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O CAIPIRA: O JECA E O BURRO RUBENS DE MORAIS SILVA 1 Introdução A maioria de nós, brasileiros de hoje, tem no sangue, na cultura e na memória, algo de velhos parentes de origens diversas, como indígenas, negros e migrantes, que viveram a vida caipira em antigas áreas rurais. A região do Vale do Paraíba é um dos berços desta Cultura Caipira, tendo, em Taubaté, seu primeiro grande núcleo urbano. Taubaté, cidade de 374 anos, tem mais de 300 000 habitantes e se classifica entre as melhores cidades brasileiras, tanto no PIB (Produto Interno Bruto) como no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Localiza-se na privilegiada região do Vale do Paraíba, no eixo Rio-São Paulo, entre a Serra da Mantiqueira e o Sul de Minas, e o Litoral Norte do Estado de São Paulo. Mas, embora tenha forte expressão cultural, não tem boas aparências para visitantes. Esta cidade se destacou na História do Brasil, como ponto de partida de bandeiras que penetraram os sertões brasileiros. Ela fundou outras cidades, explorou ouro, escravizou indígenas e negros. Foi a principal cidade produtora de café desta região. Sediou, por isso, em 1906, o Convênio de Taubaté, onde foram tomadas decisões na grande crise do café, beneficiando grandes produtores, que começaram a investir em gado e leite, abrindo estradas entre zonas rurais e urbanas, e grandes comércios e indústrias na cidade. O braço negro, desprezado, foi substituído pela corrente migratória europeia, dentre outras. Crescia o êxodo rural, o processo de urbanização, e a miséria da população negra. Perfil Cultural da Cidade A parte central da cidade de Taubaté é marcada por igrejas seculares e de rica arquitetura, com destaque para a Catedral, o Convento Santa Clara e a Igreja de Santa Terezinha. Outras estão fechadas e abandonadas pelo poder público. Perto da Catedral, fica o Mercado Municipal, inaugurado em 1889, com a conhecida Feira da Barganha, e um grupo musical de chorinho às sextas-feiras. Na parte baixa fica a Bica do Bugre que traz memórias indígenas Goitacazes, com a linda escultura mítica de Nhá Chica, tudo muito abandonado. A cidade tem vários e bons museus, como o Museu Histórico, o Museu de História Natural, o Museu do Mazzaropi e o museu do Sítio do Pica-Pau Amarelo de 1 Mestre em História Cultural pela UnB Docente aposentado pela UCB/DF

O CAIPIRA: O JECA E O BURRO

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Page 1: O CAIPIRA: O JECA E O BURRO

O CAIPIRA: O JECA E O BURRO

RUBENS DE MORAIS SILVA1

Introdução

A maioria de nós, brasileiros de hoje, tem no sangue, na cultura e na memória, algo de

velhos parentes de origens diversas, como indígenas, negros e migrantes, que viveram a vida

caipira em antigas áreas rurais. A região do Vale do Paraíba é um dos berços desta Cultura

Caipira, tendo, em Taubaté, seu primeiro grande núcleo urbano.

Taubaté, cidade de 374 anos, tem mais de 300 000 habitantes e se classifica entre as

melhores cidades brasileiras, tanto no PIB (Produto Interno Bruto) como no IDH (Índice de

Desenvolvimento Humano). Localiza-se na privilegiada região do Vale do Paraíba, no eixo

Rio-São Paulo, entre a Serra da Mantiqueira e o Sul de Minas, e o Litoral Norte do Estado de

São Paulo. Mas, embora tenha forte expressão cultural, não tem boas aparências para visitantes.

Esta cidade se destacou na História do Brasil, como ponto de partida de bandeiras que

penetraram os sertões brasileiros. Ela fundou outras cidades, explorou ouro, escravizou

indígenas e negros. Foi a principal cidade produtora de café desta região. Sediou, por isso, em

1906, o Convênio de Taubaté, onde foram tomadas decisões na grande crise do café,

beneficiando grandes produtores, que começaram a investir em gado e leite, abrindo estradas

entre zonas rurais e urbanas, e grandes comércios e indústrias na cidade. O braço negro,

desprezado, foi substituído pela corrente migratória europeia, dentre outras. Crescia o êxodo

rural, o processo de urbanização, e a miséria da população negra.

Perfil Cultural da Cidade

A parte central da cidade de Taubaté é marcada por igrejas seculares e de rica

arquitetura, com destaque para a Catedral, o Convento Santa Clara e a Igreja de Santa

Terezinha. Outras estão fechadas e abandonadas pelo poder público.

Perto da Catedral, fica o Mercado Municipal, inaugurado em 1889, com a conhecida

Feira da Barganha, e um grupo musical de chorinho às sextas-feiras. Na parte baixa fica a Bica

do Bugre que traz memórias indígenas Goitacazes, com a linda escultura mítica de Nhá Chica,

tudo muito abandonado. A cidade tem vários e bons museus, como o Museu Histórico, o Museu

de História Natural, o Museu do Mazzaropi e o museu do Sítio do Pica-Pau Amarelo de

1 Mestre em História Cultural pela UnB – Docente aposentado pela UCB/DF

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Monteiro Lobato. A poucas quadras da Catedral, localiza-se o Teatro Metrópole (1919). E, um

pouco mais adiante, a velha Estação Ferroviária, hoje usada só para transporte de cargas. Parte

dela foi transformada na Estação do Conhecimento, um centro cultural muito bonito, mas pouco

usado. Na periferia, há um centro artesanal conhecido como Casa dos Figureiros, assumido

mais por mulheres, perto do Alto do Cristo. Na beira da estrada para Campos de Jordão, há o

distrito italiano do Quiririm, com seus restaurantes de boa qualidade e comidas típicas.

A memória africana marcou presença durante longo tempo na Festa de São Benedito.

Em frente do Convento Santa Clara, há um cruzeiro, usado para ofertas de terreiros afros. Pouco

abaixo, há um pequenino espaço dedicado a Firmino, um santo popular que teria sido

assassinado neste local há uns 200 anos. Da cultura africana, surgiu recentemente o grupo

denominado À Sombra de um Baobá, que apresenta lindos espetáculos no Teatro Metrópole.

