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1 VIA CAMPESIA DO BRASIL O CAMPESIATO O SÉCULO XXI POSSIBILIDADES E CONDICIONANTES DO DESENVOLVIMENTO DO CAMPESINATO NO BRASIL CURITIBA/BRASÍLIA, OVEMBRO DE 2004

o Campesinato No Seculo Xxi

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VIA CAMPESIA DO BRASIL

O CAMPESIATO O SÉCULO XXI POSSIBILIDADES E CONDICIONANTES

DO DESENVOLVIMENTO DO CAMPESINATO NO BRASIL

CURITIBA/BRASÍLIA, OVEMBRO DE 2004

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IDICE Apresentação.....4 Prefácio.....7 1. Camponeses no capitalismo.....9

1.1. A controvérsia central.....9 1.2. Uma controvérsia no Brasil.....14 1.3. O fim do campesinato?.....17 1.4. Raízes históricas do campesinato brasileiro.....19 1.5. As contradições no campo brasileiro.....38

2. O campesinato no Brasil.....55

2.1. Diversidade do campesinato..... 55

2.1.1. Multiplicidade de situações.....55 2.1.2. O “Lavrador Nacional”.....56 2.1.3. A diversidade cultural na fronteira.....63 2.1.4. Processos de territorialização e movimentos sociais na Amazônia.....70 2.1.5. O campesinato paraense.....78 2.1.6. Os pescadores de pequena escala no Pará.....86 2.1.7. Territorialidades tradicionais e perspectivas de sustentabilidade nos

Cerrados.....88 2.1.8. O Eldorado do Brasil Central: ambiente, democracia e saberes populares no

Cerrado.....102

2.2. A atualidade do campesinato no Brasil.....108 2.2.1. Modo de ser e de viver: uma utopia camponesa?.....108 2.2.2. Quem são os atuais camponeses?.....120 2.2.3. Quantos são os camponeses?......121

3. Repensando o referencial teórico do campesinato.....131

3.1. Elementos para uma teoria econômica do campesinato.....131 3.2. Dimensão sócio-política e cultural.....138

3.3. Dimensão agroecológica.....142 4. A insustentabilidade do atual modelo econômico e tecnológico da agricultura

brasileira.....144 4.1. Limites e contradições do modelo de desenvolvimento rural dominante.....144

4.1.1. A hegemonia do agronegócio burguês.....144 4.1.2. Produção integrada: um leque de contradições e possibilidades.....148 4.1.3. A limitação do modelo convencional da “revolução verde”....160 4.1.4. Impasses políticos e ambientes do modelo convencional dominante....161 4.1.5. A artificialização dos agroecosistemas.....164 4.1.6. Barbárie e modernidade....164

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4.2. Insustentabilidade sócio-ambiental.....167

4.2.1. A agricultura brasileira ontem e hoje.....167 4.2.2. Erosão genética.....180 4.2.3. Impactos pela expansão da soja.....194

4.2.4. Impactos dos insumos agrícolas.....229 4.2.4.1. Agrotóxicos e herbicidas.....229 4.2.4.2. Ameaça tóxica invisível......232 4.2.4.3. O impacto da cultura do tabaco....235

4.2.5 . Impactos sócio-ambientais nos Cerrados.....244 4.2.5.1. A modernização parcial dos latifúndios dos Cerrados .....244 4.2.5.2. O Vale do Jequitinhonha.....249 4.2.5.3. Trajetórias das populações tradicionais.....253

4.3. Impactos no semi-árido nordestino.....259 4.3.1. Crítica ao modelo de desenvolvimento do semi-árido.....259 4.3.2. A presença histórica do campesinato no nordeste brasileiro.....263 4.3.3. Modernização e pobreza na Paraíba.....270

5. A insustentabilidade do modelo de gestão da água doce.....278

5.1. A questão da água.....278 5.2. Energia à serviço da exploração capitalista....285 5.3. Usurpação do direito à água doce.....293

6. A democratização do desenvolvimento rural....296 6.1. Economia camponesa: alternativa vigorosa de desenvolvimento rural.....296 6.2. Transição democrática socialmente includente e ecologicamente sustentável...298

6.3. Democratizar o desenvolvimento rural.....303 6.4. Perspectivas do campesinato no Brasil.....307 LITERATURA CITADA ....309

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APRESETAÇÃO

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PREFÁCIO Está-se entrando no século XXI, segundo o calendário hegemônico no mundo ocidental, e os camponeses não dão sinais de que poderão deixar de marcar presença ativa nas formações econômicas e sociais em todas as partes do mundo. Com maior ou menor relevância econômica, social e política, e se reproduzindo socialmente sob inúmeras formas de vida social e de apropriação da natureza, os camponeses afirmam e reafirmam seus modos de ser e de viver, marcando diferenças com relação aos estilos de vida dominantes e com as formas de conceber as suas relações sociais de produção e aquelas com a natureza. Porque estão sempre presentes na história, os camponeses têm sido objeto das mais diversas interpretações teóricas e de um sem número de predições sobre o seu destino. A ampla gama de paixões políticas controversas que desperta o seu modo de ser e de viver nos vários períodos do desenrolar da história moderna até nossos dias, em particular a partir do desenvolvimento do modo de produção capitalista, exige de todos os interessados no seu conhecimento e na sua transformação que se resgate continuadamente os pontos teóricos mais polêmicos com respeito à sua reprodução social.

Ao mesmo tempo, sua presença ativa nas sociedades capitalistas sugere que o desenvolvimento rural deva ser compreendido como um processo histórico e social marcado pela ampla democratização da renda e da riqueza rurais que se expresse na multiplicidade dos modos de apropriação da natureza e de relações sociais de produção. Ainda que hegemônica a concepção de mundo capitalista é insuficiente e imprecisa para dar conta da interpretação da dinâmica da realidade camponesa e para a formulação de propostas para a consolidação do campesinato no Brasil.

No entanto, o modelo econômico e tecnológico dominante no país, que incrementa a

reprodução ampliada do capitalismo no campo, tem sido socialmente excludente, degradador do meio ambiente, concentrador da propriedade privada da terra e demais recursos naturais como florestas, biodiversidade e da água doce, assim como gerador de dependência da economia rural brasileira perante os capitais estrangeiros, em especial das empresas oligopolistas internacionais relacionadas com o agronegócio burguês.

Do ponto de vista social, esse modelo econômico e tecnológico dominante na agricultura brasileira não apenas destrói o campesinato como induz ao êxodo rural sem que esses camponeses e os trabalhadores rurais assalariados encontrem possibilidades efetivas de reprodução de suas vidas na economia industrial e de serviços nas cidades. As possibilidades de desenvolvimento e de ampliação do campesinato no Brasil enfrentam um condicionante estrutural básico: os impactos sociais, econômicos, políticos, culturais e ambientais do atual modelo econômico e tecnológico para o setor agropecuário e florestal. Esse modelo econômico tem impedido, ademais, a realização de uma reforma

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agrária ampla e massiva que além de ampliar o campesinato no país proporcionaria a redução do êxodo rural e da conseqüente tensão econômica e social nas áreas urbanas. Este documento objetiva, por um lado, colocar em debate elementos teóricos que fundamentam as possibilidades e necessidades de se desenvolver e ampliar o campesinato no Brasil, assim como evidencia, por outro lado, os impactos indesejáveis do atual modelo econômico e tecnológico dominante na agricultura que impedem estruturalmente a afirmação camponesa como paradigma de democratização da renda e da riqueza rurais. Num outro sentido, este documento apresenta metas de desenvolvimento e crescimento do campesinato a serem alcançadas em médio prazo (10 anos) e sugestões gerais de estratégias para alcança-las.

A abordagem teórica aqui sugerida, conforme apresentada no capítulo 3, adiante,

tem como referência uma releitura econômica contemporânea das teorias de Chayanov no contexto do capitalismo atual, assim como complementações nas dimensões sócio-política e cultural e agroecológica.

--------x-------- Este documento teve como base alguns outros: dois documentos anteriores1 elaborados para debate interno na Via Campesina do Brasil e capítulos de diversos documentos de vários autores que têm estudado o campesinato sob as mais diversas perspectivas, além, evidentemente, de novas redações para darem coerência ao conjunto. Em decorrência dessa reunião de parte de textos anteriores, textos de vários autores e novas redações, optou-se pela citação do número de tabelas e quadros seção por seção, isto é, a numeração de tabelas e quadros não é seqüencial em todo o documento. Já as notas de rodapé têm numeração seqüencial. A literatura citada em algumas seções encontra-se completa na nota de rodapé e para a maioria dos textos no cap. Literatura Citada no final do documento. É necessário ressaltar que a responsabilidade pela seleção de textos aqui reproduzidos de autores que se dispuseram em ceder suas obras, e a sua inserção num ou outro capítulo deste documento, é de inteira responsabilidade da Coordenação Técnica da Via Campesina do Brasil indicada para a elaboração deste documento para estudo e debate. Destarte, é necessário ressaltar que os autores de textos aqui reproduzidos podem não concordar inteiramente com a totalidade das idéias expostos.

1 Via Campesina do Brasil (2004). Um referencial para o campesinato no Brasil (texto para debate). Curitiba, maio, mimeo 95 p. e Estratégias para o desenvolvimento do campesinato no Brasil (texto para debate) (2004). Brasília, junho, mimeo 37 p.

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1. CAMPOESES O CAPITALISMO 1.1. A controvérsia central

Há, uma passagem na obra “Marxismo e Agricultura: o Camponês Polonês”, de Jerzy Tepicht (1973), que provoca de imediato a reflexão e estimula o debate sobre a atualidade do campesinato. Tepicht (idem: 17-18) afirma:

“(...) Nós falaremos aqui da economia camponesa como de um modo de produção, este termo sendo tomado num sentido próximo daquele ‘marxiano’2, ou seja, o conjunto coerente e distinto de forças produtivas e relações de produção entre os homens. Se nossa acepção não é senão ‘próxima’ daquela de Marx, é que de fato Marx e seus numerosos discípulos aplicam este termo só ocasionalmente à economia, e por isso (:) é utilizado junto àquele de formação econômica, conjunto que deve conter toda uma estrutura de classe, com uma classe dominante na escala da sociedade global, e toda uma superestrutura, sobretudo política. Ora, o modo de produção camponês, tal como nós o compreendemos aqui, não é gerador de uma formação particular, ele se incrusta numa série de formações, ele se adapta, interioriza a seu modo as leis econômicas de cada uma delas e deixa, ao mesmo tempo, com maior ou menor intensidade, em cada uma delas a sua marca. É aí que reside, na nossa opinião, o segredo da surpreendente longevidade que inspiraram as predições sobre a sua perenidade. A maior parte dos marxistas prediz, ao contrário, o sabemos, uma decomposição rápida (...)

(...) mas seu modo de inserção no capitalismo é particular: inclusive no seu sistema

de circulação sangüínea, o mercado, ela [forma de vida social]3 continua a amadurecer, depois a envelhecer como um ser à parte, com seus próprios princípios de existência, que ela transporta mesmo no seio das economias socialistas, tais como elas se apresentam ao menos até aqui. Ela forma no seio destas economias um setor econômico ‘não como os outros’, o que admite explicitamente ou implicitamente os princípios de organização, de trocas intersetoriais, de direção planificada --- a despeito de todas as tendências desta à uniformização.” A aludida predição dos marxistas, para a decomposição do campesinato, anteriormente referida por Tepicht, pode ser aclarada pelos comentários de Costa (1994: 7-11):

“Marx era particularmente pessimista em relação ao futuro do campesinato no capitalismo. Sua análise, para aí desembocar, supõe que a relação campesinato/capitalismo far-se-ia sob condições particulares estabelecidas tanto no plano da distribuição quanto no plano da troca enquanto instâncias mediadoras distintas da produção e do consumo.”

2 Conforme Tepicht (nota de rodapé 1 à p.17): “nós leremos neste livro (a expressão) ‘marxiano’ (marxien) cada vez que se trata de sublinhar que um pensamento, fórmula ou abordagem é do próprio Marx; ‘marxista’ quando a distinção entre Marx e seus discípulos não nos parece necessária.” 3 As anotações entre colchetes que aparecerão daqui em diante são do organizador deste documento.

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“No plano da distribuição, a forma de produzir camponesa caracterizar-se-ia por entregar de graça parte do trabalho excedente por ela produzida para a sociedade (Marx, 1985: 923-924). Tal afirmativa funda-se na constatação de uma especificidade dos camponeses quando comparados aos empresários capitalistas: eles não param de concorrer entre si enquanto o lucro e a renda da terra estão sendo corroídos por preços de mercado sistematicamente abaixo do valor, mantendo-se produtivos mesmo quando o seu rendimento equipara-se apenas ao salário médio de mercado, ou mesmo, se situa abaixo deste (idem: 923) Tal forma de produzir não poderia, assim, absorver os progressos tecnológicos necessários ao enfrentamento das empresas capitalistas, compulsivamente inovadoras na busca concorrencial do lucro (ibidem: 924) (...) No plano da distribuição, pois, estabelece-se uma exploração não localizável, sistêmica (...)”

“(...) No plano da troca, Marx enfatiza a mediação do capital mercantil e usurário

como bloqueadora do desenvolvimento técnico dos camponeses (...)” “[As dificuldades das unidades camponeses quanto ao investimento e, portanto,

quanto à sua capacidade de permanência, estão relacionadas com o aumento ou diminuição da taxa de lucro do capital mercantil assim como com a maior ou menor deterioração das relações de troca, esta expressa pela relação entre o valor médio de mercado do produto camponês e uma ponderação dos valores médios dos produtos industriais consumidos pelos camponeses]4.”

“(...) A teoria de Marx, nesta matéria [problemas do campesinato no capitalismo],

poderia ser resumida como segue: acossadas por suas contradições mediante o mercado (concorrência além do limite que permitiria a incorporação na unidade de produção camponesa do sobre-trabalho por ela gerado) e exauridas pelas formas ‘anti-diluvianas’ de capital as estruturas camponesas sucumbiriam inexoravelmente, uma vez que sua produtividade, pela ausência de formação de capital, tenderia a cair continuadamente, ou, na melhor das hipóteses, se estável, tenderia a se confrontar com uma produtividade média crescente para o conjunto da produção (derivada tão somente da cada vez mais presente produção capitalista) aumentando inexoravelmente ω (relação que mede a desproporção entre produtividade local e nacional) e a exploração α (taxa de exploração tendencial maior que zero para um produtor individual) das estruturas camponesas. Sob o capitalismo, a produção camponesa constituiria, destarte, um sistema sem sustentabilidade, economicamente inviável.” Essas interpretações de Marx sobre o campesinato no capitalismo apoiadas no O Capital (edição do vol. I em 1867) foram pontualmente repensadas pelo próprio Marx em relação à comuna russa em 1881. Em 1881, Marx, em carta a Vera Zasúlich, embatucou (na expressão de Ianni, 1985: 5) quando esta lhe indagou (Zasúlich, in Marx, 1980a) sobre as alternativas do destino da “comuna russa” na via socialista. A resposta de Marx foi: “(...) Analisando a gênese da produção capitalista digo:

4 Esse parágrafo entre colchetes é uma leitura em prosa, realizada por Horacio Martins de Carvalho, de uma dedução matemática sobre a matéria realizada por Costa (1994:10)

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No fundo do sistema capitalista está, pois, a separação radical entre produtor e meios de produção... a base de toda esta evolução é a expropriação dos camponeses5. Todavia, não se realizou de uma maneira radical senão na Inglaterra...Mas, todos os demais países da Europa ocidental vão pelo mesmo caminho. (O Capital, edição francesa, p. 316 A ‘fatalidade histórica’ deste movimento está, pois, expressamente restrita aos países da Europa ocidental. O por quê desta restrição está indicado nesta passagem do capítulo xxxii: A propriedade privada, fundada no trabalho pessoal...vai ser suplantada pela propriedade privada capitalista, fundada na exploração do trabalho de outros, no sistema assalariado (op. cit., p. 340). Neste movimento ocidental se trata, pois, da transformação de uma forma de propriedade privada em outra forma de propriedade privada. Entre os camponeses russos, ao contrário, haveria que transformar sua propriedade comum em propriedade privada. A análise apresentada no O Capital não dá, pois, razões, nem em prol nem contra da vitalidade da comunidade rural, mas o estudo especial que fiz sobre ela, e cujos materiais fui buscar em fontes originais, me convenceram de que esta comunidade é o ponto de apoio da regeneração social na Rússia, mas para que possa funcionar como tal será preciso eliminar primeiramente as influências deletérias que a acossam por todas as partes e, em seguida, assegurar-lhe as condições normais para um desenvolvimento espontâneo.” Marx e Engels (1980: 60-61). Para Costa (1994: 6-7) “Uma das questões mais controversas no debate sobre o campesinato no capitalismo refere-se à sua capacidade de permanência. O debate, desde mais de um século, polariza-se nas posições que defendem, de um lado uma incapacidade estrutural das unidades camponesas de internalizarem sobre-trabalho (...) De outro lado vê-se na unidade de produção familiar uma microeconomia particular, responsável por uma propensão especialmente alta aos investimentos e, portanto, alta capacidade estrutural de internalização de inovações.” “A produção econômica de Marx é a matriz da primeira posição6, enquanto as teorias do russo Chayanov encontram-se na base da segunda (...)” Costa (1994: 11-12) com relação a Chayanov (1923) comenta: “Ao contrário de Marx, cuja perspectiva parte do sistema econômico para a análise da relação campesinato/capitalismo, e dos que o sucedem insistindo na dominância das mesmas tendências, a teoria chayanoviana do campesinato parte de uma perspectiva microeconômica. Enquanto no primeiro caso se chegava à visualização de unidades produtivas cujo comportamento específico (quando comparado ao comportamento capitalista) levaria a resultados homogêneos (a não internalização do sobre trabalho...), para a perspectiva chayanoviana o caráter específico da unidade camponesa leva a uma

5 As expressões assinaladas em itálico e as entre acentos constam do texto original. 6 Posição de Marx comentada sucintamente em parágrafos anteriores.

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economia sem determinações derivadas das grandezas socialmente estabelecidas, seja do lucro seja da renda da terra, seja do salário. Partindo daí, Chayanov formula sua teoria do investimento camponês.” “Para Chayanov a família é o fundamento da empresa camponesa --- na sua condição de economia sem assalariamento, uma vez que é tanto o ponto de partida quanto o objetivo da sua atividade econômica. Como única fonte de força de trabalho a família é o suposto da produção, cujo objetivo nada mais é [que] o de garantir a própria existência. A unidade camponesa é, pois, a um só tempo unidade de produção e unidade de consumo e encerra, concomitantemente, as funções das esferas de produção e reprodução de tal modo que ‘(...) a família e as relações que dela resultam tem que ser o único elemento organizador da economia sem assalariados’ (Chayanov, 1923: 9) (...) Para a unidade camponesa, pois, não existe uma dimensão econômica que tenha que ser necessariamente atingida e que seja estabelecida por um rendimento socialmente determinado de cada unidade de trabalho aplicada --- como é o caso da empresa capitalista frente ao salário. Aí, a atividade econômica mínima terá que produzir valores pelo”. menos equivalentes ao conjunto dos salários pagos e cada trabalhador trabalhará necessariamente pelo menos até o ponto em que o rendimento das suas atividades cubra o preço de mercado da sua força de trabalho. Para a empresa camponesa, o que existe é um nível de atividade a ser necessariamente atingida que determina com que rendimento cada unidade de trabalho da família tem que contribuir. Em outras palavras: não pertence à realidade da produção camponesa um rendimento por unidade de trabalho que seja determinante, como o é, para a empresa capitalista, o rendimento correspondente ao salário enquanto grandeza socialmente determinada, mas, sim, um rendimento por unidade de trabalho determinado pelas necessidades anuais da família camponesa --- pelo caráter, pois, da empresa camponesa enquanto unidade de consumo.” É oportuno relembrar a observação de Archetti (1974) sobre a obra de Chayanov. “Esta escola discute, então, a necessidade de construir uma teoria que parta do suposto de que a economia camponesa não é tipicamente capitalista, portanto não se pode determinar objetivamente os custos de produção pela ausência da categoria ‘salários”. Desta maneira, o retorno que obtém o camponês após o final do ano econômico não pode ser conceituado como formando parte de algo que os empresários capitalistas chamam ‘lucro’. O camponês, ao utilizar a força de trabalho de sua família como a dele mesmo, percebe esse ‘excedente’ como uma retribuição ao seu próprio trabalho e não como um ‘lucro’. Esta retribuição aparece corporificada no consumo familiar de bens e serviços.” “O problema da modernização e tecnificação colocava, portanto, um conjunto de questões que deveriam ser resolvidas construindo uma teoria diferente da teoria da empresa capitalista. É a esta tarefa que Chayanov, a partir de 1911, vai dedicar toda sua obra.” (Archetti, op, cit.: 8)

Wolf comentando o dilema camponês, à luz das idéias de Chayanov, ressalta que “o

eterno problema da vida do camponês consiste, portanto, em contrabalançar as exigências do mundo exterior, em relação às necessidades que ele encontra no atendimento às necessidades de seus familiares. Ainda em relação a esse problema o camponês pode seguir

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duas estratégias diametralmente opostas. A primeira dela é incrementar a produção; a segunda, reduzir o consumo”.

“Se o camponês escolhe a primeira estratégia, deverá elevar o rendimento do trabalho às suas próprias custas, tendo em vista levantar a produção e o aumento da produtividade, com que entrará no mercado (...) A estratégia que se apresenta como alternativa é a de solucionar o problema básico através da redução do consumo. O camponês pode reduzir seu consumo de calorias restringindo sua alimentação apenas aos alimentos básicos; pode limitar suas compras no mercado ao essencial e, em vez disso, pode confiar tanto quanto possível na capacidade de seu grupo doméstico de produzir tanto os alimentos como os objetos necessários, sem precisar sair dos limites da sua terra (...)”.

“(...) Ao contrário do que dizem os clichês literários, os camponeses não se encontram estáticos, mas em permanente estado dinâmico, movendo-se continuadamente entre dois pólos em busca de uma solução para seu dilema fundamental.”

“A existência de uma vida camponesa não envolve meramente relação entre camponeses e não-camponeses, mas um tipo de adaptação, uma combinação de atitudes e atividades destinadas a sustentar o cultivador em sua luta pela sobrevivência individual e de toda a sua espécie, dentro de uma ordem social que o ameaça de extinção (...)” (Wolf, (1976: 31ss)

“Theodor Shanin (1982 e 1983) detectou nas análises sobre a dinâmica agrária russa

pré-revolução, problemas que, segundo ele, são constatados nas análises das presenças camponesas nas sociedades capitalistas em geral. As abordagens inclinar-se-iam a produzir visões reduzidas em dinâmicas necessariamente polares, apresentando as sociedades camponesas ou em dissolução por diferenciações sociais e econômicas produzidas pela penetração capitalista, ou em oposição a tal penetração. A primeira posição seria o resultado de um determinismo econômico e, a segunda, de um determinismo biológico.” (citado por Costa, 2000:101). As posições teóricas que poderiam configurar um ‘determinismo econômico’ nas relações entre o campesinato e o capitalismo tem sido resultados das leituras particulares sobre o campesinato nas obras clássicas de Marx, Engels, Lenin e Kautsky por seus discípulos e intérpretes.

“Além da redução economicista, Shanin alerta para o que chama de determinismo biológico. E, dado o problema empírico que aborda [dinâmica agrária russa pré-revolução], refere-se basicamente às abordagens lideradas por Chayanov para o caso russo. Contudo, há um outro approach clássico, não obstante mais recente, do poder de determinação da reprodução biológica da população na dinâmica agrária. Refiro-me a Esther Boserup e sua explanação sobre a relação entre intensidade do uso do solo e crescimento populacional.”

“Para Baserup, existiria uma seqüência rígida, uma trajetória de mudanças técnicas

difícil de transgredir na agricultura tradicional: ao cultivo de pousio longo, seguir-se-ia uma fase de cultivo com pousio arbustivo, sucedido por cultivo de pousio curto, cultivo anual e, finalmente, cultivos múltiplos (Boserup, 1987:13-28). Tal sucessão seria derivada da tensão

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gerada pela densidade populacional ---entendida como variável autônoma e incontornável. Tensão indispensável, dado que cada fase configuraria uma forma de uso do solo a exigir sempre mais esforço de cada trabalhador para o mesmo resultado em termos reais, embora apresentem pari passu produtividade por área decrescente.”

“As proposições teóricas de Chayanov (1974; Costa 1989 e 1995) fornecem os

fundamentos de uma tal generalização, partindo da família e seus fundamentos reprodutivos. A dinâmica demográfica é, aqui, endógena ao fundamento estrutural da realidade agrária baseada no campesinato, constituindo fundamento para ações e decisões, inclusive quanto à inovação. Chayanov, contudo, não propõe a generalização que faz Boserup. Em compensação, muitos dos argumentos desta última sustentam-se tão somente se as hipóteses chayanovianas funcionarem. O que fazem, os dois autores, sob muitos aspectos, complementares.” (Costa, 2000: 112-113)

Uma controvérsia no Brasil

Aos fundamentos em debate nessa controvérsia geral sobre o campesinato e o capitalismo foram acrescidos, no Brasil, temas como o campesinato e os modos de produção, os resquícios do colonialismo e do escravagismo no campo, a expansão da fronteira agrícola, a reforma agrária e o papel do Estado na reprodução do campesinato.

É diversa e abundante, para os padrões acadêmicos e culturais dominantes, a

literatura que tratou dessas temáticas. Não é pertinente neste texto o resgate dessa literatura ou mesmo a indicação de algumas obras que abrangessem tal temática e as abordagens utilizadas para dar conta dessa complexa tarefa teórica e histórica.

O que se deseja ressaltar, no entanto, é que as leituras históricas da natureza e

caráter do campesinato no Brasil foram marcadas, em graus de intensidade distintos, pelo ‘determinismo econômico’, seja no âmbito da explicação teórica e da pesquisa acadêmica, seja no âmbito da ideologia dominante (concepção de mundo). A denominada vertente chayanoviana, ainda que presente em ‘locus’ particulares desses universos científico e ideológico, foi sendo gradativamente relegada a plano secundário pela pujança autoritária das idéias neoliberais, em especial desde meados da década de 80 do século XX.

Ainda que defendendo de maneira relativa a reprodução e a inserção do campesinato

na dinâmica da reprodução capitalista, as organizações e movimentos sociais e sindicais de mediação dos seus interesses, sejam localizados, sejam os universais (de classe e corporativos), não dedicaram parte de seus esforços institucionais para um aprofundamento dessa controvérsia sobre o campesinato no capitalismo. De maneira geral, e instigados pelas necessidades imediatas dos camponeses, canalizaram seus esforços para o âmbito da reivindicação e do protesto (Carvalho, 1992 e 2004) perante os governos. Mesmo os esforços políticos e ideológicos, assim como os empíricos, de luta pela terra pouco contribuíram para o aprofundamento dessa controvérsia geral aqui em apreço.

As idéias dominantes que repousavam nas concepções da diferenciação do

campesinato tornaram-se as idéias hegemônicas (envolvendo classes dominantes e

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dominadas). Essas idéias materializaram-se seja na concepção e prática das políticas públicas seja nas palavras de ordem por vezes reinantes nos movimentos e organizações sociais e sindicais do campesinato quando defendiam a “inserção competitiva da agricultura da familiar no mercado” (sic).

As próprias dificuldades de enquadramento conceitual das dezenas de formas

sociais de reprodução das unidades familiares produtoras e extrativistas autônomas no campo por parte tanto dos organismos governamentais como daqueles de mediação dos interesses dos camponeses são evidências de que novos esforços teóricos e empíricos necessitam ser realizados para se dar conta da atualidade e da diversidade camponesa no Brasil (ver cap. 2 e 3 adiantes). O referencial teórico hegemônico no Brasil sobre o campesinato tem como uma das origens conceituais (a outra poderá ser identificada como em Mendras, 1959 e 1976) na vertente expressa pelo determinismo econômico anteriormente comentado e que pode ser sintetizado na expressão de Ellis (1988: 234): “(...) camponeses são unidades familiares de produção agrícola caracterizadas pelo engajamento parcial em mercados incompletos...”, postura intelectual bastante distinta daquela assumida por Chayanov (1974), que tem como premissa a centralidade na reprodução da família camponesa. De acordo com (Costa, 2000: 116) “(...) Uma das justificativas do autor para o conceito e resultado que obtém de seu uso explicita o cerne das nossas divergências:

...[o caráter parcial da integração no mercado] serve para diferenciar os camponeses tanto das empresas capitalistas (baseadas no trabalho assalariado) como de pequenos produtores mercantis que operam em contexto de mercados de fatores e produtos plenamente formados ...(Ellis: 234) [e] ...no longo prazo, a dominância das relações capitalistas significa o desaparecimento dos camponeses, mas não, necessariamente, o fim das formas familiares de produção agrícola. (op. cit.: 238. Tradução de Costa)”

Ainda conforme Costa (op.cit. :116) “Trata-se de uma diferenciação fraca demais quando se refere a formas capitalistas de produção e forte demais quando se refere a diferenças da própria produção familiar rural. Fraca demais no primeiro caso, porque não expõe a constituição essencial das diferenças a ressaltar; forte demais no segundo caso, porque atribui capacidade distintiva a um fenômeno cuja determinação é, a rigor, traço de igualdade das formas de produção familiar rural.” “Diferentemente desta, a nossa proposição de centralidade da reprodução na percepção da especificidade camponesa permite diferenciar de forma vigorosa a unidade camponesa de outras estruturas presentes no agrário nas sociedades capitalistas, em particular da empresa capitalista. Empresas capitalistas supõem a centralidade no lucro como fundamento da racionalidade de seus componentes...” Num outro sentido, a hipótese de que o processo de redução da distinção entre o rural e urbano conduziria a “...um continuum dominado pela cena urbana, como já foi formulado no tocante à realidade européia (Lefebvre, 1972; Duby, 1984; Mendras, 1959;

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entre outros) e para a realidade brasileira (Graziano da Silva, 1996; Ianni, 1996; entre outros” (conforme Carneiro, 1998: 53) não corresponde à dinâmica de mudanças que se verificam em todo o território brasileiro. “(...) Ainda que os efeitos da expansão da ‘racionalidade urbana’ sobre o campo, provocada pela generalização da lógica do processo de trabalho e da produção capitalista intensificado pelos mecanismos da globalização não possam, de forma alguma, ser tratados com negligência, é precipitado concluir que tal processo resultaria na dissolução do agrário, e na tendência à transformação unificadora das condições de vida no campo.” (idem, op. cit.:53) “(...) Em contraposição, tanto à visão dicotômica quanto à do continuum, alguns autores sustentam a necessidade de proceder análises mais específicas do rural, centradas nas relações sociais que se desenvolvem a partir de processos de integração das aldeias à economia global. Nesta visão, esse processo, ao invés de diluir as diferenças pode propiciar o reforço de identidades apoiadas no pertencimento a uma localidade. Essa âncora territorial seria a base sobre a qual a cultura realizaria a interação entre o rural e o urbano de um modo determinado, ou seja, mantendo uma lógica própria que lhe garantiria a manutenção de uma identidade (Chamborredon, 1980 e Rambaud, 1969 e 1981).” (Carneiro, op. cit. 57) Tanto a visão economicista do campesinato como aquela da inexorabilidade da homogeneização urbana do espaço rural conduzem política e ideologicamente a compreensões que reafirmam a absorção/exclusão social do campesinato pela expansão e consolidação da empresa capitalista no campo. As expressões agricultura familiar, pequeno produtor rural e pequenos agricultores adquiriram desde o início da década de 90 conotações ideológicas, não porque imprecisas ou insuficientes para dar conta da diversidade de formas sociais de reprodução das unidades de produção/extração centradas na reprodução da vida familiar presentes e em desenvolvimento no país, mas, sobretudo, porque foram disseminadas no interior de um discurso teórico e político que afirmava a diferenciação e fim do campesinato em duas categorias: aquela que seria transformada em empresas capitalistas pelo desenvolvimento das forças produtivas e aquelas que se proletarizariam ou permaneceriam dependentes de apoios sociais das políticas públicas. A revivificação dos conceitos de camponês e campesinato propõe resgatar e afirmar a perspectiva teórica da reprodução social do campesinato na sociedade capitalista a partir das teses da centralidade da reprodução da família camponesa e da sua especificidade no contexto da formação econômica e social capitalista. Objetiva, deveras, abranger nesses conceitos a totalidade das formas de reprodução das unidades de produção familiar no rural brasileira.

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1.3. O fim do campesinato? 7 (...) O processo de formação do campesinato remonta à gênese da história da humanidade. Essa leitura histórica é importante para a compreensão da lógica da persistência do campesinato nos diferentes tipos de sociedades. A existência do campesinato nas sociedades escravocratas, feudal, capitalista e socialista é um referencial para entendermos o sentido dessa perseverança. A coexistência e a participação do campesinato nesses diferentes tipos de sistemas sócio-políticos e econômicos e a sua constância quando do fim ou crise dessas sociedades demonstram que essa firmeza precisa ser considerada como uma qualidade intrínseca dessa forma de organização social. Por essa razão, desde o século XIX, surgiram diversas teorias a respeito da existência e das perspectivas do campesinato no capitalismo. O desenvolvimento dessas teorias por meio de pesquisas e debates políticos acirrados constituiu três distintos modelos de interpretação do campesinato ou paradigmas. De modo objetivo, discutimos esses paradigmas e os denominamos a partir de suas perspectivas para o campesinato. O paradigma do fim do campesinato compreende que este está em vias de extinção. O paradigma do fim do fim do campesinato entende a sua existência a partir de sua resistência. O paradigma da metamorfose do campesinato acredita na sua mudança em agricultor familiar. Ainda é muito forte o paradigma do fim do campesinato. Esse modelo de interpretação do campesinato tem duas leituras. Uma está baseada na diferenciação gerada pela renda capitalizada da terra que destrói o campesinato, transformando pequena parte em capitalista e grande parte em assalariado. A outra leitura do fim do campesinato acredita simplesmente na inviabilidade da agricultura camponesa perante a supremacia da agricultura capitalista. O paradigma do fim do fim do campesinato tem uma leitura mais ampla que o anterior. Entende que a destruição do campesinato pela sua diferenciação não determina o seu fim. É fato que o capital ao se apropriar da riqueza produzida pelo trabalho familiar camponês, por meio da renda capitalizada da terra, gera a diferenciação e a destruição do campesinato. Mas, igualmente, é fato que ao capital interessa a continuação desse processo para o seu próprio desenvolvimento. Em diferentes condições, a apropriação da renda capitalizada da terra é mais interessante ao capital do que o assalariamento. Por essa razão, os proprietários de terra e capitalistas oferecem suas terras em arrendamento aos camponeses ou oferecem condições para a produção nas propriedades camponesas. O arrendamento é uma possibilidade de recriação do campesinato, outra é pela compra da terra e outra é pela ocupação da terra. Essas são as três formas de recriação do

7 Esta seção está constituída por extratos do documento Delimitação Conceitual de Campesinato de Fernandes, Bernardo Mançano (2004).

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campesinato. E assim se desenvolve num constante processo de territorialização de desterritorialização da agricultura camponesa, ou de destruição e recriação do campesinato. O que é compreendido como fim também tem o seu fim na poderosa vantagem que o capital tem sobre a renda capitalizada da terra, gerada pelo trabalho familiar. Ainda nesta compreensão, o campesinato é visto como uma importante forma de organização social para o desenvolvimento humano em diferentes escalas geográficas. A produção familiar provoca impactos sócioterritoriais contribuindo para o desenvolvimento regional e contribuindo com a melhoria a qualidade de vida. O paradigma do fim do fim do campesinato tem duas vertentes. Uma desenvolve ações para o crescimento do número de camponeses por meio de uma política de reforma agrária e pela territorialização da luta pela terra. Outra desenvolve ações para a manutenção do número de camponeses, acreditando que garantir a existência é suficiente. O paradigma da metamorfose do campesinato surgiu na última década do século XX e é uma espécie de “terceira via” à questão do campesinato. Acredita no fim do campesinato, mas não no fim do trabalho familiar na agricultura. Desse modo utiliza o conceito de agricultor familiar como eufemismo do conceito de camponês. A partir de uma lógica dualista de atrasado e moderno, classifica o camponês como atrasado e o agricultor familiar como moderno. Essa lógica dualista é processual, pois o camponês para ser moderno precisa se metamorfosear em agricultor familiar. Esse processo de transformação do sujeito camponês em sujeito agricultor familiar sugere também uma mudança ideológica. O camponês metamorfoseado em agricultor familiar perde a sua história de resistência, fruto da sua pertinácia, e se torna um sujeito conformado com o processo de diferenciação que passa a ser um processo natural do capitalismo. Os limites dos espaços políticos de ação do então moderno agricultor familiar fecham-se nas dimensões da diferenciação gerada na produção da renda capitalizada da terra. A sua existência, portanto, está condicionada dentro das condições geradas pelo capital. Logo as suas perspectivas estão limitadas às seguintes condições: agricultor familiar consolidado; agricultor familiar intermediário e agricultor familiar periférico. Da condição de periférico à condição de consolidado formam-se os espaços políticos de sua existência. Esse seria o seu universo possível. Nessa lógica não cabem os sem-terra, porque não se discute a exclusão. Discutem-se apenas os incluídos no espaço do processo de diferenciação. Nesse sentido, esse paradigma possui uma interface com a vertente do paradigma do fim do fim do campesinato que se preocupa apenas com a manutenção do campesinato. Essa leitura é marcada por uma importante diferença entre o paradigma da metamorfose do campesinato dos outros paradigmas. Os paradigmas do fim do campesinato e do fim do fim do campesinato têm como fundamento a questão agrária. O paradigma da metamorfose do campesinato tem como fundamento o capitalismo agrário.

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O debate a respeito da questão agrária tem se desenvolvido a partir do princípio da superação. Essa condição implica na luta contra o capital e na perspectiva de construção de experiências para a transformação da sociedade. O debate a respeito do capitalismo agrário tem se desenvolvido a partir do princípio da conservação das condições existentes da sociedade capitalista (...) (...) Afora o princípio conservador do paradigma da metamorfose do campesinato, destacam-se os limites de sua lógica dualista. Por não conseguir explicar a persistência do campesinato, a sua existência e atualidade e nem suas perspectivas, procura transformá-lo por meio do esvaziamento de sua história. O camponês fica com o passado e o agricultor familiar com o futuro (...) 1.4. Raízes históricas do campesinato brasileiro8 Introdução

A agricultura familiar não é uma categoria social recente nem a ela corresponde uma categoria analítica nova na Sociologia Rural. No entanto, sua utilização, com o significado e a abrangência, que lhe tem sido atribuídos nos últimos anos, no Brasil, assume ares de novidade e renovação. Fala-se de uma agricultura familiar como um novo personagem, diferente do camponês tradicional, que teria assumido sua condição de produtor moderno; propõem-se políticas para estimula-los, fundadas em tipologias que se baseiam em sua viabilidade econômica e social diferenciada. Mas, afinal, o que vem a ser uma agricultura familiar? Em que ela é diferente do campesinato, do agricultor de subsistência, do pequeno produtor, categorias que, até então, circulavam com mais frequência nos estudos especializados? Como entender o campesinato brasileiro à luz da teoria clássica?

Este trabalho tem a intenção de refletir sobre este tema, tendo como ponto de partida

e eixo norteador, as seguintes hipóteses: a) - a agricultura familiar é um conceito genérico, que incorpora uma diversidade de

situações específicas e particulares; b) - ao campesinato corresponde uma destas formas particulares da agricultura

familiar, que se constitui enquanto um modo específico de produzir e de viver em sociedade;

8 Esta seção reproduz o texto integral de Wanderley, Maria de Nazareth B. (1996). Raízes históricas do campesinato brasileiro. Caxambu - MG, XX Encontro Anual da ANPOCS. GT 17, Processos sociais agrários, outubro, mimeo 17 p.

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c) - a agricultura familiar que se reproduz nas sociedades modernas deve adaptar-se a um contexto sócio-econômico próprio destas sociedades, que a obriga a realizar modificações importantes em sua forma de produzir e em sua vida social tradicionais;

d) - estas transformações do chamado agricultor familiar moderno, no entanto, não produzem uma ruptura total e definitiva com as formas “anteriores”, gestando, antes, um agricultor portador de uma tradição camponesa, que lhe permite, precisamente, adaptar-se às novas exigências da sociedade.

e) - o campesinato brasileiro tem características particulares - em relação ao conceito clássico de camponês - que são o resultado do enfrentamento de situações próprias da História social do País e que servem hoje de fundamento a este “patrimônio sócio-cultural”, com que deve adaptar-se às exigências e condicionamentos da sociedade brasileira moderna.

Após retomar mais aprofundadamente estas hipóteses, pretendo refletir mais

detalhadamente sobre algumas dimensões deste patrimônio herdado pelos atuais agricultores familiares no Brasil.

1 - A AGRICULTURA FAMILIAR COMO UMA CATEGORIA GE*ÉRICA. O ponto de partida é o conceito de agricultura familiar, entendida como aquela em

que a família, ao mesmo tempo em que é proprietária dos meios de produção, assume o trabalho no estabelecimento produtivo. É importante insistir que este caráter familiar não é um mero detalhe superficial e descritivo: o fato de uma estrutura produtiva associar familia-produção-trabalho tem consequências fundamentais para a forma como ela age econômica e socialmente.

No entanto, assim definida, esta categoria é necessariamente genérica, pois a

combinação entre propriedade e trabalho assume, no tempo e no espaço, uma grande diversidade de formas sociais. Como afirma Hugues Lamarche “a agricultura familiar não é um elemento da diversidade, mas contém, nela mesma, toda a diversidade” (Lamarche, 1993: 14)

1.1. O Campesinato Tradicional Como Uma Forma Particular Da Agricultura Familiar.

A agricultura camponesa tradicional vem a ser uma das formas sociais de agricultura

familiar, uma vez que ela se funda sobre a relação acima indicada entre propriedade, trabalho e família. No entanto, ela tem particularidades que a especificam no interior do conjunto maior da agricultura familiar e que dizem respeito aos objetivos da atividade econômica, às experiências de sociabilidade e à forma de sua inserção na sociedade global.

Os estudos clássicos sobre o campesinato são por demais conhecidos, o que dispensa

a necessidade de retomá-los neste texto. Permito-me, apenas, sublinhar alguns aspectos importantes para a argumentação que pretendo desenvolver.9

9 Pretendo apoiar-me, especialmente, na reflexão sobre o tema, que foi produzida pelo “Groupe de Sociologie Rurale”, nos anos 70. Além dos livros de Henri Mendras, então diretor do Grupo, vou me referir frequentemente,

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Henri Mendras identifica cinco traços característicos das sociedades camponesas, a

saber: uma relativa autonomia face à sociedade global; a importância estrutural dos grupos domésticos, um sistema econômico de autarcia relativa, uma sociedade de interconhecimentos e a função decisiva dos mediadores entre a sociedade local e a sociedade global.” (Mendras, 1976).

A autonomia é demográfica, social e econômica. Neste último caso, ela se expressa

pela capacidade de prover a subsistência do grupo familiar, em dois níveis complementares: a subsistência imediata, isto é, o atendimento às necessidades do grupo doméstico, e a reprodução da família pelas gerações subsequentes. Da conjugação destes dois objetivos resultam suas características fundamentais: a especificidade de seu sistema de produção e a centralidade da constituição do patrimônio familiar. a) O sistema de policultura-pecuária.

O sistema tradicional de produção camponês, denominado de “policultura-pecuária” e

considerado “uma sábia combinação entre diferentes técnicas”, foi se aperfeiçoando ao longo do tempo, até atingir um equilíbrio numa relação específica entre um grande número de atividades agrícolas e de criação animal. Com efeito, os estudos sobre as sociedades camponesas tradicionais mostram que a evolução destas pode ser percebida através do esforço de aperfeiçoar esta diversidade, seja pela introdução de novas culturas, até o limite da supressão das áreas de pousio, seja pelo aprofundamento da relação entre as culturas e as atividades pecuárias efetuadas no estabelecimento. Como o afirma Mendras, “toda a arte do bom camponês consistia em jogar sobre um registro de culturas e criações o mais amplo possível e a integra-los em um sistema que utilizasse ao máximo os subprodutos de cada produção para as outras e que pela diversidade de produtos fornecesse uma segurança contra as intempéries e as desigualdades das colheitas.” (Mendras, 1984: 85).

Marcel Jollivet, retoma esta mesma reflexão, não a partir da dinâmica interna das

sociedades camponesas, porém, sob a ótica das determinações da sociedade global (ou das diferentes sociedades globais, feudal, capitalista etc).10 Para ele, o caráter familiar da produção agrícola decorre de uma adequação às próprias condições técnicas tradicionais da produção agrícola. De fato, “...o estabelecimento familiar camponês constitue uma organização social bem adaptada às condições técnicas da produção agrícola. O sistema de policultura-pecuária, que representa a forma não apenas característica, mas também, a mais elaborada, a mais produtiva da economia agrícola após a revolução forrageira do século XVIII e que continuou a se desenvolver e a se aperfeiçoar até uma época muito recente, supõe, para atingir sua plena eficácia, ser implantado nos quadros da unidade familiar de produção.” (Jollivet, 1974: 236).

aos dois tomos que resultaram da pesquisa sobre as coletividades rurais francesas, realizada sob a direção de Marcel Jollivet e Henri Mendras. Cf. JOLLIVET e MENDRAS, dir. 1971 e JOLLIVET dir. 1974. 10 - Mesmo tendo partilhado, com Henri Mendras, a coordenação da pesquisa sobre as coletividades rurais francesas, acima referida, Marcel Jollivet desenvolveu uma análise própria, fundamentada no materialismo histórico, para explicar a reprodução do campesinato sob o capitalismo. Cf. JOLLIVET. 1974.

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Esta adequação diz respeito, antes de mais nada à qualidade e à quantidade do trabalho que está associado ao sistema de policultura-criação. “Ele exige, com efeito, um trabalho intensivo, que só os membros da família se dispõem a aceitar; por outro lado, a multiplicidade de tarefas que ele implica requer muita leveza na organização do trabalho, da mesma forma que uma grande diversidade de competências. O camponês deve ser um artesão independente.”(Jollivet, idem: 236).

Esta percepção da agricultura familiar é confirmada por Michel Gervais: “Sua linha

de conduta não pode ser ditada do exterior. Só ele pode apreciar as circunstâncias que sua ação deverá levar em conta. Ele deve poder a todo momento modificar os seus projetos, seu programa de trabalho, para enfrentar um fato novo. Ele tem, assim, a necessidade de ser plenamente responsável. Enfim, e sobretudo, ele é o único que pode impor a si mesmo esta terrível disciplina, estes cuidados minuciosos, esta sujeição de todos os instantes. Assim, o individualismo, de que tanto se acusou o camponês artesanal, antes de ser um traço de caráter, era uma necessidade técnica.”( Gervais et alii, 1965:25)

Estas reflexões são ainda corroboradas pelas análises de Jerzy Tepicht a respeito do

camponês da Polônia. (Tepicht, 1973) Este autor mostra, na obra em que reflete sobre sua experiência, como responsável pela implantação do modelo “socialista” na agricultura polonesa, que o campesinato organiza o seu trabalho levando em conta dois fatores estruturais. Por um lado, ele dispõe do que denominou de “forças produtivas não transferíveis”, isto é a capacidade de trabalho de pessoas ligadas entre si pelo laço do parentesco que, mesmo sem estar disponíveis no mercado de trabalho, se envolvem nas atividades produtivas do estabelecimento familiar, em razão desta mesma comunidade doméstica de interesses; por outro lado, ele deve considerar o tempo de não trabalho, isto é, o tempo em que o desenvolvimento cultural - vegetal ou animal - segue seu curso natural, biológico, prescindindo do trabalho humano. Trata-se portanto, de estabelecer os ajustes necessários entre a força de trabalho disponível e o ritmo e a intensidade do trabalho exigido ao longo do ano. Deve-se observar, porém, que, nestes casos, a pluriatividade e a contratação de trabalhadores alugados no estabelecimento familiar estão inscritas na própria forma de produzir do camponês, enquanto uma possibilidade, mas sua concretização dependerá, fundamentalmente, do contexto mais geral que engloba o campesinato.

b) O horizonte das gerações

Para além da garantia da sobrevivência no presente, as relações no interior da família

camponesa tem como referência o horizonte das gerações, isto é, um projeto para o futuro. Com efeito, um dos eixos centrais da associação camponesa entre família, produção e trabalho é a expectativa de que todo investimento em recursos materiais e de trabalho despendido na unidade de produção, pela geração atual, possa vir a ser transmitido à geração seguinte, garantindo a esta, as condições de sua sobrevivência. Assim, as estratégias da família em relação à constituição do patrimônio fundiário, à alocação dos seus diversos membros no interior do estabelecimento ou fora dele, a intensidade do trabalho, as associações informais entre parentes e vizinhos, etc, são fortemente orientadas por este objetivo a médio ou longo prazo, da sucessão entre gerações. Combinando os recursos que dispõe na unidade de produção com aqueles a que pode ter acesso fora do estabelecimento - em geral, atividades complementares, temporárias e intermitentes - a

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família define estratégias que visam, ao mesmo tempo, assegurar sua sobrevivência imediata e garantir a reprodução das gerações subsequentes.

Da centralidade da família, como portadora do esforço de trabalho e detentora da

propriedade, tanto quanto, definidora das necessidades de consumo, decorre a importância que asssume a evolução de sua composição, como um elemento chave do próprio processo de transformação interna da unidade família/estabelecimento, o que Chayanov denominou “diferenciação demográfica”. (Chayanov, 1974)

Para enfrentar o presente e preparar o futuro, o agricultor camponês recorre ao

passado, que lhe permite construir um saber tradicional, transmissível aos filhos e justificar as decisões referentes à alocação dos recursos, especialmente do trabalho familiar, bem como a maneira como deverá diferir no tempo, o consumo da família. O campesinato tem, pois, uma cultura própria, que se refere a uma tradição, inspiradora, entre outras, das regras de parentesco, de herança e das formas de vida local etc.

c) As sociedades de interconhecimento e a autonomia relativa das sociedades rurais.

À autarcia econômica corresponde, de uma certa forma, a autonomia relativa da vida

social. A agricultura camponesa tradicional é profundamente inserida em um território, lugar de vida e de trabalho, onde o camponês convive com outras categorias sociais e onde se desenvolve uma forma de sociabilidade específica, que ultrapassa os laços familiares e de parentesco. “Uma coletividade rural apresenta uma dupla natureza funcional. Ela é, por um lado, um estabelecimento humano de valorização de um meio natural: a população local utiliza o território para sua subsistência; a aldeia (“village”) é um atelier de produção correspondente a um território. Por outro lado, é também uma unidade de habitação, de residência, um quadro de vida familiar e social de um gênero particular, caracterizado, notadamente, pela sua fraca dimensão e pela estabilidade da população.” (Jollivet e Mendras, 1971: 209).

É esta sociabilidade que permite definir a sociedade rural como uma “sociedade de

interconhecimento”, isto é, de “uma coletividade na qual, cada um conhecia todos os demais e conhecia todos os aspectos da personalidade dos outros. Diversidade e homogeneidade asseguravam, graças à relação de interconhecimento, a vida social extraordinariamente intensa, descrita nos romances e em toda a literatura sobre a vida do campo nos séculos XVIII e XIX ...” (p.24).

Entretanto, mesmo nas sociedades rurais tradicionais, a autonomia é sempre relativa.

A necessidade de reservar parte de seus recursos para as trocas com o conjunto da sociedade, e para atender a suas imposições terminam por introduzir no interior do própio modo de funcionamento do campesinato, certos elementos que lhe são, originalmente, externos.

De fato, o sistema de policultura-pequena criação é concebido como um todo,

estruturado de forma a garantir a subsistência da família camponesa. Porém, ele não elimina a fragilidade da agricultura camponesa, nem impede a emergência das situações de miséria e de grandes crises: seus resultados dependem de causas aleatórias, de origem

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natural - os efeitos das intempéries - ou das implicações das relações político-sociais dominantes, especialmente a extração da renda da terra.

Witold Kula, em seu clássico estudo sobre o sistema feudal na Polônia, explica esta

relação conflituosa entre a capacidade do camponês de assegurar a subsistência da família, em sua própria parcela e o pesado ônus que representava a renda em trabalho, extraida pelos senhores feudais: “A corvéia fornecia ao domínio senhorial uma mão de obra gratuita, porém, à condição que o camponês pudesse se manter em condições de trabalhar. Problema tanto mais importante quanto não se refere apenas às condições físicas do camponês, mas também, a seus equipamentos e seus animais de tração.” (Kula, 1970: 45) E ele acrescenta: “O domínio senhorial tinha tendência a reduzir a unidade camponesa a uma parcela inferior ao mínimo necessário à sua subsistência. O fato que um ano bom permitia a esta unidade gerar excedentes que podia oferecer no mercado, estimulava o senhor a diminuir sua área ou a aumentar os encargos que pesavam sobre ela; com isto, bastava uma safra “ruim” para que ela não pudesse satisfazer suas necessidades.” (p.46). É por esta razão que a renda fundiária, pre- capitalista, paga pelo camponês ao senhor feudal, é considerada uma relação extra-econômica, isto é, sua legitimidade social se baseia em outras razões - como os princípios da lealdade e dos direitos superpostos dos diversos detentores da terra - não se explicando como uma necessidade ligada imeditamente à subsistência do produtor direto.

Situação, de uma certa forma oposta a esta, é a analisada por Chayanov na Rússia.

Neste caso, tendo em vista a importância da propriedade comunal, os camponeses, por ele estudados, gozavam de um grau de autonomia suficiente para decidir sobre a dimensão da área que poderia cultivar, a cada ano, e o faziam - como Chayanov indica em seu estudo clássico - em função da capacidade interna de sua família. (Chayanov, 1974).

Compreende-se, assim, a importância que assume para o camponês a propriedade

familiar da terra. “Toda história agrária pode ser analisada como uma luta dos camponeses pela posse total da terra, libertando-se dos direitos senhoriais e das servidões coletivas.”(Mendras, 1984: 81)

d) Agricultura camponesa, agricultura de subsistência e pequena agricultura: o que dizem os conceitos.

Na perspectiva aqui adotada, é importante insistir, em primeiro lugar, que a

agricultura camponesa não se identifica simplesmente a uma agricultura de subsistência, entendida esta como uma outra forma particular da agricultura familiar. Há situações em que, por razões históricas e sociais diferentes, agricultores podem organizar sua produção, visando a sobrevivência imediata, sem vincular suas estratégias produtivas ao projeto do futuro da família. A constituição do patrimônio perde aqui sua força estruturadora. No sentido clássico do termo, estes agricultores não seriam propriamente camponeses. Para Hugues Lamarche, “conforme os objetivos a que se propõem os agricultores, para si mesmos e para suas famílias, e conforme, também, os contextos socio-econômicos locais e o respectivo nível de desenvolvimento, deve-se distinguir as unidades de produção camponesas de outras consideradas de subsistência. Se a função de subsistência está bem presente no modelo camponês, ele não se reduz jamais a isto; há neste modelo,

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profundamente arraigada, uma vontade de conservação e de crescimento do patrimônio familiar.” (Lamarche, 1994: 270).

Em segundo lugar, da mesma forma, a pluriatividade e o trabalho externo de

membros da família não representam necessariamente a desagregação da agricultura camponesa, mas constituem, frequentemente, elementos positivos, com o qual a própria família pode contar para viabilizar suas estratégias de reprodução presentes e futuras. Finalmente, em terceiro lugar, é necessário explicitar as relações entre agricultura camponesa e pequena produção. Gostaria de formular a questão nos seguintes termos: a agricultura camponesa é, em geral, pequena, dispõe de poucos recursos e tem restrições para potencializar suas forças produtivas; porém, ela não é camponesa por ser pequena, isto é, não é a sua dimensão que determina sua natureza e sim suas relações internas e externas, como foram colocadas acima.

1.2. As Formas da Agricultura Familiar nas Sociedades Modernas.

O campesinato foi, e ainda é, historicamente predominante nas sociedades

tradicionais. Para Eric Wolf são integrantes das “sociedades camponesas” “aqueles segmentos da espécie humana que permaneceram a meio caminho entre a tribo primitiva e a sociedade industrial” (Wolf, 1976: 9). Por sua vez, Henri Mendras considera que "este arquétipo da sociedade camponesa tradicional se incarnou sob formas diversas no Ocidente europeu desde os meados da Idade Média até o fim do século XIX." (Mendras, 1984: 19)

Interessa saber, portanto, em que medida o modelo camponês clássico pode ser

generalizado a todas as sociedades em todos os momentos históricos, em particular nas sociedades modernas. A hipótese que Mendras formula sugere que: “Em outras regiões do mundo, este esquema pode servir de base de comparação e alguns de seus elementos podem ser instrumentos úteis de interpretação: porém, seria perigoso vê-lo como um modelo universal, capaz de explicar todas as coletividades agrárias dominadas por uma sociedade mais abrangente. Numerosos estudos serão necessários sobre diferentes sociedades que permitam construir esquemas análogos até que se possa saber se existe um tipo ideal único de campesinato universal e se o camponês europeu, com suas variantes, não é apenas uma espécie dentre outras, em um gênero mais amplo.” (Mendras, 1984: 19) 11

Como se sabe, este mundo tradicional, "que foi dominante no Ocidente até o final do

século passado", sofreu uma profunda transformação, em períodos mais recentes, tanto em sua forma de produzir quanto em suas relações sociais. Gostaria, a este respeito, de propor as seguintes hipóteses à reflexão. a) O campesinato que permanece.

Em primeiro lugar, o campesinato, mesmo tendo perdido a significação e a

importância que tinha nas sociedades tradicionais, continua a se reproduzir nas sociedades

11 Esta hipótese, formulada por Mendras, inspirou o estudo comparativo internacional que foi realizado posteriormente, sob a coordenação de Hugues Lamarche, sobre a capacidade de adaptação da agricultura familiar a contextos econômicos, sociais e políticos em 5 países. Ver. LAMARCHE.1993 e 1994.

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atuais integradas ao mundo moderno. Pode-se identificar, portanto, em diversos países, na atualidade, setores mais ou menos expressivos, que funcionam e se reproduzem sobre a base de uma tradição camponesa, tanto em sua forma de produzir, quanto em sua vida social. Mesmo tendo anunciado “o fim dos camponeses”, Mendras sustenta, juntamente com Marcel Jollivet, no tomo 1 de “As coletividades rurais francesas”, esta hipótese da permanência de um setor camponês residual na França. “Qualquer que seja a diversidade das regiões e das nações, das civilizações e dos regimes políticos, vê-se, sempre a coletividade rural integrar-se à sociedade global, conservando, no entanto, sua autonomia e sua originalidade.” (Jollivet e Mendras, 1971: 21).

Em nossa pesquisa12, pudemos constatar que, se o campesinato tradicional

representou um pequeno resíduo entre os agricultores franceses, mais da metade dos agricultores entrevistados na Polônia foram considerados camponeses. Paradoxalmente, a orientação socialista da agricultura polonesa bloqueou a capacidade de transformação de parte importante dos agricultores locais, do que resultou a reprodução das formas tradicionais e clássicas do modelo camponês na agricultura e no meio rural daquele país.

b) As formas modernas de agricultura familiar.

Minha segunda hipótese refere-se ao fato de que, como já foi dito acima, nas

sociedades modernas multiplicaram-se outras formas da agricultura familiar não camponesas. São aquelas em que, sob o impacto das transformações de caráter mais geral - importância da cidade e da cultura urbana, centralidade do mercado, mais recentemente, globalização da economia etc - tentam adaptar-se a este novo contexto de reprodução, transformando-se interna e externamente em um agente da agricultura moderna.

Chama particularmente a atenção a agudeza e a pertinência das conclusões ao estudo

comparativo sobre as coletividades rurais, nas quais Jollivet e Mendras apontavam, ainda no início dos anos 70, para a natureza das mudanças que efetivamente se realizaram nas décadas seguintes, e cujo eixo é dado pela perda crescente da autonomia tradicional, consequência da integração e subordinação à sociedade englobante e pelo esvaziamento das sociedades locais, provocado pelo êxodo rural. “Pode-se analisar as mudanças em curso, como uma passagem do modelo de “comunidade” de interconhecimento tradicional para uma coletividade mais diferenciada, próxima do modelo urbano, onde a dimensão espacial permanece, no entanto, mais determinante que na cidade.” E mais adiante se lê: Hoje, e ainda mais amanhã, a coletividade rural permanece como um dos espaços onde se organiza a vida do indivíduo; mas existem outros...” (Jollivet e Mendras, 1971: 208)

Da mesma forma, Marcel Jollivet reconhece que a agricultura camponesa se reproduz

no interior das sociedades capitalistas modernas, como uma “pequena produção mercantil” e analisa as razões, do ponto de vista do capital, do que denomina, baseando-se em Bettelheim, o “duplo processo de conservação-dissolução”. “... o princípio fundamental segundo o qual o pequeno produtor mercantil procura unicamente obter meios de trabalho-subsistência, convém, perfeitamente, ao modo de produção capitalista uma vez que ele obriga o pequeno produtor mercantil a produzir; ele pode ser inclusive um excelente meio

12 Trata-se do estudo comparativo internacional, acima referido, realizado sob a coordenação de Hugues Lamarche.

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para a exploração capitalista do trabalho social agrícola na medida em que o pequeno produtor mercantil reage a qualquer diminuição de seu nível de vida com um acréscimento de seu esforço produtivo e em que toda intensificação deste gênero permite extrair uma mais-valia crescente sobre seu trabalho. O modo de produção capitalista pode, portanto, apropriar-se do trabalho do trabalhador agrícola que é o camponês, como o faz com todo trabalhador, “pela mediação da troca”, conservando, assim, sua forma de pequeno produtor mercantil.” (Jollivet, 1974: 243).

c) A herança do passado.

A presença dos agricultores familiares “modernos” tem sido percebida por alguns

estudiosos como o resultado de uma ruptura profunda e definitiva em relação ao passado. Tratar-se-ia, nesta perspectiva, de um personagem todo novo, distinto do seu ancestral camponês, gestado a partir dos interesses e das iniciativas do Estado. É o caso, entre outros, de Claude Servolin, para quem a predominância desta agricultura moderna (que ele denomina agricultura individual moderna) é recente. “Esta constatação - afirma Servolin - nos obriga a renunciar à “teoria da sobrevivência”. E ele acrescenta: “Se a produção individual moderna encontra sua origem em um passado longínquo, sua generalização e seu desenvolvimento no curso da história contemporânea só pode ser compreendida se admitimos que nossas sociedades, de alguma forma, preferiram esta forma de produção a outras formas possíveis.” (SERVOLIN, 1990: 27).

É bem verdade que a agricultura assume atualmente uma racionalidade moderna, o

agricultor se profissionaliza, o mundo rural perde seus contornos de sociedade parcial e se integra plenamente à sociedade nacional. No entanto, parece-me importante sublinhar - e o formularia como uma terceira hipótese - que estes “novos personagens”, ou pelo mesmo uma parte significativa desta categoria social, quando comparados aos camponeses ou outros tipos tradicionais, são também, ao mesmo tempo, o resultado de uma continuidade.

Jollivet e Mendras apontam a complexidade deste processo. “A rápida integração na

sociedade industrial de coletividades camponesas que, tendo permanecido marginais haviam conservado seu modo de regulação social, seu sistema de valores e suas formas de sociabilidade, oferece um campo de pesquisa cuja amplitude e totalidade desafiam o sociólogo. Com efeito, esta integração aciona ao mesmo tempo, os mecanismos da sociedade global e os das coletividades locais; não se trata de um simples fenômeno de assimilação, como a palavra sugere: cada coletividade reage a sua maneira e tenta preservar sua originalidade, de tal forma que a própria sociedade global também se modifica profundamente. Este ajustamento recíproco e a dinâmica específica da sociedade industrial contribuem para modelar os traços essenciais da civilização de amanhã”. (p.10)

Do ponto de vista do agricultor, parece evidente que suas estratégias de reprodução,

nas condições modernas de produção, em grande parte ainda se baseiam na valorização dos recursos de que dispõem internamente, no estabelecimento familiar, e se destinam a assegurar a sobrevivência da família no presente e no futuro. De uma certa forma, os agricultores familiares modernos “enfrentam” os novos desafios com as “armas” que possuem e que aprenderam a usar ao longo do tempo.

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Hugues Lamarche refere-se à “conservação e transmissão de um patrimônio sócio-cultural”, constituindo um “modelo original”, que exerce “um papel fundamental no modo de funcionamento da agricultura familiar”. (Lamarche, 1993: 13)

Refletir sobre o patrimônio sócio-cultural que alimenta, nos dias de hoje, as

estratégias dos agricultores familiares no Brasil é o objetivo da segunda parte deste trabalho, que apresento a seguir.

II. O CAMPESI*ATO *O BRASIL.

Jacques Chonchol, conhecido estudioso chileno da problemática agrária da América

Latina, tem, reiteradas vezes, reclamado da ausência, na historiografia brasileira, de uma história social do campesinato em nosso País. Segundo ele, embora existam excelentes estudos históricos sobre este tema, não dispomos ainda de uma obra de síntese, capaz de interpretar a natureza e a trajetória particulares do campesinato brasileiro.

Esta é, sem dúvida, uma missão para os historiadores e estes não faltam neste País.

Neste trabalho, longe de qualquer pretensão ambiciosa, desejo apenas expressar algumas reflexões gerais, feitas a partir da leitura dos estudiosos da agricultura e do campesinato no Brasil, sobre que patrimônio sócio-cultural se constituiu ao longo desta história, servindo hoje como “modelo original” para a atual geração de agricultores.

Evidentemente, é preciso considerar, antes de tudo, que o “modelo original” do

campesinato brasileiro reflete as particularidades dos processos sociais mais gerais, da própria história da agricultura brasileira, especialmente: o seu quadro colonial, que se perpetuou, como uma herança, após a independência nacional; a dominação econômica, social e política da grande propriedade; a marca da escravidão, e a existência de uma enorme fronteira de terras livres ou passíveis de serem ocupadas pela simples ocupação e posse.

Minha hipótese geral, já formulada em outros textos anteriores, consiste em afirmar

que “no Brasil, a grande propriedade, dominante em toda a sua História, se impôs como modelo socialmente reconhecido. Foi ela quem recebeu aqui o estímulo social expresso na polìtica agrícola, que procurou moderniza-la e assegurar sua reprodução. Neste contexto, a agricultura familiar sempre ocupou um lugar secundário e subalterno na sociedade brasileira. Quando comparado ao campesinato de outros paises, foi historicamente um setor "bloqueado", impossibilitado de desenvolver suas potencialidades enquanto forma social especifica de produção” (Wanderley, 1995).

Assim, a história do campesinato no Brasil pode ser definida como o registro das

lutas para conseguir um espaço próprio na economia e na sociedade. Interessa, portanto, saber, que condições ele encontra - estímulos ou obstáculos - e de que maneira os absorve ou os supera em sua trajetória. Privilegiarei, nesta análise, apenas três objetivos, dentre muitos outros, que parecem permanecer ao longo da história do campesinato brasileiro e que se constituem como núcleos centrais, em torno dos quais se estrutura, até o presente, o amplo leque das estratégias adotadas: refiro-me às lutas por um espaço produtivo, pela

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constituição do patrimônio familiar e pela estruturação do estabelecimento como um espaço de trabalho da família.13

2.1. As fragilidades do sistema de produção: por uma Agricultura Estável e Rentável.

No Brasil, a construção de um espaço camponês se efetuou na maioria dos casos, sob

o signo da precariedade estrutural, que o torna incapaz de desenvolver toda as potencialidades do próprio sistema clássico de produção e de vida social, diferenciando-o, portanto, da estrutura européia, antes considerada, capaz de fechar o círculo da subsistência.

a) O patamar mínimo e outras formas de precariedade.

É este, a meu ver, o sentido da análise de Antônio Cândido sobre os caipiras

paulistas. (Candido, 1964). Estes caipiras são, sem dúvida, camponeses, portadores de uma cultura rústica. Porém, os elementos definidores do campesinato, no sentido clássico, conforme foram anteriormente indicados, encontram-se, neste caso, em um patamar que este autor definiu como os níveis “mínimos vitais e sociais”. É como se eles estivessem no degrau inferior de uma escala que pudesse medir a natureza camponesa de um grupo social de agricultores. “A sociedade caipira tradicional elaborou técnicas que permitiram estabilizar as relações do grupo com o meio (embora em nível que reputaríamos hoje precário), mediante o conhecimento satisfatório dos recursos naturais, a sua exploração sistemática e o estabelecimento de uma certa dieta compatível com o mínimo vital - tudo relacionado a uma vida social de tipo fechado, com base na economia de subsistência.” (Candido, 1964:19)

Neste caso, chamaria a atenção, especialmente, para as dificuldades encontradas para

a implantação de um sistema produtivo diversificado, semelhante ao da policultura-pecuária, próprio do campesinato tradicional, como vimos acima. Embora, o consumo de proteínas na alimentação humana pudesse ser assegurado, nos níveis mínimos já assinalados, através das atividades de caça e pesca, a ausência da criação animal afetava diretamente, as possibilidades de fertilização natural, só compensada pelo constante deslocamento das áreas de culturas.

Neste nível de precariedade, certamente não há muito como construir um patrimônio

familiar. Podemos, no entanto, formular a hipótese de que, no caso dos caipiras, por muito tempo, o projeto para o futuro, pelo qual as gerações atuais se comprometem com as gerações que as sucedem, pôde ser assegurado, graças às possibilidades de mobilidade espacial abertas pela prática da agricultura itinerante e, sobretudo, pelo sistema de posse precária da terra. De uma certa forma, o patrimônio transmitido era o próprio modo de vida.

Evidentemente, não é possível generalizar esta situação limite - isto é, este padrão

correspondente aos mínimos vitais e sociais - para o conjunto do campesinato brasileiro, em seus diversos momentos e em todo o território nacional. Porém, mesmo considerando que as formas da precariedade são diferenciadas, os camponeses tiveram, de uma maneira ou de

13 - Deixo de tratar aqui a problemática da vida local no meio rural brasileiro, sobre a qual estou elaborando um projeto de pesquisa. Ver sobre este tema. WANDERLEY e LOURENÇO. 1994.

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outra, que abrir caminho entre as dificuldades alternativas que encontravam: submeter-se à grande propriedade ou isolar-se em áreas mais distantes; depender exclusivamente dos insuficientes resultados do trabalho no sítio ou completar a renda, trabalhando no eito de propriedades alheias; migrar temporária ou definitivamente. São igualmente fonte de precariedade: a instabilidade gerada pela alternância entre anos bons e secos no sertão nordestino; os efeitos do esgotamento do solo nas colônias do Sul. A respeito desta última situação, lembraria que Jean Roche, autor de um clássico estudo sobre a colonização alemã no Rio Grande do Sul, é atento às fragilidades estruturais da agricultura colonial. Para ele, a vida na colônia evolui, em geral, em 4 fases: a adaptação, expansão, seleção, e regressão. Esta última, fase de declínio, ocorre quando os solos se esgotam e a terra disponível não é mais suficiente, do que resulta, frequentemente, o deslocamento da população local para outras áreas, onde recomeçará o ciclo. (Roche, 1969)

b) A instabilidade ameaça a autonomia.

Além da precariedade, o campesinato brasileiro é profundamente marcado pela

instabilidade das situações vividas. Com efeito, se são numerosos os estudos que indicam a luta dos camponeses para terem acesso ao mercado, são igualmente inúmeras as referências às suas derrotas neste campo de ação. Longe, porém, de desenhar uma direção unívoca, resultando na dissolução do setor, estes embates dão conta de processos complexos que construíram trajetórias diferenciadas nos diversos momentos e em diversos espaços do território brasileiro. Assim, é possível identificar os processos de “campesinização”, “descampesinização” e “recampesinização” que, de uma certa forma, revelam os caminhos de sua instabilidade estrutural.

A situação de campesinização mais evidente, registrada na literatura sobre o tema é,

sem dúvida, a ocupação das serras gaúchas pelos colonos imigrantes da Europa, desde o século passado, onde um campesinato de origem européia pôde se implantar em condições mais favoráveis no interior do País. Mas há outras situações de campesinização. A título de ilustração, sem pretender esgotar todos os casos, pode-se citar o processo de “caipirização”, que Hebe Mattos de Castro analisou no Município de Capivarí, no Rio de Janeiro, após a abolição da escravidão. (Castro, 1987) Para esta historiadora, “... a organização agrária revelada pelos dados analisados, configura-se ”caipirizada”, fundada no trabalho familiar, em baixos níveis técnicos, inclusive no que se refere ao beneficiamento dos produtos cultivados, na fragmentação da propriedade fundiária e em relações de produção que mesmo baseadas na propriedade da terra não chegavam a engendrar uma elite agrária claramente diferenciada do conjunto da população local.” (p. 187) E a autora acrescenta: “Em suma, uma organização agrária voltada para a garantia da subsistência, trabalhando com limitadas condições de acumulação e investimento... Uma comunidade pobre, capaz porém de manter na sua dinâmica social um crescimento demográfico contínuo até pelo menos a segunda década deste século, capaz também de garantir, mesmo que em níveis extremamente baixos, a sobrevivência do produtor rural, inclusive do não-proprietário, em níveis de estabilidade...”( p. 187).

É de descampesinização o processo brutal, estudado por Guilhermo Palacios, pelo

qual o Estado e os latifundiários desestruturaram a economia e as formas sociais de “cultivadores pobres livres” no Nordeste oriental. (Palacios, 1987) Mas, a busca de novas

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terras no sertão, reinstala em novas condições as comunidades de base familiar, num claro mecanismo de recampesinização. O colonato em São Paulo - modelo pelo qual a força de trabalho dos escravos nas fazendas de café foi substituída por trabalhadores livres - também pode ser entendido como um espaço de campesinização, desfeito nos anos 60 com o próprio fim do sistema adotado um século antes. (Martins, 1979)

Exemplo de campesinizacão para uns ou de descampesinização para outros, o

morador é aquele trabalhador que, empregado dos engenhos, usinas e fazendas do Nordeste, tenta assegurar as condições mínimas de uma atividade produtiva familiar no interior da grande propriedade onde reside. Como o afirma Moacir Palmeira, “... não há dúvida que a concessão de sítios representa o mais importante dos “prêmios” que o senhor de engenho atribui ao morador, pois significa o morador poder plantar, além do seu roçado, árvores e, portanto, ligar-se permanentemente à propriedade (e aqui o tempo de permanência passa a ser um elemento importante). (Palmeira,1977: 106)

Finalmente, a relação de parceria, da maneira como foi considerada por Antônio

Cândido, permite uma certa forma de recampesinização. “... é possível dizer que o incremento extraordinário da parceria pode significar verdadeira capitulação do latifúndio, que permite refazerem-se no seu território agrupamentos de lavradores em condições parecidas, muitas vezes, com a de pequenos sitiantes integrados em bairro, praticando, em pequena escala, agricultura de subsistência.” (Candido, 1964: 150).

Para este autor, “... a parceria representa um ponto de precária estabilidade no

processo de mudança ora em andamento, colocando o caipira entre a posição de proprietário, ou posseiro, e a de salariado agrícola; e aparecendo, muitas vezes, como uma única solução possível para a sua permanência no campo.” (Candido,1964: 151)

Uma história do campesinato brasileiro deveria explicitar as razões e os princípios da

regularidade destes movimentos, aparentemente díspares, dispersos em várias direções e até mesmo contraditórios.

Vencedores ou perdedores neste campo de luta, os camponeses, no passado como

atualmente, dele participam com o objetivo de ter acesso a atividades estáveis e rentáveis. É este objetivo que norteia suas estratégias econômicas e que se articulam em dois níveis complementares. Por um lado, o acesso a uma atividade mercantil. A historiografia é plena de exemplos que nos permitem afirmar que, desde o período colonial, os chamados “cultivadores pobres livres” sempre buscaram alternativas econômicas que os integrassem positivamente à economia local e regional, tanto o mercado interno de produtos alimentares, como também o de produtos destinados à exportação, como o fizeram com a produção da mandioca, do tabaco e do algodão. (Palacios, 1987) E até hoje, sempre foi uma orientação comum e natural destes agricultores, a busca de produto ou produtos comercializáveis, que sejam o carro-chefe do sistema produtivo adotado.

Por outro lado, a esta atividade mercantil se soma o autoconsumo. É natural que,

dispondo de meios de produção, mesmo que em condições precárias e insuficientes, o camponês procure, antes de mais nada, assegurar o consumo alimentar da família. Como indicam Maria Yeda Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva, a economia de

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subsistência “é a face oculta da economia e da sociedade coloniais.” (Linhares e Silva, 1981:118)

Esta dupla preocupacão - a integração ao mercado e a garantia do consumo - é

fundamental para a constituição do que estamos aqui chamando de “patrimônio sócio-cultural”, do campesinato brasileiro. A este respeito, parece claro que a referência a uma “agricultura de subsistência”, tão frequente na literatura especializada, pode esconder os propósitos mais profundos dos agricultores. Nada indica que o campesinato brasileiro se restrinja, em seus objetivos, à simples obtenção direta da alimentação familiar, o que só acontece quando as portas do mercado estão efetivamente fechadas para eles. Pelo contrário, a experiência do envolvimento nesta dupla face da atividade produtiva gerou um saber específico, que pôde ser transmitido através das gerações sucessivas e que serviu de base para o enfrentamento - vitorioso ou não - da precariedade e da instabilidade acima analisadas. É este saber que fundamenta a complementação e a articulação entre a atividade mercantil e a de subsistência, efetuada sobre a base de uma divisão do trabalho interna da família ou da prática do “princípio da alternatividade”, formulado por Afrânio R. Garcia Jr. (Garcia Jr., 1990)

De fato, segundo Garcia, “há uma esfera do consumo doméstico que pode ser

abastecida diretamente do roçado para a casa, de produtos que podem ser autoconsumidos ou vendidos. Este é particularmente o caso da mandioca. São produtos que têm a marca da alternatividade. Alternatividade entre serem consumidos diretamente, e assim, atender às necessidades domésticas de consumo, e serem vendidos, quando a renda monetária que proporcionam permite adquirir outros produtos também de consumo doméstico, mas que não podem ser produzidos pelo próprio grupo doméstico, como o sal, o açúcar, o querosene, etc.” (Garcia, 1990:117). 2.2. A busca de uma terra para a família.

Uma das dimensões mais importantes das lutas dos camponeses brasileiros está

centrada no esforço para constituir um “território” familiar, um lugar de vida e de trabalho, capaz de guardar a memória da família e de reproduzi-la para as gerações posteriores. Paradoxalmente, a perseguição deste objetivo supõe muito frequentemente, a extrema mobilidade do agricultor, que se submete a longos, constantes e sucessivos deslocamentos espaciais.

Na análise desta questão, será possível considerar duas situações distintas. Em

primeiro lugar, a mobilidade resultante da pressão direta da grande propriedade. Diante da necessidade de escapar da submissão ao latifúndio, a alternativa possível consistiu, ao longo da história do campesinato brasileiro, especialmente, em algumas regiões, na migração para o interior do País.

Em segundo lugar, a migração para a fronteira se inscreve também na lógica interna

da reprodução da agricultura camponesa, particularmente, do Sul do País. O que chama a atenção, neste caso, é o fato de que a reprodução social da família no Brasil muito

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frequentemente gera a expectativa da instalação de cada filho em um novo estabelecimento. 14

Ora, tendo em vista os limites da estrutura colonial implantada no Sul, nos termos já

considerados acima, os desdobramentos naturais da vida econômica e social das colônias termina por impor a busca de outras terras. Este foi, sabidamente, o processo que, a partir do Rio Grande do Sul, permitiu a ocupação das fronteiras nos próprios Estados meridionais, e que continua até o presente, nas fronteiras do Centro-Oeste e Norte do País. (Santos, 1993)

A migração tem aqui duas faces: a esperança e o fracasso. A existência de uma

fronteira agrícola, no interior do país, foi a condição que permitiu a estes camponeses garantir a autonomia do seu modo de vida, especialmente, pelo fato da existência de terras livres, acessíveis através do sistema de posses. As referências são numerosas na literatura brasileira.

Antônio Cândido, por exemplo, mostra como a mobilidade do caipira, que era,

inicialmente, uma condição necessária para o equilíbrio precário de seu modo de vida, transforma-se em uma das “miragens econômicas e sociais”, quando este modo de vida é ameaçado pela presença da grande propriedade e da cultura urbana. “São miragens, por assim dizer de recuperação baseadas na esperança de tornarem-se proprietários e recriarem as condições de vida acenadas nas utopias retrospectivas, já agora no Paraná, na Alta Sorocabana, até em Mato Grosso.” (Candido, 1964: 156) Para este autor, “... o principal fator deste tipo de mobilidade é a insegurança da ocupação da terra; no caso, a perda de posse ou propriedade, e a instabilidade trazida pela dependência à vontade do fazendeiro. No entanto, vista do ângulo sociológico, ela funciona como preservação de cultura e de autonomia.” ( Candido, 1964: 164)

Pierre Mombeig, em seu clássico estudo sobre a zona pioneira em São Paulo, refere-

se ao movimento de colonos do café na direção da fronteira paulista. Reconhecendo a importância do pequeno agricultor sitiante neste processo de ocupação do oeste do Estado, Mombeig considera que “a maior parte dos pioneiros trabalhou como colonos nas grandes fazendas das velhas regiões”. (Mombeig, 1977: 223)

No Nordeste, o sertão é percebido, inicialmente, como um lugar de fartura e de

liberdade, uma “terra de refúgio”, na feliz expressão de Francisco Carlos Teixeira da Silva (Silva, 1981), onde um “herói civilizador”, cujo nome é guardado frequentemente, até hoje, na memória de seus descendentes (Godoi, 1993) (Woortmann, 1995), conquista um novo território, no qual se instala com seu grupo familiar e tenta construir um espaço camponês de vida e de trabalho.

14 Este fato causou estranheza entre os pesquisadores estrangeiros que visitaram o Brasil nos quadros da pesquisa coordenada por Hugues Lamarche, pois para eles a reprodução camponesa significa a reprodução do estabelecimento familiar e não necesssariamente, a alocação de todos os filhos na agricultura. Esta diferença é importante, pois ela mostra o quanto, na maioria das vezes, o agricultor conta apenas com sua terra para oferecer qualquer futuro para os filhos.

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Esta percepção positiva, da fronteira como possibilidade, é confirmada por Octávio Guilherme Velho, para quem, “... o que a fronteira quando se abre parece representar é na verdade, um locus privilegiado para o desenvolvimento da pequena agricultura.” (VELHO, 1976:97) Isto porque no novo espaço, o camponês se liberta dos antigos laços sociais que o tolhiam nas áreas velhas, de onde provêm, tendo adquirido, “num período de tempo relativamente curto, um grau bastante alto de integração vertical com o mercado”. (p.197) Octávio Guilherme Velho considera, assim que “... esse campesinato parece estar gradativamente se desmarginalizando. Trata-se, sem dúvida nessa escala de um fenômeno novo para o Brasil. Aparentemente, pela primeira vez - e diferentemente do caso atual de camponeses marginais posseiros - esse neocampesinato tem justificado economicamente sua existência, embora isso não lhe garanta automaticamente a sobrevivência.” (p. 198)

Porém, por outro lado, o risco do insucesso sempre foi intenso e constante. Nesta

trajetória em busca de novas terras, além de ter que enfrentar as dificuldades inerentes ao próprio deslocamento e à instalação em um local desconhecido, o grande desafio, consistia em vencer as mesmas condições de que se tentava escapar. Guilhermo Palacios refere-se aos riscos “do isolamento, da pobreza e da agricultura de subsistência” (PalaciosS, 1987), expressões da precariedade e da insuficiência que permanecem, no sertão como no litoral. Para ele, “o isolamento imposto aos “sitiantes” e aos “agregados” nas décadas finais do século XIX nada mais foi do que um elemento central à estratégia de transição dos grupos hegemônicos da sociedade agrária brasileira.” (alacios, 1993: 50)

No caso do sertão nordestino, a estas dificuldades acrescenta-se o enfrentamento das

secas, que, como afirma Celso Furtado, se torna um “problema social”, a partir, precisamente da intensificação da migração. “Essa combinação, aparentemente, tão feliz, da pecuária com o algodão arbóreo, modificou as bases da economia sertaneja e transformou as secas em um problema social de grandes dimensões. A população que acorria ao sertão, em busca das vantagens que apresentava a cultura do algodão e seduzida pela abundância de alimentos que ali florescem nos “bons” invernos, estava, em realidade, sendo atraída para uma armadilha infernal. O trabalhador que se fixava no latifúndio sertanejo devia plantar algodão em regime de meação com o dono, que financiava o plantio, adiantando sementes e o necessário para custear a produção.” (Furtado, 1964: 166)

Finalmente, nesta perspectiva, José Vicente Tavares dos Santos considera que a

fronteira gera também a exclusão social. “É justamente neste nomadismo dos colonos brasileiros que se opera o inverso da seleção social: em outras palavras, a produção social da exclusão é uma das dimensões do processo de colonização.” (SANTOS, 1993:244).

De qualquer forma, seja como um lugar de refúgio e reconstrução, seja como um

lugar de desilusão e fracasso, a fronteira é o lugar da utopia. Como afirma José Vicente Tavares dos Santos, “Acontece que havia entre os camponeses das regiões de origem, de certa forma acuados pela falta de terras, um desejo de reproduzir-se como camponeses, quer tratando-se deles mesmos em melhores terras ou em áreas mais extensas, ou de seus filhos em condições semelhantes. Por conseguinte, esta “sede da terra” fez surgir, também, um “sonho da terra” entre esses camponeses que queriam continuar sendo camponeses.” ( p. 258)

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Assim, a própria existência da fronteira dá sentido à intensa mobilização. Isto é, o deslocamento, uma vez que existam terras livres, se inscreve no projeto de vida de famílias de camponeses como uma continuidade. Referindo-se aos agricultores do Nordeste, Marie Claude Maurel conclui que, “se a terra tem um valor de meio de produção, e isto de maneira absolutamente vital para a família agrícola, ela não é o território patrimonial ao qual os campesinatos enraizados são vinculados; ela é um bem em “devir”, um patrimônio sobre o modo imaginário, que o nordestino pode esperar constituir se ele tenta a aventura da migração interior. (Maurel, 1964:95)

Pode-se propor a hipótese que este processo não é exclusivo dos camponeses

nordestinos, mas pode ser observado como um traço comum entre os camponeses brasileiros. O que parece a primeira vista como ausência de vínculo com o território familiar e comunitário de origem significa, na verdade, a possibilidade de constituição - ou reconstituição - do patrimônio familiar camponês, mesmo que seja em um local distante. “Longe de representar indiferença em relação ao que conseguiram construir, a grande aceitação da mobilidade espacial - que reflete as experiências realmente vividas das migrações - demonstra o quanto eles estão ainda na busca do seu espaço próprio e definitivo. Nisto, os brasileiros diferem profundamente dos franceses e mesmo dos canadenses, instalados e enraizados há séculos em seus locais de origem”. (Wanderley, 1995)

2.3. O estabelecimento agrícola: um lugar de trabalho da família.

Pela sua própria natureza, a unidade de produção camponesa é o resultado do

trabalho dos membros da família proprietária. O campesinato no Brasil não é diferente, sobre esta questão, daqueles que se reproduzem ou se reproduziram em outros países. Porém, em razão do próprio contexto em que se reproduz, ele revela uma longa tradição de trabalhar alugado para terceiros e de empregar, ele mesmo, trabalhadores alugados em seu estabelecimento familiar. Esta particularidade tem intrigado muitos estudiosos, que tentam explica-lo como resultante de processos sociais de decomposição do campesinato.

O que parece importante a entender, em primeiro lugar, é que há aqui uma oferta

sazonal de empregos na agricultura, gerada pela grande propriedade, que foi, durante muito tempo, satisfeita por camponeses, cujo tempo de não-trabalho coincidia com as safras das grandes culturas. Manuel Correia de Andrade analisou a utilização pelas usinas de Pernambuco dos “corumbas”, camponeses do agreste e do sertão. “Chegado, porém o estio, nos meses de setembro e outubro, quando as usinas começam a moer e a seca não permite a existência de trabalhos agrícolas no Agreste, eles descem em grupos em direção à área canavieira, às vezes a pé, às vezes em caminhões e vêm oferecer seus trabalhos nas usinas e engenhos. Aí permanecem, até as primeiras chuvas que são no Agreste em março ou abril, quando regressam aos seus lares a fim de instalarem novos roçados.” (ANDRADE, 1964:119)15 E ele acrescenta: “Em pesquisas realizadas nos últimos 5 anos em mais de cinqüenta usinas, desde o Rio Grande do Norte até Alagoas, não encontramos uma única que dispensasse a cooperação dos corumbas. (p. 120)

15 Ver também SALES, 1992.

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Em segundo lugar, deve-se considerar que, tendo em vista, a precariedade e a instabilidade da situação camponesa, o trabalho externo se torna, na maioria dos casos, uma necessidade estrutural. Isto é, a renda obtida neste tipo de trabalho vem a ser indispensável para a reprodução, não só da família, como do próprio estabelecimento familiar. Como o afirma José Vicente Tavares dos Santos, referindo-se aos camponeses produtores de vinho no Rio Grande do Sul, “a transformação periódica do camponês em trabalhador assalariado é fonte de uma renda monetária que suplementa o rendimento obtido com a venda da uva.... Somente são limitados pelo ciclo de existência da família que em algumas épocas os libera e noutras os impede de desempenhar alguma atividade acessória.” E o autor conclui: “Assim se explica porque aceitam a perspectiva de serem “jornaleiros”, isto é, trabalhadores diaristas ou trabalhadores por tarefa (empreita), enquanto negam a sorte de serem “peon”, ou seja, trabalhadores pernamentes. (Santos, 1978: 38).

Este aspecto da questão é de grande importância, porque não se trata simplesmente

de demonstrar que os estabelecimentos camponeses não conseguem gerar renda suficiente para manter a família; trata-se, ao contrário, de compreender os mecanismos deste equilíbrio precário e instável, pelos quais o estabelecimento familiar se reproduz, a despeito do trabalho externo e, em muitos casos, em estreita dependência deste mesmo trabalho externo.

Quanto ao fato de empregarem, eles mesmos, o trabalho alugado de terceiros, pode-

se, igualmente, considerar duas situações que me parecem distintas na agricultura brasileira. A primeira corresponde aos casos em que o recurso ao trabalho alugado de terceiros se inscreve na lógica interna da reprodução familiar, através de mecanismos tradicionais e do envolvimento de pessoas da própria comunidade camponesa ou próxima a ela. Para Afrânio R. Garcia, que analisou esta situação, com grande riqueza de detalhes, a utilização trabalho de terceiros decorre da necessidade de “diminuir a auto-exploração da força de trabalho do grupo doméstico” (GARCIA, 1990:142) Como ele explica, “...a substituição de trabalhadores domésticos pelos alugados não é algo que é feito de uma vez para sempre. Há uma avaliação constante e renovada a cada ciclo agrícola, entre utilizar a força de trabalho doméstica na agricultura, ou poupá-la destas tarefas utilizando alugados. Fica claro também, que a composição do grupo doméstico por sexo e idade afeta diretamente este cálculo.”(p. 143) Análise semelhante já havia sido feita por José Vicente Tavares dos Santos. “A partir da constatação empírica da existência de força de trabalho assalariada na unidade produtiva camponesa, surge a questão fundamental: em que medida a existência desses trabalhadores assalariados provoca a emergência de uma relação social de produção capitalista no interior do processo de trabalho camponês?” E este pesquisador responde: na unidade produtiva camponesa “não se verifica o desenvolvimento do capital enquanto relação social entre as pessoas envolvidas no processo de traballho camponês. Ao contrário, a forma salário ocorre no interior da produção camponesa em função do ciclo de existência da família. Nesse sentido, a soma de dinheiro gasta no pagamento de salários aparece como redução do rendimento familiar.” (Santos, 1978:43)

Mas há uma segunda situação, mais complexa, na qual às razões internas se

acrescentam explicações externas à unidade de produção camponesa. Estudei um caso semelhante, em Leme, São Paulo. (Wanderley, 1989) Neste município concentra-se um significativo contingente de assalariados rurais, atraídos pelo trabalho temporário nas

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culturas da cana de açúcar e da laranja, efetuadas em grandes unidades empresariais. Além destes estabelecimentos, existe no município um grande número de produtores, de origem camponesa, que cultivam algodão em estabelecimentos familiares e que também utilizam em grande escala o trabalho temporário dos “bóias-frias”.16 Nestes casos, não se trata apenas da substituição do trabalho familiar pelo alugado, nos termos propostos pelos autores acima indicados. No exemplo citado dos produtores de algodão, se dependessem de suas próprias forças ou das forças “substitutas”, equivalentes, dificilmente estes agricultores poderiam plantar toda a área disponível com algodão, e, muito menos, aumentar a área de estabelecimento, como quase todos o fizeram nos últimos anos. O fato de poder ampliar o número de homens nesta tarefa manual, através do emprego de trabalhadores assalariados, permite que a família aumente sua capacidade produtiva em outras fases do processo de produção, através, sobretudo da utilização de máquinas e insumos.

Porém, nestes casos, de uma certa forma, o lugar do trabalho familiar é reiterado e

mesmo reforçado: os membros da família continuam envolvidos no trabalho do estabelecimento - suas tarefas consistem agora, fundamentalmente, na operação das máquinas (meios de produção e também patrimônio familiar) e na fiscalização dos assalariados - e, sobretudo, estes estabelecimentos têm capacidade para absorver um maior número de filhos. (Wanderley, 1995)

O fato de utilizar, mesmo com uma elevada intensidade, o trabalho externo, não

transforma, necessariamente estes agricultores em empresários capitalistas, no sentido clássico e exato do termo. É que - e isto me parece o mais importante a considerar - esta agricultura familiar não é capaz, pelas suas próprias forças produtivas, de gerar o trabalho assalariado, limitando-se a utiliza-lo lá onde o capital e a grande propriedade têm esta capacidade.

A GUIZA DE CO*CLUSÃO

Este trabalho pretendeu reler as contribuições dos estudiosos, especialmente dos

historiadores, a respeito da constituição do campesinato no Brasil e propor alguns elementos para compreender suas particularidades. Como em outros contextos históricos, esta constituição tem como base o acesso à terra e a reprodução de formas particulares de produção e de sociabilidade. O acesso à terra foi aqui, doloroso e restrito, do que resultou, para a historiografia analisada, as características principais do campesinato brasileiro em sua origem: a pobreza, o isolamento, a produção centrada na subsistência mínima e a extema mobilidade espacial.

A agricultura familiar é hoje responsável por mais de 70% dos estabelecimentos

agrícolas no Brasil. (Kageyama e Bergamasco, 1989) Tendo que se adaptar às exigências da agricultura moderna, esta forma de agricultura guarda ainda muito dos seus traços camponeses, tanto porque ainda tem que “enfrentar” os velhos problemas, nunca

16Apesar do seu caráter moderno e atual, que, de uma certa forma, ultrapassa os limites deste texto, a problemática das relações entre o campesinato e o trabalho assalariado também se inclui como uma herança histórica, que forjou o campesinato no Brasil.

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resolvidos, como porque, fragilizada, nas condições da modernização brasileira, continua a contar, na maioria dos casos, com suas próprias forças.

--------x--------

1.5. As contradições no campo brasileiro17

Há entre os estudiosos da agricultura brasileira controvérsias com relação a quem de fato tem a participação mais expressiva na produção agropecuária do país. Há autores (e a mídia em geral os repete) que inclusive, chegam a afirmar que não há sentido no interior da lógica capitalista, por exemplo, distribuir terra através de uma política de Reforma Agrária. O capitalismo no campo já teria realizado todos os processos técnicos e passado a comandar a produção em larga escala. As posições expressivas na pauta de exportações de produtos de origem agropecuárias são apresentadas como indicativo desta assertiva. Assim, uma política de Reforma Agrária massiva poderia desestabilizar este setor competitivo do campo e deixar o país vulnerável em sua “política vitoriosa de exportações de commodities do agronegócio”.

Nesse mesmo diapasão atuam os grandes proprietários de terra a embalar seus

latifúndios nas explicações, inclusive de intelectuais progressistas, de que não há mais “latifúndio no Brasil” e sim, o que há agora, são modernas empresas rurais. Alguns mesmos acreditam que a modernização conservadora transformou os grandes proprietários de terra, que agora produzem de forma moderna e eficiente, tornando seus latifúndios propriedades produtivas. Não haveria assim, mais terra improdutiva no campo brasileiro. Estes são alguns dos muitos mitos que se tem produzido no Brasil, para continuar garantindo 132 milhões de hectares de terras concentradas em mãos de pouco mais de 32 mil latifundiários. A estrutura fundiária concentrada

O Brasil possui uma área territorial de 850,2 milhões de hectares. Desta área total, as unidades de conservação ambiental ocupavam no final do ano de 2.003, aproximadamente 102,1 milhões de hectares, as terras indígenas 128,5 milhões de hectares, e área total dos imóveis cadastrados no INCRA aproximadamente 420,4 milhões de hectares. Portanto, a soma total destas áreas dá um total de 651,0 milhões de hectares, o que quer dizer que há ainda no Brasil aproximadamente 199,2 milhões de hectares de terras devolutas. Ou seja, terras que podem ser consideradas a luz do direito, como terras públicas pertencentes aos Estados e a União. Mesmo se retirarmos 29,2 milhões dessa área ocupada pelas águas territoriais internas, áreas urbanas e ocupadas por rodovias, e posses que de fato deveriam ser regularizadas, ainda restam 170,0 milhões de hectares. Essas terras devolutas, portanto, públicas, estão em todos os Estados do país. 17 Esta seção corresponde ao capítulo “As contradições no campo brasileiro: mitos e verdades” do texto de Umbelino, Ariovaldo de Oliveira (2004). Barbárie e Modernidade. As transformações no campo e o agronegócio no Brasil. São Paulo, USP, mimeo 49 p. A primeira versão deste texto foi apresentada para discussão em reunião da CPT Nacional – Goiânia-GO 22/10/2003. A segunda versão ampliada foi apresentada no XII Encontro Nacional do MST – São Miguel do Iguaçu – PR, 19 a 24 de Janeiro de 2.004.

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Entretanto, andando pelo país, verificaremos que praticamente (exceto em algumas

áreas da Amazônia) não há terra sem que alguém tenha colocado uma cerca e dito que é sua. Assim, os que se dizem “proprietários” estão ocupando ilegalmente estas terras. Ou seja, suas propriedades têm provavelmente, uma área maior do que os títulos legais indicam.

Mesmo assim, vamos analisar os dados referentes ao Cadastro do INCRA. No final

do ano de 2.003, havia 4.238.421 imóveis ocupando uma área de 420.345.382 hectares. O Brasil caracteriza-se por ser um país que apresenta elevadíssimos índices de concentração da terra. No Brasil estão os maiores latifúndios que a história da humanidade já registrou. A soma das 27 maiores propriedades existentes no país, atinge uma superfície igual a aquela ocupada pelo Estado de São Paulo, e a soma das 300 maiores atinge uma área igual à de São Paulo e do Paraná. Por exemplo, uma das maiores propriedades, aquela da Jari S/A que fica parte no Pará e parte no Amapá, tem área superior ao Estado de Sergipe.

Quais são os números dessa brutal concentração fundiária? Segundo o Cadastro do INCRA, a distribuição da terra está expressa na Tabela 01.

Tabela 01. Estrutura Fundiária Brasileira, 2.003.

Grupos de área total (ha)

imóveis % dos imóveis

área total (ha) % de área área média (ha)

Menos de 10 1.338.711 31,6% 7.616.113 1,8% 5,7De 10 a -25 1.102.999 26,0% 18.985.869 4,5% 17,2De 25 a -50 684.237 16,1% 24.141.638 5,7% 35,3De 50 a -100 485.482 11,5% 33.630.240 8,0% 69,3De 100 a -200 284.536 6,7% 38.574.392 9,1% 135,6De 200 a -500 198.141 4,7% 61.742.808 14,7% 311,6De 500 a –1.000 75.158 1,8% 52.191.003 12,4% 694,4De 1.000 a –2.000 36.859 0,9% 50.932.790 12,1% 1.381,8De 2.000 a –5.000 25.417 0,6% 76.466.668 18,2% 3.008,55.000 e Mais 6.847 0,1% 56.164.841 13,5% 8.202,8 Total 4.238.421 100,0 % 420.345.382 100,0%

Fonte: INCRA – situação em agosto de 2003 in II PNRA, Brasília, 2003.

Como se pode ver, enquanto mais de 2,4 milhões de imóveis (57,6%) ocupavam 6,% da área (26,7 milhões de hectares), menos de 70 mil imóveis (1,7%) ocupavam uma área igual a pouco menos que a metade da área cadastrada no INCRA, mais de 183 milhões de hectares (43,8%). O que isso quer dizer: muitos têm pouca terra e poucos têm muita terra.

A Lei nº 8.629 de 25/02/1993 que regulamentou os dispositivos constitucionais

relativos à Reforma Agrária prevista na Constituição de 1988 conceituou em seu artigo 4º, a pequena propriedade como sendo aquela que possui área compreendida entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos fiscais; a média propriedade como aquela que possui área superior a quatro (4) e até 15 (quinze) módulos fiscais; e a grande propriedade como aquela que

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compreende mais de 15 módulos fiscais. A área dos módulos fiscais varia de região por região, estado para estado, e mesmo de município para município. Atualmente, o menor módulo fiscal tem 5 (cinco) hectares e o maior possui 110 hectares. Isto quer dizer que a pequena propriedade pode variar, por exemplo, de menos de 20 hectares no Distrito Federal, a até menos de 440 hectares em municípios do Pantanal. O mesmo acontece com a média propriedade que pode variar entre 20 hectares e menos de 280 hectares no Distrito Federal e entre 440 hectares e menos de 1.540 hectares em municípios do Pantanal. A grande propriedade por sua vez pode ter 280 hectares ou mais no Distrito Federal, e 1.540 hectares ou mais em municípios do Pantanal.

Assim, é razoável tomar-se como referência os dados estatísticos do INCRA para se

classificar neste estudo, em termos médios, a pequena propriedade como aquela que vai até menos de 200 hectares; a média propriedade como aquela que vai de 200 a menos de 2.000 hectares; e a grande propriedade como aquela que tem 2.000 hectares ou mais. Aplicada esta proposta à estrutura fundiária do Brasil, o resultado está expresso na Tabela 02.

Tabela 02. Síntese da Estrutura Fundiária, 2.003

Grupos de área total º de Imóveis % Área em HA % Área Média (ha) Pequena Menos de 200 ha 3.895.968 91,9 122.948.252 29,2 31,6 Média 200 a menos de 2.000 ha 310.158 7,3 164.765.509 39,2 531,2 Grande 2.000 ha e mais 32.264 0,8 132.631.509 31,6 4.110,8 TOTAL 4.238.421 100,0 20.345.382 00,0 99,2

Fonte: INCRA Org.: OLIVEIRA, A.U.

Como se pode verificar, praticamente 92% das propriedades podem ser classificadas

como pequenas e ocupam 29,2% da área total. Estas pequenas propriedades desde que seu proprietário possua uma só, não poderão ser desapropriadas para a Reforma Agrária, mesmo sendo improdutivas (Parágrafo Único do artigo 4º da Lei nº 8.629 de 1.993). O mesmo acontece com a média propriedade que ocupa mais ou menos 7,3% dos imóveis e 39,2% da área, ela também não pode ser desapropriada para Reforma Agrária mesmo sendo improdutiva, se seu proprietário não possuir outra propriedade.

Entretanto, as grandes propriedades que representam menos de 1% do total dos

imóveis, mas que ocupam uma área de cerca de 31,6%, caso sejam classificadas como improdutivas, poderão ser desapropriadas para fins de Reforma Agrária (Artigos 184, 185 e 186 da Constituição Federal de 1.988).

O Cadastro o INCRA apresenta também os dados sobre o uso da terra e sua função

social (art. 184 da Constituição Federal). Os dados sobre a função social da propriedade em agosto de 2.003, indicavam que, apenas 30% das áreas das grandes propriedades foram classificadas como produtivas enquanto que, 70% foram classificadas como não produtivas. Portanto, o próprio cadastro do INCRA, que é declarado pelos próprios proprietários, indicava a presença da maioria das terras das grandes propriedades sem uso produtivo. Os dados (Tabela 03) sobre a grande propriedade, definida segundo a Lei nº 8.629 de 25/02/1993, eram os seguintes em agosto de 2.003:

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Tabela 03 - Grandes Propriedades (15 módulos fiscais e mais) INCRA – 2003 (agosto)

TOTAL IMPRODUTIVO

Nº Imóveis Área em Hectares Nº de Imóveis Área em Hectares 111.495 209.245.470 54.781 120.436.202

Fonte: INCRA Org.: OLIVEIRA, A.U.

Deve se esclarecer que, a área das grandes propriedades, segundo o critério dos

módulos fiscais, é maior do que aquela referente às propriedades com 2.000 hectares ou mais. Mesmo assim, a rigor, o INCRA se cumprisse a Constituição de 1.988 e a Lei nº 8.629, deveria imediatamente declarar disponível para a Reforma Agrária esses 120.436.202 hectares das grandes propriedades improdutivas existentes no país. Mas não é isto que tem acontecido. Entra governo e sai governo e, a Constituição e as leis referentes à Reforma Agrária, não são cumpridas. É o oposto do que ocorre com as propriedades ocupadas pelos movimentos sociais, pois imediatamente, sempre há um juiz para dar reintegração de posse ao proprietário da terra improdutiva. É preciso que a interpretação da Lei seja invertida, não é o INCRA que tem que provar que uma propriedade é improdutiva, mas sim, seu proprietário é que tem que provar que ela é produtiva. Como é ele que faz a declaração no cadastro sob pena da lei, e se o seu imóvel é classificado como improdutivo, ele tornou-se réu confesso.

Certamente, um bom caminho para o exercício da cidadania seria entrar com uma avalanche de ações civis públicas para que o INCRA cumprisse os preceitos legais, publicasse anualmente a relação dos imóveis classificados como improdutivos e executasse a sua desapropriação. Mas não cessa aí o não cumprimento da lei pelos governos. O Imposto Territorial Rural ITR é folclórico. Segundo os últimos dados divulgados pela Receita Federal, cerca de mais de 50% dos proprietários com área superior a 1.000 hectares, sonegavam este tributo. Mas, nunca ninguém ficou sabendo se algum deles teve seu imóvel levado a leilão para ressarcimento dos cofres públicos. As pequenas unidades são as que mais empregos geram no campo.

Para realizar a comparação entre os diferentes tamanhos das unidades produtivas no campo, será tomado como referência também os dados do Censo Agropecuário de 1995/6 do IBGE.18 Dessa maneira, tomar-se-á também, os estabelecimentos agropecuários como menos de 200 hectares, como sendo denominados de pequenas unidades de produção (que é onde estão as unidades que são oriundas da Reforma Agrária); aqueles de 200 a menos de 2.000 hectares serão considerados médias unidades de produção e aqueles com 2.000

18 O IBGE utiliza como unidade estatística censitária o estabelecimento que, por sua vez deriva do uso econômico que se faz de uma área determinada autonomamente. Já o INCRA, utiliza o imóvel que é uma unidade jurídica (com ou sem título de propriedade).

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hectares e mais serão chamados de grandes unidades de produção, ou os latifúndios. Esta classificação visa mostrar o papel das pequenas unidades de produção face às grandes no que se refere ao volume da produção.

Esta classificação também pode ser fundamentada no fato de que mais de 50% dos

estabelecimentos com menos de 200 hectares não possuíam nenhum trabalhador contratado, ou seja, predominava entre eles o trabalho familiar segundo o Censo Agropecuário do IBGE.

Quanto ao número e área ocupada pelos estabelecimentos agropecuários do IBGE,

havia a seguinte distribuição: os pequenos estabelecimentos representavam 93,8% (4.565.175) e ocupavam uma área de 29,2% (103.494.969 hectares); os médios estabelecimentos eram 5,3% (252.154) em número e sua área ocupada era de 36,6% (129.617.964 hectares); e os grandes estabelecimentos representavam em número apenas 0,5% (20.854) e ocupavam uma área de 120.498.313 hectares (34,2%).

A análise do número de pessoas ocupadas no campo indica que as pequenas unidades de produção geraram mais de 14,4 milhões de emprego ou 86,6% do total. Enquanto isso, as grandes unidades foram responsáveis por apenas 2,5% dos empregos ou pouco mais de 420 mil postos de trabalho. A Tabela 04 mostra de forma inequívoca este quadro das relações de trabalho no campo brasileiro.

Tabela 04. BRASIL – Pessoal Ocupado –1995/6

Pessoal Ocupado PEQUENA MÉDIA GRANDE Nº % Nº % Nº %

TOTAL 14.444.779 86,6 1.821.026 10,9 421.388 2,5 Familiar 12.956.214 95,5 565.761 4,2 45.208 0,3 Assalariado Total 994.508 40,3 1.124.356 45,5 351.942 14,2 Assalariado Permanente 861.508 46,8 729.009 39,7 248.591 13,5 Assalariado Temporário 133.001 72,8 395.347 21,6 103.351 5,6 Parceiros 238.643 82,4 45.137 15,6 5.877 2,0 Outra Condição 255.414 71,0 85.772 23,9 18.361 5,1

Fonte: Censo Agropecuário do IBGE 1995/6. Org.: OLIVEIRA, A.U.

Muitos intelectuais costumam dizer que a relação de trabalho mais praticada nas

grandes propriedades é o serviço de empreitada, por isso o pequeno número de emprego gerado na grande propriedade. Entretanto, os dados sobre este tipo de contratação de trabalhadores no campo mostram também que, 85,9% delas foram feitas pelas pequenas unidades produção e não pelas grandes que ficaram com apenas 1,5% das contratações dos serviços de empreitada. A tecnologia também chegou às pequenas unidades

Outro mito que os defensores do agronegócio apresentam para justificar o baixo número de emprego na grande propriedade é a sua integral mecanização e conseqüentemente, a não necessidade de muitos postos de trabalho. Assim, a grande

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propriedade seria a grande consumidora de tratores e outras máquinas e implementos agrícolas. Vamos então analisar a distribuição destes meios de produção pelas diferentes unidades de produção. Em primeiro lugar é preciso verificar o quadro apresentado pelo tão propalado consumo produtivo de tratores. O Censo Agropecuário de IBGE indicava que no total, 63,5% deles estavam nas pequenas unidades de produção e apenas 8,2% nas grandes unidades. Em todas os grupos de potência (CV) as pequenas unidades tinham mais tratores do que as grandes propriedades. Até entre aqueles de alta potência (mais de 100 CV), as pequenas unidades possuíam mais tratores do que as grandes. Os números da Tabela 05 são meridianos ao demonstrarem que o consumo produtivo de tratores é maior nas pequenas unidades no Brasil.

Tabela 05. Brasil – Distribuição da Tecnologia – TRATORES –1995/6

Grupos de área total (Hectares)

Nº Total Tratores

% Nº Tratores Total

% Nº Tratores -10 CV

% Nº Tratores 10 CV a -20 CV

% Nº Tratores 20 CV a -50 CV

% Nº Tratores 50 CV a -100 CV

% Nº Tratores 100 CV e mais

PE

QUE

A

Menos de 10 65.639 8,2 25,2 21,1 10,7 5,7 2,1 10 a – 20 86.486 10,8 16,8 20,1 13,2 10,3 3,0 20 a - 50 167.378 20,8 20,2 24,9 26,2 22,5 7,6

50 a –100 100.647 12,5 9,9 10,5 12,7 14,2 8,2 Menos de 100 420.150 52,3 72,1 76,6 62,8 52,7 20,9

100 a - 200 90.245 11,2 8,2 7,2 10,8 12,3 10,9 Menos de 200 510.395 63,5 80,3 83,8 73,6 65,0 31,8

DIA

200 e – 500 113.906 14,2 8,7 7,5 12,3 14,9 19,0 500 e – 1.000 66.103 8,2 4,6 3,8 6,2 8,1 14,3

1.000 e – 2.000 47.759 5,9 3,1 2,4 3,8 5,4 12,9 200 e – 2.000 227.768 28,3 16,4 13,7 22,3 28,4 46,2

GRADE

2.000 a – 5.000 37.656 4,7 1,9 1,7 2,7 4,0 11,7 5.000 a – 10.000 14.287 1,8 0,6 0,5 0,8 1,4 5,1

10.000 e mais 13.502 1,7 0,8 0,4 0,7 1,2 5,2 2.000 e mais 65.445 8,2 3,3 2,6 4,2 6,6 22,0

TOTAL

% -- 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

º 803.742 (*) -- 37.893 69.906 122.740 447.866 125.337

* A diferença entre a soma e o total refere-se aos estabelecimentos sem declaração Fonte: Censo Agropecuário do IBGE – 1995/6. Org.: OLIVEIRA, A.U.

Quanto às máquinas para plantio e colheita, o quadro não é diferente daquele dos tratores, pois, 71,7% delas também, estavam nas pequenas unidades, enquanto que nas grandes ficavam apenas 5,3%. Com os arados a realidade é a mesma, pois 68,4% dos arados de tração mecânica estavam nas pequenas unidades, sendo que nas grandes ficavam com apenas 5,8% deles. As pequenas unidades têm também a maior parte dos demais veículos de tração mecânica, pois, 59% deles, estavam nelas, enquanto que nas grandes, estavam apenas menos de 12% deles, quer fossem caminhões, utilitários ou reboques. A Tabela 06 apresenta a participação percentual da distribuição destes bens produtivos.

