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O campo psicanalítico: considerações sobre a evolução do conceito Paulo Henrique Favalli*, Porto Alegre, BRASIL Resumo Esse trabalho pretende traçar a linha evolutiva de algumas tendências teóricas que tomam a situação analítica como objeto de estudo. Tais idéias desembocam na noção de Campo Psicanalítico como foi cunhada por Madeleine e Willy Baranger. O estudo parte dos trabalhos originais de Freud sobre técnica, segue através da visão kleiniana de transferência como situação total, destacando, principalmente, o acréscimo trazido pelo conceito de identificação projetiva. Nesse aspecto enfatiza as idéias de Bion quanto à relação continente/contido e finaliza expondo dois autores contemporâneos (A. Ferro e T. Ogden) por suas contribuições originais ao tema. Resumen Este trabajo se propone trazar Ia línea evolutiva de algunas tendencias teóricas que tienen en Ia situación analítica su objeto de estudio. Esas tendencias desembocan en Ia noción de Campo Psicoanalítico como Ia han concebido Madeleine y Willy Baranger. Empezando por los trabajos originales de Freud sobre técnica, sigue a través de Ia visión kleiniana de transferencia como situación total, resaltando sobre todo el aporte del concepto de identificación proyectiva. En ese aspecto subraya Ias ideas de Bion acerca de Ia relación continente/contenido y concluye presentando dos autores contemporáneos (A. Ferro e T. Ogden) por sus contribuciones originales para ese tema. Summary This paper is an attempt to delineate the evolutionary route of some theoretical tendencies that conceive the analytical situation as an object of study. Those ideas meet the notion of Psychoanalytic Field as etched by Madeleine and Willy Baranger. This study begins from the original Freud's papers on technique, follows through the kleinian understanding of transference, as a total situation, highlighting the enlightenment brought by the concept of projective identification. On this aspect it emphasizes Bion's ideas about the container/contened and conclude by presenting two contemporary authors (A. Ferro and T. Ogden) with their original insights on the subject. * Membro Efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre. Revista Latino-Americana de Psicanálise- FEPAL, v. 3, n. 1, julho 1999 23

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O campo psicanalítico: considerações sobre a evolução do conceito

Paulo Henrique Favalli*, Porto Alegre, BRASIL

Resumo Esse trabalho pretende traçar a linha evolutiva de algumas tendências teóricas que tomam a situação analítica como objeto de estudo. Tais idéias desembocam na noção de Campo Psicanalítico como foi cunhada por Madeleine e Willy Baranger. O estudo parte dos trabalhos originais de Freud sobre técnica, segue através da visão kleiniana de transferência como situação total, destacando, principalmente, o acréscimo trazido pelo conceito de identificação projetiva. Nesse aspecto enfatiza as idéias de Bion quanto à relação continente/contido e finaliza expondo dois autores contemporâneos (A. Ferro e T. Ogden) por suas contribuições originais ao tema.

Resumen Este trabajo se propone trazar Ia línea evolutiva de algunas tendencias teóricas que tienen en Ia situación analítica su objeto de estudio. Esas tendencias desembocan en Ia noción de Campo Psicoanalítico como Ia han concebido Madeleine y Willy Baranger. Empezando por los trabajos originales de Freud sobre técnica, sigue a través de Ia visión kleiniana de transferencia como situación total, resaltando sobre todo el aporte del concepto de identificación proyectiva. En ese aspecto subraya Ias ideas de Bion acerca de Ia relación continente/contenido y concluye presentando dos autores contemporáneos (A. Ferro e T. Ogden) por sus contribuciones originales para ese tema.

Summary This paper is an attempt to delineate the evolutionary route of some theoretical tendencies that conceive the analytical situation as an object of study. Those ideas meet the notion of Psychoanalytic Field as etched by Madeleine and Willy Baranger. This study begins from the original Freud's papers on technique, follows through the kleinian understanding of transference, as a total situation, highlighting the enlightenment brought by the concept of projective identification. On this aspect it emphasizes Bion's ideas about the container/contened and conclude by presenting two contemporary authors (A. Ferro and T. Ogden) with their original insights on the subject.

* Membro Efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre.

Revista Latino-Americana de Psicanálise- FEPAL, v. 3, n. 1, julho 1999 ■ 23

Paulo Henrique Favalli

Introdução

Com este trabalho procurarei fazer uma revisão diacrônica de uma linha de abordagens teóricas que tomaram a situação analítica como seu objeto de estudo. E uma evolução que desemboca na noção da existência de um campo interacional dinâmico onde ambos os participantes não podem ser compreendidos separadamente, pois constituem uma estrutura única irrepetível na qual o funcionamento mental do analista é estruturado também pelo paciente e, ao mesmo tempo, estruturador desse último (Ferro, 1995). Adotei a expressão "campo psicanalítico", cunhada por Madeleine e Willy Baranger, sem, no entanto, enquadrá-la numa definição fechada que apenas restringiria as diferentes alternativas de reflexão sobre esse conjunto de fenômenos.

Passo, então, ao relato dos principais movimentos que, ao longo do tempo, dominaram o pensamento analítico sobre o tema em questão.

As origens

Tomando a obra de Freud em seu conjunto, sabe-se do espaço restrito ocupado pelos trabalhos dedicados exclusivamente à técnica psicanalítica. Pode-se supor que a preocupação em dar uma consistência teórica aos achados de sua observação clínica desviou-o de um estudo mais profundo sobre a circunstância dessa própria observação: a situação analítica. Não pretendo dizer, é óbvio, que Freud esteve desatento às ocorrências surgidas em sua sala de consultas. Com o espírito arguto que lhe era próprio, pôde reconhecer a transferência e formular uma teoria coerente para esse fenômeno. Dessa teoria surgiu a necessidade de fixar os conselhos técnicos cuja vigência se mantém até hoje, constituindo a base para a prática clínica em qualquer das escolas da psicanálise freudiana. O que não pensou foi a ação recíproca exercida por ambos os participantes do par analítico e a influência dessa ação na constituição do fenômeno observado.

