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O CALÇAMENTO DE TIRADENTES: história, intervenções e desafios para a conservação CRUZ, LUIZ ANTONIO DA. Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Arquitetura e Urbanismo Área de Concentração: Teoria, produção e experiência do espaço Rua Paraíba 697 Funcionários 30130140 Belo Horizonte-MG [email protected] RESUMO Bem no início do século XVIII, iniciou-se a ocupação da área que veio a ser Minas Gerais e, na região do Rio das Mortes, o primeiro arraial a surgir foi o de Santo Antônio, depois Vila de São José do Rio das Mortes, a atual Tiradentes. A implantação da vila ocorreu após os achados auríferos e foi de forma linear, ao longo do caminho que cortava a localidade. Em 1710 teve início a construção da igreja Matriz de Santo Antônio e com os recursos da mineração o lugar foi dotado de belas edificações religiosas e civis. A ocupação urbana surgiu de forma espontânea, seguindo os preceitos do decoro, já experimentado em Portugal. Havia contraste das imponentes construções com as ruas em terra batida. Somente após a metade do século XVIII elas foram calçadas com pedras do leito do Rio das Mortes e suas margens. Era o calçamento pé-de-moleque. Com o passar do tempo e o abandono, o calçamento ficou bastante precário. Existem fotografias das ruas de Tiradentes com o calçamento original e elas estão dispersas em vários acervos. No final da década de 1950, os fragmentos restantes do calçamento em pé-de-moleque foram removidos, a prefeitura fez um novo, com lajes de pedras retiradas do alto da Serra de São José. Este artigo é sobre a história do calçamento de Tiradentes, sua documentação e apresenta sua última intervenção de restauro, concluída em 2016, obra realizada pela prefeitura, com o apoio financeiro do BNDES. Por falta de projeto adequado, conhecimento técnico, inserção de novos materiais e falta de acompanhamento da execução, a intervenção acabou constituindo-se um grande equívoco. Agora Tiradentes sofre com as consequências da obra. Prejuízo para o patrimônio, prejuízo para a cidade. Felizmente, a obra foi devidamente documentada fotograficamente. O trabalho visa, também, sensibilizar profissionais da área de Patrimônio, para que fiquem atentos, ao elaborar projetos de intervenção, devem considerar a memória do bem cultural e evitar intervenções equivocadas, como a do calçamento de Tiradentes. Palavras-chave: calçamento, documentação, intervenção, conservação

O CALÇAMENTO DE TIRADENTES: história, intervenções e ...início a construção da igreja Matriz de Santo Antônio e com os recursos da mineração o lugar foi dotado de belas edificações

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O CALÇAMENTO DE TIRADENTES:

história, intervenções e desafios para a conservação

CRUZ, LUIZ ANTONIO DA.

Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Arquitetura e Urbanismo

Área de Concentração: Teoria, produção e experiência do espaço

Rua Paraíba 697 – Funcionários – 30130140 – Belo Horizonte-MG

[email protected]

RESUMO

Bem no início do século XVIII, iniciou-se a ocupação da área que veio a ser Minas Gerais e, na

região do Rio das Mortes, o primeiro arraial a surgir foi o de Santo Antônio, depois Vila de São

José do Rio das Mortes, a atual Tiradentes. A implantação da vila ocorreu após os achados

auríferos e foi de forma linear, ao longo do caminho que cortava a localidade. Em 1710 teve

início a construção da igreja Matriz de Santo Antônio e com os recursos da mineração o lugar

foi dotado de belas edificações religiosas e civis. A ocupação urbana surgiu de forma

espontânea, seguindo os preceitos do decoro, já experimentado em Portugal. Havia contraste

das imponentes construções com as ruas em terra batida. Somente após a metade do século

XVIII elas foram calçadas com pedras do leito do Rio das Mortes e suas margens. Era o

calçamento pé-de-moleque. Com o passar do tempo e o abandono, o calçamento ficou

bastante precário. Existem fotografias das ruas de Tiradentes com o calçamento original e elas

estão dispersas em vários acervos. No final da década de 1950, os fragmentos restantes do

calçamento em pé-de-moleque foram removidos, a prefeitura fez um novo, com lajes de pedras

retiradas do alto da Serra de São José. Este artigo é sobre a história do calçamento de

Tiradentes, sua documentação e apresenta sua última intervenção de restauro, concluída em

2016, obra realizada pela prefeitura, com o apoio financeiro do BNDES. Por falta de projeto

adequado, conhecimento técnico, inserção de novos materiais e falta de acompanhamento da

execução, a intervenção acabou constituindo-se um grande equívoco. Agora Tiradentes sofre

com as consequências da obra. Prejuízo para o patrimônio, prejuízo para a cidade. Felizmente,

a obra foi devidamente documentada fotograficamente. O trabalho visa, também, sensibilizar

profissionais da área de Patrimônio, para que fiquem atentos, ao elaborar projetos de

intervenção, devem considerar a memória do bem cultural e evitar intervenções equivocadas,

como a do calçamento de Tiradentes.