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Tabela 06. Brasil – Distribuição da Tecnologia

Grupos de área total

(Hectares) Máquinas Arados % º Veículos: % Nº

Embarca ções

Para Plan- tio

Para Colhei-

ta

Tração Mecâ-nica

Tração Animal

Cami-nhões

Utili-tários

Rebo-ques

Tração Animal

PE

QUE

NA

Menos de 10 9,4 3,7 7,9 29,2 9,1 12,3 7,3 25,3 38,9 10 a – 20 12,5 7,2 11,9 28,4 8,8 12,1 12,2 23,7 16,5 20 a - 50 24,2 18,4 23,3 25,7 16,9 21,0 23,5 24,6 18,6

50 a –100 15,1 14,4 13,8 8,0 12,9 14,4 13,3 10,2 10,6 Menos de 100 61,2 43,7 56,9 91,3 47,7 59,8 56,3 83,8 84,6

100 a - 200 10,5 13,6 11,5 4,2 11,8 12,2 11,1 7,4 7,0 Menos de 200 71,7 57,3 68,4 95,5 59,5 72,0 67,4 91,2 91,6

DIA

200 e – 500 12,1 16,8 13,5 3,0 14,0 12,8 13,1 5,0 3,9 500 e – 1.000 6,5 9,5 7,3 0,9 8,3 6,3 7,4 1,9 1,5

1.000 e – 2.000 4,5 7,0 5,0 0,4 6,4 4,0 5,4 1,0 1,0 200 e – 2.000 23,1 33,3 25,8 4,3 28,7 23,1 25,9 7,9 6,4

GRA

N

DE

2.000 a – 5.000 3,3 5,3 3,7 0,2 6,0 2,9 3,9 0,6 1,0 5.000 a –10.000 1,0 1,9 1,1 0,0 2,8 1,0 1,4 0,1 0,4

10.000 e mais 1,0 2,2 1,0 0,0 3,0 1,0 1,4 0,2 0,6 2.000 e mais 5,3 9,4 5,8 0,2 11,8 4,9 6,7 0,9 2,0

TOTAL 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: Censo Agropecuário do IBGE – 1995/6. Org.: OLIVEIRA, A.U.

É evidente que embora as pequenas unidades detenham o maior percentual da tecnologia em tratores, máquinas e veículos, a sua presença está longe de aparecer bem distribuída entre os diferentes estabelecimentos. A Tabela 07 procura mostrar esta desigualdade. A mais significativa delas é que apenas 11% do total dos estabelecimentos possuíam tratores. Entre as pequenas unidades com menos de 10 hectares somente 2% delas tinham este bem. Quanto à distribuição dos tratores pelos estabelecimentos, encontra-se um trator para cada 37 estabelecimentos com área inferior a 10 hectares. Entre as pequenas unidades, a média é um trator para cada nove. Nas médias unidades de produção a relação é de um trator para cada estabelecimento. Nas grandes unidades, a relação média é de 3 tratores por estabelecimento, chegando naqueles com mais de 10.000 hectares, a 6 tratores por estabelecimento. Estes dados mostram a desigual distribuição também deste bem. Mas, esta relação é média, pois entre os grandes estabelecimentos somente 72,4% declararam possuir tratores. Isto quer dizer que mesmo entre as maiores unidades nem todas possuíam trator. Já com relação ao uso dos fertilizantes o quadro é crítico, pois, apenas 38,1% dos estabelecimentos estão utilizando-os em suas unidades produtivas. Os demais estão retirando do solo apenas a fertilidade natural dos mesmos. Este cenário pode comprometer em longo prazo a produtividade destes solos. Outro dado curioso é que também entre os pequenos estabelecimentos estão os menores percentuais de uso dos fertilizantes, e simultaneamente, os maiores. Estes são inclusive superiores aos grandes estabelecimentos.

O quadro mais terrível do uso da tecnologia na agropecuária brasileira refere-se ao consumo de agrotóxicos quer para os vegetais quer para os animais. Absurdamente mais da metade dos estabelecimentos informaram que consumiam estes produtos em 95/6. Excetuando-se os estabelecimentos com área inferior a 10 hectares, nas pequenas unidades

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o uso chega a mais de 80% e entre as médias e grandes unidades, este consumo está acima dos 90% dos estabelecimentos. Este uso generalizado dos agrotóxicos mostra que ele foi o mais “espetacular resultado da modernização” da agricultura: seu envenenamento gradativo. Em sua maior parte, uma espécie de “indústria das doenças e da morte” a médio e longo prazo. E é óbvio que, a maior parte da “indústria médico farmacêutica agradece pelos seus clientes”.

O uso da irrigação na agricultura ainda é reduzido. Seus índices não chegam a 10%. Este uso é maior nas médias e grandes unidades do que nas pequenas.

Tabela 07. BRASIL - Indicadores de uso de tecnologia – 1995/6

Estratos de área total (Hectares)

% Uso de Tratores

Nº trator em relação Nº

total estabelecimentos

% Uso de Fertilizante

Total

% Uso de

Agrotóxicos

% Uso de

Irrigação

PE

QUE

A

Menos de 10 2,4 1 x 37 30,8 50,0 5,4 10 a – 20 10,7 1 x 11 52,5 78,7 6,0 20 a – 50 16,0 1 x 5 46,6 81,2 6,1 50 a –100 17,7 1 x 4 39,1 82,5 6,2

Menos de 100 7,7 1 x 10 38,1 63,4 5,7 100 a – 200 22,5 1 x 3 38,6 86,5 6,7

Menos de 200 8,5 1 x 9 38,1 64,6 6,3

DIA

200 e – 500 36,5 2 x 3 43,6 92,9 8,3 500 e – 1.000 50,8 4 x 3 44,6 95,0 9,2

1.000 e – 2.000 62,5 3 x 2 47,5 96,2 9,3 200 e – 2.000 42,8 1 x 1 43,9 93,7 8,6

GRA

DE

2.000 a – 5.000 70,1 5 x 2 42,1 95,6 8,7 5.000 a – 10.000 76,5 4 x 1 37,8 94,9 7,9

10.000 e mais 80,9 6 x 1 36,0 93,2 9,3 2.000 e mais 72,4 3 x 1 40,7 95,2 8,7

TOTAL 10,5 1 x 6 38,3 55,1 5,9 Fonte: Censo Agropecuário do IBGE – 1995/6. Org.: OLIVEIRA, A.U.

Os financiamentos obtidos por poucos e a distribuição profundamente desigual Os números do crédito obtido na agricultura são outro indicativo da profunda desigualdade existente no setor. Os poucos créditos obtidos foram massivamente para o agronegócio das grandes unidades. Aquelas unidades com mais de 10.000 hectares, obtiveram parcelas médias de mais de um milhão de reais para cada uma. As unidades menores entre as pequenas que receberam financiamentos, tiveram que dividir entre si, apenas entre R$ 2.900,00 e R$ 20.000,00. Dessa forma, o crédito também vai engrossar as rendas do agronegócio, reproduzindo de forma aprofundada a desigual distribuição da riqueza na agricultura brasileira. Em termos gerais, inclusive a maior parcelas dos financiamentos foi para as pequenas unidades e não chegaram a 10% dos agricultores dos grupos de área total que obtiveram estes recursos financeiros (Tabela 08). Para se ter uma idéia do quão pequeno foi o total alocado, se fosse distribuído apenas entre os pequenos estabelecimentos, cada um teria recebido R$ 800,00. Também entre as pequenas parcelas de produção, há uma desigual distribuição dos recursos oriundos dos financiamentos. Os grupos de área total entre 50 e 100 hectares e entre 100 e 200 hectares ficaram com mais da metade dos recursos destinados às pequenas unidades como pode ser observado na Tabela

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08. Este processo deriva e gera simultaneamente um processo de diferenciação interna no campesinato, fazendo com que se origine os camponeses pobres, os camponeses médios ou remediados como se diz popularmente, e os camponeses ricos (Lênin, 1985). Esta diferença vai aparecer também nos demais dados referentes à produção agropecuária.

Tabela 08. Brasil – Financiamentos obtidos

Grupos de área total (Hectares)

% do nº de produtores que

obtiveram em relação ao nº total dos estabelecimentos

dos grupos de área total

Participação % do nº de

estabelecimentos sobre o valor

total

Parcela Média em

R$ Obtidas por

estabelecimento

PE

QUE

A

Menos de 10 1,9 3,5 2.900,00 10 a – 20 8,5 5,3 3.300,00 20 a - 50 9,1 11,2 5.600,00

50 a –100 8,1 10,0 11.500,00 Menos de 100 3,9 30,0 4.700,00

100 a - 200 8,2 11,1 20.300,00 Menos de 200 4,1 41,1 6.600,00

DIA

200 e – 500 9,3 15,7 38.000,00 500 e – 1.000 9,9 11,5 73.500,00

1.000 e – 2.000 10,5 9,8 122.600,00 200 e – 2.000 9,6 37,0 57.000,00

GRA

DE

2.000 a – 5.000 9,9 11,4 284.200,00 5.000 a – 10.000 8,5 4,8 563.200,00

10.000 e mais 9,0 5,5 1.044.653,00 2.000 e mais 9,6 21,7 402.800,00

TOTAL 5,3 100,0 14.400,00 Fonte: Censo Agropecuário do IBGE – 1995/6. Org.: OLIVEIRA, A.U.

Com o PRONAF - Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar, o quadro da desigualdade continua presente. Os camponeses que utilizam o Pronaf “D” e “E” têm ficado com as maiores parcelas dos recursos financeiros alocados. Os dados expressos pela Tabela 09 testemunham esta evidência.

Também cabe salientar o crescimento do acesso ao financiamento do grupo do Pronaf “A” e do aumento geral dos recursos financeiros disponíveis. A diferença entre o governo FHC e o governo LULA já aparece de forma nítida na política implementada nos financiamentos. Quanto ao financiamento geral da safra agrícola 2003/2004, o governo alocou R$32,5 bilhões. Deste total foi reservado R$5,4 bilhões para o PRONAF.

Comparando-se os recursos financeiros disponíveis para financiamento na agricultura brasileira com a agricultura norte-americana, verifica-se que os subsídios agrícolas acessados naquele país chegam a cinco vezes mais. Os dados da Tabela 10 indicam a situação entre 2.000 e 2.002.

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Tabela 09. Desempenho do Crédito Rural para Agricultura Familiar - Quadro Comparativo

Grupos do PROAF Modalidade

2001 2002 2003 Variação % 2002-

2003

Nº de Contratos

Montante (R$

milhões)

Nº de Contratos

Montante (R$

milhões)

Nº de Contratos

Montante (R$

milhões)

Contra-tos

Montante\(R$

milhões) A – Crédito para Investimento 42.655 55.610 441,3 64.416 568,2 16% 29%B - Microcrédito Investimento 106.716 168.910 84,4 150.711 134,3 -11% 59%C - Crédito para Agricultores Familiares em

Custeio 347.411 375.189 478,2 497.162 801,8 33% 68%Investimento 22.147 35.225 218,4 30.478 222,8 -13% 2%

D - Crédito para Agricultores Familiares

Custeio 371.428 288.201 913,9 294.760 1.218,2 2% 33%Investimento 20.109 30.112 268,7 48.677 517,8 62% 93%

E - Crédito para Agricultores Familiares

Custeio - - - 27.162 250,3 -Investimento - - - 432 7,2 -

Compras da Agricultura Pré Custeio / - - - 34.013 81,6 -

Sub total Custeio 718.839 663.390 1.392,1 819.084 2.270,3 23% 63%Investimento 191.627 289.857 1.012,7 294.714 1.450,3 2% 43%

Sub Total Pronaf 910.466 953.247 2.404,8 1.113.798 3.720,6 17% 55%Total Geral 910.466 953.247 2.404,8 1.147.811 3.802,2 20% 58%Fonte: Agentes Financeiros (BACEN, BB, BNB, BASA, BANSICREDI e BANCOOB) Elaboração: SAF/MDA Fonte: CONAB

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Tabela 10 . Subsídios recebidos pelos agricultores norte-americanos

(em milhões de dólares)

Cultura 2.000 % 2.001 % 2.002 % Milho 9.267,95 18,7 6.549,98 12,7 4.578,72 11,6 Trigo 5.387,93 10,8 3.979,54 7,7 2.610,52 6,6 Soja 4.848,71 9,8 4.522,00 8,7 2.101,41 5,3 Carne bovina 1.426,76 2,9 1.669,90 3,2 1.450,91 3,7 Carne de frango 752,81 1,5 933,67 1,8 822,51 2,1 Carne suína 476,49 1,0 527,13 1,0 414,79 1,0 Subtotal 22.160,66 44,6 18.182,22 35,2 11.978,86 30,3 TOTAL AGRÍCOLA 49.673,37 100,0 51.683,23 100,0 39.558,60 100,0

Fonte: ICONE - Instituto de Estudos de Comércio e Negociações Internacionais. Org.: OLIVEIRA, A.U.

Aliás, é este sistema de subsídios que garante aos USA soberania e segurança

alimentar, além de ser o maior exportador mundial de excedentes agrícolas. Assim, o programa de subsídios na agricultura norte-americana funciona através de uma fórmula complexa: o repasse é feito em duas fases: o primeiro, com base no produto e na área plantada, chega até dezembro, ou na data indicada pelo produtor. A segunda parcela é liberada em abril e determinada pelo preço do produto. Isso significa dinheiro direto na conta do produtor. Se o preço de mercado cair, o agricultor recebe a diferença do governo, uma espécie de garantia de preço. Para ter direito a um pacote de recursos, os candidatos precisam estar em sintonia com os programas governamentais de cuidados ambientais. O não cumprimento dos compromissos pode levar a sanções.

Debaixo de um grande guarda-chuva de apoios, o seguro de safra é outro braço, assim como o incentivo para a preservação ambiental. O diretor executivo estadual da Agência de Serviços do Departamento de Agricultura dos EUA, William Graff, responsável pelo atendimento a 179 mil fazendas do Estado, explica que parte dos subsídios é encaminhada para pagamento dos programas de conservação - tipo de incentivo que a comunidade internacional não considera distorcivo ao mercado. O departamento ainda mantém programas de garantia de preços mínimos de commodities, observa Graff: Quanto maior o preço de mercado, menor a quantidade de dólares que mandamos aos agricultores.” (Jornal Zero Hora, dezembro 2003)

Dessa forma, os financiamentos agrícolas vão entrando na ordem do dia do debate internacional e certamente, na OMC – Organização Mundial do Comércio será tema de interesse mundial. Mas, deve-se registrar que a agricultura nos USA, na Europa e no Japão, é fortemente subsidiada. Portanto, é necessário desmistificar a máxima divulgada pelo agronegócio de que aqui não há subsídio. Embora pouco, ele existe, e mais, há também a super exploração dos baixos salários pagos aos trabalhadores brasileiros ou da renda recebida pela grande maioria dos agricultores camponeses que produzem os produtos de exportação.

Enfim, a terra nas pequenas unidades de produção é apropriada com fins produtivos,

por isso intensamente ocupada. Logo, elas são também, grandes consumidoras de produtos de origem industrial. Ao contrário, a maioria das grandes propriedades não é ocupada com

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fins produtivos, elas constituem-se em reserva patrimonial e de valor dos latifundiários. Estes latifundiários não são pessoas estranhas ao capitalismo, ao contrário, a maioria das grandes propriedades no Brasil, está em mãos de grandes empresas industriais, financeiras e de serviços, e muitas vezes, em nomes de seus familiares. Portanto, quem de fato gera emprego no campo são as pequenas unidades, acompanhadas de perto pelas médias. Então, no discurso, os grandes proprietários usam o agronegócio para encobrir suas terras improdutivas. Como se verá pelos dados relativos à produção agropecuária no Brasil, são as pequenas e as médias unidades as que de fato, são responsáveis pelo seu crescimento e destaque, e não as grandes. As pequenas unidades produzem mais em volume da produção

Os dados do IBGE referentes ao último Censo Agropecuário (1995/6), mostram que são as pequenas unidades quem produzem a grande maioria dos produtos do campo. Esta realidade precisa ser esclarecida, pois há o mito de que quem produz no campo são as grandes propriedades.

Com relação à utilização da terra, as lavouras (temporárias e permanentes)

ocupavam 50,1 milhões de hectares ou 14,1% da área total dos estabelecimentos e nelas, as pequenas unidades ficavam com 53%, as médias com 34,5% e as grandes com 12,5%. As pastagens por sua vez, ocupavam 177,7 milhões de hectares ou 49,8% da área total dos estabelecimentos e nelas as pequenas unidades ficavam com 34,9%, as médias com 40,5% e as grandes com 24,6%. Já as áreas ocupadas pelas matas e florestas perfaziam 26,5% do total (94,2 milhões de hectares) e as áreas ocupadas com terras produtivas não utilizadas representavam 4,6% (16,3 milhões de hectares).

É necessário neste momento, verificar quanto cada uma dessas unidades produzem.

Em primeiro lugar, será apresentado o total dos rebanhos e plantéis da pecuária no país (Tabela 11).

Tabela 11. Brasil – Distribuição dos Plantéis

Rebanho PEQUEA %

MÉDIA %

GRADE %

Bovinos 37,7 40,5 21,8 Bubalinos (búfalos) 24,6 44,5 30,9 Eqüinos 59,2 31,3 9,5 Asininos 87,1 11,3 1,6 Muares 63,0 25,3 11,7 Caprinos 78,1 19,2 2,5 Coelhos 93,1 6,4 0,5 Suínos 87,1 11,0 1,7 Ovinos 55,5 35,7 8,8 Aves 87,7 11,5 0,8

Fonte: Censo Agropecuário do IBGE – 1995/6. Org.: OLIVEIRA, A.U.

Como se pode ver, apenas o rebanho de búfalos era maior nas grandes unidades.

Mesmo quanto ao rebanho bovino, as pequenas unidades tinham um percentual quase o

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dobro daqueles dos latifúndios. É preciso repetir que embora a área ocupada seja maior nos latifúndios a terra não é posta para produzir. Ela fica com a função de patrimônio, ou seja, a terra é retida apenas como reserva de valor.

Ainda discutindo a pecuária de bovinos, verifica-se que quanto às matrizes

vendidas, as pequenas unidades contribuíram com 38,5% enquanto que os latifúndios com apenas 19,3% (as médias tiveram 42,1%). Também em relação ao gado abatido, as pequenas unidades participaram com 62,3% enquanto que os latifúndios com apenas 11,2% (as médias ficaram com 26,4%).

Quanto à produção de leite a posição das pequenas unidades foi majoritária 71,5%,

sendo que os latifúndios produziram apenas 1,9% (as médias ficaram com 26,6%). No que se refere à produção de lã, as pequenas participaram com 27,7% enquanto que os latifúndios produziram apenas 17,7% (as médias produziram 54,6%). Já em relação à produção de ovos 79,3% vieram das pequenas unidades, ficando as médias com 18,5% e as grandes com apenas 2,2%.

Assim, pode-se verificar que em relação à produção de origem animal o volume de

produção das pequenas unidades é superior às grandes unidades, portanto, aos latifúndios. A seguir, será verificada na Tabela 12, a participação na produção das lavouras temporárias: Tabela 12 –Brasil – Distribuição do Volume de Produção – Lavouras Temporárias

Produtos PEQUEA MÉDIA GRADE Algodão (herbáceo) 55,1 29,9 15,0 Arroz (em casca) 38,9 42,7 18,4 Batata-inglesa(1ª safra) 74,0 20,7 5,3 Batata-inglesa(2ª safra) 76,7 20,9 2,4 Cana-de-açúcar 19,8 47,1 33,1 Feijão (1ª,2ª e 3ª safras) 78,5 16,9 4,6 Fumo em folha 99,5 0,5 Zero Mandioca 91,9 7,3 0,8 Milho em grão 54,4 34,8 10,8 Soja em grão 34,4 43,7 21,9% Tomate 76,4 18,5 5,1 Trigo em grão 60,6 35,2 4,2

Fonte: Censo Agropecuário do IBGE – 1995/6. Org.: OLIVEIRA, A.U.

Em termos do volume da produção entre as lavouras temporárias, apenas na cultura da cana-de-açúcar os latifúndios produziram mais que as pequenas unidades, pois mesmo entre as famosas commodities – soja e milho - as pequenas unidades produzem um volume maior do que as grandes.

Quanto às lavouras permanentes (Tabela 13), também o cenário não é diferente. As

pequenas unidades de produção produziram mais que os latifúndios em termos de volume da produção:

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Tabela 13. Brasil – Distribuição do Volume de Produção – Lavouras Permanentes

Produtos PEQUEA MÉDIA GRADE Ágave (fibra) 73,4 23,7 2,9 Algodão (arbóreo) 75,9 20,1 4,0 Banana 85,4 13,6 1,0 Cacau (amêndoas) 75,4 23,7 0,9 Café (em coco) 70,4 27,9 1,7 Caju (castanha) 71,8 15,0 13,2 Chá-da-Índia 47,3 52,7 Zero Coco-da-baia 67,0 19,9 13,1 Guaraná 92,2 7,5 0,3 Laranja 51,0 38,1 10,9 Maçã 35,4 32,3 32,3 Mamão 60,1 35,1 4,8 Pimenta-do-reino 72,6 23,1 4,3 Uva (para mesa) 87,8 9,1 3,1 Uva (para vinho) 97,0 3,0 zero

Fonte: Censo Agropecuário do IBGE – 1995/6. Org.: OLIVEIRA, A.U.

Como se pode verificar, também entre as commodities (laranja, café e cacau) as pequenas unidades (menos de 200 hectares) tiveram, o maior volume da produção. Neste setor, há que se destacar o café com uma participação das pequenas unidades acima de 70%.

Entre os produtos agrícolas oriundos da horticultura a maioria do volume da

produção recaiu massivamente entre as pequenas unidades de produção, pois tradicionalmente são elas as maiores produtoras deste gênero alimentício. O mesmo processo ocorre na floricultura. Esta mesma participação expressiva das pequenas unidades, também ocorreu entre os produtos oriundos do extrativismo vegetal. Neste setor da produção vegetal praticamente mais de 50% do volume vem das unidades com menos de 200 hectares, como pode ser observado pela Tabela 14.

Tabela 14. Brasil – Distribuição do Volume de Produção

- Extração Vegetal Produtos PEQUEA MÉDIA GRADE

Borracha (coagulada) 60,1 20,5 19,4 Carvão vegetal 50,3 27,1 13,6 Castanha-do-Pará 79,1 16,6 2,3 Erva-mate 67,6 25,8 6,6 Lenha 86,9 26,5 6,1 Madeiras em toras 49,7 26,5 23,8

Fonte: Censo Agropecuário do IBGE – 1995/6. Org.: OLIVEIRA, A.U.

O único setor da produção vegetal que os latifúndios tiveram participação

hegemônica foi na silvicultura (Tabela 15). A razão desta hegemonia decorre da história de sua origem, atrelada às políticas de incentivos fiscais, durante os governos militares.

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Tabela 15. Brasil – Distribuição do Volume de Produção

– Silvicultura

Produtos PEQUEA MÉDIA GRADE

Carvão vegetal 11,2 18,1 67,8 Madeiras em tora 10,0 34,8 55,1 Madeiras para papel 8,3 18,6 73,1

Fonte: Censo Agropecuário do IBGE – 1995/6 Org.: OLIVEIRA, A.U.

As pequenas unidades de produção também geram mais renda no campo

Outro mito comum entre aqueles que analisam a agricultura brasileira, refere-se à participação das diferentes unidades de produção na geração da renda neste setor. Costumam atribuir à grande exploração o papel de destaque. A análise dos dados do valor da produção animal e vegetal do Censo Agropecuário, mostram exatamente o oposto, pois quem detém a maior participação na geração de renda no campo brasileiro também, são as pequenas unidades de produção com menos de 200 hectares que ficam com 56,8% do total geral. Os dados percentuais desta participação na Tabela 16, são provas inequívocas desse papel.

Tabela 16. Brasil – Distribuição do VALOR da PRODUÇÃO

Setor TOTAL

GERAL PARTICI-PAÇÃO

PEQUENA

MÉDIA

GRANDE

TOTAL GERAL 100,0 100,0 56,8 29,6 13,6 TOTAL da PRODUÇÃO AIMAL

39,4

100,0

60,4

28,6

11,2

Animal de grande porte 25,2 100,0 46,4 37,2 16,4 Animal de médio porte 3,8 100,0 85,5 12,9 1,6 Pequenos animais e aves 10,4 100,0 84,8 13,6 1,5 TOTAL da PRODUÇÃO VEGETAL

60,6

100,0

53,6

31,2

15,2

Lavouras Temporárias 42,1 100,0 49,2 33,8 16,7 Lavouras Permanentes 12,6 100,0 70,5 24,3 5,2 Horticultura e floricultura 2,0 100,0 94,7 4,1 1,2 Extração Vegetal 1,6 100,0 67,6 17,9 11,3 Silvicultura 2,3 100,0 16,8 23,4 59,8

Fonte: Censo Agropecuário do IBGE – 1995/6. Org.: OLIVEIRA, A.U.

Quanto às receitas totais geradas pelos estabelecimentos agropecuários, cabe destacar que as pequenas unidades também ficaram com o maior percentual, ou seja, 53,5% do total. As médias ficaram com 31,1% e os latifúndios com apenas 15,4% do total geral (Tabela 17). Dessa forma, em praticamente todas as variáveis, as pequenas unidades de produção na agricultura, são mais produtivas do que os latifúndios. Este cenário indica que a terra na grande propriedade não está sendo posta para produzir, mas sim como já destaquei, destinada às reservas patrimoniais e de valor.

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Tabela 17. Brasil – Distribuição da RENDA LÍQUIDA TOTAL

(R$1.000,00)

Itens TOTAL % % PEQUENA % MÉDIA % GRANDE % RECEITAS TOTAIS

43.622.749 100,0 100,0 23.359.659 53,5 13.520.289

31,0 6.701.117 15,5

DESPESAS TOTAIS

26.880.701 61,6 100,0 13.481.409 50,2 8.523.594 31,7 4.861.743 18,1

RENDA LÍQUIDA TOTAL

16.742.048

38,4

100,0

9.878.250

59,0

4.996.695

29,8

1.839.374

11,2

Fonte: Censo Agropecuário do IBGE – 1995/6. Org.: OLIVEIRA, A.U.

A distribuição da renda líquida total revela e reforça a tese central de que a pequena unidade de produção é responsável pela maior receita, despesa e volume financeiro dela. O latifúndio, por sua vez, ficou com a menor parcela.

Entretanto, aprofundando mais esta investigação, verifica-se que como o número

das pequenas unidades é elevado (88,85% do total), a parcela média obtida por unidade é também pequena. Por exemplo, na Tabela 18, a quantia média do valor da produção por estabelecimento entre aqueles que tem área inferior a 10 hectares, variou entre R$ 1.130,00 e R$ 4.240,00. Entre aqueles que possuem área entre 10 e 200 hectares, a parcela média variou entre R$ 6.500,00 e R$ 20.500,00. Enquanto isso nas grandes unidades esta parcela média variou entre R$ 231.000,00 e R$ 827.000,00.

A situação não foi diferente no item das receitas. Enquanto que nas pequenas o

valor médio por estabelecimento, variou de R$ 1.040,00 a R$ 18.800,00, entre as grandes ela variou de R$ 236.800,00 e R$ 881.000,00. No item despesas o quadro da desigualdade foi semelhante, o que também ocorreu com a renda líquida total média. Como o número dos grandes estabelecimentos é reduzido (0,5%) o resultado por unidade torna-se elevado.

Cabe esclarecer que esta concentração é resultado também da histórica concentração

da terra no país e particularmente, pelo fato de que o Brasil continua sendo um país onde parte significativa das exportações é de produtos básicos ou apenas semimanufaturados. Assim, a elite tem se reproduzido, reproduzindo a concentração da terra e da renda. Vender para o mercado mundial mais produtos da agricultura, o que o Brasil fez em toda sua história, agora virou participar do agronegócio. Até a cidade de Ribeirão Preto que foi “a capital do café” agora adotou um novo slogan: a “capital do agronegócio”. Muda-se para não mudar nada. Com todo respeito aos incansáveis trabalhadores desta cidade, mas Ribeirão Preto continua sendo “um fazendão iluminado”, como afirmou um agente do setor imobiliário de lá (Beltrão Sposito, 1991). Esta região tornou-se uma espécie de ícone do agronegócio. Aliás, há algum tempo, a Rede Globo fez um programa especial do Globo Repórter, para chamar aquela região de “Califórnia brasileira”. Existe pelos menos duas grandes diferenças entre ambas: a distribuição da terra e da renda. Na Califórnia, a sociedade norte-americana desde o século XIX, tratou de fazer cumprir leis que limitaram o tamanho da propriedade da terra no centro e oeste do país: “Esse processo de abertura do acesso a terra teve início com uma lei de 1820 que permitia a venda de terras do Estado

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em pequenas parcelas de 80 acres (32,3736 hectares) ao preço de U S$ 1,25 por acre (4.047 m2) . Em 1832, o Estado autorizou a venda de propriedades de até 40 acres (16,1868 ha). Por fim, em 1862, foi assinada The Homestead Act, ou a lei da colonização americana, que permitia a concessão gratuita de terra para propriedades de 160 acres (64,7472 ha)”.(Oliveira, 1990)

Assim, parece que sempre teimosamente, quando a história se repete, ela o faz como

farsa. Este conjunto de resultados apresentados referentes aos dados da agricultura brasileira, é mais um indicativo de que a necessária e fundamental melhor distribuição da renda na agricultura passa necessariamente pela redistribuição da terra. Maior acesso a terra significa possibilidade de obtenção de melhor fatia da renda geral.

Tabela 18. Brasil – Valor da produção, receitas, despesas e renda líquida média

por estabelecimento.

Grupos de área total (Hectares)

úmero

de estabeleci mentos

%

do nº de estabeleci-lmentos

Valor da Produção Médio por

estabelecimento

Valor Médio

das Receitas Totais por

estabeleci- mento

Valor Médio

das Despesas Totais por

estabelecimento

Valor Médio

REDA LÍQUIDA TOTAL

por estabelecimen-

to PE

Menos de 1 512.032 10,5 1.130,00 1.040,00 525,00 515,00 1 a – 2 471.298 10,0 1.390,00 1.190,00 620,00 570,00 2 a – 5 796.724 16,4 2.610,00 2.320,00 1.200,00 1.120,00

5 a - 10 622.320 12,8 4.240,00 3.650,00 1.910,00 1.740,00 QUE

A

Menos de 10 2.402.374 49,4 --- --- --- --- 10 a – 20 701.416 14,4 6.500,00 5.480,00 2.990,00 2.490,00 20 a - 50 814.695 16,8 9.000,00 7.760,00 4.500,00 3.260,00

50 a –100 400.375 8,2 12.600,00 11.160,00 6.460,00 4.700,00 Menos de 100 4.318.861 88,8 --- --- --- ---

100 a - 200 246.314 5,1 20.500,00 18.800,00 11.530,00 7.270,00 Menos de 200 4.565.175 93,9 --- --- ---

DIA

200 e – 500 165.243 3,4 39.000,00 37.400,00 23.140,00 14.260,00 500 e – 1.000 58.407 1,2 77.000,00 74.900,00 43.600,00 31.300,00

1.000 e – 2.000 28.504 0,6 130.000,00 129.100,00 79.700,00 49.400,00 200 e – 2.000 252.154 5,2 --- --- --- ---

GRA

DE

2.000 a – 5.000 14.982 0,3 231.000,00 236.800,00 151.500,00 85.300,00 5.000 a – 10.000 3.688 0,1 410.000,00 451.100,00 325.100,00 126.000,00

10.000 e mais 2.184 0,1 827.000,00 881.000,00 678.000,00 203.000,00 2.000 e mais 20.854 0,5 --- --- --- ---

TOTAL (*) 4.859.865

(*) 100,0 10.100,00 9.420,00 5.820,00 .600,00

* A diferença entre a soma e o total refere-se aos estabelecimentos sem declaração Fonte: Censo Agropecuário do IBGE – 1995/6 Org.: OLIVEIRA, A.U.

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2. O CAMPESIATO O BRASIL 2.1. A diversidade do campesinato no Brasil 2.1.1. Multiplicidade de situações Um total de 64,6% dos estabelecimentos considerados como “agricultura familiar” se localiza nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Nessas regiões, por diversos fatores históricos da sua formação, há uma grande diversidade de formas sociais de reprodução do campesinato.

Referindo-se a essa diversidade no Pará, Hebette (2004: 12-13), arrola as seguintes denominações ou autodenominações regionais: lavradores, agricultores, camponeses, ribeirinhos, varzeiros, quilombolas, extratores, posseiros, colonos, assentados, atingidos por barragem, catadores de babaçu, castanheiros, seringueiros, pescadores, catadores de caranguejos e catadores de siris. Outra denominações ou auto-denominações poderiam ser arroladas como quilombolas, quebradeiras de coco babaçu, fundos de pastos...

Com relação aos pescadores artesanais, Maneschy (2003: 1) ressalta: “Os

pescadores, pescadores-lavradores, ribeirinhos, lavradores e extrativistas no Pará e, por extensão, na Amazônia, partilham uma origem histórica comum que remonta à colonização e ao processo de desestruturação das populações indígenas, sua conversão no “índio genérico”, destribalizado, formador das populações rurais amazônicas.”

Almeida (2004: 3-4) ao analisar os novos padrões de relação política no campo e na cidade ressalta: “A nova estratégia do discurso dos movimentos sociais no campo, ao designar os sujeitos da ação, não aparece atrelada à conotação política que em décadas passadas estava associada principalmente ao termo camponês. Politiza-se aqueles termos e denominações de uso local. Seu uso cotidiano e difuso coaduna com a politização das realidades localizadas, isto é, os agentes sociais se erigem em sujeitos da ação ao adotarem como designação coletiva as denominações pelas quais se autodefinem e são representados na vida cotidiana (...) Tal multiplicidade de categorias cinde, portanto, com o monopólio político do significado dos termos camponês e trabalhador rural, que até então eram utilizados com prevalência por partidos políticos, pelo movimento sindical centralizado na CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) e pelas entidades confessionais (CPT, CIMI, ACR). Tal ruptura ocorre sem destituir o atributo político daquelas categorias de mobilização. As novas denominações que designam os movimentos e que espelham um conjunto de práticas organizativas, traduz transformações políticas mais profundas na capacidade de mobilização destes grupos face ao poder do Estado e em defesa de seus territórios (...)” (grifos no original)

“Em virtude disto é que se pode dizer que mais que uma estratégia de discurso tem-se o advento de categorias que se afirmam através de uma existência coletiva, politizando não apenas as nomeações da vida cotidiana, mas também práticas rotineiras no uso da terra. A complexidade de elementos identitários, próprios de autodenominações afirmativas de culturas e símbolos, que fazem da etnia um tipo organizacional (BARTH: 1969), foi trazida

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para o campo das relações políticas, verificando-se uma ruptura profunda com a atitude colonialista homogeneizante, que historicamente apagou diferenças étnicas e a diversidade cultural, diluindo-as em classificações que enfatizavam a subordinação dos “nativos”, “selvagens” e ágrafos ao conhecimento erudito do colonizador.”

“Não obstante diferentes planos de ação e de organização e de relações distintas

com os aparelhos de poder, tais unidade de mobilização podem ser interpretadas como potencialmente tendendo a se constituir em forças sociais. Nesta ordem elas não representam apenas simples respostas a problemas localizados. Suas práticas alteram padrões tradicionais de relação política com os centros de poder e com as instâncias de legitimação, possibilitando a emergência de lideranças que prescindem dos que detém o poder local. Destaque-se, neste particular, que mesmo distantes da pretensão de serem movimentos para a tomada do poder político logram generalizar o localismo das reivindicações e mediante estas práticas de mobilização aumentam seu poder de barganha face ao governo e ao estado, deslocando os ‘mediadores tradicionais’ (grandes proprietários de terras, comerciantes de produtos extrativos-seringalistas, donos de castanhais e babaçuais). Deriva daí a ampliação das pautas reivindicatórias e a”. multiplicação das instâncias de interlocução dos movimentos sociais com os aparatos político-administrativos, sobretudo com os responsáveis pelas políticas agrárias e ambientais (já que não se pode dizer que exista uma política étnica bem delineada).”

Tudo leva a crer que parte significativa dessas categorias sociais, sejam elas autodenominadas sejam denominadas pelo outro, esteja de certa maneira contempladas sob nas estatísticas que identificam os estabelecimentos rurais. Isso não significa que essa diversidade de categorias sociais passíveis de serem envoltas pela expressão camponês.

Para evidenciar a complexidade dessa diversidade se apresenta a seguir alguns

textos e extratos de textos resultantes de estudos de diversos autores sobre o campesinato do país.

-------x------- 2.1. 2. O “lavrador nacional” 19 Introdução

O texto que apresentamos tem a pretensão de contribuir para o conhecimento de um

grupo social importante na história do país. Trata-se dos lavradores nacionais, camponeses conhecidos como caboclos, sertanejos, caipiras e tantos outros nomes, conforme a região. Uma palavra muito comum na documentação e na literatura do sul do Brasil é caboclo, que tem um sentido étnico, mas também cultural ou sociológico. A palavra caboclo é de origem Tupi e designa o filho de indígena com branco europeu. Do ponto de vista sociológico, caboclo "significa pertencer a um grupo social com características próprias, definidas pela concepção geral das coisas, do estilo de vida, das relações com os outros grupos sociais,

19 Esta seção corresponde à Introdução e cap. 1. O Lavrador Nacional do documento de Zahr, Paulo Afonso (1997). O Lavrador Nacional. Caboclo 3. Ijuí, mimeo18 p. (pp. 1 a 8).

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pelo sistema de trabalho, pelo sistema de reprodução biológico e social, pela religiosidade", conforme definição de Gehlen (1991).

Antônio Cândido (1977: 22) em seu estudo clássico sobre os caipiras de São Paulo

prefere usar a palavra "caipira", que "exprime um modo de ser, um tipo de vida, nunca um tipo racial". Em São Paulo, segundo o autor, caboclo tem um sentido racial e por isso ele preferiu optar pela palavra caipira.

Na documentação oficial, o termo mais comum para designar este tipo de camponês

livre é lavrador nacional. No censo de 1872, a profissão de lavrador é a mais comum entre os recenseados de alguns municípios agrícolas do interior da província. A palavra é empregada basicamente para designar o que a literatura especializada chama de camponês. O adjetivo nacional é empregado para diferenciá-lo do lavrador imigrante.

No censo de 1872 a população foi classificada, do ponto de vista étnico, em: pardos,

pretos, brancos e caboclos. Nesse caso caboclo se refere aos mestiços descendentes de índios e brancos, conforme o sentido literal da palavra na língua tupi. No entanto, a palavra caboclo é largamente utilizada na literatura para designar genericamente o lavrador nacional, com um sentido mais cultural do que étnico. Atualmente o conceito de caboclo é fortemente marcado pelo aspecto cultural, tanto que a expressão foi utilizada para designar imigrantes alemães que caíram à um nível de vida semelhante ao lavrador nacional ou caboclo. Embora o conceito não seja puramente étnico, pode se afirmar que o caboclo é, na imensa maioria, descendente de índios, portugueses e africanos.

Caboclo, portanto, é uma palavra corrente na bibliografia recente para indicar o

lavrador nacional pobre, o camponês brasileiro. Nesse sentido, José de Souza Martins (1983: 15-17) lembra que a palavra camponês foi introduzida no país pela importação política das esquerdas quando existiam nomes específicos nas diversas regiões: caipira, caboclo, colono. Mas caboclo não pode ser sinônimo de camponês no sul do Brasil, pois há distinção muito nítida entre dois tipos de camponeses que formam o campesinato regional. O colono é um camponês imigrante ou filho de imigrantes europeus, enquanto caboclo se refere ao lavrador nacional e ao modo de vida diferenciado deste último, mais próximo do nível de vida original do indígena. Colono significa um imigrante europeu ou descendente, de origem não ibérica, com nível de vida mais elevado e mais inserido no mercado, além de levar uma vida cultural distinta.

Diante destas ponderações, vamos considerar aqui como lavrador nacional um

grupo social ligado ao mundo rural e que se distingue, na história do Brasil, pelas suas diferenças em relação aos escravos, aos indígenas, aos fazendeiros e aos colonos. Esse grupo social aparece nas fontes na condição de pequenos lavradores, agregados de estâncias, ervateiros e uma série de outras atividades ligadas ao mundo rural. Vamos utilizar, portanto, as palavras "nacional", "caboclo"ou "ervateiro" sempre no mesmo sentido. O Lavrador *acional

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Os grandes fazendeiros e os colonos imigrantes são bastante conhecidos na historiografia rio-grandense; mesmo a história dos escravos negros tem sido razoavelmente divulgada. Não se pode dizer o mesmo a respeito dos trabalhadores livres nacionais, conhecidos por caboclos ou caipiras, que constituem um grupo social importante na formação da sociedade brasileira.

Não há dúvida quanto à presença de milhões de trabalhadores nacionais em todo o

Brasil, sobrevivendo sob diversas condições de trabalho. Porém, não está claro o papel destes homens na história social do país. O professor Peter Eisenberg (1977-78: 157), se referindo ao caso de São Paulo, denomina esse tipo de trabalhador de "o homem esquecido" - um título perfeito. O autor acredita que ele é um elemento chave para a questão do trabalho durante o século XIX. Entretanto, quando se discutia a substituição dos escravos africanos por trabalhadores livres de outros continentes, o caboclo era lembrado como fonte alternativa de mão-de-obra.

O Francês Louis Couty (1984: 21) em sua análise sobre a questão da mão-de-obra

no Brasil, falava em 1884, sobre a existência de "5 ou 6 milhões de camponeses mestiços que estão espalhados pelo Brasil". Mas o próprio Couty comentava preconceituosamente que esses homens não resolveriam o problema da substituição dos escravos pois, "não há continuidade no trabalho desses camponeses. Bons para obras difíceis e passageiras, descansam quando tem algum dinheiro e não pensam em economizar" (County, idem: 82). Peter Eisemberg escreve, com razão, que é fácil encontrar na literatura do século XIX autores que condenam a qualidade do lavrador nacional, acusando-os de preguiçosos e indolentes. A observação de Louis Couty faz parte de uma das mais divulgadas interpretações que tentam responder a questão: Porque imigrantes e não trabalhadores nacionais?

A suposta dificuldade em incorporar o lavrador nacional ao trabalho sistemático dos

fazendeiros é tratada de diversas formas pelos diferentes analistas. João Manoel Cardoso de Mello, em livro bastante conhecido, entende que a própria agricultura escravista de exportação marginalizava os homens livres e pobres, "porque (eram) dispensáveis, ao mesmo tempo não os deixava à disposição do capital desde que a eles era permitido produzirem sua própria subsistência" (Mello, 1979: 78). O autor complementa seu raciocínio afirmando que a abundância de terras criava entraves para "emergência da produção capitalista", considerando que os lavradores nacionais tinham acesso às terras virgens.(Mello, idem: 78).

Para Cardoso de Mello, a população livre nacional simplesmente não se submetia ao

mercado de trabalho e preferiam seu "secular modo de vida" baseado na produção própria para subsistência. Esse argumento baseia-se no estudo de Maria Sylvia de Carvalho Franco, cuja obra é uma das mais importantes sobre o assunto.

No estudo sobre o homem livre pobre, Maria Sylvia de Carvalho Franco apresenta

os lavradores nacionais livres como homens isolados, vivendo à margem da sociedade. Esta é uma visão amplamente difundida. A grande propriedade voltada para a produção mercantil, tocada pelo trabalho escravo, teria criado as condições para o desenvolvimento de um contingente populacional despossuído de propriedades e desvinculados do processo

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produtivo considerado mais importante para o país. Desta forma, ela escreve, "formou-se antes uma ralé que cresceu e vagou ao longo de quatro séculos: homens a rigor dispensáveis, desvinculados dos processos essenciais à sociedade" (Franco, 1969: 12)

A análise de Carvalho Franco centraliza-se nas relações de dependência dos homens

pobres para com os grupos dominantes. Esta visão, na opinião crítica da historiadora Hebe Maria Mattos de Castro, apresenta certas dificuldades na medida em que "reúne como homens livres pobres categorias sociais a nosso ver bastante diversas e nem sempre facilmente identificadas pela pobreza" (Castro, 1987), referindo-se ao fato da autora colocar tropeiros, vendeiros e sitiantes ao lado de agregados e camaradas. Como contraponto, Hebe M. M. de Castro centraliza suas atenções nas "formas de produção e comercialização agrícola a que estas se encontram vinculadas". Portanto, é uma análise a partir de suas ligações com o mercado.

A idéia do isolamento da população cabocla, segundo Maria Isaura de Queiroz,

pode ser encontrada no famoso livro de Euclides da Cunha: Os sertões. Para Euclides, a população cabocla "se mantinha ilhada em suas glebas, separada das cidades da costa, nas quais tinha lugar o progresso". Essa explicação foi aceita sem críticas: "criou-se então a lenda do isolamento das populações caboclas, que perdura até hoje como explicação aceita sem maiores críticas por parte dos estudiosos".(Queiroz, 1973: 8-9)

Na perspectiva das relações de trabalho, estudos recentes têm constatado que o

agricultor nacional tem estabelecido laços estreitos com as grandes fazendas. Nessa direção um trabalho de José de Souza Martins a respeito dos caboclos de São Paulo demonstra que, na medida em que as fazendas de café avançavam para o interior paulista, os caipiras iam sendo gradativamente expulsos da terra pelos grandes fazendeiros, mas ao mesmo tempo eram incorporados ao próprio trabalho de formação dos cafezais: "No Habia lugar para ellos dentro de la gran hacienda de café. No obstante, la expansión de los cafetales los incorporó como plantadores" (Martins, 1985: 234).

Este processo está associado ao controle e apropriação da terra. As grandes fazendas

eram legitimadas através de mecanismos legais ou fraudulentos que desconsideravam a presença de posseiros no seu interior. A lei de terras de 1850 veio impedir que homens livres e pobres se apropriassem da terra como o faziam pelo sistema de posse. Independente de legislação oficial, não há dúvidas de que ocorreu uma verdadeira expropriação de camponeses nacionais tanto que o preço da terra estava associado as despesas desse processo, o qual implicava em subornos e até contratação de jagunços.(Martins, 1982: 69)

O nacional trabalhava, segundo José de Souza Martins, na formação dos cafezais

que depois eram cuidados pelos trabalhadores imigrantes. Cabia aos nacionais a tarefa de desmatamento, queima e limpeza da área a ser cultivada com café. Essa prática era corrente inclusive durante o período da escravidão.

Nota-se neste caso que o caboclo não estava isolado da sociedade nacional e sim

participava no processo de expansão dos cafezais paulistas, nota-se uma espécie de divisão do trabalho onde uns preparam o cafezal e outros, imigrantes ou escravos, tratam das colheitas e da manutenção. A utilização de trabalhadores livres por parte dos fazendeiros

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devia-se à uma estratégia de poupar investimentos em escravos ou despesas vultuosas com imigrantes, pois não haveria retorno imediato devido ao longo período de formação do cafezal. (Martins, 1982: 69)

O caboclo já foi considerado de "raça" inferior, o que justificaria seu baixo nível de

vida e sua suposta incapacidade para o trabalho. O próprio atraso do país chegou a ser explicado em função da mestiçagem do povo brasileiro. Mas essa interpretação, baseada no determinismo biológico, há muito tempo foi destruída pelos estudos que desmontaram os fundamentos do racismo. (Queiroz, 1976: 7)

Um escritor gaúcho dos anos 30, referindo-se aos dados estatísticos sobre o caráter

étnico da população regional, observou que para "todas as raças inferiores, o coeficiente declinou sensivelmente, sobretudo para os pretos, só para brancos a percentagem cresceu e muito" (Truda, 1930: 114). O autor estava se referindo ao decréscimo relativo da população de indígenas, mestiços e negros revelado pela comparação entre os censos de 1872 e 1890. Esta visão racista era comum em toda parte. Um artigo em favor da imigração européia publicado no periódico Aurora da Serra, de Cruz Alta, em 1886, também não esconde o racismo na argumentação em favor dos alemães e italianos do norte: "...tanto o alemão, como o italiano são excelentes colonos mas devemos nos precaver com real cuidado na introdução d'este último, em cujo paíz superabunda uma parte da população pessima, (refere-se aos italianos do sul) essa então pode ficar por lá; já temos de sobra uma massa enorme de libertos e de escravos suficiente para nos encommodar. Precisamos sim, de gente, porem morigerada, de bons costumes e trabalhadora" (Arruda, 1886).

Uma outra interpretação bastante difundida é aquela que define o caboclo como

vadio e vagabundo, que de certa forma segue os fundamentos das teses racistas. Tomamos como exemplo a obra de Oliveira Vianna "Populações Meridionais do Brasil", na qual escreve com convicção que desde a ocupação do Brasil a vagabundagem e a ociosidade eram comuns no "baixo povo rural", citando o exemplo do município fluminense de Campos, onde, em 1880, 32% da população era composta de indivíduos sem ocupação definida. (Vianna,1987: 161)

Semelhante interpretação era comum no Rio Grande do Sul e servia para defender a

imigração européia, sendo os imigrantes considerados de qualidade superior. O jornal Aurora da Serra, de Cruz Alta, engajado num movimento para atrair imigrantes para o planalto rio-grandense, se referia aos caboclos locais como vadios e ignorantes: "A nossa região (...) tem atraído à si uma enorme população de lavradores nacionais, mas infelizmente, na sua maioria, é essa população constituída de gente tão indolente e imprevidente que, muitas vezes, não consegue colher em anos adversos (...) o indispensável para a própria subsistência. Abençoado país este nosso para os vagabundos!" Uflacker, 1884: 99-100).

O trabalhador nacional seria reabilitado mais tarde. Lúcio Kovarick, no seu livro

"Trabalho e Vadiagem", demonstra que após décadas de preconceitos contra o nacional e a favor do imigrante, ocorreu uma recuperação da imagem do trabalhador nacional. No começo do século XX, diante das greves e do anarquismo trazido pelos imigrantes, as elites dominantes mudaram o discurso, pois sempre havia o perigo da "infiltração do vírus

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anarquista de origem estrangeira, estranho à "índole pacífica" das tradições pátrias, mais susceptível de contaminar o imigrante" (Kovarick, 1987: 125).

Os preconceitos contra os caboclos são encontrados em autores clássicos. Leo

Waibel, por exemplo, analisando o avanço da fronteira agrícola no Brasil refere-se aos camponeses nacionais como incapazes de desenvolver o progresso e que "vegetam numa vida inútil" (Weibel, 1979: 314). Ao analisar o caso do Rio Grande do Sul, esse autor alemão admirador do modelo norte-americano de colonização, usava o caboclo como exemplo do atraso e do baixo nível de vida. Ampliando o sentido racial da palavra para um sentido sociológico e cultural, Leo Waibel chega a referir-se a "um número de caboclos europeus surpreendentemente elevado, mesmo nas colônias que há 25 anos eram consideradas colônias-modelo" (Weibel, idem: 252). O autor refere-se aos colonos alemães empobrecidos.

Estas concepções preconceituosas a respeito da população cabocla estão

relacionadas também à uma determinada idéia de fronteira agrícola. A obra de Waibel e outros que seguem esse raciocínio, é inspirada em Frederick Jackson Turner e suas teses sobre a fronteira agrícola dos Estados Unidos. Baseado nessa visão clássica da ocupação dos Estados Unidos e reconhecendo a importância demográfica dos caboclos, Waibel escreve que eles são verdadeiros frontiersmen, valendo-se da terminologia de Turner. E sendo assim, esses homens dedicados ao extrativismo ou à caça, "criaram um tipo de paisagem que por longo tempo não era nem terra civilizada nem mata virgem". Esta paisagem, na opinião do geógrafo germânico é denominada no Brasil com a "expressão muito feliz de sertão". (Weibel, idem: 281)

Mas, para Waibel, os frontiersmen não são pioneiros e a população cabocla do

sertão não forma uma zona pioneira, que é o mais importante na sua ótica. O pioneiro, ao contrário do frontierman, teria a preocupação de intensificar o povoamento e "criar novos e mais elevados padrões de vida" (Weibel, idem: 281-82)

Nessa perspectiva, a zona pioneira somente se constitui quando ocorre uma rápida

expansão da agricultura, com um aumento brusco da população, via imigração, quando florestas são derrubadas e "casas e ruas são construídas, povoados e cidades saltam da terra quase da noite para o dia e um espírito de arrojo e otimismo invade toda a população" (Weibel, idem: 282). Esta é uma boa imagem de progresso, inspirada nas colônias de imigrantes do sul do Brasil, mas que dificilmente poderia ser creditada aos agricultores nacionais responsáveis por um avanço lento da fronteira, incorporando terras virgens longe dos mercados, sem estrutura de transportes, sem capital, disputando espaço com povos indígenas pela força. Uma imagem bem diferente da idealizada por Waibel.

Sendo assim, Leo Waibel, ao se referir ao planalto gaúcho, vê uma zona pioneira

iniciar-se apenas em 1890, minimizando deste modo a presença de camponeses nacionais que precederam em muitas décadas os colonos europeus que se instalaram na região na década de 1890. Esta concepção é muito comum nas monografias escritas por historiadores de diversos municípios das regiões de colonização européia. O colono, nestes casos, aparece como agente do progresso e fundador das cidades, enquanto o caboclo é omitido ou visto de forma preconceituosa.

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A presença de camponeses nacionais foi omitida por importantes autores que

trataram do processo de ocupação do sul. Jean Roche, em seu clássico estudo, omite, por exemplo, os lavradores nacionais que ocuparam as florestas ao norte da província, afirmando que "somente entre 1828 e 1850 os rio-grandenses de origem lusa estabeleceram-se no planalto. Não ocuparam senão os campos de Cima da Serra". Referindo-se à imensa floresta, onde viviam indígenas e caboclos, Jean Roche escreveu que, a partir de 1890, "foi, pois esta área, que os gaúchos haviam desdenhado, que se ofereceu à colonização agrícola" (Roche, 1969: 40-41).

Estas notas do estudioso francês, fazem parte de uma concepção segundo a qual a

ocupação de uma região só é efetiva quando obedece certas condições relativas à uma idéia de progresso. Ou seja, os colonos alemães, estudados por Jean Roche, são considerados como verdadeiros pioneiros das regiões florestais, pois as transformaram radicalmente, dando origem à pequenas cidades, à um comércio vigoroso. Quanto ao caboclo, este dedicava-se ao extrativismo e a pequenos roçados para subsistência, com um nível de vida próximo ao do indígena, pouco alterava as condições originais da floresta.

Fernando Henrique Cardoso, em seu conhecido livro sobre o Rio Grande do Sul,

argumenta que os caboclos eram vistos como incapazes de atender às exigências do trabalho disciplinado, necessárias para o desenvolvimento de relações capitalistas de produção (Cardoso, 1979: 190). Cardoso lembra as referências negativas feitas nos relatórios dos presidentes da província à essa população, para depois concluir que a preocupação que existia no Rio Grande do Sul não era apenas com a mão-de-obra livre, mas com uma certa qualidade de mão-de-obra, que deveria ser "regeneradora e civilizadora". Assim, a mão-de-obra livre existente, composta de nacionais e libertos "não era a mão-de-obra capaz de obrar o milagre desejado: a radicação no país de uma população industriosa e civilizadora". Essa explicação de Fernando Henrique Cardoso é, sem dúvida, insuficiente. Entende-se que parta de sua inspiração weberiana no sentido de demonstrar no decorrer do trabalho a existência de uma mentalidade capitalista, que estaria nas cabeças de alguns. Estes homens ilustrados, ao contrário dos defensores da escravidão, defenderiam a imigração européia numa atitude fundamentada numa concepção moderna. De acordo com Cardoso, eles não estariam preocupados apenas com a questão da mão-de-obra, mas também partiam de uma consciência de progresso e tudo o que ela representa, ou seja, "as críticas das condições sociais e econômicas da produção escravocrata" (Cardoso, idem: 189-194).

O sociólogo argumenta com alguns exemplos nos quais fica claro que a mão-de-

obra livre desejada era a estrangeira, principalmente depois do início do processo imigratório, quando foi possível comparar o trabalho livre e as realizações econômicas dos imigrantes com o trabalho escravo. Diante dos fatos, o negro passou a representar para a consciência do branco ilustrado, "o aviltamento do trabalho, a inépcia para as tarefas grandiosas, o anti-homem"

Diante da experiência da imigração italiana e germânica, as opiniões contra o negro

e o caboclo se fortaleciam, o sucesso das colônias era exemplo forte que confirmavam a tese de superioridade do colono. Porém sabemos que o negro e o caboclo foram

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amplamente utilizados para trabalharem nas mais diversas atividades enquanto os imigrantes foram deslocados para outras funções. Os desqualificados negros e libertos atenderam durante séculos a demanda das estâncias, das charqueadas, das olarias, das atafonas enquanto os imigrantes se dedicaram a atividades independentes, à parte da sociedade tradicional pastoril.

Os discursos pró-imigrante e anti-negro e mesmo contra o lavrador nacional era

uma realidade que existia tanto no Rio Grande do Sul como no Brasil de um modo geral, mas não podemos tomar o discurso das elites gaúchas como verdade explicativa. Isso seria limitar a investigação ao nível do próprio discurso dado, simplesmente acreditando nele e sem ver outras implicações subjacentes e não explicitadas. Se nos limitássemos à essa explicação, o trabalhador nacional deveria ser deixado de lado, sem investigação. Porém é necessário compreender qual era a real situação do indesejado caboclo na sociedade gaúcha, certamente ele tinha uma função não tão insignificante como se imagina.

--------x-------- 2.1. 3. Diversidade cultural na fronteira 20

Na contemporaneidade, as sociedades buscam formas de viver em harmonia com a diversidade cultural. Então, destaca-se que os povos e culturas têm o direito de construírem suas organizações próprias, respeitando, da mesma forma, os direitos alheios. Construir sua organização própria significa, também, a preservação da identidade, gerando a convivência com respeito e rejeitando qualquer forma de exclusão, preconceito e discriminação. Com um mundo cada vez mais globalizado, promover o desenvolvimento de uma região requer, primeiramente, o reconhecimento da(s) cultura(s) do local. A região não pode ser vista somente sob os aspectos materiais, mas devem ser observadas, antes de tudo, as relações sociais passado/presente dos atores regionais. Nesse sentido, é necessária a observação minuciosa sobre a diversidade camponesa na região do Oeste de Santa Catarina e Sudoeste do Paraná. É que esses camponeses possuem uma agricultura familiar de subsistência que se afirma como identidade sócio-cultural própria.

Neste texto, propõe-se contribuir com discussões no que se refere às identidades étnicas, seus aspectos sócio-culturais e a forma como fazem agricultura na região Oeste de Santa Catarina e Sudoeste do Paraná. Ocupação dos campos A incorporação da extremidade Sul do Brasil na vida econômica do país é fruto das descobertas das jazidas auríferas, em meados do século XVIII. Se em fins do século XVII, o Rio Grande do Sul é apenas uma área de disputa entre as coroas portuguesa e espanhola, com o ciclo da mineração, essa província passa a ser de fundamental importância como

20 Esta seção corresponde ao texto de Bavaresco, Paulo Ricardo (2004). Diversidade cultural na fronteira. São Miguel do Oeste, UNOESC, mimeo 9 p.

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fornecedora de mulas para o transporte e da alimentação para a população da região aurífera. O sul do país, até então, era de povoados que objetivavam a ocupação e posse do território (contestado pela Espanha), não existindo uma produção organizada como no nordeste. O Governo concedia grandes vantagens para os que ali pretendiam se estabelecer, o que lhes garantia a posse do território.

Com a decadência da pecuária do nordeste, o Rio Grande do Sul passa a ocupar o centro da produção de charques destinado à região mineradora. Além do charque, no sul criavam-se animais de carga: cavalo e muares. Esses animais tiveram grande importância para a região mineradora, pois foram utilizados como meio de transporte. Tanto de gado como de bestas, partiam do Rio Grande do Sul enormes tropas destinadas à feira de Sorocaba.

Assim, é o ouro das Minas Gerais que integra definitivamente o Rio Grande do Sul à economia brasileira, também tendo contribuído para a ocupação dos campos de Santa Catarina. Então, foi dessa forma que o Oeste de Santa Catarina se inseriu nesse contexto, pois, com o caminho das tropas, iniciou-se a ocupação dos Campos de Palmas até os Campos do Erê no Extremo Oeste Catarinense.

A implantação de fazendas atraía diversas famílias, pois como garantia de ocupação da área, o Império distribuía concessões de terras aos fazendeiros que quisessem se estabelecer nos campos. Também não havia necessidade de grandes investimentos para a criação de gado. Outra razão é que, segundo Waibel, existe o “conceito de que os campos não podem ser cultivados[...] seu solo é pobre demais para a agricultura”( Weibel, 1949: 199).

Assim, as terras das quais as famílias se apropriavam, eram de grandes extensões,

inaugurando o império dos latifúndios. Waibel escreveu sobre o pequeno número de colonizadores nos campos:

[...]1) A ausência de árvores era considerada como significativa de que eles eram inférteis. 2) A madeira era de necessidade imperiosa para a construção de cercas e para combustível. 3)Lá não havia proteção contra os severos ventos do inverno, que, acima de tudo, tornavam a estação desagradável. 4) Para o lavrador, os prados com sua relva coriácea e de raízes entrelaçadas constituíam um problema novo e desconhecido no seu conjunto. (Weibel, idem: 52)

O processo em que ocorreu a apropriação dos campos se refletiu na sociedade que

ali se estruturou. Fruto da revivescência do bandeirante e do cruzamento e recruzamento do português com o Índio Tupi (mameluco), surge o serrano, tipo tradicional de gaúcho, ao qual se vincula por efeito da proximidade geográfica, criando características próprias: “Essencialmente individualista, egocêntrico, reservado, extremado nos sentimentos, no ódio como no amor. A ‘honra da família’ é bem sagrada, que não admite nenhuma irreverência, nenhum atentado sob pena de morte.” (Weibel, idem: 53). A palavra para ele possui valor maior que qualquer quantia em dinheiro, daí o significado de honrar o “bigode”.

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A vida rude no campo refletia no “modo de vida” que levava o serrano. As casas obedeciam plantas parecidas, eram baixas, térreas, com uma porta e duas janelas sem vidraças, em alguns casos possuíam uma pintura à base de cal. Nas proximidades, havia um poço para abastecer com água a família, uma pequena horta cercada com estacas, raramente possuíam um pomar. Um galpão nos arredores da casa era quase que indispensável, pois, servia como depósito de lenha para o inverno, uma pequena quantidade de milho, palha e, também, servia como abrigo de pouso para os tropeiros de passagem.

O fator fundamental a ser considerado quanto à ocupação dos campos, é que para os

habitantes, o objetivo era a propriedade da terra e criação extensiva de gado. Não tinham pretensões de cultivar a terra, nem mesmo possuíam conhecimento suficiente para aplicar um sistema agrícola intensivo ou sustentar uma vida baseada numa agricultura de subsistência. Além disso, a área de campo requer um trabalho penoso, bom instrumental agrícola e aplicação de fertilizantes para tornar possível o cultivo. O sistema de pastoreio em grandes fazendas adotados nos campos do Oeste Catarinense e, praticamente todo Brasil, contribuiu para a falta de alimento, subnutrição e pobreza da população. É que a separação econômica da agricultura com a pecuária, fator gerado também pela distância dos centro comerciais, deixava a população dos campos em condições de miséria absoluta.

O caboclo

Outro grupo sócio-cultural que se estruturou na região Oeste de Santa Catarina e

Sudoeste do Paraná é a cabocla. Torna-se difícil definir ou determinar as origens étnicas, buscando raças básicas que formaram o caboclo que normalmente se define como resultado da miscigenação do branco com o índio. A bem da verdade, a conceituação do caboclo é mais social que racial. Assim sendo, optamos por traçar algumas características básicas desse grupo social. Levava um modo de vida rudimentar, vivendo em pequenos ranchos feitos de troncos de árvores e cobertos com capim ou tabuinhas. Geralmente possuíam um cavalo encilhado, uma ou duas pistolas e facão. Também possuíam pequenas roças de subsistência, e criavam alguns animais soltos como: galinhas, porcos e algumas cabeças de gado. Mudavam de um lugar para outro com freqüência.

A atividade agrícola, pequenas roças de subsistência, ficou conhecida como roça

cabocla. “Essa população adotava uma prática costumeira de dividir as terras em terras de plantar e terras de criar, como eram nominadas internamente.” (Renk, 1997: 27). As terras de plantar localizavam-se distante da casa, e o método adotado no cultivo consistia na derrubada do mato e a queima. Após a queima, era feito o plantio em covas abertas com a ponta da foice ou com uma cavadeira feita de madeira. Não era necessário a capina da roça, pois a terra fértil favorecia o rápido crescimento do milho ou feijão, assim o mato não competia com os produtos. Já as terras de criar ficavam próximas da casa. Criavam-se animais domésticos como: porcos, galinhas, cavalo, bovinos. A roça cabocla produzia milho, feijão, mandioca, batata, arroz. Sempre para o consumo próprio, porque não existia comércio para esses produtos nem mesmo estradas que possibilitassem deslocar o produto para áreas de comércio mais distantes. Breves assim observa o caboclo:

Se retirarmos certas ferramentas que usavam, foices, machados, facões; alguns animais domésticos, cavalo, porcos, galinha; vestuário e utensílios que podiam

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adquirir e o uso do fumo e do fósforo, a vida desses caboclos se assemelharia bastante a dos índios do litoral nordestino, como foram encontrados por ocasião do descobrimento. (Breves, 1985)

Quanto a criação de animais domésticos, destaca-se a criação de porcos. “Havia um

‘sistema primitivo’, segundo Lobato, que era o do porco alçado, criado exclusivamente com frutos, como a imbuia, pinhão e vegetais e o único cuidado dispensado era o sal.” (Renk, 1995: 229). A criação de animais soltos, no período pré-colonização, foi possível pela abundância de terras, pois esse sistema exigia em torno de 5 hectares de terras por cabeça. Esses porcos, após serem abatidos, eram utilizados para a troca ou para alimentação. Quando para a troca, eram transformados em banha e comercializados no Rio Grande do Sul ou Argentina.

Havia também outro modo de criação, a safra: “A safra consistia na derrubada do

mato, queima da área e plantio de milho e abóbora. Após o amadurecimento desse plantio, os animais eram soltos e criavam por si” (Renk, idem: 229). Nesse sistema de criação, a área de um hectare possibilitava a engorda de até 5 cabeças de porcos. Após a engorda, os animais eram tropeados até o mercado consumidor. Neste ponto, observamos que os animais tropeados eram levados até os núcleos coloniais. Esta atividade, aos poucos, foi incorporada pelos imigrantes, em que alguns colonos cercavam uma determinada área para criação de porcos, impedindo que estes se espalhassem ou viessem a destruir as plantações de outros imigrantes. Aliás, a criação de porcos soltos, atividade realizada no início da colonização, foi fator de atrito entre caboclo e imigrante. A colonização e os colonizadores

O povoamento do Oeste Catarinense e do sudoeste do Paraná ganha maior

intensidade após a Guerra do Contestado (1912-1916). As medidas adotadas para promover a ocupação daquelas áreas foi a concessão de terras pelo governo a empresas particulares. Sobre a colonização destaca-se que:

A colonização se processa principalmente em conseqüência da expansão da área colonial procedente do Rio Grande do Sul. A frente de expansão agrícola, instalada no noroeste do Rio Grande, foi intensificando seu avanço para o interior de Santa Catarina, composta, em regra, por descendentes de imigrantes, particularmente de italianos (Rosseto, 1995: 12).

Pode-se afirmar que as migrações, primeiramente, ocuparam as terras ao longo do

rio Uruguai, e, em seguida, expandiram-se até encontrar os limites com o Estado do Paraná. Talvez a explicação para a fixação dos primeiros núcleos coloniais às margens do rio Uruguai seja a dificuldade de locomoção e de transporte no Oeste Catarinense. Apesar de o rio Uruguai não ser navegável devido aos locais de águas rasas e cachoeiras (salto do Iucumã), suas cheias, ocorrendo apenas uma vez por ano e, nesse tempo, permitindo a navegação, ele, nos primeiros anos da colonização foi importante meio de transporte para a madeira destinada ao comércio na Argentina.

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As transformações que se processam no Oeste Catarinense a partir do período da colonização estão intimamente ligadas às relações sociais que se desenvolveram nas novas colônias. Essas relações se verificam no modo de vida, lazer, trabalho, uso da terra, ou seja, no cotidiano dos colonos. Então, ao refletir sobre as transformações na paisagem da região, deve-se observar a construção da paisagem cultural, fruto dessas relações.

“Uma família pioneira começa o ciclo cultural comprando a terra numa área de

mata desabitada. Em seguida, derruba e queima a floresta, à maneira dos índios; planta milho, feijão preto e mandioca.” (Weibel, 1949: 172). Com a extração da madeira e a derrubada da mata para as lavouras de subsistência, houve uma grande concentração de madeireiras que aproveitavam a matéria-prima disponível. Araucárias, louros, cedros eram as madeiras mais cobiçadas pela indústria e o mercado exportador. Sua abundância e a grande oferta existente fazia com que o baixo preço da madeira daí decorrente, fosse compensado pela quantidade e diversidade do produto comercializado, fomentando, continuamente a atividade de derrubada e comercialização.

A difícil situação da infra-estrutura, o tamanho do lote colonial que não ultrapassava

24 hectares, propiciou às comunidades desenvolverem uma produção para subsistência. Em seguida à derrubada da mata, comercializando a madeira que tivesse maior valor, os colonos abriam as roças objetivando o cultivo agrícola de subsistência. “O sentido econômico do lote colonial é a auto-suficiência, que serve para explicar, já inicialmente, a policultura. Planta-se, preferencialmente, as espécies vegetais destinadas à alimentação humana, e os respectivos excedentes permitem ao colono efetuar a troca, geralmente num armazém.” (Weibel, 1948: 221)

Os recursos naturais da região viabilizaram um modelo de desenvolvimento econômico de reduzida orientação para o mercado. A existência de mata nativa e a boa fertilidade natural do solo propiciaram ao migrante uma relativa autonomia e auto-suficiência, dentro dos limites estabelecidos pelos mentores da colonização. As famílias extraíam seu sustento exclusivamente da terra, com um primitivismo justificável, em face ao isolacionismo das colônias, das terras íngremes e da necessidade de ocupar a mão de obra familiar.(Eidt 1999:64).

A princípio, com a chegada dos colonizadores gaúchos, o caboclo foi para o

interior, sempre fugindo e se distanciando dos núcleos coloniais, pois, se via rejeitado pelos novos colonos. Os caboclos eram conhecidos como posseiros, ou seja, “homens sem terra, construíram suas toscas moradias em áreas devolutas e tinham na coleta da erva-mate seu principal ganha pão.” (Auras, 1995: 102). É que o caboclo não produzia excedentes, não possuía dinheiro suficiente para comprar propriedade e construir casa mais confortável. A filosofia de vida do caboclo contrastava com a filosofia capitalista. Entre os colonizadores descendentes de italianos e alemães, provindos das colônias velhas do Rio Grande do Sul, em relação ao caboclo, existia uma certa desconfiança, o que dificultava o relacionamento.

O caboclo é considerado inferior, por não trabalhar da mesma forma que eles e por ser normalmente pobre; - é considerado arruaceiro ou de pouca confiança, na medida que se ouvem expressões como: ‘parece gente branca de tão bom que é’; - quase sempre as pessoas, principalmente no comércio, impõem diversas

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dificuldades para vender a crédito para pessoas morenas, consideradas caboclos. O preconceito contra o caboclo, também existia ao inverso, isto é, caboclo tem desconfiança em relação aos ‘de origem’ (Poli, 1995: 100-101)

Quando as concessões de terras aumentaram na região, os posseiros eram expulsos

da terra pelas empresas colonizadoras. Pois, para poderem comercializar os lotes, as empresas faziam o que chamavam de “limpeza da área.” Nesses casos, o caboclo era visto como intruso. Para isso valiam-se de todas artimanhas possíveis. Assim, aumentava ainda mais a aversão dos caboclos aos colonizadores. Em vários casos, os colonizadores usavam a estratégia de dar ao ocupante a oportunidade de comprar a área da qual se apropriara, com a certeza de que o caboclo não teria dinheiro para pagar. “[...] pela forma de assédio, o caboclo obrigava-se a abandonar aquele ofício e entrar no mato adentro em busca de um lugar [...]”. (Poli, idem: 90). Com as novas relações sociais que se estruturavam na região, os caboclos acabavam se interiorizando ou sujeitando-se à função de peão. Assim, ocorria uma expulsão sistemática do caboclo, criando condições favoráveis para a entrada do imigrante gaúcho colonizar nos moldes das relações capitalistas de trabalho, sendo que as empresas colonizadoras os forçavam para tais relações.

O caboclo não mantinha simpatia pelos colonos, pois, já segregados

economicamente, maior ainda era o seu isolamento cultural. Freqüentar a escola, (quando havia), o caboclo rejeitava, porque o mestre era alemão ou italiano. Assim, a escola dificultava a aproximação e a transformação para uma mudança do “heterogêneo para o homogêneo, do desigual para o igual. (FAIRCHILD apud WAIBEL, 1949, p.77). Sempre houve grande preocupação nas colônias, seja por parte da igreja ou da escola, para evitar a fusão com os nativos, para que não ocorresse o acaboclamento dos europeus. A maioria dos colonos utilizava o sistema agrícola muito primitivo nesse período. Esse sistema consiste em queimar a mata, cultivar a clareira por alguns anos e depois deixá-la em repouso, quando aparece a mata secundária. Enquanto isso, nova área de mata é derrubada com emprego semelhante ao anterior. “O colono chama esse sistema de roça ou capoeira; na literatura geográfica é geralmente conhecido como agricultura nômade ou etinerante. *a linguagem dos economistas rurais, é chamado sistema de rotação de terras.” (Weibel, 1949: 180) Esse sistema, os fazendeiros portugueses receberam dos Índios e utilizaram nas suas grandes propriedades. Isso significou a separação econômica e espacial da agricultura e da pecuária, pois, a criação extensiva e primitiva do gado e, por outro lado, a extensiva e primitiva da lavoura, acarretaram sérias conseqüências para todo o país.

Waibel assim analisa esse sistema:

Se os sistemas agrícolas extensivos não dão resultados satisfatórios nas grandes propriedades, quando aplicados nas pequenas, tornam-se ilógicos e perigosos. O termo extensivo quer dizer que dos três fatores de produção – terra, capital e trabalho -, a terra é o principal e deve ser abundante. Mas isso não acontece nas pequenas propriedades dos colonos europeus no Brasil meridional; não obstante, eles aplicaram logo, desde o princípio até hoje, o sistema extensivo de rotação de terras[...] (Weibel, idem: 181)

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O sistema primitivo de agricultura era adotado pelo caboclo antes da chegada dos imigrantes, dada à disponibilidade de terra existente. Com a chegada dos primeiros imigrantes, logo nos primeiros anos de colonização, esse sistema foi adotado na produção agrícola. Não só o sistema de rotação de terras, os imigrantes alemães, italianos, poloneses e outros, adotaram, também as plantas cultivadas. A agricultura tinha como produtos mais importantes o milho, batata e mandioca que serviam como fonte de alimentação às pessoas e aos animais. Além dos costumes na agricultura, a cultura cabocla influenciou o imigrante europeu nas práticas com animais (principalmente na criação de porco solto), o vocabulário, as empreitadas, entre outros. Considerações finais O povoamento do oeste catarinense e sudoeste do Paraná, no início da sua ocupação, para ter acesso à terra, a forma encontrada foi o intrusamento ou posse. A terra era difícil de ser conseguida, devido os entraves burocráticos. Assim, o caboclo, dado suas condições culturais, desconhecia o processo de aquisição da terra. Nas regiões de campos, a presença desses posseiros era tolerada pelos fazendeiros. É que eles eram importantes para o abastecimento das tropas e no fornecimento de alimentos básicos, já que possuíam pequenas roças de subsistência. No entanto, com o início da migração de descendentes de europeus, provenientes do Rio Grande do Sul, o choque cultural entre esses e os caboclos, teve maior impacto.

Com a concessão de grandes áreas às empresas colonizadoras e a quem tivesse prestígio político, os habitantes, que ali se encontravam, os caboclos, foram empurrados para as terras mais distantes. Também buscavam adentrar na mata onde não havia ainda chegado a colonização, assim não haveria reclamação pelos proprietários.

A atividade econômica do caboclo é a roça de subsistência, considerada como meio de reprodução social, porém de difícil inserção no mercado econômico atual. É o diferencial em ralação aos colonizadores que, logo no início da ocupação das áreas, precisavam gerar excedente econômico, como forma de garantir o pagamento da terra. Com o processo de modernização e as transformações que ocorreram no campo nos últimos anos, muitos agricultores engrossaram a ala dos excluídos. Mesmo não compartilhando com o modo agrícola da roça cabocla, muitos agricultores a praticam. No entanto, se esse modo de agricultura encontra dificuldade de se afirmar no mercado atual, não encontra dificuldade em se afirmar como identidade cultural perseverante no contexto atual.

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2.1.4. Processos de territorialização e movimentos sociais na Amazônia21

Nas duas últimas décadas estamos assistindo na Amazônia ao advento de novos

padrões de relação política no campo e na cidade. Os movimentos sociais, que desde 1988 vem se consolidando fora dos marcos tradicionais do controle clientelístico e tendo nos Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais uma de suas expressões maiores, conhecem no momento atual certos desdobramentos, cujas formas de associação e luta escapam ao sentido estrito de uma organização sindical, incorporando fatores étnicos e critérios ecológicos, de gênero e de autodefinição coletiva, que concorrem para relativizar as divisões político-administrativas e a maneira convencional de encaminhar demandas aos poderes públicos22.

Para efeitos deste texto pretendo analisar a relação entre o surgimento destes

movimentos sociais e os processos de territorialização que lhes são correspondentes. Incluo nestes processos as denominadas “terras tradicionalmente ocupadas” que, expressando uma forma de existência coletiva de diferentes povos e grupos sociais, potencialmente podem a vir colidir de maneira trágica com as áreas reservadas que são instituídas pelas políticas governamentais.O fato de o governo ter instituído a expressão “populações tradicionais”, tendo inclusive criado o Conselho Nacional de Populações Tradicionais, no âmbito do IBAMA, não significa exatamente um acatamento absoluto das reivindicações encaminhadas pelos movimentos sociais, não significando, portanto uma resolução dos conflitos e tensões em torno das formas de uso de extensas áreas na região amazônica. Terras tradicionalmente ocupadas Considerando que as categorias refletem disputas entre diferentes forças sociais, pode-se adiantar que o significado da expressão “terras tradicionalmente ocupadas” tem revelado uma tendência de se tornar mais abrangente e complexo. Nas discussões no período da Assembléia Nacional Constituinte a categoria se afirmou contra um sentido historicista de terras indígenas como “terras imemoriais”, que restringia o reconhecimento formal àquelas terras em que não há memória de suas origens. Um dos resultados mais visíveis deste embate consiste no parágrafo 1o. do Art.231 da Constituição Federal de 1988:

“São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem estar-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.”

21 Esta seção corresponde ao texto integral de Almeida, Alfredo W.B. (2004). Processos de territorialização e movimentos sociais na Amazônia. Leopoldina, mimeo 8 p. 22 Este texto retoma questões analisadas em “Universalização e Localismo-Movimentos Sociais e crise dos padrões tradicionais de relação política na Amazonia”. Reforma Agrária. Ano 19 no. 1 abril junho de 1989. ABRA. pp.4-7

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A ocupação permanente de terras caracteriza o sentido de tradição, recuperando

criticamente as legislações agrárias coloniais – que instituíram sesmarias e que depois reestruturaram formalmente o mercado de terras com a Lei de Terras de 1850, criando obstáculos de todas as ordens para que tivessem acesso legal às terras os povos indígenas e os escravos alforriados e para a emergência de um campesinato livre.

Em 2002, evidenciando a ampliação do significado de “terras tradicionalmente

ocupadas” e reafirmando, o que os movimentos sociais desde 1988 tem perpetrado, o Brasil ratificou a Convenção 169 da OIT, de junho de 1989, cujo Art.14 assevera que:

“Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam.” Além disto o Art.16 aduz que “sempre que for possível, esses povos deverão ter o direito de voltar a suas terras tradicionais assim que deixarem de existir as causas que motivaram seu translado e reassentamento.”

O texto da Convenção, além de basear-se na autodefinição (Art.1o.) dos agentes sociais, reconhece a usurpação de terras desde o domínio colonial, bem como reconhece casos de expulsão e deslocamento compulsório e amplia o espectro dos agentes sociais envolvidos, falando explicitamente em “povos” em sinonímia com “populações tradicionais”, ou seja, situações sociais diversas que abarcam uma diversidade de agrupamentos que historicamente se contrapuseram ao modelo agrário exportador que se apoiava no monopólio da terra, no trabalho escravo e em outras formas de imobilização da força de trabalho.Os quilombolas, os movimentos messiânicos e as formas de banditismo social que caracterizaram a resistência ao império das plantations na sociedade colonial ganham força neste contexto, de igual modo que as formas associativas e de ocupação que emergiram no seio das grandes propriedades monocultoras a partir da sua desagregação com as crises das economias algodoeiro e açucareira.Novas formas de ocupações emergiram e não tiveram reconhecimento legal tais como as chamadas terras de preto, terras de índio (que não se enquadram na classificação de terras indígenas, porquanto não há tutela sobre aqueles que as ocupam permanentemente), terras de santo (que emergiram com a expulsão dos jesuítas e com a desagregação das fazendas de ordens religiosas diversas) e congêneres (terras de caboclos, terras de santíssima, patrimônio, terras de ausentes etc.). A Constituição Federal de 1988 e a Convenção 169 da OIT logram contemplar estas situações ao recolocar o sentido de “terras tradicionalmente ocupadas”. No plano operacional, entretanto, há obstáculos de difícil superação. O Brasil dispõe de duas categorias para cadastramento e censo de terras, quais sejam: estabelecimento ou unidade de exploração, que é adotada pelos censos agropecuários do IBGE, e imóvel rural ou unidade de domínio, que é adotada pelo cadastro do INCRA, para fins tributários. Todas as estatísticas que configuram a estrutura agrária atém-se a estas e somente a estas categorias. As terras indígenas, em decorrência da figura da tutela, são registradas no Serviço do Patrimônio da União. As terras das comunidades remanescentes de quilombo, também recuperadas pela Constituição Federal de 1988, através do Art. 68 do ADCT, devem ser

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convertidas, pela titulação definitiva, em imóveis rurais. Claúsulas de inalienabilidade, domínio coletivo e costumes e uso comum dos recursos juntamente com fatores étnicos, tem levantado questões para uma visão tributarista que só vê a terra como mercadoria passível de taxação, menosprezando dimensões simbólicas. Em suma, uma nova concepção de cadastramento se impõe, rompendo com a insuficiência das categorias censitárias instituídas e levando em consideração as realidades localizadas e a especificidade dos diferentes processos de territorialização. Sem haver ruptura explícita com tais categorias assiste-se a tentativas várias de cadastramento parcial como apregoa a Portaria n.06 de 1o. de março de 2004 da Fundação Cultural Palmares, que institui o Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades de Quilombo, nomeando-as sob as denominações seguintes: “terras de preto, mocambos, comunidades negras, quilombos” dentre outras denominações (Almeida, 1989: 163-196). Ora, a própria necessidade de um cadastro aparte releva uma insuficiência das duas categorias classificatórias, ao mesmo tempo que confirma e chama a atenção para uma diversidade de categorias de uso na vida social que demandam reconhecimento formal. Aliás, desde 1985, há uma tensão dentro dos órgãos fundiários oficiais para o reconhecimento de situações de ocupação e uso comum da terra, ditadas por “tradição e costumes”, por práticas de autonomia produtiva - erigidas a partir da desagregação das plantations (algodoeira, açucareira, cafeeira) e das empresas mineradoras - e por mobilizações sociais para afirmação étnica e de direitos elementares. Um eufemismo criado no INCRA em 1985-86 dizia respeito a “ocupações especiais”, no Cadastro de Glebas, onde se incluíam nos documentos de justificativa, as chamadas terras de preto, terras de santo, terras de índio, os fundos de pasto e os faxinais dentre outros. O advento destas práticas e a pressão pelo seu reconhecimento têm aumentado desde 1988, sobretudo na região amazônica, com o surgimento de múltiplas formas associativas agrupadas por diferentes critérios tais como: raízes locais profundas, fatores político-organizativos, autodefinições coletivas, consciência ambiental e elementos de identidade. A estas formas associativas expressas pelos novos movimentos sociais, que objetivam os sujeitos em existência coletiva (Conselho Nacional dos Seringueiros, Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, Coordenação Nacional de Articulação das comunidades negras rurais quilombolas, Movimento dos Fundos de Pasto...) correspondem territorialidades específicas onde realizam sua maneira de ser e sua reprodução física e social. Movimentos sociais A nova estratégia do discurso dos movimentos sociais no campo, ao designar os sujeitos da ação, não aparece atrelada à conotação política que em décadas passadas estava associada principalmente ao termo camponês. Politiza-se aqueles termos e denominações de uso local. Seu uso cotidiano e difuso coaduna com a politização das realidades localizadas, isto é, os agentes sociais se erigem em sujeitos da ação ao adotarem como designação coletiva as denominações pelas quais se autodefinem e são representados na vida cotidiana.

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Assim, tem-se a formação do Conselho Nacional dos Seringueiros (CSN), do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), do Movimento Nacional dos Pescadores (MONAPE), da Coordenação Nacional das comunidades negras rurais quilombolas (CONAQ), da Associação dos Ribeirinhos da Amazônia, União dos Sindicatos e Associações de garimpeiros da Amazônia Legal (USAGAL) e de inúmeras outras associações, a saber: dos castanheiros, dos piaçabeiros, dos extrativistas do arumã, dos peconheiros etc Acrescente-se que o Movimento dos Atingidos de Barragem (MAB), o Movimento pela Sobrevivência da Transamazônica, o Movimento dos atingidos pela Base de foguetes de Alcântara (MABE) e outros que se articularam como resistência a medidas governamentais. Acrescente-se ainda a União das Nações Indígenas (UNI), a Coordenação Indígena da Amazônia Brasileira (COIAB) e o Conselho Indígena de Roraima. Todas estas associações e entidades foram criadas entre 1988 e 1998 à exceção do CNS e do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, que datam de 1985. Eles funcionam através de redes de organizações. A COIAB, por exemplo, foi criada em 19 de abril de 1989, em 2000 já articulava 64 entidades e hoje, em 2003, articula 75, inclusive a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN). Observe-se que a FOIRN, em 1999 tinha 29 associações indígenas organizadas em rede através da ACIBRN-Associação das Comunidades Indígenas Ribeirinhas e a ACIMRN-Associação das Comunidades Indígenas do Médio Rio Negro. A COAPIMA (Coordenação das Organizações e articulações dos povos indígenas do Maranhão) foi criada em setembro de 2003 e abrange lideranças de seis diferentes povos indígenas.A ACONERUQ-Associação das Comunidades Negras Rurais do Maranhão, formada em novembro de 1997, em substituição à Coordenação Estadual Provisória dos Quilombos, criada em 1995, congrega mais de duas centenas de comunidades negras rurais. A APOINME-Articulação dos povos indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo, fundada em 1995, congrega 30 etnias oficialmente reconhecidas e outra dezena que reivindica o reconhecimento formal. O Conselho dos Índios da cidade de Belém, que está em consolidação, congrega pelo menos 04 etnias, e se articula com movimentos em formação nas aldeias como o Conselho Indígena Munduruku do Alto Tapajós (CIMAT).Registra-se uma tendência de se constituírem novas redes de organizações e movimentos contrapondo-se , em certa medida, à dispersão e fragmentação de representações que caracterizaram o início da década de 1988-98. De todas estas redes articuladoras de movimentos a mais abrangente, entretanto, e que tem maior representação junto aos organismos multilaterais (BIRD,G-7) e a órgãos públicos é o Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), fundado em 1991/92, e que congrega cerca de 600 entidades representativas de extrativistas, povos indígenas, artesãos e pequenos agricultores familiares na Amazônia.O GTA representa a sociedade civil junto ao PPG-7 (Programa Piloto de Preservação das Florestas Tropicais). Observa-se, num emaranhado de articulações, que uma entidade pode simultaneamente pertencer a mais de uma rede e que parte considerável das redes se faz representar no GTA, que tem 9 regionais nos 9 estados da Amazônia. O MIQCB, por sua vez, tem coordenações em 4 unidades da federação, sendo 3 da Amazônia (Pará,Maranhão e Tocantins) e 01 da Região Nordeste (Piaui).A base territorial destes movimentos não se conforma portanto, à divisão político-administrativa, redesenhando a sociedade civil. Tal multiplicidade de categorias cinde, portanto, com o monopólio político do significado dos termos camponês e trabalhador rural, que até então eram utilizados com

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prevalência por partidos políticos, pelo movimento sindical centralizado na CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) e pelas entidades confessionais (CPT,CIMI,ACR).Tal ruptura ocorre sem destituir o atributo político daquelas categorias de mobilização. As novas denominações que designam os movimentos e que espelham um conjunto de práticas organizativas, traduz transformações políticas mais profundas na capacidade de mobilização destes grupos face ao poder do Estado e em defesa de seus territórios. Em virtude disto é que se pode dizer que mais que uma estratégia de discurso tem-se o advento de categorias que se afirmam através de uma existência coletiva, politizando não apenas as nomeações da vida cotidiana, mas também práticas rotineiras no uso da terra. A complexidade de elementos identitários, próprios de autodenominações afirmativas de culturas e símbolos, que fazem da etnia um tipo organizacional (Barth: 1969), foi trazida para o campo das relações políticas, verificando-se uma ruptura profunda com a atitude colonialista homogeneizante, que historicamente apagou diferenças étnicas e a diversidade cultural, diluindo-as em classificações que enfatizavam a subordinação dos “nativos”, “selvagens” e ágrafos ao conhecimento erudito do colonizador. Não obstante diferentes planos de ação e de organização e de relações distintas com os aparelhos de poder, tais unidade de mobilização podem ser interpretadas como potencialmente tendendo a se constituir em força sociais. Nesta ordem elas não representam apenas simples respostas a problemas localizados. Suas práticas alteram padrões tradicionais de relação política com os centros de poder e com as instâncias de legitimação, possibilitando a emergência de lideranças que prescindem dos que detém o poder local. Destaque-se, neste particular, que mesmo distantes da pretensão de serem movimentos para a tomada do poder político logram generalizar o localismo das reivindicações e mediante estas práticas de mobilização aumentam seu poder de barganha face ao governo e ao estado, deslocando os “mediadores tradicionais” (grandes proprietários de terras, comerciantes de produtos extrativos-seringalistas, donos de castanhais e babaçuais). Deriva daí a ampliação das pautas reivindicatórias e a multiplicação das instâncias de interlocução dos movimentos sociais com os aparatos político-administrativos, sobretudo com os responsáveis pelas políticas agrárias e ambientais (já que não se pode dizer que exista uma política étnica bem delineada). Está-se diante do reconhecimento de direitos até então contestados, e de uma certa reverencia dos poderes políticos às práticas extrativas do que chama de “populações tradicionais”. Os conhecimentos “nativos” sobre a natureza adquirem legitimidade política e sua racionalidade econômica não é mais contestada, no momento atual, com o mesmo vigor de antes. Bem ilustra isto a aprovação pela Assembléia Legislativa do Acre, sancionada pelo Governador, em janeiro de 1999, de lei, mais conhecida como “Lei Chico Mendes” que dispõe sobre a concessão de subvenção econômica aos seringueiros produtores de borracha natural bruta. Esta Lei n.1277, de 13 de janeiro de 1999, foi regulamentada pelo Decreto estadual n.868, de 05 de julho de 1999, que reconhece no item V do Art. 1o. a necessidade do vínculo de produtores de borracha com suas respectivas entidades de representação. De igual modo, tem-se leis municipais que garantem a preservação e o livre acesso aos babaçuais, inclusive de propriedade de terceiros, a todos que praticam o extrativismo em regime de economia familiar, que foram aprovadas pelas

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Câmaras de Vereadores em três Municípios do Estado do Maranhão, entre 1997 e 1999, a saber: Lei Municipal n. 05/97 de Lago do Junco, Lei n. 32/99 de Lagos dos Rodrigues e Lei n.255/99 de Esperantinópolis. Trata-se de reivindicações pautadas pelo Movimento Interestadual das Quebradeiras de Côco Babaçu, que estão sendo implementadas em diferentes municípios. Estas leis municipais, que asseguram os babaçuais como recursos abertos, relativizando a propriedade privada do solo e separando-a do uso da cobertura vegetal, são conhecidas localmente como Leis do “Babaçu Livre”. As Assembléias Legislativas e as Câmaras Municipais passam a refletir as mobilizações étnicas. Iglésias (2000) numa acurada reflexão, a partir de levantamento do CIMI, sublinha que 350 índios se candidataram a cargo de vereador, dez a vice-prefeito e um a prefeito nas eleições municipais de 2000. Foram eleitos 80 vereadores, sete vice-prefeitos e um prefeito23. Destaque-se que nas mesmas eleições 40 mulheres, que se autoapresentavam como quebradeiras de côco babaçu, disputaram o posto de vereador em diferentes Municípios do Pará, do Tocantins e do Maranhão. Dentre as candidatas quebradeiras apenas duas foram eleitas. No caso dos quilombolas tem-se conhecimento de apenas um vereador eleito. Algumas interpretações superestimando fatos desta ordem asseveram que tais mobilizações eleitorais acrescidas da criação obrigatória dos conselhos municipais, consoante a Constituição Federal de outubro de 1988, estão consolidando regionalmente um quarto poder. Há quem classifique o fenômeno de “conselhismo” (Lessa, 2001), sobrestimando tais inovações institucionais na gestão de políticas governamentais e afirmando tratar-se de um poder paralelo24. Diferentemente da ação sindical estes movimentos se estruturam segundo critérios organizativos diversos, apoiados em princípios ecológicos, de gênero e de base econômica heterogênea, com raízes locais profundas (Hobsbawn, 1994), menosprezando, como já foi dito, a divisão político-administrativa. Os pescadores se organizam em Colônias e associações transpassando limites estaduais, do mesmo modo que os regionais instituídos pelo MIQCB.Os seringueiros se organizam por seringais, as quebradeiras pelos povoados próximos a babaçuais, enquanto os pescadores privilegiam o critério de mobilização por bacias, como no caso da Central de Pescadores da Bacia Hidrográfica do Araguaia-Tocantins com vinte entidades que somam 7.633 famílias, das quais 6.672 apenas no lago da Barragem de Tucuruí. Tais movimentos não se estruturam institucionalmente a partir de sedes e associados e nem das bases territoriais que confinam as ações sindicais, insinuando-

23 “O Brasil tem 734 mil índios, cerca de 200 mil deles com título de eleitor.(...)”No início de novembro de 2003 a COIAB realizou reunião em Manaus para traçar estratégias eleitorais para 2004.Cf. “Biancareli. “Indios no Brasil Traçam plano eleitoral”. Folha de São Paulo, 02 de novembro de 2003 pág.A-27 24 O fascínio pela quantidade nutriu uma ilusão democratista na formulação de Lessa. Este autor afirma que o IBGE produziu um censo mostrando que 99% dos Municípios brasileiros tem conselhos, com representação popular, funcionando nas áreas de saúde, educação, meio ambiente e transporte. Segundo interpretação do autor: “O perfil dos municípios traçado pela pesquisa do IBGE mostra que o Brasil está se transformando numa república soviética. Afinal, a tradução da palavra russa “soviete” é conselho e os conselhos passaram a fazer parte definitivamente da gestão dos municípios brasileiros: em 1999, a média constatada pela pesquisa municipal foi de 4,9 conselhos por município, um total de 26,9 mil “sovietes” espalhados por 99% dos municípios do País” cf. Lessa,R. – “Conselhismo invade cidades” e “Perfil revela que o Brasil foi tomado pelos Conselhos”. Gazeta Mercantil, 18 de maio de 2001. Consulte-se também C. Otávio – “Os conselhos municipais se multiplicam no país”. O Globo.Rio de Janeiro, 13 de novembro de 2003 pág.16

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se como formas livres de mobilização atreladas a situações de conflitos potenciais ou manifestos.

A organização da produção para um circuito de mercado segmentado, agregando

valor através de tecnologia simples constitui outro fator de agregação que deve ser considerado. Esta modalidade organizativa rompe com a dicotomia rural-urbano. Observe-se neste sentido, que as quebradeiras de côco babaçu, por exemplo, fundaram em 2002, em São Luis, capital do Maranhão, um entreposto comercial e de representação política intitulado Embaixada do Babaçu.

Perfazem ainda estas características elementares de agrupamento, que indicam um novo padrão de relação política, os fatores étnicos que tanto concernem a identidades como quilombolas, quanto à emergência de novos povos indígenas, como no alto Rio Negro, e de novas formas associativas, perpassando etnias, como ocorre em Manaus e em Belém, onde famílias de diferentes etnias se agrupam numa mesma organização de reivindicação de direitos indígenas. No caso de Belém, tal organização coordenada por um índio Munduruku, que se deslocou para a cidade e de aposentou como policial-militar, agrega também famílias Tembé e Urubu-Kaapor e se faz representar inclusive no Congresso da Cidade (Novaes et alli 2002) que é uma experiência recente de gestão democrática municipal que abrange uma diversidade cultural e uma pluralidade de representações setoriais, de gênero e por local de residência. Processos de territorialização

Há um processo de territorialização em curso que deve ser objeto de reflexão detida. Babaçuais, castanhais e seringais, sob este prisma, não significam apenas incidência de uma espécie vegetal ou uma “mancha”, como se diz cartograficamente, mas tem uma expressão identitária traduzida por extensões territoriais de pertencimento. Para se ter uma ordem de grandeza destas territorialidades especificas, que não podem ser lidas como “isoladas” ou “incidentais”, pode-se afirmar o seguinte: dos 850 milhões de hectares no Brasil cerca de ¼ não se coadunam com as categorias estabelecimento e imóvel rural e assim se distribuem: cerca de 12% da superfície brasileira ou aproximadamente 110 milhões de hectares, correspondem a 615 terras indígenas (sendo 442 de marcadas, 47 em demarcação e 147 a demarcar). Às terras de quilombo estima-se oficialmente que correspondam a mais de 30 milhões de hectares. Os babaçuais sobre os quais as quebradeiras começam a estender as Lei do Babaçu Livre, correspondem a pouco mais de 18 milhões de hectares, localizados notadamente no chamado Meio-Norte. Os seringais se distribuem por mais de 10 milhões de hectares e são objeto de diferentes formas de uso. Embora o Polígono dos Castanhais, no Pará, tenha hum milhão e duzentos mil hectares, sabe-se que há castanhais em Rondônia e no Acre numa extensão não inferior a 5 milhões de hectares. Acrescentando-se a estas extensões aquelas dos extrativistas do açaí, do arumã, dos ribeirinhos e das associações de fundo de pasto (na região do semi-árido) e demais povos e grupos sociais que utilizam os recursos naturais sob a forma de uso comum, numa rede de relações sociais complexas, que pressupõem cooperação simples no processo produtivo e nos fazeres da vida cotidiana, tem-se um processo de territorialização que redesenha a superfície brasileira e lhe empresta outros conteúdos sociais condizentes com as novas maneiras segundo as quais se organizam

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e autodefinem os sujeitos sociais.25 Em verdade tem-se a construção de identidades específicas junto com a construção de territórios específicos. O advento de categorias como os chamados “sem terra” e os “índios misturados” também podem permitir um entendimento mais acurado deste processo. Anote-se que novos povos indígenas estão surgindo. Veja-se o exemplo do Ceará que vinte anos atrás oficialmente não registrava índios e hoje possui nove ou dez povos indígenas. Concomitante ao “surgimento” tem-se critérios político-organizativos que se estruturam em cima da demanda por terras. As terras vão sendo incorporadas segundo uma idéia de rede de relações sociais cada vez mais fortalecida pelas autodefinições sucessivas, pela afirmação étnica.

Para bem ilustrar isto recorra-se à leitura dos dados censitários: o Censo

Demográfico de 2000 constata que os povos reunidos sob a classificação de indígenas foram os que tiveram a maior taxa de crescimento populacional entre 1991 e 2000. Cresceram a uma taxa de 10,8%, duplicando sua participação no total da população brasileira de 0,32% para 0,4%. Sublinhe-se que neste mesmo período a população total do Brasil cresceu a uma taxa de 1,6% ao ano. Os que se autodeclararam pretos aumentaram 4,2%. O crescimento de indígenas e de pretos não se deveu à multiplicação da população de aldeias e comunidades negras, mas a uma mudança na maneira de autoidentificação do recenseado. Sim, as pessoas estão se autodenominando de encontro a identidades de afirmação étnica e de confronto, que pressupõem territorialidades específicas. Elegendo a região Norte, Amazônia, constatamos que apenas 29,3% se autodenominam brancos, todos os demais, ou seja, mais de 2/3 da população se apresentam como indígenas, pretos e pardos. Em outras palavras a Região Norte tem uma “fisionomia étnica” que aparentemente, pelo percentual dos brancos, mais poderia ser aproximada de paises como a Bolívia, Peru e Equador.

Assim, juntamente com o processo de territorialização tem-se a construção de uma nova “fisionomia étnica”, através da autodefinição do recenseado, e de um redesenho da sociedade civil, pelo advento de centenas de novos movimentos sociais, através da autodefinição coletiva. Todos estes fatores concorrem para compor o campo de significados do que se define como “terras tradicionalmente ocupadas”, em que o tradicional não se reduz ao histórico e incorpora identidades redefinidas numa mobilização continuada.

Definir oficialmente unidades de conservação apenas pela incidência de espécies e operar com as categorias cadastrais convencionais significa incorrer no equívoco de reduzir a questão ambiental a uma ação sem sujeito. Os movimentos sociais apresentam-se como um fator de existência coletiva que contestam esta insistência nos procedimentos operativos de ação sem sujeito.

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25 Pode-se cotejar este percentual com o fato de que há 200 milhões de hectares sobre os quais o cadastro do INCRA não possui qualquer informação. As terras cadastradas referem-se a somente 650 milhões de hectares. Em virtude disto delineia-se mais uma ação governamental inócua, pois, sem modificar as atuais categorias censitárias e cadastrais, o INCRA pretende implantar a partir de março de 2004 o Sistema Nacional de Cadastro de Imóveis Rurais.

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2.1.5. O Campesinato Paraense 26 Observações metodológicas preliminares As reflexões sobre o campesinato constantes deste texto sofrem de evidentes limitações que requerem uma informação sobre as suas fontes e seus procedimentos analíticos. Estas reflexões são baseadas em duas fontes principais e desiguais: por um lado, as fontes oficiais, principalmente as mais acessíveis e mais extensivas ao universo geográfico abordado – o Pará - e, por outro lado, as que resultam de minhas observações pessoais de muitos anos no Pará e na Amazônia em geral, que se dividem entre trabalho de pesquisa (a maior parte publicada em livros e revistas) e observações ocasionais acumuladas sem o mesmo rigor instrumental. Estes conhecimentos têm graus diversificados de precisão, uma vez que trabalhei, sobretudo, no sudeste paraense e na Bragantina paraense. São conhecidas as limitações das informações, mesmo as das fontes mais úteis e de maior confiabilidade geral, como as do IBGE e, em certos casos, as do INCRA. Não precisa estender-se sobre estas limitações. Convém, entretanto, chamar a atenção sobre o uso feito das estatísticas do IBGE para falar do campesinato, uma categoria conceitual fundamental para este estudo, mas que é desconhecida do IBGE.

Em que nicho, ou em que gruta das tabelas, dos gráficos e dos mapas do IBGE se esconde o campesinato? Algumas tabelas do último Censo agropecuário – o de 1995-1996 – oferecem condições de cruzamento entre variáveis, como as categorias de condição do produtor, de grupo de atividade econômica e grupos de área total ou específica (colheita...), de tipo de produto, destino da produção. Um teste de cruzamento entre essas variáveis me levou a privilegiar, para circunscrever a categoria camponesa, a variável “área total do estabelecimento”, escolhendo como mais representativas do campesinato as áreas abaixo de 200 hectares. É para essas áreas que convergem, no caso do Pará, outras variáveis que conhecemos como mais típicas do campesinato paraense, tais como: importância das lavouras temporárias, uso limitado de insumos externos aos lotes, ausência de equipamentos agrícolas ou outros utilitários como veículos, nível baixo da comercialização dos produtos. Quem são os camponeses?

O modo de vida que, neste ensaio, será chamado camponês, e as populações que dele vivem, também chamadas camponesas, se oferecem ao nosso olhar mediante algumas características fundamentais. Os camponeses são produtores livres de dependência pessoal direta – são “autônomos”; sua sobrevivência de homens livres lhes impõe laços de solidariedade cuja quebra ou enfraquecimento ameaçam seu modo de vida; esses laços mais primários são os de parentesco e de vizinhança que os levam a procurar se agrupar em

26 O texto desta seção é constituído pela Primeira Parte do documento O Campesinato Paraense do estudo Agriculturas Camponesas Paraenses, elaborado por Jean Hebette (2004).

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“comunidade”; a busca de sua permanência e reprodução numa mesma “terra” (ou no mesmo “terroir”, como se diz em francês), traduzidas como apego à terra, é a marca do sucesso de seu modo de vida e a fonte de seu cuidado com seu ambiente: A migração para ele é uma fatalidade, a expulsão, uma degradação inaceitável.

No Brasil, a palavra camponês desapareceu do léxico oficial; cheira o atraso do homem do campo. Desapareceu também do dicionário de muitos cientistas da agronomia e até das ciências sociais, pois o conhecimento do homem do campo postula do estudioso um trabalho persistente de campo. Lhe é preferida a expressão vaga e homogeneizadora de “agricultor familiar” cuja fácil identificação se reduz a algumas variáveis quantitativas de números de trabalhadores, familiares e exteriores à ela, e de quantidade de meses de trabalho externos ao grupo doméstico (ver a brilhante crítica de Delma Passanha). Esta opção metodológica adotada nas esferas oficiais facilita, evidentemente, a utilização da estatística graças a seu poder de homogeneização redutora de uma categoria social muito complexa e diversificada.

A raiz desta diversidade tem suas explicações, que, obviamente, não se encontram apenas nas predisposições e nas práticas das famílias que vamos analisar. Elas exigem a recomposição da história, das políticas públicas e, acima de tudo, na Amazônia, dessa complexa teia de relações entre as diversas categorias de exploradores da terra, que está embutida na história e nas políticas públicas. Estes aspectos serão examinados brevemente numa primeira parte deste trabalho; a secunda parte será dedicada ao exame de três situações típicas do Estado do Pará: o Oeste, o Sudeste, a Bragantina (...)27 O contexto contraditório do nascimento do campesinato paraense: um pouco de história

O campesinato sobrevive no Brasil em proporções e densidade muito diversificadas segundo as regiões e segundo suas modalidades. A referência ao campesinato sempre foi a referência à Europa continental Ocidental; é lá que os governos foram buscar os colonos quando findou o regime escravagista; estes se fixaram sobretudo no Sul e no Centro-Sul do país, regiões mais próximas da Europa em termos ambientais, onde deram origem a um campesinato original. Daqui em diante, o “tipo ideal brasileiro” do campesinato se tornou o campesinato do Sul e Centro-Sul. É esta referência que orientou todas as políticas públicas brasileiras para o campesinato --- quando houve!, inclusive as políticas recentes de colonização. O Norte ficou o refúgio dos camponeses atrasados, os “caboclos”.

Na Amazônia, quando o Estado do Maranhão e Grão-Pará era ainda distinto do

Estado do Brasil, o progressista Marquês de Pombal, tentou criar também um campesinato. Nos idos de 1750, tentou aculturar como agricultores livres no Amapá e no Nordeste paraense colonos expulsos da praça forte de Mazagão, no Marrocos. Não teve êxito.

Na verdade o primeiro campesinato totalmente livre que surgiu e se manteve no

Pará, foi formado pelos quilombolas que fugiram da escravidão, aos quais se juntaram, mais tarde, os rebeldes cabanos que escaparam do massacre pelas tropas legalistas do

27 Nota: A segunda parte deste estudo de Jean Hebette não está aqui incluída.

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Império. Esperaram até o fim do século XX para ter algum reconhecimento público de sua identidade e de seu direito à terra duramente conquistada.

Vieram em Santarém homens do campo derrotados no sul do Estados Unidos na

Guerra de Secessão. Nas proximidades de Belém, em Benevides, vieram alguns migrantes franceses denominados canadinos. Não persistiram e não formaram campesinato.

Foi uma grave seca que assolou todos os trópicos do mundo nos anos 1870,

inclusive os sertões do Nordeste brasileiro, que arrancou de suas terras e do domínio de seus donos, levas de migrantes nordestinos que procuraram sua sobrevivência na Amazônia, região imune, por suas águas, ao flagelo. Muitos deles foram se escravizar no duro serviço dos seringais. Outros ficaram nas cercanias das cidades de Belém, penetrando para o leste do Pará, acompanhando uma ferrovia que progredia penosa e vagarosamente nas matas bragantinas. Estes foram os que criaram no Pará um primeiro campesinato denso, articulado, e de certa maneira próspero, considerando-se as outras categorias de trabalhadores. Um dado de importância fundamental para a constituição de um campesinato efetivamente autônomo na Bragantina, foi a alocação aos colonos de lotes de terra claramente delimitados pelo governo e de tamanho adequado a um tipo de exploração familiar (média de 30 ha).

A falta de delimitação oficial das terras camponesas nas áreas ribeirinhas da rede

fluvial Amazônica manteve, muitas vezes, na dependência social dos grandes proprietários, as famílias que, por tradição secular ou por presença mais recente, moravam nas regiões banhadas pelo rio Amazonas e seus afluentes. As famílias donas de grandes fazendas, residentes no seu domínio rural ou na cidade ou ainda alternativamente num e na outra, donas também, geralmente de cargos políticos, de cartório, ou de comércio e de transporte exerciam e continuam exercendo sobre essas famílias camponesas diversas formas de pressão, de obrigações e de dominação.

As vias e as condições de transporte e de comunicação são de extrema importância

para as populações rurais; geralmente, estas distâncias aumentam ou diminuem conforme a densidade da população. O fato de a colonização da Bragantina ter avançado ao ritmo da implantação de um ferrovia pública dos anos de 1880 a 1920, assim como o módulo de 30 ha para as terras das colônias, contribuiu bastante para a constituição de um campesinato relativamente denso, organizado em torno das estações do trem que se tornaram progressivamente centros de comércio e de serviços. A condição de serviço público da ferrovia, por outro lado, preservou as populações de uma dependência paternalista dos donos de empresas privadas. As populações ribeirinhas dos rios organizadas após a escravidão e reforçadas pela volta àquelas regiões dos seringueiros, não se beneficiaram das mesmas vantagens e permaneceram mais tempo na dependência dos grandes donos de terra.

Mas diferente foi o impacto sobre o campo das vias de comunicação quando

deixaram de ser locais, ou simplesmente regionais. Foi o que aconteceu a partir do momento em que a indústria brasileira, aproveitando o parêntese da Segunda Guerra mundial, penetrou no ramo da construção automobilística que se ampliou nos anos de 1970 e 1980. Este interesse pela construção e/ou montagem de caminhões, carros e ônibus acompanhou-se necessariamente do desenvolvimento da rede rodoviária de dimensões

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nacionais. O Pará foi inicialmente afetado pela nova política de transporte com a construção da rodovia conhecida como Belém-Brasília que, nos anos de 1950 e 1960, penetrando nas bandas nordestinas do Estado, passou a interligar as duas capitais com fluxos de veículos crescentes à medida que a rodovia estava completando a sua infra-estrutura física e de serviços. Ela foi acompanhada pela implantação de um novo latifúndio madeireiro e pecuário mais dinâmico, empresarial e impessoal, que contrastava com o latifúndio paternalista dos tempos passados. Enquanto este novo latifúndio estava irrigado de generosos incentivos fiscais, o campesinato recebia apenas uma minguada assistência técnica. Marcou o início do enfraquecimento da colonização bragantina.

A implantação da rodovia Transamazônica no sentido leste-oeste nos anos 1970

teve, também, impacto profundo no Sudeste paraense, mas ela apresentava características diferentes. Primeiro, os objetivos básicos dessa implantação: tratava-se de povoar uma imensa parte do país de densidade populacional ínfima para despovoar outra parte – a do Nordeste – cujas densidades aumentavam o caráter potencialmente explosivo das contradições agrárias. Trazia no seu bojo o modelo rural supostamente integrador de atividades agropecuárias empresariais e camponesas, de desenvolvimento empresarial eficiente de latifúndios improdutivos concedidos pelo governo no Sul do Pará nos anos de 1950, e de um programa de colonização agrícola oficial.

O governo não contava com o potencial organizativo dos pequenos produtores que,

desprezando os planos governamentais de organização colonizadora, procuravam sua autonomia, fugindo do cativeiro da terra no Nordeste. O projeto de colonização ao longo da Transamazônica envolvia a transferência, do domínio estadual para a jurisdição federal, das terras cortadas pela rodovia, com a conseqüência da montagem de um novo organismo governamental representando a União nas terras de colonização: uma forma autoritária de intervenção federal que retirava do governo estadual a competência em termos de infra-estrutura, educação, saúde, assistência técnica, crédito nas áreas de colonização, criando uma superpotência prepotente, o INCRA. Este autoritarismo, casado com uma prepotência que excluía o diálogo, estimulou a formação de um tipo de organização sindical particularmente forte respondendo à imposição pela imposição até que se chegasse a um princípio de diálogo.

Esta força sindicalista estava também estruturando-se no meio às populações

tradicionais do Oeste Paraense, mais precisamente no raio de ação da cidade de Santarém, alastrando-se ao longo da Transamazônica e nos municípios do Baixo Amazonas. A influência do movimento sindical no Sudeste paraense foi determinante na construção de um “novo campesinato”.

