com a primeira claridade amarela dodia e fez apenas alguns sinais: "Eu morro amanhã", "Venham". Lanejuve eu o seguimos curiosos até que ele estendeu o braço direitoindicando um local. Lanejuv olhou e imediatamente ficou tenso. Correupara lá e pouco depois gritou: "É Zorah! Está morto!". Certamentehouvera um acidente com a nave e Zorah e seus companheirosmorreram ali no planeta dos yellow. Voltamos para a nave e ao saber do ocorrido, os tripulantesrespiraram aliviados. Agora todos poderiam voltar para suas pátria.Terminara a missão: poderíamos voltar para o Centro Universal einformar que o pirata do universo, o homem que queria fazer guerrraestava morto.

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Apressamo-nos todos em partir. A nave já estava reabastecida. Noúltimo instante, lembrei-me dos sinais de Naikan: "Eu morro amanhã"e comecei a imaginar como seria saber o dia exato da morte. Fui atéele, abracei seu corpo amarelo e, sinceramente...chorei.

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O roubo perfeito

Para o gerente João Siqueira, aquela era uma manhã de trabalhocomo todas as outras. Como fazia normalmente, ele chegara cedo àagência e acompanhara o início do trabalho dos funcionários. Estava àsua mesa quando o telefone tocou. Atendeu solícito como sempre,mas aos poucos sua expressão até então sorridente e tranquila foi setransformando com rugas de preocupação. Do outro lado da linhaalguém falou: -É o gerente João Siqueira? O senhor está sendo observado e devepermanecer tranquilo e fazer tudo o que ordenarmos. Além de podermatá-lo, nossa gente invadiu a sua casa e está com a mãe de suamulher sob a mira de revólver. Siqueira ficou atento. Pela manhã, havia levado sua mulher aotrabalho e portanto sabia que o que a pessoa falava ao telefone podiaser verdade, pois sua sogra estava sozinha em casa. Por isso,permaneceu calado e continuou ouvindo: -O que queremos é que o senhor pegue uma quantia de R$ 100 mil,do cofre e faça uma entrega para nós. O senhor deve pegar o dinheiro,sair do banco, seguir até o 12o. andar do Edifício Altina, que fica naesquina do banco e jogar o pacote na lixeira que fica no corredordaquele pavimento. Lembre-se para a sua segurança e de sua família,não chame a polícia. No outro lado da linha, o representante comercial Marcos da Silvaestava ansioso. Há muito tempo ele estava à busca de um rouboperfeito. Pensara várias maneiras de roubar um banco, mas não queria,de maneira alguma correr riscos, ou contar com uma única chance deser descoberto. Também queria vencer pela esperteza e não com o usoda violência. A princípio, julgou que fazendo o gerente acreditar queestava sendo vigiado e que sua casa tinha sido invadida, com parentescomo reféns, este entregaria o dinheiro. Uma quantia pequena

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também tornaria mais viável a ação do gerente. Mas havia um grandeproblema. A pessoa que fosse receber o dinheiro corria o risco de seridentificada e presa, porque não havia certeza de que o gerente nãofaria contato com a polícia ou com a segurança do banco. Se mandasseo gerente esconder o dinheiro em algum lugar, a polícia poderia ficarvigiando e prender quem chegasse ao local. Foi por isso que eledecidiu interceptar a entrega do dinheiro na metade do caminho ejulgou em utilizar a lixeira do edifício. Silva tinha um escritório no oitavo andar do Edifício Altina. Pelasacada do prédio, ele tinha uma boa visão do banco que pretendiaroubar. No final do corredor havia a lixeira. Todo o lixo alí jogado caiapor uma tubulação até o solo, onde havia tambores para a coleta domaterial. Ele imaginou que sempre que se alguém jogasse algumacoisa do 12o. andar, o objeto passaria pelo oito andar antes de cair nofundo da lixeira. Por isso, elaborou um objeto, semelhante a umaraquete de tênis, com rede e amarrado a uma corda e o introduziu nalixeira. Se alguém jogasse alguma coisa lá de cima, ele a pegaria algunsandares abaixo, antes que fosse ao fundo. O edifício era antigo, tinhamuitas salas desocupadas e ele havia percebido que o movimento eramínimo e provavelmente ninguém o veria colocando ou retirandoalguma coisa do orifício da lixeira. Silva havia imaginado também que se a polícia fosse informada,certamente iria aguardar que alguém fosse apanhar o dinheiro nofundo da lixeira. Ninguém iria pensar que ele pegaria o dinheiro algunsandares acima. Além disso a polícia não teria como revistar o prédiointeiro. Além de salas de escritórios havia também moradores, famíliasinteiras que ali residiam. Ele poderia levar o dinheiro ou então deixá-loguardado no cofre de seu escritório, até que tudo se acalmasse. Foi pensando em tudo isso, que da entrada do prédio Silva viuquando o gerente João Siqueira deixou a agência do banco, comalguma coisa embaixo do braço. Ele ficou ansioso e exultou. Seu planoestava dando certo. Notou que não havia movimentação estranha eimaginou que certamente o gerente não havia informado a polícia.

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Quando o gerente apanhou o elevador, Silva entrou com ele eapertou o botão do oitavo andar. Assim que a porta se abriu ele correuaté seu escritório, apanhou a rede e a enfiou na lixeira. Logo depois,sentiu um baque. Retirou a rede e lá estava um pacote.

Tudo ocorrera exatamente como Silva previra. O plano fora perfeito eagora ele estava abrindo o pacote. Mas veio então a surpresa. Haviavários blocos de papéis, mas nenhum dinheiro. Demorou para serecobrar e perceber que o gerente fizera tudo para se livrar do perigode ser morto. Mas não se preocupara com reféns. Então desabafou: -Eu devia saber, o desgraçado deve odiar a sua sogra...

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Gêmeos Ele era bonito, logicamente com feições masculinas. Andava como seestivesse nas nuvens. Não com as mãos viradas para cima.Flutuava,com braços abertos, mas a mãos viradas para baixo, como sefossem asas fazendo um esforço mínimo para voar, ou melhor, flutuar.Ele não voava, flutuava. Olhos azuis, pele branca, barba rasa, bonsdentes, sorriso constante, como se a vida fosse uma eterna alegria. Eracomo se estivesse sob o efeito constante das drogas, que diziam queele usava. Não sei se realmente usava, mas tentei imaginar. Deviam serdrogas muito boas para viver sorrindo e flutuando daquele jeito.Trabalhava? Não sei. Como vivia? Não sei. Eu era o balconista de bar esempre o via daquele jeito. Só notava que as coisas que ele dizia, nãofaziam muito sentido. Soube um dia que ele era gêmeo, mas nuncapensei seriamente sobre isso. Numa noite,entre as muitas do trabalho, uma loira linda entrou no bar. A primeira coisa que notei, era que ela não andava. Flutuava. Era como se fosse ele, mas estava na cara. Tudo demonstrava que era ela. Os cabelos mais loiros, mais compridos, mais finos, esvoaçantes. Os mesmos olhos azuis, mas os labios mais sensuais. Cintura fina, seios proporcionais ao corpo. Se houvesse gêmeos nesta história ela só poderia ser a irmã gêmea dele. Nunca tive certeza. Ao servir o que ela pediu no balcão, procurei iniciar uma conversa: -Eu não a conheço, mas acho que conheço seu irmão! Ela me olhou diretamente nos olhos e eu fiquei desnorteado. E aconversa desnorteada continuou: -Voce conhece o meu irmão? -Sim, às vezes ele aparece por aqui. -E você gosta dele? -Gosto muito, ele é gente boa, respondi. Mas fiquei aturdido com o que ele disse a seguir: -Então não fale mais comigo. E ela pagou a conta e foi embora. Nunca mais a vi.

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Um homem muito bom Nos mais de 30 anos que exerci o jornalismo, vivi fatos pitorescos,muitos dos quais não foram contados nas reportagens, como aconversa que tive com Sônia, a irmã de um homem assassinado, emuma cidade, no interior do Estado de São Paulo. Numa manhã de maio, como fazia diariamente, realizei minha rondapelos plantões policiais quando me deparei com um boletim deocorrência de homicídio. Um homem fora morto a tiros, nasproximidades de sua casa. Constava que ele havia deixado a prisão hápoucos dias. Como havia poucas informações fui até a casa dos parentes dofalecido. Sônia me atendeu e expliquei que precisava saber um poucomais sobre o morto e se havia algum indício que poderia levar aoassassino até então não identificado. -O que eu posso dizer é que meu irmão era um homem muito bom enão merecia isso afirmou ela. Concordei porque, afinal de contas, ninguém merece ser morto atiros, sem a chance de se defender, mas continuei a conversa... -Ele havia saído da prisão recentemente? -Sim, mas era um homem muito bom. Assim que chegou em casa,começou a trabalhar. Apanhou uma enxada e tirou todo o mato doquintal. Depois saiu fazendo capinação pelo bairro. Ele oferecia seutrabalho e se as pessoas pagavam ele capinava o mato. Mas paraaqueles que não podiam pagar, ele fazia o serviço de graça. Deixouquase todo o bairro limpo e nunca roubou um tostão de ninguém. Mais uma vez concordei em que o homem era trabalhador, mas haviauma coisa que tinha que perguntar: -Mas se era trabalhador porque ele foi preso? -Foi preso preso porque matou uma mulher, mas acho que não foitão culpado, porque ele era muito bom. Ela é que não prestava.

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-Como assim? -Além de ser uma boa pessoa, meu irmão era ingênuo. Uma vez elefoi numa boate e a mulher se ofereceu para transar com ele. Ele achouque era namoro e aceitou. Depois ela queria receber. Mas ele nãotinha dinheiro. Disse que não sabia que precisava pagar para fazersexo. Mas como ela insistia em receber ele disse que, assim que tivessedinheiro voltaria lá para pagar. A historia foi ficando interessante e quis saber se ele havia pago. -Como ele era muito bom, voltou lá, para pedir para ela esperar maisum pouco porque ainda não havia recebido o dinheiro suficiente.- E ela esperou? -Esperou nada. Mandou uns homens darem uma surra nele e oatiram no meio da rua. Ele foi levado para um hospital e demorou umbom tempo para se recuperar. -E depois? -Ele voltou para casa e não perturbava ninguém. Como era muitobom, ajudava em tudo o que podia, mas a humilhação com aquelamulher ficou martelando na cabeça dele, até que um dia ele nãoaguentou mais e aconteceu a tragédia. Fiquei calado por alguns instantes. Na minha cabeça ainda haviadúvidas. Se ele era um bom homem, certamente poderia ter ocorridoum acidente, uma morte intencional. E veio a pergunta que não podiacalar: -E como ele a matou? -Foi com faca. Ele deu 17 facadas nela… Não pude me conter: -Mas era um homem muito bom? E ela completou chorando. -Era, meu irmão era muito bom. Não sei porque alguém iria querer atirar nele.

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O tiro no escuro

Naquela manhã não se falava em outra coisa, no plantão policial.Tudo girava em torno do tiroteio ocorrido no dia anterior, quando umfugitivo foi cercado e morto em um matagal na periferia de Americana.O homem tentou um assalto a mão armada, saiu correndo e entrou emuma área de brejo, com mato. Na fuga ele chegou a disparar contrapoliciais. Por isso a área foi cercada. Como repórter, acompanhei o cerco. Com um megafone, a políciaanunciou o cerco e pediu para o homem, acusado de assalto seentregar e que saísse com as mãos para o algo. Ele não respondeu.Continuou escondido. Por isso, os policiais armados com cartucheirascalibre 12 entraram rastejando no mato. Alguns tempos depois ouviu-se disparos e então alguém gritou: "Acabou, ele tombou". Logo a seguir os policiais saíram arrastando o corpo do homem. Eletinha um buraco na testa e outro no peito. Dava para ver o outro lado.Ficou igual que aqueles personagens do Mágico de Oz, sem cérebro esem coração. A ironia de tudo, é que. para evitar acúmulo de popularesno local e a espera pela polícia técnica, alguém gritou que o homemprecisava se socorrido. E foi assim que quatro soldados, segurando osmembros do morto, o carregaram até uma ambulância e o levaram atéo hospital. A foto daquele momento saiu estampada na primeirapágina do jornal do dia seguinte.. E foi assim, com os comentários sobre o fato que policiais começarama relembrar fatos. Uns diziam que já haviam participado de várias operações com tiroteios. Outro comentava que felizmente nunca precisara matar alguém. "Tem muita burocracia", comentava um terceiro, lembrando que nestes casos os policial responde a inquérito ea processo. "Mesmo cumprindo o dever, a gente ainda tem muita encheção de saco", disse outro. Foi então que o Souza, um investigador com muitos anos de carreiracomeçou a falar: -Quando a coisa tem que acontecer, não há como

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evitar. Certa vez, participei de uma perseguição, parecida com essa. Omarginal atirou na gente e, depois se escondeu no mato. Ficamos empontos estratégicos por onde ele podia sair, mas ninguém estavadisposto a entrar desprevenido no mato e tomar um tiro. Por isso, oscolega atiravam de vez em quando, quando viam algum movimento,mas mantinham posição. Eu não estava disposto a atingir ninguém enem a ter que preencher relatórios, inquérito, processo. Por isso,mantive a minha arma, sem disparar. Mas à medida que o tempopassava, comecei a pensar que ficaria chato se todos tivesse atirado eeu não. Por isso, resolvi atirar a esmo. Apontei em direção a um pontoqualquer do mato e disparei. Imediatamente, houve um grito de dor e,logo depois, alguém gritou pedindo socorro. -Você acertou ele?, perguntei. -Você não vai acreditar, mas eu o acertei nas nádegas. -Que sorte. -Sorte nada. A bala atingiu uma veia, deu hemorragia, o cara morreue eu respondo a processo até hoje...

