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FACULDADE DE SÃO BENTO LICENCIATURA PLENA EM TEOLOGIA TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO Simone Bernardi O bom samaritano e a hospedaria: A experiência do SERMIG e do Arsenal da Esperança como tentativa de atualização da parábola lucana, enfatizando o "ponto de vista" da hospedaria. São Paulo 2015

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FACULDADE DE SÃO BENTO

LICENCIATURA PLENA EM TEOLOGIA

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

Simone Bernardi

O bom samaritano e a hospedaria:

A experiência do SERMIG e do Arsenal da Esperança como tentativa de

atualização da parábola lucana, enfatizando o "ponto de vista" da hospedaria.

São Paulo

2015

FACULDADE DE SÃO BENTO

LICENCIATURA PLENA EM TEOLOGIA

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

O bom samaritano e a hospedaria:

A experiência do SERMIG e do Arsenal da Esperança como tentativa de

atualização da parábola lucana, enfatizando o "ponto de vista" da hospedaria.

Simone Bernardi

Monografia apresentada ao

Curso de Licenciatura em Teologia

da Faculdade de São Bento do

Mosteiro de São Bento de São

Paulo, como requisito parcial para a

obtenção do título de Licenciado em

Teologia.

Orientador: Prof. Dr. Sergio Alejandro Ribaric

São Paulo

2015

Quem não vê,

quem não sente

que pedras, tijolos e telhas

para serem uma casa

têm tudo

e não tem nada?

Aos montões,

valem como esperança.

A serviço de um plano,

vivendo unidade,

perfazem a soma

que, como soma,

é maior do que as parcelas dispersas...

Dom Helder Camara

Aos meus pais Gemma (in

memoriam) e Andrea, à Margherita, à

Silvia, ao Massimo e à pequena

Angelica.

AGRADECIMENTOS

"GRAZIE a Te Signore, buon samaritano, che mi hai portato a questa locanda

'SERMIG', per guarire le mie ferite e riacquistare le forze. Sono sicuro Signore, che la Tua

divina e generosa ricompensa sarà grande per chi ha capito e obbedito in libertà e amore al

Tuo comando: Vai e fai anche tu lo stesso!" (SERMIG, 2008, p. 276).

"OBRIGADO a Ti, Senhor, bom samaritano, que me trouxe a esta hospedaria

'SERMIG', para curar minhas feridas e recuperar as forças. Tenho certeza, Senhor, que a Tua

divina e generosa recompensa será grande para aqueles que entenderam e obedeceram em

liberdade e amor ao Teu comando: Vai e, também tu, faze o mesmo!"

Faço minhas essas palavras de um padre da Comunidade Ortodoxa Romena de Turim

para agradecer, também eu, em primeiro lugar, a Deus, que me conduziu para essa mesma

hospedaria onde conheci milhares de pessoas que eu vi fazer, com amor e simplicidade, o que

era necessário.

Agradeço aos meus pais, sem os quais minha viagem não estaria acontecendo: ao meu

pai Andrea por toda a sua força depois de perder minha mãe Gemma, em 4 de dezembro de

1989. Agradeço a compaixão imediata de todos os membros da minha família, que foram, em

torno de mim e de minha irmã Silvia, a primeira hospedaria que conheci.

Agradeço a Ernesto Olivero, Rosanna Tabasso, Andrea Bisacchi e a toda a

fraternidade do SERMIG (um nome que contém milhões), que me acolheram, confiaram em

mim e me ajudaram a fazer o mesmo.

Agradeço a todos aqueles que partilham comigo a vida do Arsenal da Esperança:

Gianfranco, Marco, Ivan, Thais, Thais2, Vasco, Lea, Augusto, Suely, Edelson, Doroty, Maria

Teresa, Palladino (in memoriam), Antenor e Angela, por "escrever" a cada dia os gestos, na

maioria das vezes "indescritíveis", contidos no terceiro capítulo deste trabalho, e ao Lorenzo

por compartilhar também todo o percurso de estudos filosóficos e teológicos.

Não posso deixar de agradecer a todos os amigos que compõem a hospedaria e

também a Claudio Picco, Guido Morganti, Elena Goisis, Thais dos Santos Domingues,

Angela Rissoni Rovida, Lívia Miranda e Thiago Cruz, que colaboraram muito para a

conclusão deste trabalho.

Agradeço a todos os hóspedes do Arsenal da Esperança, que todos os dias me fazem

entrar "na pele" do ferido da parábola, do ser humano que tem uma necessidade urgente de ser

reconhecido como próximo.

E, finalmente, quero agradecer a todos os professores do curso de teologia da

Faculdade de São Bento que, com seriedade, organizaram o nosso caminho de formação

teológica. De maneira particular, quero agradecer ao coordenador do curso de teologia, Prof.

Domingos Zamagna, e ao orientador deste trabalho, Prof. Sergio Ribaric, por terem permitido

o desenvolvimento deste trabalho na Itália. Um agradecimento especial também aos colegas

de sala e ao fratel Giorgio.

A todos eles e aos amigos que ainda virão, dedico uma única palavra orante:

"Obrigado".

RESUMO

Este trabalho faz uma tentativa de "atualização" da parábola do bom samaritano e da

hospedaria "que acolhe todos" apresentando parte da experiência de Ernesto Olivero e do

SERMIG - Fraternidade da Esperança (nascido em Turim, na Itália) e também a experiência

dessa comunidade no Arsenal da Esperança (em São Paulo, no Brasil). O trabalho faz uma

reflexão teológica sobre a vivência dessa comunidade que escolheu responder ao amor do

samaritano-Jesus e viver a "regra do Evangelho", transformando a compaixão em ação

concreta e criando hospedarias para receber a todos, transmitir esperança e trazer as pessoas

para Deus.

Palavras-chave: Samaritano, Hospedaria, SERMIG, Comunidade, Compaixão.

ABSTRACT

This study is an attempt to "update" the parable of the Good Samaritan and the hostel

"that welcomes all" presenting part of Ernesto Olivero experience and SERMIG -

Brotherhood of Hope (born in Turin, Italy) and also the experience of the community Arsenal

of Hope (in Sao Paulo, Brazil). The work is a theological reflection on the experience of this

community that chose to respond to the love of Jesus-samaritan and live the "Gospel rule",

turning compassion into concrete action and creating "hostels" to shelter and welcome

everyone, transmit hope and bring people to God.

Keywords: Samaritan, Hostel, SERMIG, Community, Compassion.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 10

1 ESMIUÇANDO O TEXTO DE LUCAS 10,25-37 ................................................ 12

1.1 LEITURA DOS PADRES DA IGREJA ................................................................ 12

1.2 LEITURA EXEGÉTICO-ESPIRITUAL ................................................................ 14

1.2.1 Primeira parte .................................................................................................... 14

1.2.2 Segunda parte: a parábola ................................................................................ 18

1.2.3 Terceira parte ..................................................................................................... 31

2 ATUALIZAÇÃO: UM HOJE DA PARÁBOLA .................................................. 34

2.1 ERNESTO OLIVERO: TUDO COMEÇA COM A VIAGEM DE ALGUÉM ...... 35

2.2 O SERMIG: O GRUPO SE COLOCA EM VIAGEM ............................................ 37

2.3 "1968": UMA ÚNICA ESTRADA, MAS POSTURAS DIVERSAS ..................... 39

2.3.1 O amor-Jesus caminha assim ............................................................................ 40

2.3.2 A escolha (contracorrente) de permanecer "apegado a Jesus" ..................... 41

2.4 CONTINUANDO O CAMINHO, PARA O ALTO ............................................... 45

2.5 ARSENAIS: O SAMARITANO PROCURA HOSPEDEIROS ............................... 50

3 PONTOS DE VISTA SOBRE A HOSPEDARIA .................................................. 58

3.1 A HOSPEDARIA VISTA POR... ........................................................................... 61

3.1.1 Lorenzo (consagrado) ........................................................................................ 61

3.1.1.1 Um lugar habitado por uma Fraternidade ......................................................... 62

3.1.2 Vanessa (estudante de psicologia) .................................................................... 64

3.1.2.1 Um lugar onde usar o que recebemos ............................................................... 65

3.1.3 Julia (estudante de letras) ................................................................................. 68

3.1.3.1 Um lugar para entender por que eu, jovem, estou no mundo ........................... 70

3.1.4 Samuel, Wanderson, Victório e Maria Alice (crianças dA Praça) ................ 73

3.1.4.1 Um lugar para educar uma criança ................................................................... 75

3.1.5 Célia (professora de educação infantil) ............................................................ 77

3.1.5.1 Um lugar onde o silêncio fala ........................................................................... 78

3.1.6 Osvaldo (ator de teatro) .................................................................................... 80

3.1.6.1 Um lugar em que as pessoas podem chegar de qualquer parte ......................... 81

3.1.7 Carmem (arte-educadora) ................................................................................ 83

3.1.7.1 Um lugar para oferecer a todos dignidade e beleza .......................................... 84

3.1.8 Isabel (assistente social do Arsenal da Esperança) ......................................... 86

3.1.8.1 Um lugar de passagem ...................................................................................... 88

3.1.9 Adama (imigrante do Mali, muçulmano, ex-acolhido do Arsenal da

Esperança) ............................................................................................................................... 90

3.1.9.1 Uma casa que acolhe pessoas "como nós" ........................................................ 91

3.1.10 Daniel (jornalista, ex-cumpridor de pena alternativa no Arsenal da

Esperança) ............................................................................................................................... 93

3.1.10.1 Um lugar para responder ao mal com o bem .................................................. 94

3.1.11 Charles (ex-acolhido do Arsenal da Esperança) ........................................... 96

3.1.11.1 Um lugar onde ninguém é considerado pobre ................................................ 97

3.1.12 Dona Marta (membro do Governo do Estado de São Paulo) ...................... 99

3.1.12.1 Um lugar onde profecia e política podem encontrar-se ................................ 101

3.1.13 Pe. Pedro (sacerdote da Arquidiocese de São Paulo) ................................. 104

3.1.13.1 Um lugar que cria vida ao redor de si ........................................................... 105

CONCLUSÃO ........................................................................................................... 107

REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 110

10

INTRODUÇÃO

A ideia deste trabalho precisa ser inserida no âmbito da minha experiência como

consagrado de uma comunidade chamada SERMIG1- Fraternidade da Esperança, bem como

missionário em uma das casas dessa comunidade: o Arsenal da Esperança Dom Luciano

Pedro Mendes de Almeida (em São Paulo-SP, no Brasil), que acolhe, todos os dias, 1.200

homens em situação de rua.

Uma noite, após a "usual" superabundância de emoções, reuniões, sofrimentos,

alegrias, preconceitos e ajudas cotidianas, a fila de pessoas fora da porta parecia não ter fim.

De repente, aparece o rosto de Adama, um rapaz do Mali, ex-acolhido da casa, trazendo com

ele um homem que precisava apoiar-se em seu ombro para manter-se em pé.

Depois de tê-los convidado a entrar e a sentar, perguntei para aquele homem o nome

dele e se tinha um documento. Foi quando ele começou a contar: "Eu estava saindo da

Estação Barra Funda [do Metrô]. De repente, fui assaltado por dois ladrões que me levaram a

mochila com todos os documentos e me roubaram até o chinelo. Eu caí e acredito que fiquei

inconsciente por um tempo. Depois, ele chegou e me trouxe até aqui de metrô".

Após providenciar um alojamento para a noite, finalmente consigo trocar algumas

palavras com Adama e lhe pergunto: "Por que você veio até aqui para acompanhar este

desconhecido?". E ele responde: "Por que neste lugar eu fui bem recebido, e eu sabia que

vocês o receberiam também". Depois se despede, dizendo que voltaria para ver se aquele

homem ainda precisaria de algo.

1 O SERMIG – "Servizio Missionario Giovani" ("Serviço Missionário Jovens") – nasceu em Turim (Itália) em

1964, fundado por Ernesto Olivero e sua esposa Maria Cerrato para concretizar um sonho: derrotar a fome e as

injustiças sociais no mundo, promover ações de justiça e de desenvolvimento, viver a solidariedade para com os

mais pobres e dar uma especial atenção aos jovens, procurando com eles a paz. Após os primeiros anos

vivenciados como grupo missionário, dentro do SERMIG nasceu a Fraternidade da Esperança: consagrados,

consagradas, casais e jovens que se dedicam ao serviço dos pobres e dos jovens, com o desejo de viver o

Evangelho e de ser sinal de esperança. Em 1983, a Fraternidade da Esperança começou a morar no antigo arsenal

militar de Turim – ex-fábrica de armas transformada, com a ajuda de milhares de jovens e de pessoas de boa

vontade, em uma casa a serviço da paz, em um lugar de oração, de trabalho e de acolhida dos jovens e dos mais

necessitados, hoje chamado de Arsenal da Paz. Em 1996, nasceu em São Paulo o Arsenal da Esperança.

Localizado nas instalações da antiga Hospedaria de Imigrantes – que do final do século XIX até os anos 1970

recebeu milhões de imigrantes do mundo todo – o Arsenal da Esperança é hoje uma casa que acolhe 1.200

pessoas em dificuldade, o chamado "povo em situação de rua", em busca de novas oportunidades de trabalho e

de vida. Disponível em: <http://www.sermig.org/br/quem-somos>. Acesso em: 15 abr. 2015.

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A sintonia desse episódio com a parábola do bom samaritano foi imediata – muitas

vezes tenho a sensação de que, nas coisas que acontecem em uma casa como o Arsenal, o

Evangelho é "vivo", concreto, evidente –, mas aquela simples "conexão" feita por Adama,

entre a sua ação de socorro e a acolhida do Arsenal, lembrou-me da parábola de uma forma

nova e significativa. Eu disse a mim mesmo: "Se aquele homem chegou até aqui, foi

certamente pela compaixão que este 'bom islâmico' [Adama é muçulmano] teve para com ele,

mas foi também porque Adama conhecia um lugar aonde levá-lo". Sem saber, Adama havia

enfatizado um aspecto frequentemente esquecido da parábola de Lucas: a "ligação" estreita, a

"continuidade" indispensável entre o papel do samaritano e o da hospedaria para a qual ele

entrega o ferido.

Este trabalho nasce com a intenção de destacar, justamente por meio da "chave de

acesso" desse aspecto da parábola lucana, a centralidade da dimensão espiritual em um lugar

de acolhida como o Arsenal da Esperança, visto, muitas vezes "superficialmente", como uma

mera estrutura para responder a um problema social ou para sanar uma emergência (como

oferecer vagas para o inverno, entre outras). Em minha opinião, é simplesmente impossível

explicar o Arsenal da Esperança deixando "fora da porta" algo que é decisivo para a sua vida:

a "compaixão no coração", que é própria do samaritano e que pode se tornar o estilo de

qualquer lugar de acolhida ou comunidade.

Nascido com esta intenção, este trabalho propõe, no primeiro capítulo, uma leitura

exegético-espiritual da parábola. O segundo capítulo descreve a gênese da experiência (a

viagem) humana e eclesial do SERMIG - Fraternidade da Esperança como (tentativa de)

"atualização" do episódio do samaritano, referindo-se à biografia de seu fundador, Ernesto

Olivero, e a algumas passagens dessa história que são imprescindíveis para identificar quais

são as "raízes" e os pontos cardeais da espiritualidade que anima o Arsenal da Esperança. O

terceiro e último capítulo focaliza o aspecto da hospedaria a partir de treze diferentes "pontos

de vista" de personagens que "descrevem" o Arsenal da Esperança como um lugar para

experimentar uma possibilidade real de viver a compaixão, repetir os gestos narrados no texto

de Lucas e "fazer comunidade" em torno disso.

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1 ESMIUÇANDO O TEXTO DE LUCAS 10,25-37

A parábola do bom samaritano (Lc 10,25-37) é um dos textos mais conhecidos do

Evangelho e certamente um dos mais meditados e refletidos. Essa narração de Jesus aparece

apenas no Evangelho segundo Lucas e se encontra inserida em um contexto: o diálogo entre

um legista (doutor da Lei) e Jesus (vv. 25-29.36-37) sobre a possibilidade de "herdar a vida

eterna" (v. 25).

Pergunta-se, frequentemente, se a narração do bom samaritano é uma parábola ou uma

história verdadeira, ou seja, se Jesus se inspira em um fato realmente acontecido ao longo da

estrada que leva de Jerusalém a Jericó ou se, ao contrário, é o próprio Jesus que inventa a

cena, como de costume, quando conta suas parábolas.

1.1 LEITURA DOS PADRES DA IGREJA

A resposta que os Padres da Igreja deram a essa pergunta – lendo a Palavra por meio

da Palavra e buscando Jesus e sua ação em cada página do Antigo e do Novo Testamento – é

que sob a parábola do bom samaritano há muito mais.

Os Padres faziam uma leitura alegórica das Escrituras, segundo a qual qualquer

elemento literal do texto indica um significado mais profundo oculto por trás dele. De acordo

com essa abordagem das Escrituras, a interpretação dominante – se não exclusiva – de autores

de todas as partes do primeiro mundo cristão era cristológica e identificava o bom samaritano

com Jesus (novo Adão) vindo para salvar a humanidade da queda de Adão.

Escrevendo no século II, Irineu e Clemente de Alexandria viam o bom samaritano

como símbolo do próprio Cristo, que salva a vítima caída pelas feridas do pecado. Já

Orígenes, nas suas "Omelie sul Vangelo di Luca" (Homilias sobre o Evangelho de Lucas),

afirmava que essa interpretação lhe fora dada por "um dos anciãos", o qual lia desta maneira

os elementos da narrativa: "o homem que descia é Adão; Jerusalém é o paraíso e Jericó é o

mundo; os ladrões são as potências hostis; o sacerdote é a Lei; o levita, os profetas; e o

Samaritano é Cristo. [...]"2. Ambrósio, na sua "Esposizione del Vangelo secondo Luca"

2 "l'uomo che scendeva è Adamo; Gerusalemme è il paradiso e Gerico è il mondo; i ladroni sono le potenze

ostili; il sacerdote è la Legge, il levita i profeti; e il Samaritano è Cristo. [...]" Todas as traduções são livres e de

responsabilidade do autor deste trabalho.

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(Exposição do Evangelho segundo Lucas) (7, 74) também revela quem está por trás do

samaritano anônimo da parábola:

Não é de pouco valor este samaritano, que não desdenhou também ele

daquele homem do qual tanto o sacerdote quanto o levita haviam

desdenhado. E não o tenha em pouca estima por causa do nome de sua seita,

porque se admirará quando conhecer a tradução do nome: a palavra

"samaritano" significa "guardião". Esta é a explicação. E quem é o guardião

senão Aquele de quem foi dito: "Iahweh protege os simples" [Sal 116(114-

115), 6]? Por isso, como é um Judeu segundo as palavras e como é um

segundo o espírito, assim é um samaritano que se vê e um que está

escondido. Esse samaritano, que estava descendo – quem é Aquele que

desceu do céu senão aquele que subiu ao céu, o Filho do homem que está no

céu (Jo 3,13)? –, vendo-o meio morto, já que ninguém antes fora capaz de

cuidar dele, [...] aproximou-se dele, ou seja: fez-se semelhante a nós tomando

sobre si a nossa compaixão, e fez-se próximo doando-nos a sua misericórdia.3

Também Agostinho (Agostino), no seu "Quaestiones Evangeliorum" II, 19, diz:

Um homem descia de Jerusalém a Jericó. Deve-se compreender aí

Adão e toda a humanidade. Jerusalém é a cidade celeste da paz, de cuja bem-

aventurança ele decai. Jericó [...] representa a nossa condição mortal [...] O

samaritano, etimologicamente o "guardião", representa, justamente em

virtude desse mesmo nome, o nosso Senhor [...].4

Todos esses autores5 – e outros ainda, do final da Antiguidade até a Idade Média –

viram na parábola do bom samaritano uma história muito maior. Essencialmente, os Padres

leram nela o "fundo" da história da salvação – cuja protagonista é a salvação em pessoa – sem

a qual é impossível entender a parábola em todo o seu significado.

3 "Non è di poco conto questo samaritano, il quale non disdegnò anche lui quell'uomo che il sacerdote, che il

levita aveva disdegnato. E non stimarlo poco a motivo del nome della setta, perchè lo ammirerai quando avrai

conosciuto la traduzione dell'appellativo: la parola 'samaritano' significa 'custode'. Questa è la spiegazione. E chi

è il custode se non Colui del quale è stato detto: Il Signore custodisce i piccoli? Perciò, come vi è un Giudeo

secondo la lettera, e uno secondo lo spirito, così vi è un samaritano che si vede e uno nascosto. Questo

samaritano, che stava scendendo – chi è Colui che è disceso dal cielo, se non colui che è asceso al cielo, il Figlio

dell'uomo che è nel cielo (Gv 3, 13)? – vedendolo mezzo morto, poichè nessuno prima era stato capace di

curarlo, [...] si accostò a lui, cioè: si fece simile a noi avendo preso sopra di sè la nostra compassione, e si fece

vicino donandoci la sua misericordia." 4 "Un uomo scendeva da Gerusalemme a Gerico. È da intendervi Adamo e in lui tutta l'umanità. Gerusalemme è

la città celeste della pace, dalla cui beatitudine egli decade. Gerico [...] rappresenta la nostra condizione mortale

[...] Il samaritano, etimologicamente il 'custode', rappresenta in forza dello stesso nome il nostro Signore [...]."

Grifos do original. 5 Todas as citações dos Padres neste texto provêm de PETRI, 2006. Supera a intenção e o objetivo deste texto

analisar detalhadamente as diferenças entre as interpretações do bom samaritano nos escritos dos Padres. É

suficiente, neste caso, reconhecer o fato de que a parábola foi compreendida, desde os tempos mais remotos,

como muito mais que uma simples história.

14

1.2 LEITURA EXEGÉTICO-ESPIRITUAL

A partir da leitura patrística, é possível passar a um olhar aproximado ao trecho do

samaritano (Lc 10,25-37), para extrair o seu grande ensinamento sobre o amor também do seu

sentido literal e imediato.

1.2.1 Primeira parte

O contexto no qual Lucas coloca esse episódio é o momento em que Jesus, depois do

retorno dos 72 discípulos, acabara de agradecer ao Pai por ter escondido a compreensão das

coisas que dizia e fazia aos sábios e aos inteligentes e por tê-la revelado aos pequenos.

"Naquele momento, ele exultou de alegria sob a ação do Espírito Santo e disse: 'Eu te louvo, ó

Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste essas coisas aos sábios e entendidos, e as

revelaste aos pequeninos [...]'." (Lc 10,21).

"E eis que um legista se levantou e disse para experimentá-lo:" (v. 25)

Logo Lucas faz entrar em cena um doutor da Lei, um daqueles "sábios" aos quais se

referia Jesus. Um homem, portanto, altamente valorizado pela grande capacidade de ler e,

principalmente, de interpretar a Torá e as santas tradições, que conhece de cor e às quais

dedica toda a sua existência. É no contexto do confronto de Jesus com esse doutor da Lei –

que se levantou para experimentá-lo – que deve ser analisada a parábola.

"Mestre, que farei para herdar a vida eterna?" (v. 25)

O doutor da Lei – chamando Jesus de "mestre" – não faz uma pergunta qualquer, mas

o interroga sobre o núcleo central da Lei, perguntando não qual é o maior mandamento (como

nos Evangelhos segundo Mateus e segundo Marcos – Mt 22,36 e Mc 12,28), e sim o que deve

fazer para herdar a vida eterna.

Ele formula a questão sobre qual é a prática, ou seja, o fazer, ou, podemos até dizer, a

obra decisiva – além das tantas já cumpridas segundo o que prescreve a Torá – para garantir

para si a vida eterna. Esse doutor da Lei, que obviamente conhecia muito bem as Escrituras,

não quer fazer uma discussão teórica; quer saber o que deve fazer, verbo que será o centro e a

constante de todo o trecho.

O problema que o doutor coloca diante da Lei – o que fazer para ter a vida eterna – é a

pergunta fundamental do homem, o qual é imagem de Deus e, por isso, é desejo de vida plena,

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de alegria, de felicidade, de amor. E "O amor compreende a totalidade da existência em toda a

sua dimensão, inclusive a temporal. Nem poderia ser de outro modo, porque a sua promessa

visa ao definitivo: o amor visa à eternidade" (BENTO XVI, 2005, § 6º).

Talvez haja, nessa pergunta do doutor da Lei à qual o evangelista Lucas se refere, a

recordação de uma polêmica entre a Igreja das origens, para a qual o evangelista escreve essa

parábola, e o hebraísmo que, ao longo dos séculos, desenvolvera uma tradição muito

articulada e complexa. Na Lei, havia 613 preceitos: 365 negativos (um por dia, de coisas que

deveriam ser evitadas) e 248 positivos (de coisas que podiam ser feitas) – que são, segundo os

antigos, o número de ossos do corpo humano. Tudo isso significava que a Lei, a palavra de

Deus, deve penetrar negativamente a cada dia na estrutura do homem, tirando o que é mau, e

também positivamente, no bem. Porque a Lei distingue o que é bom do que é mau.

"Ele [Jesus] disse: 'Que está escrito na Lei? Como lês?'." (v. 26)

Jesus – coerentemente com o estilo rabínico – responde com uma pergunta e o remete

à Lei. Jesus não lhe pergunta apenas o que está escrito na Lei, mas também "Como lês?"; ou

seja, como ele compreendia aquilo que está escrito. É uma pergunta astuta, porque uma coisa

é o que está escrito, outra coisa é como aquilo é interpretado. E o escriba responderá com

imediata segurança e corretamente colocando juntos, como um único preceito, o mandamento

do amor de Deus de Deuteronômio 6,5 com o do amor ao próximo de Levítico 19,18, ainda

que, como veremos, ele o faça dentro de determinado "esquema" religioso.

A pergunta de Jesus oferece uma oportunidade ao homem da Lei, em certo sentido o

desafia a voltar a viver a própria tarefa plenamente. A técnica do "midrash" hebraico, de fato,

tinha como objetivo interpretar as Escrituras para iluminar o significado delas à luz dos

desafios que a vida colocava cotidianamente. O "midrash" permitia aprofundar cada vez mais

um "sentido concreto", ou seja, aquele necessário aqui e agora, na situação que eu ou a minha

comunidade estamos vivendo. Tratava-se de uma "busca amorosa" que interrogava as

Escrituras para crescer na vida. Esse era considerado o procedimento que "cumpria" as

Escrituras e o bom "rabbi" era aquele que, com a sua vida, levava ao cumprimento os passos

das Escrituras, dando o exemplo aos seus discípulos (cf. Prólogo do Eclesiástico, li. 7-14).

Nesse sentido, Jesus, com a sua vida, foi o "cumprimento" das Escrituras por

excelência, como aparece no capítulo 23 de Mateus quando fala contra aqueles que "fecham"

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as Escrituras em vez de "abri-las". Também nas parábolas, as palavras de Jesus constituem a

explicação de seus próprios ser e fazer.

"Ele, então, respondeu: 'Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de

toda a tua alma, com toda a tua força e de todo o teu entendimento..." (v. 27)

É a síntese de todo o Antigo Testamento, imperativo futuro, um futuro sem fim, e um

mandamento.

Ora, tudo pode ser mandado, exceto amar. Então, por que Deus manda amá-lo?

Podemos substituir a pergunta do doutor da Lei por outra pergunta: "Qual é a coisa mais

importante que cada homem pode ler no profundo da sua interioridade?". Se é verdade que o

homem é criado à imagem de Deus – que é amor sem fim –, o que encontramos no seu

coração? Encontramos o desejo infinito de ser amado, de amar e, no amor, de completar-se.

Se isso não acontece, o homem perde a sua identidade de filho e perde a herança, ou seja,

perde-se!

Amarás, portanto, mas de que forma? Em Deuteronômio 6,5 – citado pelo doutor da

Lei – o amor é declinado segundo quatro dimensões: de todo o teu coração, que é o centro da

pessoa; de toda a tua alma, com toda a vida; com toda a tua força, com todos os bens e o

dinheiro; e, enfim, de todo o teu entendimento, com todos os pensamentos, com toda a

inteligência, com toda a psique. Quatro dimensões que indicam como tudo o que o homem é,

tudo o que ele tem e tudo o que ele pensa pertencem a Deus. Tudo serve para amar.

"e [amarás] a teu próximo como a ti mesmo." (v. 27)

Cada israelita era chamado a ter uma relação fraterna marcada pelo amor, em um

contexto em que "o povo forma uma comunidade solidária, na qual todos são responsáveis

uns pelos outros, na qual cada um é mantido pelo todo e deve considerar o outro 'como a si

mesmo', como parte de um todo, do qual recebe o espaço da sua vida" (RATZINGER, 2007,

p. 174).

O próximo era, portanto, o compatriota, o concidadão hebreu, o filho do povo, mas as

Escrituras chegavam também a dizer amarás o estrangeiro que vive junto de ti, recordando

que, no Egito, o próprio povo de Israel vivera uma existência como forasteiro (Lv 19,33s e Dt

10,17s). Dessa forma, o próximo não era apenas o irmão hebreu: era também o estrangeiro

17

que estava na terra de Israel como imigrante por motivos de trabalho, porque buscava refúgio

ou por outras razões.

Todavia, permanecia uma polêmica sobre onde colocar o limite: o mundo judaico no

tempo de Jesus não conseguia uniformizar-se serenamente sobre o conceito de próximo e,

principalmente, sobre o estrangeiro de passagem. Todos concordavam, porém, em excluir do

conceito de próximo os inimigos, e os primeiros deles eram os inimigos teológicos. Como

veremos, jamais um judeu cumprimentaria, e muito menos ajudaria, um samaritano, e vice-

versa.

"Jesus disse: 'Respondeste corretamente; faze isso e viverás'." (v. 28)

Aquele doutor da Lei – como o mestre de exegese que era – mostrou-se muito bem

preparado sobre a Torá, como se vê pela sua competência em responder prontamente sobre o

primeiro e mais importante mandamento.

O leitor do Evangelho, antes do ensinamento que surgirá da parábola, é levado a

maravilhar-se da sabedoria do escriba. Talvez essa resposta fosse esperada somente se dita

por Jesus, como na narração (mais ou menos paralela) dos outros evangelistas. Do ponto de

vista teórico, Jesus não tem nada para ensinar-lhe; porém, depois de ter aprovado o que foi

dito pelo escriba, ele acrescenta um pedido decididamente comprometedor de um ponto de

vista prático: faze esse mandamento supremo e viverás!

Um detalhe interessante – indicador de uma nova visão, própria dos Evangelhos e

diferente daquela à qual se referiam os escribas – está no fato de que, enquanto o doutor da

Lei fala de vida "eterna", Jesus, em sua resposta, fala apenas de "viver", como se Jesus o

convidasse a refletir se aquela que estava então conduzindo podia ser chamada de vida

(MAGGI, 2001, p. 55) e esvaziando assim o campo do equívoco que coloca a vida eterna

exclusivamente depois da morte: vida "eterna" fala de uma vida plena já agora, mesmo que

esta vida não tenha ainda alcançado o seu último destino, a sua plenitude final.