Entretanto, este campesinato regional em formação, desprovido de um apoio competente dos governos estaduais e federal, sofria uma tremenda pressão dos novos latifundiários, estes apoiados pelo grande e médio capital, ele mesmo apoiado pelo estado. Hoje, salta aos olhos a estratégia tenaz de ocupação da Amazônia tanto denunciada, sem sucesso, pelos estudiosos da Amazônia, pesquisadores e jornalistas, desde 1970. Ela pode ser esquematizada, no Pará da maneira seguinte:

⋅ ocupação militar graças aos programas de infra-estrutura e de ocupação camponesa;

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⋅ ocupação empresarial de grande monta (mineração, indústria siderúrgica, hidrelétrica...);

⋅ penetração das matas pelos madeireiros e fazendeiros, na seguinte seqüência:

1º: desmatamento e pecuária extensiva (aliança madeireiras/pecuaristas) ao longo das grandes rodovias (Belém-Brasília, Transamazônica, PA 70 e 150), inclusive graças à mão de obra rural vinda do Nordeste brasileiro; 2º: desenvolvimento de uma pecuária moderna, principalmente no Sul e Sudeste paraenses; 3º: introdução da soja, principalmente ao longo do traçado da rodovia Cuiabá-Santarém (fase atual).

Estas estratégias repousam numa visão de médio e longo prazo e têm uma grande coerência interna tipicamente capitalista. Ela se sintetizava no projeto do Grande Carajás, o Carajazão, de Delfim Netto, que, já em 1980, previa “800 mil hectares de soja plantados” e, isto, “apesar da inexistência de resultados definitivos que possam fundamentar a introdução da cultura” (boletim Relatório reservado, de novembro de 1980). A Embrapa encarregar-se-ia de adaptar a soja aos ecossistemas amazônicos ‘transgenicados’ e a miséria rural encarregar-se-ia de fornecer uma mão-de-obra semi-escrava para a realização dos planos ‘delfinicos’.

Neste quadro megalomânico e desumano, conseguiu-se nascer e se organizar o que já chamei “um novo campesinato paraense” (Sudeste paraense e transamazônico de terra firme) e começar a se organizar um campesinato de tradição ribeirinho-varzeira de matiz ambiental (ao longo do rio Amazonas): dois tipos originais de campesinato brasileiro totalmente desconhecidos fora da região. O Pará camponês e seu entorno

Segundo o Censo de 2000, o Estado do Pará mede 1.227.530 km2; a população, em 2000, se elevava a apenas 6.192.307 habitantes, representando uma densidade populacional muito abaixo da dos Estados mais ao sul (5 hab/km2) - número este geralmente interpretado como negativo e como sinal de subdesenvolvimento. A presença e o modo de vida das populações indígenas e do campesinato testemunham que não é bem assim.

Esta população paraense está distribuída de uma maneira desigual: 33% dela reside na região metropolitana de Belém, área considerada pelo IBGE como quase totalmente “urbana”; além desta área metropolitana, somente três cidades têm mais de 100.000 habitantes (Santarém, Castanhal e Marabá). A população designada pelo IBGE como ”rural”, por sua vez, representa 33,5% do total paraense. Onde estão os outros 33%? No “campo” e em sedes de municípios indevidamente chamadas “urbanos”, mas que são na realidade pequenos centros rurais de serviços (de 20 a 50.000 habitantes, entre os quais muitos agricultores).

A área dos estabelecimentos agropecuários calculada pelo Censo Agropecuário de 1995-96 era de 22.520.229 ha (18,35% do Estado), sendo que a área dos 193.453

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estabelecimentos de menos de 200 ha somava 7.162.291 há (32% deste total), enquanto 158 estabelecimentos de mais de 10.000 ou mais ha cobriam, na época do censo, 5.369.196 ha, ou seja, 23,8% da área total dos estabelecimentos! E o resto do espaço estadual? Ele se dividia entre “reservas” de diferente natureza (mineração, remansos de barragens para hidrelétricas, áreas de titulação irregular etc,) num total de 40 milhões de hectares. Além destas áreas inacessíveis à população em geral, há áreas acessíveis para uma população reduzida devido às normas de conservação, notadamente as florestas nacionais, os parques nacionais, as reservas extrativas e as reservas biológicas que soma um total 46,53 milhões de hectares. As terras indígenas somam um total, no Estado do Pará, de 27, 67 milhões de hectares. Como terras de uso restrito (áreas da aeronáutica e outras) tem-se 31,4 milhões de hectares. O espaço camponês paraense O que representava, em 2000, o campesinato no conjunto desta população paraense?

O Censo demográfico não nos informa a este respeito, e nem em relação às populações indígenas. Com certeza, ela população camponesa não se mede pela população rural, porque, primeiro, nem toda a população rural é camponesa, e, segundo, há muitos camponeses recenseados como “urbanos” nas cidades do interior. Deve-se, portanto, utilizar outras referências que o trabalho de campo permite identificar, cruzando diversas “variáveis”; entre elas, por exemplo, a dimensão da terra do estabelecimento, o tipo de produtos, as tecnologias usadas, os equipamentos disponíveis. Cada uma destas variáveis devendo ser considerada dentro do contexto sóciocultural e tecnológico da região e inter-relacionadas, nenhuma delas sendo significativa isoladamente.

O teste pragmático de representatividade da identidade camponesa experimentado, no contexto paraense e com base em dados disponíveis, resultou na escolha da variável tamanho da terra como a mais satisfatória – não em si, mas dentro do contexto paraense e em confronto com a nossa experiência de campo. Esta informação, infelizmente, só é disponível no último Censo Agropecuário, defasado em quase 10 anos, o que é muito, considerando-se o dinamismo demográfico da região Norte, cuja população cresceu, de 1960 a 2000, a uma taxa anual de 2,86% (de longe a maior de todas as regiões do país), sendo a taxa de crescimento “urbano” de 4,82%, bem mais ainda do que a taxa das outras regiões, enquanto a população rural baixava de 0,62%, de longe, a menor de todas as regiões) (IBGE, 2000, p. 31). Além desta limitação, deve-se levar ainda em conta a imprecisão e a confiabilidade limitada de alguns dados dos censos, particularmente em contexto amazônico. Apesar destas restrições, são os dados daquele censo que nos foi possível utilizar. A grande tendência da evolução da agropecuária camponesa paraense

O Censo Agropecuário dá uma idéia aproximativa da tendência de crescimento em termos de estabelecimentos e de pessoas na agropecuária do Estado. Para efeito de comparação foram adotados como início do período os anos de 1960 que caracterizam a

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abertura da fronteira amazônica, e como final do período o ano de 1995, ano do último Censo Agropecuário.

Como dito acima, o Censo de 1995-96 registrou uma área de 22.520. 229 ha

(18,35% do Estado) pertencentes a 206.404 estabelecimentos agropecuários, incluindo lavouras, pastagens, florestas, pesca e áreas não utilizadas.

A Tabela 7 mostra a evolução do número de estabelecimentos daqui em diante

considerados representativos do campesinato e a Tabela 8, a evolução das áreas daqueles estabelecimentos, com seus respectivos percentuais em relação ao total da agropecuária paraense.

Essas tabelas mostram que, ao longo do período, o número relativo (%) de estabelecimentos aqui considerados camponeses se manteve no nível de 92-93% do total, e o volume da área em torno de 31-33%, confirmando a enorme concentração da terra.

O número de estabelecimentos camponeses aumentou muito menos do que os das

outras categorias, pelo menos se incluir na comparação um grande número de estabelecimentos sem declaração no Censo de 1960; pode-se, inclusive, conjeturar que estes estabelecimentos omitidos eram precisamente os maiores.

Tabela 7 . Evolução do número de estabelecimentos agropecuários por grupos de área total dos estabelecimentos. Pará 1960-1996

Área (ha)

1 9 6 0 1 9 9 6 Z% (b/a) º de

estab. (a)

%

º de estab. (b)

%

< 10 10 a < 100 100 a < 200 Subtotal 200 a < 10.000 10.000 e mais Subtotal Sem declaração Total

34.770 39.040 3.054 76.864

3.306 33 3.339

2.977

83.180

41,80 46,93 3,67

92,41

3,98 0,03 4,01

3.58

100%

64.838 104.435 24.180 193.453

12.584 162 12.746

205

206.404

31.41 50.60 11.72 93,72

6,10 0,08 6.18

0,10

100%

86

167 692 152

280 391 282

-94

148%

Fonte: IBGE. Censo Agropecuário 1995-1997. Pará. Tabela 1

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Tabela 8. Evolução da Área dos Estabelecimentos Agropecuários por Grupos de área total dos estabelecimentos. Pará 1960-1996

Área (ha)

1 9 6 0

1 9 9 6

Z% (b/a)

º estab. (a)

%

º estab. (b)

%

<10 10 a < 100 100 a < 200 Subtotal 200 a < 10.000 10.000 e mais Subtotal Total

131.294 1.215.059 415.341 1,761.694

2.542.902

948.676

3.491.578

5.253.272

2,50 23,13 7,90 33,53

48,41

18,06 66,47

100%

210.417

4.117.745 2.834.129 7.162.291

9.988.743

5.369.196

15.357.939

22.520.230

0,93

18,28 12,58 31,78

44,36

23,84 68,20

100%

60

229 582 307

293

566 340

324

No que se refere ao campesinato, aumentou muito o número de estabelecimentos na

faixa entre 100 e menos na faixa de 200 hectares, o que se deve, pode-se acreditar, ao módulo de 100 hectares fixado inicialmente pelo INCRA na época da colonização oficial. Está faixa representa os 12% de camponeses, mas dotados de terra. Em sentido contrário, os minifúndios tenderam a declinar. O forte do campesinato e sua maior tendência ao crescimento estão, entretanto, na faixa intermediária de 10 a menos de 100 hectares.

Quantos são, finalmente, embora aproximativamente, os estabelecimentos camponeses do Pará?

Aceitando que, no caso do Pará, o critério de área inferior a 200 ha seja válido para circunscrever o campesinato; o número de estabelecimentos seria de 193.453, ou seja, 93,7% do total dos estabelecimentos paraenses, cobrindo 7.162.289 ha, ou seja 31,8% do total da área desses estabelecimentos.

-------x--------

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2.1.6. Os pescadores de pequena escala no Pará28 “O Estado do Pará tem grande parcela de sua população vivendo no meio rural ou

dele dependendo para obter seus meios de vida. Parte significativa dos que residem nas pequenas e médias cidades do Estado trabalha no campo, de maneira exclusiva ou parcial. Neste Estado, como aliás na região como um todo, as águas ocupam lugar de destaque e, nesse contexto, a pesca sobressai como atividade produtiva. Com seus dois segmentos - artesanal e industrial, conforme a terminologia oficial – o Pará é o maior produtor de pescado do país, tendo suplantado o Estado de Santa Catarina, tradicional pólo pesqueiro do Brasil.

Os pescadores artesanais que, em sua maioria, são pescadores de pequena escala, podem ser considerados como parte do campesinato, por compartilharem um conjunto de características com os camponeses de base agrícola. Ademais, as categorias ‘pescadores’ e ‘agricultores’ não raramente se confundem, embora menos hoje do que em um passado não muito distante. Os mesmos produtores que exercem a pesca, podem exercer a agricultura ou, ainda, diversos tipos de extrativismo. Nesses casos, a identificação profissional com a pesca ou a agricultura - feita por exemplo para inscrição no sindicato e para requisitar direitos vinculados ao estatuto profissional – pode ocorrer por fatores diversos, como o tempo de dedicação a uma ou outra, ou o seu grau de contribuição para o orçamento doméstico. Há que se considerar, também, que por vezes a participação das famílias nas atividades em terra e nas águas obedecerá a um padrão de divisão do trabalho por sexo e por idade. Assim, conforme o lugar, podem-se encontrar famílias em que os homens pescam e as mulheres trabalham regularmente na roça, podendo praticar pesca de beira e realizar tarefas complementares à pesca dos parentes. Em outros casos, os homens podem pescar e trabalhar na terra e as mulheres na terra e no beneficiamento de mariscos. Há, portanto, muitas situações em que pescadores e agricultores se confundem. Mas há, também, uma grande proporção de pescadores, dedicando-se integralmente às lides pesqueiras, o que é comum nas cidades portuárias. De todo modo, a despeito da importância da pesca nesta região, importância econômica e social, vale ainda lembrar que não se trata de uma região de “grande tradição” pesqueira, como ocorre em certos países costeiros, capaz de conformar padrões culturais absolutamente distintos entre as comunidades de pesca, notadamente as marítimas, e as comunidades terrestres. Os pescadores, pescadores-lavradores, ribeirinhos, lavradores e extrativistas no Pará e, por extensão, na Amazônia, partilham uma origem histórica comum que remonta à colonização e ao processo de desestruturação das populações indígenas, sua conversão no “índio genérico”, destribalizado, formador das populações rurais amazônicas. Evidentemente, a partir de meados do século XX, com as políticas de crescimento econômico e de ‘integração’ regional por meio dos grandes eixos rodoviários, a ocupação das terras firmes distantes dos cursos dos grandes rios provocou mudanças no perfil demográfico e cultural. Assim como levas de migrantes assentados ao longo das rodovias

28 Esta seção é constituída por extratos do documento Diversidade camponesa: os pescadores de pequena escala no Estado do Pará, de Maria Cristina Maneschy (2003).

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especializaram-se nas atividades agrícolas, também levas de antigos pescadores-lavradores dirigiram-se para cidades e se especializaram na pesca. Os pescadores artesanais ou de pequena escala, exclusivos ou não, são aqui considerados como parte do campesinato, como já referido, pois partilham características - e, também, problemas para sua reprodução social – com os camponeses de base agrícola. Dentre essas características destaca-se a condição de produtores autônomos, a importância da família na produção, que pode se dar na composição das unidades de trabalho – tripulações – ou na realização de tarefas pré e pós-captura, quando as mulheres ou filhas de pescadores ocupam-se do conserto ou confecção de instrumentos de pesca (notadamente as redes) e beneficiam o produto trazido pelos parentes. A proximidade de interesses de ambas as categorias evidencia-se no fato de que participam de mobilizações em conjunto, como é o caso dos Gritos da Terra, quando pressionam por políticas de apoio, reconhecimento e direitos.” (Mareschy, 2003: 1-2)

“(...) A despeito da importância indiscutível do setor pesqueiro na região, do ponto de vista econômico e social permanece a grande carência de estudos sistemáticos sobre suas características básicas, formas de organização e problemas vivenciados dia a dia pelos pescadores e pelas comunidades pesqueiras em geral. A falta de estatísticas sobre o contingente humano envolvido tem sido observada em vários estudos, não somente no Pará, como em outras regiões do país, como analisou Diegues (1995). A ausência de dados ou políticas setoriais consistentes são expressões do lugar secundário com que a atividade ainda é vista na região.

Os pescadores exploram diversos ambientes. O Estado do Pará oferece possibilidades de pesca marítima, costeira (nas praias, nas águas ao largo, sobre bancos de areia, nas baías...), fluvial (ao longo dos rios, cabeceiras ou foz de rios e igarapés), pesca lacustre (com destaque para os lagos do Baixo Amazonas, da ilha de Marajó e o lago de Tucuruí) e, ainda, nos manguezais da costa. Os que executam pescarias móveis podem efetuar grandes deslocamentos, chegando mesmo aos estados vizinhos. Os deslocamentos podem estar se modificando tanto por fatores ambientais quanto pela escassez decorrente de acentuada pressão sobre os estoques e a ausência de medidas sistemáticas de manejo pesqueiro, obrigando os pescadores a procurar pesqueiros (locais de pesca) mais distantes.

Há, portanto, modalidades bastante diferentes de pesca no Estado, que requerem disponibilidade de meios de trabalho, de tempo e de mão-de-obra, muito diferentes. No que diz respeito a medidas concretas de apoio à categoria, tais diferenças devem ser levadas em conta. De acordo com o dirigente de uma associação de pescadores no município de Porto de Moz, em entrevista no ano de 2000, as especificidades locais devem ser consideradas inclusive nas pesquisas aplicadas.

“... Tocantins é diferente do Xingu, diferente do Tapajós, do Amazonas, do Salgado [zona costeira]; então, seria [preciso] insistir nessas pesquisas por região, certo, pra poder ter um crescimento de conhecimento, porque cada região tem o seu conhecimento, tem a sua cultura, tem o seu jeito de trabalhar. Então, aí vai ser difícil traçar uma política única, por exemplo, que é feita para o Salgado, que dá certo, mas no Baixo Amazonas não dá. Se foi um política lá no Tocantins, lá tem um

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sistema diferente do Xingu. Então é isso que eu falo da questão de uma política assim voltada (...) Com relação ao estudo eu me refiro que o governo tem os seus órgãos de pesquisa, então é necessário liberar mais recursos para os órgãos de pesquisas, pra poderem fazer essas pesquisas aqui na região”. 29 (Mareschy, op. cit.: 6-7)

“(...) Uma categoria de pescadores numericamente importante no litoral é composta

pelos “tiradores” de caranguejos, que atuam nos exuberantes manguezais da área.30 É uma categoria cuja formação é relativamente recente, pois decorreu do incentivo à comercialização trazido pelas estradas, a partir dos anos 1970. Há indícios de que ela vem crescendo numericamente. Silva (2004) observou um acréscimo no número de pessoas nessa atividade nos últimos cinco anos, que teria ocorrido pela “falha” (diminuição) de peixes de maior valor comercial na região costeira.

Os tiradores estão inseridos na categoria mais ampla de pescadores, mas apresentam particularidades. O grau em que dependem da “tiração” como fonte de renda varia conforme o local. Em pesquisa de campo em 1990 no município de São Caetano de Odivelas sobre os tiradores de caranguejos, Maneschy (1993) verificou grande número deles atuando somente nessa atividade, sobretudo no caso dos residentes na cidade. Eles entremeavam a tiração eventualmente com a pesca em rios ou com serviços (por exemplo, capinação de ruas). Já no caso de povoados, era mais comum encontrar tiradores que eram também agricultores.” (Maneschy, p. cit.: 16)

--------x-------- 2.1.7. Territorialidades tradicionais e perspectivas de sustentabilidade nos cerrados31 Introdução

Os Cerrados se constituem no segundo maior bioma brasileiro após a Floresta

Amazônica, ocupando praticamente um quarto do território brasileiro (Figura I) - equivalente, por exemplo, à área da Europa ocidental -, presente em 13 unidades federativas do Brasil32, e abrigando um rico patrimônio de recursos naturais renováveis adaptados às

29 Sr. Pedro Maciel, então presidente da Associação de Pescadores Artesanais de Porto de Moz (ASPA). Entrevista concedida a Ana Laíde Barbosa, coordenadora regional do Conselho Pastoral de Pescadores. 30 Ainda que não se trate de determinismo ambiental, compreender a presença desses trabalhadores implica considerar a grande extensão dos manguezais ao longo da costa paraense e dos estados vizinhos: “A costa brasileira possui uma das maiores áreas contínuas de manguezal do mundo, em torno de 1,38 milhões de hectares, cuja vegetação apresenta sua maior exuberância nas latitudes próximas à linha do Equador, no litoral amazônico...”. Fonte: FERNANDES, M. E. B. (org.) Os manguezais da costa norte brasileira. Maranhão, Fundação Rio Bacanga, 2003. (Prefácio) No Pará, os manguezais ocupam 4.500 km2 (conforme PAIVA, 1981, apud SUDEPE, 1988), correspondendo a cerca de 1/5 dos manguezais do país. 31 Esta seção é constituída pela Parte II – Territórios tradicionais e a perspectiva da sustentabilidade dos cerrados, do documento Conhecimento Local e Sustentabilidade: lugares e saberes das ruralidades não-modernas dos cerrados, de Carlos Eduardo Mazzeto da Silva (2002). 32 Bahia (oeste e Chapada Diamantina), Ceará (enclaves nas Chapadas Araripe e Ibiapaba), Distrito Federal, Goiás, Maranhão (sul e leste), Mato Grosso (sul), Mato Grosso do Sul, Minas Gerais (centro-oeste, noroeste,

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duras condições climáticas, edáficas e hídricas que determinam sua própria existência. Mesmo se identificando na denominação internacional de savanas, os Cerrados são uma formação única no mundo, só presente em nosso território.

A dimensão da biodiversidade dos Cerrados ainda não está completamente

conhecida. Estimativas apontam para a existência de mais de 6.000 espécies só de árvores. Dias (1996) ressalta no universo vegetal dos Cerrados, 14 grupos de plantas úteis: forrageiras, madeireiras, alimentícias, condimentares, têxteis, corticeiras, taníferas, com exudatos no tronco, produtoras de óleo, medicinais, ornamentais, empregadas no artesanato, apícolas e aparentadas de cultivos comerciais.

As estimativas sobre a diversidade de espécies animais se encontra no quadro 3.

Quadro 3 – Estimativa de número de espécies de répteis, anfíbios, mamíferos e aves do Cerrado

Tipo de animal úmero de espécies Répteis (Cerrado) 180 Répteis (Pantanal) 113 Anfíbios (Cerrado) 113 Aves (Cerrado) 837 Mamíferos (Cerrado) 195 Mamíferos (Pantanal) 132

Fonte: WWF, 2000 a partir de dados de Marinho Filho, 1998 e Cardoso, 1998.

Quadro 4 - Distribuição espacial primitiva dos diferentes tipos de ecossistemas da região dos Cerrados Tipo de ecossistema Área estimada

(1000 há) %

cerrados (estrito senso) 108.000 53,0 campos de cerrado 23.600 11,6

Cerradões 16.900 8,3 campo úmido/pantanal 11.200 5,5

matas de galeria 10.200 5,0 matas de interflúvio 10.200 5,0

Carrascos 8.200 4,0 campo rupestre 5.100 2,5 campo litólico 5.100 2,5 vereda e brejo 5.100 2,5

Fonte: Dias, 1996

parte do norte e nordeste e Serra do Espinhaço), Pará (enclaves no sudeste), Piauí (sudoeste e norte), Rondônia (área centro-leste), São Paulo (enclaves no centro-leste) e Tocantins (exceto extremo norte).

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Essa grande biodiversidade se reflete também nas diferentes fisionomias que se abrigam sob o que chamamos de Cerrados. Na descrição de Dias:

“A região dos cerrados constitui-se num grande mosaico de paisagens

naturais dominado por diferentes fisionomias de savanas estacionais sobre solos profundos e bem drenados das chapadas (os Cerrados), ocupando mais de 2/3 das terras, que são recortadas por estreitos corredores de florestas mesofíticas perenifólias ao longo dos rios (as matas de galeria) ladeados por savanas hiperestacionais de encosta (os campos úmidos) ou substituídos por brejos permanentes (as veredas). Esse padrão é interrompido por encraves de outras tipologias vegetais: savanas estacionais de altitude (os campos rupestres), savanas estacionais em solos rasos (os campos litólicos), florestas xeromórficas semidecíduas (os cerradões), florestas mesofíticas dos afloramentos calcários (as matas secas), florestas mesofíticas de planalto (as matas de interflúvio), savanas hiperestacionais aluviais com murunduns (os pantanais), florestas baixas xeromórficas decíduas em solos arenosos (os carrascos), além dos ambientes diferenciados associados às cavernas, lajedos, cachoeiras e lagoas” (Dias, 1996:17).

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FIGURA I – Domínio dos Cerrados no Brasil

Essas diferentes formações se distribuem pelo bioma, segundo Dias (a partir de dados de Azevedo e Adamoli), de acordo com o Quadro 4.

Calcula-se hoje que cerca de dois terços das espécies presentes no planeta vivem

nos trópicos (Dias, opus cit): metade no Novo Mundo (região neotropical) e metade no Velho Mundo. Cerca de metade da biota neotropical ocorre em território brasileiro, o que faz do Brasil o país detentor da maior parcela da biodiversidade mundial: cerca de 17% do total!

“Pela sua extensão territorial (25% do país), pela sua posição central

(que propicia compartilhar espécies com quatro outras regiões), pela sua diversidade de tipologias vegetais (que abrigam cerca de 11 biotas distintas), e por conter trechos importantes das três maiores bacias hidrográficas

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brasileiras e sul-americanas, a região do cerrado potencialmente abriga aproximadamente um terço da biota brasileira, ou seja, cerca de 5% da fauna mundial.” (Dias, 1996: 20).

Este patrimônio biológico vem sendo rapidamente erradicado para dar lugar à

ampliação da fronteira agrícola brasileira, com base num modelo de extensas monoculturas: grãos, cana, eucalipto, braquiarias, frutas, etc. Alguns autores afirmam que os Cerrados estão mais ameaçados que a Floresta Amazônica. Aliás, o processo de ampliação dessa fronteira sobre os Cerrados, teve como desculpa a proteção da Amazônia. Esse pensamento é ilustrado por depoimentos de cientistas, políticos, empresários e administradores, a começar, contraditoriamente, pelo mais renomado estudioso da ecologia dos Cerrados, Mário Guimarães Ferri:

“ ... os ecossistemas do Cerrado são, sem dúvida, menos frágeis que os

da Amazônia. Melhor, pois, começar a exploração agropecuária no Cerrado. Enquanto isso, podem-se desenvolver pesquisas que nos ensinem como utilizar de modo racional a Amazônia, sem que ela venha a sofrer os mesmos riscos de hoje. Assim, poderemos usufruir de suas riquezas e ao mesmo tempo preservar, para as gerações futuras, esse inestimável patrimônio que nos legou a *atureza” (Ferri, 1979: 55).

Ribeiro registra a mesma lógica na fala de Paulo Afonso Romano, presidente da

CAMPO, em 1985 - empresa binacional (Brasil-Japão) responsável, na época, pela coordenação de um dos programas de desenvolvimento do Cerrado:

“Prossegue a ocupação da Região Amazônica, porém em solos

selecionados, pois ainda persistem condições precárias de infra-estrutura, riscos ecológicos e escasso conhecimento científico e tecnológico para ampla utilização dos recursos amazônicos. O bom senso de atrair maior atenção para os cerrados, enquanto se amadurece a solução amazônica, deve ser considerado como uma histórica correção de rumos na busca de novas regiões agrícolas” (Romano, 1985, citado por Ribeiro, 1997a: 4).

O processo de ocupação dos cerrados pelas monoculturas, não atingiu apenas a biodiversidade vegetal e animal, mas também a diversidade etno-cultural. Não foram “lugares vazios” que cederam espaço para as monoculturas. Comunidades indígenas e camponesas (negras e mestiças) habitavam e habitam vários lugares deste vasto espaço. Vale ressaltar que em 1960 – ano de inauguração de Brasília –, havia já na região dos Cerrados cerca de 11 milhões de habitantes, sendo 64% de desse total (7 milhões habitantes) constituído de população rural (Brito, 1980: 275).

As ocupações pré-modernas dos Cerrados e seus saberes

Estudos arqueológicos registram a mais antiga ocupação no cerrado há cerca de

11.000 anos, ligada ao que esses estudiosos chamam de tradição Itaparica (Barbosa, e Nascimento, 1993): povos caçadores e coletores que se aproveitavam da diversidade de

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ecossistemas e espécies úteis que o cerrado oferecia. A tradição Itaparica teve seu clímax ao redor de 10.000 A.P. e parece ter terminado bruscamente a partir de 8.500 A. P. “quando se iniciou uma nova tendência para a especialização à caça de animais de pequeno porte e à coleta de moluscos” (Barbosa e Nascimento, 1993: 168). Esta tradição, juntamente com outras duas (Una e Aratu/Sapucaí), está associada aos grupos indígenas do grupo lingüístico Macro Gê, herdeiros de uma longa tradição de povos primitivos habitantes dos Cerrados (Ribeiro, 1997a). Segundo ainda Ribeiro, os principais povos indígenas que habitaram os Cerrados mineiros se distribuem em três famílias deste tronco lingüístico: Bororo, Cariri e Jê (línguas Akuen e Kayapó).

A riqueza do conhecimento desses povos no manejo dos ecossistemas é

exemplarmente ilustrada pela pesquisa realizada por Darrel Posey e Anthony Anderson com os Kayapó no sul do Pará – região de transição entre os Cerrados e a Floresta Amazônica. Esses pesquisadores registraram na aldeia de Gorotire, roças com alto nível de agrobiodiversidade - média de 58 espécies de plantas por roça. Identificaram, por exemplo, 17 variedades de mandioca e 33 de batata-doce, inhame e taioba que se distribuíam no espaço, de acordo com pequenas variações microclimáticas. Observaram que o modo como os índios alteram a estrutura das roças ao longo do tempo parece seguir um modelo que se baseia na própria sucessão natural dos tipos de vegetação: das espécies de baixo porte e vida curta, até as espécies florestais de grande porte (hoje esse método é chamado de agroflorestação). Eles distinguem e nomeiam os tipos diferentes de cerrados: desde os campos limpos (kapôt kein) até os cerradões (kapôt kumernx). Nos campos de cerrado próximos à aldeia Gorotire aparecem “ilhas” (apêtê) de vegetação lenhosa (nos cerrados, em geral a vegetação lenhosa aparece dispersa). Os pesquisadores registraram e inventariaram 120 espécies em um desses campos de cerrado “adensados”, sendo 90 delas plantadas. Os usos eram diversos como: medicinal, atrativo para caça, alimento, lenha, adubo, sombra, etc. Os pesquisadores procuraram demonstrar que, ao contrário do que os cientistas vinham afirmando até então, o fogo não era a única forma de manejo praticada em áreas de cerrado por grupos indígenas. Os Kayapó tem papel ativo na formação de ilhas de vegetação no cerrado, formação essa que engloba vários processos e etapas: preparação de pilhas de adubo composto com material vegetal, maceração do material após seu apodrecimento, escolha de local com alguma depressão para colocar o adubo (às vezes misturado com pedaços de ninho de formiga – mrum kudjá – para que não haja ataque de cupins aos plantios), plantio das primeiras espécies na estação seca (junho a novembro). Os Kayapó reconhecem vários tipos de apêtê conforme o tamanho, a configuração e a composição que apresentam. Reconhecem ainda várias zonas ecológicas nos apêtê maiores, relacionadas com a maior ou menor incidência da luz solar. A pesquisa detectou ainda a forma de uso do fogo nos campos cerrados que apresenta uma série de sutilezas relacionadas à observação, por exemplo, da época em que os botões florais dos pequizeiros já estão desenvolvidos e à proteção dos apêtê com aceiros. Ela revelou ainda que os Kaiapó têm profunda influência sobre a estrutura e a composição dos cerrados que cercam a aldeia de Gorotire. Os autores afirmam ainda:

“Há indícios de antigas aldeias Kayapó espalhadas por toda imensa

área entre os rios Araguaia e Tapajós, e é provável que outros povos – como os Xavante, Canela, Gavião, Xifrin e Apinajé – tenham praticado formas semelhantes de manejo em áreas de cerrado, aumentando assim a influência

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indígena nesse ambiente...... Tal constatação nos leva a uma conclusão: muitos dos ecossistemas tropicais até agora considerados ‘naturais’ podem ter sido, de fato, profundamente moldados por populações indígenas” (Anderson e Posey, 1987: 50)

Os Kraô, outro povo do tronco Macro-Gê, tem tido seu conhecimento tradicional sobre o cerrado pesquisado. Este povo vive hoje numa reserva de 350.000 ha no estado de Tocantins. Levantamento recente, realizado por um grupo de pesquisadores da UNIFESF (Universidade Federal de São Paulo), identificou 138 plantas medicinais utilizadas pelos Kraô. De acordo com matéria publicada na Folha de São Paulo, em 13/08/02, o estudo, iniciado em 1999, estava sendo considerado modelo por contemplar o pagamento de royalties ao povo indígena. Entretanto, ele foi paralisado em 2001, pela dificuldade de definir quem poderia atuar como representante legal dos índios e pela existência de um conflito legal entre o funcionário da FUNAI e a equipe de pesquisadores. O episódio demonstra o potencial de conflito que permeia hoje a questão da biodiversidade, propulsora de um confronto entre o conhecimento tradicional e os chamados direitos de propriedade intelectual.

Camponeses: os herdeiros dos saberes

O conhecimento dos povos indígenas do tronco Macro-Gê se transmitiu, em grande parte, para a “sociedade sertaneja” que se alojou nos cerrados. Ribeiro (1997b) realizou uma pesquisa sobe o relato dos viajantes pelo sertão mineiro33 na primeira metade do século XIX e afirma ao final de seu texto:

“Esses estudos arqueológicos apontam assim, uma linha de transmissão

de traços culturais entre antigas populações do Cerrado e os povos indígenas ali encontrados pelos portugueses, principalmente no que se refere ao uso dos recursos naturais daquele bioma. *esse processo, não só se adaptaram àquele meio ambiente, como também aturam sobre ele transformando-o através de diversas técnicas de manejo. Conforme procurei ressaltar, parte desse patrimônio cultural foi incorporado pelos sertanejos, sucessores daqueles povos indígenas na área do Cerrado.” (Ribeiro, 1997b)

Esse patrimônio, apontado por Ribeiro, foi absorvido, de uma forma ou de outra,

pelos atores dos dois principais modelos de ocupação do sertão: o latifúndio do gado e as comunidades camponesas. Estas últimas, em função da necessidade e de uma relação menos mercantil com os cerrados (sistemas baseados na subsistência), conseguiram manter e talvez ampliar o conhecimento indígena de uso de plantas e animais do Cerrado, conservando e, ao mesmo tempo recriando, as práticas extrativistas oriundas dos povos indígenas.

33 O sertão, marcante na obra de Guimarães Rosa, não tem uma definição precisa, estando relacionado à noção de “interior”, “desconhecido”, “pouco habitado”, “locais distantes”. O sertão mineiro inclui predominante áreas de cerrado, mas também porções de caatinga e as transições entre um e outro presentes na região norte de Minas (Ribeiro, 1997b).

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Esse fato é corroborado por diversos estudos recentes, como a dissertação de

mestrado de Flávia Maria Galizoni (2.000) no alto Jequitinhonha, região particular dos cerrados mineiros, onde as chapadas se encontram com as serras do Complexo do Espinhaço e com o vale profundo do rio Jequitinhonha, gerando um mosaico de paisagens, meticulosamente exploradas pelas populações locais há cerca de 200 anos. Na primeira parte deste estudo, a autora descreve a relação das comunidades camponesas locais com a natureza, a lógica de uso dos recursos naturais e as normas e códigos de regulação e distribuição desses recursos. Os lavradores distinguem 3 tipos de ambiente básicos da região: cultura, catinga e campo. Essa estratificação determina e orienta a lógica espaço-temporal de apropriação da natureza. A cultura é o terreno fresco, localizado próximo aos cursos d’água (fundo de vale) ou nas grotas, ideais para o cultivo de mantimentos. Estão relacionados a uma determinada cobertura vegetal nativa de mata onde predominam espécies que denotam a fertilidade do terreno. As catingas geralmente se localizam nas cabeceiras dos córregos e nas vertentes, se constituem numa terra de fertilidade intermediária, onde são cultivadas lavouras mais rústicas como mandioca e abacaxi. Já o campo ou carrasco é o ambiente do cerrado mais típico, localizado nas partes mais altas da paisagem (chapadas e serras). São exploradas principalmente para solta do gado em comum e para o extrativismo de madeira, lenha, frutas e plantas medicinais.

As terras de cultura são manejadas com base na estratégia da roça de coivara e do

pousio para recomposição da fertilidade. Essas terras são escassas na região o que exige uma atenção especial a elas e uma distribuição cuidadosa desse recurso precioso.

“A disposição do recurso fertilidade coloca para as famílias de lavradores um

problema fundamental, que diz respeito ao estoque de terras disponíveis para a lavoura: as roças são feitas em sua maioria nas terras de cultura, mas esta é escassa. A forma pela qual as famílias resolveram esta questão foi conhecer, discriminar e usar; construíram comunitariamente técnicas de classificação intrinsecamente ligadas ao uso. Criadas a partir da escassez de um recurso – terra de cultura – são sistemas de produção maiores que uma resposta à escassez; são sistemas que incluem toda uma ordenação de uso do ambiente.” (Galizoni, 2.000: 11)

As roças são sempre um arranjo combinado de diversas espécies – milho, feijões,

abóbora, guandu, quiabo, algodão. As roças de cana e mandioca são combinadas com outras apenas no plantio, permanecendo solteiras após a colheita das culturas plantadas entre as ruas que ordenam o seu plantio. As áreas em pousio recebem usos não agrícolas – coleta, caça, pastagens e reserva de recursos naturais.

“*a técnica de lavoura desenvolvida pelas famílias do alto Jequitinhonha, a

manutenção da vegetação nativa é muito importante: a natureza é elemento constitutivo da roça. As famílias necessitam sempre de áreas com vegetação e cobertura vegetal para iniciar um novo ciclo de plantio. Por isso, é necessário deixar as áreas de lavoura enfaixinar por um período, descansar as terras do plantio para criar vegetação e, através deste processo, recuperar parcialmente sua fertilidade. O sistema de agricultura no alto Jequitinhonha é composto por um movimento pendular, onde numa extremidade localiza-se a natureza e no outro a lavoura. Tal qual um tabuleiro de xadrez assimétrico, o espaço nas

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comunidades rurais do alto Jequitinhonha é esquadrinhado, alternando mato e roça, lavoura, criação e extração.” (Galizoni, 2.000: 19)

A atividade de extrair recursos naturais da natureza é designada muito propriamente pelos lavradores locais como recursagem. Ela significa mais do que uma coleta aleatória, representa uma extração ordenada pressupõe um recurso ofertado pela natureza, mas adquirido pela intervenção humana. É um potencial da natureza recursado pelo conhecimento sistematizado e conjunto de técnicas da família, que está embasado numa classificação e discriminação do meio, passada de geração a geração. Um levantamento local, registrou 43 espécies só de frutas e palmitos coletados pelas famílias para alimentação, a maioria dos campos e chapadas. A riqueza da biodiversidade desse ambiente é ilustrado pela fala um agricultora local: “A gente passa o dia todo na chapada sem levar nada para alimentar, só com fruta do mato”. (Margarida, comunidade de Alegre in Galizoni, 2.000: 21). As frutas são usadas não só in natura para alimentação humana, mas também para produzir óleo comestível, fazer doces e compotas. A caça de animais e aves provê, com uma certa freqüência, as famílias de carne. Uma grande quantidade de plantas fornece sementes, casca e folhas para remédios e ungüentos. Além disso, a autora ressalta outros produtos da recursagem.

“Da natureza se retira toda a matéria-prima necessária para construir as casas, barros para fazer telhas, outros para fazer adobes (tijolo cru secado ao sol), argila tabatinga para pintura da casa, os fogões e fornos, madeira para travamento do telhado, para portas, janelas e para fabricar os móveis. Cordas são feitas de casca de embira, jacás e cestos são feitos de taquara e cangalhas de madeira. Há uma enormidade de ofertas que a natureza propicia par ao uso das famílias”. (Galizoni, 2.000: 21)

Ao contrário de uma exploração aleatória e desordenada, a autora argumenta que as

comunidades rurais do alto Jequitinhonha desenvolveram normas de exploração desses recursos, que constituem formas de gestão comunitária das ofertas da natureza, baseados em critérios de sustentabilidade, mesmo que esse termo não faça parte do vocabulário local.

“As áreas de extração são regidas por códigos que combinam a necessidade das

famílias e comunidades com o recurso em questão. Aqueles tidos como “renováveis”, os capins nativos e leguminosas para o gado, as plantas medicinais, frutos, lenha e caça são explorados comunitariamente, e o limite é o tanto de extração que a área comporta sem

pressionar em demasia os recursos. Qualquer membro da comunidade – e só dela – pode caçar ou colher. Assim, cada família e grupo de vizinhança estabelece sua área de extração e coleta, que se torna muito rígida quando esses recursos escasseiam.” (Galizoni: 2.000: 22)

Assim, a regulação da extração e exploração dos recursos naturais tem esferas familiares e comunitárias e a propriedade familiar não veda o uso comunitário. Há uma mediação, portanto, entre propriedade e uso e entre terra e recurso ambiental. A primeira pode ser apropriada de forma individual, mas o segundo não. Nas trocas estabelecidas entre famílias e comunidades com a natureza, os dons cuja existência e reprodução não decorrem da intervenção humana, não podem ser apropriados de forma exclusivamente privativa; podem, isto sim, ser usados de forma privada.

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Já a dissertação de mestrado de Dayrell (1998) versa sobre o uso da biodiversidade

pelos geraizeiros do norte de Minas, moradores antigos dos vales encravados nas chapadas dos “topos do Espinhaço”, que dividem as bacias do São Francisco e do Jequitinhonha. Nessa região34, os cerrados se tocam com a caatinga, presente na vertente oeste do Espinhaço, bacia do São Francisco. O contraste de ambientes e de culturas fez com que o povo da caatinga (catingueiros) chamasse os agricultores da chapada (gerais) de geraizeiros. São duas identidades vizinhas, caracterizadas por territorialidades específicas, forjadas no processo de co-evolução entre o meio sócio-cultural e o meio natural.

O estudo de Dayrell constatou na práxis dos geraizeiros, estratégias que articulam

roças e quintais diversificados nos vales, com extrativismo e solta do gado nas chapadas. De 4 unidades produtivas pesquisadas com mais detalhe, o autor registrou:

⋅ quintais com até 26 espécies e até 73 variedades cultivadas; ⋅ uma horta com 54 espécies e 67 variedades cultivadas; ⋅ roças com até 6 espécies e 15 variedades; ⋅ 13 variedades de cana numa só unidade produtiva; ⋅ um total de 23 variedades de mandioca nas 4 unidades produtivas; ⋅ extrativismo de até 78 espécies nativas do cerrado.

O saber dos geraizeiros no manejo dos recursos naturais é sintetizado na seguinte passagem da dissertação:

“Os agroecossistemas pesquisados têm em comum a produção baseada

na maximização do aproveitamento dos recursos locais, das potencialidades das distintas unidades da paisagem e das especificidades dos agroambientes35. Desde as construções das habitações, das instalações agrícolas, equipamentos e instrumentos de trabalho até os utensílios domésticos, a maioria são fabricados ou construídos localmente. O barro, a madeira, os frutos (cabaça, por exemplo), as folhas, os cipós, são usados em profusão e com muita maestria”. (Dayrell, 1998 :134)

Na análise econômica realizada nas 4 unidades, a contribuição do extrativismo na

produção bruta anual variou entre 23 a 42%!. Vale salientar que as comunidades pesquisadas enfrentam, desde a década de 70, o fechamento das áreas comuns de solta e extrativismo, provocado pela sua ocupação por firmas “reflorestadoras”, que tomaram as chapadas, consideradas terras devolutas e cedidas legalmente pela Ruralminas, órgão do governo de Minas Gerais, responsável na época, pelo destino e titulação dessas áreas. Dayrell afirma que os geraizeiros se constituem numa identidade de resistência em

34 O estudo foi feito no município de Riacho dos Machados. 35 O estudo mostra que os geraizeiros realizam uma estratificação dos ambientes, a partir de fatores como posição no relevo, tipo de solo, vegetação e usos possíveis. O autor registrou os seguintes ambientes: vazante, brejo, tabuleiro, chapada, carrasco, espigão e beira de lagoa.

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confronto com a modernidade – o confronto entre envolvimento local e desenvolvimento exógeno, entre o povo tradicional do lugar e os modernos de fora.

“Em Riacho dos Machados, o processo de modernização da agricultura

foi orientado para atender o pólo guzeiro do estado de Minas Gerais, fornecendo o carvão vegetal demandado pelo setor sierúrgico.... *as regiões de gerais, as conseqüências deste processo para os geraizeiros que não foram expulsos de imediato, foi a crescente desarticulação de suas estratégias produtivas, assentadas no aproveitamento das potencialidades dos distintos agroambientes onde a biodiversidade agrícola e da flora nativa cumpriam um papel fundamental. Esta desestruturação, percebida com clareza pelo conjunto dos geraizeiros entrevistados..... *as regiões de gerais, o desmatamento generalizado da vegetação nativa e a implantação das monoculturas de eucalipto nas chapadas encurralaram os camponeses nas encostas e brejos remanescentes. Com os brejos secos, impedidos no acesso às áreas “de solta”, com a perda de inúmeras variedades tradicionais de milho e feijão, substituídas pelas variedades melhoradas ou híbridas (menos adaptadas aos estresses ambientais dos gerais), estes agricultores tiveram que reorientar suas estratégias produtivas, intensificando a cultura da mandioca ou da cana. O cultivo e o pastoreio mais intensivo de suas terras provocou um rápido processo de degradação dos solos e da vegetação nativa. Em substituição à criação de gado, os camponeses incrementaram a criação de aves e passaram a coletar mais intensivamente os frutos nativos das áreas dos cerrados remanescentes. A inviabilização dos seus agroecossistemas obrigou-os a conciliarem com o trabalho fora, seja como assalariados permanentes ou trabalhadores temporários. O empobrecimento foi visível e muitos se sujeitaram a receber cestas básicas distribuídas pelo governo federal, o que lhes acrescentava apenas um mínimo na dieta alimentar.

*as regiões em que os agricultores resistiram ao cercamento de suas terras e à implantação no entorno de projetos de reflorestamento, mesmo não tendo acesso às políticas sociais, ou incorporando apenas parcialmente os pacotes tecnológicos da agricultura dita moderna, estes conseguiram um nível de produção suficiente para garantir a sua reprodução social. Mais ainda, ao manterem suas estratégias produtivas tradicionais, garantiram, subsidiariamente, a preservação do entorno ambiental, com alterações pouco significativas na dinâmica e no funcionamento dos ecossistemas.” (Dayrell, 1998: 145 e 147)

A pressão dos sistemas modernos sobre os sistemas camponeses é comum nos cerrados. Ela se configura num novo ordenamento fundiário e territorial: a modernidade ocupa as chapadas, transforma as terras comuns em privadas, confina os camponeses nos vales, erradica a biodiversidade, base do extrativismo, fecha o espaço da “solta” do gado. Seus sistemas ainda causam desequilíbrios hidrológicos que se manifestam de diversas formas: assoreamento das veredas e pequenos córregos; secamento de nascentes, brejos, lagoas e diminuição da vazão dos cursos d’água em função do abaixamento do lençol freático causado pela implantação de culturas de alto consumo hídrico (como o eucalipto) e pela utilização de irrigação com pivôs centrais, que faz a inversão do ciclo hidrológico

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natural: tira enormes quantidades de água dos lençóis subterrâneos e dos cursos d’água para levá-la às unidades mais altas da paisagem (chapadas) que antes cumpriam a função de áreas de recarga e que agora, ocupadas com as monoculturas irrigadas, se transformam em áreas de alto consumo hídrico, esgotadoras deste recurso. O desprezo pelos camponeses e por seus saberes é uma das marcas do desenvolvimento nos cerrados. A fala de dois pesquisadores no V Simpósio sobre o Cerrado no final da década de 70 ilustra este fato:

“*as regiões tropicais de solos pobres os sistemas mais conhecidos de utilização dos recursos naturais são o extrativismo e a agricultura itinerante. Esses sistemas, em geral, apenas produzem para as necessidades mínimas do agricultor e sua família. *ão podem, por isso, contribuir para o desenvolvimento de uma região. A ocupação das novas áreas da Amazônia e do Cerrado deve ser feita com o propósito de contribuir para melhorar as condições de vida das populações rurais. Dentro deste princípio, não nos deve interessar o extrativismo, a agricultura itinerante nem qualquer outra modalidade de agricultura de baixa rentabilidade. Para se promover o desenvolvimento econômico de uma região com base na utilização da terra, a agricultura tem forçosamente de se orientar para a produção comercial de colheitas com boa aceitação nos mercados (Mosher, 1970). Como já disse anteriormente (Alvim, 1978), a única ‘vantagem aparente’ da agricultura de subsistência ou de baixa renda é a de esconder a pobreza no interior do país e reduzir o crescimento das favelas.” (Alvim e Silva, 1980: 155)

Essa pérola identifica o pensamento moderno/desenvolvimentista - no auge da

euforia de sua ocupação dos cerrados - que, de fora do lugar, possui o conhecimento técnico sobre o que é melhor para o povo do lugar. Infelizmente, não conseguiu descobrir ainda como reduzir o crescimento das favelas – um mistério insondável para a racionalidade do desenvolvimento modernizante.

Também constatei este conflito entre sistemas modernos e camponeses em duas comunidades do vale do Riachão36 que estudei na minha dissertação de mestrado (Mazzetto, 1999). Ali também, a monocultura do eucalipto contorna as comunidades camponesas e 8 pivôs centrais sugam as águas das cabeceiras do rio, que já não corre mais na estação seca, deixando as comunidades desabastecidas. O caso já foi até capa da revista Globo Rural (dezembro de 1998) que retratou o conflito na matéria “O Pivô da Discórdia”. O caso simboliza também o fracasso do poder regulador do estado, que, com todo o aparato da nova legislação de recursos hídricos, não foi capaz até hoje de resolver a questão, o que só é possível com a paralisação ou redução substantiva da irrigação37.

36 O Riachão é um rio da bacia do São Francisco que no seu curso divide 4 municípios do norte de Minas: Montes Claros, Coração de Jesus, Mirabela e Brasília de Minas. A área da minha pesquisa se localiza no município de Coração de Jesus, margem direita do médio-Riachão. 37 O poder nesse caso cabe ao IGAM (Instituto Mineiro de Gestão das Águas, órgão da secretaria estadual de meio ambiente) e ao COPAM (Conselho de Política Ambiental de Minas Gerais).

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O estudo abrangeu 22 unidades produtivas com tamanho entre 3,0 e 62,0 ha (média de 28,5 ha). Nesse lugar, o povo, apesar de se perceber no Gerais, se identifica como sertanejo; não há o convívio contrastante com os catingueiros. Os camponeses identificam 4 ambientes básicos na sua região, muito relacionados ao tipo de terra: brejo/vazante, terra de cultura (encostas férteis), terra de pedra ou “malhada” e cerrado (terra de areia). O cerrado típico (última categoria) ocupa 53% da área das propriedades pesquisadas e é utilizado para o pastejo do gado (pasto plantado ou natural) e para o extrativismo. Foram citadas 54 espécies nativas utilizadas para diversos fins pela população, sendo a maioria delas oriunda dessa unidade da paisagem. Os pastos naturais ocupam 34% da área das propriedades, o que quer dizer que a maior parte dos cerrados nativos está conservado na sua fisionomia básica, convivendo com o gado e com o extrativismo38. E os pastos plantados conservam uma quantidade significativa de árvores, estratégia adotada inclusive, para enfrentar o tempo cada vez mais seco.

“Tem pequizeiro demais nessa manga39 ... Tem muito arvoredo e é proibido derrubar ... *um pode raleá muito não ... Se ficar descoberto morre e se deixar muito arvoredo morre também” (S. Bento)

“Porque hoje até o pasto jamais conserva sem a madeira, aí acaba” (S. Belarmino)

“Debaixo dos pau, o capim conserva mais” (genro de Manoel Preto) “Povo de primeiro, falava que tinha de derrubá tudo ... hoje com a falta

de chuva que tá, tem que ter a sombra, apesar que o capim ainda ficá meio ralo mesmo lá, mas conserva bastante” (S. Belarmino)

O confinamento nos vales aqui também é visível, o que leva a uma super-exploração das encostas e das vazantes. O escasseamento e contaminação das águas são evidências fortemente sentidas pela população local. Na verdade todo o ambiente vem se tornando mais seco: os brejos vem secando a cada ano, os pastos plantados têm vida útil bem menor que no passado, as roças a cada ano correm mais risco de perda por deficiência hídrica. Diversas falas camponesas ressaltam o problema da água e sua importância para suas vidas:

“Água tinha é pra chapada aí, correndo aí ó a seca inteirinhazinha ...

eu conheci uma zona aí que na seca, agosto, setembro, era rio correndo na chapada direto ó ... hoje mal-mal nos corguinho, assim mesmo poco ... Então essa terra não pode sê muito forte não, num tem jeito” (S. Manoel Preto)

“Brejo ninguém plantava, porque tava tudo cheio d’água, virava lagoa ... o rio que é o rio dá numa altura em dia vai pra cortá, outra hora corta” (S. Manoel Preto)

“O que puxa mais é aquele pivô moço. Puxa água do rio, toca na chapada, moiando esse mundo aí. *um tem jeito ué ... Aquela água que eles

38 “Mais saúde pro gado é o pasto natural ... Pasto plantado não agarante igual o natural” (S. Bento). “A chapada pra criá, nessas época que os pastos seca, ela é melhor do que a cultura, por conta que produz o ramo né. Então o gado vai vivendo cuo ramo até chovê pro capim crecê. Uma chuvinha tá tudo brotado, cê vai na cultura tá tudo pelado” (S. José Soares). 39 Manga é o nome local dado às áreas de pasto formado.

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puxa ela pra lá, ela num volta pro rio mais ... Só se tirasse do São Francisco. Agora, desse riozinho pequeno?” (S. Manoel Preto)

“*a roça era brejado até quase a seca toda ... Chovia seis meses sem pará ... Fim de era ... As água encurtô ... Era marcado: 6 meses de água e 6 de seca ... Os arvoredo ajuda a umidade ... Onde limpa tudo vai secando ... Onde pertence o meu, eu não estraguei; tirei só o mato baixo” (S. Bento)

“Antes plantava arroz no brejo e limpava, a água corria direto” (S. Isaac) “Antigamente passava a seca, ele tava mais ou menos aquele normal,

hoje na seca ele vai lá no meio do barranco prá baixo40” (S. Belarmino)

Entretanto, o apego à terra e ao lugar permanece:

“Eu moro aqui é no cerrado ... Eu acho que é melhó que morá na cidade. Ih, se o povo meu fô embora, se fô pra mi carregá eu num vô não. Aqui a gente fica muito mais tranquilo, num tem aquele barulhão, num tem aquele aperto que tem na cidade num tem né, a gente fica tranqüilo aí, então eu gosto daqui” (S. José Martinho)

Algumas falas às vezes, principalmente dos mais velhos, lembram as fábulas e filosofias da obra de Guimarães Rosa e são carregadas de sábias análises do seu mundo:

“Terreno de cultura é do mastigo” (S. Bento) “O que produz perde, o que planta não tem valô” (S. Manoel Batista) “Pequeno tem medo de trabaiá cum banco” (genro de Manoel Preto) “Sertão pra mim eu acho que é o mundo. Qualquer lugar que a pessoa

estiver é o Sertão” (S. José Soares) “Onde tem o erro é obrigado a falá ... O trem é danado. É cumum diz: é

um pensá e dois sabê, tem de dividi, tudo é dividido ... O meu modo de pensá, o que tô dizendo eu acho que tá certo, e muitas vezes não tá, mas tem uns pedaço que tá ... A explicação já é maió” (S. Bento)

As definições de Gerais trazem à tona o conflito entre o passado e o presente, a

fartura e a escassez, o comum e o privado. A definição de D. Ermínia chega a impressionar, pela sensibilidade e precisão com que detecta o caráter de terra e recurso comum, espaço compartilhado, que está associado ao Gerais.

“Trata Gerais por causa do movimento, porque é pôco, o movimento é

muito pôco. O Gerais é muito fraco... O Gerais é forte, o que é fraco é o povo; tem muita gente fraca aqui dentro desse broco. Tem vontade de fazê as coisa e num pode fazê porque num tem ajuda, as ajuda é muito devagá” (S. Bento).

“Antes não tinha divisão, era comum... Acho que essa palavra Gerais nasceu desse comum, dessa terra comum... Até que essa palavra Gerais é na boca dos antigos ... veio dessa terra comum ... não existe mais a terra comum” (nora de S. Isaac).

40 BBO falava aqui do Riachão

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“O Gerais é mesmo o lugar do Cerrado. Lá é mata (angico, pau d’arco), terra boa, terra de colonião... Do boqueirão de Santa Rosa pra lá num tem um pé de piquizeiro” (S. Belarmino).

“Gerais e Cerrado se torna um assunto só” (S. Salvador). “Gerais é porque a planta nasce lá no mato, no meio da mata, então dá

o fruto lá, ninguém planta, ninguém limpa e dá lá, então diz que é Gerais... Só colhe e come ... Qualquer um pode colher; todo mundo vai na manga do outro colhe pequi, colhe coco, colhe manga, vai na chapada e colhe coquinho; se achar um tatu lá também pegado no meio do Gerais, pega ele, leva pra casa e come” (D. Ermínia).

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2.1.8. O Eldorado do Brasil Central: Ambiente, Democracia e Saberes Populares no

Cerrado 41 As estratégias de reprodução social das populações tradicionais do Brasil Central

Em torno dessas fazendas de gado, se constituiu uma economia camponesa, baseada na agricultura, cuja produção de milho, feijão, arroz e mandioca teve, em geral, uma expressão mais local e, no máximo, regional. As únicas lavouras que, envolvendo, muitas vezes, proprietários maiores, em alguns momentos, tiveram uma significação econômica maior foram o algodão e a cana-de-açúcar. Essa se destinava a produção da rapadura e da cachaça, que em certas áreas do Sertão possuíam importância no comércio extra-regional. O algodão foi fiado e tecido artesanalmente em algumas partes, mas, também, foi exportado em rama para atender a demanda das fábricas européias, no começo do século XIX e, mais tarde, esteve associado às primeiras iniciativas de industrialização na região.

Menos visível, o mundo camponês podia possuir, em algumas regiões, maior ou

menor significação e independência econômica, social e política em relação ao domínio dos grandes proprietários. Essa população composta por brancos pobres e, sobretudo, mestiços e negros livres, era mais autônoma, quando ocupava pequenas áreas nos espaços indefinidos entre as fazendas, ou em torno do núcleos de mineração, que liberavam mão-de-obra com o declínio dessa atividade. Muitas comunidades camponesas também se formaram pelas sucessivas divisões das fazendas entre várias gerações de herdeiros, fracionando a terra em médias e pequenas glebas, especialmente, quando diminuía a disponibilidade de terras livres.

Vivendo dentro das fazendas, trabalhando como parceiros e até como vaqueiros, em

uma relação de subordinação e de reciprocidade, passada, de ambos os lados, de pai para

41 Esta seção foi constituída por dois capítulos intitulados As estratégias de reprodução social das populações tradicionais do Brasil Central e A trajetória recente das populações tradicionais do cerrado do documento O Eldorado do Brasil Central: Ambiente, Democracia e Saberes Populares do Cerrado, de Ricardo Ferreira Ribeiro (2001).

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filho, alguns conseguiam, por doação ou compra, adquirir sua própria terra. Os vaqueiros podiam formar um pequeno rebanho, como observava o naturalista mineiro José Viera Couto, em 1801: em “todo o sertão, pagam os donos das fazendas, de 4 cabeças, uma aos chamados Amos, que são aqueles que administram a mesma fazenda, andam continuamente no campo, vigiam o gado dos bichos ferozes e cuidam em tudo que diz respeito às criações” (Couto, 1905: p. 118).

Essa população, junto com os remanescentes indígenas e quilombolas, algumas

vezes, vivendo hoje em condições semelhantes aos camponeses dos sertões do Brasil Central, é herdeira do patrimônio cultural construído ao longo de toda a trajetória humana de convivência com o Cerrado, delineada até aqui.

Uma pesquisa de campo, realizada pelo autor, dentro do seu Projeto de Tese de

Doutorado42, junto a essas populações tradicionais, em quatro regiões deste bioma no Estado de Minas Gerais (Alto Jequitinhonha, Norte, Noroeste e Alto Paranaíba), permite esboçar, em linhas gerais, alguns aspectos desse patrimônio cultural sertanejo em sua relação com o meio ambiente no qual ele se insere. Há, sem dúvida, particularidades locais em cada uma das comunidades ou regiões pesquisadas, no entanto, buscou-se aspectos comuns entre elas, muitos deles partilhados por essas populações presentes em outros estados da região do Cerrado, às quais o autor teve acesso através de visitas, ou por meio de outros estudos.

O primeiro aspecto a destacar é a importância da agricultura para populações constituídas, sobretudo, por camponeses, pois dessa atividade retiram grande parte de sua alimentação e parcela significativa de sua renda monetária. A policultura é sua característica básica e inclui além de roças com vários produtos já citados, também o cultivo de hortaliças e frutíferas, geralmente, nas proximidades da moradia. Em termos ambientais, tanto a casa, como esse conjunto de a atividades desenvolvidas nas suas proximidades, incluindo a criação de pequenos animais (principalmente, suínos e aves), assim como, as lavouras, estão situadas nas áreas chamadas de “terra de cultura”. Esse ambiente corresponde às formações florestais inseridas no Cerrado, especialmente aquelas próximas dos cursos d’água, onde tais atividades se beneficiam tanto da disponibilidade deste recurso, quanto da fertilidade natural do solo. Aí praticam técnicas agrícolas indígenas, como a chamada “roça de toco”, consistindo na derrubada da mata, queima e coivara, sem a destoca, ou o uso de arado, no preparo do solo. Depois de três a quatro anos de cultivo, inicia-se o período de pousio, com a retomada da área pela vegetação nativa. Este varia de acordo com a disponibilidade de áreas de “terra de cultura” acessíveis a uma família nuclear, ou a um conjunto delas, conforme o tipo de posse/propriedade que estabelecem entre si. Assim, pode-se iniciar um novo roçado a partir de uma “capoeira fina”, três, quatro anos depois; ou, até mesmo, em uma área semelhante a uma “mata virgem”, após mais de quinze anos de “descanso”.

42 Título do Projeto: Sertão Mineiro e Cerrado : história ambiental e etnoecologia - usos, manejos, conhecimentos e representações simbólicas na história das relações entre os grupos sociais tradicionais e o bioma do Brasil Central, projeto de pesquisa apoiado pelo Programa “Natureza e Sociedade” do Fundo Mundial para a Natureza - WWF.

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A criação de bovinos, por outro lado, não se restringe a este ambiente, mas combina o seu manejo por vários deles, em diferentes períodos do ano. Os pastos da “terra de cultura”, formados pelo desmatamento sucessivo, ou pelo plantio de gramíneas, não resistem ao final do período da seca, quando o gado busca as áreas de campo e cerrado. Estas brotam já com as primeiras chuvas, enquanto aqueles pastos são preservados para se recuperarem e estarem verdes com o avanço da estação das águas e no início da seca. As poucas cabeças de gado além de contribuir com a alimentação com o fornecimento de leite, usado também na geração de renda com a fabricação de queijo e requeijão, se configura em uma espécie de reserva de valor. Em momentos de “precisão”, como em casos de doença, ou de necessidade de recursos monetários para a aquisição de bens, ele é facilmente convertido em dinheiro para tais despesas. Quando estas são menores, ou a família mais pobre, podem ser vendidos pequenos animais (porcos, aves, cabras, etc), ou estoques de produtos agrícolas armazenados, especialmente, aqueles beneficiados pelas pequenas fábricas rurais, como farinha, rapadura e cachaça. Embora, a agricultura e a pecuária sejam dois importantes pilares nas estratégias de reprodução dessas populações tradicionais do Brasil Central, são complementadas por diversas atividades. Algumas tão generalizadas quanto essas, outras mais específicas para certas comunidades ou regiões, porém, várias delas são tão ou mais significativas, inclusive em termos de geração de renda monetária. Entre as mais comumente realizadas estão as que complementam a alimentação através do uso de recursos naturais, obtidos pela caça, pesca e coleta, algumas vezes se utilizando de técnicas empregadas, pelos menos, desde o período pré-colonial pelos povos indígenas da região. A pesca e, particularmente, a caça são importantes fontes de proteína animal, nem sempre disponível, na alimentação cotidiana, através do consumo de carne de pequenos animais ou de bovinos. A pesquisa de campo revelou, ainda que com aceitações variadas, o consumo de carne de 34 animais silvestres, incluindo mamíferos, aves e répteis. Também foram identificados dez diferentes tipos de abelhas produtoras de mel, alguns desses consumidos com finalidades medicinais.

A extração de palmitos e de frutos de várias espécies do Cerrado, especialmente nos ambientes savânicos e campestres, também tem um papel importante na alimentação sertaneja. Além de sua importância nutricional e calórica, grande parte desses frutos nativos ocorre no período em que os produtos de origem agrícola armazenados já estão no final, permitindo completar a alimentação até a nova colheita. Um levantamento bibliográfico e a pesquisa de campo realizada pelo autor apontam a existência de 65 espécies nativas do Cerrado que fornecem frutos para os sertanejos.

As mesmas fontes revelaram a disponibilidade de mais de 170 espécies com uso medicinal, sendo especialmente encontradas nos ambientes savânicos e campestres. Tal recurso é muito importante, mesmo nos dias de hoje, pelas dificuldades de acesso aos serviços e a aquisição de remédios da medicina oficial. A esta se soma, algumas vezes, o descrédito em relação à sua eficácia, principalmente, entre as pessoas mais velhas já acostumadas aos “remédios do mato” e outras práticas terapêuticas da medicina popular.

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Grande parte dos materiais de construção empregados também são retirados diretamente da natureza, aí incluídos vários tipos de argila e pedra, bem como, 130 espécies vegetais fornecedoras de madeira para várias finalidades. Tem-se ainda 32 empregadas na obtenção de fibras para cobertura de moradias, confecção de balaios, cestas, peneiras e diferentes peças de artesanato, e para outros fins. Para extração de óleo, com uso alimentício, aproveitamento na fabricação de sabões, etc, ocorrem 29 espécies; 24 são usadas para tingir tecidos de algodão ou lã e 20 possuem tanino, substância importante para o trabalho de curtir couros. Grande parte dessa atividade extrativista tem como objetivo o consumo pelas próprias famílias e, apenas em alguns casos, tem fins comerciais. Entre estes podemos apontar, excepcionalmente, a venda de madeira, ou plantas medicinais, já a comercialização de palmitos (em particular a do coqueiro gueroba) e, especialmente, de frutos, entre eles se destacando o pequi, o buriti, a panam, o coquinho azedo, o baru e outros, é muito mais comum e envolve toda uma cadeia mercantil. Historicamente, alguns recursos naturais do Cerrado foram explorados comercialmente, como por exemplo a exportação de couros de veado já no período colonial, ou, mais recentemente, a extração de óleo de coco de macaúba e babuçu. De forma ainda mais destacada, temos a borracha de mangabeira e maniçoba, produzida em Minas Gerais e Goiás, tendo como centro de negócios a cidade mineira de Januaria. Esta atividade teve seu grande surto nas primeiras décadas do século XX, quando o mesmo produto era também largamente extraído da seringueira na Amazônia. Atualmente, algumas comunidades ainda retiram parte expressiva de sua renda do garimpo de diamantes, ouro e cristal, em regiões específicas, onde essa tradição remonta ao período colonial. Outras atividades extrativistas, eminentemente comerciais, porém de data mais recente, são a produção de carvão e a coleta de flores e frutos secos com fins ornamentais, assim como, o uso de diferentes recursos naturais para a confecção de variados tipos artesanato. Além dessas várias atividades de exploração de recursos naturais, essa população também se dedica a distintas formas de trabalho para terceiros. Entre elas se destacando: a prestação de serviço para vizinhos, a parceria, as funções de vaqueiro, o trabalho assalariado nas fazendas e empresas da região e a migração sazonal em busca de emprego temporário no campo, ou nas cidades até de outros estados.

Essas diversas atividades (agricultura, pecuária, extrativismo, trabalho para terceiros, etc) se combinam dentro das estratégias próprias de cada comunidade, ou até de cada família, tendo-se em vista as necessidades destas, a possibilidade acesso aos recursos naturais demandados, a disponibilidade de mão-de-obra familiar, ou de vizinhos e o encadeamento de cada uma no calendário anual de atividades.

Assim, dedicam-se à pecuária e, em certa medida, também à caça, durante todo o

ano, embora haja as horas, os dias e mesmo certos períodos de maior atenção. A agricultura e a coleta de frutas nativas ocupam o sertanejo mais na estação das chuvas. Enquanto a

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fabricação de farinha, rapadura e cachaça, o artesanato, o garimpo, a coleta de flores e frutos secos, a extração de madeira, ou a produção de carvão, o trabalho nas olarias, a pesca, etc são atividades mais características do período estiagem.

Cada atividade pode ser parte de uma divisão do trabalho entre as família da

comunidade, por faixa etária, ou, especialmente, por sexo, onde o trabalho feminino se concentra na moradia e seus arredores. Embora, ao observador externo aparente uma uniformidade nas atividades desenvolvidas pelas famílias e pessoas de uma mesma comunidade, um olhar mais atento evidencia uma especialização em certos tipos de trabalho, colocada pela herança da atividade, condição financeira, habilidade pessoal, etc.

A trajetória recente das populações tradicionais do cerrado

A valorização e o consumo crescente de bens industriais vem alterando não só essa especialização, como várias atividades acima mencionadas, pois contribui para a diminuição da demanda por certos recursos naturais substituídos por aqueles bens. Por outro lado, aumenta a demanda por outros, cuja oferta no mercado permite a obtenção de renda monetária para a compra dessas novas “necessidades”. Contribuem, assim, para a degradação de ambientes onde eles ocorrem, ou para a ameaça de extinção de certas espécies de valor comercial.

O acesso aos recursos naturais, no entanto, tem sido um dos principais fatores das

transformações recentes nas relações entre as populações tradicionais do Brasil Central e o Cerrado. É importante destacar que essas mudanças se dão dentro de um processo de mais longo prazo, onde vários daqueles recursos vem sendo apropriados por alguns poucos, em geral, em detrimento daquelas populações. Porém, principalmente, nos últimos trinta anos, tais transformações se generalizaram e se aprofundaram, resultando em perdas significativas para suas estratégias tradicionais de reprodução social.

Embora variando o momento em que se deu de uma região para outra, conforme foi constatado pela minha pesquisa de campo, uma das mudanças preliminares foram as restrições impostas à criação de pequenos animais (suínos, caprinos e ovinos). Tradicionalmente, as roças deviam ser cercadas e esses animais, bem como, o gado bovino e eqüino, criados soltos, com livre acesso a diferentes ambientes, onde pudessem pastar. Os fazendeiros, em geral, possuindo roças maiores, resolveram suspender o “pé da cerca”, ou seja, alteraram essa regra, exigindo que as lavouras fossem protegidas apenas contra as criações de grande porte. Desta forma, diminuíam os custos com a confecção de cercas, que precisavam ser reformadas ou mudadas a medida que as lavouras iam se mudando no sistema de agricultura itinerante, já apresentado. Assim, quem tivesse pequenos animais passava a ter que mantê-los presos em cercados de “pé baixo”. A nova “lei” dificultava essa atividade para os camponeses, seus principais criadores, pois grande parte da sua alimentação não poderia mais ser obtida pastando na vegetação nativa, mas devia ser suprida pelo proprietário, aumentando o seu custo de produção. Muitas vezes, essa transformação ocorreu paralelamente ao aparecimento do arame em substituição ao uso da madeira ou de pedras na confecção de cercas, pois quando essas

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são feitas “contra” pequenos animais consomem muito mais do que os três ou quatro fios empregados para proteger as roças contra bois ou animais de montaria.

A difusão do uso do arame também contribuiu para uma transformação ainda maior no que se refere à apropriação dos recursos naturais do Cerrado: o fim da “solta”, “larga” ou “largueza”. Essas expressões de variação regional indicam as áreas de uso comum para a criação do gado, onde predominavam a vegetação de tipo savânico e campestre. Se apenas as áreas em torno das moradias, as lavouras e alguns pastos plantados eram cercados, o resto se constituía em áreas abertas, indivisas, onde os vizinhos podiam soltar suas criações, tirar madeira, caçar, coletar frutos e plantas medicinais, etc. A propriedade sobre o gado não era assegurada pela sua contenção nos limites da fazenda, mas pela marca do dono feita na orelha ou, principalmente, a ferro quente no seu couro.

Mesmo a documentação das terras era pouco precisa em termos dos seus limites nesses ambientes não usados para fins agrícolas. A medida que as terras iam se valorizando com a intensificação da pecuária, foram sendo realizadas “medições” com a finalidade de “retificar” os limites de cada propriedade e, em seguida, o seu perímetro ia sendo cercado. Tal processo foi imprensando os camponeses, pois não dispunham de recursos financeiros para contratar agrimensores ou advogados, nem força política para se impor aos fazendeiros. Mesmo que não houvesse questionamentos sobre os limites de suas terras, com o fim da solta, ele perdia a possibilidade de manter um rebanho um pouco maior, pois teria que restringir o número de suas cabeças àquele compatível com a área de sua propriedade. Em algumas, esse processo é anterior, em outras, a “solta” ainda sobrevive de forma residual até hoje, mas, em todas as regiões pesquisadas, a partir dos anos 1970, essa apropriação de áreas de uso comum se evidencia. Essa “coincidência” histórica se deve à implantação de programas de desenvolvimento do Cerrado, promovidos pela Ditadura Militar como uma estratégia de expansão da fronteira agrícola. Financiados, principalmente, pelo capital japonês, esses programas se enquadravam numa política mais ampla de modernização da agricultura voltada para a exportação de grãos e para o fornecimento de insumos para a indústria nacional. Paulo Afonso Romano, presidente da CAMPO, empresa binacional (Brasil-Japão) responsável pela coordenação de um desses programas, resume bem o discurso oficial que fundamentou a sua implantação:

A intensa utilização das áreas agrícolas no Sul e Sudeste, chegando a situações de completa saturação, leva o País à necessidade de busca de áreas novas, (...) a acentuada euforia com a Amazônia na segunda metade da década de 60 e início da década de 70, fez os brasileiros imaginarem ser ali, e de pronto, o novo celeiro. Talvez o ufanismo predominante (...) tenha levado à extrapolação da busca de um objetivo geopolítico - a integração nacional da Amazônia - com um objetivo econômico: o de produzir alimentos. O engano foi detectado. Prossegue a ocupação da Região Amazônica, porém em polos selecionados, pois ainda persistem condições precárias de infra-estrutura, riscos ecológicos e escasso conhecimento científico e tecnológico para ampla utilização dos recursos amazônicos. O bom senso de atrair maior atenção para os cerrados, enquanto se amadurece a solução amazônica, deve ser considerado como uma histórica

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correção de rumos na busca de novas regiões agrícolas (ROMANO, 1985: p. 155/156). Desta forma, o Cerrado e a Amazônia eram vistos como vazios econômicos a serem

melhor explorados, no entanto, aquele possuía algumas vantagens que favoreceriam a sua ocupação mais rápida. No Cerrado, a questão ambiental não aparecia do ponto de vista político interno e externo, de forma tão polêmica quanto a repercussão que ganhava a destruição da Floresta Amazônica. Com suas árvores pequenas e tortas, ele não apresentava aos olhos da opinião pública, o mesmo efeito grandioso da imensidão verde daquela floresta. No entanto, o mais importante estava em outra vantagem do Cerrado, que apesar de ter problemas de fertilidade do solo, já possuía, naquele momento, conhecimento científico e tecnológico visto como suficiente para torna-lo produtivo e economicamente viável. Vantagem que se somava à sua localização e infra-estrutura disponível, capazes de oferecer melhores condições de produção, bem como, favoreciam o seu escoamento para os grandes centros urbanos e os mercados internacionais.

A partir do início dos anos 70, o Eldorado do Brasil Central é redescoberto: o

Estado implementou diversos programas de desenvolvimento do Cerrado, baseados em um uso intensivo de tecnologia e capital e no preço baixo das terras, favoráveis à mecanização e que compensavam os investimentos destinados à correção do solo. Em pouco tempo, o Cerrado adquiriu grande importância na produção agrícola brasileira: contribuindo com 25,4 % da soja, 16% do milho, 13,2 % do arroz de sequeiro e 8,3 % do café (Shiki, 1995). Esses projetos de desenvolvimento tiveram como pólo irradiador o oeste de Minas, se espalhando gradativamente, até os dias atuais, para os outros Estados incluídos na área deste bioma (...) --------x-------- 2.2. Atualidade do campesinato no Brasil 2.2.1. Modo de ser e de viver: uma utopia camponesa? 43

As idéias expostas por Octávio Ianni (1985) no texto A Utopia Camponesa foram posteriormente alteradas sob a sua compreensão da globalização neoliberal (Ianni, 1996). No entanto, as teses por ele levantadas em 1985 continuam, para nós, pertinentes. O seu texto A Utopia Camponesa é uma síntese amorosa (de ilusão ou utopia) em relação ao campesinato. É esse o motivo da incorporação neste documento desse seu texto. Nesta seção, todos os parágrafos a seguir são do texto original A Utopia Camponesa, não tendo sido contempladas as questões apresentadas pelos debatedores e pelo público durante a palestra da qual resultou o texto em apreço.

43 Esta seção corresponde ao texto A Utopia Camponesa, de Ianni, Octávio (1985). São Paulo, IX Encontro Anual da ANPOCS – CT Estado e Agricultura – Aspectos teóricos dos movimentos sociais no campo.

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Eu intitulei a minha comunicação de “A Utopia Camponesa”. 44

A minha idéia neste trabalho é fazer uma reflexão sobre a questão camponesa, tendo em conta compreender por que o campesinato que poucas vezes chega ao poder, ou mais freqüentemente ele aparece como um elemento na composição do poder, quando tem algum sucesso, mas mais freqüentemente o campesinato que esta presente nas lutas sociais é deslocado dos sistemas de poder. Isto é, é um paradoxo, parece o fato de que o campesinato está presente na história nos países europeus, nos países latino-americanos - para mencionar casos que talvez eu conheça um pouco melhor - e, no entanto, ele não chega a influenciar o poder substantivamente. Ao contrário, ele sempre é deslocado, subordinado ou simplesmente, fica fora do poder. Isso acontece, por exemplo, na Itália com a unificação italiana; isso acontece na Alemanha com a unificação alemã e acontece em vários momentos, em vários países. É claro que, na França, o campesinato que vinha fazendo lutas notáveis nos séculos XVII e XVIII e que está presente no que seria a Revolução Francesa, nos seus desdobramentos, conquista alguma coisa. Mas conquista no nível de camponês, de terra e não chega a estar presente na construção do Estado. Essa questão que está no debate, que é bastante óbvia, continua no presente. Quer dizer, uma continuidade do campesinato nas lutas sociais, nas mais diferentes situações e, no entanto, a presença dele no poder é mínima, quando acontece ou, em geral, é nula. As reivindicações do campesinato são reivindicações que tem a ver com as suas condições de vida e trabalho. O campesinato, em geral, está preocupado com a terra, com as condições de trabalho, com a conquista da terra, a reconquista da terra, a preservação da terra. E junto com isto está preocupado com o problema da produção e da apropriação do produto do trabalho. Nesse contexto, é claro, entra o problema do ser ou não ser proletariado, deixar-se ou não se deixar levar pelas forças sociais abrangentes que estão impondo, que estão instituindo realidades novas. De modo que as reivindicações - as mais visíveis, as mais evidentes e as mais reiteradas – é que parecem ter a ver com as condições estritas do próprio campesinato. Ou seja, são claras as situações nas quais o campesinato pode ser apresentado como uma categoria que esta pensando a Nação, o Estado nacional, que esta questionando assumidamente o poder nacional.

Eu acho que aí esta um paradoxo e muito da controvérsia política e teórica sobre o campesinato tem a ver com isso. Daí autores freqüentemente afirmaram que o campesinato é uma categoria pouco politizada, pré-política, há um certo primitivismo político nas lutas dos camponeses. E, classicamente, como se sabe, se atribui a condição de “povos sem história”, de grupos e nacionalidades que não têm viabilidade histórica, em certas situações. Mais do que isso, freqüentemente, se afirma o campesinato como sendo contra-revolucionário, devido ao caráter das suas reivindicações...

Eu vou tentar sintetizar a minha idéia neste trabalho: é fazer uma proposta sobre o que poderia ser a utopia camponesa. Isto é, em lugar de pensar o camponês como classe, em lugar de pensar o camponês por suas reivindicações econômicas, em lugar de pensar se o camponês tem ou não viabilidade histórica, eu quero propor para o nosso debate, para trocar idéias, que o que há nas lutas camponesas que permitiria chegarmos à idéia de uma

44 Reprodução autorizada pelo Autor para as bases do Movimento de Pequenos Agricultores - MPA a partir de consulta pessoal realizada por Horacio Martins de Carvalho em 22 de março de 2004.

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utopia camponesa e de como essa utopia têm a ver com a História, têm a ver com a sociedade nacional. E, então, o elemento utópico que em lugar de ser uma constatação, através da qual nós vamos descartar o campesinato como uma categoria histórica, o elemento utópico, a meu ver, pode ser uma dimensão através da qual é possível resgatar o campesinato enquanto história. Não têm maiores pretensões do que esta, fazer um jogo com as leituras que nós fazemos, com os debates que nós fazemos.

Então, a minha proposta inicial é de que o campesinato está presente na História,

bastante. E, a rigor, se pode dizer que ele esta fortemente presente nas revoluções. Eu diria para sintetizar que o campesinato esta presente nas duas revoluções fundamentais da história da sociedade burguesa: na revolução burguesa e na revolução socialista. Às vezes, de uma maneira direta, imediata, como uma das forças sociais preponderantes, às vezes, como uma força entre outras, não necessariamente a principal ou a preponderante, às vezes, como uma categoria que aparece na preparação da revolução. Todos sabemos que a Revolução Francesa tem muito a ver com as lutas dos camponeses do século XVIII. Isto é, as lutas dos camponeses faziam parte de uma crise do Estado Absolutista e da ordem semi-feudal que predominava, na época, ainda e que entra como um ingrediente fundamental na revolução. (Sem deixar de lembrar que o campesinato esta presente na revolução, o campesinato conquista na revolução alguns direitos e continua na história, às vezes, mudando o significado da sua atuação).

Pode-se dizer, portanto, que o campesinato está presente duas vezes na história, de uma maneira notável. Na revolução burguesa, na medida em que ele está lutando para preservar as suas terras ou para conquistar terras, isto é, para redefinir a sua situação em face das transformações da sociedade. O que ocorre com a revolução burguesa é uma revolução agrária que transforma as propriedades em propriedades privadas, há uma monopolização da terra, uma história muito conhecida e, então, os camponeses sejam posseiros, sejam aqueles que vivem em terras comunais ou terras de Igreja, o que seja, eles são levados a lutar pela preservação das terras ou pela conquista das terras. Junto com isso, entram os dízimos e outras reivindicações. Mas junto com isso entra também o problema de lutar pela não-proletarização, isto é, resistindo à proletarização. Na verdade, a revolução burguesa é uma revolução que provoca uma revolução agrária em alguma dimensão. É essa revolução agrária que tem a ver com a produção de mercadorias, com a proletarização, com a transformação da terra em propriedade privada é uma revolução que atinge diretamente o campesinato e o campesinato reage contra certas injunções da revolução francesa. E é isso que muitas vezes leva historiadores e cientistas sociais a ver no campesinato uma categoria conservadora, reacionária, contra-revolucionaria.

Num segundo momento, o campesinato entra na revolução socialista. Ele está presente em praticamente todas as revoluções socialistas e a sua luta continua sendo para conquistar ou preservar terras, implicando outra vez em preservar ou garantir condições de produção e apropriação, continuidade de um certo tipo de apropriação, a continuidade de um certo tipo de organização comunitária de trabalho. Mesmo nos casos em que o campesinato realiza, até explicitamente, uma aliança com outras categorias sociais, como o proletariado, por exemplo, na verdade, ele está preocupado era preservar ou em recriar certas condições de vida e de trabalho. E nisso existe o germe da utopia camponesa. E essa utopia camponesa, que tem sido tratada de várias maneiras, e freqüentemente de uma

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maneira negativa - isso está em Hobsbawn, está em autores brasileiros, está num debate sobre classe operária, partido político, movimento social - esta utopia pode ser um elemento dinâmico da história e não um elemento conservador ou reacionário ou contra-revolucionário.

Agora, por que o campesinato entra na revolução socialista, a despeito de ele não

estar preocupado com o socialismo, com a conquista do Estado? Porque a revolução burguesa não resolveu a questão agrária, não resolveu a questão camponesa. Em geral, nos países em que a revolução socialista conta com a participação do campesinato, nesses países o que ocorreu é que a revolução burguesa ocorrida nesse caso não conseguiu definir ou redefinir a situação agrária de modo a equacionar satisfatoriamente o campesinato segundo certas reivindicações.

Não há dúvida de que o campesinato está presente na revolução soviética, na

revolução chinesa, está presente em varias revoluções de cunho socialista. Até dá para dizer aqui e repor o problema clássico: --- não que a revolução socialista se realize em países agrários ou em países atrasados, e que a revolução socialista parece que se realiza em condições talvez um pouco mais imediatas nos países onde a revolução burguesa não consegue resolver alguns dos problemas que poderiam ser resolvidos pela burguesia e um deles, a própria questão camponesa.

Refletindo sobre isso, eu fiz umas anotações que eu vou ler para vocês e que de certo modo sintetizam uns parágrafos.

Na medida em que a revolução burguesa não provoca maiores transformações no mundo agrário, (ela) preserva ou recria um campesinato descontente. Aí está uma condição básica da força social que ele pode representar, isto é, ele (campesinato) se posiciona contra uma situação que não resolve as suas condições e essa luta camponesa contra a maneira pela qual a revolução burguesa encaminhou o problema agrário, essa luta acaba tendo significação local, regional ou nacional. Nesse sentido, diria Barrington Moore, é que “os camponeses têm fornecido a dinamite para por abaixo o velho edifício” (Moore, 1966: 480). Nos países predominantemente agrários, o que pode significar que a revolução burguesa adquiriu aí determinado caráter, nesses países, “sem as revoltas camponesas o radicalismo urbano não tem sido, afinal, capaz de realizar transformações sociais revolucionarias” (Skocpol, 1984: 113). Isto é, em certos casos, a presença camponesa fundamental, como na revolução soviética. “Se a questão agrária, diz Trotsky, herança da barbárie, da antiga história russa, tivesse sido resolvida pela burguesia, caso pudesse ter recebido uma solução, o proletariado russo não teria, jamais, conseguido subir ao poder em 1917” (Trotsky, 1967, 1º vol: 62). É claro que uma tese discutível, mas é uma tese muito forte. Quer dizer, o caráter da revolução burguesa na Rússia Tzarista foi tal que o campesinato não teve algumas das suas reivindicações resolvidas e, então, ele se transforma numa espécie de aliado natural das outras categorias sociais, em especial do proletariado.

No século XX, aos poucos, descobrem-se as dimensões revolucionárias dos

movimentos sociais que ocorrem no campo. Isso aconteceu na China e, então, vem uma colocação famosa do Mao Tse-tung que de 1927, de uma enquete que ele fez no meio agrário, onde ele diz, fazendo uma polêmica com os soviéticos e também com os chineses

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que tinham outras posições: “É preciso retificar imediatamente todos os comentários contra o movimento camponês e corrigir, o quanto antes, as medidas erradas que as autoridades revolucionárias tomavam em relação a ele. Somente assim se pode contribuir de algum modo para o futuro da revolução, pois o atual ascenso do movimento camponês é um acontecimento grandioso. Muito em breve, centenas de milhões de camponeses, a partir das províncias do Centro, do Sul e do Norte da China, vão se levantar como uma tempestade, como um furacão de extraordinária violência, que nenhuma força, por mais poderosa, poderá deter. Vencerão todos os obstáculos e avançarão rapidamente pelo caminho da libertação. Todos os imperialismos, caudilhos militares, funcionários corruptos, tiranos locais e shenshi perversos serão sepultados. Todos os partidos e grupos revolucionários, todos os camaradas revolucionários serão posto à. prova perante os camponeses e terão de decidir se os aceitam ou rejeitam” (Mao Tse-Tung, 1977: 24-25). No Vietnam, o campesinato está presente. Ho Chi Minh lembra: “Para o sucesso da resistência e da reconstrução nacional, para obter efetivamente a independência e a unidade nacionais, é absolutamente necessário apoiarmo-nos no campesinato” (Ho Chi Minh, 1975: 25). Em vários momentos, em várias situações o campesinato se torna uma força social importante, revolucionária, no contexto do movimento que.provoca a transição para o socialismo.

No caso da Nicarágua, isso também á evidente. O “Jaime Wheelock”, falando sobre a revolução da Nicarágua, lembra que “A insurreição de uma massa popular integrada por milhares e milhares de camponeses, pequenos produtores, médios produtores, pequenos comerciantes, pequenos artesãos, ou seja, uma República Popular, uma República de povo humilde” (Román, 1980: 61), em que o campesinato tem um papel muito importante, seja por sua participação direta, seja por sua presença no cenário da sociedade nacional. É claro que se podem discutir esses casos, assim como se podem agregar outros exemplos. Mas eu acho que á válido colocar aqui - reiterando a proposta - de que como a burguesia não resolve nem a questão agrária, nem a questão nacional, isto é, a maneira pela qual os vários grupos sociais se representam na sociedade no Estado nacional, o campesinato se constitui numa força social básica, tanto para reformar como para revolucionar a pirâmide social, como fala Hobsbawn.

Essa colocação nos permite repor a questão inicial. Afinal, o que querem os camponeses? O que está em questão? O campesinato não quer o poder. O campesinato não está propondo a conquista do Estado nacional. Esse é um problema de interesse que não é fácil resolver. Eu não tenho uma resposta, mas como é que se explica que o campesinato tem uma presença tão forte, a despeito de não estar direta e explicitamente lutando pela conquista do poder. E aqui cabe colocar a pergunta mais ou menos elementar: afinal, que são os camponeses? Os camponeses não são uma categoria econômica. E é ilusório dizer que os camponeses podem ser uma categoria econômica e política ou podem ser uma categoria política e, então, o assunto está resolvido, porque são uma categoria política e passam a ser uma força revolucionária. O que é uma velha controvérsia. Muitos de nós estamos, às vezes... o Dezoito Brumário, porque lá Marx diz que o campesinato é como batata num saco, quer dizer, há situações nas quais o campesinato não chega a se articular politicamente. Ele é uma realidade econômica, mas não é uma classe política, porque não se assumiu, não se organizou. No entanto, esse campesinato que parece ser disperso, atomizado, que está vivendo as suas condições de vida e trabalho, esse campesinato é um fermento da história, é um ingrediente das lutas sociais. As suas lutas, as suas

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reivindicações entram no movimento da história. Então, se coloca o problema de que o campesinato, além de serem pequenos produtores, sitiantes, posseiros, colonos ou o que seja, além de lutarem pela terra, além de quererem a posse e uso da terra e uma certa apropriação do produto do trabalho, o campesinato representa um modo de vida, um modo de organizar a vida, uma cultura, uma visão da realidade, ele representa uma comunidade45. E é o fato de que o campesinato constitui um modo de ser, uma comunidade, uma cultura, toda uma visão do trabalho, do produto do trabalho e da divisão do produto do trabalho é que faz do campesinato uma força relevante. Isto é, é que coloca o campesinato como uma categoria que mostra para a sociedade não simplesmente uma participação política, uma força, mas também um modo de ser. Aponta e reaponta continuamente uma outra forma de organizar a vida. Eu relembro para vocês o famoso diálogo de Marx com a Vera Zasúlich que tem sido registrado de várias maneiras, mas que põe um problema fundamental. É que Marx acaba embatucando diante da carta de Vera Zasúlich, porque ela põe a hipótese de que o campesinato na sua comunidade poderia ser resgatado ou preservado numa ordem social diferente que não a burguesa. Marx que, em 1850/60, talvez teria dito que não, não têm saída, o campesinato está condenado, vai ser desbaratado pela revolução burguesa e pelo capitalismo, ele, nesse então, resolve pensar um pouco e diz, de fato, esse campesinato pode ser preservado. Eu registro assim esse fato: Não foi por acaso que Marx embatucou quando Vera Zasúlich lhe perguntou, em 1881, se havia possibilidade de que a comuna rural russa se desenvolvesse na via socialista; ou se, ao contrário, estava destinada a perecer com o desenvolvimento do capitalismo na Rússia. Esse é um dos momentos mais intrigantes e bonitos da biografia intelectual de Marx. Escreveu vários rascunhos, buscando uma resposta que fosse também uma reflexão sobre as condições do desenvolvimento do capitalismo, e socialismo, naquele país. Naturalmente procurou informar-se melhor sobre o que estava o ocorrendo ali, nos anos recentes e em todo o século dezenove. Reconhecia que a expropriação do campesinato acompanhava o desenvolvimento capitalista na Inglaterra, França e outros paises. Mas julgou que esse não precisava ser o mesmo caminho na Rússia. Em certo passo da versão da carta que, afinal, enviou à sua correspondente, dizia: “Convenci-me de que esta comuna é o ponto de apoio da regeneração social na Rússia, mas para que possa funcionar como tal será preciso eliminar primeiramente as influências deletérias que a acossam por todos os lados e, em seguida, assegurar-lhe as condições normais para um desenvolvimento espontâneo” (Marx e Engels, 1980: 61).

Ou seja, ele põe a possibilidade de que a comunidade camponesa russa possa ser preservada na outra ordem social, reconhecendo, como não poderia deixar de ser, que ela estava sendo desbaratada pela expansão do capitalismo. Eu acho que estas intuições de Marx põem o problema da utopia camponesa. Isto é, o modo de ser camponês e a luta do camponês por este modo de ser, que tem sido tratado por muitos intelectuais e políticos como sendo uma forma utópica, pretérita, condenada, sem história e que, portanto, não têm porque ser conservada, essa comunidade pode ser uma metáfora do futuro, pode ser uma proposta, uma indicação. Não que vá ser preservada nessa condição, é claro. Seria ridículo

45 Nota de HMC: ver o sentido dado por Octávio Ianni nas respostas às questões dos debatedores adiante.

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imaginar que fosse ser preservada na mesma situação, mas que poderia se reintegrar numa ordem social nacional, naturalmente organizada com base na propriedade socialista, e, então, essa comunidade em lugar de parecer anacrônica, passava a ser uma forma válida para a organização da vida e do trabalho.

Eu vejo, portanto, que essa correspondência de Marx repõe o problema de que o campesinato não é simplesmente uma categoria econômica ou simplesmente uma categoria política ou política-econômica. O campesinato, na verdade, pode ser visto como uma proposta que, ao mesmo tempo, pode ser vista como uma proposta que é, ao mesmo tempo, social e cultural. E que o camponês, devido a sua longa história, devido a sedimentação de suas formas de vida e trabalho, devido ao desenvolvimento de sua língua ou dialeto, às vezes, religião, língua ou dialeto, freqüentemente tradições, histórias, façanhas, etc..., o campesinato tem um patrimônio cultural e uma forma de organizar a produção e a reprodução, a distribuição do produto do trabalho que podem ser sugestões sobre a maneira pela qual a sociedade no futuro poderia se organizar.

Na verdade, o movimento social camponês não se propõe à conquista do poder estatal, à organização da sociedade nacional, à hegemonia camponesa. Essas, talvez, sejam as tarefas do partido, pode ser a tarefa da classe operária associada com outras categorias sociais, inclusive o camponês. Mas isso não elimina nem reduz o significado revolucionário das muitas lutas que esse movimento camponês realiza. Em essência, o seu caráter radical está no obstáculo que representa à expansão do capitalismo, na afirmação do valor de uso sobre o valor de troca, sobre a mercadoria, enquanto tal, sobre o trabalho alienado, na resistência da transformação da terra em monopólio, na afirmação de um modo de vida e trabalho que tem evidentemente uma conotação comunitária. Uma organização em que a participação do todo é de outro tipo e em que a distribuição do produto material e espiritual é de outro tipo.

E, nesse sentido, há na comunidade camponesa ou nas formas camponesas de viver e trabalhar uma sugestão ou uma metáfora do que poderia ser o modo futuro de organizar a sociedade. E eu vejo nisso uma das forças, senão a força do movimento camponês. Eu vejo nisso que é a utopia camponesa a importância do campesinato como história.

A luta do campesinato constitui um obstáculo ao desenvolvimento da ordem burguesa. Ao lutar pela terra e pela posse da terra e pelo uso da terra e o produto do seu trabalho a seu modo, ele está se pondo como um obstáculo à ordem burguesa. E, nesse sentido, eu diria que essa luta freqüentemente adquire conotação revolucionária, por duas razões: por uma lado, o camponês resiste à proletarização no campo e na cidade e isto é contrário ao funcionamento do mercado da força de trabalho, aos fluxos e refluxos do exército industrial de reserva, à subordinação real do trabalho ao capital. Por outro lado, a luta pela terra impede ou dificulta a monopolização da terra pelo capital, a sua transformação em propriedade mercantil, o desenvolvimento extensivo e intensivo do capitalismo na agricultura. Nessas duas perspectivas, o movimento camponês adquire dimensão nacional e põe em causa os interesses prevalecentes no Governo, no Estado.

Um dos componentes estruturais da ordem burguesa é a burguesia agrária. A

burguesia agrária é freqüentemente um dos elementos do bloco do poder. A indústria

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agrícola. A produção de valor na agricultura. Na medida em que esse elemento da ordem burguesa que é o agrário, que é a terra, que é a produção de valor, de lucro, de mais-valia se vê bloqueado em seu funcionamento e expansão, nessa medida coloca-se em pauta um problema sério para a classe dominante, para a ordem burguesa, para o bloco de poder. E nesse nível que é constitutivo do mercado, da produção capitalista, da produção de valor é que a luta do camponês é adversa à ordem burguesa.

Mas o movimento camponês não se limita à luta pela terra. Mesmo quando é essa a reivindicação principal, ele compreende outros ingredientes: a cultura, a religião, a língua ou dialeto, a raça ou etnia entram na formação e desenvolvimento das suas reivindicações e lutas. Mais do que isso. Pode-se dizer que a luta pela terra é sempre e ao mesmo tempo uma luta pela preservação, conquista ou reconquista de um modo de ser e de trabalho. Todo um conjunto de valores culturais entra em linha de conta como componente do modo de ser e viver do campesinato.

Por que o campesinato da Nicarágua entrou na revolução sandinista? Por que tinha uma proposta socialista? Por que tinha uma proposta anti-norte-americana ou, até se pode dizer, anti-somozista? Poderia ter um pouco, mas, na verdade, era um campesinato lascado secularmente como índio e como mestiço e que queria reafirmar a sua indianidade, a sua mestiçagem, com a sua cultura, o seu modo de ser. E esse campesinato, que têm também reivindicações econômicas, entra na luta revolucionária. Quer dizer, são várias as razões que estão metidas, embutidas na maneira pela qual se organiza o movimento social.

Acontece que toda opressão econômica é também opressão cultural e social, além de política. A terra não é um fato da natureza, mas é um produto material e espiritual do trabalho humano. As relações do camponês com a terra compreendem um intercâmbio social complexo que implica a cultura. Jamais se limita à produção de gêneros alimentícios, elementos de artesania, matérias-primas para a satisfação das necessidades - alimento, etc. Muito mais do que isso, a relação do camponês com a terra põe em causa também a sua vida espiritual. A noite e o dia, a chuva e o sol, a estação de plantio e a da colheita, o trabalho de alguns e o mutirão, a festa e o canto, a estória e a lenda, a façanha e a inventiva, a mentira camponesa, o humorismo camponês, são muitas as dimensões sociais e culturais que se criam e recriam na relação do camponês com a sua terra, com o seu lugar.

Muitas vezes, é na cultura camponesa que se encontra alguns elementos fundamentais da sua capacidade de luta. A sua língua ou dialeto, religião, valores culturais, histórias, produções musicais, literárias e outras entram na composição das suas condições de vida e trabalho. Expressam a sua visão do mundo. Na luta pela terra pode haver conotações culturais importantes, decisivas, sem as quais seria impossível compreender a força das suas reivindicações econômicas e políticas. A comunidade camponesa é o universo social, econômico, político e cultural que expressa e funda o modo ser do camponês, a singularidade do seu movimento social. E é precisamente aí que está a sua força. O caráter revolucionário desse movimento social não advém de um posicionamento explícito, frontal, contra o latifúndio, fazenda, plantação, empresa, mercado, dinheiro, capital, governo, rei, rainha, general, patriarca, presidente, supremo, estado. O seu caráter revolucionário está na afirmação e reafirmação da

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comunidade, da comunidade como uma totalidade social, política, econômica e cultural. A sua radicalidade está na desesperada defesa das suas condições de vida e trabalho. “Os camponeses levantam-se em armas para corrigir males. Mas as injustiças contra as quais se rebelam não são, por sua vez, manifestações locais de grandes perturbações sociais. Por isso a rebelião converte-se logo em revolução e os movimentos de massas transformam a estrutura social como um todo. A própria sociedade converte-se em campo de batalha e, quando a guerra termina, a sociedade estará mudada; e, com ela, os camponeses. Assim, a função do campesinato é essencialmente trágica: seus esforços para eliminar o pesado presente somente desembocam em um futuro mais amplo e incerto. Não obstante, ainda que trágico, está pleno de esperança” (Wolf, 1972: 409). Há uma recôndita dialética comunidade-sociedade no movimento dessa história. “Em geral, as revoltas camponesas não se dirigem contra uma classe, mas contra uma sociedade de classes. Por isso o desespero, do qual surge a crueldade, sempre marcou de forma particular as revoltas camponesas. Não é o “fanático” que se revolta para defender a sua propriedade, como tendemos a crer. É sobretudo a revolta do “profano e do “bárbaro” contra o “sagrado” e a “civilização” do “capital” (Vergapoulos, 1980: 223).

O movimento social camponês nega a ordem burguesa, as forças do mercado, as tendências predominantes das relações capitalistas de produção. Em geral, a radicalidade desse movimento está em que implica em outro arranjo da vida e trabalho. Em sua prática, padrões, valores, ideais, ele se opõe aos princípios do mercado, ao predomínio da mercadoria, lucro, mais-valia. Sempre compreende um arranjo das relações sociais no qual se reduz, ou dissipa, a expropriação, o desemprego, a miséria, a alienação.

A comunidade camponesa pode ser utopia construída pela invenção do passado. Pode ser a quimera de algo impossível no presente conformado pela ordem burguesa. Uma fantasia alheia às leis e determinações que governam as forças produtivas e as relações de produção no capitalismo. Mas pode ser uma fabulação do futuro. Para a maioria dos que são inconformados com o presente, que não concordam com a ordem burguesa, a utopia da comunidade é uma das possibilidades do futuro. Dentre as utopias criadas pela crítica da sociedade burguesa, coloca-se a da comunidade, uma ordem social transparente. Esse é, provavelmente, o significado maior do protesto desesperado e trágico do movimento social camponês.

Resposta do prof. Octávio Ianni às questões do público 46

As perguntas foram muitas e muito interessantes. Eu confesso que gostei das questões e tenho um grande entusiasmo por essa prob1emática só tem uma questão que eu não posso responder que é a questão da Lygia, porque tem a ver com a organização do Seminário. Isso aí eu acho que é para a Anita (risos). Sobre comunidade, vocês me permitam fazer uma co1ocação, a comunidade foi uma noção que está sendo divulgada em duas acepções mais freqüentes: uma a da Igreja que pensa uma comunidade de ovelhas, caricaturando, e outra é a do positivismo que esta na sociologia e na antropologia norte-

46 Como o presente texto é, uma transcrição de palestra do prof. Octávio Ianni, não se incluiu nesta reprodução para debate na base camponesa do MPA as perguntas dos debatedores.

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americanas. E, então, vocês têm razão. Afinal, de que comunidade nós estamos falando? Eu não estou falando de comunidade empírica, positivista, nem muito menos de ovelhas. Eu estou pensando na comunidade, na acepção clássica do termo. E a acepção clássica e a que está em Rousseau, no Contrato Social. Está em Tönnies, está em vários autores de diferentes contextos e nas entrelinhas de alguns textos de Marx, por exemplo, nas Formações Pré-Capitalistas. Eu estou pensando na comunidade no sentido clássico que não é empírica, que é uma construção teórica. Isso é um longo debate que não vai dar. Quer dizer, há um discurso ideológico norte-americano que foi divulgado na América Latina e que está na oratória dos generais e do Sarney, a mesma coisa, que é uma contra facção do que é a comunidade no sentido clássico. Uma visão, às vezes, totalmente, positivista e empirista e às vezes, tem uma entonação liberal. Depende. Os liberais também usam a noção de comunidade, pensando em comunidade de cidadãos. Mas eu estou descartando tudo isso. Eu estou pensando a comunidade que o camponês está inventando. Não é a que ele vive, é a que ele está inventando. Que não é o modo de trabalhar ou a terra, é tudo junto, inclusive, a sua religião, o seu misticismo, a sua poética, as suas estórias. É tudo uma coisa complicada. É um conjunto, é uma totalidade dialética que está em questão. Agora, que isto é uma fantasia, é uma fantasia, porque há muitos camponeses que estão numa boa, que estão se inserindo no mercado. Eu li e participei de uma banca de argüição de uma tese de uma colega nossa que fez uma pesquisa sobre aqueles camponeses da área da América Fabril, no Rio de Janeiro, e que ficou assustada de descobrir - e isso está retratado na tese - que aqueles posseiros transformados em proprietários estavam se aburguesando. Mas eu não estou falando desses. Claro que há muitas modalidades do desenvolvimento do campesinato e há alguns setores do campesinato que foram recamponesados, que estão inseridos numa sociedade de mercado e que estão se tornando, vamos dizer, pequenos empresários. Não é desses que eu estou falando, ainda que esses não sejam imunes a esta utopia. Ainda que este não seja ambíguo, freqüentemente, em estar buscando o crédito no banco ou em estar esperando uma assistência técnica do Governo e está tentando, ilusoriamente, como o camponês do José Vicente Tavares dos Santos, que um camponês que esta totalmente inserido no mercado, produzindo lindamente mais-valia, mas que está com a ilusão de que ele pode resgatar a comunidade quimérica que ele não pode mais, porque ele já está inserido. Então, vejam bem que há um debate interessante sobre comunidade e modalidades de campesinato.

O que eu estava pensando é que a comunidade, no sentido clássico, é a descoberta de que o mundo da sociedade, o mundo do mercado, o mundo do contrato, o mundo da mercadoria, da vida social determinada amplamente pelo econômico, de que esse universo que foi criado pelo capitalismo, que é a sociedade burguesa, não esgota a humanidade de todos. Não esgota a nossas, nós não nos realizamos nesse universo, sendo que o camponês - eu acho que aqui esta o bonito do mito da invenção - que o camponês é um dos grupos sociais que nos mostra um outro modo de ser. E a luta dele - e aqui está o paradoxo que você apontou - que é uma proposta de uma comunidade, é uma luta que, num certo nível, é inviável. Só que eu não aceito - e eu estou discutindo, como, por exemplo, Hobsbawm, mas, por exemplo, alguns brasileiros e eu citei só Sandroni, mas, na verdade, há todo um debate no Brasil sobre o campesinato não é importante, as lutas camponesas não são

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importantes, porque eles estão se proletarizando. Então, há um debate e eu faço uma alusão breve. Mas, veja bem, o Hobsbawm diz que, no fundo, os camponeses são e sentem-se subalternos, com raras exceções sua perspectiva é a de reformar a pirâmide social, não destruí-la. Os camponeses são perfeitamente capazes de julgar uma situação política local, mas a sua dificuldade política real está em distinguir os movimentos políticos mais amplos que podem determina-lo. E eu pego e ponho em questão isso e não mais. Vamos aprofundar a reflexão e ver o quê que o camponês que está farejando isso. Vamos ver em Zapatta.

Zapatta não teve muito o que fazer quando conquistou o lugar físico em que se encontrava o centro do poder nacional, no México, em 1914. Vocês sabem que Zapatta e Villa sentaram na cadeira presidencial, na cidade do México, em 1914. Conquistaram o poder, físico. Na noite de 24 de novembro, depois que os últimos carrancistas haviam sido evacuados da cidade do México, os primeiros contingentes sulistas zapattistas entraram quase que envergonhadamente na capital. Por não conhecer, eu estou citando o Wollmack (?), que é um livro clássico sobre Zapatta. “Qual era o papel que deveriam desempenhar, não saquearam nem praticaram pilhagens. Mas, como meninos perdidos, vagaram pelas ruas, batendo às portas e pedindo comida. O próprio Zapatta não se sentia mais tranqüilo do que os camponeses que compunham a sua força”. Isso é uma leitura possível.

Este é um problema que está no nosso debate cotidiano: o partido político/movimento social, movimento social popular/movimento camponês. Qual é a força desse movimento no âmbito da sociedade? Então, a leitura política e, geralmente, partidária desse tipo de acontecimento leva a uma dessas lutas. E eu estou tentando resgatar e mostrar que essa derrota de Zapatta é bonita e que essa derrota de Zapatta entrou na História e eu podia dizer - não disse aqui - que toda Reforma Agrária que se realiza no México, nas décadas subseqüentes, e que se coroa com Cárdenas em 1934/40, é uma façanha fantástica para o campesinato mexicano. Esse campesinato que não foi capaz de dominar o poder. Esse é o paradoxo. Então, nesse sentido, a luta do campesinato vista em termos de um complexo econômico, social, cultural, etc... é uma proposta original, é uma alternativa no modo de ser das pessoas, de organizar a sociedade e não se impõe como tal hegemônico. Mas não deixa de ser um ingrediente da História, das lutas sociais. Não deixa de ser uma das possibilidades utópicas que os vários grupos sociais inventam.

E, nesse sentido, então, é que se coloca, e eu vou ler para vocês apenas uma

pequena frase do Eric Wolf, em que ele lembra que “os camponeses levantam-se armas para corrigir males, mas as injustiças contra as quais se rebelam devem ser vistas, por sua vez, como manifestações locais, às vezes, muito localizadas, de problemas nacionais”. Só que ele não se posiciona, ele não se põe hegemônico, ele não põe o poder. Então, é ambíguo, é contraditório, mas é assim mesmo. E nisso está a beleza da luta do campesinato. Por isso, que eu concordo com o Kostas Vergopoulus quando ele diz que as revoltas camponesas não se dirigem contra uma classe, mas contra uma sociedade de classes. Não que ele deliberadamente assuma essa luta, não. É que, a seu modo de lutar, a coisa pela qual ele luta implica na negação das classes. Então, ele é revolucionário não pela sua consciência, pela sua consciência para si. Nada disso. Ele é revolucionário, ele é radical, pelo que ele defende na sua incoerência. Esse é o paradoxo. E eu acho que isso tem uma grande importância no movimento da sociedade. Eu acho que isso têm uma importância, inclusive, no cotidiano das lutas. Você lê um jornal do dia 20 de outubro (Folha de São

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Paulo) alguém declarando: “o que mais nos preocupa é que os assassinatos já não acontece mais um a um. Agora as mortes são por atacado lembrando as duas últimas chacinas que abalaram a região: 8 posseiros mortos entre 13 e 19 de julho no castanhal Ubá e mais 5 colonos torturadas e massacrados no dia 26 de setembro, na Fazenda Princesa. *essa ultima, as vítimas não eram invasores nem posseiros, eram colonos regularmente selecionados e assentados pelo GETAT”. Quer dizer, o universo empírico que está à disposição é muito rico, permite várias leituras. Uma leitura que está no nosso debate, se vocês me permitem, é de que as lutas camponesas têm a ver com a conquista da cidadania, dos direitos dos cidadãos (direitos trabalhistas, acesso a mercado, acesso ao crédito). E é verdade. Só que eu acho por outra dimensão. A sua cultura e a maneira pela qual ele protesta põe outras coisas que, de certo modo, transcendem essas conquistas e nisso é que eu vejo que há um potencial de radicalidade na luta do camponês. É nisso que o movimento social camponês é, vamos dizer, criador, em termos de processo histórico. É nisso que o movimento social camponês é criativo, porque ele propõe uma legitimidade emergente, algo que vai se propor. Ao contrário dos partidos e das igrejas, enfim, ao contrário de instituições que estão atuando, que, em geral, propõem uma legitimidade vigente, propõem a instituição, a consolidação, o aperfeiçoamento de uma legitimidade que já está delineada na constituição, nos códigos, na CLT, no Estatuto da Terra, etc... Essas lutas dos camponeses, de certo modo, quebram isso e esboçam, às vezes, apenas esboçam uma outra alternativa. E, nesse sentido, é que eu acho que a lição de Canudos precisa ser resgatada.

Por quê que aqueles camponeses paupérrimos fizeram o que fizeram? Que é uma

das glórias do povo brasileiro - glórias contra o Exército, contra o Estado. Por quê que fizeram? Qual era a loucura? Era o econômico? Era o político? Não, não era nada disso. Era um negócio que não dá para definir facilmente e que o próprio Euclides da Cunha se embananou. Ele começa de um jeito e termina de outro. Os camponeses de Canudos conquistaram Euclides da Cunha. Leia “Os Sertões” outra vez e dá para ver. Quer dizer, tem um negócio lá que não dava para se entender. Que uma poderosa força social, cultural, espiritual que conseguiu fazer o que fez, isto é, desbaratar várias campanhas militares do Exército nacional. Essa é uma das coisas que o Exército brasileiro lastima e pena secularmente. Um punhado de camponeses paupérrimos conseguiu derrotar varias expedições. Quer dizer, o quê que têm aí? Não é o econômico, esse que é o problema. Não é o político. Nesse sentido, é que há um debate a ser feito e eu acho que é uma proposta que corre o risco de ser mitificação. Corre o risco, às vezes. Mas eu acho que a gente tem que correr esse risco para sair do universo empírico, para sair duma visão um tanto positivista na reflexão sobre o campesinato. Aí, então, para escaparmos de uma reflexão que vê no campesinato um movimento que luta pela conquista da cidadania. Eu acho que luta, eu acho que, implicitamente, isto está sempre presente. Mas vejo que há algo mais. E esse algo mais que parece quimérico, parece utópico, parece mitificação pode ser essencial para a gente resgatar a alma do camponês. E se a gente resgatar a alma do camponês, talvez a gente resgate um elemento para construir um outro tipo da sociedade que, é claro, não é a utopia do camponês. É a utopia de alguns de nós e, às vezes, eu relendo o texto, eu acho que é a minha utopia e tudo bem.

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2.2.2. Quem são os atuais camponeses?

Não se adota para o campesinato, no universo de reflexão aqui exposto, as designações modo de produção, classe social ou categoria social. Afirma-se, sim, a especificidade camponesa em relação à empresa capitalista, especificidade essa que é conseqüência de uma racionalidade econômica, social e ecológica desenvolvida na história do próprio campesinato e na interação crítica e adaptativa com a racionalidade da empresa e do mercado capitalista.