Palavras-chave: calçamento, documentação, intervenção, conservação

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V SEMINÁRIO IBERO-AMAERICANO ARQUITETURA E DOCUMENTAÇÃO BELO HORIZONTE – DE 24 A 26 DE Outubro de 2017

O pesquisador e arquiteto Sylvio de Vasconcellos em Arquitetura, Arte e Cidade

deixou-nos como legado um valioso estudo sobre as primeiras povoações em Minas

Gerais, quando se utilizaram as “tejupabas”, edificações rústicas indígenas

implantadas ao longo dos caminhos dos Sertões dos Cataguás. O pesquisador

salienta que as povoações: “originaram-se de estradas, cujas margens, construídas,

acabaram por transformá-las em ruas” (Vasconcellos, 2004, p.145) e logo era

implantada uma ermida e as construções ocupavam o seu entorno.

De acordo com outro pesquisador, Murillo Marx, a ocupação ocorria ao longo do

tempo, as “tejupabas” eram construídas às margens dos caminhos, que acabaram se

tornando os logradouros das principais vilas setecentistas. Ainda, segundo Marx, há

poucas informações sobre a evolução da história da cidade no Brasil, onde os estudos

existentes são dedicados à “interpretação arquitetônica e sua configuração geral, de

suas massas construídas e de seus espaços vazios”. O autor, em seu trabalho Cidade

Brasileira, destaca:

Mais do que o rego deixado pela via pública, o corpo contínuo e serpenteado

do casario denuncia ao longe o curso das ruas, ruelas e becos. A direção

caprichosa desse conjunto de cheios e vazios marca a personalidade da

povoação e lhe dá fisionomia própria. A vida urbana tem nas ruas o caminho

dos largos, dos edifícios importantes, do campo, e das outras cidades. Confia-

lhes, por isso, a feira, a procissão, o pretexto de encontro. (Marx, 1980, p.43)

Marx, um dos pioneiros a estudar a cidade brasileira, destaca a importância e a

funcionalidade das ruas, no contexto urbanístico e no corpo social dos núcleos

urbanos. As ruas com seus cheios e vazios ligavam um ponto ao outro e por elas as

pessoas circulavam, se encontravam e comercializavam suas produções. Aí

desfilavam as manifestações sociais, culturais e devocionais – dos cortejos festivos

aos cortejos fúnebres. Eram o palco do encontro e da socialização.

Sobre os calçamentos antigos, há menos informações ainda. Alguns registros foram

feitos pelos viajantes estrangeiros, como anotaram Spix e Martius, em Viagem pelo

Brasil:

Nas ladeiras íngremes, em parte calçadas com tijolo, quase possibilitando o

uso de cavalos, o viajante encontra “cadeira” de aluguel. (Spix e Martius, 1938,

4V.)

No terceiro quartel do século XVII, grupos de paulistas já haviam adentrado o território

que denominavam de “sertão”, com a ajuda de indígenas, percorreram e aprenderam

os caminhos que levavam ao território inóspito, habitado por várias tribos. Os paulistas

seguiam esses caminhos com objetivos específicos, o primeiro era capturar índios a

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serem vendidos para as fazendas de São Vicente e o segundo era a procura das

jazidas de ouro. Bem no início do século XVIII, iniciou-se a ocupação da área que veio

a ser Minas Gerais e, na região do Rio das Mortes, o primeiro arraial foi o de Santo

Antônio, que tornou-se conhecido como Arraial Velho, após a instalação de outro, o de

Nossa Senhora do Pilar – o Arraial Novo – a atual São João del-Rei. Em 19 de janeiro

de 1718, o “Velho” foi elevado à categoria de vila, com a denominação de São José, e

após a proclamação da República, em 6 de dezembro de 1889, passou a chamar

Tiradentes.

Em consequência da exaustão das minas auríferas e especialmente o malogro da

Inconfidência Mineira, São José entrou em decadência. Mas vale ressaltar que a

decadência econômica assolou a sede, enquanto os arraiais da vila prosperavam, com

suas atividades agropastoris. A localidade passou por longo período em profunda

decadência, cerca de cem anos. Com o abandono, sua estrutura urbanística ficou

praticamente intacta, ou seja, como era no século XVIII, mantendo suas ruas, largos,

becos e caminhos. O conjunto arquitetônico e paisagístico da cidade foi tombado pelo

SPHAN (atual IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em 1938.

A partir da década de 1980, Tiradentes passou por processo de revitalização. Hoje é

um dos polos indutores de turismo do Estado de Minas Gerais.

A implantação da antiga Vila de São José ocorreu de forma linear, ao longo do

caminho que cortava a região e foi depois dos achados auríferos no sopé da Serra de

São José. Em 1710 teve início a construção da igreja matriz, dedicada a Santo Antônio

e, com os recursos advindos da mineração, a localidade foi dotada de outras belas

edificações religiosas e civis. A ocupação urbana surgiu de forma espontânea, mas

seguindo os preceitos do decoro, já experimentado pelas vilas portuguesas.