Cultura Caipira

Taubaté é uma cidade onde culturas rurais e urbanas ainda se misturam bem, o que se

pode ver claramente na feição e gingado de pessoas, mesmo em ruas centrais da cidade. É uma

cultura caipira que se revela ainda no jeito de falar, nos hábitos alimentares, na religiosidade, e

outras tradições familiares. Há vários hotéis-fazendas, restaurantes de comida caipira,

pesqueiros, espaços de dança, Folias do Divino, Festas Juninas e outras tradições.

Também foi criado aqui o Projeto Sertões de Taubaté, iniciativa de Silésio Francisco

Tomé, um funcionário público municipal. É uma viagem de ônibus de um dia, a baixo custo,

percorrendo uns 80 km da região rural, com animação de sanfoneiro, visitando casarões do café,

senzalas, sítios tradicionais, alambiques, lugares históricos da Revolução de 1932, de filmagens

de Mazzaropi, igrejas e cemitérios antigos, mina de grafite, e outros. O custo inclui um bom

almoço e dois fartos cafés, no início e no fim da trajetória. Nas paradas, há locais de repouso,

serviços sanitários de boa qualidade, famílias acolhedoras, contadoras de histórias, barracas de

produtos como cachaça, licores, doces, dando aos viajantes aquele orgulho do sangue caipira.

Taubaté se orgulha ainda de dois personagens da cidade que extrapolam a cultura local:

Monteiro Lobato, aqui nascido (1882-1948), e Amácio Mazzaropi (1912-1881) que adotou,

como sua, esta cidade.

Monteiro Lobato e seu Jeca

Monteiro Lobato teve um grande mérito em seu empenho na divulgação da leitura, para

adultos e crianças, e na luta pelo desenvolvimento nacional. Nascido em Taubaté em 1882, foi

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para São Paulo onde se formou em Direito. Em 1911 voltou para Taubaté, morando na fazenda

herdada de seu avô, o Visconde de Tremembé, onde hoje funciona o Sítio do Pica-Pau Amarelo.

Foi escritor, pintor, editor, adido comercial do Brasil em Nova Iorque. Em 1936, com sua

publicação O Escândalo do Petróleo, denunciou a corrupção política das autoridades

brasileiras. Devido a isto, em 1941, ficou preso por 90 dias no Presídio Tiradentes de São Paulo,

por ordem do presidente Getúlio Vargas. Faleceu em 1948 em São Paulo, onde então morava.

Seu destaque foi a literatura. De seus livros, teve grande divulgação o conhecido Urupês

(1918), onde criou o personagem do Jeca Tatú. Nesta obra, Lobato fala do Jeca, que já tinha

sido apresentado no artigo Uma Velha Praga (LOBATO, 1914:3), onde dizia:

Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem baldio, seminômade,

inadaptável à civilização, mas que vive a beira dela na penumbra das zonas

fronteiriças. À medida que o progresso vem chegando, [...] vai ele fugindo em

silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão [...] de modo a sempre conservar-se

fronteiriço, mudo e sorna. Encoscorado numa rotina de pedra, recua para não adaptar-

se [...] o caboclo é uma quantidade negativa.

Em Urupês (1957:290) Lobato diz:

Pobre Jeca Tatú! Como és bonito no romance e feio na realidade! Da terra só quer a

mandioca, o milho e a cana. A primeira, por ser um pão já amassado pela natureza.

Basta arrancar uma raiz e deixá-la nas brasas. Não impõe colheita, nem exige celeiro. O vigor das raças humanas está na razão direta da hostilidade ambiente.

Em 1919, no Teatro Lírico do Rio de Janeiro, Rui Barbosa se referiu à obra de Lobato,

ao falar sobre A Questão Social e Política no Brasil (BARBOSA, 2020):

Senhores: Conheceis, porventura, o Jeca Tatu, dos Urupês, de Monteiro Lobato, o

admirável escritor paulista? Tivestes, algum dia, ocasião de ver surgir, debaixo desse

pincel de uma arte rara, na sua rudeza, aquele tipo de uma raça que, “entre as

formadoras da nossa nacionalidade”, se perpetua, “a vegetar de cócoras, incapaz de

evolução e impenetrável ao progresso?

Mas Lobato, ao ler o livro O Saneamento do Brasil, de Belisário Pena, mudou sua

interpretação do Jeca. Descobriu que ele era um pobre homem doente, explorado pelos

políticos. Na introdução da 4ª. edição de Urupês (1919), Lobato tentou se retratar pela má

impressão deixada em sua visão do Jeca Tatú. E, arrependido, escreveu em palavras de simples

conversa, e com certa ironia:

Eu ignorava que eras assim, meu caro Jeca, por motivo de doenças tremendas. Está

provado que tens no sangue e nas tripas todo um jardim zoológico da pior espécie. É

essa bicharada cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte. Tens culpa disso? Claro

que não. Assim, é com piedade infinita que te encara hoje o ignorantão que outrora só

via em ti manparra e ruindade. Perdoa-me, pois, pobre opilado, e crê no que te digo

ao ouvido: és tu isso se tirar uma virgula, mas ainda és melhor coisa desta terra. Os

outros, os que falam francês, dançam o tango, fumam havanas e, senhores de tudo, te

mantêm nessa geena infernal para que possam a seu favor viver vida folgada à custa

do teu trabalho, esses, meu caro Jeca Tatu, esses têm na alma todas as verminoses que

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tu tens no corpo. Doente por doente, antes como tu, doente só do corpo. (LOBATO,

1919)

Em 1910, o farmacêutico Cândido Fontoura, de Bragança Paulista, criou o famoso

Biotônico Fontoura, para combater a ancilostomose, conhecida como Amarelão. Ele disputava

espaço com outro medicamento, importado dos EUA, o Emulsão de Scott. Monteiro Lobato,

amigo de Cândido, criou então a imagem do Jeca Tatuzinho transformado pelo medicamento.

Trabalharam juntos, divulgando um almanaque sobre este personagem, que acompanhava o

medicamento. As crianças adoravam esta história em quadrinhos, e o Biotônico.