Em sua maioria escritos entre 1910 e 1915, os artigos de técnica são explícitos quanto à atitude do analista como observador neutro e distante de seu objeto de estudo, a mente do analisando. São recomendações coerentes com os propósitos proferidos para a terapia e expressos na consagrada formulação: tornar consciente o inconsciente, preenchendo as lacunas de memória. O descobrimento arqueológico dos conteúdos reprimidos da mente, visando a reconstrução de uma suposta verdade histórica, exige uma postura livre de quaisquer interferências externas e, principalmente, daquelas originadas na própria mente do pesquisador. Assim colocada, a tarefa analítica seria consumada com simplicidade, se não fossem as resistências interpostas pelo paciente. Foi na batalha contra os baluar-

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tes resistenciais que Freud pôde reconhecer, pela primeira vez, que a atitude do paciente em relação a ele, dentro da sessão analítica, não decorria de qualquer elemento da realidade, pois se enlaçava com o processo associativo, obstruindo-o no intuito de proteger arduamente a lembrança retida no inconsciente. Observou que as associações não eram tão livres como supunha, pois tendiam a ser desviadas para a própria relação com o analista, buscando atuar com esse o, então chamado, complexo patogênico reprimido. Mas, se a atuação implica em resistência ao método, pois o paciente repete para não lembrar, ela também é reveladora, já que situa o analista como verdadeiro protagonista da cena inconsciente que ele tenta descobrir. Configuram-se aí alguns paradoxos, pois a "resistência mais poderosa ao tratamento" constitui-se, também, num poderoso instrumento do método já que "não se pode vencer um inimigo ausente ou fora do alcance". Por outro lado, ao revelar o inconsciente, a transferência induz a novas resistências, pois é particularmente difícil admitir um impulso reprimido, se ele tem que ser revelado diante da própria pessoa com quem se relaciona. Essas observações de Freud definem a fragilidade de sua proposta inicial de um analista-observador neutro, posto que sua simples presença interfere no campo observado. Surge novamente com a problemática da sugestão e, para contrapor-se a ela, Freud agrega a seu método as conhecidas recomendações técnicas. No entanto a tentativa de criar um analista isento, "purificado" em seu funcionamento mental, revela-se inviável, mesmo com o exercício de uma reciclagem analítica a cada cinco anos, como sugeriu em 1937. Sendo assim, a análise, até então ocupada com o âmbito intrapsíquico, volta-se, forçosamente, para o estudo do contexto relacionai como via possível de acesso ao mundo interno.

Penso que o momento no qual Freud melhor apreende aquilo que mais tarde viria a constituir o conceito de campo analítico está na proposição que a comunicação entre paciente e analista possa ocorrer de inconsciente para inconsciente. Essa parece ser uma noção facilmente aceita por qualquer um que tenha feito a experiência de atender pacientes em análise. O que não encontramos em Freud é a definição dos mecanismos psíquicos que regem essa comunicação. Tal definição será um marco decisivo no entendimento da situação analítica e origina-se da a expansão ocorrida na psicanálise com o advento da teoria das relações de objeto:

Os desenvolvimentos

A tentativa de expor uma história "natural" do tema que estou abordando passa, necessariamente, pelas contribuições de Melanie Klein. Se, para Freud, a transferência surge, na análise, como poderosa resistência, mas se converte num valioso instrumento da cura, para M. Klein esse status amplia-se radicalmente.

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Da condição de simples auxiliar no processo analítico, a abordagem da transferência passa a confundir-se com a essência desse processo. A idéia básica é que a relação permeia a totalidade da vida mental do paciente, atraindo sobre si o foco do trabalho da análise. Isso significa que devemos buscar compreender o que a análise está representando, inconscientemente, para o analisando, a cada momento específico (Klein,1943,1952). Essa posição baseou-se num modelo teórico divergente daquele exposto por Freud, visto que parte da idéia de que o conteúdo transferido não se restringe apenas a eventos ou personagens pretéritos que são reeditados na relação atual com o analista. O modelo kleiniano decorre de uma noção de mundo interno como um espaço, ou "cenário", onde se relacionam "personagens" - objetos - construídos e coloridos pelos contínuos processos de introjeção e projeção presentes desde o início da vida. Transferência, portanto, é a reprodução, dentro da situação analítica, das relações mantidas entre os objetos constituintes do mundo interno.

Do ponto de vista metapsicológico, pode-se dizer que o destaque dado, até então, ao mecanismo de repressão, cede espaço aos processos projetivos. O conceito de identificação projetiva, introduzido em 1946, amplia a percepção sobre os processos mentais que agem na relação analítica. Isso, no entanto, não foi intuído diretamente por Klein, mas sim por aqueles que seguiram seu pensamento, principalmente por Bion. Ao perceber a ação da identificação projetiva no material de algum paciente, ela interpretava, sempre, como uma ocorrência restrita à mente desse; nenhuma menção era feita aos sentimentos despertados dentro do próprio analista e, caso isso fosse cogitado, ela diria que tal analista precisaria de um pouco mais de auto-analise (Spillius, 1988). Uma posição paradoxal, diante do vasto campo de investigação dos fenômenos intersubjetivos que sua conceitualização da identificação projetiva trazia à psicanálise.

M. Klein permaneceu inflexível quanto à exigência, ao analista, de manter-se imune às pressões exercidas pela mente do paciente. Mas, apesar dessa postura, foi a observação sobre os processos de identificação projetiva que permitiu que alguns analistas, principalmente da escola kleiniana, se dedicassem ao estudo da contratransferência e de sua utilidade no conhecimento da situação analítica.

A condição, atribuída à contratransferência, de veículo de acesso às produções inconscientes do analisando, significou uma transformação radical no entendimento da relação analítica. É consenso que o marco dessa transformação foi o trabalho publicado por Paula Heimann em 1950, sob o título "On counter-transference". A partir daí a mente do analista passa a compor, junto com a do paciente, os objetos da observação analítica. Essa autora desfaz a idéia de um analista impassível e emocionalmente imune às manifestações do paciente. Ela considera que, sob o termo "contratransferência", se reúnem todos os sentimen-

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tos que o analista vivência em relação a seu paciente os quais devem ser vistos como uma criação desse último, uma parte de sua personalidade. Heimann funda aqui a chamada concepção totalística da contratransferência. Sua posição é coerente, pois ela se mantém fiel ao postulado freudiano de neutralidade do analista, visto que esse, mesmo reconhecendo os sentimentos que lhe são provocados, deve subordiná-los à tarefa analítica, na qual será sempre o reflexo do paciente em um espelho (Heimann, 1950).