Especialmente nessa localidade, havia um contraste com as imponentes construções,

arruamentos e largos, com as ruas em terra batida. Somente após a metade do século

XVIII as ruas receberam calçamentos feitos com pedras retiradas do leito do Rio das

Mortes e suas margens. Era o calçamento pé-de-moleque, também chamado de

“cabeça-de-negro”, feito com seixos de cascalho (quartzo). Com o passar do tempo e

o abandono, o calçamento original ficou bastante precário, em vários trechos se

perdeu. Existem registros fotográficos de ruas de Tiradentes com o calçamento

original e eles estão dispersos em vários acervos, alguns se encontram no Arquivo

Central do IPHAN, no Rio de Janeiro-RJ e no Laboratório de Fotodocumentação Sylvio

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de Vasconcellos, da UFMG, em Belo Horizonte-MG. Na Serra de São José, ainda

subsistem trechos de calçamentos antigos1.

Registros sobre os aspectos de nossas ruas e especialmente sobre os calçamentos

são poucos e os existentes foram anotados pelos viajantes, inclusive os brasileiros.

Em 1891, passou por São José, o poeta Olavo Billac (1865-1918), registrou:

As ruas, calçadas de pedras miúdas e avermelhadas, sobem e descem,

desertas, cheias de casas a cujas janelas nem uma cabeça de ente vivo

aparece. Os mesmos porcos que se encontram, de espaço a espaço,

focinhando a terra, tão meditabundo, que a gente chega a acreditar que os

porcos possuem como nós uma alma accessivel ao tedio e á misanthropia.

(Billac, 1891, p.77-84)

O viajante, professor e escritor Carlos de Laet (1847-1927), passou pela cidade, em

1893, quando já se chamava Tiradentes e anotou sobre suas ruas:

A cidade está quase deserta. Cresce capim nas ruas e há muitas casas onde

não mora ninguém.

E, com um suspiro:

– São José foi grande e poderosa: hoje está velha e cansada. É mãe de família

que criou muitas filhas: São João, Oliveira e outras ... As filhas agora é que

estão floreando, e a pobre velha vai vivendo aqui no seu canto ...

Não se poderia melhormente exprimir a honrosa decadência da velha cidade!

(Laet, 1993, p.65)

Os relatos revelam aspectos da decadência em que a cidade se encontrava, as

condições de conservação das ruas e consequentemente do calçamento, enfatizando

que muitas casas estavam abandonadas, inclusive alguns sobrados, que logo ruíram.

De maneira geral, o calçamento das vilas cativou muito pouco a atenção dos viajantes.

Até mesmo pesquisadores experientes, como José Wasth Rodrigues, que publicou o

preciosíssimo Documentário Arquitetônico, no qual nos revela os detalhes mais

minuciosos de nossa arquitetura civil, desde os espelhos de fechaduras até os

detalhes de gárgulas, praticamente não mencionou nada sobre os calçamentos.

Embora, em suas pranchas 56, 58 e 61, apresente detalhes de calçamentos da Casa

dos Contos, em Ouro Preto, com uso de pedras diferentes, mas sem mencioná-los.

1 Na Serra de São José, alguns caminhos foram calçados com grandes blocos de pedras areníticas, como

o caminho do Carteiro, do Mangue, das Águas Santas, da Bocaina e do Pico Alto, obras dos séculos XVIII e XIX. Para a construção desses empregaram conhecimentos de engenharia e destacam-se as soluções para os desvios de águas pluviais, as pontes secas e os muros de arrimo. Atualmente, todos precisam de obras de manutenção, no da Bocaina subsistem pequenos fragmentos e o do Pico Alto foi encoberto pela vegetação.

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Os primeiros calçamentos

Somente a partir de meados do século XVIII, as vilas mineiras começaram a calçar

suas ruas, com pé-de-moleque. Esse calçamento era feito com pedras arredondadas,

retiradas dos leitos de rios e suas áreas próximas às margens. Eram as pedras de

cascalho. Os calçamentos tinham um caimento único para as águas pluviais, no meio

da rua. Posteriormente, em algumas localidades, bem ao centro do calçamento,

colocaram pedras mais planas, para facilitar a circulação dos pedestres. A pedra ao

centro era chamada de capistrana2.

Os calçamentos nas vilas setecentistas têm sua origem no decoro português, mas que

vêm de período bem mais antigo, com Vitrúvio e seu Tratado de Arquitetura. Com o

decoro, as vilas coloniais ficaram mais formosas, pois os tratadistas portugueses

também herdaram os princípios vitruvianos, os quais foram também aplicados nas

colônias além-mar. A pedra já era usada nas edificações civis e religiosas, para os

detalhes e especialmente a proteção das paredes contra a umidade e para a maior

longevidade da madeira, como o uso do “soco” nos marcos de portas e janelas. Em

diversas edificações, utilizou-se o embasamento de pedra por motivos diversos, dentre

eles a monumentalização da edificação.