Mas retornemos à resposta de Jesus:

Faze isso e viverás! é uma resposta "terrível", porque quer dizer que, quando não se

faz aquilo, não se vive. E qual homem é capaz de amar a Deus de todo o seu coração, de toda

a sua alma, com toda a sua força, de todo o seu entendimento e de amar a si mesmo e aos

outros? O mal do homem é justamente não conseguir amar dessa maneira nem a Deus, nem a

18

si mesmo, nem os outros. Sabemos que é certo fazê-lo; porém, se é impossível consegui-lo,

então não vivemos. Se o mandamento fosse observar aqueles 613 preceitos, talvez, com um

pouco de esforço, seria possível conseguir, mas se a vida depende da capacidade do homem

de amar dessa forma, como é possível amar?

Jesus, de fato, pede "pouco" apenas aparentemente e o doutor da Lei que, além de

erudito, é também astuto e que certamente não quer perder o confronto, querendo justificar-se,

faz a Jesus uma segunda pergunta que direciona a sua palavra decididamente para a segunda

parte do mandamento supremo, ou seja, para o amor ao próximo. A pergunta não é "como

faço para amar a Deus?", mas:

"E quem é meu próximo?" (v. 29)

A palavra das Escrituras é indiscutível e o doutor da Lei sabe muito bem que o

próximo deve ser objeto da sua atenção, mas a forma de aplicar isso levanta questões que –

como já dissemos – eram muito debatidas na escola (e na própria vida). Sobre esse ponto, a

pergunta do escriba se faz decididamente "concreta".

O doutor da Lei quer entender de Jesus o quanto, segundo ele, deve-se "estender" ou

"reduzir" o dever de amar estabelecido pela Lei. Em síntese, quer que Jesus diga precisamente

"quem é" e "quem não é" o próximo. O "limite" será abolido por Jesus.

Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajudá-lo, é o meu

próximo. O conceito de próximo fica universalizado, sem deixar todavia de

ser concreto. Apesar da sua extensão a todos os homens, não se reduz à

expressão de um amor genérico e abstracto, em si mesmo pouco

comprometedor, mas requer o meu empenho prático aqui e agora. Continua a

ser tarefa da Igreja interpretar sempre de novo esta ligação entre distante e

próximo na vida prática dos seus membros. (BENTO XVI, 2005, §15)

1.2.2 Segunda parte: a parábola

Para ter a vida é preciso amar, porque a vida é amor. Se esse é o sentido da primeira

parte do texto, a segunda parte responde à pergunta: mas como é possível amar?

"Jesus retomou:" (v. 30)

Neste ponto, Jesus responde narrando a conhecidíssima "Parábola do bom

samaritano", que podemos definir como a sua autobiografia, a síntese da sua vida.

Lida à luz da vida, da morte e da ressurreição de Cristo – em analogia à leitura que

dela faziam os Padres – a parábola se ilumina e nos ilumina. O samaritano é Jesus, que ama a

19

todos nós. À medida que experimentamos o seu amor, podemos fazer aos outros aquilo que

Ele fez a nós.

Se não o experimentamos, vivemos na tristeza. O homem faz o mal justamente porque

não conhece o amor, porque não sabe quem é. Sob essa ótica, na parábola, encontramos tanto

a missão do Filho em relação a nós quanto o princípio da nossa missão.

Na história de amor que a Bíblia narra, Deus vai continuamente ao encontro do

homem. Nessa parábola, temos a essência do cristianismo, em cujo centro está justamente o

encontro com Aquele que Deus mandou "[...] para que todo o que nele crê [...] tenha a vida

eterna" (Jo 3,16).

Deus nos amou primeiro (Cf. 1 Jo 4,10), e esse amor de Deus se fez visível em Jesus;

por isso, nós também podemos responder com amor. Deus não nos ordena um sentimento que

não podemos suscitar em nós mesmos. Ele nos ama, nos faz ver e experimentar o seu amor e,

a partir desse "primeiro passo", Deus pode, como resposta, fazer surgir o amor também em

nós.

Com a centralidade do amor, a fé cristã acolheu o núcleo da fé de

Israel e, ao mesmo tempo, deu a este núcleo uma nova profundidade e

amplitude. [...] Dado que Deus foi o primeiro a amar-nos (cf. 1 Jo 4, 10),

agora o amor já não é apenas um « mandamento », mas é a resposta ao dom

do amor com que Deus vem ao nosso encontro. (BENTO XVI, 2005, §1)

A parábola é um texto belíssimo e muito famoso, mas frequentemente é conhecida

com certo "curto-circuito", como se a história narrada por Jesus fosse um simples exemplo

prático que nos ensina que devemos ser "bons samaritanos", quando, em primeiro lugar, ela

nos chama a entender algo mais importante, mais profundo.

Agora, leiamos o texto e tentemos "esmiuçá-lo".

"Um homem descia de Jerusalém a Jericó" (v. 30)

Fala-se de um homem qualquer ("anthrôpos tis") que desce de Jerusalém a Jericó. Esse

homem poderia ser rico ou pobre, judeu ou estrangeiro; Jesus não especifica nada sobre sua

identidade, simplesmente fala de um homem, exatamente como Lucas introduz a figura do

escriba (um legista) e como introduzirá a do sacerdote. Não conhecemos nem o nome, nem a

classe social, nem a nacionalidade ou a profissão desse homem. Sabemos apenas que é um ser

humano que, sozinho, está saindo de Jerusalém e indo em direção a Jericó; portanto, está

descendo.

20

Jerusalém e Jericó distam apenas vinte e sete quilômetros, mas entre as duas cidades

há um desnível de mais mil metros. Dos cerca de oitocentos metros acima do nível do mar de

Jerusalém, desce-se aos cerca de duzentos abaixo do nível do mar de Jericó. "É um declive

fatal"6 (MAZZOLARI, 1977, p. 38), não apenas pela sua intensidade, mas também pela

inospitalidade da estrada que atravessa o Wady el Quelt, o vale ainda hoje famoso pelo ataque

dos assaltantes.

Fazendo "ressoar" mais uma vez a leitura dos Padres e assim indo além do sentido

literal do texto: cada homem, a partir de Adão, não sobe a Jerusalém, que é o lugar de Deus,

mas, em vez disso, desce. O homem se afasta de Deus que, desde o início, lhe pergunta "Onde

estás?" (Gn 3,9b) e o homem lhe responde "[...] tive medo, porque estou nu, e me escondi"

(Gn 3,10). Parece que a tarefa do homem é afastar-se de Deus, porque pensa que Deus é mau,

que o vá punir, e por isso ele se afasta. "A estrada de Jerusalém para Jericó aparece como a

imagem da história do mundo" (RATZINGER, 2007, p. 178).

"e caiu no meio de assaltantes que, após havê-lo despojado e espancado, foram-

se, deixando-o semimorto." (v. 30)

Os assaltantes logo fugiram com o fruto do roubo, enquanto o outro, depois de ser

despojado e espancado, agora está ali, semimorto, à beira da estrada. É uma pessoa que

precisa ser socorrida.

Cada homem se afasta de Deus e, longe de Deus, cai nas mãos de assaltantes (seria

preciso descobrir quem são, para não cair na emboscada deles... mas já caímos!) que o

espoliam; como no caso de Adão que, afastando-se de Deus, fica nu. O homem semimorto à

beira da estrada (da história e do próprio Deus) é, portanto, a imagem da humanidade.

O homem é feito à imagem e semelhança de Deus, mas, quando se afasta Dele perde a

sua identidade, fica despojado da sua essência, é o nada de si (não é mais aquilo que é): os

seus limites se tornam lugar de ataque e de agressão, em vez de lugar de comunhão com o Pai,

no qual receber o Seu amor.

6 "È un pendio fatale"

21

A teologia medieval concebeu as duas informações da parábola sobre

o estado do homem destroçado como afirmação fundamentalmente

antropológica. Da vítima do assalto diz-se, por um lado, que foi espoliado

(spoliatus) e, por outro, que foi ferido quase até a morte (vulneratus; Lc

10,30). Os escolásticos [...] dizem [...]: é despojado do brilho da graça

sobrenatural que lhe fora dada e ferido na sua natureza. [...] uma tentativa de

precisar a dupla ferida que pesa na história da humanidade. (RATZINGER,

2007, p. 178)

"Casualmente, descia por esse caminho um sacerdote; viu-o e passou adiante."

(v. 31)

É a primeira pessoa que passa. Ele também está descendo aquela estrada, mas vê o

homem e passa adiante. Não se trata de uma pessoa qualquer, mas de um sacerdote, de

alguém que está a serviço do Senhor e que representa a Lei e a religião. Nesse sentido,

sobretudo para o leitor cristão do Evangelho, o contraste da situação fica bem marcado: "para

que serve ser um especialista a respeito da grande questão da salvação e conhecer os

mandamentos se depois o outro parece ser inexistente para ele?".

Mas a situação é mais complexa. É preciso considerar a mentalidade do tempo e, de

modo particular, algumas razões ligadas à Lei e à chamada "pureza cultual". O sacerdote vê o

homem e passa adiante porque está sendo "guiado" por uma ótica religiosa, por uma imagem

de Deus típica do judaísmo farisaico contemporâneo de Jesus: os sacerdotes agiam segundo as

normas que Moisés, em nome de Deus, lhes dera (ver, por exemplo, Lv 21,1-9), uma Lei que

obrigava a passar adiante e a desviar. E eis que o primeiro socorro em potencial, justamente

porque vê aquele semimorto, passa adiante sem parar.

A Lei que o sacerdote representa faz com que ele veja o homem e mude de lado. Por

quê? A Lei é capaz de ver e, se é justa, distingue o bem do mal (e isso é importante, porque

mostra que o homem deseja o bem e recusa o mal; não ter a Lei seria pior, porque isso

significaria que o mal e o bem são iguais e que não valeria a pena mudar); depois, limita o

mal (a Lei é dada para as transgressões – Gal 3,19 – e serve de cárcere e de pedagogo durante

a espera da chegada do Salvador) e, enfim, o condena, mas é como se dissesse ao homem

"você se saiu mal, está mal!", sem dar-lhe a possibilidade da salvação. A Lei faz entender que

precisamos sair do mal, mas depois nos diz que jamais sairemos dele e que a existência se

torna um "ser-para-a-morte" (HEIDEGGER, 2004, p. 50).

Portanto, a Lei que o sacerdote representa é uma "tentativa" de fazer o homem sair da

solidão, da não identidade, da ferida, do mal, da morte. Cada religião, mas não apenas, cada

22

filosofia, cada ciência, cada técnica, cada forma de arte é uma tentativa de remediar essa

condição de miséria e de afastá-la o máximo possível, de modo que o semimorto não morra

logo totalmente.

O guardião da Lei, porém, não pode fazer mais nada além de passar longe porque, de

fato, é incapaz de salvar: a Lei não salva. Poder-se-ia dizer que a Lei faz o diagnóstico (o que

é indispensável), mas não é terapêutica. A sua função é justa, mas é de acusar, não de salvar.

"Igualmente um levita, atravessando esse lugar, viu-o e prosseguiu." (v. 32)

É o segundo socorro em potencial, que representa o culto, mas também ele, sempre

pelo motivo do seu serviço ao templo que o sujeitava a um rígido ritual de pureza, prossegue,

como o sacerdote. Surge novamente a pergunta: "mas, então, para que servem o culto, a

liturgia e todas as cerimônias se não garantem a caridade?".

O culto celebra algo originário, é a festa de como deveria ser a vida, é a celebração de

"como era belo" o mundo da forma como Deus o quis. Cada religião indica algo de ideal, mas

se coloca um problema: como atingi-lo? É possível? Porque Deus é altíssimo, é santo, e é de

tal forma Outro, em relação a nós, que não se pode alcançá-lo. Essa "nostalgia" é algo tão

enraizado no homem que existem até mesmo muitos cultos leigos. O culto, se é belo, nos faz

ver o quanto deveria ser bela a nossa vida, mas na realidade estamos machucados, despojados,

semimortos.

Também o levita, que representa a segunda tentativa de sair dessa condição, passa

adiante porque, assim como a Lei, nenhum culto salva. Nem mesmo o melhor culto; pelo

contrário: quanto melhor for o culto, mais é possível perceber a diferença entre o ideal e a

realidade.

As duas tentativas fundamentais de que o homem lança mão para sair da condição do

mal – a Lei, de todos os tipos, e os cultos, de todos os tipos – falham. "[...] apenas do que é

próprio da história, das suas culturas e religiões não vem salvação nenhuma" (RATZINGER,

2007, p. 178).

23

"Certo samaritano em viagem, porém, chegou junto dele, viu-o e moveu-se de

compaixão." (v. 33)

E então passa um samaritano. Ele também vê o semimorto, mas, diferentemente dos

dois primeiros, não se pergunta até onde chegam os seus deveres de solidariedade ou sequer

quais são os méritos necessários para a vida eterna. Acontece outra coisa: ele se comove.

A expressão usada por Lucas (esplagchnisthê) é uma das palavras mais importantes

das Escrituras. Ter compaixão significa ser tocado profundamente, quase transtornado,

arrancado de si; quer dizer exatamente que "moveram-se nele as vísceras maternas", como se

uma mãe estivesse vendo um filho golpeado, ferido, semimorto. Essa expressão nunca indica,

nos Evangelhos, um sentimento puramente humano, mas somente e sempre os sentimentos de

Jesus, pela fome e pela falta de rumo das multidões que o seguiam, ou os sentimentos

apaixonados do Pai pelo seu povo.

Poucas páginas antes, a mesma palavra é usada para escrever a emoção de Cristo à

vista da viúva de Naim em pranto (Lc 7,13) e o sentimento do pai que "tinha dois filhos"

quando vê que o menor retorna à sua casa (Lc 15,20). É suficiente essa aproximação

filológica, desejada pelo evangelista, para entender que aconteceu algo extraordinário: o

samaritano experimenta uma emoção profundamente humana mas, ao mesmo tempo, de

natureza divina.

O seu ver e o seu agir correspondem à sua reação interior, tipicamente divina: é a

misericórdia de Deus, é o olhar de Deus, que é sempre cheio de compaixão, as vísceras

maternas o movem a ir ao encontro. Mais que um sentimento passageiro, trata-se de um

impulso forte a compartilhar a situação dolorosa daquele seu semelhante oferecendo toda a

ajuda possível.

"Por meio da luz fulminante da misericórdia que alcança a sua alma, torna-se ele

mesmo 'próximo', para além das perguntas e dos perigos" (RATZINGER, 2007, p. 178).

Então, o seu ver se torna pés para ir em direção àquele desconhecido que quase seguramente é

um judeu do qual deveria manter distância, pelos mesmos motivos religiosos (que veremos

melhor a seguir) que fizeram que o sacerdote e o levita passassem adiante sem comover-se.

Para o homem ferido, se estivesse conservando ainda um mínimo de consciência, seria

o segundo grande susto do dia: depois dos assaltantes, que o privaram de tudo, agora, também

24

inesperadamente, é justamente um inimigo samaritano a inclinar-se sobre ele, a prestar-lhe

socorro e a levá-lo consigo.

Neste ponto, é importante fazer uma consideração: o texto é conhecido como a

parábola do bom samaritano e, no nosso imaginário, o termo "samaritano" se tornou sinônimo

de bondade, generosidade e prontidão para socorrer, mas certamente não era essa a imagem

que essa palavra suscitava no tempo de Jesus. Naquela época, os judeus não tinham nada em

comum com os samaritanos (cf. Jo 4,9) e chamar alguém de samaritano equivalia a desprezá-

lo, tachá-lo de endemoniado, herege, impuro, intocável.

O próprio Jesus ouviu gritarem a ele chamando-o por esse nome: "Não dizíamos, com

razão, que és samaritano e tens demônio?" (Jo 8,48b), disseram os seus conterrâneos. A

expressão "bom samaritano" é, portanto, uma contradição, é como dizer "bom mau". O

samaritano é "alguém a ser evitado".

O Evangelho segundo Lucas, do capítulo nove ao dezenove, no qual está inserida a

parábola, narra também que Jesus, assim como o samaritano, está viajando: ele partiu da

Samaria em direção a Jerusalém (Lc 9,51). Essa insólita passagem pela Samaria

(normalmente, evitava-se passar por ali) faz com que esse nome seja atribuído a ele.

Em Lc 9,51-53, encontramos a descrição do início dessa viagem:

Quando se completaram os dias de sua assunção, ele tomou

resolutamente o caminho de Jerusalém e enviou mensageiros à sua frente.

Estes puseram-se a caminho e entraram num povoado de samaritanos, a fim

de preparar-lhe tudo. Eles, porém, não o receberam, pois caminhava para

Jerusalém. (Lc 9,51-53)

Os mensageiros de Jesus depararam-se com um grande "não!" dito pelos samaritanos:

Jesus foi rejeitado, não foi acolhido. Esses samaritanos, que são excluídos como hereges pelos

judeus, passam também eles a excluir.

Jesus "continua sendo" o Amor, para o qual muitas vezes não há lugar. Jesus deverá

entrar no abismo dessa rejeição e sua descida à mansão dos mortos será o "toque final", que

aqui já está em curso.

Jesus está fazendo o caminho oposto ao caminho do homem: está subindo a Jerusalém,

onde será morto. Jesus se fez "sinal" para todos já a partir do seu batismo, quando entrou na

fila com os outros, com os pecadores, para depois subir novamente em direção ao Pai partindo

25

do último lugar, de forma a encontrar, subindo, todos aqueles que fogem para longe Dele. E

na cruz, entre os dois ladrões, apresentará ao Pai toda a humanidade no seu mal.

Se o assaltado é a imagem do homem como tal, então o samaritano só

pode ser a imagem de Jesus Cristo. O próprio Deus, que para nós é o estranho

e o distante, abriu-se, para assumir em si a sua criatura ferida. Deus, o

distante, fez-se próximo em Jesus Cristo. (RATZINGER, 2007, p. 178)

O samaritano-Jesus desce para perto daquele homem, assim como o Senhor, depois de

ter ouvido o grito de angústia do seu povo, desceu ao seu lado para libertá-lo do Egito. A

viagem feita por Jesus parte daquela mesma compaixão: Deus, apaixonado pela sua criatura e

com vísceras maternas, abaixa-se; inclina-se; faz-se homem; como homem, faz-se servo de

todos; como servo de todos, até a escravidão e a morte infame na cruz, vai até a mansão dos

mortos para encontrar a todos. Todos os abandonados, todos os feridos, todos os mortos, toda

a história antes Dele e toda a história que virá depois e que fará o mesmo caminho. O caminho

de distância, de ferida, de morte. A vontade do Pai é a de que todos sejam salvos.

Pode-se imaginar o desconcerto do doutor da Lei e dos outros que estavam ouvindo.

Para eles, entra em cena uma pessoa entre as mais detestadas. Provavelmente, os próprios

discípulos de Jesus, que ainda tinham fresca na memória a rejeição dos samaritanos, devem

ter pensado: "Justamente ele? Mas como, Senhor? Não o acolheram, não o quiseram,

mandaram-no embora; e agora coloca um deles sobre um pedestal!"7. Porém, Jesus,

imperturbável, toma como modelo a imitar justamente um samaritano.

Mas que diferença isso faz para quem está semimorto? Se quem passa é um sacerdote,

um levita, um judeu ou um samaritano, para aquele homem ferido não faz nenhuma diferença.

Do seu ponto de vista, qualquer um que passe por perto é o seu próximo, mas apenas torna-se

o próximo de fato quem se aproxima para ajudá-lo.

Neste ponto, a questão vai em outra direção: já não se trata de saber

quem é o meu próximo ou não. Trata-se de mim mesmo. Eu tenho de me

tornar próximo, porque o outro conta comigo 'como eu mesmo'.

(RATZINGER, 2007, p. 176)

Jesus deseja que quem o está ouvindo saiba que, no centro da narração, está

justamente aquele homem ferido, do qual não se sabe nada exceto que, roubado e espancado

por assaltantes, está à espera de socorro. Jesus, do começo ao fim da parábola, não para de

7 Informação verbal de Padre Dario Berruto, da Arquidiocese de Turim, em retiro ministrado no Arsenal da Paz,

em Turim, de 12 a 16 de janeiro de 2015.

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falar dele. Ainda que aquele pobre homem não diga nenhuma palavra e não faça nenhum

gesto, todos os personagens e ações da história giram em torno dele.

Para saber quem é o nosso próximo, é preciso ter misericórdia e parar, suspender os

próprios interesses e interessar-se pelas necessidades do outro. Sim, porque a medida somos

nós mesmos, e qualquer um de nós saberia bem quais seriam as suas necessidades naquela

ocasião. Faça, portanto, ao outro, a qualquer outro, aquilo que você gostaria que ele lhe

fizesse se o encontrasse na mesma situação.

Nem mesmo o nome do samaritano nós sabemos. A Jesus interessa unicamente

mostrar que ele pertence a esse povo tão desprezado pelos judeus. Se aquele sacerdote e

aquele levita – os puros por excelência, que na parábola passam adiante – tivessem

encontrado primeiro o samaritano, teriam igualmente tentando passar o mais longe possível,

para sequer correr o risco de cruzar o olhar com ele.

Nenhum dos que estavam ouvindo Jesus esperariam que fosse justamente um

samaritano a socorrer aquele azarado. Até mesmo o samaritano, de sua parte, teria razões

suficientes para não intervir. É, todavia, justo essa surpresa – a do samaritano que presta

socorro para além do preconceito – a tornar explícito o "paradoxo" do amor que Jesus quer

ensinar (um ensinamento diferente daquele dos outros "rabbi" – Mc 14,15; Jo 1,38.39; 4,31-

32): o único a entrar na "lógica" do maior mandamento dos judeus e a colocá-lo em prática,

tornando-se o próximo daquele desconhecido, não é um "sábio", um especialista da Lei, um

membro da comunidade solidária nem alguém que poderia ser considerado como próximo,

mas justamente alguém entre os menos preparados a compreendê-la, até mesmo um herege,

um inimigo, que, porém, "ama" o ferido como a si mesmo.

"Aproximou-se, cuidou de suas chagas, derramando óleo e vinho,..." (v. 34)

O samaritano parou e se aproximou do moribundo. São apenas os primeiros

movimentos, mas que indicam que ele é movido não por simples curiosidade, e sim por

compaixão e desejo de fazer algo por aquele homem. Mesmo que ele não pudesse fazer nada,

teria já cumprido o mandamento. No plano da dor, reconhecera um irmão, qualquer que fosse

a sua etnia e a sua religião. Mas o samaritano podia fazer algo, ele o faz e assim, depois dos

seus "pés", agora são as suas "mãos" a colocar-se em movimento, e ele começa os seus gestos

de socorro.

27

Como os dois primeiros que passaram, também o samaritano não é um médico e não

pode fazer muita coisa; mas, olhando aquele semimorto como se fosse seu pai e seu irmão, faz

o que teria feito, em uma situação semelhante, para um familiar ou um amigo; faz tudo o que

gostaria que alguém lhe fizesse caso ele mesmo se encontrasse naquela situação de

necessidade. Ele lhe presta os "primeiros socorros".

Derramou sobre as feridas um pouco de óleo e um pouco de vinho, aquele para aliviar

a dor e este para desinfetar (talvez primeiro o vinho e depois o óleo), e lhe enfaixou, para que

não perdesse mais sangue. Esse gesto de enfaixar não deve ser subestimado porque, enquanto

o óleo e o vinho ele provavelmente trazia consigo, como provisões ou para vender, quase

seguramente não tinha faixas e bandagens e, portanto, deve ter recorrido à própria túnica ou

ao próprio turbante (JEREMIAS, 1976, p. 249).

O leitor cristão da parábola tem como ponto de referência Jesus: Sua proximidade

enfaixa as nossas feridas, os nossos limites, os pontos em que nos sentimos sozinhos e aqueles

que se tornam lugar de agressão feita ou sofrida, de feridas. Também o samaritano-Jesus

acabará ferido: não estamos mais sozinhos, nas suas chagas somos todos curados, porque com

as suas chagas ele compartilha os nossos limites e faz do nosso mal um lugar de compaixão,

de partilha, de amor mais forte que a morte. O limite, qualquer que ele seja, até o mais

absurdo, o abandono de Deus, Ele o carrega sobre si, porque nos ama; e os nossos limites, os

problemas, os defeitos, mesmo os piores, podem se tornar a oportunidade para fazer esse

encontro amadurecer.

"Ele derrama azeite e vinho nas nossas feridas, onde pode ver-se uma imagem do dom

santificante dos sacramentos [...]" (RATZINGER, 2007, P. 178). Aquele óleo que faz o rosto

brilhar pode ser visto como a Palavra de Deus que nos restitui o nosso rosto de filhos. Mas a

Palavra de Jesus não é apenas Palavra, é também Espírito que dá vida, é vinho. É o remédio

da nossa vida, que nos dá novamente o nosso rosto e nos purifica das nossas feridas.

"depois colocou-o em seu próprio animal,..." (v. 34)

Depois de ter prestado os primeiros socorros, o samaritano coloca o ferido sobre a sua

montaria para levá-lo a um lugar de repouso e cuidados. A palavra traduzida muitas vezes

como montaria, animal ou jumento em grego, indica mais aproximadamente algo que

pertence ao samaritano por ele tê-lo comprado, mas é evidente que deve tratar-se de um asno

28

ou de uma mula de carga. Todavia, o que realmente importa é que o samaritano não abandona

aquele homem ao próprio destino, mas leva-o consigo.

Lendo Paulo (Fl 2), encontramos aquilo que Jesus adquiriu para si por um alto preço: a

nossa humanidade, a nossa carne, o nosso limite, o nosso pecado, às custas da sua divindade,

fez-se o último de todos e, ali, na sua humanidade, carregou toda a nossa desumanidade.

"conduziu-o à hospedaria,..." (v. 34)

O samaritano leva aquele homem ferido aonde sabe que ele poderá repousar e se

recuperar. Ou seja, ele o leva aonde gostaria de ser levado caso se encontrasse naquela mesma

condição e, agindo como homem, age como Deus.

Literalmente, a palavra "pandocheîon", que normalmente é traduzida como pensão ou

como hospedaria, significa "o lugar que acolhe todos"8 (FAUSTI, 1994, p. 393) e indica,

provavelmente, uma acolhida para caravanas e peregrinos dotada de lugares para os animais

de montaria e de dormitórios para os viajantes. A desenvoltura com que o samaritano se move

naquele ambiente indica que, habituado a viajar, conhece bem aquele tipo de alojamento.

O "lugar que acolhe todos", na interpretação alegórica dos Padres, é uma casa entre a

Jerusalém celeste e Jericó, símbolo da Igreja que já sobre esta terra representa o Pai que

acolhe todos, à espera da Jerusalém celeste.

Depois da partida de Jesus, e à espera do seu retorno, esse "pandocheîon" é também

imagem da comunidade de quem faz como ele. Nessa casa, qualquer um que necessite

encontra hospitalidade, pagada antecipadamente pelo samaritano.

"e dispensou-lhe cuidados." (v. 34)

A Jesus interessa deixar claro que, levando o ferido para esse lugar, o samaritano tem

a possibilidade de cuidar ainda mais de quem salvou da estrada. Ele, de fato, não se limita a

entregá-lo ao dono da hospedaria, mas, devendo também ele passar a noite ali, continua a

estar perto do ferido pelo resto do dia e, muito provavelmente, também durante a noite.

8 "l'albergo che accoglie tutti"

29

Em grego, a palavra "epimeléo" indica o cuidado compreendido como a preocupação

materna de quem cuida de um filho, um cuidado preocupado que se torna cuidado ativo, e é

Ele pessoalmente, Jesus-samaritano, que cuida de nós, neste lugar que acolhe todos.

"No dia seguinte, tirou dois denários e deu-os ao hospedeiro," (v. 35)

O samaritano já fez tudo o que podia, mas sabe que aquele homem pode precisar de

tantas outras coisas... Estes últimos versículos nos dizem ainda que ele assume toda a

responsabilidade financeira, para que o hospedeiro prossiga com a sua obra de misericórdia.

Dois denários são o salário de dois dias de trabalho. Para Lucas, a história dura apenas

dois dias (quer dizer que no terceiro dia ele voltará): o primeiro é o da criação de Adão que

foge de Deus, até o novo Adão que retorna a Deus com a Ascensão de Jesus. A ida e a volta

do homem. O segundo dia é todo o resto da história, é o nosso dia, nós que somos como o

velho Adão que foge de Deus e que, se nos tornamos como Jesus, com Ele retornamos ao Pai.

Aonde está indo Jesus? É bom recordá-lo. Está vindo da Samaria e indo em direção a

Jerusalém; irá para a cruz, onde será desnudado, espancado, ferido, morto, pagando por todos

aqueles que vieram antes dele e por todos aqueles que virão depois.

"dizendo: 'Cuida dele, e o que gastares a mais, em meu regresso te pagarei'."

(v. 35)

A preocupação total do samaritano fica demonstrada por essa última passagem de

entrega ao hospedeiro para que ele se ocupe do ferido sem poupar despesas; se fosse

necessário, na sua volta – o samaritano garante que voltará – pagaria o resto.

É importante notar que esse homem atrasou a própria viagem, gastou muita energia,

assumiu ele mesmo os riscos, gastou o lucro de dois dias comprometendo-se a gastar ainda

mais, e prometeu voltar ali depois de ter terminado os seus afazeres.

Dos seis versículos da parábola, três são dedicados ao samaritano, mais precisamente à

sua intervenção cheia de compaixão. Não é dele e das suas convicções que Jesus fala, mas da

sua reação interior, que é a emoção própria de Deus e daquilo que esta o impulsiona a fazer

por aquele homem gravemente ferido.

30

É realmente notável o vocabulário que ressalta o empenho do samaritano: uma dezena

de verbos, a maior parte de ação e os outros de recomendação, todos altamente significativos

sobre a alta qualidade da sua solicitude.

Mas o samaritano não se contenta com o que fez. Ele vai embora dali com o

pensamento no ferido que, pelo mistério da piedade que o moveu a aproximar-se dele, tornou-

se alguém de quem ele quer cuidar até o fim... E não quer distanciar-se dele sem ter

conseguido fazer com que ele possa levantar-se. Ele se tornou realmente próximo.

A parte final da narrativa nos diz que existe alguém que acolhe todos, que toma o

lugar do samaritano. E quando Ele voltará? Quando todos voltarmos ao Pai. Ele já pagou por

toda a história e por cada homem, deu a vida por todos e o seu ir para o Pai é um abrir a todos

o caminho, de forma que qualquer um o alcance e, tendo-o alcançado, possa fazer a mesma

coisa. E diz ao hospedeiro, àquele que acolhe todos: "Cuida dele!", ou seja, "faça como eu fiz,

ama como eu amei. No meu retorno, eu te restituirei aquilo que tiveres gastado a mais".

Quando o Senhor voltar, Ele nos retornará exatamente aquele amor que demos aos

irmãos, aquele que Ele não pode dar em nosso lugar. Ele já pagou por todos, mas há um "a

mais" que somos chamados nós a dar, a nossa resposta ao amor que recebemos. E será essa

nossa resposta ao amor recebido que nos tornará semelhantes a Ele, que nos dará a nossa

identidade eterna.