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Os leões

Há muitos e muitos anos, nos primórdios da civilização, havia umatribo que vivia em uma bela região da África. Muitas árvores,abundancia de alimentos. A vida seria um paraíso se não houvessem osleões. Eles perseguiam os humanos e , quando podiam, os matavam ecomiam. O que parecia uma desgraça, também trazia seus benefícios. Aspessoas da tribo se tornaram guerreiras, aprenderam a usar lanças e acorrer. Eram esbeltas fortes e magras. Quando apareciam os leões, todos corriam, se armavam e sedefendiam em conjunto. A luta contra os leões, se tornava mais intensana proporção em que eles tinham mais fome. E isso acabava gerandouma seleção natural que deixava a tribo forte. Na fuga dos leões osmais fracos ou doentes, caiam pelo caminho. Os sobreviventesformaram uma raça resistente. Mas havia momentos de calmaria, quando os leões se afastavam ouseguiam para outras regiões. Mesmo assim os homens estavamsempre atentos e colocavam vigias nas proximidades da tribo, Alémdisso, o assunto era sempre discutido e ninguém gostavam quandoalguém era morto pelos leões, fosse quem fosse. Por isso começaram apensar em outra solução até que alguém teve uma ideia, que começoua se colocada em prática. A solução, mesmo que não fosse a ideal, seria fazer uma fortificaçãode pedra, no meio da tribo. Não havia ainda a ideia de portas e o queimaginaram foi cercar uma área com pedras, deixando passagensestreitas onde só passariam os humanos. As crianças seriam protegidasprimeiro. Os homens entrariam de lado na passagem estreita. E osleões, que geralmente eram gordos, ficariam de fora. Dentro haveriasempre estoque de comida e água para esperar até que os leõesfossem embora.

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Além disso, os homens mais magros, fortes e grandes corredores,ficariam sempre de prontidão, vigilantes para dar o alarme quando osleões se aproximassem. E assim foi feito. O número de mortos foireduzindo até acabar. Somente alguém muito descuidado e que nãoseguisse as regras da tribo, poderia ser alcançado e devorado pelasferas. Com o passar do tempo, os leões foram procurar outras fontes dealimento. Os ataques à tribo foram rareando até acabar. A tribo havia,finalmente alcançado a paz e segurança. Daí veio o relaxamento natural. Muitos homens mantiveram atradição de lutar, correr e se alimentar com disciplina. Mas a maioria seacomodou. Comia descansava, caçava pouco, dormia muito porquenão havia com o que se preocupar. Mas um dia, depois de muitos anos aconteceu a tragédia. Os leõesvoltaram. Alguém os viu de longe e avisou a tribo. Iniciou-se a correriapara a área de proteção. Mas foi cobrado o preço do descuido.Homens e mulheres estavam muitos gordos. Não conseguiam corrermuito e se tornaram presas fáceis para as feras. Os mais fortesconseguiram lutar, chegar ao abrigo, socorrer crianças. Mas outros,quando chegavam ao abrigo, estavam esgotados e pior que isso, nãopassaram pelas passagens estreitas. Tinham engordado muito. Pagaram muito caro pelo descuido.

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Um dia ainda vamos rir

O Marido e a Maria viviam bem, apesar das dificuldades financeiras.Justamente por causa disso e pela luta por um melhor salário,estavamsempre mudando e foram morar na Cidade Pequena. Ali, o marido teria um emprego garantido. Maria se ressentiuda mudança, mas guardou as mágoas para si e continuou com o sonhode morar na Cidade Grande. Foram anos de luta, com derrotas e pequenas conquistas, nada que sepudesse dizer "estamos acabados", ou que"vencemos".O casal e filhossó iam vivendo, com dificuldades, como muitos seres deste mundo.Mas tinham sua casa naquela pequena cidade. Um dia, o Marido conseguiu um emprego na cidade grande. Masprecisou ter uma conversa séria com Maria. -Não dá para ficar viajando todos os dias. Teremos que deixar nossacasa, que nem é totalmente nossa, mas financiada, e mudar para umacasa nova. Na verdade, nem é uma casa, mas um "apertamento", queo patrão vai nos alugar. É logico, que ele vaidar um desconto no aluguel, é lógico que haverá dificuldades, mas alguém tem que decidir!Maria reviveu todos os seus sonhos de morar na Cidade Grande. Nãoera só por ela, mas também pelos filhos. Podiam perder a casa, mas osfilhos teriam a oportunidade de frequentar faculdade! Olhou para o Marido e disse: -Vamos! Os próximos dias viraram uma correria. O emprego não podia esperar.O Marido começou a preparar tudo o que podia. Separou documentos, juntou algum dinheiro para pagar o caminhão damudança, desmontou alguns móveis e, deixou como sempre fazia, queMaria empacotasse tudo. E assim foi ela para a sua vigésima primeiramudança, em busca de um emprego/vida melhor! Tão desesperado em conseguir algo novo, o marido nem atentou paraos detalhes do apartamento. Estava situado num lugar próximo à firmaonde iria trabalhar. Estava em bom estado, embora depois se

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descobrisse que apesar de acarpetado, tinha traças e algum bolor. Masno mais era legal, andar térreo, sem escadas ou elevador, muito bom. Maria nem tinha tempo para pensar, de tanto "arrumar" as coisas,muito emocionada. No dia da mudança, foi tão humilde que viajoucom os filhos junto com o motorista, na cabine do caminhão. O maridofoi dentro da carroceria, imprensado entre um guarda-roupas e umcolchão. Conseguiram fazer a abençoada mudança. Descarregaram tudo,pagaram o frete e ainda sobrou algum dinheiro. Com toda a tensão dodia, Maria começou a arrumar a nova casa. Anoiteceu, mas aí veio o drama. O apartamento não tinha energiaelétrica. Os moradores antigos não tinham acertado a conta comcompanhia de eletricidade, e por isso a energia foi cortada. Devido ao horário, não dava para pagar a conta e pedir o religamento.Assim o casal taria que passar uns dois dias sem energia. O jeito seria utilizar o fogão agás para esquentar água para o banho, fazer umacomida improvisada e comprar velas. "Pelo menos iremos jantar emapartamento novo e à luz de velas", disse o marido em tom debrincadeira. E saiu para comprar as velas. Maria estava sob muita pressão. A decisão, a mudança, asexpectativas e por fim a decepção de não encontrar tudo perfeito.Mesmo assim enfrentou tudo com muita coragem e foi fazer a janta napenumbra. Então aconteceu a tragédia. Procurou, procurou e por fimela desmoronou. Saiu correndo para a rua, encontrou o marido voltando da venda, com o pacote de velas, nas mãos. Deu suspirosprofundos e disse: "Não tem feijão!" E chorou copiosamente. Quando relembra a cena, o Marido imagina o falecido amigo TitoMenito. Nas melhores, ou piores situações, ele dizia: "Um dia aindavamos rir de tudo isso"

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Estória mineira

O grande segredo de beber no “Bar do Mineiro”, em Americana, SãoPaulo, lá pelos idos de 1990 era chegar numa tarde tranquila eencontrar seu proprietário propensa a contar estórias. Ai a cervejada ialonge. Um dia, um freguês inventou de contar uma estória ocorridanuma fazenda de Minas, daquelas brigas entre marido e mulher emque a gente não deve por a colher. Contou o freguês que o lavrador trabalhava tranquilamente a semanainteira e aos sábados ia para o boteco, bebia tudo o que tinha direito evoltava para casa de madrugada. Então acordava a mulher e todos ofilhos, dava um instrumento musical para cada um deles e os obrigavaa tocar a música “Periquito” que ele gostava tanto. O sogro, quando soube o que acontecia, deu uma surra no genro e omandou embora. Para que? Sua filha ficou doidinha. Brigou com o pai,chamou o marido e desabafou para a família: “Pensem o que vocêsquiserem, mas nós gostamos do periquito” O mineiro, dono do bar gostou da estória, mas não se deu porvencido. E mandou ver: “Era uma vez numa fazenda, onde em morava, lá em Minas um carachamado Zé da Marta, metido a valente. Cara bom, trabalhador,passava a semana tranquilo, mas quando chegava o sábado, eletomava uma pinguinha em casa, ficava animado, saia provocando todomundo, de porta em porta até chegar no bar. Lá, bebia o tempo todo.Depois voltava provocando todos, inclusive o sogro e seus cunhados.Como era muito valente, ninguém se metia a besta, preferindo ignorá-lo. Mas um dia o homem exagerou. Chegou em casa, reuniu a mulher efilhos, pegou uma espingarda, dessas de carregar pela boca, encheu dechumbo e deu um tiro. Todos os moradores da fazenda escutaram. Osogro ficou desesperado. Assim era demais, as crianças corriam perigo.Reuniu todos os filhos e amigos e cercaram a casa do José. Logo emseguida ouviram outro tiro.

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Então eles resolveram adotar uma estratégia. Se entrassem correndona casa poderiam tomar um tiro. Além disso era preciso ficarematentos porque o Zé era bom na faca. O segredo era esperar o próximotiro e entrar correndo, sem dar tempo para o Zé pegar a faca. E foi o que fizeram. Ao terceiro estampido, todos invadiram a casa eagarraram o Zé. Para evitar alguma reação, deitaram ele numa cama eo deixaram com os braços e as pernas amarrados. Além disso alguémescondeu a faca. Quando viu aquilo a mulher do Zé começou a chorar e disse que seupai e o pessoal da fazenda não tinham o direito de invadir a sua casa.“O Zé só estava dando tiros para alto, mas amanhã cedo ele vaiconsertar o telhado”, justificou. José, por sua vez não pareceu nem um pouco zangado. “Que é issomeu sogro, por que me amarrar assim? -É que você estava violento e a gente pensou que ia aconteceralguma coisa... -Que nada, eu estou tranquilo. -Mas se a gente soltar você agora... -Não tem perigo, eu vou jantar e fica tudo bem. O sogro pensou, perguntou de novo se estava tudo bem e resolveusoltar o homem. José levantou-se tranquilamente, foi até a cozinha, pegou um prato, tirou arroz da panela e quando o pessoal pensou estava tudo sob controle, ele saiu correndo foi até o quintal e pegou uma foice. Foi-se então a coragem de todo mundo. Foi gente correndo por todos os lados” Naquele momento, o Mineiro interrompeu seu narrativa. Ele jura quefoi verdade e que era uma das pessoas que tentavam dominar a fera e depois tiveram que usar as pernas... -Mas o que aconteceu depois, perguntou um dos frequentadores do bar. -Não esperei para saber. Como é que vocês acham que eu vim parar em Americana?

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A viagem da mula sem cabeça

Embora este “conto” tenha meu nome como autor, não posso dizerque é exclusivamente de minha autoria. Os fatos me foram contadospor um amigo, o Josivaldo, num bar, durante uma cervejada. Com asimplicidade de quem não teve muito contato com o mundo literário,ele falou: “Eu conto os fatos, que foram verídicos, você escreve, publicae depois, a gente divide os lucros”. Em seguida fez o relato do que vounarrar. João da Silva, aposentado de quase setenta anos tinha uma paixãona vida: o seu carro. Era um veículo de marca comum, um Corsa, masJoão zelava muito dele e o estimava, porque o carro nunca apresentavaproblemas mecânicos graves e assim ele gastava pouco com oficina.Mantinha-o sempre bem limpo, sem ferrugens e com pneus novos.Usava o veículo para pequenos passeios ou então para levar a mulherao médico, para suas consultas costumeiras, porque, ao contrário docarro, e devido à idade, ela sempre apresentava alguns problemas namáquina humana. Na maior parte do tempo, João mantinha o carro na garagem de suacasa, bem trancada com um cadeado. Por isso foi grande a suasurpresa, naquela manhã de outono, quando viu o cadeado estouradoe não encontrou o veículo no lugar de costume. “Roubaram o meu carro”, pensou e decidiu procurar a polícia. Fezum boletim de ocorrência, mas não botou muita fé de que o Corsaseria encontrado. Dois dias depois João recebeu um telefonema. Um desconhecido lhedisse que encontraria o carro a centenas de quilômetros de sua cidade.Em seguida lhe deu o endereço exato de onde estaria o Corsa e atéagradeceu cinicamente, pelo uso do veículo. Com raiva, mas ao mesmo tempo esperançoso, João pediu apoio a um filho que também tinha um carro e poderia dirigir até lá. O filho, por sua vez, mais precavido, lembrou-se que tinha um amigo

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investigador, que estava de férias. Por isso o convidou para a viagem, prometendo uma gratificação. Assim, os três viajaram juntos, aproveitando o “passeio” e paraencurtar a estória, encontraram o carro no lugar prometido. João ficou feliz ao ver o carro intacto e com as chaves no volante. Fezuma vistoria geral e notou que estava tudo em ordem. O policial foimais cauteloso, olhou pneus, lataria, por baixo do veículo, nas partesinternas das portas, no porta-malas e constatou que até os assentosestavam em ordem. -Vai ver, eles usaram o carro apenas para uma viagem – disse João -Podem ter usado para trazer drogas, para fazer algum assalto, oupara transportar alguém foragido – comentou o policial e acrescentou – provavelmente deu tudo certo para eles e abandonaramo carro sem arranhões ou buracos de bala. - E, apesar de tudo, devem ter bom coração – afirmou João, porque tiveram a atenção de informar onde estava o carro. Mas o policial ainda comentou: -É muito estranho, porque depois de roubar o carro anotaram seuendereço e encontraram seu telefone na lista. Muito estranho… O investigador ligou para a delegacia onde trabalhava e pediuinformações. Não havia nada sobre o carro, a não ser o fato de que tinha sido furtado. Para voltar, eles decidiram que João voltaria com o filho, enquanto opolicial dirigia o Corsa. A viagem transcorreu sem problemas.Finalmente, João colocou o seu carro na garagem e foi dormir feliz. A felicidade teve a duração de uma noite. Na manhã seguinte, eleteve novamente um choque ao notar que o carro tinha sido levado.Ficou desgostoso da vida. Quase chorou. Mas desta vez não teve queesperar muito. Naquela mesma manhã recebeu outro telefonema anônimo. Por isso chamou novamente seu filho e o investigador: - Disseram que o carro está aqui mesmo na cidade, ali na AvenidaBrasil, quase no centro – explicou João.