Simultâneos ao trabalho de P. Heimann e igualmente inovadores foram os estudos desenvolvidos por Heinrich Racker sobre a contratransferência (Racker, 1948,1953). Ele unifica, definitivamente, o binômio transferência/contratransferência, pois define a função ativa da mente do analista na criação do contexto relacionai. Esse fora sempre pensado (inclusive por P. Heimann) como uma ação centrífuga, isto é, o paciente é quem transfere, é quem projeta; mesmo que sua projeção desencadeie um movimento "contra" dentro do analista, é ainda o paciente o sujeito dessa reação. Racker, por sua vez, é inequívoco ao afirmar que, apesar de sua própria experiência de tratamento, o analista não está livre de seus conflitos inconscientes: "parte de sua libido ficou ligada na fantasia -aos objetos introjetados - e, portanto, continua disposta a ser 'transferida'." (op.cit., pg.101). Sendo assim, postula que a transferência pode ser encarada como "uma função das transferências do enfermo e das contratransferências do analista" (op.cit., pg. 117). Diz que, com freqüência, se misturam, no paciente, projeção e verdadeira percepção. Essa última detecta, seja no tom de voz ou na formulação da interpretação, o estado emocional do analista, o que, sem dúvida interfere na expressão transferenciai. Constitui-se, dessa forma, uma verdadeira "neurose interpessoal — 'Ia névrose à deux' - que costuma surgir na situação analítica, embora, em geral, com diferente intensidade em um e outro dos dois participantes" (op.cit .pg.147). Portanto, ao reconhecer que uma determinada expressão transferenciai incita determinada reação contratransferencial, Racker não deixa de referir que esse é sempre um movimento de dois sentidos ou seja, uma situação transferenciai também corresponde a um determinado contexto contratransferencial. Dessa forma lança as bases do que, mais tarde, viria a se conceituar como o "Campo Psicanalítico", ainda que não o tenha nomeado explicitamente.

Outros autores também se ocuparam das possíveis alterações surgidas no campo por interferência da patologia contratranferencial. Entre estes despertam especial interesse os trabalhos de Money-Kyrle e Grinberg, especialmente por sua tentativa de elucidar ocorrências perturbadoras da situação analítica observando o funcionamento interpessoal à luz de conceitos que até então se restringiam ao âmbito intrapsíquico, ou, mais especificamente, o conceito de identificação projetiva. Money-Kyrle (1956) toma como ponto de partida o que os recíprocos processos de identificação projetiva e introjetiva podem causar no funciona-

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mento mental de cada um dos componentes da dupla. Esses processos, até então abordados apenas em sua expressão patológica, agem, igualmente, sobre o que o autor chama de contratransferência normal. A capacidade do analista de estar identificado introjetivamente com o paciente permite senti-lo e compreendê-lo dentro de si e, por conseqüência, reprojetá-lo sob forma de interpretação. O processo se perturba quando o self do paciente, ou seus objetos internos, correspondem, de forma demasiado próxima, a algum aspecto do analista que esse ainda não alcançou compreender, envolvendo analista e analisando em um contexto de não entendimento e confusão propício a gerar desvios no andamento da análise. León Grinberg, em uma série de trabalhos correlatas (1956, 57, 58, 63), ocupa-se com uma reação específica provocada no analista quando esse se situa como receptor passivo da projeção maciça que o paciente faz de seus próprios objetos internos. Nessa ocorrência, que ele denomina "Contraidentificação Projetiva", o analista se vê levado a desempenhar o papel que, de forma ativa - ainda que inconscientemente - o analisando forçou para dentro dele.

Campo psicanalítico: uma exposição do conceito

Em 1961 o casal Madeleine e Willy Baranger retoma o tema da situação analítica, contestando as abordagens anteriores que a descrevem como uma situação de observação objetiva. Partem dos pressupostos desenvolvidos por Heimann e Racker sobre a contratransferência, mas não se restringem à sua função de indicador das ocorrências transferenciais. Lançam, assim, um novo conceito, o "Campo Psicanalítico", com o qual pretendem avançar a compreensão dos fenômenos observados na situação de análise. Ao conceberem-na como campo dinâmico, esses autores definem uma "situação de duas pessoas indefectivelmente ligadas e complementares enquanto está durando a situação, e envolucradas num mesmo processo dinâmico. Nenhum membro dessa dupla é inteligível dentro da situação sem o outro" (Baranger, M., Baranger, W., 1961-62, pg.129).

Esse conceito pode ser melhor apreendido se o enfocamos a partir de suas características estruturais. Assim sendo, o campo se estrutura, primeiramente, dentro de um enquadre funcional. As dimensões de espaço e tempo delimitam esse enquadre, relativizando e sendo relativizadas pelos demais elementos que o constituem. Dentro dessa moldura de espaço e tempo, desenha-se o diálogo analítico como outro elemento estrutural básico. Englobam-se aí as diferentes expectativas de um par assimétrico, os papéis e tarefas de cada um, as experiências subjetivas individuais e as manifestações dessa subjetividade no diálogo. As características específicas desse diálogo (associação livre e atenção flutuante) bem como as condições em que se desenvolve (setting, abstinência, interpretação etc.)