São os gestos do samaritano que contam; porém, não os gestos sozinhos, mas os gestos

feitos "com a compaixão no coração" (OLIVERO, 2013, p. 66-67), que os move, os sustenta e

os torna preciosos. Aquilo que, de fato, dá razão à extraordinária prontidão e solicitude do

samaritano é o sentimento que ele experimenta ao ver aquele homem semimorto. Uma

emoção que lhe nasce do mais íntimo e, ao mesmo tempo, do mais físico de si mesmo.

A parábola teria sido completa mesmo que Jesus tivesse simplesmente dito que aquele

samaritano, vendo a situação miserável daquele homem, aproximara-se, cuidara de suas

feridas e o levara à hospedaria. A nossa admiração por ele não mudaria. Do ponto de vista

quantitativo, a emoção não alcança mais do que isso. Tiago nos ensina: entre quem tem fé,

mas não faz nada, e quem não tem fé, mas faz o bem, é a este último que devemos olhar com

admiração (Tg 2,14). Mas, na parábola, é justamente aquele tipo de emoção a fazer a

diferença e tornar universal o exemplo do samaritano. Os sentimentos do samaritano são os

mesmos de Jesus, e ele para e se aproxima como Jesus teria feito.

31

O amar o próximo como a si mesmo não se refere somente às coisas a fazer. Se assim

fosse, o mandamento diria: "Farás pelo teu próximo aquilo que farias por ti". Evocar as

vísceras, o verbo da emoção do Pai e do Filho, destaca a profunda interioridade desse

sentimento. Jesus quer que saibamos que tudo o que é feito pelo samaritano vai muito além do

simples dever de socorro expresso por um preceito, ainda que seja o maior dos mandamentos.

Trata-se do sentimento que – como vimos – indica o máximo envolvimento divino na

sua relação com os homens. Exprime, de fato, o laço de empatia da mãe com o filho e a

instintiva e constante inquietação pelo fruto do seu ventre. Não se trata de simples piedade

pelo sofrimento alheio ou do sentimento que surge de uma sensibilidade da alma, mas de uma

necessidade instintiva de se inclinar sobre quem sofre ou, no caso de quem teria certa

resistência em fazê-lo, de um sentimento de "dever" que nasce da consciência ou da

obediência. É apoiado sobre a fidelidade de Deus que, como uma mãe e mais ainda que uma

mãe, não pode esquecer o fruto de seu ventre, nem mesmo quando este se revolta contra ela.

Os gestos generosos e concretos do samaritano em relação ao homem ferido são

iluminados por essa tomada interior de responsabilidade, por esses sentimentos que o tornam

modelo de todo discípulo de Cristo e, antes mesmo, do próprio Jesus.

Jesus já tem pronta a sua segunda pergunta para o especialista da Lei justamente sobre

este ponto.

1.2.3 Terceira parte

"'Qual dos três, em tua opinião, foi o próximo do homem que caiu na mão dos

assaltantes?' Ele respondeu: 'Aquele que usou de misericórdia para com ele'."

(vv. 36-37)

Se Jesus, em vez de contar a parábola, tivesse perguntado:

Se a pergunta tivesse sido assim formulada: O samaritano é também

meu próximo?, naquela situação a resposta teria sido claramente negativa.

Mas agora Jesus coloca a questão ao contrário: o samaritano, o estrangeiro,

faz-se a si mesmo próximo e mostra-me que é a partir do meu interior que eu

devo aprender a ser próximo e que eu trago a resposta já em mim. Eu devo

ser alguém que ama, alguém cujo coração está aberto à comoção perante a

necessidade do outro. Então eu encontro o meu próximo, ou melhor, serei

encontrado por ele. (RATZINGER, 2007, p. 176)

O doutor da Lei, diante do exemplo indiscutível da parábola, não tem alternativa e,

diante daquela pergunta (qual dos três...), só pode responder como Jesus espera e quer que ele

32

responda. Não consegue pronunciar "o samaritano", é um nome ainda muito repugnante para

ele, mas diz: "Aquele que usou de misericórdia para com ele".9

É neste ponto que Jesus, ainda voltado para ele (o seu olhar continua a ser de amor e

de compaixão também para esse doutor da Lei...) lhe diz para fazer a mesma coisa. Não há

mais nada a ser dito, apenas a ser feito: a misericórdia. Aqui está a síntese de toda a ação de

Jesus: fazer misericórdia com o homem.

"Jesus, então, lhe disse: 'Vai, e também tu, faze o mesmo'." (v. 37)

A diferença entre os dois "rabbi" não está no tipo de ensinamento. A chamada inicial

de Jesus às Escrituras e as respostas do doutor da Lei, confirmadas com autoridade por Jesus,

mostram que tudo o que foi dito era já conhecido e compartilhado nas Escrituras e, portanto,

também pelo próprio doutor da Lei.

Onde está, então, a novidade de Jesus? Na posição absoluta – em meio àquele

gigantesco catálogo de 613 mandamentos que se multiplicam, se diversificam, se

confundem... – que é conferida ao amor e na implicação pessoal e radical de si: "Faze isso e

viverás" e "Vai, e também tu, faze o mesmo".

Agora, percebemos que todos nós somos como aquele homem que desce de Jerusalém

a Jericó porque não sabemos amar, somos atacados por assaltantes, desnudados, perdemos a

identidade, ficamos semimortos, justamente porque não nos sentimos amados e não sabemos

amar. E o sacerdote, quem é? Somos também nós, porque a Lei não nos salva e muito menos

as nossas tentativas de observá-la exatamente, nos esforçando muito segui-la. E o levita?

Também somos nós, e assim por diante...

Como é possível, então, fazer o mesmo como Jesus pede ao doutor da Lei? É possível

porque o samaritano-Jesus se aproxima de nós e nos ama, cuida de nós a ponto de Ele mesmo

se tornar como nós (ferido, nu, morto na cruz) e curar-nos.

9 Informação verbal de Padre Dario Berruto, da Arquidiocese de Turim, em retiro ministrado no Arsenal da Paz,

em Turim, de 12 a 16 de janeiro de 2015.

33

[...] percebemos que todos precisamos do amor de Deus, que se

oferece e que redime, de modo que também nós possamos tornar-nos capazes

de amar. Percebemos que precisamos sempre de Deus, que se fez nosso

próximo, para que possamos também ser próximos. [...] cada um deve ser

antes de mais nada curado e agraciado. Mas cada um deve também se tornar

samaritano – seguir Cristo e tornar-se como Ele. Só assim é que vivemos

corretamente. Então vivemos corretamente, se formos semelhantes àquele

que primeiro nos amou (1Jo 4,19). (RATZINGER, 2007, p. 179)

O significado da nossa missão é o de nos identificarmos com o homem ferido e ver

tudo o que Jesus faz por ele e por nós. Ele nos amou e deu a si mesmo por nós. "Com Cristo,

eu fui pregado na cruz. Eu vivo, mas não eu: é Cristo que vive em mim. Minha vida atual na

carne, eu a vivo na fé, crendo no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim" (Gal

2,19-20). É ver o amor que Cristo tem por nós; então, o amamos amando o último dos irmãos,

porque Ele é o último, fez-se último e, acolhendo o último, estamos acolhendo a Ele.

Entretanto, não somos nós que, de modo simplístico, "devemos bancar" os "bons

samaritanos fazendo algo pelos pobres". Somos, ao contrário, chamados em primeiro lugar a

entender que o pobre homem ferido e semimorto somos nós e, à medida que experimentamos

o amor de Deus por nós – que nos é mediado por aquele que acolhe todos –, também nós nos

tornamos como Cristo e saberemos amar na medida em que nos sentirmos amados.

Esse texto de Lucas apresenta em síntese todo o cristianismo, seja no seu fim, que é

amar, seja no seu meio, é o sermos amados, dizendo-nos também como surge no homem o

"mecanismo" desse amor; ou seja, justamente ali onde me aconteceu o mal, vivo a experiência

do bem, do amor, da cura, e ali mudo e me torno a pessoa amada, curada, cuidada e capaz de

fazer o mesmo (CRIMELLA, 2012, p. 31).

"A parábola do samaritano é tão bonita que parece verdadeira, um fato realmente

acontecido nos dias de Jesus e a cada dia, nas nossas estradas"10

(MAZZOLARI, 1977, p. 30)

10 "La parabola del samaritano è così bella che par vera, un fatto realmente accaduto ai giorni di Gesù e ogni

giorno, sulle nostre strade."

34

2 ATUALIZAÇÃO: UM HOJE DA PARÁBOLA

A escuta da parábola do bom samaritano nos levou a analisá-la em um plano

exegético-espiritual. É evidente que existe um processo muito longo por meio do qual a

parábola chegou até nós e, portanto, existe uma enorme distância entre nós e as circunstâncias

precisas que levaram Jesus a narrar aquela história. Mas a parábola nos dá um evento, uma

"urgência", que se torna exemplar em qualquer época: diante da emergência daquele homem

ferido – que somos nós – é mostrado um duplo comportamento negativo e depois um

comportamento positivo, a "surpresa" do samaritano, que é Jesus, que cuida do homem com o

seu amor. E a narração é concluída com a fórmula "Vai, e também tu, faze o mesmo" (Lc

10,37b), que ainda hoje abala e surpreende, porque quer levar aqueles que a ouvem a

responder às perguntas: "E eu, de que lado estou? Com qual personagem me identifico? O que

devo fazer agora, na sociedade atual?". Muitas vezes corremos o risco de fugir dessas

perguntas, como se elas fossem voltadas apenas para os outros, mas em certo ponto existem

situações ou "percepções" que nos fazem reagir, e então a parábola nos interpela e atinge o

seu objetivo: provocar uma mudança, uma conversão, uma transformação decisiva.

A partir dessa "solicitação", como segunda etapa deste trabalho propomos uma

atualização da parábola, tentando descobrir e destacar como o seu ensinamento – não apenas o

"bom exemplo" que ela oferece, e sim, mais profundamente, a "realidade da presença" de

Jesus (OLIVERO, 2013, p. 38-39) que ela contém – "ressoa" na vida de uma comunidade

chamada SERMIG – Fraternidade da Esperança, nascida em Turim (Itália), em maio de 1964,

do coração de Ernesto Olivero.

35

2.1 ERNESTO OLIVERO: TUDO COMEÇA COM A VIAGEM DE ALGUÉM

Ernesto Olivero era um jovem de 24 anos quando, em Turim, junto à futura esposa

Maria Cerrato e a um grupo de amigos, começou a "aventura" chamada SERMIG, na qual

aprendeu a conciliar a vida de família – três filhos, depois sete netos e o trabalho em um

banco – com um compromisso cada vez mais radical voltado aos mais necessitados e aos

jovens. Por eles e com eles, Ernesto "inventou" o Arsenal da Paz em Turim e, dentro dele, o

SERMIG se tornou "Fraternidade da Esperança" (uma comunidade formada por famílias,

consagrados e consagradas que compartilham todas as responsabilidades), da qual nasceram

centenas de projetos de desenvolvimento e missões de paz em todo o mundo e também o

Arsenal da Esperança em São Paulo (Brasil), o Arsenal do Encontro em Madaba (Jordânia) e

o Arsenal da Acolhida em Borghetto Lodigiano (Itália) – onde transitam e são acolhidas, a

cada dia, milhares de pessoas.

Ernesto Olivero se expressa com aquilo que faz para tentar dar vida ao que traz no

coração. Mas o que ele traz no coração? Para entendê-lo, devemos repercorrer a viagem da

vida dele. Em um texto autobiográfico, Olivero diz:

Desde pequeno eu me sentia impulsionado a viver a minha vida para

Deus, e esse pensamento, essa sensação de pertença me satisfazia. Eu não

tinha interesse pela escola e não me empenhava no estudo; sentia-me mais

atraído pelos compromissos da paróquia. Eu tinha pouco mais de oito anos e

me parecia natural ocupar-me dos problemas dos outros; acredito que,

naqueles anos, ainda que com a fé simples de uma criança, fiz a escolha

fundamental por Deus. (OLIVERO, 2004, p. 16)11

A viagem que tentaremos repercorrer como uma atualização do episódio do

samaritano aprofunda as suas raízes nesse "encontro com Deus" por parte de um menino, o

último de nove irmãos, nascido em uma família que, por causa do trabalho do pai, mudou-se

de uma pequena cidade do sul da Itália para uma cidade do Norte onde, pré-adolescente,

Ernesto viveu na pele a experiência do preconceito (por ser originário do sul)12

e da

11 "Fin da bambino mi sentivo spinto a vivere la mia vita per Dio e questo pensiero, questo senso di appartenenza

mi appagava. Non avevo interesse per la scuola e non mi impegnavo nello studio; ero piuttosto attratto dagli

impegni che la parrocchia mi offriva. Avevo poco più di otto anni e mi sembrava naturale occuparmi dei

problemi degli altri; credo di aver fatto in quegli anni, pur con la fede semplice di bambino, la scelta

fondamentale di Dio." 12

Para uma parte da população das regiões setentrionais da Itália existe, historicamente, um forte preconceito

social, político, cultural e até esportivo contra os italianos do sul, apelidados de "meridionais", acusados de

serem pessoas que "não gostam de trabalhar", que são "envolvidas com a máfia", que não "falam direito", etc.

Essa situação tem raízes profundamente ligadas, entre outras coisas, à disparidade no desenvolvimento

econômico-industrial, fato que determinou, ao longo das décadas, especialmente durante os anos 1960 e 1970,

uma grande migração de habitantes do sul para o norte italiano.

36

humilhação pelos repetidos fracassos escolares, mas sem jamais perder aquela "sensação de

pertença" que o fez continuar a comprometer-se na paróquia, na catequese, no escotismo e em

cada atividade que surgia no contexto eclesial. Nesse ambiente, Ernesto conheceu jovens e

adultos sérios e comprometidos, que se tornaram para ele pontos de referência (uma Igreja

"boa" que o acolheu e confiou nele) e que deram a primeira estrutura espiritual àquela

intuição de criança.

Com o tempo, os horizontes se ampliaram: a curiosidade e aquela intuição crescente

levaram Ernesto a participar da "Lega Missionaria Studenti" ("Liga Missionária Estudantes")

e do grupo das "Pontificie Opere Missionarie" ("Pontifícias Obras Missionárias") de Turim,

que o colocaram em relação com os problemas ligados ao subdesenvolvimento do Sul do

mundo. Junto a esses grupos, Ernesto participava ativamente da organização das "Giornate

Missionarie Mondiali" ("Jornadas Missionárias Mundiais") em Turim e em outras cidades da

Itália.

Com a entrada no mundo do trabalho – onde aprendeu a viver e a confrontar as suas

convicções humanas e religiosas – e com a aproximação do matrimônio, Ernesto "precisou"

escolher entre os vários grupos de que fazia parte; mas, em vez de decidir-se por um deles,

resolveu fundar um grupo novo. No mesmo texto, ele diz:

Eu sentia que, entre todos os serviços que eu desenvolvia com paixão

e com empenho, o que mais me envolvia era o aspecto missionário: o anúncio

da Palavra e as obras de misericórdia, "dar de comer aos famintos". Eu tinha

24 anos e me parecia inconcebível que alguém pudesse morrer de fome.

Nenhum dos grupos dos quais eu participava tinha essa característica

particular; assim, decidi comprometer-me a serviço dos missionários, em

especial daqueles que ninguém ajudava, daqueles menos conhecidos ou não

sustentados por nenhuma congregação, para ajudá-los a combater a fome.

(OLIVERO, 2004, p. 18)13

O "sonho" de que na Igreja e na sociedade aumentasse o apego à justiça para poder

vencer a fome no mundo impulsionou Olivero a escrever uma carta aos jovens das paróquias

da Diocese de Turim, para procurar quem estivesse disposto a iniciar com ele um grupo para

sustentar missionários, com o objetivo "desproporcional" (mas sentido como "alcançável") de

acabar com a fome. Recebeu em resposta cerca de uma dezena de adesões de jovens da

13 "Sentivo che tra tutti i servizi che svolgevo con passione e con impegno quello che più mi coinvolgeva era

l'aspetto missionario: l'annuncio della Parola e le opere di misericordia, 'dar da mangiare agli affamati'. Avevo

ventiquattro anni e mi pareva inconcepibile che qualcuno potesse morire di fame. Nessuno dei gruppi che

frequentavo aveva questa sottolineatura, così decisi di impegnarmi a servizio dei missionari, particolarmente di

quelli che nessuno aiutava, di quelli meno conosciuti o non sostenuti dalle congregazioni, per aiutarli a

combattere la fame."

37

região. Era maio de 1964 e aquele grupo decidiu chamar-se "Servizio Missionario Giovani"

("Serviço Missionário Jovens") – SERMIG (no início, SER.MI.G.).

2.2 O SERMIG: O GRUPO SE COLOCA EM VIAGEM

O samaritano da parábola estava em viagem; portanto, tinha uma "meta" e carregava a

sua "bagagem". Apesar disso, ele se inclinou sobre o homem ferido encontrado à margem da

estrada, viu nele um irmão, o socorreu, o confiou a quem podia cuidar dele e, enfim, retomou

a sua viagem.

Quando o SERMIG começou a sua viagem, no coração de Ernesto havia a intuição de

sentir-se amado por Deus, havia um sonho com o qual ele queria responder àquele amor –

derrotar a fome no mundo – e havia também as suas características pessoais, como a timidez,

o sentir-se despreparado, sem dons especiais... Essas características o levaram a colocar

"condições" a si mesmo e a Deus: jamais falaria em público, jamais encontraria os pobres face

a face e jamais subiria em um avião (não apenas por medo, mas também porque lhe parecia

"coisa de rico"). "Além disso [pensava], não preciso encontrar as pessoas que sofrem a fome e

vivem nas guerras, porque já as tenho no coração "14

(OLIVERO, 2011b, p. 67). Se com essas

características, aparentemente, não se podia fazer grandes coisas, com confiança em Deus e

obstinação (outra característica sua) em seguir aquele sonho era possível ajudar quem já

estava ajudando os mais pobres no "Terceiro Mundo"15

, ou seja, os missionários.

Com essa "meta", os primeiros anos do SERMIG transcorreram no ímpeto da caridade

para com os pobres do Sul do mundo, pobres que estavam "longe", mas que se tornavam

"próximos" por meio daqueles que, em várias regiões do mundo (África, Ásia, América

Latina), ajudavam alguém a não morrer de fome. Os missionários tornaram-se, assim, para

aquele grupo de jovens, um pouco como os primeiros bons samaritanos encontrados ao longo

do caminho: homens e mulheres que, para testemunhar Jesus Cristo em todo o mundo, já há

muito tempo tinham iniciado a viagem na estrada para Jericó para ir ao encontro dos homens

atacados, feridos e espoliados pela miséria, pela fome, pela sede e pelo subdesenvolvimento, e

se tinham inclinado sobre eles para deles cuidar, dedicando-lhes tempo, energias,

14 "D'altronde [pensava] non ho bisogno di andare ad incontrare la gente che soffre la fame e vive nelle guerre,

perché li ho già nel cuore." 15

A expressão "Terceiro Mundo" surgiu na época da "Guerra Fria", denominando os países que não estavam

nem do lado dos EUA nem do lado da URSS, os chamados "não-alinhados". A expressão, hoje em desuso,

passou a designar não mais uma polarização política, mas sim econômica: os países do antigo Terceiro Mundo

são chamados hoje de países em desenvolvimento.

38

solidariedade e fundando hospitais, asilos, escolas e centros de formação. Por meio do

sustento aos missionários, os jovens do SERMIG "partiam", também eles, "em missão",

mesmo que indiretamente. O fato de ter nascido com essa perspectiva, como "serviço

missionário", ditou algumas das características que seriam marcantes nos anos seguintes.

Esses missionários-samaritanos, que falavam de povos distantes, ajudaram os jovens

do SERMIG a "treinar" o olhar para ter compaixão pelas "dores do mundo" e a entrar cada

vez mais profundamente nos dramas da verdadeira pobreza – não aquela genérica e ideal, que

permanece intelectual, mas a pobreza com o rosto do homem concreto. Com o seu

testemunho, eles os ajudaram a entender a postura que deveriam ter de colocar-se à prova

sobre o "mandamento do amor", que dá frutos na medida em que é colocado em prática.

Ernesto e os seus amigos organizaram mostras missionárias para sensibilizar a

sociedade civil, arrecadações de papel, tecidos e sucata, venda de produtos artesanais,

concertos beneficentes e todo tipo de iniciativas para recolher fundos para o sustento dos

missionários e para tentar incentivar outras pessoas a fazer o mesmo. Todas essas atividades

se tornaram um "laboratório" para o exercício da caridade e um primeiro estímulo à formação

de uma "filosofia" e de um método para aplicar concretamente as palavras de Jesus.

A intuição da fé e a consciência de poder efetivamente contribuir para salvar a vida de

outras pessoas se reforçaram reciprocamente para uma operosidade cada vez mais realista e

constante: os jovens do SERMIG sentiam que o Senhor pedia que eles levassem adiante um

grupo missionário para fazer projetos de desenvolvimento no Terceiro Mundo. A "meta" era

precisa, mas os meios fornecidos pela sociedade, pela Igreja e pelo empenho pessoal de cada

membro do SERMIG eram ainda limitados: um envolvimento de poucas horas por semana

que se traduzia em ofertas esporádicas a alguns missionários...Todavia, começou a viagem

que levaria o SERMIG para um progressivo aprofundamento daquela intuição que Ernesto

sentia desde o início: "Jesus Cristo era o centro da nossa vida e a Igreja era a nossa casa"16

(OLIVERO, 2004, p. 18), uma intuição que seria amadurecida na oração e no confronto entre

os membros do grupo e com outras pessoas por ali passando encontradas e procuradas ao

longo da estrada.

16 "Gesù Cristo era il centro della nostra vita e la Chiesa era la nostra casa."

39

2.3 "1968": UMA ÚNICA ESTRADA, MAS POSTURAS DIVERSAS

Não se pode compreender profundamente o valor dessa "intuição" sem levar em

consideração a estrada, ou seja, o contexto global, histórico, cultural e eclesial no qual a

viagem do SERMIG começou e se inseriu.

De que estrada estamos falando? Dos anos 1960. Aqueles anos podem ser lidos –

agora já a uma distância de cinquenta anos – como um tempo em que foi vivido com uma

intensidade única o processo de emancipação iniciado no Ocidente cristão mais de quinhentos

anos atrás: emancipação política, religiosa, cultural, da razão, da ciência, da sociedade, da

economia, dos próprios condicionamentos do ser e do agir humanos. Na ânsia de contestar

tudo, pensava-se que nada e ninguém poderiam criar obstáculos ao pleno desenvolvimento do

ser humano, da sua razão, da sua vontade e dos seus muitos sonhos. Essa estrada levou à

negação de Deus, visto como último responsável de tudo o que havia permanecido de

restrição da liberdade, tanto na sociedade quanto na intimidade do coração humano.

Os filósofos da cultura hoje falam de uma tríplice emancipação. A primeira foi a da

razão, que culminou no iluminismo, do qual Kant é o maior expoente. A emancipação do ser

humano concreto, corporal, econômico, instintivo e amante do poder constitui a segunda

emancipação, representada por autores como Marx, Freud e Nietzsche. E, finalmente, a

terceira emancipação foi a da práxis, entendida como critério supremo da verdade: é

verdadeiro e bom aquilo que funciona e que dá resultado; é o clima filosófico do mundo

contemporâneo. Os anos 1960 foram o ápice da segunda emancipação. O Concílio Vaticano

II, que data dessa época, reconheceu o valor do ser humano e o sentido positivo da liberdade,

mas posicionou-se criticamente a respeito do movimento emancipatório: "adotou" o

humanismo, mas denunciou o ateísmo que o inspirava (cf. PAULO VI, "Gaudium et Spes",

1965, § 19-21). Viu que a contestação de todos contra tudo se baseava, em última análise, na

ignorância e na negação de Deus.17

É nessa época e sobre esse "pano de fundo" global que nasceu o SERMIG, em um

tempo em que as ideologias de direita ou de esquerda pareciam ser a única "chave de leitura"

até mesmo do Evangelho, e quem pensava de outra maneira e não queria posicionar-se

17 Informação verbal do professor Francisco Catão, em retiro ministrado no Arsenal da Esperança Dom Luciano

Pedro Mendes de Almeida, em São Paulo, no mês de junho de 2000.

40

politicamente era descartado, incompreendido, considerado (quase) um "inimigo". Mas a

viagem do SERMIG teria, desde o início, uma postura diferente. Olivero escreveu:

Nascemos em [...] uma época de violenta contestação. Uma época em

que, para ser verdadeiramente cristão, era preciso reivindicar, condenar,

escolher um lado de acordo com uma ideologia. Mas nós queríamos ficar

"ligados a Jesus", o Filho de Deus que tem palavras de vida eterna.

(OLIVERO, 2014b, p. 25)18

2.3.1 O amor-Jesus caminha assim

Nesse ponto, parece oportuno retomar alguns trechos do Evangelho que entram em

sintonia com o que foi dito até aqui. Como visto no primeiro capítulo, o contexto em que

Lucas colocou a narração da parábola do samaritano é o da viagem de Jesus para Jerusalém.

Justamente no início da viagem, Lucas coloca uma premissa importante: "Quando se

completaram os dias da sua assunção, ele tomou resolutamente o caminho de Jerusalém [...]"

(Lc 9,51).

Aqui, Jesus mostra o que é um amor livre: não simples espontaneidade, emancipação e

independência, mas tomar resolutamente uma decisão; ou seja, tomar a vida e colocá-la dentro

daquilo que se decidiu. Isso não significa tornar-se "duro de coração", rígido e muito menos

violento, e sim livre, sem coações, dentro de uma escolha precisa e vinculante, sabendo o

preço dela.

Depois dessa premissa, Lucas descreve o início da viagem em que Jesus envia

mensageiros à sua frente (Lc 9,52). Trata-se de um paradoxo da vida cristã: ir à frente,

permanecendo atrás Dele. A reação dos mensageiros de Jesus diante da recusa dos

samaritanos (Lc 9,53) demonstra o quanto isso é difícil.

À experiência de serem excluídos, humilhados e, sobretudo, impotentes a respeito da

recusa dos samaritanos, Tiago e João reagem: "Senhor, queres que ordenemos desça fogo do

céu para consumi-los?" (Lc 9,54). O instinto deles os leva a tentar tomar o lugar de Jesus, a

"mostrar os músculos" para acertar as coisas, a quase dizer-Lhe: "Já que Você não resolve

isso, nós resolvemos!".19

18 "Siamo nati [...] in un'epoca di violenta contestazione. Un'epoca in cui per essere veramente cristiani occorreva

rivendicare, condannare, schierarsi secondo un'ideologia. Ma noi volevamo restare 'attaccati a Gesù', il Figlio di

Dio che ha parole di vita eterna." 19

Informação verbal de padre Dario Berruto, da Arquidiocese de Turim, em retiro ministrado no Arsenal da Paz,

em Turim, de 12 a 16 de janeiro de 2015.

41

Muitos cristãos, justamente naqueles anos "de violenta contestação" (mas a história

parece repetir-se), reagiram como Tiago e João, colocando-se na frente de Jesus – muito

"bonzinho" e "fraco" para mudar as coisas –, adotando ideologias e métodos "de fogo", de

conflito e de luta contra as injustiças da sociedade, tomando o Evangelho como "modelo" para

a construção de uma ordem social e política na história, de acordo com as exigências da

justiça, expressão concreta da vontade de Deus para o mundo. Além disso, Jesus não lutara

pelos pobres e excluídos? A missão dos cristãos no mundo não era a libertação política e

econômica dos oprimidos? A Igreja não deveria, portanto, estender a mão às ideologias,

libertar-se das ilusões da religiosidade e formar uma comunidade de militantes para

transformar a sociedade?

2.3.2 A escolha (contracorrente) de permanecer "apegado a Jesus"

Ernesto Olivero e seus amigos também nasceram com o desejo da contestação, com a

vontade de transformar a sociedade, de lutar e de "escolher um lado", mas sentiam que

deviam fazer isso não contra alguém, com raiva e violência, e sim permanecendo "atrás de

Jesus", a favor dos pobres, por meio do auxílio aos missionários, da oração e da

sensibilização, para tentar ajudar o homem a sair da fome, da miséria e da injustiça, mas

também do egoísmo, da indiferença e da negação de Deus; para dar esperança.

Talvez preservados do "vírus" que dominava nas universidades e guiados pelo

Espírito, intuíram que o caminho era:

[...] VIVER JUNTOS UM ESPÍRITO CRISTÃO, missionário, à

disposição de quem quer que precise de nós, do nosso trabalho. No

SER.MI.G deve-se viver mais intensamente o cristianismo, conseguindo ser

plenamente si mesmo, realizar-se plenamente. [...] O SER.MI.G não deve ser

nada de particular, mas uma procura PARA QUE NO MUNDO HAJA MAIS

CARIDADE E MAIS JESUS. Torna-se, assim, diretamente um compromisso

com Cristo, nosso amigo. (SERMIG, 1976, p. 19)20

Um compromisso utópico, mas que se torna real se estiver identificado com a vontade

de quem decidiu, talvez ingenuamente, acreditar no amor e envolver-se para testemunhá-lo,

sem a pretensão de possuir toda a verdade, com o desejo não de fomentar o ódio e a divisão, e

20 "[...] VIVERE INSIEME UNO SPIRITO CRISTIANO, missionario, a disposizione di chiunque abbia bisogno

di noi, del nostro lavoro. Nel SER.MI.G si deve vivere più intensamente il cristianesimo, riuscendo ad essere

pienamente se stessi, a realizzarsi pienamente. [...] Il SER.MI.G non dev'essere niente di particolare ma una

ricerca AFFINCHÈ NEL MONDO CI SIA PIÙ CARITÀ E PIÙ GESÙ. Diventa così direttamente un impegno

con Cristo nostro amico." Grifos do original.

42

sim a reconciliação. Por exemplo: durante a guerra do Vietnã21, o SERMIG sempre tentou

favorecer a paz não se colocando ao lado dos EUA ou da URSS e da China, e sim ao lado do

sofrimento de ambas as frentes. Com muita "criatividade", o SERMIG conseguiu fazer chegar

auxílio econômico a companheiros confiáveis dos dois lados do Vietnã.

Em um documento de 1972, indica-se como finalidade do SERMIG "ajudar os

missionários e quem sofre"22

, mas se especifica: "é um estilo de vida a ser vivido a cada dia,

tanto no nível pessoal quanto no comunitário; a ajuda material não é nada além da

consequência disso"23 (in SERMIG, 1976, p. 22). Outro exemplo: depois do terrível terremoto

que atingiu a Guatemala em 1976, o SERMIG enviou ajuda em dinheiro para as vítimas por

meio de missionários "fidei donum" da Arquidiocese de Turim. Enquanto alguns membros da

comunidade caminhavam por Turim para envolver as pessoas e arrecadar fundos, outros

permaneciam em adoração diante da Eucaristia, para depois revezarem-se nas tarefas.