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Encontraram o carro no local indicado. Colada ao volante estava umanota de cem reais, com um bilhete dizendo: “Muito obrigado, desculpeo incômodo”. Desta vez eles notaram que um dos assentos do veículo estavarasgado e, no assoalho, havia um pó branco. E quem ficou branco e,depois, vermelho de raiva, foi o investigador: - Que droga, era droga mesmo ! Eu não usei a cabeça e fiz o papel de“mula”, a verdadeira mula sem cabeça! O carro tinha sido usado para trazer e não para levar a droga. E opolicial não se conformava de ter dirigido o veículo por centenas dequilômetros transportando cocaína. O Josivaldo, que me contou estes fatos, não recebeu um tostão até agora pelos direitos autorais. Se alguém quiser fazer uma doação...

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Pacientes

Observações de um porteiro de pronto-socorro

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Explicações

Depois de ficar mais de quatro horas esperando por uma consulta,deduzi porque as pessoas que procuram um médico são chamadas de"pacientes". Fui procurar no dicionário o significado de paciente esoube que vem de uma palavra latina, designando quem está sendocui-dado por um médico. Meu amigo brincalhão disse que "paciente"vem de "paciência", ou seja, "a ciência de trabalhar com a pá". Neste livro, trato de pacientes, mas de uma forma um tanto bemhumorada, para quebrar o clima de baixo astral das salas de espera. Naverdade, durante meu trabalho em um hospital, tive oportunidade depresenciar muitas coisas tristes e doloridas, mas havia também aquelesmomentos em que procurava desviar o pensamento, para ideiasalegres e divertidas. É por isso que mesmo preso a uma sala de espera, como ocorre comquem está ali como funcionário, ou aguardando uma consulta, océrebro é livre e às vezes vai muito longe. Assim estes escritos acabamficando mesclados de fatos reais e de lembranças, ou então deimaginação, já que muitas vezes pensava em descobrir o que aquelaspessoas falavam tanto, para rir em um momento em que estavam comgripe, com dengue, com uma infecção urinária, com a coluna travadaou até com uma cólica renal. É preciso ser muito paciente e ter muitobom humor para rir numa situação dessas. Acho até que devo imprimircópia deste trabalho para deixar lá na sala, como se fosse um livroperdido ou esquecido.

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Tinha um amigo, o poeta Antonio Zoppi, que dizia que o livro, porpior que seja, nunca deve ser jogado no lixo. "Quando a gente nãogosta do livro, é só deixar esquecido no banco do vagão de trem. Assimele vai longe e acaba caindo nas mãos de alguém". Ele falava isso notempo em que tinha trem de passageiros neste país... Agora a gentepode esquecer na sala de espera de um lugar qualquer. Ou publicarpara download gratuito, na internet. Para finalizar, tenho ainda a dizerque me diverti muito escrevendo estes textos.

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Raciocínio rápido

O porteiro do Pronto Socorro olhava preocupado para o grande nú-mero de pessoas acomodadas no salão de espera. Era momento detroca de turno dos médicos e, geralmente havia uma interrupção noatendimento. Como sempre fazia, ele ficava observando os pacientes.Notava quem havia chegado primeiro, quem estava com fisionomia demais sofrimento e até, se havia algum caso de antecipar oatendimento, como por exemplo uma pessoa desmaiando. Tinhaautorização por escrito para priorizar algum caso se julgassenecessário. Naquele dia, porém, tudo parecia normal, quando sua atenção foivoltada para um senhor de idade avançada que estava acompanhadode familiares. Ele tinha dificuldade para se sentar, mas quando o fazia,ficava inquieto. Olhava de um lado para outro e, repentinamente selevantava e tentava ir para algum lugar. Mas o filho, atento, seguravaem seu braço e com a outra mão batia no banco e dizia: -Senta aqui, pai. O idoso voltava a se sentar com dificuldade. Ficava quieto por poucossegundos, mas então se movimentava de novo e quando menos seesperava, estava em pé tentando ir sabe-se lá para onde. Vendo a situação, o porteiro se dirigiu ao consultório da dra Adria-na,que estava de plantão naquele dia e ainda nem tinha começado oexpediente e disse: -Doutora, me desculpe adiantá-la, mas tem um paciente, um senhorde idade, dando muito trabalho para a família. Ele não para quieto,

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parece criança e estou vendo a hora em que vai fugir. Posso pedir paraa família trazê-lo para a consulta? Então a médica deu um sorriso brincalhão e respondeu,perguntando: -Ele está virando criança? -É isso mesmo, doutora - confirmou E ela completou com um sorrisoainda mais zombeteiro: -Então manda ele para a pediatria... É óbvio que, com todo esse bom humor, ela o atendeu.

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Amor impaciente

O que será que aqueles dois rapazes, sentados lá no último banco dasala de espera do Pronto Socorro, conversavam tanto? O porteironunca soube o completo teor da conversa, mas alguns detalhes,contados através de outros pacientes, chegaram até ele. Um dos rapazes estava admirado, com a beleza da moça, que umamigo, o Mário estava namorando."Ela é linda! É demais! Parece atéuma modelo!" -Como será que ele a conseguiu? Deve ter sido uma declaração deamor sensacional - perguntou comentando o outro. -Foi o que eu perguntei e ele me contou: "Eu sabia que ela estava namorando o Ricardo e então cheguei pa-raela e falei que se ela se cansasse dele, eu estaria na fila esperando umaoportunidade. Então ela respondeu que a fila tinha andado e eu já erao primeiro". -Assim, na lata? - perguntei. "Foi assim mesmo, eu fiquei tão sem jeito que ainda comentei queela era muita areia para o meu caminhão, mas ela respondeu que eupoderia fazer várias viagens. É por isso que eu vou vê-la de manhã, detarde e à noite",

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Médicos milagreiros

Todos os dias, o movimento na sala de espera do pronto socorro ésemelhante. Pela manhã, umas poucas pessoas que chegaram à noiteainda estão por ali, aguardando resultados de exames. Mas logocomeçam a chegar os pacientes do dia e há um momento em que asala fica cheia. A espera pelas consultas fica mais longa, mas existe osistema de classificação de risco, ou seja, classificar a prioridade noatendimento. As gestantes, quem tem mais idade, pressão muito altaou muito baixa, febre alta, dores intensas, acabam "conseguindo"prioridade. Assim, quem chegou por último, se tiver a "sorte" de estarnuma situação mais grave, acaba sendo atendido primeiro. Nestas circunstâncias, é muito comum pessoas doentes chegarem aohospital, trazidas em veículos por parentes. Eles correm até a recepçãoe pedem uma cadeira de rodas. Muitas vezes o paciente estádesfalecido e precisa ser carregado na cadeira. Isso tudo já faz com queo atendimento seja agilizado. Mas existe ainda a sala da classificaçãode risco onde é aferida a pressão arterial. a febre e sinais vitais. Destaforma sabe-se com certeza a situação do paciente. Nos primeiros dias de trabalho, o porteiro se sentia abalado com asituação daquelas pessoas. Mas depois começou a perceber quealguns médicos, a exemplo de alguns religiosos, faziam milagres.Bastava o paciente ser levado até o consultório. Quando via o médico ealguém informava que a cadeira não passava pela porta, o pacientefazia um esforço, se levantava e sentava-se na cadeira do consultório.Depois da consulta, com a receita na mão ou o encaminhamento paraser medicado, acabava esquecendo-se da cadeira. Quando comentouisso com uma enfermeira, ela simplesmente deu uma piscada.

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O porteiro soube então que havia de fato doentes em estado maisgrave, mas alguns usam a cadeira de rodas como o famoso "jeitinhobrasileiro", só para chegar mais rápido ao médico.

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Genaro e o Fusquinha

Genaro regressou do hospital, onde foi fazer uma consulta, guardouo carro na garagem ( um Fusquinha produzido há mais de 40 anos) e,depois, com passos lentos, de quem está com mais de 80 primaveras,dirigiu-se pacientemente até a caixa do correio. Pela manhã, antes desair, viu quando o carteiro passou pela rua e parou em frente a suacasa. Dona Genoveva, que acompanhava sua chegada, viu quando eleapanhou uma carta e se encaminhou para o alpendre da casa, ondehavia uma cadeira de balanço e, com toda a paciência do mundo abriuenvelope e começou a ler a carta. Ela vira, de relance, que estavaescrito Departamento de Trânsito no envelope e por isso, perguntouapreensiva: -Alguma notícia ruim, Genaro? E ele respondeu vagarosamente:-Não, é até motivo de orgulho. Meu Fusquinha e eu fomos multadospor excesso de velocidade...

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Nomes incomuns

Não existem nomes estranhos, feios ou engraçados. Existem apenasnomes incomuns. Além disso, não é o nome que faz a pessoa e sim, ocontrário. Pensou nisso o porteiro ao ler o nome daquele paciente:Dionata. Como não havia acento ele leu como estava escrito, dandoênfase em "na", julgando que se tratava de alguém do sexo feminino.Foi bobeira sua, porque deveria ter lido a indicação de sexo. Quem selevantou e se aproximou dele foi um rapaz de cerca de 20 anos. -Me desculpe se pronunciei o nome errado - disse o porteiro. -Não tem importância, é esquisito mesmo - mas corrigiu dizendo queera "Diônata". Foi quando o porteiro José entendeu que a intenção dequem escolheu o nome era alguma coisa parecida com "Jonatan". José imaginou que sua sorte foi não ter chamado "Sra. Dionata". Na verdade não foi sorte e sim experiência. Lembrou-se que há algum tempo, um médico chamou "Dona Iris" e quem se aproximou foi um senhor. Depois houve o caso de um homem chamado "Celeste". "Nada de anormal - comentou um amigo - tem um político famoso que se chama Iris Rezende. Além disso, se tem o Vicente Celestino, porque não ter o Celeste?" Por isso, José não chamava mais ninguém por "dona", "sr." ou "sra." antes de ver a pessoa. Simplesmente usava o nome, mas mesmo assimcorria risco de pronunciar errado. Ou então via uma mulher, com nomede mulher, mas com cabelo curtíssimo, vestida como homem, calçandosapatão, abraçada a outra mulher e dizendo ser o acompanhante de sua esposa. Era mesmo para confundir sua cabeça muito tradicional. Voltando aos nomes, o mais exótico que o porteiro viu no paineleletrônico de chamada, (na verdade um sobrenome), foi justamente o"Esótico". Um dia surgiu o José Oliveira Vintecinco. E ele pegou a ficha 26.

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Outro dia apareceu "Sateles Sa Teles". O próprio paciente explicou queseu pai juntou os dois sobrenomes da família (Sa e Teles), para criar oseu nome muito original. Quando o porteiro comentou isso com umirmão, bem humorado, ele, o irmão, observou: "E você sabe que afamília Sá é a mais rica do país?". José respondeu que não e o irmãocontinuou: "Basta observar: Bradesco SA, Itaú SA, Souza Cruz SA…"

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Márcio, o piadista

Logo que começou a trabalhar no hospital, o porteiro fez amizadecom Márcio. Também era impossível não fazê-lo. Jovial e alegre,Márcio conversava com todos os colegas, sorria sempre e atendiapacientemente a todos, Com o tempo o porteiro descobriu que elestinham algo em comum. Ambos gostavam de uma boa piada, paraquebrar a rigidez do trabalho sempre voltado para doentes. E foi assim,que um dia, sem mais, nem menos, Márcio lhe perguntou: -Sabe a principal semelhança entre o hospital e um bar? O porteirorespondeu que não sabia e Márcio lhe respondeu -No hospital o homem toma soro de pinguinho em pinguinho, e, nobar não toma soro, mas vai de pinguinha em pinguinha... No dia seguinte, o Márcio veio com essa: O médico ia assinar uma receita, mas quando a puxou o objeto detrás da orelha, percebeu que na verdade era um termômetro retal. Elebalançou a cabeça e desabafou: - Nossa! Algum bundão ficou com a minha caneta... Na semana passada, a direção do hospital determinou que osconsultórios fossem restaurados. Assim o pintor João começou atrabalhar no consultório cinco. Foi aí que o Márcio chegou até ele ecomentou: -Do jeito que está indo, logo você vai estar pintando o sete.....

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The flash Um médico do Pronto Socorro atendia a todos os pacientes na maiorrapidez. O porteiro até gostava quando ele fazia plantão, porque "a filaandava". Não havia reclamações, não se acumulavam fichas depacientes na caixinha e por isso o chamava de "The Flash". Mas omédico, às vezes era exigente demais e chamava a atenção do porteiroquando pedia, pelo monitor, a entrada de um paciente e este nãochegava logo ao consultório. -Quando eu chamo um paciente, o sr. fica atento e chama também. Se ele não aparecer, o sr. manda outro para o meu consultório. O porteiro se ressentia da "puxada de orelha', que com o tempo se repetia pois nem todos os pacientes reagiam com rapidez à chamada. Alguns estavam lá nos bancos do fundo do salão. Uns, com febre e outros problemas, não ouviam direito e outros ainda, devido à idade, ou doenças caminhavam lentamente, Além disso, ele, o porteiro não estava ali para atender apenas àquele médico e sim a todos e tinha outras funções. como controlar o acesso das pessoas que passavam por aquela porta. Por curiosidade e desabafo perguntou ao enfermeiro Márcio, que era antigo no trabalho: -Por que o The Flash tem tanta pressa? -E que, além do valor fixo por plantão, ele ganha também porconsulta.. O porteiro até entendeu o ponto de vista do médico e a política do hospital de estimular o atendimento, mas comentou com o amigo que não era obrigado a dar atenção exclusiva àquele médico só para que ele ganhasse mais dinheiro. Então o Márcio observou: -Este médico é igual aquele da piada. -Qual piada? E o Marcio contou: "Um médico observou o exame do paciente e disse: — Sinto muito. O senhor só tem mais três meses de vida. — Não pode ser! É muito pouco tempo, eu nem vou conseguir pagar a consulta. — Bem, nesse caso, eu lhe dou mais três meses".