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induzem à regressão em ambos os participantes. Para o analisando ela é permitida e necessária, ainda que sujeita aos limites da expressão verbal. Para o analista pode significar uma tentativa de sentir, o mais próximo possível, o nível de funcionamento do analisando, desde que deixe intacto o aspecto observador de seu ego, mantendo inalterada sua postura interpretativa. Descrevendo dessa forma a situação analítica, os Baranger consideram-na radicalmente nova e distinta de qualquer outro campo bipessoal. Essa posição nos leva a retomar a questão da transferência enquanto entendida como reedição de um protótipo infantil passível de manifestar-se dentro ou fora da análise. Mais uma vez revelam-se os limites dessa concepção, já que a transferência dentro da análise é específica, na medida em que se produz a partir dos diversos elementos participantes do campo. Se as dimensões de espaço e tempo e ainda as próprias características do diálogo vão talhar o caráter da reação transferenciai, o que dizer, então, da interferência da própria pessoa do analista e, principalmente, de sua subjetividade?

Isso nos remete ao elemento central na constituição do campo que é a estrutura dinâmica que subjaz ao diálogo analítico, em outras palavras, a fantasia inconsciente do par. Utilizando, ainda, a analogia proposta para representar a situação analítica como um quadro com sua moldura definida pelas condições de espaço e tempo e seu desenho delineado pelas características do diálogo analítico, temos que pensá-lo como num constante movimento em terceira dimensão. Recentemente A. Ferro (1995), abordando o mesmo tema, valeu-se, também, de uma imagem visual, ao referir-se a "holografias" da interrelação emocional atual analista-paciente. O que importa, com a utilização desses modelos, é avançar além das descrições planas de transferência e contratransferência, como fenômenos próprios às mentes de cada um dos participantes, e ir em busca de seu ponto de confluência onde passam a formar uma nova estrutura distinta dessas descrições isoladas. O que propõem os Baranger, ao introduzir o conceito de campo, é formar uma compreensão mais ampla e profunda da proposição, deixada em aberto por Freud, de uma comunicação de inconsciente para inconsciente. A condição necessária à essa comunicação é a existência de uma fantasia inconsciente do par que, nesse caso, adquire um sentido diferente do que se atribui correntemente, quando proposto em termos unipessoais. Essa fantasia não pode ser considerada como determinada pelos impulsos instintivos do analisando ou do analista, ainda que os impulsos de ambos intervenham em sua estruturação: "Tampouco, e isso é o mais importante, pode ser considerada como a soma das duas situações internas. E algo que se cria entre ambos, dentro da unidade que constituem no momento da sessão, algo radicalmente distinto do que são separadamente cada um deles" (Baranger, M., Baranger, W. 1961, pg.141).

Tudo o que foi exposto até agora permaneceria num plano meramente descritivo se os autores referidos não se propusessem entender a natureza dessa

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fantasia de par, ou responder à questão que eles mesmos formulam: quais os processos que intervém em sua produção? Para isso baseiam-se no conceito de identificação projetiva, reconhecendo sua ação centrífuga e centrípeta, isto é, como um movimento não apenas da mente do analisando, mas também da mente do analista. Associam-se, portanto, às idéias anteriormente formuladas por Money-Kyrle e Grinberg e explicam a fantasia inconsciente do campo bipessoal como o interjogo de identificações projetivas e introjetivas com seu necessário corolário de contraidentificações. Como é sugerido que ambos os protagonistas concorrem na ativação desses mecanismos, é necessário retomar a questão da simetria/ assimetria da situação analítica, ou, em outras palavras, quais as características específicas do engajamento de cada um dos protagonistas nessa situação? Nos trabalhos de 1961 e 1964, os Baranger não se estendem nesse ponto. Dizem apenas que a análise se diferencia de qualquer outra situação de par, pois aqui a identificação projetiva deve ser limitada e controlada no analista; preconizam, ainda, que ele a utilize em pequenas doses como uma sondagem experimental. Restabelecem, assim, a assimetria no interjogo de identificações projetivas, pois referem sua utilização limitada pelo analista. Essa formulação, no entanto, nos leva a indagar como um processo que, em sua essência, é inconsciente, pode ser dosado ou controlado. Caso fosse possível "utilizar" a identificação projetiva dessa maneira, isso seria apenas um procedimento intelectual distante da genuína experiência emocional que qualifica a situação de campo analítico.

Com a concepção de um campo bipessoal, mudam, também, as perspectivas de avaliação do andamento do processo analítico. Os Baranger contestam a idéia que o curso de uma análise deva evoluir por etapas sucessivas, através do levantamento progressivo das resistências, desde os níveis mais superficiais até os mais profundos. Sugerem que essa avaliação se volte para o plano situacional (ou relacionai), buscando identificar momentos de mobilidade ou de cristalização do campo. O contínuo interjogo das identificações projetivas pode produzir estereotipias e paralisações do processo, envolvendo ambos os participantes. Tais circunstâncias, denominadas por esses autores como "baluartes", só poderão ser superadas se o analista for capaz de observar-se, junto com seu analisando, como participante da fantasia imobilizadora e, a partir desta "segunda mirada", formular a sua interpretação.

Ainda que posteriormente tenham reformulado sua teoria sobre o papel das identificações projetivas recíprocas e cruzadas na constituição do campo analítico, penso que essa contribuição do casal Baranger retém sua validade, principalmente se agregada à sugestão de Bion sobre a ocorrência de um grau normal de identificação projetiva como mediadora de uma comunicação primitiva.

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A mente é alguma coisa que se estende além dos limites do sujeito

Pretendo, nos próximos parágrafos, apresentar as contribuições de Wilfred Bion ao tema deste trabalho. A amplitude e complexidade de sua obra representam um marco decisivo na evolução do pensamento teórico e da experiência clínica em psicanálise; a tentativa de expô-la de forma sintética implicará sempre em mutilações inevitáveis e empobrecimento das idéias originais. No entanto, esse risco se impõe quando se trata de uma revisão como a que me propus.

Ainda que não tenha-se ocupado especificamente com trabalhos sobre a técnica, Bion propõe uma ruptura com o modelo clássico de observação psicanalítica. O analista entra em cena não mais como um mero observador e tradutor da vida mental do paciente, mas contribui com sua própria vida mental às ocorrências dentro da sessão, sendo um dos fatores constituintes das transformações que ali se operam. A intersubjetividade não é encarada apenas como inevitável, mas impõe-se como única via possível de aproximação com a realidade psíquica; essa última perde a condição de factualidade tangível, saturada de nexos de causalidade, para configurar-se como uma construção possível que só possui significado dentro da relação emocional única entre analista e analisando. A meu ver a ruptura trazida pelo modelo bioniano tem como fundamento central a idéia condensada na afirmação de Bertolone, retirada do texto de Gaburri e Ferro (1988), a qual utilizei como título deste capítulo.