A ajuda aos outros, sem jamais deixar de lado a oração, é um estilo de vida que foi

sintetizado na expressão "luta ativa e contemplação", uma modalidade que permaneceu até

hoje, ainda que com formas e termos diferentes. Ela foi assim descrita:

O esforço de contemporaneamente construir uma comunidade cristã

viva e de entender os problemas mundiais; de inserir-se profundamente nas

lutas contra as injustiças e manter o amor e a fé; de rezar e rezar mesmo

"disparando" uma iniciativa atrás da outra: esse esforço é certamente grande e

deixa as suas marcas. (SERMIG, 1977, p. 6)24

Em uma longa entrevista dada ao jornalista e missionário do "Pontificio Istituto

Missione Estere" ("Pontifício Instituto das Missões Exteriores" - Pime) Piero Gheddo, Olivero

repropôs, de uma forma simples e aparentemente "desrespeitosa", qual é a "filosofia" do

SERMIG, cujo objetivo não era uma utopia escatológica ou histórica, e sim um "estilo de

21 A Guerra do Vietnã foi um conflito armado ocorrido no Sudeste Asiático entre 1955 e 1975. A guerra colocou

em confronto, de um lado, a República do Vietnã (Vietnã do Sul) e os EUA, com participação efetiva, porém

secundária, da Coreia do Sul, da Austrália e da Nova Zelândia; e, de outro, a República Democrática do Vietnã

(Vietnã do Norte) e a Frente Nacional para a Libertação do Vietname (FNL). A China, a Coreia do Norte e,

principalmente, a URSS prestaram apoio logístico ao Vietnã do Norte, mas não se envolveram efetivamente no

conflito. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_do_Vietnã>. Acesso em: 2 abr. 2015. 22

"aiutare i missionari e chi soffre" 23

"è uno stile di vita da vivere ogni giorno, sia a livello personale che comunitario; l'aiuto materiale non è altro

che la conseguenza" 24

"Lo sforzo di contemporaneamente costruire una comunità cristiana viva e di capire i problemi mondiali; di

inserirsi profondamente nelle lotte contro le ingiustizie e di mantenere l'amore e la fede; di pregare e pregare pur

'sparando' una iniziativa dopo l'altra: questo sforzo è certamente grande e lascia i suoi segni."

43

vida" baseado na certeza de que a esperança está em Deus, em permanecer com Jesus, o único

que tem palavras de vida eterna (Jo 6,68):

Quando chegou a grande explosão de 1968, parecia que para ser

cristão você devia se dizer marxista (ou maoísta, ou cristão pelo socialismo) e

usar a "análise científica da sociedade", que era a marxista. Eu nunca aceitei

isso. Se sou cristão, sou cristão e basta: no Evangelho e na Igreja tenho todo

o necessário para uma vida plena e útil à sociedade, sem ir mendigar outras

inspirações, outras luzes. Eu sentia pena de quem andava à procura de

ideologias, de utopias, de modelos. Eu dizia muitas vezes que para nós

bastavam Jesus Cristo e as Suas Bem-Aventuranças. Quantas discussões

sobre esses temas! [...] Entendemos que era supérfluo protestar; deveríamos

orar para encontrar o caminho certo para a participação, a partilha, a justiça, a

presença [...]. A oração e a vida de fé sempre estiveram na base do nosso

grupo e nos impediram de seguir caminhos que a história depois demonstrou

falsos, mesmo que naquela época eles exercessem grande fascínio sobre os

jovens! (GHEDDO, 1994, p. 96)25

O caminho da história, como dissemos, é um só; o que muda é a postura com a qual o

percorremos. Isso era válido no tempo de Jesus, continuou válido ao longo dos séculos e

continua assim também nos nossos dias. Na década que foi da metade dos anos 1960 até a

metade dos anos 1970, foram muitos os que, percorrendo aquele trecho de história,

perseguiram a grande "meta" de querer mudar o mundo, ferido e doente com a injustiça. Não

eram pessoas que passavam por ali indiferentes, que viam e passavam adiante, mas milhares

de jovens que, movidos por diversas motivações ideais e espirituais e com diversos "olhares"

sobre a realidade, deixavam-se provocar pelas questões humanas e sociais e que, para agir

sobre elas, se "alistavam" em partidos, movimentos, grupos e comunidades que perseguiam

aquele mesmo sonho e objetivo. Entre eles, em uma Turim que era a capital da moderna

indústria italiana e do moderno movimento operário, havia Adriano Sofri (um dos fundadores

e líderes do então movimento "Lotta Continua" – "Luta Contínua"26) que na apresentação de

um dos livros de Ernesto Olivero, "Meditações para o novo milênio", escreveu:

25 " Quando è arrivato il grande sconquasso del 1968, sembrava che per essere cristiani si dovesse dire di essere

marxisti (o maoisti, o cristiani per il socialismo) e usare 'l'analisi scientifica della società', cioè quella marxista.

Io questo non l'ho mai accettato. Se sono cristiano, sono cristiano e basta: nel Vangelo e nella Chiesa ho tutto il

necessario per una vita piena e utile alla società, senza andare a mendicare altre ispirazioni, altre luci. Mi faceva

pena chi andava alla ricerca di ideologie, di utopie, di modelli. Io dicevo spesso che per noi bastano Gesù Cristo

e le Sue Beatitudini. Quante discussioni su questi temi! [...] Abbiamo capito che era superfluo protestare,

dovevamo pregare per trovare la via giusta per la partecipazione, la condivisione, la giustizia, la presenza […].

La preghiera e la vita di fede sono sempre state alla base del nostro gruppo e ci hanno impedito di andare per vie

che la storia poi ha dimostrato false, anche se allora avevano grande fascino per i giovani!" 26

"Lotta Continua" ("Luta Contínua") foi uma das maiores formações da esquerda italiana, de orientação

comunista revolucionária, entre o final dos anos 1960 e a primeira metade dos anos 1970. Nasceu em 1969 após

uma cisão no movimento operário-estudantil de Turim que havia inflamado as lutas na universidade e na Fiat.

Informações disponíveis em: <http://it.wikipedia.org/wiki/Lotta_Continua>. Acesso em: 3 maio 2015.

44

Quem sabe de qual Turim saiu Ernesto Olivero? [...] No tempo em

que eu estava em Turim pisando as calçadas da (Fiat) Mirafiori e do Lingotto

e passando pela decrépita e horrenda prisão de nome espirituoso, "As

Novidades", Olivero e os seus já estavam abrindo o próprio caminho, sem

que percebêssemos. [...] Olivero, todavia, é extremista, ou, se preferir,

radical. Naquela Turim de muitos anos atrás, na qual nós éramos

declaradamente extremistas e proclamávamos as contradições fundamentais

entre a cadeia de montagem e o amor de Deus, existia outro extremismo,

mais lento e silencioso, mas mais durável e explosivo. [...] (in OLIVERO,

1998, p. 11-20)27

O que é mais "radical" no caminho de "Olivero e os seus" parece ser a intuição de que

"A chave é Jesus, o encontro fundamental da [sua] vida, o sentido de tudo, sempre"28

(OLIVERO, 2013, p. 23). Do ponto de vista humano e espiritual, significa ter "descoberto"

que a verdadeira realização do ser humano não é a que leva unicamente a "reivindicar,

condenar, posicionar-se..." para mudar o mundo com as próprias forças e dentro do próprio

"esquema", e sim a liberdade de amar, começando a mudar a si mesmo, contando com o amor

de Deus que por meio de seu Filho colocou-se em viagem para encontrar e cuidar do homem,

convidando-o a fazer o mesmo.

27 "Chissà da quale Torino è uscito Ernesto Olivero [...] Al tempo in cui stetti a Torino, battendo il marciapiede

della (Fiat) Mirafiori e del Lingotto e passando per la decrepita orrenda galera dal nome spiritoso, 'Le Nuove',

Olivero e i suoi c'erano già e si scavavano la loro strada, senza che ce ne accorgessimo. [...] Olivero tuttavia è

estremista, o, se preferite, radicale. In quella Torino di tanti anni fa, in cui noi eravamo dichiaratamente

estremisti e proclamavamo la contraddizione di fondo fra la catena di montaggio e l'amore di Dio, c'era un altro

estremismo, più lento e silenzioso, ma più durevole ed esplosivo." 28

"La chiave è Gesù, l'incontro fondamentale della [sua] vita, il senso di tutto, sempre."

45

2.4 CONTINUANDO O CAMINHO, PARA O ALTO

Depois de ter atravessado o longo 1968 – ano símbolo da explosão de protestos e

reivindicações – em um turbilhão de iniciativas missionárias, o SERMIG sentiu que sua

"ação" não era apenas o fruto de bons sentimentos colocados em prática por um grupo de

"bons jovens"; era algo mais.

Descobri um particular muito positivo do SER.MI.G que quero

destacar: o fato de ele estar continuamente em evolução, em crescimento, de

estar constantemente amadurecendo. Olhando para trás, de fato, posso

constatar esse envolver-se e esse mudar depois de contínuas reflexões e

superações, para ir para o alto [...]. Acredito que essa seja uma característica

muito válida, que não podemos perder de vista, porque a estrada sobe

sempre, e ligar-nos a esquemas fixos ou codificados seria estacionar na

estrada. (OLIVERO in SERMIG, 1976, p. 20)29

Em uma carta sucessiva, Ernesto faz uma espécie de "balanço" que, depois de uma

década de atividades, é também um ponto de partida "profético" em direção à tomada de

consciência de que existe um "projeto de Deus" que move e motiva tudo, que vai além do

simples "fazer" e ao qual se é chamado a aderir, para buscar ser mais incisivo na sociedade, na

Igreja e na vida de cada membro do grupo:

[...] não é possível que nós, sozinhos, tenhamos chegado até aqui; se o

Senhor nos conduziu pela mão, é porque quer algo mais de nós. São

presentes que não podemos esquecer as consagrações religiosas que

amadureceram em nosso meio, as novas famílias que nasceram em nosso

meio, o encontro com os [jovens], aos quais damos, mas de quem também

recebemos muito. Tudo isso não nos pede para darmos um passo à frente?

[...] É um milagre que ainda estejamos juntos depois de tantos anos, depois

de tantas tensões; mas, para que o milagre continue e para que nós o

mereçamos, devemos rezar mais e entrar no projeto de Deus. (OLIVERO in

SERMIG, 1976, p. 15)30

Junto ao trabalho prático crescia, portanto, um impulso espiritual por parte de um

grupo que, caminhando, ainda receberia muitas outras solicitações e lentamente encontraria

seu próprio rosto, seu próprio "carisma".

29 "Del SER.MI.G ho scoperto un particolare molto positivo che voglio sottolineare: il fatto che sia

continuamente in evoluzione, in crescita, che costantemente stia maturando. Guardando indietro, infatti, credo

proprio di constatare questo evolversi, questo cambiare, dopo continue riflessioni e superamenti, per salire [...].

Credo che questa sia una caratteristica molto valida, da non perdere di vista, perchè la strada sale sempre, e

legarci a degli schemi fissi o codificati sarebbe un fermarci per strada." 30

"[...] non è possibile che noi da soli si sia arrivati qui e, se il Signore ci ha condotti per mano, è perché vuole

da noi qualcosa di più. Sono doni da non dimenticare le consacrazioni religiose maturate tra di noi, le nuove

famiglie nate in mezzo a noi, l'incontro con i [giovani], ai quali diamo, ma dai quali riceviamo anche molto.

Tutto questo non chiede da noi un passo avanti? […] È un miracolo se siamo ancora insieme dopo tanti anni,

dopo tante tensioni, ma perché il miracolo continui e per meritarcelo dobbiamo pregare di più ed entrare nel

progetto di Dio." Grifos do original.

46

Diante dessa nova fase, parece oportuno pensar em mais uma sintonia com outro

aspecto da parábola do samaritano, que é a "distância" que existe entre os passos que

afastaram o sacerdote e o levita do homem ferido e os passos de compaixão que aproximaram

dele o samaritano. São simplesmente dois caminhos opostos, mas pertencentes ao mesmo

plano, ou entre eles há um desnível?

Retomando as palavras já citadas de Adriano Sofri, podemos nos perguntar: o caminho

"mais lento e silencioso" escolhido pelo SERMIG (sem antagonismos "barulhentos", sem

cortar as pontes com ninguém) está no mesmo plano de quem, naqueles anos, escolheu um

caminho "extremista e radical"? O que fez com que o caminho do primeiro fosse "mais

durável e explosivo" que o caminho dos segundos?

Como já vimos, a parábola evangélica, antes de descrever os gestos concretos do

samaritano, fala de compaixão, de uma ternura divina que preenche o coração e atrai ao

movimento de misericórdia com o qual Deus ama os homens.

A essa luz, parece que podemos dizer – com o cardeal Martini (1985) – que, entre um

caminho percorrido pelo homem em companhia de si mesmo (guiado unicamente por um

"esquema" político, social ou religioso) e um caminho percorrido pelo homem em companhia

de Deus, existe um desnível, uma distância fundamental, que é o "intervalo" da compaixão,

do mistério e da presença de Deus.

Naquela época de "contestação", foram muitos os que consideraram esse "intervalo"

não apenas como secundário e irracional, mas também como ilusório e obstrutivo. Que

sentido há em praticar qualquer ato de piedade sem antes modificar as estruturas políticas,

sociais e econômicas? Que garantias podemos ter em trilhar "um caminho conhecido somente

por Deus e em direção a um território inteiro a ser explorado"31 (OLIVERO, in SERMIG,

1976, p. 16)? Não seria melhor libertar-se dessas "alucinações" e percorrer caminhos mais

eficazes e seguros para transformar a sociedade?

Mas aquela compaixão, que é o coração de toda a Palavra, coloca as coisas no plano

do Amor, faz enxergar "com os olhos de Deus", abre novas possibilidades de ação e nos

impulsiona a tornarmo-nos próximo de quem quer que seja. A parábola do samaritano ilumina

o fato de que, sem a compaixão, ao contrário, permanecemos no plano da Lei, perdemos a

31 "un cammino conosciuto soltanto da Dio e verso un territorio tutto da esplorare"

47

"inspiração" e acabamos ficando "presos" ou "encurralados" em tomadas de posição que

acabam tornando estáticas, parciais, hipócritas e "mais importantes" que o homem até mesmo

as ideologias e estruturas nascidas para lutar a favor dele.

Ernesto sentia que o SERMIG era chamado a entrar cada vez mais nesse caminho de

compaixão, de "abandono a Deus", deixando-se ser usado por Ele para compartilhar as

necessidades concretas do homem e para ser sinal de esperança para tantas pessoas perdidas;

porém, sem sentir-se jamais autossuficiente ou "separado" de quem, guiado por qualquer

convicção, também trabalha pela justiça, pela paz e pela solidariedade. Muitas pessoas que

caminham com o SERMIG ou são de alguma forma "tocadas" por uma iniciativa dessa

comunidade reconhecem no SERMIG o dom de infundir esperança. "Vocês dão esperança":

uma simples afirmação, mas que veio de muitas partes e reforçou o que seria compreendido

como o Carisma da Esperança32.

Essa consciência levou o grupo a continuar na estrada que "sempre sobe", caminhando

com confiança, atentos aos sinais dos tempos (OLIVERO, 2013, p. 58) e a dimensões

complementares e igualmente indispensáveis:

- Procura-se a ajuda e o conselho de quem, no plano do Amor e da "boa

vontade", já percorreu um trecho mais longo de estrada: com o apoio do

cardeal Michele Pellegrino33, os jovens do SERMIG convidaram e reuniram

milhares de outros jovens ao redor de testemunhas do Evangelho como Raoul

Follereau, dom Helder Camara, cardeal Suenens, Carlo Carretto, irmão Roger

Schutz, madre Teresa di Calcutá e muitos outros que "confirmaram" que é só

com Jesus que é possível formar uma comunidade a serviço dos mais fracos.

- Para preparar-se a isso, o grupo sentiu a necessidade de enraizar-se ainda mais

na oração, capaz de comunicar a compaixão de Deus e de "criar" os mesmos

sentimentos de Cristo e aquelas "vísceras" da caridade que se manifestam no

32 Em 24 de janeiro de 1979, o papa João Paulo II recebeu uma delegação do SERMIG e, ao final do encontro,

lhe confiou a missão de "despertar a esperança adormecida no coração dos homens" ("tirar fuori la speranza

assopita nel cuore degli uomini"). 33

O cardeal Michele Pellegrino foi arcebispo de Turim de 1965 a 1977. Em um momento muito delicado da

história do SERMIG, o cardeal Pellegrino, com muita simplicidade, ofereceu aos jovens do SERMIG a igreja

desconsagrada do Arcebispado de Turim como sede, dizendo que era bom que na casa do arcebispo se rezasse e

se trabalhasse pelos pobres. Faleceu em 10 de outubro de 1986. Após sua morte, o primeiro pavilhão da ex-

fábrica de armas concedido ao SERMIG foi chamado de Arsenal da Paz - Casa da Esperança Michele Pellegrino.

48

momento oportuno. Assim, a oração passou a acompanhar a vida e cada

atividade do SERMIG, e isso veio a ser compreendido como "Espiritualidade

da Presença", ou seja, como presença de Deus no coração das pessoas, nas

situações, no mundo; uma espiritualidade que foi entendida como basilar e

fundamental para continuar o caminho.

- Como "a outra face da mesma moeda", nasceu também o conceito de

"restituição", que sintetiza o sentido pragmático e, ao mesmo tempo, espiritual

das iniciativas e das propostas do SERMIG: tudo o que temos e que somos –

tempo, profissão, cultura, bens materiais e espirituais – foi recebido em

"empréstimo", e nós, por nossa vez, também devemos "emprestá-los".

Valorizar e colocar à disposição cada capacidade humana, por mais humilde

que seja, significa comprometer-se e mudar a si mesmo para mudar o mundo.

- Do encontro com as "testemunhas" e do enraizamento na oração e na Palavra,

surgiu a convicção de querer ser, na Igreja, uma comunidade, uma fraternidade

viva, estável e confiável, para chegar a viver a presença de Deus vinte e quatro

horas por dia. Todavia, muitos rapazes e moças que frequentavam o SERMIG

desde o início amadureceram a decisão de seguir Jesus em várias ordens

religiosas e congregações. O fato de Ernesto ser um leigo casado fazia pensar

que o grupo seria composto apenas por leigos casados que, ao longo do

caminho, acolheriam e acompanhariam vários jovens com a expectativa de

compreender a própria vocação religiosa. Assim disse Olivero:

Eu jamais imaginaria que o SERMIG pudesse tornar-se "casa"

definitiva para um homem ou para uma mulher; eu tinha apenas um grande

desejo pelo bem, especialmente para mais pobres do Terceiro Mundo, mais

nada. E, justamente, uma a uma, um a um, os melhores "encontraram uma

colocação": alguns na clausura, alguns em outras congregações. Alguns se

casaram e eu fiquei sozinho com muitos jovens novos. (OLIVERO, 2011, p.

48)34

Mas, entre o final dos anos 1970 e o início dos anos 1980, aconteceram duas coisas

decisivas para aquela que podemos chamar de a "vida atual" do SERMIG:

34 "Non avrei mai immaginato che il SERMIG potesse diventare 'casa' definitiva per un uomo, per una donna;

avevo solo un grande desiderio di bene, specie per i più poveri del Terzo Mondo, null'altro. E giustamente una ad

una, uno ad uno, i migliori si sono 'piazzati': chi in clausura, chi in altre congregazioni. Qualcuno si è sposato ed

io sono rimasto solo con tanti ragazzi nuovi."

49

- Rosanna Tabasso, uma garota muito jovem que frequentava o grupo desde o

início dos anos 1970, amadureceu o pensamento de dedicar a própria vida a

Deus como consagrada, mas permanecendo no SERMIG, para iniciar ali um

percurso de fraternidade:

Eu sentia que Ernesto tinha uma intuição. Para entender se aquilo

vinha de Deus, havia só uma forma: arriscar. Se Deus tinha algo novo a dizer

por meio do SERMIG, Ele o faria apenas por meio do sim de alguém. De

outro modo, essa palavra permaneceria impronunciada para sempre.

(OLIVERO, 2011, p. 48) 35

- Ernesto, depois de alguns encontros significativos – como os com o papa Paulo

VI36 e com Giorgio La Pira37 –, sentiu que o SERMIG finalmente teria uma

casa (uma fraternidade precisa de uma casa, e não mais apenas de uma sede)

em Porta Palazzo, o bairro dos santos sociais de Turim (Cafasso, dom Bosco,

Cottolengo...), no velho arsenal militar do exército italiano38, uma fábrica de

armas em desuso e abandonada. Depois de um "assédio" de orações

incessantes39 e de pedidos oficiais às instituições competentes por cinco anos

("Pedi e vos será dado", Lc 11,9), no dia 2 de agosto de 1983 foi finalmente

concedida ao SERMIG a autorização para entrar naquela ex-fábrica pelas

35 "Sentivo che Ernesto aveva un'intuizione. Per capire se veniva da Dio, c'era solo un modo: rischiare. Se Dio

aveva da dire qualcosa di nuovo attraverso il SERMIG, l'avrebbe fatto solo attraverso il sì di qualcuno, viceversa

questa parola sarebbe rimasta impronunciata per sempre." 36

Em 19 de maio de 1976, Ernesto Olivero foi recebido pelo papa Paulo VI, a quem levou o "pedido dos jovens"

por uma Igreja mais autêntica, mais pobre e mais próxima das pessoas. O papa lhe respondeu que esperava de

Turim, terra de santos, uma "revolução de amor". 37

Pertencente às ordens terceiras dominicana e franciscana, a vocação social de Giorgio La Pira expressou-se no

compromisso político. Foi também prefeito de Florença em dois períodos: de 1951 a 1957 e de 1961 a 1964. Em

plena Guerra Fria entre EUA e URSS, La Pira citava a profecia de Isaías (Is 2,4b) – "Estes quebrarão as suas

espadas, transformando-as em relhas, e suas lanças, a fim de fazerem podadeiras. Uma nação não levantará a

espada contra a outra, e nem se aprenderá mais a fazer guerra" –, sustentando fortemente a necessidade de

transformar as armas em instrumentos de trabalho. 38

O "Arsenale delle Costruzioni da Artiglieria" ("Arsenal das Construções de Artilharia") foi desejado por

Vittorio Emanuele II, rei da Itália, com um ato de 2 de março de 1862. Com uma área de 45 mil metros

quadrados e com dezenas de pavilhões, em seu período de atividade máxima trabalhavam ali cinco mil operários

empenhados na construção de armamentos pesados e leves. Boa parte da artilharia ali construída foi usada pelo

Exército Italiano na Primeira e na Segunda Guerra Mundial. Depois disso, o arsenal foi desativado. 39

Todos os dias, os membros do SERMIG rezavam o terço junto aos edifícios do arsenal militar e junto ao

Santuário da "Consolata" (Maria, invocada com o título de "Consoladora"). Começou assim uma "corrente" de

oração incessante que envolveu não apenas os membros da comunidade, mas também milhares de pessoas, de

perto e de longe, que começaram a compartilhar o sonho de transformar um arsenal de guerra em um arsenal de

paz. "Muitas vezes a polícia nos parou, porque achava que éramos vagabundos que estavam perambulando por

aqueles lugares estranhos, e que surpresa e embaraço aparecia nos rostos daqueles jovens de farda quando saía

dos nossos bolsos uma arma mortal: o terço!" (OLIVERO, 2011, p. 176) ("Quante volte ci fermò la polizia,

perché credeva fossimo vagabondi che si aggiravano in quei posti strani e quale stupore ed imbarazzo sui volti di

quei giovani in divisa, quando sbucava dalle nostre tasche un'arma micidiale: il rosario!").

50

autoridades competentes, talvez com a esperança de que as suas terríveis

condições convencessem Ernesto e os seus a desistir da iniciativa. E, ao

contrário...

2.5 ARSENAIS: O SAMARITANO PROCURA HOSPEDEIROS

Depois de quase vinte anos sem ter uma pedra "onde reclinar a cabeça" (Mt 8,20b), a

vida da nascente Fraternidade da Esperança começou a "organizar-se" dentro dos muros da

antiga fábrica de armas (hoje Arsenal da Paz) – que precisava ser completamente reformada –

sem outros recursos além daqueles da Providência.

Enquanto isso, a viagem para eliminar a fome e as grandes injustiças no mundo

continuava: aquele "Tive fome..." (cf. Mt 25,31-40) não podia esperar e o SERMIG tentava

concretizar essa página do Evangelho realizando centenas de projetos de desenvolvimento e

de ajuda humanitária nos cinco continentes: poços, hospitais, casas, escolas, centros de

formação...Tudo mantido por pessoas comuns.

Com a "chegada" do Arsenal, mais que uma casa para a Fraternidade, pensava-se

também em um lugar finalmente adequado para organizar melhor a "logística" dos projetos de

desenvolvimento e de ajuda humanitária. Logo, porém, a Providência – que se manifestou

com o rosto e as mãos de milhares de pessoas que se colocaram à disposição gratuita e

incessantemente para ajudar na reforma dos espaços –, se manifestaria também por meio dos

rostos e das histórias de muitas pessoas em dificuldade, não mais "distantes", mas que agora

batiam diretamente à porta de casa. É importante recordar um episódio que aconteceu durante

uma noite de oração:

51

Um rapaz se levanta, vai até o microfone e me pergunta: "Você sabe

que centenas de pessoas como eu dormem na rua, debaixo das pontes e

dentro dos carros? Você, Olivero, onde vai dormir esta noite?". Difícil

responder, porque quando nascem as verdadeiras histórias de amor é preciso

saber colocar-se no lugar do próximo. Além disso, ele ainda me diz que

Turim inteira colocada junta dava vinte leitos para dormir às pessoas pobres,

brancos, negros, italianos e não italianos. E eu me pergunto: quem deve

cuidar dos pobres? Sempre o outro, ou eu? Uma verdadeira história de amor

não pode ficar fechada em desculpas. Eu poderia responder que já estava

trabalhando para os pobres distantes e que não podia pegar outros

compromissos. Mas pensei que o meu Terceiro Mundo estava também aqui,

em Turim. Ser cristão é a coisa mais bonita que pode acontecer ao mundo. O

cristão jamais pode dizer que terminou. Telefono para a minha esposa:

"Maria, não vou dormir em casa". E descubro o inferno na minha cidade! Eu

era gerente de banco, ganhava um senhor salário fixo e podia viver como

alguém que não está nem aí para o resto, mas naquela noite eu fiquei

transtornado. Dormi perto dos negros descobrindo que eles cheiram mal, e

descobrindo que para os negros são os brancos que cheiram mal. Se não

tenho água, como faço para me lavar para não cheirar mal? Naquela noite,

minha vida mudou [...]. (OLIVERO, 2011b, p. 35)40

O fato de que Ernesto e seus amigos contem sempre esse episódio – que, para essa

Comunidade, se tornou uma verdadeira "parábola" – mostra o quanto aquele rapaz41 que

apareceu na estrada do SERMIG foi crucial para milhares de situações que vieram a seguir.

Por certo tempo, habitando um espaço em ruínas, "a nossa resposta a todos os que

batiam à nossa porta era: 'não, não cuidamos desses problemas, tente procurar em outro

40 "Un ragazzo si alza, va al microfono e mi chiede: 'Tu sai che centinaia di persone come me dormono per

strada, sotto i ponti e nelle macchine? Tu, Olivero, stanotte dove dormi?'. Difficile rispondere, perché quando

nascono le vere storie d'amore bisogna sapersi mettere nei panni del prossimo. Inoltre mi dice che tutta Torino

messa insieme dava 20 posti da dormire alla povera gente, bianchi, neri, italiani, non italiani e io mi chiedo: ai

poveri chi ci deve pensare? Sempre l'altro o io? Una vera storia d'amore non si può chiudere nelle scuse. Avrei

potuto rispondere che stavo già lavorando per i poveri lontani e non potevo prendermi altri impegni. Ma ho

pensato che il mio Terzo Mondo era anche qui, a Torino. Essere cristiani è la cosa più bella che possa capitare al

mondo. Il cristiano non può mai dire di aver finito. Telefono a mia moglie: 'Maria, non vengo a dormire a casa'.

E scopro l'inferno nella mia città! Ero dirigente di banca, guadagnavo un signor stipendio fisso e potevo vivere

come uno che se ne "sbatte" di tutto il resto, ma quella notte rimasi sconvolto. Dormii vicino a dei neri

scoprendo che puzzano, e scoprendo che per i neri sono i bianchi a puzzare. Se non ho l'acqua, come faccio a

lavarmi per non puzzare? Quella notte la mia vita è cambiata [...]." 41

As migrações para a Itália começaram a se tornar numericamente importantes nos anos 1980. "Rejeição" e

"acolhida" são, como sempre, os dois modos de abordar a questão migratória. Depois de ter mobilizado a opinião

pública com uma carta aberta e até mesmo de tê-la discutido com as autoridades da cidade, sem receber nenhuma

resposta concreta, o SERMIG decidiu criar nos espaços do velho arsenal um centro de acolhida noturna chamado

"Centro Come Noi" ("Centro Como Nós"), que foi inaugurado em 18 de janeiro de 1988 e que se tornou o

primeiro "laboratório" da cidade, e um dos primeiros do país, a tentar enfrentar os problemas devidos à diferença

de cultura, de religião, de direitos, etc., visando não apenas dar uma resposta às dificuldades mais imediatas de

quem, acabando de chegar, encontrava-se "na rua", mas também "educar" à inclusão e dar encaminhamento a um

processo de convivência social pacífica. Desde então, no Arsenal da Paz foram hospedadas pessoas de 115

nacionalidades em um total de 1.675.050 noites (dados de 2013).

52

lugar'"42 (COMASTRI, 2006, p. 36). Mas a "provocação" daquele rapaz fez "ressoar", em toda

a sua atualidade, a história do homem da Samaria.

Aquela noite poderia ter sido uma ocasião para "apontar o dedo" ou para "reivindicar,

condenar, posicionar-se..." contra o serviço público, a prefeitura e todos aqueles de quem se

esperava o papel institucional de "ocupar-se da misericórdia"; mas aquele rapaz, naquele

momento, exprimiu uma necessidade tão nítida que fez com que todas as "seguranças" fossem

deixadas de lado: a segurança de que é papel dos outros – sacerdotes e levitas – dar uma

resposta, de que já existe um projeto para os pobres que estão distantes, de que não seria

possível assumir mais compromissos, de que não havia um lugar para ele...

Na mentalidade comum, a cada problema corresponde uma pergunta

sobre "quem é o responsável". Mas quem são esses "responsáveis"? Talvez

seja o tempo de começar a pensar que a responsabilidade de melhorar as

coisas é de cada um de nós. Não bastam o profissionalismo e a eficiência: é

preciso redescobrir o sentido da missão pessoal e o sentido da

responsabilidade. (OLIVERO, 2014b, p. 34)43

Naquela noite, bastou uma "centelha" de compaixão (mas "preparada" havia muito

tempo) para colocar-se no lugar daquele rapaz e encontrar a coragem de caminhar de noite

pelas estradas de Turim e ver o que ainda não tinha sido visto – e que talvez até então

ninguém quisera ver –, ou seja, que para centenas de homens e mulheres daquela cidade não

havia lugar em parte alguma.