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Estragos do tempo

Naquela manhã, o porteiro olhava para os monitores, ondeapareciam os nomes dos pacientes chamados para a sala declassificação de risco ou para os consultórios, quando algo lhe pareceufamiliar. Olhou com mais atenção e as lembrança começaram a voltarem sua mente. Era um nome diferente. Na realidade ele só haviaconhecido uma pessoa chamada Teodolinda, uma antiga namorada."Será que era ela?" A mente do porteiro viajou. Ele se viu novamente com pouco mais de20 anos, quando frequentava clubes de dança nos finais de semana. Seviu com aquela garota, com quem iniciou um romance, que depoisacabou se desgastando com o tempo. O namoro não deu certo, masele nunca esqueceu aquele nome e aquela fisionomia. Era uma loirinhade olhos verdes, muito bonita. Teria conquistado seu coração, se nãofosse uma outra paixão da época. Por isso, o porteiro tentou ligar o nome à pessoa. Esperou a pacientese levantar, quando levou um choque. Não era possível que a garotatão bonita houvesse se transformado naquela mulher já um tantoidosa. Seria ela mesma? Haviam se passado mais de 40 anos e oporteiro começou a raciocinar. "Só pode ser ela, tem até aquelejeitinho torto em um lado da boca, mas o seu rosto, com rugas, alémda velhice natural, tem algo preocupante. É como se ela tivesse algumaamargura, algum rancor. Como se a vida não lhe tivesse sorrido. "Seráque ela se casou, será que tem filhos? O que será que transformou aTeodolinda em Teodofeia?", pensou com triste ironia. Ainda naquela manhã, o porteiro viu sua ex-namorada, sair acompanhada de um homem idoso. "Deve ser o marido dela", pensou.Mas também procurou ficar "invisível". Ele soubera quem era ela

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porque lera o nome e se lembrou da pessoa. Certamente ela não o teria reconhecido. Depois entrou em reflexão, sobre o estrago que o tempo faz para as pessoas. "Quando a gente vê os conhecidos constantemente, não percebe a diferença". Mas no seu trabalho teria que se acostumar a isso. A ex-namorada não seria o único caso. Vira inúmeras outras pessoas perdidas no tempo e que, repentinamente apareciam no hospital. "Todo mundo fica doente um dia", pensou. Há pouco tempo, revira uma professora de seu tempo de escola. Ela estava com quase 90 anos. Entretanto, apesar das rugas, mantinha-se bonita, com aquela postura de uma grande dama. E mais do que isso, era a única pessoa que ele vira lendo um livro na sala de espera. "Hoje em dia, todo mundo fica brincando com o celular", disse de si para si. Depois ainda resmungou com amargura:"Não gostei de ver a Teodolinda daquele jeito. Mas talvez ela tivessesentido a mesma coisa se me reconhecesse e aí ficaríamosempatados".

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Uma estória antiga

Quando viu aquele paciente aguardando para ser atendido o porteiroteve um sobressalto. "Tilão", foi o nome que veio em sua mente, "Masnão pode ser ele, está muito bem conservado apesar do tempo". E suamente ficou povoada por uma série de fatos, que tomou conhecimentoquando ainda era repórter de um pequeno jornal, na verdade umsemanário de cidade do interior. O porteiro se viu na redação do jornal, quando a professora lhetelefonou. Seu nome era Juliana e ele a conhecia porque, naquelaépoca, ela trabalhava na divisão municipal de Educação e Cultura.Juliana tinha um pedido a lhe fazer, mas primeiro explicou a estóriatoda. Contou que, recentemente fora vítima de ladrões. Alguém invadiusua casa, enquanto ela estava trabalhando e levou pequenos objetosde valor, como joias, relógios, gravador de som e outras coisas,inclusive fotos. Ela ficou triste e chateada, mas no dia seguinte teveuma grande surpresa. Ouviu a campainha e ao atender a porta avistoudois garotos. Eles carregavam os objetos que haviam sido furtados emsua casa e explicaram: -Fomos nós que entramos em sua casa e pegamos as coisas, masagora viemos devolver. A professora contou que, a princípio não acreditou no que ouvia, masdepois pediu uma explicação. Então os garotos contaram: "Quando entramos aqui, a gente não sabia de quem era a casa, masquando o Tilão soube o que fizemos, ele ficou muito bravo, dizendoque a gente havia feito o roubo na casa de sua ex-professora e mandoua gente devolver tudo". A professora explicou ao repórter, que o Tilão era um bom aluno,muito alto para sua idade, forte e esperto. Mas se envolvia com outros

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jovens ligados a drogas, pequenos furtos e chegou mesmo a lideraruma gang. Como era inteligente, nunca foi pego em flagrante. Portanto, o muito que podia acontecer era as pessoas falarem maldele. Mas não havia provas e era menor de idade. Juliana se contentou em receber os objetos de volta, agradeceu aosgarotos e ainda os aconselhou a não seguirem pelo mau caminho. Masdois dias depois, foi novamente surpreendida com o toque dacampainha, na porta de sua casa. Desta vez era o Tilão, que estava ali. Ele disse que precisava falar comela e a professora o recebeu. Tilão disse que estava enfrentando problemas com guardasmunicipais. "Não tenho nada contra a polícia, mas tem uns guardasbotando muita banca. Eles acham que mandam em tudo e meperseguem quando me vêm e eu tenho que fugir". Recentemente houvera um corre-corre na quermesse em uma praçada cidade. Durante a festa, guardas municipais viram Tilão,acompanhado de alguns garotos e tentaram se aproximar. Tilão, fortecomo um touro, investiu sobre eles, derrubou uns dois e conseguiufugir... "Agora eles estão chateados e estou preocupado que aprontemalguma coisa comigo. Disseram que logo vou fazer 18 anos e aí a coisavai ser diferente"- completou Tilão. Desta vez foi a professora que ficou preocupada e perguntou: -Ecomo eu posso ajudar? Então o jovem explicou que queria se entregar para a Polícia Civil,mas precisava de alguma garantia para na ser pego pelos guardas. Porisso, a professora procurou o jornal da cidade e contou todos os fatos.O repórter disse que se publicasse a versão do Tilão, os guardas não seatreveriam a fazer alguma coisa contra o jovem. Além disso estariapresente no momento em que ele se entregasse. E foi assim, que, na próxima edição saia a manchete: "Menordelinquente vai se entregar". Contava todos os fatos, sem citar nomedo menor e não dizia o dia em que isso ia ocorrer. No meio da semana,a professora ligou para o repórter e disse: "Vai ser hoje, às 16 horas".

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Na hora marcada estavam todos na Delegacia e, como haviaprometido, Tilão apareceu. Entrou e foi encaminhado aos policiais pelaprofessora. Um escrivão se prontificou a registrar os fatos, com aversão de Tilão, para que a documentação fosse encaminhada aoComissariado de Menores. Mas as coisas em uma delegacia de polícia nem sempre são rápidas. Há muita burocracia, muitas perguntas, muitas interrupções e Tilão começou a ficar incomodado. Não estava algemado porque não tinha sido preso em flagrante. Não se sabe se ele viu algum guarda, se suspeitou de alguma coisa, mas o fato é que em dado momento ele s e levantou e disse: "Estou de saco cheio". Depois, saiu pela porta dos fundos e desapareceu. "Menor foge da Delegacia", foi a notícia. E nunca mais foi visto e nem se falou dele. Só agora, ele próprio, ou uma pessoa semelhante, faziam o antigo repórter relembrar tudo....

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O médico zombeteiro

Osmar é o nome dele. Quando o conheceu, o porteiro não fazia ideiade seu temperamento, de sua maneira de ser. Numa manhã, quandochegou ao trabalho, lá estava o médico no corredor, preparando-separa ir embora. Havia trabalhado a noite toda e agora aproveitava osúltimos momentos de seu turno para conversar com uns e outros. "Então eu disse para ela - falou o médico ao enfermeiro chefe - vai láque tem sangue pra todo lado. O cara cortou a mão na serra e nóstivemos que costurar. Se você encontrar algum dedo caído no chãorecolhe e trás para mim". O porteiro deduziu que ele estava sereferindo à faxineira, ou à funcionária da equipe de apoio, como se falano hospital, e ficou pensando na reação da mulher. Logo em seguida, o médico se voltou para ele, o porteiro, e disse:"Tem um cara ai com dor no saco, pode chamar que eu vou atendê-lo".Em seguida entrou na sua sala. José ficou pensado em como chamaria o paciente. Não tinha seunome, sua senha. Teria que ler o histórico de todas as fichas. Ficouimaginando a sua própria cara se fosse até a sala de espera e dissessena frente de dez ou vinte pessoas, entre homens e mulheres: "O paciente que está com dor no saco pode entrar!". Neste momentoouviu as risadinhas atrás de si e compreendeu como era o dr. Osmar. Dias depois, o porteiro chegou ao trabalho e encontrou o médico.Para puxar assunto e ao mesmo tempo interessado em como seria oatendimento do dia, perguntou: -Quem vai substituí-lo, é o dr. Ivan? -Não, o dr. Ivan viajou. -Viajou? -Sim, ele foi para Cuba... -Cuba? -Sim, você não sabia? Ele é desses médicos importados de lá... Mas desta vez o porteiro já estava vacinado e replicou: -Dr., foi o senhor que atendeu aquele paciente vítima da briga com oeletricista?

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E o médico embarcou na brincadeira: -Não, mas o que aconteceu? -O eletricista pegou a chave de fenda e mandou ver na barriga dele. -Machucou muito? -Sim, desparafusou o umbigo e caiu o saco....

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O escolhido da Bárbara

"A beleza está nos olhos de quem vê", diz o ditado. E como era oporteiro quem olhava para Bárbara, ela, na opinião dele, era a enfer-meira mais bonita do hospital. Além dos olhos verdes, cabelos ruivospele macia e rosada, ela tinha uma alegria e simpatia contagiantes.Muito brincalhona, vivia sorrindo e dando atenção a todos. Até para oporteiro José, ela era muito atenciosa. Todos os dias o cumprimentavapela manhã com um largo sorriso. Se passassem alguns dias se se ver,ela lhe dava um abraço. E ele, lógico, ficava até emocionado. Um dia, Bárbara chegou até ele e disse que precisava de sua ajuda.Ele imaginou que seria para retirar algum acompanhante incômodo, doPS, mas não era isso e logo ela explicou: -Preciso de uma pessoa, para usar como "cobaia" para experiênciaem uma máquina do setor de radiografia e tomografia. Na verdade ésó para regular os movimentos da máquina. E porteiro, sem saber como dizer não, se prontificou a ir e saiuacompanhando a enfermeira até a sala onde estavam osequipamentos. Lá chegando, ela falou: -Agora o senhor se deita aqui, de ladinho e com a barriga deste la-do. Na cabeça do porteiro só se passava uma coisa. "Por que será que elame escolheu?", se perguntava. Mas estava orgulhoso em pode ajudarBárbara e achava mesmo que ela poderia sentir alguma coisa por ele.No meio de tantos funcionários, por que ela o teria escolhido? A enfermeira se dirigiu até outra sala ao lado, separada por um vi-drotransparente e conversou com o técnico. Depois voltou, encostou asalças do equipamento na barriga do porteiro e deu sinal para o técnicoque ligou o aparelho. A alça se movimentou e foi se ajustando à suabarriga. A operação se repetiu de outro lado. O técnico deu então umsinal e Bárbara falou:

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-Prontinho, o senhor foi um excelente manequim para a nossamáquina. Além disso já pode ter certeza de que não tem pedra nosrins. O porteiro estava todo vaidoso com tanta atenção, quando Bárbaraexplicou: -Para fazer o teste a gente precisava de uma mulher grávida, comuma barriga bem saliente, mas como não tinha nenhuma no momento,eu escolhi o senhor por causa dessa "barriguinha de cerveja".....

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Ela só precisa de uma desculpa

O clima no interior do pronto-socorro, naquela manhã era de tristeza.Nas primeiras horas da madrugada, morrera um jovem de 22 anos, quefora trazido por uma ambulância de resgate do Corpo de Bombeiros. Segundo comentavam os enfermeiros entre si e também o porteiroda noite, embora com fratura exposta em um dos membros, maisprecisamente em uma perna, o rapaz chegou consciente e contou quepilotava uma moto, quando foi "fechado" por um carro e bateu contrao muro de uma construção. O paciente foi socorrido, imobilizado e o médico de plantão cuida-vade sua perna, quando ele começou a passar mal. Foi levado então paraa sala de radiografia e tomografia e, posteriormente para o centrocirúrgico. Estava com hemorragia interna no peito e os médicostentaram uma intervenção cirúrgica. Mas foi inútil. Ele morreu antesque a hemorragia pudesse ser estancada. "A pancada contra o muro,havia arrebentado ele por dentro", segundo linguagem popular doporteiro da noite. Alguém chegou a comentar que se a intervenção cirúrgica tivessesido antes o rapaz poderia ser salvo. E o porteiro repetiu isso paraSalete, uma das enfermeiras veteranas no hospital. Mas ela comentouque nem sempre, por mais que queira, o médico pode salvar uma vida. -Há algum tempo - ela contou - uma rapaz chegou aqui no hospitalcom um ferimento na cabeça. Ele estava andando, conversandonormalmente, mas tinha um pano na cabeça, para estancar o sangue.Contou que estava andando em uma rua do centro, quando bateu coma cabeça em um toldo, desses que servem para proteger a porta doestabelecimento da chuva ou do sol".