A sugestão que o funcionamento mental só pode ser pensado na sua interação com o meio evidencia-se ao longo de seus textos desde as primeiras observações sobre grupos. O ponto de partida dessas reflexões é a constatação da presença de uma convicção de que um grupo é algo mais que a soma de seus membros. Isso se sustenta na regressão a que pode estar sujeito um indivíduo, quando em contato com a vida emocional do grupo. Nessa condição o grupo funciona como uma unidade na qual os propósitos racionais, conscientes de cada um de seus membros podem não coincidir com a tendência que efetivamente se manifesta no grupo. A tendência geral, denominada de "mentalidade do grupo", revela a existência de uma fantasia inconsciente nomeada por Bion como "suposto básico". O que importa destacar aqui é a sugestão da ocorrência de uma fantasia inconsciente que transcende as fronteiras individuais e que decorre da regressão a que estão sujeitos os participantes do grupo. É inevitável transpor essas conclusões a uma peculiar situação de grupo de natureza igualmente regressiva: a dupla analista/analisando.

Após o período de trabalho com grupos, Bion dedicou-se às análises individuais, principalmente com psicóticos, tendo encontrado aí uma das principais vertentes para o desenvolvimento de seu pensamento teórico e clínico. A análise de psicóticos volta-se sobretudo à produção e comunicação dos pensamentos e

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não tanto ao conteúdo desses. É a partir desse enfoque que se dá uma reviravolta no modo de entender a identificação projetiva pela valorização de sua função comunicativa. Isso nos é apresentado de maneira arguta no artigo "Sobre a Arrogância" (Bion, 1958), através de um relato clínico em que a percepção do contexto de campo bipessoal permite ao analista a compreensão do impasse em que estava envolvido juntamente com seu paciente. Ele descreve uma experiência de incomunicabilidade e não entendimento: "O estabelecimento de um forte relacionamento analítico através da comunicação verbal -parecia, assim, impraticável.^ Analista e paciente formavam um par frustrado" (op.cit., p. 84). As tensões geradas dentro da sessão levaram o paciente a indagar a seu analista se ele conseguiria suportar aquilo. Bion diz, então, que, a partir daí, abriu-se uma pista que indicava que ambos estavam lidando com algo que era difícil de suportar. Esse algo era exatamente o método de comunicação utilizado pelo paciente, a identificação projetiva, a qual era obstruída pelo analista que insistia no uso da comunicação verbal para explicitar os problemas daquele. A capacidade do paciente de associar-se com o analista e beneficiar-se dessa associação assentava-se na oportunidade de cindir e afastar partes de sua psique, projetando-as dentro desse. A intolerância do analista em ser receptáculo de tais projeções era vivida pelo enfermo como ataques deferidos contra essa espécie extremamente primitiva de elo de ligação entre paciente e analista. Bion conclui sobre a possibilidade de um uso normal de identificação projetiva, o qual será o alicerce central de toda sua teoria sobre o processo de pensar e, por conseqüência, sobre as ocorrências dentro da situação analítica.

No artigo seguinte, "Ataques ao Elo de Ligação" (1959), essas propostas virão mais explícitas e sistematizadas, enfocando a importância da mãe real (e, portando, da atitude objetiva do analista) como promotora de equilíbrio ou de catástrofe psíquica. Fixa-se aí a necessidade de uma relação com outra mente como base da formação do pensamento, enquanto produto da união entre partes da mente ou entre dois objetos. O seio e o pênis primitivos constituem o protótipo desse elo de ligação, principalmente por suas funções criadoras (ou procriadoras); na análise ele é representado pela relação com o analista como um local criativo, gerador de pensamentos e conhecimento. E para esse vínculo, ainda mais se construído sobre a comunicação verbal, que se dirigem os ataques da parte psicótica da personalidade.

Tendo concebido uma dimensão "funcional" da identificação projetiva, como meio para a comunicação de um determinado estado mental, Bion parte para a elaboração do arcabouço de sua teoria do processo de pensar, ou seja, o aparelho para pensar os pensamentos (Bion,1962a, 1962b, 1963). Esse constrói-se sobre o modelo de uma relação dinâmica entre algo que é projetado - contido - e um receptáculo que o contém - continente. Essa relação é representada pelo sím-

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bolo ♂↔♀ e nela sustentam-se os fundamentos de uma clínica psicanalítica "bi-o n i a n a " .

Em termos bastante esquemáticos pode-se dizer que o bebê vive experiências emocionais e impressões sensoriais que, por não poderem ser compreendidas, ou pensadas, precisam ser evacuadas - projetadas - para dentro da mãe. O sucesso dessa operação vai depender da capacidade da mãe de funcionar como órgão receptor que permite guardar tais sensações o tempo suficiente para que possam ser modificadas e devolvidas ao bebê, agora sem perigo (de forma tolerável). A capacidade da mãe de "pensar" a experiência interna do bebê, que foi denominada por Bion de reverie, alia-se a um conjunto de fatores que irão compor a tão referida função-alfa. Na tentativa de identificar quais os fatores que aí concorrem, Bion descreve um "mecanismo" ou movimento que busca dar coerência aos elementos dispersos, desintegrados da experiência emocional. Esse movimento sustenta-se na teoria das posições como foi esboçada por M. Klein, ainda que aqui tenha o sentido de uma oscilação constante representada pelo símbolo PS↔D. Para que isso ocorra, outros dois fatores complementares são referidos: um fato selecionado e uma conjunção constante. Mais uma vez os modelos matemático e filosófico nos impõem uma reflexão. O fato selecionado é aquele que estabelece a congruência, o sentido de unidade ou totalidade de todos os outros que se nos apresentam como desordenados. A conjunção constante remete não apenas à percepção, mas a um trajeto percorrido pela razão; é a pos-sibilidade de inferir uma lei a partir de um suceder de eventos relacionados uns com os outros.