A compaixão não se limita a constatar ou a examinar uma situação; não é uma postura

sentimental ou teórica. É uma postura prática que se traduz imediatamente em ações

concretas, porque quem está passando necessidade "pede" isso: o samaritano, derramando

óleo e vinho, suja as mãos e, de "leigo", torna-se ele mesmo sacerdote e levita; assume a

responsabilidade e, depois de ter resolvido os problemas mais urgentes, carrega o ferido e vai

em busca de uma acolhida estável, de modo que aquele homem possa novamente "levantar-

se" e voltar a viver.

Na exegese moderna é muito comum deixar passar em branco a figura daquele a quem

o samaritano "confia" o ferido, quase como se fosse um detalhe pouco significativo. "O leitor

42 "la nostra risposta a tutti quelli che bussavano alla nostra porta è stata: 'no, non ci occupiamo di questi

problemi, provi a cercare da un'altra parte'." 43

"Nella mentalità comune, a ogni problema corrisponde una richiesta a 'chi di dovere'. Ma chi sono questi 'chi

di dovere'? È forse tempo di iniziare a pensare che il dovere di rendere migliori le cose è di ciascuno di noi. Non

bastano professionalità ed efficienza: occorre riscoprire il senso della missione personale e il senso di

responsabilità [...]."

53

distraído da parábola louva o samaritano e não presta atenção ao hospedeiro"44

(MAZZOLARI, 1977, p. 126). Entretanto, o hospedeiro e a hospedaria, para a vida daquele

pobre homem atacado pelos assaltantes, depois do samaritano, são as figuras mais

importantes; tanto que, como já vimos, na interpretação alegórica dos Padres eles preenchem

um papel importante: o da Igreja, como comunidade aberta a todos. Há o dia do samaritano,

que termina, e há o dia seguinte, do hospedeiro e da hospedaria, que se estenderá até o

retorno do samaritano.

Será "banal" perguntar-se como o samaritano teria feito se não conhecesse uma

hospedaria na estrada pronta a acolher o ferido? Como poderia permanecer perto dele sem

poder contar com um lugar de apoio? Quem cuidaria daquele homem tão machucado? Para

que serviriam os denários sem alguém disposto a assumir um compromisso "a longo prazo"?

O samaritano faria todo o possível, mas se sentiria sozinho, e o problema do homem não seria

resolvido.

"Na parábola do bom samaritano há um penoso intervalo entre o gesto criminoso dos

assaltantes e a intervenção daquele que socorre"45 (MARTINI, 1985, p. 11). Nos nossos dias,

talvez haja um intervalo igualmente penoso entre o gesto de amor praticado pelo samaritano e

a dificuldade em encontrar uma hospedaria disponível para acolher qualquer um, a qualquer

hora do dia ou da noite, em um ambiente em que sejam praticadas as caridades mais urgentes

e necessárias (OLIVERO, 2013, p. 57) e, sobretudo, que seja habitado por uma comunidade

que mantenha sempre acesa a "centelha" de amor trazida pelo samaritano.

Uma vez assumida a responsabilidade por aquele homem, o samaritano vai à procura

de um lugar assim. Ele precisa de um hospedeiro e de uma hospedaria que o completem, de

alguém que aceite (com as próprias características, mas livremente) envolver-se, unir-se ao

seu caminho, fazer o mesmo, amar como ele – ou seja, amar primeiro, "abrindo a porta" a

quem não tem alternativas e transformando a própria vida e a própria casa em uma realidade

que acolhe todos.

Ernesto e os seus amigos, entrando na pele daquele rapaz, "intuíram" o que significa

dormir na rua, debaixo das pontes e dentro de carros, sem um lugar para se lavar. Eles

44 "Il lettore distratto della parabola loda il samaritano e non bada all'oste."

45 "Nella parabola del buon samaritano c'è un penoso intervallo tra il gesto criminale dei briganti e l'intervento

del soccorritore."

54

sofreram ao ver todas aquelas situações sem resposta e sentiram-se responsáveis: o problema

do outro se tornou um problema deles (OLIVERO, 2014b, p. 32).

Mas aonde ir se "Turim inteira colocada junta dava vinte leitos para dormir às pessoas

pobres"? O que fazer diante de todas aquelas situações "sem solução" vistas ao longo das ruas

de Turim (e, podemos dizer, de cada cidade)? Aonde levá-los? Que lugar indicar-lhes? A

quem confiar o sofrimento deles? Essas perguntas não serão, talvez, outra maneira de

formular as questões "quem é meu próximo" e "que farei para herdar a vida eterna"? O que a

Bíblia diz sobre esses problemas? O que lemos nela?

Na "parábola" do SERMIG, essas interrogações significaram entender, na própria pele,

que o mundo do sofrimento humano é sempre mais amplo que as "cercas" do "território" –

ainda que já amplo – do qual decidimos cuidar. "O próximo não se seleciona: se aceita mesmo

nos momentos mais inoportunos. O próximo às vezes vem de onde menos se imagina. O

próximo é gratuito: não tem nenhuma mentalidade determinada, nenhuma cor concreta. O

próximo irrompe na nossa vida"46 (GONZÁLEZ-RUIZ, 1968).

Quem decide caminhar atrás de Jesus, permanecer "apegado" a Ele e "deixar-se

habitar" pela sua lógica, é colocado à prova para ver se realmente compreendeu o significado

desse caminho, para entender sobre o que está de fato "reclinando a cabeça" (Mt 8,20b), a

quem se confia, a quem está dando o coração e se está disposto a dá-lo por inteiro, pronto a

mudar de postura para ser plenamente quem deve ser (o risco oposto é o de não "escutar",

estar seguro de que "já sabe").

As novas pobrezas que "batem à porta" são tão concretas quanto a fome no mundo.

Perceber isso e deixar-se interpelar por aquele "Terceiro Mundo" que está perto significou

repensar as escolhas precedentes (também o samaritano precisou interromper sua viagem),

"alargar" o sonho do SERMIG e a vida da fraternidade e começar a transformar os muros do

Arsenal em um abrigo para "amar" aquele rapaz e depois milhares de pessoas que, como ele,

não encontravam lugar em nenhuma outra parte.

A vida do SERMIG "complica-se sempre maravilhosamente" (FRANCISCO, 2013, §

270): no mesmo lugar e ao mesmo tempo em que o SERMIG tentava se tornar fraternidade e

46 "Il prossimo non si seleziona, si accetta anche nei momenti più inopportuni. Il prossimo viene a volte da dove

meno si pensa. Il prossimo è gratuito: non ha nessuna determinata mentalità, nessun colore concreto. Il prossimo

irrompe nella nostra vita."

55

apropriar-se do seu carisma, a comunidade se deixou "disturbar" e plasmar pela lógica do

Evangelho ("Dai-lhes vós mesmos de comer", Lc 9,13b), abrindo as portas para a acolhida e

transformando-se, um pouco por vez, em uma "comunidade que acolhe", uma comunidade

samaritana habitando uma hospedaria.

Nasceram também as primeiras acolhidas diurnas com o objetivo de encaminhamento

ao trabalho. Os primeiros a serem acolhidos eram egressos do sistema prisional, pessoas

cumprindo pena em regime semiaberto e pessoas com deficiência física ou intelectual.

Sucessivamente, a emergência cada vez mais grave dos imigrantes levou à abertura das

acolhidas noturnas, que demandavam a presença de voluntários também durante a noite.

Então transformado em uma acolhida contínua, 24 horas por dia, o Arsenal se tornou casa

para muitas outras situações de marginalização, abandono, problemas com drogas, Aids,

desemprego, refugiados de guerra, mães adolescentes ou muito jovens com seus filhos,

mulheres agredidas, pessoas doentes e sozinhas... e tantas outras situações que não deixariam

mais de interpelar aquela casa e seus habitantes.

Mas a comunidade do Arsenal – apesar dos mil gestos necessários para fazer um

homem se levantar novamente – não se tornou "ativista", e sim uma comunidade em que, no

equilíbrio entre a oração e o serviço, prevalece a comunicação direta com Deus, o único que

pode motivar a "repetição" contínua de gestos, olhares, silêncios e palavras que cuidam e

fazem reviver.

Em 29 de novembro de 1986, dom Helder Camara47, homem de Deus e defensor dos

fracos, visitando pela primeira vez o Arsenal da Paz de Turim, o descreveu com esta oração:

47 O SERMIG conheceu o então arcebispo de Olinda e Recife no dia 6 de novembro de 1972, quando, convidado

a Turim pelo arcebispo cardeal Michele Pellegrino, participou do encontro "Comunità europea o impero

europeo?" ("Comunidade europeia ou império europeu?"), organizado pelos jovens do SERMIG, de quem ele se

tornou amigo e mestre.

56

Senhor Deus, eu lhe agradeço por este encontro, um encontro que me

permite viver a dimensão do milagre. Tantas pessoas me perguntam "Por que

Jesus não renasce neste século, quando tudo é documentado pela televisão,

para ajudar a humanidade com os milagres e ressuscitando os mortos?", mas

esses são milagres apenas para o mundo. Esta casa é o verdadeiro milagre,

um milagre maravilhoso e também um anúncio profético, porque é o primeiro

arsenal de guerra transformado em um arsenal de paz. É como se tivesse sido

purificado, porque antes fabricava guerra e agora se tornou um exemplo de

fábrica da esperança e da paz. Aqui vêm todos aqueles que têm a alegria de

acreditar em Cristo, mas também todos aqueles não têm essa alegria. A

beleza desta casa é que aqui paz não significa apenas ausência de guerra (às

vezes, nós, criaturas humanas, somos arsenais de guerra): esta casa cria a paz.

Senhor Deus, abençoe esta casa, abençoe todos os que vêm aqui para

trabalhar, para encontrar a esperança, para encontrar a paz, e que com esta

casa seja bendito o Senhor. Senhor, eu lhe bendigo de modo particular por

Ernesto, um homem de cabeça dura que sabe desejar e que, quando deseja

uma coisa, trabalha com os braços, as mãos e também com os joelhos e

acredita em milagres. Eu lhe agradeço, Pai Santo, porque o Senhor encorajou

e permitiu o encontro com esse homem, que podemos chamar de verdadeiro

artesão da paz, artesão perene pela paz, artesão eterno pela paz. (SERMIG,

2008, p. 77)48

O problema daquele rapaz, e de quem quer que se tenha aproximado, tornou-se uma

oportunidade não só para amar aquela situação, mas também para descobrir o sentido do dom

que o Senhor deu à Fraternidade da Esperança (transformada em coração do SERMIG) ao

longo da estrada (o caminho é Ele – "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida", Jo 14,6b): a

Espiritualidade da Presença, uma espiritualidade que não separa, não tira do mundo, não

"espiritualiza", mas se torna "respiração", se encarna nas situações (às vezes confusas e

pesadas) do dia a dia, descobre o seu valor no "uso", ajuda a entender o mundo à luz de Deus,

fala Dele quase sem falar e alimenta a vida em todos os seus aspectos, 24 horas por dia.

O outro que bate à porta torna-se "mensagem" de Deus, alguém esperado que torna

"real" o Evangelho ("Eis que estou à porta e bato", Ap 3,20a), uma pessoa, um fato. Então, a

ação torna-se "instrumento" de Deus e torna visível o potencial de bem e de vida e o sentido

48 "Signore Iddio, ti ringrazio per questo incontro, un incontro che mi permette di vivere la dimensione del

miracolo. Tante persone mi chiedono: 'Perché Gesù non rinasce in questo secolo, dove tutto è documentato dalla

televisione, per aiutare l'umanità con i miracoli e resuscitando i morti?' ma questi sono miracoli solo per il

mondo. Questa casa è invece il vero miracolo, un miracolo meraviglioso e anche un annuncio profetico perché è

il primo arsenale di guerra che è diventato un arsenale di pace. È come se fosse stato purificato perché prima

fabbricava guerra mentre ora è diventato un esempio di fabbrica della speranza e della pace. Qui vengono tutti

quelli che hanno la gioia di credere in Cristo, ma anche tutti quelli che questa gioia non ce l'hanno. La bellezza di

questa casa è che qui pace non significa soltanto assenza di guerra (qualche volta noi, creature umane, siamo

arsenali di guerra): questa casa crea la pace. Signore Iddio benedici questa casa, benedici tutti quanti vengono

qui per lavorare, per incontrare la speranza, per incontrare la pace, e con questa casa sia benedetto il Signore.

Signore ti benedico in modo particolare per Ernesto, un uomo dalla testa dura che sa desiderare e quando

desidera una cosa lavora con le braccia, le mani e anche con le ginocchia e crede nei miracoli. Ti ringrazio Padre

Santo perché hai incoraggiato e permesso l'incontro con quest'uomo, che possiamo chiamare vero artigiano della

pace, artigiano perenne per la pace, artigiano eterno per la pace."

57

dos denários (cf. Mt 25,14-30) que Ele coloca à disposição. O encontro com o outro exige a

oração, e a oração exige o encontro com o outro. E nessa trama são "bordados" os

pensamentos e as obras:

Uma das passagens fundamentais da nossa história foi quando

entendemos que cada imprevisto deveria ser acolhido. Os Arsenais, ao longo

dos anos, abriram-se a serviços e acolhidas que eu jamais teria imaginado.

Tudo o que fizemos não foi por nossa iniciativa, mas porque uma pessoa,

uma situação, um problema nos interpelou. E, no imprevisto acolhido,

descobrimos que Deus fala. Ali está o seu dedo. (OLIVERO, 2011b, p. 141)49

Caro imprevisto, se eu não o tivesse acolhido, o arsenal de guerra

continuaria sendo arsenal de guerra ou então um lugar em ruínas, refúgio de

animais e de perdidos. Caro imprevisto, se eu não o tivesse acolhido, haveria

muitas pessoas a mais mortas pelo frio, esquecidas debaixo de uma ponte.

Caro imprevisto, se eu não o tivesse acolhido, muitas mulheres não teriam

encontrado um abrigo e uma família, e ainda seriam mercadorias ou se

tornariam lápides em um cemitério. Caro imprevisto, se eu não tivesse

encontrado aquele "E você, Olivero, onde vai dormir esta noite?", dito por

um rapaz de vinte anos, a nossa vida seria diferente. Se nesta noite nos

Arsenais dormiram quase duas mil pessoas, foi porque aquele dedo apontado

contra mim não me deixou indiferente, mas foi um encontro com Deus.

Ainda hoje, eu bendigo aquele imprevisto que encontrou uma casa na minha

mente. (OLIVERO, 2011b, p. 143)50

Também nós agora temos uma casa, surgida de um Arsenal Militar, e

gostaríamos que esta fosse a casa de todos os homens, para o homem.

(OLIVERO, 1994, p. 125)51

49 "Uno dei passaggi fondamentali della nostra storia è quando abbiamo capito che ogni imprevisto doveva essere

accolto. Gli Arsenali si sono aperti negli anni a servizi e accoglienze che mai avrei immaginato. Tutto quello che

abbiamo fatto, non lo abbiamo fatto per nostra iniziativa, ma perché una persona, una situazione, un problema ci

hanno interpellato. E, nell'imprevisto accolto, abbiamo scoperto che Dio parla. C'è il suo dito." 50 "Caro imprevisto, se non ti avessi accolto l'Arsenale di guerra continuerebbe a essere Arsenale di guerra

oppure un rudere, rifugio di animali o di sbandati. Caro imprevisto, se non ti avessi accolto ci sarebbero state

tante persone in più morte per il freddo, dimenticate sotto un ponte. Caro imprevisto, se non ti avessi accolto,

tante donne non avrebbero trovato un riparo e una famiglia, ma sarebbero ancora merci o lapidi di un cimitero.

Caro imprevisto, se non avessi incontrato quel 'Tu, Olivero, stanotte dove dormi?' detto da un ragazzo di

vent'anni, la nostra vita sarebbe diversa. Se questa notte negli Arsenali hanno dormito quasi duemila persone è

perché quel dito puntato contro di me non mi lasciò indifferente, ma fu un appuntamento con Dio. Ancora oggi,

benedico quell'imprevisto che ha trovato casa nella mia mente." 51 "Anche noi ora abbiamo una casa, tirata fuori da un Arsenale Militare, e vorremmo che questa fosse la casa di

tutti gli uomini, per l'uomo."

58

3 PONTOS DE VISTA SOBRE A HOSPEDARIA

[...] é preciso lembrar um fato que está na origem histórica de muita coisa que

aconteceu depois.

Na praça São José do Belém, em um dia bem cedo, [havia] um alvoroço. [Com] o

povo reunido [, perguntei]: "o que houve?". Cheguei perto [e vi] um homem deitado num

banco de pedra. Perguntei: "O que aconteceu?". [Responderam:] "Morreu!". [Tornei a

perguntar:] "O quê que foi?", "Fome! Frio!". Tinha morrido, com fome e com frio, no banco

da praça de São José do Belém. Um fato.

Isso está na origem de tudo. Às vezes, à noite, o pessoal vinha comer. [Isso] porque à

noite havia uma população escondida que não se conhecia durante o dia e [que] caminhava

pela praça e pelas ruas. Não só ali, mas em outros lugares. [...]

Foi quando dom Paulo Evaristo52

[...] [me] chamou e disse: "O que é que nós

podemos fazer?".

E quando apareceu então a oferta do governo53

, dom Paulo recebeu a Ernesto, bateu

em seu ombro e disse: "Ernesto, você aguenta? Você aceita?". "Aceito" [, respondeu ele]. Ele

nem sabia muito bem o que seria, mas aceitou. E daí tudo se seguiu com muito sacrifício e

com muita coragem.

[...] O fato de origem foi a vontade de pedir perdão a Deus porque nenhum irmão

pode morrer de frio e de fome. Nós temos que resgatar a história desse sofrimento com a

doação da nossa vida e do nosso trabalho. Isso vai atrair as bênçãos de Deus.

Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida54

(1930-2006)

Transcrição de parte do discurso pronunciado no Arsenal da

Esperança no dia 11 de março de 2006, por ocasião da celebração do 10º

aniversário dessa obra.

52 Na época, dom Paulo Evaristo Arns era arcebispo metropolitano de São Paulo (1970 a 1998).

53 Proposta que o Governo do Estado de São Paulo fez ao SERMIG, por indicação de dom Luciano, de assumir a

gestão do grande espaço da antiga Hospedaria de Imigrantes, uma estrutura que, de 1887 a 1978, acolheu mais

de 2,5 milhões de imigrantes recém-chegados ao Brasil. 54 O Servo de Deus dom Luciano Pedro Mendes de Almeida foi um jesuíta brasileiro, arcebispo de Mariana

(MG) na época do discurso acima reproduzido, que também conduziu a Conferência Nacional dos Bispos do

Brasil (CNBB) de 1979 a 1994 e cujo processo de beatificação foi iniciado em 2014.

59

Essas palavras de dom Luciano Mendes de Almeida nos introduzem à última

passagem deste trabalho. Depois de repercorrer a viagem de Ernesto Olivero e do SERMIG

como tentativa de "atualização" do episódio do samaritano, gostaríamos agora de propor uma

reflexão a partir do aspecto da hospedaria, um detalhe que pode parecer secundário, mas que,

como vimos nos capítulos precedentes, é um elemento importante da parábola.

A partir de treze diferentes "pontos de vista", "descreveremos" o Arsenal da

Esperança55

: a casa fundada em São Paulo (SP), no Brasil, e habitada pelo SERMIG -

Fraternidade da Esperança segundo o modelo do Arsenal da Paz de Turim.

Cada "ponto de vista" será seguido por um "comentário" (também feito por uma

testemunha viva dessa história) que tentará iluminar alguns aspectos de uma realidade que, da

forma como a compreendemos, constitui – assim como a hospedaria no contexto da parábola

– a experiência de uma comunidade cristã que, para responder ao amor do samaritano-Jesus,

se envolve no seu serviço, se "organiza" para perpetuá-lo no tempo, se torna parte da Igreja

que acolhe todos aqueles que passam pela estrada da vida, à espera da volta do samaritano-

Cristo.

As palavras de dom Luciano descrevem o episódio e a "centelha" de compaixão que

levaram à fundação do Arsenal da Esperança, no dia 1º de fevereiro de 1996.

No quadro das nossas reflexões, o fato de que tenha sido o próprio dom Luciano a

figura determinante para dar início a esse importante trecho da viagem do SERMIG é muito

significativo. Dom Luciano, com a sua prática de humanidade, foi uma "exegese vivente" da

figura do samaritano.

No Belenzinho56

, em Mariana ou em qualquer lugar, a qualquer hora, a sua compaixão

– demonstrada em sua habitual pergunta: "Posso ajudar? Posso servir?" – levava dom Luciano

a inclinar-se sobre quem quer que lhe pedisse uma refeição, uma roupa ou um conselho, para

depois retomar a sua viagem e cuidar, de modo igualmente concreto, de grandes problemas

como a água, a terra, os povos indígenas, as crianças e os homens de rua...

55 O Arsenal da Esperança é uma casa em São Paulo habitada pelo SERMIG - Fraternidade da Esperança que

acolhe diariamente 1.200 homens em situação de rua e que quer ser "um lugar de fraternidade, aberto à acolhida

e ao encontro com quem quiser procurar o sentido da sua vida". Informações disponíveis em:

<http://www.sermig.org/br/arsenal-da-esperanca>. Acesso em: 27 abr. 2015. 56

Na época em que dom Luciano foi bispo auxiliar de São Paulo (de 1976 a 1988), morava no bairro do

Belenzinho, na zona leste de São Paulo.

60

Foi justamente esse "bispo samaritano" ("vescovo samaritano") (PASTA, 2014) a

reconhecer em Ernesto a figura do hospedeiro fiel que poderia assumir a responsabilidade de

cuidar das tantas pessoas em situação de rua de São Paulo.

Quando dom Luciano pediu que Ernesto estendesse a viagem do SERMIG até o Brasil,

eles se conheciam e já confiavam um no outro. O primeiro encontro acontecera em 15 de

janeiro de 1988, no Arsenal da Paz de Turim, e era essa a hospedaria que dom Luciano tinha

em mente, "a realização possível da sua visão de oferecer-se ao outro"57

(Candido Mendes,

irmão de dom Luciano e reitor na Universidade Candido Mendes, in OLIVERO, 2014, p. 17).

Mas, para realizá-la também em São Paulo, precisava-se de um local e, principalmente, de

uma comunidade que o habitasse.

Quando, em 1995, o Governo do Estado de São Paulo colocou à disposição um local,

nascido e conhecido justamente como hospedaria, apresentou-se para o SERMIG não apenas

a oportunidade de realizar plenamente a sua vocação de "serviço missionário" (agora

finalmente "traduzida" no envio de jovens ao Brasil), mas também e principalmente a

possibilidade de construir, dia após dia, uma nova hospedaria voltada a resgatar a história

daquele homem, morto pela fome e pelo frio, por meio das quase cinquenta mil58

pessoas

acolhidas nestes primeiros vinte anos de Arsenal da Esperança.

57 "la realizzazione possibile della sua visione di offrirsi all'altro" 58 48.815 pessoas acolhidas até 29 de abril de 2015.

61

3.1 A HOSPEDARIA VISTA POR...

3.1.1 Lorenzo (consagrado)

Algumas semanas atrás, eu me vi acariciando afetuosamente Clóvis, que estava para

morrer. Nós o conhecemos depois que ele sofreu um acidente de trabalho. O motor de um

carro caiu sobre seu abdome e, a partir daquele momento, sua vida não foi mais vida. Depois

de anos de luta, bateu à nossa porta pedindo ajuda novamente. Muitas vezes chegou

embriagado pensando em fazer de nós o que queria, muitas vezes nos insultou "prometendo"

nos dar uma facada no pescoço; Clóvis foi para nós um pesadelo recorrente à porta do

Arsenal da Esperança.

Na sua vida não conheceu a paz. Por isso, estava sempre armado com a sua violência

incontrolável e com a sua fúria com a qual atacava todos aqueles que discordavam dele.

Porém, dessa vez ele sabia que estava chegando ao fim; nós ainda não havíamos entendido.

Nós lhe perguntamos: "Você está fazendo as pazes com Deus?". A sua resposta foi

desarmante: "Como posso fazer as pazes com Deus se estou jogado no meio da rua e

ninguém quer me ajudar?". Nós colocamos à disposição dele um quarto com uma cama e um

banheiro. Mas ele já vomitava tudo o que comia.

Durante uma conversa, Clóvis abriu a camisa e, juntos, começamos a contar as

cicatrizes de uma vida sem freios. O seu corpo era o livro da sua história violenta: além da

imensa cicatriz do acidente, ele tinha uma "constelação" de pequenas e grandes marcas. Eu

apontava a cicatriz com o dedo e ele lembrava: "Como fez esta?", ele simplesmente

respondia: "facada..."; "E esta na cabeça?", ele: "paulada..."; "E aqui no braço?", com um

sorriso: "em uma briga, quebrei o braço em dois". E assim por diante.

Depois de tudo, as marcas no seu corpo eram sinais de coragem, de um homem que

não teve medo, um homem que nunca "deu para trás". Peguei a sua cabeça e a apoiei sobre o

meu ombro... Como uma criança, ele se deixou mimar, acariciar, em um domingo tranquilo,

em um banco do Arsenal.

Aquele homem corajoso nos escolhera, encontrara a força para desarmar-se somente

aqui, onde não olhávamos seu passado e sim as coisas de que ele precisava. Ninguém pode

escolher quem irá querer-lhe bem, são os outros que o escolhem se veem em você a bondade

que sabe perdoar. Ninguém pode comandar o coração das pessoas, principalmente quando a

vida não tem o mesmo valor ao qual um homem deveria ter direito. Para muitos homens –

62

sem casa e sem futuro – viver significa existir um dia após o outro sem saber o que

acontecerá amanhã.

Nós encontramos muitos homens assim, muitas histórias, muitas vidas que não tinham

nada, nada de material, nada de espiritual, nada de nada. Muitos escolhem a droga, o sexo

fácil, a criminalidade esporádica, para procurar o próprio amor, aquele amor que jamais

tiveram. Muitos deles nasceram como filhos da enésima noite de sexo, filhos da cultura da

miséria que coloca no mundo vidas que poderiam ser úteis para sustentar a família, uma

família incapaz de amar os próprios filhos, filhos órfãos de abraços, de promessas, órfãos de

ser perdoados, compreendidos.

Para entrar em relação com eles, é preciso a cada vez desarmar-se realmente de tudo.

Só assim eles, por sua vez, se desarmarão, exatamente como fez Clóvis. Espero que todos nós,

em todos os Arsenais do mundo, possamos crescer o suficiente para aceitar esse desafio.

Agora que a vida de Clóvis terminou, não sabemos se ele conseguiu "fazer as pazes com

Deus" – não tivemos tempo de perguntar-lhe –, mas sabemos que, pelo menos, ele se

reconciliou conosco. Certamente morreu com a lembrança das nossas carícias.

Lorenzo Nacheli,

Consagrado do SERMIG - Fraternidade da Esperança

Carezzare un guerriero. In: Nuovo Progetto, fev. 2005, n. 2, p. 47

3.1.1.1 Um lugar habitado por uma Fraternidade

Deus bate à porta (cf. Ap 3,20) e espera que alguém abra e Lhe diga "sim", não por

dever e nem por obrigação, mas para responder ao Seu Amor. Quando isso acontece, o Amor

se faz próximo e torna qualquer um próximo. Esse é o "sonho de Deus" (OLIVERO, 1999),

um sonho de paz, de justiça, de vida plena para todos.

Em todos há a "nostalgia" desse sonho. Para alguns se torna "necessário" tentar vivê-

lo, mesmo quando, aparentemente, não há nada, há somente um sonho e a "intuição" de fazer

parte dele.

Esse sonho formou, ao longo do caminho, uma comunidade de pessoas simples,

normais, que conhecem os próprios limites, que se reconhecem necessitadas do amor de Deus

e que justamente por isso confiam-se a Ele para tentar deixar-se amar por Ele, querer-se bem

entre si e ter a coragem de abrir espaço para o outro, que é amado por Deus com a mesma

63

intensidade: "Como se pode passar adiante, virar as costas? Como se pode dizer a quem não

tem casa 'vá em paz' (cf. Tg 2,14-17)? Bastaria isso para fazê-lo reconciliar-se com Deus?". É

preciso dar uma casa à paz, dar uma casa à justiça, dar uma casa ao amor de Deus para as

pessoas, com uma cama e um banheiro.

Eis, então, que a casa daqueles que escolheram a vida de fraternidade – que

escolheram renunciar ao "eu" pelo "nós", tentando viver a presença de Deus (OLIVERO,

2013, p. 36 e outras) 24 horas por dia – abriu a porta e se tornou "imediatamente" uma

hospedaria para todos os homens "cansados e oprimidos" (cf. Mt 11,28) que passam pela

estrada, necessitados de encontrar descanso, recuperação, conforto e o sentido da vida.

Uma hospedaria habitada por uma comunidade samaritana que acolhe com

compaixão no coração (OLIVERO, 2013, p. 66-67) torna-se um "imã" que atrai e agrega as

pessoas mais diferentes, porque cada um que se aproxima – um pobre, um jovem, uma

criança, um artista, um muçulmano, um político, um sacerdote... – pode sentir que encontrou

refúgio, um pedaço de casa, um pouco de sombra, um sonho também para ele, porque o sonho

de Deus é feito para vivermos juntos, é para muitos, é para todos.

Também quem se afastou ou foi afastado pelo seu comportamento violento sabe que

pode voltar ali, porque aquela hospedaria é um lugar onde ninguém o julgará ou se

aproveitará da sua fraqueza, e talvez seja justamente a casa que, entre Jericó e a Jerusalém

celeste, o acompanhará com dignidade em direção ao Pai que acolhe todos.

O sofrimento e a Providência que a cada dia batem e atravessam a porta daquela

hospedaria a tornam um lugar sagrado, que continuará a sê-lo na medida em que nela houver

uma comunidade que – ainda que inadequada – a ama, a vive e a "transmite", não como uma

utopia, mas como uma experiência que pode estender-se a todas as casas, a todas as

comunidades e a todas as cidades, porque se algo bom aconteceu naquele lugar, pode

acontecer em todos os lugares.

64

3.1.2 Vanessa (estudante de psicologia)

Acredito que as desigualdades sociais deixam marcas na subjetividade do homem e

procurei uma profissão que auxiliasse a cuidar dessas pessoas marcadas; por isso, acabei

optando pela psicologia. No curso, com o passar dos anos, me deparei com um excesso de

teorias, muitas leituras, e nada de aprender a lidar com os ferimentos dos que padecem as

injustiças do mundo. Parecia que ajudar alguém era algo que não estava ao meu

alcance. Numa dessas fases de muitos questionamentos e pouca ação, encontrei o Arsenal da

Esperança, uma "casa que acolhe" 1.200 homens adultos que, se não fosse pela casa,

estariam em situação de desamparo nas ruas. No Arsenal da Esperança, descobri que, por

mais que minhas mãos não sejam tão longas para ir até a África, elas são ágeis o suficiente

para ajudar pessoas a organizar um bazar de roupas, limpar alguns brinquedos, dobrar

guardanapos e, assim, ajudar uma casa que cuida de 1.200 pessoas marcadas pelo

sofrimento da vida. Foi uma experiência enriquecedora. Todos os dias eu falava para os

meus amigos do curso de psicologia sobre o quanto o Arsenal da Esperança era incrível, que

havia um grupo pequeno de missionários e voluntários fazendo tudo funcionar e que a casa,

além de oferecer roupa, comida e cama, oferecia também cursos profissionalizantes, projetos

de cura pela literatura... Enfim, a casa oferecia amor àqueles 1.200 homens e ainda

conseguia expandir o acolhimento a todos os que na casa entravam, incluindo os

voluntários.