Amácio Mazzaropi

Mazzaropi (1912-1981) nasceu de famílias migrantes, portuguesa da parte de pai e

italiana da parte de mãe, chegadas ao Brasil em 1900. Seu pai, Bernardo Mazzaropi se casou

com Clara Ferreira e foram viver em São Paulo, onde nasceu Amácio Mazzaropi (1912-1981),

na Rua Vitorino Carmilo, 61, no Bairro Santa Cecília. Em crise financeira, seus pais vieram

morar em Taubaté, onde Bernardo e Clara trabalharam na CTI, Companhia Taubaté Industrial,

antiga indústria desta cidade, propriedade de Felix Guisard. Amácio, com 4 anos, começou a

conviver com seu avô materno que gostava muito de tocar viola e dançar. Com o falecimento

do avô, foi morar uns anos com um tio em Curitiba, trabalhando numa loja de tecidos. Voltou

depois para São Paulo. Trabalhou um tempo na CTI, acima citada, em Taubaté. Desenvolveu

práticas teatrais, poéticas, musicais, e atividades cômicas. Enquanto Lobato era filho e neto de

famílias de fazendeiros, com carreira intelectual e política, e grandes condições financeiras para

criar suas empresas, que trouxeram contribuições culturais para nossa cidade, Mazzaropi era

filho de trabalhadores migrantes, com grandes dificuldades de sobrevivência. Tornou-se, enfim,

um reconhecido comediante na TV, e um bem sucedido cineasta que produziu 33 filmes, sendo

ator protagonista em todos eles, e dirigindo a maioria deles. Estes filmes têm traços comuns da

vida caipira que atraíram milhões de brasileiros e colaboram ainda hoje na consciência cultural

da população de Taubaté, e de muitos lugares do Brasil.

O Jeca de Mazzaropi

Ao vermos estes filmes, constatamos que o Jeca de Mazzaropi é vencedor e vitorioso.

É uma pessoa que tem suas contradições onde vive, mas é seu líder e amigo de todos, como

mostram principalmente os filmes Jecão... um Fofoqueiro no Céu (JECÃO..., 1977), Jeca e Seu

Filho Preto (JECA e seu..., 1978), Jeca Tatu (JECA Tatu, 1959). Vez ou outra, Mazzaropi

assume nestes filmes o papel de bom cowboy, que parecia se inspirar em filmes norte-

americanos, com belos cavalos, cavalgadas, tiros, bandidos, botecos, cachaça e muita briga.

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Os vizinhos de Jeca também são Jecas. É gente simples, que vive da produção de

subsistência, curtindo a natureza, com algumas criações. Embora sempre vivam como Jecas,

confiam na sorte grande do dinheiro, mas também veem o dinheiro como causa de intrigas,

roubos e outras violências. A comunidade conhece o que é fome, doença, dificuldades, mas a

solidariedade aparece a todo momento, e Jeca nunca fica sozinho. Ele gosta muito de dormir,

porque fez a escolha de trabalhar para sobreviver, e não para ficar rico. É um sujeito muito

esperto, e não aceita ser escravo no trabalho. Em tempos eleitorais, ele passa das mãos de um a

outro coronel, dependendo das vantagens que recebe, e seu o voto é um negócio sempre seguido

pela sua comunidade. Enfrenta todo tipo de gente: políticos, candidatos eleitorais, padres,

freiras, pais ou mães de santo, advogados, fazendeiros, coronéis, intelectuais, gente bonita,

cheirosa, e demais que nada pensam no povo, a não ser em períodos eleitorais. A figura

prepotente, corrupta e enganadora dos coronéis, aparece em Jeca Tatu (JECA Tatu, 1959),

Tristeza do Jeca (TRISTEZA..., 1960), O Jeca e a Freira (O JECA e a..., 1967); Uma Pistola

para Djeca (UMA PISTOLA..., 1969), O Jeca Macumbeiro (O JECA Macumbeiro..., 1974),

Jecão... um Fofoqueiro no Céu (JECÃO..., 1977), Jeca e Seu Filho Preto (JECA e seu..., 1978).

Mazzaropi denuncia estes coronéis, mas, em Jeca Tatu (JECA Tatu, 1959), torna-se também

um deles, embora não desenvolva, no roteiro, que tipo de coronel ele era. Parece antes indicar

que o Jeca também teria capacidade de ter mais poder e ser um tipo de autoridade diferente.

Em Jeca e a Freira (O JECA e a..., 1967), O Jeca Macumbeiro (O JECA Macumbeiro...,

1974), Jeca Contra o Capeta (JECA contra..., 1975), Jecão... um Fofoqueiro no Céu (JECÃO...,

1977), Jeca e Seu Filho Preto (JECA e seu..., 1978), Jeca não aceita algumas ideias de religião.

Critica religiosos católicos, espíritas, protestantes, macumbeiros e candomblecistas. Discute até

com Deus, com Jesus Cristo, com os santos, em Jecão... um Fofoqueiro no Céu (JECÃO...,

1977), nunca perdendo sua confiança na justiça lá de cima, que nunca falha. Seu Deus não é

tão divertido, pois não gosta de futebol e arrasta pé, mas o Diabo também não é tão feio, pois

lá ele tem muitas mulheres bonitas. Mazzaropi tem argumentos, muita calma, bom humor, e

não perde nenhum embate. Tudo se reveste de muitos causos, ditados populares, e aquela

malícia discreta de piadas indiretas que diverte os adultos, mas respeita ingênuos ou infantis,

como é o caso do Sr. Pinto, em O Jeca e a Égua Milagrosa (O JECA e a..., 1980).