Ao apresentar dessa maneira as diferentes "partes" do aparelho de pensar, o próprio Bion reconhece a dificuldade de ajustá-las de forma coerente. Ele escreve: "Talvez haja conexão entre PS↔D e ♀♂ embora a dissimilaridade dificulte perceber que forma a conexão poderia ter, se tem alguma ( ......... ). A ação de PS↔D se responsabiliza pela evidenciação da correlação dos 'pensamentos' já criada por ♀♂. Na realidade, porém, afigura-se como se PS↔D tanto gere pensamentos como ♀♂. O desenvolvimento requer exame pormenorizado" (Bion, 1963, pg.153).

Segue mais adiante: "E uma sedução imaginar que a transformação do ele-mento b em elemento a depende de ♀♂ e que a ação PS↔D está sujeita à atuação prévia de ♀♂. Desafortunadamente, esta solução, relativamente simples, não explica os eventos do consultório. Antes que ♀♂ atue, tem-se que descobrir ♀, e a descoberta de ♀ depende da ação PS↔D. E obvio que, para investigar qual dos dois, ♀♂ ou PS↔D, é o primeiro, abandona-se o problema principal..." (op.cit., pg. 155).

No final do livro, no entanto, chega a uma conclusão sobre esse tema, quando expõe a questão da conjunção constante e retoma o problema da apreensão do objeto total. Postula que o fato de ocorrerem elementos constantemente con-

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jugados pode não encerrar nenhuma significação a não ser a de que esses elementos estão constantemente conjugados. O significado só surgirá pela atuação de ♀♂ "A natureza do relacionamento entre PS↔D e ♀♂ recebe, assim, certo esclarecimento. Da atuação PS↔D depende o delineamento do objeto total. Da atuação com êxito de ♀♂ depende o significado do objeto total'' (op.cit, p.199). [grifo meu]

Apesar de sua complexidade, o modelo elaborado por Bion é inequívoco quando transpõe os limites da função perceptiva (delineamento do objeto total) e coloca na interação de duas mentes (♂↔♀) o substrato capaz de prover o surgimento do que conhecemos como vida mental, ou seja, o processo de significação das experiências vividas.

Como complemento a sua teoria do pensar, Bion publica, em 1965, um livro intitulado "Transformações". Trata-se, em essência, de um estudo teórico sobre a observação psicanalítica. Consagra-se definitivamente o caráter inter-subjetivo dessa observação, ficando de lado a pretensão de uma psicanálise capaz de delimitar de forma unívoca as experiências psíquicas surgidas na sessão. A impossibilidade desse acesso direto à realidade psíquica é do que trata a teoria das transformações O método de observação psicanalítica deve ter como propósito a tentativa de uma aproximação com "O". Esse é o símbolo com o qual Bion designa a realidade última, incognoscível (a experiência emocional vivida na sessão). A interpretação, por sua vez, é uma função do vínculo K e só alcança seu objetivo se é capaz de promover uma transformação em "O" (K→O). Trata-se de aproximar-se da realidade psíquica do paciente de um modo que vai mais além do "saber sobre ela". Ainda que preserve a importância do vínculo K para o processo analítico, Bion postula que o "saber acerca de 'O'" é diferente de "tornar-se 'O'". Essa diferença é análoga à diferença entre "saber a respeito de psica-nálise" e "ser psicanalisado". A transição de "saber acerca de fenômenos" para "ser tornado realidade" implica no abandono das afirmações falsas (coluna 2) que decorrem da intolerância àquelas que se teme sejam verdadeiras.

Sua pesquisa segue nessa linha, indo requerer um status científico à intuição como instrumento de que deve dispor o psicanalista em sua tarefa de apreensão da realidade psíquica. Faz isso, estabelecendo uma ruptura definitiva entre o modelo médico de observação, que se vale da experiência sensorial, e o da psicanálise que se baseia na experiência supra-sensível, já que a ansiedade não tem forma, cor, cheiro ou som. (Bion,1970). Para tanto o analista deve buscar uma condição em que possa "estar em uníssono" (at-one-ment) com a experiência emocional imediata da sessão. Essa condição só pode ser alcançada, se o analista se esvazia de seus conteúdos pessoais de memória e desejo, de maneira que possa captar o inefável representado por "O". Essa foi, sem dúvida a proposição de Bion que mais gerou controvérsias, sobretudo devido à tonalidade mística

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com que ficou revestida. O que importa é considerar a decisiva sua advertência sobre a necessidade de buscarmos o filão emocional da sessão, evitando o engodo que certos anseios, lembranças ou mesmo compreensões possam representar. Concluo aqui essa apreciação sobre a obra de Bion. De todo o espectro de implicações que ela trouxe ao pensamento psicanalítico, ocupei-me das conseqüências na prática clínica, essencialmente sobre as ocorrências nesse ponto de intersecção surgido das experiências vividas pela dupla analista/analisando. A dimensão clínica de seu pensamento significou uma considerável mudança na maneira de entender a função do analista dentro da sessão; ele participa, vivência e descreve a experiência emocional, mas não pode mais pretender ser o tradutor isento, fiel e literal do inconsciente do paciente. É nesse sentido que alguns analistas desenvolveram as idéias de Bion, ocupando-se sobretudo dos fenômenos presentes dentro da estrutura formada pelo par analítico, como veremos a seguir.

As versões contemporâneas

Numa seqüência lógica da linha evolutiva teórica que adotei neste trabalho, ocupo-me de dois autores atuais que se destacam por suas contribuições ao estudo dos fenômenos que envolvem o encontro do par analítico. Apesar dos pontos em comum, a originalidade de cada um exige que sejam revistos separadamente.