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Ainda, segundo a enfermeira, o rapaz tinha um corte, logo acima doolho, mas do lado direito da cabeça. Sob a orientação do médico deplantão, os enfermeiros fizeram os procedimentos necessário paraestancar a hemorragia e chegaram da dar alguns pontos para a suturado ferimento. Logo depois, entretanto, o rapaz começou a passar mal efoi levado para a sala de tomografia. Lá mesmo teve convulsões e antesque os exames estivessem prontos, ele morreu. Salete disse que não houve descuido ou ineficiência médica."Acompanhei tudo e simplesmente não deu tempo. Ele morreu poruma simples batida na armação de ferro do toldo, enquantocaminhava pela calçada". Por fim ela ainda comentou: "O médico que estava socorrendo avítima, disse que a pancada no toldo era só uma desculpa que a mortequeria para levar o rapaz"

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Acompanhantes

Em sua experiência de alguns anos, como porteiro, José chegou àconclusão de que os acompanhantes dão mais trabalho do que ospacientes. Na maioria dos casos, os pacientes gemem, choram de dor,mas não ficam irritando ninguém. Já os acompanhantes, sofrem pelosseus amigos ou parentes e "botam a boca no mundo". Querematendimento rápido, emergencial, passar na frente dos outros, furandoa fila, tudo porque "é para a minha mãe que tem 70 anos". Eles têmrazão, mas muitas vezes a mãe, com a experiência dos anos, aguardapacientemente. E o porteiro se pergunta: "Será a mãe, ou o filho quetem pressa para se desincumbir dessa missão?" Outro dia, o porteiro estava em seu posto, na porta do pronto-socorro, quando uma senhora de meia idade, se encostou na parede, ao lado dele, dando a impressão que ia cair e reclamou que estava passando mal. O porteiro chamou imediatamente uma enfermeira, da sala de classificação de risco e a mulher foi atendida na frente dos outros. O porteiro se sentiu satisfeito e com a consciência tranquila. Dois dias depois, o fato se repetiu, com a mesma paciente. O porteiroachou que "se ela estava doente e não se curou, poderia estar passando mal novamente" e agiu para que ela fosse socorrida de imediato. Mas coçou a cabeça. Na terceira vez, que a mesma mulher chegou toda cambaleante até ele, o porteiro se perguntou: "Como ela consegue vir até o hospital e passa mal justo quando chega perto de mim? Será que eu tenho algo contagiante?" No hospital, há uma regra pela qual, no pronto-socorro, só podehaver acompanhante para menores, idosos e gestantes. Naquela tarde,uma mulher chegou-se a porteiro e suplicou: -O meu filhinho entrou para consulta e até agora não saiu. Deve estartomando soro, posso ficar com ele?" -Depende, senhora, que idade tem o seu filhinho?

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-43 anos... Mãe é mãe! Foi por isso que quando o médico perguntou se tinhafichas na caixinha, o Márcio respondeu: -É a mãe! -Como você diz isso para o médico - replicou a colega de trabalho. E ele respondeu: É que nem mãe, só tem uma... Aparecem também no hospital, pacientes que perdem a paciência. U m deles, sofreu uma fratura no ombro e teve o braço engessado. No dia seguinte voltou ao hospital, pois estava com muita dor no membro quebrado. Não podia movimentar o braço, mudar de posição e já tinhatomado analgésico sem resultado. Só restava aguardar o atendimento do ortopedista, para retirar o gesso, corrigir o estava errado e engessar de novo. Mas o ortopedista não tinha chegado. Aquele homem foi aguentando, aguentando, reclamando, mas uma hora não resistiu. Começou a soltar inúmeros palavrões e a dar murros na parede com a única mão que tinha mobilidade. Foi uma tremenda reação, que deu resultados. Enfermeiros correram até ele e acabaram encontrando a solução necessária para acalmá-lo. Outro paciente surpreendeu o porteiro por seu comportamento. Nãodizia uma palavra, mas enquanto esperava sua vez de ser atendido, colocava as duas mãos sobre o balcão e dobrava o corpo. Depois, passava a mão sobre o peito, como se estivesse fazendo massagem. Andava de um lado para outro, respirava fundo e depois massageava novamente o peito. Em seguida repetia tudo. Mas sempre sem dizer nada. O porteiro achou que ele estava muito mal, imaginando que podia ter um infarto e chamou a atenção da enfermeira, que nada via, porque estava no interior da sala de atendimento. Ela chamou o paciente para aferir sua pressão arterial, fez logo a classificação de risco, preenchendo a sua ficha, que, depois seria encaminhada ao médico. A ficha foi colocada na caixinha, para ser entregue ao pacientequando ele fosse chamado para a consulta.

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O porteiro leu então o que estava escrito na ficha. "Conta que fez usode cocaína ontem à noite; que hoje pela manhã ingeriu bebida alcoólica e que agora seu coração está a mil".

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O paciente do quarto 21

Paulo Sérgio, 18 anos, chegou desfalecido no hospital. Não tinhaferimentos graves, mas apresentava marcas circulares, avermelhadasde queimadura leve ou de alguma alergia nos pulsos e na testa. Eracomo se tivesse sido amarrado a uma cadeira ou se tivesse sidoimobilizado pelos braços e cabeça, com algum instrumento. Em umanoite de observação e tratamento no Pronto Socorro, ele se recuperou,mas não lembrava exatamente de tudo o que tinha acontecido. Diziaapenas que atravessava um terreno baldio, quando viu luzes intensas.Tudo o mais eram vultos que se moviam à sua volta e que odominaram até foi encontrado por amigos, no mesmo local. Oestranho é que ele ficou desaparecido por três dias. O porteiro ouviu comentários sobre o caso, mas ficou sabendo detodos os detalhes quando o fato vazou para a imprensa. Um repórterlocal conseguiu uma entrevista com Paulo Sérgio e tirou dele até maisdo que o rapaz sabia. Depois aproveitou que ele tinha o mesmo nomede um cantor consagrado na época e estampou a manchete: “PauloSérgio diz que foi raptado por um disco voador”. O repórter entrevistou também um médico do hospital sobre asmarcas no corpo da vítima. Na verdade o médico apenas disse que nãotinha certeza do que teria provocado as manchas, o que foi utilizadoapenas para aumentar as dúvidas e o suspense sobre o ocorrido, com ouso de palavras como “abdução” e outras muito conhecidas dosufólogos. Até ler a reportagem, o porteiro não sabia quem era o paciente doquatro 21. Mas depois, viu a foto do entrevistado e reconheceu o rapaz

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morador no seu bairro. Além disso, a reportagem repercutiu de talforma, que chegou ao hospital o representante de um canal detelevisão da Capital. Ele queria saber se o paciente do quarto 21concordaria em participar de um programa televisivo. Paulo Sérgioestava ficando famoso! O porteiro não ficou muito impressionado com tudo isso, porquesabia que o rapaz já havia desaparecido de casa outras vezes. Não seentendia bem com a mãe e de vez em quando dava um “tempo” forade casa... O rapaz recebeu alta e o porteiro não o viu mais. Depois de algunsdias, encontrou-se com ele no seu bairro e perguntou se ele tinha idopara a TV e como estava a história toda. -Acabou tudo em nada – disse o rapaz – porque a minha mão mepegou de jeito de meu deu um monte de chineladas nas costas de nabunda. Depois levantou a camisa e mostrou o corpo. O porteiro viu então“inexplicáveis” manchas vermelhas nas costas do rapaz, que nuncamais quis saber de abduções.

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O bicentenário do estetoscópio

Segundo deduziu o porteiro, estetoscópio, é aquele instrumento quemédicos e enfermeiros penduram no pescoço, principalmente paramostrar que são médicos e enfermeiros. Alguns andam para lá e paracá levando o instrumento como se fosse um troféu e não o tiram nempara almoçar no refeitório do hospital. Pode ser esquecimento e afinalde contas, quem é o porteiro para julgar? Dia desses, José perguntou para uma jovem enfermeira se ela sabiaquem era o inventor daquele instrumento tão útil. Não foi para testar asabedoria da jovem, mas sim porque ele, o porteiro não sabia nadasobre o assunto. Para sua alegria ela disse que foi o médico francêsRené Laennec. Com este ponto de partida, o porteiro foi pesquisar e verificou queno ano que vem (2016), o estetoscópio vai completar 200 anos de umaexistência que só fez o bem para a humanidade. A única vez que Joséviu o estetoscópio utilizado de forma indevida, foi no cinema, ondeladrões de banco o utilizam para escutar o barulho no interior de umcofre que está sendo arrombado. Com o nome derivado do grego (stéthos - peito e skopé - exame) elenão foi feito para ouvir os cliques no interior de um cofre. Laennec odesenvolveu em 1816, quando trabalhava no Hospital Neker, em Paris,para amplificar sons corporais como os dos coração e pulmões. Em seulivro De l'Auscultation Médiate, logo no prefácio, ele explica: "Em 1816, eu fui consultado por uma jovem mulher com sintomas deuma doença cardíaca, e nesse caso a percussão, bem como a aplica-ção da mão, eram de pouca serventia, em virtude do grande grau deadiposidade da paciente. O outro método chamado escuta direta erainadmissível, tendo em vista a idade e o sexo dela. De repente, melembrei de um simples e bem conhecido fato em acústica, a grandenitidez com que se ouve o arranhar de um pino em uma extremidadede uma peça de madeira ao aplicar o nosso ouvido no outro lado.

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Então, eu não só solicitei um laminado de papel em uma espécie decilindro, como também apliquei o final do mesmo na região do coraçãoe a outra extremidade no meu ouvido, e fiquei surpreso e satisfeito aodescobrir que eu podia, assim, perceber a ação do coração de umamaneira muito mais clara e distinta do que se eu alguma vez tivessesido capaz de fazer isso pela aplicação imediata do meu ouvido." Laennec ainda explica que a origem desta ideia ocorreu quando viualgumas crianças brincando perto do Louvre ouvindo as extremidadesde uma longa peça de madeira que transmitiu os sons do pinoarranhado. Com aquilo na cabeça, ele enrolou um pedaço de papel,amarrando-o com uma corda, e ouviu os seus corações enfermos comela. O médico também era carpinteiro e assim construiu uma peça de25 cm por 2,5 cm de cilindro oco de madeira que ele também usavapara ouvir os sons do peito dos pacientes. Ele depois modificou estecilindro em duas partes. Ele destacou os vários sons que ouviu e, emseguida, correlacionava com os dados anatômicos em suas autópsias.Em fevereiro de 1818, ele apresentou suas descobertas em umapalestra na Academie de Medecin, depois publicando suas descobertasem 1819. Antes de Laennec divulgar sua invenção, era costume os médicosouvirem o coração colocando o ouvido no peito dos pacientes. Com oestetoscópio, o médico francês evitava o constrangimento de colocar oouvido no seio de uma mulher. Além disso, o instrumento era maiseficaz no caso de pessoas obesas. Depois de ler sobre tudo isso, o porteiro passou a ter mais interessepelo instrumento que os médicos e enfermeiros carregavam nopescoço e utilizavam para escutar os sons internos dos pacientes, oucomo diz o nome, "olhar dentro do peito". No livro que escreveu sobre todas as suas descobertas a respeito docorpo humano, o médico afirmou ainda: ""Eu sei que arrisquei a minhavida, mas o livro que estou publicando será, espero, o suficiente paraser mais útil do que a vida de um homem." E foi um grande avançopara a medicina e para todos que precisam de médicos, enfermeiros ehospitais.

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Escritos do Zé Pirata

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O ladrões que caíram do galho

Zé Pirata viu no jornal que estudante foi assaltada por marginais quedesceram de uma ÁRVORE. Pois é, dinheiro que é bom não dá emárvore, mas ladrão já está BROTANDO... Não é à toa que dizem que para acabar com a violência é precisoatacar a RAIZ da questão... O pior é que tudo foi acabar no PLANTÃOpolicial. Segundo o delegado, a estudante terá que aguardar o FRUTOdas investigações. A estudante disse que os marginais pareciam adolescentes, mas odelegado achou que eles tinham alguma experiência. Para cair daárvore, daquele jeito, só podiam ser MADUROS... Árvore que dá maçã, é macieira; árvore que dá ladrão, é ladroeira. Ese os ladrões fossem gêmeos, seria uma árvore gemealógica. Há muitos anos, quando uma maçã caiu na cabeça do Isaac Newton,ele descobriu uma lei da física. Zé Pirata fica imaginando o que aquelehomem genial teria descoberto se caísse um ladrão na cabeça dele. Elepoderia definir, por exemplo a equação para esclarecer o angustiantequestionamento. No caso de cinco ladrões caírem de uma mesmaárvore, qual deles deve ficar com a carteira da vítima. Advogada amiga da Bibi disse que ladrões que caem de árvores,devem ser indiciados com base na lei da gravidade. É por essas eoutras que é preciso dar razão para aquele estudante super inteligente.Ele afirmou que não adianta dar atenção só para o meio ambiente. Épreciso cuidar do ambiente inteiro. Ladrões em árvores? A que pontochegaram os transgênicos... Planta que dá bandidos? Esta é averdadeira árvore do fruto proibido. Aliás essa árvore não dá frutos, dáfurtos...

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O telefonema

Alô, Pestana? Sei que deve haver muito barulho por aí e que vocêestá em meio a uma reunião, mas preciso checar uma informaçãosobre pedágios.... -Olha, não sei como está por aí, mas aqui não tem barulho algum eeu já estava quase dormindo. Além disso, eu detesto pedágios e paramim eles podem ser colocados na ponte que partiu... Afinal, nem seiporque você está me perguntando isso.. -É porque eu sou repórter e tive que sair um pouco antes de terminara reunião... -Ah sim, mas acontece que eu não fui a nenhuma reunião hoje... -Mas você não é o Pestana? -Não sou o Pestana e nem o sobrancelha. -Já sei, o Pestana está na reunião e você ficou com o celular dele.Será que poderia dar um recado? -Sinto muito. Uma vez tentaram me apelidar de SUPER, supercílio,mas não pegou. Até nisso eu sou pequeno e nem sou amigo doPestana. Acho que você simplesmente discou o número errado. -Mas minha colega me garantiu que este era o número do Pestana! -Pois então fala para a sua colega abrir o olho, corrigir a agenda, queeu vou fechar o meu e voltar a dormir. Preciso pregar uma pestanaantes que comecem a cobrar pedágio até para a gente passar para omundo dos sonhos. Já que você estragou a minha, desejo-lhe uma boanoite e que... sonhe com pedágios, radares, olhos mágicos, pequenos,grandes, pestanudos...