Nestes filmes, os assuntos referentes à mulher e ao casamento mereceriam um tratado à

parte. Ele apresenta todo tipo de mulher: bonita, feia, inteligente, ignorante, atrasada, avançada,

moderna, maliciosa, interesseira, namoradeira, e fiel até o fim. Sempre há uma moça bonita em

disputa, e atrás de cada casamento, um interesse político, ou de heranças. Nada impede misturar

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pobre com rico, preto com branco, e muito menos religiões, em caso de casamento. Jeca mexe

inclusive na questão do divórcio. Casamento era um bom negócio, mas negócio com rico nunca

dá certo. Os Jecas acabam valorizando sempre mais sua própria gente. Casamento não é algo

tão puro, como se costuma pensar. Os pobres também têm suas crises e traições. Sempre é

tempo de recomeçar, pois o importante é ser feliz. As regras e normas de religião são muito

relativizadas. Há uma moral mais simples que a moral discriminatória das religiões. A relação

hierárquica e piramidal da família, com o chefe da família no alto, nem sempre é a referência

principal. Embora as mulheres desses filmes sejam normalmente tratadas duramente pela

tradicional cultura machista, há personagens femininas que reagem e exigem seus direitos. É

uma cultura em transição para a modernidade, com intenso êxodo rural.

Mazzaropi insiste em Jeca e Seu Filho Preto (JECA e seu..., 1978), que a sociedade foi

estruturada, colocando cada pessoa em seu lugar. Mas deixa claro que o mundo está mudando

os costumes. A moral dos padres mostra muita contradição com a nova realidade de mundo,

como mostra a conversa que tem com o vigário em Jeca contra o Capeta (JECA contra...,

1975). O lugar de cada um, muito próprio de uma sociedade hierárquica, vai mudando. As

pessoas começam a transitar entre as classes sociais, alterando as relações na família, nas

religiões, na política, nos lugares de lazer, na roça e na cidade. A situação muda, mas sempre

levamos algo de nossa cultura de raiz, como o mostra o projeto Projeto Sertões de Taubaté,

acima referido. Mas, apesar das mudanças da cidade que espanta o Jeca, como em sua passagem

por São Paulo onde vê lindas mulheres numa piscina, em Jeca Tatu (JECA Tatu, 1959), ele

representa a resistência com resiliência. Suas críticas ao chamado desenvolvimento são diretas.

Na cidade ou na roça, o Jeca sempre continuará disputando seus valores, despertando em nós

raízes culturais diferentes, mas não inferiores. Uma destas culturas, explorada por Mazzaropi,

é a paixão pelo futebol. Nisso, Jeca tem muito a ver com o Burro de Taubaté, mas nada a ver

com ignorância.

O Burro da Central

Ao entrevistar Jefferson da Silva Lindegger Ribeiro2, ele fez sua narrativa contando a

história interessante do time de futebol da cidade:

2 JSLR casou-se com Ana Clara Silva Lindegger Ribeiro. Está concluindo seu curso de História, uma de suas

paixões de conhecimento. Era, até o início da pandemia atual, um dos responsáveis pela loja e pelo museu do

Esporte Clube Taubaté, num shopping da cidade. Levado por seu pai que faz trabalhos sociais em benefício do

esporte, tornou-se torcedor fanático do time. E, junto à Ana Clara, foi membro fundador e, por três anos, tornou-

se presidente de uma torcida organizada do time, conhecida como Movimento Caipira Os Jecas.

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O Esporte Clube Taubaté (ECT), nascido em 1º de Novembro de 1914, é um dos mais

velhos do Brasil. Seu primeiro diretor foi João Rachou. Seu primeiro jogo foi no dia

25 de Dezembro deste mesmo ano, contra a Associação Atlética dos Palmeiras, no

antigo campo de futebol de Taubaté, conhecido como Campo do Bosque, local hoje

perto do centro da cidade. Ali passava antigamente o Córrego Saguirú, usado por

mulheres para lavar roupas. O Palmeiras já era um dos melhores times da América do

Sul. Taubaté perdeu de 5x1, mas saiu satisfeito, pois o futebol era importante para a

cultura local. O diretor do ECT escolhia jogadores nos times de várzea das periferias.

Descobriu José Ludguero, vulgo Jajá, um dos primeiros jogadores negros a integrar

um time profissional no Brasil. Foi um excelente jogador que ajudou o time a se

projetar na região. De 1914 a 1947, Taubaté foi três vezes campeão do interior o

Estado de São Paulo. Neste ano de 1947, o ECT se profissionalizou juntamente com

os demais grandes times brasileiros, que antes eram todos amadores.

Jefferson continua contando que, em 1954, jogando contra o time Comercial de Ribeirão

Preto, o ECT ganhava de 6x3, no Campo do Bosque. Por descuido da diretoria, havia um

jogador em campo que não estava devidamente registrado na Federação. Por esta razão, Taubaté

perdeu os pontos deste jogo. A partir daí, o time ficou conhecido como Burro da (Ferrovia)

Central (do Brasil). O fato veio à tona, por vingança do editor chefe da Gazeta Esportiva. Num

jogo anterior, o jornalista foi atingido por laranjas da torcida contra um juiz que prejudicara o

time. Na manchete do jornal, o time foi chamado de Burro da Central. De início, a torcida ficou

ofendida, mas logo resolveu adotar o burro como seu mascote. Até hoje, quando há jogo no

novo campo, ao lado das arquibancadas é possível, às vezes, ver e ouvir o trem da Central do

Brasil, passando bem pertinho. Sempre apita generosamente em homenagem ao time. As

torcidas dizem que, quando isto acontece, o time ganha o jogo. Na campanha financeira da

construção deste novo campo, no início dos anos 60, Horton Cunha e Abraão Alfredo Ortiz

contam que Mazzaropi fez uma filmagem aérea sobre a área do futuro campo, convocando a

torcida a colaborar na construção do hoje chamado Joaquinzão, homenagem a Joaquim de

Morais Filho, presidente do ECT na época da inauguração do estádio (1968).

O Movimento Caipira Os Jecas, torcida criada por Jefferson, sua esposa, amigos e

amigas, gostam muito de Mazzaropi e reconhecem seu interesse pelo futebol em seus filmes,

principalmente no “O Corintiano” (O CORINTIANO, 1966), que traz cenas reais de jogos do

Corinthians, do Esporte Clube Taubaté e do Paulista de Jundiaí. Neste filme, o barbeiro

corintiano (Mazzaropi) entrou em encrencas com um são-paulino e um palmeirense. O barbeiro

arrumou o apoio de um burro preto e branco, aumentando a disputa, amenizada porém pela

canção de Elpídio dos Santos, Meu Burrinho, uma canção de ninar onde o corintiano diz ao seu

burrinho preto e branco que durma tranquilo, pois o italiano (palmeirense), não vem.