No Brasil, em geral, o calçamento foi feito aos poucos, mesmo nas cidades de maior

porte, como o Rio de Janeiro, conforme registros fotográficos do Paço Imperial e

outros, que mostram construções imponentes contrastando com as ruas de terra

batida. (Ferrez, 2008, p.136-7) Em localidades importantes como Paraty-RJ, o

calçamento foi realizado a partir de 1776 e as obras se estenderam até meados do

século XIX, utilizaram-se grandes blocos de pedras. Segundo o pesquisador Diuner

Mello:

As ruas têm formato de um canal, que permite rápido escoamento das águas

pluviais e das marés de lua cheia ou nova, que entram cidade a dentro. Este

engenhoso sistema de escoamento de águas é encontrado ainda em algumas

cidades portuguesas. Esta convivência e interação – mar/cidade – é uma

singularidade paratiense desde sua urbanização e mantida até os dias atuais.

(Mello, 2009, p.47)

Os primeiros calçamentos em Minas eram realizados pelas Casas de Câmara, que

habitualmente colocavam os editais de obras em hasta pública. Na Vila de São José

2 N.A. – A inserção das pedras ao centro do calçamento ocorreu no período em que o presidente da província era João Capistrano Bandeira de Melo, em sua homenagem as pedras receberam o nome de “capistrana”.

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del-Rei, as ruas calçadas no século XVIII foram a Rua Direita (FIGURA 1), a da

Câmara, a do Jogo de Bola, a do Sol (atual Padre Toledo), do Chafariz, dos largos

das Forras e do Sol. Em alguns logradouros, apenas trechos receberam calçamento,

como a Ponte de Pedra e o Largo do Chafariz e este deve ser da primeira metade do

século XVIII.

Com o período de decadência econômica de São José, que se prolongou por cerca de

um século, o calçamento ficou abandonado, sem manutenção, muitos trechos ficaram

comprometidos. Parte foi aterrada, especialmente no meio, por onde corria a água

pluvial. Até que no final da década de 1950, o prefeito Francisco Barbosa Júnior

(administração 1959-1962), resolveu calçar as ruas principais da cidade, aproveitando

parte das pedras antigas para compor as laterais do calçamento central, feito por lajes

de pedras, retiradas do alto da Serra de São José. Soterraram fragmentos do antigo

calçamento para abrigar o novo. Portanto, por baixo do atual calçamento existem

trechos do anterior, constituindo-se um curioso sítio arqueológico que deveria ser

considerado. O prefeito de Tiradentes, Francisco Barbosa Junior, naquela época, se

inspirou na experiência do calçamento que havia sido refeito em Diamantina, onde as

lajes de pedras foram assentadas sobre massa de cimento. Vale lembrar que o

calçamento diamantino era mais bonito que o Tiradentes, todo em pé-de-moleque,

bem assentado e delineado por pedras maiores, formando elegantes desenhos.

(Queiroz, 2010, p.4-71) A primeira intervenção ocorreu para a inserção de lajotas de

pedras ao centro, à moda capistrana, ainda no século XIX, entre 1877 e 1878. Esse

calçamento original foi retirado, no período de 1940 a 1960. Portanto, o calçamento

atual de Diamantina não é o original, com exceção de alguns trechos, como o

remanescente em frente ao Mercado Municipal. O pé-de-moleque foi substituído pelas

lajes de pedra largas e planas, retiradas das jazidas de quartzito da região. As pedras

retangulares eram colocadas formando quadrantes ou canteiros, nos interiores

inseriam os “matacões” – pedras sem lapidação. Com as pedras colocadas muito

próximas uma das outras, quase sem espaço, criava-se o “recunhado”, ou seja, um

sistema de travamento. Na década de 1960, ocorreu nova intervenção, acrescentando

linhas longitudinais e transversais no calçamento e o concreto para afixar as lajes.

Recentemente, realizou-se em Diamantina o “Projeto Acerta Pedra”, com o objetivo de

resgatar as técnicas antigas de calçamento, como o “recunhado” e a remoção do

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cimento, tudo feito manualmente e com o objetivo, também, de formar novos

calceteiros3.

Para o calçamento de Tiradentes, houve orientação do arquiteto Sylvio de

Vasconcellos, que sugeriu que as pedras fossem assentadas sobre terra vermelha,

com terra de cascalho de campo, ou seja, com a mistura, conseguia-se liga e

permeabilidade, evitando-se a experiência de Diamantina. No período de 1959 a 1963,

calçaram por lajes as ruas da Câmara, do Chafariz, Direita, Padre Toledo, Resende

Costa e do Jogo de Bola. A obra do calçamento teve fiscalização de Heitor Silva e

coordenação do mestre-pedreiro Antônio Carlos Ferreira, ambos funcionários da

prefeitura. Alguns operários que trabalharam nessa obra ainda estão vivos, dentre

eles Vicente de Paiva, João do Carmo de Paiva e José Celso Matias.

Retiraram as pedras para o calçamento do alto da Serra de São José, na ponta

extrema, área pertencente ao município de Prados. Todo o trabalho era realizado

artesanalmente, por Jair da Silva Velho, conhecido como Sô Breco, e seu irmão,

ajudados por seus familiares. Os blocos de pedras eram abertos por cunhas e

marretas, com a ajuda do calor de uma fogueira. Algumas vezes, podia-se apreciar

folhas ou pequenos esqueletos fossilizados, registros de um tempo muito distante, de

milhões de anos, quando a área ainda era mar. As pedras eram empilhadas e desciam

da serra transportadas por tropas. Eram vendidas a metro quadrado.