Apesar da timidez exacerbada que me afligia e do pouco tempo disponível devido ao

trabalho e aos estudos, pensei em propor uma ação voluntária da minha universidade

(Universidade Presbiteriana Mackenzie) no Arsenal da Esperança e expressei a vontade ao

Simone, um dos missionários do SERMIG – Fraternidade da Esperança. Com o auxílio dele,

fiz o projeto voluntário, que foi aprovado pela universidade. De todos os alunos convocados,

trinta se inscreveram e apenas quinze compareceram. Alguns alunos não foram devido à

semana de provas; outros, por receio do local. Contudo, os quinze que estiveram presentes –

em sua maioria, estudantes de Psicologia – foram dispostos a conhecer o local e a ajudar a

casa; os quinze alunos foram dispostos a amar.

No dia 18 de outubro de 2014, primeiro visitamos a casa e entramos em contato com

a estrutura, a história e a equipe do Arsenal da Esperança. Depois, nos engajamos na

limpeza do Salão Vida Fraterna, que estava desorganizado devido a um chá beneficente

realizado ali e que deveria estar pronto para acolher a Missa semanal que aconteceria em

65

algumas horas. Os alunos formaram uma equipe e o local foi limpo e organizado. A ação

começou por volta das 9h15 com previsão para terminar às 12h; contudo, a ação voluntária

foi até as 14h, e foi finalizada com a entrega de itens de higiene e roupas masculinas

arrecadados pelos alunos. Como esperado, o Arsenal da Esperança encantou aqueles jovens

estudantes, que me procuraram muitas vezes durante a visita para dizer o quanto estavam

encantados com o local, o quanto não esperavam encontrar aquela paz em um "albergue", o

quanto gostariam de voltar ali. Os alunos reconheceram no Arsenal da Esperança uma luta

por um mundo melhor, se identificaram com a proposta e perceberam o quanto o mundo

precisa de braços engajados a serviço do bem, porque "todos juntos somos fortes" e

transformar o mundo em um lugar melhor não é utopia: é possibilidade. Durante a ação

voluntária, os alunos tomaram a consciência de que todos podem fazer alguma coisa, de que

não existe ação voluntária maior ou menor, de que o importante é dar o máximo de nós para

ajudar o próximo, pois assim nos transformamos em pessoas melhores e também

transformamos o mundo [...].

Vanessa Alice de Moura

Estudante de psicologia e voluntária do Arsenal da Esperança

Como se faz uma casa que acolhe: Voluntariado.

In: Blog do SERMIG - Fraternidade da Esperança. 13 jan. 2015.

Disponível em: <http://arsenalesperanca.blogspot.com.br/2015/01/como-se-

faz-uma-casa-que-acolhe.html>. Acesso em: 5 abr. 2015.

3.1.2.1 Um lugar onde usar o que recebemos

[...] você foi conduzido à hospedaria, foi cuidado pela Igreja. É por

isso que eu digo: também eu, também nós todos fazemos isso, cumprimos o

papel do hospedeiro. A ele foi dito: "o que gastares a mais, em meu regresso

te pagarei". Deus queira que também nós paguemos pelo menos aquilo que

recebemos! Mas qualquer que seja a quantia que damos, irmãos, é dinheiro

do Senhor. (AGOSTINO, § 7-8).59

A hospedaria é um lugar em que todos podem usar e fazer frutificar os seus dons. Os

dois denários não são apenas o justo salário recebido por alguém que deve simplesmente

desempenhar sua função, mas os talentos, a capacidade de amar que o samaritano confia ao

hospedeiro, a cada um de nós e a toda a comunidade para prosseguir sua obra de misericórdia.

59 "[…] sei stato condotto nella locanda, vieni curato nella Chiesa. È in conseguenza di ciò che parlo: questo,

anch'io, questo facciamo noi tutti, adempiamo il compito dell'albergatore. A quello fu detto: Rifonderò al ritorno

quanto spenderai in più. Dio voglia che anche noi spendiamo almeno ciò che abbiamo ricevuto! Ma quanto che

sia quello che diamo, fratelli, è denaro del Signore."

66

O trabalho do hospedeiro agora é também nosso. Ao confiar-nos a missão de fazer a

hospedaria continuar funcionando, o samaritano nos bendiz e deposita em nós plena

confiança. Ele nos fornece todos os instrumentos para que possamos prosseguir com o que ele

iniciou.

São muitas as pessoas que sentem que essa responsabilidade é delas, que se sentem

samaritanos "em potencial", que são capazes de comover-se com as feridas da humanidade e

desejam fazer algo para cuidar dela, mas frequentemente o seu "equipamento" de capacidade,

de potenciais, de recursos recebidos por Deus para serem "colocados em circulação" não

encontra uma oportunidade, um lugar, uma casa, um endereço onde exprimir-se

concretamente.

O "pandocheîon", a casa que acolhe todos da qual Lucas fala na parábola, não é um

lugar exclusivo para aqueles que precisam de cuidados. O próprio samaritano está

acostumado a buscar hospitalidade ali ao longo de seu caminho, a pernoitar e a encontrar ali

as condições para cuidar (ainda mais) do homem que salvou da estrada.

A "casa de todos" não é apenas um lugar aonde levar (ou ao qual delegar) quem

apresenta um problema para que receba os cuidados do hospedeiro, não é uma "casa de

acolhida", mas uma "casa que acolhe" todos, onde, a partir das feridas de alguém, todos têm a

oportunidade de poder oferecer e compartilhar as "soluções". É um lugar onde cada um pode

experimentar a alegria de servir com o seu dom particular, provado, avaliado, orientado e

educado pelos hospedeiros, mas também acolhido e valorizado.

Desse modo, cada um pode "restituir" à comunidade, à humanidade inteira e a Deus

aquilo que Ele doou naquele maravilhoso e providencial "empréstimo" que são os talentos de

cada pessoa. O dom "restituído" produz vida, esperança e a alegria de poder contribuir, com

as próprias mãos, para manter sempre aberta, viva e "povoada" aquela hospedaria que o

samaritano quis como um prolongamento de Si. A alegria de colocar à disposição a própria

inteligência, as próprias energias, os próprios denários, todo o seu ser ("Amarás o Senhor teu

Deus, de todo o teu coração [...]", Lc 10,27) para a construção de um projeto divino que

cresce conosco, homens e mulheres. Uma alegria que nasce do fato de saber que não se está

agindo por um sentimento de inveja, de vontade de possuir ou de dominar – porque ninguém

pode ser hospedaria sozinho –, mas para dar algo à comunidade, para fazer os outros felizes,

como nos recomenda At 20,35b: "Há mais felicidade em dar que em receber".

67

Frequentemente, não percebemos quanto bem podemos fazer em apenas cinco

minutos, quanto bem pode fazer à comunidade ajudar a "organizar um bazar de roupas, limpar

alguns brinquedos, dobrar guardanapos" e como tudo isso contribui para levar adiante o

grande projeto de amor que nos foi confiado, que é dar de comer a quem tem fome, vestir

quem está nu, acolher o estrangeiro (Cf. Mt 25,31-46)... É difícil e cansativo; requer tempo,

paciência e constância; frequentemente é pouco gratificante; diante de certas discussões

teóricas ou espirituais, pode parecer até mesmo banal, porque exige "apenas" uma rotina

adequada; mas o amor é isso.

68

3.1.3 Julia (estudante de letras)

Diga seu nome completo, sua idade e sua profissão.

Julia Kananda Lima, 18 anos e sou universitária.

De que atividades você participa no Arsenal da Esperança e por que resolveu

participar?

Eu participo de atividades do dia a dia. Quando se fala em trabalho voluntário,

estamos acostumados a pensar em grandes coisas, difíceis e nem tão comuns, que somente

pessoas capacitadas podem realizá-las. Mas, no Arsenal, aprendi que não é sempre assim.

Por ser uma casa que abriga diariamente muitos homens, (cerca de 1.200) há muito que ser

feito. Por exemplo: eu já ajudei no bazar, em eventos da casa, nas atividades da biblioteca,

na lavanderia, enfim, coisas comuns na casa de qualquer um de nós. O motivo de eu fazer

parte, mesmo que pouco, é que com tudo que aprendi a fazer, percebi que com simples coisas,

mas concretas e singelas, podemos servir as pessoas de uma forma muito bonita e real, não

fictícia, virtual. Um "simples" arrumar a cama, lavar uma roupa, oferecer conhecimento,

servir uma deliciosa comida parecida com a da mamãe, um "simples" estar perto de quem

precisa é o mais importante da vida, pois, assim, não somos apenas seres vivos existindo no

planeta, mas tentamos viver como irmãos, como pessoas que mutuamente se ajudam e se

amam. E encontrar esse modo de vida tão oposto ao mundo em que nós vivemos me cativou

muito, e, além disso, a cada dia trabalhado, a cada realidade conhecida, a cada olhar, a

cada sorriso, são acrescentados em minha vida aprendizados que eu não encontraria sentada

em frente a uma TV, por exemplo.

Como ficou sabendo da atividade?

Bom, tudo começou em 2013 com o grupo de pastoral do colégio que eu estudei

(Colégio de Santa Inês) com nosso coordenador Max, que nos levou até o Arsenal. Nós íamos

lá toda semana (e o grupo continua indo) e realizávamos atividades cotidianas da casa, como

eu já disse, como dobrar toalhas (1.200 que são todas lavadas e dobradas diariamente);

ajudar na organização do bazar; esvaziar estantes de livros; atravessar o pátio do Arsenal

com pilhas de cadeiras, etc. Quando me formei no fim do ano de 2013, o que significava que

não mais participaria das atividades do colégio, eu comecei a ir ao Arsenal com minhas

próprias pernas, o que marcou uma nova fase na minha vida. Como antes, continuei a ajudá-

69

los em várias atividades da casa e, assim, pude, aos poucos – o que não cessa – conhecer

melhor a história e a essência dessa maravilhosa obra.

Que contribuição acredita que essa atividade esteja dando a sua vida pessoal e

espiritual?

Eu sempre tive (graças a Deus), desde criança, um pensamento de ajudar o próximo,

amar e servir. No entanto, ficava apenas em minha mente, fosse por falta de atitude, e

também, de conhecimento e oportunidade. Ao frequentar e participar das atividades do

Arsenal, aquilo que apenas eram ideias, pensamentos, foi, aos poucos, se tornando real. E

isso, com certeza, mudou, radicalmente, minha vida e visão de mundo. Aprendemos com

Jesus palavras de ir, de servir, de amar, mas muitas vezes, se não, em todas, apenas ficamos

nas palavras e nos esquecemos do exemplo deixado pelo próprio Jesus, que não apenas falou

belos discursos, mas pôs a mão na massa, fez o improvável, colocou em prática tudo o que

disse, verdadeiramente amou. Todos os encontros, conversas e reflexões – que também

fazíamos, éramos alimentados, levados a refletir, não era apenas um fazer por fazer, tudo

tinha um sentido, um porquê – fizeram com que eu não mais apontasse o dedo aos outros

como antes, dizendo que a culpa é desse ou daquele. Eu aprendi que se eu não mudo, não

posso esperar ou obrigar que as pessoas mudem; e que, se há em mim um incômodo, a

mudança precisa partir de mim, pois Deus não me incomodaria, não me capacitaria a ver tal

realidade, à toa. O mais incrível que eu aprendo diariamente, é como Deus é gracioso e se

mostra a nós, capacitando-nos com o verdadeiro amor, com coragem e alegria para servir e

se doar aos outros de modo que ele, da forma que sustenta e fez o Arsenal - não como mais

uma obra social como tantas outras, mas como algo diferente, como uma lâmpada vista por

todos – seja louvado.

Qual a sua opinião a respeito do Arsenal ter disponibilizado atividades para unir a

juventude na prática de ações construtivas?

Eu sou verdadeiramente grata por essa chance não só por mim, ou pelos meus

colegas, mas por todos que participam porque eles podem conhecer e ver o exemplo de vida

de doação dos missionários e voluntários e também dos acolhidos, e refletirem se estão, de

fato, tendo uma vida que vale a pena ser vivida, que tem sentido, que tem valores. E então,

têm a bela chance de perceber que suas vidas são grandemente úteis e preciosas, que têm um

70

propósito e que precisam viver – do jeito único de cada um – da melhor e mais proveitosa

forma possível e encontrar o sentido de viver, de estar aqui.

Na sua opinião, por que é importante praticar o bem e como se sente ao ajudar

outras pessoas?

Eu não consigo ver o bem sendo praticado se não houver amor, pra mim isso não

existe. A ideia de praticar o bem simplesmente porque é politicamente correto, e ético, e

digno de aplausos, não me agrada. Praticamos o bem porque amamos e nos importamos.

Porque nos vemos no outro, em seu sofrimento, em sua dor, em sua diferença. E não é porque

faço o bem, que ajudo, que estou em um patamar elevado. Não. Ao ajudar sou grandemente

ajudada: primeiro, porque Deus me capacita; segundo, que ao amar, o outro, que percebe

meu carinho e atenção, retribui em dobro, e, se não correspondida, encontro conforto em

Jesus, o qual não agradou a si mesmo. É importante praticar o bem para expressarmos o

melhor que há em nós, expressarmos a beleza em nós, muitas vezes, contida, oculta, e então,

nos tornarmos verdadeiros irmãos.

Julia Kananda Lima

Estudante de letras

Entrevista concedida a Simone Bernardi para publicação parcial no

Jornal Santuário de Aparecida. 6. jul. 2014.

3.1.3.1 Um lugar para entender por que eu, jovem, estou no mundo

A hospedaria é um lugar para entender a razão pela qual estamos no mundo. Antes do

samaritano, passaram um sacerdote e um levita. Jesus não cita dois transeuntes quaisquer,

mas duas pessoas de quem esperaríamos que o ferido recebesse pelo menos algum tipo de

atenção; e, mesmo assim, passam adiante.

Em uma época de transição como a que estamos vivendo, em que os velhos esquemas

culturais e ideológicos "não mandam mais", o mundo dos adultos – pais, educadores,

professores e todos os representantes das instituições políticas, econômicas, sociais e

religiosas – parece ter passado adiante, passado longe, indiferente ou incapaz de reconhecer

nas novas gerações os novos feridos na estrada de Jericó.

"O que podemos fazer? Os jovens não querem saber de nada! São vazios,

desrespeitosos, violentos... Será que vale a pena perder tempo com eles? Eles não mudam..."

E, assim, os deixamos na estrada, oferecendo a eles coisas para possuir, passatempos para não

71

pensar, mas não uma vida realmente vivida. Na melhor das hipóteses, aposta-se tudo na

formação compreendida unicamente como "conhecimento", certamente necessário, mas que

sozinho não basta. O saber nutre a mente, mas, se não se mistura com a vida, não se torna

sabedoria.

Os jovens de hoje têm dificuldade para investir em uma relação ou em um projeto, seja

no que diz respeito à vida pessoal, seja quando se trata de fazer uma pequena contribuição a

uma situação social. Vivem como espectadores a história do nosso tempo, colocando-se

sozinhos "fora de campo" e tornando-se inconscientemente cúmplices dos assaltantes que os

mantêm prisioneiros.

A expressão "esplagchnisthê", usada por Lucas para indicar a emoção experimentada

pelo samaritano, é a mesma usada para descrever a emoção de Jesus ao ver a viúva de Naim

chorando pela morte do filho (Lc 7,13). O episódio tem como centro um jovem que está

morto. Nesse caso, há a morte física, mas muitíssimos jovens hoje estão mortos no coração:

não só os que estão imersos nas mais diversas situações de desvio e dependência, mas

também os que, mesmo tendo "tudo", estão em uma situação de morte espiritual, sem mais

sonhos nem ideais. Incertos, confusos, insatisfeitos.

O olhar de compaixão de Jesus que se aproxima do rapaz de Naim, toca o seu esquife

e depois diz "Jovem, eu te ordeno, levanta-te!" (Lc 7,14b) ensina que naquele jovem não está

a morte, mas a vida: "E o morto sentou-se e começou a falar. E Jesus o entregou à sua mãe"

(Lc 7,15). Jesus não considera ninguém perdido, mas se aproxima, escuta, reconhece as

dificuldades e, então, "faz o improvável", encontra o caminho para ressuscitar, para

recomeçar.

Talvez não existam grandes soluções para oferecer aos jovens que não conseguem

encontrar trabalho, aos que vão mal na escola, ou então àqueles que vão bem e não sabem o

que fazer com tanto conhecimento. Porém, não podemos renunciar a nos "inclinarmos" para

"tocar" a humanidade deles, para nos deixarmos interrogar pelo seu silêncio ou pelas suas

perguntas incômodas.

Os jovens precisam de alguém que tenha compaixão deles, que tenha a coragem de

aproximar-se do coração deles e de levá-los para casa (Madre Teresa de Calcutá apud

OLIVERO, 2013, p. 180-181), para a hospedaria, que deve ser um lugar onde eles se sintam

acolhidos como são, na fase em que estão; deve ser uma comunidade que eles vejam anunciar

72

e ao mesmo tempo praticar uma "boa notícia", na qual vejam que ainda existe alguém que

aposta no amor para mudar o mundo e está disposto a fazê-lo de verdade, dedicando tempo e

energias para trabalhar ao lado deles, sem preconceitos.

É assim que o colocar à disposição algo daquilo que se estudou ou "o 'simples' estar

perto de quem precisa" ajuda os jovens (e não só eles) a entender por que se está no mundo,

por que se estuda, por que se trabalha, por que se reza, por que Deus dá talentos a cada um.

Isso pode dar impulso a uma jovem vida, treinar o seu olhar para a compaixão e abri-lo para a

esfera mais ampla da história e do mundo. Finalmente percebe-se que não é "um fazer por

fazer, tudo tem um sentido, um porquê...", que "muda, radicalmente, nossa visão de mundo".

O mundo tem uma necessidade enorme dos jovens: com o seu sim, eles "podem ser o

sal, o fermento, os descobridores das novidades do Espírito, e levar uma real novidade ao

mundo"60

(OLIVERO, 2013, p. 78). Sem eles, ficam faltando as melhores forças!

Se o coração dos pais estiver aberto e encontrar uma forma de voltar-se para os filhos

– e vice-versa (cf. Ml 3,24) –, encontrará uma resposta a muitas perguntas e contestações

escondidas. Não é nada novo: trata-se simplesmente de redescobrir a compaixão como uma

resposta à complexidade desta época, uma resposta que devolve o sentido à vida.

60 "possono essere il sale, il lievito, gli scopritori delle novità dello Spirito, e portare uma reale novità al mondo."

73

3.1.4 Samuel, Wanderson, Victório e Maria Alice (crianças dA Praça)

Olá! Meu nome é Samuel, sou do Brasil, tenho 12 anos e participo dA Praça61

. A

Praça é um grupo de jovens que se encontram aos sábados para pensar em vários jeitos de

melhorar nosso bairro. Traduzindo: digamos assim, são algumas pessoas que, ao invés de

ficar em frente ao videogame ou à TV ou ao celular, vão para um lugar cheio de pessoas

maravilhosas (como diz o Marco), pessoas que são solidárias, alegres e divertidas. E antes

que perguntem: Por que todo sábado eu vou À Praça??? Eu não poderia estar comendo

pipoca e assistindo TV, já que é sábado??? Bom, eu vou À Praça todos os sábados pelo fato

de que simplesmente eu posso mudar o mundo indo À Praça. Essa frase pode ser contrariada

muitas vezes. O mundo é tão grande, como eu posso mudar o mundo? Cada país é construído

metro quadrado por metro quadrado62

e, a cada metro quadrado que eu e os jovens dA Praça

mudamos, podemos fazer uma corrente com a Itália, com a Jordânia e com todas as 7 bilhões

de pessoas no planeta, e eu posso repetir essa frase mil vezes: eu posso mudar o mundo

começando por mim!

O que A Praça representa para mim? Uma parte do que eu posso ser no mundo. Isso

pode ser um completo exagero por alguns julgarem que eu sou apenas uma "criança", mas

pelo menos eu acredito que todos que passaram pelA Praça levam um pouco mais de Paz em

seu coração e eu posso afirmar isso. [...]

Samuel Freire, 12 anos

61 A Praça é uma das iniciativas do SERMIG - Fraternidade da Esperança no Brasil e tem como objetivo ser "um

espaço de encontro da juventude, mas aberto a todos, para a realização de atividades de promoção da vida e de

fortalecimento da comunidade". Com início no primeiro semestre de 2013, suas principais atividades acontecem

aos sábados e reúnem jovens e crianças da paróquia local e do bairro em geral. Informações disponíveis em:

<http://www.sermig.org/br/a-praca>. Acesso em: 23 abr. 2015. 62

Em fevereiro de 2015, as consagradas do SERMIG - Fraternidade da Esperança Irene Panarello e Cristiana

Capitani, que vivem no Arsenal do Encontro, na Jordânia, e Chiara Maria Meulli, que na ocasião estava lá,

mandaram para os jovens e as crianças dA Praça do Brasil, por meio de uma mensagem pessoal via correio

eletrônico, uma mensagem que dizia "Nós não podemos decidir a sorte da nossa nação diretamente, mas

podemos decidir a sorte do nosso metro quadrado, e um país é construído metro quadrado depois de metro

quadrado" ("Non possiamo decidere le sorti della nostra Nazione direttamente, ma le sorti del nostro metro

quadrato sì e metro quadrato dopo metro quadrato si costruisce anche un paese"). A mensagem foi traduzida e

lida para as crianças e os jovens na semana em que foi enviada. O fato de, muitas semanas depois, Samuel Freire

retomar essa ideia em seu depoimento é um sinal do grande impacto que os encontros dA Praça têm sobre ele.

74

A Praça é um lugar onde crianças e jovens do meu bairro se juntam para brincar,

rezar e pensar como tornar o mundo um lugar melhor para todos. Aqui nós lemos cartas dos

nossos amigos jordanos, italianos e do próprio papa. Quando chegamos temos um tempo

para fazer compostagem, depois nós rezamos e vamos brincar um pouco. Geralmente o

esporte que nós mais gostamos é o badminton. Nós ainda estamos aperfeiçoando, mas

estamos bons. O grupo dos jovens se foca mais em como melhorar o mundo e arrecadar

dinheiro para poder ir para a JMJ e outras coisas. Eles fazem cestas básicas para famílias de

baixa renda e ajudam nas festas da nossa paróquia. Nós vemos vídeos que o pessoal do

"Arsenal da Paz" na Itália faz, ouvimos as musicas que eles cantam e também lemos as cartas

deles.

Wanderson Pinheiro de Sousa, 12 anos

Oi! Meu nome é Victório, tenho 11 anos e eu sou dA Praça! Eu acho que A Praça é

um lugar para as pessoas se reunirem, terem harmonia no coração e rezarem pelas pessoas

que precisam de ajuda, e isso é algo maravilhoso, como diz o Marco. Eu não sou católico,

sou espírita, mas eles aceitam qualquer religião. Isso é o que eu acho dA PRAÇA.

Victório Cavalcante Pazos, 11 anos

A Praça é um lugar onde me distraio, brinco, ajudo os outros. As atividades que mais

gosto de fazer nA Praça são jogar badminton e cuidar das minhocas. A Praça sempre está

ajudando o nosso bairro: limpando as ruas e fazendo nós crianças não entrarmos no mau

caminho e os jovens também. A Praça também nos faz conhecer novas pessoas, como

"Ernesto Olivero", e até outros países. A Praça é o melhor lugar para ficar no sábado, A

Praça é como a minha casa.

Maria Alice Gonçalves Ferreira, 12 anos

Depoimentos concedidos a Thais dos Santos Domingues para fins de

publicação neste trabalho.

75

3.1.4.1 Um lugar para educar uma criança

A estrada que desce de Jerusalém para Jericó era dificilíssima. Até hoje essa estrada

é perigosa. Ou, melhor dizendo, todas as ruas o são: videocâmaras, cancelas, portões, carros

blindados, vidros escuros, seguranças, homens que vivem nas ruas, respirando o ar

irrespirável de uma terra onde ninguém mais vê o coração do outro, onde se está sozinho,

sempre tentando ou se defender ou atacar.

Isso é algo que as crianças sabem bem, porque muitas delas, mais que os outros, vivem

sem poder usufruir livremente dos espaços públicos do território e crescem atrás de barreiras

cada vez mais altas e sofisticadas, que transformam casas, condomínios, escolas e parques em

verdadeiras fortalezas, sempre mais fechadas e menos "parte" de uma comunidade, de uma

"aldeia", de um "vilarejo" que cuide dessas crianças e as ensine a viver, a confiar, a amar.

Também hoje, o amor de uma comunidade samaritana – o amor já "vivido" de uma

hospedaria que abre as portas e amplia seu raio de ação para ir ao encontro das pessoas, voltar

a povoar ruas e praças, cuidar dos bairros, das cidades, dos países em que se vive – pode

recriar aquele espírito de fraternidade que falta cada vez mais e oferecer às pessoas sinais

concretos da presença de Deus.

As crianças serão as primeiras colaboradoras dessa hospedaria "a céu aberto", porque

justamente os menores é que são capazes de reconhecer que não é possível ser feliz brincando

sozinho, fingindo que quem não faz parte daquele condomínio, daquela escola e daquele clube

não existe ou deve simplesmente "se virar sozinho", como se fizesse parte de outro planeta.

Dizem que há um provérbio africano que diz que "é preciso de uma aldeia inteira para

educar uma criança". Se os adultos tivessem um estilo de vida de fraternidade, a educação das

crianças e dos jovens poderia acontecer quase por "osmose". Para uma criança, bastaria

observar os seus educadores para aprender a discernir entre o bem e o mal, para crescer aberta

aos outros, tanto aos acadêmicos quanto aos analfabetos, tanto aos aspirantes a santos quanto

aos ex-dependentes químicos, em uma idade na qual ainda não se consegue sequer entender

direito a diferença entre uns e outros.

As crianças, que sabem fazer de suas casas as casas de todos, mesmo daqueles que são

considerados mais "distantes", podem aprender e ensinar, talvez até melhor que os adultos, as

76

regras da convivência pacífica e demonstrar que é possível mudar o destino do mundo, do

"mundo" que está perto e do "mundo" que está longe de nós.

Esta é a "aldeia", este é o "vilarejo" que deve ser recriado: uma rede de humanidade

que envolve os menores com os olhos voltados para as necessidades deles; um lugar no qual

cuidar de uma criança é responsabilidade de todos e onde ninguém passa adiante com

indiferença se a vir chorar, correr um perigo nas ruas ou manifestar qualquer sinal de que algo

não está bem; um lugar para onde voltar, aonde levar os amigos para brincar, onde há sempre

alguém pronto para escutar; um lugar onde os pais, os educadores, os professores e também a

política, a economia, a ciência, as mídias e todas as pessoas comuns cooperam com o bem das

crianças, porque as consideram patrimônio de todos, "patrimônio da humanidade"

(OLIVERO, 2014b).

Não é preciso nada extraordinário: basta abrir a porta da hospedaria e ir até a rua,

começando a cuidar, "metro quadrado depois de metro quadrado", de uma praça abandonada,

a ocupá-la pacificamente, por exemplo, com uma bola, pequenos gols de madeira e uma corda

para delimitar o espaço. Quando essa disponibilidade existe, até as estradas que começam na

porta de casa, aquelas que começam logo ali do lado de fora da hospedaria, passam a não ter

mais limites, e aqueles que as percorrem frequentemente chegam muito longe.

77

3.1.5 Célia (professora de educação infantil)

Esta casa que hoje chamo de Arsenal, para mim era apenas um albergue que

"recolhia" moradores de rua: recolher, como se fossem objetos e amontoá-los...

A primeira vez que cruzei as portas do Arsenal, foi para participar da santa missa,

que meu amigo Pe. Vandro celebrava com vocês e esse motivo me fez esquecer que ali

haviam moradores de rua. Lembro-me que um de vocês estava na portaria nos recebendo e

sorrindo, achei "simpático", lembro também que não me senti muito a vontade, mas fiquei até

o fim.

Em outra ocasião, ouvi o Coral do Arsenal cantar na nossa paróquia, fiquei

emocionada com as músicas, o carinho que o Pe. Vandro os tratou, mas ele é padre, pensei, é

seu enorme coração que se derrama...

O tempo passou, Deus escolheu Pe. Vandro para outra missão, Deus foi "ganhando"

mais espaço na minha vida, fiz amizade com as meninas da paróquia, passei a ler as cartas

de Ernesto no blog, fui me enchendo de vontade de conhecê-los e coragem, numa bela terça-

feira anunciei que iria acompanhá-las no grupo de oração do Arsenal (não mais albergue),

veja só: dessa vez, saí de lá muito mais incomodada porque fui recebida de novo com

sorrisos, olhares carinhosos e mais: ouvi a palavra de Deus que ali foi estudada de um jeito

simples, mas muito profundo, bonito...

Ali, percebi o quanto a Palavra de Deus é viva: ela acontece no trabalho de vocês, no

jeito que vocês nos tratam, no olhar de cada um, no amor que dão àqueles que perderam a

esperança, e todos os dias têm que recomeçar, nas ações que realizam pela cidade, simples,

corriqueiras, pequenas, mas que fazem acreditar que este mundo ainda pode ser melhor!!!

Obrigada pelo sim de cada um de vocês, pela decisão de um coração que ama in-con-

di-cio-nal-men-te todos os dias, acolhe, abraça o pequeno, o fraco, o esquecido, por

entregarem a vida, a juventude e escolhendo trabalhar não em benefício próprio, mas para

transformar, ser o "sal da terra" como está escrito na Palavra...

78

"Se eles são bons e disponíveis, por que eu também não posso sê-lo?" Esse

pensamento do Ernesto tem me acompanhado e incomodado, tenho muito a aprender...

Rezo por Ernesto. Rezo por todos vocês. Um abraço!

Célia Ramalho

Professora de educação infantil

Esta casa que hoje chamo de Arsenal...

In: Blog do SERMIG - Fraternidade da Esperança.1 set. 2010.

Disponível em:

<http://arsenalesperanca.blogspot.com.br/2010/09/esta-casa-que-hoje-chamo-

de-arsenal.html>. Acesso em: 6 abr. 2015.

3.1.5.1 Um lugar onde o silêncio fala

A hospedaria é um lugar de oração 24 horas por dia. Lá, entende-se que oração é

colocar o próprio tempo à disposição de Deus e permitir que o amor Dele – que não tem

nem horários e nem dias estabelecidos, que é a eternidade – possa exprimir-se na

simplicidade e na normalidade das ações cotidianas. Mas entende-se que é também oração

litúrgica, que em determinados momentos celebra o diálogo do homem e da Igreja com o

seu criador, que dá vida, força, sentido e pureza a tudo o que é feito.

Quem cuida da hospedaria tenta não interromper jamais esse diálogo com Deus Pai,

Filho e Espírito Santo, e tenta também apresentar esse Deus a cada um que por ali passa por

meio do silêncio, da acolhida e da compreensão daqueles que se aproximam da porta.