Jefferson acrescenta ainda que o conhecido Burro da Central foi jogar uma temporada

pelos estados nordestinos no ano de 1959. Na época, foi uma proeza de viagem, acompanhada

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de longe pelos rádios da população de Taubaté. Enfrentou os melhores times da região. Foram

11 jogos, ganhando 7, empatando 3 e perdendo apenas um. A imprensa explorou bastante o

nome do time, bastante simpático para a cultura local de seus jegues: Burro da Central.

Outras opiniões de torcedores do ECT

Outros dois torcedores e uma torcedora3, membros desta torcida, também colaboraram

com este nosso trabalho, respondendo a 4 questões:

1 - Vou falar três palavras e você faz o comentário que desejar. As palavras são: Caipira, Jeca

e Burro:

MJDMC: Caipira: Para mim, esta palavra já perdeu o estereótipo de um

indivíduo sem conhecimento, bruto, etc. Caipira me remete à história do nosso

povo, seja ela de contribuição ao que conquistamos ou de tradição ao que

temos até hoje [...] Jeca é uma verdadeira representação de como um homem

rural têm seus valores, estilo de vida e visão de mundo [...]. Burro gerou um

novo conceito para mim. A mesma palavra usada para definir alguém como

tolo, me faz colocá-la em um sentido de boa exibição de algo, podendo ser o

meu querido time Taubaté, ou o asno (popularmente chamado de Burro) com

suas próprias qualidades e características.

GGS: Caipira é o homem rural, agricultor, ligado ao campo, homem simples com fé,

conhecedor da natureza e da sabedoria que vem dela. O Jeca é uma personalização do

homem caipira, personagem criado com o intuito de maldizer esse homem brasileiro,

ideia do Jeca ser um homem preguiçoso, aquele que não tem etiqueta, a mentalidade

de o homem do campo ser um homem atrasado, aquele que não se enquadra no

ambiente urbano modernizado. O Burro vejo como uma figura histórica do

companheiro, seja do homem caipira, sertanejo e até de Jesus (ref. Ao burro do

Evangelho). [...] na história do Brasil teve papel fundamental [...] é comum ouvir

histórias dos antigos e retratarem o animal como importante ferramenta para o

trabalho.

HSC: Caipira, Jeca são vocábulos aparentemente quase iguais [...] simbolizam uma

característica do ser humano, com seu comportamento peculiar, isto é, simples e

matreiro dentro do convívio de uma comunidade social. O Caipira, apelido carinhoso

atribuído a um cidadão comum, ordeiro, trabalhador, com pouca instrução, mas a vida

lhe dá experiência necessária para superar as adversidades, passando de uma

simplicidade a uma esperteza peculiar de todo homem do campo. Burro, o animal,

denominação dada a um ser inteligente, não sei até que ponto, consta a história

cristã, que ele carregando em seu lombo, descansou Jesus!

2- Como você vê o Esporte Clube Taubaté (ECT) na história desta nossa cidade? Que

contribuição traz à cultura da cidade?

3 MJDMC: MARIA JÚLIA DOLCINOTTI MOURA CAMPOS, 23 anos – Autônoma e estudante de

História/Geografia; GSS: GUILHERME GAUDINO DA SILVA, 27 anos – Coordenador Pedagógico de História

na rede pública, torcedor do ECT e diretor de bandeira da Torcida os Jecas; HSC: HORTON SIDNEY CUNHA,

80 anos – Aposentado, ex-presidente do conselho deliberativo do ECT, atualmente é um dos membros do

Conselho. Profissão - Coordenador Pedagógico de História na rede pública. Torcedor do Esporte Clube Taubaté e

diretor de bandeira do Movimento Caipira Os Jecas.

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MJDMC: Vejo o Esporte Clube Taubaté como a essência da cidade, pois nos trouxe

e ainda traz, momentos de alegria (ou tristeza), efervescência, apoio, comunidade etc.

Juntando pessoas com o mesmo desejo de ver um bom jogo de futebol, que vai muito

além de noventa minutos. E.C.T. é uma tradição que conseguiu unir diversas coisas

em uma só causa.

GGS: O ECT é um importante personagem histórico para a cidade de Taubaté, passa

por um período importante no desenvolvimento da cidade, acompanhando um

processo de industrialização nacional pelo qual o Brasil iniciava, e mais tarde, com o

seu desenvolvimento e caracterização da região vale paraibana, com a criação da

rodovia Presidente Dutra e a consolidação de uma região de grande concentração de

indústrias e importante eixo econômico brasileiro. O ECT acompanha todo esse

movimento, desde sua criação, dos jogos no Campo do Bosque, desempenha papel

importante na geografia da cidade e na criação de uma herança futebolista na cidade

[...] acredito que hoje tenha perdido espaço entre os corações taubateanos por conta

da popularização dos times "grandes" da capital, porém, mesmo com uma queda de

popularidade, ainda sobrevive firme e forte. Não há um dia que você dê uma volta

pelo centro da cidade e aviste pelo menos umas três pessoas vestindo o manto alvi-

azul [...] acredito que até aqueles que se dizem torcedores de outros times, guardam

carinho pelo Burro da Central, por ser o time da cidade etc.

HSC: O E.C.Taubaté é um patrimônio histórico da nossa cidade, desde a sua fundação

tem contribuído para o desenvolvimento na área esportiva dentro de um contexto

cultural [...]. O nosso querido Alviazul para Taubaté trouxe a motivação e amor

aventurado no coração dos torcedores, sendo renovado em cada geração,

conquistando um espaço nas lides esportivas [...] traz o benefício de atrair jovens,

sonhadores em serem atletas profissionais, muita das vezes os retirando de caminhos

negativos e prejudiciais à sua formação pessoal.

3 - O que representa para Taubaté a figura do Mazzaropi?