O antigo caminho existente junto ao sopé da serra foi alargado para passar o

caminhão que buscava as pedras. Foram transportadas por Vicente José da Costa, o

Vicente Firmino, num caminhão Ford F 6, conduzido por seu filho Vicente José da

Costa, o Nonôca, em duas viagens por dia. O motorista Rui Valente fez viagens

transportando-as num Chevrolet K 5. Para carregar e descarregar as pedras, o

trabalho era feito pelos irmãos Nelson José da Costa, Paulo José da Costa, Mário

Costa, com a ajuda de outros trabalhadores. Depois de descarregar o caminhão, as

pedras eram remanejadas, utilizando-se as carroças da prefeitura. (Cruz, 2015, p.119)

Segundo depoimento coletado de Nelson José da Costa, conhecido como Nelson

Firmino, havia o cuidado em carregar as pedras e empilhá-las no caminhão, o mesmo

ocorreu no descarregamento, para que “as pedras grandes e grossas ficassem bem

assentadas e o calçamento bonito”. Segundo depoimento de João do Carmo de Paiva,

que trabalhou na construção do calçamento, “tudo era feito no braço, com calma e

tempo, para ficar bem feito e bonito”. Ele ainda nos revelou um dos segredos da obra,

3 Projeto Acerta Pedra. Disponível em: http://diamantinacertapedra.blogspot.com.br/2015/07/projeto-acerta-pedra-diamantina-2012.html. Acesso em: 8 de setembro de 2018.

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“que quando estava pronto, cada trecho, precisava ser nivelado, então, pegou um

barril, encheu de cascalho e o transformou em rolo compressor, que era puxado pelos

homens”. E completou: “O calçamento ficou bonito e bem alinhado. Resistente. As

pedras eram grossas, tinham de 20 a 30 cm, todas assentadas sobre a terra, bem

juntas, para não levantarem, assim criando uma amarração.” (Paiva, 2016,

depoimento)

No segundo mandato do prefeito Francisco Barbosa Júnior, foi realizado o calçamento

da Rua da Santíssima Trindade (FIGURA 2). Depois outros trechos, como o entorno

do Largo das Forras e a Rua do Chafariz. O prefeito Josafá Pereira Filho

(administração 1977-1982) calçou, em poliédrico – pedras calcárias irregulares, as

ruas da Cadeia, Ministro Gabriel Passos, São Francisco e Nicolau Panzera. O Beco da

Matriz também teve uma parte calçada.

O paisagista Roberto Burle Marx idealizou projetos para os largos das Mercês, do

Chafariz, do Rosário, das Forras, do Sol e dos cemitérios da Matriz de Santo Antônio e

da Capela de Nossa Senhora das Mercês, através de iniciativa de Maria do Carmo

Nabuco e financiamento da Embratur, executados partir de 1980, quando concluiu-se

os trechos de calçamentos dos largos das Mercês e do Sol e parte da Rua Henrique

Diniz, utilizando-se ainda das pedras da Serra de São José. O Largo do Rosário

recebeu calçamento com pedras retangulares São Tomé.

O prefeito Mauro Barbosa (administração 1986-1988) fez o calçamento do entorno da

Rodoviária, conectando as ruas Ministro Gabriel Passos e Custódio Gomes em

poliédrico. Na gestão do prefeito Nilzio Barbosa (2009-2012) realizou-se a substituição

de asfalto por calçamento em paralelepípedo de trecho das ruas dos Inconfidentes e

Henrique Diniz. Depois, vários trechos foram calçados nos bairros e logo asfaltados. O

Governo do Estado Minas Gerais (administração Itamar Franco, 1999-2003) realizou o

calçamento da Estrada Velha, ligando Tiradentes a Santa Cruz de Minas e para tal

utilizou-se de paralelepípedo. (Cruz, 2009, s/nº)

Foram poucas as localidade mineiras setecentistas que conseguiram manter seus

calçamentos originais. A primaz de Minas, a cidade de Mariana, teve reurbanização

em consequência das inundações do Ribeirão do Carmo, foi “reformada” através

projeto urbanístico atribuído ao oficial sargento-mor e engenheiro José Fernandes

Pinto Alpoim. (Baeta, 2014, p.195) A reurbanização da antiga Vila de Nossa Senhora

do Carmo visava outro objetivo:

Com a ideia de se levantar na vila uma “nova cidade” – sede do Bispado

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Da capitania –, várias intervenções de cunho arquitetônico e urbanístico foram

estimuladas a procurar torná-la condigna de sua nova condição (...) (Bastos,

2014, p.182)

O calçamento em pé-de-moleque da área de preservação máxima de Mariana está

preservado e destaca-se o trecho em frente ao antigo seminário e Capela da Boa

Morte. (Queiroz, Machado, 2008, p.35) Ainda no Serro, as ruas do núcleo antigo,

também mantém o calçamento em pé-de-moleque. (Queiroz, 2010, p.69) Outras

localidades, como Ouro Preto, Congonhas e Sabará mantêm apenas alguns trechos

de calçamentos antigos. Diamantina e Tiradentes tiveram os seus originais

substituídos, mas os atuais são compatíveis com seus núcleos, pois são de pedra e

mantêm estreito diálogo com o conjunto arquitetônico. O calçamento de Tiradentes

tem características únicas, com grandes lajes de pedra, irregulares, formadas pelas

areias das ondas sedimentadas e constituem, cada uma, um documento geológico.