Em face da multiplicidade dos modos de apropriação da natureza e dos saberes para a controlar para o seu proveito a família camponesa desenvolveu uma racionalidade que lhe é própria, ainda que plena de diversidade histórica, étnica e territorial: a racionalidade camponesa. Essa racionalidade camponesa, enquanto conjunto de valores que move o sujeito social camponês, apóia-se em dois elementos centrais: a garantia continuada de reprodução social da família, seja ela a família singular seja a ampliada, e a posse sobre os recursos da natureza. A reprodução social da unidade de produção camponesa não é movida pelo lucro, mas pela possibilidade crescente de melhoria das condições de vida e de trabalho da família. Entende-se, então, por camponesas aquelas famílias que tendo acesso à terra e aos recursos naturais que esta suporta resolvem seus problemas reprodutivos a partir da produção rural --- extrativista, agrícola e não-agrícola --- desenvolvida de tal modo que não se diferencia o universo dos que decidem sobre a alocação do trabalho dos que sobrevivem com o resultado dessa alocação (Costa, 2004: 1). Essas famílias, no decorrer de suas vidas e nas interações sociais que estabelecem, desenvolvem hábitos de consumo e de trabalho e formas diferenciadas de apropriação da natureza que lhes caracteriza especificidades no modo de ser e de viver no âmbito complexo das sociedades capitalistas contemporâneas. O campesinato, enquanto unidade da diversidade camponesa, constitui-se num sujeito social cujo movimento histórico se caracteriza por modos de ser e de viver que lhe são próprios, não se caracterizando como capitalista ainda que inserido na economia capitalista.

A racionalidade camponesa tem sofrido mudanças nas interações que estabelece com as concepções de mundo, com a produção científica e tecnológica e com as práticas culturais hegemônicas das sociedades capitalistas. As mudanças provocadas por tais interações apresentam graus de intensidade distintos, sendo que as inovações geradas pelos setores dominantes são adaptadas ou reelaboradas pelos próprios camponeses no sentido de se adequarem à sua racionalidade.

Essa multiplicidade de formas de apropriação da natureza relacionada histórica e socialmente com as formas de resistência (esforço continuado para internalizarem o sobre-

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trabalho familiar) contra a sua exclusão social para a reprodução social das famílias e de acesso à posse dos recursos naturais proporcionaram a diversidade camponesa atual. Essa diversidade camponesa inclui desde os camponeses proprietários privados de terras aos posseiros de terras públicas e privadas; desde os camponeses que usufruem dos recursos naturais como os povos das florestas, os agroextrativistas, a recursagem47, os ribeirinhos, os pescadores artesanais lavradores, os catadores de caranguejos e lavradores, os castanheiros, as quebradeiras de coco babaçu, os açaizeiros, os que usufruem dos fundos de pasto até os arrendatários não capitalistas, os parceiros, os foreiros e os que usufruem da terra por cessão; desde camponeses quilombolas à parcelas dos povos indígenas já camponeizados; os serranos, os caboclos e os colonizadores, assim como os povos das fronteiras no sul do país (Bavaresco, 2004). E os novos camponeses resultantes dos assentamentos de reforma agrária. A essa multiplicidade de formas de viver e de ser correspondem culturas diversas, religiosidades, valores éticos e sociais diferenciados, formas de socialização variadas, identidades e autoidentidades distintas, relações múltiplas com os aparelhos de poder, aspirações e expectativas sociais diversas.

A essa delimitação conceitual do campesinato pode-se acrescentar outros matizes fundamentais. Hebette (2004: 2) afirma que “o modo de vida que, neste ensaio, será chamado camponês, e as populações que dele vivem, também chamadas camponesas, se oferecem ao nosso olhar mediante algumas características fundamentais. Os camponeses são produtores livres de dependência pessoal direta – são ‘autônomos’; sua sobrevivência de homens livres lhes impõe laços de solidariedade cuja quebra ou enfraquecimento ameaçam seu modo de vida; esses laços mais primários são os de parentesco e de vizinhança que os levam a procurar se agrupar em ‘comunidade’; a busca de sua permanência e reprodução numa mesma ‘terra’ (ou no mesmo ‘terroir’, como se diz em francês), traduzidos como apego à terra, é a marca do sucesso de seu modo de vida e a fonte de seu cuidado com seu ambiente: a migração para ele é uma fatalidade, a expulsão, uma degradação inaceitável.” [grifos no original] 2.2.3. Quantos são os camponeses?

As classificações vigentes e hegemônicas para identificar a “agricultura familiar”

são imprecisas e insuficientes para darem conta da diversidade das formas encontradas pelas famílias que “tendo acesso à terra e aos recursos naturais que esta suporta, resolvem seus problemas reprodutivos a partir da produção rural --- extrativista, agrícola e não agrícola [e pesqueira e de parcela dos povos indígenas]48 --- desenvolvida de tal modo que 47 Recursagem, segundo Mazzetto (1999): atividade de extrair recursos naturais da natureza pelos lavradores locais. Ela significa mais do que uma coleta aleatória. Representa uma extração ordenada, pressupõe um recurso ofertado pela natureza, mas adquirido pela intervenção humana. É um potencial da natureza recursado pelo conhecimento sistematizado e conjunto de técnicas da família, que está embasado numa classificação e discriminação do meio, passada de geração a geração. 48 Complemento acrescentado por Horacio Martins de Carvalho à conceituação original de Costa.

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não se diferencia o universo dos que decidem sobre a alocação do trabalho, dos que sobrevivem com o resultado dessa alocação” (Costa, 2000: 114), e que aqui são denominadas genericamente de camponesas.

As delimitações conceituais e empíricas da “agricultura familiar”, no nível da

formulação das políticas públicas dos organismos de governo, têm sido bastante influenciadas pelas concepções teóricas de caráter acentuadamente economicista. Essas opções, indiretamente, facilitam o exercício de práticas governamentais que aderem à perspectiva de estímulo à diferenciação do campesinato e de ajuste funcional de se desenvolvimento á dinâmica do mercado. Constituiu-se, assim, um processo de delimitação empírica do campesinato onde algumas das classificações foram estabelecidas a partir de situações conjunturais. A esse processo denominou-se aqui de processo classificatório de oportunidade.

Por exemplo, no Plano Safra 2003/2004 se calculou que 4,1 milhões de

estabelecimentos seriam considerados como de “agricultura familiar”. Essa cifra acompanha de perto as cifras do Censo Agropecuário do IBGE 1995/96 que permitiu enquadrar 4,139 milhões de estabelecimentos como de “agricultura familiar” (Tab. 1, adiante), abrangendo 85,2% do total de estabelecimento do país. Deste total 49,7% (2,055 milhões de estabelecimentos familiares) encontra-se no Nordeste brasileiro.

Tabela 1. Brasil. Agricultura familiar. Número de estabelecimentos e percentagem da área por região do país.

Região/País n° estabel. Área %

Nordeste 2.055.157 31,6% Centro-Oeste 162.062 12,7% Norte 380.895 20,3% Sudeste 633.620 17,4% Sul 907.635 18,0% Brasil 4.139.369 100,0%

Fonte: Censo Agropecuário 1995/96 FAO/INCRA

As classificações adotadas pela Secretaria de Agricultura Familiar – SAF do

Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA são exemplos do processo classificatório de oportunidade no qual parcelas da população rural supostamente consideradas “agricultores familiares” são enquadradas sem que necessariamente se dê conta diversidade das formas sociais de reprodução dos camponeses do país.

Conforme Moreira (2003: 13-17) “a produção teórica e conceitual do governo

federal iniciou-se a partir de 1996 e sustentou a elaboração de um programa de âmbito nacional que é o PRONAF. Esta produção deveu-se a cooperações com organismos internacionais como a Food Agriculture Organization – FAO, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma

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Agrária – INCRA49. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Agrário (2000:13), o debate sobre os conceitos e a importância relativa da ‘agricultura familiar’ também é intenso, produzindo inúmeras concepções, interpretações e propostas, oriundas das diferentes entidades representativas dos ‘pequenos agricultores’, dos intelectuais que estudam a área rural e dos técnicos governamentais encarregados de elaborar as políticas para o setor rural brasileiro.”

“Documento Referencial editado pelo PRONAF discorre sobre o dito ‘bi-modelism’

da agricultura brasileira, isto é, a existência de dois modelos gerais. Para o PRONAF ‘(...) pode-se intervir objetivamente na estrutura da agricultura brasileira considerando dois modelos gerais: o modelo da agricultura patronal e o modelo da agricultura familiar.’ (PRONAF, 1999: 4)”

“Referindo-se às características da agricultura brasileira os documentos

FAO/INCRA sugerem características diferenciadas para cada um dos modelos, como mostra o Quadro 1.”

“Ao diferenciar os tipos ou ‘modalidades’ no interior dos dois modelos

FAO/INCRA, identificaram-se seis modalidades, sendo três para a agricultura patronal: agribusiness, agricultura patronal de base empresarial e agricultura patronal de base fundiária, e três para a agricultura familiar: agricultura familiar consolidada, agricultura familiar de transição e agricultura familiar periférica, como pode ser observado no Quadro 2.”

“Ao caracterizar as modalidades, FAO/INCRA utiliza indicadores50 tais como:

parâmetros empresariais, gestão empresarial, padrão empresarial, capital, integração ao mercado, acessibilidade à tecnologia e às políticas públicas, viabilização econômica, integração produtiva à economia nacional.”

“A SAF, para delimitar o ‘universo familiar’51, usou informações disponíveis no Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, propondo-se a definir um ‘novo retrato da agricultura familiar’. Segundo o Censo Agropecuário

49 O Projeto BRA/98/012 “Agricultura Familiar no Contexto do Desenvolvimento Local Sustentável” constituiu-se em um destes projetos de cooperação do PRONAF, coordenado pela então Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR). O INCRA por sua vez estabeleceu convênio - Projetos de Cooperação Técnica – com a FAO entre 1996 e 1999. Esta cooperação FAO/INCRA realizou estudos baseados na metodologia de sistemas agrários desenvolvidos pela escola francesa de estudos agrários. Para o Convênio FAO/INCRA estes estudos “(...) vem permitindo uma melhor compreensão da lógica e dinâmica das unidades familiares e dos assentamentos, assim como dos sistemas de produção por eles adotados nas diversas regiões do país.” (FAO/INCRA, 1999) 50 Por exemplo: agribusiness: sua gestão é conduzida em moldes empresariais; agricultura patronal de base fundiária: o capital principal é a terra, a gestão do empreendimento não atende parâmetros empresariais; agricultura familiar consolidada: integrada ao mercado, a maioria funciona em padrões empresariais. 51

Como a SAF caracterizou o “O universo familiar”? “... foi caracterizado pelos estabelecimentos que atendiam simultaneamente, às seguintes condições: a) a direção dos trabalhos do estabelecimento era exercida pelo produtor; b) o trabalho familiar era superior ao trabalho contratado”. Adicionalmente, foi elaborada uma área máxima regional como limite superior para a área total dos estabelecimentos familiares”. (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO, 2000:18)

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1995/96 - IBGE, existiam no Brasil 4.859.864 estabelecimentos rurais ocupando uma área de 353,6 milhões de hectares, sendo que os estabelecimentos familiares ocupavam 30,2 % desta área, a despeito de representar 85,2% do total dos estabelecimentos rurais brasileiros (Tab. 2). De outro lado, a categoria agricultura patronal ocupava 67,9% da área total e representava apenas 11,4% dos estabelecimentos rurais. A quantidade de estabelecimentos na categoria familiar era 7,5 vezes maior que o número da categoria patronal. A quantidade de terras ocupadas pela categoria patronal era mais que o dobro (2,3 vezes) das ocupadas pela agricultura familiar.” Quadro 1. Características dos Modelos Patronal e Familiar

Modelo Patronal Modelo Familiar completa separação entre gestão e trabalho

trabalho e gestão intimamente relacionados

organização centralizada direção do processo produtivo assegurada

diretamente pelo agricultor e sua família

ênfase na especialização ênfase na diversificação ênfase em práticas agrícolas

padronizáveis ênfase na durabilidade dos recursos e na qualidade de vida

trabalho assalariado predominante trabalho assalariado complementar tecnologias dirigidas à eliminação de decisões “de terreno” e “de momento”

decisões imediatas, adequadas ao alto grau de imprevisibilidade no processo produtivo

Fonte: PRONAF (1996)

Tab. 2. Brasil – Estabelecimentos Totais e Área Total por Categorias Familiar e Patronal, 2000.

Categorias Estabelecimentos Total

% Estab. s/ total

Área Total (mil ha)

Área Total %

Familiar 4.139.369 85,2 107.768 30,5 patronal 554.501 11,4 240.042 67,9 Outros (*) 165.994 3,4 5.801 1,6 Total 4.859.864 100,0 353.611 100,0

Fonte: Censo Agropecuário 1995/1996 – IBGE. Adaptado de Novo Retrato da Agricultura Familiar – O Brasil Redescoberto / MDA/ SNAF.2000

(*) Instituições religiosas, entidades públicas e não identificados.

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Tab. 3 Agricultores familiares – Percentual dos estabelecimentos, segundo a condição do produtor.

Região Proprietário Arrendatário Parceiro Ocupante

Nordeste 65 6,9 8,4 19,3 Centro-Oeste 89,8 3,4 1,3 5,6 Norte 84,6 0,7 1,4 13,2 Sudeste 85,7 4,1 5,2 5,0 Sul 80,8 6,4 6,0 6,7 Brasil 74,6 5,7 6,4 13,3

Fonte dos dados: Censo Agropecuário 1995/96 – IBGE. Adaptado de Novo Retrato da Familiar no Brasil/ SNAF-MDA.2000.

Quadro 2. Os dois modelos de agricultura no Brasil : suas modalidades e características

Modelo Modalidades Características Agricultura Patronal

Agribusiness Integração vertical das atividades no agro-industrial.

Agroindústria com gestão empresarial b) Agricultura patronal

de base empresarial Uso intensivo de tecnologias, alta

produtividade, gestão empresarial. Agricultura patronal

de base fundiária Latifúndio, gestão não empresarial,

agropecuária extensiva e nem sempre produtiva, tendo a terra como capital principal.

Agricultura Familiar

a) Agricultura familiar Consolidada

Integração ao mercado, acesso a inovações tecnológicas e políticas públicas, maioria funcionando em padrões empresariais.

b) Agricultura familiar de Transição

Acesso parcial à tecnologia e ao mercado, sem acesso à maioria das políticas e programas governamentais, não consolidados como empresas.

Amplo potencial para a viabilização econômica

c) Agricultura familiar Periférica

Inadequação em termos de infra-estrutura, dependente de programas de reforma agrária, crédito, pesquisa, assistência técnica e extensão rural e comercialização.

Fonte: PRONAF (1996)

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“Do Censo Agropecuário 1995/96 podem-se extrair três informações (...) A primeira: a condição dos agricultores em relação ao uso da terra; a segunda: a estrutura fundiária; e a terceira: o pessoal ocupado. De acordo com a SNAF, ‘a situação dos agricultores familiares, segundo a condição de uso da terra demonstra que 74,6% são proprietários, 5,7% são arrendatários, 6,4% são parceiros e 13,3% são ocupantes’ (Tab. 3)”.

“Para a SNAF, os dados do Censo Agropecuário 1995/1996 demonstram que não é apenas a propriedade da terra o único elemento a ser considerado para o que chama de ‘reestruturação fundiária no Brasil’ (BRASIL, 2000:26). Também deve ser verificado o tamanho das propriedades dos agricultores familiares. ‘(...) muitos possuem menos de 5 ha, o que, na maioria dos casos, inviabiliza sua sustentabilidade econômica (...)’. De fato, o Censo Agropecuário revelou que, no Brasil, 94,55% dos estabelecimentos no modelo de agricultura familiar têm menos de 100 ha de terra. 39,8% das propriedades dos agricultores familiares têm menos de 5 ha, como pode ser visto na Tabela 4. Este índice chega a 58,8% na região Nordeste.” Tab. 4 Agricultores Familiares – Percentagem de estabelecimentos segundo grupos de área total

Região Menos de 5 ha

5 a 20 ha 20 a 50 ha 50 a 100 ha 100a 150MR52

Nordeste 58,8 21,9 11,0 4,8 3,4 Centro-Oeste 8,7 20,5 27,3 18,8 24,6 Norte 21,3 20,8 22,5 17,9 17,4 Sudeste 25,5 35,6 22,7 9,9 6,3 Sul 20,0 47,9 23,2 5,9 2,9 Brasil 39,8 30,0 17,1 7,6 5,9

Fonte: Censo Agropecuário 1995/96 – IBGE. Adaptado de Novo Retrato da Agricultura Familiar no Brasil/ SNAF-MDA.2000. O critério tamanho do estabelecimento ou o de imóvel rural, a renda familiar e o

estabelecimento segundo a condição do produtor, como exemplos, não são nem necessários nem suficientes para darem conta da diversidade de situações (formas sociais de reprodução da família) daquelas famílias que se enquadrariam sob o conceito de camponês. Por exemplo, as quebradeiras de coco babaçu que extraem o coco de babaçuais “livres”, mas que se encontram em terras privadas, ou os varzeiros (como exemplos aqueles das várzeas da bacia hidrográfica do rio Amazonas) que exercitam o extrativismo pesqueiro e florestal, a agricultura ocasional (nas vazantes dos rios) e produzem artesanatos, e não tem, um e outro (quebradeiras de coco e varzeiros), como referência nem a posse nem o domínio da terra e cujos rendimentos são de difícil identificação formal, são camponeses e não são contemplados pelas estatísticas oficiais.

52 15MR: 15 vezes o Módulo Regional

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“De acordo com os dados do Censo Demográfico de 2000, cinco milhões de famílias rurais vivem com menos de dois salários mínimos mensais – cifra esta que, com pequenas variações, é encontrada em todas as regiões do país. (Tabela 5)” (Proposta de PNRA, 2003: 6).

Apesar da informação estratificada (Tab. 5) seria difícil se afirmar que os camponeses seriam aquelas famílias residentes em domicílios permanentes na zona rural que se encontram nos estratos de até 5 salários de rendimento mensal nominal, considerando-se que há número relevante de camponeses com rendimento nominal mensal muito superior a 5 salários mínimos.

Tabela 5 – Brasil - Famílias residentes em domicílios permanentes na zona rural por classe de rendimento familiar, rendimento nominal médio mensal e valor nominal mediano mensal.

Classe de rendimento

nominal mensal em salários mínimos

º de famílias

% Participação acumulada

Renda média

Renda Mediana

Total Rural 7.890.548 100,00 429,44 250,00 Até ½ 970.836 12,30 12,30 3,41 0,00 Mais de ¼ a ½ 331.535 4,20 16,50 55,28 50,00 Mais de ½ a 1 1.653.419 20,95 37,45 131,62 150,00 Mais de 1 a 2 2.021.284 25.61 63,06 248,22 250,00 Mais de 2 a 3 1.022.719 12,96 76,02 387,41 391,00 Mais de 3 a 5 976.858 12,38 88,40 585,05 581,00 Mais de 5 a 10 628.877 8,00 96,40 1.032,23 1.000,00 Mais de 10 a 15 135.709 1,70 98,10 1.849,32 1.831,00 Mais de 15 a 20 58.737 0,75 98,85 2.637,41 2.600,00 Mais de 10 a 30 43.341 0,55 99,40 3.672,97 3.600,00 Mais de 30 47.234 0,60 100,00 10.023,87 6.500,00

Fonte dos dados: Censo Demográfico 2000/IBGE. Fonte da tabela: Proposta de Plano Nacional de Reforma Agrária, Brasília, outubro de 2003.

“(...) O Brasil dispõe de duas categorias para cadastramento e censo de terras, quais sejam: estabelecimento ou unidade de exploração, que é adotada pelos censos agropecuários do IBGE, e imóvel rural ou unidade de domínio, que é adotada pelo cadastro do INCRA, para fins tributários. Todas as estatísticas que configuram a estrutura agrária atém-se a estas e somente a estas categorias. As terras indígenas, em decorrência da figura da tutela, são registradas no Serviço do Patrimônio da União. As terras das comunidades remanescentes de quilombo, também recuperadas pela Constituição Federal de 1988, através do Art. 68 do ADCT, devem ser convertidas, pela titulação definitiva, em imóveis rurais. Claúsulas de inalienabilidade, domínio coletivo e costumes e uso comum dos recursos juntamente com fatores étnicos, tem levantado questões para uma visão tributarista que só vê a terra como mercadoria passível de taxação, menosprezando dimensões simbólicas. Em suma, uma nova concepção de” cadastramento se impõe, rompendo com a insuficiência das categorias censitárias instituídas e levando em consideração as realidades localizadas e a especificidade dos diferentes processos de territorialização.

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Sem haver ruptura explícita com tais categorias assiste-se a tentativas várias de cadastramento parcial como apregoa a Portaria n.06 de 1o. de março de 2004 da Fundação Cultural Palmares, que institui o Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades de Quilombo, nomeando-as sob as denominações seguintes: ‘terras de preto, mocambos, comunidades negras, quilombos’ dentre outras denominações (Almeida, 1989). Ora, a própria necessidade de um cadastro aparte releva uma insuficiência das duas categorias classificatórias, ao mesmo tempo em que confirma e chama a atenção para uma diversidade de categorias de uso na vida social que demandam reconhecimento formal. Aliás, desde 1985, há uma tensão dentro dos órgãos fundiários oficiais para o reconhecimento de situações de ocupação e uso comum da terra, ditadas por “tradição e costumes”, por práticas de autonomia produtiva - erigidas a partir da desagregação das plantations (algodoeira, açucareira, cafeeira) e das empresas mineradoras - e por mobilizações sociais para afirmação étnica e de direitos elementares. Um eufemismo criado no INCRA em 1985-86 dizia respeito a “ocupações especiais”, no Cadastro de Glebas, onde se incluíam nos documentos de justificativa, as chamadas terras de preto, terras de santo, terras de índio, os fundos de pasto e os faxinais dentre outros.

O advento destas práticas e a pressão pelo seu reconhecimento têm aumentado desde 1988, sobretudo na região amazônica, com o surgimento de múltiplas formas associativas agrupadas por diferentes critérios tais como: raízes locais profundas, fatores político-organizativos, autodefinições coletivas, consciência ambiental e elementos de identidade. A estas formas associativas expressas pelos novos movimentos sociais, que objetivam os sujeitos em existência coletiva (Conselho Nacional dos Seringueiros, Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, Coordenação Nacional de Articulação das comunidades negras rurais quilombolas, Movimento dos Fundos de Pasto...) correspondem territorialidades específicas onde realizam sua maneira de ser e sua reprodução física e social.” (Almeida, 2004: 2)

O tamanho da área do imóvel é um critério impreciso e insuficiente, tendo em vista

que parte substancial dos camponeses não possue o domínio do imóvel. Se definirmos, à guisa de hipótese, que são camponesas aquelas famílias que possuem o domínio e ou a posse de imóveis com área abaixo de 50 hectares, como se enquadrariam os agroextrativistas do látex da borracha que demandam como mínimo três “colocações” que abrangem área sempre muito superior a essa? E aqueles varzeiros de certas regiões do rio Amazonas que em função do regime de vazantes e cheias e do formato da calha do rio demandam até 200 hectares de terras para darem conta de exercerem uma das suas atividades que é plantar na vazante?

Como exemplo pode-se citar a constatação de Hebette (op. cit.: 14) com relação ao

Estado do Pará: “Quantos são, finalmente, embora aproximativamente, os estabelecimentos camponeses do Pará? Aceitando que, no caso do Pará, o critério de área inferior a 200ha seja válido para circunscrever o campesinato; o número de estabelecimentos seria de 193.453, ou seja 93,7% do total dos estabelecimentos paraenses, cobrindo 7.162.289 ha, ou seja 31,8% do total da área desses estabelecimentos.”

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A desigual distribuição do acesso à terra no país demonstrada pa estrutura fundiária, ainda que injusta, não informa se os proprietários de imóveis menores do que 50 hectares são camponeses ou não. Mesmo quando se constata, como a citação adiante, que a maior parte das famílias que habitam no campo e situam-se abaixo da linha da pobreza poderiam ser consideradas como camponesas, pois o fato de residirem no campo não as identifica como camponesas segundo a conceituação aqui empregada. Por exemplo, os assalariados permanentes e os temporários não são camponeses, a não ser que acumulem essas duas práticas sociais: camponês e ocasionalmente venda da força de trabalho.

“A estrutura fundiária brasileira caracteriza-se pela elevada concentração da propriedade da terra. Esta característica dá origem a relações econômicas, sociais, políticas e culturais cristalizadas em uma estrutura agrária inibidora do desenvolvimento, entendido este como: crescimento econômico, justiça social e extensão da cidadania democrática à população do campo. (Tabela 6)”

“Essa estrutura agrária, herança de 500 anos de história, gera pobreza, desigualdade e exclusão no meio rural. Não obstante a modernização da agricultura brasileira nestes últimos 30 anos e o bom desempenho desse setor, tanto na conformação do PIB brasileiro quanto na balança comercial, a maior parte das famílias que habitam no campo situa-se abaixo da linha de pobreza.” (Proposta de PNRA, 2003: 5).

Tabela 6. – Estrutura Fundiária Brasileira - 2003 Estratos de área

total imóveis

% dos imóveis

área total % de área área média

Até 10 há 1.338.711 31,6 7.616.113 1,8 5,7De 10 a 25 há 1.102.999 26,0 18.985.869 4,5 17,2De 25 a 50 há 684.237 16,1 24.141.638 5,7 35,3

De 50 a 100 há 485.482 11,5 33.630.240 8,0 69,3De 100 a 500 há 482.677 11,4 100.216.200 23,8 207,6

De 500 a 1000 há 75.158 1,8 52.191.003 12,4 694,4De 1000 a 2000 ha 36.859 0,9 50.932.790 12,1 1.381,8

Mais de 2000 há 32.264 0,8 132.631.509 31,6 4.110,8 Total 4.238.421 100 420.345.382 100 99,2

Fonte dos dados: Cadastro do Incra – situação em agosto de 2003 Fonte da tabela: Proposta de Plano Nacional de Reforma Agrária, Brasília, outubro de 2003.

Se utilizarmos a categoria imóvel para delimitarmos empiricamente os camponeses

seria impossível utilizar o estrato menos de 200 has, conforme sugerida por Hebette. Se adotarmos como limite máximo o estrato menos de 100 has teríamos um total de 3,6 milhões de imóveis supostamente ce camponeses, ou seja, 85,2 % do total dos imóveis. Segundo o Censo Agropecuário de 95/96 seriam estabelecimentos familiares um total de 4,14 milhões de estabelecimentos ocupando uma de 85,2% da área total de estabelecimentos do país. O MDA/SAF para o Plano de Safra 2003/2004 considera 4,1 milhões de “agricultores familiares”. Há, portanto, insuficiência empírica na quantificação do que aqui se denomina de campesinato.

No Plano Safra 2003/2004 calculou-se que 4,1 milhões de estabelecimentos seriam

considerados como de “agricultura familiar”. Essa cifra acompanha de perto as cifras do

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Censo Agropecuário do IBGE 1995/96 que permitiu enquadrar 4,139 milhões de estabelecimentos como de “agricultura familiar”, abrangendo 85,2% do total de estabelecimento do país. Deste total 49,7% (2,055 milhões de estabelecimentos familiares) encontra-se no Nordeste brasileiro.

No entanto, “(...) cabe notar que o Censo Agropecuário, como observaram Hoffmann e Graziano da Silva (1999), ‘não captou a totalidade dos estabelecimentos de natureza precária, particularmente os dos pequenos parceiros ou arrendatários’, em função do período de coleta das informações desse Censo ter se dado na época da entressafra. Assim, pode-se considerar que os estabelecimentos com área insuficiente são de maior envergadura. Ou seja, o público potencial de 3,5 milhões de estabelecimentos segundo o critério de insuficiência de área, está subestimado (in Proposta do PNRA, 2003)”.

Esses estabelecimentos com área insuficiente não foram devidamente contemplados no conceito de agricultura familiar adotado no Censo Agropecuário do IBGE 1995/96.

Portanto, segundo as estatísticas formais e oficiais, imprecisas, inadequadas e subestimadas para o caso em apreço, há 4,1 milhões de famílias que seriam consideradas como “agricultura familiar”, 3,5 milhões de famílias com área insuficiente e aproximadamente 400 mil famílias de extrativistas e populações indígenas camponeizadas, totalizando 8 milhões de famílias aqui consideradas como camponesas.

O critério tamanho do estabelecimento ou o de imóvel rural, a renda familiar e o

estabelecimento segundo a condição do produtor, como exemplos, não são nem necessários nem suficientes para darem conta da diversidade de situações (formas sociais de reprodução da família) daquelas famílias que se enquadrariam sob o conceito de camponês. Por exemplo, as quebradeiras de coco babaçu que extraem o coco de babaçuais “livres”, mas que se encontram em terras privadas, ou os varzeiros (como exemplos, aqueles das várzeas da bacia hidrográfica do rio Amazonas) que exercitam o extrativismo pesqueiro e florestal, a agricultura ocasional (nas vazantes dos rios) e produzem artesanatos, e não tem, um e outro (quebradeiras de coco e varzeiros), como referência nem a posse nem o domínio da terra e cujos rendimentos são de difícil identificação formal, são camponeses e não são contemplados pelas estatísticas oficiais.

O campesinato está presente na sociedade brasileira com o seu modo de ser e de

viver. Foi, em 2003, o responsável por 40% do PIB agrícola e por 74% dos empregos rurais, segundo o Ministério de Desenvolvimento Agrário – MDA, ainda que essa categoria “emprego” seja inadequada para revelar o número de pessoas envolvidas como camponeses.

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3. REPESADO O REFERECIAL TEÓRICO DO CAMPESIATO 3.1. Elementos para uma teoria econômica do campesinato53

A noção de campesinato aqui desenvolvida herda de Chayanov a ênfase na centralidade das necessidades reprodutivas da família no processo decisório da “empresa camponesa”, que, assim, constitui uma unidade — reforce-se, indissociável — entre esfera de produção e esfera de consumo.

A proposição de centralidade da reprodução na percepção da especificidade camponesa permite diferenciar de forma vigorosa a unidade camponesa de outras estruturas presentes no agrário das sociedades capitalistas, em particular da empresa capitalista. Empresas capitalistas supõem a centralidade do lucro como fundamento da racionalidade decisória de seus componentes.

Distinguindo estruturas que se centram na reprodução, de estruturas que se centram

no lucro, não se exclui o lucro da realidade camponesa. Longe disso. A hipótese é que, nessa realidade as expectativas em relação às necessidades e condições reprodutivas vêm primeiro: se forem atendidas, mesmo que expectativas de lucro se frustrem reiteradamente, a unidade produtiva camponesa continua em funcionamento e muito provavelmente não alterará, “só” por isso, sua rotina. Do mesmo modo, não se exclui a busca da formação de elementos de capital — a acumulação de meios de produção —como traço da realidade camponesa. Entende-se, isto sim, que tais processos se subordinam, também, às condições e necessidades reprodutivas. De modo que, ao contrário dos empreendimentos que acumulam para maximizar lucro, a unidade camponesa acumula para tornar mais eficiente a reprodução.

O fenômeno da vinculação parcial ao mercado não é tratado como um traço distintivo que se manifestaria apenas em condição de tradicionalidade — quando o produtor familiar rural seria (estritamente) camponês —, sumindo de modo irreversível nos processos que produzem o agricultor familiar, pois a integração do produto do trabalho camponês ao mercado “... nem sempre é, mas sempre poderá vir a ser parcial” (Costa, 1995), uma vez que essa possibilidade deriva de uma capacidade da produção familiar rural e é, por isso, um componente de sua natureza enquanto economia centrada na reprodução. Essa característica pode manifestar-se a qualquer momento, em qualquer uma das suas formas. Nesse sentido, o produtor especializado, inserido 100% no mercado, não corporifica, a priori, o resultado de um processo já concluído de extermínio dos camponeses — sujeitos sociais da produção familiar rural. Ele pode ser, antes, uma forma de sua permanência54.

53 O texto desta seção 3.1. foi extraído do cap. 4 da obra de Costa, Francisco A. (2000). Formação Agropecuária da Amazônia: os desafios do desenvolvimento sustentável. Belém, NAEA. 54

Tepicht trata de forma ambígua tais questões. Por um lado, entende a inserção parcial dos camponeses no mercado corno um distintivo estrutural quando os diferencia dos artesãos: “No que se refere às estruturas,

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Ademais, nada, absolutamente nada incompatibiliza estruturalmente o uso da

capacidade de inserção parcial nos mercados com a disponibilidade de informações plenas de seus mecanismos e conjunturas, tanto no que se refere a fatores, inclusive ao trabalho, quanto a produtos. A rigor, tal conhecimento, nos níveis mais avançados, potencializados pelos desenvolvimentos atuais e em perspectiva da informática e da comunicação, pode permitir uma gestão moderna, uma redefinição do papel da alternatividade55 em relação ao mercado que as estruturas camponesas podem desfrutar.

As unidades de produção camponesas são estruturas distintas dos empreendimentos capitalistas porque centradas na reprodução dos seus trabalhadores diretos. Todavia, enfatize-se que elas reproduzem sua especificidade na realidade social do capitalismo, dado que, aqui como alhures, campesinato supõe mercado.

Na unidade produtiva familiar agrícola tende a prevalecer uma racionalidade

fortemente orientada pela fusão entre esfera de produção e esfera de consumo e, a isso associado, pelo balanço das necessidades (histórica e culturalmente determinadas) em relação à disponibilidade interna de capacidade de trabalho – seja este direto ou gerencial - do grupo familiar.

Costa (1995, 1998, 1989) leva esta possibilidade bem longe e, assumindo as

conseqüências lógicas e teóricas da “centralidade da razão reprodutiva”, que atribui a esta tradição, formula um modelo baseado em três premissas:

Primeira premissa

A unidade produtiva camponesa tende a ser regulada em seu tamanho e em sua capacidade de mudar pela capacidade de trabalho que possui enquanto família. Sendo tal capacidade Ht, este montante tenderá a ser um limite, tanto para garantir a reprodução, como para empreender inovações. Essa premissa não é incompatível com a recorrência da contratação de força de trabalho externo à família, que sempre se constata empiricamente em universos camponeses. Estabelece, em relação a isso, que tais contratações tem desdobramentos sobre a extensão e intensidade do uso da capacidade de trabalho própria à família – tanto nas suas alocações diretas, quanto na gestão do processo produtivo – sendo, portanto, limitadas por essa capacidade interna.

Segunda premissa

As forças que emergem das tensões contrárias – umas originadas das necessidades reprodutivas, que impulsionam ao trabalho, e outras provindas das tensões associadas ao

salientamos que somente parte da produção do camponês é comercializável, enquanto que aquela do artesão não tem outro fim que o mercado” (Tepicht. 1973:18) (tradução literal por HMC). Em outro momento, seguindo Mendras, a inserção parcial tem o propósito de diferenciar o camponês tanto dos produtores familiares cuja produção é completamente comercializável, quanto dos produtores categorizados como de subsistência (conf. Tepicht, op. cit.: 18 e 27). 55 Ver a discussão sobre a alternatividade em Garcia Jr. (1983). Para grupos camponeses amazônicos ver Costa (1997b e 2000).

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próprio exercício do trabalho, que apelam ao lazer56 – estabelecem, pela experiência pessoal dos componentes da família e sua vivência cultural, um padrão reprodutivo.

O que chamamos aqui padrão reprodutivo envolve certa configuração da

distribuição do trabalho por um conjunto de atividades, cujos resultados entram direta ou indiretamente no processo produtivo — na forma de meios de produção — ou reprodutivo — na forma de meios de consumo. É, pois, um padrão de produção associado a um padrão de consumo produtivo — isto é, que se faz como necessidade estrita do processo de trabalho — e reprodutivo —inerente às necessidades de manutenção do grupo familiar e seus fundamentos de trabalho.

O padrão reprodutivo constitui-se, portanto, de um hábito de consumo familiar

ajustado a uma rotina de trabalho entendidos – isto é, subjetivamente avaliados – como adequados. Esse padrão reprodutivo cria um ponto de acomodação a um nível de aplicação de trabalho que anotamos como He.

He é necessariamente menor ou igual a Ht (capacidade de trabalho potencial total

que possui a família), e tem dois componentes: ⋅ um equivale aos bens diretamente consumidos pela família (Hv) resultantes do

hábito de consumo familiar; ⋅ e outro que equivale ao que Tepicht (1973) chamou de consumo produtivo da

família, quer dizer, à necessidade de manutenção dos meios de produção aplicados (Hc) decorrentes da rotina de trabalho.

Então, He = Hv + Hc, sendo que He será sempre menor ou igual a Ht. He é denominado de orçamento de reprodução (da unidade de produção

camponesa).

Terceira premissa

As relações com os demais setores, que se fazem por múltiplas mediações, algumas imediatas outras mediatas, estabelecem as condições de realização de He, ou seja do orçamento de reprodução. Assim, em decorrência dessas relações com outros setores, ou do envolvimento da família camponesa com a sociedade envolvente, He realiza-se por Hr.

Hr é o dispêndio efetivo de trabalho dos membros da família, de modo que Hr é

diferente, sendo, tendencialmente, maior ou igual a He e, necessariamente, menor ou igual a Ht. Trabalha-se, de fato, na unidade camponesa, em algum ponto entre o ponto de acomodação e o máximo de trabalho de que se poderia dispor.

56 Ou substanciam uma aversão à penosidade do trabalho. Alguns autores acham que essa é a característica mais marcante da racionalidade camponesa. Ellis (1988: 102-119) entende, até, que a teorização de Chayanov dá conta apenas de um “drudgery-averse peasant”.

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Pelo que já se mencionou na primeira premissa sobre a possibilidade de contratação de força de trabalho externa, todavia, o trabalho total aplicado à produção poderá ser maior que Ht.

O que estabelece a diferença entre Hr e He são as condições de permuta entre o

trabalho despendido pelos membros da família, mediado pelas condições próprias da unidade produtiva, e o trabalho desenvolvido em outros ramos e setores produtivos, bem como em outras esferas do sistema econômico, entre os quais se destaca a esfera da circulação de mercadorias como a mais evidente57.

A unidade de produção familiar seria, pois, um sistema, cujas necessidades

reprodutivas organizam-se atendendo a dois conjuntos de forças e a uma restrição fundamental. Atende às forças que estabelecem He (bens diretamente consumidos pela família e necessidade de manutenção dos meios de produção aplicados) e às que estabelecem Hr (dispêndio efetivo de trabalho dos membros da família).

As primeiras forças que estabelecem He atuam como centro de gravidade e atrator

de Hr, agindo de tal modo que Hr � (tenda a) He; as segundas atuam dispersando Hr em relação a He, de forma que Hr � (tenda a) Ht, este último constituindo a restrição básica do sistema. Por outra parte, as condições que determinam Hr introjetam na unidade camponesa as tendências e instabilidades do sistema envolvente.

Daí três considerações necessárias: Primeira consideração

Quanto mais próximo Hr esteja de He, mais eficientemente funciona o sistema, de sorte que a relação

He — = h, onde Hr

57 He (lembre-se, a reprodução) da unidade camponesa realiza-se, assim, mediada pela “filtragem” que as condições sociais (isto é, do todo econômico e social) imediatas (m e u) e mediatas (ρρρρ,ωωωω e τ) fazem do trabalho concretamente aplicado pelos seus membros. Aqui se cumprem os parâmetros da determinação social das condições de reprodução de cada unidade camponesa em particular.

H e

H rh= , sendo h ou eficiência da reprodução (1)

e

)1.()1(+1

1=

1

jumh

−⋅⋅+−

τρ (2)

para m representando a taxa de lucro das mediações mercantis, ρ, a relação de preços entre os produtos vendidos e os produtos comprados, e τ, a relação entre a produtividade média da indústria e a produtividade média da produção agrícola em questão e, finalmente, u, a proporção da produção que é por ela auto-consumida.

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h é a mais importante medida de eficiência do sistema unidade camponesa, a que chamamos de eficiência reprodutiva — grandeza que necessariamente varia entre 0 e 1 e expressa, observando-se pela ótica microeconômica, a capacidade do sistema de internalizar, reter em seu proveito, o trabalho por ele próprio despendido (ver Costa, 1995).

Segunda consideração

A eficiência reprodutiva não é, como a gravidade na física e o valor em economia, imediatamente dada a perceber aos indivíduos que participam do sistema. Dito de outro modo trata-se também aqui de fenômeno só sensorial ou intuitivamente perceptível pelos indivíduos através de seu efeito, a tensão reprodutiva. Trata-se de uma grandeza que expressa a tensão resultante do crescimento do volume de esforço físico (Hr) para posição de consumo constante (He), ou de deterioração dessa posição de consumo relativamente a Hr. Terceira consideração

As condições que determinam Hr produzem um estado de incerteza — pois às

incertezas da natureza somam-se as incertezas do sistema envolvente, cuja prevenção exige, da unidade camponesa, o controle da variância da sua eficiência reprodutiva no tempo. Não basta, numa sucessão de anos, que h (medida da eficiência reprodutiva) seja, em média, muito elevado. É necessário que ele não oscile a ponto de por em risco a reprodução em qualquer ano.

Indicadores empíricos e fortes argumentos teóricos indicam ser a relação de preços

entre agricultura e indústria, por razões estruturais, tendencialmente desfavoráveis à agricultura; a produtividade média de mercado dos produtos camponeses tende a crescer no tempo, mas em velocidade inferior à produtividade da indústria. A primeira dessas tendências leva a um questionamento contínuo da relação entre produtividade física da produção local e dos mercados mais amplos em que se insere (nacional, mundial), e a segunda, ao crescimento da relação entre a produtividade na indústria e na agricultura.

Tais tendências constituem forças que redefinem continuamente as condições reprodutivas das unidades camponesas, produzindo uma deterioração sistemática da sua eficiência reprodutiva (h) e manifestando-se conjuntural e localmente por oscilações bem drásticas. A prevenção de variações exige que as unidades camponesas controlem a variância da sua eficiência reprodutiva no tempo. Por isso, a diversificação é um componente inerente à perspectiva de eficiência reprodutiva — tornando-se um dos traços de natureza (nem sempre manifesto) da economia camponesa.

Eficiência, tensão reprodutiva e propensão ao investimento

A dinâmica inovativa do sistema resulta fundamentalmente da motivação de seus membros em despender o trabalho extraordinário que se faz necessário e da disponibilidade efetiva (quer dizer, objetiva) de trabalho para tanto — esta determinada pelas condições sociais de sua reprodução.

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A motivação da família para investir, na tradição chayanoviana aqui compartilhada, está diretamente associada à distância relativa de Hr (volume de trabalho realmente despendido) em relação a He (valor das necessidades reprodutivas). Para Chayanov tal motivação seria suficientemente descrita pela relação (Hr-He)/He. Entendemos, todavia, que se tem que ter presente que a disponibilidade objetiva de energia para tanto é dada, por sua vez, pela relação (Ht-Hr)/Ht — isto é, pela disponibilidade de trabalho potencialmente aplicável na inovação58 como uma proporção de Ht (uma medida do grau de liberdade do sistema em relação às condições de determinação de Hr).

Da relação entre a tensão e a decorrente disposição para mudança e as condições

objetivas para tal — é dizer, da relação entre os graus de tensão, o estoque de meios de produção (entre os quais se destaca a terra), de técnicas e saberes acessíveis, além dos níveis de disponibilidade de trabalho extraordinário para proceder à mudança —, resulta o investimento efetivo. Tal esforço, contudo, será sempre um processo de atualização de um possível, ou seja, de materialização de uma possibilidade futura.

Assumimos, a partir daí, que as condições para que existam investimentos numa unidade camponesa são:

⋅ o nível de tensão determinado pelas macrocondições da reprodução da unidade familiar, estas últimas expressas na eficiência reprodutiva;

⋅ a expectativa, por parte dos membros da família, de que a tensão reprodutiva no futuro será maior que a atual, se não houver uma ação de mudança;

⋅ a expectativa de que as alternativas que se colocam para a mudança levarão a uma tensão reprodutiva menor no futuro;

⋅ a avaliação de que o esforço necessário para a mudança não se coloca em nenhum momento acima de imax

59 quer dizer, do máximo de trabalho capaz de ser arregimentado pela família para o processo de mudança, sem comprometer as necessidades de reprodução simples.

A “empresa camponesa”, diferentemente da empresa capitalista, não se relaciona

com o trabalhador apenas como portador de uma jornada de trabalho, que se renova a cada contrato --- ou deixa de existir por um ato unilateral de vontade. Aqui, o trabalhador é, por inteiro, seu componente e sua potência de trabalho.

A tensão reprodutiva, num dado momento, as expectativas de sua evolução no

tempo e a capacidade interna de arregimentação de trabalho condicionam a disposição para investir, a propensão a mudar com vistas à eficientização das condições reprodutivas.

A estabilidade de um padrão reprodutivo requer, em última instância, diversidade. Na economia camponesa, a diversidade total que fundamenta a estabilidade de um padrão

58

Essa mobilização de trabalho pode ser ex-ante (para formar a poupança necessária) ou expost (para honrar endividamento resultante) da inovação, ou corresponder, ela própria, à formação de meios de produção naquilo que Tepicht (1973) chamou de “auto-consumo produtivo”. 59 (imax)) é taxa de investimento máximo para recuperar a eficiência reprodutiva (h).

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reprodutivo resulta de dois tipos de diversidade: diversidade de produtos e diversidade de usos — mais amplamente, destinações — desses produtos.

A forma do investimento resulta do fato de que o esforço de mudança orienta-se,

sempre, para a elevação do rendimento da família (o que equivaleria à elevação do rendimento médio de cada unidade de trabalhador-equivalente).

A propensão ao investimento i (proporção do tempo de trabalho extraordinário que o conjunto dos membros da família provavelmente se disporá a alocar para formar elementos de capital, em relação ao tempo total de trabalho potencialmente utilizável) é uma função da tensão reprodutiva (o inverso da eficiência reprodutiva h) e percorre uma trajetória parabólica: seu valor tende a zero quando h tende a 1 (eficiência máxima e ponto de acomodação) ou a ββββ (em que todo trabalho disponível só permite o atendimento da reprodução simples).

A forma parabólica da “função investimento” (gráfico adiante) camponês traz consigo de imediato uma importante conseqüência lógica: há taxas idênticas de investimento provável para níveis de eficiência e, portanto, graus de tensão simétricos. Quando essa simetria tende a zero, a propensão a investir tende ao máximo. A implicação teórica disso é que, assumida a centralidade da reprodução, a racionalidade atribuível a essa reprodução pode explicar uma igualmente baixa disposição para investir em situações muito favoráveis (em que h tende a 1, seu valor máximo) — ou avaliadas favoravelmente, de modo a não haver razões subjetivas para mudar — ou muito desfavoráveis, em que a condição objetiva básica para inovar, a disponibilidade de trabalho extra, tende a zero. A mesma racionalidade pode explicar, pois, tanto disposições modernas de constante inovação, quanto tradicionais de acomodação e resistência à mudança.

Fonte: Desenvolvido por Costa (2000).

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E as unidades camponesas respondem a tais condições em dinâmicas adaptativas, associadas a uma maior ou menor disposição para o investimento (na forma como aqui foi conceituado, de dispêndio de trabalho extra), cuja efetivação resulta em novos arranjos técnicos com maior ou menor capacidade de restauração dos níveis de eficiência reprodutiva.

Na função de investimento, as seqüências de taxas que se formam, numa sucessão

de anos, como resultado de uma mudança inicial de eficiência reprodutiva, seguem padrões bem claros. Tais padrões são, além do mais, fortemente diferenciados em função da posição inicial do movimento que alterou a eficiência reprodutiva.

--------x-------- 3.2. Dimensão sócio-política e cultural

Conforme Eduardo Sevilla Guzmán60 sugeriu para reflexão: “Me atreveria a definir o campesinato como una forma de manejar os recursos naturais que permite a reprodução do homem e a natureza (que são um todo) conservando a biodiversidade ecológica e sóciocultural. A agroecologia é uma forma de entender e atuar para campenisar a agricultura, a pecuária e o florestamento (e o agroextrativismo – HMC), a partir de uma consciência intergeneracional (não exploração de crianças e velhos) de classe (não exploração do capital ao trabalho), de espécie (não exploração dos recursos naturais), de gênero (não exploração do homem à mulher), de identidade (não exploração entre etnicidades).”

O padrão reprodutivo referido na seção anteriormente foi considerado como ... constitui[ndo]-se... de um hábito de consumo familiar ajustado a uma rotina de trabalho entendidos – isto é, subjetivamente avaliados – como adequados.... O hábito de consumo familiar é determinado por fatores internos e externos à família. Os internos poderiam ser denominados como aquelas preferências subjetivas e objetivas que os membros da família foram adquirindo nos processos de socialização secundária no cotidiano de suas vidas. Essas socializações determinadas pelo parentesco, vizinhança e a cultural local, entre outros, se expressam nas vontades e práticas de consumir bens e serviços necessários (ou assim considerados) à sua reprodução como pessoas e famílias. Os fatores externos são constituídos pela “moda” de consumo de bens e serviços induzida pelos meios de comunicação de massa e pelos valores consumistas dominantes.

A partir de Carvalho (2002: 27-28) pode-se supor que as famílias camponesas, em maior ou menor grau de intensidade e diversidade, adotaram uma matriz de consumo, amplo senso, tipicamente urbano. Isso quer dizer, por exemplo, que os itens que compõe a dieta alimentar dessa população rural obedecem àqueles valores de consumo induzidos pelos meios de comunicação de massa, em especial a televisão. São determinados pela

60 E-mail dirigido a Horacio Martins de Carvalho, no início de 2004.

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moda de consumo das classes médias urbanas. Assim, a denominada produção para autoconsumo, em particular os itens de consumo alimentar como as olerícolas, as proteínas de origem animal e os carboidratos, são adquiridos em supermercados urbanos, nas cantinas dos distritos rurais ou nos mercados das cooperativas e ou associações de produtores.

Para que essa prática de consumo possa ser exercida plenamente é necessário que essas famílias obtenham rendimentos monetários compatíveis com os gastos mensais e ou anuais efetuados com tais despesas, sejam elas com alimentos, vestuários, móveis, transporte próprio, etc. O mesmo raciocínio poderia ser aplicado no processo de aquisição dos insumos para a produção e ou extrativismo. Entretanto, em decorrência da crise de realização dos produtos por eles produzidos no processo de trocas comerciais, esses produtores não obtêm excedentes monetários suficientes para arcar com a totalidade desses tipos de gastos ou para manterem hábitos de consumo similares aos das classes médias.

O outro componente, dialeticamente interligado com os hábitos de consumo familiar no âmbito do conceito de padrão reprodutivo, é aquele denominado rotinas de trabalho, as quais podem ser agrupados no que se denomina de matriz de produção e tecnológica.

Essa ou essas matrizes são conseqüência das articulações particulares entre o modo

de apropriação da natureza que é determinada pela cultura local (saberes, hábitos de cultivos e criações, religiosidade, supertições) e pela correlação de forças políticas no nível mais geral da sociedade global que determina ou induz à adoção de tecnologias de interesses dos grandes grupos econômicos.

A matriz tecnológica dominante tem sido induzida pela pressão das grandes

empresas multinacionais de insumos (nela incluída as sementes híbridas e transgênicas, agrotóxicos, fertilizantes químicos industriais, herbicidas, hormônios) através das políticas públicas agrícolas (pesquisa agropecuária, crédito rural e assistência técnica), pela pressão na compra dos produtos agrícolas por outro grupo de empresas multinacionais relacionadas economicamente com aquelas dos insumos, e pelos valores hegemônicos aceitos como naturais pelas classes dominantes e veiculados pelos meios de comunicação de massa para toda a população. Entre esses valores estão presentes o consumismo, a pseudomodernidade tecnológica através do modo de apropriação da natureza capital-intensivo ecologicamente predatório, a competitividade pelo ganhar mais sem escrúpulos e a ridicularização intencional do camponês como sinônimo do atraso tecnologia e de modo de viver. A dimensão sociológica e a política sugerem caminhos para a superação dos valores, comportamentos pessoais e familiares e hábitos de trabalho impostos pelas classes dominantes para o conjunto da sociedade e, nela, para a deterioração pela negação continuada dos modos de viver e ser do camponês. Como superação está-se compreendendo a afirmação da diversidade e da equanimidade através da convivência crítica entre os diferentes, não no nível da produção capitalista, mas num mundo de interações sociais que se deseja socialmente renovado, mais igualitário e ecologicamente sustentável.

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Para que os camponeses se reproduzam socialmente com qualidade de vida e de trabalho sempre melhores e crescentes, portanto, com menor transferência do sobretrabalho familiar nas relações de trocas comerciais, seria necessário, mas não suficiente, que essas famílias readquirissem novas esperanças e vislumbrassem uma nova utopia. Seria fundamental, então, que a reafirmação da identidade social camponesa (e a do extrativista e a dos povos indígenas) fosse revivificada não pela volta à comunidade camponesa utópica pré-capitalista, mas segundo outros referenciais sociais capazes de constituírem uma ou várias identidades comunitárias de resistência ativa à exclusão social e de superação do modelo econômico e social vigente. Seria necessário que os novos referenciais sociais desse campesinato renovado, e inserido de maneira diferente da atual na economia capitalista, lhes permitissem desenvolver níveis mais complexos de consciência para que esta não comece nem acabe na vizinhança (...) (Martins, 1973: 28-29).

Amplo senso seria indispensável que os camponeses desencadeassem um processo de superação da construção de identidade social legitimadora para a afirmação de uma identidade social de projeto Castells (1999: 22 ss). Os camponeses que não aceitam os processos de exploração econômica e de dominação política pelas classes dominantes capitalistas construíram, de certa forma, uma identidade destinada à resistência. (...) Ela dá origem a formas de resistência coletiva diante de uma opressão que, do contrário, não seria suportável, em geral com base em identidades que, aparentemente, foram definidas com clareza pela história, geografia ou biologia, facilitando assim a “essencialização” dos limites da resistência... são... manifestações do que denomino exclusão dos que excluem pelos excluídos, ou seja, a construção de uma identidade defensiva nos termos das instituições/ideologias dominantes, revertendo o julgamento de valores e, ao mesmo tempo, reforçando os limites da resistência (Castells, op. cit: 25).

A construção de identidades sociais de resistência não propicia, ela em si, a produção de sujeitos sociais pela ausência de um projeto histórico. Entretanto, elas poderão facilitar, ao reverterem o julgamento de valores, que se construam identidades de projeto. É a construção desta identidade que produz sujeitos. Sujeitos não são indivíduos, mesmo considerando que são constituídos a partir de indivíduos. São o ator social coletivo pelo qual indivíduos atingem o significado holístico em sua experiência. *este caso, a construção da identidade consiste em um projeto de vida diferente, talvez com base em uma identidade oprimida, porém, expandindo-se no sentido de transformação da sociedade como prolongamento desse projeto de identidade (...) (Castells, op. cit.: 26).

Permanecer na terra como camponês é um ato social de resistência. (...) a “identidade destinada à resistência” leva a formação de comunas, ou comunidades, segundo Etzioni (Castells, op. cit: 25).

Ianni (1985) recordava que “(...) esse campesinato que parece ser disperso, atomizado, que está vivendo as suas condições de vida e trabalho, esse campesinato é um fermento da história, é um ingrediente das lutas sociais. As suas lutas, as suas reivindicações entram no movimento da história. Então, se coloca o problema de que o campesinato além de ser constituído de pequenos produtores, sitiantes, posseiros, colonos ou o que seja, além de lutarem pela terra, além de querer a posse e uso da terra e uma certa apropriação do produto do trabalho, o campesinato representa um modo de vida, um modo

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de organizar a vida, uma cultura, uma visão da realidade: ele representa uma comunidade61. E é o fato de que o campesinato constitui um modo de ser, uma comunidade, uma cultura, toda uma visão do trabalho, do produto do trabalho e da divisão do produto do trabalho é que faz do campesinato uma força relevante. Isto é, é isso que coloca o campesinato como uma categoria que mostra para a sociedade não simplesmente uma participação política, uma força, mas também um modo de ser. Aponta e reaponta continuamente uma outra forma de organizar a vida.”

O camponês como sujeito social caminha no sentido da hipótese formulada por Castells (1999:28) de que a constituição de sujeitos, no cerne do processo de transformação social, toma um rumo diverso do conhecido durante a modernidade dos primeiros tempos e em seu período tardio, ou seja, sujeitos, se e quando construídos, não são mais formados com base em sociedades civis que estão em processo de desintegração, mas sim como um prolongamento da resistência comunal [grifo no original]. Enquanto na modernidade a identidade do projeto fora constituída a partir da sociedade civil (como, por exemplo, no socialismo, com base no movimento trabalhista), na sociedade em rede, a identidade de projeto, se é que se pode desenvolver, origina-se a partir da resistência comunal. É esse o significado real da nova primazia da política de identidade na sociedade em rede.

A sociedade civil, enquanto espaço de poder onde os interesses individuais se consolidam a partir da sua compatibilização (ou não) com os interesses sociais coletivos, ou seja, onde se entrecruzam interesses privados com aqueles públicos, é em geral um espaço mediado pela lei vigente e, em decorrência, pelo Estado, enquanto responsável histórico pela garantia dos interesses coletivos ou públicos. Entretanto, como a ideologia das classes dominantes é a ideologia dominante para todas as classes sociais, em função dos processos de persuasão e de cooptação exercidos pelas vias institucionais da sociedade civil como a educação na família, a religião, a escola, os meios de comunicação de massa, o direito, as instituições governamentais, as forças armadas, as artes, entre tantas outras mediações, aquelas parcelas da população que negam essa direção intelectual e moral das classes dominantes, enquanto classe dirigente e pretensamente hegemônica, negam também, dialeticamente, essa sociedade civil existente. Ao negarem o Estado de classe em presença negam a própria relação entre a velha sociedade civil com esse Estado velho. Ensaiam, assim, construir novos espaços de relação entre o privado e o público, portanto, nova sociedade civil.

Esse processo de construção de uma nova sociedade civil (que nasce pela negação e superação da velha sociedade civil) esta se dando através de novas relações sociais a partir de identidades sociais de resistência ativa, no âmbito da sociedade em rede.

61 “(...) Sobre comunidade, vocês me permitam fazer uma co1ocação, a comunidade foi uma noção que está sendo divulgada em duas acepções mais freqüentes: uma a da Igreja que pensa uma comunidade de ovelhas, caricaturando, e outra é a do positivismo que esta na sociologia e na antropologia norte-americanas. E, então, vocês têm razão. Afinal, de que comunidade nós estamos falando? Eu não estou falando de comunidade empírica, positivista, nem muito menos de ovelhas. Eu estou pensando na comunidade, na acepção clássica do termo. E a acepção clássica e a que está em Rousseau, no Contrato Social. Está em Tönnies, está em vários autores de diferentes contextos e nas entrelinhas de alguns textos de Marx, por exemplo nas Formações Pré-Capitalistas.” (Ianni, 1985: 14)

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Ao mesmo tempo em que se ensejam alterações nas relações sociedade civil e

Estado, reformulando as instituições da sociedade civil, se estará proporcionando emancipações sociais continuadas (Carvalho, 2.002) dos camponeses ao romperem as suas dependências perante o grande capital monopolista, o Estado e as mediações políticas tradicionais como os sindicatos e os partidos (...)

As mudanças necessárias para que os camponeses possam resistir à opressão capitalista, ainda que inseridos na sociedade capitalista, tem como valor subjacente a valorização da pessoa humana e do meio ambiente.

Ainda que se almeje, como produtores rurais, a geração de renda familiar capaz de garantir qualidade de vida cada vez melhor, em face dos padrões internacionais do bem viver, e, portanto, renda essa que seja suficiente para dar conta da aquisição dos itens de consumo necessários à reprodução dos meios de vida e de trabalho não produzidos na unidade de produção, isso não significará que a retenção de um excedente dê-se conforme os valores da ideologia da classe dominante (...)

--------x--------- 3.3. Dimensão agroecológica 62

“O campesinato é a forma de manejo da natureza que na coevolução social e ecológica gerou cosmovisões específicas (quer dizer, uma forma de vida resultado de uma interpretação da relação homem natureza que estabelece a articulação de elementos para um uso múltiplo da natureza) mediante as quais desenvolve processos de produção e reprodução sociais, culturais e econômicos sustentáveis ao manter as bases bióticas e identitárias implicadas no mesmo.” (Guzmán, 2000: 11)

A produção camponesa se caracteriza, conforme sugestão de Toledo (1993), por:

⋅ alto grau de auto-suficiência; ⋅ predomínio do trabalho da família com mínimo uso de insumos externos (força

animal e humana mais que combustíveis fósseis como fonte de energia); ⋅ produção combinada de valores de uso e mercadorias (isso sem orientação ao

lucro e sim a reprodução da unidade doméstica); ⋅ buscarem continuadamente o acesso, sob diversas formas de apropriação da

natureza, aos recursos naturais.

Do ponto de vista da ecológica pode-se encontrar na produção camponesa:

62 Esta seção 3.3 está constituída por extratos do texto de Borba, Marcos Flávio da Silva (2004). Produção Camponesa. Bagé, mimeo, 12 p.

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⋅ alta eficiência energética dos sistemas tradicionais ao não incorporarem integralmente a modernização da agricultura, ainda que tenham adotado fragmentos dos pacotes tecnológicos mediante processos de desconstrução/reconstrução das tecnologias;

⋅ normas de produção geradoras de poucas externalidades negativas (contaminação ambiental, erosão da biodiversidade, destruição dos recursos naturais, exclusão social etc) e de externalidades positivas de alto interesse da sociedade (preservação dos recursos naturais, da diversidade cultural, da diversidade biológica e genética, das paisagens, do conhecimento tradicional, etc), além de produtoras de produtos alimentícios e matérias primas de elevada qualidade;

⋅ qualidade não só de produtos, mas fundamentalmente de processos. Aqui o conceito de qualidade deveria ser tratado como construção social (subjetivo, portanto) e não como algo objetivo determinado por padrões convencionais (cor, forma, embalagem, publicidade etc).

Nessa perspectiva se trata de promover novos arranjos entre os elementos

camponeses conhecidos, incorporando elementos previamente desconhecidos (como as inovações tecnológicas, por exemplo), num constante processo de re-criação de coerência entre os recursos naturais e humanos buscando novos arranjos socioeconômicos do mundo rural (Remmers, 2000); criando modernidades alternativas. Com isso se rompe a idéia de apatia do mundo rural tradicional, já que pressupõe uma continua renovação. Com a diferença que tal renovação não se constitui em fases evolutivas, nem tampouco se constrói sobre a base de intervenções meramente exógenas assentadas em idéias a priori sobre o que é o desenvolvimento. Propõe-se, então, a valorização de aspectos que até então estiveram fora do observável pela ciência, apoiada num processo que recobra o protagonismo dos atores sociais implicados que assim deixariam de ser meros recipientes ignorantes e passivos do conhecimento superior ou simplesmente objeto do conhecimento científico.

Um desenvolvimento que está baseado no descobrimento e na sistematização,

análise e potenciação dos elementos de resistência locais frente ao processo de modernização para, através deles, desenhar, de forma participativa, estratégias de desenvolvimento definidas a partir da própria identidade local do etnoecosistema concreto em que se inserem. Mais que tudo uma estratégia de localização do desenvolvimento.

Em palavras de Remmers (1998:11), [localização é] um processo que não

significa só a produção e o consumo de recursos num contexto espacial reduzido, ainda que possa significa-lo. Sobretudo é um “processo social em que as pessoas progressivamente percebem que tem um maior controle sobre a direção de suas vidas, num esforço para expressar e fazer valer, dentro de um contexto global e articulando-se com ele, a peculiar qualidade de seu lugar de vida, tanto na sua vertente de recursos naturais e humanos como na vertente de controle do processo de desenvolvimento”. Um processo que pode reverter e modificar o processo de globalização. “O endógeno não pode ser visualizado como algo estático e que refaz o externo. Ao contrário, o endógeno ‘digere’ o que vem desde fora, mediante a adaptação a sua lógica etnoecológica e sóciocultural de funcionamento.” (Guzmán, 2001: 41)

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O externo se incorpora ao endógeno quando tal assimilação respeita a identidade

local e, como parte dela, a auto-definição de qualidade de vida. Somente quando o externo não agride as identidades locais é que se produz tal assimilação. Ou seja, enquanto a produção de alimentos orientada ao mercado global e através de tecnologias exógenas, está cada vez mais desconectada dos princípios ecológicos, tratamos de aproveitar as características próprias de um modo de apropriação da natureza considerado tradicional, com sua história, seus conhecimentos e sua cultura; e a partir disso construir um modelo original de desenvolvimento, baseado numa racionalidade ambiental por cima da econômica-instrumental que caracterizou até então as formas predominantes de intervenção desenvolvimentista. Portanto, o desenvolvimento proposto está assentado em estratégias levadas a cabo na interface do local e o global, do tradicional e o moderno. (Borba, 2002)

--------x-------- 4. A ISUSTETABILIDADE DO ATUAL MODELO DE DESEVOLVIMETO

RURAL 4.1. Limites e contradições do modelo de desenvolvimento rural dominante 4.1.1. A hegemonia do agronegócio burguês63

Como agronegócio burguês compreende-se o conjunto de empresas capitalistas que direta ou indiretamente estão relacionadas como os processos de produção, de beneficiamento, de industrialização e de comercialização de produtos e subprodutos de origem agrícola, pecuária, florestal e agroextrativistas, e que são comercializadas com maior ou menor grau de beneficiamento predominantemente na Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F). Essas mercadorias são denominadas, na expressão comercial, de “commodities”. Elas são cotadas em dólares, em função de serem produtos preferenciais para a exportação e cuja cotação de preços é regulada pelo comportamento comercial desses produtos em outras praças no exterior. São exemplos de mercadorias denominadas de “commodities”:

⋅ Café em grão, cacau, tabaco em folhas ou beneficiado, soja e óleo de soja, milho e óleo de milho, algodão e óleo de algodão, laranjas in natura, sucos concentrados de laranja e outros citrus, vinho, álcool de cana-de-açúcar, açúcar, couros, etc;

⋅ Aves abatidas e congeladas, suínos abatidos e congelados, carne bovina congelada etc.;

⋅ Madeira em tábuas ou beneficiada, madeira em toras, pasta de celulose etc.

63 Esta seção contempla parcelas de textos do documento Carvalho, Horacio Martins (2004). O impacto negativo do agronegócio burguês na sociedade brasileira. Curitiba, novembro, mimeo, 20 p.

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Essas mercadorias são comercializadas na BM&F através de contratos. Em agosto de 2004 o mercado futuro dessa Bolsa negociou o recorde de 94,3 mil contratos, 36% mais do que no mesmo mês de 2003. Os negócios da BM&F somam 386 mil contratos neste ano (até final de agosto de 2004), atingindo volume financeiro de U$ 4,5 bilhões, 69% mais do que no mesmo período do ano passado. O boi lidera, com 181 mil contratos. (FSP, 4 de setembro de 2004, B10, “O vaivém das commodities”)

O agronegócio burguês oferece mercadorias ou “commodities” cujo objetivo

principal da sua produção, beneficiamento e industrialização é a exportação. Esses negócios são todos eles transacionados por grandes corporações multinacionais.

O conjunto de empresas capitalistas, predominantemente grandes empresas

capitalistas multinacionais, que constituem direta e indiretamente o agronegócio envolve diversos setores da economia que incluem desde a produção primária até as fontes de financiamento como os bancos privados e estatais, passando pela agroindústria e as empresas de comercialização.

O complexo empresarial do agronegócio burguês, em decorrência da sua

importância estrutural para os interesses do comércio exterior brasileiro e a conseqüente geração de superávits, determina um modelo hegemônico político e ideológico que tem incidência direta nas políticas públicas, nos meios de comunicação de massa, em outros setores da economia, na ideologia que constitui o senso comum da massa da população, no balanço comercial do país etc. Decorre daí a motivação política, econômica e ideológica dos governos, em especial o governo federal, em acatar essas determinações econômicas tendo em vista que elas também são induzidas pelos organismos multilaterais como o FMI, a OMC, o Banco Mundial e a FAO, todos eles orgânicos aos interesses dos capitais oligopolistas multinacionais, em especial do capital financeiro que sustenta e usufrui internacionalmente desses agronegócios entre outros.

O modelo tecnológico agropecuário, florestal e agroextrativista que vem sendo

adotado no país desde início da década de setenta do século passado, e que alcança seu ápice conjuntural com a introdução massiva das sementes transgênicas e do controle pelas multinacionais dos recursos naturais e da terra, é conseqüência e causa do desenvolvimento do agronegócio burguês. Essa proposta tecnológica faz parte de um modelo econômico para o desenvolvimento rural no Brasil que tem tido como premissas o controle oligopolista das sementes e do sêmen (com as exigências do processo de produção que lhe são correlatas), das terras, das florestas, da biodiversidade e da água doce pela capital oligopolista multinacional.

É possível, então, se sugerir que na conjuntura histórica atual brasileira as classes dominantes do país amplas parcelas das classes médias (rurais e urbanas), amplos setores das classes subalternas, a maior parte da intelectualidade de oposição e os governos, em particular o federal, aceitaram e aceitam como economicamente inevitável que a massa camponesa do país e parcelas importantes dos médios proprietários de terras rurais se subordinem diretamente, por diferentes formas de integração, ao agronegócio burguês. E, mais, que parcelas consideráveis dos movimentos e organizações sociais populares no campo, consideram como necessária essa integração tendo em vista as oportunidades de

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negócios que geram. O ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA, Roberto Rodrigues, já propôs em entrevista a jornais que os assentamentos de reforma agrária para se tornarem viáveis deveriam ser administrados e ou integrados a uma agroindústria. Essa proposição ganha força na medida direta em que os camponeses (assentados) de diversos assentamentos de reforma agrária do país vão encontrando na integração com as agroindústrias e na utilização das sementes transgênicas uma forma cômoda de geração de renda em curto prazo. A proposta denominada de Novo Mundo Rural, implantada desde meados da década de 90 pelo governo federal e aceitas e disseminadas por amplas parcelas da intelectualidade ligada ao setor rural, ao sugerir a integração necessária da agricultura familiar (sic) com o agronegócio burguês asseverou no campo da política que o modelo dominante do agronegócio burguês para o rural brasileiro seria a melhor opção também para as classes subalternas do campo. O Pronaf, entre outros programas, é conseqüência direta dessa concepção de mundo do rural brasileiro sob hegemonia das grandes empresas capitalistas multinacionais do agronegócio burguês. Portanto, o agronegócio burguês é não só economicamente dominante como político-ideologicamente hegemônico. Ele controla não apenas os comportamentos estratégicos e táticos dos governos e determina o rumo de parcela relevante da economia rural, mas, também, a maioria das mentes das massas populares no campo e das suas instituições de representação, formais e ou informais. Esse modelo de desenvolvimento rural sob a hegemonia do agronegócio burguês conduzido diretamente pelas empresas oligopolistas multinacionais é altamente degradador do meio ambiente como socialmente excludente. Tende ao controle total dos recursos naturais (solos, subsolo, água doce, florestas e biodiversidade) e da terra (do ponto de vista fundiária). Ademais, coloca a economia rural brasileira sob o controle direto dos interesses das corporações multinacionais e do capital financeiro internacional eliminando qualquer possibilidade efetiva de manutenção da já precária soberania nacional e, muito menos, da soberania agroalimentar. Esse modelo econômico ao induzir compulsoriamente a adaptação da estrutura produtiva rural brasileira para amolda-la à nova divisão internacional da produção agropecuária e florestal subordinada aos interesses não apenas das economias dos paises denominados do primeiro mundo como tornou o Brasil mais uma vez um tipo de colônia produtora e exportadora de matérias-primas, mesmo que travestida pela maquiagem modernizante do agronegócio burguês. A inexistência de uma proposta de desenvolvimento rural a partir dos interesses do campesinato brasileiro para o desenvolvimento rural do Brasil que negue o atual modelo dominante e afirme um processo de democratização da renda e da riqueza rurais e a socialização das relações sociais de produção obscurece as possibilidades de se definir estratégias de transformação estrutural no campo, assim como de se estabelecer os rumos estratégicos para a luta social.

O modelo econômico e tecnológico dominante na agricultura brasileira (modelo de desenvolvimento rural) caracteriza-se pela:

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⋅ tendência à concentração da terra, dos recursos naturais e da renda rurais, ⋅ tendência crescente de homogeneização genética e monoculturas, ⋅ oligopolização e, em casos, a monopolização da oferta de sementes; ⋅ utilização massiva de agroquímicos de origem industrial e de motomecanização

pesada, ⋅ ampliação de novas áreas de terras e conseqüente derrubada da cobertura florestal, ⋅ apropriação de terras devolutas seja nas regiões dos Cerrados e na Amazônia, ⋅ dependência de insumos importados e sob o controle de empresas multinacionais

oligopolistas, ⋅ pela oferta de produtos agrícolas para exportação, ⋅ pela agroindustrialização controlada pelo capital estrangeiro, ⋅ pela contaminação ambienta e degradação dos solos, ⋅ pela dependência de incentivos diretos e indiretos governamentais.

Esse modelo determina o direcionamento da oferta agropecuária e florestas para a

exportação comprometendo a soberania alimentar e a territorial e propiciando o controle da economia rural por capitais estrangeiros. Esse processo subalterniza as políticas públicas, entre as quais a de ciência e a tecnologia agropecuária e florestal, aos interesses dos grandes capitais multinacionais em detrimento da afirmação da democratização da renda e da riqueza rurais pelo controle público das terras devolutas, dos recursos naturais (nele a água doce), pela realização da reforma agrária, pela afirmação do campesinato e proteção social ao trabalho assalariado no campo.

A perda relativa de controle público sobre o território e seu uso é evidenciada pela

apropriação e uso indiscriminado das áreas do entorno da BR-163, representando uma área agrícola potencial de 2,8 milhões de hectares (Presidência da República, 2004:26), área essa desde há mais de 30 anos sob contínua apropriação privada de terras e recursos naturais públicos sem adequados processos de controles públicos. O crescimento da exclusão social e econômica do campesinato que se constata no país não se dá como conseqüência da hipótese difundida pelos meios de comunicação de massa e por diversos intelectuais orgânicos aos interesses dos grandes capitais do agronegócio burguês que afirma ser essa economia familiar inviável técnica e economicamente, mas porque a correlação de forças econômicas e política entre o campesinato e o agronegócio fomentado pelo grande capital estrangeiro, com os mais distintos tipos de apoio das políticas governamentais, dá-se de maneira desigual e socialmente injusta. Isto se deve à liberdade de predação ambiental e social e à impunidade com que agem as grandes empresas capitalistas no campo e o latifúndio. A ausência de um processo de democratização econômica na sociedade brasileira, desde seu período colonial, é o fator central dessa crescente desigualdade econômica e social no país e, mais acentuadamente, no campo.

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4.1.2. Produção integrada: um leque de contradições e de possibilidades64 Produção agrícola em escala industrial: a necessidade da agroindústria

A fertilidade do solo, o arrojo do agricultor proprietário, a luta quase obstinada de produzir não só para a subsistência, mas de ter um excedente passível de troca por outros bens materiais, a disponibilidade de mão de obra - grande número de filhos -, torna-se atrator do capitalismo industrial. Empresas agro-industriais lançam interesseiros olhares em direção a estas propriedades produtivas. De uma forma ou de outra, era necessário e hora, da produção capitalista, exercer um maior e mais intenso domínio, sobre essa parcela da população que, em algumas de suas atividades, estava dando certa. A implantação de um sistema latifundiário estava fora de cogitação, devido aos acidentes geográficos. Outra modalidade de domínio e de exploração dessa mão de obra, da riqueza do solo, do aumento crescente dos carecimentos e a conseqüente necessidade de satisfazê-los, levou e induziu o capital a tomar a sua decisão. Uma decisão que viria a preencher um vazio do próprio capital. Tornara-se uma necessidade das agroindústrias terceirizar a obtenção da matéria prima. O significado real da terceirização liga-se a dois fatores básicos: garantir a própria sobrevivência e potencializar a obtenção de lucros via aumento da exploração de mais valia. Objetiva-se a criação de formas para submeter as condições de vida do pequeno agricultor, transformando-as basicamente em forças industriais. À medida que o modelo se expande, começa a revelar verdades e condições não esclarecidas anteriormente. Outras faces, outras decorrências, outros envolvimentos passam a exigir do agricultor um novo ritmo no executar das atividades diárias. Feriados e domingos, antes religiosamente guardados e respeitados, tornam-se agora um dia comum de atividade. O trato, tanto do frango quanto do suíno, são tarefas diárias. Uma nova postura, um novo posicionamento se faz necessário, um novo ser humano trabalhador precisa ser construído. Novas normas de conduta, novos conceitos são incorporados enquanto outros perdem o sentido, são postos em dúvida e perturbam o modo de vida tradicional. Mudanças profundas ocorrem nas relações familiares e sociais. Profundas são também as mudanças nos costumes, na saúde física e mental. Há novos carecimentos e novos envolvimentos. A implantação do Sistema de Integração nas suas mais diversas faces implica na instalação de um novo paradigma produtivo. São intensas as modificações que atingem não só a materialidade, mas passam a ter profundas repercussões na subjetividade do agricultor, afetando toda a sua forma de ser. A dimensão e o significado dessas mudanças, bem como as conseqüências tanto no campo teórico quanto no empírico, podem e devem ser visualizadas em toda a sua extensão e profundidade. À medida que a integração se expande, implicando no avanço do capital, o modo de produção para a subsistência vai sendo destruído ou reorganizado em seus aspectos tecnológicos - engenharia genética – com

64 Esta seção corresponde ao texto de Strieder, Roque (2000). Produção integrada: um leque de contradições e de possibilidades. Esse texto, conforme o Autor, em grande parte é resultado de excertos da dissertação de Mestrado, posteriormente transformada em livro intitulado: Produção agrícola integrada: a emergência humana do trabalhador agrícola. São Miguel do Oeste: UNOESC, 2000.

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redimensionamento do tempo e do espaço, bem como das técnicas e métodos de produção. As atividades de produção, quase que exclusivamente voltadas para o autoconsumo, impõem, a partir de então, uma produção mercantil, visando o grande mercado consumidor.

A caracterização do contexto agrícola do Oeste Catarinense encontra similares em praticamente todas as regiões do país. Ela reflete uma realidade maior. É o espelho daquilo que ao nível de país passa a ser incorporado como uma nova prática produtiva para a agricultura. É a partir de 1960 que a agricultura passa a caracterizar-se por uma redefinição das relações entre a indústria e a agricultura, a partir do início exatamente do desenvolvimento das agroindústrias. As agroindústrias tornam necessárias a re-estruturação dos mecanismos e formas de produção agrícola, viabilizando o seu ingresso no circuito da produção industrial. A agricultura do país precisa adaptar-se ao consumo de insumos e máquinas produzidas industrialmente, bem como enquadrar-se como produtora de matéria prima para posterior transformação industrial. Essa espécie de intercâmbio, necessária ao modelo de produção capitalista, passa a ser intermediada aqui, e nas demais regiões do país pela agroindústria, que assume o comando do processo de implantação dessa re-organização produtiva no setor agrícola. Com relação à força de trabalho, as formas tradicionais de exploração são substituídas por novas formas. Registra-se a presença de fortes traços de exploração da mais valia relativa, que encontra parâmetros no potencial de capitalização da pequena produção, que a bem ver, torna-se o eixo central da re-estruturação das formas e dos conteúdos das novas relações de produção. Diante do aceleramento da produção industrial, dos incentivos a um maior índice de consumo, torna-se necessária a expansão da produção de excedentes agrícolas. Torna-se necessária, a existência de uma conseqüente adequação das forças produtivas agrícolas à economia industrial. É uma revolução que como tal precisa concretizar-se. Paralelamente ao aumento do mercado consumidor, existe a exigência do crescimento acelerado da produção agrícola. Abre-se a porta para a implantação das agroindústrias. Os limites que se auto-impõem às formas produtivas artesanais, já em fase de esgotamento e, ao padrão de expansão, constituem-se estímulos à agroindústria que se apresenta como forma de incrementar a produtividade agrícola. A modernização agrícola determina uma profunda transformação qualitativa e quantitativa das características produtivas da pequena propriedade produtiva. A penetração mais intensiva do capitalismo na agricultura impõe seu ritmo produtivo, não determinando, em princípio, a erradicação do pequeno proprietário na região nem a totalidade da produção em pequena escala, mas a forma de produção. Ela se mantém, mas, as características básicas que a sustentam passam a impor transformações, conduzindo para uma agricultura extremamente capitalizada: o fato é que o capital busca sempre as formas mais seguras e rentáveis de investimento... Onde já existe uma fábrica esta continua a se desenvolver através da poupança (Gramsci, 1987: 63). Produção capitalista: um coletivo de impasses A modernização da produção agrícola encontra-se diante de um enorme impasse. Ela não tem como conseqüência imediata a solução da pobreza e da miséria, seja na ótica econômica, social ou política que prolifera entre os pequenos produtores. Toda a gama

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tecnológica e organizacional da reestruturação da propriedade produtiva familiar, antes ou ainda restrita à comercialização dos excedentes, em propriedade produtiva capitalista, vem acompanhada das grandes contradições entre capital e trabalho, entre fornecedores da força de trabalho e detentores da produção. As grandes mazelas do capitalismo urbano industrial, como: concentração da produção, exploração da força de trabalho, manutenção de um contingente de trabalhadores como reserva, não podem ser escondidas ou ignoradas. Elas acompanham o capital por serem integrantes e inerentes a esse modo de produção. A dominação a dependência, a seletividade, a exclusão e a concentração continuam disputando páreo com os supostos benefícios econômicos que a modernização agrícola tanto proclama. Ela tem trazido, juntamente com os benefícios aos “escolhidos”, uma maior proximidade da pauperização de grande número de propriedades com características produtivas tradicionais. Inúmeras medidas governamentais e do próprio sistema econômico forçam uma constante e gradativa descapitalização de grande parte de pequenas propriedades. Citam-se, o dificultar ou negação pura e simples do acesso ao crédito no sistema financeiro, o que traz como conseqüência imediata o não acesso a novas e mais produtivas tecnologias. São medidas seletivas gerando marginalização e expulsão como reflexo direto da não modernização da estrutura produtiva.

Devido às suas características, tanto na forma de produzir quanto na forma organizacional, a integração ou a modernização determinam um menor uso de mão de obra imediata. O resultado é a expulsão e o abandono da propriedade agrícola o que traz como conseqüência imediata o inchaço da periferia de cidades e o aumento do número de favelas. Caracteriza-se mais uma vez que a modernização das formas de produção, que certamente em muito contribuem para minimizar os problemas da produção material, não tem formas e talvez nem conteúdo para resolver o problema social e político acintosamente desigual. Enquanto esses problemas não encontram solução, gradativamente e em escala crescente, uma enorme parcela da população é excluída do acesso aos bens produzidos e excluída dos setores de trabalho/emprego. Uma exclusão, que pela forma capitalista, determina o não acesso aos bens materiais e nem sociais, uma vez que, este acesso está profundamente condicionado à troca por moeda.

Assim as últimas décadas do século XX e o início do século XXI nos brindam com

profundas mudanças tecnológicas e organizacionais tanto na produção de bens quanto na produção de serviços. Estimula-se a criação de um mercado mundial, buscando a “Globalização da Economia”. As barreiras espaciais são reduzidas pela compressão do espaço através do tempo e compressão do tempo pelo espaço. Incentiva-se a racionalidade na organização espacial via inovações na configuração da produção, na configuração da circulação proporcionando um consumo cada vez mais rápido e mais eficiente. Isso implica em afirmar que a humanidade está presenciando um novo paradigma de produção. Destaque para a microeletrônica e a biotecnologia, que obriga as compressões do espaço e do tempo e exige novas formas organizacionais

Na agricultura perfilam-se enormes mudanças com destaque a mecanização do

processo produtivo, o uso de insumos modernos, a padronização na produção de frangos, suínos, fumo, leite, uva, e outros. Esta padronização consagra-se e atinge níveis

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extremamente significativos no interior do sistema de integração. Nesta integração encontra-se um contingente considerável de pequenos produtores da região do Oeste Catarinense, de outras Regiões do Estado e País. É um contingente de agricultores que mantêm e detêm alguns meios de produção como a terra, ferramentas e instalações. A forma produtiva presente na estrutura da integração tem como parâmetro uma nova e maior racionalidade que é determinada, preponderantemente pela tecnologia. É necessário decifrar e conciliar os diversos aspectos e fatores que permeiam uma economia globalizante, mas que em termos humanos é excludente. Negar acesso a esta nova racionalidade tecnológica presente no processo da globalização representa para os produtores integrados e demais agricultores o enorme risco de uma participação em escala decrescente dos lucros da matéria prima por eles produzida. Além de integrar-se materialmente, precisa integrar-se mentalmente, envolver-se de corpo e alma para saber por que faz, por que produz. Pela integração, passam a incorporar inovações tecnológicas da engenharia genética e do melhor aproveitamento espacial que o processo de modernização da agricultura põe à disposição. A incorporação das inovações trazidas ocorre de uma forma mais acentuada e rápida pelos agricultores que aceitam o desafio da integração, do que pelos não integrados. Ao aderir a nova conjuntura da produção agrícola, o agricultor passa a viver impasses e se defronta com incessantes desafios e expectativas. Dentre outros destacam-se alguns, pois apesar de a relação ser similar àquela mantida anteriormente com o comerciante, existem outros pontos obscuros. Tratar com o comerciante era lidar com uma única e conhecida pessoa. Agora a relação com o “patrão”, distante e desconhecido é intermediada pelos técnicos, pelos motoristas dos caminhões, pelos comunicados, pelos panfletos, pelos manuais instrutivos, pelo contrato, etc. Há um fluxo maior de pessoas circulando na propriedade. O elevado valor do investimento inicial necessário - frangos - e a perspectiva de lucros compensatórios é motivo de apreensão, porque como Giddens (1991) reflete em seu livro “As conseqüências da Modernidade”, a nova situação bem como a instituição “ainda sem rosto”, é algo que se faz representar, que não se constitui ainda em fato. A incerteza de possuir suficiente conhecimento para lidar com os suínos ou frangos, com a genética inserida dentro de um ciclo precoce, chega a ter um teor de angústia no início do processo. As dificuldades de acesso aos meios de comunicação, cuja carência faz aumentar a angústia e a não tranqüilidade do produtor, quando necessita chamar o técnico ou o veterinário. A necessária mudança da rotina diária e a conseqüente adesão a uma rotina exigindo um maior tempo de presença. A incerteza do alcance da qualidade, exigida através do técnico, pela agroindústria. A expectativa da necessidade de superar-se constantemente, de bater o seu próprio recorde e o medo de ficar para trás. O desenvolvimento tecnológico impõe uma alteração na escala produtiva da agricultura familiar. Manter presentes as inovações tecnológicas na propriedade familiar implica num redimensionamento das necessidades domésticas. A conseqüência imediata é de que essas necessidades passam a exigir uma crescente ampliação. O próprio consumo familiar cresce, torna-se mais exigente em qualidade e quantidade e, portanto, passa a depender de níveis de produções maiores. Produzir mais e melhor começa a ultrapassar o

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sentido restrito ao querer, tornando-se uma necessidade, um desafio cercado de maiores exigências. No dilema de produzir mais, a agroindústria abocanha fatias significativas e certamente é a mais beneficiada economicamente. O mercado tradicional é superado gradativamente, eliminando algumas das características das antigas relações, enquanto torna-se o pressuposto de relações mais complexas. Maior agilidade e complexidade manifestam-se nas relações entre produtores e produtos, entre produtores e agroindústrias e mesmo entre produtores e consumidores. O jogo de interesses de todos os setores e hierarquias envolvidas é gerador de novos conflitos que apresentam novas exigências e outros envolvimentos. No conjunto, esta enorme diversidade e desigualdade que envolve todos os setores produtivos agrícolas, está longe do estabelecimento e fixação de soluções. O Brasil, numa demonstração de descaso e atendendo a interesses obscuros e corporativistas, não conseguiu firmar uma política agrária condizente com o seu potencial agrícola. A não definição plena de uma política agrária está deixando ao sabor do mercado as perspectivas dos estabelecimentos empresariais agrícolas, e trata com desdém as propriedades com características de agricultura familiar. A ampliação dos índices de produção, viabilizada pela moderna tecnologia, possibilita a manutenção de fragmentos da natureza produtiva familiar. Atualmente são as máquinas, as novas formas organizacionais, um grau de conhecimento maior, os fertilizantes, os inseticidas, as sementes selecionadas, os reprodutores de raça, que estabelecem e são determinantes de novos parâmetros. No entanto, todas estas inovações não se fazem acompanhar necessariamente de melhorias econômicas e sociais para o produtor integrado. Na prática o que ocorre é um crescimento desigual entre os preços dos insumos industriais e a tendência ao decréscimo do preço real dos produtos agrícolas em geral. Em conseqüência, vemos caracterizada uma concreta e gradativa minimização da renda agrícola para o pequeno agricultor. São fatos que levam a declarações, que tanto podem constituir-se em denúncia ou simples constatações, como a que segue:

o apoio à pequena agricultura se justifica, portanto, por sua produção como instrumento de uma economia capitalista saudável, evitando assim que sua gente venha a aumentar a intranqüilidade rural (e, com o êxodo, a urbana)” (Flores, 1995: 3)

Diante desses e de outros fatores de inquietação, os produtores integrados e de modo geral todos os trabalhadores rurais precisam reconhecer o seu potencial de produção. Ao tomarem consciência da importância e do volume da matéria prima produzida, seguramente saberão valorizar-se mais e, como conseqüência, quem sabe, reivindicar melhor reconhecimento e atenção. Produção integrada: alternativas possíveis O integrado encontra-se mergulhado no mundo capitalista e, para os conceitos burgueses, está saindo do arcaísmo e da ignorância. O conceito que agora lhe é atribuído e com o qual passa a compartilhar, já não é mais o de agricultor tradicional perdido na sua

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própria obsolescência. A ilusão do conceito de produtor capitalista pleno esvai-se rapidamente à medida que as novas relações, cunhadas na divisão social do trabalho vão surgindo. O integrado, apesar de produzir uma mercadoria vendável no mercado, sabe dos seus limites em relação a este mesmo mercado. Ele ainda não está preparado política, econômica e socialmente, para o desafio que o capital lhe oferece de pertencer ao mercado que está em busca da globalização. Hoje ainda, ele comparece no mercado, intermediado pela agroindústria ou pela mercadoria que produz: frango, suíno ou outros. Sua presença é, ainda uma presença à distância, pois comparece fazendo-se representar. Mas não é este o projeto inerente ao ser humano, é sim comparecer inteiramente, respeitando as diferenças e aparando as desigualdades. A integração não significa por si só uma maior liberdade econômica para o agricultor integrado, muito menos a superação completa de sua condição de subalterno, pelo simples ato de integrar-se. As necessidades econômicas, sociais e políticas tanto dos agricultores - pequenos proprietários rurais e agora produtores integrados - quanto das agroindústrias, revestem-se de novos elementos quando ambos se lançam numa integração em nível de globalização e, agora profundamente inter-conectados à semelhança do que Giddens denomina de re-encaixe. Uma integração que se expressa no inter-relacionamento ou na inter-dependência entre um e outro, a tal ponto que um não existe sem o outro. É uma inter-dependência que traz o capital como seu fundamento e por isso mesmo, pauta-se num poder de decisão polarizado. A agroindústria tem a seu favor mais elementos de poder e, por isso, é ela a geradora de maior volume de decisões. Sendo o capital, o parâmetro fundamental da relação, ele se reveste ainda, pelo exercício de um poder beirando ao despotismo, por parte da agroindústria. A lógica do capital que rege a agroindústria é extrapolada e estendida ao integrado, obrigando-o a um envolvimento que se caracteriza por manipulação. Rege-se a relação nos princípios que são próprios do capital, gerando a necessidade de estabelecer normas e regulamentos, que permitem um controle e, mesmo, a manipulação social. A integração, mesmo guardando características fordistas, pela produção em massa, pela produção de produtos padronizados, pelo controle do tempo e do espaço, pelo trabalho com características parcelares, fragmentando funções, separando elaboração e execução, põe de um lado os detentores do conhecimento de genética, do balanceamento da ração, do conhecimento e domínio do mercado, do potencial de industrialização da matéria prima carne, enquanto mantém o integrado ocupado sobremaneira com a atividade de executar ou de tratar. No que se refere às formas de convencimento, as estratégias de envolvimento, o relato dos benefícios, muito mais induzem o agricultor a se integrar, do que o obrigam. Cria-se um clima de expectativa tal, que a decisão para se integrar assume características de cooptação. Assim, é possível nestes aspectos, dizer que existe uma proximidade com o novo paradigma produtivo do toyotismo nas suas versões: “família empresa”, “sindicato empresa”, “nossa empresa” e cooptação, levando os integrados a assim se expressarem: “a decisão de integrar foi uma decisão minha”.

Apesar das contradições, dos conflitos, da disparidade no campo das decisões e do

conhecimento, a integração caracterizar-se como capitalista e conseqüentemente exploradora da força de trabalho do integrado, a agricultura, as agroindústrias, o consumidor, a expansão da produção de alimentos são grandes beneficiados.

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Não há dúvida de que o País deve grande parte de sua produção agrícola, à agricultura familiar, que em inúmeras vezes, supera a agricultura patronal quando se trata da produção de leite, ovos, trigo, banana, tomate, feijão, laranja, mandioca, carne suína e de frango. Além de que, a agricultura familiar tem uma capacidade de absorção de mão de obra que supera a da agricultura patronal, fato que por si só é de extrema importância, quando o país vive às voltas com índices crescentes de desemprego. A sua luta pela sobrevivência e mais do que isso, a luta pela vida e por vida plena, via um trabalho coletivo e associativo de mutirão, como insistência de preservar a economia familiar, constitui-se uma alternativa real à degradação, à miséria e à desmoralização. Reconhecer-se e situar-se como proprietário produtor em ritmo de produção agro-industrial, como é o caso dos integrados, é de fundamental significação para que os produtores do setor agrícola construam opções teóricas e práticas. O grande impasse para o agricultor e para o integrado passa a ser: como acelerar o processo inovador capaz de abrir caminhos que atenuem ou destruam a autoridade da cultura tradicional? Diante das adversidades, das incertezas e da instabilidade das políticas agrárias, como predispor-se para a re-invenção cultural paralela à apropriação tecnológica? Mudar e abrir-se para novos aspectos políticos, culturais e epistemológicos, precisa ser a pauta e a fonte da busca de uma legitimidade alternativa, contrária à legitimidade hoje vigente. Um desafio que implica no rompimento do estado de cooptação às formas de subjugação da crença e da vontade dos trabalhadores agricultores. A inovação cultural, as novas formas de consciência da abrangência da subalternidade devem ser frutos da ruptura das velhas relações de dominação e de exploração, determinando o rompimento dos vínculos de dependência. É um rompimento que precisa libertar o trabalhador agricultor, o integrado e, ao fazê-lo, libertar o trabalho e descobrir o significado de propriedade e de proprietário produtor. Uma nova concepção de trabalho organiza novas concepções de vida, do eu individual, do outro, das relações sociais, das relações míticas com a natureza, de novos valores, de novos projetos e de novos desafios. Enfrentar o descrédito no potencial do agricultor significa ultrapassar concepções iluministas de cunho positivista e liberalizante da economia burguesa. Nas mais diversas formas da agricultura familiar temos contribuições preciosas no sentido de superar estes impasses. Importantes demonstrações de contestações destacam os limites da desconsideração do potencial do ser humano agricultor e a sua suposta incapacidade de criar propostas de novas ações. Insistir no caráter de desqualificação e na incapacidade do desenvolvimento da força produtiva, presente nos agricultores, é uma forma conservadora e estática que em nada contribui para solidificar uma auto-valoração do ser humano agricultor. São políticas que tem como objetivo e compromisso divulgar a falsa idéia de impotência da luta dos trabalhadores do campo. Fazem questão de situar o agricultor como alguém alheio politicamente, como alguém que está por fora dos problemas econômicos e sociais. Fazem questão de situar a postura política como um terreno de interesse de outras categorias sociais que não os agricultores. Essas posturas conflitam com a situação atual, pois o agricultor e de forma mais convincente o integrado, estão surgindo como sujeitos políticos.

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A produção agrícola e, mais especificamente a produção integrada, é determinada pela lógica do capital, fato que não torna o agricultor um ser humano totalmente passivo e manipulado. O capital, ao marcar uma presença mais significativa na agricultura, implantando a sua estrutura produtiva pelo sistema de integração, ou ao modernizar diversos de seus setores, criou para si e para o agricultor, o desafio de novas contradições e antagonismos. A sua presença material no meio rural, custa ao próprio capital, riscos que não encontra no seu modo tradicional de ação nas grandes indústrias urbanas. No objetivo da constante e necessária expansão, o capital arrisca, mas tenta em tudo e, constantemente, diminuir estes riscos. Esta é uma das justificativas de uma implantação gradativa da produção em escala industrial no meio rural. A agricultura encontra o seu sustento na matéria prima viva, de cunho orgânico e não mineral e morta, como nos setores industriais de produção de máquinas. Lidar com seres vivos, animais ou vegetais e passar a depender deles, significa de fato correr riscos maiores e, em conseqüência, exige maior habilidade de controle e mais cuidados na expansão. Por tratar-se de seres vivos e por precisar agilizar a produção, tornou-se imprescindível um domínio maior do tempo e do espaço. Diminuir o tempo para o abate e para a maturação, reduzir os espaços por animal ou planta, tornam-se metas revestidas de desafios. A sua presença, com mais vagar e mais distanciada, alia-se ainda aos tímidos conhecimentos científicos e tecnológicos no domínio de condições de ordem natural: chuvas, granizo, vendavais, geadas e calor excessivo. Ao agir dessa forma, o capital não está querendo realçar o grau de subalternidade do agricultor, mas está reconhecendo e admitindo os seus próprios limites. No seu objetivo de potencializar ganhos, minimizando os custos de produção, obrigam-se a levar ao meio rural, condições materiais concretas, para que o agricultor, pelo contato com a tecnologia e de formas produtivas mais avançadas, possibilitadas pela criação e ampliação do conhecimento, produza mais e melhor, tornando-se a alavanca do progresso do capital e da nação. A transformação do agricultor, de produtor familiar para produtor integrado, com tecnologia organizacional, com o redimensionamento de valores, de conceitos, concepções de tempo, de espaço e de ser humano, acenam como um avanço e indicam novos graus e outros patamares de conquistas e de lutas. O integrado passa a fazer parte de um novo mundo e de uma nova força produtiva. Influenciado por este novo mundo comparece, de forma diferente, na sociedade. Sobre ela e com ela formará uma nova consciência, recheada de contradições e de conflitos. Ele ainda não é soberano, pois continua submetido às normas do mercado, regido pela ótica capitalista. *o seio das contradições um sonho alternativo Todo o mercado de trabalho está passando por uma radical reestruturação. Diante de um mercado trabalhista cada vez mais volátil, aumento da competição e estreitamento das margens de lucro, o trabalhador e aqui, especificamente o produtor integrado, necessita participar e apropriar-se de informações precisas e atuais; torna-se cada

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vez mais relevante a apropriação e o acesso ao conhecimento científico e técnico, pela importância que o mesmo representa na luta competitiva; tomar conhecimento e agir dentro da perspectiva da redução dramática do tempo de giro, tanto no setor produtivo quanto no de consumo; é imprescindível o participar na reorganização dos espaços, produzindo mais e melhor; inserir-se nas atividades materiais de produção e consumo, onde a fluidez, a instabilidade o frenesi, significam palavras de ordem e ação. Somente um novo e ainda difuso ser humano, um novo agricultor agora produtor integrado, que se desenha como um devir, pode abordar e integralizar com lucidez e maior rapidez a revolução conceitual de si mesmo, nesse impressionante desafio de novas oportunidades que se descortinam. Um mundo a ser descoberto, uma nova vida a ser iniciada, um ser humano em fase de construção de si mesmo e a partir de si mesmo. É este, e neste agricultor, produtor integrado, que se desenha a transição pela irrupção do casulo e exteriorização de seu conteúdo a se pôr no mundo qual uma explosão cheio de vida e de futuro auto-consciente. O produtor integrado, como todo e qualquer ser humano, busca resolver as necessidades que o opõem a si mesmo e às carências contraditórias pelas quais viabiliza a construção de sua humanização. Ele deseja construir a própria possibilidade da humanização dentro de sua carência de humanidade. Esse movimento de construção e de transformação aparece espelhado, expressando o que realmente é, e não o acobertado pelo contraditório ou, ainda como uma ruptura estranha ao processo social. Ao incorporar as novas formas de produção, a tecnologia organizacional, a engenharia genética, junto com os elementos críticos e as possibilidades históricas já contidas no conhecimento imediato e no cotidiano de sua prática, o integrado aproxima-se de possibilidades de superação. A superação profundamente conflituosa se realiza no embate contraditório entre o real e o racional. Podem ser consideradas fontes do conflito: a forma artesanal de produção do agricultor e a respectiva relação de submissão à natureza e as hoje relações sociais mediatizadas pela mercadoria, pela tecnologia, pela relação capitalista; também a relação produtor versus produtor, é conflituosa porque nela ainda sobressai o poder desigual da posse de bens materiais e de conhecimentos extremamente elitizados e hegemônicos. Também considerada fonte de conflitos é a dificuldade de os produtores integrados reconhecerem-se como sujeitos da história e sujeitos do conhecimento. O seu não reconhecimento no cenário histórico torna impossível a contraposição da história dos seres humanos e da história de ser humano, hoje contada como conseqüência dos compromissos ideológicos dos dominantes. Firmar-se nesta possibilidade é ver o quanto o capitalismo dominante é capaz de reduzir tudo hegemonicamente, a ponto de estender os seus benefícios em direção à classe dominante. É ter presente que, por mais que o capitalismo avance formas de domínio do físico, ele não pode dominar a essência interior, o imaginário, a força do eu, o poder do eu. A trajetória do pequeno agricultor, de produtor familiar e para a subsistência com comercialização dos excedentes e hoje produtor integrado, produzindo para um mercado em fase de globalização, é uma trajetória histórica. Os agricultores em sua produção familiar e mesmo hoje produtores integrados: “não têm em seu conjunto nenhuma experiência organizativa autônoma” (Gramsci, 1987:

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131). Os primeiros encontram-se ainda enquadrados nos tradicionais esquemas da burguesia capitalista, aqui representada pelos comerciantes e atravessadores; os integrados são ainda neste momento determinados pelo agro-industrial; ambos estão sob controle e são dirigidos por esquemas burgueses e capitalistas. Os agricultores e os produtores integrados, de um modo geral, formam um grande grupo de trabalhadores amorfos e desagregados. Individualmente, em sua família, com o vizinho, eles estão em constante efervescência, mas ainda como um coletivo, não estão em condições de formalizar uma expressão às suas aspirações e necessidades de um modo geral. Urge a construção de uma mentalidade coletiva e de equipe. Esta mentalidade implica em não mais pensar como produtor de fumo, como produtor de frango, de leitão ou de suíno, mas pensar como produtor integrado, como membro de uma mesma categoria. A realização desta mentalidade universal pode conquistar e construir formas mais humanitárias de produção material e intelectual, com uma conseqüente distribuição universal. Vencer o subjetivismo capitalista transmitido, absorvido e agora praticado, na sua forma mais primitiva, ou em sua forma mais racional, ainda é fator de isolamento e de distanciamento entre os seres humanos. Marx e Engels, referindo-se ao tema, escreveram:

A consciência isola os indivíduos uns contra os outros, não apenas os burgueses

mas ainda mais os proletários, e isto a despeito de os aproximar. Daí que demora muito tempo até que estes indivíduos se possam unir... E por isso só ao cabo de longas lutas se consegue vencer todo o poder organizado contraposto a estes indivíduos isolados que vivem no seio de relações que diariamente reproduzem o isolamento (Marx e Engels, 1984: 80-81). Todo e qualquer êxito de transformação real e concreta reside na desagregação dos sentimentos do individualismo egoísta, na desagregação das relações de dependência, na construção de modos de pensar e de ações coletivas, na construção de concepções universalizantes. Ou seja:

Os indivíduos isolados só formam uma classe na medida em que têm de travar uma

luta comum contra uma outra classe; de resto, contrapõem de novo hostilmente uns contra os outros, em concorrência ( Marx e Engels, idem: 83). O integrado, cada vez mais, começa a perceber sua importância e superioridade em relação à consciência da dominação. Por outro lado, o agro-industrial torna-se cada vez mais dependente do integrado. Quanto mais terceirizar, mais o produto lhe está distante e menos independente será. Para industrializar o produto já não pode mais prescindir do integrado e, pelo terceirizar, perde gradativamente a maestria sobre a matéria prima de seu processo industrial. O agro-industrial adquire o produto do integrado a preços determinados pelo mercado, mesmo assim este produto é apenas uma expressão exterior da atividade exercida. O que, no entanto, ele não lhe consegue tirar é o fato de que pela nova racionalidade imanente a seu trabalho, o integrado produtor encontra uma contribuição essencial para educar-se e para tomar consciência de sua importância. É o princípio do encontrar-se como autoconsciência. Enquanto superando dificuldades e limites, legados da agricultura tradicional, reconhece que a luta e a apreensão educativa da racionalidade das novas atividades são uma das formas de chegar à autoconsciência e ao conhecimento de

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suas potencialidades, bem como à liberdade de realizá-los efetivamente. Ou como Hegel expressa: “O servo, ao serviço do senhor, vai formando a sua singular e própria vontade, suprime a imediatez interna do apetite e, nesta alienação e no medo para com o senhor, dá início à sabedoria, e assim a passagem para a autoconsciência” (Hegel, 1992: 6). Perspectivas e esperanças Apesar de a integração ser uma relação não amistosa, por ainda encontrar-se amparada na exploração, é uma relação entre indivíduos livres - ambos são produtores de mercadorias - que, ao buscarem a satisfação de seus próprios interesses, realizam interesses comuns. Tanto produtor integrado, quanto agroindustrial são livres, mas esta liberdade não significa igualdade, pois eles são diferentes, pertencem a classes diferentes e com interesses antagônicos, apesar de se situarem ambos como produtores de mercadorias. Um, é ainda dominante detentor da tecnologia e outro é ainda dominado, por ser um produtor limitado e não deter a totalidade do processo produtivo. Mesmo assim, uma das conseqüências normais de o integrado usar e pretender usar as novas tecnologias dos instrumentos, das instalações, novas tecnologias no trato e a própria tecnologia da engenharia genética, é o poder contribuir para a reprodução, re-investimento e continuidade das pesquisas tecnológicas no setor de produção de alimentos. O fato de utilizar-se das novas tecnologias é uma atitude intencional, no entanto a sua contribuição para o aprofundamento da pesquisa tecnológica ainda não o é. O produtor integrado não se torna um assalariado da agroindústria, mesmo que na balança da relação, a inclinação penda para a agroindústria. Existem, como vimos, determinações, limites e obrigações a serem cumpridas por ambas as partes. Estas obrigações, apesar de penderem numa maior intensidade sobre o integrado, não lhe tiram a condição de comparecer diante do agro-industrial com uma mercadoria a ser negociada. Um comparecimento que caracteriza a divisão social do trabalho ao qual Marx se referiu dizendo: “A divisão social do trabalho põe em contato produtores independentes que só reconhecem a autoridade da concorrência” (Marx, 1985: 408), , concorrência hoje exercida pelo mercado em nível de globalização. O integrado não pretende vender a sua força de trabalho. A relação caracteriza-se como uma relação entre dois produtores de mercadorias.

Certamente o produtor integrado, via interferência da agroindústria que viabiliza o deslocamento de modernas técnicas produtivas e alta tecnologia genética, qualifica-se para produzir um produto padronizado e de melhor qualidade. Fato que gera um distanciamento e torna a competição com os agricultores não integrados desigual. No entanto, para os produtores integrados, a integração é sinal e sinônimo de segurança. Segurança quanto a venda do produto, quanto ao fornecimento da ração, medicação, assistência técnica e grande certeza de estar inserido nos modernos moldes da produção agrícola. Está claro para os integrados que a diversificação da produção é uma garantia de prevenção contra intempéries como: secas, geadas, granizo, chuvas torrenciais e também contra a instabilidade do mercado de grãos e preços dos produtos agrícolas. Os agricultores tem plena consciência de que a integração caracteriza-se como uma continuidade do processo a que estavam submetidos anteriormente, qual seja a dependência do comerciante. Sabem que a maior força sustentadora da integração não é o contrato formal estabelecido com a agroindústria, nem são as dívidas contraídas junto ao sistema financeiro, mas o fato de não possuírem o capital de giro necessário e suficiente para, na atual política agrícola,

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individualmente adquirirem as bases materiais, as bases científicas e de conhecimento para produzir qualitativa e quantitativamente a matéria prima com a qual se integraram.

O produtor integrado ao sentir-se e mostrar-se capaz de produzir dentro das novas

condições tecnológicas e organizacionais, ao mostrar a sua capacidade de agir de outro modo e de forma mais racional, externa o seu potencial de intervenção no mundo.

O produtor integrado necessita acelerar a caminhada rumo à apropriação coletiva

dos meios e das bases científicas e tecnológicas de sua produção. Somente uma colaboração voluntária e efetiva pode erradicar a divisão hierárquica entre o conceber e o executar. Apropriar-se coletivamente das técnicas, da ciência incorporada na instalação, na organização, no segredo da fórmula da ração, na medicação e na genética das sementes, das linhagens do frango e das espécies de suínos, terão para eles o significado da re-apropriação coletiva, podendo transformar-se num fórum de poder em comum, transformando os integrados em pesquisadores e não apenas em experimentadores. No entanto, resta ainda outra questão pertinente que precisa ser colocada: Apreendidos sistematicamente todos os segredos do “ofício” de criar suínos, frangos ou outros, o segredo laboratorial da genética da produção, da industrialização, o segredo da lógica da industrialização capitalista e dos mecanismos do consumo, não são, no entanto suficientes, se em paralelo não lhe for permitido o acesso ao segredo ou à arte da estrutura financeira, ou seja, isto não lhe permite a estrutura e a solidez financeira e, os integrados ficarão ineptos e estáticos, incapazes de poder estabelecer-se por conta própria. Uma das saídas é partir para a industrialização da produção com o estabelecimento de um novo código de ética, de novas normas de higiene, de qualidades mais orgânicas do produto extrapolando os interesses da racionalidade capitalista. Esta será regida por uma nova rede de integrados: uma rede de integração de proprietários produtores. O novo código ético será por eles construído, na busca de saídas a serem encontradas neles mesmos, como opção de entrada na produção industrial dentro de sua própria propriedade. Um código de ética a começar pela prática da comercialização direta será capaz de incentivar o comércio justo e levar também a um consumo ético. Será um novo e diferente modo de produzir, não sem precedentes no país65, incentivando a alimentação natural e em conseqüência, uma agricultura ecológica, tornando possível uma produção agropecuária em ambiente natural. Um jeito novo de fazer agricultura familiar e de se tornar integrado. Não mais produtor integrado a uma agroindústria, mas produtor integrado e em contato direto com o consumidor, criando uma relação de proximidade entre quem planta e produz e aquele que consome. É essa uma esperança para criar um consumo ético. Ético porque o interesse maior é aquele de todos e o bem-estar do ser humano ultrapassa e extrapola a fronteira do bem-possuir.

65 Citamos alguns exemplos entre outros: 1) Cooperativa Ecológica Coolméia - www.coolmeia.com.br. A Cooperativa Ecológica Coolméia existe desde 1978; 2) Esperança/Cooesperança, projeto desenvolvido pela Diocese de Santa Maria (RS), juntamente com a Cáritas Regional/RS, iniciado em 1987; 3) Banco Palmas – projeto da Associação de Moradores do Conjunto Palmeiras, bairro pobre localizado na zona sul da cidade de Fortaleza, iniciado em 1973.

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São esses alguns elementos capazes de tornar possível e viável a sociedade de decisões, a economia solidária, o consumo ético e a valorização do ser humano acima do monetário.

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4.1.3. A limitação do modelo convencional da “revolução verde” 66 Tendo por fundamento a mesma matriz teórica reducionista e fragmentária que

inspirou, no campo técnico-agronômico, a emergência do modelo de desenvolvimento rural moto-químico-mecanizado da “revolução verde”67, os procedimentos correntes da economia têm se mostrado insuficientes ou simplesmente inadequados para apreender de um ponto de vista holístico a estrutura e o desempenho econômicos dos sistemas produtivos familiares.

Esses procedimentos (como a relação benefício-custo) não incorporam elementos essenciais da sustentabilidade dessas economias, como a existência de variáveis não quantificáveis, a integração de parâmetros biofísicos e agronômicos com processos econômicos, os efeitos em cadeia e as propriedades emergentes das inovações agroecológicas, dentre outros. Esse distanciamento analítico entre a teoria econômica convencional e a realidade camponesa decorre, pelo menos, de três de seus fundamentos basilares, justificando plenamente o ponto de vista de F. Capra, segundo o qual o pensamento econômico contemporâneo é substancial e inerentemente anti-ecológico (Masera e outros, 2000):

⋅ Contrariamente à agricultura familiar ecológica, cuja sustentabilidade incorpora estruturalmente a busca da harmonização entre as atividades técnico-econômicas e a qualidade do meio natural, o pensamento econômico contemporâneo tem demonstrado crônica incapacidade de considerar a dimensão econômica inserida no contexto dos ecossistemas e, por extensão, das relações sociais.