MJDMC: [...] Nos trouxe anos de história e aprendizado com seus filmes, declarações,

jeito de viver e fazer o que desejava. Tornou-se inspiração e marcou gerações com

suas personagens.

GGS: O Mazzaropi é mais valorizado fora da cidade do que aqui mesmo [...] por meio

do meu vô que o conheci, ele por ser caipira se identifica com os personagens

representados pelo Mazzaropi, seja desde os filmes em que trata a vida na roça como

os filmes das cidades [...] pois ele ilustrou e popularizou a imagem da Jeca-Tatu,

colocou o caipira em evidência nacional, de uma maneira caricata mas que traz a

essência do caipira, homem simples, com fé na religião e que, por ser simples e

esperto, acaba que, no fim das contas, se dá bem e resolve os problemas, pelo menos

na maioria das vezes.

HSC: Mazzaropi para Taubaté representa mais uma contribuição à história da cidade

no decorrer do seu tempo. Artista completo, único, com ideia avançada, conseguiu,

ao longo de sua carreira, tornar-se o nosso Charles Chaplin tupiniquim e com méritos

[...]. Pelo que conquistou, se constitui um ícone do empreendedorismo

cinematográfico [...] a Câmara de Vereadores lhe conferiu o título de Cidadão

Taubateano. Em seus filmes sempre que possível salientou nossa cidade em toda parte

desse Brasil e até no exterior. Mazzaroppi é tudo isso e muito mais!

4 - O que representa para você a cultura caipira de Taubaté?

MJDMC: A cultura caipira em Taubaté me representa algo de extremamente

importante. Aqui, desde que nasci, conheço elementos culturais de algum de nossos

antepassados ou mesmo dos que estão presentes, pois Taubaté vem de seus moradores

caipiras, que deram vida ao que é hoje, tudo que se tornou típico dos Taubateanos.

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GGS: O contato que tenho com a cultura caipira se dá pelo meu avô, o conhecimento

da natureza, das músicas sertanejas, das histórias do campo, das brincadeiras e a vida

dura no trabalho na roça. Meu vô é de MG, veio para Taubaté para trabalhar na

indústria, acredito que grande parte dos caipiras daqui também fazem parte desse

processo. Pelo grande crescimento urbano, hábitos foram sendo substituídos,

maneiras de viver, trabalhar, enxergar o mundo também foram modificados. Taubaté

hoje é uma cidade praticamente urbana e industrial, isso gera um apagamento da

cultura caipira no nosso dia-a-dia, porém, quando se questiona qualquer pessoa logo

reconhece que o caipira é o personagem mais importante da história da cidade. Por

vezes pode não ser tão valorizado, mas é sempre lembrado. Mesmo com um

apagamento de sua cultura, é comum vermos as permanências que ainda resistem,

como características linguísticas, o olhar para o céu e deduzir como irá ficar o tempo,

a contemplação da natureza, mesmo que cada vez mais escassa, etc. São elementos

que, pelo menos, eu consigo perceber em praticamente todas as pessoas que fazem

parte do meu cotidiano

HSC: A cultura caipira de Taubaté, representa, para mim, a manifestação de uma gente

simples e humilde, bem simplório mesmo, que, ao longo do tempo, foi se

caracterizando de uma forma típica cabocla, isto é, própria daqueles que nasceram e

tem sua vida na roça. Esse povo sabe como viver, trabalhar para seu sustento familiar.

Diverte-se e é sempre solidário nos momentos difíceis. Dotado de princípios básicos

de amor ao seu semelhante e bem-estar comum. A cultura caipira é enraizada no

sentimento de amor, simplicidade e solidariedade. Concluindo, penso que, com o

passar do tempo, essa cultura não resistirá às consequências da vida urbana, muito

menos na suburbana onde o povo simples vive!

Base Teórica

Burke (2010:26), ao estudar realidades europeias, assinala que a passagem do século

XVIII para XIX, principalmente na Alemanha, levou ao desparecimento das culturas populares

na região. Diante deste fenômeno, estudiosos começaram a pesquisar essas culturas e sua

função social. A cultura parece cravar, na história, as raízes de um povo, e o que era considerado

pouco erudito, tornava-se importante para a construção de identidades.

A relação entre cultura e política, conforme Burke (2008:136-137), mostra que as

classes subalternas (conceito de Gramsci) também constroem a História. Ele cita o exemplo do

indiano Ranajit Guha que tentou reescrever a história da Índia a partir dessas classes. É uma

forma de enfrentar a manipulação cultural da política antidemocrática como a usada pelos

militares no Golpe de 64, na Copa do Mundo de Futebol em 1970, ou as obras mestras de

Richard Wagner nos campos de concentração de Hitler.

Sharpe (BURKE, 2011:40-41) procura entender a visão cultural das camadas sociais

que são colocadas nas partes mais baixas da pirâmide social, citando também Edward

Thompson. Este dizia que o povo não é só um problema a ser resolvido pelas autoridades

políticas. Sharpe prefere entender o povo na interpretação de E. Thompson, como a classe

trabalhadora, interpretada pelas teorias marxistas consideradas no contexto do avanço do

capitalismo. E, citando E. Thompson, Sharpe continua dizendo: “Estou procurando resgatar o

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pobre descalço, o agricultor ultrapassado, o tecelão do tear manual ‘obsoleto’, o artesão

‘utopista’[...] eles viveram nesses períodos de extrema perturbação social, e nós, não.”

Sharpe (BURKE, 2011:60-61) diz ainda: “A história vista de baixo pode desempenhar

um papel importante neste processo... os membros das classes inferiores foram agentes, cujas

ações afetaram o mundo (às vezes limitado) em que eles viviam”.

Fressato (2011:185) analisa o contexto do Brasil da época de Mazzaropi, dizendo que

“em 1956, quando Juscelino Kubitschek, grande propulsor da ideologia nacional-

desenvolvimentista, assumiu a presidência, criou-se um clima de esperança, [...] promessa de

finalmente superar os problemas sociais advindos do atraso econômico e cultural [...]”. A autora

mostra que este presidente combatia a visão fechada da oligarquia rural, com seus produtos

voltados só para consumo externo. Mas o presidente Juscelino Kubistchek também não atendia

a população rural. Diz Fressato (2011:185) que “o grande êxodo rural distanciou ainda mais o

meio urbano do rural, pois à medida que os centros urbanos se desenvolviam, as características

da vida rural não se alteravam e as reformas não eram implementadas”.