Antonino Ferro

Dotado de aguda sensibilidade em sua escuta clínica, Ferro desponta com uma série de trabalhos que nos convidam a uma reflexão profunda sobre aquilo que ocorre na sala de análise. Em todos os escritos que revisei (Ferro, 1991a, 1991b, 1991c, 1993, 1995, 1996, Bezoari & Ferro, 1990, 1992), o autor deixa clara sua vinculação a um modelo de trabalho que nasce de um "encontro fecundo" entre conceitualizações de Bion e dos Baranger. Adota o conceito de campo psicanalítico como foi, por esse últimos, formulado, ou seja, a ocorrência de uma fantasia inconsciente da dupla, estruturada por contribuições da vida mental de paciente e analista, mediatizadas pelas recíprocas identificações projetivas. A premissa de que a identificação projetiva não é apenas a fantasia onipotente de um indivíduo, mas algo que se dá entre duas pessoas, é levada por Ferro às suas últimas conseqüências, sustentando que analista e paciente compartilham, com toda a intensidade, as emoções e os temores surgidos na sessão. E central a idéia que o encontro analítico deva constituir-se num espaço gerador de uma expe-

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riência emocional da dupla, privativa e irrepetível que, ao adquirir um significado mútuo, se transforma numa nova história cuja narrativa é sempre composta a quatro mãos. O trabalho da análise (e do analista) será de integrar essas "áreas do tecido comunicativo do par", para que possam, paciente e analista, alcançar uma visão comum sobre o que sucede na profundidade de seu funcionamento interpessoal: "Somente neste momento é possível a discriminação e redistribuição do que havia-se confundido pelo cruzamento das identificações projetivas e cada membro da dupla pode individualizar melhor seus aspectos interiores ativados na relação com o outro" (Bezoari e Ferro, 1990, pg. 855).

Ferro segue adiante, buscando dar uma forma mais definida a seu modelo de campo. Para isso lança mão de referenciais da narratologia, dispondo o material surgido na sessão como "personagens". Esses não precisam ser necessariamente antropomórficos podendo, além de pessoas, constituirem-se por objetos ou situações que formam os nós de uma rede narrativa interpessoal. Os personagens são "escritos" na sessão por diversas vias comunicativas: as associações de idéias, as lembranças infantis, o desenho, o jogo, as fantasias, os sonhos e assim por diante. Ainda que, de acordo com um referencial kleiniano, possam estar representando os objetos do mundo interno do paciente, ou, com Freud, significar uma rede de relações históricas desse, pelo vértice proposto por Ferro, tais personagens dramatizam as inúmeras possibilidades de histórias que expressam sempre o que, no momento atual, se passa entre as duas mentes da relação analítica.

Como referência específica a esse contexto representacional descrito, Bezoari e Ferro introduzem o termo "agregados funcionais" distinto da clássica descrição de "partes personificadas"; pretendem, assim, suspender o juízo sobre a quem pertecem os personagens que surgem na cena analítica, deixando-os numa dimensão transicional que respeita sua natureza composta. Referem-se a agregados, porque as figuras do discurso manifesto, em geral as Gestalten que emergem no campo analítico, são constituídas pela síntese dos elementos heterogêneos (verbais, emocionais, corporais) procedentes tanto do analisando quanto do analista; funcionais porque as formas dessa variável geométrica combinatória estão em relação com o funcionamento mental do par e as necessidades comunicativas do momento (Bezoari & Ferro, 1990). Há, também, a já referida imagem visual de "holografia afetiva", ilusão ótica que permite uma sucessiva reconstrução tridimensional de um mesmo objeto, como forma de representar os inúmeros "mundos possíveis" pensáveis pela dupla (Ferro, 1996).

Mas se os personagens da sessão falam sempre do presente, que lugar ocupa a "história", enquanto ordenação no tempo dos eventos psíquicos? A resposta de Ferro à essa questão distingue-o, radicalmente, do que ele chama de "psicanálise monopessoal", isto é, aquela feita de reconstruções que se montam a par-

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tir de um processo de investigação e desvendamento de um enigma. Entende que os deslocamentos temporais, veiculados pela evocação de lembranças, buscam "datar" os fatos mentais e emocionais assim como as cisões atendem às necessidades de situá-los no espaço. São sistemas de proteção que devem ser respeitados como testemunhos do universo afetivo individual do paciente. Mas afirma, seguindo Bion, que existem somente sentimentos do presente e que só esses é possível conhecer (Ferro, 1995,1991a). Há, portanto, uma outra história a ser conhecida que é aquela que está sendo construída em conjunto e que se forma por "lembranças de experiências nunca antes acontecidas". Experiências essas compostas por novos personagens que se estruturam no aqui e agora e que depois se tornam novos "habitantes" do mundo interno ou da "história" (Ferro, 1996).

A ênfase de Ferro sobre a especificidade da experiência atual leva-o a sugerir que o funcionamento mental da dupla analítica se desenvolve sobre dois diferentes regimes fundamentais alternativos (Bezoari & Ferro, 1990, Ferro, 1991a). O primeiro é o que tradicionalmente denominamos transferência (e a contra-transferência como seu complemento), seja ela entendida como repetição do passado ou como externalização do mundo interno. O outro desses regimes, denominado relação, é o que se constitui pela experiência intersubjetiva inédita, cuja representação simbólica será sempre construída de forma consensual. A transferência, ou as transferências (do paciente e do analista) tendem a utilizar vias subterrâneas para integrarem-se à atualidade do funcionamento do par e o que efetivamente se observa é um constante movimento oscilatório entre esses dois regimes, o qual poderia ser representado pelos símbolos T↔R (por analogia à oscilação descrita por Bion: PS↔D).