A economia convencional desconhece os conceitos de limites naturais, de

capacidade de suporte dos ecossistemas e de equilíbrio ecológico. Os recursos naturais têm na função de produção o caráter meramente instrumental de estoque de insumos passíveis de mobilização por capital e trabalho. Nesse enfoque mecanicista está implícita a idéia de que os fatores de produção (capital, trabalho e recursos naturais) podem ser perfeitamente substituídos entre si, o que significa que qualquer limite imposto pela natureza à atividade

66 Esta seção foi constituída com extratos do documento de Almeida, Silvio Gomes e Fernandes, Gabriel Bianconi (2003). Monitoramento econômico da transição agroecológica: estudo de caso de uma propriedade familiar no Centro-sul do Paraná. Rio de Janeiro, AS-PTA, novembro. 67 “Revolução verde” é uma expressão genérica que designa o processo de mudanças tecnológicas, econômicas e sociais no rural brasileiro a partir da ampliação das políticas públicas de subsídios à agroindústria que propiciaram alterações nos padrões tecnológicos com a introdução massiva de sementes híbridas, dos agrotóxicos, dos fertilizantes de origem industrial, dos herbicidas, da motomecanização, de novos cruzamentos genéticos animais, dos hormônios para animais etc. provocando a especialização na produção, a concentração da terra e o êxodo rural (Nota de HMC).

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econômica poderá ser indefinidamente superado pelo avanço científico e tecnológico, através de novas combinações de capital e trabalho científico.

Um outro limitante da economia convencional para o estudo da sustentabilidade dos sistemas agrícolas familiares diz respeito ao conceito de valor, e se expressa na existência nas atividades econômicas de variáveis quantificáveis e não-quantificáveis, bens tangíveis e intangíveis, recursos monetários e não-monetários, dentre outras aparentes oposições que se encontram, no entanto, inextricavelmente combinadas nas estratégias econômicas camponesas.

Nos modelos convencionais os únicos valores considerados são aqueles que podem

ser quantificados e expressos em preços estabelecidos em termos monetários nos mercados. Tudo o mais são externalidades que não fazem parte dos procedimentos do cálculo econômico. Esse enfoque restritivo retira da teoria econômica e dos instrumentos do cálculo a capacidade de identificar, analisar e atribuir valor a aspectos qualitativos que são fundamentais para o entendimento das dimensões ecológicas, sociais, ambientais e culturais da atividade econômica. (Capra, 1982)

Ao desconsiderar o contexto ecológico-social e as dimensões não-quantitativas da atividade econômica, os conceitos e procedimentos da teoria econômica convencional mostram-se inteiramente inadequados para rastrear, explicar e computar os custos da decomposição social e da degradação ambiental do mundo rural promovidos pela “revolução verde”. Da mesma forma, eles são incapazes de identificar e atribuir valor aos serviços ambientais prestados pelos agricultores no manejo equilibrado dos ecossistemas.

Essa limitação restringe irremediavelmente qualquer esforço de análise comparativa

consistente da sustentabilidade entre diferentes sistemas e modelos produtivos agrícolas. Ao mesmo tempo, ela adverte para a necessidade de interpelar, do ponto de vista ecológico, conceitos correntes da análise econômica como eficiência, produtividade, lucro – e mesmo o conceito central de riqueza – referidos a atividades econômicas produtoras de lucros privados e de altos custos públicos e prejuízos sociais e ambientais quase sempre irreversíveis.

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4.1.4. Impasses políticos e ambientes do modelo convencional dominante68

Estamos diante, pois, de um modelo agrário/agrícola que não só tende para a concentração fundiária e de capital como, pela exigência elevada de capital que coloca, impede a própria democratização do modelo, além de diminuir sensivelmente a mão de obra empregada e, também, a participação do trabalho na distribuição da renda nesse complexo produtivo como um todo. Na verdade, compensa-se a queda de preços dos produtos agrícolas com uma extrema concentração de capital e, assim, um setor estratégico,

68 Esta seção foi constituída com textos extraídos do documento de Porto-Gonçalves, Carlos W. (2004). Geografia da riqueza, fome e meio ambiente: pequena contribuição crítica ao atual modelo agrário/agrícola de uso dos recursos naturais. Niterói, Inter Thesis, (e-mail de setembro de 2004) maio, mimeo 55 p.

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como o da produção de alimentos, se desloca para as mãos de umas poucas empresas transnacionais. A produção de alimentos se coloca, assim, como um risco num setor da atividade humana cujo objetivo era exatamente o da segurança alimentar.

Os impasses desse modelo agrário/agrícola se apresentam nas diversas pontas em que se pode abordar a questão. Se a diminuição dos preços dos produtos agrícolas pode ser vista como positiva, por outro lado limita a possibilidade de agricultores que produzem com custos mais elevados de acederem aos mercados. Questão polêmica: como é que os subsídios entram nessa conta? Mesmo com os subsídios, qual é o nível de inadimplência dos agricultores modernos? Esse preço baixo tem uma artificialização dada por diversos fatores. Será que a produção camponesa é mesmo mais cara que a moderna?

Os mercados se vêem limitados também para atingir os 2 bilhões e 800 milhões de pessoas no mundo que vivem com menos de US$ 2 diários, dos quais 1 bilhão e 200 milhões estão abaixo da linha da pobreza, isto é, com menos de US$ 1 diário, conforme nos informa o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Como baixar ainda mais os preços agrícolas para fazer com que esses quase 3 bilhões de habitantes possam, de fato, ser beneficiados por um modelo agrícola cujo aperfeiçoamento técnico já é capaz de um rendimento de 12.000 toneladas de grãos por hectare ou 12.000 litros de leite por vaca/ano, conforme assinala Marcel Mazoyer (Mazoyer, 2003).

Por mais que nos últimos anos se fale e se busque uma crescente liberação do comércio internacional o comércio mundial de produtos agrícola não atinge mais do que 14% do total do consumo mundial, segundo a FAO. “O intercâmbio de produtos agrícolas básicos, ainda que seja importante em valor (mercantil) absoluto, só atinge unicamente uma pequena parcela da produção e consumo mundial: 10% dos cereais, por exemplo. Por conseguinte, os mercados internacionais de produtos agrícolas básicos não são mercados mundiais no sentido estrito da palavra, senão mercados residuais que tendem a ultrapassar a produção com excedentes dificilmente vendáveis” (Mazoyer, 2003). Isso significa que é no território nacional que se decide o problema da fome e da alimentação que, nesse caso, aponta na direção contrária ao processo de globalização, onde cada vez mais se fala de commodities. Assim, por mais que se tenha que combinar a articulação do plano nacional com o mundial é no plano nacional que se deve colocar o foco da segurança alimentar.

Assim, há limites por cima e por baixo para que esse modelo se reproduza e se amplie. Talvez a própria mudança de nomes de agricultura para agronegócio, como gostam de chamar o setor os seus próprios protagonistas, indique onde está o problema. No Brasil, durante o mês de junho ocorrem festas religiosas geralmente associadas à colheita, sobretudo, de milho. A expansão do agronegócio pela região Centro-oeste do país, ocupando suas chapadas, tem feito dessa região a maior produtora de milho do Brasil. Entretanto, milhares de sertanejos no Nordeste e em Minas Gerais festejam efusivamente São João e São Pedro em Caruaru, Campina Grande, Sobral, Crato, Feira de Santana, Jequié, Montes Claros entre tantos ‘arraiás’ onde se comem canjicas, bolos de milho, curaus, quindins, pamonhas, milhos cozidos que se misturam na alegria de tantos empregos, namoros, danças e distribuição de renda implicados nessas festas. Ao que se sabe, nenhuma festa está associada às colheitas feitas com grandes máquinas e com tão poucos empregos no Centro-oeste brasileiro, onde vem se jogando todas as fichas de um

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modelo de desenvolvimento no mais tradicional estilo moderno. Está aberto o espaço, pois, para a realização de uma festa-espetáculo onde uma empresa de eventos contrate artistas do showbusiness, como já se faz em Ribeirão Preto com a Agrishow, como é chamada a festa, ou em Barretos com a festa do Peão Boiadeiro, onde se vê uma enorme concessão simbólica à cultura dos EUA (na primeira, até mesmo pelo nome que se dá à festa - Agrishow). Ali muitos espectadores se farão presentes aplaudindo o que se passa no palco, não necessariamente tão ativos como montando barraquinhas, fazendo bandeirinhas, preparando seus doces e salgados ou dançando uma quadrilha. Com certeza, em Ribeirão Preto e em Barretos sempre há espaço para se montar uma barraca de cachorro quente e para que se possa vender cerveja por aqueles que têm que reinventar a vida nas circunstâncias possíveis. A cultura, vê-se, está associada à distribuição da riqueza no sentido forte da palavra e não necessariamente ao negócio69!

O balanço que já se podia fazer da Revolução Verde, nos anos 70, acusava que o mundo passara a viver uma situação nova e ambígua: pela primeira vez na história da humanidade a quantidade de alimentos ultrapassava as necessidades da humanidade e, como dizia Josué de Castro, a vergonha de nossa época não é que hoje exista a fome e, sim, que hoje a fome convive com as condições materiais para resolvê-la. Entretanto, a produção de alimentos vem sendo cada vez mais concentrada nas mãos de menos produtores e em muitos lugares a implantação da Revolução Verde agravou os problemas da fome e acentuou os conflitos sociais, como é o caso da Somália (Shiva, 2001: 142) e mais recentemente no Malawi.

Talvez a principal lição dessa experiência é que não basta uma visão generosa a respeito da fome, que acredita que se trata de um problema técnico ou de distribuição, seja de renda ou dos próprios alimentos. Com a Revolução Verde pode-se ver que a fome não se deve à falta de alimentos e, sim, ao próprio modo como os alimentos são produzidos. Atentemos, pois, para esse fato essencial: o modo de distribuição não é separado do modo de produção. Todo modo de produção é, ao mesmo tempo, um modo de produção da distribuição 70. Talvez por tudo isso devamos ouvir com atenção o que dizem as mulheres chilenas em sua IIª Assembléia Nacional de mulheres Assalariadas Temporárias da Agroexportação realizada em Valparaízo “Necessitamos que o mundo conheça o verdadeiro custo que está detrás de uma uva, de um melão ou de um kiwi; não podemos permitir que chegue aos mercados do mundo o produto de nosso trabalho tornando vulneráveis os direitos trabalhistas, os direitos das mulheres. Esse custo tem nome, de Olívia, Maria, Nelly, Rosa, Flor, Carmen, e muitas outras, que significam jornadas intermináveis, baixos salários, contratistas maltratadores, não pagamento de impostos, ausência de contrato de trabalho, exposição a praguicidas e enfermidades trabalhistas”. São as "Mujeres Temporeras en ruta a Valparaíso: Por aquí sale la fruta, por aquí salen nuestras demandas". Uma outra voz adentra ao debate. Ouçamo-las.

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69 Mais uma vez, não se pode confundir riqueza com dinheiro, vê-se! 70 Afinal, uma sociedade não organiza primeiro a produção para depois organizar a distribuição, como se fossem empresas num ciclo de produto. Na verdade, no próprio modo como se produz já está implicada a participação de cada um no resultado do processo de produção e, assim lá na produção já está sendo produzido o modo de distribuição.

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4.1.5. Artificialização dos agroecossistemas Guzmán e Molina (1992) observam criticamente que “(...) a agricultura industrializada que atualmente tem sido imposta pelos países desenvolvidos no mundo se baseia num modelo tecnológico de artificialização crescente dos agroecossistemas que está atentando de forma irreversível contra a sua reprodução. De fato, desde uma perspectiva ecológica ‘tal modelo produtivo supõe categorias de discriminação dos recursos, formas tecnológicas e estratégias produtivas que, dirigidas única e exclusivamente para o incremento da rentabilidade do produzido, não reconhecem nem aproveitam as condições naturais em que se realiza a produção, nem muito menos são capazes de orienta-las em função das vocações naturais em que se realiza a produção’. Os ecossistemas são transformados mediante formas de expansão da sua capacidade produtiva à margem dos limites de sua adequada apropriação agroecológica. Tais formas de expansão se realizam através do incremento da utilização de energia não humana, de tecnologia e de insumos energéticos mediante um processo de acumulação que, baseado no excedente que gera sobre a reprodução humana, permite novas e reiteradas expansões da capacidade produtiva dos agroecossistemas71. Estes se vêem, assim, obrigados ‘cada vez mais a gerar de maneira massiva e num mínimo de tempo uns ou uns quantos produtos capazes de competir vantajosamente no mercado. Tal forma de produção entra em aberto conflito com os ciclos ecológicos, a renovação e a capacidade dos solos, a diversidade orgânica e inorgânica dos ecossistemas, o equilíbrio dos sistemas hidrológicos e a escala na qual deve efetuar-se toda a produção ecologicamente adequada’ ” (Toledo, 1985: 54) “Ele é assim porque a base das expansões da capacidade produtiva dos agroecossistemas industrializados na utilização de uma crescente extração de recursos naturais. Tão forte artificialização da arquitetura ecossistêmica cria no homem a falsa ilusão de que cada vez depende menos da natureza. Sem dúvida, o contínuo forçamento das condições naturais para obter o incremento na produtividade, constitui um processo crescente de submetimento dos agroecossistemas aos ciclos de rotação e acumulação do capital que atenta de maneira irreversível contra sua renovabilidade (Guzmán e Molina, 1992: 10-11)”. --------x--------

4.1.6. Barbárie e modernidade72

Em pleno inicio do século XXI, os movimentos sociais continuam sua luta pela conquista da Reforma Agrária no Brasil. As elites concentradoras de terra respondem com a barbárie. Assim, o país vai prosseguindo no registro das estatísticas crescente sobre os

71 Sobre os aspectos terminológicos e conceituais da ecologia para a análise destes temas Cf. Juan Gasto, “Bases ecológicas da modernização da agricultura” em ºSunkel y N. Gligo (eds.), Estilos de desarrollo y médio ambiente em América Latina (México: FCE, 1989), Vol. I, pp. 341-378. 72 Esta seção é constituída pelo texto referente à Introdução do documento de Oliveira, Ariovaldo Umbelino. Barbárie e Modernidade. As transformações no campo e o agronegócio no Brasil. Segunda versão apresenta em São Miguel de Iguaçu, PR, XII Encontro Nacional do MST, 19 a 24 de janeiro de 2004. São Paulo, mimeo 49 p. 1 a 3.

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conflitos e a violência no campo. A luta sem trégua e sem fronteiras que travam os camponeses e trabalhadores do campo por um pedaço de chão e contra as múltiplas formas de exploração de seu trabalho amplia-se por todo canto e lugar, multiplica-se como uma guerrilha civil sem reconhecimento. Essa realidade cruel é a face da barbárie que a modernidade gera no Brasil. Aqui a modernidade produz as metrópoles, que industrializa e mundializa à economia nacional, internacionalizando a burguesia nacional, soldando seu lugar na economia mundial, mas prossegue também, produzindo a exclusão dos pobres na cidade e no campo. Esta exclusão leva à miséria parte expressiva dos camponeses e trabalhadores brasileiros.

No Brasil, o desenvolvimento contraditório e desigual do capitalismo gestou também, contraditoriamente, latifundiários capitalistas e capitalistas latifundiários. Os integrantes do mundo do agronegócio continuam a pedir o fim dos subsídios agrícolas nos países desenvolvidos, para que a produção mundializada da agricultura brasileira chegue ao mercado mundial. Insistem também, na recusa em aceitar a Reforma Agrária como caminho, igualmente moderno, para dar acesso a terra aos camponeses que querem produzir e viver no campo. Como tenho escrito em meus textos, não se trata, pois de um retorno ao passado, mas, de um encontro com o futuro.

A incansável luta pelo acesso a terra no Brasil, tem esta dimensão da modernidade incompreendida pela elite latifundiária e por parte da intelectualidade brasileira. No Brasil, há intelectuais que preferem acreditar que o campo acabou e que a agricultura é atividade de “tempo parcial” (part-time farmer). As pluriatividades estariam agora na agenda do dia, assim, a produção agrícola estaria irremediavelmente em segundo plano. Estes intelectuais afirmam com apoio de parte da mídia brasileira que o campo urbanizou-se e não há mais sentido falar-se em rural. A onda agora é o “novo rural brasileiro”, o “rururbano”. O campo do Brasil real foi substituído pelo Brasil da ficção virtual que emerge das análises estatísticas da PNAD - Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar que o IBGE levanta. Aliás, esses intelectuais continuam a fazer com que a “estatística seja a arte de torturar os números até que eles confessem”, como contou-nos um dia o genial economista José Juliano de Carvalho Filho da FEA-USP, nas reuniões de elaboração do II Plano Nacional da Reforma Agrária do Governo LULA. Há também, entre estes intelectuais, aqueles que travam uma “briga falsa” com as estatísticas do IBGE. Como este Instituto toma como base para seus levantamentos estatísticos o perímetro urbano definido por lei em cada município do país, este critério dos tempos getulistas, “esconderia” um Brasil majoritariamente rural, pois a maioria das cidades brasileiras vive das atividades rurais. Para eles, portanto, a maior parte da população levantada como urbana pelo IBGE é também nesta “ficção virtual da também virtual teoria” uma população rural.

Assim, o Brasil rural virou urbano ou então, o Brasil urbano virou rural. Certamente, nem mesmo os mais dialéticos dos filósofos imaginaria tamanha “dialética do virtual”. Para estes intelectuais, que no campus universitário procuram entender o campo, as estatísticas servem a priori para justificar e fundamentar concepções contraditórias. É muito provável que nem um e nem outro tenha razão. É preciso ponderar que a amostragem das estatísticas da PNAD está contaminada pela presença de grande número de amostras que caíram no urbano clandestino computado como rural. Não são somente as estatísticas que registram um Brasil majoritariamente urbano, mas, há de fato, em todas as partes deste

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país continente, o modo de vida urbano dominando simultânea e contraditoriamente a cidade e o campo. É possível, que tenha faltado a necessária compreensão de que não são os dados que determinam a realidade, mas, ao contrário, é a realidade que determina os dados. Aliás, tem faltado realidade e Geografia do Brasil nos estudos destes intelectuais.

Outros intelectuais, movidos pela busca da compreensão do Brasil real, vão ao campo estudar as lutas travadas pelos movimentos sociais, procuram interpretar a barbárie que os dados sobre conflitos no campo levantados pela CPT registram. Assim, o campo contém as duas faces da mesma moeda. De um lado, está o agronegócio e sua roupagem da modernidade. De outro, está o campo em conflito. A mesma série estatística que registra os conflitos, retransmite o recado vindo do campo: nem a violência dos jagunços, nem a repressão social democrata do governo FHC e de muitos governos estaduais como o do PSDB em São Paulo, ou mesmo os textos dos intelectuais e a opinião da mídia representante das elites que não vêem esta realidade, são suficientes para impedir a já longa e paciente luta de uma parte dos trabalhadores do campo e de parte dos excluídos da cidade, para “entrarem na terra”, para se transformarem em camponeses.

Estamos diante da rebeldia dos camponeses no campo e na cidade. Na cidade e no campo eles estão construindo um verdadeiro levante civil para buscar os direitos que lhes são insistentemente negados. São pacientes, não têm pressa, nunca tiveram nada, portanto, apreenderam que só a luta garantirá no futuro, a utopia curtida no passado. Por isso avançam, ocupam, acampam, plantam, recuam, rearticulam-se, vão para as beiras das estradas, acampam novamente, reaglutinam forças, avançam novamente, ocupam mais uma vez, recuam outra vez se necessário for, não param, estão em movimento, são movimentos sociais em luta por direitos. Têm a certeza de que o futuro lhes pertence e que será conquistado.

Mas, as elites ao contrário, como têm que garantir o passado, vêem na violência e na

barbárie a única forma de manter seu patrimônio, expresso na propriedade privado capitalista da terra.

Assim, a lei vai sendo invocada por ambos: uns para mantê-la, outros para

questionar o seu cumprimento. O direito vai sendo subvertido e a justiça ficando de um lado só, o lado do direito reivindicado pelas elites. Muitos magistrados são capazes de dar reintegração de posse a um representante da elite que não possui o título de domínio de uma terra que é sabidamente pública. Como tal, sendo pública ela não é passível do reconhecimento da posse. Entretanto, a justiça cega não vê porque não quer. Mas, muitos magistrados apenas vêem quando os camponeses em luta abrem para a sociedade civil a contradição da posse capitalista ilegal da terra pela Constituição. Neste momento, o direito é abandonado e a justiça vai se tornando injustiça. Aqueles que assassinam ou mandam assassinar estão em liberdade. Aqueles que lutam por um direito que a Constituição lhes garante, estão sendo condenados, estão presos. Repetindo, é a subversão total do direito e da justiça.

A luta e a própria Reforma Agrária vão para o banco dos réus. Os camponeses

processados e condenados. Instaura-se em nome do rigor do cumprimento da lei, a velha

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alternativa de tornar os presos políticos em réus comuns. Aliás, de há muito neste país, história e farsa, farsa e história se confundem aos olhos dos mortais (...)

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4.2. Insustentabilidade sócio-ambiental 4.2.1. A agricultura brasileira ontem e hoje73 Agricultura colonial e moderna: semelhanças e diferenças dos padrões de ocupação e uso do espaço

A degradação ambiental associada à injustiça social são elementos constitutivos do processo de desenvolvimento da agricultura brasileira desde os primórdios de nossa história. Em grande medida, este fato se deve à permanente subordinação do setor agrícola nacional a lógicas econômicas externas, caracterizando-o como um espaço de transferência de riquezas, a expensas da exploração predatória dos recursos naturais e do trabalho das categorias sociais subalternas: índios, negros, mestiços e, mais recentemente, o conjunto da população pobre. As primeiras ações dos colonizadores europeus já se pautaram por essa orientação, ao priorizarem inicialmente as atividades extrativistas e, logo após, a produção extensiva de bens agrícolas exportáveis demandados pelo capital mercantil europeu. Entretanto, foi a partir dos anos 60 e, sobretudo, desde a década de 70, que a crise sócio-ambiental se intensificou e se ampliou a níveis sem precedentes em paralelo com a intensificação do uso do espaço ambiental resultante do processo de modernização tecnológica do setor agrícola, que visava, entre outros, o aumento dos excedentes exportáveis e a liberação de capital e mão-de-obra para suportar uma lógica “desenvolvimentista” apoiada no setor urbano/industrial (Almeida e outros, 1996).

O processo de colonização brasileiro se baseou num uso extensivo do espaço. A introdução em larga escala do cultivo da cana-de-açúcar, implicou a doação de vastas porções de terra a quem se aventurasse a vir para o Brasil, com o objetivo de se dedicar a esta atividade. O regime de sesmarias foi efetivado, portanto, em função dos interesses externos que determinaram as condições em que seriam empreendidas as atividades produtivas. Encontra-se aí a origem primeira do latifúndio brasileiro e da exploração monocultural da terra.

Também remonta à época colonial, a gênese do campesinato brasileiro, que irá constituir o que hoje chamamos de agricultura familiar. A sociedade agrária colonial era composta basicamente de duas classes sociais: a dos senhores de engenho e a dos trabalhadores do latifúndio, fundamentalmente, os escravos. Mas os engenhos também incorporaram trabalhadores livres, chamados de agregados (Guimarães, 1989). Estes, mais no nordeste açucareiro e depois em Campos dos Goitacases, e os posseiros, que ocupavam

73 Esta seção corresponde ao “cap. 2 A agricultura brasileira ontem e hoje” do documento de Silva, Carlos E. Mazzetto (2000). Democracia e sustentabilidade na agricultura brasileira: subsídios para a construção de um novo modelo de desenvolvimento rural. Belo Horizonte/ Rio de Janeiro, mimeo 52 p.

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pequenas faixas de terra, mais na região centro-sul, para praticarem uma agricultura de subsistência e venderem os excedentes produzidos no mercado interno, (Silva, 1978) é que estarão na gênese do campesinato no Brasil.

A terra no Brasil colonial não se tinha convertido ainda em mercadoria, mas sim num privilégio de casta – a terra-privilégio (Guimarães, 1989). Ela só se transformará em mercadoria com a Lei de Terras, em 1850, que fixa os seus preços em valores bastante elevados, evitando assim propiciar o acesso à terra à multidão de camponeses livres. Além disso, é importante lembrar que nessa época ainda vigia o sistema escravocrata, e que a numerosa população negra, portanto, também estava excluída do acesso à terra74.

Ao longo dos séculos, apesar de mudanças significativas ocorridas na estrutura econômica e social brasileira, houve no meio rural uma permanente reiteração de uma lógica econômica fortemente extrovertida e da grande exploração agromercantil, de base territorial necessariamente extensa, consolidando, na estrutura e na sociedade agrária brasileira, um acentuado dualismo no qual figuram, de um lado, a produção de alta expressão comercial, e do outro, as atividades economicamente subsidiárias que são, sobretudo, as que objetivam a produção de gêneros alimentares para o abastecimento do mercado interno.

A consolidação deste caráter dual da produção agrícola, fez com que os camponeses se mantivessem historicamente à margem dos latifúndios e das atividades consideradas maiores do sistema, ou seja, as culturas de exportação e, mais recentemente, as culturas com destino agro-industrial. Mesmo que eventualmente estivessem envolvidos com essas atividades em suas propriedades, as realizavam de uma maneira distinta da do grande capital, sem mão-de-obra de fora (escravos ou assalariados), com precários instrumentos de trabalho e, muitas vezes, sem a posse legal da terra, configurando-se, claramente, como um setor subordinado no sistema econômico agrário (Silva, 1978).

A agricultura familiar brasileira, portanto, devido às condições de precariedade e instabilidade em que operava, dificilmente conseguia alcançar um patamar econômico muito superior aos mínimos vitais e sociais. Evidentemente, não é possível generalizar esta situação limite para o conjunto dos agricultores familiares brasileiros, em seus diversos momentos e em todo o território. Porém, mesmo considerando que as formas em que se expressa a precariedade são diferenciadas, essas famílias de agricultores tiveram, de uma maneira ou de outra, que abrir caminho entre as dificuldades que encontravam: submeter-se ao latifúndio ou isolar-se em espaços de fronteira agrícola; depender exclusivamente dos insuficientes resultados do trabalho na propriedade ou complementar a renda trabalhando em propriedades alheias; migrar temporal ou definitivamente (Wanderley, 1996). Portanto, diante do restrito acesso à terra, a pobreza, o isolamento e a produção centrada na subsistência mínima eram as principais características encontradas na grande maioria das unidades produtivas rurais camponesas no Brasil até o período inaugurado com a modernização agrícola.

74 Quando da Independência do Brasil, em 1822, a população brasileira era de 3,7 milhões de habitantes, dos quais 2 milhões eram escravos. A população negra abrangia, portanto, no mínimo, 54% dos brasileiros (Alencar, 1999).

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Essa modernização, como sabemos, não se deu com a desconcentração da estrutura

fundiária. O caminho de um desenvolvimento autônomo foi preterido em detrimento da opção por um modelo de desenvolvimento associado ao capital externo. No início dos anos 60, discutia-se intensamente os rumos do desenvolvimento econômico brasileiro, enfatizando-se, sobretudo, a necessidade de dar continuidade ao processo de industrialização iniciado nos anos 30 com a política de substituição de importações. Estava claro naquele momento a estreita vinculação entre os processos de desenvolvimento rural/agrícola e urbano/industrial. A definição de uma nova política industrial não poderia se dar, sem que houvesse profundas alterações no meio rural. Os que defendiam a alternativa modernizante que se instaurou (a partir da instalação da ditadura militar), discordavam da necessidade da reforma agrária para a melhoria do desempenho do agro brasileiro. Para esses, o gargalo da agricultura brasileira não se encontrava na estrutura agrária, mas essencialmente nas baixas produtividades da mão-de-obra e das culturas (que não se alterariam pela simples divisão das terras). Portanto, para esses, as reformas na agricultura deveriam se dar fundamentalmente através da modernização da base tecnológica, incrementando-se a mecanização, a utilização de adubos sintéticos e de variedades melhoradas. Em outras palavras, significava manter um padrão de ocupação do espaço concentrado, mudando-se apenas o padrão de uso.

Esse padrão, baseado na intensificação do uso da terra e na artificialização dos ecossistemas, gerou uma crise sócio-ambiental sem precedentes, como resultado de rápidas e profundas transformações, ocorridas na organização física, técnica e sócio-econômica do espaço rural, promovidas com o objetivo de modernizar o setor agrícola.

O Estado brasileiro jogou um papel decisivo na criação das condições políticas, institucionais e econômicas para que a modernização se efetivasse de maneira rápida e em grande escala. As exigências de consolidação e reprodução em larga escala do modelo de ‘industrialização da agricultura’ comandaram uma drástica reestruturação dos setores de produção de insumos e de transformação industrial, das instituições e mecanismos de crédito, dos circuitos de comercialização e da estrutura dos mercados. Mudanças adaptativas atingiram igualmente as instituições de ensino de ciências agrárias, sobretudo através de convênios de cooperação entre grandes universidades brasileiras, americanas e instituições internacionais de pesquisa. Fechando o círculo das condições de viabilização da modernização, o Estado definiu um amplo e complexo conjunto de instrumentos de intervenção - leis, regulamentos, programas, instituições - que passaram a favorecer a expansão e a consolidação do modelo no terreno técnico-científico e a regular as relações sociais e os conflitos resultantes das mudanças na organização social e técnica da produção agrícola (Almeida, 1992).

A modernização da agricultura significou, a bem dizer, a modernização parcial do latifúndio, o que justificou a expressão “modernização conservadora”.

Socialmente seletivo em termos de produtores beneficiados, o processo modernizante foi igualmente seletivo em termos de produtos e de regiões. Claramente, os principais focos de interesse deste processo, foram a região Centro-Sul e, posteriormente, a Centro-Oeste, e as atividades voltadas para o comércio internacional e/ou vinculadas aos

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complexos agroindustriais. Os instrumentos das sucessivas políticas agrícolas se orientaram prioritariamente para garantir e reforçar a expansão das produções exportáveis como a soja, a cana-de-açúcar, o café, a laranja, enquanto estagnaram ou recuaram os cultivos alimentares de arroz, feijão, milho e mandioca. Até mesmo uma parcela dos latifúndios não se incorporou a este processo, mantendo-se em atividades extensivas/extrativas (gado de corte, exploração de madeira e carvão) e/ou especulativas. (Almeida, S. G. et al., 2000)

Este caráter desigual da modernização acentuou a diferenciação social no meio rural e consolidou a histórica dualidade existente na estrutura produtiva do setor agropecuário. Além das seculares características distintivas entre o padrão produtivo dos agricultores patronais e familiares, a modernização incorporou uma nova marca, que concorreu para acirrar ainda mais o distanciamento entre esses padrões: o modelo tecnológico empregado, chamado de Revolução Verde. Através da utilização intensiva da moto-mecanização, dos fertilizantes inorgânicos, dos agrotóxicos, dos equipamentos pesados de irrigação, das variedades, raças e híbridos de alto rendimento, das rações industriais e hormônios sintéticos intenta-se elevar ao máximo a capacidade potencial dos cultivos e criações, proporcionando-lhes as condições ecológicas “ideais”. A lógica subjacente é a do controle das condições naturais, através da simplificação e da máxima artificialização do meio ambiente, de forma a adequá-lo ao genótipo75, de maneira que este possa efetivar todo o seu potencial de rendimento. Nesta concepção, a pesquisa e a extensão rural foram orientadas para incorporarem e difundirem tecnologias e processos na forma de “pacotes”, tidos como de aplicação universal, destinados a maximizar o rendimento dos cultivos em situações ecológicas profundamente distintas (Almeida, S. G. et al., 2000).

Do ponto de vista da apropriação do espaço agrícola, a grande inovação trazida pela Revolução Verde, foi a intensificação do uso dos ambientes. Anteriormente, tanto grandes quanto pequenos agricultores cultivavam a terra extensivamente, segundo suas capacidades produtivas naturais. Havia, portanto, o amplo predomínio do uso das práticas agrícolas de convivência com as limitações ambientais. Com a modernização, as limitações ambientais passaram a ser reduzidas (controladas) através do uso dos insumos agrícolas. Para solos de baixa fertilidade, passou-se a utilizar a adubação química; para ambientes com déficits hídricos pronunciados, a irrigação; para as doenças e “pragas”, os agrotóxicos; e assim por diante.

Acentuando a disparidade entre agricultores patronais e familiares, o caráter desigual da modernização consolidou no setor agropecuário brasileiro uma estrutura bimodal (FAO/INCRA, 1995), marcada pela convivência de duas lógicas de organização da produção que correspondem, em última análise, a dois modelos produtivos essencialmente distintos. Esses modelos se orientam por paradigmas de uso do espaço diametralmente opostos: o do controle das limitações ambientais, através da tentativa de máxima artificialização do meio natural; e o da convivência com as limitações ambientais, através da tentativa de adaptação das atividades produtivas à capacidade natural de suporte do meio (Almeida, S. G. et al., 2000).

Os impactos da modernização

75 Genótipo é a manifestação do conjunto de genes (ou de toda a carga genética) que forma um ser vivo.

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a) Impactos sociais

Do ponto de vista social, a modernização da agricultura provocou impactos negativos de ampla magnitude.

O primeiro impacto se deu sobre o emprego agrícola. Ao direcionar o processo modernizante fundamentalmente para as culturas de exportação e/ou para as vinculadas aos complexos agroindustriais, o Estado provocou uma intensificação exacerbada da tendência à monocultura. Essa tendência veio associada à moto-mecanização como base do uso do espaço agrícola e teve um duplo efeito: substituir mão-de-obra e substituir culturas alimentares. Com efeito, com subsídios que cobriam até a metade do custo real do maquinário, o parque de tratores saltou de cerca de 61 mil para mais de 527 mil entre 1960 e 1980, com amplo predomínio de equipamentos médios e pesados. Em 1960, havia 470 ha/trator e este número passa para 97 em 1980. Mesmo nos períodos mais recentes essa tendência se manteve. Em 1995, cerca de 512,1 mil estabelecimentos rurais (10,5% do total) possuíam tratores, totalizando 803,7 mil unidades, 138,5 mil unidades a mais do que em 1985. Os sistemas de parceria, colonato e de moradores praticamente desapareceram neste período, enquanto muitas atividades, que antes empregavam mão-de-obra assalariada, passam a ser realizadas por máquinas, estreitando ainda mais o emprego agrícola (Weid, 1997).

Para se ter uma idéia do caráter desempregador do atual modelo agrícola, entre 1985 e 1995, cerca de 5,5 milhões de ocupações em atividades agrícolas foram eliminadas! De 23,4 milhões em 1985, passamos a 17,9 milhões de pessoas ocupadas nas atividades agrícolas em 1995 (CPP, 1999, a partir de dados dos Censos Agropecuários de 1985 e 1995). Na conjuntura atual, esses dados se tornam alarmantes, pois evidenciam que essa agricultura não se mostra capaz nem de manter o nível de ocupação. Ao contrário, manda para as cidades enormes contingentes de mão de obra não qualificada para seu mercado de trabalho, que por sua vez também não vem dando conta nem de manter o nível de emprego da chamada mão de obra qualificada.

O segundo efeito do processo modernizador, foi o da intensificação de um sistema que já era historicamente concentrador do espaço rural. Vários fatores concorreram para isso. De um lado, com as novas tecnologias, a grande propriedade monocultora pôde se estabelecer em determinados ecossistemas antes inviáveis devido à presença de fortes limitações ambientais. Através de crédito abundante e barato, estimulou-se a aquisição de insumos agroquímicos, material genético e equipamentos para a redução dessas limitações, o que provocou uma verdadeira “fome de terras” dos grandes proprietários, o que significou forte valorização do capital fundiário. Do outro lado, ao tentarem se inserir no processo “moderno”, muitos pequenos agricultores terminaram por se endividar76, tendo que 76Este processo não é difícil de ser entendido. Uma vez que os custos de produção por unidade de área dos sistemas agrícolas modernizados são muito elevados e, de forma geral, não compensados pelos aumentos de produtividade decorrentes, a receita líquida unitária desses sistemas tende a ser desfavorável, quando comparada com a dos sistemas tradicionais (com baixo uso de insumos). Como as médias e grandes propriedades operam com maiores escalas de produção, têm maiores chances de se viabilizar economicamente através da agroquímica.

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abandonar suas terras para saldarem as dívidas (Weid, 1997), abrindo caminho para que os grandes as adquirissem a preços baixos. Já os diversos sistemas camponeses mais tradicionais e resistentes ao processo modernizante, foram em grande parte desestruturados, pois: a) com a fragmentação das pequenas propriedades, perderam as áreas que propiciavam a estratégia dos pousios levando muitas vezes a uma superexploração da terra; b) com a apropriação privada das terras comuns, ficaram sem as atividades extrativas e as áreas de solta de animais77; c) com o avanço dos métodos modernos – dentro ou no entorno das comunidades camponesas – o equilíbrio ecológico foi se rompendo e os recursos naturais dos quais dependiam foram se degradando ou mudando de mãos78.

A histórica concentração de terra no país se manteve e se agravou neste período. Os dados mais recentes mostram que em 1995 os estabelecimentos com mais de 1.000 ha (1% do total de estabelecimentos) ocupavam 45,1% da área, mais do que os 44,1% que ocupavam em 1985. Do outro lado, aqueles estabelecimentos com menos de 100 ha, representando 89,3% do total, ocupavam 20,0% da área em 1995, menos do que os 21,2% que ocupavam em 1985. Mesmo assim, este estrato absorvia 80,6% do total de pessoal ocupado nas atividades agropecuárias.

Quadro 1 – Área ocupada pelos dois estratos extremos de tamanho dos

estabelecimentos rurais do Brasil – 1985 e 1995

ESTRATO

% em relação ao total dos estabelecimentos

1985 1995

% de área ocupada

1985 1995 Mais de 1.000 ha 0,8 1,0 44,1 45,1

Menos de 100 ha 90,0 89,3 21,2 20,0

Fonte: CPP, 1999, a partir dos dados dos Censos Agropecuários de 1985 e 1995/96

O efeito combinado desses fatores (desemprego e concentração de terra), concorreu em grande medida para que, nas últimas três décadas, cerca de 40 milhões de pessoas migrassem para as cidades, em especial para os grandes centros urbanos, praticamente invertendo o perfil da distribuição da população brasileira no curto período de uma geração (Weid, 1997). Em 1960, o Brasil tinha 60 milhões de habitantes, com 32,4 milhões (54%) vivendo no campo (Gonçalves, 1995). Em 1991, a população rural apresenta um crescimento irrisório, chegando a 35,8 milhões, representando apenas 24,4% do total de 146,8 milhões de habitantes. Isso quer dizer que a população urbana no mesmo período cresceu de 27,6 milhões (46% do total) para 111,0 milhões, abrigando 75,6% da população em 1991 (IBGE, 1996). Como decorrência, a degradação da qualidade de vida nas grandes cidades vem se acelerando de forma continuada, uma vez que a oferta de empregos e de

77 Mecanismos como a grilagem de terras e a cessão gratuita de terras devolutas a empresas rurais (como aconteceu com as empresas reflorestadoras que ocuparam as chapadas dos Gerais norte-mineiros), por exemplo, foram responsáveis por esse fenômeno. 78 Para Leff, “o processo de modernização despreza as economias de subsistência, impondo processos de despossesão de terras e saberes, gerando desigualdades sociais pela má distribuição e acesso aos recursos naturais” (Leff, 1998: 110).

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infra-estruturas urbanas não conseguem se expandir no mesmo ritmo com que chegam novas levas de imigrantes.

É neste modelo excludente de desenvolvimento agrícola que se encontram as raízes da violência urbana, dos menores de rua, da prostituição, e da fome, temas tão candentes na sociedade brasileira. Por ter uma ligação mais direta com o modelo de desenvolvimento agrícola, é importante atentarmos aqui também para o problema da fome.

Segundo pesquisa do IPEA, publicada em 1993, mais conhecida como o Mapa da Fome no Brasil, existiam no país, nesta data, cerca de 33 milhões de pessoas submetidas, em diversos níveis, ao problema da fome, metade das quais em áreas rurais (Peliano, 1993). É paradoxal um país com um PIB que é considerado o nono do mundo, que tem uma renda per capita que gira em torno de U$ 5.000, e com um setor agrícola pujante que o situa entre os maiores produtores de gêneros agrícolas do mundo, coexistir com amplas parcelas da população sujeitas à fome endêmica ou periódica. Essa anacrônica situação na qual a “riqueza gera a pobreza”, encontra suas raízes num modelo de desenvolvimento concentrador de renda e de terras fundado numa economia de caráter claramente extrovertido (Weid, 1997). Com a forte concentração da renda - uma das maiores do mundo, grande parte da população não tem o poder aquisitivo para manter um padrão de consumo que satisfaça suas necessidades alimentares. Com a concentração das terras, e a conseqüente expulsão dos agricultores familiares do meio rural, a oferta de alimentos cai, uma vez que são os sistemas familiares, ainda hoje, a despeito de sempre terem ficado à margem das diretrizes governamentais para o desenvolvimento agrícola, os responsáveis por significativa parcela da produção de alimentos básicos que abastece o mercado interno. b) Impactos ambientais

Do ponto de vista ambiental, as conseqüências das transformações do padrão tecnológico da agricultura não foram menos drásticas. A tendência à homogeneização das práticas produtivas, à simplificação e à artificialização extremada do meio natural induzida pelos padrões produtivos da Revolução Verde, acompanhou-se de impactos ambientais que se irradiaram a todos ecossistemas do país: degradação dos solos agrícolas, comprometimento da qualidade e da quantidade dos recursos hídricos, devastação das florestas e campos nativos, empobrecimento da diversidade genética dos cultivares, plantas e animais e contaminação de alimentos consumidos pela população.

Alguns dados recentes sobre consumo de agrotóxicos e degradação dos solos são importantes para refletirmos sobre a sustentabilidade ecológica da agricultura brasileira:

Entre 1964 e 1991, o consumo de agrotóxicos no Brasil aumentou em 276,2%, frente a um aumento de 76% da área plantada. Na última década, é que o consumo disparou. Em 1990 as vendas eram de U$ 1,0 bilhão passando para U$ 2,18 bilhões em 1997 (dados da Fundação Nacional de Pesquisa citados por Consórcio Museu Emílio Goeldi, 1999). Importante ressaltar que a soja absorve 35% dos gastos totais dos agricultores brasileiros com agrotóxicos, vindo em seguida a cana (monoculturas de exportação). De acordo com a própria EMBRAPA, apesar destes dados, as perdas por pragas e doenças não diminuíram, nem os ganhos de produtividade foram significativos

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nesse período (EMBRAPA na Folha de São Paulo, 03/03/1998). Os agricultores usaram 260 mil t de agrotóxicos em 1993, consolidando a honrosa posição que o Brasil ocupa entre os maiores consumidores desses produtos no mundo, desde, pelo menos, o final da década de 70.

Por outro lado, entre 93 e 95, os casos de intoxicação por agrotóxicos cresceram 18% (dados do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas na Folha de São Paulo, 1998). Estima-se que o número de casos de intoxicação de aplicadores desses produtos deva estar em torno de 200 mil por ano (Fundacentro) podendo chegar a 300.000 casos (Fundação Oswaldo Cruz)

Estima-se que para cada tonelada de grãos produzida no Brasil por métodos convencionais de preparo de solos (uma aração de disco e duas ou mais gradagens), dez toneladas de terra são carregadas pelas águas das chuvas, da irrigação ou, em menor escala, pelos ventos. O IAC (Instituto Agronômico de Campinas) estima que cada hectare cultivado no país perde , em média, 25 t de solo por ano, significando uma perda anual de cerca de 1 bilhão de toneladas de terra ou aproximadamente 1 cm de camada superficial do solo. No estado de São Paulo, a erosão carrega, de acordo com diferentes fontes, entre 130 e 194 milhões de toneladas de solos paulistas (Consórcio Museu Emílio Goeldi, 1999). Nos Cerrados, 80 a 85% das pastagens plantadas79 apresentam algum tipo de degradação (Shiki, 1997) com sinais de desertificação principalmente nos solos areno-quartzozos.

Não se dispõe de muitos dados sobre a perda de biodiversidade nativa provocada pelo processo de modernização da agricultura brasileira. Sabe-se que essa perda vem na verdade desde a invasão portuguesa no litoral da Bahia. A Mata Atlântica foi a primeira vítima, restando hoje cerca de 8% da cobertura original. Sua erradicação se acelerou com a expansão da cultura do café e com a exploração de lenha, e carvão vegetal que foram, as duas últimas, a fonte energética para o crescimento das indústrias e da malha ferroviária no início desse século. As exploração madeireira se seguiu a essas atividades, acompanhadas da abertura de áreas para pastagens e da expansão de monoculturas modernas como a da cana-de-açúcar. No início da década de 70, a Bahia tinha 11 mil km2 (1,1 milhão ha) de florestas ainda intactas. A ação de 230 serrarias junto com as plantações de cacau, fizeram com que em 1980 restassem apenas 2 mil km2. Foi, entretanto, sobre a Amazônia e principalmente sobre os Cerrados que a modernização mais avançou. De acordo com documento elaborado pelo Consórcio Museu Emílio Goeldi para a Agenda 21 brasileira, apenas 7% de sua área ainda não foi submetida a algum tipo de exploração intensiva ou extensiva80, e apenas 2% de sua área está protegida na forma de unidades de conservação, enquanto que na Amazônia esse percentual é de 12% (Consórcio Museu Emílio Goeldi, 1999). Além disso, de acordo com a legislação florestal atual, na Amazônia Legal as propriedades agrícolas são obrigadas a deixar 50% de sua área como reserva, enquanto que nos outros ecossistemas esse percentual é de apenas 20%. Também é importante dizer que

79 De acordo com depoimento do diretor-chefe da EMBRAPA/CPAC esse percentual já tinha se elevado para 90% no início de 1999. 80 Importante ressaltar que cerca de 90 milhões de ha do total de 200 milhões ha do bioma dos Cerrados é utilizada como pastagem nativa (Consórcio Museu Emílio Goeldi, 1999), o que permite uma manutenção razoável da sua biodiversidade original, dependendo é claro da taxa de lotação de animais na área.

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as Florestas Amazônica e Atlântica, além do Pantanal, são consideradas Patrimônio Nacional, havendo, por isso, maior cuidado com a proteção de seus remanescentes (no caso da Mata Atlântica, qualquer remanescente é, por força de lei, intocável). É portanto sobre os Cerrados que se dá hoje a maior intensidade de perda de biodiversidade pelo avanço da fronteira agrícola e pelos métodos modernos de agricultura (ver Shiki, 2000 - documento publicado pelo Projeto Brasil Sustentável e Democrático). Em Minas Gerais, por exemplo, que tem 53% de seu território dentro do domínio dos Cerrados, o avanço da agricultura moderna junto com as áreas de pastagem de braquiária, das monoculturas de eucalipto e com a expansão do desmatamento para produção de carvão alteraram significativamente a sua cobertura vegetal nativa. A região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, coberta originalmente quase que inteiramente por Cerrados, e onde mais a modernização avançou no Estado, hoje dispõe de apenas 6,5% de sua superfície regional com essa cobertura, incluindo aqui os cerrados em regeneração. Nas regiões Noroeste e Norte do estado, onde a modernização se deu de forma parcial, esses remanescentes atingem valores bem maiores: 50,6% e 34,1% da superfície regional respectivamente (Silva, 1999).

No plano da agrobiodiversidade, menos dados ainda se dispõe no Brasil. É claro, porém, que o caráter artificializador e homogeneizador dos métodos modernos de produção, acoplado à uniformização dos hábitos alimentares, vem estreitando o universo e a base genética das espécies e variedades cultivadas, gerando a chamada erosão genética. A busca incontinente da máxima produtividade física e do trabalho, via mecanização, vem privilegiando determinados tipos de genótipos em detrimento de outros, fazendo desaparecer um sem número de espécies e variedades, a maioria desenvolvida e manipulada milenarmente por populações indígenas e camponesas. A erosão genética provoca, acentua e acompanha a erosão cultural. Alguns dados de Soares et al (1998) nos ajudam a enxergar a magnitude desse fenômeno em alguns países: no México, centro de origem do milho, 4/5 das variedades desapareceram desde 1930. Na China, em 1949, eram cultivadas cerca de 10.000 variedades de trigo. Nos anos 70, apenas 1.000 continuavam em uso. Nos EUA, 91% das variedades de milho utilizadas no começo do século já desapareceram e a quase totalidade da produção se apóia em menos de uma dezena de híbridos.

A erosão genética, como vimos acima, coincide com a decomposição da agricultura familiar tradicional, mas, além disso, diminui a margem de segurança alimentar dos povos, pela perda da diversidade genética contida em uma grande multiplicidade de espécies e variedades adaptadas a diversas condições climáticas e geofísicas.

Uma escassez ainda maior de dados se dispõe a respeito dos impactos sobre os recursos hídricos, relacionados à erradicação da cobertura vegetal, implantação de monoculturas que alteram o ciclo hidrológico - como a do eucalipto -, implantação de perímetros irrigados e pivôs centrais, concentração do despejo de dejetos animais em áreas de criação intensiva, assoreamento causado por exposição e revolvimento excessivo do solo, à contaminação por agroquímicos, etc. Os dados que se tem são pontuais, muitas vezes baseados em estimativas relativamente grosseiras, freqüentemente contraditórias, deixando um vazio de informações sobre o recurso natural que, segundo se diz, será o recurso escasso e estratégico do próximo século. Sabe-se que o Brasil goza do privilégio de dispor de 8% da água doce disponível do mundo (MMA, 1997) e certamente entre outras atividades impactantes, a agricultura moderna é uma das predadoras desse recurso.

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Outro impacto importante da agricultura moderna é sobre os recursos minerais e fósseis não renováveis dos quais ela é dependente. O petróleo, não só exigido pela motomecanização, mas também na composição dos fertilizantes sintéticos e agrotóxicos é um exemplo claro desse fenômeno. As jazidas de fósforo são talvez, desses recursos, o mais escasso e que se esgotará mais rapidamente. As suas reservas no Brasil não devem durar mais de 40 anos de acordo com estimativas recentes (Favero, 1998).

O balanço energético é um outro fator, ligado ao anterior, que se constitui num dos pontos de estrangulamento dos sistemas modernos de agricultura, devido ao consumo voraz de insumos, maquinário e, conseqüentemente, de energia fóssil e elétrica. Toledo (1996) cita um estudo que, comparando sistemas camponeses com sistemas com uso intensivo de capital, demonstra que os primeiros gastam de 10 a 100 vezes menos energia81 e produzem de 3 a 5 vezes menos energia que os sistemas modernos. O seu balanço energético é então de 2 a 30 vezes mais eficiente que o dos sistemas modernos. Esse dado nos faz questionar a racionalidade contida na obsessão unilateral pela produtividade física.

Como entender a magnitude destes impactos? Eles poderiam ser minimizados através da racionalização do uso de insumos? Para responder estas perguntas, precisamos nos remeter às origens e aos fundamentos ecológicos do modelo tecnológico da Revolução Verde.

Este modelo é originário da Europa e dos Estados Unidos e seus fundamentos foram desenvolvidos para serem postos em prática em condições de clima temperado, onde a diversidade ambiental é sensivelmente menor do que a dos trópicos82. Este dado é de fundamental importância, pois, se o modelo pressupõe o controle das limitações ambientais através de inputs externos, quanto mais homogêneo for o ambiente maiores serão as chances de sucesso da aplicação generalizada dos seus pacotes tecnológicos. Definitivamente, este não é o caso dos ecossistemas tropicais, nos quais a diversidade, complexidade e fragilidade ambiental dificultam em muito esta generalização.

Não só a diversidade é fundamental no equilíbrio dos ecossistemas naturais nos trópicos, quanto a sua supressão com o objetivo de estabelecer agroecossistemas extremamente especializados, como os monocultivos, tende a provocar sérios danos ambientais. Ao serem implantados em ambientes tropicais, os sistemas químico-mecanizados reduzem significativamente a diversidade dos ecossistemas naturais, desestabilizando-os. A agricultura implica, em geral, numa simplificação da diversidade do ecossistema natural e no rompimento, ao menos em parte, dos fluxos e ciclos naturais de energia e nutrientes que lhe conferem equilíbrio (sustentabilidade ecológica). Através do fenômeno conhecido por homeostase, regulado pela sucessão natural das espécies, o ecossistema tende a se recompor segundo suas condições ecológicas originais. Para se contrapor a esta “tentativa” da Natureza de se reequilibrar, o agricultor injeta energia

81 A energia e o balanço energético pode ser abordado nos sistemas agrícolas através da transformação em calorias de todos os fatores que entram (força de trabalho, insumos, horas de máquinas, etc.) e saem (produtos) de um determinado sistema. 82 Mesmo assim seus problemas também aparecem lá.

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externa (trabalho, insumos químicos, mecanização, etc.). Portanto, quanto mais artificializado estiver o ecossistema, maior será a tendência de degradação ambiental e maior será a necessidade de aporte energético.

Com a diminuição da diversidade, há uma piora em todos os atributos ecológicos que mantêm o equilíbrio do ecossistema. Uma análise do Quadro 2 evidencia as vantagens de uma maior diversidade dos agroecossistemas.

Por outro lado, as conseqüências ecológicas da simplificação dos agroecossistemas

são múltiplas e decisivas na quebra do equilíbrio e sustentabilidade ambiental dos sistemas produtivos.

Quadro 2: Atributos relacionados a uma maior diversidade dos agroecossistemas e alguns aspectos importantes relacionados

Atributos Aspectos importantes

Biodiversidade vegetal Complementaridade Biodiversidade animal Alimento, refúgio Aproveitamento da radiação Índice de área foliar (IAF),

arquitetura, eficiência Aproveitamento da água Interceptação, sombreamento Redução das temperaturas extremas Aquecimento do solo, interceptação

da radiação Absorção de gás carbônico Eficiência Redução do vento Barreira Aproveitamento de nutrientes Raízes, ciclos, água Redução da erosão Interceptação (IAF) Redução de pragas Predadores, barreiras, diluição Redução de doenças Diluição

Fonte: Adaptado de Resende, 1991

Essas conseqüências são particularmente evidentes no manejo das pragas agrícolas. As comunidades de plantas que são modificadas para satisfazer às necessidades particulares dos seres humanos tornam-se vulneráveis aos danos intensos de pragas e, geralmente, quanto mais modificadas são tais comunidades, mais abundantes e sérias são suas pragas. As características de auto-regulação inerentes a comunidades naturais perdem-se quando tais comunidades são modificadas através da destruição do frágil equilíbrio de suas interações (Altieri, 1994a). Para reduzir as pragas e doenças, o modelo pressupõe o uso de crescentes dosagens de agrotóxicos. Este uso, por sua vez, promove um duplo efeito: possibilita o rápido desenvolvimento de mecanismos de resistência por parte dessas mesmas pragas e doenças, tornando seus controles cada vez menos eficientes; possibilita o surgimento de novas espécies de pragas e de patógenos.

Como exemplo deste fenômeno geral, mas variável segundo o ecossistema e o nível de artificialização, citamos o caso da agricultura paranaense:

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“O aumento de produção de 8,4% no Paraná entre 1970 e 1980, foi devido, quase que exclusivamente, ao aumento da área agrícola, e só em 0,5% atribuível ao autêntico incremento de produtividade. *o mesmo período o consumo de adubos químicos a base de *PK, inseticidas, fungicidas e herbicidas cresceu de 444%, 489%, 197% e 1346% respectivamente. A incapacidade de transformar esse aumento do uso de insumos em incrementos correspondentes na produção, indica, entre outros, uma perda da fertilidade do solo devido aos danos provocados pelos processos erosivos ocorridos no mesmo período” (Derpsh e outros, 1991).

Os exemplos das pragas e da erosão no Paraná são válidos para todos os outros atributos ecológicos apontados no Quadro 2, e caracteriza bem a lógica que fundamenta o paradigma técnico-científico do modelo moderno agro-industrial. As intervenções técnicas terminam por se dar fundamentalmente no sentido de superar os sintomas de desequilíbrio ambiental e não as suas causas estruturais, criando-se um círculo vicioso, no qual as intervenções levam à degradação dos recursos naturais e vice-versa. É uma espécie de desencontro e incompatibilidade entre duas ciências: a agronomia e a ecologia.

A natureza e a amplitude dos impactos ambientais do modelo da Revolução Verde não derivam apenas da incorporação indiscriminada e, muitas vezes, da utilização inadequada de uma base tecnológica desenvolvida para regiões de clima temperado e não adaptada aos ecossistemas tropicais. A este fator de ordem técnica, somou-se a lógica econômica que comandou a incorporação do modelo, fundada no imediatismo e na maximização dos resultados físicos e econômicos no curto prazo, na obsessão pela produtividade, em detrimento da reprodução dos equilíbrios naturais (Almeida, S. G. et al., 2000). Cabe aqui como uma luva uma citação de Marcuse: “*o desenvolvimento da racionalidade capitalista, a irracionalidade se converte em razão: razão como desenvolvimento frenético da produtividade, como conquista da natureza, como incremento da riqueza de bens; mas irracional, porque a alta produção, o domínio da natureza e a riqueza social se convertem em forças destrutivas” (Marcuse, 1968/1972, citado por Leff, 1998: 117)).

Apesar das importantes distinções entre a organização social e produtiva do setor agrícola brasileiro adotada nas últimas décadas e a de um passado remoto, a modernização agro-industrial não logrou superar inteiramente este passado, sobretudo no que toca ao elemento essencial que ainda persiste, que é justamente o fato de que ainda se organiza com base na grande exploração agromercantil, segundo uma lógica produtiva determinada por setores econômicos externos à agricultura, com uma centralidade no setor agro-industrial transnacional. É bem verdade que, no passado, essa lógica era fundamentalmente determinada pelo mercado internacional. Atualmente, com o crescimento da demanda interna em virtude da urbanização, ocorre também destacada influência do mercado consumidor brasileiro. Entretanto, no que se refere às regiões produtoras, estes mercados não se distinguem na essência, na medida em que não se articulam com os seus processos de desenvolvimento, a não ser como compradores de seus produtos, enquanto as condições comerciais permanecerem comparativamente vantajosas.

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Apesar desta lógica econômica de exploração do espaço não ser novidade na paisagem rural brasileira, com a modernização tecnológica do setor agrícola e com a implementação no país de políticas macroeconômicas liberalizantes, verifica-se uma acentuação sem precedentes dos impactos ambientais negativos e da exclusão social. Com a abertura comercial, caracterizada pela eliminação de barreiras não tarifárias e pela drástica redução das tarifas de importação, os mercados agrícolas tornam-se cada vez mais desregulamentados, competitivos, globalizados, e, por conseqüência, instáveis. A maximização das oportunidades no curto prazo, mais freqüentemente associada, no jargão dos economistas, à “eficiência econômica”, se torna portanto uma condição imprescindível para a inserção do setor agrícola nesses mercados. Como parte integrante desta lógica, a especialização e a modernização são as condições básicas que permitem lograr esta “eficiência econômica” (Petersen, 1997).

Curiosamente, ao revisarmos a noção “oficial” de sustentabilidade, isto é, a manutenção do estoque de recursos e da qualidade ambiental para a satisfação das necessidades básicas das gerações presentes e futuras, constata-se que a sustentabilidade do desenvolvimento requer justamente um mercado regulado e um horizonte de longo prazo para a tomada de decisões de política pública, na medida em que atores e variáveis como “gerações futuras” são estranhos ao mercado, cujos sinais respondem à alocação ótima dos recursos no curto prazo (Leroy e outros, 1997).

O que vale ser realçado é que a ampla magnitude dos impactos ambientais negativos advindos da implementação do modelo de desenvolvimento agrícola brasileiro coloca em cheque a possibilidade de permanência dos atuais padrões de uso dos recursos naturais, o que inviabiliza a capacidade deste modelo “assegurar a satisfação das necessidades humanas de forma continuada, para a presente e as futuras gerações” (FAO, 1992).

A seguir o ritmo da destruição ambiental e o esgotamento das reservas mundiais dos recursos naturais que dão origem aos insumos agroquímicos, o modelo químico-mecanizado deverá entrar em colapso nos próximos vinte ou trinta anos (Petersen, 1998). Portanto, o problema da sustentabilidade não estaria colocado para gerações em um futuro remoto, mas bastante próximo. Por outro lado, se uma agricultura sustentável é aquela capaz de suprir as necessidades básicas das gerações atuais, sem comprometer o suprimento das mesmas para as gerações futuras, a agricultura brasileira já deve ser considerada insustentável, na medida em que amplas parcelas da população estão alijadas até do consumo alimentar básico, condição elementar para uma existência digna. c) Impactos culturais

Poderíamos finalmente, nos referir a um impacto de caráter cultural do atual modelo agrícola. Ao se conceber e implementar um modelo baseado num padrão tecnológico de mão única, no qual o conhecimento agronômico moderno, de matriz européia, é percebido como o único válido e capaz de aumentar a produtividade e abastecer o mundo de alimentos, se jogou pelo ralo todo o conhecimento acumulado pelos povos cultivadores em diferentes e diversos ecossistemas do planeta, inviabilizando um diálogo entre os vários saberes agrícolas. No Brasil, isso é particularmente importante, pelo fato de que a mistura étnica que conformou nossa população fez com que se desse um sincretismo entre os

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saberes de origem indígena, africana e européia, que acabou forjando o que Toledo (1996) chama de diversos corpus camponeses, que por sua vez se materializaram em diferentes práxis no trato com os ecossistemas dos quais historicamente essas populações sobreviveram, desenvolvendo estratégias que levavam em conta a sua capacidade de suporte (sustentabilidade ecológica). Todo esse corpus e essa práxis foram marginalizados e, em grande parte, desestruturados com o processo de modernização agrícola brasileiro, pois as condições ecológicas, espaciais (associadas às condições demográficas) que permitiam a sua reprodução foram drasticamente transformadas, passando a operar uma pressão ainda mais forte do que a operada historicamente pelo latifúndio. Ao lado da perda de biodiversidade dos diversos ecossistemas brasileiros, ocorreu uma simultânea destruição da diversidade sócio-cultural dos nossos povos cultivadores. Certamente está na recuperação, no fortalecimento e aprimoramento de boa parte desse conjunto de conhecimentos e práticas, um dos trunfos que podem ainda nos levar para um caminho de sustentabilidade e inclusão social.

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4.2.2. Erosão genética83 (...) Salientemos que toda uma ciência agronômica e florestal, com base na racionalidade científica européia, tem sido desenvolvida para tornar mais eficientes em produção de biomassa exatamente áreas, como essas das regiões temperadas, que dispõem de menor intensidade de energia solar em relação às regiões tropicais, num contra-senso que só se explica pela importância que um certo tipo de conhecimento, o conhecimento técnico-científico, e a regulação jurídica da propriedade a ele associada (patentes e quetais), passa a ter para os países hegemônicos e as grandes corporações que, hoje, praticamente detém o monopólio não do conhecimento tout court, mas desse tipo de conhecimento específico que, cada vez mais, depende de recursos maiores para a pesquisa e desenvolvimento (Ver Estratégia dos EUA para o controle da biodiversidade mundial)84.

Essa concentração de dependência se aplica a cada um dos quatro principais grãos --- trigo, arroz, milho e soja para o ano de 2001. Apenas cinco países --- Estados Unidos, Canadá, França, Austrália e Argentina, são responsáveis por 88% das exportações mundiais de trigo. Tailândia, Vietnã, Estados Unidos e China representam 68% de todas as exportações de arroz. No caso da soja, apenas três países --- EUA, Brasil e Argentina, são responsáveis por 82% da produção mundial. No milho, a concentração é ainda maior, com só os Estados Unidos responsáveis por 78% das exportações e a Argentina por 12%.

83 Esta seção foi constituída com textos extraídos do documento de Porto-Gonçalves, Carlos W. (2004). Geografia da riqueza, fome e meio ambiente: pequena contribuição crítica ao atual modelo agrário/agrícola de uso dos recursos naturais. Niterói, Inter Thesis, (e-mail de setembro de 2004) maio, mimeo 55 p. 84 Aqui se esclarece, também, o porquê de se tentar desqualificar outros saberes diferentes do conhecimento hegemônico produzido a partir da racionalidade instrumental ocidental, como o saber indígena, camponês, afrodescendente e, até mesmo na própria Europa, como o dos galegos, dos bascos, dos catalães, dos corsos entre tantos e muitos outros.

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Uma autoridade indiana declarou pateticamente que "*ossas reservas estão nos silos do Kansas" (Brownn, L. et al. "Erradicação da Fome: Um Desafio Crescente," Estado do Mundo 2001, Salvador-BA: UMA Editora, 2001).

Assim, com o conhecimento produzido em laboratórios de grandes empresas em

associação cada vez mais estreita com o Estado e, deste modo, passível de apropriação privada, a propriedade intelectual individual (patentes) se coloca em confronto direto com o conhecimento patrimonial, coletivo e comunitário característico das tradições camponesas, indígenas, afrodescendentes e outras originárias de matrizes de racionalidade distintas da racionalidade atomístico-individualista ocidental (Porto-Gonçalves, 1989).

Esse conflito se manifesta na reiterada recusa em não reconhecer os direitos

coletivos e patrimoniais de populações que detém conhecimentos ancestrais, conforme pudemos observar recentemente no México com o parlamento se colocando contra o pleito dos zapatistas de direitos territoriais e culturais dos indígenas (Ceceña, 2002). Assim, longe de nos regozijarmos com o fato de a Convenção de Diversidade Biológica reconhecer a soberania dos Estados para regular sobre o acesso aos recursos genéticos é preciso vermos aqui uma estratégia de transferir aos Estados nacionais a responsabilidade e o ônus de se colocarem contra as populações indígenas, afrodescendentes e camponesas85 que, mais do que quaisquer outros segmentos sociais, têm conseguido se inserir no debate globalizado chamando a atenção para o fato de que suas práticas culturais específicas serem aquelas que mais se coadunam com os interesses da humanidade e da ecologia do planeta e que, por isso, devem ser respeitadas enquanto tais.

Entretanto, esses conhecimentos continuam sendo reconhecidos de facto pelas

grandes corporações que deles se apropriam com o apoio dos Estados onde residem seus principais proprietários e acionistas que dão a esses a segurança de jure (patentes e direitos de propriedade intelectual individual). O trigo hoje cultivado no Canadá, por exemplo, tem genes procedentes de 14 países diferentes. O milho manipulado nos EUA tem sua origem no México, assim como os genes dos pepinos ali cultivados são procedentes da Birmânia, da Índia e da Coréia, todos esses genes tendo sido adquiridos sem nenhuma contrapartida econômica, diferentemente das sementes melhoradas que exportam os países hegemônicos. Segundo José Santamarta, “as multinacionais dos EUA, da União Européia e do Japão pretendem obter grátis, sobretudo nos países do Terceiro Mundo, os recursos genéticos para logo vender-lhes a preços de usura as sementes, animais ou medicamentos obtidos, com base na "propriedade intelectual" (Consultar http://www.worldwatch.org/mag).

85 Talvez hoje, melhor do que em qualquer outra época, seja mais fácil observar que não foi simplesmente colonialismo ou o imperialismo que dizimaram povos e culturas como as das populações originárias da América e da África, sobretudo. Afinal, na constituição dos Estados, lá mesmo na Europa, povos e culturas foram desqualificados enquanto possuidores de um saber menor porque local, folclórico, nativo, autóctone ou outro nome desqualificador qualquer que viesse a ter. Aníbal Quijano já nos esclareceu que a independência e a constituição dos Estados nacionais latino-americanos foi feita por uma minoria de brancos criollos onde o fim do colonialismo não significou o fim da colonialidade. Os negros e indígenas que o digam, e estão dizendo hoje mais forte do que nunca!

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O conhecimento, sempre essencial para a reprodução86, tende a se dissociar daqueles que, até aqui, o construíram e, assim, o fazer tende a separar-se do pensar. Deste modo, além da separação da agricultura tanto da pecuária como da caça, da coleta e da pesca o que está em jogo, hoje, é a separação, ainda mais radical, do saber e do fazer, só que, agora, por meio da dissociação do conhecimento acerca da reprodução dessa energia vital que é o alimento nosso de cada dia.

Cerca de “90% de nossa alimentação procede de apenas 15 espécies de plantas e de

8 espécies de animais. Segundo a FAO, o arroz provê 26% das calorias, o trigo 23% e o milho 7% da humanidade. As novas espécies de cultivares substituem as nativas uniformizando a agricultura e destruindo a diversidade genética. Só na Indonésia foram extintas 1.500 variedades de arroz nos últimos 15 anos. À medida que cresce a uniformidade, aumenta a vulnerabilidade. A perda da colheita da batata na Irlanda em 1846, a do milho nos Estados Unidos em 1970 ou a do trigo na Rússia em 1972, são exemplos dos perigos da erosão genética e mostram a necessidade de preservar variedades nativas das plantas, inclusive para criar novas variedades melhoradas e resistentes às pragas”, nos alerta José Santamarta. E, continua, “a engenharia genética levará à perda de milhares de variedades de plantas, ao cultivar-se só algumas poucas com alta produtividade, para não falar de outros muitos perigos, agravando os efeitos da revolução verde das décadas passadas (Consultar http://www.worldwatch.org/mag).

Não estranhemos, pois, quando sucessivos acordos e tratados diplomáticos que

falam de transferência de tecnologia não passem de gasto de tinta e papel, sem nenhuma conseqüência prática. Aliás, estamos imersos aqui numa contradição de fundo da sociedade moderno-colonial atual e de seu modo de produção de conhecimento que se deu, e se dá, negando ao outro, ao diferente, até mesmo a idéia de que produz conhecimento – daí falar-se sem-cerimônia, de transferência de conhecimento e não de diálogo entre matrizes de racionalidade distintas. Vimos, entretanto, que tal como dissera Galileu Galilei, o mundo se move, e o local, seja ele camponês, nativo, aborígene, indígena, autóctone ou outro nome que a eles se atribui, continua sendo produzido e, como vimos, apropriado sem reconhecimento por grandes corporações extremamente ciosas da propriedade quando própria e não alheia.

Com o monopólio das sementes (e do novo modo de produção do conhecimento a

ele associado) a produção tende a se dissociar da reprodução (Vandanna Shiva) e, assim, a segurança alimentar perseguida por cada agrupamento humano durante todo processo de hominização, passa a depender de algumas poucas corporações que passam a deter uma posição privilegiada nas relações sociais e de poder87 que se configuram. A insegurança

86 Aqui reside um atributo fundamental da relação da espécie humana com a natureza, qual seja, de que essa relação embora se fazendo a partir de pulsões como a da sexualidade e da fome, comuns a qualquer espécie animal, as resolve por meio da cultura, portanto, por meio do conhecimento. A reprodução da espécie humana pressupõe todo o conhecimento que se perpetua tanto pela memória genética como pela cultural (os mais velhos, os sábios, adivinhos, curandeiros, pastores, filósofos, cientistas, mateiros, parteiras, rezadeiras...). Portanto, o conhecimento é inerente à reprodução. 87 Devemos a Michel Foucault a lucidez que nos permitiu des-substancializar o poder, não mais devendo ser visto como uma coisa, nem estando, tampouco, num lugar determinado, mas ser, sim, uma relação. Assim, o

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alimentar passa a ser, paradoxalmente, cada vez mais a regra. A agricultura inglesa, por exemplo, importa cada vez mais. De cada cinco frutos vendidos, quatro vêm do exterior e não dos pomares domésticos, antes tão numerosos no campo inglês. Na Argentina, muitos analistas diziam que o país “ ‘es el granero del mundo’, mas esse é um diagnóstico equivocado. O atual modelo agropecuário, baseado na produção de soja geneticamente modificada - GM, está nos transformando em uma republiqueta sojera. O monocultivo está destruindo a segurança alimentar e a vida rural e, nesse sentido, é a ante-sala da fome”, sentenciou Jorge Rulli do Grupo de Reflexão Rural (GRR) da Argentina.

Walter Pengue, especialista em Melhoramento Genético Vegetal da Universidade de

Buenos Aires – UBA, adverte que “se están reemplazando otros cultivos y sistemas productivos, y si esto se pudiera cambiar al año siguiente no sería un problema, pero lo que está sucediendo es que se están levantando montes enteros, frutales, tambos, para la siembra de soja y se está eliminando la diversidad productiva”.

“Em muitos sentidos a Argentina não era um típico país tipicamente

agroexportador, porque exportávamos os mesmos produtos que consumíamos, e isso era uma fonte de segurança alimentar, mas a introdução dos cultivos de soja geneticamente modificada - GM incrementou fortemente nossa vulnerabilidade. Produtos básicos da dieta argentina como arvejas, lentilhas, porotos ou o milho amarelo começam a ser mais escassos, porque estamos entrando num esquema de ser monoprodutores e se está uniformizando tudo com a soja’, adverte Pengue (Citado por Bacwell e Stefanni).

No Brasil o desenvolvimento do novo modelo agrário/agrícola também mostra o

mesmo sentido ao apontar para um modelo onde o monocultivo acentua a dependência do agricultor diante do complexo industrial-financeiro altamente oligopolizado e, com isso, aumenta a insegurança alimentar tanto de agricultores e suas famílias como do país. A produção de soja no Rio Grande do Sul até os anos 60 estava associada à produção de trigo, de milho e a pastagens para gado bovino, além da criação de porcos e todos os seus derivados (banhas, lingüiças etc.). Desde os anos 70 esse sistema de uso da terra, e toda a cultura a ele associado, vem sendo substituído por um sistema que tende para o monocultivo, sobretudo da soja, com todas as implicações que daí deriva. Consideremos que no antigo sistema de rotação de culturas, a soja, na verdade, subsidiava o solo com azoto (nitrogênio) e, além disso, a criação de animais garantia não só descanso (pousio) da terra, como também parte do adubo (esterco) e, com isso, proporcionava as condições ideais para o cultivo exigente do trigo. O trigo se constituía no centro desse sistema de uso da terra, que visava garantir o abastecimento nacional do pão nosso de cada dia e, assim, a segurança alimentar. Assim, a segurança alimentar que esse sistema representava mantinha fortes relações com a própria estrutura agrária da Zona Colonial gaúcha que, desde o início, visava o abastecimento das tropas que guardavam as fronteiras além da Campanha Gaúcha. Vê-se, assim, que esse sistema de uso da terra estava associado à idéia de um projeto nacional. Não estranhemos, pois, que a insegurança alimentar mantenha fortes relações com um sistema agrário/agrícola que visa a mercantilização generalizada como o que vem caracterizando o período neoliberal.

poder só existe se exercido concretamente e, não sem sentido, chama-se exército ao seu exercício mais bruto que, nem por isso, pode carecer de legitimidade.

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Com o novo sistema observamos não só a tendência ao monocultivo, como,

também, a concentração fundiária chegando a regiões do RS, como a Zona Colonial, onde a propriedade familiar camponesa era característica e, assim, contribuindo para aumentar a dependência do agricultor do complexo industrial-financeiro. As contradições desse processo são captadas pelo imaginário popular por meio de piadas, como a que diz que o Banco do Brasil é cemitério de gaúcho, tamanha são as dívidas do agricultor junto aos bancos, ou a que diz que gaúcho já não chama mais a mulher de meu bem com medo de que ela venha a ser hipotecada. O surgimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST – tem uma forte ligação com essas transformações de uma agricultura camponesa para uma agricultura capitalista88.

“Na verdade, como arremata Jorge Rulli para a Argentina, estamos ocupados pelas

transnacionais de sementes. Cargill, Nidera e Monsanto nos converteram em um país inviável, produtor de sojas transgênicas e exportador de forragens. Produzimos o que a todos sobra e o que cada vez vale menos” (Rulli, J. E.). Retiremos o exemplo da soja transgênicas, ainda não oficialmente admitido no Brasil, e o mesmo pode ser dito do que vem se passando no país.

O que mais surpreende nesse novo modelo agrário/agrícola é que ele se expande

apesar da constante queda de preços dos produtos agrícolas. Vejamos mais de perto esse milagre. O mundo rural com a Revolução Verde com suas sementes híbridas e seu mais recente desdobramento com a biotecnologia dos transgênicos e do plantio direto, está sofrendo mudanças ecológicas, sociais, culturais e, sobretudo, políticas. À medida que o componente técnico-científico passa a se tornar mais importante no processo produtivo, maior é o poder das indústrias de alta tecnologia que passam, como já indicamos, a comandar os processos de normatização (candidamente chamados de normas de qualidade). Essas importantes transformações nas relações de poder por meio da tecnologia começaram a ganhar concretude ainda nos anos 50 quando mais de 70% da população mundial habitava o mundo rural. Temos experimentado todos os dias nos enormes aglomerados humanos urbano-periféricos, sobretudo na América Latina e caribe, o que vem significando essa desruralização da população, sobretudo dos anos 70 para cá, muito embora essa desruralização ainda não tenha atingido a maior parte da humanidade.

88 Esclareça-se que essa oposição entre agricultura camponesa e agricultura capitalista não deve ser assimilada ao novo maniqueísmo, onde tudo é reduzido a uma lógica binária em que de um lado está, sempre, o mercado. Agricultura camponesa não é o oposto da agricultura de mercado, esclareça-se. Os camponeses sempre mantiveram relação com o mercado desde tempos imemoriais. A agricultura capitalista é uma forma de agricultura de mercado e não a agricultura de mercado. O mercado é anterior ao capitalismo e pode a ele sobreviver. O que o mercado não pode, e nem pretende, é criar uma sociedade, até porque uma sociedade não se resume a dimensão econômica. Logo, se me permitem, sociedade de mercado é um absurdo lógico e bem pode ser um absurdo prático, como estamos vendo com a exacerbação neoliberal.

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Havia fortes razões para a ênfase que tomou logo após a 2ª guerra mundial a revolução nas relações de poder por meio da Revolução Verde. A fome se apresentava não como um fenômeno dos mundos asiático, africano ou latino americano que, aliás, não tinham grande visibilidade à escala mundial, mas, sobretudo, se constituía num fenômeno europeu. Os europeus sabem o que significa não só ver a guerra no seu dia a dia como, também, o significado da insegurança alimentar que se segue à destruição das redes de comunicação e transportes e ao fato da maior parte dos homens em idade ativa serem convocados para a guerra89. O espectro da fome rondava o mundo do pós-guerra num contexto marcado por forte polarização ideológica o que tornava as lutas de classes particularmente explosivas no período. A própria denominação Revolução Verde para o conjunto de transformações nas relações de poder por meio da tecnologia indica o caráter político e ideológico que estava implicado. A Revolução Verde se desenvolveu procurando deslocar o sentido social e político das lutas contra a fome e a miséria, sobretudo após a Revolução Chinesa, Camponesa e Comunista de 194990. Afinal, a grande marcha de camponeses lutando contra a fome brandindo bandeiras vermelhas deixara fortes marcas no imaginário. A revolução verde tentou, assim, despolitizar o debate da fome atribuindo-lhe um caráter estritamente técnico91. O verde dessa revolução reflete o medo do perigo vermelho, como se dizia à época. Há, aqui, com essa expressão Revolução Verde, uma técnica da retórica que, como vemos, é parte das técnicas da política.

Todo um complexo técnico-científico, financeiro, logístico e educacional (formação de engenheiros e técnicos em agronomia) foi montado contando, inclusive, com a criação de organismos internacionais como o CGIAR e como envolvimento de grandes empresários, como o caso dos Rockfellers. Os resultados dessa verdadeira cruzada foram de grande impacto não só pelos números que nos são apresentados, mas, sobretudo, pela afirmação da idéia de que só o desenvolvimento técnico e científico será capaz de resolver o problema da fome e da miséria. Pouco a pouco a idéia de que a fome e a miséria são um problema social, político e cultural vai sendo deslocada para o campo técnico-científico como se esse estivesse à margem das relações sociais e de poder que se constituem, inclusive, por meio dele.

89 Esse contexto de fome e miséria na Europa de pós-guerra está bem retratado no cinema, como no neorealismo italiano. Ver, em particular, Ladrões de Bicicleta e O Milagre de Santo Ângelo. Nos anos 70, o cineasta italiano Bertolucci ainda nos brindará com seu excelente 1900 que, também, nos ajuda a compreender o que ali se passara. 90 Os EUA bem que tentaram avançar na direção de uma Reforma Agrária, como a que impuseram ao Japão, para evitar o perigo vermelho que alcançara a China e saíra fortalecido na URSS no após guerra. Entretanto, grandes foram as resistências impostas pelas próprias oligarquias latifundiárias a essas pressões estadunidenses. No Brasil, conta-se que o então ministro Roberto Campos dissera que o Estatuto da Terra deveria ser promulgado para atender às pressões dos EUA, mas que não deveria ser aplicado. À época os EUA estavam preocupados com as Ligas Camponesas no Brasil e com os efeitos da Revolução Cubana na América Latina como um todo. 91 Não olvidemos que a primeiro verso do hino da Internacional Socialista fala explicitamente dos famélicos do mundo. A fome se constituía, assim, não só numa bandeira socialista como um problema cotidiano da maior parte da humanidade.

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Segundo a FAO, entre 1950 e 2000, a produção de grãos em todo o mundo aumentou, embora de modo desigual segundo as regiões, passando de 631 milhões de toneladas em 1950 para 1.835 milhões de toneladas em 2000, portanto, um aumento de 2,9 vezes. Para o mesmo período, entretanto, o consumo de fertilizantes passou de 14 milhões de toneladas, em 1950, para 141 milhões de toneladas em 2000, ou seja, um aumento de 10,1 vezes. A produtividade anual que foi de 2,1% em média ao ano, entre 1950 e 1990, caiu para 1,1 % ao ano entre 1990 e 2000. A mesma evolução pode ser vista na Índia, onde o esforço da Revolução Verde foi particularmente perseguido pelo seu confronto ideológico com a China, onde “a produção de grãos alimentícios aumentou de 50,8 milhões de toneladas entre 1950-1951 para 199,3 milhões de toneladas em 1996-1997 (aumento de 3,9 vezes). Em meados dos anos setenta, a Índia já era auto-suficiente na produção de grãos alimentícios.”

Apesar dos impressionantes resultados dos anos 80 a tendência recente no

crescimento da produção total tem sido motivo de preocupação. A produção de grãos alimentícios cresceu 3,4 %, em média, de 1991-1992 a 1996-1997, mas não alcançou a meta de 210 milhões de toneladas. Em 1996-1997, a produção de arroz foi de 81,3 milhões de toneladas, cerca de 9% menos que a previsão de 88 milhões. Estas cifras se devem confrontar com o importante aumento no uso de fertilizantes e pesticidas. O consumo de fertilizantes (NPK) que se havia mantido ao redor de 12 milhões de toneladas no período 1990-1991 a 1993-1994, aumentou para o nível de 14,3 milhões de toneladas em 1996-1997, segundo o Planning Comission of India (citado por PNUMA – GEO: 308). Observa-se, assim, um aumento no volume de produção proporcionalmente menor do que o do consumo de fertilizantes e pesticidas.

Considere-se, ainda, que a melhoria considerável nas condições de armazenamento,

transportes e comunicações permitiram não só um aumento da produtividade social total92 como, também, que novas áreas pudessem ser incorporadas ao mercado pela expansão da rede de transportes em todo o mundo93. Aqui, também, os financiamentos do Banco Mundial e outras agências multilaterais para ‘ajuda ao desenvolvimento’ cumpriram um papel fundamental.

Assim, a diminuição da renda diferencial por localização obtida graças à expansão e

melhoria da rede de transportes e comunicações, a diminuição da renda diferencial por fertilidade da terra em função do próprio modelo agrário/agrícola capital intensive e a expansão da área cultivada vêm contribuindo tanto para o aumento do volume de produção como para uma acentuada queda dos preços dos grãos e, ainda, para uma concentração de capital e diminuição do trabalho (...)

Entre 1979 e 2001 a produção mundial de soja aumentou 166% enquanto seus

preços caíram, em 2001, para 45% do que eram em 1979. “Por conseguinte, os preços correntes dos produtos agrícolas aumentaram menos depressa que os outros produtos e os preços agrícolas reais (inflação não incluída) baixaram muito. Em menos de 30 anos o

92 No caso específico da agricultura ocorre uma diminuição da renda diferencial por localização com a melhoria dos transportes. 93 O caso do Cerrado brasileiro é emblemático.

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preço real do trigo nos EUA, por exemplo, se reduziu a 1/3 aproximadamente, enquanto o do milho e do açúcar caiu a menos da metade”, segundo Marcel Mazoyer (Mazoyer, 2003). A queda dos preços agrícolas não atingiu somente à produção de grãos (trigo, milho, arroz, soja) ou de produtos de origem animal, mas, também, “os cultivos tropicais de exportação que competiam com os cultivos motomecanizados dos países desenvolvidos (beterraba contra cana de açúcar, soja contra outras culturas oleaginosas tropicais, algodão do sul dos EUA, etc.), ou com os produtos industriais de substituição (borracha sintética contra o cultivo de hévea, têxteis sintéticos contra o algodão). Por exemplo, o preço real do açúcar foi reduzido a menos de 1/3 em um século, enquanto o da borracha se reduziu a 10%. Por último, a revolução agrícola também foi aplicada a outros cultivos tropicais (banana, pinha, etc.) de forma que a tendência de baixa dos preços reais se estendeu progressivamente a quase todos os produtos agrícolas” (Mazoyer, 2003).

Para além do discurso bastante difundido de que toda essa revolução nas relações de poder por meio da tecnologia conhecida por revolução verde proporcionou o abastecimento de uma crescente população no mundo inteiro e, em particular, de uma população que se urbanizava, é importante assinalar que os efeitos dessas transformações no mundo rural são mais complexos e contraditórios do que vem sendo admitido.

Um primeiro aspecto a ser destacado foi a mudança na composição da cesta do trabalhador na medida em que a diminuição dos preços dos produtos agrícolas, embora não tenha sido transferida integralmente ao consumidor final, liberou parte significativa dos salários para consumo de produtos industrializados. Deste modo, pode-se atribuir boa parte do boom de crescimento no consumo bens de origem industrial se deve a essas transformações que tornaram menor os gastos com alimentos na cesta básica do trabalhador, mormente nos países que lograram urbano-industrializar parcela importante de sua população94. Entretanto, “à medida que avança a queda de preços, os agricultores que não têm podido investir nem obter ganhos de produtividade consideráveis caem abaixo do umbral de renovação econômica de sua exploração (unidade de produção): seus ingressos monetários resultam insuficientes para comprar os bens de consumo indispensáveis que não podem produzir ou, às vezes, para pagar os impostos. (...) Em outras palavras, uma exploração agrícola cujos ingressos caem abaixo do umbral de renovação só pode sobreviver à custa de uma autêntica descapitalização (venda de gado vivo, apetrechos cada vez mais reduzidos e sem manutenção), do subconsumo (camponeses andrajosos e descalços), da desnutrição e em curto prazo do êxodo, a menos que se dedique a cultivos ilegais: coca, papoula, cânhamo...” (Mazoyer, 2003).

Vejamos um pouco mais de perto, com a ajuda da tabela abaixo, a evolução recente da expansão desse modelo agrário/agrícola que vai nos esclarecer parte desse mistério que, mesmo com queda de preços, vem apresentado crescimento da área plantada. A comparação é entre duas regiões produtoras de soja, Iowa e Mato Grosso, situadas em dois

94 - Urbano-industrializar aqui num sentido muito preciso, isto é, incorporar parte da população que se desruralizava nas fábricas. O mesmo não poderá ser visto nos países onde a desruralização se dá no bojo de um novo padrão de relações de poder no mundo da indústria.

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países que, embora diferentes, dispõem igualmente de vastas extensões de terras, o EUA e o Brasil95.

Comparação da Estrutura de Custos da Produção de Soja

Média Por Hectare em US$ Iowa (EUA) e Mato Grosso (BRASIL) em 2001

Iowa – EUA Mato Grosso – Brasil

Custo com Custo por hectare

Custo por cada saca/ha

Custo por hectare

Custo por cada saca/há

Terra 350.0 6,36 57.50 0,96 Trabalho 33.90 0,62 12.50 0,21 Capital 274,32 4,87 365.0 6,63 Outros 38.78 0,71 40.00 0,66 Custo p/ hectare 697.0 12,67 475.0 7,91 Sacas p/ hectare - 55 - 60

Fontes: Elaboração própria a partir de Duffy, Michael and Darnell Smith, 2000; Galinkin, 2002 e João G. Martines-Filho, apud Baumel, C. P., McVey, M. J. and Wisner, R.N.,"Impact of Brazilian Soybean Competition on Lock Extensions on The Upper Mississippi River?, Iowa University: Iowa, 2001.

Observemos, logo de início, que, em Iowa, se obtém 55 sacas de soja a um custo de produção por hectare de US$ 697 e, em Mato Grosso, se obtém 60 sacas a um custo de produção de somente US$ 475! Em outras palavras, em Mato Grosso se obtém uma produtividade 9,1% maior (60 contra 55 sacas por hectare), com custos de produção por hectare 68% menores que em Iowa.

Desagreguemos, agora, essa estrutura de custos. Em Iowa a terra corresponde a 50,2 % do custo de produção total por hectare e, em Mato Grosso a apenas 12%. Com relação ao custo do trabalho, em Iowa, ele corresponde a 4,9% e, em Mato Grosso, a 2,6% do custo total de produção por hectare. Já com relação aos gastos relativos a sementes, fertilizantes, herbicidas, em Iowa, eles correspondiam a 27% do custo total de produção por hectare e, em Mato Grosso, a 61,4%.

Se considerarmos os gastos que o setor agrícola tem para com o setor industrial

como um todo, isto é, o que o setor agrícola gasta comprando herbicidas, fertilizantes, sementes e, ainda, com máquinas, obtém-se, para Iowa, 39,6% dos custos totais de produção por hectare e, para Mato Grosso, de 76,8 % ! Enfim, a terra custa 6 vezes mais em Iowa que em Mato Grosso; o trabalho 2,7 vezes mais em Iowa, enquanto, o custo de capital por hectare é de apenas 75% em Iowa do que é em Mato Grosso (ou, o que é o mesmo, o custo com capital por hectare é 1,3 vezes maior em Mato Grosso) 96.

95 - No caso de Mato Grosso, a expansão desse modelo vem alcançando uma tal sucesso que, recentemente (2002) elegeu para governador de estado o maior empresário mundial desse setor, o Sr. Blairo Maggi. 96 Quando se faz o mesmo cálculo para o rendimento corrigido por saca de soja produzido por hectare obtém-se, praticamente, o mesmo resultado, a saber: a terra custa 6,6 vezes mais cara em Iowa; o trabalho 2,95 vezes mais caro em Iowa, enquanto com relação ao capital custo em Iowa é de cerca de apenas 73% do que custa no Mato Grosso ou, em Mato Grosso, é 1, 3 vezes maior o custo com capital do que em Iowa!

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Atentemos, agora, para a estrutura de custos quando se exclui o custo com a terra97.

Estrutura Comparada de Custos por hectare excluída o Custo da Terra

Iowa (EUA) e Mato Grosso (Brasil) 2001 (em %)

Gasto com Iowa (EUA) Mato Grosso (Brasil) Capital 79,1 86,4 Trabalho 09,8 03,0 Outros 11.1 9,6 Total 100 100

Um mercado mundializado (commodities) como o de grãos impõe à agricultura um

elevado padrão científico e tecnológico tornando-a extremamente dependente do capital, bastando observar que, excluída a terra, são os fertilizantes, herbicidas, inseticidas, praguicidas, sementes e as máquinas que mais pesam na estrutura de custos totais por hectare, tanto em Iowa, onde correspondem a 79,1% dos custos como, também, em Mato Grosso, com 86,4 % 98. Com os custos de capital tão altos, tanto em Iowa como em Mato Grosso, é o preço da terra e o do trabalho que acabam se constituindo no verdadeiro diferencial, fazendo com que a expansão do cultivo de grãos seja acompanhada (1) por uma aumento da concentração fundiária, (2) por novas tecnologias que diminuam os custos do trabalho (plantio direto, tratores-computadores e organismos transgênicos) e, para isso, a disponibilidade de terras acaba se constituindo num fator decisivo. Destaquemos, para evitar interpretações simplistas, que disponibilidade de terras não é uma função da extensão territorial de um país, mas, sobretudo, da estrutura das relações de poder, conforme demonstram claramente os dados acima, quando pudemos comparar duas regiões de dois países igualmente extensos territorialmente (EUA e Brasil). A diferença aqui está na estrutura de poder na agricultura.

Em maio de 2003, em uma série de reportagens denominada “O Brasil que deu

certo”, exibida pela maior rede de televisão do Brasil, exaltava-se os méritos do agronegócio e regozijava-se de um trator, aparelhado com computador e equipado para o plantio direto, que custava a importância de nada mais, nada menos US$ 230.000 (duzentos e trinta mil dólares)! Imaginemos a área necessária para tornar rentável um estabelecimento agrícola que usa um trator que custa US$ 230.000!

Na Argentina, segundo Bacwell e Stefanni, “a superfície semeada dedicada à

produção de soja aumentou de quase 5 milhões de hectares, no começo dos anos 90, para 11,6 milhões em 2001/02. No mesmo período, a produção física da oleaginosa passou de 10 milhões de toneladas a um recorde de 30 milhões, transformando a Argentina no segundo produtor mundial de soja transgênica – atrás dos EUA - e no primeiro exportador de óleo e

97 Trata-se da Renda Absoluta da Terra, isto é, aquela que é gasta na compra da terra e, portanto, não entra propriamente no processo produtivo porque sai para as mãos do proprietário que detém a titularidade da terra. 98Observe-se, ainda, que o custo do trabalho por hectare é, em Mato Grosso, apenas 36,8 do que custa em Iowa (US$ 12,50 em Mato Grosso contra US$ 33,9 em Iowa).

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farelo de soja. Segundo estimativas oficiais, seu cultivo passou a representar ao redor de 42% da superfície e a 44% do volume total de grãs produzidos a nível nacional99”.

Se bem o cultivo de soja venha se expandindo na Argentina desde os anos 80 “sua

associação com o plantio direto e a utilização de sementes geneticamente modificadas (GM) Roundup Ready (RR) – resistentes ao herbicida glifosato - marcou um ponto de inflexão, a partir do qual se produziu um crescimento vertiginoso que colocou a soja como o cultivo mais semeado a nível nacional, seguido pelo trigo. A simplificação do manejo das pragas através de um só herbicida foi a ponta de lança para o exitoso ingresso desta variedade desenvolvida pela firma estadunidense Monsanto, que possui as patentes de seus direitos de propriedade sobre as sementes RR e sua descendência” (Bacwell e Stefanni). “Na província de Catamarca estão sendo produzidas duas colheitas de soja por ano. Imediatamente atrás das colheitadeiras vamos semeando a soja para a segunda produção”, explica o chefe de produção da empresa Ingeco SA, Felipe Torres Posse, que afirma que “a equação econômica é muito boa sob este esquema, razão pela qual as duas colheitas anuais de soja poderão se estender a toda a região do Noroeste sob irrigação”100.

Segundo nos explica Miguel Teubal, pesquisador do Centro de Estudos Avançados

da Universidade de Buenos Aires “tal como está armado o pacote tecnológico, o plantio direto e a soja RR vão de mãos dadas. Com a introdução da soja RR e o plantio direto os produtores podem realizar duas colheitas ao ano – por exemplo, trigo e soja de segunda - o que, segundo dados disponíveis, está requerendo doses crescentes de glifosato para acabar com as doenças”. A Argentina se tornou, assim, um país estratégico para a empresa estadunidense Monsanto. Como afirmam Bacwell e Stefanni, “seus esforços colonizadores deram seus frutos: mais de 95% da produção local de soja é transgênica, produzida com sementes RR, e a fatura da firma no país aumentou de US$ 326 milhões em 1998 para US $584 milhões em 2001”. Um crescimento de 79 % em apenas 3 anos. Não podia ser mais espetacular.

Assim, “nem todos os produtores exportadores beneficiários da revolução agrícola

ou da revolução verde podem ganhar terreno ou simplesmente manter-se, a menos que disponham de certas vantagens competitivas complementares. Este é precisamente o caso dos latifundiários agroexportadores bem equipados sul-americanos, sul-africanos e zimbabweanos e ... amanhã, quiçá, os russos ... que dispõem ao mesmo tempo de vastos espaços, baratos, e de mão de obra entre as menos caras do mundo. É também o caso dos produtores de alguns países desenvolvidos com renda alta, como EUA ou da União Européia, que contam com meios orçamentários para subvencionar amplamente seus agricultores. (...) Nestas condições, os preços internacionais dos produtos agrícolas só resultam vantajosos para uma minoria de agricultores que podem, deste modo, continuar investindo, avançando e ganhando porções do mercado; são insuficientes e desfavoráveis para a maioria dos agricultores do mundo: insuficientes em geral para que possam investir e progredir; insuficientes a miúdo para que possam viver dignamente de seu trabalho, renovar seus meios de produção e conservar suas porções de mercado; e, inclusive, insuficientes

99 Segundo a Secretaria de Agricultura, Pecuária, Pesca e Alimentação da Argentina. Ver “El quinquenio de la soja transgénica” (consultar www.sagpya.mecon.gov.ar). 100 Ver La Capital, Rosario, 23-12-2002.

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para que a metade menos equipada, menos dimensionada e pior situada dos camponeses do mundo possa se alimentar corretamente” (Mazoyer, 2003).

Por tudo que apontamos até aqui, duas questões se tornam centrais para a produção ampliada dessa agricultura altamente capitalizada: a imposição do seu modo de produção de conhecimento em laboratórios sofisticados e, de outro, uma ampla disponibilidade de terras, sobretudo planas101 e com disponibilidade hídrica (relativa).

Já assinalamos que o conhecimento é fundamental para a reprodução e a luta que hoje se trava em torno das sementes encarna essa tese de modo emblemático. No caso da agricultura e da criação dos animais, o controle das biotecnologias tem sido fundamental e, hoje, a hegemonia das grandes corporações empresariais transnacionais, inclusive e, sobretudo, no campo das sementes, dos alimentos e dos remédios, se fortalecerá mais ou menos dependendo da imposição do seu modo de produção específico de conhecimento.

Assim, estamos diante de uma modificação radical da biotecnologia102 que tende a

se tornar uma produção em laboratório, com barreira de acesso – propriedade intelectual - posto que priva a maior parte dos agricultores do acesso à propriedade. Daí a questão das sementes ganharem a importância que vêm ganhando, até porque como se trata de uma ‘ação impregnada de intencionalidade’ (Santos) que, assim, carrega consigo, enquanto técnica, a intenção de quem a produziu. No caso específico, por tratar-se de uma empresa de caráter capitalista é, por sua própria natureza, um locus de produção não só de valores de uso – sementes, no caso – mas de valores de troca que, espera-se, realize a mais valia para que dela se possa extrair o lucro.

Vejamos mais de perto o que vem ocorrendo nesse campo específico de controle das

sementes. Não temos os dados para compararmos os gastos com capital entre o Brasil, a Argentina e os EUA, entretanto, é possível inferir-se algumas importantes conclusões a partir da tabela abaixo que nos deixa ver que no Brasil os gastos com sementes são apenas 52,4% dos custos do produtor em Iowa. Entretanto, em Mato Grosso os gastos com fertilizantes, calcáreo, herbicidas e inseticidas são quase duas vezes (1,9 vezes) maior do

101 Terras planas significam custos energéticos menores. No Brasil, as grandes empresas capitalistas na agricultura ocupam as áreas mais planas ou suavemente onduladas, deixando os camponeses nas terras mais acidentadas. A grande expansão recente sobre os amplos Cerrados teve esse fator como dos mais relevantes, acrescido do fato de serem terras devolutas (de uso comum das populações locais) ou de grandes fazendeiros criadores de gado que, até os anos 60, não dispunham de grande acessibilidade ao mercado. Assim, a apropriação dessas terras devolutas ou adquiridas a baixo preço de fazendeiros pecuaristas facilitou a expansão sobre terras onde o campesinato tem mais dificuldades de aproveitá-las (as aproveita na forma de uso comum extensivo – importância do extrativismo -, respeitando seus limites), haja vista a profundidade em que se encontram as águas nessas chapadas e chapadões. 102 Esclareçamos que o simples cruzamento de animais, prática comum em qualquer estabelecimento rural, não deixa de ser uma espécie de engenharia genética. Todo o processo de cruzamentos que nos legou os cultivares que conhecemos são, a rigor, biotecnologia, assim como os processos de fabricação de cervejas, cachaças e vinhos. A biotecnologia de transgênicos, entretanto, começou, segundo o Professor Rubens Nodari da UFSC, somente em 1973 na Universidade de Stanford, na Califórnia, quando pesquisadores conseguiram, pela primeira vez, isolar fragmentos de DNA de um anfíbio e inserir esses fragmentos dentro de uma outra molécula. A partir dessa técnica se pode combinar moléculas de um animal em uma planta, por exemplo, rompendo-se, assim, com barreiras genéticas naturais.

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que em Iowa. No Brasil tem jogado um papel decisivo a Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - empresa pública que vem fornecendo as bases técnico-científicas, particularmente na eleição das sementes adaptadas às nossas condições mesológicas tropicais e subtropicais.

US$ por hectare de Soja – 2001

Capital Iowa Mato Grosso Sementes 52.50 27.50 Fertilizante e Calcáreo

63.12 175.00

Herbicida e Inseticida

75.00 90.00

Maquinaria 83.70 72.50

Não temos condições de afirmar, peremptoriamente, que em Iowa as sementes usadas sejam transgênicas, embora saibamos que os EUA detém a maior área cultivada com esse tipo de semente. De qualquer forma, num setor de produção de uma mercadoria tão globalizada como a soja (commodities) com uma estrutura de produção tão tecnificada, ressalta o baixíssimo custo, no Brasil, de um elemento tão decisivo na estrutura da produção como as sementes que, nesse caso de Mato Grosso, não é transgênica e, assim, dissociada do uso de herbicidas, situação completamente diferente da Soja Roundup Ready (RR) como vem ocorrendo, por exemplo, na Argentina103. No caso dessa semente Roundup Ready, amarra-se a compra da semente com a de herbicidas e, assim, aumenta o poder dos que detém o monopólio104 dessa tecnologia.

A semente de soja transgênica não brinda necessariamente aumento na

produtividade por área cultivada, como salientam vários estudiosos, e, sim, proporciona diminuição dos custos principalmente de mão de obra, na medida que os produtores já não têm que realizar tarefas de controle de ervas daninhas pelas capinas, pois utilizam a aplicação motorizada do herbicida Roundup da Monsanto (...) Trata-se, portanto, de uma técnica que acentua a tendência a uma agricultura sem agricultores agravando problemas num momento em que o novo padrão de poder proporcionado pelas novas tecnologias também não emprega tanta gente nas cidades-e-suas-periferias, como o fazia à época da desruralização européia e estadunidense.

Segundo Rulli, na Argentina, “o modelo rural que se nos impôs é simplesmente de

exportação de commodities, de concentração de terras e de exclusão de populações. 20 milhões de hectares das melhores terras agrícolas estão hoje em mãos de não mais de 2.000 empresas. Nos anos 90 se produziu a maior transferência de terras de toda a história do país, sendo deslocada a velha oligarquia pecuarista por uma nova classe empresarial

103 Entretanto, já se observa que empresas multinacionais começam a exercer um controle também sobre esse setor no Brasil, comprando empresas brasileiras que produzem sementes, como a Dois Marcos recentemente adquirida pela Pioneer, considerada a maior produtora mundial de sementes. 104 Não esqueçamos que toda propriedade é uma forma de monopólio.

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oligopólica e prebendária. (...) Atualmente registramos uma cifra ao redor de 300 mil produtores expulsos e mais de 13 milhões de hectares embargados por dívidas hipotecárias impagáveis. À esta situação de catástrofe social agropecuária deveríamos somar a emigração massiva dos trabalhadores rurais. Só no Chaco cada máquina desempregou 500 braseros. (...) Os novos pacotes tecnológicos constituídos pelos sistemas de plantio direto com enorme maquinaria importada, os herbicidas da Monsanto e as sojas transgênicas RR não demoraram em modificar a paisagem instalando-se uma agricultura sem agricultores”.

No mesmo sentido apontam as análises de Bacwell e Stefanni: “Ao mesmo tempo,

as economias de escala derivadas da mecanização da agricultura e os métodos de plantio direto induziram a uma forte concentração das explorações que deixou fora uma grande quantidade de pequenos agricultores. Segundo estimativas de uma pesquisa privada realizada em quase toda a região do Pampa argentino, a quantidade de explorações se reduziu em 31% no período 1992 e 1997”.

Já vimos como no Brasil, o mesmo vem ocorrendo com a paulatina mudança da paisagem no sul do país, de uma agricultura camponesa para uma agricultura empresarial, sendo que “atualmente existem, na região Sul, propriedades com até 1.000 ha plantados com soja. Só para tornar possível uma comparação na dimensão dos plantios, a área média dos estabelecimentos agrícolas no Corn Belt norte-americano é de 120 a 150 hectares (Rezende, 2002: 09)”.

Principais Países Produtores de Soja – 2001

País Produtor Produção

(milhões ton.) Participação % no

total mundial Produtividade (kg/hectare)

Estados Unidos 78,67 43,3 2.560 Brasil 41,50 22,8 2.610 Argentina 28,75 15,8 2.640 China 15,30 8,4 1.690 Índia 5,60 3,0 n.d. Paraguai 3,59 2,0 2.965

Fontes: sites da CONAB, USDA e FAO (2002)

Afora a China e a Índia, com 11,4% da produção mundial, que além de grandes produtores são países também grandes importadores, os EUA, a Argentina, o Brasil e o Paraguai participavam, em 2001, com 84% do total da produção mundial e, assim, se colocam como os grandes produtores-exportadores mundiais de soja, um mercado que mexeu, no ano 2000, com algo em torno de US$ 21 bilhões de dólares.

As grandes corporações do setor vêm dirigindo seus interesses para a Argentina, o Brasil e o Paraguai, países que vêm disputando a primeira posição no ranking mundial de exportadores de grãos e farelo de soja. O controle do mercado de sementes que, pela via da produção transgênica (tipo RR), pode se fundir com o mercado de herbicidas é o que está em jogo. Nesse jogo as grandes corporações se encontram diante de um desafio para estabelecer suas próprias estratégias de mercado, na medida que há uma forte resistência a

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que se aceite, sem as devidas precauções, as sementes transgênicas. O Brasil é um exemplo de como se pode produzir com alta tecnologia, elevadíssimo grau de concentração fundiária, de capital e de renda sem o uso de sementes transgênicas. É o que está se dando ns cerrados brasileiros, como pudemos ver através dos dados comparados de Mato Grosso e Iowa e levando-se em consideração o que vem se passando na Argentina.

Assim, as próprias entidades ambientalistas se vêm concitadas a se posicionar diante de um desafio ambiental de novo tipo, onde a sustentabilidade tem que ser confrontada com a racionalidade que está conformando a relação da sociedade com a natureza, se é uma racionalidade ambiental, com o propõe Enrique Leff, ou se é a racionalidade econômica mercantil. É o que se vê não só diante da questão acima – transgênicos ou não transgênicos – mas também diante da questão energética e da questão da certificação de madeiras, conforme veremos adiante. Enfim, esse modelo agrário-agrícola, que se apresenta como o que há de mais moderno, sobretudo por sua capacidade produtiva, na verdade, atualiza o que há de mais antigo e colonial em termos de padrão de poder ao estabelecer uma forte aliança oligárquica entre (1) as grandes corporações financeiras internacionais, (2) as grandes indústrias-laboratórios de adubos e de fertilizantes, de herbicidas e de sementes, (3) as grandes cadeias de comercialização ligadas aos supermercados e (4) aos grandes latifundiários exportadores de grãos. Esses latifúndios produtivos são, mutatis mutantis, tão modernos como o foram as grandes fazendas de cana de açúcar e seus engenhos no Brasil e nas Antilhas dos séculos XVI e XVII. À época, diga-se de passagem, não havia nada de mais moderno. A modernidade bem vale uma missa!

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4.2.3. Impactos pela expansão da soja105

Uma análise econômica e energética das principais modalidades de produção de

soja106, revelou recentemente as seguintes externalidades, causadas, sobretudo, pelos sistemas químicos intensivos (3 e 4 na tabela 3), que predominam no Brasil. Ortega adaptou para o caso brasileiro, o valor assumido por Pretty (US$ 200/ ha/ ano) para as externalidades de sistemas agrícolas do Norte da Europa, para estimar os principais custos externos na produção de soja brasileira, causados por desemprego, intoxicações, tratamento de efluentes, recuperação do ambiente e perda de serviços ambientais. 105 Esta seção é constituída pelo cap. 2. Impactos ambientais e sociais no contexto da expansão da soja, da dissertação de mestrado de Bickel, Ulrike (2003). Brasil: Expansão da soja, conflitos sócio-ecológicos e segurança alimentar. Bonn, Faculdade de Agronomia, Universidade de Bonn, Alemanha, janeiro. (Arquivo Adobe-Acrobat, 169 p.) Nota: Devido ao elevado número de notas de rodapé desta seção optou-se por manter a numeração seqüencial geral do documento e, ao lado direito, manteve-se a numeração das notas de rodapé do texto original. Também, pelo mesmo motivo, a citação de literatura encontra-se nos roda-pés. 106 96 Ortega, E., Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Engenharia de Alimentos: A soja no Brasil: modelos de produção, custos, lucros, externalidades, sustentabilidade e políticas públicas. Campinas, 2003.

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Tabela 3: Custo estimado das externalidades em US$/ha/ano

(adaptado de Pretty, 2000/2001107

Multiplicando os custos ocultos por hectare dos sistemas químicos intensivos pela área total cultivada com soja no Brasil na safra 2002/03 (18,5 milhões de ha, assumindo que pelo menos 18 milhões destes são manejados de forma química intensiva), chega-se a um total de US$ 3,24 bilhões de externalidades, que não são imputadas aos responsáveis. Estes custos significam despesas transferidas para a sociedade, barateando artificialmente o preço do produto final, mas afetando a qualidade de vida e do meio ambiente. O seguinte capítulo 2 trata em detalhe destes custos causados por práticas não-sustentáveis no cultivo da soja. No capítulo 3, serão discutidas opções para reduzir estas externalidades e ecologizar a produção (*ota: capítulos não reproduzidos neste documento). a) Impactos ambientais 1. Desmatamento 1.1. Dimensões do desmatamento e legislação ambiental

Segundo informações de vários pesquisadores da EMBRAPA, existem 100 milhões de há disponíveis para futura expansão da soja no Brasil, em sua maioria nos Cerrados (Tab. 2, cap. 1.4). Na região norte, existe uma situação potencialmente conflitante entre a intenção de produzir e desenvolver essa região, e a de preservar a maior floresta tropical do mundo, além do conflito potencial por terras indígenas, comunitárias e unidades de conservação decorrente do desenvolvimento da região108.

107 97 Fontes: Pretty, J.N., et al.: An assessment of the total external costs of UK agriculture. Agricultural Systems 65 (2000), pp. 113-136. www.elsevier.com/locate/agsy; Pretty, J.N., et al.: Policy and Practice. Challenges and priorities for internalizing the external costs of modern agriculture. Journal of Environmental Planning and Development. No. 44 (2) 2001, pp. 263-283, Carlfax Publishing. Adaptado em: Ortega 2003 (ver acima). 108 98 Costa, F. G., et al.: Influência do transporte no uso da terra: o caso da logística de movimentação de grãos e insumos na Amazônia Legal. Belém, 2000.

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Porém, o desmatamento e a degradação ambiental estão avançando: 17% da floresta original foi destruída desde 1970109, comparado a somente 2% entre 1498 e 1970. Em junho de 2003, foram publicados novos dados sobre desmatamento na Amazônia no ano anterior, que – com 2,55 milhões de ha - são os maiores desde 1995110. Pouco depois, o Ministério do Meio Ambiente apresentou um balanço revelando que em 2002, a área agrícola na Amazônia aumentou em 1,1 milhão de ha, sendo 70% por conta da expansão da área de soja, seguido por plantações de milho, arroz e café111. Ironicamente, Blairo Maggi recomendou na ocasião da visita da Ministra de Meio Ambiente, Marina Silva, a Mato Grosso em julho de 2003, que ela “não se deixasse impressionar“ com os mais recentes números sobre o avanço do desmatamento na Amazônia. “Estes 24 mil km² (= 2,4 milhões de ha, - valor aproximado -, em comparação aos 2,55 milhões de ha reais) representam absolutamente nada diante da Amazônia. Esta região é um continente onde cabem todos os países da Europa“112. Maggi é a força motriz na industrialização da agricultura e no avanço da fronteira agrícola na Amazônia. Já em 1999, qualificou como exageradas as críticas das organizações não-governamentais (ONGs) ambientalistas, referentes aos desmatamentos causados pela expansão da soja113.

109 102 World Bank: World Bank announces support for more sustainable Amazon. Washington, setembro de 2003. 110 103 Johnson, E.: The Taming of the Amazon (ver acima). São Paulo, 2002. 111 104 Ministério do Meio Ambiente/ Secretaria das Políticas para o Desenvolvimento Sustentável: Contribuição Preliminar da Secretaria de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável para o Primeiro Seminário Técnico para Avaliação dos dados referentes ao desmatamento na Amazônia Brasileira. Brasília, 03.07.2003. 112 105 Dourado, R.: “Maggi frustra ministra e defende os madeireiros“. Em: Gazeta de Cuiabá, 27.07.2003, www.gazetadigital.com.br. 113 106Blairo Maggi: “O problema dos ecologistas é que eles são muito apaixonados. Critiquei no plenário a posição de algumas organizações não-governamentais (ONGs). Essa história de que não pode mais derrubar árvores porque está acabando com o Cerrado é besteira. As ONGs fazem um escarcéu porque uma área foi devastada. Muitas delas estão a serviço de interesses externos“. Citado em: Oliveira, R. de; Ulhôa, R.: ”’Rei da soja’ vira senador com projetos polêmicos”. Em: Folha de São Paulo, 21.06.1999, p. 4.