Em seu governo, surgiram movimentos rurais e urbanos, com o recorte ideológico

trabalhista. JK pregou o desenvolvimento nacionalista que exigia de todos e todas muito

trabalho. O trabalho era o instrumento de independência do Brasil, contra a dependência

oligárquica rural. Fressato (2011:191) trouxe a memória de JK que pregava com seu próprio

exemplo: “Aprendi, desde cedo, que é ... trabalhando é que se honra a Deus e se dignifica a

vida”. Enquanto isso, JK criou enormes dívidas e dependência internacional pelos muitos

empréstimos que fez para implementar seu plano de metas.

No segundo período, pós JK, em que Mazzaropi trabalhou seus filmes, entramos na

Ditadura Militar do Golpe de 64. Segundo Fressato (2011:185), foi um tempo marcado por

novo desenvolvimentismo, com grandes projetos urbanos e industriais, mas alta carga de

impostos e arrocho salarial. O imperialismo norte-americano teve grande influência, com a

chegada de empresas internacionais que eliminaram as pequenas e médias empresas brasileiras,

assim como organizações trabalhistas tachadas como comunistas. Veio a forte repressão da

Ditadura Militar de 1964, muito explorada pelo Cinema Novo e pouco por Mazzaropi.

Os filmes do Mazzaropi se localizam na transição campo-cidade: êxodo rural,

urbanização, industrialização, consumismo, liberdade burguesa, novo entendimento da

organização do trabalho, mundo laico e muitas formas de exploração trabalhista. Ele inicia sua

produção em 1952, dentro do desenvolvimentismo brasileiro dos anos 50, e teve alta produção

durante a Ditadura Militar (1964-1985), falecendo em 1981. Mazzaropi expressa bem a cultura

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caipira do Vale do Paraíba, construída entre os séculos XVII e XVIII, tentando mostrar a

realidade de vida de populações rurais, suas culturas e desconfianças sobre o chamado

desenvolvimento e culturas urbanas emergentes. Em seus filmes, pessoas de cultura rural

rejeitam a pressão política e econômica dos coronéis, resistindo na boa preguiça e no trabalho

de subsistência, contra o progresso acelerado e consumista do desenvolvimento capitalista.

Os filmes do Jeca de Mazzaropi provocavam muito riso e descarregavam tensões, num

período de muita ditadura e censura. Esses filmes iam além do cinema conhecido como

Chanchada, pois não parava na alienação útil ao sistema político dominante, mas revelava o

perfil caipira dos explorados. Não se identificava com os filmes do Cinema Novo que buscava

raízes mais profundas dos problemas brasileiros e incentivavam a revolta popular.

Mazzaropi considerava o Cinema Novo muito complicado. Mas um dos grandes nomes

deste cinema revolucionário, Glauber Rocha, admirava o talento de Mazzaropi e a qualidade de

sua produção (FRESSATO, 2011: 223-224). Em parte, talvez possamos considerar Mazzaropi

um predecessor do Cinema Novo, no sentido de mostrar realidades do trabalhador caipira,

vaidades e falsidades das classes oligárquicas rurais, e a corrupção das instituições que as

sustentavam. Ele conseguia fazer seu admiradores chorarem na hora certa, relaxarem diante de

pressões, e avançarem com suas espertezas. Os caipiras aprendiam a resistir, muitas vezes em

silêncio, mas sempre desconfiando e discordando das classes dominantes.

Hoje vemos os fracassos históricos do capitalismo neoliberal surgido nos anos 80.

Mazzaropi conseguiu desmascarar as contradições das estruturas sociais que dariam

sustentação a este projeto político e econômico, hoje falido. O capital, o latifúndio, o

consumismo, a corrupção, a manipulação religiosa, e a exploração trabalhista estão ali presentes

numa resistência cultural bem popular, sem moralismos, subterfúgios e ou falsos purismos.

Um dos maiores nomes da cultura brasileira, Gilberto Gil, bem expressou a importância

da Cultura Popular, no momento em que era empossado no cargo de Ministro da Cultura no

governo do Presidente Lula (GIL, 2020a). Disse que a Cultura tem o importante papel de

“contribuir objetivamente para a superação dos desníveis sociais, mas apostando sempre na

realização plena do humano [...] É um direito básico de cidadania, assim como o direito à

educação, à saúde, à vida num meio ambiente saudável”. E no lançamento da Programa Teia

Cultural (GIL, 2020b), continuava expressando sua visão da Cultura: “Queremos o centro do

palco, poder de decisão [...] e a criação de um circuito nacional que considerem o peso

econômico das economias criativas, o papel decisivo e fundamental da cultura...”.

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Qualquer outra visão de Cultura que não siga a lógica do Mercado, normalmente é

desprezada, como bem expressou Mazzaropi (WOLF, 2020) em uma entrevista:

Caipira é um homem comum, inteligente, sem preparo. Alguém muito vivo,

malicioso, bom chefe de família. A única coisa diferente é que ele não teve escola [...].

O problema é que as pessoas desprezam a verdade, preferindo correr atrás de ilusões,

das palavras bonitas, que é o caso de muitos discursos políticos. [...] O sujeito pode

ser preparado, mas pode também não ser inteligente. E tá cheio de burro diplomado

por aí. E tem caipira, sem diploma, muito inteligente, dizendo a verdade [...]. Eu

apenas mostro o problema, mas à minha maneira. Os inteligentes devem aproveitar,

transformar e dar a solução. Se são inteligentes, podem dar a solução. A mim, cabe

apenas apresentar o problema, não sou eu que vou dar a solução. Não sou político,

não tenho nada que solucionar problemas.