É importante registrar, ainda, que após a conclusão das obras do calçamento, a

retirada de pedras da Serra de São José continuou. Elas foram utilizadas para pisos e

revestimentos de paredes nas cidades da região. A Capela de Nossa Senhora da

Saúde, de Águas Santas teve sua fachada toda revestida de pedra. Outro exemplar

interessante é o antigo Colégio São João4, que tem seus amplos corredores com

barrados com pedras da Serra de São José.

Como a jazida das pedras era localizada no alto da Serra de São José teve a

exploração encerrada, porque a área foi transformada em uma unidade de proteção

ambiental5. Consequentemente, as pedras do calçamento de Tiradentes precisam de

cuidados especiais, pois não haverá mais como substituí-las por material pétreo com a

mesmo origem ou qualidade.

O calçamento de Tiradentes constitui um dos elementos que caracterizam e

identificam o lugar. O pesquisador Flávio de Lemos Carsalade, em sua obra A pedra e

o tempo – arquitetura como patrimônio cultural conceitua o “lugar” com personalidade

única e propícia para o desenvolvimento de sentimento de pertencimento, destacando:

4 Atual Campus Dom Bosco, da UFSJ – Universidade Federal de São João del-Rei. 5 N.A. - A Serra de São José foi transformada em APA – Área de Proteção Ambiental São José, através do

Decreto Nº 30.934, de 16 de fevereiro de 1990, e, por tornar-se uma área protegida, ali foi proibida a retirada de pedras. Posteriormente, foi criada a RVS – Refúgio Estadual de Vida Silvestre Libélulas da Serra de São José, Decreto Nº 43.908, de 5 de novembro de 2004, reforçando ainda mais a necessidade de se preservar a área.

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V SEMINÁRIO IBERO-AMAERICANO ARQUITETURA E DOCUMENTAÇÃO BELO HORIZONTE – DE 24 A 26 DE Outubro de 2017

É parte inerente da existência e da presença do homem sobre a terra a

qualificação especial dos seus lugares. Ao qualificá-los, toma posse deles em

seu nome e no nome do grupo que representa, criando condições para que

estes e seus descendentes se orientem, se identifiquem e reconheçam aquele

lugar como seu berço e sua vida, como seu patrimônio, portanto. (Carsalade,

2014, p.177)

As gerações que cresceram e conviveram no espaço urbano de Tiradentes,

identificavam-se com o calçamento. Muitos tinham sua pedra favorita, a de brincar, a

de cuidar, a de dialogar. Conforme diversos relatos de moradores da Rua da Câmara

e da Rua Direita.

Infelizmente, com o passar do tempo e a falta de manutenção, a situação de

conservação do calçamento do centro histórico ficou novamente crítica. Algumas

obras comprometeram sua preservação, principalmente quando ocorreram aberturas

para obras realizadas pela Cemig, Copasa, Telemig e por último para a instalação da

rede coletora de esgoto. Para cada obra, o calçamento foi aberto e fechado sem os

cuidados devidos. Consequentemente, foi perdendo suas características. Além das

obras, tanto as edificações do núcleo antigo quanto o calçamento são impactados

constantemente com o trânsito de veículos, inclusive os pesados. Existe legislação

municipal proibindo a circulação desses veículos na área de preservação máxima,

desde a década de 1980, porém nunca foi cumprida por parte da prefeitura e da

PMMG-Polícia Militar de Minas Gerais. Nas duas últimas décadas, a cidade sofreu

significativas transformações, uma delas foi o crescente trânsito de caminhões para

abastecer os diversos serviços turísticos.

Vale ressaltar, ainda, que as pequenas intervenções de manutenção, realizadas por

operários da prefeitura, sempre foram realizadas de maneira inadequada, as vezes

quebrando as lajes ou inserindo elementos pétreos diversos.

A última obra do calçamento de Tiradentes

Duremos na duração da obra,

já que em nós mesmos

é tão pouco o que duramos.

Matias Ayres, Arquiteto e Historiador

Portugal, 1728

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O BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social sempre realizou

obras de restauro de monumentos históricos pelo Brasil afora, mas decidiu realizar um

case, ao invés de fazer apenas uma obra, recuperar os principais elementos

arquitetônicos da localidade e dotá-la de instrumentos que pudessem contribuir para

sua proteção e manutenção. Após a avalição de cidades potenciais do país,

Tiradentes foi uma das eleitas para receber o case. A escolha foi por alguns motivos,

dentre eles o fato de abrigar um conjunto arquitetônico ainda preservado e ser um polo

indutor do turismo.