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Quadro 1: Importância da floresta amazônica e da vegetação nativa

F

114 99 Ver Johnson, E.: The Taming of the Amazon. Em: Estudos Avançados, Vol. 16, No. 45, May/ August 2002, Vol. 16, No. 46, São Paulo, Agosto-Dezembro de 2002; World Bank: World Bank announces support for more sustainable Amazon. Washington, setembro de 2003. 115 100 Fundação Cebrac: Seminário Fronteiras Agrícolas/ Soja. 1) Uso de instrumentos econômicos para defesa do Bioma Cerrado. 2) Oportunidades de Geração de Renda no Cerrado. Textos para discussão para o Seminário “Fronteiras Agrícolas/ Soja”, Goiânia, 30.10.-01.11.2002. 116 101 Seqüência citada de: Esdar, G., Tese de Mestrado em Geografia (1998): “Pionierzonen in Brasilien und Malaysia“.

A floresta amazônica e a vegetação nativa como os Cerrados (ver abaixo) têm grande importância sócioeconômica e ambiental para a população local, a economia nacional e o equilíbrio ecológico mundial. Especialmente em regiões em que predominam atividades de subsistência, servem para satisfazer as necessidades básicas e representam as bases para o desenvolvimento social e econômico das populações rurais pobres e dos povos indígenas. As florestas e os diversos biomas naturais fornecem alimentos, materias para construção, plantas medicinais e outros recursos genéticos. Estes ecossistemas hospedam grande parte da biodiversidade mundial e são de importância vital para o clima global. A bacia do Amazonas cobre mais de 60% do território brasileiro e é uma das regiões com maior biodiversidade do mundo. Este bioma hospeda 55.000 espécies vegetais, 428 espécies de mamíferos, 3.000 de peixe, e 2.000 de aves114, representando um terço da biota brasileira e 5% da fauna e flora mundiais115. As florestas tropicais compõem um ecossistema frágil116. Ao derrubá-las, está sendo destruído um processo em cadeia de ciclagem de nutrientes, baseado na decomposição permanente e extremamente rápida da matéria orgânica morta, devido ao clima úmido e quente. Este processo possibilita uma imensa produção de biomassa vegetal numa camada extremamente fina de húmus, porém, somente enquanto estiver garantido o fluxo e abastecimento de nutrientes pela floresta. Outro elemento importante do ciclo dos nutrientes diz respeito à micorriza, que consiste numa simbiose entre fungos radiculares e espécies vegetais, na qual os primeiros se beneficiam com o fornecimento de carboidratos pelas plantas e, inversamente, as plantas recebem nutrientes absorvidos do solo pelos fungos. Desse modo, simultaneamente à destruição da floresta, está sendo destruída a micorriza, de modo que após o desmatamento, os nutrientes são lixiviados até profundidades inalcançáveis. Este empobrecimento não pode ser corrigido por adubação, porque os fertilizantes sintéticos também estão sujeitos a perdas por lixiviação. Por conseguinte, a preservação da vegetação nativa e, conseqüentemente, das múltiplas funções das florestas, é fundamental para garantir seu uso e desenvolvimento sustentável a longo prazo.

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Figura 7: Desmatamento na Amazônia entre 1988 e 2002.

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Fonte: Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), em: www.regenwald-institut.de/deutsch/news.htm.

O Estado de Mato Grosso liderou o desmatamento, com 795.000 ha em 2002117.

Nos últimos 20 anos, 30 milhões de ha foram desmatados nesse Estado, para plantações gigantescas de soja, algodão e milho, como também para pastagens. Isto representa quase a metade dos 75 milhões de hectares de floresta, Cerrados ou áreas de transição existentes no Mato Grosso na década de 80, ou um terço do território estadual. Além disso, o Estado do Mato Grosso era responsável por 11.585 ou 59% dos incêndios florestais nacionais (19.501) em julho de 2003, os quais ocorreram, em sua maioria, no centro-norte do Estado. As queimadas são prática comum para converter vegetação nativa em área agrícola118.

Freqüentemente, os produtores de soja enfatizam que para a expansão da soja, não é

necessário desmatar a floresta. Um dos principais defensores desta hipótese é Blairo Maggi, o novo governador do Estado de Mato Grosso e maior produtor individual de soja do mundo119. Seria muito caro arrancar as raízes profundas da floresta amazônica, além do que, o clima seria demasiado instável, pela força das chuvas tropicais. O custo para abrir

117 107 Pinho, A.: Estado (MT) perdeu 50% da área verde em 20 anos. Em: A Gazeta, Cuiabá, 22.06.03, pp. 2-4.

118 108 Ibid. 119 109 B. Maggi: “Não pensamos plantar soja em áreas de mata, porque o custo é muito alto. Tecnicamente, o plantio da soja mesmo em regiões de mata amazônica já é possível – só o custo de derrubada de árvores e limpeza do terreno é impeditivo“. Citado em: Valente, R.: Mercoeste cria alternativas. Avanço da soja faz Brasil negociar ligação com Pacífico. Em: Jornal do Brasil, 12.09.1999, p. 6.

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uma área de plantio é de 60 a 70 sacas de soja/ ha numa floresta tropical em pé, frente a 14 a 15 sacas/ ha nos Cerrados120.

Por isso, a soja iria ocupar primeiro, áreas de florestas anteriormente desmatadas,

para a implantação da pecuária121: “A pecuária avança e a soja vai atrás“, segundo o pesquisador F. Costa122. Não obstante, P. Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) adverte para o “efeito arrasto“ da invasão da soja, como ameaça indireta à floresta amazônica: “os fazendeiros poderão desmatar mais áreas de florestas para compensar aquelas antigas áreas de pastagens, que agora são ocupadas pela soja”123.

No ciclo de exploração agrícola é comum cortar-se primeiro as árvores mais

valiosas (madeira de lei), antes de converter a floresta para pastagens. Quando estas estão esgotadas, são abandonadas e tornam-se improdutivas. Cerca da metade da área potencial para expansão da soja no Brasil – 50 dos 100 milhões de ha – é considerada vegetação secundária. Para recuperar estas pastagens degradadas, a EMBRAPA tem desenvolvido técnicas como o “Sistema Barreirão“ ou integração lavoura-pecuária, que estão sendo crescentemente utilizadas em regiões como a de Paragominas e Santarém (Pará), no Mato Grosso do Sul e outras124.

Entretanto, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) objetou que

“árvores destas matas secundárias, abandonadas há 30 ou 40 anos, já cumpriram de 80 a 85% do papel de uma floresta madura e poderiam ser consideradas praticamente regeneradas”125. Seu novo desmatamento teria impactos ambientais negativos similares ao desmatamento de uma vegetação primária, para o clima, a biodiversidade, as águas e outros aspectos ambientais. Como solução, o melhor caminho, segundo Costa, seria seguir o rumo do Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE), que determina a melhor atividade para cada tipo de solo e região126. Uma das sugestões de Fearnside é proteger certas áreas antes do avanço da fronteira da soja. A. Homma, pesquisador da EMBRAPA Amazônia Oriental, destaca que “O ‘pacote soja‘ deve incluir, também, programas de compensação ecológica, apoio à agricultura familiar, zoneamento das áreas já desmatadas passíveis de expansão e bloqueio das áreas de Cerrados ainda preservadas“ (ver cap. 3.2 e 3.3).

O Código Florestal permite diferentes percentagens de desmatamento “legal“,

segundo a região e o tipo de vegetação: no caso da floresta amazônica, 80% da cobertura original deve ser mantida como Reserva Legal, enquanto nos Cerrados contidos nos nove Estados da Amazônia Legal, esta percentagem baixa para 35%. Fora da Amazônia Legal, por exemplo, nos Cerrados nordestinos e do Centro-Oeste, a área de vegetação nativa a ser

120 110 Escobar, H.: “Soja não é ameaça para a floresta amazônica“, em: O Estado de São Paulo, 31.03.02, p. A-13

121 111 Geraque, E.: Um novo ciclo agrícola. A soja já ocupou o cerrado; o próximo passo, segundo os pesquisadores, é a selva. Em: Gazeta Mercantíl, 18./19.08.2001, p. 3. 122 112 Fabiano Costa, citado em: Escobar, H.: “Soja não é ameaça para a floresta amazônica“ (ver acima). 123 113 Philipp Fearnside, citado em: Geraque, E.: Um novo ciclo agrícola (ver acima), p. 3. 124 114 Entrevista com Austrelino Silveira Filho, EMBRAPA Paragominas, PA, 13.05.2003; Visita da Fazenda Centauro, Camapuá, MS, 18.06.2003. 125 115Axnews, 26.06.2003: "Desmatamento na Amazônia atinge 25.500 km² em 2002". 126 116 Escobar, H.: “Soja não é ameaça para a floresta amazônica“ (ver acima).

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mantida é de 20%127. No Mato Grosso, existe um conflito entre a legislação federal e estadual: enquanto o Código Florestal só prescreve 35% de Reserva Legal nas zonas de transição entre Cerrados e floresta, a Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEMA) exige 50% para esta zona.

Entretanto é freqüente o desrespeito ao Código Florestal. A mata está sendo

derrubada tanto na floresta amazônica quanto nos Cerrados, que representam outro tipo importante de vegetação nativa. As plantações já estão penetrando em regiões de floresta primária, por exemplo, entre Canarana e São José do Xingú no Mato Grosso128. Muitos produtores não obedecem à disposição de Reserva Legal, desmatando grande parte de suas áreas. Em junho de 2003, trabalhadores rurais tinham que se refugiar na Comissão Pastoral da Terra (CPT), sendo ameaçados de morte por fazendeiros poderosos, após terem denunciado grandes desmatamentos não autorizados em vários municípios Mato-grossenses129. Grandes desmatamentos para extrair madeira e plantar soja estão ocorrendo também na margem esquerda do Rio Amazonas (ao norte de Santarém), ao longo da estrada que sai de Oriximiná em direção a Prainha, passando por Óbidos, Alenquer e Monte Alegre, no Pará130. 1.2. O desmatamento nos Cerrados

Durante muito tempo, a região dos Cerrados foi difundida – também por várias organizações ambientais – como alternativa para abertura agrícola, para reduzir a pressão de desmatamento na Amazônia131. Os Cerrados cobrem quase um quarto do território do Brasil, sendo o segundo maior ecossistema, depois da Amazônia. Economicamente, os Cerrados são mais atrativos por exigirem apenas 20-35% de Reserva Legal, pelos menores custos para derrubar a vegetação, e por seu regime favorável de chuvas: sendo menos úmidos do que na floresta, existe menor incidência de pragas.

Não obstante, se ignora que o Cerrado é um ecossistema singular, com uma

biodiversidade única, que está sendo gravemente ameaçada: Está qualificado como a savana mais rica do mundo, com 4.400 espécies endêmicas, num total de 10.000 espécies vegetais. Foi classificado como um dos 25 hotspots do mundo (região de extrema biodiversidade)132. Porém, o governo ainda não se decidiu a conferir-lhe o status de patrimônio nacional, semelhante à Amazônia, Mata Atlântica, Pantanal e Sistemas Costeiros, conforme a Constituição brasileira. Apenas 2% de seu território está protegido na forma de Unidades de Conservação, o que corresponde a bem menos e em áreas menores 127 117 Lei 4.771/ 65 do 15.09.1965. Ver www.jol.com.br/legis/codigos/codflor/codflor.htm. 128 118 Anon.: Soja é apontada como vilã do desmatamento na Amazônia. Em: Portal Amazônia, 07.07.2003. 129 119 Entrevista com os ameaçados em Cuiabá, MT, 23.06.2003. - IBAMA Mato Grosso: Relatório de fiscalização, Cuiabá, 24.05.2003. 130

120 Comunicado de imprensa do Greenpeace Brasil, 2.7.03, www.greenpeace.org.br/noticias.asp?NoticiaID=479.

131 121 Fearnside, P.M. (2001): Soybean cultivation as a threat to the environment in Brazil, p. 27; Ministério do Meio Ambiente: Biodiversidade Brasileira (ver acima). Brasília, 2002, p. 178. 132 122 Ministério do Meio Ambiente et al.: Ações Prioritárias para a Conservação da Biodiversidade do Cerrado e Pantanal. Brasília, 1999; Ministério do Meio Ambiente: Biodiversidade Brasileira (ver acima). Brasília, 2002.

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do que na Amazônia133. A Agenda 21 brasileira, Vol. 1, explica134: “A mecanização, o uso em larga escala de fertilizantes químicos, agrotóxicos e irrigação contribuem decisivamente para empobrecer a diversidade genética [dos Cerrados] (p. 65). ...Assim, em detrimento de sua enorme riqueza natural, as regiões brasileiras de Cerrados foram e continuam sendo vistas, por políticas públicas e pelos agentes privados que investem na área, como fronteira agropecuária. Os Cerrados, nessa ótica, representam essencialmente uma área a ser ocupada, onde as dificuldades naturais impostas pelos ecossistemas devem ser vencidas para adaptá-los às exigências da produção agropecuária. Cerca de um quarto de seus 220 milhões de hectares já foi incorporado à dinâmica produtiva, respondendo por grande parte da oferta de grãos e gado de leite e corte do país (p. 66)“.

Desde 1970, o cultivo da soja nos Cerrados aumentou de 20.000 para 29 milhões de

toneladas, o que significa um crescimento de 1,4%, para 58% da produção brasileira atual de soja135. O avanço da soja constitui um dos principais fatores que ameaçam o ecossistema dos Cerrados, devido à falta de um planejamento territorial sobre onde e quanta vegetação nativa pode ser convertida em área agrícola (os Zoneamentos Ecológico-Econômicos estaduais assim como o Projeto do Ministério do Meio Ambiente “Áreas e Ações Prioritárias para Conservação, Utilização Sustentável e Repartição de Benefícios da Biodiversidade Brasileira” carecem de implementação, ver cap. 3.2.1.2).

Por exemplo, existe um altíssimo passivo de cobertura vegetal no município de Luiz

Eduardo Magalhães, BA, cidade que surgiu somente em 1981 com o plantio da soja, sendo que 84% foram desmatados para plantios, segundo o IBAMA de Barreiras, BA136.

O jornalista Washington Novaes cita que o Brasil perde, hoje, 1 bilhão de toneladas

de solo por ano com erosão: a perda de solo nas culturas de grãos chega a 10 toneladas de solo erodido para cada tonelada de grãos produzida, segundo documentos dos Ministérios do Meio Ambiente (MMA) e da Agricultura (MAPA)137. Frente a isto, considera urgente expandir o sistema de plantio direto e outras práticas (sem aumentar o consumo de herbicidas) que protegem o solo e minimizam o processo erosivo.

Quadro 2: Exploração dos Cerrados Piauienses

133 123 WWF-Brasil: De Grão em Grão, o Cerrado Perde Espaço. Brasília, 1995, p. 9. 134 124 Comissão de Políticas de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda 21 Nacional: Agenda 21 brasileira – Resultado da Consulta Nacional (Vol. 1) e Ações prioritárias (Vol. 2). Brasília, 2002. 135 125 Entrevista com Plínio Itamar de Melo de Souza, pesquisador na EMBRAPA Cerrados, Brasília, 01.07.03. 136 126 Bunge: “Pioneirismo. Luís Eduardo surgiu (em 1981) e evoluiu com a soja“. Em: Planeta Bunge, Poço Grande, RS, julho de 2003. – Entrevista com Carlos Augusto Araújo Santos e Dino Dal Bô, IBAMA, Barreiras, 15.07.2003. 137 127 Novaes, W., jornalista, em: Fórum Carajás: E-Mail circular, São Luis, MA, 04.09.2003.

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O exemplo de Uruçuí (sul do Piauí) ilustra como a exploração dos Cerrados acontece sem respeitar as necessidades da população local e do meio ambiente:

Em agosto de 2003, a nova fábrica esmagadora de soja da Bunge, instalada em Uruçuí começou a operar. Com capacidade para esmagar 2.000 t de soja/ dia, pretende produzir, anualmente, 110.000 t de óleo (para consumo interno e exportação) e 456.000 t de farelo de soja (usado principalmente como ração animal na Europa e Ásia)138. A fábrica foi construída com tecnologia da empresa alemã Siemens139, sendo financiada por empréstimos de bancos privados dos Estados Unidos e da Europa140. Ademais, foi isentada dos impostos pelo Governo, por um período de 15 anos141. Uma análise recente do Estudo de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) da Bunge revelou deficiências graves142. Segundo Álvaro Fernando de Almeida, do Departamento de Ciências Florestais da Universidade de São Paulo, “haverá um imenso impacto ambiental negativo, com destruição total da fauna e da flora nas áreas ocupadas, danos significativos nos solos desmatados, reduzindo-se a recarga do lençol freático, comprometendo a qualidade da água dos rios e, provavelmente, afetando o clima da região”143. Porém, a Secretaria do Meio Ambiente do Estado do Piauí concedeu as três licenças obrigatórias (Prévia, de Instalação e de Operação), e nem considerou necessário realizar a Audiência Pública prescrita pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA). A falha principal se refere à restrição do EIA-RIMA apenas aos 200 hectares destinados à implantação da unidade industrial, sem considerar os impactos da produção da matéria-prima (a soja) para a fábrica. Porém, o CONAMA prescreve a bacia hidrográfica na qual se situará o projeto, como referência para EIA-RIMAs144.

Para utilizar sua capacidade total, a fábrica precisa de 658.000 t de soja/ ano na primeira fase (até 2007) e depois, 1.316.000 t/ ano, o que corresponde a mais de 500.000 ha de vegetação nativa de Cerrado a serem derrubados para plantações145. Para satisfazer às necessidades da Bunge por lenha, mais de 7.000 ha adicionais de Cerrados teriam que ser derrubados e cultivados com eucalipto, uma vez que a vegetação nativa estaria esgotada. O IBAMA quantificou a necessidade de lenha da Bunge em 400 estéreos/ dia ou 20-25 ha/ dia146, o que corresponde a 7.300-9.125 ha/ ano. A Bunge já contratou a empresa Graúna para realizar o reflorestamento com eucalipto, parcialmente subsidiado por programas governamentais e incluindo até lavradores assentados pela Reforma Agrária (ao invés deles produzirem alimentos básicos para consumo e venda regional. Ver também cap. 2.4/ 3.3)147. Estes monocultivos são

138 128 Bunge Alimentos: „O Piauí precisa se descobrir, para poder aproveitar o seu potencial. Nós, da BUNGE, estamos contribuindo para isso“. Bunge auto-apresentação, Uruçuí, 2002/03. 139 129 Informação fornecida por Walter Faustino, Engenheiro da Siemens, aeroporto de Teresina, 06.07.2003. 140 130 WWF: Corporate actors in the South American soy production chain. Amsterdam, 26.11.02, pp. 59 e segts. 141 131 Ribeiro, E.: A redenção do Piauí. Em: Jornal Meio Norte Exclusiva. Teresina, março de 2003, p. 10. 142 132 Almeida, A.F. de, Docente Responsável pelo Setor de Conservação da Natureza e Impactos Ambientais do Departamento de Ciências Florestais Universidade de São Paulo (ESALQ-USP): Estudo de Impacto Ambiental – Bunge Piauí. Parecer. Piracicaba, 09.09.2003. 143 133 Filho, M.S.: O cerrado vira lenha. Ação do Ministério Público e de ONG contra gigante da soja revela a conivência de políticos com o desmatamento irregular no Piauí. Em: Istoé, 08.10.2003. www.terra.com.br/istoe/. 144 134 CONAMA Resolução 001/86, Art. 5o, III. 145 135 Área calculada na base da atual produtividade média de 2,548 t de soja/ ha. Almeida, A.F. de, 09.09.2003. 146 136 Entrevista com Almir Bezerra Lima, Eng. Florestal do IBAMA, Teresina, 06.06.2003. Afirmado com fatores de conversão para savanas fornecidos por Dr. Alba Valéria, professora no Departamento de Engenharia Florestal, Universidade de Brasília (UnB), 21.09.2003. 147 137 Anon.: Lenha. Em: O Portal do Piauí na Internet, 22.04.2003.

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um substituto inadequado para a biodiversidade original e causam um déficit hídrico severo, secando os solos frágeis dos Cerrados148.

O EIA-RIMA também desconsiderou os impactos ambientais do imenso consumo d’água pela indústria, que vai precisar de até 80 m3 de água por hora (1.920 m3 por dia ou 351.360 m3 durante os 6 meses de déficit hídrico na região). Outra deficiência do EIA-RIMA consiste na questão da vegetação, que lista somente 90 espécies, com numerosos erros ortográficos, enquanto dados disponíveis da Universidade de São Paulo indicam a existência de, pelo menos, 412 espécies. Obviamente, nem um hidrólogo, nem um biólogo participaram da equipe que elaborou o EIA-RIMA, que deve ser multi-disciplinar, segundo a lei149.

Frente a estas falhas, o Procurador da República, Tranvanvan Feitosa, está investigando o laudo ambiental concedido pelo Ibama à Bunge em Uruçuí. Ele suspeita que esteja ocorrendo um crime ambiental nos Cerrados Piauienses, o que poderá custar inclusive a paralisação das atividades da multinacional no Estado150. Segundo recente artico na Istoé, os documentos apresentados pela empresa também revelam uma incrível ação entre amigos: Uma das responsáveis pela elaboração do EIA-Rima da Bunge é casada com o técnico encarregado de emitir os laudos no Ibama151. – A pedido do Procurador da República e da Curadora do Meio Ambiente, a Justiça Federal decidiu, em novembro de 2003, que a BUNGE deve apresentar, dentro de 3 meses, um estudo revisando sua matriz energética e considerando alternativas ao uso da lenha152. A ONG Fundação Águas do Estado do Piauí (FUNÁGUAS) acabou de apresentar um relatório comprovando que a madeira pode ser substituída, quase sem prejuízo, pelo Petcoke, derivado do petróleo153. Enquanto o estudo é feito, a fábrica da BUNGE continua funcionando.

A nova fábrica da BUNGE representa um forte incentivo para a futura instalação de novos produtores de soja nos Cerrados do sudoeste do Piauí, cujo potencial para expansão do cultivo mecanizado deste grão foi quantificado em 5 milhões de ha154. Segundo o IBAMA, existe um grande aumento de demandas por licenças de desmatamento. Somente no município de Uruçuí, foram expedidas autorizações para desmatar 18.600 ha entre janeiro de 2000 e maio de 2003, além de outras demandas para 15.600 ha que esperam por sua aprovação155. No entanto, a área de cultivo de soja aumentou muito mais do que os valores supracitados, devido a extensas áreas de desmatamentos não autorizados, segundo informações dos próprios produtores e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR). Os desmatamentos dificilmente são fiscalizados, devido aos recursos limitados do IBAMA. Ademais, a Estação Ecológica Uruçuí-Una, situada

148 138 Os custos para plantações de monocultivos de eucalipto altamente produtivos são altos: requerem quantidades enormes de fertilizantes químicos, herbicidas e pesticidas. Isto também é responsável pela baixa biodiversidade nas plantações: o número de animais tende para zero, segundo informações de residentes locais. Como resultado, as possibilidades para populações locais de pescar e caçar diminuem substancialmente. Outro problema é a escassez de água: eucalipto em extensos monocultivos seca os solos, faz diminuir o nível da água nos rios e reduz as reservas de água subterrânea. Ver: Urgewald: Papier & Wald - Zerstörerische Zellstoff- und Papierproduktion. Das Beispiel Brasilien. www.urgewald.de/kampagnen/papier_und_wald/index.htm; Carrere, R., World Rainforest Movement: The dangers of monoculture tree plantations. Sem lugar/ ano. www.wrm.org.uy. 149 139 Almeida, A.F. de: Estudo de Impacto Ambiental – Bunge Piauí. Parecer. Piracicaba, 09.09.2003. 150 140 Azevedo, A.: Investigação. Em: O Portal do Piauí na Internet, 24.06.2003. 151 141 Filho. M.S.: O Cerrado vira lenha. Ação do Ministério Público e de ONGs contra gigante da soja revela a conivência de políticos com o desmatamento irregular no Piauí. Em: Istoé, 08.10.2003. www.terra.com.br/istoe. 152 142 Oliveira, F.: Justiça Federal dá 60 dias de prazo para conclusão de relatório sobre BUNGE. Em: 180 graus, 14.11.2003. 153 143 Rocha, R.: BUNGE Uruçuí: Relatório comprova que derivado de petróleo tem efeito melhor. Em: 180 graus, 07.11.2003. 154 144 Entrevista com Gilson Jesús de Azevedo Campelo, pesquisador da área de soja da EMBRAPA Meio-Norte, Teresina, 03.06.2003. 155 145 Entrevista com Almir Bezerra Lima, Engenheiro Florestal do IBAMA, Teresina, 06.06.2003.

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em Baixa Grande do Ribeiro, tem sido invadida mediante queimadas e desmatamento de grandes áreas para o plantio de arroz e soja156. Pesquisadores da EMBRAPA lamentam que o Piauí esteja sofrendo o maior desmatamento de sua história157.

Embora um EIA-RIMA seja obrigatório para plantações maiores que 1.000 ha, não tem havido um estudo do impacto ambiental dos imensos desmatamentos realizados nos grandes projetos de colonização agrícola. Alguns produtores sub-dividem suas fazendas, artificialmente, para evitar o exercício penoso do EIA-RIMA. Segundo o único consultor habilitado para efetuar EIA-RIMAs em Uruçuí, o EIA-RIMA é “difícil de ser realizado, pois existem muitos detalhes que atrapalham a sua execução“158. Dessa forma, em alguns casos está sendo levado a cabo o ”jeitinho brasileiro“, para cumprir com as normas, dando um atestado de que o projeto em questão não é prejudicial ao meio-ambiente sem, no entanto, que se conheçam os verdadeiros impactos para a flora e fauna. As Audiências Públicas, se efetuadas, têm lugar em Teresina porque “a gente gosta de fazer políticas na capital“ (a 400 km de distância de Uruçuí, existem restrições para a participação da população local atingida pelos projetos agrícolas).

Até agora, a Bunge não faz testes para constatar se a soja recebida é geneticamente modificada, porém, já existem produtores que cultivam as sementes transgênicas na região. Por falta desta prova, entra soja geneticamente modificada na cadeia alimentar, sem que haja a garantia da ausência de riscos ambientais e para a saúde humana.

Embora a Bunge tenha prometido criar 500 empregos diretos e 10.000 indiretos, em agosto de 2003 haviam somente 70 pessoas empregadas, sendo principalmente técnicos e engenheiros “importados” do sul do Brasil159. A população local só tem encontrado emprego temporário como mão-de-obra não qualificada, o que é agravado pela falta de possibilidades para formação técnica em Uruçuí160.

As condições de trabalho no desmatamento são péssimas e, geralmente, abaixo dos padrões brasileiros e daqueles preconizados pela Organização Internacional de Trabalho (ver cap. 2.6.3). Devido à sua pobreza, o Estado do Piauí é o Estado que mais utiliza mão-de-obra escrava (15% do total)161. Segundo informações da Comissão Pastoral da Terra (CPT), os municípios com maior incidência de escravidão são Barras, São Raimundo Nonato e Uruçuí, sendo esse último, aquele com maior expansão da soja. A maior exploração ocorre nas fases de desmatamento, preparo do solo para plantio, aplicação de calcário e de pesticidas, que necessitam de mais mão-de-obra, visto que as atividades de semeadura e colheita são mecanizadas162. Exemplo disso, é que foram encontrados lavradores em área desmatada, catando raízes por R$ 5/ dia. Ironicamente, os custos para “abrir novas áreas“ foram elogiados por serem

156 146 Anon.: Eco-Turismo: A exuberância de Uruçui-Una. Em: Tribuna do Sol, 31.08.2003. 157 147 Evaristo Eduardo de Miranda, pesquisador da Embrapa-Monitoramento por satélite. "Os agricultores derrubam a mata com trator e depois tocam fogo, o que provoca sérios prejuízos ao solo e à fauna. O ecossistema dos cerrados é bastante vulnerável. Os solos são frágeis. Depois da queimada, a primeira safra é excelente. Nas seguintes, a produção despenca", diz José Câmara, técnico da Embrapa em Teresina (PI). Em: Informativo Nordeste – Dezembro de 2001: Plantação de soja deixa rastro de fogo no Nordeste. 158 148 Salviano de Souza Filho, Empresa Serena de Consultoria Agropecuária, entrevistado em Uruçuí, 11.07.03. 159 149 Informação fornecida por Osvaldo Julio Silva Filho, encarregado do pessoal da Bunge em Uruçuí, 11.07.03. 160 150 Uma escola para formação técnica agrícola foi construída em Uruçuí alguns 16 anos atrás mas nunca entrou a funcionar, estando decaindo agora por falta de vontade política. Informação fornecida na ocasião de um seminário participativo para planejamento do próximo plano plurianual (PPA), Uruçuí, 08./09.07.2003. 161 151 Diário do Povo, 20.07.2001, p. 1. Em: Comissão Pastoral da Terra (CPT): Dossiê sobre trabalho escravo. Recortes de jornais. Teresina, 2002. 162 152 Delegacia Regional do Trabalho em Teresina/ Piauí, entrevista com Paula Maria do Nascimento Mazullo, 05.06.2003.

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10 vezes menores no Piauí do que na Bahia ou no Mato Grosso (R$ 30-35/ ha no Piauí, contra R$ 350/ ha nos últimos Estados)163. O Secretário de Agricultura informou que os grandes produtores estão pedindo, repetidamente, a redução dos padrões de trabalho164.

A equipe de investigação do EIA-RIMA da Bunge encontrou condições de sub-escravidão, também, nas atividades de desmatamento e reflorestamento para fornecimento de lenha à Bunge: “Os trabalhadores rurais que fazem o corte e empilhamento das árvores do Cerrado, arrancadas à força com correntões e tratores, encontram-se em condições deploráveis, alojados em barracões abertos e cobertos de palha da empresa Graúna, a qual vende a lenha à BU*GE e planta eucaliptos para uso futuro da indústria. O operador de motosserra ganha a incrível quantia de R$ 0,80 por estéreo (metro cúbico de lenha empilhada cortada), enquanto que o catador e empilhador de lenha ganha apenas R$ 0,50, trabalhando sob um sol escaldante e sem o conjunto de equipamentos de proteção exigidos por lei. Embora todos tenham carteira assinada, somente recebem o salário mínimo se conseguirem a produção equivalente. Trata-se de ação ilegal, que deveria estar sendo fiscalizada pelo governo dos trabalhadores“165. A busca de novas áreas agricultáveis tem estimulado a grilagem e práticas irregulares de transferência de terras pelos cartórios (ver cap. 2.6.1): investigações recentes do Instituto de Terras do Piauí (INTERPI) e do Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA) revelaram que mais de 80% das terras no Piauí encontram-se em situação irregular e sendo investigadas agora166. Como resultado da concentração fundiária paralelamente à expansão da soja, os pequenos camponeses estão abandonando progressivamente suas terras e sua produção e migrando para as cidades, devido à falta de suporte por políticas públicas e de perspectivas de sobrevivência no campo. No Piauí existem, pelo menos, 240.000 trabalhadores rurais sem terra167.

1.3. Fatores que facilitam o desmatamento

1) Os múltiplos subsídios públicos fornecidos para a produção da soja estimulam a substituição da vegetação nativa por vastos monocultivos168. Segundo o Grupo de Assessoria Internacional (IAG) do Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7), os projetos de infra-estrutura previstos novamente no próximo Plano Plurianual (PPA, “Um Brasil para todos“, 2004-2007) estimulam a produção da soja aumentando, conseqüentemente, o desmatamento em algumas regiões como Itacoatiara (Amazonas), Santarém (Pará) e no norte de Mato Grosso, por onde passa a rodovia BR-

163 153 Ribeiro, E.: Região tem o segundo maior lençol freático do mundo. Em: Jornal Meio Norte, 13.11.1999, p. 8. 164 154 Entrevista com Sérgio Luiz Oliveira Vilela, Secretário de Agricultura, Abastecimento e Irrigação do Estado do Piauí, Teresina, 03.06.2003. 165 155 Almeida, A.F. de: Estudo de Impacto Ambiental – Bunge Piauí. Parecer. Piracicaba, 09.09.2003. 166 156 Coelho, L.: Grileiros oferecem terra a procuradores. Em: Diário do Povo, 07.09.2003; Coelho, L.: Piauí tem 4 milhões de hectares de terras irregulares. Em: Agência Nordeste, 08.09.2003. 167 157 Jornal Agora, 06.07.1998, p. 7. 168 158 A Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, afirmou que no passado, boa parte da destruição da Amazônia acontecia financiada pelos instrumentos de crédito públicos, que vinham do Banco da Amazônia (Basa), da Suframa (Superintendência da Zona Franca de Manaus), da Sudam (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia) e até do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento). "Nós sabemos que os Estados que mais contribuem para o desflorestamento da Amazônia são o Mato Grosso, Rondônia e o Pará, e que nesses Estados cerca de 50 municípios são responsáveis por 70% desse desmatamento. Então temos que focalizar a política", salientou. Em: Saad, T.: Governo controlará crédito a madeireiro e agricultor na Amazônia. Em: O Estado de São Paulo, 03.12.2003.

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163169. Um exemplo disso é o futuro asfaltamento da BR-163, a rodovia conectando Cuiabá (Mato Grosso) com o porto de Santarém: um estudo conjunto entre o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) e do Instituto Sócio-Ambiental (ISA) detectou que este asfaltamento traria um desmatamento de entre 2,2 e 4,9 milhões de ha ao longo da rodovia, nos próximos 25-35 anos, ameaçando uma área florestal de 4,9 milhões de ha, em função das possibilidades de queimadas170. Não obstante, o asfaltamento da rodovia está previsto como prioridade no novo Plano Plurianual (PPA), dividindo os custos entre a iniciativa privada, os governos federal e estaduais. Apesar de acumular de maneira evidente o poder político e econômico, o Governador Maggi do Mato Grosso rejeita a acusação de interesses conflitantes, porque a população havia votado nele, sabendo da sua pretensão de construir estradas e expandir a produção agrícola171.

Ademais, a atração de novos produtores para comprar terras e produzir soja ao

longo da BR-163 tem sido catalizada pelo novo terminal graneleiro da companhia norte-americana Cargill em Santarém, de onde a soja é exportada pelo Amazonas. O porto foi construído apesar de ser massivamente criticado por organizações da sociedade civil, em função das graves deficiências ambientais e sociais, como a expulsão de famílias de pequenos pescadores que perderam sua fonte de subsistência e renda tradicional172. Em novembro de 2003, o Tribunal Federal em Brasília decidiu que o porto da Cargill em Santarém deverá ser interditado, seguido pelo anúncio do Ministério Público em dezembro de 2003 que vai pedir a demolição da obra173. Inicialmente em 1999, a Subseção da Justiça Federal em Santarém havia determinado a interdição das obras de construção do porto, obrigando a empresa a apresentar o EIA-RIMA da área de influência da obra. Porém, a empresa recorreu e obteve liminar para prosseguir a obra, concluída em abril de 2003. Agora, como o porto foi construído apenas com a apresentação do Plano de Controle Ambiental, instrumento menos oneroso que o EIA-RIMA, a empresa terá que compensar a União pelos danos ecológicos. Serão marcadas audiências públicas com representantes da sociedade organizada para discutir a melhor forma de a empresa ressarcir a comunidade pelos danos ambientais causados com a obra174.

A extensão dos sistemas fluviais dos rios Madeira-Guaporé-Beni incluída, também,

no novo PPA, para escoar a soja produzida no Centro-Oeste pelo Amazonas, estimula a expansão da agricultura mecanizada, prevista em aproximadamente 8 milhões de ha de terras. Isto multiplica o risco de desmatamentos ilegais (pois legalmente isso implicaria em

169 159 IAG do PPG7 (ver acima):“O PPA 2004-2007 na Amazônia“. Brasília, setembro de 2003. 170 160 Nepstad, D.; Capobianco, J. P. et al. (ver acima): Avança Brasil: Os custos ambientais para a Amazônia. Belém, 2000, p. 9. 171 161 Rother, L.: Relentless Foe of the Amazon Jungle: Soybeans. Em: New York Times, 17.09. 2003. 172 162 Anon.: GDA denúncia ampliação dos Cais do Porto. Em: A Gazeta, Santarém, 03.-09.05.1998; Diversas denúncias feitas pelo Grupo de Defesa da Amazônia (GDA), Diocese de Santarém, Pastorais Sociais, CPT, Projeto Várzea, Colônia de Pescadores Z-20, Associação de Docentes da Universidade Federal do Pará e outros. 173 163 Mendes, C.: Ministério Público Federal quer demolir porto de US$ 12 milhões. Em: O Estado de São Paulo, 13.12.2003. www.amazonia.org.br/noticias/noticia.cfm?id=92012. 174 164 Ibanês, J.: Porto da Cargill deverá ser interditado. Em: O Liberal, 20.11.2003.

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propriedades privadas agregando mais de 40 milhões de hectares, ou seja, maiores do que a região em si), e/ ou da expulsão de agricultores familiares e populações nativas175.

Além disso, destaca o projeto da Hidrovia Araguaia-Tocantins, de 1995, um dos

eixos do programa “Avança Brasil“, ou Plano Plurianual (PPA) 2000-2003, do Governo Federal176. Ele objetiva a redução dos custos no escoamento da produção de soja produzida no Centro-Oeste do país para Roterdã, Holanda, via Porto do Itaqui, em São Luís (MA). Um dos motivos do projeto é a intenção do governo em incentivar o plantio de soja no Vale do Araguaia. Porém, segundo um estudo da EMBRAPA, a região é necessária para a conservação e não para exploração agrícola. A hidrovia deverá cortar 2.012 km de cinco Estados, dez áreas de conservação ambiental, incluindo a maior ilha fluvial do mundo – a Ilha do Bananal. O empreendimento afetará 35 áreas indígenas, compostas por uma população de 10.000 indivíduos. Entre as intervenções, estão previstas 87 explosões de dinamite, com o objetivo de destruir diques naturais de formações rochosas. O pesquisador Fearnside adverte que a hidrovia poderá afetar negativamente a pesca no rio177

e, assim, a base de sobrevivência das comunidades ribeirinhas e da economia regional. Em 2002, o EIA-RIMA da Hidrovia Araguaia-Tocantins foi condenado por uma análise independente feita pelo Centro Brasileiro de Referência e Apoio Cultural (CEBRAC)178. O estudo do CEBRAC apontou que os danos ambientais que a hidrovia pode causar tornam o empreendimento inviável, além de questionar a viabilidade econômica do projeto. O RIMA omite que entre junho e novembro o rio fique seco demais para navegação, período este de pós-colheita, quando a soja está sendo escoada179. - A administração do assunto é de responsabilidade do Ministério dos Transportes. Depois das denúncias de ambientalistas, especialistas e organizações sociais e indígenas, o EIA foi rejeitado pela Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados. Nem mesmo o Ministério do Meio Ambiente tinha participado do estudo. Atualmente, a obra está parada por seus supostos impactos ambientais e sociais.

2) O financiamento por parte dos bancos internacionais (à parte do pré-financiamento pelas compradoras internacionais como BUNGE e Cargill) também contribui, consideravelmente, para a expansão da soja às custas da vegetação nativa. Em 2001, a concessão de um crédito de US$ 12 milhões pelo Banco Alemão de Investimento e Desenvolvimento (DEG) e o Rabo-Banco holandês para o Grupo Maggi provocou críticas massivas por parte dos movimentos ambientais, também na Alemanha180. Não obstante, em outubro de 2002, a Corporação Financeira Internacional (IFC), vinculada ao Banco Mundial, aprovou outro

175 165 IAG do PPG7 (ver acima):“O PPA 2004-2007 na Amazônia“. Brasília, setembro de 2003. 176 166 Ver www.riosvivos.org.br/subcanais.php?scanal_id=9. 177 167 Philipp Fearnside, citado em: Geraque, E.: Um novo ciclo agrícola. A soja já ocupou o cerrado; o próximo passo, segundo os pesquisadores, é a selva. Em: Gazeta Mercantíl, 18./19.08.2001, p. 3. 178

168 O EIA-Rima foi produzido por técnicos da Fundação de Amparo e Desenvolvimento à Pesquisa (Fadesp), da Universidade Federal do Pará, (UFPA), a pedido da já estabelecida Administração das Hidrovias do Tocantins e Araguaia (Ahitar) da Companhia Docas do Pará (CDP). Ver www.riosvivos.org.br/subcanais.php?scanal_id=9. 179 169 Fearnside, P.M.: Soybean Cultivation as a threat to the environment in Brazil (ver acima), p. 28. 180 170 Ver http://www.regenwald.org/new/aktuelles/soja/.

ttp://archiv.greenpeace.de/GP_DOK_3P/BRENNPUN/URWALD/F7_Tradingdeutsch.pdf.

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crédito de US$ 30 milhões para o Grupo Maggi181. O Gerente brasileiro do IFC justificou isto dizendo que “O fato de que existem problemas dentro de um setor, não implica que um ator individual, que está agindo de uma forma responsável, não deve ser apoiado“182. O próprio Banco Mundial, que participa no Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7), não está mais financiando o avanço da fronteira da soja na Amazônia183. Em junho de 2003, o Grupo Maggi publicou a firmação dum acordo com o banco alemão West LB, o qual disponibiliza para uso imediato, um empréstimo de US$ 80 milhões (dos quais US$ 30 milhões já ingressaram no país), para pré-financiar os produtores e fornecedores de soja do Grupo Maggi na safra 2003/04184. 3) Gargalos institucionais: A falta de recursos financeiros e pessoais, bem como, a ocorrência de corrupção185

impedem o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (IBAMA) de realizar controles eficientes no campo. Por exemplo, o engenheiro florestal do IBAMA em Balsas, MA, lamentou “Somos um país pobre e sub-desenvolvido, o IBAMA não tem recursos para investigar denúncias.” Embora se tenha revelado que ele não fiscalizou um desmatamento ilegal para cultivo de soja, porque seu primo era o dono da fazenda e seu irmão o chefe dos trabalhos de desmatamento186. Também ao redor de Santarém e Belterra, PA, os desmatamentos superam o limite

181

171 http://ifcln1.ifc.org/IFCExt/Pressroom/IFCPressRoom.nsf/0/03FFDA56CF3E002685256C6100577457?OpenDocument. 182 172 Entrevista telefônica com o Gerente brasileiro do IFC, Wolfgang Bertelsmeier, São Paulo, 23.07.2003. 183 173 Segundo informações do produtor Elemar Bandeira em Humaitá (01.04.2003), o Grupo Maggi não pôde dar o empréstimo esperado para a safra 2002/03, porque não foi concedido um crédito do Banco Mundial que não quer mais financiar a expansão agrícola na Amazônia. As seguintes citações mostram a estratégia do Banco Mundial (BM) no passado: Nos anos 1980, o BM financiou várias rodovias e projetos agrícolas (como o POLONOROESTE) que abriram as florestas primárias de Rondônia para colonização por mais de um milhão de novos agricultores. Ver www.mongabay.com/20brazil.htm. O BM dirigiu o Brasil a incrementar suas exportações, para aumentar suas receitas, mediante a abertura de sistemas frágeis de floresta para cultivos agrícolas – principalmente da soja. Ver: www.majbill.vt.edu/students/geog3104/group4/Brazil.htm. Ainda em 1994, o BM aprovou um préstimo para melhorar e asfaltar estradas nos Cerrados do norte do Brasil, que iriam contribuir à expansão da soja, a conflitos de terra com agricultores tradicionais de roça-e-queima, poluindo águas e destruindo até um milhão de ha de savanas. Ver nativenet.uthscsa.edu/archive/nl/9408/0122.html. Atualmente, como conseqüência do PP-G7 e de 10 anos de diálogo e experiências depois da Cúpula do Desenvolvimento Sustentável (ECO 1992), o Banco Mundial está concentrando seus esforços no combate da pobreza, na promoção do desenvolvimento sócio-econômico e na conservação do meio ambiente na Amazônia.Ver http://lnweb18.worldbank.org/external/lac/lac.nsf/0/1514180bc0676cc185256da2007a4070?OpenDocument. 184 174 www.grupomaggi.com.br/br/news.asp?idnews=9, 30.06.2003. 185 175 IBAMA: Ibama demite servidores de Rondônia por corrupção. Comunicado de imprensa, Brasília, 04.11.2003. www.amazonia.org.br/noticias/noticia.cfm?id=87893. De acordo com a revista Época (edição do 12.03.2001), o Ministério Público Federal apresentou denúncia contra o IBAMA no Tocantins, que tem dado cobertura à devastação do meio ambiente, por meio de operações ilegais de desmatamento, esquentamento de madeira extraída ilegalmente, legalização de reservas florestais inexistentes ou redução de áreas de preservação obrigatória. Em: Comissão Pastoral da Terra (CPT) Tocantins: Estado do desenvolvimento predador... Prevaricação, destruição ambiental, grilagem, favoritismo, superexploração: eis algumas das características do auto-proclamado „Estado da livre iniciativa e da justiça social“. Araguaia-Tocantins, 13.03.2001. 186 176 Informação fornecida por pequenos produtores atingidos pelos desmatamentos ilegais para o cultivo da soja, na Comunidade Progresso, 03.05.2003.

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permitido como, por exemplo, pela compra de vários lotes de diferentes tamanhos, ocultando seu tamanho total, dificultando o controle do respeito da reserva legal187. Também a nível estadual existem gargalos pessoais nos órgãos ambientais que dificultam um controle e uma fiscalização eficaz do desmatamento: Em Mato Grosso, existem somente 13 fiscais da Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEMA) para cuidar dos 90 milhões de ha estaduais, o que coloca em risco a conservação e proteção da área verde, que ainda abriga 37 reservas naturais188. Apenas 7 das 34 reservas naturais estaduais (3 são federais) estão demarcadas, porque a maioria está localizada em áreas privadas e não foram disponibilizados recursos públicos para desapropriá-las quando foram criadas. Recentemente, a FEMA está testando um novo sistema à base de satélites para monitorar o licenciamento de desmatamentos, cujos primeiros resultados estão considerados como exitosos189. O Governo Lula e sua Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, se esforçam para combater um antigo esquema de corrupção, mediante ocupação de postos-chave no IBAMA, com pessoal comprometido com a preservação do meio ambiente190. 2. Pesticidas 2.1. Dimensão do consumo de pesticidas

A soja, como monocultivo, requer a aplicação de grandes quantidades de

agrotóxicos, por sua baixa resistência natural a doenças e pragas. Segundo a EMBRAPA, em torno de 20% dos custos totais de produção da soja (~R$ 1.000/ ha) são destinados a gastos com pesticidas. Dependendo do nível tecnológico, são aplicados de 5 a 10 litros de agrotóxicos por hectare. Conseqüentemente, numa área de 18,5 milhões de ha de soja, são despejados de 92,5 a 185 milhões de litros de pesticidas à cada ano.

Um recente relatório da FAO classifica o Brasil como o terceiro maior consumidor de agrotóxicos do mundo, com o emprego anual de 1,5 kg de ingrediente ativo por hectare cultivado191. A agroindústria, à cada ano, aplica maiores quantidades de pesticidas que prejudicam seres humanos, águas e meio ambiente (frente a isto, o termo “defensivos agrícolas“ parece um eufemismo). Segundo um estudo da Universidade de São Paulo, a taxa de crescimento anual no consumo de pesticidas, no período compreendido entre 1988 e 1998, foi de 4% na América do Norte, 4,6% na Europa Ocidental e 5,4% na América

187 177 Informação fornecida pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), e pela Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER), Santarém, 07.04.2003. 188 178 Pinho, A.: Estado (MT) perdeu 50% da área verde em 20 anos. Em: A Gazeta, Cuiabá, 22.06.03, pp. 2-4. 189 179 Scholz, I., et al., Deutsches Institut für Entwicklungspolitik (DIE): Handlungsspielräume zivilgesellschaftlicher Gruppen und Chancen für kooperative Umweltpolitik in Amazonien. Darstellung anhand des Staudamms von Belo Monte und der Bundesstraße BR-163. Bonn, 2003. 190 180 Impressão pessoal depois de entrevistas com os novos superintendentes do IBAMA em São Luis, MA, maio de 2003, e em Barreiras, BA, julho de 2003. 191 181 Anon.: Relatório da FAO mostra que o Brasil é o 3° maior consumidor de agrotóxicos do mundo. Em: O Povo, Fortaleza, 04.05.2002. www.ibd.com.br/arquivos/saudexagrotoxicos/relatorioFAO.htm.

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Latina. No Brasil, entre 1993 e 1998 esta taxa foi de 6,7% ao ano192. O consumo de herbicidas, entre 1978 e 1998, cresceu em 540%193. Segundo dados da Associação Nacional dos Defensivos Agrícolas (ANDEF), em 1999 as vendas totais de agrotóxicos no Brasil foram superiores a 288 milhões de kg de produtos comerciais, o que significou um valor total de US$ 2,33 bilhões (mais de R$ 5,2 bilhões, referência: cotação de então de R$ 2,30 por dólar). Atualmente, os gastos com pesticidas agrícolas no Brasil superam os US$ 2,7 bilhões por ano194.

Paradoxalmente, esse crescente investimento em agrotóxicos não correspondeu a

uma redução significativa das perdas agrícolas, devido a pragas e doenças195. Ao contrário, os resultados foram contraproducentes, em função da intensidade dos desequilíbrios biológicos causados pelo coquetel de pesticidas, culminando com o extermínio dos inimigos naturais dos agentes de pragas e fitomoléstias. Com efeito, no período de dez anos (1976-85), cresceu em 500% o consumo de agrotóxicos no Brasil, enquanto, no mesmo período, registrava-se um aumento médio de produtividade de 5% apenas, ganho que não pode ser creditado exclusivamente aos pesticidas.

2.2. Prejuízos à saúde e ao meio ambiente

A cada ano morrem, no Brasil, 220.000 pessoas devido a intoxicações por

pesticidas, segundo o Movimento pela preservação dos Rios Tocantins e Araguaia196. O Sistema de Informações Tóxico-Farmacológicas (SINITOX), mantido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz, órgão do Ministério da Saúde) relatou “somente“ 5.127 casos e 141 óbitos (2,75%) de intoxicação humana por agrotóxicos no Brasil, em 2000197. Não obstante, os casos registrados pelo SINITOX não cobrem a realidade das intoxicações no país, uma vez que, segundo o experto Alves Filho, a não notificação de casos é muito alta198.

A Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) estima que “as taxas de intoxicações

humanas no país sejam altas, dada a falta de controle no uso destas substâncias químicas tóxicas e o desconhecimento da população em geral sobre os riscos e perigos à saúde delas decorrentes. Deve-se levar em conta que, segundo a Organização Mundial da Saúde, para cada caso notificado de intoxicação existem 50 outros não notificados. Segundo a

192 182 Gazeta Mercantil Digital, Goiás, Ano III, n. 584. 07.02.2001. Citado em: Caporal, F.R.: Superando a Revolução Verde: A transição agroecológica no Estado do Rio Grande do Sul. Santa Maria, RS, março de 2003. 193 183 Alves Filho, J.P., Divisão de Gerenciamento de Riscos, Coordenação de Segurança no Processo de Trabalho, FUNDACENTRO (Centro brasileiro de pesquisa em Segurança, Saúde e Meio Ambiente de Trabalho): Uso de agrotóxicos no Brasil: controle social e interesses corporativos. São Paulo, FAPESP, 2002. 194 184 Caporal, F.R.: Superando a Revolução Verde: A transição agroecológica no estado do RS (ver acima). 195 185 Anon.: Relatório da FAO mostra que o Brasil é o 3° maior consumidor de agrotóxicos do mundo (ver acima). 196 186 Movimento pela preservação dos Rios Tocantins e Araguaia, regional do Bico do Papagaio: Jornal do Tocantins. Projeto Sampaio. Tocantins, maio de 2002. 197 187 Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz): Sistema de Informações Toxico-Farmacológicas (SINITOX). Casos Registrados de Intoxicação Humana e Envenenamento. Brasil, 2001. 198 188 Alves Filho, J.P., comunicado pessoal por e-Mail de 05.09.2003.

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FIOCRUZ/ SINITOX, foram notificados, em 1993, aproximadamente 6.000 casos no país, de intoxicações por pesticidas (agrotóxicos, inseticidas e raticidas), que corresponderiam, então, a uma estimativa aproximada de 300.000 casos de intoxicações naquele ano. Desta forma, a intoxicação em si e as doenças dela decorrentes constituem um grave problema endêmico de saúde pública. Deve ser levado em consideração, também, que cada caso de intoxicação custa, para o Sistema de Saúde, aproximadamente, R$ 150, o que significa um total estimado de R$ 45.000, que poderiam deixar de serem gastos se as medidas de controle e de vigilância fossem mais ativas, com os setores responsáveis cumprindo com suas obrigações legais“199.

Vários estudos científicos têm comprovado os efeitos prejudiciais dos agrotóxicos

para a saúde humana, em função de sua acumulação em longo prazo: Os pesticidas utilizados na lavoura, principalmente os organoclorados e os organofosforados, são muito tóxicos. Destaca-se o caso do Metamidophos ou Tamaron, produzido pela Bayer, organofosforado de ação sistêmica que age por contato, ingestão, ou de forma sistêmica200. Esse inseticida e acaricida, hoje é comercializado como Classe II, isto é, "altamente tóxico". O registro original era Classe I, "extremamente tóxico", alterado devido a uma Portaria do Ministério da Saúde, a partir de 1992.

O Tamaron é proibido na China e no Reino Unido. Os deputados federais Adão

Pretto, Fernando Dantas Ferro e Miguel Soldatelli Rossetto, do PT, têm solicitado aos Ministérios Público, de Saúde e de Agricultura, a proibição do uso do Tamaron, devido ao elevado índice de suicídios, como conseqüência do uso desse produto na cultura de fumo no Rio Grande do Sul. Também em Alagoas, é elevado o número de mortes de trabalhadores rurais devido ao uso de Tamaron na região do agreste do Estado201. Os deputados alertam para o envenenamento agudo, intermediário e dos “efeitos subagudos resultantes de intoxicação aguda, ou de exposições contínuas a baixos níveis de agrotóxicos organofosforados, que se acumulam através do tempo, ocasionando intoxicações leves e moderadas. Eles se apresentam, em muitos casos, como efeitos crônicos sobre o Sistema Nervoso Central, especialmente do tipo neuro-comportamental, como insônia ou sono perturbado, ansiedade, retardo de reações, dificuldade de concentração e uma grande variedade de seqüelas psiquiátricas: apatia, irritabilidade, depressão e esquizofrenia. O grupo prevalente de sintomas compreende perda de concentração, dificuldade de raciocínio e, especialmente, falhas de memória. Os quadros de depressão também são freqüentes, conforme a Organização Mundial de Saúde. (...) De acordo com o engenheiro agrônomo Sebastião Pinheiro, os agrotóxicos utilizados atualmente nas lavouras e plantações são constituídos de substâncias desenvolvidas durante a Primeira Guerra Mundial e que tinham

199 189 Fundação Nacional de Saúde (FUNASA): Guia de Vigilância epidemiológica. Cap. 5.15: Intoxicações por agrotóxicos. Sem lugar/ ano. www.funasa.gov.br/pub/GVE/GVE0515A.htm. 200 190 Dantas Ferro, F.; Pretto, A.; Soldatelli Rossetto, M.: Solicitação ao Ministério Público para a proibição do Tamarón. Brasília, 08.08.1996. www.pt.org.br/pt/textos/ferro6.htm. 201 191 A Gazeta de Alagoas, de 23.07.1996: "A morte tem nome em Arapiraca: Tamaron!", artigo assinado por Cláudio Barbosa e Deraldo Francisco, aponta que em 2,5 anos morreram 21 pessoas nas cidades da região, principalmente em Arapiraca, onde existe a cultura fumageira. Aí são incluídos os suicídios por ingestão do produto ou óbito por "acidente" no manejo.

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o objetivo de atingir o sistema nervoso dos soldados”202. “Não obstante, em seu site, até hoje a Bayer faz propaganda para o Tamaron e outros inseticidas e acaricidas, apresentando-os como “soluções integradas para a cultura da soja“203.

Os organismos aquáticos, desde os microscópicos até as formas maiores, são

afetados pelos inseticidas. Os que não morrem acumulam tais moléculas em seu organismo; quando são consumidos por outros, os efeitos tóxicos são transferidos para seus predadores. Peixes, aves e mamíferos sofrem os efeitos tóxicos dos inseticidas. No homem, a intoxicação provoca dores de cabeça, diarréias, sudorese, vômitos, dificuldades respiratórias, choque e morte. Da mesma forma, os fertilizantes agrícolas sintéticos, quando arrastados pela água da chuva podem poluir rios e lagos. Os nitratos e fosfatos, principalmente, favorecem uma proliferação exagerada de algas, que podem cobrir completamente a superfície da água. Esse processo, denominado eutrofização, limita e inibe o desenvolvimento de outros organismos, em função de uma elevada demanda biológica por oxigênio (DBO).

Quadro 3: Toxicidade do herbicida glifosato usado na soja

Existem evidências substanciais de intoxicações humanas pelo uso do herbicida glifosato, produzido pela Monsanto e outras companhias204. Embora o glifosato mesmo sendo considerado como de fácil decomposição, seu metabólito principal AMPA (ácido amino-metil-fosfónico) também é tóxico. O AMPA é relativamente estável e não disorve bem no solo, resultando na intrusão nas águas superficiais. O glifosato pode conter quantidades de N-nitroso; esta composição pode ser formada no ambiente combinando-se com nitrato (presente na saliva humana ou em fertilizantes). A maioria das composições N-nitroso são cancerígenos e não existe um nivel seguro de exposição para um produto cancerígeno. O formaldeído, outro cancerígeno conhecido, é um produto proveniente da descomposição do glifosato. O glifosato foi encontrado contaminando águas superficiais e subterrâneas no Canadá, Reino Unido, na Holanda e Alemanha205. Toxicidade a curto prazo: Os efeitos de exposição a formulações de glifosato incluem a irritação da pele e dos olhos, problemas respiratórios e gastro-intestinais, efeitos no coração, pressão sangüínea modificada, aumento da glicose no sangue, diarréia, lesões do pâncreas e das glândulas salivares, sangramento do nariz, retardamento do crescimento e mudanças no peso relativo dos órgãos. O uso do glifosato como deseccante em pré-colheita e como regulador de crescimento é particularmente problemático, do ponto de vista do efeito residual, uma vez que, geralmente, o seu período de carência não é respeitado antes da colheita. O glifosato pode persistir em produtos alimentícios por períodos de até dois anos. Toxicidade a longo prazo: Estudos de expectativa de vida em animais têm mostrado crescimento excessivo e morte de células do fígado, cataratas e degeneração do cristalino dos olhos. Embora o glifosato não seja considerado carcinogênico para seres humanos, somente um pequeno número de estudos foi efetuado. Estes, por sua vez, mostram uma variedade de tumores na tireóide, no pâncreas e no fígado. Os estudos mostraram, também, efeitos reprodutivos negativos em homens e

202 192 Dantas Ferro, F.: Agrotóxicos está matando produtor rural. Pernambuco/ Brasília, 09.09.1996. 203 193 Site da Bayer Cropscience para soja no Brasil: www.bayercropscience.com.br/culturas/soja/tesoja.shtml. 204 194 Watts, M., Macfarlane, R., Pesticide Action Network Asia & the Pacific: Glyphosate. Penang, Malaysia, 1999. 205 195 Nivia, E./ Rede de Ação em Plaguicídas e Alternativas – seção América Latina (Pesticide Action Network): Fumigaciones sobre cultivos ilícitos contaminan el ambiente colombiano. Calí, 25.06.2001; Arbeitsgemeinschaft Rhein-Wasserwerke (ARW): Jahresbericht (Relatório Anual) 2002, pp. 29/ 37.

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mulheres. Efeitos ambientais: O glifosato causa preocupação, particularmente, por seus efeitos na esfera aquática. É moderadamente tóxico para peixes. O surfactante usado no Roundup (tm) é consideravelmente mais tóxico: afeta também insetos benéficos e minhocas, algas e plantas aquáticas não-visadas. O uso do glifosato pode resultar em perdas significativas de populações terrestres, mediante a destruição do seu hábitat e da provisão de alimentos, causando assim, uma ameaça a espécies em via de extinção e à biodiversidade. A fixação biológica do nitrogênio pode ser reduzida, diminuindo assim a fertilidade dos solos. O glifosato também pode aumentar a susceptibilidade de algumas plantas nãovisadas a doenças fúngicas, interferindo em outros processos metabólicos, como a produção de íons e lignina. O glifosato pode persistir nos solos por mais de três anos, dependendo do tipo de solo e do clima, e suas moléculas têm sido encontradas em água superficial e subterrânea. Pesquisa recente mostra que o glifosato pode ser mais móvel no meio ambiente do que anteriormente suposto, indicando um maior risco de contaminação da água subterrânea. O Glifosato pode ser absorvido dos solos pelas plantas, muito tempo após o seu uso.

Outro exemplo diz respeito ao Gramoxone, ou Paraquat, herbicida cuja

comercialização está proibida ao agricultor no Brasil e banido em vários países. A aplicação de 2 litros/ ha de Gramoxone é listado na “Estimativa do orçamento para custeio de 1 ha de soja“ do “Relatório Trimestral de Informações sobre atividades agropecuárias“ do Banco do Amazonas, para 2003.

De acordo com a Portaria 329 do Ministério da Saúde, de 02/09/85, o Paraquat só

pode ser aplicado por pessoal especializado, contratado por firma prestadora de serviços cadastrada no Ministério da Agricultura. Não obstante, foram encontrados trabalhadores não-cadastrados aplicando Gramoxone, sem idéia do risco a que se expõem. Aos trabalhadores foram negadas as necessidades mínimas, como uma roupa adequada para trabalhar, além de ser exigido que não se sindicalizassem206.

O Núcleo de Saúde dos Trabalhadores (NUSAT) da prefeitura de Barreiras, BA, relatou 16 casos de intoxicações por pesticidas em 2002. O número real de envenenamentos é muito mais elevado, segundo informações do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR). Porém, nem todos os postos de saúde diagnosticam a verdadeira causa (são relatados como “náusea, dor de cabeça e de barriga, vertigem“). Alguns trabalhadores não ousam denunciar as intoxicações, por medo de perderem seu trabalho.

Ademais, é freqüente o desrespeito ao uso de equipamentos de proteção individual

(EPI) exigido por lei, sobretudo em condições exploradoras de trabalho: Um trabalhador escravo refugiado em Mato Grosso relatou que havia pedido ao “gato“ (supervisor de trabalho), o EPI, e que este havia lhe “assegurado“: “Não te preocupes, este veneno é só para formigas!“, de modo que ele aplicou o veneno de chinelas, vestido com camisa de mangas curtas, sem máscara e luvas de proteção207.

A pulverização de agrotóxicos por avião espalha os ingredientes ativos pelo ar num

raio de quilômetros, contaminando hortas caseiras e produções orgânicas208, ameaçando

206 196 Dantas Ferro, F.: Agrotóxicos estão matando produtor rural. Pernambuco/ Brasília, 09.09.1996. 207 197 Entrevista com trabalhador escravo refugiado, Cuiabá, MT, 23.06.2003. 208 198 Fátima Coelho, M., Universidade Federal do Mato Grosso, citado em: Alves, A.L.: Transgênicos rondam Mato Grosso. Em: Instituto Centro de Vida, 24.02.2003.

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também, ecossistemas como, por exemplo, as várzeas e florestas nacionais (FLONA) no sul de Santarém. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Santarém, já morreram pássaros nas Comunidades de Mojuí e Una, e os pequenos produtores estão sendo obrigados a amarrar seus cachorros e galinhas, para evitar outros casos de intoxicações por pesticidas aplicados nas grandes lavouras vizinhas de arroz e soja209.

Na comunidade Vão do Salinas - sul do Maranhão, 14 famílias foram prejudicadas por diversas vezes, pelo produtor de soja Jorge de Pés, que pulveriza agrotóxicos por avião nas chapadas e tem derrubado toda a vegetação das margens em declive. A chuva leva o veneno para a região mais baixa, contaminando as plantações e pastagens dos pequenos agricultores e, principalmente, as águas, matando os peixes e animais domésticos. O IBAMA, apesar de duas denúncias feitas pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais e pela Comissão Pastoral da Terra, nunca investigou a região atingida “por falta de veículo“, contentando-se com a afirmação do sojicultor, de que “não ocorrerá novamente“. Finalmente, um ano após a denúncia na Promotoria de Justiça de Balsas, as margens foram reflorestadas com eucalipto. Não houve a indenização dos moradores, decidida pelo Poder Judiciário, e nada foi feito pelo IBAMA para acabar com as intoxicações por pesticidas. Em virtude dos prejuízos ao meio-ambiente e à produção de subsistência das famílias camponesas, a FIAN, organização internacional pelo direito humano a alimentar-se, iniciou uma campanha internacional de cartas para pressionar as autoridades estaduais a adotarem as medidas necessárias para indenizar as famílias, proteger seus direitos e recuperar o meio-ambiente.

Desequilíbrio ambiental: O uso de agrotóxicos, além de controlar as doenças e pragas, também afeta seus inimigos naturais, induzindo a uma crescente instabilidade dos ecossistemas. Por exemplo, pequenos produtores do sul do Maranhão e do leste de Tocantins estão cercados por imensas áreas de monocultivo de soja. Tais produtores têm relatado que as pragas, como conseqüência do uso dos inseticidas na soja, fogem para os campos não-tratados na vizinhança, particularmente para o feijão, o qual pertence à mesma família botânica da soja. Nesse aspecto, alguns pequenos produtores em Campos Lindos, TO, perderam até 50% da safra de arroz e sofreram uma grave escassez de alimentos210. O incremento no uso de pesticidas na atividade rural resultou no surgimento de novas pragas, ou pragas mais resistentes. Hoje, segundo estudos de Carlos Aníbal Rodrigues, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), já são registradas 440 espécies de insetos imunes a todo tipo de agrotóxico211.

Tanto a contaminação das terras e águas (como recursos básicos para produzir

alimentos) pelos agrotóxicos, tanto a conseqüente desestabilização da produção dos pequenos produtores, representam violações ao seu direito humano a alimentar-se.

www.estacaovida.org.br/one_news.asp?IDNews=85. 209 199 Entrevista com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), Santarém, 07.04.2003. 210 200 Entrevista com pequenos produtores familiares no Assentamento Rio Peixe, Gerais do Maranhão, 29.04.2003, e em Campos Lindos, Serra do Centro, Comunidade Chinela, Tocantins, 06.05.2003. 211 201 Dantas Ferro, F.; Pretto, A.; Soldatelli Rossetto, M.: Solicitação ao Ministério Público para a proibição do Tamarón. Brasília, 08.08.1996.

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2.3. O problema do lixo Além do veneno aplicado, as verdadeiras montanhas de lixo formadas pelas

embalagens vazias representam um grande problema ambiental. Não existem dados específicos para soja, mas segundo o IBAMA, em 2001 foram acumuladas 27,8 mil de toneladas (t) de embalagens vazias de agrotóxicos212. Este triste recorde é liderado pelos estados mais “avançados“ do ponto de vista agrícola, como São Paulo (6,4 mil de t), Paraná (4,4 mil de t) e Mato Grosso (4,3 mil de t), seguidos por Rio Grande do Sul (2,9 mil de t), Goiás (2,4 mil de t) e Minas Gerais (2,3 mil de t), enquanto nas regiões Norte e Nordeste, tecnologicamente “atrasadas“, as quantidades ainda são inferiores. Por exemplo, o Mato Grosso, que produz um quarto da soja brasileira, é o Estado que mais recolhe as embalagens (312 t em julho de 2003, ou 34% do recolhimento nacional). Porém, isto representa apenas 50% das embalagens dos agrotóxicos comercializados naquele Estado213.

A quantidade de embalagens não recolhidas deve ser maior, porque a tríplice

lavagem e o recolhimento das embalagens, prescritos por lei desde 2000, são dispendiosos e não são sempre obedecidos. As embalagens contaminadas, inclusive os resíduos nelas contidos, continuam sendo espalhados no meio rural e urbano214. Segundo a ANDEF, mais de 300 milhões de embalagens de agrotóxicos foram consumidas entre 1987 e 1997. Em média, equivalem a 30 milhões por ano.

O pólo agrícola Barreiras no Oeste da Bahia, por exemplo, produz soja em 850.000

ha, de uma área total cultivada de 1,2 milhões de ha. Na ocasião da visita à Central “Campos Limpos“ para recolhimento de embalagens vazias de agrotóxicos, foi notada uma grande quantidade de produtos químicos de empresas alemãs e de outras multinacionais que, em parte, estão proibidos em outros paises (ver acima o caso do Tamaron). Desde a sua inauguração, em junho de 2001, foram recolhidas 1,3 milhões de embalagens vazias de agrotóxicos; 750.000 só no primeiro semestre de 2003, sendo que espera-se superar 1 milhão até o fim do ano. O lixo está sendo comprimido e levado a São Paulo para reciclagem – certamente, um pequeno progresso frente ao descarte indiscriminado praticado anteriormente, embora não elimine a raiz do problema, que consiste na aplicação de venenos na agricultura. 2.4. Medidas de precaução e monitoramento

A poluição das águas por agrotóxicos viola o direito humano à água. Este direito é

parte integrante do direito à alimentação adequada, oficialmente reconhecido no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) das Nações Unidas, Art. 11 (ver cap. 3.3.2)215. Conforme o Comentário Geral No. 12 do Comitê de Direitos 212 202 IBAMA e Instituto Nacional de Processamento de Embalagens Vazías (INPEV): Distribuição porcentual de embalagens por estado, 2001. Brasília, 2002. 213 203 Batista, F.: MT terá primeira recicladora. Em: Gazeta de Cuiabá, 26.08.2003. 214 204 Caporal, F.R.: Superando a Revolução Verde: A transição agroecológica no estado do RS (ver acima). 215 205 Schieck Valente, Dr. F.L., Relator Nacional para os Direitos Humanos à Alimentação Adequada, Água e Terra Rural: Relatório “Os Direitos Humanos à Alimentação Adequada, Água e Terra Rural”. Brasília, março de 2003, p. 9: “Segundo o relator especial da ONU para o direito à alimentação, Jean Ziegler, “o direito à alimentação não compreende somente o direito à alimentação sólida, mas também o direito à alimentação

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Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, o direito à alimentação adequada impõe três tipos de obrigações para os Estados partes: as obrigações de respeitar, proteger e garantir (ou procurar)216. Enquanto a obrigação de “respeitar“ requer que os Estados não adotem medidas que impeçam o acesso à alimentação adequada, “proteger“ implica que o Estado deve vigiar o respeito por terceiros, ao direito à alimentação adequada, e fiscalizar o seu não-cumprimento. “Garantir“ atribui ao Estado, a obrigação de promover e facilitar as condições para garantir a realização plena dos direitos humanos que ainda não estão cumpridos. No caso dos agrotóxicos, para evitar a poluição do meio ambiente, que é a base para alimentar-se, o Estado precisa proteger a população do abuso de venenos agrícolas e garantir – mediante criação de regulamentos eficazes – que seja monitorada e fiscalizada, a poluição ambiental e que sejam adotadas, sucessivamente, tecnologias limpas.

Ainda não existe um sistema de vigilância de intoxicações por agrotóxicos no

Brasil, que faça o monitoramento amplo e preciso destes eventos. Segundo Alves Filho, mesmo no âmbito dos registros de acidentes de trabalho, não há dados consistentes e abrangentes sobre o assunto217.

Em geral, os dados divulgados pela Previdência, relativos aos acidentes de trabalho,

contemplam um universo correspondente a apenas 10% dos prováveis acidentes e doenças que decorrem do trabalho na agricultura; isto se dá porque a massa de segurados que dão base a esses dados é de cerca de um milhão de pessoas, enquanto que pelos dados do Censo Agropecuário, existem quase 18 milhões de brasileiros trabalhando no campo. Além disso, mesmo nos registros de acidentes, o evento "intoxicação por agrotóxicos" carece de visibilidade, pela deficiência estrutural no diagnóstico e registro de tais ocorrências.

A Agenda 21 brasileira, Vol. 2 (p. 65)218, recomenda o seguinte: “Instituir

mecanismos ... que assegurem ... o monitoramento e controle de resíduos de agrotóxicos nos alimentos, inclusive importados, e no meio ambiente, particularmente, nos corpos d’água superficiais e subterrâneos.” O Ministério do Meio Ambiente, também, sugere a criação de sistemas de fiscalização e vigilância à saúde, envolvendo a representação dos trabalhadores, dos consumidores e do Estado219. A minimização dos impactos adversos da agricultura à saúde humana e ao meio ambiente, e a transição para uma agricultura sustentável serão possíveis, mediante a adoção das chamadas “tecnologias limpas”.

líquida, à água potável“ (E/CN.4/2001/53, § 39, dec. 2000)... No âmbito internacional, o direito de acesso à água está previsto, de forma explícita, em duas convenções mundiais: A Convenção contra todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979), ratificada pelo Brasil em 1984, e a Convenção relativa aos Direitos da Criança (1989), ratificada pelo Brasil em 1990. Segundo o Conselho Europeu de Direitos Ambientais (CEDA), toda pessoa tem o direito à água em quantidade e qualidade suficientes para sua vida e sua saúde. O sistema interamericano de direitos humanos dispõe do Protocolo de San Salvador como instrumento de promoção desse direito.“ 216 206 Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas: Observação Geral no. 12 (1995) sobre o direito à alimentação adequada. Genebra, E/C.12/1999. 217 207 Alves Filho, J.P., comunicado pessoal por e-Mail de 05.09.2003. 218 208 Comissão de Políticas de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda 21 Nacional: Agenda 21 brasileira

– Resultado da Consulta Nacional (Vol. 1) e Ações prioritárias (Vol. 2). Brasília, 2002. 219 209 Ministério do Meio Ambiente (MMA): Agricultura Sustentável. Subsídios à elaboração da Agenda 21 brasileira. Brasília, 2000, p. 160.

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2.3. Água e clima

Outros problemas do desmatamento para grandes plantações agrícolas são o

secamento das fontes de água e a mudança climática. Além da imensa perda de biodiversidade e da ameaça a povos e culturas tradicionais, o desmatamento afeta o ciclo das águas e adiciona, anualmente, 200 milhões de toneladas de carbono à atmosfera, segundo o Instituto de Pesquisa da Amazônia (IPAM), transformando o Brasil num dos 10 maiores países responsáveis pelo aquecimento global220.

Especialistas do WWF em Goiânia, assim como agricultores de Rondônia,

reclamam que córregos estão secando, as chuvas diminuindo e os ventos aumentando, como conseqüência do desmatamento, segundo o sindicalista Anselmo Abreu da Fetagro221. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) em Uruçuí, PI, relatou que o lençol freático foi rebaixado em dois metros, como conseqüência de extensos desmatamentos para plantar soja nas chapadas do Cerrado222. O cultivo da soja também está afetando os igarapés que formam o lago da localidade turística de Alter do Chão no Pará, segundo lideranças locais223.

Segundo os pesquisadores C. R. Clement e A. L. Val, “quase toda a agricultura

brasileira depende da manutenção da floresta amazônica porque essa floresta regula as chuvas do Centro-Oeste e do Sudeste do país. Ou seja, sem a floresta, as principais regiões agrícolas do Brasil se ornarão secas demais para a produção de grãos. Conforme as projeções de Lawrence et al (2001, Science), Carvalho et al. (2001, Nature) e Cox et al. (2000, Nature), hoje consideradas conservadoras pela Comissão Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, bem como os novos dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) sobre desmatamento no arco de fogo, qualquer demora para o início da reorientação dos investimentos [rumo a práticas mais sustentáveis] resultará em menos floresta futura e menos chuva nas principais regiões agrícolas do Brasil no futuro próximo“224.

Em especial, o desmate das margens dos rios e das chapadas agrava os problemas de

erosão. Em Vão do Salinas, sul do Maranhão, um fazendeiro derrubou todas as margens em declive da chapada para cultivar soja, fazendo com que a chuva levasse uma avalanche de lodo para a baixada, inundando as casas dos pequenos produtores e contaminando suas plantações e animais domésticos com os agrotóxicos contidos nela. – Embora o plantio direto venha sendo crescentemente difundido e praticado como técnica “sustentável“ para

220 210 Greenpeace Brasil, Comun. de imprensa, 02.07.03, www.greenpeace.org.br/noticias.asp?NoticiaID=479. 221 211 Correio Braziliense, 27.02.2001, www2.correioweb.com.br/cw/2001-02-27/mat_28859.htm. 222 212 Denúncia do STR Uruçuí na ocasião da Conferência regional de desenvolvimento sustentável, 8.7.03. 223 213 Greenpeace Brasil, Comun. de imprensa, 02.07.03, ww.greenpeace.org.br/noticias.asp?NoticiaID=479. 224 214 Clement, C. R., Val, A. L./ Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), comendadores da Ordem Nacional de Mérito Científico (2002): Soja versus Desenvolvimento Sustentável na Amazônia? Citados em: Fórum Carajás: E-Mail circular, São Luís/ Maranhão, 19.09.2003.

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prevenir a erosão dos solos, é um sistema que implica na aplicação massiva do herbicida Roundup da Monsanto, que polui a água potável para seres humanos e animais. O uso de Roundup e outros pesticidas altamente tóxicos ameaça o abastecimento d‘água na região nordestina do Cerrado, onde as maiores bacias hidrográficas, como a do Rio Parnaíba, Gurguéia e Balsas estão localizadas225. Também o gigantesco Aqüífero Guarani, na região sul do Brasil, encontra-se ameaçado pela infiltração de agrotóxicos e outros poluentes226.

O uso indiscriminado de pesticidas no cultivo da soja causa preocupação especial,

no que toca à expansão prevista em áreas de várzea, como no sul de Santarém. Durante o período do ano no qual o nível da água está baixo, as áreas alagadas se reduzem ou secam, confinando os peixes, que são pescados. Quando a área circundante é cultivada com soja, as elevadas dosagens de pesticidas se acumulam nos lagos e, conseqüentemente, nos peixes227. O perigo de intoxicações de animais se agrava, pelo fato da região de Santarém ser um lugar de parada para os pássaros em migração228. No Pará, a ocupação de áreas de pastagens degradadas pelo cultivo da soja vem provocando a contaminação das nascentes da Bacia do Xingu229. Em Campos Lindos, TO, os produtores familiares relataram a ocorrência de contaminação da água pelo uso de agrotóxicos nas grandes lavouras vizinhas de soja. Também em Roraima, morreram aves e peixes em áreas vizinhas ao cultivo intensivo de arroz230.

O jornalista Washington Novaes alerta que as bacias hidrográficas dos Cerrados

estão ameaçadas não só pela infiltração de agrotóxicos e outros poluentes, mas também, pela extração desordenada de água para irrigação231. Porém, no cultivo da soja, a irrigação por pivô central ainda é utilizada somente em pequena escala, para a produção de sementes. As grandes obras de infra-estrutura para facilitar o escoamento da soja também podem afetar o ciclo das águas: A hidrovia Tocantins-Araguaia, por exemplo, poderá expor a ilha do Bananal à ação das ondas e assim, afetar negativamente a pesca no rio, conforme alerta P. Fearnside, professor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA)232.

O Brasil ainda tem o privilégio de ser um país com água doce, solos, biodiversidade

e sol em abundância. Mas, segundo dados da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), 20% da população brasileira não têm acesso à água potável, e 40% da água das 225 215 Fearnside, P. M. (2001): Soybean Cultivation as a threat to the environment in Brazil (ver acima), p. 27. 226 216 Novaes, W., jornalista, em: Fórum Carajás: E-Mail circular, São Luis, MA, 04.09.2003. 227 217 Fearnside, P. M. (2001): Soybean Cultivation as a threat to the environment in Brazil, p. 27. 228 218 Informação fornecida pela Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural, Santarém, 07.04.2003. 229 219 Instituto Socioambiental (ISA): Pela sustentabilidade da BR-163. São Paulo, 17.11.2003. www.amazonia.org.br/noticias/noticia.cfm?id=89063. ISA: O Xingú na mira da soja. São Paulo, 2003 www.socioambiental.org/website/especiais/soja/2.shtm. 230 220 Informação fornecida pelo Inst. Nac. de Pesquisas da Amazônia (INPA), Boa Vista, Roraima, 21.3.2003. 231 221 Washington Novaes, 04.09.2003 (ver acima): “No caso da irrigação em sistemas ultrapassados como o dos pivôs centrais, é desperdiçada até 50% da água consumida. A agropecuária brasileira é responsável por mais de 80% da água consumida no País. Se houvesse uma economia de 10% na irrigação a parcela poupada seria suficiente para abastecer o triplo de toda a população urbana brasileira, segundo cálculo de um dos maiores especialistas, o professor Aldo Rebouças, da Universidade de São Paulo“. 232 222 Geraque, E.: Um novo ciclo agrícola. Em: Gazeta Mercantíl, 18./19.08.2001, p. 3.

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torneiras não é confiável para consumo humano. Além disso, regiões como o Semi-árido no Nordeste estão sofrendo graves estiagens com resultante escassez de alimentos. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) atribui a chamada “crise da água“, ou seja, sua escassez, a seu uso múltiplo sem regras e sem cuidados para barragens, poluição por esgotos domésticos e industriais, agrotóxicos, desmatamento das bacias hidrográficas, uso intenso da água na agricultura irrigada e, geração de energia elétrica233. A Organização das Nações Unidas (ONU) informa que hoje 1,2 bilhão de pessoas no planeta já não dispõem de água potável e 2,4 bilhões não têm saneamento básico, afirmando que, se as atitudes convencionais não mudarem, a crise será progressiva. b) Impactos sociais 2.4. Segurança alimentar

Enquanto a produção de soja para o mercado mundial cresce constantemente, a

produção de alimentos básicos para o abastecimento interno fica relativamente negligenciado234. Ao contrário da soja para exportação, as culturas destinadas ao mercado interno, como milho, trigo e arroz, estão sujeitas ao Imposto sobre a Circulação das Mercadorias e Serviços (ICMS) sendo, então, comparativamente desfavorecidas235. A diminuição na área de cultivo desses alimentos básicos foi compensada apenas, por ganhos na produtividade. No total, a área agrícola plantada aumentou de 48,6 milhões de hectares (1993) para 53,5 milhões de hectares (2002), principalmente devido à expansão da área de soja para exportação236. Porém, frente ao crescimento populacional de 1,3% ao ano237, seria necessário intensificar a produção de alimentos básicos para garantir o abastecimento nacional. 2.4.1. Evolução das áreas plantadas e da produção de soja e alimentos básicos

Comparando o desenvolvimento das áreas cultivadas para as principais culturas nos últimos 10 anos, pode-se constatar os aspectos comentados a seguir.

233 223 Roberto Malvezzi, Coordenação Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT): A vez da água. Em: CPT: Conflitos no Campo, Brasil 2002. Goiânia, 2003, p. 101. Dados da OPAS e da ONU também citados neste artigo. 234 224 Fearnside, P. M. (2001): Soybean cultivation as a threat to the environment in Brazil, p. 27: “lack of production of food for local consumption because crop land used for subsistence agriculture is taken over by soybeans...“. 235 225 Carvalho, R.: A Amazônia rumo ao “Ciclo da soja”. Em: Amazônia Papers No. 2, Amigos da Terra, São Paulo, setembro de 1999, p. 6. 236 226 Os dados neste capítulo sobre área, produção e produtividade foram extraídos de: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): Levantamento Sistemático da Produção Agrícola. Pesquisa mensal de previsão e acompanhamento das safras agrícolas no ano civil. Brasília, abril 2003. Os dados sobre consumo e exportação provêm da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), www.conab.gov.br. 237 227 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): Brasil em números 2002. Brasília, 2002, p. 63.

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Tabela 5: Evolução da área plantada, produção e produtividade de soja e alimentos básicos no Brasil (1993-2002).

Fonte: IBGE, CONAB.

A área cultivada com soja aumentou de 10,6 milhões de hectares (ha) (1993) para 18,5 milhões de ha (2003), enquanto a produção cresceu 250%, passando de 22,6 para 52,2 milhões de toneladas (t), devido a ganhos na produtividade. Cerca de 40% da soja em grão produzida (21.000 t) está sendo exportada, além de produtos agroindustrializados, como 14 milhões de t de farelo e 2,4 milhões de t de óleo de soja (previsão para 2003)238. Como a área agrícola total cresceu somente 5 milhões de ha neste período, a área de soja aumentou às custas de áreas antes cultivadas com espécies como arroz, milho (primeira safra), algodão e pastagens239.

No mesmo período, a área destinada ao cultivo com o principal item de alimentação,

o arroz, diminuiu de 4,6 milhões de ha (1993) para 3,2 milhões de ha (2002), enquanto a sua produção apresentou ligeiro aumento, em função de ganhos na produtividade: de 10,1 milhões de t (1993) para 10,5 milhões de t (2002). 40 a 50% do arroz é produzido por pequenos produtores familiares, ao passo que o restante, por sistemas altamente mecanizados, próprios da agricultura patronal. Segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), a diminuição na área de cultivo – basicamente do arroz de sequeiro produzido pelos pequenos produtores – deve-se, sobretudo, ao aumento da área de cultivo da soja. Ao nível de cultivo mecanizado, o arroz, que é pouco exigente em nutrientes e tolerante à acidez, está sendo cultivado com freqüência em áreas recém abertas, para preparar os solos para o cultivo da soja, que é muito mais exigente em fertilidade. Entretanto, a semeadura da soja imediatamente após a derrubada da vegetação nativa está sendo cada vez mais utilizada, às custas da correção dos solos com elevadas doses de calcário e de fertilizantes. Como o consumo brasileiro é de 11-12 milhões de t de arroz/ ano, o valor referente ao déficit deverá ser importado.

238 228 Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais. www.abiove.com.br/export.html. 239 229 Comp. Nacional de Abastecimento (CONAB): Quarto levantamento da safra 2002/3. Brasília, 2003, p. 11.

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A área cultivada com feijão também diminuiu de 4,7 milhões de ha (1993) para 4,3 milhões de ha (2002) e, em alguns anos, caiu para 3,8 milhões de ha (1998, 2001). Porém, a produção aumentou de 2,5 para 3 milhões de t. Em 2002, foram exportadas 2.000 t, frente à necessidade de importar quase 82.000 t.

No caso da mandioca, cultivada principalmente por pequenos produtores familiares,

também houve uma redução da área de 1,9 milhões de ha (1993) para 1,7 milhões de ha (2002), enquanto que a produção aumentou ligeiramente, de 21,8 milhões de t para 23,1 milhões de t, devido a ganhos na produtividade.

Em relação ao trigo, que é produzido, sobretudo, na região de clima temperado do

sul do Brasil, também existe uma insuficiência considerável no abastecimento. Entretanto, houve um leve incremento na área, passando de 1,5 milhões de ha (1993) para 2,06 milhões de ha (2002), sendo que a produção subiu de 2,2 milhões de t (1993) para 2,9 milhões de t (2002). Como o consumo é de 10,2 milhões de t, mais de 7 milhões de t devem ser importadas. Não obstante, não existe concorrência entre o trigo e a soja, visto ser o trigo um cultivo de inverno, ao passo que a soja é de verão, prestando-se para sucessão cultural na mesma área, nesta região.

No período 1993-2002, houve também, uma redução nas áreas destinadas ao cultivo

de diversos produtos consumidos a nível nacional, entre eles: batata doce, bananas, cebolas, centeio e aveia, ao passo que as plantações de cana, laranjas, tomates e sorgo (este último cultivado como safrinha depois da soja) aumentaram sua área.

Somente o comportamento do cultivo do alimento básico milho pode ser

considerado como positivo, visto que o mesmo está sendo produzido, em parte, por pequenos produtores para o consumo humano e animal, mas, sobretudo, de forma mecanizada em rotação com soja (para a alimentação de animais). A área permaneceu quase constante, com 12,8 milhões de ha em 1993, e 12,9 milhões de ha em 2002, mas a produção aumentou, neste período, de 30 para 43,5 milhões de t. Analisando detalhadamente o assunto, nota-se que foi ampliado o cultivo da soja no lugar da primeira safra de milho, as quais competem pela mesma época de plantio (- 1,6 milhões de ha). Entretanto, a segunda safra de milho, que é cultivada no inverno, portanto fora da época de cultivo da soja, aumentou em 1,9 milhões de ha. Segundo a CONAB, a área total de cultivo de milho não diminuiu, graças aos preços atualmente atraentes do milho.

Particularmente, o exemplo do Maranhão ilustra que, para todos os produtos básicos

a área e a produção diminuíram nos últimos 8 anos, enquanto que a produção mecanizada de soja e de algodão aumentaram significativamente.

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Tabela 6: Desenvolvimento do cultivo das principais espécies no Maranhão (período 1993- 2003)

Fonte: IBGE 1995, 2003. * A produção de milho aumentou devido a ganhos na produtividade nas grandes plantações mecanizadas,

em sucessão à soja. 2.4.2. Conseqüências para a segurança alimentar

Esta alteração implica na concentração de terras e no crescente êxodo rural dos

camponeses. O informe sobre o Direito à Alimentação no Brasil da “Rede de Informação e Ação pelo Direito a se Alimentar“ (FIAN)240

revela que, no Brasil, existem 16 milhões de pessoas subnutridas (10% da população, segundo a ONU). O relatório também mostra que após o Plano Real241, o Brasil tem recorrido constantemente às importações de alimentos, como uma estratégia para estabilizar os preços destes. Os estoques oficiais de alimentos do Brasil haviam sido quase eliminados pelos ajustes neoliberais realizados na década de 90, quando o sistema público de armazenagem foi privatizado. Isto significa que a partir de meados dos anos 90, a disponibilidade de alimentos para o abastecimento do mercado interno passou a depender fortemente das importações, gerando uma situação de profunda insegurança alimentar. Como exemplo, a importação de grãos e fibras passou de cerca de 3

240 230 FIAN - Rede de Informação e Ação pelo Direito a se Alimentar/ Seção Brasileira de FoodFirst Information and Action Network: Informe sobre o Direito à Alimentação no Brasil 2002. A Fome no Brasil tem Solução: Pão, Terra e Liberdade! Goiânia, 2003. 241

231 Diniz Alves, J.E., Professor Adjunto da Escola de Minas de Ouro Preto (DEPRO/EM/UFOP): Os oito anos do Real e as eleições de 2002. (www.disciplinas.em.ufop.br/depro/textos_e_temas/conj8anosreal_web.htm): “Durante toda a década de 80 e inicio da década de 90, o Brasil conviveu com uma inflação muito elevada... A população, em geral, e os agentes econômicos estavam desconfiados dos pacotes econômicos advindos do Planalto... O desafio do governo Itamar Franco era fazer um plano que estabilizasse a moeda, desindexasse a economia e garantisse o financiamento dos déficits internos e externos ... O ministro da fazenda - Fernando Henrique Cardoso - planejou o “Plano Real“, que visou equilibrar o orçamento público. Em julho de 1994, foi lançada a nova moeda, denominada Real, com paridade em relação ao dólar americano.“ O Plano Real foi bem-sucedido, no aspecto de que conseguiu reduzir drasticamente a inflação para a casa de um dígito anual, porém implementou cortes profundos no orçamento fiscal, o que reduziu substancialmente os gastos públicos para as áreas sociais como educação e saúde.

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milhões de toneladas, no início da década, para 12 milhões de t em 1999. No Brasil, existem cerca de cinco milhões de famílias sem terras, ou com terras insuficientes para trabalharem e produzirem seus alimentos básicos.

Em torno de 200.000 famílias vivem em acampamentos242, se alimentando por meio

de doações ou fazendo serviços esporádicos, para comprar um pouco de comida. Em contrapartida, existem 166 milhões de hectares de terras que permanecem

improdutivas, não cumprindo com sua função social, que são adequados para assentamentos de Reforma Agrária243.

Portanto, a realização de uma verdadeira Reforma Agrária – como previsto também

na Constituição de 1988 – é pré-requisito para desconcentrar a terra, democratizar as políticas agrícolas, e garantir a segurança e soberania alimentar nacional, baseada no direito humano das famílias rurais a alimentar-se244. 2.5. Efeitos sobre a distribuição sócio-econômica

As cifras do êxito econômico, chefiado pela produção de soja (cap. 1.1), contrastam

com a realidade social: no Brasil, maior exportador mundial de soja245 e uma das dez

economias mais potentes do mundo, existem fome e pobreza: Segundo o CNASI-INCRA, o número de brasileiros vivendo abaixo da linha de pobreza subiu de 36 milhões (1993, no início da era do Presidente Fernando Henrique Cardoso) para 54 milhões (2003), estando 38 milhões em estado de indigência ou pobreza absoluta246. O novo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o desenvolvimento humano cita o Brasil como “um dos países com distribuição mais desigual do mundo247: Os 10% de domicílios mais ricos têm uma renda 70 vezes maior do que a dos 10% de domicílios mais pobres. O Brasil figura, ao lado de China, Índia e México, como exemplo de grandes economias em crescimento que deixam à margem regiões de intensa pobreza em seus territórios. Isto exemplifica como um "progresso geral excelente" de um país pode não significar, necessariamente, o atendimento ao espírito das “Metas do Milênio“ das *ações Unidas248, se ele é conquistado com base na disparidade entre grupos sociais, étnicos e/ou regionais, com uns progredindo e outros ficando para trás“249.

242 232 MST: Letraviva - MST informa (carta circular do 20.10.2003): A conjuntura da Reforma Agrária. 243 233 FIAN: Revista “Fome de Justica”, 4/02; N°. 2 (abril 2002). Goiânia, p. 7. 244 234 FIAN: Informe sobre o Direito à Alimentação no Brasil 2002. Goiânia, 2003. 245 235 Anon.: Brasil vai ultrapassar EUA e virar maior exportador de soja do mundo. Em: Folha online, 10.10.2003. 246 236 Entrevista com Hugo Silveira Heredia, Diretoria da Confederação Nacional dos Servidores do Instituto Nacional de Reforma Agrária (CNASI-INCRA), Brasília, 14.03.2003. 247 237 A má-distribuição é exemplificada pelo coeficiente de Gini do Brasil, de 0,61, que é uma medida da desigualdade de renda na qual o valor "0" corresponde à igualdade perfeita e o valor "1" à desigualdade absoluta. Ver UNDP: Human Development Report 2003. 248 238 Objetivo 1: erradicar extrema pobreza e fome... obj. 7: assegurar sustentabilidade do meio ambiente..., ver www.undp.org.br/HDR/HDR2003/docs, pp. 1-2. 249 239 PNUD Brasil: Contrastes do Brasil no RDH 2003. Brasília, 08.07.2003: www.undp.org.br/HDR/HDR2003/docs/Backup%20of%20O%20Brasil%20e%20o%20RDH%202003.doc.

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2.5.1. Concentração de riquezas e êxodo rural Nos Cerrados, os altos investimentos em mecanização e, sobretudo, a constante

necessidade de correção da fertilidade do pobre solo daquela região e uso de outros insumos, resultam numa relativamente pequena margem de lucro. Por isso, para ser rentável, há a necessidade das fazendas terem uma área cultivada mínima em torno de 1.000 ha. A soja requer investimentos pesados em maquinaria, preparo dos solos e insumos agrícolas externos, enquanto a geração de empregos nesse sistema é baixa. Como resultado, este cultivo está praticado, nas regiões Centro-Oeste e Nordeste, em sua maioria, por empresários do agrobusiness bem-sucedidos, ao invés dos pequenos produtores (exceção: sobre soja orgânica. Na região sul, a soja é cultivada em sistemas familiares bem menores e pouco mecanizados). Conseqüentemente, à expansão da soja mecanizada está associada uma concentração extrema de terras e de renda, o que tem repercussões sociais negativas na sociedade250. Portanto, o então assessor do Núcleo Agrário do Partido dos Trabalhadores (PT), G. Teixeira, falou de um processo de “reciclagem do latifúndio”, pelo avanço da soja251.

Com os programas de colonização agrícola promovidos a partir dos anos 1960/70,

como o PRODECER , foi difundido um modelo tecnológico de ocupação intensiva dos Cerrados, interligando a agricultura às agroindústrias. Muitos pequenos proprietários nas chapadas, que têm boa aptidão para mecanização, venderam suas terras à CAMPO252

e a outros investidores da agricultura moderna. O crédito subsidiado e a isenção de impostos para a agropecuária facilitaram por demais, a concentração da terra em grandes propriedades. Os pequenos proprietários se deslocaram, então, para as precárias áreas de vertentes, na tentativa de manterem uma agricultura de subsistência, nas reduzidas manchas de terras férteis ainda existentes, e uma pecuária leiteira, na grande maioria, traduzidas no sistema tradicional, pouco eficiente, e com intensificação lenta253. A expansão da produção de grãos proporcionou, então, a marginalização dos pequenos proprietários. Aqueles que falharam no desenvolvimento das atividades em áreas de relevos acentuados, migraram para o perímetro urbano.

Quando uma área agrícola é convertida para um sistema de cultivo mecanizado,

como na produção da soja, a população nativa é expulsa254. O Programa de Governo da Coligação “Lula Presidente“ constata que, “nos últimos 25 anos, mais de 30 milhões de camponeses deixaram o campo, contribuindo para o inchaço descontrolado dos centros

250 240 Fearnside, P.M. (2001): Soybean Cultivation as a threat to the environment in Brazil, p. 28. 251 241 Entrevista com Gerson Teixeira, Brasília, 13.03.2003. 252 242 Companhia de Promoção Agrícola, fundada em 1974, com 51% de capital nacional e 49% de capital japonês, para explorar 60 milhões de hectares dentro do PRODECER. 253 243 Silva, L.: O papel do Estado no processo de ocupação das áreas de cerrado entre as décadas de 60 e 80. Em: Caminhos de geografía – Revista Online, dez. de 2000. ww.ig.ufu.br/revista/volume02/artigo02_vol02.pdf. 254 244 Carvalho, R.: A Amazônia rumo ao “Ciclo da soja” (ver acima), p. 7.

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urbanos, com conseqüências sociais de desintegração e crescente pobreza“255. Segundo P. Fearnside, professor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), a soja deslocou pequenos produtores de milho, feijão, de outros cultivos de alimentos básicos e café na região sul. Para cada trabalhador que encontrou emprego no cultivo da soja, 11 agricultores foram deslocados.

Como resultado, 2,5 milhões de pessoas abandonaram as áreas rurais no Paraná nos

anos 70, declinando o número de propriedades rurais em 109.000, no Paraná e em 300.000, no Rio Grande do Sul256. Em apenas um ano – 1975 – 100.000 pequenos produtores venderam suas terras no Paraná257. Boa parte destes agricultores migrou para a fronteira agrícola na Amazônia, nas proximidades da rodovia BR-364, financiada pelo Banco Mundial, onde representaram um fator chave nas atividades mais rápidas do mundo de desmatamento tropical258.

Hoje, o mesmo processo está acontecendo nas regiões Norte e Nordeste do país. No

Maranhão, por exemplo, a agricultura familiar está recuando rapidamente, diante da expansão da soja em algumas regiões, agravando assim, as disparidades sociais259. Segundo R. Carvalho, “começa a se desenhar um cenário em que pequenos agricultores expulsos de suas terras, sem alternativa econômica, encontram como única forma de sobrevivência, o desbravamento de novas áreas de florestas virgens, valorizando-as para o cultivo de grãos“260.

Em Santarém, PA, a necessidade econômica está forçando muitos pequenos

produtores a venderem suas terras e migrar para a periferia de Santarém, onde dificilmente encontram trabalho e vida digna. Dois povoados já foram extintos pela emigração oriunda das novas áreas de arroz e soja261. Os preços das terras já alçaram, nos últimos anos, de R$ 50 para até R$ 1.000-1.500/ha, devido ao interesse de compra por parte dos agricultores oriundos do sul (porém, os preços ficam muito inferiores aos R$ 14.000 - 19.000 que se obtêm pela venda de um hectare no sul)262. Este incentivo à venda é reforçado pela espera do asfaltamento da rodovia BR-163, para escoamento da produção de grãos em grande escala. O Grupo de Assessoria Internacional (IAG) do Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7), recentemente alertou: “À fragilidade técnico-econômica e social dos agricultores familiares se adiciona a pressão pela compra de suas terras, geralmente sem título e, por isso, susceptíveis à pressão de compradores mais poderosos, geralmente produtores de grãos. O fenômeno já pode ser verificado na região

255 245 http://www.estadao.com.br/ext/eleicoes2002/programa_pt/index.htm. 256 246 Fearnside, P.M. (2001): Soybean Cultivation as a threat to the environment in Brazil., p. 27. 257 247 Fatheuer, T.: Die Wiederkehr des Verdrängten. Agrarreform und soziale Bewegungen in Brasilien. Em: Solidarische Welt, No. 172, Berlin, Dez. 2000, pp. 7-9. 258 248 Fearnside, P.M. (2001): Soybean Cultivation as a threat to the environment in Brazil., p. 27. 259 249Ibid., p. 32. 260 250 Carvalho, R.: A Amazônia rumo ao “Ciclo da soja” (ver acima), p. 7. 261 251 Informações fornecidas pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Pará (FETAGRI), pela Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER) e pela Pastoral da Juventude, Santarém, 07./08.04.2003. 262 252 Mendes, C.: MPF quer demolir porto de US$ 12 milhões. Em: O Estado de São Paulo, 13.12.2003.

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da BR-163, próximo à Floresta *acional (FLO*A) Tapajós. Aqui, os produtores familiares poderão se tornar sem-terra ou bóia-fria, o que já é visível nos arredores de Itaituba“263.

No sul do Brasil, corretores de imóveis fazem publicidade para incentivar a compra

de terras baratas no Norte e Nordeste. Entretanto, uma vez que os agricultores nativos vendem suas terras e migram para as cidades, as receitas obtidas pela venda são rapidamente consumidas e a pauperização nas crescentes periferias se agrava, ao tempo em que o Governo apenas “corre atrás“ para dispor de serviços públicos de saúde e educação básica.

O porto de grãos da Cargill, em Santarém, foi construído na praia Verapaz, com subsídios públicos, sem apresentar o Estudo de Impacto Ambiental, expulsando do local os pescadores artesanais e os vendedores ambulantes, embora tenha havido protestos veementes por parte de movimentos sociais e ambientais 264. Segundo o Centro de Apoio às Ações Comunitárias de Santarém, a empresa Cargill representa um risco para a região por incentivar a ocupação de terras e o cultivo desordenado de soja265.

No Mato Grosso, maior Estado produtor de soja, a área de cultivo da cultura

aumentou de 56.000 ha, em 1980, para 4,5 milhões de ha, em 2002/03. Lá, o número de fazendas maiores que 10.000 ha subiu de 643, em 1980, para 767, em 1996, ampliando sua área de 17,8 milhões para 20,6 milhões de ha. Durante o mesmo período, o número de estabelecimentos rurais com menos de 10 ha diminuiu de 23.902, para 9.801266. Enquanto 10% das fazendas ocupam 82% das terras produtivas no Mato Grosso, o número de trabalhadores rurais sem terra e de pobres urbanos cresce continuamente. Em julho de 2003, existiam 4.000 famílias sem terra, somente no Mato Grosso, esperando em acampamentos precários, o seu assentamento267. Desde o início do Governo Lula, a tensão social para a realização da Reforma Agrária tem aumentado. 2.5.2. Concentração dos escassos recursos públicos na agroindústria

Historicamente, as políticas agrícolas têm priorizado a agricultura patronal e a

agroindústria, em detrimento do fomento à agricultura familiar, que foi negligenciado. A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) comprova isto, com a desigualdade na alocação dos fundos: enquanto R$ 4 bilhões (20%) do fomento público à produção foram prometidos aos 4 milhões de produtores familiares (e menos de R$ 2 bilhões postos realmente à disposição) no último ano, somente 500.000 produtores do

263 253 PPG7-IAG (ver acima):“O PPA 2004-2007 na Amazônia“. Brasília, setembro de 2003. 264 254 Grupo de Defesa da Amazônia (GDA): Carta de denúncia ao Ministério Público Federal sobre a ampliação do Cais do Porto de Santarém. Santarém, 17.4.1998; GDA: Pronunciamento pelo GDA na Câmara de Vereadores, Santarém, 26.06.1998; Gazeta de Santarém, 03 a 09 de maio de 1998: GDA denuncia ampliação do Cais do Porto. 265 255 Mendes, C.: MPF quer demolir porto de US$ 12 milhões. Em: O Estado de São Paulo, 13.12.2003. 266 256 Almeida, E.: Latifúndios dominam 82% das terras em MT e êxodo rural continua. Em: 24 Horas News, 14.09.2003. www.amazonia.org.br/noticias/print.cfm?id=82282. Dados do Censo agropecuário do IBGE. 267 257 Entrevista com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) Mato Grosso, Cuiabá, 23.06.03.

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agrobusiness receberam R$ 16 bilhões (80%). A Confederação Nacional das Associações dos Servidores do INCRA (CNASI-INCRA) mencionou valores semelhantes, ou seja, enquanto para o crédito rural, 96% dos estabelecimentos (ou a agricultura familiar) receberam R$ 6 bilhões, 4% (ou a agricultura patronal) receberam R$ 20 bilhões ao ano268.

Fato semelhante ocorre, no que diz respeito à soja (ver cap. 1.3). O crédito é

concentrado para os grandes produtores, com os pequenos dificilmente tendo acesso a recursos produtivos para melhorar sua produção e produtividade269. Mesmo no Governo Lula, as antigas prioridades persistem, embora tenha anunciado no seu Programa de Governo da Coligação “Lula Presidente“ como objetivo “A ampliação da produção de alimentos por meio de uma política agrícola dirigida para o binômio agricultura familiar e agricultura organizada em bases empresariais. Essa política, que terá como base o fortalecimento da agricultura familiar através de políticas de crédito estáveis, previstas nas leis orçamentárias da União, assistência técnica e políticas sociais, visa melhorar as condições de trabalho e renda das famílias exclusivamente agrícolas, que residem no campo e trabalham a terra por conta própria, e das famílias rurais cujos membros combinam atividades agrícolas e não-agrícolas“270. O atual Plano Safra para 2003- 2004 mostra isto271: No total, estão previstos R$ 32,5 bilhões para crédito rural. O montante destinado à agricultura familiar foi duplicado de R$ 2,7 bilhões para 5,4 bilhões para a safra de 2003. Para o mesmo período, estão previstos R$ 27,1 bilhões para o apoio à agricultura patronal e ao setor agroindustrial.

Quadro 4: Exemplos da alocação de fundos públicos em favor da soja

Os seguintes exemplos mostram a alocação de fundos públicos (a nível federal, estadual e municipal) em favor do cultivo da soja e da agroindústria em geral, que cimenta ou mesmo agrava as desigualdades sociais no setor agrícola: Em Itacoatiara, AM, foi construído um armazém com fundos públicos, na expectativa da futura expansão do cultivo de grãos em grande escala. No entanto, a empresa de navegação do Grupo Maggi, Hermasa, com seu imenso terminal graneleiro preferiu construir seus próprios silos, com tecnologia de ponta, resultando no desuso do armazém público272. Ao mesmo tempo, o Instituto de Desenvolvimento Agrícola da Amazônia (IDAM), responsável pela extensão rural pública e de assistência técnica aos pequenos produtores, nem sequer tem combustível para visitas de campo e para cumprir com suas funções (encontrado em Itacoatiara e Humaitá). No município de Itacoatiara, existem 5.000 agricultores familiares, frente a uma minoria de 200 grandes produtores com fazendas acima de 500 ha, segundo informações do IDAM. Em Roraima, o Governo Estadual liberou R$ 11 milhões para construir 8 silos com capacidade

268 258 Entrevistas com as dirigências do CNASI-INCRA e da CONTAG, Brasília, 14.03.2003. 269 259 Lamento encontrado repetidamente em entrevistas com pequenos produtores, movimentos sociais como o Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos de Balsas/ MA, e com o EMATER Santarém, 07.04.2003. 270 260 Ver www.estadao.com.br/ext/eleicoes2002/programa_pt/pg_0010.htm. 271 261Ministério do Desenvolvimento Agrário: Plano Safra para Agricultura Familiar 2003/04. Brasília, 2003, p. 8; Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento: Plano agrícola e pecuário 2003/04. Brasília, 2003, p. 8. 272 262 Informação fornecida por Lázaro Monteiro Reis, Secretário de Agricultura e Terras de Itacoatiara, e técnico do Instituto de Desenvolvimento Agrícola da Amazônia (IDAM). Itacoatiara, 04.04.2003.

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de armazenagem para 50.000 toneladas de grãos, pretendendo ampliar a área mecanizada de soja de cerca de 7.000 ha atuais até 1-1,5 milhões de ha potencias num futuro próximo273. Em contrapartida, ao mesmo tempo, não existe assistência técnica e organizativa, nem tampouco, crédito suficiente para os pequenos produtores e assentados no Estado. Ao contrário, existe o perigo iminente de que a soja entre em algumas áreas indígenas não demarcadas no Cerrado Roraimense, onde já existem outros grandes problemas com a penetração de produtores de arroz e seu abuso de pesticidas, que poluem as águas274.

Boa parte da pesquisa pública dos centros da EMBRAPA (RR, PA, MA, PR) está dirigida a promover tecnologia “de ponta” que é cara demais para ser adotada pelos pequenos produtores (só se destaca, como exemplo positivo, a EMBRAPA-Manaus, que se concentra no cultivo de grãos básicos pela agricultura familiar). O argumento comum de que “o que serve para o grande, serve também para o pequeno” dificilmente é aprovado na realidade: Dos 80 produtores médios de soja, assentados no Maranhão e Tocantins pelo PRODECER III (Programa Nipo-Brasileiro de Cooperação para o Desenvolvimento Agrícola da Região do Cerrado), todos estão endividados gravemente e não podem mais pagar suas dívidas, porque o investimento na mecanização e nos insumos químicos, assim como o risco de perdas, são muito altos. Os investimentos públicos em grandes projetos (como a construção de portos, rodovias, hidrovias e ferrovias) para melhorar o escoamento da produção de grãos favorecem de forma desequilibrada a agroindústria. Segundo o IAG, “As principais grandes obras consideradas para o PPA 2004-2007 deixam de incorporar aspectos críticos para avaliar sua eficiência econômica, social, ambiental e de uso da terra, tanto nas áreas de impacto direto quanto nas atividades por elas induzidas... A questão é quem serão os principais beneficiários desse novo processo produtivo, em função da fragilidade da agricultura familiar, a principal atividade da grande maioria da população local. Os produtores familiares, por serem pioneiros, deveriam ser os principais beneficiários do processo de desenvolvimento dessas regiões de fronteira, mas na realidade, tendem a ser os mais sacrificados... É urgente reformular os processos de tomada de decisão a respeito, internalizando, adicionalmente, os custos ambientais e sociais“275.

Segundo o Banco do Brasil276, o teto máximo para créditos públicos para financiar o

custeio da soja varia entre R$ 100.000 (região Sul) e R$ 200.000 (região Centro-Oeste) por produtor, o que possibilita somente, o plantio em torno de 100-285 ha, assumindo custos entre R$ 700 - 1.000/ ha. Conseqüentemente, os produtores devem recorrer a outros financiamentos como dos bancos privados ou das compradoras de soja, e lamentam a falta de recursos bancários a juros baratos.

Não obstante, numa perspectiva de distribuição, se questiona a justificativa do

subsídio para grandes produtores já relativamente capitalizados e economicamente potentes, frente aos pequenos produtores que precisariam de muito mais apoio público. Até mesmo o diretor da Cargill em Santarém, questionado sobre quais suas expectativas frente à política agrícola, disse que “a soja não precisa de incentivos pelo Governo, porque já tem seu próprio mercado“277 (e empresas multinacionais poderosas que por trás, provêm os serviços de financiamento, infraestrutura e transporte).

273 263 Informações fornecidas por José Dirceu Vinhal, Presidente da Cooperativa Grão Norte, 18.03.2003, Antônio Carlos, chefe de pesquisa da EMBRAPA-RR, 19.03.2003; Alexandra Gonçalvez Corleta, Secretaria de Agricultura de Roraima, 20.03.2003, e engenheiros florestais do IBAMA em Roraima. 274 264 Entrevista com Vincenzo Lauriolo e Reynaldo Barbosa, INPA, Boa Vista, 21.03.2003. 275 265 PPG7-IAG (ver acima):“O PPA 2004-2007 na Amazônia“. Brasília, setembro de 2003. 276 266 Entrevista com Waldir Oliveira da Costa, Gerente do Banco do Brasil, 02.05.2003, Balsas, MA. 277 267 Entrevista com Antenor Giovannini, Gerente do novo porto da Cargill em Santarém, 07.04.2003.

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Apesar de ser obviamente negligenciada, a agricultura familiar produz em torno de

40% da produção agropecuária brasileira, sobretudo para fins de segurança alimentar nacional (ver 2.4, anterior). Segundo sindicalistas, as camadas desfavorecidas do povo haviam ligado grandes esperanças à eleição do Presidente Lula, que significa a rejeição do antigo modelo de desenvolvimento neoliberal pelo eleitorado – inclusive os mecanismos tradicionais de distribuição desigual278. Porém, o espaço de ação do Governo está limitado por consistir em uma coligação heterogênea (“Governo de disputa”), que deve conciliar os interesses econômicos, sociais e ambientais, que são conflitantes (ver também o exemplo dos transgênicos em 2.7, anterior). Da futura alocação do fomento agrícola entre a indústria de agroexportação e a agricultura familiar vai depender, se o Brasil segue priorizando a exportação de ração para engordar animais em países industrializados, ou se produz suficiente alimentos humanos também para o Programa Fome Zero, preservando o meio ambiente.

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4.2.4. Impactos dos insumos agrícolas 4.2.4.1. Agrotóxicos e herbicidas279

(...) O nível de submissão aos interesses das empresas multinacionais de insumos agrícolas e sua ideologia é tão grande que é desconhecida qualquer crítica ou planejamento político fora dos países centrais do mundo.