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O Balão de Italalé

Em 1955, o sábio Barão de Itararé, o Aporely para os íntimos(acreditem, o cara era gaúcho, cho, cho e muito besteirol para suaépoca), já estava seriamente preocupado (o humor é coisa séria) comesse negócio de língua presa. Na edição daquele ano do seuAlmanaque, ele publicava um artigo em que afirmava que há pessoasque têm dificuldades em pronunciar palavras, principalmente as quecomeçam com ”erre” . E já ensinava que o defeito era facilmentecorrigível pela prática de recitativos como este: Raivoso o rato roia O rabo do Rodovalho E a Rosa Rita Ramalho Do rato roer se ria Mas parece que o povão e nem aquela primeira professora do Lulaaprenderam a lição. Em 2003, o não tão sábio Zé Simão constatou epropagou que com o Lula no governo e o Palocci no comando daeconomia, o pais ingressou na era da língua “plesa”. Ai a gente fica imaginando como seriam os versinhos do Barão, nesta nova versão: Laivoso o lato loiaO labo do Lodovalho E a Losa Lita Lamalho Do Lato loer se lia. Outra frase muito famosa ficaria assim: “O lato loeu a loupa do lei deLoma” O mundo não para de girar e então o pessoal da publicidade resolveu“Experimentar”. Experimentaram tanto que descobriram que, quem tem a línguaplesa, na verdade fala “egado”. É só ver a propaganda daquele cara queexperimenta, experimenta e, por fim fala certinho: “EXPERIMENTA”Mas depois grita: “Caganba! Não estou fagando egado!” E novamenteo Zé Pirata fica imaginado como ficaria a famosa frase: “O gato goeu agoupa guei de Goma”. E os versos do Barão? Como ficam?

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Gaivoso do gato goia O gabo do Godobalho E a Gosa Guisa Gamalho Do Gato goer se guia... E toca o barco, mas não peça carona!

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Nomes de bares inspiram o Zé

A revista "1895 by Reebock" publicou em uma de suas edições, umalista com nomes de bares mais debochados e irreverentes do Brasil. Háo "Bar chove lá fora,. Aqui dentro só pinga", Outro é o Bar Merindus.Foi aberto em Uberlândia, (MG) em frente ao banco Bamerindus. Obanco não gostou, e batalhou para a mudança de nome. O donomudou para " O Banco Levou". Em Niterói, no Rio de Janeiro, havia o "Mastur Bar", que fechounosanos 80. Outro que fechou foi o "Fiofó", de São Paulo (SP). Eradifícil para o cliente explicar onde foi tomar uma... A revista publica ainda outros nomes como "Estragalar,","Barfômetro", "De frente para o Futuro" (Ficava em frente a umcemitério) , "Bar Guilha" e "Bar Bicha". Mas há também a "Lanchoneteda Maria Furadinha". Localizada na Vila de Santa Rita ( AL), recebeueste nome porque a dona recebeu 17 facadas de um namoradociumento e sobreviveu para abrir o negócio... Outro Bar, em Feira deSantana (BA), é o "Onça que ri" e fica em frente a um concorrente, "OTigre que chora". Zé Pirata também conhece alguns nomes muito originais,imaginativos, ou então pirateados. E não é só com relação a bares. EmAmericana, por exemplo, em frente ao parque gráfico do jornal"Tododia", há um lavajato chamado "Todahora". Este amigo do ócio atépensou em lançar o "Todanoite", mas se não é amigo de trabalhar dedia, imagine à noite... Em Pedreira, Zé Pirata conheceu o "Novo Bar do Véio". O Véio, emquestão, vendeu o seu bar antigo e depois, arrependido, abriu umnovo bar dois quarteirões adiante. Daí o nome bem justificado. Em Americana, o "Bar do Brecha", foi famoso e funcionou durante muitos anos. A Maria Pirata, um dia se enganou e perguntou ao proprietário se ele não ficava bravo que chamassem o local de "Bar do Brocha". O Brecha, segundo dizem, era jogador de futebol e tinha esse

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apelido, porque sempre encontrava uma brecha, para driblar o adversário e tocar a bola pra frente.. Há ainda muitos outro nomes que o imaginário popular vai consagrando. Há o "Bartira", que tira tudo o que o cara ganha durante o mês. Neste caso, Zé Pirata sugere o "Barganha", onde, pelo menos, pode se barganhar e não deixar que o bar ganhe tudo. Outra sugestão seria o "Barbeiro", onde você toma uma cerveja, enquanto o barmam/barbeiro, faz barba e cabelo. Não é superlegal? Seguindo a mesma linha, do pente, da régua, ou do raciocínio, vem o"Barbosa", ou seja, o Barbeiro, onde, enquanto você espera na fila paracortar o cabelo, toma uma cerveja, mas depois, tem a vantagem daaplicação da babosa., para fortalecer os seus cabelos. Desta vez a equipe do Zé Pirata se superou. Descobriu o Barômetro. Éo bar da loira, que tem um aparelhinho para medir quantos homensela consegue reunir no seu bar por metro quadrado. E já que o assunto é bar, Zé Pirata, doido por estes estabelecimentos,jura que, se morasse e em Santa Bárbara, abriria o "Barbaridade". Entretanto, partindo para "a conversa vai, conversa vem", lembra afrase do amigo Sanguinata: "Cerveja sem álcool, é como ir no baile edançar com a irmã". Já o Quebrinha, que está ausente, diz que "Emtempos de pinga não chupo manga". E o Zé Pirata finaliza: "É o arcoque me deixa arto".Mas o barmam chateado responde a quem pedemeia dose: "Não lavo meio copo e você não tem meia boca" A seguirvem a história do cara disse: "Me dá uma saideira que eu já vousubindo". E o barmam completou. "É legal, assim você sobe maisalto"..... Se engana quem pensa que acabou. A história, se é que existealguma, não termina aí. O mundo só vai pra frente porque continuagirando. Se parasse de repente, todos iam quebrar o nariz, o copinhode cerveja, ou de pinga. E se o cara estivesse bebendo na rua, teriauma casa muito engraçada, que não tinha rede, não tinha pinga, nemlimonada. Mas se era um casa muito engaçada, só para rimar, seria oBar da Marmelada.

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Para quem achou este artigo fenomenal, Zé Pirata adverte. Não seiluda sobre a arte de escrever. Um grande profissional das letras diziaque para escrever alguma coisa bela, ou de grande conteúdo, é precisoxis por cento de trabalho e ypisilom por cento de inspiração, ou maisou menos isso. Zé Pirata usou 50 por cento de esforço para decidir se ia fazer algumacoisa. Depois, gastou 20 por cento de transpiração. Saiu de casa e foiaté o Bar do Zito para emprestar uma revista e piratear alguns nomesde bares. A seguir, bebeu o mês inteiro, para conseguir a inspiração einventar alguma coisa. Enquanto bebia, conversava com os amigos, queiam ajudando com nomes como Bar do Copo Sujo, de Piracicaba, quenão suja o copo, mas ao contrário, o congela com sal e limão nasbordas, para a cerveja ficar "trincando" e mais saborosa. O outro disseque em Santa Bárbara tem o Bar-Ba-Ra e que em Americana tem outinha do Bar do Espingarda. E tem também o bar do Ferramenta. Émole ou quer mais? O Júnior que se cuide. E quem achou a ilustraçãodo Zé Pirata, meio meiga., que vá tomar uma no Barbicha, ou naquelebarzinho lá de São Paulo, o Fio.... o que mesmo?

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Assistência aos mortos

Começou a campanha política e agora surgem jornais gratuitos detodos os lados. Logo aparecerão as promessas. Tem candidato quepromete de tudo. Pior ainda, tem alguns, que vencem a eleição edepois apresentam projetos de matar o bom senso!. No ano de 2002,um famoso vereador de Americana, apresentou na Câmara, (lógico quesó podia ser lá), um projeto de lei, que teve, inclusive, edital publicadono jornal oficial, o qual dizia textualmente, que "o objetivo é prestaratendimento psicológico, jurídico e social às vítimas de homicídios elatrocínios e aos seus familiares". Foi aí que o Zé Pirata, este intrépidohomem das letras, descambou a delirar. Prestar assistência aosfamiliares, tudo bem, mas às vítimas de homicídio? Como seria oatendimento psicológico às pessoas mortas durante o assalto?

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Do psicólogo ao assassinado: "Tá certo que foi uma experiênciatraumatizante, mas veja o lado positivo. Agora você pode ter a certezade que isso nunca mais vai acontecer com você"

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Colaborador sugeriu que a Prefeitura nem precisa fazer concursopara psicólogo. Basta contratar o Bruce Willys, do "Sexto Sentido".---x---

Frase caprichada da semana atribuída àquele menino do "SexoSentido" e ao vereador de Americana que apresentou o projeto: "Euvejo gente morta!".

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Obviamente que aquela sessão para deliberação do projeto paraatendimento social e psicológico aos mortos não seria uma solenidadecomum. No mínimo seria uma sessão espírita...

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Dá até para ficar imaginando a sessão à luz de vela. Parece até sessãodo apagão. E os vereadores todos sentados com aquela ar de gravidadenos semblantes. Há até aquele que não precisa se esforçar muito,porque normalmente já fica com cara de morto mesmo, he, he, he....

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Psicólogo que for contratado pela prefeitura pode até oferecerdesconto. Com a vítima deitada no caixão, de paletó e gravata, lá novelório, e as pessoas desabafando tudo, ele nem vai precisar deconsultório, ou do famoso divã....---x---

Assistência jurídica e psicológica aos mortos? Como diria aquelacolunista da Folha, este é o País da Piada Pronta. E o Zé Piratacompleta: esta veio embalada para exportação: Até para o Além...

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Advogado de porta de cadeia, a gente já conhecia. Agora vai teradvogado de porta de velório! (Como se não existisse)..

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Aí o morto chega para o advogado mais caro da cidade, na porta docemitério e diz:

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-Eu sei que o senhor é um advogado caro, mas agora que tenho umsubsídio de R$ 1 mil aprovado pela Câmara, posso lhe fazer umapergunta? -Claro, qual é a segunda?

---x--- Assim que soube do projeto de apoio aos mortos, a equipe depesquisa do Zé Pirata, a PP (Pirataria Pura), procurou dar suacolaboração para as vítimas. Para isso, nada como frases bonitas eapropriadas para as lápides. Mas como cada caso é um caso, aqui vaitudo separadinho do jeito que encontramos na internet:

Espiritualista: Volto já. Alcoólatra: Enfim sóbrioCartunista: Partiu sem deixar traços!!!Delegado: Ta olhando o que? Circulando, circulando Ecologista: Fui extinto.Funcionário público: Veja no túmulo ao lado Garanhão: Rígido como sempre Hipocondríaco: Eu não disse que estava doente? Humorista: Isso não tem a menor graça Jangadeiro diabético: Foi doce morrer no marJudeu: O que vocês estão fazendo aqui. Quem está tomando conta dalojinha? Ninfomaníaca: Uau, esses verme vão me comer todinha!Agrônomo: Favor regar solo com Nevugon (Evita vermes) Pessimista:Aposto que está fazendo o maior frio no inferno!Psicanalista: A Eternidade não passa de um complexo de superioridademal resolvido Sanitarista: Sujou!Sex Simbol: Agora só a terra vai comer Viciado: Enfim, pó!!!

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Frases do Zé Pirata

Durante alguns anos escrevi coluna para um jornal, com opseudônimo de Zé Pirata. Aqui vai uma coleção de frases publicadas:

Mais vale um pássaro na mão do que dois voando no céu da boca...

Em terra de cego quem tem um olho é

É o “arco” que me deixa “arto”.

Ele não moveu uma palha para ajudá-la e depois justificou que ocolchão era de espuma...

Aí o canibal chegou no banquete e pediu: “Me dá um pé-de-moleque”

Radar é aquela maquinha de multar, que a prefeitura coloca ondemenos se espera.

Na vida tudo passa, menos o ferro elétrico com a resistênciaqueimada...

Quando os presos fogem, a cadeia fica vazia. Vira prisão de vento!

”Escrever para mim é como respirar”, dizia a escritora, quando orepórter a interrompeu: -

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Um instante, por favor, acho que a minha caneta está com falta de ar...

Quanto tiveres uma ideia súbita, guarda-a para não ser uma ideiasubtraída. Quem ri por ultimo não tem desconto. Mesmo que esteja noteatro, paga inteira.

Diretor do DAE mordeu orelha de contribuinte e prefeito fez ouvidosde mercador.

Depois que viu uma propaganda de combate a AIDs aconselhando adiminuir parceiros, aBibi arrumou um namorado bem baixinho...

Devagar se vai ao longe, desde que você não esteja andando aocontrário em uma escada rolante.

As 99 maneiras de acabar com o stress. Só de pensar em ler todas elas,o Zé Pirata ficou estressado.

Zé Pirata avisa: Esta página é melhor visualizada se for lida com osolhos bem abertos.

Estórias aleatórias na palma da mão Jorge de Palma70

Internet na agência do Correio é um Correio sem selo, mas não sem sê-lo.

Perder o jogo de cabeça erguida não é um grande privilégio. Qualquerenforcado morre assim.

Mais vale um vale no dia 20 do que uma cobrança neste vale delágrimas.

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Mais vale uma bengala na mão de um cego do que um pão bengala namão do homem de barriga cheia.

Duas cabeças na guilhotina pensam menos do que uma.

A mania de limpeza era tanto, que o frango cheirava a pinho.

Se uns podem fazer uma obra prima, porque outros não podem fazeruma obra tia?

Do jeito que as coisas vão, logo, logo o sujeito vai pagar pedágio atépela Internet. É o

pedágio sem sair de casa...

Deu no jornal: Cai o movimento nos cemitérios. Provavelmente osmortos estão mais tranquilos.

Edição de dicionário vai incorporar mais 60 mil verbetes. Não temospalavras para expressar nossa admiração

Em terra de pimpolho, quem mata um piolho, mesmo que só tenha umolho, não deixa de ser zarolho.

Frase jornalística: Quem confere o furo é porque foi furado?

Mario Quintana dizia que os livros mudam as pessoas. Zé Piratatambém acha. Alguns estão tão caros que deixam elas mais pobres.

Já tem clonagem de animais, de telefones, de carros, de cartões decrédito. Será que ninguém vai inventar um clone de pagador dedívidas?

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Mulheres bonitas na exposição. Os marmanjos não sabiam seapreciavam as obras das artistas plásticas ou a plástica das artistas.

Filosofando: Sapo que é sapo sabe entrar e sabe sair porque, comodizia o Galileu Galisteu, o mundo é uma bola e jacaré nada de costas.