Na proposta do case, foram realizadas obras de restauro das capelas de São

Francisco de Paula, de Nossa Senhora do Pilar, de São João Evangelista, de Nossa

Senhora das Mercês e ainda Santuário da Santíssima Trindade e capelas dos Passos

da Paixão, essas últimas ainda em andamento. Foi desenvolvido o Projeto de

Educação Patrimonial e elaborado o Plano Diretor Participativo – sob a coordenação

da Fundação João Pinheiro. Foi implantado o Museu da Liturgia e houve apoio,

também, para os museus Casa Padre Toledo e de Sant’Ana. Essa primeira parte do

case foi realizada diretamente com os proponentes dos projetos e o apoio financeiro

do BNDES.

A segunda parte foi realizada através de empréstimo do Governo do Estado de Minas

Gerais (administração Antônio Anastasia, 2011-2014) ao BNDES, com os recursos

repassados à prefeitura, que executou as obras, com o acompanhamento do IPHAN.

Foram as seguintes obras: canalização do esgoto sanitário do Ribeiro de Santo

Antônio, instalação de iluminação externa dos principais monumentos históricos e

iluminação subterrânea com lampiões nos becos antigos, restauração do Chafariz de

São José, a aquisição de um novo caminhão-auto-bomba para o Corpo de Bombeiros

Voluntários de Tiradentes e a intervenção no calçamento da cidade.

Foram realizadas muitas obras e atividades tanto na primeira quanto na segunda parte

do case, mas nosso objeto de interesse aqui é o calçamento de Tiradentes.

Assim que começaram as intervenções no calçamento, na Rua da Santíssima

Trindade, iniciamos a produção de um documentário fotográfico, ao longo da execução

de toda obra foram feitas mais de cinco mil imagens, registrando vários aspectos,

como a remoção do calçamento, transporte das pedras, armazenamento. Depois, a

preparação da base, os materiais adicionados, o manejo das pedras, o maquinário e

as ferramentas utilizados, também o “fazer” dos trabalhadores.

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Segundo o pesquisador Marco Antônio Penido Rezende, é importante produzir uma

memória das técnicas construtivas, incluindo as “dimensões materiais e imateriais” que

envolvem a obra. E foi assim que tal documentação procedeu, registrando também o

“fazer” e o “como fazer”, com seus instrumentos adequados. E o pesquisador ainda

salienta:

Este é um primeiro aspecto de registro e documentação importante das

técnicas construtivas históricas: compreender que a conservação dos

monumentos passa pela preservação de seus sistemas construtivos;

compreender que mudar as técnicas em que o monumento foi construído

significa mudar parte importante de sua própria constituição, o que terá

significado irreversível para as próximas gerações. (Rezende, 2011, p.323)

Recentemente, autores vêm destacando a necessidade de se registrar o “fazer” e um

deles é o pesquisador Leonardo Barci Castriota, que refere-se à própria Constituição

Federal, no Art. 216, II, “os modos de criar, fazer e viver”; ele destaca os bens

imateriais, como as “formas de expressão” e os “modos de criar, fazer e viver” que são

manifestações eminentemente intangíveis. (Castriota, 2009, p.218)

Foi a partir desses preceitos que realizamos a documentação e comparando com as

informações e fotografias da obra do calçamento, realizada a partir década de 1950,

passamos a analisar e constatar que equívocos ocorriam com a última intervenção no

bem cultural, protegido por ser um dos elementos mais característico do Conjunto

Arquitetônico e Urbanístico de Tiradentes, tombado pelo IPHAN, processo 66-T-38 e

datado de 20 de abril de 1938. Desde a primeira ação, a retirada das pedras com o

uso de grandes máquinas (FIGURA 3), já estava errado, pois com esse manejo muitas

se quebraram. As pedras foram levadas para o terreno, onde esteve instalado um

escritório da empresa executora, a Suprema Engenharia Empreendimentos e

Comércio Ltda. Houve rebaixamento do nível do piso da rua e ocorreu movimentação

da terra, sobre ela adicionado cimento e após houve revolvimento. Em seguida,

fizeram uma cama de areia grossa, com cerca de 30 a 40 centímetros, para receber

novamente as pedras. No primeiro trecho refeito, a rua ficou sem o alinhamento

central, que divide a rua para o direcionamento em esquerda e direita.

Desde os primeiros metros de calçamento realizados, constatamos a maneira

equivocada, pois as pedras não ficaram assentadas devidamente sobre a areia. Os

próprios calceteiros e ajudantes disseram que jamais daria certo. Ocorreram muitas

críticas, mas todo o calçamento foi executado desse modo. Uma das primeiras

indignações registradas foi por se quebrar as grandes lajes com marreta, para facilitar

o manejo. O relato de Nelson José da Costa, Nelson Firmino, é significativo:

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Foi um sofrimento, pegar pedra por pedra, nos braços, colocar sobre o

caminhão e ao descarregar, também, uma por uma, para que o calçamento

ficasse com as pedras grandes, bonitas, tudo certinho. Só tínhamos uma

ferramenta para lidar com elas, a alavanca de ferro. Suamos muito, quase

acabamos com nossas mãos, braços e colunas. Foi muito trabalho para trazer

as pedras inteiras. E agora vocês vêm com tratores e marretas quebrar as

pedras que trouxemos com tanto cuidado. Isso é um crime contra o nosso

patrimônio! (Costa, 2016, depoimento)

Em diversos trechos a pedra original foi substituída por lajes São Tomé, pedras muito

mais finas, porosas, claras e bem mais frágeis. Em algumas ruas, como a da

Santíssima, quase todas as pedras foram substituídas, o mesmo ocorreu na Rua da

Câmara. Muitas delas desapareceram misteriosamente. Em trecho da Rua Henrique

Diniz, próximo à Ponte de Pedra, o calçamento de lajes foi substituído por

paralelepípedo, o mesmo feito com a antiga Rua da Praia, atual Rua Ministro Gabriel

Passos, que tinha calçamento poliédrico, substituídas por paralelepípedo. As pedras

retiradas dessas ruas também desapareceram.