Os hospedeiros não têm medo de mergulhar, a cada momento, na concretude do

Evangelho, porque vivem à presença de Deus (OLIVERO, 2013, p. 36 e outras) e sabem que

Ele os ama e, portanto, sempre cuida deles, dia e noite, e que nada os pode afastar, desviar ou

desencorajar, como diz o Salmo 121(120).

O confiar-se constantemente a Ele os faz permanecer em pé mesmo quando estão

cansados e dá a eles uma paz profunda que os leva a considerar o imprevisto um presente

(OLIVERO, 2013, p. 32), a sentir gratidão por tudo (p. 95), a não fazer nada com arrogância

ou poder. Sentindo-se cuidados por Deus, cuidam dos outros (p. 60) e sentem-se responsáveis

pela felicidade de quem se aproxima e de quem ainda está longe, prolongando esse olhar e

difundindo esse estilo de vida para além da hospedaria, para onde, na maioria das vezes, a

lógica é outra.

79

Em uma sociedade desigual, com uma convivência difícil entre as várias categorias

sociais e religiosas e com a dominação sobre os mais fracos, o medo de ser atacado por

assaltantes impede que muitos se coloquem a caminho e os leva a trancar-se em fortalezas

que garantem segurança e a cair em armadilhas de preconceitos e estereótipos que não fazem

nada além de excluir e eliminar a possibilidade, também para eles mesmos, de voltar à vida. A

lógica da "fortaleza", onde não é Deus que cuida, mas a presunção de poder cuidar-se

sozinho, corre o risco de criar lugares que, ainda que bonitos e organizados, não têm mais o

perfume da hospedaria (cf. 2Cor 2,14-15): não acolhem, não recebem mais ninguém e, assim,

não deixam entrar a luz da esperança; em vez disso, desorientam, afastam, escandalizam. A

lógica da fortaleza vira as costas ao anúncio e à possibilidade de um mundo novo onde todos

podem reconciliar-se, participar e ser protagonistas da "aventura" sempre nova de Deus.

Somente a lógica da fraternidade, da acolhida, da disponibilidade e do perdão é capaz

de desarmar os corações, de transformá-los e de anunciar "novos céus e nova terra" (Is

65,17a) para consolidarmos juntos.

Uma, dez, cem hospedarias com a luz sempre acesa e a porta sempre aberta podem

anular a escuridão (OLIVERO, 2013, p. 32) de qualquer cidade e, apenas pelo fato de

existirem, podem tornar-se ponto de referência constante, sempre visível, mesmo de longe,

que não pode deixar de atrair ou permitir que se continue indiferente: cada hospedaria se

torna "sinal de contradição" (Lc 2,34b) para quem continua a preferir a lógica da fortaleza;

mas, principalmente, se torna sinal concreto de que é possível colocar em prática as palavras

do Evangelho.

O rosto dos hospedeiros será o reflexo de uma luz que não vem deles e suscitará em

cada um que por ali passa, mesmo que casualmente, o desejo de descobrir a raiz dessa luz, de

encontrar a origem dela no seu coração e de começar, também ele, a cuidar dos outros.

80

3.1.6 Osvaldo (ator de teatro)

Durante todo este tempo em que residimos teatro nesta casa de acolhida e passagem,

nos esforçamos para manter o corpo atento ao entorno e não naturalizar o olhar. Conviver

aqui precisa ser um exercício contínuo de descoberta, para não cairmos na vala comum dos

preconceitos e verdades absolutas. Assim também deve ser o teatro que pretendemos e

propomos. Avaliamos cada ação nossa aqui dentro com a finalidade de potencializar o

pensamento e acirrar o debate. [...]

Aos poucos, algumas experiências pontuais nos revelaram ruídos na relação. A

rotatividade da casa tinha imprimido sua marca nas relações e, neste momento, os acolhidos

eram outros: jovens – em geral – e muitos usuários (ou ex) de crack. O Arsenal se mostrava,

novamente, reflexo imediato da realidade periférica (não apenas geográfica) de nossa

cidade. Agora a relação era mais dura, ágil e menos harmoniosa. Não podíamos propor um

espaço de reflexão se antes não considerássemos esta realidade. [...]

Buscamos, então, recolhimento para repensar. Tudo pode ser intervenção, mas qual

queremos? E enquanto nos protegíamos na sala para ganhar força estética e discursiva, o

Arsenal mudou. E mudou de novo. E mais uma vez. A velocidade industrial de nossos tempos,

que, sem zelo, perpassa cada relação que construímos, levou e trouxe nossos interlocutores.

Ressentimo-nos de estar ausentes, mas é necessário entender este movimento de preparação.

Neste momento estamos de volta ao espaço aberto, mais prontos para intervir.

Iniciaremos estudos teóricos sobre intervenção, mas não o apartaremos da prática que já se

agita nos espaços de convivência do Arsenal, para que o risco do embate atravesse

concretamente nossas propostas nas criações, nos encontros com grupos, nas oficinas e no

que mais for proposto na roda.

81

Torcemos para que assim nossos olhos (Estável, acolhidos e demais participantes do

projeto) se orientem para um encontro de descoberta e renovação.

Osvaldo Hortêncio (Dinho)

Ator da Cia. Estável de Teatro63

O que intervir no quê? In: Território Estável. 12 abr. 2010.

Disponível em: <http://territorioestavel.blogspot.it/2010/04/o-que-

intervir-no-que.html>. Acesso em: 6 abr. 2015.

Quando venho no Arsenal da Esperança ainda me sinto fronteirizada, é como se eu

embora dentro, vivesse fora. Porque de fato, vivo. Vivo fora no meu dia-a-dia. Vivo fora por

estar dentro do meu "universo particular", que reflete e não atua. Quero me relacionar com

todos de uma maneira a qual eu pare de dizer nós e eles.

Trecho de "Descoisificar - Laboratório de intervenção"

In: Território Estável

Disponível em:

<http://territorioestavel.blogspot.it/2010/04/descoisificar-laboratorio-

de.html>. Acesso em: 6 abr. 2015.

3.1.6.1 Um lugar em que as pessoas podem chegar de qualquer parte

A hospedaria é um lugar onde todos aqueles que estão disponíveis para socorrer o

homem do nosso tempo podem colaborar. Os hospedeiros sabem que ninguém é

autossuficiente para aliviar a condição humana: é necessária a ajuda de muitas pessoas para

recriar, ao redor de quem é mais fraco, uma rede de proteção, uma "aldeia", um "vilarejo"

onde todos aprendam a ter olhos na frente, atrás e dos lados, um pouco como Deus faz com os

homens. Por isso, os hospedeiros aprenderam a não ser estranhos a nada e a ninguém

(OLIVERO, 2013, p. 62), a não olhar as pessoas nas roupas ou nas escolhas políticas, mas no

coração, discernindo tudo e ficando com o que é bom (cf. 1Ts 5,21).

Com esse estilo, os hospedeiros, antes de pronunciar um "não dá", um "não é possível"

ou um "nunca fizemos isso", preferem deixar-se interrogar por cada proposta de colaboração

para depois – quem sabe? – percorrer trechos de estrada juntos.

Cada peça capaz de criar comunhão, disposta a fazer a própria parte por uma

sociedade mais justa e fraterna, pode inserir-se em um caminho paralelo, mas concreto, para o

bem de todos. Até quem aparentemente "deveria ser evitado", porque não tem nada em

63 A Cia. Estável de Teatro tem sua sede dentro do Arsenal da Esperança.

82

comum com as características dos hospedeiros (cf. Jo 4,9), na realidade pode intuir a filosofia

e a espiritualidade deles e aproximar-se deles de um modo muito bonito, tornando-se aquela

tonalidade de paixão, de compromisso e de bondade que faltava para tornar mais completos a

hospedaria e o projeto divino que nela se realiza.

"[...] quem não é contra nós é por nós" (Mc 9,40). Assim, torna-se normal que a

hospedaria, mesmo sem perder sua identidade, se cruze com "colaboradores" que seguem

outra religião ou declaram-se ateus (OLIVERO, 2013, p. 52), com o mundo da arte, da

cultura, da ciência, da escola, do trabalho, da política... Todas essas paixões que na

hospedaria assumem as vestes de quem quer amar a vida e agir para fazer o bem.

Com essa abertura, não é preciso afastar-se da hospedaria para alcançar as "periferias"

(FRANCISCO, 2013b, § 1). Basta manter a porta aberta e oferecer a todos os que desejarem a

possibilidade concreta de interagir, ainda que com objetivos mínimos, mas que sempre

contribuem para construir o sonho maior. As periferias, quando encontram reflexos da

bondade e da misericórdia de Deus, tornam-se imediatamente parte de um único centro. E,

então, cada um, na própria tarefa e com a própria originalidade, entende que não há mais

sentido demarcar a fronteira entre um "nós" e um "eles", e sente-se livremente parte de um

"nós" que é destinado à comunhão, onde o receber é um convite a restituir e o dar jamais

coloca alguém em posição de superioridade. Quando há um esforço verdadeiro de caridade, as

distâncias se anulam.

83

3.1.7 Carmem (arte-educadora)

Eu conheci o Arsenal da Esperança e o Arsenal da Esperança me conheceu em 2006.

Eu era voluntária na Caritas Arquidiocesana e iria participar de uma eleição da entidade. O

local seria um albergue, essa era única informação que tinha. Depois de muito perguntar

como chegar lá, me deparei com um grande muro. Sempre fui muito reticente em relação a

instituições intramuros. Ao entrar, fui saudada por um funcionário, que me indicou o local

onde deveria me dirigir, um grande salão.

Olhei a minha volta e observei que o local era bem cuidado. Pensei: será que estou no

lugar certo? Aqui não se parece com um albergue. Tem árvores, tem flores e tem sorrisos.

Atrás de grandes muros não há lugar para coração. Essa era a minha certeza. Pareceu-me

que aquele lugar bonito, queria salvar as pessoas e suas dores. Queria conhecê-lo melhor.

Quem cuidava dele e de quem ele cuidava? E passei a frequentar o Arsenal da Esperança.

Ao longo desses nove anos de convivência, aprendi que, lá, morador de rua é

chamado de acolhido; o albergue, de Arsenal da Esperança; os voluntários são os amigos da

casa; e quem zela por tudo são jovens italianos e brasileiros. Como? Com um sorriso, com

uma palavra gentil, com um ouvido atento, com pequenos gestos de cuidar. Lá o amor não é

uma emoção é uma forma de convivência, de uma maneira consciente. Uma força

transformadora.

O jardim bem cuidado, o refeitório limpo, a comida bem preparada, a biblioteca

organizada, o dormitório com lençóis limpos, os cursos oferecidos, as peças de teatro, as

festas, as missas, é o que se oferece na casa (aprendi que albergue também é casa), com isso,

o acolhido traz para fora a beleza que nunca pensou que tinha: mãos habilidosas que sovam

a massa para o pão do café da manhã dos outros acolhidos, poesias, contos, pinturas, lindos

presépios que já enfeitaram palácios. Nesse lugar, as orações são assim. E Deus é o bem, que

se faz a si mesmo e aos outros. É uma presença divina que está dentro de cada um,

gentilmente guiada em direção do que é o melhor que se tem.

No Arsenal da Esperança, eles também recebem jovens de diversos locais, para

conhecer o trabalho que é feito lá. Jovens de outros países, das ruas próximas, das

universidades, dos colégios, de várias classes sociais e credos, para dizer a eles, que mudar o

mundo é possível. Que há muitas coisas que podemos fazer para espalhar o bem pelo mundo.

Não importa quem você seja e qual o seu tamanho. Há alguns anos participo do evento Conta

84

Comigo, organizado pelo Arsenal, onde centenas de jovens passam por atividades que duram

o dia todo. De forma alternativa e lúdica os jovens são levados à reflexão de suas versões

fixas de realidade. São desafiados a pensar de uma outra forma, pois nem tudo que nutre a

mente, salva o coração. São levados a pensar o melhor uso de suas vidas, de suas

habilidades, para auxiliar ao próximo.

Agora aprendi, que atrás de grandes muros, também tem coisas boas e que há também

vozes que não usam palavras.

Carmem Victor da Silva

Arte-educadora

16 mar. 2015

Depoimento concedido a Simone Bernardi

para fins de publicação neste trabalho.

3.1.7.1 Um lugar para oferecer a todos dignidade e beleza

Por meio do contato direto e contínuo com milhares de pessoas que por ali passam, os

hospedeiros aprenderam a conhecer o espírito humano e a compreender que as pessoas,

principalmente as mais "cansadas e oprimidas" (cf. Mt 11,28), desconfiam de qualquer

sermão ou conselho, procuram apenas um lugar para recuperar-se. Eis que, na lógica da

hospedaria, os primeiros a falar são o silêncio, os fatos, o modo como as coisas são feitas e,

depois, eventualmente, as palavras.

Os ambientes da hospedaria são sóbrios, mas harmoniosos, cuidados até nos detalhes

(OLIVERO, 2013, p. 56), bonitos não porque sejam ricos, mas porque são pensados e

construídos com paixão, com o gosto de fazer que qualquer um que por ali passar esteja bem,

seja uma criança ou um adulto, um sem-teto ou um rico comerciante. Os hospedeiros

aprenderam, graças aos conselhos de algumas pessoas que por ali passaram, que fazer as

coisas bem ou mal custa o mesmo tanto, mas que se algo for feito bem, se for feito de forma a

tornar-se belo, aqueles que o usarem sentir-se-ão bem.

O samaritano da parábola é obrigado a limitar-se àquela eventualidade, pela urgência

de salvar alguém que está morrendo, e frequentemente também o hospedeiro encontra-se na

mesma situação, em que tudo é questão de imediatismo e de técnica da caridade. Porém, a

escolha de "dar uma casa à compaixão" e de organizar-se para perpetuar no tempo a ação do

samaritano leva o hospedeiro a entrar em uma dimensão mais profunda, em uma postura

constante de abertura, que educa a colocar o outro no centro: suas necessidades mais

85

primárias, mas também um projeto para a sua vida; o essencial de que ele precisa para

sobreviver naquele momento, mas também um contexto no qual ele possa estabelecer

relacionamentos serenos; um lugar que o proteja, mas que também o faça aprender a viver a

responsabilidade, para que nenhuma pessoa que por ali passar receba sem ter a possibilidade

de retribuir.

Se "atrás dos muros houver espaço para o coração", se a compaixão habitar o coração

dos hospedeiros, então pintar uma parede, apagar uma luz ou cuidar de um jardim se tornarão

algo espiritual, bonito, que alcança todos, porque todos precisam dessa beleza – até quem

parece não estar em condições de apreciá-la – e porque, quando as pessoas sentem-se bem em

um lugar, o respeitam e crescem.

Acolher alguém em um espaço bem cuidado é uma forma de prevenção, mais do que

uma solução. É o primeiro passo para dizer: "Tudo para nós tem um valor". É o modo com

que os hospedeiros se colocam de igual para igual com todos, tratando cada um com o mesmo

zelo e a mesma delicadeza que gostariam de receber. O resto é consequência.

86

3.1.8 Isabel (assistente social do Arsenal da Esperança)

De que você se lembra dos seus primeiros anos no Arsenal da Esperança?

Uma das minhas primeiras experiências com a vida do Arsenal foi, paradoxalmente, a

morte de um homem. Estávamos no primeiro ano de Arsenal. Eu acredito que, quando um ser

humano está para ser enterrado, são necessárias pelo menos quatro pessoas para cuidar

dele. Naquela vez não tínhamos, faltavam pessoas para colocá-lo no caixão... e isso me

impressionou muito. Eu tive um sentimento de impotência, de solidão. Até hoje há pessoas

que morrem tendo só o Arsenal, mas nós estamos melhor preparados. Naquele tempo

sabíamos muito pouco sobre a pessoa, quase só o nome. Hoje, temos de cada acolhido muitas

informações que nos permitem, por exemplo, localizar a família (ou pelo menos tentar),

elementos que, também nesse "momento final", nos permitem ajudar a pessoa. Aquele dia foi

duríssimo: não estávamos prontos, era de manhã, fazia muito calor, precisávamos também

nos ocupar de que todos os acolhidos estivessem fora dos dormitórios, esperar que viesse um

carro fúnebre e antes ainda um médico legista... Passou-se um dia inteiro. Para mim, aquele

foi o verdadeiro batismo "profissional no Arsenal".

Hoje o clima é diferente. Por quê?

Penso que porque começamos a propor aos acolhidos uma qualidade e serviços dos

quais eles provavelmente nunca tinham sequer ouvido falar na vida deles, com o objetivo de,

em primeiro lugar, fazê-los conquistar o respeito por si próprios. Começamos, por exemplo,

a mudar todos os banheiros, a reorganizar os leitos, a pintar as paredes... para criar cada

vez mais um ambiente limpo e acolhedor: aquilo inicialmente "perturbava" muito as pessoas

acolhidas, porque implicava que eles mesmos cooperassem com a limpeza, que respeitassem

aqueles espaços, que começassem a cuidar de si mesmos. Nessa fase entendi o motivo pelo

qual aquelas pessoas não o faziam: não porque não tivessem acesso à água, mas porque a

única coisa que lhes restava era o próprio corpo, e quem cuida de si mesmo, quem se mantém

limpo pode ser assaltado, violentado; é uma forma de defesa, se você se mantém sujo,

ninguém se aproxima, ninguém o toca. Eu estava presa naquele preconceito: "esta é uma

pessoa suja!".

87

Qual é uma forma para medir o trabalho de vocês?

Não é fácil fazer uma avaliação precisa dos resultados. Nós medimos o nosso

trabalho com base no número de vezes em que as pessoas voltam e nas condições em que

voltam: existem pessoas que saem do Arsenal para não voltar mais, a não ser como

voluntários ou para agradecer; existem outras que voltam cada vez em condições piores, sem

documentos, sem roupas... Por isso, a cada dia você deve se "abandonar", se superar, até

mesmo na dimensão espiritual, na sua vontade de viver e de transmitir ao outro a força para

que ele possa reagir; é algo que suga completamente as suas energias, porque quem está

diante de você é frequentemente alguém que reclama com Deus, com a vida, com a família,

com o patrão, com os políticos... nunca consigo mesmo. O nosso objetivo, ao contrário, é que

eles reajam dando a si próprios um objetivo, entendendo que eles mesmos são os

protagonistas dessa história. Não se pode estar em um lugar apenas para receber, mas as

pessoas tendem a ter essa atitude, pensando que alguém deve pagar não pelos erros que eles

cometeram, mas pelos erros que foram cometidos contra eles.

Há também atividades de música, arte...

Esse é um aspecto impressionante. Penso, por exemplo, no coral: quem quer que

assista a uma apresentação acaba se emocionando. Mesmo que eu já conheça muitas das

suas histórias, eles conseguem me passar uma vibração, uma mensagem, seja de caráter

religioso ou de esperança, conseguem fazer florescer nas pessoas um sentimento bom! O

coral agrega todos, também às vezes pessoas que sequer concordam entre si, que são

totalmente diferentes: naquele grupo há qualquer tipo de situação, e mesmo assim o grupo

vai bem porque tem um objetivo: cantar. Se eles soubessem com a mesma clareza qual é o

objetivo deles na vida, tudo seria muito mais simples... Mas isso faz parte do desafio.

Isabel Barbosa del Pozo

Assistente social do Arsenal da Esperança

Entrevista concedida para a revista Nuovo Progetto,

fev. 2006, n. 2, p. 14.

88

3.1.8.1 Um lugar de passagem

A hospedaria é um lugar de passagem de viajantes e de feridos também muito

diferentes entre si, com percursos diferentes. Acolher, para os hospedeiros, é em primeiro

lugar uma disposição da mente e do coração para a pessoa que se apresenta à porta. Quem

quer que ela seja, tem valor não por como se apresenta, mas pelo simples fato de existir. Ao

oferecer hospitalidade, os hospedeiros quase nunca veem a parábola inteira da vida daquele

hóspede.

Algumas feridas são tão profundas que chegaria a ser presunção pensar em curá-las.

Os hospedeiros podem oferecer no máximo um momento de recuperação, um trecho de vida –

às vezes, o último. Não se trata, portanto, apenas de resultados, mas sobretudo de trabalhar

sempre sobre o "espírito", sobre as motivações, sobre o continuar a saborear a vida, a

harmonia e o belo, e transmitir esse sabor aos hóspedes.

Depois, mesmo mantendo o próprio papel de hospedeiro, a constância na

hospitalidade cria uma relação e nascem momentos de partilha não forçados. Ainda que o

hospedeiro seja portador de um saber, ele jamais se coloca como "dono da verdade", nunca

chega o momento em que ele "já aprendeu tudo" (OLIVERO, 2013, p. 86): ao encontrar-se

diante da pessoa que está à sua frente, coloca-se sempre como quem não sabe, aceitando os

desafios que a estrada lhe propõe, o encontro com a diversidade que não havia previsto, sem

dar imediatamente a resposta, nem a sua e nem a da hospedaria.

Não existem "feridos sob medida": cada pessoa é um universo à parte, e no

relacionamento com ela entram em jogo mil coisas que dependem daquele instante que se está

vivendo e das experiências já vividas.

É preciso comprometer o coração e a humildade de aprender. Se, de forma presunçosa,

alguém pensa que já sabe fazer algo, nunca aprenderá a colher as diversas "tonalidades" e,

portanto, não poderá crescer. Esse trabalho sobre si mesmo só pode ser feito com um coração

humilde, e quando essa humildade nos leva a aceitar ter menos seguranças do que se teria

consultando um prontuário para cada caso. Quanto mais nos deixarmos "desarmar", mais o

Senhor intervirá.

89

Ter o respaldo de uma hospedaria que é habitada por uma comunidade também

permite acolher situações mais complexas do que seria possível se a hospedaria existisse

apenas como realidade em si mesma, como simples "casa de acolhida".

90

3.1.9 Adama (imigrante do Mali, muçulmano, ex-acolhido do Arsenal da Esperança)

Meus queridos amigos do Arsenal da Esperança de São Paulo,

Sinto-me muito feliz em escrever esta carta de reconhecimento pelo tempo de estadia

no meu Arsenal da Esperança onde me senti respeitado, tratado com dignidade, paz, com

igualdade, seguro, feliz. Agora deixo esta casa de solidariedade familiar, de unidade, de

reconstrução do futuro perdido, de justiça social, de cidadania, de esperança dos pobres...

Para ir à descoberta de uma nova vida, sem esquecer nem por um segundo de que o Arsenal

é casa de Deus.

A gratidão que eu sinto por ter entrado neste meu Arsenal junto com a maioria dos

africanos e dos outros continentes que chegam com tanto sofrimento e aqui ganham uma vida

melhor, livre, é muito grande. Muitas vezes eu me pergunto: "Sem o Arsenal da Esperança o

que teria acontecido comigo? Seria um aventureiro?". Eu hoje, Adama Konate, não tenho

palavras para agradecer o Arsenal da Esperança que, desde o começo que cheguei em São

Paulo e no Brasil, tem me guiado para o caminho certo. Até na África e no mundo inteiro eu

irei contar a história dessa casa boa de Ernesto e dom Luciano em que estava e estou muito

feliz. Deus os abençoe.

O Arsenal da Esperança é uma grande família que me deu escola, comida, água, luz,

casa, solidariedade e tudo na gratuidade... Durante o meu tempo aqui, felizmente, eu

consegui alguns certificados que deram esperança à minha vida: certificado de português,

certificado de literatura por parte da biblioteca, certificado de informática com o Senai,

curso de contabilidade, e aprendi a paciência, a tolerância, a solidariedade, a boa educação,

a boa estrada...

Agora que eu estou saindo, deixo os meus irmãos africanos do Mali e cidadãos de

outros continentes, mas eu sempre ficarei à disposição, dia e noite, do Arsenal da Esperança,

nos momentos de necessidade ou de festa, sempre grato e pronto a ajudar.

91

Deus protege o Arsenal da Esperança. Deus aceita as orações e as intenções do

Arsenal da Esperança. Que os olhos do mundo respeitem o Arsenal da Esperança. Que Deus

possa dar muita força e paz ao Arsenal da Esperança.

Os meus mais sinceros agradecimentos por tudo!

Adama Konate

Imigrante vindo do Mali, muçulmano

Ma haute reconnaissance à Arsenal da Esperança (Semana Nacional

da Vida - Imigrantes e refugiados em São Paulo)

In: Blog do SERMIG - Fraternidade da Esperança. 4 out. 2013.

Disponível em: <http://arsenalesperanca.blogspot.it/2013/10/ma-

haute-reconnaissance-arsenal-da.html>. Acesso em: 6 abr. 2015.

3.1.9.1 Uma casa que acolhe pessoas "como nós"

A hospedaria é uma casa que acolhe principalmente aqueles que ninguém quer, que

ninguém entende, que todos recusam.

A lógica da hospedaria ensina a superar a diversidade, o medo de ter diante de si

alguém diferente, o preconceito por outra cultura, por outra religião, por outra língua.

Muitíssimas vezes, bem antes que o hospedeiro seja capaz de compreender tudo isso e de

reconhecer as feridas de quem está à sua frente, este já capturou os olhos do hospedeiro com

um olhar implorante e julgador. Se os dois olhares se encontrarem verdadeiramente, ambos

começarão a ver com olhos novos.

O "diferente" é compreendido (OLIVERO, 2013, p. 32) quando encontra alguém que

em primeiro lugar ama e, a partir desse amor, torna-se disponível para colocar-se no lugar do

outro, para enxergar com os seus olhos, para entrar por um instante na lógica da sua cultura e,

aos poucos, usar a razão para entender as razões do outro, com amor e responsabilidade.

Quem foge do próprio país para fugir de uma guerra, quem é obrigado a deixar

repentinamente a própria terra por estar sendo perseguido, quem é ameaçado por causa da

própria religião ou orientação sexual é uma pessoa que deve encontrar espaço na hospedaria,

mas deve encontrar principalmente a possibilidade de recomeçar a vida e reinventar o próprio

futuro.

Na maioria das vezes, a hospedaria não está organizada para receber aquela pessoa

que ali chega. Os hospedeiros estão frequentemente "despreparados": de repente, aquela

guerra, aquela perseguição ou aquela cultura que a lei e as instituições ainda ignoram já estão

92

diante da porta da hospedaria, não como uma notícia ou uma ideia, mas como um rosto que

pede para ser acolhido, com o qual se deve lidar e ao redor do qual é preciso construir uma

resposta que não se tem.

No laboratório de vida que é a hospedaria, não é o hospedeiro que escolhe os seus

hóspedes. Em vez disso, assim como o samaritano diante do ferido, primeiro ele "se vira"

como pode e, depois, apela para a responsabilidade de outros – pessoas comuns, especialistas,

instituições, entidades sociais e políticas – para que eles deem uma mão para completar a sua

tentativa de ajuda, com o seu tempo, as suas competências e os seus recursos: sem essa ajuda,

os hóspedes da hospedaria não podem receber os cuidados e as atenções adequadas para

continuar o caminho.

Se, por um lado, os pedidos de ajuda, a quantidade e a complexidade dos problemas

parecem fazer a hospedaria sucumbir a cada momento, por outro, a ajuda e a responsabilidade

de muitos – talvez inicialmente ainda tímidos, mas atraídos pela honestidade e pela

transparência de uma porta sempre aberta – fazem acontecer "o milagre" da caridade, da

multiplicação, da Graça de Deus: "Deus pode cumular-vos de toda espécie de graças, para que

tenhais sempre e em tudo o necessário e vos fique algo de excedente para toda obra boa"

(2Cor 9,8). Sem Ele, a hospedaria não faz o que promete.

A hospedaria se torna, então, lugar de encantamento e de gratidão no coração de quem

dá e de quem recebe. Um sentimento que coloca em sintonia com Deus; que ajuda a

permanecer humilde e simples; que faz de cada responsabilidade não um poder, mas um

serviço oferecido aos outros; e que reconhece que a hospedaria – por mais povoada que esteja

– pode sempre abrir mais espaço. Ninguém se sentirá mais diferente, estrangeiro ou migrante,

e sim concidadão (cf. Ef 2,12-13.18-19), pronto a sentir-se responsável pela comunidade, pela

cidade e pelo país que o acolheu.

93

3.1.10 Daniel (jornalista, ex-cumpridor de pena alternativa no Arsenal da Esperança)

"Eu estudei quatro anos aqui do lado, mas só conheci o lugar assim". Essa foi a

afirmação de Daniel Queiroz Consani, 30, jornalista de formação, que, desde 2011, cumpre

medida alternativa no Arsenal da Esperança [...].

Na página da Secretaria de Administração Penitenciária, no site do Governo do

Estado de São Paulo, a medida alternativa "trata-se de uma medida punitiva de caráter

educativo e socialmente útil imposta ao autor da infração penal que não afasta o indivíduo

da sociedade, não o exclui do convívio social e familiar e não o expõe às agruras do sistema

penitenciário".

É como conta Daniel [...]. De acordo com ele, após um acidente de trânsito em 2005,

que resultou na morte de um motociclista, o jornalista foi julgado e condenado em 2008,

sendo notificado pela Justiça em 2011 e, a partir desta data, iniciaria a cumprir a pena

alternativa.

Daniel escolheu o Arsenal da Esperança, entidade mantida pela Fraternidade da

Esperança, que acolhe diariamente 1.200 homens que se encontram em dificuldades devido à

falta de trabalho, casa, alimentação, saúde e família. A princípio, comenta, a escolha foi

pautada na comodidade, pois já conhecia a região; hoje não vê a hora de sua pena acabar

para quitar sua dívida com a sociedade, porém confessa que permanecerá frequentando e

ajudando nos trabalhos da entidade.

Desde quando começou a cumprir sua pena no Arsenal da Esperança, Daniel já

realizou tarefas nos diversos setores da casa de acolhida; atualmente trabalha na biblioteca,

onde organiza os livros e tenta catalogá-los. São muitas histórias, recorda o jornalista,

coisas que o fizeram pensar não apenas no acidente em que se envolveu, mas em toda a sua

história de vida, seus problemas, sua condição humana. [...]

Reportagem de Edcarlos Bispo de Santana sobre a experiência de

Daniel Queiroz Consani no Arsenal da Esperança

Arsenal da Esperança, espaço de ressocialização

In: O São Paulo. 21-27 jan. 2014

Disponível em:

<http://sermig.appix.it/images/BRASILE/2014/rassegna_stampa/saopaolo_ge

nnaio2014.jpg>. Acesso em: 6. abr. 2015.

94

3.1.10.1 Um lugar para responder ao mal com o bem

A hospedaria é um lugar para retribuir o mal com o bem (OLIVERO, 2013, p. 32),

para oferecer à justiça a possibilidade de agir por meio da misericórdia e para dar a quem

errou a oportunidade de retomar o caminho da sua vida e de sair da "prisão" do passado.

A vida da hospedaria é sempre solicitada por sinais que parecem casuais, quando na

verdade podem conter um apelo mais amplo, um "encontro com Deus". Um dos apelos mais

fortes de Deus passa por quem errou, por quem decepcionou, por quem traiu, por quem "não

merece" a ajuda de ninguém, já que também este precisa de alguém que tenha misericórdia

dele, que o proteja e lhe ofereça uma possibilidade concreta de recomeçar.