Pão não engorda, carne gordurosa não engorda, macarrão nãoengorda, doces não engordam. Quem engorda é quem come tudo isso,principalmente ser for num dia só.

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Os amigos do colunista

Allan Brado Passos Dias Aguiar Allan BiqueKlauss TrofobiaCaio Rolando Montes Pastor NadoAquino Rego da Costa Jaime LianteOsmar GinalSérgio Mento Amadeu K.LoteAdriano Gento Alice Gonha Alcides TruidoAgostinho A.Margo Vitor TuraEva DiaFelipe RaltHugo ZadoLucas TigoArmando Treta Beatriz Teza José D. Mente Zeca Libre Stam Paria Alcides Tino Lucimar LirioRegina Tural Pascoal Cólico Angélica Tuaba Juca Tólico

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Omar Telo Julia Cafe Tina Joca Fetão Tomaz Oquista Xuxa Rope Telma LucaJuliana DegasMickail PintoH.RomeuEder TergenteOrestes TículosOto MateOdete StavelClemente CaptoMartim BecilEvandro GadoFarid OtaSamuel NucoSerafim DemundoOlivia DutoHamilton TiceDarci GarrroOlivio LentoProfessor VeteOsmar IoneteInspetor MentoPastor TuosoJenifer MentoChico BradoJoão D. Lirio

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Procurando um antigo amor

José acordou no meio da noite com um pensamento na cabeça. Sópodia ser na cabeça, onde mais estaria o seu pensamento? Era o queele pensava. Mas o desenrolar dos fatos lhe mostraria que nestemundão de Deus "existe muito mais mistérios entre o céu e a terra doque sonha a vã filosofia". De qualquer forma, ele acordou com o desejo de rever um antigo amor: Joana. Fazia muito tempo que não a via aquela bela mulher e naquela noite, pensou em encontrá-la, sem saber muito bem porque. Gostaria de verificar como ela estava, como estavam outros amigos da época em que namoravam. Mas como encontrá-la se não tinha mais um número de telefone ou um endereço? Foi então que viu seunotebook ligado e se lembrou das redes sociais. "Se tenho nome esobrenome, basta digitar e procurar", pensou. "Se ela tiver umapágina, vou encontrá-la, pode até haver homônimos, mas a foto, pormais que o tempo tenha passado, eu vou reconhecer", raciocinou. Esperançoso, José entrou na rede, digitou nome, sobrenome e clicouem "buscar". Apareceu uma infinidade de "Joanas", mas ele tinhatempo e foi vendo as fotos uma por uma até que reconheceu seuantigo amor. Clicou em "mensagem" e por incrível que pareça, houveuma resposta rápida e iniciou-se o bate-papo. -E aí, Joana, lembra-se de mim? -Claro que me lembro, ainda ontem citaram o seu nome por aqui. -E como você está? -A gente vai tocando SEMPRE... -Você se casou? -Casei-me e o meu marido morreu... -Lamento saber disso, e desculpe a minha falta de atenção. Como vaisua família?.

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-Meus pais também morreram... José começou achar o assunto muito fúnebre e resolveu mudar umpouco o tema da conversa, para uma coisa mais animada. -Lembra quando a gente se encontrava na pracinha da Igreja. Pareceque foi ontem.. Joana respondeu laconicamente: "Parece" Mas ele sabia que tinha sido há muito tempo e o tempo é cruel. Muita coisa tinha acontecido. Muita gente tinha morrido, comoinsistia em lembrar Joana.. -Então e a sua amiga Marli, como vai? -Morreu. -Morreu também? Mas você parece aquele personagem de humor,que só peguntava: "Voce conhece o Fulano ?" E já em seguidarespondia: "Então, mó...rreu". Joana perdeu a paciência e foi direta: Meu pai morreu, minha mãemorreu, meu marido morreu, eu morri e você também, morreu..." -Eu morri para você, é isso? -Não, você morreu de verdade, no início da noite passada, só queainda não sabe, você está usando o FACE FAN, Face Fantasma, seuidiota!

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Como surgiu o Zé Pirata

Apesar de ter feito algumas entrevistas com o Zé Pirata a ponto deter subsídios para me atrever a falar sobre ele, devo esclarecer, logo deinício, que nunca descobria sua verdadeira identidade. Além do famosotapa olho,ele sempre se apresentou usando uma máscara da Tiazinha eum véu da Feiticeira, tornando-se completamente irreconhecível.Muito embora, sem uma personalidade física palpável, sem ter uma“cara” ele sempre demonstrou uma grande personalidade , um grandecaráter (com trocadilho, seria ter cara). De qualquer modo, ou de ummodo único, Zé Pirata continua mais anônimo, que o catador delatinhas da esquina. Conheci Zé Pirata em sua cidade natal, cujo verdadeiro nome elenunca revelou, mas que sempre chamou de Modelópolis. Isto porque oprefeito Cláudio Consciência do Povo insistia em dizer quetransformaria a sua cidade em um modelo. Uns dizem dizem que eletransformou o município numa cidade pacata, com infraestrutura,escolas e muito paternalismo. Já a oposição fala que a cidade diminuiutanto, sem indústrias, sem poluição, sem população e ficou tãomagrinha que parece a Gisele Bundchem, um verdadeiro modelo...Masuma coisa é verdade. A cidade era tão pacata que não tinha notícia.Um dia, o jornalista da cidade foi entrevistado por uma rede detelevisão sobre como era fazer um jornal onde não tinha notíciapolicial e a cadeia estava sendo desativada por falta de preso. “A gentebrinca, conta piadas “, disse e ele. Morador da cidade, Zé Pirata ficouprofundamente matutando naquilo. Numa de suas raras entrevistas, o modesto Zé Pirata contou que , nofundo, no fundo, sem nenhuma alusão a cuecas ou calcinhas, suagrande preocupação sempre foi manter a autenticidade. No falsomundo em que vivemos, a pirataria, apesar de toda a luta do generaisque batalhavam contra os piratas de alto mar, acabou segeneralizando.

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Zé Pirata comenta que quando se lê uma frase, vem logo as aspas e onome do autor. Quando se lê um livro, lá está o famoso nome doescritor. Quando se canta uma música tem o abençoado nome docompositor. Quando alguém apresenta uma indicação de colocarlombada na rua tal, lá está o famigerado nome, com a abençoada sigla,do vereador...MAS, E QUANDO SE CONTA UMA PIADA? Todo mundosabe o nome do cara que contou. É o Cisco Anísio, é o Ari Dolado, é ofulano da “Praça É Vossa”. Mas, quem é o autor da piada? Issoninguém sabe. Quem já foi processado por ter cometido plágio comuma piada? E de onde surgem as piadas? Isto levou aquele angustiadohomem dos mares nunca dantes navegados a uma profunda reflexão:“Se eu não sei de onde vem, como posso contar uma piada, usando aminha própria identidade? Como posso ser eu, se falo aquilo que nãocriei ou criei aquilo que ninguém falou? Se penso, logo existo, mas sefalo, sem pensar e não desisto, onde poderei chegar, se o meu carroestá sem gasolina e com tantos pedágios? Se a necessidade é mãe,quem é o pai? E foi assim, neste bug psicológico, que nasceu o homemmascarado com o famoso tapa-olho.. É um pássaro? É um avião? Porque um tapa-olho? Olha, está na cara! Quem não gostaria de ser umgrande escritor como o Camões? Apesar de escrever com as mãos, enão dar as “mões”, como disse um locutor de Paulínia, ele usava umtapa-olho. E quem pirateia coisas dos outros, o que é? Umgrandessíssimo pirata. E foi assim que este angustiado homem deimprensa decidiu optar pelo máximo da autenticidade e incorporou apersonagem. Ao contrário de outros que se acham o máximo por aí elepensou. “Se sou Zé Pirata, se pirateio, ninguém, poderá me acusar defalsidade ideológica, ou de exercício ilegal da profissão...” E foi assim, com esse raciocínio ratológico, que ele começoupirateando piadas e frase dos outros. Mas depois criou um estilopróprio, que não deixava de ser um estilo de próprio de afanar aspiadas. Muito raramente, Zé Pirata conseguia achar a luz no fim dotúnel e fazer uma única e exclusiva frase. Um dia, depois de beber tudoo quanto era possível, abortou a frase, que tornou uma de suascaracterísticas: “ É o arco que me deixa arto” Era o máximo do mínimo:

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“É minha, fui eu que criei!”. Ele conta que riu sozinho, durante trêsdias, até que obra a prima foi publicada no jornal e ganhou a Internet,se propagando nos sites besteiróis do mundo todo. Mas lentamente,ele foi criando gosto pela coisa, até que descobriu a máxima dasmáximas: Na verdade, na verdade, como dizia o tal do Eclesiastes, nãoexiste nada de novo embaixo do sol, mas o Zé Pirata pergunta: E emcima? E foi por isso que começou a questionar tudo, muito emborasem ter nenhum profundo conhecimento filosófico. Sem terconsciência do que estava fazendo, basicamente, Zé Pirata estava atrásda pedra filosofal. Quem são os autores das piadas? Como elesconseguem produzi-las? Se eu tivesse uma maquininha de fazer piadasnão poderia ficar milionário? Será que nas suas horas de angústiadiante de uma máquina de escrever o Carlos Manoel da Não Brega jánão pensou nisso? E foi assim que Zé Pirata iniciou a suaperegrinação... Ler e estudar. Um dia, quando escreveu algumas coisas,no jornalzinho de Modelópolis, e alguém correu para perguntar comoele tinha feito aquilo, respondeu com toda a humildade: “Não sei, écomo se um espírito tivesse baixo em mim e então surge”. Depois,diante da insistência, em saber, qual espírito, ele retrucou: “Deve ser oespírito de porco....”-

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Poesias

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Encruzilhada do mundo

O norte sempre foi meu rumoE amei demais uma mulherAté que a vida mudouSurgiu a dúvida, o desejoE amei mulheres demaisPisando em mais canoasAfundei na curva do rioDescontrolado,Trombei na esquina da vidaE perdi o meu amorO próprio,Na encruzilhada do mundo

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E os anjos morreram

No princípio eram as crianças E as crianças eram anjos Depois veio aescolaE o mundo multiplicou: Tarzam pulou dos livros MarcoPolo viajou Cabral descobriu o Brasil E as crianças, o mundo; Super homem, o UniversoEntão o computador falou: "Deus criou osátomos dizendo: Combinai e multiplicai.Adão era um macacoJesus Cristo um astronauta" E a história do anjo-da-guarda Virou conto de fadas.

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Os malditosVereis a taça e a fumaçaE nada maisAté que da taça estraçalhadaE do maço findo amassadoTranspareçaDa maldição, o que restou.Ele pode serUm Vam Gogh com orelhasOu um Lautrec pernas longasMas não sentireis a sua angústiaNem vereis a igual profundidadeDos sentimentos avançadosNem também sereis culpadosDa maldição que o acompanhaE o deixareis à margem do caminhoE chorareis sua morte aos trinta e dois.Depois comer-lhe-eis os miolosE dareis seu nome às ruasPara orgulho do prefeitoPublicareis livros e mais livrosPara o bolso do editorE alguém levará floresNum local estatuadoJá não vereis taça, nem fumaçaMas sim nuvens lendárias.

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Brincado de trás pra frente

Vinho jaJohn IV ÉReviver Roma o amor reviver Aroma e de pé de amoraVinho ja John IV

Poesia aiseopO vovoSartel ama letras Adora a roda Brinca : acnirbaiseop zaf, faz poesia

Ficou...Ficou o doce sabor dos beijosQue agora vaiSe arrastando com o tempoFicou a sua imagem metafísicaO seu modo desligadoO seu trejeito engraçadoFicou poucoFicou muitoMuito pouco de você.

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A importância do meio

Se olho para o fimTudo me parece inútilMas é preciso ressaltarA importância do meio

Deixemos o princípioPara os filósofosE historiadoresE o fim para os computadoresQue ontem não voltaráO depois será amanhãE não se sabe se haverá

É bom girar o calidoscópio dos poemas multicores pois também as flores têm vida curtaE não deixam de florir

Épreciso brincarCom a criança de hojeQue amanhã será adultoE não se sabe o que será

É preciso vida vidaNo prazer, no fazer, no querer Já que Andrômeda viráE bem sabemos que ela é a amante eterna, Inimiga que aconchega no leitocobertoDe sete palmos

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Fábula ModernaUm homem fala de sua angústia e do seu mundo pessimistaO gravador escuta com atenção É um bom ouvinte o gravador, grava a dorO homem aperta um botãoo gravador falaFala bem o gravador,agrava a dorClic - E o homemo interrompe porque descobre que exagerou.

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ConselhoSe na erma noite andares sóSem nada para ocupar o espíritoSem amante para acariciarSem vontade de beberSe sentires invejaAo tropeçar no carinho alheioSe perceberes que até um diálogoConsigo mesmo é chato e inútilSe não tiveres nada para fazerNem mesmo um defunto para velarManda tudo às favas e vai dormir...

ErranteVirá num por de solDe um céu qualquerQuando quiserPousará seu corpo erranteSem roupas e diamantesNum leito uma noite sóSeguirá na manhã próximaSeu rumo diário-contrárioMas na magia palpitanteProvará que é a deusa amanteDe um leito uma noite sóFicará num coraçãoNuma canção, talvez...

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Garota da praia

Garota que do bronze roubou a corQue rola na areia seu corpo de muitosE vive na rua sob o luarVocê endeusa o noturno e o veloz metalMas não pense que tudo é seuVocê rouba da praiaOs beijos do marVocê vende o prazerA quem pode pagarE imita o sorrisoDo sol matinalQuando falam de amorMas é ponto final

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IndoLongo é o caminhoDe quem caminha sóA estrada se prolongaE o fimDo infinitoSe aproxima

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PensamentoHoje não há mais Aquele mundo escondido Nos canaviaisE a virgem dos lábios de mel tirouo véu da ingenuidadeOntem, quando volteiDescobri a necrópole dos meus sonhos Hoje não há mais o recantoOnde conheciAfrodite e outras deusasE os dois mundos de Demiam marcaram-se com nitidez. Feliz aniversárioFeliz aniversário?É tudo muito ao contrário quanto mais se vai em frente mais se fica deprimente!E a vida, que coisa linda

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cada vez fica mais finda

Só hoje morri cinco vezes

Tem gente tonta, ou nem tanto que achaque o que presencia vale um livro , ou umcantoO outro descreve um momento sofrido, magoado,perdido ou destrambelhado!.