O resultado não poderia ter sido pior, com as águas pluviais das primeiras chuvas, as

pedras soltaram e foram carreadas. Soltas sobre o banco de areia, prejudicaram

drasticamente a mobilidade, principalmente de veículos pequenos, sendo que alguns

até ficaram atolados na cama de areia.

Em alguns trechos a empresa refez o calçamento algumas vezes, mas as pedras

continuaram soltas. Na Rua da Santíssima Trindade, em trechos, foram removidas

pela prefeitura, porque estavam soltas. A circulação de pedestres e de veículos

automotores tornou-se perigosa. A rua ficou com piso de areia que causa problemas

aos moradores, devido à dispersão de poeira.

Na Rua da Câmara, foi feita tubulação para coleta de água pluvial, pela mesma

empresa, porém algumas bocas de lobo ficaram com suas aberturas acima do nível da

rua. Ou seja, a água pluvial só cairá na tubulação quando correr maior volume de

água.

A obra do calçamento de Tiradentes acabou tornando-se um expressivo equívoco,

pois desde o início, os principais envolvidos: prefeitura, IPHAN e a empresa ignoram a

documentação existente sobre o calçamento. Não tiveram a sensibilidade para buscar

informações junto aos moradores e especialmente com os trabalhadores que

participaram da sua construção, a partir de 1959.

Não houve acompanhamento de um arqueólogo, os trechos do calçamento original, do

século XVIII, com o remanejamento da terra, foram descobertos; antigos fragmentos

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da tubulação de água potável da Serra de São José, que abastecia a cidade, também

encontrados. Porém, no meio de tantos desencontros, desinformação e falta de

cuidado, foram ignoram os achados.

A empresa Suprema Engenharia levantou acampamento e foi embora, a cidade ficou

com um sério problema, um calçamento com suas pedras soltas, colocando em risco a

mobilidade (FIGURA 4).

Para agravar a situação, o trânsito de veículos pesados continua no centro antigo.

Mesmo depois da obra, a circulação de caminhões contribui acentuadamente para o

comprometimento do calçamento e do conjunto arquitetônico, com a trepidação que

causa rachaduras nas edificações. As obras realizadas pela empresa Suprema

Engenharia custaram R$4.347.117,47, (quatro milhões, trezentos e quarenta e sete

mil, cento e dezessete reais e quarenta e sete centavos) – incluindo o calçamento, o

restauro do Chafariz de São José e o encanamento do esgoto sanitário no Ribeiro

Santo Antônio. Para assegurar os investimentos realizados pelo BNDES, uma das

medidas para a conservação do calçamento deveria ser a expressa proibição da

circulação de veículos no núcleo de preservação máxima de Tiradentes.

CONCLUSÃO

Para a realização de obras em núcleos antigos, torna-se necessário pesquisar sobre a

memória do bem que receberá intervenção. É preciso considerar que além dos

arquivos, há outras maneiras de se obter informações, especialmente junto aos

moradores. Torna-se elementar considerar as experiências dos modos de “fazer”, pois

podem nos revelar informações significativas. Torna-se fundamental obter dados para

melhor compreender sobre os materiais utilizados, sua origem, seu manejo, sua

durabilidade, bem como as técnicas utilizadas para a execução. Tudo isso compõe um

conjunto elementar para a presente obra, a conservação e as futuras intervenções no

bem cultural – esses são os aspectos que estruturam a imaterialidade do patrimônio.

REFERÊNCIAS

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novas povoações em Minas Gerais na primeira metade do século XVIII. Florianópolis:

Editora da UFSC, 2014.

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FIGURA 1 - Rua Direita, Tiradentes, com o calçamento original. Década de 1950.

Fotografia do Acervo da EAU – Laboratório de Fotodocumentação Sylvio de

Vasconcellos, UFMG, Belo Horizonte-MG.

FIGURA 2 - Largo da Santíssima Trindade, Tiradentes, construção do calçamento com lajes da

Serra de São José, pela equipe da prefeitura. Década de 1970. Acervo Gilson Resende.

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FOTOGRAFIA 3 - Rua Direita, Tiradentes. Obra de intervenção no calçamento,

realizada pela Suprema Engenharia e Comércio Ltda., 2016. Fotografia do autor.

FOTOGRAFIA 4 - Trecho do calçamento da Rua Santíssima Trindade, Tiradentes,

realizado pela Suprema Engenharia Empreendimentos e Comércio Ltda, após das

primeiras chuvas, 2016. Fotografia do autor.