Em 1974, quando estavam morrendo em nosso país mais de seis mil pessoas/ano por intoxicações de agrotóxicos e mais de um milhão e duzentas mil pessoas/ano com intoxicações agudas, fora a devastação e contaminação ambiental, quem ousasse denunciar estes desmandos e incompetência econômica, era levado ao Serviço Nacional de Informações - SNI e submetido a interrogatórios e agressões. Nas universidades e sociedades profissionais, éramos vistos como loucos ou desequilibrados. Mas as normas do Banco Mundial, desde 1973, referiam-se às "diseconomias externas", para os problemas de poluição e devastação provocados pelo hoje denominado agrobusiness.

As denúncias começaram a repercutir pela pressão externa. Para a economia e política nacionais, a situação modificou-se, quando o Ministério da Agricultura instalou 12 laboratórios para analisar os resíduos de agrotóxicos nos alimentos exportáveis, que nunca puderam funcionar nos alimentos da mesa do brasileiro, pois eram laboratórios-objetos dentro do contexto servil. 278 268 Entrevista com Hugo Silveira Heredia, Direitoria da Confederação Nacional dos Servidores do Instituto Nacional de Reforma Agrária (CNASI-INCRA), Brasília, 14.03.2003. 279 Esta seção foi constituída com textos extraídos do documento de Pinheiro, Sebastião (2004). Agribusiness e camponeses. Porto Alegre, e-mail para HMC de 15 de março de 2004, 11 p.

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Isto ainda é atual. Os planos dos países da União Européia, Japão e Estados Unidos mostram estatísticas com diminuição de produção e consumo interno destes insumos (fertilizantes, agrotóxicos, mecanização e uso de energia fóssil) programados a partir daquele período. As conferências da FAO sobre a FOME chegam a estas mesmas conclusões. O governo de Jimmy Carter (1976-1980), nos EUA, nomeou uma missão para visitar o mundo e determinar o novo modelo de agricultura a ser adotado nos EUA. A tradução do relatório dessa missão em 1980 foi publicado pelo CNPq e financiado pela Secretaria do Planejamento da Presidência da República (Delfim Netto).

Entretanto, nas Escolas de Agricultura, são raríssimos os professores que têm

conhecimento do mesmo e os que o conhecem dissimulam, para manter o prestígio e poder, embora saibam que Edgar Morin diz: "O único pensamento que sobrevive é aquele que se mantém na temperatura de sua própria destruição". Para quê arriscar-se?

As empresas ocupam o espaço do ensino, assistência técnica e burocracia de governo e fecha o círculo através da propaganda. Nestas condições, vemos que a questão dos insumos sempre foi ideológica.

Um exemplo enriquecedor. Em 1971, descobriu-se que o produto Nemagón (DiBromoCloroPropano - DBCP) usado internacionalmente, causava, lentamente, atrofia testicular em cobaias. As autoridades de saúde ocupacional imediatamente proibiram seu uso na agricultura norte-americana, e ele passou a ser produzido para exportação. Em 1996 existiam mais de 40 mil trabalhadores rurais castrados pelo DBCP em todo o mundo, acentuadamente nos bananais da América Central (denominados "quemados"). De forma cínica, podemos dizer que a sobre vida ao produto perigoso fez bem aos agronegócios norte-americano e local. Em 1996 um grupo de advogados norte-americanos acionou as empresas produtoras de DBCP nos EUA, primeiro, porque os seus empregados de fábrica também estavam castrados, e, depois, pelos trabalhadores rurais "bananeros".

Sendo o resultado da ação vitorioso, os advogados ficaram com os seus honorários, o que foi bom para a economia "yankee" e cada trabalhador centro-americano recebeu 70 dólares de indenização, pela mutilação, o que também foi uma ótima injeção na economia local. Agora se descobre que os filhos do sexo masculino dos "quemados" também estão com atrofia testicular.

O dramático de tudo isto é que, em 1987, a Academia Nacional de Ciência dos Estados Unidos da América recomendou ao governo que procurasse uma alternativa ao uso de agrotóxicos, pois 90% dos fungicidas, 60% dos herbicidas e 30% dos inseticidas.

Entre nós, os índices continuam crescendo constantemente, desde 1964.

A maioria das fábricas de inseticidas obsoleta foi desmontada na Europa e EUA e

montada no país a partir de 1974 e fecharam após alguns anos de funcionamento, sem amortizar o dinheiro público investido. Mas a quem interessa, quando o ufanismo e subserviência estão dentro das universidades e estrutura de governos. Em Resende/RJ, recebemos a fábrica de Solvirex banida da Europa em 1991, modificamos a classificação toxicológica e ele passou a ser faixa azul, para consumirmos mais.

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Pelo determinismo tanto econômico quanto científico, dizer que os insumos da

agricultura (adubos, agrotóxicos, sementes selecionadas, mecanização) são perigosos, hoje, é bem mais fácil do que há trinta anos atrás. Contudo, a situação hoje é pior do que há 30 anos, pois antes havia reação, hoje apenas o desejo de poder consumir. O exemplo, atualíssimo, de plantio clandestino de soja contrabandeada Roundup Ready com o uso do Receituário Agronômico para prescrever o uso ilegal do herbicida espelha esta realidade de forma simbólica.

Quando exigíamos a proibição em território nacional de um produto banido no seu país de origem, fazíamos um exercício de cidadania globalizada e nossa sociedade crescia com estes gestos e os abismos entre Hemisférios diminuem. Nossa ciência, embora sem autonomia, era obrigada a responder e todos ganhávamos diante desta realidade. Foi assim que fizemos a Lei de Agrotóxicos em 1989, pois a que existia era de 1934, quando não existiam agrotóxicos. Exigimos proteção ao meio ambiente, racionalização no uso dos insumos etc.

Dentro da estrutura de governo do Brasil, todos os burocratas sabem, todos os professores universitários sabem que, desde 1991, na União Européia a Diretiva Comunitária 414/91 impede que um agricultor compre ou use um agrotóxico se não tiver um treinamento de 120 horas de aulas, em curso oficial de governo. Todas as tentativas que fizemos para abrir esta discussão no país foram como furo na água.

Contudo não nos demos conta que internacionalmente havia um processo de antecipação, com o fim da "bilateralidade do mundo" e início da Rodada Uruguai (1986-1994), do GATT, transformada em Organização Mundial do Comércio, o Estado Nacional com seus valores de cidadania e sacrifício foram substituídos pelo "Condomínios de Empresas-Estado", que satisfazem os desejos de consumidores através do mercado. Na agricultura não é diferente, a substituição de insumos agrotóxicos por transgênicos passa a ser considerada salto tecnológico e sustentável. Quando nada muda, apenas permanece a semântica e a servidão.

Nessa realidade é impossível se discutir os insumos da agricultura e seus problemas, pois não há mais interesse da população, pois ela quer consumir e não questionamentos. A mediocridade é tanta que, em reunião com agricultores, vemos donas de casa berrarem: "Roundup é ecológico". Entretanto, o Departamento de Saúde do Estado da Califórnia afirma em estatísticas que 38% de todas as intoxicações de agricultores são provocadas por Roundup, de formulação norte-americana. O pior é que as vítimas das dermatites provocadas por Roundup, na Califórnia, são camponeses mexicanos, curtidos pelo calor, como ficaria com um pobre e infeliz descendente de ucranianos paranaense ou gringo da serra gaúcha. O pior ainda é que o Roundup usado entre nós pode vir da China, com uma formulação ainda muito mais tóxica. Somos medíocres, soberbos e desinformados, mas a agrobusiness cresce.

O mercado mundial de agrotóxicos, somente na área vegetal, é superior a 27 bilhões de dólares ano. No Brasil este valor é escondido, mas é superior a cinco bilhões de dólares, com uma grande concentração de consumo no Sul e Sudeste.

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4.2.4.2. Ameaça tóxica invisível280

Lixo tóxico importado para enriquecer fertilizantes pode contaminar o solo, a água e toda a lavoura nacional.

O maior porto abaixo da linha do Equador parece uma cidade. Centenas de caminhões se enfileiram num congestionamento infernal.

E uma multidão de carregadores transita entre silos e contêineres espalhados por 12 quilômetros de cais, de onde parte quase um terço das exportações brasileiras. Dentro dos galpões onde ficam as mercadorias apreendidas pela alfândega de Santos, em São Paulo, a luz quase não vinga. O que se vê é poeira acumulada sobre centenas de caixas vindas de todos os cantos do mundo. São tênis Reebok piratas, camisetas e meias Nike falsificadas, computadores da Tailândia, tevês portáteis da China, aparelhos de som e tevês de plasma.

Empilhadas num canto, 22 sacas repletas do que aparenta ser entulho de construção também aguardam um alvará. A carga embarcada por uma empresa química francesa com sede em Paris partiu do porto de Algeciras, na Espanha, e atracou no de Santos em outubro do ano passado. Nos documentos oficiais, dizia-se que o carregamento era de pó de zinco. Junto do manganês, do ferro e do cobre, esse minério é misturado ao adubo para suprir as deficiências de nutrientes do solo e prepará-lo para a agricultura.

A Receita Federal suspeitou das empresas envolvidas na importação. Apreendeu as sacas, avisou o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que enviou uma amostra a um laboratório de análises químicas. O resultado foi chocante. Em vez do minério, o que se detectou foi um amontoado de poluentes tóxicos em alta concentração, entre eles chumbo, cádmio e arsênico, os chamados metais pesados, muitos deles relacionados ao aparecimento de doenças como o câncer.

Lavoura tóxica

Resultantes do processo de industrialização, essas substâncias existem na natureza, porém em baixas concentrações. “O chumbo é encontrado no solo em 40 partes por milhão, e, nessa carga, está acima de 100 mil partes por milhão”, conta o químico Elio Lopes dos Santos, engenheiro industrial e mestre em poluição atmosférica. “Esse é o pior caso de contaminação que já vi em 32 anos como especialista. É uma poluição sem fronteiras lançada pelo País inteiro”, diz Santos, que trabalhou 25 anos como técnico da agência ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) na Baixada Santista.

280 Esta seção corresponde ao artigo de Menconi, Darlene (2004). Ameaça Invisível, in Revista Istoé, site da

Revista, de 08 de setembro. Colaboraram no artigo Claudia Pinho e Fernanda Kadaoka.

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O alerta faz sentido, pois, sabe-se que nossos portos são verdadeiras peneiras, e boa

parte de carga semelhante deve estar circulando por todo o País. O técnico aposentado fez uma análise dos nutrientes agrícolas contaminados e

entregou ao Ministério da Saúde. Seu parecer é de arrepiar. Em 57 páginas, Santos explica que esses micronutrientes agrícolas são geralmente empregados para suprir as deficiências do solo. No caso brasileiro, no entanto, o que se faz é usar lixo de indústrias nacionais e de empresas dos países mais ricos do planeta, que incluem na sucata todo tipo de resíduo. Na lista estão companhias da Espanha, Holanda, Suíça, França e dos Estados Unidos.

O problema mais grave na carga apreendida pela alfândega de Santos é que esses poluentes se acumulam no solo e nos cursos d’água por vários séculos, sem se degradar. Seus efeitos são igualmente nocivos à saúde e ao meio ambiente. Ou seja, as plantas, as hortaliças e mesmo os animais que tiverem contato com esse solo ou essa água contaminada podem intoxicar os seres humanos, o último elo na cadeia alimentar.

Até a década de 1970, o material usado como aditivo pela indústria de fertilizantes era formulado a partir de minérios existentes na natureza. Para diminuir os custos de aquisição de matéria-prima, as empresas de adubo passaram a usar resíduos de indústrias, nos quais estão presentes o zinco, o manganês e outros minerais necessários para um solo de qualidade. Como tratar esses rejeitos contaminados custa caro, muitas companhias incluíram nessa mistura uma montanha de poluentes. “Junto desse material nobre para a lavoura vem a escória das indústrias, que não serve para a planta e pode ser muito nociva ao organismo humano”, explica Marco Pérez, coordenador da área técnica da saúde do trabalhador no Ministério da Saúde. Questão de custo

Assim que essas toxinas chegam à lavoura, ocorre uma intoxicação em etapas. “No primeiro instante, as pessoas expostas ao veneno são os trabalhadores das indústrias de fertilizantes, depois o trabalhador rural e aí a população dos arredores. Só então vem o risco de contaminação de quem se alimenta dos produtos da colheita”, diz Pérez. Desde que se apreenderam os sacos de poluentes químicos no porto de Santos, o governo notificou a confederação dos trabalhadores agrícolas sobre os riscos a que estão sujeitos os agricultores que tiram o seu sustento do campo.

Gerado como resíduo tóxico nos países industrializados, esse lixo químico chega aqui duplamente ilegal. Por se tratar de produto perigoso, a escória deveria ser submetida a um processo rígido de tratamento e condicionamento, o que sai caro. O custo da disposição de uma tonelada de resíduos industriais costuma variar entre US$ 100 e US$ 2 mil nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (Ocde), que reúne as nações mais ricas. Desde meados da década de 1980, estima-se que cinco milhões de toneladas de resíduos tóxicos foram exportados para as nações do antigo Leste Europeu e para os países em desenvolvimento, entre os quais o Brasil.

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Para evitar o comércio ilegal desses resíduos perigosos, em 1988 o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) promoveu uma conferência diplomática na Suíça para estabelecer mecanismos de controle dos rejeitos tóxicos. A chamada Convenção de Basiléia entrou em vigor em 1992 e, oito anos depois, contava 136 países membros – o Brasil inclusive. Além da fiscalização, o tratado cria formas, regras e procedimentos para regulamentar o transporte das cargas tóxicas. Seria uma forma de solucionar um problema ambiental mundial de maneira coletiva.

Só que a realidade é diferente. Cálculos do Pnuma Brasil avaliam que cerca

de 400 milhões de toneladas de resíduos perigosos são produzidos no mundo todos os anos. Em torno de 10% desse total cruza fronteiras internacionais. O transporte de ácidos corrosivos, de produtos orgânicos sintetizados em laboratório e metais pesados como o chumbo, o cádmio e o mercúrio representam uma ameaça múltipla por poluir as águas subterrâneas, o solo e o ar. Com o endurecimento da legislação ambiental nos países industrializados, a partir da década de 1980, houve um dramático aumento no custo da disposição final de resíduos industriais. Foi o bastante para fazer brotar uma verdadeira máfia do lixo com ramificação internacional. Denúncia

A carga tóxica apreendida no porto de Santos foi apenas a ponta do iceberg de uma autêntica mina de ouro. Em vez de tratar os dejetos produzidos em suas fábricas, as empresas européias – aliás impedidas de exportar resíduos perigosos por serem signatárias da Convenção de Basiléia – ensacam seu lixo químico e despacham para o quintal das nações mais pobres. “É uma contaminação invisível. Quem planta, quem colhe e quem come os alimentos produzidos na nossa lavoura não tem idéia de que pode estar comprando elemento tóxico”, diz Ingrid Oberg, chefe do Ibama em Santos. “Será que não estamos tornando inviável o nosso solo para a agricultura”, questiona Ingrid.

No início de agosto, o Ministério Público Federal disparou um alarme. Numa notificação à coordenação da administração aduaneira, os procuradores da República sugeriam mais rigor na fiscalização de cargas de minérios nos portos e aeroportos nacionais. O resultado foi imediato. Santos parou de receber cargas tóxicas. Em compensação, há notícias de que portos como o de Paranaguá serviram de porta de entrada para a carga destinada à indústria de adubo.

Pelo andar da carruagem, tudo indica que o assunto está longe do fim. A história é testemunha: a primeira denúncia de importação ilegal de lixo químico foi feita em 1992 pela ONG Greenpeace. Os ambientalistas protestaram contra a importação de poluentes da Inglaterra. Na ocasião, diz Daury de Paula Júnior, promotor de Justiça do meio ambiente de Santos, tentou-se enviar a carga de volta, mas parte teve de ser incinerada aqui no Brasil. “O maior entrave é que faltam estudos científicos sobre o efeito desses poluentes. Sem estudo técnico, não se muda absolutamente nada. Sem legislação específica, também não se muda nada. O resultado é que pouco se fez nesses anos todos”, diz Paula Júnior. Quando o assunto é poluição e contaminações de água e do solo, o Brasil está longe de ser bom exemplo. Há casos clássicos e vergonhosos de impunidade e descaso que não se resolveram até hoje.

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Alertado da amplitude do problema dos fertilizantes contaminados, o Ministério do

Meio Ambiente tenta se mexer. “Os efeitos desses produtos perigosos para o meio ambiente são graves porque podem afetar toda a cadeia alimentar, dependendo da concentração e do tipo de poluente”, explica Geraldo Siqueira, chefe de gabinete da Secretaria de Qualidade Ambiental. O que o governo federal pretende é criar uma força-tarefa de vários ministérios para, mais uma vez, discutir a questão. A Cetesb se desvia da encrenca. Diz que as competências nesse caso são do Ibama e do Ministério da Agricultura. E reitera a intenção de usar resíduos industriais para a produção de fertilizantes.

Outros crimes

Uma das formas de minimizar o problema seria rotular os produtos químicos. Assim como um iogurte vendido no mercado, o agricultor teria certeza do que adiciona na lavoura. Caso contrário, em vez de aumentar sua produção, o que ele faz é dar um tiro no pé. Com um detalhe: os efeitos não aparecem no curto prazo. Demoram entre 20 e 30 anos para surgir. E, aí, pode ser tarde demais.

Segundo a Associação Brasileira de Empresas de Tratamento de Resíduos (Abetre), o despejo irregular de resíduos sólidos e as áreas contaminadas por produtos tóxicos são os problemas ambientais que mais ameaçam a saúde pública. Todos os dias são coletadas 228 mil toneladas de resíduos no País. Só que dois terços dessa montanha vão para lixões a céu aberto e aterros sem controle. Por isso, estima-se que sejam pelo menos oito mil os casos de contaminação no País. Só em São Paulo são mais de 700 locais comprovados. Outro vilão urbano são os postos de gasolina. Boa parte dos cerca dos sete mil postos paulistas, por exemplo, já teve algum tipo de vazamento em seus tanques. O perigo das contaminações é silencioso. Na maioria das vezes, os acidentes, as explosões e os vazamentos pegam os moradores de surpresa.

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4.2.4.3. O impacto da cultura do tabaco281

A pesquisa intitulada “O Impacto da Cultura do Tabaco no Ecossistema e na saúde Humana na região de Santa Cruz do Sul/RS”, foi realizada no período de agosto de 1999 a novembro de 2001, por uma equipe interdisciplinar e interinstitucional, sob a coordenação da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, em parceria com a Universidade de Campinas – UNICAMP e a Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

A área pesquisada compreende a bacia hidrográfica do Rio Pardinho, afluente do Rio Pardo, que abrange os municípios de Gramado Xavier, Sinimbu e Santa Cruz do Sul, no centro do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil.

281 Esta seção foi constituída com extratos do texto de Etges, Virgínia Elizabeta (coord.) (2002). O impacto da cultura do tabaco no ecossistema e na saúde humana na região de Santa Cruz do Sul/RS. Santa Cruz do Sul, UNISC/UNICAMP/UFRJ, mimeo 8 p.

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O objetivo da pesquisa foi avaliar os impactos causados pela cultura do tabaco no

meio ambiente e na saúde humana na região de Santa Cruz do Sul, bem como promover a geração de novos conhecimentos que possam contribuir na promoção e disseminação de práticas alternativas, baseadas no manejo sustentável do ecossistema.

O Brasil é um dos maiores produtores de tabaco do mundo, sendo que a região de Santa Cruz do Sul se destaca como a principal região produtora no país. Praticada em regime de produção familiar, a produção do tabaco requer trabalho intensivo, além de utilizar grandes quantidades de agrotóxicos e grande quantidade de lenha, consumida nas estufas de secagem.

O tema em questão nesta pesquisa nos remeteu a uma análise sistêmica, na medida em que procuramos lograr um esquema explicativo do funcionamento de um sistema caracterizado por fenômenos que estão determinados por processos, nos quais interagem elementos que pertencem ao domínio de diversas disciplinas.

Por conseguinte, a única forma de abordá-lo foi através da formação de um grupo de trabalho, integrado por pesquisadores de diversas áreas, ou seja, um grupo de trabalho interdisciplinar. É importante ressaltar que entende-se por interdisciplinaridade não uma justaposição de diversas disciplinas específicas, mas a interação de um grupo de especialistas que se propõem a abordar um problema para o qual as possíveis respostas só podem advir da análise das interrelações que se dão em um sistema complexo, entre os processos que determinam seu funcionamento.

Procurou-se, portanto, chegar a uma interpretação sistêmica da problemática em questão. A partir deste referencial teórico-metodológico procedeu-se a análise da realidade da região fumicultora de Santa Cruz do Sul, buscando obter um diagnóstico integrado, que pudesse servir de base para a proposição de ações concretas e políticas alternativas, visando influir sobre o futuro da realidade pesquisada.

Partiu-se da hipótese de que quanto maior a dependência econômica em relação ao tabaco, maior será o consumo de agrotóxicos e, conseqüentemente, mais comprometidas ficam as condições de saúde dos agricultores (depressão, alcoolismo). Com o comprometimento da saúde, os agricultores terão poucas condições de investir em alternativas à cultura do tabaco ou em diversificação de suas atividades. Conseqüentemente, menores serão as suas chances de resgatar a autonomia perdida, de desenvolverem-se como cidadãos plenamente cientes de suas capacidades e de promoverem uma melhor qualidade de vida para as suas famílias.

Assim, buscou-se avaliar o impacto da cultura do tabaco na saúde dos agricultores,

com ênfase na contaminação por agrotóxicos, a partir de evidências de sinais e sintomas de manifestações sub-clínicas e de transtornos de nível neuro-psiquiátrico. O levantamento de dados a campo foi realizado em três etapas, observando períodos de alta e baixa exposição a agrotóxicos, através dos seguintes exames: anamneses, exame clínico especializado, testes neuro-comportamentais, coleta de sangue para análise dos principais agrotóxicos utilizados, ou seja, os inseticidas organofosforados e os fungicidas ditiocarbamatos.

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A coleta de sangue em adultos foi realizada para a verificação dos níveis de

atividade da enzima acetilcolinesterase para inseticidas organofosforados e a análise do metal pesado manganês, para os fungicidas ditiocarbamatos.

O impacto do cultivo do tabaco no meio ambiente foi analisado a partir dos níveis de desflorestamento da mata nativa (Mata Subtropical Atlântica) e da avaliação da contaminação ambiental por agrotóxicos em alimentos, solos e águas.

Além destes testes, foram aplicados questionários para levantar dados referentes a realidade sócio-demográfica e a crenças atitudes e práticas (módulo CAP) junto aos produtores de tabaco.

Em janeiro de 2000 foi realizado um trabalho piloto, composto de saídas a campo, coleta de dados e análise dos mesmos. Nesta oportunidade também foram testados os instrumentos utilizados na pesquisa. O trabalho de campo foi realizado em três etapas (cronograma e procedimentos de campo não reproduzidos neste documento) (...)

1. Com relação ao impacto da cultura do tabaco no meio ambiente, os principais resultados foram:

Cobertura florestal:

Em 1975 as áreas de cobertura florestal ocupavam 44.900 hectares da área total da bacia do Rio Pardinho; já em 1999 ocupavam 72.020 hectares; ou seja, ocorreu um a evolução de 26% em hectares das áreas florestais na bacia hidrográfica no período analisado.

Acredita-se que este fato, o aumento das áreas florestais na bacia hidrográfica do

Rio Pardinho, seja conseqüência de um conjunto de fatores, dentre os quais destacam-se: ⋅ o crescente abandono das áreas agrícolas na região, em decorrência da diminuição do

número de famílias dispostas a tirarem da terra o seu sustento, decorrente do grau de abandono em que vivem as comunidades rurais/agrícolas da região, propiciando a formação de áreas de capoeirão, que muitas vezes, na análise das imagens de satélites, em função do porte e refletância destas coberturas, se confundem com a cobertura florestal nativa de porte;

⋅ a inadequação dos princípios da agricultura moderna, caracterizada pela forte mecanização no campo, para o uso das terras com alta declividade, como os terrenos da região serrana da bacia;

⋅ a legislação trabalhista, que não respeita as peculiaridades regionais, na medida em que é única no país, seja na Amazônia ou nas regiões de pequena produção familiar, desestimulando, desta forma, o uso da terra através da parceria;

⋅ a intensificação da fiscalização florestal no Estado do Rio Grande do Sul, pois, de acordo com a lei de n.º 9.519 de 21 de janeiro de 1992 do Código Florestal do Rio Grande do Sul, fica proibido o corte, tanto das florestas nativas quanto das florestas que

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já apresentam processo de regeneração. Estas proibições e a intensificação na fiscalização florestal no Estado fortaleceram a prática do florestamento e reflorestamento de espécies exóticas, como pinus e eucalipto;

⋅ Não foi possível diferenciar as áreas de mata nativa das áreas de matas reflorestadas com espécies exóticas, uma vez que a análise das imagens de satélites não permite esta interpretação em decorrência do fato das áreas, tanto no primeiro quanto no segundo caso, serem muito pequenas;

⋅ Cabe ressaltar, entretanto, que, quando perguntados sobre que lenha utilizavam para secar o fumo, 9% dos produtores afirmaram utilizar lenha proveniente da mata nativa. Se somarmos estes aos que usam mata nativa e reflorestada, teremos 59%, o que é muito significativo frente aos 20% que usam somente lenha proveniente de mata reflorestada.

Metais pesados e micropoluentes orgânicos em solos e sedimentos fluviais:

Foram coletadas amostras de solos e sedimentos fluviais, que foram analisadas quanto ao seu teor de metais pesados e micropoluentes orgânicos persistentes nos Laboratórios de Radioisótopos da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pode-se afirmar que os valores de micropoluentes orgânicos foram considerados muito baixos, e por isso não são reportados aqui.

Os valores indicam que não há aumento pronunciado das concentrações de metais

pesados nos solos e sedimentos estudados, quando comparados aos valores reportados para o vale do rio Caí, bacia hidrográfica vizinha.

Porém em alguns pontos podemos observar que o manganês se encontra bastante

elevado, e com percentuais disponíveis igualmente altos. Essa elevada mobilidade pode ou não estar relacionada ao uso de fungicidas ditiocarbamatos, os quais contém esse metal em sua formulação.

Dos resultados obtidos pode-se concluir que para os solos e sedimentos da bacia do Rio Pardinho, o único elemento que efetivamente apresentou um comportamento anômalo foi o manganês, porém, devido ao teor desse elemento ser muito elevado na rochas basálticas, que deram origem aos solos da região, não se pode afirmar com certeza se esse fato está ou não relacionado ao uso de pesticidas.

A título de recomendação, sugere-se que os solos e sedimentos que apresentaram altos níveis de Mn deveriam ser analisados por outros métodos analíticos, visando identificar possíveis resíduos de fungicidas ditiocarbamatos. Resíduos de pesticidas nos alimentos produzidos nas áreas de plantio de tabaco

Dois tipos de sementeiras são empregadas na preparação das mudas de fumo: em canteiros no solo ou em sistema tipo hidropônico, chamado float, no qual as mudas se desenvolvem em bandejas de isopor sobre uma lâmina d’água fertilizada. Em ambas as formas, são aplicadas quantidades significativas de inseticidas e fungicidas.

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A análises realizadas mostraram que não há resíduo de acefato, metamidofós, disulfoton, clorpirifós, mancozeb e ETU nas amostras de alimentos das propriedades relacionadas. Acredita-se que o fato de não ser cultivado alimentos imediatamente após a retirada das mudas reduz bastante o risco de contaminação. Conclui-se, portanto, que os alimentos cultivados nas áreas de canteiros convencionais de mudas de fumo nas 20 propriedades fumicultoras selecionadas nos municípios de Santa Cruz do Sul, Sinimbu e Gramado Xavier, durante a safra 2000/2001, não apresentaram contaminação por resíduos dos pesticidas acefato, metamidofós, disulfoton, clorpirifós, mancozeb e etilenotiouréia. Análise de manganês nos alimentos produzidos nas áreas de canteiros de mudas de tabaco

Todas as amostras analisadas apresentaram resultados superiores aos valores teóricos. A formação geológica que originou o solo da região de estudo (rochas basálticas), por apresentar maior quantidade de manganês, pode justificar esta observação. Análise da qualidade da água

Das 158 amostras testadas, 23 (15%) apresentaram toxicidade ao organismo Daphnia magna. Destas amostras, 9 foram coletadas em Santa Cruz do Sul, 12 em Sinimbu e 2 em Gramado Xavier, de acordo com a distribuição que condiz com planejamento amostral utilizado.

Verificou-se que as amostras provenientes do sistema float, apresentaram-se 100%

tóxicas. Nelas observaram-se graus de toxicidade que variaram de extremamente tóxica a pouco tóxica.

É interessante destacar que os resultados expressam uma grande toxicidade, apesar

das amostras terem sido coletadas nos meses de novembro a fevereiro, ou seja, 4 a 7 meses após o período de transplante das mudas, demonstrando assim, a persistência da toxicidade dentro deste sistema. 2. Com relação ao impacto da cultura do tabaco na saúde humana, os principais resultados foram os seguintes:

Para efeito de análise, foi considerado que toda a população teve contato com agrotóxicos. A variável exposição crônica a pesticidas, em sua forma direta, evidenciou 86,3% casos, sendo que cerca de 20,0% da população estudada já foi vítima de episódios de intoxicação aguda, variando entre 1 e 9 episódios, sendo que 6,4% foi hospitalizada por esta razão, pelo menos em uma oportunidade.

A prevalência da colinesterase plasmática ficou abaixo de 2,5% e nenhum caso foi

identificado na eritrocitária, portanto não foram realizadas análises detalhadas neste aspecto. Nas etapas em que foi analisada a colinesterase não foram identificados casos de

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intoxicações agudas, entretanto são utilizados diversos tipos de agrotóxicos que apresentam sintomas com a exposição crônica.

Na medida do manganês sérico foi utilizado o ponto de corte de 50 ug/l. Do total de

285 indivíduos examinados 15 (5,3%) apresentaram resultado superior a 50 ug/l. É provável que a contaminação em doses menores seja bastante superior a este

percentual. Isto pode confundir a análise dos sintomas que são provocados mesmo em doses inferiores.

A prevalência de sintomas referidos foi avaliada nas três etapas e evidenciou-se alta

para a maioria dos sintomas estudados. Grande parte deles apresentou aumento no decorrer das etapas. Isto pode estar acontecendo por acúmulo de exposição ou por características específicas de cada fase do cultivo do tabaco, ou mesmo do processo de comercialização, uma vez que os sintomas mais referidos (irritação, cefaléia, formigamento, tonturas, câimbras, tristeza e azia) podem ser provocados por contaminação por pesticidas ou como sintomas de ansiedade ou depressão provenientes do resultado da safra ou da comercialização.

Quanto à contaminação por manganês, o fato de serem encontradas pessoas com

níveis acima do LQ pode ser um sinal importante de alerta para a saúde desta população. Esse dado associado à informação da presença ambiental maior do que a média mundial deste metal além dos fatores de enriquecimento (como o uso de fungicidas nos canteiros e na água das piscinas de float) pode ser um indicador de que o manganês possa estar exercendo um papel importante do ponto de vista toxicológico.

Duas questões devem ser aqui levantadas: primeiro que o ponto de corte adotado de

50 µg/l pode ter sido, nesta amostra, demasiado alto de forma a mascarar a associação entre alguns sintomas como tremores e a presença do metal, na medida que a literatura revela que a partir de 25 µg/l os indivíduos já podem apresentar tremores e perda de sensibilidade; outro aspecto é que não foi possível distinguir no ambiente o quanto do manganês encontrado é natural ou produto de fator de enriquecimento como a contaminação por pesticida. De qualquer forma trata-se de um fator “ambiental” a merecer uma investigação mais complexa com refinamento metodológico.

Quanto ao inquérito neuro-psiquiátrico, foram aplicados os seguintes instrumentos:

A avaliação da saúde mental foi realizada na terceira etapa do projeto quando foram entrevistadas 315 pessoas, através da aplicação dos seguintes instrumentos: Questionário de Antecedentes Psiquiátricos (QAP); Questionário de Morbidade Psiquiátrica para Adultos (QMPA); Escalas Hospitalar de Ansiedade e Depressão – HAD (Anxiety and depression scale); The alcohol use disorder Identification test (AUDIT); Questionário de dificuldades Psicossociais (SPQ) e Escala de Ideação Suicida (BSI) - Beck Escale for Suicidal; o Questionário de Morbidade Psiquiátrica de Adulto (QMPA), desenvolvido e validado no Brasil compõe-se de 45 itens, com respostas do tipo sim ou não. É capaz de indicar casos suspeitos de morbidade psiquiátrica, o que se dá a partir de 8 pontos, numa gama que vai de zero a 45. Tal conceito de morbidade baseia-se numa idéia de continuum de gravidade de sintomas, não fornecendo diagnósticos psiquiátricos específicos.

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Neste estudo, 138 pessoas (44%) atingiram pontuação compatível com o nível de

suspeição de “caso” de morbidade psiquiátrica. A freqüência de casos suspeitos foi maior em mulheres (60% delas foram considerados “casos”) do que em homens (31,6%).

A freqüência global de casos de depressão (35%) equipara-se ao obtido em outros estudos, quando se utilizam instrumentos menos exigentes, como uma escala de rastreamento. Destaca-se, no entanto a razão de prevalência entre mulheres e homens (45,9% e 27,2%, respectivamente; razão de prevalência = 1,7).

A freqüência global de casos de ansiedade (65%) foi mais elevada do que se

observa em outros estudos (entre voluntários normais no HC UNICAMP encontrou-se freqüência de 53%). Novamente as mulheres tiveram maiores números do que os homens (81,5% e 52,8%, respectivamente; razão de prevalência = 1,5).

Esses resultados devem ser pensados em termos das características dessa população,

na maneira como entenderam e responderam aos itens da escala. Também deve-se considerar a possibilidade de haver, de fato, maior prevalência de sintomas. No caso da sub-escala de ansiedade, os itens destacam os seguintes sintomas: tensão, expectativa amedrontada, preocupações excessivas, inquietude motora, sensações corporais de medo, sensação de estar prestes a entrar em pânico.

Observa-se que as mulheres, mais frequentemente (76% versus 24% nos homens),

revelam ideação suicida, a despeito de a incidência de suicídio ser maior entre os homens (12,4% contra 8,9% entre as mulheres). A ideação suicida foi maior na faixa etária entre 41 e 50 anos.

Assim, pode-se afirmar que os agrotóxicos, utilizados com muita intensidade na

cultura do tabaco como revelou esta pesquisa, sinalizaram para uma associação importante entre vários agravos à saúde, principalmente no que se refere aos distúrbios neurocomportamentais, nos membros das unidades familiares de produção.

Conforme os resultados obtidos pela análise de correspondência (utilizou-se somente as 147 unidades familiares, sendo que 5 não responderam algum item) com um nível de significância de 5%, pode-se aceitar como verdadeira a hipótese de que os agrotóxicos, utilizados indiscriminadamente no cultivo do tabaco, se associam significativamente com as intoxicações e distúrbios neurocomportamentais nos membros das unidades familiares de produção. Quanto ao levantamento feito através do módulo CAP, ressalta-se o seguinte: a investigação centrou-se na ocorrência do fenômeno dependência dos fumicultores e as conseqüências dessa condição para as várias dimensões de suas vidas, com destaque para seus níveis de saúde física e mental, o modo como tratam o ambiente em que vivem e trabalham, como relacionam-se com vizinhanças, encaminham seus negócios, participam da comunidade local, observam o mundo - local e global - selecionam seu lazer, ou seja: de que maneira “tocam” a vida.

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Partindo de uma visão mais geral sobre a importância da agricultura, perguntou-se sobre o orgulho de ser “produtor rural”. Numa escala entre muito orgulhoso e nenhum orgulho, 54,0% declararam-se muito orgulhosos e orgulhosos, enquanto 34,2 % declararam-se indiferentes. Quando a mesma pergunta foi formulada com relação a sua condição de fumicultor”, os valores entre muito orgulhosos e orgulhosos, baixaram para 42%. Além dos 39,0% de indiferentes, foi sensível a diferença entre os sem “nenhum orgulho” que passaram de 2,8% nos “produtores rurais” para 8,2% nos “fumicultores”. Tal situação piora quando são perguntados sobre como percebem o orgulho de seus pares fumicultores, sejam amigos, vizinhos, parentes, aqueles com quem troca idéias sobre o ofício. Por tratar-se de uma opinião que emite sobre outros, o nível de indiferença subiu sensivelmente aproximando-se dos 50,0%. Por outro lado, os muito orgulhosos (10,2%) e orgulhosos (20,6%) estão muito abaixo das duas respostas anteriores. Esse bloco de perguntas conclui com a seguinte questão: “Como você entende a importância de uma lavoura como a do fumo que não produz alimentos?”. As respostas de alguma forma definem o sentimento da maioria revelando a força dos vínculos que a unem a esta atividade agrícola: com exceção de uma resposta que diz não reconhecer importância nenhuma nesta lavoura, os demais respondentes divergem no conteúdo das respostas que atribuem importância ao tabaco, mas todas elas revelam que os laços são fortes, seja pelo êxito no empreendimento através do lucro, “dinheiro fácil”, rentabilidade (67,0%), seja pelas características de cultura possibilitadora da “sobrevivência”de 12,0% das famílias, como por ser percebida como a “única alternativa da região”.

Perguntados sobre como vêem sua situação atual, 61,0% dos agricultores

responderam que ela é “favorável”, acompanhando de perto os 67,0% daqueles que vêem a importância da lavoura fumageira através de sua rentabilidade, lucratividade, do “dinheiro fácil”. Os 38,0% restantes parecem sintonizar com os 33,0% que não vislumbram outra saída ou apenas “sobrevivem” do fumo.

Em suma, os produtores estudados compõem um coletivo muito integrado à

dinâmica de trabalho com o modelo proposto pelas indústrias fumageiras. Queixam-se do modelo, ou pelo menos de algumas características que fazem parte dele, como o rebaixamento do preço do produto, o preço alto dos insumos e os juros bancários muito altos. Estes fatores negativos são compensados pela garantia do mercado que boa parte deles não admite abandonar em nome de uma autonomia sem muita clareza. Na verdade a situação de isolamento em que vivem, com estradas de má qualidade, tornam os centros urbanos consumidores mais longínquos, interferindo nas possibilidades de comercialização de seus produtos.

Há um estímulo para mudança inclusive com a saída da fumicultura, mas faltam apoios mais concretos para esse encaminhamento. O respaldo do governo federal que é considerado o grande parceiro, constitui um equívoco, na medida que, sem força coletiva organizada e tornada interlocutor junto às empresas, pouco ou quase nada podem esperar do governo. Isso se dá tanto nas mudanças requeridas no interior do modelo, como interferências no preço da venda do produto e pauta de insumos, como nas possibilidades de reverter sua situação de dependência num jogo em que as empresas industriais são soberanas.

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As intenções de mudança parecem tímidas e a questão ambiental, por exemplo, jamais foi tocada nas questões abertas onde havia possibilidade disso ocorrer. Os horizontes de aspirações estão impregnados de maiores ganhos com pouco lugar para outros valores. Pode ser culpa da conjuntura, mas a distância que o ganho/lucro/renda toma com relação a outros valores preocupa pois, na medida que ele é o centro e o princípio orientador de condutas, não há muito lugar para construção coletiva. 3. Com relação à dependência dos produtores do modelo convencional e as possibilidades de diversificar a produção

Os dados levantados demonstram que os produtores de fumo da região de Santa Cruz do Sul são altamente dependentes do modelo tecnológico convencional, particularmente no tocante ao cultivo do tabaco, através do consumo de agrotóxicos em grandes quantidades.

Conforme os resultados obtidos pela análise de correspondência (nas 147 unidades familiares) com um nível de significância de 5%, pode-se aceitar como verdadeira a hipótese de que a dependência do modelo tecnológico convencional aumenta a exposição das famílias fumicultoras aos agrotóxicos, produzindo impacto negativo sobre a saúde e aprofundando a dependência deste modelo. Pode-se afirmar que houve associação significativa entre a dependência do plantio do fumo (medida pelo Indicador de Renda) e a exposição crônica aos agrotóxicos.

Ao mesmo tempo, os dados demonstram também o alto nível de

descuido/desconhecimento com relação ao grau de toxicidade dos produtos manuseados, o que resulta na despreocupação com a proteção pessoal, principalmente quando da aplicação dos venenos.

Disto resulta um alto grau de passividade frente ao modelo imposto, na medida em que o tabaco é a principal fonte de renda para estes produtores, apesar dos mesmos não efetuarem nenhum sistema de “contabilidade interna”, que pudesse efetivamente comprovar esta evidência.

Apesar de terem demonstrado grande interesse em diversificar a produção e, até mesmo, em abandonar a produção do fumo, a maioria continua vinculada ao sistema porque existe a garantia de compra do produto, por parte das empresas, o que não acontece com a maior parte dos produtos oriundos de cultivos/práticas alternativos ao fumo.

Para viabilizar alternativas que venham a substituir a produção do fumo e garantir

mais qualidade de vida aos produtores da região, é urgente que esforços sejam somados num projeto técnico-educativo, associado a um projeto sócio-econômico, envolvendo, de forma participativa, as comunidades rurais e os técnicos dos diversos órgãos que atuam no meio rural. Esta iniciativa torna-se cada vez mais urgente, na medida em que estas famílias se encontram historicamente desassistidas e cada vez mais descapitalizadas. Só assim poder-se-ia amenizar o quadro que o ecossistema e as populações rurais da região vivem hoje.

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Considerações finais

Tendo em vista os resultados obtidos, acredita-se necessário aprofundar a investigação sobre a origem dos altos índices de manganês, presentes no ambiente da região, e sua relação com a incidência de depressão entre os seus habitantes.

Cabe ressaltar ainda que a principal razão que nos levou a propor e a executar esta pesquisa foi a necessidade que vínhamos observando de dispormos de dados fidedignos sobre a questão do impacto dos agrotóxicos na saúde e no meio ambiente da região. Os dados levantados trazem um diagnóstico sobre o impacto causado pela cultura do tabaco ao ecossistema a à saúde da população envolvida no processo de cultivo desta planta. Considerando a grande vulnerabilidade à qual a região está exposta, uma vez que aproximadamente 45% da população da região vive no meio rural, dedicando-se principalmente à produção do tabaco, é urgente que sejam propostas e viabilizadas políticas de incentivo à diversificação da economia da região. Basta observar a renda média bruta dessas famílias, que tem se situado em torno de R$ 9.300,00 ao ano, nas safras de 99/2000 e 2000/01. Se subtrairmos deste valor bruto os gastos com a produção do fumo, teremos uma redução de aproximadamente 73%282 do total, ou seja, uma renda líquida de aproximadamente R$ 2.511,00 por família/ano! Enquanto isto, a exportação de tabaco brasileiro em 1999 rendeu 900 milhões de dólares para as empresas transnacionais do setor, consolidando o país na posição de principal exportador deste produto no mundo.283

Para discutir o desenvolvimento da região é urgente, portanto, que se amplie a participação dos produtores na renda gerada nesta produção, além de impor limites ao uso indiscriminado de agrotóxicos no processo de cultivo, realizado por aproximadamente 150 mil famílias nos três estados do Sul do Brasil.

--------x-------- 4.2.5. Os impactos sócio-ambientais nos Cerrados 4.2.5.1. A modernização parcial dos latifúndios dos Cerrados284 Modernização parcial do latifúndio

O fator chave para a implantação do modelo tecnológico da revolução verde nos cerrados foi a adaptação biológica da soja. As variedades melhoradas e plantadas no Sul e

282 cf. Afubra (2001). Relatório de atividades. Santa Cruz do Sul: AFUBRA. A partir do custo operacional de produção do fumo Virgínia, safras 1999/00 e 2000/01. 283 cf. Sindifumo (2000). A agroindústria do fumo no sul do Brasil. Santa Cruz do Sul, 2. 284 Este seção foi constituída com textos extraídos do documento Shiki, Shigeo (2002). Crítica ao modelo de desenvolvimento dominante nos cerrados e a transição agroecológica. Texto para Discussão preparado para o Encontro Nacional de Agroecologia, Rio de Janeiro, 30 de Julho a 2 de Agosto de 2002.

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Sudeste não se adaptavam nos cerrados, por problemas como o fotoperiodismo. Talvez isto explique porque a cultura da soja não se desenvolveu nos cerrados antes dos anos 1980.

O pacote tecnológico inclui além da variedade adaptada, a mecanização total das operações agrícolas e a agroquímica na adubação e controle das pragas e doenças. Neste pacote, o trator passou a ser um investimento obrigatório, e este passou a determinar a área da produção mínima, o que fez excluir uma enorme quantidade de agricultores familiares, tanto no Sul como no domínio dos cerrados.

Grandes proprietários locais e agricultores migrantes do Sul/Sudeste aproveitaram as extensas áreas de chapadas, de solos profundos e mecanizáveis. A necessidade de terras mecanizáveis favoreceu os latifundiários que ou arrendavam as terras para os sulistas capitalizados ou aproveitavam dos créditos oficiais para se capitalizar e investir na produção de grãos. Como a tecnologia mecânica é flexível, ou seja, se adapta a diversas culturas, o sistema agrícola comporta outras culturas homogêneas como o milho, o sorgo, o trigo (este no Sul). Eles se tornaram hoje agricultores patronais de grãos, embora alguns poucos tenham mantido a lógica familiar de produção.

Muitos migrantes sulistas vieram para os Cerrados incentivados pelos imensos projetos de colonização dos diversos governos militares, sobretudo nos cerrados fronteiriços de Mato Grosso e Rondônia, hoje transformados em importantes núcleos populacionais como Sinop, Alta Floresta, Colider, Nova Xavantina, Canarana, Ji-Paraná entre outros.

Ao longo dos anos, a concentração de terras e de capital continuou, motivada pelo baixo preço das terras, o aumento dos custos e os baixos preços dos produtos agrícolas, o que requeria um maior investimento em terra e máquinas para obter uma margem de rendimento estável.

Esta necessidade de mais investimento para obter a mesma rentabilidade

transformou os pivôs centrais na vedete dos sistemas irrigados. Sistemas capazes de irrigar 100-120 hectares de cultivo cobrem extensas áreas de forma circular em meio à cultura de grãos duráveis como a soja e milho. As culturas nestes sistemas irrigados já não são os mesmos. São os legumes, o feijão, a batata, o tomate industrial, o milho doce para indústria. Com exceção de algumas poucas culturas como o feijão e a batata, são culturas destinadas às agroindústrias processadoras, estas últimas sob a forma de uma agricultura de contrato.

No cerrado mineiro, o extinto IBC/GERCA estimulou o plantio de café num programa de 1972, transformando a região em grande produtora de café de qualidade. O café hoje está em crise por causa dos baixos preços e os altos custos de produção. Para sair desta crise os produtores investem na irrigação, técnica esta que pode dobrar a produção. Mais que a soja e o milho, o café se tornou uma cultura infestada de pragas e doenças combatida com agrotóxicos cada vez mais tóxicos e mais caros. Com esta pressão de custo do combate e os preços baixos, o produtor se vê na armadilha do chamado efeito tesoura, reduzindo os ganhos. Isto ocorre também na cultura de grãos mecanizados.

Os agricultores familiares locais, policultores e criadores de gado e outros animais,

foram expropriados de suas terras de chapadas, ficando confinados em suas terras nas vertentes mais inclinadas e não mecanizáveis. Houve aqui uma exclusão espacial e

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tecnológica dos agricultores familiares locais: porque não tinham terras mecanizáveis, o que permitia o acesso ao crédito para comprar tratores, tecnologia fundamental do modelo. Com isso, as zonas mais tradicionais dos cerrados mineiros, por exemplo, se transformaram em expulsoras de agricultores familiares para as zonas de fronteira (leste e norte de Mato Grosso, Goiás, Tocantins, Rondônia) numa nova onda de migração e novo ciclo de reprodução familiar, em condições de precariedade de infra-estrutura e de serviços básicos de saúde e educação. Levando os seus pertences e sua fortuna em gado bovino, estes agricultores reproduzem as mesmas práticas de cultura de roça nas manchas de terra mais fértil das encostas e cria seu gado leiteiro. Mesmo marginalizados pela tecnologia dominante e encurralados em áreas ecologicamente mais frágeis, este sistema policultura-criação familiar transformou o Estado de Goiás, na segunda maior bacia leiteira do Brasil, depois de Minas Gerais. No Centro-Oeste brasileiro, na região núcleo dos cerrados, os agricultores que tem o leite como a sua atividade principal, têm a maior renda e o maior valor da produção. Fortes indústrias laticinistas se instalaram na região dos cerrados para processar o leite produzido. Grandes corporações de alimentos como a Parmalat e a Nestlé foram abocanhando ou tirando do mercado os pequenos e médios laticínios locais. Muitas pequenas cooperativas sucumbiram a estas ações predatórias do capital. O problema deste sistema familiar nos cerrados é que a base de renovação da fertilidade está na capacidade natural do ecossistema, o pousio. Áreas pequenas encurtam o tempo de pousio e com isto a degradação mais ou menos rápida, obrigando este produtor a migrar para as regiões de fronteira agrícola, hoje deslocada para a imensa floresta amazônica. Por isso a degradação ambiental se torna também fator de degradação social dos agricultores familiares nos cerrados.

É interessante observar como os agricultores familiares vêm se dedicando ao cultivo de hortaliças, entrando em atividades não tradicionais. Note-se a ausência do feijão, uma cultura tradicional dos cerrados, mas que, com a entrada da soja e da mosca branca transmissora de doenças de vírus, ficou impossível cultivar sem uma bateria de pulverizações.

No Brasil do modelo neoliberal no qual está inscrito o Programa Multimodal de

Transporte, as fronteiras se abrem somente para o grande capital agrário. Este avança para os cerrados do Piauí, Oeste da Bahia, Maranhão e Tocantins, na esteira dos corredores de transporte, sobretudo o corredor centro-norte, ameaçando a ecologia das áreas de transição amazônica.

Neste programa não cabe a agricultura familiar, camponesa ou indígena. Por outro

lado, os assentamentos rurais nos cerrados cresceram muito na última década. Depois da Superintendência de Marabá no Sul do Pará, a de Mato Grosso foi a que mais assentamentos criou na década de 1990.

Mesmo no sisudo, latifundiário e conservador Triângulo Mineiro, berço da UDR,

passou de dois assentamentos rurais de reforma agrária para 20 na década de 1990. Estes assentamentos resultam da desapropriação de latifúndios pecuários degradados, o que traz enormes dificuldades de manejo do solo e reconversão para um sistema familiar sustentável.

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Mesmo assentamentos com infra-estrutura básica de estrada, rede elétrica, moradia e

água, a falta de experiência prática e conhecimento da ecologia local fazem com que toda iniciativa de manejo produtivo seja um aprendizado difícil, agravado pela falta de orientação técnica, órfãos do extinto Lumiar, mesmo contando com o capital de investimento e custeio do Pronaf/Procera. As perdas de safra, as mortes de animais, a necessidade de venda dos animais por falta de pasto ou pelo endividamento, têm sido os mais freqüentes problemas. Assim, mesmo com um rebate de 40%, o recurso não cobre o custo do aprendizado e da degradação ambiental.

Nos cerrados, os latifúndios pecuários degradados continuam ainda ocupando

extensas áreas, provocando a queda dos preços da terra e se constituindo em potenciais assentamentos rurais e formadores de novos agricultores familiares.

O movimento do capital agrário veio sob a forma de boi, com a ajuda do governo, através do CONDEPE (Conselho de Desenvolvimento da Pecuária), que transformou os cerrados num imenso pasto de braquiária. O método de implantação foi curioso, pois se subsidiava o cultivo de plantas desbravadoras como o arroz, para depois virar pasto e mais tarde, monocultura da soja. Em 1995, a Embrapa estimava que dos potenciais 60 milhões de hectares de pastagens nos cerrados, 41 milhões eram de um único gênero – a brachiaria sp, uma grama australiana que se adaptou muito bem nos cerrados. Assim se formaram os extensos e extensivos latifúndios pecuários.

Na década de 1980, fase mais intensiva da modernização conservadora nos cerrados, o Estado continuou subsidiando a agricultura patronal através:

⋅ do crédito de produção, investimento e comercialização do Sistema Nacional de Crédito Rural;

⋅ da pesquisa tecnológica com a criação do Centro Nacional de Pesquisa do Cerrado (CPAC), apoiado pelo governo japonês através da JICA (Agência Japonesa de Cooperação Internacional);

⋅ de ações de fomento como o Prodecer (Programa Nipo-brasileiro de Desenvolvimento dos Cerrados), igualmente apoiado e financiado pelos japoneses. Este programa iniciou com os assentamentos dirigidos em Minas Gerais - Iraí de Minas, Coromandel e Paracatu - (Prodecer I) na década de 1980 e seguiu com o Prodecer II estendendo as atividades de assentamento em Goiás, Mato Grosso, Bahia e Mato Grosso do Sul e está em negociação a versão Prodecer III com projetos em Tocantins e Maranhão;

⋅ do provimento de infra-estrutura de transporte e armazenagem de grãos pelo Programa de Desenvolvimento dos Cerrados – POLOCENTRO, programa este criado em 1975 pelos militares para transformar esta região no “celeiro do país”. Além de investimento em infra-estrutura, a pesquisa e a extensão rural desenvolvidas pela Embrapa e Embrater foram apoiadas, assim como créditos subsidiados foram concedidos diretamente aos proprietários rurais.

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Além destes, foram desenvolvidos outros programas de menor alcance, como o PROFIR (Programa de Financiamento de Equipamentos de Irrigação), o PROVÁRZEAS, o PADAP (Programa de Assentamento Dirigido do Alto Paranaíba) e o PCI (Programa de Crédito Integrado). O PADAP e o PCI foram desenvolvidos em Minas Gerais e se constituíram em precursores do POLOCENTRO e PRODECER, este de maior alcance (ISPN, s/d). O Provárzeas, embora tivesse tido um alcance limitado, causou enormes danos ambientais nos cerrados, ao drenar e cultivar áreas hoje de preservação permanente como as veredas. Impactos ambientais da modernização parcial dos latifúndios

O modelo agrícola da “revolução verde” produziu nos cerrados danos ambientais e destruição dos recursos de diversas ordens, todas decorrentes de sua característica simplificadora do ecossistema e do alto requerimento energético. Analisemos os diferentes tipos de agricultura, para melhor ilustrar estes efeitos.

Na pecuária extensiva, o problema ambiental mais significativo nos cerrados é a degradação do solo, que se manifesta pela perda da capacidade de carga das pastagens, pela infestação de cigarrinhas, pelo avanço do pisoteio em áreas de veredas, pela eliminação das matas ciliares e áreas de reserva legal. Ocorre também uma degeneração das espécies de gramíneas, com o aparecimento de espécies pragas como a grama dos currais ou matogrosso, o capim jaraguá, assim como infestantes conhecidos como o capim amargoso, a vassoura entre outras. Dada a extensão do território que ocupa – 60 milhões de hectares nos cerrados – 80 % de área degradada estimada pela Embrapa representa a fantástica área de 48 milhões de hectares! Um superpastoreio e pisoteio podem fazer uma pressão ainda maior sobre as áreas de preservação permanente e perda de solo, com assoreamento de leitos de rios, riachos e córregos. Este problema está ocorrendo também em propriedades leiteiras de agricultores familiares.

No sistema mecanizado de grãos acontece o mesmo fenômeno, só que com o trator no lugar do boi. Não é o pisoteio, mas a compactação pelos pneus e arados. Os solos dos cerrados formam naturalmente uma crosta superficial que torna difícil a penetração da água ou mesmo de raízes de plantas, favorecendo a erosão laminar e as enxurradas. Com isto, mesmo nas áreas de chapada de baixa declividade ocorre a erosão do solo, carregando partículas sólidas impregnadas de fertilizantes e agrotóxicos e contaminando a água. Juntamente com outras práticas insustentáveis como o avanço dos cultivos em áreas de preservação permanente (matas ciliares, proteção de nascentes, veredas e covoais), este modelo agrícola vem gerando, não somente o problema da poluição, mas uma crise adicional de escassez de água. Pouca gente percebeu mas a recente crise energética não foi porque choveu menos, mas porque o regime hídrico está sendo alterado pela forma depredadora de manejo dos ecossistemas dos cerrados. Ao mesmo tempo, o uso agrícola da água para irrigação tem feito uma pressão maior sobre o consumo, transformando-se em uma fonte de sérios conflitos sociais.

As doenças e pragas nos sistemas simplificados se manifestam de maneira endêmica, ou seja, aparecem em toda parte. Nematóide do cisto, lagarta e cancro da haste

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na soja, helmintosporiose e Phaeospheria sp. no milho, são exemplos de constante ameaça à saúde da planta e ao bolso do agricultor, pelo aumento do custo e risco de produção. As variedades têm vida curta, os venenos cada vez mais fortes e aplicados com mais freqüência. Este fenômeno é mais grave em sistemas irrigados. No feijão irrigado, por exemplo, a aplicação de agrotóxicos é semanal, tenha ou não doença ou praga. No tomate, batata e outras hortaliças, além da freqüência, aplica-se um verdadeiro coquetel de agrotóxicos. Estes não são problemas ambientais somente dos cerrados, mas indicam o grau de intensificação química do modelo tecnológico predominante.

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4.2.5.2. O vale do Jequitinhonha285

Os estudos sobre o Jequitinhonha podem ser divididos em três grupos a partir da sua

autoria, que define em grande parte o tipo de abordagem empregada: trabalhos acadêmicos sobre a região, diagnósticos de vários órgãos públicos (CODEVALE, Fundação João Pinheiro, Secretarias de Estado, etc); ou ainda crônicas sobre a vida da população e sobre a história do Vale elaboradas por viajantes estrangeiros que o visitaram desde o século passado ou redigidas por seus "filhos ilustres".

Os dois primeiros tipos de literatura tendem a salientar ou subscrever

implicitamente, a tese que o Vale ficou estagnado e isolado por quase 150 anos. Esse período que vai do início do século passado, quando atividades como a mineração de ouro e diamante e a exportação de algodão entraram em declínio; até os anos 1970, que marcaram a expansão da pecuária e a implantação do reflorestamento e da cafeicultura na região. A estagnação e o isolamento, principalmente nos diagnósticos oficiais, aparecem sempre associados à imagem do "Vale da miséria", onde uma população formada por camponeses pobres, sem instrução e saúde, plantando rusticamente em terras constantemente assoladas pelas secas, vive junto a cidades sem vida e que perdem população pela migração para outras regiões.

Essas interpretações comuns sobre a região, sempre me pareceram insuficientes.

Por um lado, não correspondiam à memória que camponeses e pessoas da região me transmitiam sobre o passado do Jequitinhonha, quando falavam de um "tempo de fartura", de uma época em que a região exportava produtos agrícolas em um intenso trânsito comercial realizado através de tropas. Por outro lado, como pensar uma região sem história por quase um século e meio, estagnada e fechada em si mesma? Nesse período não ocorreram transformações, não houve momentos de maior ou menor contato com regiões vizinhas ? O Vale vivia autarquicamente? Não necessitava comprar nada, não dispunha de produtos para comercializar?

285 Esta seção foi constituída com textos extraída do documento de Ribeiro, Ricardo Ferreira (1997). Os atingidos por barragens do Vale do Jequitinhonha: desenvolvimento regional e movimentos sociais. Belo Horizonte, mimeo, 9 p.

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Com o fim do período de exportação do algodão, o Jequitinhonha passa a enviar sua produção agropecuária para os mercados vizinhos, perdendo assim um fluxo comercial mais significativo com os grandes centros econômicos do país e do exterior. Seria em grande parte este processo que alimentou a concepção de isolamento e estagnação do Vale, que faz sentido do ponto de vista de quem o enxerga a partir daqueles centros.

Durante toda a segunda metade do século passado e primeira metade deste, as tropas

se dirigiam para os centros de comércio das regiões vizinhas em Minas ou para cidades baianas próximas. Levavam subprodutos da cana (açúcar, aguardente, rapadura e doces), toucinho, farinha, algodão e feijão e traziam de outras regiões sal, querosene, farinha de trigo, bebidas, fazenda, ferragens e armarinhos. Muitos destes produtos tinham uma base de produção camponesa, e o próprio comércio através de tropas era, em grande parte realizado, por camponeses mais abastados da região.

Também na pecuária, desenvolvida principalmente por grandes produtores, o

Jequitinhonha é um tributário de outras regiões, pois, devido à distância dos centros de abate e dos grandes mercados consumidores restou-lhe a atividade de cria ou recria do gado, vendido para as zonas de engorda, situadas na Bahia e em Minas Gerais.

Estes fluxos expressavam a posição secundária do Vale no desenvolvimento da

economia nacional nos últimos 160 anos, mas isto não significa necessariamente estagnação histórica. Pelo contrário, as várias áreas do Jequitinhonha vão vivenciar desde o século passado, momentos de crescimento e declínio em função das relações econômicas com as regiões vizinhas com as quais se vinculam de várias formas.

A partir dos anos 1950, o Vale vai sofrer um conjunto de transformações

significativas associadas ao processo de desenvolvimento capitalista no Brasil. A integração do Jequitinhonha e áreas vizinhas a um mercado cujas dimensões se ampliavam continuamente foi favorecida pelo processo de industrialização e urbanização, ocorrido em outras regiões e pela abertura e melhoria das condições de transporte no Vale e áreas próximas. Esse processo facilitou o acesso de produtos regionais, especialmente o gado, a mercados mais distantes, mas também possibilitou a entrada nos mercados do Jequitinhonha e regiões vizinhas, de produtos industriais e agrícolas, que concorriam com a produção local.

A formação dos preços de produtos agrícolas no Vale e regiões próximas

deixa de ser regulada por fatores naturais, que determinavam sua abundância ou escassez, ou pelo comércio local. Passaram a obedecer, cada vez mais, a uma lógica de mercado de dimensões ampliadas, cuja complexidade escapa ao conhecimento e a capacidade de controle dos camponeses e mesmo até, dos comerciantes locais. Muitos são os depoimentos que falam de uma desvalorização dos produtos agrícolas nos anos 1950. Eles se referem à concorrência tanto com bens industrializados que restringem o mercado da fabricação camponesa de rapadura, açúcar "sujo", vários tipos artesanato, etc.; como também com produtos agrícolas de outra regiões, cujo processo de modernização agrícola já se iniciava.

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Por outro lado, a expansão do mercado vai significar a introdução de novos itens de consumo, seja para a unidade de produção, seja para a família camponesa, substituindo alguns bens que antes produziam ou introduzindo novas necessidades, que vão desde a aquisição de sementes selecionadas e formicidas até de bens de consumo industrializados.

Desta forma, a expansão do mercado tem um duplo sentido para o camponês:

tanto reduz o espaço de comercialização de seus produtos tradicionais, e por conseguinte, as possibilidades de obter renda monetária; como ao mesmo tempo, aumenta a sua necessidade de obtê-la para fazer frente à nova pauta de consumo. Assim empurra para o assalariamento temporário, via migração sazonal, contingentes cada vez maiores de camponeses, que antes garantiam sua reprodução com o trabalho em sua própria unidade.

Ao serem criadas melhores vias de acesso à região e assim, se estreitarem as

relações com a capital do estado e outros grandes centros, o Jequitinhonha passa a ser estudado e analisado sob a ótica modernizante dos anos 1950/60. Sob esta ótica, tudo parece muito "primitivo", receitando logo uma integração maior da região ao "progresso nacional", como único mecanismo possível de vencer o "subdesenvolvimento" do Vale. Quanto mais avançava o "progresso" na região, mais aumentava sua "pobreza absoluta e relativa", resultando em novas demandas dos políticos locais para corrigir esse "desequilíbrio regional”.

É nessa perspectiva que se inicia em 1960, o processo de criação da Comissão de

Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha - CODEVALE, que seguia o modelo americano de agencias de desenvolvimento regional, surgido com a Tennessee Valey Authority (TVA) e a própria SUDENE. Desta forma, ao lado de uma nova divisão geográfica do estado e com o processo de criação da CODEVALE, vai sendo gestada a partir de fora da região, uma nova identidade regional : o Vale do Jequitinhonha, que substituiria regionalismos anteriores de delimitações mais fluidas - o Nordeste e o Norte de Minas. Esta nova identidade é construída sob o signo da carência, do abandono e do subdesenvolvimento persistente.

Em 1974, a CODEVALE passa a atuar em termos de planejamento global, sob a

influência dos planos de desenvolvimento, como o II Plano Mineiro de Desenvolvimento Econômico e Social - II PMDES que aponta o Vale como ‘área problema’ e propõe:

"Aproveitamento do potencial dos recursos naturais da região, adequando a

atividade produtiva ao uso potencial do solo: ⋅ no alto vale, reflorestamento e aproveitamento dos recursos naturais; ⋅ médio vale, aproveitamento para agricultura e pecuária".

A criação de gado bovino, já tradicional na região, no período 1967 / 1975,

experimentou uma expansão importante, baseada em incentivos fiscais, oferta de crédito subsidiado, a taxas de juros reais baixíssimas e assistência técnica do Estado; o que permitiu uma modernização daquela atividade na região.

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Em outras áreas do Vale, onde a pequena produção tinha maior expressão, implantou-se a partir de 1975, uma outra atividade econômica: o plantio de maciços de eucalipto, que se destinava a atender a demanda pela produção de carvão para a siderurgia e de papel e celulose. A instalação de 14 grandes empresas privadas e estatais na região, foi favorecida pelo Estado através da preparação dos projetos de “reflorestamento”, da concessão de enormes áreas de terras consideradas devolutas e de incentivos fiscais e da melhoria da infra-estrutura viária e de eletrificação.

Também após 1975, com incentivo do Estado através do crédito e da assistência

técnica do IBC, implantou-se no Jequitinhonha uma moderna cafeicultura, desenvolvida por fazendeiros da região e por empresários de outros estados, que igualmente se beneficiaram dos baixos preços de terra e mão-de-obra.

As ações do Estado nas últimas duas décadas no Jequitinhonha, não se

voltaram apenas para o incremento da grande produção, mas também procuraram introduzir um processo de modernização dos pequenos produtores rurais, através dos Programas de Desenvolvimento Rural Integrado. Estes programas tiveram resultados limitados apenas às comunidades rurais assistidas, onde muitas vezes, órgãos e programas se sobrepunham, enquanto outras não recebiam qualquer tipo de apoio e permaneciam "bolsões de pobreza".

O mito do "Vale da miséria" é a outra face do mito da "urgência do

desenvolvimento econômico" para o Jequitinhonha, que possui um caráter excludente e exclusivo de origem, presente tanto na pressa, às vezes bem intencionada, de alguns em "vencer a miséria", quanto na agilidade astuta de outros de se aproveitar dela. Os projetos de desenvolvimento econômico da região excluem os camponeses e os subalternos em geral, não apenas da maioria dos seus benefícios, excluem-nos primeiro, da sua formulação e discussão, atribuição exclusiva dos técnicos, políticos e empresários. Nestes projetos, o camponês é lembrado apenas para a construção da imagem das carências regionais.

Exclusão não significa marginalização do campesinato no processo, porque é uma

exclusão de certos aspectos: pois exclui incluindo, é uma "exclusão integrativa", como define Martins (1989). Esta inclusão se manifesta, por exemplo, quando o camponês encontra seu lugar como mão-de-obra no "desenvolvimento econômico" seja no Vale, seja nas regiões para onde migra. Esta "participação" ao mesmo tempo, o exclui duplamente : quer de antigos compromissos pessoais e de trabalho entre fazendeiros e agregados/parceiros, quer dos benefícios mínimos da legislação trabalhista, como mostra Margarida Moura (1988).

O camponês do Jequitinhonha, no entanto, não é uma categoria social passiva no

processo histórico da região, pois busca estratégias próprias para escapar à exclusão sócio-econômica e política, que os setores dominantes tentam impor-lhe. A expropriação embutida no processo de desenvolvimento do Jequitinhonha, através da expansão da pecuária e da implantação do reflorestamento e da cafeicultura, representou muitas vezes, a exclusão do camponês do acesso à terra. No entanto, se perde as chapadas para os eucaliptos, ele resiste nas grotas; se as barragens inundam os "tabuleiros", os atingidos procuram refazer sua vida nas terras altas. E aí reside outro mito a ser problematizado: a

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expropriação não significa necessariamente proletarização, porque o camponês encontra brechas, inventa e reinventa estratégias para se manter como camponês, inclusive vendendo sua força de trabalho.

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4.2.5.3. Trajetórias das populações tradicionais286

A valorização e o consumo crescente de bens industriais vem alterando não só essa especialização, como várias atividades de exploração sustentável dos recursos naturais, pois contribui para a diminuição da demanda por certos recursos naturais substituídos por aqueles bens. Por outro lado, aumenta a demanda por outros, cuja oferta no mercado permite a obtenção de renda monetária para a compra dessas novas “necessidades”. Contribuem, assim, para a degradação de ambientes onde eles ocorrem, ou para a ameaça de extinção de certas espécies de valor comercial.

O acesso aos recursos naturais, no entanto, tem sido um dos principais fatores das

transformações recentes nas relações entre as populações tradicionais do Brasil Central e o Cerrado. É importante destacar que essas mudanças se dão dentro de um processo de mais longo prazo, onde vários daqueles recursos vem sendo apropriados por alguns poucos, em geral, em detrimento daquelas populações. Porém, principalmente, nos últimos trinta anos, tais transformações se generalizaram e se aprofundaram, resultando em perdas significativas para suas estratégias tradicionais de reprodução social.

Embora variando o momento em que se deu de uma região para outra, conforme foi constatado pela minha pesquisa de campo, uma das mudanças preliminares foram as restrições impostas à criação de pequenos animais (suínos, caprinos e ovinos). Tradicionalmente, as roças deviam ser cercadas e esses animais, bem como o gado bovino e eqüino, criados soltos, com livre acesso a diferentes ambientes, onde pudessem pastar. Os fazendeiros, em geral, possuindo roças maiores, resolveram suspender o “pé da cerca”, ou seja, alteraram essa regra, exigindo que as lavouras fossem protegidas apenas contra as criações de grande porte. Desta forma, diminuíam os custos com a confecção de cercas, que precisavam ser reformadas ou mudadas a medida que as lavouras iam se mudando no sistema de agricultura itinerante. Assim, quem tivesse pequenos animais passava a ter que os manter presos em cercados de “pé baixo”. A nova “lei” dificultava essa atividade para os camponeses, seus principais criadores, pois grande parte da sua alimentação não poderia mais ser obtida pastando na vegetação nativa, mas devia ser suprida pelo proprietário, aumentando o seu custo de produção. Muitas vezes, essa transformação ocorreu paralelamente ao aparecimento do arame em substituição ao uso da madeira ou de pedras na confecção de cercas, pois quando essas

286 Esta seção foi organizada com extratos do texto de Ribeiro, Ricardo Ferreira (2002). O Eldorado do Brasil Central: Ambiente, democracia e saberes populares no Cerrado. Belo Horizonte, mimeo 16 p.; citações p. 9 a 14. Nota: A citação da bibliografia encontra-se nas notas de roda-pés.

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são feitas “contra” pequenos animais consomem muito mais do que os três ou quatro fios empregados para proteger as roças contra bois ou animais de montaria.

A difusão do uso do arame também contribuiu para uma transformação ainda maior no que se refere à apropriação dos recursos naturais do Cerrado: o fim da “solta”, “larga” ou “largueza”. Essas expressões de variação regional indicam as áreas de uso comum para a criação do gado, onde predominavam a vegetação de tipo savânico e campestre. Se apenas as áreas em torno das moradias, as lavouras e alguns pastos plantados eram cercados, o resto se constituía em áreas abertas, indivisas, onde os vizinhos podiam soltar suas criações, tirar madeira, caçar, coletar frutos e plantas medicinais, etc. A propriedade sobre o gado não era assegurada pela sua contenção nos limites da fazenda, mas pela marca do dono feita na orelha ou, principalmente, a ferro quente no seu couro.

Mesmo a documentação das terras era pouco precisa em termos dos seus limites nesses ambientes não usados para fins agrícolas. À medida que as terras iam se valorizando com a intensificação da pecuária, foram sendo realizadas “medições” com a finalidade de “retificar” os limites de cada propriedade e, em seguida, o seu perímetro ia sendo cercado. Tal processo foi imprensando os camponeses, pois não dispunham de recursos financeiros para contratar agrimensores ou advogados, nem força política para se impor aos fazendeiros. Mesmo que não houvesse questionamentos sobre os limites de suas terras, com o fim da solta, ele perdia a possibilidade de manter um rebanho um pouco maior, pois teria que restringir o número de suas cabeças àquele compatível com a área de sua propriedade.

Em algumas, esse processo é anterior, em outras, a “solta” ainda sobrevive de forma residual até hoje, mas, em todas as regiões pesquisadas, a partir dos anos 1970, essa apropriação de áreas de uso comum se evidencia. Essa “coincidência” histórica se deve à implantação de programas de desenvolvimento do Cerrado, promovidos pela Ditadura Militar como uma estratégia de expansão da fronteira agrícola. Financiados, principalmente, pelo capital japonês, esses programas se enquadravam numa política mais ampla de modernização da agricultura voltada para a exportação de grãos e para o fornecimento de insumos para a indústria nacional. Paulo Afonso Romano, presidente da CAMPO, empresa binacional (Brasil-Japão) responsável pela coordenação de um desses programas, resume bem o discurso oficial que fundamentou a sua implantação:

A intensa utilização das áreas agrícolas no Sul e Sudeste, chegando a situações de completa saturação, leva o País à necessidade de busca de áreas novas, (...) a acentuada euforia com a Amazônia na segunda metade da década de 60 e início da década de 70, fez os brasileiros imaginarem ser ali, e de pronto, o novo celeiro. Talvez o ufanismo predominante (...) tenha levado à extrapolação da busca de um objetivo geopolítico - a integração nacional da Amazônia - com um objetivo econômico: o de produzir alimentos. O engano foi detectado. Prossegue a ocupação da Região Amazônica, porém em pólos selecionados, pois ainda persistem condições precárias de infra-estrutura, riscos ecológicos e escasso conhecimento científico e tecnológico para ampla utilização dos recursos amazônicos. O bom senso de atrair maior atenção para os cerrados, enquanto se amadurece a solução amazônica, deve ser considerado como uma histórica correção de rumos na busca de novas regiões agrícolas (Romano, Paulo Afonso, 1985. Organização da agricultura nos cerrados in I

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Simpósio sobre o Potencial Agrícola dos Cerrados. Campinas: Fundação Cargill/ Empresa Goiana de Pesquisa Agropecuária,p. 155/156).

Desta forma, o Cerrado e a Amazônia eram vistos como vazios econômicos a serem melhor explorados, no entanto, aquele possuía algumas vantagens que favoreceriam a sua ocupação mais rápida. No Cerrado, a questão ambiental não aparecia do ponto de vista político interno e externo, de forma tão polêmica quanto a repercussão que ganhava a destruição da Floresta Amazônica. Com suas árvores pequenas e tortas, ele não apresentava aos olhos da opinião pública, o mesmo efeito grandioso da imensidão verde daquela floresta. No entanto, o mais importante estava em outra vantagem do Cerrado, que apesar de ter problemas de fertilidade do solo, já possuía, naquele momento, conhecimento científico e tecnológico visto como suficiente para torna-lo produtivo e economicamente viável. Vantagem que se somava à sua localização e infra-estrutura disponível, capazes de oferecer melhores condições de produção, bem como, favoreciam o seu escoamento para os grandes centros urbanos e os mercados internacionais.

A partir do início dos anos 70, o Eldorado do Brasil Central é redescoberto: o Estado implementou diversos programas de desenvolvimento do Cerrado, baseados em um uso intensivo de tecnologia e capital e no preço baixo das terras, favoráveis à mecanização e que compensavam os investimentos destinados à correção do solo. Em pouco tempo, o Cerrado adquiriu grande importância na produção agrícola brasileira: contribuindo com 25,4 % da soja, 16% do milho, 13,2 % do arroz de sequeiro e 8,3 % do café (SHIKI, Shigeo, 1995. Sustentabilidade do sistema agroalimentar nos cerrados: em busca de uma abordagem includente, in Agricultura Sustentável. Jaguariúna, SP, v.2, nº1.). Esses projetos de desenvolvimento tiveram como pólo irradiador o oeste de Minas, se espalhando gradativamente, até os dias atuais, para os outros estados incluídos na área deste bioma, como mostra o quadro abaixo:

PROGRAMAS GOVERNAMENTAIS DE DESENVOLVIMENTO AGRÍCOLA DO CERRADO

PROGRAMA CRIAÇÃO CUSTO

(US$ milhões)

ÁREA (ha)

LOCAL (ESTADO)

PCI 1972 32 111.025 MG PADAP 1973 200 60.000 MG POLOCENTRO 1975 868 3.000.000 MG, MS, MT, GO PRODECER I 1979 94 60.000 MG PRODECER II 1985 409 180.000 MT, BA, MG, GO, MS PRODECER III 1994 66 80.000 MA, TO TOTAL - 1.669 3.491.025 -

Fontes: IBASE, JICA e Fundação João Pinheiro.

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A análise mais pormenorizada dos resultados destes programas extrapola os objetivos do presente trabalho, mas, em linhas gerais, podemos sintetizar suas conseqüências ambientais e sociais nos seguintes pontos:

a) Impactos ambientais:

⋅ Perda da biodiversidade com o plantio de enormes áreas de soja, milho, arroz, café,

pasto, eucalipto, etc, em substituição a rica variedade de espécies do Cerrado287. ⋅ Degradação do solo através do uso de maquinaria pesada e produtos químicos,

resultando em erosão e esterilização. ⋅ Poluição e contaminação dos solos, da água e seres vivos, ao lado do aumento de

pragas agrícolas devido ao emprego intensivo de agrotóxicos e adubos químicos. ⋅ Assoreamento e diminuição dos recursos hídricos superficiais e subterrâneos

causados pelo desmatamento e irrigação288. ⋅ Risco de contaminação genética através do plantio de sementes transgênicas.

b) Impactos sociais

⋅ Concentração fundiária ⋅ Exclusão dos agricultores familiares e populações tradicionais da participação e dos

benefícios econômicos de tais projetos289. ⋅ Redução relativa do emprego de mão-de-obra290.

287 Em documento recente, o próprio Ministério do Meio Ambiente reconhecia que o Cerrado “já perdeu 40% da vegetação nativa e abriga alguma forma de utilização econômica em quase toda a área restante” (BRASIL, 1998: p. 22). 288 Vários desses aspectos foram admitidos em um documento de avaliação desses projetos elaborado por duas das principais instituições responsáveis pela sua implantação: a EMBRAPA (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e a JICA (Japan Internacional Corporation Agency): O desenvolvimento dos cerrado, utilizando eficientemente os recursos agrícolas abundantes que o Brasil dispõe, vem contribuindo significativamente na oferta de alimentos tanto interna como externamente, e no progresso econômico do país. (...) Porém, devido à sua grande extensão, existem alguns riscos como: perda de equilíbrio do ecossistema natural provocada pelo desenvolvimento; redução da diversidade biológica e alteração das condições metereológicas; erosão e degradação das terras; ocorrência e o surgimento de doenças e pragas em grande dimensão, afetando intensamente o meio ambiente (JICA/EMBRAPA, 1991. Relatório da avaliação conjunta nipo-brasileira sobre o projeto suporte técnico-científico para desenvolvimento dos cerrados.Brasília: mimeo. 289 Alguns destes projetos se baseavam em uma política de assentamento dirigido, onde colonos de outras regiões eram os seus principais beneficiários. Os três projetos de colonização do PRODECER I se estabeleceram em uma área de 60.000 hectares, entregues a 98 colonos que procediam do Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, e também de Minas Gerais. Eram em sua maioria jovens brasileiros de origem japonesa ou européia, possuíam nível de escolaridade alto (curso superior ou secundário) (SALIM, Celso Amorim (1986). As políticas econômica e tecnológica para o desenvolvimento agrário das áreas de cerrados no Brasil: avaliação e perspectivas. Cadernos de Difusão) ) e receberam lotes que, em média, variavam entre 350 e 460 hectares nos três núcleos. 290 “Os dados para o conjunto da região de cerrados mostram que, em 1970, para cada 100 hectares de área transformada, sete pessoas eram empregadas; em 1985, essa relação caiu para quatro pessoas para cada 100 hectares. (...) A comparação da evolução do emprego de mão-de-obra com a evolução de outras variáveis deixa ainda mais clara a reduzida capacidade de absorção de força de trabalho na agricultura de cerrados. Os dados relativos à região como um todo, para o período 1970-1985, mostram que, enquanto o pessoal ocupado

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⋅ Intensificação da migração rural-urbana291. ⋅ Aumento da dívida externa em benefício de uma minoria.

A populações tradicionais vivenciaram de perto vários desses impactos e tiveram seu modo de vida profundamente modificado. Em primeiro lugar, áreas de “solta” de uso comum foram apropriadas seja por fazendeiros, seja por grileiros, outras foram desapropriadas, ou simplesmente consideradas como terras devolutas pelo Estado e colocadas à disposição de colonos de outras regiões e de empresas agropecuárias e florestais, em condições extremamente vantajosas. Tais áreas, formadas basicamente pelos ambientes savânicos, eram vistas, pelos gestores daqueles programas de desenvolvimento, como inaproveitadas, pois não eram empregadas, como foi visto, nem para o cultivo de lavouras, nem de pastos. Com a introdução da nova tecnologia de “correção” do solo, abriu-se a viabilidade do seu uso agrícola, do plantio de pastos e da implementação de maciços florestais. A apropriação dessas áreas por grandes empreendimentos representou o cercamento de comunidades inteiras, com a ocupação das terras altas e planas das chapadas, com enormes parcelas cobertas de soja, café, eucalipto, ou outros tipos de monocultura. Assim, essas comunidades foram expropriadas dos usos coletivos que antes aí realizavam, diminuindo a sua capacidade de criação de bovinos e reduzindo ou inviabilizando a caça e várias formas de extrativismo vegetal (lenha, madeira, frutos, plantas medicinais, fibras, etc).

Suas atividades tiveram que se reduzir, principalmente, às áreas de “terra de cultura”, que representavam o principal ambiente explorado pelas populações tradicionais em termos de moradia, agricultura, criação de animais, etc. A sua utilização foi intensificada, especialmente, com o plantio de capim para cobrir a perda do pasto nativo das áreas apropriadas. A concentração da terra e o aumento da população, em algumas regiões, já vinham desgastando a fertilidade natural dessas áreas, através da diminuição dos períodos de pousio, obrigando a adoção de novas técnicas aprendidas com o exemplo dos empreendimentos vizinhos. Fato que, de um lado, aumentava os custos de produção e, de outro, ampliava os impactos ambientais assinalados acima para aqueles grandes projetos.

Algumas comunidades foram expropriadas até mesmo de suas áreas de “terra de

cultura”, através da construção de barragens para geração de energia e irrigação, pois as indenizações recebidas não cobriam a reposição dos bens perdidos, impossibilitando a retomada das mesmas condições de vida em outro lugar. Por outro lado, a introdução de gigantescos projetos de irrigação resultou na redução da água disponível para comunidades

na agricultura crescia à taxa anual de 2,7% (inferior mesmo à taxa de crescimento vegetativo - 2,95% no período 1970-91), a área de lavouras expandiu-se a 5,4%, a área de pastagens a 8,4%, o rebanho bovino a 5,5% e, em forte contraste, o estoque de tratores crescia 13,6% a.a.” CUNHA, Aércio S. (coord.) (1994). Uma avaliação da sustentabilidade da agricultura nos cerrados. (Brasília: IPEA); p. 92. 291 Ao comparar os censos demográficos de 1970 e 1980 GUANZIROLI, Carlos Enrique e FIGUEIRA, Creuza Stephen (1986). Cerrados: uma contra - reforma agrária capitalista (Rio de Janeiro: IBASE, constataram que a população rural dos municípios da área do PADAP diminuiu em termos relativos (de 46 para 17%); e entre os municípios menores, também em termos absolutos.

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a jusante, circunstância agravada pela diminuição da vazão de rios e córregos, provocada pelo desmatamento de suas nascentes e assoreamento dos seus leitos.

As populações tradicionais, apesar de não se constituírem nos principais

responsáveis pela degradação ambiental no Cerrado, se viram como o alvo mais fácil da atuação das autoridades ambientais locais. A legislação nesse sentido data da segunda metade dos anos 1960, com os códigos Florestal, de Pesca e de Proteção à Fauna, quando efetivamente se inicia uma fiscalização do uso de vários recursos naturais. Coincidiu, desta forma, a sua implantação com aqueles primeiros programas de desenvolvimento do Cerrado. Estes, no entanto, como parte de políticas estratégicas da Ditadura Militar não foram, em grande parte, afetados pela legislação ambiental, ou pelos órgãos responsáveis pela sua fiscalização. Alguns deles, inclusive, estavam diretamente envolvidos na implementação, por exemplo, de projetos florestais, com a substituição de milhares de hectares de vegetação nativa por maciços de eucalipto ou pinus.

Muito diferente foi a situação das populações tradicionais do Cerrado que tiveram

várias atividades de grande importância dentro de suas estratégias de reprodução social restringidas ou proibidas a partir de então. Entre elas pode-se destacar:

⋅ a derrubada de matas e capoeiras; ⋅ a realização de queimadas; ⋅ a retirada de madeiras e fibras; ⋅ a coleta de frutos (restringida) e palmitos; ⋅ a extração de mel silvestre; ⋅ apanha de flores do tipo sempre-viva; ⋅ a coleta de plantas medicinais; ⋅ a prática da caça; ⋅ a pesca (restringida); ⋅ a produção de carvão; ⋅ o garimpo.

Muitas comunidades se queixam de que a legislação ambiental só era aplicada sobre os “pobres”, não afetando os fazendeiros e as grandes empresas. Também apontam que, em vários aspectos, ela não proíbe a destruição do meio ambiente, mas apenas procura restringi-la através da cobrança de taxas para o uso de recurso naturais, reafirmando o seu caráter injusto do ponto de vista social. Nesse sentido, o respeito àquelas leis significaria mais um ônus financeiro sobre uma população que, por todo o processo analisado, vinha se pauperizando crescentemente. Aquelas atividades proibidas, embora em menor grau e de forma clandestina, continuam, a serem praticadas, pois a sua suspensão total praticamente inviabilizaria o modo de vida das populações tradicionais do Cerrado. Preferem correr o risco de serem multados e sofrerem outras penalidades por fazerem um desmate ilegal para um roçado, do que simplesmente pararem de plantar suas lavouras. Muitos mantêm o mesmo raciocínio para atividades menos essenciais como a caça, a retirada de madeira, a produção de carvão,

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etc, no entanto, vários preferem abandonar tais atividades, por serem mais visadas pelos agentes de fiscalização ambiental. Longe de se pretender questionar a importância da legislação ambiental, instrumento valioso na preservação do Cerrado e de outros biomas, o que se trata aqui é de mostrar falhas na sua aplicação. Como ocorreu com outras leis, no passado autoritário recente, e, ainda hoje, continua, muitas vezes, a reproduzir práticas de favorecimento ilícito, corrupção e injustiça social. Por outro lado, essa legislação, ao restringir várias possibilidades das estratégias tradicionais de reprodução daquelas populações, não teve a preocupação social e, conseqüentemente, também ambiental, pois não há, na prática, como dissocia-las, de construir alternativas sustentáveis para a continuidade do seu modo de vida, empurrando-as simplesmente para a ilegalidade.

--------x-------- 4.3. Impactos no semi-árido nordestino 4.3.1. Critica ao modelo de desenvolvimento do semi-árido292

Tanto em termos territoriais quanto em termos demográficos, o semi-árido brasileiro é uma das maiores regiões semi-áridas do planeta. Abrangendo uma área geográfica de 858.000 Km2 concentrada, sobretudo, em estados do Nordeste do Brasil, a região abriga uma população de 21 milhões de habitantes (Barbosa, 2002).

Apesar da semi-aridez generalizada, marcada pelos períodos de chuvas concentrados e irregulares, a região possui grande diversidade ambiental. Ambientes bastante heterogêneos entre si podem ser encontrados lado a lado, conferindo à região o aspecto de um grande mosaico. Em largos traços, pode-se caracterizar a região a partir da diferenciação entre os sertões e os agrestes. Os processos históricos de ocupação dessas porções do território do semi-árido guardam grande vínculo com as características desses grandes ambientes. A semi-aridez e as características de solos não ofereciam condições adequadas para a penetração dos latifúndios canavieiros litorâneos para o interior. Foi a pecuária extensiva, atividade menos suscetível às vulnerabilidades climáticas típicas do semi-árido e perfeitamente adaptada à vegetação de caatinga (rica em espécies forrageiras e facilmente manejada com o fogo), a responsável pela ocupação das vastas áreas de sertão. A grande fazenda pecuária, originária do sistema de sesmarias, foi a forma típica de ocupação fundiária nessa porção do território regional. A permanência desse padrão de ocupação agrária através dos séculos explica a estrutura fundiária extremamente concentrada na região até os dias de hoje. A agricultura familiar desenvolveu-se nos sertões à margem dos latifúndios e a eles subordinada social e politicamente. Ela é originária das famílias trabalhadoras nas fazendas e dos posseiros de terras devolutas. Nos agrestes, situados entre a mata canavieira e o sertão pecuário, verificou-se um padrão de ocupação diferenciado. Devido ao desinteresse nesses espaços tanto por parte dos usineiros do leste

292 Este texto foi extraído de Almeida, Paula e Peterson, Paulo (2004). Desenvolvimento sustentável do semi-árido brasileiro. Campina Grande/Rio de Janeiro, AS-PTA, março, mimeo 10 p.

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quanto pelos pecuaristas extensivos do oeste, essas áreas foram refugadas pelos grandes proprietários, abrindo espaço para a ocupação mais densa por parte da agricultura familiar.

É no semi-árido onde encontramos o maior número de estabelecimentos agrícolas familiares no Brasil. Segundo dados de 1995, existia na região Nordeste293 2 milhões de estabelecimentos familiares294 (42% do total de estabelecimentos agrícolas do país) que ocupavam apenas 4,2% da área agrícola nacional, ou seja, 19,2% da área agrícola regional.

Embora apresentem diferenças significativas entre si, os sistemas produtivos familiares no sertão e no agreste são tradicionalmente compostos pela combinação de explorações agrícolas, pecuárias e extrativistas. Por meio de longos processos de ajuste técnico baseados na convivência com os ecossistemas e as condições sócio-econômicas de produção, a agricultura familiar no semi-árido foi capaz de desenvolver sistemas de produção eficientes do ponto de vista da valorização dos recursos naturais disponíveis (terra, água e biodiversidade) e adaptados às condições de instabilidade climática. Através de estratégias extremamente sofisticadas de consorciamento de cultivos, utilização de variedades, espécies e raças adaptadas, as famílias camponesas desenvolveram uma cultura de convivência com o semi-árido que, até certa medida, confere algum grau de estabilidade produtiva e resistência agroecológica aos agroecossistemas. Nos anos de seca moderada, por exemplo, as famílias lançam mão de diferentes recursos poupados nos anos de produção normal (sementes, dinheiro na forma de gado, espécies forrageiras nativas etc) para fazer frente às quebras de safra dos cultivos do roçado. Além das estratégias técnicas desenvolvidas no âmbito das famílias agricultoras, fazem parte dessa cultura de convivência os mecanismos sociais de ajuda mútua e de gestão coletiva de recursos comunitários como, por exemplo, os pequenos corpos d´água de uso comunitário onde famílias se abastecem nos períodos nos quais as reservas nas suas propriedades estão esgotadas.

Muito embora esses mecanismos de segurança agroecológica mostrem-se bastante efetivos para os anos de seca moderada, via de regra não são suficientes para os casos de estiagens prolongadas. Com efeito, a ocorrência de anos subseqüentes de seca no mais das vezes significa a submissão das famílias a situações de grande penúria e a desestruturação dos seus agroecossistemas. Nessas ocasiões, as migrações maciças para outras regiões foram os meios regularmente empregados para a sobrevivência de grandes contingentes populacionais ao longo da história.

Fundamentados na valorização dos recursos naturais, os sistemas técnicos tradicionais no semi-árido dependem do mecanismo de pousio das terras para que ocorra a regeneração da fertilidade dos solos. Isso implica na necessidade de que as propriedades sejam suficientemente extensas para permitir que parte significativa da unidade produtiva permaneça em descanso a cada ano.

293 Não só o Nordeste abrange outras áreas que não são semi-áridas, como o semi-árido não se limita ao Nordeste do Brasil. De toda forma, o dado apresentado oferece uma ótima noção do peso relativo da agricultura familiar na região. 294 Adotaram-se como critério os estabelecimentos com menos de 50 hectares.

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Apesar do forte fluxo migratório, ocorreu um paulatino aumento demográfico na região ao longo das últimas gerações o que significou um processo intensivo de fragmentação das propriedades devido às partilhas por herança. Esse processo associado ao crescente enrijecimento das normas para uso pastoril das terras de fazendeiros, verificado a partir dos anos 1960, implicou no decréscimo acentuado das terras disponíveis para a agricultura familiar. Isso levou as famílias a intensificarem o uso do espaço produtivo sem que para tanto incorporassem ajustes correspondentes na base tecnológica, que permaneceu referenciada em métodos extensivos de uso e manejo ambiental (Petersen, Silveira, Almeida, 2002). Como conseqüência, verificam-se intensos processos de desflorestamento nos agroecossistemas, comprometendo decisivamente a sua hidrologia. Com efeito, embora a população sertaneja afirme que as chuvas estejam escasseando, dificultando a produção de cultivos anuais, essa percepção não é corroborada pela análise das séries históricas da pluviometria. Essa percepção de aumento da vulnerabilidade agrícola deve ser atribuída à intensificação dos processos erosivos e à menor capacidade de os solos armazenarem a água das precipitações (Petersen e Rocha, 2003).

A associação de degradação ambiental com empobrecimento das famílias agricultoras estabeleceu um círculo vicioso de insustentabilidade que, em algumas regiões, vem produzindo situações em que a pobreza vai se transformando em miséria permanente e em processos de desagregação familiar generalizados.

As dinâmicas de “modernização” da agricultura nacional impulsionadas pelo estado a partir dos anos 1960 expressaram-se no semi-árido de forma localizada por meio de projetos de irrigação associados à implantação de monoculturas agro-químicas. Geralmente, as regiões abrangidas por esses projetos assistiram a rápidos processos de crescimento econômico às expensas de elevadas contrapartidas negativas nos planos social e ambiental. A implantação desses projetos com o apoio governamental acentuou a histórica diferenciação social no semi-árido ao estabelecer cenários contrastantes nos quais empresas agrícolas modernizadas voltadas para exportação convivem lado a lado com latifúndios improdutivos e com unidades agrícolas familiares em processo de desestruturação.

Os programas e projetos do Governo Federal e dos Estados voltados para o enfrentamento da pobreza rural no semi-árido (muitas vezes com recursos de agências multilaterais de cooperação internacional) invariavelmente vêm se fundamentando em concepções orientadas para a modernização da agricultura tradicional através da disseminação dos pacotes tecnológicos da Revolução Verde (sementes comerciais, agrotóxicos, fertilizantes, equipamentos de irrigação) associados ao incentivo de atividades produtivas especializadas (algaroba, gramíneas forrageiras, criação de caprinos etc). Além de formuladas e implementadas sem qualquer participação da população diretamente beneficiada, essas iniciativas oficiais orientam-se por uma concepção técnica inadequada para as condições sócio-econômicas das famílias camponesas e para o contexto ambiental em que elas vivem e trabalham. Os resultados da implementação dessas políticas em geral são nulos, quando não contraproducentes, já que concorrem para desestruturar ainda mais as unidades produtivas familiares e induzir as famílias a processos de endividamento insolúveis.

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Outro traço característico nas políticas públicas voltadas para o meio rural no semi-árido é a concepção errônea aplicada ao abastecimento hídrico. Contrariando as estratégias tradicionais fundadas na descentralização das infra-estruturas mediadoras entre a oferta e a demanda de água, as orientações das políticas de recursos hídricos governamentais baseiam-se nas grandes obras de engenharia destinadas a concentrar a captação, o armazenamento e o transporte de grandes volumes de água tais como barragens, grandes açudes e adutoras. A transposição do rio São Francisco, ora em debate, apresenta-se como mais uma medida referenciada por essa concepção, convencionalmente denominada de “solução hidráulica”. Embora essas obras atendam necessidades de parte da crescente população urbana no semi-árido, em grande medida originada da crise da agricultura, não respondem às necessidades geograficamente difusas e funcionalmente diversificadas da agricultura familiar. Pelo contrário, tornam as famílias muito dependentes de fontes de água distantes, cujo acesso se dá através de carros-pipa viabilizados por políticas de caráter assistencialista acionadas nos recorrentes momentos de emergência. Além de não favorecer a autonomia hídrica das famílias, essas “soluções” reforçam laços de dependência política da população rural com relação aos poderes públicos locais, em geral dominados pela elite agrária. A implementação de programas públicos segundo essa concepção técnico-política vem gerando efeitos extremamente danosos à agricultura familiar e ao meio ambiente, ao promover a elitização do uso da água, privando o acesso dos recursos hídricos às populações historicamente marginalizadas e acentuando os processos de degradação ambiental por uma prática de irrigação inadequada e pelo uso intensivo de agroquímicos. Em várias regiões nas quais estes projetos são implementados testemunha-se o acirramento da crise sócioambiental. No sertão paraibano, por exemplo, a desapropriação das áreas antes ocupadas por populações ribeirinhas para a construção do Canal da Redenção, deslocou grande contingente de famílias que hoje se concentram em favelas no município de Aparecida. Por outro lado, as famílias agricultoras que vivem ao longo do Canal, muitas das quais assentadas, estão legalmente proibidas de acessar a água.

A reiteração histórica desse tipo de concepção técnica nos programas oficiais voltados para o desenvolvimento rural e a superação da pobreza no semi-árido não permite que sejam rompidos os laços de dependência política e econômica das populações marginalizadas com relação às elites agrárias nordestinas. Devido à sua característica básica que é a de gerar dependência de recursos inacessíveis localmente (água, insumos agrícolas, conhecimentos etc), essas “alternativas” técnicas favorecem a permanência das relações de clientelismo responsáveis pela manutenção da mal-fadada “indústria da seca”. Por outro lado, dificultam a emergência de processos sociais autônomos capazes de implementar alternativas técnicas e sócio-organizativas voltadas para a promoção da sustentabilidade sócioambiental.

A promoção de novos padrões de desenvolvimento fundados nos princípios da sustentabilidade sócioambiental requer, antes de tudo, a superação da cultura política que induz à passividade e à subordinação da agricultura familiar com relação à elite agrária no semi-árido. Acreditamos que somente com a promoção de uma sociedade civil ativa, que seja capaz de valorizar a inteligência criativa e as capacidades sócio-organizativas e políticas do campesinato, será possível despertar as energias sociais latentes em prol desse novo estilo de desenvolvimento rural na região. Para tanto, faz-se necessário superar a ideologia negativista e preconceituosa a respeito do potencial ambiental do bioma e das

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capacidades humanas da população rural (que favorecem a idéia de que as soluções têm de vir de fora e não geradas endogenamente) e jogar luzes sobre as enormes potencialidades sócioambientais e culturais presentes na região, de forma que elas sejam valorizadas e carreadas no sentido da construção de um projeto de desenvolvimento sustentável e autônomo para o semi-árido.

--------x-------- 4.3.2. A presença histórica do campesinato no nordeste brasileiro 295

A economia brasileira beneficia-se da presença do campesinato na produção agrícola desde os primórdios de sua história embora, contraditoriamente, estes trabalhadores tenham permanecido sempre à margem das políticas de incentivo implementadas pelo governo. A pretexto de ser o Brasil um país de dimensões continentais e diversidade climática, desde o início do processo de colonização a agricultura comercial ocupou enormes extensões de terra, ao mesmo tempo em que se utilizou de mão-de-obra forçada, especialmente de grandes contingentes de trabalhadores expropriados da terra. Este modelo econômico trouxe como resultado, por um lado o desflorestamento e, por conseguinte, as ocupações indevidas de extensas áreas consideradas reservas de biodiversidade e, por outro, colocou uma massa de trabalhadores à margem do processo produtivo. A ocupação da Mata Atlântica e, sua parcial destruição revela uma das faces desta prática predatória a que foi submetido o território brasileiro. Outra face deste processo revela-se por intermédio dos indicadores de pobreza nas áreas pioneiras de ocupação a exemplo da Mata pernambucana e paraibana onde o IDH (M) situa-se entre os mais baixos do Brasil. Em parte, explica este quadro o modelo agrícola implementado no Nordeste que não se diferencia, em sua essência, do padrão hegemônico que norteou a agricultura brasileira desde o período colonial. Ainda na região Nordeste três linhas principais caracterizam o modelo a que nos referimos: a grande concentração fundiária cuja marca é o latifúndio; a super-exploração dos trabalhadores e o uso predatório dos recursos naturais que no processo produtivo tem como base a substituição da vegetação nativa pelas atividades agrícolas monocultoras.

Das atividades econômicas praticadas na Mata Paraibana pode-se afirmar que o cultivo da cana-de-açúcar demandou um intenso desmatamento na construção das casas dos

295 Esta seção foi constituída de extratos do documento de Rodrigues, Maria de Fátima F. (2004), A presença histórica da economia camponesa na sociedade brasileira. Recife, mimeo 11 p. Segundo a Autora esse texto foi produzido a partir da base de dados do projeto de pesquisa: “A Paisagem Agrária Paraibana: análise das manifestações culturais, das práticas de resistência e das condições de trabalho” que conta com o financiamento do programa PIBIC/CNPq/UFPB. Para a elaboração deste texto contou-se com a colaboração das bolsistas Ana Bernadete de Carvalho Accioly Soares e Aline Barbosa de Lima que se empenharam, de modo especial, na sistematização dos gráficos e tabelas relativos ao PRONAF e a Feira Agroecológica. Contamos também com a colaboração da Profa. Araci Farias Silva.

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senhores de terra, das senzalas e dos engenhos, e de modo especial para o plantio desta cultura.

“Até 1700 — cerca de 150 anos após a exportação do açúcar alcançar escala comercial — os campos de cana-de-açúcar teriam eliminado uns mil quilômetros quadrados de Mata Atlântica” (Dean, 2002: 96).

Em outras regiões do Brasil o desflorestamento praticado no século XIX, não foi apenas conseqüência das queimadas da floresta. A cultura do café contribuiu para acelerar o processo de urbanização e industrialização com a abertura de ferrovias entre outros equipamentos e infraestrutura implantados. Como era explorada uma única mercadoria de exportação, “as pressões sobre uma área mais ampla da Mata Atlântica, deram início ao que agora pode ser considerado como danos irreversíveis às paisagens antropomorfizadas” (Dean, idem:.206).

No século XX, o crescimento demográfico mundial prosseguiu em ritmo acelerado. Comparativamente, “a população do Brasil triplicou entre 1900 e 1950, a de São Paulo quadruplicou e a do Paraná cresceu quase seis vezes e meia” (Dean, idem: 254). No mesmo ritmo que se deu o crescimento populacional a vegetação nativa foi sendo devastada, para suprir as necessidades domésticas, industriais, de recreação e de transporte.

No que concerne a falta de consciência ambiental dos governantes, marcou a

memória do povo brasileiro, frases e práticas como as que se relata a seguir: “que venha a poluição, desde que as fábricas venham com ela”. Esta frase foi proferida por José Sarney, Senador do Nordeste que se tornaria posteriormente Presidente da República. Já um representante do governo na primeira Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada em Estocolmo em 1972, apresentou uma fórmula populista dissimulada tendo como refrão “a pior forma de poluição é a pobreza” (Dean, 2002: 307). Nestas frases percebemos claramente que o desenvolvimento econômico é colocado, por estas autoridades, acima dos problemas ambientais.

A existência e a reprodução desse modelo secular não é obra do acaso. De fato ele

vem sendo implantado e sistematicamente reforçado por meio de políticas públicas que o revigoram. Como conseqüência a implantação deste modelo verifica-se grave crise sócioambiental, vivenciada no meio rural nordestino, cuja superação exige um redirecionamento dos fundamentos sociais, técnicos e fundiários e, por conseguinte, a construção de outro modelo socialmente justo e ambientalmente sustentável. Se a Mata ressente-se do processo de ocupação o que dizer do agreste e do sertão nordestino, onde avultam áreas desertificadas de solo empobrecido e de águas salinizadas?

Como resposta à vulnerabilidade do quadro sócioambiental do Nordeste brasileiro

podemos acrescentar as seguintes indagações: qual a origem desta crise ambiental? Como sobrevive hoje a mão-de-obra que foi submetida a este modelo de exploração?

A historiografia revela que nos três primeiros séculos de ocupação a mão-de-obra

nos engenhos e atividades similares foi garantida por meio da preação indígena e da transferência de mão-de-obra escrava. Do cruzamento dessas duas etnias somadas aos

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brancos europeus que vieram para implementar os empreendimentos mercantis de interesse da coroa se amalgamou a sociedade brasileira atual, uma sociedade mestiça que na releitura de seu processo de formação reivindica uma identidade que congregue o conjunto das etnias que a forjou.

As várias nações indígenas submetidas ao trabalho forçado, por não valorizar e não

ter como prioridade a produção mercantil o Estado brasileiro relegou-as ao esquecimento e ao silêncio. Em contrapartida este mesmo Estado valorizou em demasia a exploração do pau-brasil, da cana-de-açúcar, da borracha, do café e mais recentemente da soja, colocando sempre em supremacia os projetos das elites e das empresas estrangeiras, em detrimento dos interesses dos trabalhadores.

Nas disputas por terra diversos enfrentamentos foram registrados. A maioria expropriada e oprimida que, sem jamais silenciar, enfrentou o poder dos donos e os donos do poder, a historiografia registrou desde acontecimentos como a Guerra dos Bárbaros até os confrontos mais recentes tendo à frente o MST.

Esta história marcada a ferro e fogo traduz a relação sociedade natureza no Brasil e os desdobramentos resultantes desta mesma história se expressam nas várias formas de apropriação territorial que conformaram o atual território brasileiro. Esta história revela um processo concentrador e excludente e apresenta várias faces e territorialidades, a exemplo das áreas de remanescentes indígenas e de quilombos, dos assentamentos rurais desapropriados pelo INCRA e das áreas públicas ocupadas pelo MST. Estas territorialidades fazem parte da nossa história e revelam processos distintos aos quais podemos associar, inicialmente, a imagem de um paraíso tropical conquistado pelos portugueses onde habitava um povo que segundo o discurso do colonizador precisava da tutela dos “civilizados”. Salvar esta gente é o apelo maior que ficou registrado na Carta de Pero Vaz de Caminha, ao afirmar: “ (....) Porém o melhor fruto, que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. (p. 9). No rastro desta representação é que se consolidou o latifúndio e a expropriação que deu origem a uma legião de trabalhadores sem-terra que ocupam as pontes, os viadutos e as esquinas deste imenso Brasil.

Esta imagem, especialmente a de um paraíso tropical, tão ricamente descrito por cronistas e viajantes que visitaram o Brasil no período colonial, povoa e recria, cotidianamente, outras representações sociais sobre o Brasil e sobre o seu povo. Segundo Marilena Chauí esta escrita alegórica também recria, por meio de mitos, a imagem do Brasil enquanto uma terra em que “querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo,” onde também vive um povo ordeiro e pacato. Segundo esta mesma autora é recorrente neste imaginário a visão edênica da natureza. Imagem que se revigora através dos símbolos nacionais.

É tendo no horizonte o símbolo da Bandeira Nacional, cujo lema é Ordem e Progresso, que nos propomos rememorar acontecimentos ligados a história do campesinato brasileiro, história que se inscreve nos marcos da resistência ora para não ser expropriado da terra, ora para reverter o processo de expropriação. É seguindo este movimento contínuo e pendular que vamos elaborar nossa base interpretativa visando contribuir para a

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construção de um plano camponês que congregue os agricultores familiares, que nos discursos economicistas, ora estão inseridos no processo produtivo em condições de reproduzir-se, ora estão excluídos do mercado sem condições de neste inserir-se. É necessário lembrar que, além dos que se mantém na terra, há também um enorme contingente de trabalhadores a quem não temos interesse de ocultar, que estão abaixo da linha da pobreza habitando periferias de pequenos, médios e grandes centros urbanos e sonhando com o retorno a terra.

Vale salientar que, no caso do campesinato brasileiro, se pensarmos do ponto de vista cronológico, a ordem antecedeu a sua própria representação simbólica, visto que os conflitos pela posse da terra antecederam a separação do Brasil do reino de Portugal. Deste modo se registra em nossa história territorial episódios que antecederam a independência como a Guerra dos Bárbaros, Os Quilombos e outros como Canudos, Contestado, Caldeirão, Pedra Bonita e as Ligas Camponesas que sucederam-na. Estes e tantos outros enfrentamentos marcaram a história do Brasil e fortaleceram o campesinato em seu projeto político ora de permanência, ora de retorno à terra (...) O Campesinato no #ordeste

A adoção do recorte regional Nordeste a partir de então não se distancia da história do Brasil, ao contrário, ao privilegiá-lo busca-se revigorar a história do nosso país em suas origens.

Ao falar sobre o campesinato do Nordeste brasileiro nos vem a memória personagens e representações sociais que enriqueceram a literatura através de autores como Graciliano Ramos, José Lins do Rego, José Américo de Almeida, Raquel de Queiroz, Jorge Amado dentre outros.

No romance “vidas Secas” têm-se em personagens como Fabiano e Sinhá Vitória, expropriados da terra e fugindo da seca, a representação de uma realidade que muito se repete nos dias de hoje: trabalhadores que com suas famílias migram em busca de trabalho que lhes garanta à sobrevivência. Para estes, o sonho de retorno à terra é uma constante. As cenas de “Vida Secas” também se repetem em ouros romances por meio de personagens que incorporam histórias de vida semelhantes, O Quinze de Raquel de Queiroz com seus “campos de concentração” e com o ciclo migratório; as paisagens ressequidas, os ciclos migratórios e a expropriação da terra, em Seara Vermelha de Jorge Amado, são alguns exemplos deste tipo de literatura.

E por que trazer a literatura para caracterizar, por exemplo, o sertanejo?

A explicação sobre o uso da literatura ganha vigor com De Marco (1993: 14) quando esta afirma: “Entre os tantos poderes da literatura está este de forjar imagens, ora próximas do caráter instantâneo e fixo da foto, ora moventes como um longa-metragem. Elas trazem uma interpretação dos tempos e marcas que permitem também esboçar o perfil daquele que as criou”.

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De fato numa época em que o discurso político constituia-se numa via de exceção muitos excluídos socialmente se fizeram representar através dos personagens de Vidas Secas, por meio de imagens que como fotos recorrentemente retornam à mídia ou por meio de cenas cotidianas que também se reproduzem nas telas a exemplo dos filmes Central do Brasil e Abril Despedaçado. Mas se a vida no sertão se faz representar em romances como Vidas Secas, O Quinze e Seara Vermelha, ao falarmos sobre a Mata vê-se que é também na literatura onde as representações sociais, vinculadas a esta região, ganham colorido especial. Por isso, romancistas como José Lins do Rego e suas obras Menino de Engenho e Bangüê, assim como José Américo de Almeida com o romance A Bagaceira, ganham importância neste debate. Nestes romances a vida nos engenhos, nas casas grandes e senzalas nos trazem de volta a memória de um tempo que está registrado, sobretudo, em arquivos documentais e imagens produzidas por viajantes e naturalistas que escreveram e descreveram o nosso país, acervo de difícil acesso para a maioria do povo brasileiro. Seguindo esta argumentação é mister assinalar que a literatura vem se somar a nossa investigação com o papel que lhe é peculiar, ou seja, enquanto representação social.

As crenças, a natureza descrita em períodos de estiagens e em períodos chuvosos, pelos romancistas anteriormente mencionados, seja ao ambientar suas obras nas áreas secas, ou nas áreas úmidas, reproduzem de forma verossímil a vida do sertanejo, do trabalhador rural ou do lavrador, conforme os vários nomes com que se nomeia, no Brasil e, por conseguinte, no Nordeste, aqueles que do ponto de vista econômico produzem alimentos para sua família e, também, abastecem o mercado interno. Do ponto de vista social estes trabalhadores mantêm vínculos fraternos e relações de vizinhança, participam de festas e de rituais sagrados, mantendo códigos de parentesco e de fraternidade que lhes assegura a permanência na terra.

Neste sentido, caracterizar o homem camponês nordestino não é um exercício

simples, haja vista a complexa e variada discussão acerca de sua trajetória marcada pela exclusão social. Sobre este processo de exclusão, ao pensar acerca do campesinato brasileiro, Martins (1982: 25) afirma que:

A exclusão do camponês do pacto político é o fato que cercará o entendimento da sua ação política. Mas essa exclusão não é, como às vezes tem sido entendida, mera exclusão política. Por isso, é necessário entender a história dessa exclusão, seus mecanismos econômicos, sociais, políticos. Essa exclusão define justamente o lugar do camponês no processo histórico. A ausência de um conceito, de uma categoria, que o localize socialmente e o defina de modo completo e uniforme constitui exatamente a clara expressão da forma como tem se dado a sua participação nesse processo – alguém que participa como se não fosse essencial, como se não estivesse participando.

As diversas palavras que nos distintos lugares designam o camponês, têm duplo

sentido, marcando-o como aquele que não está incluído na dinâmica social brasileira. Nesta forma ambígua de ver o campesinato verifica-se ainda segundo Martins (1982) que ele não é de fora, mas também não é de dentro. É com este olhar que o Estado brasileiro tem tratado historicamente este sujeito social. Portanto, as relações sociais envolvendo terra e trabalho tendo o Estado como mediador desvendam o verdadeiro lugar do campesinato no

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processo produtivo, revelando também as duas faces de um mesmo modelo econômico e social. Ao fazer esta discussão pomos em cena as caracterizações e construções que dizem respeito ao homem do campo sob o manto das denominações de agricultor familiar e de pequeno produtor.