Se dependesse só dos hospedeiros, a humanidade deles os levaria a dizer: "O problema

não é nosso. Errou? Deve pagar! Além disso, essa pessoa sequer pode se encaixar na nossa

categoria de hóspede". Mas a força da oração constante os leva a ter o olhar de 360 graus do

samaritano, capaz de perceber a fragilidade do outro e de perguntar a si mesmo: "Será que

existe uma hospedaria disponível a recebê-lo? E se fôssemos nós que estivéssemos no lugar

dele?".

Quando o homem esvazia-se de si mesmo e aceita ser um instrumento de novidade,

leva adiante a obra de Deus e faz entrar na história (não apenas na sua) a potência do Amor

que salva e conserta os sentimentos mais errados. E, assim, a hospedaria se transforma em

"cidade de refúgio" (cf. Nm 35,11), para oferecer a quem errou a possibilidade de escapar de

uma sociedade sempre pronta a condenar, a vingar, a cair na curiosidade mórbida ou no

pessimismo estéril, sempre pouco treinada a amar, a socorrer e, sobretudo, a perdoar.

A história e os problemas desses hóspedes – que talvez tenham feito até coisas muito

graves – ficam sendo conhecidas apenas pelos hospedeiros que, com discrição e

responsabilidade, os inserem na vida e nas regras da hospedaria, sem esquecer a justiça e nem

minimizar os atos cometidos.

Com um percurso lento, mesmo quem se sente condenado a levar um grande peso

pode iniciar uma viagem para dentro de si mesmo, entrar em uma relação de confiança com os

hospedeiros e com outros amigos e hóspedes da hospedaria; pode assumir um novo olhar

sobre a vida, cicatrizar as suas feridas e, se um dia quiser, também pedir perdão ou perdoar e

95

até escolher continuar voluntariamente aquela atividade que no início era somente uma pena a

ser cumprida.

96

3.1.11 Charles (ex-acolhido do Arsenal da Esperança)

As dificuldades da vida me trouxeram a um lugar especial,

uma casa que traz alegria e segurança.

Eu não falo de um lugar qualquer

pois me refiro ao Arsenal da Esperança.

A cada dia temos uma nova emoção

vivendo coisas das quais nunca imaginei.

Estando aqui eu quero ser um novo alguém,

uma pessoa bem melhor do que já fui.

Seguindo em frente para que esse sentimento

jamais se disperse.

Fazemos parte de uma grande ação

e o seu nome é "Floresta que Cresce"64

.

Não podemos mudar o mundo,

mas um pequeno gesto já pode ajudar.

Vendo pessoas que precisam de atenção,

é ai que a Floresta entra em ação,

com trabalho voluntário, sempre assim que necessário.

Lutando juntos em prol da cidadania,

não se esqueça deste nome:

esse é o grupo "harmonia".

Charles Diniz Santos

Ex-acolhido do Arsenal da Esperança

Poema escrito em 20 out. 2009 para o concurso literário da Biblioteca

do Arsenal da Esperança.

64 O projeto Floresta que Cresce acontece semanalmente e tem como objetivo fazer que "os acolhidos do Arsenal

da Esperança e todos aqueles que acreditam na possibilidade de construir um mundo melhor a partir de sua vida

'realizem' centenas de ações concretas de solidariedade: ajudando creches, orfanatos, asilos, abrigos, cuidando

das ruas da cidade, promovendo coletas de alimentos", etc. Informações disponíveis em:

<http://www.sermig.org/br/floresta-que-cresce>. Acesso em: 26 abr. 2015.

97

3.1.11.1 Um lugar onde ninguém é considerado pobre

A cada dia, à porta da hospedaria batem milhares de pessoas: quem está sem trabalho,

sem casa, sem cuidados médicos...

O samaritano deu valor ao ferido que encontrou ao longo da estrada e isso salvou

aquele homem. O desafio de manter a porta sempre aberta faz que os hospedeiros chamem

todos, até o último que chegou, à corresponsabilidade; a dar, cada um segundo as suas forças,

a própria contribuição para o funcionamento da hospedaria e para suprir as necessidades dos

outros.

Na lógica da hospedaria, qualquer pessoa, ainda que esteja enfrentando feridas muito

graves, não é identificada pelo seu problema, mas é vista como alguém que deve ter a

oportunidade de sentir-se parte de "uma grande ação", talvez até mesmo a partir das pequenas

coisas: "você é importante e necessário para arrumar as camas, dobrar as cobertas, limpar o

chão...". "Faze isso e viverás" (Lc 10,28b), e não é pouco! Alguns deveres parecem simples e

banais a quem "não toca esses fardos com um dedo sequer" (cf. Lc 11,46b); mas cada

pequena ação, feita junto com os hospedeiros, é um ponto de chegada e de partida para sentir-

se "doação", para participar como protagonista, para recomeçar a viver e para não deixar para

amanhã o bem que a hospedaria pode oferecer hoje.

O risco para quem está em dificuldades (e quem não está?) é o de fechar-se,

entristecer-se, deixar a vida correr ou encontrar um modo de entorpecer-se para esquecer,

talvez habituando-se a receber tudo gratuitamente ou simplesmente esperando um milagre. A

hospedaria escolheu adotar o olhar e o estilo do samaritano: "descer do cavalo" e tentar não

enfaixar a própria cabeça ao redor das próprias feridas, dos próprios objetivos, mantendo-os

apenas para si e fazendo-os aumentar de tamanho. A hospedaria indica a cada um a

prioridade de comprometer-se em cuidar da própria ferida, mas, ao mesmo tempo, oferece a

todos – sem pregações, e sim "fazendo junto" – a possibilidade de ser como o samaritano e de

caminhar em direção ao Amor.

Qualquer comunidade que vive a lógica da hospedaria atrai para o bem e para a

bondade. Faz-nos experimentar, mesmo que apenas por alguns instantes, que somos feitos

para as boas obras. Trata-se de, a cada dia, trabalhar muito para alimentar, estimular e

sustentar qualquer semente de Evangelho que esteja em alguém – até na pessoa mais

embrutecida – e fazê-lo sentir-se parte de uma verdadeira "floresta" de humanidade que

98

cresce, que não se desenvolve para colocar-se em evidência ou por sede de poder, mas para

produzir oxigênio, frutos e recuperação para todos.

Uma casa só é realmente uma hospedaria quando produz frutos bons para todos, sem

distinção; quando abre os seus espaços para que quem tem fome possa saciar-se, para que

quem é estrangeiro, está sem casa ou sem trabalho encontre acolhida e dignidade, para que

quem está imerso na violência encontre paz, quem roubou possa restituir, quem é inimigo

torne-se amigo, quem está sem perdão encontre perdão, quem é "superficial" possa fazer algo

profundo e quem jamais pensou que poderia fazer algo útil na vida possa viver a caridade na

sua mais genuína simplicidade.

Se não for assim, a hospedaria se torna um lugar para aqueles que são "bons em

trabalhar", que começam a fichar, agrupar, generalizar, planejar, estabelecer uma rotina e

oferecer os seus serviços não mais às pessoas que por ali passam, mas a uma categoria de

hóspedes que na realidade não existe.

Se os hospedeiros forem capazes de voltar frequentemente ao "Evangelho do

samaritano", saberão sempre que cada pessoa é única, seja rica ou pobre, amiga ou inimiga,

encaixando-se ou não nas categorias previstas, e que as suas necessidades mais evidentes são

a estrada para fazer aflorar aqueles mais espirituais que podem levar, quem o desejar, ao

encontro com Deus (OLIVERO, 2013, p. 61).

99

3.1.12 Dona Marta (membro do Governo do Estado de São Paulo)

De "Casa da dor" a "Arsenal da Esperança": a senhora pode nos dar uma pequena

lição de história sobre como acontece a entrega da casa ao SERMIG por parte do Governo

do Estado de São Paulo?

Eu acredito que a entrega do Arsenal foi uma ação da Providência. Nós, como

governo, estávamos tendo sérias dificuldades para achar uma entidade que tivesse as

capacidades para assumir um antigo serviço de acolhida do estado que se encontrava, já

havia muitos anos, na antiga "Hospedaria de Imigrantes": um lugar histórico, que acolheu

aqueles que chegavam ao Brasil de outros países e que hoje acolhe pessoas da própria

cidade.

Com o então governador Mário Covas, tínhamos a convicção de que nas mãos do

Governo do Estado aquela obra não terminaria bem. A burocracia era muito complicada

para um serviço que, ao contrário, exige uma ação muito dinâmica e especial: a cada

momento no Arsenal verificam-se situações particulares e não se pode permitir que para

cada coisa sejam necessários seis meses de tempo.

Estávamos procurando, quando dom Luciano Mendes nos falou sobre Ernesto

Olivero, nos contou sobre a obra do SERMIG em Turim, e em mim se "acendeu uma

luzinha"... Quando dom Luciano me apresentou a Ernesto, eu lhe propus se ele gostaria de

assumir um trabalho como aquele, com homens em situação de rua (o SERMIG já tinha essa

experiência em Turim). Ernesto me disse que desejava conhecer o lugar e assim aconteceu:

falou com as pessoas que se encontravam ali e em seguida me disse "penso que é possível,

penso que será feito".

Nisso eu vi a mão de Deus. Vi em Ernesto uma grande vontade de fazer aqui em São

Paulo uma filial de Turim, e desejava que se chamasse "Arsenal da Paz", como lá. Eu falei a

Ernesto: "Nós aqui estamos em uma condição diferente: nunca tivemos guerra, a nossa é uma

luta muito mais cotidiana, é a luta de criar esperança nas pessoas. E se fosse um 'Arsenal da

Esperança'?". Ele entendeu e falou: "Pode ser uma coisa boa". Decidimos que seria "Arsenal

da Esperança". Ernesto me contou sobre o trabalho que o SERMIG fazia com e para os mais

excluídos, na Itália e no mundo, sobre o trabalho com os jovens e que realmente os jovens da

comunidade mantinham viva a aventura do SERMIG.

100

Um dos primeiros passos foi tomar nota com Ernesto do fato de que a estrutura da

antiga Hospedaria estava em uma condição de total degradação (paredes descascando, leitos

quebrados, teto com infiltração de água...) e que o Governo do Estado não estava naquele

momento em condições de poder intervir. Fui muito honesta com Ernesto e ele – sempre um

homem de muita esperança na ação da Providência – aceitou iniciar mesmo assim. Chegou-

se, desse modo, a firmar o primeiro acordo, no qual o Governo do Estado concedia os fundos

para manter a estrutura existente, com uma pequena margem para refazer as coisas mais

urgentes.

Seguiu-se da parte de Ernesto a ação – bastante educativa – de fazer muitos desses

trabalhos não apenas com os voluntários, mas também com os próprios acolhidos da casa

(por outro lado, não tinham realmente as condições para contratar e pagar uma empresa).

Foi um esforço muito bonito, uma reconstrução que criou um vínculo de responsabilidade em

todos aqueles que colocaram as mãos nela. Assim chegou-se ao dia da inauguração, com

uma celebração muito bela de dom Luciano e o discurso de Ernesto.

Como Governo do Estado, tínhamos pensado naquela casa como uma casa grande,

que chegasse a acolher muitas pessoas. O SERMIG começou a realizar um trabalho tal que

deixou o governador Covas muito entusiasta: ele era engenheiro, viu que o SERMIG estava

fazendo uma obra de forma muito profissional e me disse: "Aqui estamos no caminho certo!".

Ele quis que, como Governo do Estado, garantíssemos o futuro dessa obra – aqui no Brasil,

de fato, quando muda o governo, muda tudo – e assim ao comodato já firmado foi

acrescentado um período de trinta anos a partir de 2000, renovável.

Não foi fácil, havia muita pressão da parte de diversos agentes que queriam destinar

aquela grande casa a outros fins. Muitos sustentavam que era uma loucura deixar um

patrimônio como aquele habitado por "homens de rua", que era preciso dar-lhe um destino

melhor e mais adequado – a casa é também um grande patrimônio histórico – e que era um

risco colocá-lo nas mãos de um pequeno grupo. Eu, pessoalmente, "bati o pé" e foi assim –

no Governo me conheciam muito bem pelo meu caráter – que as coisas se acertaram.

Finalmente também Covas – que era um homem muito correto – disse que a sua palavra dada

pelo Arsenal permanecia. E as coisas caminharam.

101

E hoje, como a senhora vê o Arsenal?

A coisa boa é que a ação do Arsenal se está ampliando, aquilo com que sonhávamos

no início foi superado. Nós pensávamos que aquele não deveria ser apenas um grande

albergue – que, aqui, são tradicionalmente muito tristes e pobres – que não faz as pessoas

crescerem, onde elas entram para dormir e no dia seguinte saem na mesma condição em que

entraram. Nós pensávamos em um lugar em que as pessoas pudessem receber muitos outros

tipos de ajuda para dar um passo à frente na vida. O Arsenal caminhou decididamente nessa

direção, mostrando a todos a importância de uma ação como essa: hoje é uma casa que

trabalha pela promoção humana! Eu acredito, como já falei no início, que a Providência

agiu muito, por meio de dom Luciano, do governador... e penso também que nós confiávamos

no SERMIG e que o SERMIG confiou em nós: isso criou a necessidade recíproca de

responder bem um ao outro.

Dona Marta Teresinha Godinho

Secretária de Estado da Assistência e Desenvolvimento Social durante

o mandato de Mário Covas no Governo do Estado de São Paulo (quando, em

1995, o espaço da Hospedaria de Imigrantes foi confiado ao SERMIG para a

realização do projeto Arsenal da Esperança).

Entrevista concedida para a revista Nuovo Progetto,

fev. 2006, n. 2, p. 7.

3.1.12.1 Um lugar onde profecia e política podem encontrar-se

Talvez muitos pensem que ser samaritano na sociedade atual exige algo a mais do

que, segundo a parábola evangélica, fez o bom samaritano na sociedade daquela época,

aparentemente menos complexa e estratificada.

Todavia, o tempo da caridade, do seu calor pessoal e comunitário, da sua urgência, da

sua genialidade e da sua capacidade de adaptar-se a condições mutáveis certamente não

terminou. Ao contrário, a caridade continuará sendo fundamental para animar e regenerar

constantemente não apenas as comunidades eclesiais (que se não promovem a caridade

perdem a sua vida: o sacerdote e o levita eram dois fiéis...), mas também as organizações

públicas obrigatoriamente dedicadas à assistência, à reabilitação e à reintegração social dos

mais marginalizados.

Muito frequentemente, o uso impróprio de um poder, o formalismo burocrático, uma

certa "dureza" da eficiência ou a tendência a trilhar caminhos já percorridos que não

102

respondem mais aos problemas sempre novos podem tornar insuficiente, impotente, frágil e

até nociva mesmo uma estrutura potencialmente positiva e com muitos recursos como um

"serviço de acolhida governamental".

Assim, pode acontecer que também uma administração pública venha a encontrar-se,

paradoxalmente, na posição do ferido e, com certa humildade, peça ajuda a um simples

samaritano, que com a sua comunidade – treinada e disponível a servir ao homem, a fazer as

coisas que diz, a não buscar vantagens em nada e até mesmo a tirar algo do bolso – pode vir

em socorro daquele "serviço de acolhida" e transformá-lo não mais em uma instituição

"rígida", mas em uma hospedaria, com um grupo de hospedeiros que lhe dão vida e

coordenam de perto os serviços, tornando-os sempre novos e integrando eficazmente os

recursos públicos com uma filosofia, um carisma e uma espiritualidade "habitados por Deus",

com a gratuidade de vidas doadas e do voluntariado de muitas pessoas de boa vontade.

As "casas de Deus" deveriam ser mantidas por quem ama Deus (na maioria das vezes,

não é assim), de forma que sejam mais livres para agir, construir e reconstruir segundo a

lógica do Evangelho; mas quem acredita profundamente nessa lógica está sempre disponível a

percorrer um "trecho de caminho" junto a outros por meio de intervenções em problemas e

situações singulares, à luz dos "sinais dos tempos" (OLIVERO, 2013, p. 58-59).

Nas escolhas que estão relacionadas com o homem (ou seja, a defesa, o amparo e a

promoção da vida) uma comunidade samaritana está disposta – sem negociar a sua identidade

e sem ser politicamente partidária – a colaborar com administradores e responsáveis pela vida

pública, contribuindo para a gestão transparente, verdadeira e laboriosa dos recursos públicos,

para guiar em direção ao bem um sistema frequentemente acusado de não dar de comer a

quem tem o direito de comer, de não respeitar os direitos humanos mais básicos, de não saber

acolher o estrangeiro e de não contribuir para a recuperação do encarcerado. Muitos são os

que "apontam o dedo" para o sistema, mas será que as acusações e os protestos, sozinhos,

resolvem algo? Melhor seria uma "rebelião" de não violência, de honestidade, de amor.

Por meio dessas colaborações, o samaritano e a sua comunidade podem contar –

mesmo sem possuí-los – com recursos e estruturas e colocá-los efetivamente a serviço de

quem precisa. Esse deveria ser o papel mais precioso de cada estrutura, pública ou privada,

religiosa ou laica, que seja chamada, mais ou menos conscientemente, a estender a compaixão

do samaritano para cada pessoa que necessite de cuidados.

103

Não se trata apenas de leis, de doutrinas ou de denários (quanto dinheiro reservado ao

bem comum na realidade é desperdiçado sem obter resultado algum ou chegando a obter

efeitos prejudiciais!). A novidade trazida pelo samaritano ao mundo está em primeiro lugar

nos sentimentos, que são os mesmos de Jesus, como entenderam, unânimes, os Padres e tantos

santos da caridade. Dessa forma, tudo, também o dinheiro, cada centavo, torna-se providência

e conquista um significado mais elevado, espiritual e sagrado.

Nesse sentido, até mesmo quando o sistema público conseguir realizar um estado

social adequado ao século XXI, haverá sempre a necessidade do amor de um samaritano, cuja

missão não é apenas a de cuidar de feridas, mas também a de tornar-se voz dos necessitados,

encarregar-se de seus pedidos e fazer circular, continuamente e em todos os lugares, a lógica

do Evangelho, a lógica do novo mandamento.

104

3.1.13 Pe. Pedro (sacerdote da Arquidiocese de São Paulo)

Nosso Senhor, no capítulo 25 do evangelho de Mateus, identifica-se diretamente com

aqueles que sofrem: "tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber, eu

estava nu e me vestistes, eu era estrangeiro e me acolhestes...".

As chamadas obras de misericórdia são, para Mateus, as chaves para que possamos

viver o mandamento de Jesus. Ele está diretamente ligado ao sofrimento e a felicidade dos

mais pequeninos.

O trabalho do Arsenal da Esperança é o de escrever o evangelho nestes dias de hoje.

Quantos não são os famintos, os sedentos, os desnudos morais e até mesmo os desnudos

físicos e, hoje em dia, com a grande afluência de haitianos que chegam em São Paulo,

quantos não são também os estrangeiros que o Arsenal acolhe diariamente?

Se o sacrário é o lugar mais importante de uma Igreja, pois nele contém a presença

do próprio Senhor no pão eucarístico, o lugar que acolhe os pobres e sofridos, os quais o

próprio Salvador se identifica diretamente, só pode ser também um sacrário.

Todos os dias, o Senhor que está nos indigentes, nos excluídos, nas vítimas da

indiferença que toma conta de nossa sociedade, encontra abrigo em um sacrário, um local

sagrado, um santuário de paz, onde cada um é tratado da maneira como de fato merece: um

outro eu.

E os que lá ajudam, são contagiados pela bondade que desarma, se sentem impelidos

a também querem fazer o bem em uma mobilização tocante, movida pela Boa Nova. Vidas

são transformadas, e não somente a dos acolhidos, mas a de quem também acolhe.

Para mim, sacerdote diocesano, estar no Arsenal, contribuir com uma missa que seja,

uma leitura ou uma visita rápida, faz com que os que lá vivem e cuidam, amam e são de paz e

para a paz, me inspirem a também querer cuidar, ser bom, amar, ser e fazer a paz.

"A Bondade Desarma", é o que lemos quando chegamos à casa. Eu diria algo além: A

Bondade Contagia!

Certa vez estive na inauguração de uma capela na favela da Vila Prudente. O lugar

recém-reformado possuía um belo mosaico em que Jesus acolhia os que lá chegavam. Ao

final da missa presidida pelo bispo da região episcopal, um jovem me chamou e me

105

agradeceu. Eu não o conhecia, e perguntei pelo que ele era grato, se eu acreditava não o

conhecer de lá. Ele respondeu: "sou grato a todos que me acolheram no primeiro dia em que

pus os pés no Arsenal e, no primeiro dia que estive lá, fui à Missa depois de anos, e lembro

que foi o senhor quem a celebrou. Lembro de todo aquele primeiro dia, inclusive do senhor.

Sabe esses mosaicos que decoram essa capela? Eu quem os fiz. Hoje vivo e trabalho aqui, e

essa é a minha comunidade...".

Padre Pedro Luiz Amorim Pereira

Pároco da Paróquia Santa Paulina, em Heliópolis,

bairro da periferia da cidade de São Paulo.

Depoimento concedido a Simone Bernardi

para fins de publicação neste trabalho.

3.1.13.1 Um lugar que cria vida ao redor de si

Pelo menos uma vez por semana, na hospedaria, um sacerdote pronuncia as palavras:

"Fazei isto em memória de mim". Não significa somente que em meio à comunidade se repete

a Eucaristia, mas que Jesus continua a fazer a todos um convite: "Como eu dei o meu corpo,

como eu derramei o meu sangue, assim façam também vocês, em memória de mim. E quando

as pessoas os virem derramar o sangue de vocês, quando as pessoas os virem doar o corpo e a

vida de vocês, elas se lembrarão de mim". Dar a vida como Ele deu, para que outros a possam

ter e, por sua vez, dá-la também.

Entrar nesse "sacrifício" significa dar o máximo de solidariedade a todos, a todo o

mundo, a partir das pessoas de quem a hospedaria se ocupa, para chegar a todos aqueles que,

enquanto isso, estão batendo à porta. Na hospedaria, o altar e a porta são ambos lugares de

encontro com Cristo.

Essa solidariedade é dada em um contexto de total bondade, mas a bondade não

significa que os hospedeiros tenham uma personalidade pacífica, e menos ainda que sejam

covardes ou hipócritas, e sim que escolheram a bondade (escolha que exige esforço e que não

pode ser improvisada), treinando a capacidade de colocar freios na própria agressividade, no

próprio desejo de reagir com raiva a tantas provocações e tantas calúnias (que nunca faltam!),

e colocando essa energia, instante após instante, dia após dia, a serviço da vida, da justiça e da

paz.

O samaritano do Evangelho não era "bom" por definição. Em nenhuma parte da

parábola Lucas o descreve com esse adjetivo, assim como não define "maus" os outros

106

personagens. Simplesmente, o samaritano se torna o "bom samaritano" porque percebe o

outro, se coloca no seu lugar, inclina-se sobre ele, lhe dá atenção e, de "invisível", o faz "ser".

Cada minúsculo gesto de bondade feito para o outro significa colaborar com o convite

de Jesus e, com Ele, dizer àquela pessoa (talvez sem dizer nada, o que às vezes é o melhor):

"Eu lhe quero bem. Mesmo que lhe pareça impossível, existe ainda alguém que o ama, que

cuida de você!". Em uma hospedaria, isso é experimentado continuamente: um gesto de

cordialidade aumenta a vida em quem o faz e em quem o recebe, enquanto um gesto frio,

antipático ou, pior ainda, indiferente deprime a vida, a apaga, a mata.

Quem habita e frequenta a hospedaria – mesmo com todos os seus limites e as suas

fragilidades – colabora com a Graça de Deus e sente que Deus nos pensou não apenas como

criaturas que podem fazer algo solidário para os outros, mas sim como criaturas que podem

criar vida junto com Ele!

Eis que, então, a hospedaria se torna "desarmante", "contagiante", patrimônio de

todos, porque visa a compaixão, a hospitalidade, o amor que é sempre novo, que dá vida e

estimula cada pessoa, quem quer que seja, a criar vida ao redor de si.

Quando as histórias são de amor, elas são de Deus. E Deus as faz crescer lentamente na

sua estrada.

107

CONCLUSÃO

Um homem está deitado no chão, fora da estação Barra Funda. A capacidade de reagir

a uma situação como essa, como em tantas outras tragédias humanas, é influenciada por

vários aspectos, pessoais e sociais, que "impedem" de parar: "Ele procurou por isso!", "Eu

tenho que trabalhar para ganhar da vida e esses ficam rodando por aí o dia inteiro"; "Não é

meu papel. E quem deveria cuidar disso, onde está? ","Não tenho tempo", "É perigoso", "Eu

já ajudo as crianças, porque elas são inocentes"... Ou há indiferença, resignação: "Não há nada

a fazer, por que parar?". E se passa adiante, sem piedade. Em todas as pessoas há uma

sensibilidade instintiva ao sofrimento dos outros, mas muitas vezes ela permanece limitada,

improdutiva, começa e termina em si mesma, com um suspiro e um encolher de ombros.

Então, por que um estrangeiro como Adama, uma estudante como Vanessa, um ator

como Osvaldo, um sacerdote como Pedro ou mesmo uma criança como Samuel são movidos

pela compaixão, interrompem a própria viagem e assumem a tarefa e também o risco de

socorrer um desconhecido e de gastar dinheiro e tempo para acompanhá-lo pessoalmente?

"Venha comigo, eu vou levá-lo para um lugar onde fui bem recebido e, você vai ver, você

será bem recebido também."

Essa "surpresa" parece não ter explicação. Ninguém, aparentemente, pediu-lhes para

que se tornassem samaritanos, para que tomassem alguma iniciativa, e muito menos para que

refletissem sobre seu orgulho ou sobre a validade da sua fé. Foi suficiente, em algum

momento de suas vidas – ou porque precisaram de ajuda, ou porque queriam levar ajuda aos

"necessitados" –, encontrar uma "porta aberta", entrar por ela e descobrir um lugar onde eles

nunca teriam imaginado entrar. Um lugar onde alguém os acolhia, lhes oferecia uma

possibilidade real de participar, lhes pedia "uma mão"... E até mesmo aqueles que queriam

"fazer alguma coisa pelos pobres", vendo a compaixão com a qual eram tratados os acolhidos

daquele lugar, reconheceram-se necessitados daquele mesmo amor.

A "surpresa" de sentir-se em casa, de sentir-se em família e de perceber-se amado foi o

primeiro passo para "descer do cavalo", para quebrar um paradigma, para colocar os pés no

chão e começar a caminhar com um olhar mais livre, aberto a dúvidas onde antes havia

apenas certezas e a certezas onde antes só havia dúvidas: "O que é esse lugar? Quem está por

trás deste alimento, por trás desta música, por trás destes jogos, por trás desta missa?", "Aqui,

108

sinto que todas estas coisas têm um significado e as vejo sendo colocadas em prática por

pessoas como eu...".

Eis que nesse lugar – capaz de "se adaptar" às características de cada um que queira

entrar, e onde a única condição para poder entrar ativamente é abrir-se à "lei" da acolhida

recíproca – pode surgir a oportunidade de "cultivar" aquela sensibilidade que todo mundo

possui e de transformá-la no desejo de fazer o mesmo, para colocar-se à disposição, começar a

fazer algum gesto que responda a esse amor e contribuir para tornar menos pesado e mais

humano o dia daqueles que são "como eu".

Com o tempo, aquele estrangeiro, aquela estudante, aquele ator, aquele sacerdote,

aquela criança sentiram que, juntos, era "possível" amar e se tornaram, por sua vez, "capazes"

de se colocar no lugar do outro, mesmo daquele que, até pouco tempo atrás, era invisível,

distante, diferente, até detestável. A partir daquele momento, em qualquer lugar, a qualquer

hora, tudo tornou-se uma oportunidade de olhar para o mundo com os pés no chão, de baixo

para cima, mas com um olhar "habitado por Deus" (Deus parece completamente "ausente" da

parábola, mas a obra é Dele!), pronto a ser movido pela compaixão, a envolver-se

imediatamente para levar o amor recebido (que é o próprio Deus) mesmo a um estranho

deitado no chão, fora da estação Barra Funda.

Qualquer um pode tornar-se samaritano, até mesmo o legista, os assaltantes, o

sacerdote, o levita e todos aqueles que tinham visto a possibilidade de uma "vida plena" e se

afastaram dela. Mas eles precisam encontrar uma casa ao longo da estrada que acolha a cura

deles, uma casa cheia de expectativa de salvação para todos, onde aqueles que já

experimentaram o amor de Deus se unem para usar de misericórdia para com todos os que se

apresentam à porta. E se não houver mais espaço, nem mesmo diante da porta, pode-se

sempre "inventar" formas de descer a maca pelo telhado (cf. Mc 2,1-12) para que alguém

possa ser alcançado e tocado pelo olhar compassivo de Jesus, para tornar-se como Ele. E

assim por diante, incessantemente...

Concluindo este trabalho, tentamos ainda pensar na parábola do bom samaritano como

"um fato realmente acontecido nos dias de Jesus e a cada dia, nas nossas estradas"65

(MAZZOLARI, 1977, p. 30): é noite e você, assim como Adama, sente compaixão por um

65 "un fatto realmente accaduto ai giorni di Gesù e ogni giorno, sulle nostre strade"

109

homem deitado no chão; inclina-se sobre ele e pergunta se precisa de ajuda. Ele, um pouco

confuso, lhe diz que foi assaltado por dois ladrões que lhe levaram a mochila com todos os

documentos e lhe roubaram até o chinelo. Os pés descalços e a camiseta um pouco rasgada

sugerem que a história é verdadeira. Você lhe oferece sua blusa para se cobrir, mas aquele

homem acrescenta que é de fora de São Paulo e não tem lugar para passar a noite. Você já fez

tudo o que podia, mas está se aproximando dos últimos versículos da parábola... Qual é a

hospedaria mais próxima que vem à sua mente? E de qual você pode dizer, com simplicidade:

"Venha para um lugar onde o podem acolher, onde o silêncio fala, onde restituir o que

recebemos, onde entender por que estamos no mundo, onde retribuir o mal com o bem, onde

rezar juntos, onde as palavras estão de acordo com os fatos. Venha, não tenha medo!"?

Uma das feridas das quais a sociedade do nosso tempo mais sofre é o "deserto" do

individualismo: talvez existam até muitos "bons samaritanos", mas existe uma grave escassez

de hospedarias onde se viva a compaixão no coração. O samaritano-Jesus nos quer liberar

dessa situação, levando-nos justamente para uma hospedaria, para que aprendamos que

devemos percorrer o caminho da salvação juntos: "Todos os que tinham abraçado a fé

reuniam-se e punham tudo em comum" (At 2,44). Se aceitarmos livremente passar do "eu" ao

"tu" e ao "nós", se escolhermos, com humildade, construir hospedarias capazes de

"harmonizar" os talentos de todos – não para capturar dentro das paredes da hospedaria quem

nela não se reconhece, mas para ajudarmos uns aos outros a acolher todos –, esse "nós" irá

ajudar todo mundo a ter o olhar e a acolhida de Cristo para com todos, para que todos possam

descobrir que não estamos longe do Reino de Deus (cf. Mc 12,34).

110

REFERÊNCIAS

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