Ontem, em plena fobia, vi o Estado acuadotodo mundo desesperadose escondendo, na anarquia.

PCC condenado isso simfez de conta que não era assim assustou todo mundo enfim usando plim por plim

Foi tanta a correria e o medoque o que mais se usou foi o dedo, todo mundo desesperado apertando um pontinho molhado do suor descontroladoà procura do celular, insistindo paraligar!

As portas se via aos poucos a fechar, a fechar e a fecharnão foi homenagem nem honra aos soldados valentes traídos a tombar!

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Foi medo, muito cedo! Antes da batalha começar!

Foi tanta a fobia e a mentira que o boato correu solto aqui e ali gente morria, mas gente morre todo dia!

Só que era tanta a covardia que aquele que morrianem percebiaporque sua vida se ia!

A tragédia se amplioua boataria se amplificoumas um policial de comunicação com humor se encorajoue quando alguém desesperado lhe telefonava afobado,como aquele meu avô, ele dizia animado:O diabo não é tão feio como você pinta! Sobre PCC ou outra coisa se que minta a verdade, por horas ou por meses,É que somente no dia de hoje já me mataram cinco vezes!

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ChuvaDeitado, não consigo dormirCai a chuva no telhadoE eu penso em te ouvirVejo teus lábios movendo-seVejo te a sorrir

Estou assim neste transeQuando uma gota em meu rostoVem meu coração ferirPois sua frieza lembraO teu gelado coração

Então eu penso:Ah! se tu me dessesUma gotinha de amorMeu infeliz coraçãoNão teria tanta dor.

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O Engano

O coração gemeu de tristezaTão grande foi a malvadezaQue alguém lhe praticou

Encontrar o alguém amadoCom um outro namoradoO coração desenganou

E aquele sonho de tempo longoDeixou um tom amargoNo coração de quem amou.

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O poeta e o amorTão logo nasceu o amorJá então nasceu o poetaO mundo inteiro é uma florCantou o poeta em festa

Mas veio a desilusãoChorou então o poetaTenho a dor no coraçãoCabelos brancos na testa

Sorriu novamente o solFloriu novamente o amorE nunca mais o poetaCitou a a palavra dor

E assim viveram para sempreEntre o sol e a florPara sempre, para sempreO poeta e o amor.

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Ironia à técnica

O sol, em certa vezNa noite penetrouE a luz com polidezA ele perguntou:Oh Sol, que aconteceE ele lhe replicou:Lua, pelo que pareceMeu relógio adiantou.

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Minha inspiraçãoSempre vagando pela vidaJamais eu tive a esperançaDe poder dizer: "Oh querida,Do amor não tenho ignorância"

Eu sempre fui um solitárioO amor eu nunca compreendiaAos poetas eu fui contrárioSeus versos eu não entendia

Mas como tudo tem um fimTerminou minha solidãoQuando você trouxe para mimDo amor a pura compreensão

Quão belo é o amor me explicouNenhuma palavra nos lábiosCom olhos grandes me ensinouQue todos os poetas são sábiosE assim, por você eu mudeiVocê é minha inspiraçãoPor você me transformeiSou poeta de coração!

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O verdeVerde apagado:Céu estreladoVerde claro:Cantar do pássaroVerde vivoCéu iluminadoVerde claro:Por de solVerde apagado:Céu estreladoE um dia se extinguiuNas florestas do Brasil.

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IlusãoEu que queria serUm rei no seu coraçãoNem cheguei a ser barãoFiquei como bobo da corteNo castelo da ilusão

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Casa amarelaO tempo não escondeuO passado em que viveuAlguém na casa amarela

Tinha vida, tinha vidaAquela casa amarelaQuando alguém morava nela

E minha mente doenteRevive a cada instanteO passado já distanteOs tempos da casa amarela!

Quem habitou aquela casaNos tempos que já não vemHabitou minha alma também

E está firme a velha casaComo eu já não estouEsperando a meninaQue em dois lugares habitou

Mas a casa ruiráComo também tombareiPois jamais voltaráA menina que eu amei.

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Instante de chuvaMil patinhos a pularNo chão da ruaEu lá dentro a sonharNo mundo da lusaE um homem a voltarCom a vara de pescar

Mil patinhos a pularNo chão da ruaUma criança a brincarNa chuva, nuaCom os patinhos da chuvaRochinha como uma uva

Mil patinhos a pular No chão da ruaÉ o asfalto a se lavar Com as lágrimas da chuvaE o céu chora numinstante porque o instante é da chuva.

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Momento eterno

Gente que ia,Gente que vinhaEu não fuiEla não veioEstávamos

Uns se apresentavamOutros diziam: prazerEu não me apresentei Elatampouco assim fez eramosMais um morria mais outro nascia Eu não a vi morrerEla não me viu nascer vivíamosAlguém se lembraraDo amor que nasceraAlguém se lembravaDo amor que morreraAmávamos

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Soneto do sonhadorVivendo de eterno sonharO destino assim decidiuPassando a vida a se lembrarO amor que um dia existiu

Olhos fechados a cada instanteSorriso triste no semblanteFazendo esforço com a mente

Para ver um rosto sorridenteSorri então de alegriaDe quem venceu no mais queridoRetorna a um mundo de poesia

Abre os olhos esperançadoRetorna a ser amarguradoE fecha os olhos assustado.

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O foguistaTrabalha o pobre vidreiroHá muito que o suor derramaMas o que paga o empreiteiroNão mata sua fome insana.Sofre muito com calorTrabalha à beira do fornoTem momento de humorPara esquecer o transtornoE diz então a brincar:Já estou acostumadoCom tal vida egoístaQuando a morte me levarPedirei ao endiabradoUm emprego de foguista

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A tristeza matouA tristeza mata?Alguém disse: nãoPorém nesta dataMorreu um coração

Caiu de repenteDe bela alturaE uma alma contenteFicou fria e dura

Sobrou na pessoaSomente a açãoNo íntimo não soaMais um coração.

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TrovasEssa vida é um buracoDizia alguém cabisbaixoMas o que seria do ponto altoSe não houvesse o ponto baixo?

Ah se a cada suspiro delaUm doce suspiro eu ganhasseTalvez lá na minha janelaUma doçaria em montasse.

Quantas saudades da escolaAh tristes férias que maldigoPois fica naquela gaiolaBonito pássaro comigo.

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EngenhoUm vem, outro vaiNos canaviaisDa minha terra que encerraUm encanto sem fimTalvez só pra mim.Um vai, outro vemHá sempre alguémNa estrada empoeiradaCom cana a beirarAté o engenho chegar

Engenho que é vida Que é luta renhida É toda uma históriaDe um povo que cresce De quem não esmorece Pra vida vencer Vencer para outros Que a vida trarápara lutar e para amar Emfim, para trabalharNo engenho que não pode parar.

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Confusão de olharesNão me olhe feioNamorado ciumentoPois a sua namoradaNão me olha um só momento

Às vezes eu penso Ciumento namoradoNo que aconteceria Se a sua namorado Olhasse para meu lado

Mas ela não olha pra mimE lá se vai meu devaneioContinuo olhando-se tristeE você me olha feio.

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Oculto prazerGarrafa vaziaRolando na mesaOculto prazerDe vê-la cairDe vê-la quebrar

Muitos corpos vaziosPulando, dançando,Dançando, pulandoOculto prazerDe vê-los girando

Oculto prazerDe ver o mundo vazio De vê-lo findar -Tudo se transforma Pra ver no que vai dar

Oculto prazerDe vê-la com outroPulando, dançando,Dançando, pulando

Oculto prazerDe ver-me sozinhoOcultando o prazerQue sinto e que não sintoDe vê-la com outroDe vê-la feliz.

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Acróstico para Rita

Retenho-me aqui RitaInspirado em teu sorrisoTerei que descrever-te-agoraAgora que sei que amor é isso

Riso que não é vendidoInda mesmo não compradoTão puro é este sorrisoAh!, é um sorriso dado.

Róseo rosto de purezaIndizível prazer eu sintoTê-lo assim tão perto ao meuAo meu me dá nobreza

Ricos olhos pequeninosIncomuns, é admirávelTerão tirado da estrelaAquele brilho invejável?

Renuncio a todos, RitaImpunes gosos do mundoTer-te assim junto a mimAgrada-me mais que tudo.

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A vida é arteViver é criar problemasIdeias e soluçõesDesprezar o feio, amar o beloAmar o belo é viver

É viver amar o bom.

Ainda que o bom seu feioRealçando no feio o bomTorna-se o feio veloE viver é criar beleza!

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Quando o poeta cansaSão fenômenos cansadosPor mil vezes repetidosQue ainda se repetirão

Para que destacá-losSe ele próprios são a vidaE a vida é uma só?

Não há porque cantá-losSe cantados eles já foramE seus poetas já morreram.

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Velho boêmioO céu sorri num instanteQuando um raio luzenteIlumina a boca da noite

Sorrindo também se choraE a noite assim pode serSorri e chora quando chove

Mas não se importa o boêmioSuas noites foram tantasQue não terá mais um decênioDe anos de noite assim.

CalmariaÉ um diasorridenteEnfeitadopela brisaE um solameno.

Eis que um rosto morenoSe irisa na minha almaAcalentando a minha calma

E eu sorrio entãoPara alguém que na rua passaPois a vida é cheia de graçaPara quem sabe o que é o amor.

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Meu paiVer o ultimo sorrisoDa rosa para o sol poente é o que torna contenteMeu pai, à volta do serviço

Meu pai é um poetaNão de verso, nem de prosa ,é o poeta da rosaQue vive para bem tratá-las Que luta para conservá-las tratando-as com carinhoE nem diz que uma é mais bela para não desprezar as demais

Chega tarde do serviçoCansado, mas nem por issoDeixa de banhar suas roseirasAntes de lavar-se a sei próprioE sorri de contentamentoAo ver que naquele momentoAs rosas parecem sorrir.

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VampirosBate o lúgubre sinoDa tétrica meia noiteInexiste algo divinoApenas o voar silenciosoEclipsando a luaDo mamífero maldosoMensageiro do terror.

Beija a amada neste instanteO personagem triunfanteDa película de horrorPorém, que encontram seus lábios?Um corpo inanimado e frioCuja vida e calorA morte roubou.

E o espanto estampa-se no rostoDo assombrado jovem excitanteAo ver transforma-se em cena ligeiraO rosto querido e adoradoSimplesmente, em caveira.

E este epílogo fatalRonda-nos a cada instanteSem que dele percebamosQuando apenas procuramosA beleza banal e faceiraQue esconde não mais que a caveira.

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Pós apocalipseO infinito repousa no segundoDa existência dúbia e tediosaDo maribondoDo moribundoDo mar e bonde

A glória é o suspiro que arrastaO hálito sem calor na obra desprezada E nem o lume de um fósforoBrilhará jamais Quebraram-se os acratófaros Nem Baco, nem bacanais.

É o prazer de ver terminada a incógnita obra depreciadaQue era gentlemanEra gentalha Era gente e imã Era gente nada.

Nada na fobiaDo primitivo fulgir dos temposNada no triânguloNada em MaxNão há ânguloNem êmboloJá não engoleNão há goleNem tudoNem tubo de ensaioMas haviaHavia até um SampaioQue gritava“Ai que eu caio”E um outro:“Cai que eu vaio”.

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Mas há resto?Não há vala que já valhaNem papagaaio, nem gralhaTalvez, perdão

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Ribeirão

Ah! pequeno ribeirãoTu não és o LetePorém assim mesmo suplicoTraze a mim o esquecimentoJá que o amor não é possívelTorna-me outro neste momentoPois o malando do cupidoNão me quer como amigo.

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LampiãoBrilhava por foraE agora por dentroUma chama o devora

Saudade de um tempoQue aceso e altivoSabia o motivoDe todas as rusgasEntre os namoradosE ouvia segredosAté de Estado

Agora no lixoJogado, esquecidoVê que de ferrugemJá está enegrecido.Assim são os homens.

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Filosofia da pedra

A estrada é cheia de pedrasE elas devem ser quebradasPara vermos como éPara levarmos na lembrança Seus melhores fragmentos A pedra às vezes é grande Mas a força constante Vence a pedra exuberanteDando ao pedreiro mais força De quebrar pedras maiores Todavia que aconteceQuando a pedra é mais que pedra Quando a pedra é quase aço?E vence a força do pedreiro E lhe imprime o cansaço? A estrada é cheia de pedrasPorém uma pedra é mais forte O pedreiro já não carrega Apenas seus fragmentos Carrega uma pedra todaE a pedra nada sente Pois a pedra apenas sabe Ser pesada e ser bonita

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E se um dia irá quebrarÉ por mão de outro pedreiro Mais fraco, ou talvez mais forte Mas que tenha melhor sortepois a vida é quebrar pedrasdo nascimento à morte

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A rosa do campoEstava ali,Mas você foiA rosa que não colhiA flor que deixei no campo

Hoje a vejo em cada cantoNas lembranças e passagensDe um mundo de desencantos

Constato assoberbadoPerdido neste desertoQuanto se ilude quem não fazA colheita no tempo certo!

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A brigaFoi aquela uma briga danadaA do cupido e a moça assanhadaPois um dia o anjinho arqueiroNão estava lá muito certeiroE, se não falha a narraçãoA rusga assim foi oriundaCupido mirou no coraçãoMas acertou a flecha na bunda.

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Meu canto

Se hoje meu canto é Um tanto quanto absorto

É que minha alma se inspira Na fisionomia de um mortoSe hoje meu canto é

Um tanto quanto sublime Em que nada se inspire

É que há entre o nada e tudo Uma diferença que oprime

Se hoje meu canto é

Mais fraco que de costume É Porque eu deduzi que a mesma matéria faz O perfume e o estrume.

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