Para nós retornar a este debate tantas vezes já revisto deriva do entendimento de que este sujeito histórico galgou expressividade política, nas duas últimas décadas, em nosso país capacitando-o a sair da margem para o centro deste debate. Nesta fração de tempo, a força com que o MST e os demais movimentos, que reivindicam a desapropriação da terra e a Reforma Agrária, ocuparam a mídia, a academia e os vários espaços políticos em nosso país é a comprovação maior desta assertiva.

Agora está claro, se na academia ou nos discursos políticos os camponeses ainda são uma categoria à margem da história, para estes que participam e constroem cotidianamente novas possibilidades não há dúvidas de sua importância política, por isso estão buscando formular propostas que os dignifique levando-as às esferas de decisão do nosso país com a mesma força com que ocupam prédios públicos e dialogam com a sociedade por inteiro (...). O papel do Estado

A análise das políticas públicas no Brasil e no Nordeste exige uma reflexão sobre o papel do Estado. Segundo Schimidt (2001), a formação do Estado brasileiro precedeu a da sociedade civil, caracterizando-se por ter um caráter desenvolvimentista, centralizador, conservador e autoritário. Promovia o desenvolvimento e buscava consolidar o processo de industrialização através de políticas públicas que objetivavam o crescimento econômico

Com o desenvolvimento do capitalismo monopolista, o Estado se fez necessário às

elites a fim de regular as questões sociais, fruto das novas relações entre o capital e o trabalho e entre estes e o Estado. Surge, então, um Estado responsável pela formulação das políticas econômicas e sociais e por sua execução.

A Constituição Brasileira de 1988 reconheceu o direito à proteção social universal e incondicional pelo Estado a todo cidadão. A partir de 1990, foram regulamentados e implementados os direitos sociais inscritos na Constituição.

Foi uma década marcada pelo conflito entre a expectativa da implementação de políticas públicas que concretizassem os direitos conquistados (...) e as restrições políticas e econômicas impostas por sua implementação.(Cunha & Cunha, 2002: 15).

As políticas públicas surgem como resposta do Estado às demandas da sociedade e de si mesmo, concretizando direitos sociais declarados e garantidos em lei, fundamentados no direito coletivo.

No final do século XX, a questão social foi agravada pelo desemprego estrutural, pela precariedade das relações de trabalho, pelas alterações na organização familiar, no ciclo de vida e pelo aumento das desigualdades sociais, que promoveram a exclusão de

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grande parcela da população. Em resposta a esse agravamento, medidas foram tomadas, como corte de benefícios, maior seletividade das políticas sociais e privatização de programas de bem estar social e conseqüente desmonte da proteção social mantida pelo Estado.

Em reflexo à grande mobilização social, a Constituição brasileira de 1988 reconhece o direito à proteção social pelo Estado, redefinindo seu papel, passando a coordenar políticas públicas sociais e destinando aos municípios o papel de executá-las, além de conceder às unidades da federação e aos municípios autonomia na organização e gestão de suas políticas. A sociedade civil se reorganiza e passa a exercer controle público sobre a ação governamental, alterando a relação Estado/sociedade e através dos Conselhos de políticas sociais, que representam e efetivam a participação popular e que tem como desafio “transformar suas deliberações em ações do poder público” (Cunha & Cunha, 2002, p. 16).

Por ser a agricultura familiar mais sustentável, ao exibir um perfil distributivo e sendo melhor em termos sócio-culturais quando comparada à agricultura patronal, são propostas três diretrizes para a formulação de uma nova política agrária: educação, criando uma profunda mudança no que se refere à educação das famílias rurais, através do ensino básico, da formação profissional e da relação destes com as redes de ciência, extensão e tecnologia, pois “é simplesmente inconcebível um processo de desenvolvimento no qual a educação não ocupe um lugar estratégico” (Veiga, 1998: 9), ao mesmo tempo organizados de forma a participar ativamente através de cooperativas, sindicatos, igrejas, associações e etc.; diversificação das ações fundiárias, não se resumindo a um programa de assentamentos, devendo incentivar outras atividades a fim de viabilizar economicamente o processo de desenvolvimento e evitar o êxodo rural ao ocupar a mão-de-obra agrícola excedente, sendo estas atividades derivadas majoritariamente da agricultura, como pequenas indústrias, turismo rural, etc.; expansão do PRO*AF, através de sua reformulação, com o objetivo de permitir aos agricultores familiares explorarem oportunidades não –agrícolas de geração de renda, preferencialmente de atividades associadas à dinamização da agricultura. Essas propostas teriam o objetivo de liberar o “potencial econômico dos agricultores familiares que conseguiram escapar da decadência mesmo que não tenham conseguido escapar do empobrecimento” (Veiga, 1998: 6).

Há que se destacar ainda a importância do papel assumido pelos movimentos sociais, organizações não governamentais, igrejas, sindicatos e associações no comportamento participativo do cidadão quanto a possíveis intervenções no processo das políticas públicas, com a finalidade de que este debata, reaja, fiscalize as estratégias e ações dos governantes e suas implementações. Os movimentos sociais são a retaguarda do cidadão comum para que se “ultrapasse o estágio das limitações políticas impostas pela cultura política e o comportamento predominante no país” (Schimidt, 2001: 304).

No que concerne a terra de trabalho reivindicada pelos movimentos sociais no Nordeste o processo de desapropriação está longe de atender as demandas dos trabalhadores e mesmo os que já estão assentados clamam por uma política específica eficaz que lhes garanta a sobrevivência econômica e social. Contudo não há como omitir o avanço dos movimentos pela terra que vem configurando um outro poder em lugares onde antes as elites comandavam as relações de trabalho. Nas palavras de (Moreira, 2002: 7) ao

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referir-se a Mata Paraibana “A utilização das velhas casas grandes como sede de associação de trabalhadores é simbólica das mudanças nas relações de poder e de mando que estão em curso e que redefinem as forças em confronto nos novos territórios em formação”.

-------x-------- 4.3.3. Modernização e pobreza na Paraíba296 O semi-árido nordestino sofreu a partir do final dos anos cinqüenta e, mais intensamente no final dos anos sessenta profundas transformações que modificaram a realidade da economia rural, secularmente ali constituída, na infra-estrutura daquela sub-região e no imaginário da gente ali vivente. Essas mudanças serão aqui narradas passo a passo, dividida em dois momentos. No primeiro serão descritas as mudanças na perspectiva das explicações teóricas de paradigmas econômicos, como também, na perspectiva da condição social dos que ali habitam, relacionando as teorias econômicas e sociológicas com o novo quadro de fome e desabrigo daquelas populações. O próximo item está dedicado a narrativa destas transformações sob a chamada modernização da agricultura. A fome crônica, sempre fora parte da realidade das populações moradoras da sub-região semi-árida da Paraíba e de todo o Nordeste brasileiro. Há, no entanto, necessidade de mostrar sua metamorfose ao longo dos anos, como também, reforçar a denúncia de autores clássicos da questão da fome, como Josué de Castro, que mostrou não haver uma relação direta entre o clima semi-árido e a fome. Josué de Castro, em seu clássico “Geografia da fome” mostra com números e estudos científicos que mediam os valores protéicos da alimentação dos nordestinos que, havia mais subnutrição nas áreas úmidas da Região do que no semi-árido da Região, ressalvando-se nos anos de grandes estiagens quando a fome passava a ser uma calamidade nos sertões nordestinos. As bases da teoria de Josué de Castro eram o tipo de ração consumida pelos sertanejos e o seu mais fácil acesso a terra, de onde extraía a parte mais importante de seu sustento. Segundo aquele médico, no Sertão seco, o nordestino conseguia comer farinha com carne seca, leite, feijão e tinha como base o milho.297Além disso, a caça de aves e mamíferos de pequeno porte possibilitava ao homem do campo mesmo sem trabalho, nos sertões, conseguir alimentos naqueles torrões esturricados pelo sol abrasador. A vida isolada, distante das “rotas” do mundo moderno, em franca expansão no país, enclausurava o sertanejo numa auto-suficiência nutritiva, mais rica de acordo com a invernada e mais magra de acordo com a adversidade climática. Naquela clausura, o

296 Esta seção corresponde ao item b) Modernização da pobreza na Paraíba, do cap. IV - Modernização do semi-árido paraibano, de Duarte, Jonas (2002). João Pessoa, UFPB, mimeo 38 p. 297 No seu estudo Josué de castro analisa e compara os cardápios médios dos sertanejos e os moradores das áreas pobres das faixas úmidas de Pernambuco, Paraíba e Alagoas. O pernambucano conclui que quase sempre o sertanejo tem o leite (de vaca ou cabra), o milho e a carne (de bode, porco ou gado), completando uma ração que para ele se mostrava nutritivamente bem balanceada completando-se em sua composição. Já os “brejeiros” ou da zona da cana, não dispunha de acessibilidade ao leite e o acesso a carne era mais difícil, tendo ele que comprar.

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torresmo do milho nativo, adaptado as poucas chuvas, a carne seca da vaca magra, que dava seu leite de cada dia o mantinha vivo. O Tejo, o preá, a rolinha, a ave de arribação, o juriti, substituía a carne de boi quando esta faltava. Nas casas de vaqueiros e moradores dos grandes fazendeiros dos sertões, não faltava as “miúçaias”298 para o abate quando nas situações mais difíceis, ou nas festas de casamentos e aniversários. Os chiqueiros de porcos, os currais das cabras e os terreiros de galinhas eram a extensão da casinha de taipa que abrigava sua prole, mal vestida, descalça, mas quando não havia “imprevidência” no dizer sertanejo, arremediada, de barriga cheia. “Os quartos de bodes” eram pendurados nos caibros sobre o fogão de lenha fumaçante para assegurar a qualidade da carne a ser vagarosamente consumida. A fumaça fazia a vez da geladeira de hoje, impedindo a putrefação da carne. As tiras de carne de porco eram também penduradas próximo ao fogo de lenha para espantar os “bichos” que estragariam a carne. A caça era uma tradição na vida sertaneja. Caçava-se não por esporte, mas por necessidades. O preá, o peba, a codorniz e a rolinha eram os mais abatidos. No inverno, a arribação, uma pomba africana que migra para interior nordestino, quando chove, para reproduzir. Neste período a mesa era farta. O leite de vaca ou de cabra era mais acessível aos viventes dos sertões mesmo os mais pobres. Para os vaqueiros, já fazia parte dos salários, mandando a tradição que, o vaqueiro tinha direito ao leite de acordo com a quantidade de filhos que ele tinha. Para os que trabalhavam nas roças, longe da atividade pecuária, o leite quando era fornecido entrava nos descontos dos pagamentos salariais, com a “vantagem” de ser num preço baixo aos trabalhadores. Como a terra, nos sertões ressequidos era mais acessível, por se tratar de grandes extensões com pouca produtividade, o preço muito baixo, era permitido aos moradores criarem as miúçaias nas terras dos fazendeiros, sendo alguns problemas o caprino, animal arisco que no tempo do inverno o fazendeiro exigia que o prendesse, pois ele estragaria os roçados. O coronel sertanejo sentava a mesa com os seus homens. É dessa forma que alguns dos especialistas em Nordeste retratam a relação de dominação dos latifundiários com os seus trabalhadores.299 Opressor e protetor, o fazendeiro se sentia responsável pelo seu morador, com qual detinha relação de meia ou terça, fazendo com que o mesmo participasse de alguma forma, dos seus lucros. Por outro lado, comida como leite da fazenda era oferecido ao seu “protegido”. Dessa forma, quando o morador não tinha um animal em sua casa para tirar o leite, uma cabra geralmente, o fazendeiro fornecia em troca de algo. O milho, cereal de origem americana era cultivado e consumido em todo interior nordestino, tendo sua presença mais significativa no Agreste, cariri e Sertão da Paraíba, no Sertão e Agreste de Pernambuco, praticamente em todo o interior do Rio Grande do Norte e Agreste e Sertão das Alagoas. De várias formas se consumia o milho. A mais popular era o

298 No vocábulo sertanejo, usa-se o termo miúça para designar os bichos miúdos, animais de pequeno porte como bode, galinha e porco. 299 Sobre estas relações pode-se verificar em: Rui Facó, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Manuel Correia de Andrade obras já citadas neste trabalho.

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cuscuz de milho300 com leite, ou com bode cozido; nas casas mais abastadas com carne de sol (especiaria da Paraíba), ou ainda, com o queijo de coalho de leite de cabra ou de vaca. Além do cuscuz, cozido enrolado em panos pelo vapor da água fervente numa cuscuzeira de barro,301 instrumento doméstico básico em todo o interior do Nordeste, outras comidas de milho típicas daquela sub-região formavam a base alimentar daquelas populações. A “Orelha de pau”, um bolo, a base de massa de milho (o amido peneirado) com leite e ovos.302Também eram feitos, principalmente para as crianças, o mingau de milho e o Cural, em alguns lugares denominado canjica. Comia-se bastante o Angu e o Xerém, feitos a partir das sobras do cuscuz e de outras comidas em que o prato principal era feito a partir da massa do milho peneirada. O torresmo de milho e a fubá também participavam dessa base alimentar sertaneja.303 Durante muito tempo, o milho era “pisado” em Pilão,304 extraindo-se dele seu amido e separando-o da casca com arupemas,305 depois com peneiras a base de fios artificiais de náilon. Assim “escapava” o sertanejo. Lógico que não se pode esquecer a fome crônica que grassava permanentemente sobre significante parte da população mais pobre. No entanto, também é peculiar aceitar as teses de Josué de Castro e, voltando no tempo, de Euclides da Cunha, de que só uma alimentação muito forte permitia o sertanejo suportar trabalhos tão cruéis e pesados, mantendo-se saudáveis por grande parte da vida. Para Josué de Castro, concordando com a frase de Euclídes de que o sertanejo era antes de tudo um forte, isso só podia se confirmar devido a sua base alimentar, segundo ele, de alto valor nutritivo. Fato que Gilberto Freyre em seus estudos sobre o Nordeste também aponta, e Darcy Ribeiro no seu “O povo brasileiro”, confirma. Crítico da estrutura fundiária que priva a maioria da população ali residente da posse da terra, aquele bem básico à sobrevivência, e da estrutura política de mando e desmandos dos “coronéis” do Sertão, como também, da inadequação daquelas culturas de subsistência com o clima daquela parte dos trópicos, em seus estudos sobre a realidade nordestina, Celso Furtado também indica esta condição alimentar especial dos sertanejos. De fato, a economia de subsistência não resistia a alguns dias de verão prolongando-se sobre o inverno, desajustando toda a estrutura produtiva e entrando em erupção a fome e a

300 Também conhecido como Pão-de-milho. 301 Tradicional no interior nordestino eram as panelas de barros, desde as vasilhas do dia a dia até as mais requintados para as ocasiões especiais. O comércio de utensílios de barro movimentava importante fatia da economia sertaneja. Os vasilhames eram modulados artesanalmente e cozidos em fornos próprios para tal. 302 A orelha de pau é, com algumas variações o que se chama na América Central de Tortilla. 303 A importância do milho na alimentação sertaneja é vastamente conhecida e estudada. Todos que abordam o Nordeste voltam-se a este tema. Destaco aqui os comentários de Darcy Ribeiro quando observa o milho como cultura nativa e sua difusão pelo Brasil e pelo mundo. Também é importante citar a presença do milho nos romances e canções populares da Região, destacando-se as de Luiz Gonzaga e Rosil Cavalcanti que vincula as festas juninas do Nordeste com a colheita do milho. Nesta ótica, o Sertão nordestino seria a civilização do couro e do milho. 304 O Pilão era um instrumento a base de madeira, geralmente de troncos de árvores grossos que permitisse fazer duas aberturas nas extremidades, chamadas bocas do Pilão, formando grandes covas onde se colocavam os cereais que se desejava triturar. Esse trabalho era feito com outro pau com um reforço na extremidade, como uma cabeça. O Pilão foi a forma mais utilizada ao longo dos anos no preparo do alimento dos sertanejos. Suas descrições encontram-se nos romances de Guimarães Rosas, Raquel de Queiroz, Graciliano Ramos; nas músicas de Luiz Gonzaga e um gama de autores nordestinos. 305 Arupema ou Arupemba ou Urupema é uma peneira a base de folhas naturais da Uruba ou Urubá, da Taquara e da folha do Coco-catolé.

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miséria que alarmava a todos. Os poderosos, donos das terras e das gentes, na agonia da seca, buscavam formas de salvar seus ativos, muitas vezes dispensando seus “protegidos” das horas de “vacas gordas” para que buscassem a sobrevivência. Nestes momentos, aflorava o caos social nordestino. A chamada modernização, porém, alterou significativamente estas questões relativas a ração diária do sertanejo, a seu acesso a terra e por fim quebrou o seu isolamento econômico da dinâmica externa ao seu mundo, do capitalismo, este já sob a forma mais desenvolvida. Não é que tenha sido algo abrupto e imposto. Foi lento e gradual numa primeira fase (até fins dos anos sessenta) e muito acelerado a partir de meados dos anos setenta. Ao cabo deste processo, os sertões nordestinos sofreram fortes impactos em sua estrutura econômica produtiva, em sua cultura de solidariedade entre setores de classes sociais divergentes, na base de sua formação cultural e também, na culinária secularmente tradicional. A chamada modernização da agricultura mexeu com tudo e com todo o semi-árido. Economia, costumes e valores. Na estrutura produtiva local, a passagem do cultivo do algodão arbóreo para o herbáceo, de caráter temporário, significou em concomitância modificar o hábito da produção de cereais como o milho e o feijão apenas para o consumo familiar. Os cuidados a mais com o algodão herbáceo e o fato de, obedecendo as técnicas modernas de plantação, não o consorciar com produtos de subsistência, como o milho, feijão e a fava, alterava sobremaneira a circulação monetária entre aquelas unidades produtivas e o mundo exterior. Os agricultores passaram a necessitar adquirir externamente sua manutenção diária. Além do que, desencadeou-se processo intenso de comercializar a produção conseguida. Não apenas o excedente, mas praticamente toda a produção de milho e feijão, pois, entrara em cena, novas necessidades de consumo, não supridas pelos rendimentos anteriormente auferidos com a cotonicultura. A aquisição de implementos agrícolas, mesmo rústicos, mas principalmente de rações e produtos veterinários para seu novo rebanho, inseticidas para o novo algodão, mais susceptível a pragas, promovia descapitalização do agricultor. A derrocada da cotonicultura foi a gota d’água. Descapitalizados e envolvidos em novos padrões de consumo, no qual, o agricultor necessitava comprar quase tudo, desde o alimento até os utensílios domésticos, além de novas exigências educacionais, de saúde, até mesmo as novas opções de lazer, sem que o Estado oferecesse grandes melhoras gratuitamente, sacrificaram o orçamento familiar dos sertanejos, já historicamente irrisórios que agora sob os novos rumos dados pela “vida moderna” o torna mais dependente. Ainda no aspecto econômico viu-se mudar o eixo da cotonicultura que, durante parte do ano empregava grande contingente de mão-de-obra, chegando no período da colheita a empregar inclusive crianças e mulheres, para a pecuária bovina, que de leite ou de corte é na estrutura local poupadora natural de força de trabalho. Por outro lado os costumes foram “atualizando-se” aos impostos pela chamada modernidade daquele período. As louças, móveis e vasilhames domésticos, antes feito com matérias prima locais, ou adquiridos à custos muito baixos numa feira livre da cidadezinha ou vilarejo próximo, passaram a ser de materiais externos a sua realidade, adquiridos com altos custos. Até mesmo o transporte mudara. As tropas de burros são substituídas por veículos “feirantes” que cobravam passagens. Surge uma série de ofertas de produtos na

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vida cotidiana do sertanejo que o auxiliam na vida diária, permitindo mais conforto, alterando hábitos, no entanto, não promovendo aumento em sua renda suficiente a proporcionar-lhe tais aquisições sem grandes sacrifícios. Por outro lado, a ausência do estado na oferta de serviços sociais básicos o deixa despreparado para enfrentar conscientemente a nova situação. Aguçam-se as contradições com o mundo exterior que agora o envolvia com intensa oferta de produtos e valores. Dessa forma, a vida “moderna” das cidades brasileiras, aproxima-se da zona rural do semi-árido nordestino. A luz e a “liberdade” que a cidade aparentemente oferece o atrai. Os valores urbanos e suburbanos, agora difundidos através de aparelhos de rádio ou de TV, em sua sala pobre, de reboco, furada por longos anos de amarga miséria naqueles carrascais, com brilhos e formas de raras belezas, incandescem sua mente. Nem o cheiro forte da terra molhada quando cai as primeiras chuvas no torrão seco, nem a beleza do verde florescendo sobre a terra amada o anima a manter suas tradições de trabalha-la e dela arrancar sua sobrevivência.

Os tempos são outros. As facilidades maiores. Porém, sem nível de escolaridade que promovesse seus rendimentos, sem assistência que reduzissem suas despesas, o agricultor do semi-árido viu-se forçado a amargar outro tipo de carência. Faltar-lhe a comida tradicional dos produtos naturais ofertados pelo duro trabalho na terra. Agora, até o pão é de trigo e tem que ser comprado. O leite inatura ou em saco plástico, muito difícil e caro. A carne, ainda se consegue em abatedores clandestinos, improvisado num pé-de-pau, embora que, cada vez mais raros, pois as bodegas dos sítios onde se cortava o “cevado” praticamente fecharam, restando algumas com grande número de mercadorias, mas de produtos externos ao do seu mundo rural. Estas, importadas de outras partes do Brasil e até do mundo. Até mesmo o fubá de milho é comprado, pois, pisar ou moer milho para fazer o cuscuz requer trabalho muito pesado. Além do que, fazendo as contas o agricultor descobriu que fica mais barato comprar o fubá de milho do que produzir milho. Na atividade agrícola ele corre altos riscos de prejuízos, por secas ou pragas e quando obtém o lucro almejado, o preço do seu produto cai assustadoramente, não compensando o trabalho e os custos de sua produção. Agora a feira semanal é feita em “supermercados” onde sequer se conhece o dono para negociar um prazo no pagamento ou a redução do preço de um produto.

Essa realidade de modificações no cotidiano sertanejo provocou profundas mudanças de costumes e valores de sua gente. O trabalho duro, as vezes irracional, sem voltar-se ao negócio lucrativo, ao acúmulo de riquezas, alterou-se. Desenvolveu-se um tipo que se chama vulgarmente, de materialista, pois seu apego a ganhos materiais, financeiros, voltados a suprir suas necessidades imediatas ou alcançar minimamente promoção social supera aos ditames dos dogmas religiosos, antes, senhor de suas ações.

Passou a ser comum também, o trabalhador rural, ainda analfabeto, desassistido, carente de tudo recorrer a Justiça Trabalhista em busca de seus direitos, procurar sindicatos para denunciar relações de trabalho não adequadas. Fala-se em alguns vilarejos visitados na

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pesquisa em Indústria da Junta.306 O sertanejo conhecido como o homem que não pára de trabalhar, passou a preferir, em determinadas situações, o ócio imprevisto teórico ou legalmente, a trabalhar exaustivamente por migalhas salariais. Dizem alguns fazendeiros que se passou a viver no reino da vagabundagem. Tornou-se normal, depoimentos de trabalhadores indicando que preferem “passar fome a ter que pegar no cabo de uma Chibanca ou Picareta”.307

O trabalho duro, ardoroso do nordestino e sua disposição para enfrentá-lo, passou aos poucos, a ficar no mundo dos romances, ou restringir-se às gerações mais velhas. Mesmo com a chamada modernização da agricultura naquela parte do Brasil, pouco se utiliza técnica moderna no trato da terra e a tecnologia utilizada mantém-se com baixa utilização de capital intensivo. O principal instrumento de trabalho ainda é o braço humano, sendo as ferramentas apenas extensão da sua força. Pouco é utilizado a força motriz de motor automático, a base de energia elétrica ou de qualquer combustível, e a automação de um comando qualquer de um instrumento para realizar o trabalho necessário não existe. Dessa forma, entenda-se que a chamada modernização ocorreu em passos muito tímidos e ritmo próprio, alterando mais o sentido da produção rural do que as formas de se produzir.

A contradição entre o mundo em que vive e o mundo que ele assiste e imagina lá fora do Sertão provoca conflito de valores em sua mente. O censo demográfico de 1991 mostrou que, nesta área da Paraíba tinha naquele ano para cada filtro de água308 três televisores.309 Ou seja, para o sertanejo passou a ser prioridade a tela iluminada da TV do que a água que ele consumia ou consome. Casas de taipas, esburacadas, ideal para abrigar o “barbeiro”, inseto que transmite a “Doença de Chagas”, mobiliada apenas com uma mesa, quatro tamboretes, camas forradas por lastro de varas, ostentam em sua cuminheira310 uma antena parabólica, para na pobre sala, ligar-se a uma TV colorida, às vezes de 29 polegadas. Estas máquinas ou quem elabora suas programações passaram a influenciar fortemente os novos valores do interior sertanejo, aqui descrito alguns traços do da Paraíba.

306 No sítio Curralinho, município de Caturité, alguns moradores passaram a trabalhar em Campina Grande e João Pessoa. Boa parte deles trabalhavam alguns meses e quando se demitiam ou eram demitidos ameaçavam recorrer a Justiça do Trabalho, quase sempre se fazendo acordos. Os principais alvos destes trabalhadores eram a EMBRATEX em Campina Grande e a indústria da construção civil em João Pessoa. Os depoimentos de Ciço do Pulo que afirmou ganhar dinheiro de comprar um carro em dois anos na EMBRATEX e Nego Zuza que participou deste “negócio” indicam realmente a existência da Indústria. O “esquema” difundiu-se tão rápido que, na busca de trabalho numa construtora em Campina Grande, um destes trabalhadores, Antônio Leiteiro, me disse que quase não conseguia serviço, pois quando dizia ser oriundo daquele sítio os empregadores já conheciam a fama e não queriam emprega-lo. 307 Chibanca é o instrumento utilizado para a derribada das árvores no semi-árido. De ferro ela tem uma extremidade na horizontal e outra na vertical, no meio ela contêm um orifício onde se coloca o cabo de madeira. A chibanca era e ainda é utilizada para “arrancar toco”, ou seja, para extrair a árvore com raiz e tudo. Outro instrumento muito usado é a Picareta, semelhante a Chibanca, sendo que, com as duas extremidades pontiagudas, servindo mais para cavar buracos na terra, muitas vezes necessários para encontrar as raízes e arrancar as árvores. 308 O filtro de água é o instrumento de armazenar água potável para o consumo humano. Ele é geralmente de barro (para esfriar a água) e contém material cilíndrico poroso em que se filtra a água das impurezas. 309 IBGE, censo demográfico 1991. 310 No Sertão nordestino a parte mais alta da casa é chamada cuminheira.

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Costumes, valores e economia em descompasso com a crueza da realidade do semi-árido apresentam sob nova roupagem a pobreza desse interior. A população que ali permaneceu afasta-se rapidamente da cultura e dos valores tradicionais. Foram arrancados de suas raízes sem que, na nova cultura, fosse guardados os elementos positivos de uma formação de trabalho e enfrentamento com as dificuldades crônicas do lugar. Dominado pelos valores midiáticos, alheios a sua vida e meios aqueles remanescentes apenas esperam oportunidades para dali migrarem, seguindo a antiga e tradicional sina nordestina.

Na Paraíba essa realidade passou a dominar praticamente todo o interior. São dezenas de municípios espalhados pelo interior, com a grande maioria da população de idosos, cuja única renda é as aposentadorias do antigo FUNRURAL, hoje encampado ao INSS. Nestas cidades, comércio, serviços ou qualquer circulação monetária, só ocorre na prática, quando os recursos dos aposentados são pagos. Daí que a pobreza rural transpassa as cidades que são pouca coisa a mais do que a extensão do vazio econômico da vida rural. Cidades sem indústrias, de comércio sazonal vinculado à aposentadoria dos idosos e com baixa produção agrícola para um possível ingresso de recursos de outra parte do estado ou do país estas sobrevivem também do minguado salário dos servidores públicos municipais ou estaduais atuantes naquela praça.

Dependentes absolutas da administração municipal, estas populações, porém, não “modernizaram” os hábitos políticos numa direção da redenção social. O voto de cabresto, forma tradicional na prática política dos sertões, quando os trabalhadores e moradores dos grandes fazendeiros apenas serviam, com os votos, o seu senhor/patrão. Não havia possibilidades de um trabalhador ou morador de um fazendeiro votar contra o seu “patrão” ou quem por ele fosse apoiado. Caso isso acontecesse, esse trabalhador perdia o “patrão”, coisa terrível em um lugar que a única segurança era ter qualquer trabalho, mesmo nas condições precárias pelo “senhor” oferecida.

O voto de cabresto deu lugar, no entanto, ao voto mercadoria. Desassistida socialmente, sem empregos e sem rendas, essa população ver nas eleições realizadas, o único momento de conseguir algo. Qualquer coisa serve. Há os que pedem simples sandálias, até quem solicite do político, uma casa. O voto para este não é a arma anunciada da Democracia é apenas sua mercadoria. Diz-se franca e abertamente que o voto está à venda. Apenas uma minoria apresenta alguma visão para discutir ideológica e politicamente o seu voto. Essa relação nas eleições é mantida por todos os lados interessados. Os políticos e chefes locais vêem nessa forma a possibilidade de se perpetuarem no poder e manter a estrutura social vigente: “rico é político e pobre é eleitor”.311O nordestino que não vendia seu voto e era fiel ao seu chefe político começa a ser eliminado com a “modernização” do semi-árido e a explosão da crise econômica e social dos anos oitenta. As eleições de 1982 inauguraram uma nova fase na Paraíba. A era dos recursos de campanha destinar-se para a compra do voto diretamente. Prática já realizada há muito tempo, porém, comedidamente. Naquelas eleições associou-se de vez eleição a poder econômico e aquisição financeira do voto.

311 Frase várias vezes repetidas nas campanhas políticas pelos moradores quando está aberta a temporada de caça ao voto.

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A crise de lideranças políticas nos anos que se seguem e a onda de politização das massas com partidos políticos de esquerda com forte participação nos movimentos sociais e sindicais, além da militância de jovens da chamada igreja progressista, no interior, apenas reforçaram essa tendência, tornando o político dominante economicamente mais “cuidadoso” para não perder as eleições. Seus “cuidados” aumentavam proporcionalmente ao volume de recursos investidos na campanha, buscando comprar “consciências” para não sair do poder. Assim, a manutenção da fome, a miséria, a dependência política, agora a aculturação acelerada de parte desta população caracterizam a chamada modernização do semi-árido. Na Paraíba, é no disperso semi-árido que se concentra as mais altas taxas de pobreza do estado. Ao contrário do período em que Josué de Castro estudou as condições de nutrição do Nordeste, apontando a fome na faixa úmida mais grave do que nos sertões, baseado em dados reais de uma vida rural embrenhada numa caatinga que, por cruel que fosse, ainda permitia a retirada de seu sustento, sendo as secas periódicas o fator que detonava o caos social. A pobreza naquelas terras secas era muito grande. A carência enorme, mas havia a possibilidade do alimento. A carne de um bode, ou de um porco; a colheita do milho, de uma fava o do feijão. Mais acesso ao leite. Quase não havia despesas com alimentação. Com as alterações transcorridas desde o final da década de sessenta, nas décadas de setenta e oitenta, o homem do semi-árido da Paraíba foi separado dos meios de sobrevivência, sendo que sua renda, repetindo o que já foi mencionado neste texto, diminuiu. Dessa forma, se chegou no semi-árido da Paraíba a menores rendas do Brasil. Em levantamento publicado na Revista de Economia do Nordeste, os pesquisadores indicam que os cem municípios brasileiros onde a renda do responsável pela família é mais baixa estão localizados no Nordeste. Destes, ¼, ou seja, 25% na Paraíba e destes municípios paraibanos 24 estão no semi-árido312 (...)

(...) Para ilustrar a disparidade de rendas no Brasil, destacando a situação destes paraibanos viventes na região da seca em relação aos brasileiros de outra parte apresentam-se aqui alguns dados do mesmo período. A renda média mensal dos chefes de famílias no Brasil naquele ano era de U$ 160,42. Quase quatro vezes a dos moradores de são João do tigre na Paraíba. Certamente, se os pesquisadores que apresentaram este trabalho na Revista Econômica do Nordeste ampliassem os dados para uma amostra de 5% dos municípios brasileiros, ou seja, cerca de 250 municípios, praticamente todo o semi-árido da Paraíba constaria na amostra. Essa sub-região contrasta dolorosamente, por exemplo, com Brasília que tem uma renda média mensal por chefe de família de U$ 1.512,21, ou com a cidade de São Paulo que apesar de durante a década de oitenta receber o maior volume de pobres do Nordeste, ainda guardava em 1991, uma renda média mensal por chefe de U$ 605,95. De fato, o Nordeste neste período da modernização agrícola apenas modernizou.

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312 Lemos, José de Jesus Sousa (Coord.). Qualidade de vida nos municípios do Nordeste em relação aos municípios do Brasil: Fundamentos para o Planejamento do Desenvolvimento Sustentável da Região. In: Revista Econômica do Nordeste, V. 30, N° 3, p. 316-335, jul. -set. 1999.

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5. A ISUSTETABILIDADE DO MODELO DE GESTÃO DA ÁGUA DOCE 5.1. A Questão da Água313 A.- Contexto Mundial: O Desafio das Águas.

A questão da água emergiu na última década com a fúria de uma torrente espremida num cánion. A ONU cuidou de acender o estopim ao afirmar que faltará água potável para 40% da humanidade até 2050. Especialistas antecipam esse prazo para 2025. Hoje 20% da humanidade já não têm acesso á água potável (1,2 bilhões de pessoas) e 40% já não têm acesso a saneamento básico. Não é apenas uma carência quantitativa, mas também qualitativa. Ainda mais, afirma-se que a disputa pela água conduzirá a confrontos e guerras nesse terceiro milênio. Nesse sentido fala-se em “petrolização” da água e na água como “commoditie”. Um bem que parecia abundante e sem valor, agora é considerado precioso e raro. O “uso múltiplo” das águas pelo ser humano, quando a água é reduzida a “recurso hídrico” — consumo humano, dessedentação dos animais, produção agrícola, uso industrial, lazer, paisagístico, medicinal, etc — só faz aumentar a cobiça e o conflito. O grande capital trava uma luta monumental para controlar os mananciais de água doce do mundo. A privatização das águas tem esse objetivo, embora venha revestida de aparentes boas intenções como a da racionalização do uso da água.314

Embora os mananciais possam ser em parte eliminados, a falta de água vitima, sobretudo, os pobres. O ciclo das águas consegue repô-la de forma satisfatória, portanto, não faltará para todos. Quando se fala na falta de água para 40% da humanidade — um terço dos paises do mundo terá escassez permanente de água - então, é preciso ter presente que nenhuma pessoa com poder aquisitivo vai ter falta de água. Se a racionalização é inevitável, é evitável que o ônus da racionalização recaia apenas sobre os pobres.315 B - A situação da água: escassez privatização reações. A Privatização

Para transformar a água em mercadoria era preciso privatizá-la e valorizá-la economicamente. Então foi retomado o conceito neoclássico da escassez e ele foi aplicado à água. A escassez da água é um fundamento falso. Como diz o Prof Aldo Rebouças, “estão criando dificuldades para vender facilidades”. Hoje há pelo menos a disponibilidade média mundial de 6 mil m3 por pessoa por ano, para todos os usos. O mínimo exigido é de 1.000 m3. Portanto, a escassez é localizada. Porém, fala-se na escassez de qualidade —produzida pela depredação humana - ou criada artificialmente para justiçar a sua mercantilização. Dessa forma valorizou-se economicamente a água e ela transformou-se no negócio mais fantástico desse início de milênio. Mas para que ela seja uma mercadoria entre outras, é

313 Esta seção é constituída pelo documento Malvezzi, Roberto (2004). A questão da Água. Brasília, CPT, mimeo 8 p. 314 Malvezzi, Roberto: O limite das Águas. Agenda Latino Americana 2001, pg. 130. 315 Malvezzi. Roberto: Fazer Água, in "Àgua de Chuva”, Ed. Paulinas. S. Paulo. 2001 pg. 27.

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necessário privatizá-la. Por isso fala-se hoje na “Oligarquia Internacional da Água”316, isto é, um grupo restrito de empresas que atuam nos vários ramos da água e querem monopolizá-la em nível global. Essas empresas produzem um novo discurso sobre a água, produzem conhecimento, elaboram uma agenda, promovem eventos e colocam todos os desavisados a serviço de seus interesses e de sua ideologia. No ramo do saneamento estão mega empresas como a Suez e Vivendi. No ramo da água engarrafada estão empresas como a Nestlé, Coca-Cola, Danone, etc.

A água, entretanto, é um elemento vital, indispensável à vida e ao meio ambiente. Reforçada pelo desastre que têm sido algumas privatizações — seja do elemento em si ou dos serviços de água, a população teme e reage contra a privatização das águas e dos serviços de saneamento ambiental. Durante o governo de Fernando Henrique, forçado pelo FMI, sob o eufemismo de “condicionalidade cruzada” — exigência a troco de empréstimo --‘já tramitou no Congresso o projeto de lei que retirava dos municípios a titularidade dos serviços de água e esgoto, transferindo-a para os estados, a fim de facilitar a privatização desses serviços em bloco, negócios que podem chegar a 15 bilhões de dólares/ano.

Como disse o deputado Inácio Arruda: “O setor de saneamento brasileiro é um grande negócio. Seus serviços ainda hoje são públicos na ordem de 95 %, a despeito de umas quatro dezenas de privatizações. *um memorando firmado entre o governo brasileiro e o FMI a privatização do setor passa a constar como um dos aspectos essenciais da chamada reorganizaçâo do Estado brasileiro. *o memorando Brasil-FMI (de dezembro de 1999) consta o seguinte: “projeta-se (...) uma queda da dívida líquida do

setor público de um patamar de cerca de 52% do PIB em 1999 para cerca de 49% do PIB

no ano 2000, tendo em conta receitas líquidas de privatização equivalentes a 1,7% do

PIB”. Somente o negócio de água e esgoto teve no ano passado um faturamento de mais de US 10 bilhões, aproximadamente 1% do PIB brasileiro”.

Hoje essa questão está posta no cenário nacional de outra forma, através do PPP (Parceria Púbico Privada). É uma mudança de forma, mas que praticamente mantém o conteúdo que é a transferência dos serviços para a execução de empresas privadas.

Vale recordar ainda que privatizar as hidroelétricas é uma forma de privatizar as águas dos rios. O setor hidroelétrico dará as cartas com muito mais força no uso múltiplo das águas. Passa também pelo viés da privatização e da terceirização a transposição do rio São Francisco. Reação

A reação tem surgido de todos os lados na última década, principalmente de cientistas e ONGs ligadas às questões ambientais. Mas o setor popular também tem dado sua contribuição, principalmente no Brasil.

A situação da água apresenta uma situação de tal gravidade que a ONU, em 1992,

criou o Dia Internacional da Água. A escolha do evento foi ao encontro das sugestões das

316 Ricardo Petrella: Palestra no Fórum Social Mundial de 2004.

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Nações Unidas para que o dia 22 de março seja celebrado, a cada ano, em todo o mundo, com atividades concretas que promovam a consciência pública sobre o significado da água, cuja ocorrência em estado líquido é condição essencial para a existência da vida como a conhecemos no planeta Terra, ironicamente, coberto em dois terços de sua superfície pelas águas dos mares e oceanos.

Existe, inclusive, uma DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DA

ÁGUA, que dá detalhes sobre o cuidado com esse liquido precioso, conforme seu artigo primeiro: “Art. 1º - A água faz parte do patrimônio do planeta. Cada continente, cada povo, cada nação, cada região, cada cidade, cada cidadão é plenamente responsável aos olhos de todos.” A Reação Brasileira

Segundo dados mais recentes o Brasil possui 13,8% das reservas mundiais de água doce que escoa nos rios.317 A variedade regional é grande — em números aproximados 68,5% estão na região Norte, l5,7% no Centro Oeste, 6,8% no Sul, 6% no Sudeste e 3,3% no Nordeste318 —, mas o estado brasileiro com menos água per capita, o Pernambuco, tem uma disponibilidade média de 1.270 m3/pessoa/ano, o que o coloca numa situação de regularidade segundo os padrões da ONU319. Portanto, do ponto de vista da natureza, nenhum estado brasileiro encontra-se em situação de escassez.

A Constituição brasileira de 1988 já previa a criação de uma nova legislação da

água. A lei no 9.433 de 8 de Janeiro de 1997 instituiu a política nacional de recursos hídricos e criou o sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos. Em seu primeiro capítulo está a filosofia da lei:

I - água é um bem de domínio público; II - a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico; III - em situação de escassez, o uso prioritário dos recursos Hídricos é o consumo humano e a dessedentação dos animais; IV- a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas; V - a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos; VI - a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades.

317 ‘Secretaria de Recursos 1 Hídricos (MN4A): Plano Nacional de Recursos Hídricos pg. 14. Centro de Informação. Documentação Ambiental e Editoração. Brasilia. 2003. 318 MMA: Plano Nacional de Recursos Hídricos. Brasília, 2004. Pg. 16 319 CNBB: texto Base" da Campanha da Fraternidade de 2004. pg. 47, n0 83.

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Essa lei não previa a criação da Agência Nacional de Água ( AA ), já criada. A ANA tem poderes extraordinários. A brecha de participação da população sobre o gerenciamento dos recursos hídricos está nos “comitês de bacias”.

Essa legislação, considerada perfeita, sobretudo pela corporação técnica dos hidrólogos, na verdade abriu brechas para a privatização e mercantilização das águas brasileiras. Agora tramita no Congresso o Projeto de Lei 1616 que regulamenta a lei 9.433. Pessoas muito próximas da questão afirmam que sibilinamente um dos objetivos é criar o “mercado de águas”, através da transferência de outorgas. A mudança de governo, sobretudo a partir da Secretaria Nacional de Recursos Hídricos, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, de alguma forma oferece resistência a esse processo.

A Campanha da Fraternidade sobre a água, ao refletir sobre a legislação, percebeu que ela relativiza a prioridade do ser humano em qualquer circunstância, aborda apenas o valor econômico e ignora os demais — valor biológico, social, paisagístico, lazer, dimensão política, de gênero, de poder, etc — e não coloca a água no contexto dos direitos humanos. Além do mais nossa legislação é dispersa — as águas minerais, por exemplo, são regidas pelo Código de Mineração e estão sob gestão do Departamento Nacional de Produção Mineral -, não integra a gestão de todas nossas águas e a legislação atual sequer cita a questão fundamental da captação de água de chuva.

Porém, a lei tem o mérito de tentar disciplinar o uso de nossas águas de forma racional, a partir das bacias hidrográficas. O Brasil tem a maior rede de bacias hidrográficas do planeta, agrupadas em 12 regiões hidrográficas por proximidade geográfica, semelhanças ambientais, sociais e econômicas320. Essa questão é essencial porque é pelos caminhos das águas que avança o capital no campo, interferindo, ocupando e remodelando o espaço antes de comunidades indígenas e tradicionais. A forma como se ocupam os solos, como se devasta a vegetação, repercute diretamente no assoreamento dos rios e na contaminação dos corpos d’água.

Não dá para negar que nesse governo começa uma reação positiva ao quadro de depredação das nossas águas. A proposta de se criar um Plano Nacional de Recursos Hídricos, de forma democrática e participativa, é essencial. Porém, muitos rios brasileiros estão com seus dias contados, além de contaminados por lixo urbano, industrial, hospitalar e dejetos de garimpos. A construção ostensiva de barragens interrompe o ciclo da vida e a biodiversidade dos rios brasileiros diminui com assustadora rapidez. A dessedentação dos humanos e animais perde prioridade, na prática e ao arrepio da lei, para a irrigação e geração de energia. A irrigação, sobretudo, é um problema a parte, porque é ótima para produção, mas consome 70% da água doce do planeta, contamina com agrotóxicos as águas utilizadas, terminando por contaminar as águas do subsolo. Não há uma política nacional que vise o aproveitamento racional das águas de chuva.

320 Secretaria de Recursos Hídricos (MMA): "Plano Nacional de Recursos Hídricos”. p. 29. Centro de Informação. Documentação Ambiental e Editoração. Brasília. 2003.

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Diante de desafios tão imensos quanto dramáticos, é interessante ver o quadro das águas em sua distribuição sobre o planeta Terra. Embora com pequenas diferenças, todos os índices indicam na mesma direção. QUADRO DAS ÁGUAS

Localização Volume (1.000 m3

% Renovação

Oceanos 1.464.000 97,6 37.000 anos

Massas Polares 31.290 2,086 16.000anos Rochas Sedimentares 4.371 0,291 300 anos Lagos 255 0,017 1 a 1000 anos Solo e Subsolo 67 0,004 280 dias Atmosfera 15 0,001 9 dias Rios 1,5 0,0001 6 a 20 dias

onte:Ayrton Costa: Introdução à ECOLOGIA DAS ÁGUAS DOCES. Pg. 5 Universidade Federal Rural de Pernambuco. Imprensa Universitária. 1991.

PROJEÇÃO DA ESCASSEZ DE ÁGUA 1995 2050

população mundial 5,7 bilhões 9,4 bilhões suficiência 92% 58% insuficiência ( - 1700 m3 /ano) 5 5 escassez ( - 1000 m3 1 ano) 3% 18%

FONTE: ONU C -As lutas concretas Semi-árido: Fazer Água no Semi-Árido Brasileiro

No adágio popular “fazer água” é expressão que aponta o que está dando errado, como o “barco está fazendo água por todos os lados”. Em nosso caso, “fazer água” passou a ter um sentido positivo. Significa a atitude de aproveitar de forma inteligente e racional a abundância da água de chuva que cai sobre o semi-árido brasileiro.

A preocupação da elite com a água tem um teor economicista e instrumental. A preocupação do povo é de ordem vital. Abandonado pelo governo em todas as suas esferas, municipais, estaduais e federais, o povo do sertão do Nordeste está iniciando uma luta que inaugura uma nova etapa na convivência com o semi-árido. É a luta a pela captação de água de chuva através dos telhados nos períodos chuvosos, estocando-a para os períodos de estiagem. Uma dessas formas de ‘‘fazer água" é a ‘cisterna familiar’’ para abastecimento humano. Esses reservatórios construídos ao pé da casa, captando a água de chuva que cai sobre os telhados, têm resolvido o problema do abastecimento de milhares de famílias em toda a região. Por isso, também participamos ativamente do projeto “Um Milhão de

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Cisternas”, articulado pela ASA — Articulação do Semi-Ando —, que visa construir um milhão de cisternas em cinco anos em toda a região. As cisternas são elaboradas com cálculos científicos minuciosos, em termos de pluviosidade, dimensão dos telhados, número de pessoas nas casas, técnicas de construção, educação dos usuários, enfim, um trabalho popular de alta qualidade. As cisternas são inovadoras e abrem o campo para uma imensa revolução na convivência com o semi-árido brasileiro. Só o futuro poderá testemunhar todo seu potencial.

O projeto tem um potencial incalculável, mas bastam alguns indicadores para

tomarmos consciência mais plena de seu alcance: visa construir “um milhão de cisternas” e assim beneficiar “um milhão de famílias”. Como a média de pessoas nas famílias do semi-árido é de aproximadamente seis pessoas, beneficiará “seis milhões de pessoas” que hoje não dispõe de água potável. Como a capacidade média de cada cisternas é para “dezesseis mil litros”, o projeto criará condições para armazenas 16.000.000.000 de litros (dezesseis bilhões de litros) de água potável. O impacto sobre a saúde da população, sobretudo crianças e idosos, o alívio do trabalho feminino e inúmeras outras vantagens, só a história poderá dizê-lo. Mas, “fazer água” no semi-árido tem dimensões inimagináveis para aqueles que estão mais distantes dessa realidade. Água é questão de poder e quem tem água — aliado à terra — manda no sertão. Água é questão de gênero, já que buscar água é responsabilidade de crianças e mulheres. Água é questão religiosa, já que as secas foram atreladas pelos missionários aos pecados do povo. Água ainda é saúde, cidadania e liberdade. Não ter é subordinação, necessidade, doenças e miséria. Água, então, é decisiva para a verdadeira dignidade humana321. Rios e Ribeirinhos: recursos hídricos (peixes, animais, espécies, etc)

Umas das dimensões mais terríveis da depredação dos recursos hídricos é a agressão aos rios. O mundo ocidental fez deles o esgoto da civilização. Neles são lançados os dejetos domésticos, o lixo industrial, o lixo hospitalar, o mercúrio dos garimpos, são construídas barragens para geração de energia elétrica, deles é retirada a água da irrigação, assim por diante. O resultado não poderia ser outro. Grande parte dos nossos rios está degradada e até em processo de extinção, como é o caso do rio São Francisco. No Oeste baiano a monocultura da soja, eucalipto e café, eliminaram, entre subafluentes e nascentes, cerca de trinta mananciais do São Francisco em pouquíssimos anos. Quem mais sente este impacto são as populações ribeirinhas que não podem mais sobreviver da pesca, nem plantar nas terras de vazantes e sequer beber de águas contaminadas por mercúrio. A decadência dos pescadores artesanais, que a Pastoral dos Pescadores acompanha nesse país há mais de trinta anos, reflete de modo exemplar o que estamos afirmando. E essa também a luta da CPT do Amazonas, principalmente na organização da pesca e na preservação dos lagos. A CPT do Amazonas, em parceria com outras entidades, contribuiu para a delimitação de aproximadamente dois mil lagos como reservas de reprodução. Esses lagos são monitorados pelas próprias comunidades, que os exploram de modo sustentável ou os reservam exclusivamente para a reprodução dos peixes. Vale ressaltar que o estoque de indivíduos nos rios brasileiros, assim como de muitas espécies, têm diminuído de forma assustadora e praticamente irreversível.

321Roberto Malvezzi. Fazer água. Idem

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Barragens

A maior parte da energia brasileira é de origem hidroelétrica. As centenas de barragens espalhadas pelo território brasileiro são responsáveis por aproximadamente 90% da energia consumida no Brasil. O processo de construção dessas barragens impacta violentamente o meio ambiente e as populações atingidas por barragens. Agora, com a escassez de energia, a construção de barragens tornou-se ainda mais polêmica. O primeiro grande exemplo do que não deve ser feito foi a barragem de Sobradinho, no médio São Francisco, realocando 72 mil pessoas e inundando quatro cidades. A partir de Sobradinho, uma luta pioneira enfrentada pela CPT, outras regiões puderam organizar-se melhor para defender seus interesses diante da construção das barragens, inclusive, inviabilizando a construção de algumas, principalmente na bacia do rio Uruguai. E desse luta que surgiu o MAB, ainda hoje enfrentando a construção de barragens por todo Brasil. O governo brasileiro não investe em fontes alternativas de energia e sobrecarrega os rios brasileiros com a construção das barragens. Irrigação

A produção mundial de alimentos, sobretudo grãos, está alicerçada não apenas na chamada revolução verde — agora na biotecnologia, mas também na irrigação. Os dados mais recentes informam que a agricultura (principalmente a irrigação) já consome 70% da água doce mundial utilizada. No Brasil é um pouco menor a utilização da água em irrigação, cerca de 63%. Porém, o uso é crescente e compete diretamente com os demais usos, principalmente o consumo humano e a dessedentação dos animais. No Brasil a irrigação está voltada para a produção de grãos, frutas para exportação, mas também da cana irrigada para produção de álcool e açúcar. A soja tomou conta dos Cerrados, sobretudo no Oeste baiano. Agora a soja migra para o Norte, na direção do Araguaia e Tocantins, sempre em busca de água. Hoje, o entendimento é que, exportar grãos, significa, em última instância, exportar água. Produzir grãos em território alheio é poupar água no próprio território. Técnicas pesadas como pivôs centrais, irrigação por sulco, consomem ainda mais água que a micro aspersão. A humanidade terá que rever seu consumo de água para irrigação. Não existem recursos hídricos para que esse modelo de produção continue ao infinito.

Enquanto isso, os pequenos agricultores, principalmente dentro dos assentamentos,

às vezes não possuem sequer a água para beber. Compreender que água é um meio de produção tão indispensável quanto a terra ainda é um salto de qualidade que o movimento social não deu. Luta-se pela terra, ainda não se luta pela água como meio de produção. O acesso á água dependerá doravante de um instrumento legal chamado “outorga”. Esse instrumento de gerenciamento das águas — está na lei 9.433 - é importante do ponto de vista do disciplinamento do uso das águas, mas ele não é um ato meramente técnico. A outorga é também um ato político, social e ambiental porque é ela quem decidirá não apenas para “onde” vai a água, mas também para “quem” irá a água. Será sempre o Comitê de Bacias que indicará a outorga, mas cabe a ANA (Agência Nacional de Águas) a outorga das águas federais e aos órgãos estaduais responsáveis a outorga das águas estaduais. No rateio da água, os pequenos tenderão a ficar de fora.

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Quantidade de água para produzir alguns alimentos

Para produzir 1 Kg.

Quant. de água (litros)

Arroz 4.500

Trigo

1.500

Pão 150

Batata

150

Cereal 1.500 Carne de vaca 20.000 Verdura 1.000

Fonte: Plano Nacional de Recursos Hídricos, pg. 10.

Existem iniciativas nessa direção, ainda incipientes, sobretudo no semi-árido, com a

captação de água de chuva para a chamada irrigação de salvação. Capta-se a água de chuva em reservatórios pequenos e essa água é usada nos momentos em que falta a chuva para complementar o período de germinação das plantas. Dessa forma poupa-se água de chuva e produz-se alimentos sem investir nos aqüíferos subterrâneos ou nos rios. Essa irrigação, aliada à agricultura orgânica, é ecologicamente sustentável e pode abrir um novo horizonte na produção dos assentamentos e da pequena agricultura. Ainda mais: se a captação de água de chuva para a pequena irrigação é viável no semi-árido, pode ser muito mais em outras regiões mais chuvosas. Não há motivos para que os assentamentos fiquem aguardando apenas as chuvas, sem cooperar com a natureza, sem armazenar essa água para os períodos de estiagem. Contudo, o movimento social está longe de assimilar o binômio terra-água como meios de produção inseparáveis e indispensáveis. D – O Modelo Civilizatório e a Água. As contradições do modelo civilizatório estão nos seus próprios fundamentos. O atual modelo civilizatório, embora tenha avançado na imaterialidade, na virtualidade, não modificou os fundamentos energéticos da revolução industrial. Ainda consome água, petróleo, florestas e a biodiversidade em geral de modo devastador. Polui o ar, as águas, devasta os solos de forma quase que irrecuperável. Por isso, pela primeira vez, a humanidade toma consciência dos limites do planeta. A escassez dos recursos colocou a elite mundial numa encruzilhada: ou modifica os fundamentos predadores do modelo civilizatório, ou exclui grande parte da humanidade de seus benefícios, reservando para si os bens antes destinados a todos. Por isso, a luta pela terra, pela água, toda luta ambiental, vincula-se ao destino final da humanidade. Pensar os destinos do planeta a partir da água é pensar os destinos da humanidade.

--------x--------

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5.2. Energia a serviço da exploração capitalista322

Sociedade de consumo capitalista

Não são poucos os autores, técnicos, ou não, do setor elétrico separaram o debate da matriz energética do debate de modelo de sociedade que queremos ter e construir. O Movimento dos Atingidos por Barragens entende que fazer este debate somente na visão economicista, e ou tecnicista é limitar o debate. Esta forma interessa somente aos grandes grupos econômicos, produtores e consumidores de energia. “A energia é um fator estruturante da sociedade, pois definem e influenciam a sociedade, nos aspectos econômicos, financeiros, sociais, ambientais, culturais e políticos. (MORET,2004). A energia é estratégica para todos os tipos de sociedades, sejam elas capitalistas ou socialistas.

O Modelo de Sociedade Capitalista é predominante no Mundo. Esta sociedade tem dois alicerces: a exploração da mão de obra e a exploração dos recursos naturais. O parque produtivo capitalista, bem como as estruturas de “mercado” são cada vez mais dependentes da “expansão da sociedade de consumo de massa”. Este modelo trás em si uma grande contradição: quanto mais avança, mais pobres gera. Estes, por não terem renda, não tem acesso ao mercado. Isto gera “crise” no modelo, pois há excesso de produção e diminuição no consumo. Outra característica deste modelo é a concentração da riqueza. James Petras denuncia em seus textos que das 500 maiores companhias do mundo, 244 são dos Estados Unidos, 46 Japonesas, 23 Alemãs e 173 da união Européia. No item água e energia, um número reduzido de grandes grupos econômicos dominam o mercado mundial. A imensa maioria destas corporações tem como maiores acionistas os Bancos.

Qual a relação deste debate com o tema Energia? Para produção e circulação das mercadorias é necessário energia para manter em funcionamento todo esta infra-estrutura capitalista: produtiva, de distribuição (circulação de mercadorias), telecomunicação, etc... Seguindo este modelo, quanto maior a capacidade instalada de produção e comercialização, bem como de avanço técnico maior será a demanda de energia. A principal fonte de energia utilizada para movimentar este parque industrial é o petróleo e seus derivados.

Que é uma fonte finita. Talvez tenhamos, nestes níveis de consumo, um pouco mais de 20 anos para usufruir desta fonte.

Até o momento não foi anunciada publicamente a descoberta de sucedâneo capaz de

substituir o petróleo. A crise energética ameaça de morte o sistema capitalista. A Crise Capitalista A crise atual não é a primeira, mas talvez a maior delas. Em outras oportunidades a saída foi o aumento e a redivisão mundial das sociedades de consumo através das guerras

322 Esta seção é constituída por extrato do documento de Trierveiler, Marco Antonio, Cervinski, Gilberto, Dalla costa, Luiz e Zem, Eduardo (2004). Energia a serviço da exploração capitalista. Brasília, mimeo, 10 p.

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mundiais. Agora, expandir talvez não seja mais possível. A estratégia então está baseada em aumentar nos países periféricos, a exploração dos trabalhadores, a exploração (retirada) das riquezas naturais e a exploração da natureza. Destaca-se aqui a apropriação da água e da biodiversidade. Estratégia está que significa aumento na demanda de energia.

Aproximadamente 75% de toda energia do mundo é consumida pelos Estados Unidos e Europa. Para tanto é preciso apoderar-se de toda a energia (petróleo, barragens...) ainda existente e por isso a guerras patrocinadas pelos EUA no Golfo, no Afeganistão e no Iraque, bem como instalar novas infra-estruturas energéticas, de transporte e de comunicação para instalação e bom funcionamento das empresas capitalistas nos países explorados.

Está sendo assim no NAFTA, onde as grandes corporações, principalmente dos EUA, exploram a riqueza dos recursos naturais existentes no Canadá e a mão de obra barata existente no México. Na América Central também ocorre com o acordo Puebla- Panamá feito entre os países da centro América e o EUA. Este acordo prevê a construção de várias usinas hidrelétricas, estradas e hidrovias. Na América do Sul o projeto IIRSA do Banco Interamericano de Desenvolvimento-BID e da Corporação Andina de Fomento-CAF prevê a construção de várias hidroelétricas, estradas, hidrovias, aeroportos, estradas de ferro, etc. Locais diferentes, finalidades iguais. Somente na Amazônia, riquíssima em recursos naturais, este projeto previa inicialmente 10 hidrelétricas, 14 portos, 8 mil Km de estradas, 2 mil Km de ferrovias, 03 hidrovias, 04 aeroportos e 02 gasodutos, totalizando um investimento de 40 bilhões reais. Na grande maioria dos países- incluindo o Brasil- os governantes locais (nacionais e regionais) acabam apoiando e legitimando está estratégia, inclusive com suporte técnico e financeiro. O BNDES é um dos maiores responsáveis pelo financiamento das empresas do setor elétrico: 363 obras são financiadas com recursos do Banco. A Indústria da Barragem A eletricidade assume cada vez maior participação e importância como fonte energética. No Quadro 1 a participação da hidroeletricidade no consumo total de energia no Brasil.

O crescimento da utilização da eletricidade faz com que a indústria das barragens (tecnologia, turbinas, equipamentos de distribuição, empreiteiras, materiais de construção...) esteja entre a mais importantes “industrias” do mundo, junto com a indústria do petróleo, automobilística e bélica.

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Quadro 1: Distribuição do consumo final, segundo a forma de

energia secundária utilizada - Brasil, 1999 - participação

percentual

Derivados de Petróleo49%

Gás Natural3%

Carvão Mineral6%

Lenha/Carvão10%

Álcool/Bagaço14%

Eletrecidade18%

Dados da Comissão Mundial de Barragens (World Commission On Dams-2000) apontam pelo menos a construção de 45.000 grandes barragens no mundo com objetivo de atender as demandas de água e energia. Dois terços destas, construídas em países em desenvolvimento. As barragens no Brasil

Entre as formas de produzir eletricidade, a produção através da hidroeletricidade (barragens) representa mais de 79% de toda eletricidade produzida no Brasil. Existem no Brasil aproximadamente 2.000 barragens.

O Plano 2015 da ELETROBRÁS prevê a construção de mais 494 grandes barragens. Segundo a Eletrobrás, também existe um potencial que poderá vir a ser explorado em PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas), em torno de 942 novas barragens. Atualmente, segundo informações do MME, 50 grandes barragens se encontram em construção e nos próximos três anos de Governo Lula está projetada a construção de mais 70 grandes barragens.

No levantamento (Inventário) feito pela ELETROBRÁS, do potencial hidroelétrico brasileiro, 64% encontra-se na Região Amazônica, principalmente nos rios Tocantins, Araguaia, Xingu e Tapajós. Região do maior interesse para os capitalistas, pelas suas riquezas naturais. Atualmente há vários projetos nesta região, sendo pelos menos 03 grandes projetos: a Barragem de Belo Monte no rio Xingu-PA, e as Barragens de Santo Antonio e Jirau no rio Madeira-RO.

Para termos uma dimensão da indústria das barragens no Brasil, o faturamento das

empresas de geração em 2003 foi em torno de R$ 18 bilhões e na distribuição foi de R$ 30 bilhões. A maior parte destes recursos foram remetidos ao exterior na forma de remessa de lucro.

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Privatização da água e da energia Há duas concepções de ver a energia. Uma delas entende a energia como um serviço essencial a vida do ser humano e, portanto, necessário a toda a população independente da classe social. Outra é entender energia como uma mercadoria para fins de obtenção de lucro. Esta é a concepção que vem sendo aplicado pelo atual modelo brasileiro. Não só quanto à energia, mas também na saúde, na educação, na previdência, no transporte... na água. Mais de 70% do mercado de distribuição de energia já foi privatizado, basicamente com dinheiro público (BNDES/ Fundos de Pensão). No setor de produção, a proposta do governo Lula da Parceria Público Privada - PPP mantém o modelo de privatização. Junto com a energia está sendo privatizada a água. Após o lago da barragem formado, a empresa proprietária da barragem passa a definir o que pode ou não pode ser feito nas águas do lago. Em não poucos casos, o lago é cercado. Interesse Público x Interesse privado O debate de construção de barragens vem sempre acompanhado e justificado com a idéia do interesse público e da palavra “mágica” desenvolvimento. Na maioria dos casos, o Presidente da República emite a “desapropriação por utilidade pública”, que obriga a retirada dos agricultores das suas terras. Sendo a energia uma MERCADORIA, onde através dela os grandes grupos econômicos obtém LUCRO, podemos dizer que o “interesse” não é público, mas sim privado. Dos donos das barragens e dos donos das fábricas. O desenvolvimento não é de todos, mas sim particular. Isto fica ainda mais claro, pois cada vez mais, as barragens são feitas pelos intitulados “auto-produtores”, ou seja que produzem energia para consumo próprio. As barragens: fábrica de problemas sociais

A Comissão Mundial de Barragens (World Commission On Dams- WCD/2000) estimou que 1 milhão de pessoas foram expulsas de suas terras devido a construção de barragens no Brasil. Isto corresponde a 300 mil famílias. Oitenta milhões de pessoas atingidas no mundo. Dados do MAB apontam que a cada 100 famílias deslocadas, 70 não receberam nenhum tipo de indenização.

As famílias que permanecem a beira do lago da barragem, convivem agora com a desestruturação produtiva, econômica, social e cultura. Resta ainda o aumento das doenças de natureza endêmicas, o comprometimento da qualidade da água que afeta as atividades da pesca e agricultura.

Crescem também a violência, a prostituição e a disputa por trabalho, pois muitos

dos trabalhadores vindos de “fora” para construir a barragem acabam ficando na região. Barragens x Reforma Agrária

As experiência concreta dos atingidos por barragens, faz estimar que as barragens previstas pelo atual governo para o próximo período de três anos, desalojará 100 mil

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famílias, número maior de famílias do que o previsto para serem reassentadas pelo programa de reforma agrária neste período. Barragens e meio ambiente

Não existe energia limpa. Em maior ou menor grau, todas as fontes de energia provocam danos ao meio ambiente (Bermann, 2002). Autores tem apresentado a energia hidroelétrica como uma fonte energética “limpa, renovável e barata”. Não é verdade.

O principal gás causador do efeito estufa é o gás carbônico. Dados de 1999 apontam

que no Brasil, a emissão de gás carbônico pelas fontes energéticas foi de 315 milhões de toneladas. Nas barragens isto ocorre pela decomposição do material orgânico, emitindo gás carbônico e gás metano.

A fraude ambiental e a questão social da Barragem de Barra Grande - BAESA

A empresa de consultoria ENGEVIX elaborou o Estudo de Impacto Ambiental-EIA da Barragem de Barra Grande, no Rio Pelotas, divisa dos Estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. No Estudo a mata a ser alagada pelo futuro lago, foi descrita basicamente como capoeira. De posse deste EIA, foi solicitado a Licença de Instalação ao IBAMA. Isto antes da Licitação, fato não muito comum na época. O IBAMA, diz que de posse deste pedido o procedimento é verificar a campo os dados constantes no EIA.

Os relatórios técnicos informam que no dia de sobrevoar a área o avião “caiu”

ainda na pista e não foi feita a fiscalização. Mesmo que a vistoria não tenha sido feita, a licença foi emitida em 1998. A obra foi licitada já com a licença, e o Consórcio BAESA, formado pelas empresas ALCOA ALUMINIO SA, CAMARGO CORREA, COMPANHIA BRASILEIRA DE ALUMINIO-CBA e DME foram vencedoras. Após 80% da obra construída, a empresa solicitou a licença para desmatamento, o que desmascarou a realidade: aproximadamente 52 % da área a ser alagada é formada de mata primaria e de mata em estado avançado de regeneração. Uma das principais reservas de Araucária do Brasil está ali localizada. Muitas delas serão cortadas, ou ficarão debaixo do lago. Aplicando a política do fato consumado (80% da obra construída) o MME, a BAESA e Ministério Público Federal fizeram acordo para a empresa poder desmatar a área, em troca da compra de outra área. Mais uma vez o meio ambiente perdeu para a poder econômico dos grandes grupos econômicos. Os autores do EIA, a BAESA e os funcionários do IBAMA envolvidos na fraude continuam impunes.

A prática de deixar madeira sem cortar, durante e depois do enchimento do lago, é comum na construção das barragens. Dados da Comissão Mundial de Barragens (World Commission On Dams-2000) apontam que 60 % dos cursos d’água foram degradas ou fragmentados pela construção de barragens. Nos 34 mil Km² de terra fértil que foram inundados pelos reservatórios das barragens construídas, o que corresponde a 3,4 milhões de hectares, muita floresta, biodiversidade e fauna foram destruídas.

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Barragem e preço de energia Em recente estudo feito pelo Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico (ILUMINA), que levantou o preço de energia elétrica em 31 países, comprovou que o Brasil tem a 5ª tarifa mais cara de energia. O peso da tarifa na renda do trabalhador brasileiro é bem maior que em outros países. Outros países como Canadá e Noruega, que também produzem energia elétrica através da hidroeletricidade, ocupam o 29º e 30º lugar respectivamente.

Novamente fica comprovado: este modelo é concentrador de riqueza, pois a energia sai das barragens a um preço médio de R$100,00 e chega a casa do povo a um preço maior de R$ 400,00. Os mais prejudicados são os consumidores residenciais, que pagam tarifas mais caras, comparadas com a indústria e o comércio. De 1995 a 2004 a tarifa residencial teve um aumento real (descontada a inflação - INPC) de cerca de 50%, enquanto para a industria o aumento foi 23 %.

Mas, não é todos que pagam energia tão cara. As grandes empresas tem subsídios (desconto) nas tarifas. Veja o exemplo: a Barragem de Tucuruí-PA, construída com dinheiro público abastece de energia as indústrias de alumínio ALBRÁS, ALUNORTE e ALUMAR.

Estas indústrias, todas estrangeiras, compram energia de Tucuruí, ao preço de 23 dólares, ou seja , bem abaixo do custo de produção. Somente o subsídio dado à empresa norte americana ALCOA, dona da Albrás e Alumar, é mais de 200 milhões de dólares por ano. Este subsídio que vem sendo dado a 20 anos, já poderiam por exemplo, terem sido gastos para assentar 514.000 famílias pelo Programa de Reforma Agrária .

A Albrás e Alumar, controlada pela Alcoa/EUA, consomem por ano 11 bilhões de kw. Isso equivale a 15% de toda energia consumida pelas residências no mesmo período.

Energia para quê? Para quem?

O Quadro 2 ao lado mostra de que forma é consumida a energia no Brasil. Vamos observar de que o maior consumo é do setor industrial, e dentro deste destacamos algumas que pelas características são denominadas eletrointensivas, ou seja, consomem muita energia. São elas: Siderurgia, alumínio, papel e celulose.

Outras características destas empresas além do alto consumo: altamente poluentes, produzem para exportação (Tabela 1), além de gerarem poucos empregos (Quadro 3).

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Quadro 2: Distribuição do Consumo de Eletricidade no

Brasil - 2000

Comércio/Serviços14%

Residencial25%

Indústria Leve16%

Indústria Pesada32%

Transporte0%

Agropecuária4%Serviços Públicos

9%

Fonte: Bermann (2002)

Tabela 1. Distribuição por setor Industrial da Produção para o Mercado Interno e para a Exportação.

Setores Selecionados da Industria Pesada

Produção para o Mercado Interno (%)

Produção para o Mercado Externo (%)

Alumínio 28,7 71,3

Ferro-ligas 47,8 52,2

Siderurgia 59,4 40,6

Petroquímica 73,5 26,5

Celulose 56,7 43,3

Fonte: BRACELPA (1997,1998); ABAL (2000, 2001); MME (1997).

A Tabela 1 mostra que o Brasil é um dos maiores exportadores de energia subsidiada em forma de alumínio, ferro liga, papel, celulose, e outros produtos de alta demanda de energia. Isto significa na prática que estas matérias primas vão para fora do país e voltam de lá na forma industrializada. Este modelo contribui muito pouco para o desenvolvimento do Brasil. Mas para as indústrias...

Para produzir uma tonelada de alumínio é preciso 15.000 kWh de energia. Isso equivale a nove anos de consumo de energia de uma família. Porém, essa mesma indústria eletrointensiva praticamente não produz emprego – enquanto uma indústria da área de

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alimentação ou bebidas produz 70,2 empregos por GWh consumidos, a indústria de alumínio produz 2,7 empregos por GWh consumido (Quadro 3).

Quadro 3: Empregos Gerados por Consumo Energético em Setores Industriais Selecionados (empregos/GWh)

0,0

10,0

20,0

30,0

40,0

50,0

60,0

70,0

80,0

1

Alim. e Beb.

Cimento

Têxtil

Prod. Quim.

Celulose

Siderurgia

Alumínio

Ferro-Ligas

Fonte: IBGE (1996/1999); BRACELPA (1998), ABAL (1997/1998); ABRAFE (1997) e MME (1998).

Enquanto a energia é utilizada desta forma, 5.074.400 de residências não tem acesso à energia elétrica no Brasil, o que equivale a 20.297.600 habitantes.

--------x-------- 5.3 A usurpação do direito à água doce323 Avaliação preliminar

323 Esta seção está constituída por extrato de texto de documento da Defensoria da Água (2004). O Estado real das águas no Brasil (Sinopse 2003-2004) e anexos. Brasília, e-mail de 28 setembro de 2004, www.defensoriadaagua.org.br

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Na América do Sul, especialmente no Brasil, estão quatro das principais reservas estratégicas de água para o futuro da humanidade (Bacia Amazônica, Bacia do Prata, Aqüífero Guarani e Águas Costeiras) e já existem centenas de conflitos pelo uso da água em paises como Bolívia, Peru, Argentina Paraguai, Brasil, Uruguai, entre outros (alguns com conseqüências sangrentas).

Uma das mais sérias questões relacionadas à garantia dos direitos da sociedade em relação ao meio ambiente equilibrado, previsto no Artigo 225 da Constituição Federal e em toda a vasta legislação brasileira de meio ambiente e saúde, está na falta de cumprimento de nossas leis, gerando um clima de impunidade e descompromisso pelo seu não cumprimento.

No Brasil, como é de conhecimento geral (a própria ONU reconhece isso), cerca de 89% das pessoas que estão nos hospitais, foram vítimas da falta de acesso à água de boa qualidade, e água de má qualidade não significa água NÃO TRATADA, já que a água tratada que é oferecida à população não é tratada adequadamente, tendo em vista a deficiência tecnológica das empresas responsáveis por esse serviço. Além disso, conforme levantamento do Ministério da Saúde, temos mais de 15 mil áreas contaminadas com sérios riscos de exposição humana. A cobiça internacional O interesse internacional pelo domínio de nossas reservas de água tem crescido a cada ano, desde 1997, quando se realizou o primeiro Fórum Mundial da Água que iniciou a campanha mundial pela mercantilização do patrimônio hídrico de nossos países, mediante a promoção das privatizações dos serviços de água e esgoto, bem como de nossas fontes de águas subterrâneas. Para impor essa política aos governos dos países pobres, o Banco Mundial e o BID, vêm sendo os principais instrumentos utilizados pelos países ricos, através de projetos e legislações de gerenciamento dos recursos hídricos, predominantemente reducionistas e economicistas. Mediante acordos de “cooperação” esses organismos liberam recursos para pesquisa, em troca da obtenção nossas informações estratégicas privilegiadas que estão sendo repassadas diretamente a Washington, sem que nossa soberania seja respeitada.

O objetivo desses projetos é o mapeamento hidrogeológico de nossas reservas naturais, cujas informações posteriormente irão embasar a tomada de decisão de grandes grupos econômicos que vem comprando nossas terras, principalmente onde localizam-se as principais fontes buscando água, que passou a ser tratada como “mercadoria para lucro”. A partir do ano 2000, o Banco Mundial liberou 25 milhões de dólares para levantamento do potencial de exploração do “Aquífero Guarani”, maior reserva de água pura do mundo, localizada no subsolo do Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, com potencial de fornecimento de água para toda humanidade por trezentos anos. Com informações estratégicas, grandes empresas adquirem áreas localizadas exatamente nos

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principais pontos de afloramento e recarga, com total omissão dos Governos diante de tal “invasão”. Destaca-se aí o fato de empresas como Nestlê e Coca-Cola ampliam cada vez mais seu ingresso e domínio em nossos países. Além de adquirir fontes de água, financiam projetos de nossos governos para, com isso garantirem a cumplicidade e omissão oficial. No Brasil, por exemplo, a Nestlè é patrocinadora do PROGRAMA FOME ZERO, do Governo Lula. Em 2003 o BID financiou um projeto para estabelecimento do MARCO REGULATÓRIO que permitiria a privatização dos serviços de água do Estado de Goiás, onde estão parte das nascentes da Bacia Amazônica, da Bacia do Prata e do Aquífero Guarani. Em 2004 o Governo Marconi Perillo fez o serviço. Em 2003, o Exército Americano – mediante acordo de cooperação com o governo da Argentina, organizou expedições de esquadrões dos boinas verdes na região de Entre Rios, fronteira Brasil/Argentina, levantando informações de fontes de água, usando para isso a desculpa de prestar auxílio à programas de combate à dengue. Por traz do discurso do combate ao risco de terrorismo na tríplice fronteira, escondem-se interesses estratégicos na militarização daquela região, onde concentram-se dois dos principais insumos para a manutenção dos níveis de consumo dos países ricos: água e energia. Em 2004 o Banco Mundial liberou de 10 milhões de dólares para pesquisas e definição de marcos legais para a gestão das águas da Amazônia e o Governo se omite no combate à invasão de navios petroleiros internacionais que entram na região, abastecem-se de água que depois será trocada por petróleo por países estrangeiros. . A sociedade brasileira está vivendo um processo de insurgência contra as instituições que a oprime, cujos dirigentes vêm usurpando os princípios de que foram investidos. O clima de impunidade generalizada gera revolta e coloca em risco a estabilidade social com reflexos no aumento incontrolável da violência. A solução dos conflitos, por parte dos organismos públicos não tem sido eficiente. Nosso sistema Judiciário vive um colapso que resulta na descrença de que a justiça é possível (...)

--------x--------

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6. A DEMOCRATIZAÇÃO DO DESEVOLVIMETO RURAL 6.1. Economia camponesa: alternativa vigorosa de desenvolvimento rural A ideologia dominante durante toda a história do Brasil, desde a sua fase colonial até o momento atual sob a hegemonia do pensamento único neoliberal, é de que a grande propriedade da terra é a forma mais eficiente para responder aos desafios de um modelo de desenvolvimento rural que satisfaça às expectativas dos interesses econômicos nacionais e estrangeiros dominantes. Todavia, conforme já evidenciado em seções anteriores, essa concepção de mundo trouxe e tem trazido mais impactos negativos do que contribuições para um processo continuado de democratização da renda e da riqueza rurais (quiçá de toda a sociedade brasileira) e de afirmação da soberania nacional, seja amplo senso como nação seja relacionada, em particular, com a soberania alimentar. Desde sempre a economia camponesa no Brasil tem sido desprestigiada politicamente e desqualificada ideologicamente, a não ser nos discursos populistas, nas práticas de políticas públicas compensatórias ou nas ladainhas filantrópicas que vêm no camponês os resquícios de tempos românticos ou bucólicos de convívio com uma natureza sublimada. De fato, a ideologia hegemônica, sob diversos matizes, sempre reafirmou o caráter necessário e excludente da grande propriedade da terra, seja ela produtiva ou não, seja ela movida pelos braços escravos ou pelos assalariados temporários (bóias-fria) seja pela grande maquinaria contemporânea subsidiada pelo governo.

A ocupação de terras devolutas nas regiões dos Cerrados e da Amazônia pelo grande capital nacional e internacional reedita, sob novas formas de relação de apropriação, as sesmarias de outrora. Não é por acaso que juntamente com a expansão da fronteira agrícola verifica-se o maior número de casos de exploração da força de trabalho rural em condições similares àquela de trabalho escravo. No entanto, nos EUA, país que serve de referência cultural e econômica para a classe dominante brasileira, conforme Costa (2003: 14) “(...) a agricultura dos EUA continua em bases familiares. Os fundamentos familiares da agricultura americana têm sido enfatizados por autores como Cokchrane (1993), Johnson (1969), Veiga (1991), Goodman et alii (1987) e Abramavay (1992). Não obstante a controvérsia presente nos últimos anos, de que o setor estaria deixando de ser familiar, os dados dos últimos Censos Agropecuários reafirmam esse caráter: nos anos de 1992 e 1997, do total de estabelecimentos recenseados, nada menos que, respectivamente, 56% e 52% não têm qualquer trabalhador assalariado e 86% e 84% são estabelecimentos com no máximo 2 trabalhadores contratados, dos quais em torno de 70% deles contratados para trabalhos temporários, de menos de 150 dias de trabalho no ano. A dependência do trabalho familiar em todos esses casos, seja no trabalho direto, seja na gestão dos estabelecimentos, parece ainda inquestionável.”

“Pesquisas mais recentes, como o survey Agriculture Economics and Land Ownership Survey, feita pelo USDA em 1999, mostra que dos 2.133.909 estabelecimentos pesquisados, nada menos que 90,47% eram familiares ou individuais, além de 2,8% de corporações de base familiares. Mesmo os estabelecimentos maiores, com vendas acima de

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US$ 1.000.000, a participação dos estabelecimentos familiares chega a 50,83% e as corporações de bases familiares 25%. Se aplicarmos estas proporções ao Valor da Produção chega-se a seguinte constatação: 67% do valor da produção do setor provém de estabelecimentos familiares ou individuais. Se juntarmos a isso o valor das corporações de bases familiares chega-se a 84%” (...)

Mesmo em parcelas de intelectuais propensos a considerarem as possibilidades

históricas favoráveis de desenvolvimento da economia camponesa numa sociedade capitalista contemporânea como a brasileira, essa perspectiva sempre se colocou limitada pela restrição meramente ideológica de que o camponês não poderia desenvolver suas forças produtivas e nem acumular, ou manter uma reprodução social ampliada, sem que no processo de trabalho introduzisse as relações sociais de assalariamento, logo, capitalistas.

Conforme exposto no cap. 3, Repensando o referencial teórico do campesinato,

sugere-se de que é plenamente possível e aconselhável o processo de melhoria da qualidade de vida e das condições de trabalho camponesas, compatíveis com os padrões de consumo contemporâneas, sem que estes deixem de ser camponeses, conforme os conceitos adotados neste documento, e sem que a relação de assalariamento seja instituída como rotina na unidade familiar camponesa de produção. A hipótese dos camponeses serem subsidiados, como o são na economia norte-americana, européia, japonesa e em parte dos paises asiáticos, não é incompatível com o processo de acumulação camponesa (melhoria crescente da renda agrícola líquida) tendo em vista que as empresas capitalistas do agronegócio burguês são amplamente subsidiadas pelos governos sob formas diretas e indiretas.

Mesmo que os camponeses (agricultura familiar-sic) produzam maior volume do

que as empresas capitalistas na maioria dos itens básicos da economia agropecuária, são as empresas capitalistas aquelas mais beneficiadas com subsídios, conforme descreveu Bickel (2004): “historicamente, as políticas agrícolas têm priorizado a agricultura patronal e a agroindústria, em detrimento do fomento à agricultura familiar, que foi negligenciado. A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) comprova isto, com a desigualdade na alocação dos fundos: enquanto R$ 4 bilhões (20%) do fomento público à produção foram prometidos aos 4 milhões de produtores familiares (e menos de R$ 2 bilhões postos realmente à disposição) no último ano (2003), somente 500.000 produtores do agrobusiness receberam R$ 16 bilhões (80%). A Confederação Nacional das Associações dos Servidores do INCRA (CNASI-INCRA) mencionou valores semelhantes, ou seja, enquanto para o crédito rural, 96% dos estabelecimentos (ou a agricultura familiar) receberam R$ 6 bilhões, 4% (ou a agricultura patronal) recebeu R$ 20 bilhões ao ano324”.

Se acrescermos a essas vantagens relativas a negociação constante das dívidas dos

médios e grandes proprietários privados de terras, os financiamentos privilegiados da motomecanização agrícola, os subsídios indiretos à agroindústria e à exportação de produtos agropecuária poder-se-á sugerir que a rentabilidade dos empresários no campo é garantida pelos subsídios governamentais.

324 258 Entrevistas com os dirigentes do CNASI-INCRA e da CONTAG, Brasília, 14.03.2003.

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Ademais, é insuficiente e precário o argumento defendido pelos empresários rurais de que seria necessário um aumento continuado da escala de produção, aumento esse determinado pela competitividade internacional, porque nessa perspectiva deixa-se de considerar os aspectos sociais e ambientais, ambos necessários e indispensáveis num país como o Brasil, seja porque registra as maiores desigualdades sociais do mundo seja porque o meio ambiente é constante e violentamente depredado pelas empresas capitalistas que exercitam o modelo tecnológico convencional (com ou sem transgênicos) dominante.

Por outro lado, a agricultura norte-americana, também subsidiada como a brasileira,

apresentou índices de concentração da terra durante mais de 60 anos (índice de Gini) entre 1939 e 2000 com discreta variação, passando de 0,55 em 1939 para 0,6 em 2000 (cf. Costa, 2003: 6), ainda que “a par da forte redução no número de estabelecimentos, a unidade produtiva média tem crescido, seja em volume de receita, seja em volume de terras, seja em volume de capital (Costa, idem: 3)”.

No Brasil, em 1970 o índice de Gini de concentração da terra era de 0,843, portanto

altamente concentrado, e alcançou 0,856 em 1995, um dos mais altos do mundo. Com a expansão da fronteira agrícola e ocupação indiscriminada das florestas da Amazônia e dos Cerrados pelas grandes empresas capitalistas nacionais e multinacionais essa concentração fundiária tenderá a crescer.

6.2. Transição democrática socialmente includente e ecologicamente sustentável

Para que um processo de transição da situação atual de dependência e de subalternidade do campesinato aos valores econômicos e sociais dominantes para uma nova situação desejável de democratização da renda e da riqueza no campo se requererá não apenas uma nova compreensão teórica do campesinato que permita melhor situa-lo no âmbito de uma sociedade capitalista, mas mudanças estruturais profundas que democratização a posse e o uso da terra. Ademais, deverão ocorrer mudanças nos modelos de produção e tecnológicos que facilitem, ao mesmo tempo, um novo modo de apropriação da natureza e um outro perfil do hábito de consumo familiar de bens e serviço inclusive aqueles diretamente relacionados com o processo de trabalho ou com as rotinas de trabalho.

As estratégias para a realização dessas mudanças, em particular daquelas que se

referem às mudanças estruturais nas concepções do desenvolvimento rural, exigem a intervenção consistente do Estado. A estratégia central de mudança estrutura refere-se à reforma agrária massiva e ampla e à regularização fundiária.

No entanto, no que se refere a um conjunto de outras mudanças fundamentais como

aquelas nos modelos de produção e nos hábitos de consumo familiar, haverá um considerável espaço para as iniciativas camponesas com pequena presença de ações direcionadas das políticas públicas nacionais. Silva (2002) observa que “(...) a abordagem agroecológica propõe mudanças profundas nos sistemas e nas formas de produção. Na base dessa mudança está a filosofia

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de se produzir de acordo com as leis e as dinâmicas que regem os ecossistemas – uma produção com e não contra a Natureza. Propõe, portanto, novas formas de apropriação dos recursos naturais que devem se materializar em estratégias e tecnologias condizentes com a filosofia-base. Entretanto, três fatores fundamentais devem ser contemplados nessa problemática”:

⋅ a equidade enquanto um indicador fundamental da sustentabilidade dos agroecossistemas;

⋅ a diversidade e a compatibilidade cultural como base de construção de agroecossistemas biodiversificados e includentes e de uma pedagogia de troca de saberes;

⋅ a relação entre território disponível e capacidade de suporte dos ecossistemas e a organização espacial/territorial necessária ao desenvolvimento de sistemas agroecológicos de produção (...)”

A ruptura da dependência do campesinato das políticas públicas compensatórias,

por um lado, e dos grandes grupos econômicos transnacionais, por outro lado, exigirá mudanças em profundidade da matriz dominante de produção imposta como o caminho da modernização rural desde o início da década de 70. Adotada por parcelas do campesinato a mesma lógica do modelo dominante, ou seja, uma agropecuária capital-intensiva ou um extrativismo predador como a imposta pela agricultura industrializada e as frentes de expansão nos Cerrados e Amazônia, será muito difícil escapar da tendência dominante à especialização, em especial de grãos, e à sujeição ao capital multinacional.

Uma nova matriz de produção, com a conseqüente matriz tecnológica, necessita ser implantada para que os camponeses possam resistir ativamente à opressão do capital e superar o paradigma dominante no desenvolvimento rural do Brasil. Essa nova matriz de produção deverá atender a alguns critérios, tais como:

. substituição, no nível da unidade de produção camponesa, da importação de insumos para a produção;

. diversificação das atividades de cultivos, criações e extrativistas (estas quando pertinentes);

. redefinição das relações de convivência com o ambiente;

. geração de produtos do trabalho e de processos de trabalho saudáveis, sejam em relação à natureza, seja em relação ao consumidor;

. beneficiamento de produtos e subprodutos agropecuários e extrativistas;

. produção artesanal qualificada para o autoconsumo e para o mercado;

. diversificação da fontes de rendimentos através de multiatividades.

A substituição gradativa e parcial da importação de insumos para a produção exigirá, como exemplos, a produção interna de insumos como sementes varietais nativas, fertilizantes orgânicos, práticas de manejo de pragas e doenças. O mesmo é sugerido para a criação de animais. Essa substituição de importações implicará a adoção de uma nova matriz de produção e, por decorrência, de tecnologias que proporcionem uma relação mais equilibrada com o ambiente: a denominada agricultura, criação e extrativismo ecológicos.

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Os extrativistas, em particular os pescadores artesanais, ainda como exemplo,

necessitarão agregar valor aos seus produtos, em especial pelo beneficiamento do pescado, para livrarem-se das sujeições a que estão submetidos pelos atravessadores comerciais que lhes adquirem os produtos por preço vil em função dos processos de dívidas crônicas em que estes mantém os pescadores artesanais pelo fornecimento (venda) monopolista de gelo, de apetrechos de pesca, de motores, de barcos e de insumos para a manutenção que vai desde a comida até os serviços para a reforma dos barcos.

A mudança proposta significa o abandono, por parte dos camponeses da denominada agricultura industrializada apregoada pelo neoliberalismo e pela globalização econômica. Pressuporá, para as famílias agroextrativistas e de pescadores artesanais o desenvolvimento da capacidade de beneficiamento dos seus produtos e a criação de mercados solidários que os livrem dos cativeiros em que se encontram.

A matriz de produção e extrativista proposta para os camponeses, ao se caracterizar como novos e renovados modos de apropriação da natureza, deverá atender aos seguintes objetivos (Casado, 2.000: 65-66):

. Produzir alimentos de alta qualidade nutricional em quantidades suficientes;

. Trabalhar com os sistemas naturais mais do que pretender domina-los;

. Fomentar e potencializar os ciclos biológicos dentro da unidade de produção, implicando os microorganismos, flora e fauna edáficas, plantas e animais;

. Manter e incrementar, no longo prazo, a fertilidade dos solos;

. Usar, até onde seja possível, os recursos renováveis em sistemas agrícolas localmente organizados;

. Trabalhar, no possível, um sistema fechado, com especial atenção à matéria orgânica e os elementos nutritivos;

. Dar as condições de via aos animais de criação que lhes permitam desenvolver todos aqueles aspectos de seu comportamento inato;

. Evitar todas as formas de poluição que possam resultar das técnicas agrícolas;

. Manter a diversidade genética do sistema agrícola e seus arredores, incluindo a proteção plantas e do habitat silvestre;

. Permitir aos produtores retornos econômicos adequados e satisfação pelo trabalho, incluindo um ambiente de trabalho seguro;

. Considerar o amplo impacto que gera, a níveis social e ecológico, um determinado sistema de exploração agrícola.

A esses objetivos pode-se acrescentar o de manter corredores de matas entre

reservas florestais nativas para garantir a migração de animais silvestres terrestres.

Esses modos de se apropriar da natureza deverão constituir, em médio prazo, sistemas agropecuários e extrativistas com uma autonomia crescente perante os grandes grupos econômicos multinacionais. Porém, esses sistemas agropecuários e extrativistas deverão estar inseridos nos mercados capitalistas do país e do exterior.

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Tais mudanças permitirão, pela produção interna dos insumos necessários como sementes, mudas e sêmem, fertilizantes orgânicos, produtos para o controle de pragas e doenças, produtos farmacêuticos de origem local, etc., ou seja, pela substituição da importação de insumos:

. importante redução nos gastos com a compra de insumos que, aliado á redução de gastos com a produção de alimentos para o auto-consumo, permitirá a superação do endividamento crônico;

. dispensar ou não mais depender do crédito rural de custeio (e a médio prazo do de investimento);

. redução ou eliminação da dependência perante as grandes empresas nacionais e ou multinacionais de insumos;

. a produção interna (autonomia) de sementes, de mudas e do sêmem;

. produção de alimentos ecologicamente saudáveis;

. nova relação com os mercados em função da variedade e da qualidade dos produtos “in natura” ou beneficiados oferecidos;

. nova relação com o meio ambiente em decorrência de uma matriz de produção ecologicamente sustentável.

Os sistemas agropecuários e extrativistas camponeses encerram um conjunto de

características e uma multiplicidade de funções que conferem às suas atividades econômicas um caráter multifacético e, ao mesmo tempo, fortemente interconectado. Deste ponto de vista, esses sistemas têm princípios e práticas de gestão semelhantes aos da agroecologia. O manejo ecológico dos agroecossistemas não nega esses princípios e essas práticas; ao contrário, introduz novos elementos que fortalecem sua capacidade de produção e de reprodução econômica, social, técnica e ambiental. As principais características e funções econômicas cumpridas pelos sistemas camponeses de produção e extrativistas são as seguintes:

⋅ A economia camponesa é um sistema no qual se imbricam sub-sistemas de produção de bens e serviços voltados para o mercado, para o consumo da família e para reciclagens internas ao próprio sistema, gerando diferentes formas e fontes de renda e complementaridades técnico-econômicas;

⋅ A diversificação de atividades é um dos componentes centrais das estratégias de

produção e reprodução, sobretudo através da associação entre policultivo, agro-extrativismo e criações, distribuídos de forma equilibrada no espaço e no tempo. Ao mesmo tempo em que provê as diferentes necessidades produtivas e de consumo, a diversificação possibilita otimizar o uso da força de trabalho familiar, do espaço e dos recursos naturais e econômicos disponíveis, garantindo também maior flexibilidade na gestão do sistema, tanto para resistir a conjunturas adversas como para potencializar condições favoráveis;

⋅ Sendo uma unidade territorial e técnico-econômica de produção e consumo, a

empresa camponesa constitui igualmente uma unidade de relações organizadas

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em torno a valores, referências culturais, conhecimentos e projetos sociais, que são da mesma forma parte integrante de suas estratégias reprodutivas;

⋅ Enraizados num meio físico conhecido e sob controle, os sistemas familiares

mantêm uma relação positiva com o território, o que se expressa, sobretudo, na capacidade de valorizar e mobilizar as potencialidades próprias aos ecossistemas naturais e ao meio social em que estão inseridos, inscrevendo essas potencialidades como componentes estruturais de suas estratégias de reprodução econômica;

⋅ Contrariamente aos critérios de produtividade do empresário capitalista que visa

à maximização em curto prazo do lucro por unidade de capital investido em atividades particulares, a sustentabilidade econômica camponesa se orienta para a otimização em longo prazo da renda total gerada no conjunto do sistema;

⋅ A empresa camponesa é portadora de grande eficácia coletiva no campo

econômico. Através de uma vasta multiplicidade de atividades agrícolas e não-agrícolas sobre um território definido, ela provê um conjunto de serviços ambientais e contribuições ao desenvolvimento local, que configuram um bem público de elevado valor agregado ecológico, social e econômico como, por exemplo, ao promover a preservação e uso sustentado dos recursos da diversidade biológica e ao favorecer a circulação e o efeito multiplicador em escala local das rendas geradas na comunidade. (Almeida e Peterson: 2001)

As características e funções produtivas e reprodutivas acima expostas são parte

constitutiva da economia das unidades familiares e, como tal, se incorporam aos processos de gestão dos recursos socialmente disponíveis voltados para a produção de riquezas. A economia nos sistemas familiares responde assim a uma função estruturalmente inserida em todo um contexto social e ecológico no qual os sistemas produtivos encontram-se instalados. Sendo irredutível a uma racionalidade produtiva voltada exclusivamente para a geração de riqueza material monetarizada nos mercados, a empresa camponesa é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, um modo de produção econômica e um modo de vida. É na combinação desses modos que se estrutura a lógica econômica dos sistemas familiares e onde se interconectam as dimensões econômica, social, ambiental, cultural e valorativa.

Organizada em torno a essa racionalidade, e tendo seu funcionamento e suas perspectivas de sustentabilidade vinculados à capacidade de integração funcional dessas dimensões, a economia camponesa estabelece relações radicalmente diferentes daquelas mantidas pelas empresas agrícolas capitalistas entre produção e consumo; uso dos recursos e lucro; tecnologia e meio ambiente; ocupação econômica e remuneração; riqueza e dinheiro; seres humanos e natureza; produção e reprodução; mercado e renda; produtividade e eficiência; quantidade e qualidade; gestão e trabalho; entre cooperação e competição, dentre outras (cf. Santos, 2002).

--------x--------

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6.3. Democratizar o desenvolvimento rural325

(...) cerca de 52 milhões de brasileiros vivem no mundo rural embora nem todos dependam da agricultura para sobreviver. Outros 13 milhões são migrantes que se estabeleceram nas zonas metropolitanas nas últimas duas décadas onde tem uma existência precária na maior parte dos casos. Destes últimos, muitos mantém vínculos com seu mundo de origem e a ele voltariam se tivessem condições de sobrevivência garantidas.

Nos marcos de uma estratégia de democratização do desenvolvimento o mundo rural deverá jogar um papel crucial por poder oferecer oportunidades de emprego a custos mais baixos que os industriais, de serviços e até da construção civil. O Brasil será sustentável social e economicamente se apoiado em uma numerosa população rural e, em primeiro lugar, em uma numerosa população agrícola.

Está claro que rural não é idêntico a agrícola e que há outros empregos neste setor que o de agricultor. No entanto, para que prosperem outros empregos não agrícolas será fundamental a existência de uma próspera, dinâmica e sustentável agricultura familiar capaz de garantir demanda para outros serviços. O modelo de agricultura americano em que não mais de 2% da população ativa está vinculado às atividades agrícolas corresponde à uma geografia humana de grandes vazios ocupados por enormes fazendas mecanizadas ou pastagens empregando pouquíssima mão de obra. Isto é o oposto de um desenvolvimento social e economicamente sustentável, particularmente num país como o nosso em que a oferta de empregos urbanos está estagnada e a marginalização é a norma da existência de grandes parcelas da população.

O primeiro passo para estabilizar a população rural atual é a de garantir à mesma os direitos e serviços básicos para uma existência digna. Isto significa que o estado deve promover programas de habitação, saneamento básico, acesso à água potável, saúde, educação, eletrificação, transportes, comunicação, esportes e lazer acessíveis a todos os rurais, a começar com os 3,7 milhões de agricultores familiares e suas famílias. Estes programas podem ser realizados de imediato e darão um enorme impulso às economias locais e à diversificação das fontes de emprego e renda.

Experiências de ONGs de todo o Brasil mostram que estes programas podem ser realizados com a mobilização direta dos interessados e com custos baixíssimos quando comparados com programas entregues a empreiteiras. Tecnologias baratas e passíveis de serem utilizadas pelos próprios usuários já foram demonstradas, necessitando apenas serem apoiadas financeiramente para alcançar a generalização dos benefícios. Exemplo disto estão os programas de cisternas de placas no nordeste cujo custo, para beneficiar 2 milhões de famílias é de 2 bilhões de reais, nisto incluindo o custo das construções e de toda mobilização social para difundir a tecnologia. O acesso permanente à água de boa qualidade permitirá enormes economias em carros pipa e em saúde (em particular de crianças), sem falar na economia de trabalho para milhões de mulheres que hoje ainda buscam água em latas carregadas na cabeça.

325 Esta seção está constituída por extratos do documento de Weid, Jean Marc von (2002). Proposta de Programa de Desenvolvimento Rural. Rio de Janeiro, março, mimeo, 11 p.

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Outro exemplo é o uso de tijolos compactados que dispensam o cozimento e

empregam mínimas quantidades de cimento. Uma máquina de compactação custa hoje 5000,00 reais e produz, em um dia, suficientes tijolos e telhas para construir uma casa de 100 metros quadrados. Esta máquina pode ser levada ao local da construção em uma camioneta e a construção realizada por pedreiros locais com ajuda das famílias interessadas. 10 000 máquinas deste tipo permitirão a construção de mais de 10 milhões de casas de boa qualidade em quatro anos, atendendo a uma boa parte da população do campo, das aldeias e pequenas cidades a um custo de investimento de apenas 50 milhões. O custo de operação é apenas o combustível das máquinas e das camionetas e o pouco de cimento empregado.

Ainda outro exemplo é o das latrinas composteiras, feitas basicamente com latões usados ou feitos localmente com placas de alumínio em micro indústrias e com materiais de construção locais. Além de serem muito mais baratas que as fossas cépticas permitem a produção de composto que pode ser utilizado em fruteiras. [ Na verdade este composto pode ser utilizado em qualquer cultivo mas há uma resistência cultural ao seu uso em plantios anuais]. Com custos unitários de menos de 200,00 reais pode-se resolver graves problemas sanitários que provocam impactos na saúde de trabalhadores(as) e crianças.

O processo de resolução destes problemas básicos é tão importante como os recursos mobilizados para resolvê-los. A mobilização das organizações populares, desde o seu nível mais local, como as comunitárias até as entidades estaduais e nacionais, passando pelas municipais, envolvendo igrejas, sindicatos e outras formas associativas com apoio de ONGs e prefeituras permitirá não só uma grande economia de recursos como a construção de capacidades organizativas nos vários níveis que terá fortes efeitos no fortalecimento da participação cidadã dos rurais que poderá ser valorizado em empreendimentos econômicos a serem estimulados.

Estes pequenos investimentos terão efeitos econômicos e sociais imediatos, freando o processo de esvaziamento do campo que se dá, muitas vezes, pela precariedade das condições de vida e pela dificuldade de acesso aos serviços básicos como educação e saúde. Reforma agrária, pilar da reconstrução do mundo rural

A reforma agrária de FHC reivindica para si o mérito de ter assentado cerca de 500 mil famílias. Mesmo admitindo que o número seja exato, não podemos deixar de constatar que a forma como ela se faz não permite a sustentabilidade dos assentamentos que tem um índice de evasão admitido de 30% e um índice de rotatividade dos assentados não identificado e que pode chegar a 50%. Além disso, constata-se que para cada agricultor assentado há cerca de 3 que deixam o campo, mostrando que não basta fazer a reforma agrária mas que se deve apoiar o conjunto dos agricultores familiares, assentados ou não, para estabilizar e recuperar a importância desta categoria.

Os assentados vivem os mesmos problemas dos agricultores familiares que já tem terra, mas em grau mas agudo. De modo geral estão nas piores terras e com disponibilidades insuficientes para seu sustento. Será preciso dar terras de melhor qualidade

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e em quantidades suficientes para todos. No Brasil há cerca de 210,5 milhões de hectares cultivados ou em pastagens e disponibilidade de outros 120 milhões se explorados de forma ecologicamente racional. Isto é suficiente para disponibilizar cerca de 30 hectares de terra, em média, por família garantindo uma agricultura familiar com 11 milhões de famílias de agricultores.

Para chegarmos a esta estrutura agrária descentralizada será preciso eliminar a grande propriedade rural, latifundiária ou empresarial. Para realizar este objetivo será necessário um processo gradual de liquidação das macro propriedades, começando com os latifúndios.

Com o fim do crédito especulativo a disponibilidade de terras para a reforma agrária não é mais um impedimento. Segundo o INCRA há mais ofertas de latifúndios a serem desapropriados que recursos do estado para pagar as benfeitorias. Apenas se eliminadas as desapropriações crapulosas que beneficiam os latifundiários com indenizações milionárias e se utilizados todos os recursos estatutários destinados à reforma agrária seria possível triplicar o número de assentados por ano realizado pelo governo FHC, atingindo a meta de 1 milhão de assentados no próximo governo.

Por outro lado, será necessário alterar a legislação atual para estabelecer o tamanho máximo de propriedade em cada ecossistema, forçando o desmembramento das macro propriedades. Se eliminadas as grandes propriedades com mais de 1 000 hectares (cerca de 40 000) se conseguirá cerca de 150 milhões de hectares para a reforma agrária. Se considerados apenas as mega propriedades com mais de 10 000 hectares (1 724), as terras disponíveis alcançarão quase 50 milhões de hectares, suficiente para oferecer terras para 1,33 milhão de agricultores familiares com área média de 30 hectares.

O custo atual calculado pelo INCRA para assentar uma família de agricultores familiares é de 13 000,00 reais. Mesmo admitindo valores desta magnitude o custo total para assentar 1,33 milhão de agricultores será de 17,3 bilhões de reais em 4 anos, 4,32 bilhões por ano, em média.

Apenas a execução das dívidas dos grandes produtores com os bancos estatais já poderia oferecer grandes extensões de terras para a reforma agrária. Finalmente, uma legislação que puna os grandes produtores pelos seus impactos ambientais negativos (erosão, salinização, assoreamento de rios e reservatórios, poluição química, etc) poderá paulatinamente desestabilizar este setor. A base desta legislação já existe, a lei de crimes ambientais, e a aplicação de EIA-RIMA aos grandes estabelecimentos já permitiria exigir o controle do uso das tecnologias predatórias atualmente praticadas. Como veremos a seguir, as macro propriedades dificilmente conseguem produzir sem empregar estas tecnologias e a inibição do seu uso ajudará a fragmentação da propriedade. Agroecologia, base da sustentabilidade da agricultura

A crise da agricultura familiar tem várias causas, como já visto anteriormente. A dívida social com os rurais é uma delas. A histórica marginalização dos pequenos produtores, confinados às piores terras e aos ecossistemas mais frágeis e instáveis é outra.

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A insuficiência de terras é uma terceira. A subordinação ao setor comercial é uma quarta. A mais importante, no entanto, é a ausência de uma alternativa tecnológica adequada e sustentável.

Existem duas situações típicas para os agricultores familiares: aqueles sem recursos próprios e sem acesso ao crédito que empregam tecnologias tradicionais com baixas produtividades e que, nas condições de insuficiência de terras tendem a degradar o meio ambiente e esgotar os seus recursos naturais; aqueles, mais bem aquinhoados, que tentam aplicar as tecnologias dos grandes (a agroquímica) nos seus roçados e que acabam submetidos ao mesmo tipo de problemas que os grandes produtores (poluição ambiental, desgaste dos recursos naturais, endividamento, etc).

Os esforços recentes do governo FHC para tornar o crédito rural mais acessível aos agricultores familiares vêm, num aparente paradoxo, acelerando a crise destes produtores pois o mesmo vem vinculado ao uso de tecnologia agroquímica e vem levando estes produtores à falência. No governo e em setores da oposição esta crise é vista como uma fatalidade e a desaparição de grande parte da agricultura familiar uma inelutável tendência histórica.

Poucos questionam o fator maior que provoca esta crise que é a insustentabilidade da própria tecnologia escolhida como a única opção para a agricultura. No mundo inteiro, entretanto, pesquisadores e agricultores vem demonstrando que existem outras opções mais econômicas, sustentáveis e apropriadas para a agricultura familiar. Há quase 20 anos o Conselho Nacional de Ciências dos Estados Unidos comparou a performance agronômica e econômica dos agricultores orgânicos com os convencionais (agroquímicos) e verificou que os primeiros têm produtividades competitivas e custos mais baixos que os últimos. Os agricultores orgânicos americanos perdem na comparação com os convencionais apenas por não ter acesso aos subsídios que sustentam os altos custos destes últimos e porque, sendo poucos e dispersos, tem maiores custos na comercialização. Este fator e a existência de um mercado disposto a pagar mais caro por produtos de maior qualidade é o que explica os preços mais altos da agricultura orgânica nos Estados Unidos. Os mesmos fatores se aplicam na agricultura européia.

Apesar destas limitações, que são devidas à política econômica e não à racionalidade e eficiência desta opção tecnológica, a agricultura orgânica cresce exponencialmente nos dois continentes, em particular na Europa onde o sistema convencional vive crises fatais como a da vaca louca, a da salmonela, a da aftosa, a da poluição dos lençóis freáticos com adubos químicos, etc.

A base científica da agricultura orgânica é conhecida hoje como agroecologia. Esta ciência procura compatibilizar ao máximo os sistemas produtivos com a dinâmica do meio ambiente. O uso de produtos químicos é reduzido ao mínimo ou eliminado, substituído pela ciclagem de nutrientes, equilíbrio ambiental para reduzir a incidência de pestes e doenças e a seleção de variedades para maior adaptação às condições ambientais.

Os sistemas agroecológicos procuram mimetizar a diversidade e complexidade naturais dos ambientes onde se dá a produção e são, portanto, também bastante

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diversificados e complexos. São sistemas trabalhando com vários produtos numa mesma área e obtém uma produtividade total (volume total de todos os produtos obtidos em um hectare) maior que qualquer monocultura produzida no sistema convencional.

Esta diversidade de produtos tem outra vantagem, de tipo comercial. Um agricultor agroecológico nunca depende de um só produto para garantir a sua renda, escapando das oscilações de mercado que permanentemente põe em risco os agricultores convencionais especializados. Em um ano de altos preços de soja, por exemplo, um agricultor convencional que só planta soja pode ter um faturamento mais alto que um agroecológico que plante uma policultura diversificada mas em um ano de baixos preços de soja este último terá outros produtos a vender, compensando os problemas dos baixos preços da soja. Por outro lado, os custos mais baixos de produção do agricultor agroecológico o tornam mais competitivo em qualquer situação.

A agroecologia já vem sendo praticada no Brasil com sucesso por agricultores de todo o país e só depende de apoio público para tornar-se uma opção generalizada para todos os agricultores familiares. O próximo governo deveria ter por meta iniciar a transição da agricultura brasileira no caminho da agroecologia.

Por suas características de diversidade e complexidade a agroecologia não se ajusta a grandes explorações. Ela pode ser mecanizada mas em pequena escala pois a grande moto mecanização exige monoculturas uniformes contrárias aos princípios da agroecologia. É por isso que a agroecologia se ajusta perfeitamente à agricultura familiar e é dificilmente aplicável, na sua integralidade, pelas grandes propriedades. É claro que uma grande propriedade pode se aproximar mais dos princípios e práticas da agroecologia, utilizando rotações de culturas, adubos verdes, plantio direto e controles biológicos e integrados de pragas, mas não deixará de ser sempre um sistema com grandes extensões de monoculturas adaptadas à grande mecanização e, por isso mesmo, não deixará de ser vulnerável à pragas e doenças e cobrará o emprego de inúmeros agrotóxicos para garantir a sua produção.

--------x-------- 6.4. Perspectivas para o campesinato no Brasil

Consideram-se como camponeses um total aproximado de 8 milhões de famílias ou

32 milhões de pessoas (18,8% da população brasileira), mesmo tendo-se em conta a debilidade das estatísticas oficiais que permitam delimitar quantitativamente o campesinato (conforme seção 2.2.2. anterior).

A multiplicidade de formas de apropriação da natureza, de acesso formal ou de

usufruto da terra ou apenas de acesso aos recursos naturais e de relações sociais de produção que caracterizam o campesinato brasileiro torna não apenas difícil, mas insuficiente qualquer tentativa de se estabelecer metas de desenvolvimento para esses sujeitos sociais no seu conjunto. Sem dúvida alguma que para algumas frações desse

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campesinato, como o faz o PRONAF, é factível o estabelecimento de objetivos e metas para a implantação de algumas políticas públicas como a do crédito rural.

Entretanto, ao se considerar o universo camponês na sua totalidade, como aqui se

sugere, a proposição de objetivos e metas para o seu desenvolvimento, assim como das estratégias para alcança-las, só pode ser estabelecida como referências gerais ou em grandes números, estes sabidamente imprecisos, mas que teriam a finalidade precípua de indicar o que se deseja alcançar e a direção estratégica para tal.

Poderiam ser agrupados em cinco os grandes objetivos para a afirmação social do

campesinato no Brasil, para um horizonte de médio prazo:

⋅ desenvolvimento continuado e crescente de unidades de produção e ou extrativismo camponesas já implantadas e parcialmente consolidadas e sustentáveis;

⋅ resgate, reafirmação e consolidação econômica e social de unidades camponesas em situação precária, aqui incluídas parcelas dos assentados nos projetos de reforma agrária;

⋅ ampliação quantitativa do campesinato pela reforma agrária com a criação de novas unidades camponesas;

⋅ resgate da auto-confiança, da identidade camponesa e da cidadania plena das famílias camponesas;

⋅ reafirmação étnica, racial e social dos povos das florestas, dos extrativistas e dos quilombolas como sujeitos sociais no âmbito da diversidade camponesa.

Para a definição desses objetivos se utilizou referenciais. Assim, considerou-se

como: ⋅ unidades camponesas já implantadas e parcialmente consolidadas e sustentáveis

a totalidade das famílias camponesas que acessaram os créditos do Pronaf C e D em 2003, ou que teriam condições econômicas similares a essas unidades sem que tenham obtido crédito rural governamental, o que significaria aproximadamente 1,5 milhões de famílias.

⋅ unidades camponesas em situação econômica e social precária: agrupou-se a maioria daquelas unidades camponesas das regiões Nordeste, Norte e do Centro-Oeste, assim como parcelas menores das regiões Sul e Sudeste do país, que se encontram, mantidas as condições econômicas e sociais vigentes, num processo de reprodução simples, com precária infraestrutura produtiva e com baixas perspectivas locais e conjunturais de acumulação e que dependem da venda ocasional da força de trabalho familiar para darem conta da reprodução social básica da família, estimando-se um total de 6,1 milhões de famílias camponesas (2,6 milhões de famílias das 4,1 milhões consideradas como “agricultores familiares”, segundo o Plano Safra 2003/04) e 3,5 milhões de unidades de produção camponesa cujos estabelecimentos são considerados em situação econômica precária ou com insuficiência de área (Hoffman e Silva, 1999) e não contemplados nas cifras do Plano safra 2003/04 ;

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⋅ povos das florestas ou aquelas unidades camponesas que adotam como forma de apropriação da natureza o extrativismo, as quais juntamente com os quilombolas e parcelas de povos indígenas já camponeizados alcançam uma cifra de aproximadamente 400 mil famílias.

Um cenário global estratégico desejado para médio prazo deverá dar conta de um total de 11,6 milhões de famílias camponesas em processo de manejo dos recursos naturais que permitam o desenvolvimento de processos de produção e reprodução sociais, culturais e econômicos sustentáveis mantendo, resgatando e ou recuperando as bases bióticas e identitárias implicadas nesse desenvolvimento.

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