Mazzaropi, enfim, foi e é protagonista da comédia popular inteligente, que fala com seu

corpo todo, permanecendo sempre presente em nossa história. Mazzaropi não morre. Ele nos

ajudar a pensar a conjuntura em que vivemos, mesmo que nossos conhecimentos e nossa

consciência tenham hoje outros ingredientes e ferramentas mais estratégicas. Ele desmascara

as mentiras desta sociedade com simplicidade, e coloca o ser humano como fator preponderante

na construção de qualquer sistema social.

Considerações Finais

O ECT (Esporte Clube Taubaté) é uma das expressões taubateanas de resistência cultural.

Dificilmente, um grupo como este, tem vida tão longa, com tantos desafios. Ele é um sujeito

histórico que, como dizem nossos entrevistados, acompanhou a história da cidade e sua

população, com alegrias nas vitórias, e tristezas, nos momentos de derrota e dificuldades. Sua

resiliência transformou derrotas e deboches de uma imprensa mal intencionada, em troféu. O

Burro não só construiu nosso Brasil, como também levou no lombo o Filho de Deus.

Assim, o ECT cruzou a história do burro, sua força e inteligência, com a riqueza histórica

da cultura do Jeca, algo enraizado na população desta região do Vale do Paraíba. O Burro e o

Jeca foram ressignificados, alimentando nossa alma caipira que supera desprezos e

discriminações, e agrega moradores para enfrentarem desafios da cidade. As vitórias e derrotas

do Burro da Central refletem as boas e más memórias da história do povo taubateano.

Bem disse acima nossa entrevistada que futebol vai além dos 90 minutos. Penso também

que o campo é uma sala de aula onde se aprende a viver na sociedade. Futebol é como a vida

que precisa de muito treinamento, momentos fortes de jogo, e a busca constante de outras boas

jogadas, para atingir seus objetivos. Devemos saber montar bem o time das pessoas que fazem

conosco o jogo da vida, e ter muita clareza de nossos reais adversários. E também temos o direito

de definir as regras do jogo, como já dizia a velha democracia corintiana. Não somos mera

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torcida, ou jogadores passivos. Não vivemos só nas arquibancadas, pois também somos

jogadores e técnicos no jogo da vida.

O Burro da Central e o Jeca de querido Mazzaropi vão construindo assim nossas

identidades que fazem nosso ser caipira taubateano. Cada partida de futebol do ECT é um

capítulo de uma série, onde cada Jeca que somos, vai descobrindo seu caminho. Em 100 anos,

passaram gerações no ECT, assim como outras tantas gerações fizeram e fazem a história mais

que tricentenária de nossa querida cidade.

Como Caipiras, temos um DNA de convivência, solidariedade, trabalho, alegria, fé,

inteligência, força e uma boa preguiça pra relaxar. Os processos colonialistas e imperialistas de

hoje tentam apagar esta nossa história, menosprezando-a e deturpando seus valores. Mazzaropi,

por outro lado, por seus filmes sempre atuais e divertidos, desperta em nós o direito fundamental

de sermos cidadãos do jeito que somos, fazendo parte ativa do cenário de nossa cidade. E

torcemos, no grande jogo da vida, que ninguém seja deixado fora do campo, excluído por ser

simples, pobre, analfabeto de letras, trabalhador braçal, homem da roça ou de periferias.

Mazzaropi chama nossa atenção. Ele nos apontou muitos de nossos problemas em seus filmes.

Mas ele nos deixa o desafio de fazermos acontecer uma história mais bonita nesta cidade,

confiando a nós a busca de soluções.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Rui. A questão social e política no Brasil. Disponível em:

http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/rui_barbosa/p_a5.pdf. Acesso em: 22

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_______. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda, 2010.

_______. A Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 2011.

FRESSATO, Soleni B. Caipira sim, Trouxa não: representações da cultural popular no cinema de

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JECA contra o capeta. Direção: MAZZAROPI, Amácio; ZAMUNER, Pio. São Paulo: PAM Filmes

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JECA e seu filho preto. Direção: Berilo Faccio. São Paulo: PAM Filmes Ltda, 1978 (143 min),

DVD 35mm.

JECA Tatu. Direção: Milton Amaral. São Paulo: PAM Filmes Ltda, 1959. DVD (130 min), 35 min.

JECÃO, um fofoqueiro no céu. Direção Amácio Mazzaropi e Pio Zamuner. São Paulo: PAM Filmes

Ltda 1977 (132 min), DVD 35 mm.

LOBATO, Monteiro. Uma Velha Praga. O Estado de São Paulo, São Paulo, ano XL, n. 13110, 12 nov.

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_______. Urupês. 4. ed. São Paulo: Edição da Revista do Brasil, 1919.

_______. Urupês. 9. ed. São Paulo: Brasiliense, 1957.

O CORINTIANO. Direção: Milton Amaral. São Paulo: PAM Filmes, São Paulo, 1966 (139 min) DVD,

35 mm.

O JECA e a Égua Milagrosa. Direção: Amácio Mazzaropi e Pio Zamuner. São Paulo: PAM Filmes Ltda,

1980 (146 min), DVD, 35mm.

O JECA e a Freira. Direção: Amácio Mazzaropi. São Paulo: PAM Filmes, 1967. DVD (137min), 35mm.

O JECA Macumbeiro. Direção: Amácio Mazzaropi e Pio Zamuner. São Paulo: PAM Filmes Ltda, 1974.

DVD (128 min).

TRISTEZA do Jeca. Direção: Amácio Mazzaropi. São Paulo: PAM Filmes Ltda, 1960. DVD (133 min),

35 mm.

UM CAIPIRA em Bariloche. Direção de Amácio Mazzaropi e Pio Zamuner. São Paulo: PAM Filmes

Ltda, 1971. 1 DVD (138 min), 35mm.

UMA PISTOLA para Djeca. Direção: Ary Fernandes. São Paulo: PAM Filmes, 1969. DVD (130 min),

35 mm.

WOLF, José. O povo está preparadíssimo. Folha de São Paulo, 2 jul. 1978, nº 17987, Ano 57, Matéria

de capa do Folhetim. Disponível em:

https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=6629&keyword=esta%2CO&anchor=4245092&origem

=busca&originURL=&pd=c66f77dd4bd2d75e72f35973d699b2aa. Acesso em: 22 out.1920.