Assim disposta, essa tese suscita alguns questionamentos, pois pressupõe um nível de interação entre analista e analisando regido, exclusivamente (pelo menos em termos de abstração teórica), pela atualidade da experiência emocional gerada no encontro analítico. A transferência entra aí como uma intrusa que provoca repetição estereotipada e a estagnação do campo, obstruindo a fertilidade criativa do par ou a possibilidade de "novas experiências afetivas, que tornam transitáveis e pensáveis, no encontro com outra mente, emoções nunca antes convividas" (Bezoari & Ferro, 1992). É claro que ele próprio se antecipa a essa crítica, dizendo que "o ângulo de auto-referencialidade do campo não pode ser visto o tempo todo como sendo o único, pois nesse caso teríamos uma situação que se enroscaria esterilmente sobre si mesma" (Ferro, 1991a). Mas afirma, mais adiante, no mesmo texto, que, quando observado do ângulo que considera entre todos o mais significativo, o par analítico fala apenas e sempre de si mesmo e do funcionamento recíproco. A evidência de um modelo de trabalho que privilegia o pólo R da oscilação sugerida (T↔R) transparece na leitura de seus textos, geralmente

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ricos em vinhetas clínicas. Isso se manifesta sobretudo em dois fundamentos básicos de seu pensamento: o paciente enquanto melhor colega e as interpretações narrativas.

A idéia de que o paciente sabe mais sobre como é sentir-se igual a ele do que qualquer analista pode saber foi exposta por Bion nas Discussões realizadas em Nova Iorque no ano de 1977. A sugestão que esse será sempre o "melhor colega" com quem poderemos contar para entendermos melhor os acontecimentos de dentro da sala da análise é adotada por Ferro como um dos "carros-chefe" de seu sistema. Ele propõe que se mantenha uma constante função de monitoramento das transformações por que passam as figuras trazidas pelo paciente à sessão. "Essa abordagem dá condições ao analista de ver-se a si próprio, bem como ao paciente, a partir do ponto onde ele está situado".... "O paciente nos relata constantemente como somos para ele a partir de ângulos totalmente desconhecidos para nós; ao mesmo tempo, porém, é preciso que reconheçamos que ele nos coloca na posição de permitir que 'seu' problema entre em campo exatamente através de nós" (Ferro, 1991a, pg. 17).

Essa aproximação mostra-se de extrema utilidade clínica, pois conduz o analista a uma sistemática avaliação de si mesmo e de seu trabalho, evitando assim a tendência a atribuir sempre à fantasia inconsciente do analisando, ou às suas identificações projetivas, as ocorrências surgidas no campo de análise. No entanto, alguns relatos de Ferro parecem negligenciar aquilo que é próprio ao paciente, a sua realidade psíquica. Há o risco de darmos a esse "melhor colega" o lugar do observador neutro, capaz de captar e descrever com precisão a "realidade" do que sucede dentro do par analítico. E preciso não esquecer que, ainda que as manifestações do paciente sejam o guia que deve nos orientar na busca do entendimento daquilo que acontece na sessão, essa "realidade" que ele descreve surge-nos inevitavelmente transformada pelo filtro de sua própria mente. Assim, o "melhor colega" é também aquele que resiste arduamente ao trabalho da análise, utilizando meios defensivos sutis para evitar a dor de confrontar-se com a realidade interna e externa e, sobretudo, tenta sempre, pela repetição transfe-renciai alterar o caráter dessa última. Se não funcionasse assim, não seria paciente e o processo analítico tornar-se-ia inviável.

As idéias de Ferro sobre o campo analítico desembocam numa original conseqüência quanto à técnica interpretativa. E nesse âmbito que mais se evidenciam as peculiaridades desse autor, pois ele propõe um rompimento com a forma tradicional de interpretar, ou com o que ele costuma chamar de "interpretações fortes". Nessas o analista coloca-se num papel de intérprete-decodificador que enuncia, de maneira assertiva, o conteúdo das fantasias inconscientes subjacentes às expressões do paciente, buscando principalmente nelas o seu significado transferenciai. A essas contrapõe um tipo de interpretação que não men-

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ciona necessariamente a transferência, ainda que encerre o mesmo conteúdo. A idéia é "vestir" as interpretações com as palavras e personificações derivadas do discurso do paciente, sem referências explícitas ao hic et nunc da sessão, tendo o cuidado de moldá-las em uma textura narrativa compartilhada. Essas são também chamadas de "interpretações fracas" por seu conteúdo insaturado, isto é, que permita configurações de sentido ainda muito incipientes, abertas para ulteriores contribuições do paciente. Trata-se mais de construir um significado, junto com o analisando, do que traduzir um significado já existente.

Além de levar-se em conta as premissas de Bion sobre a saturação dos enun-ciados, é útil, para se entenderem as propostas de Ferro sobre a interpretação, ter-se conhecimento da teoria narratológica em que ela as sustenta. Dos vários autores citados o que mais diretamente fixa as bases desse sistema hermenêutico é Umberto Eco em sua "Obra aberta". Esse autor analisa a obra de arte, seja literária, plástica ou musical, como um sistema de signos infinitamente traduzíveis. Toda a obra de arte, mesmo quando é forma acabada e fechada na sua perfeição de organismo calibrado com exatidão, é aberta pelo menos quanto a poder ser interpretada de diferentes modos, sem que sua irredutível singularidade seja por isso alterada (Tadié, 1987). Há textos com uma inesgotável possibilidade interpretativa em cuja construção irá contribuir o "leitor-executante".

A transposição desses princípios para a situação analítica expande o campo de visão do analista, livrando-o dos limites que a couraça de um referencial teórico fechado possa representar. No entanto há sempre o conhecido risco de tomarmos o paciente como um texto literário, abstraindo-o de sua condição de ser singular, cujo sofrimento se vincula a experiências específicas intransferíveis e que necessariamente se inserem no contexto histórico próprio daquela pessoa. Por ouro lado, indago-me se o uso sistemático de interpretações não-saturadas não favorece o incremento de ansiedades confusionais, visto que evitam as necessárias cisões normais que permitem diferenciar e situar os objetos, ou aspectos desses, para que possam, posteriormente, ser integrados (Rosenfeld, 1950).

Thomas H. Ogden

Apesar de ter feito sua formação analítica sob a estrita orientação da psicologia do ego, Ogden foi buscar em outras fontes do pensamento psicanalítico o lastro para o desenvolvimento de suas idéias. Sua originalidade e independência não escondem a marcada influência de Klein, Bion e Winnicott. Soma-se a isso uma forma de pensar sistematicamente moldada pelos princípios da dialética hegeliana, como se denota em seus inúmeros escritos (Ogden, 1985,1991,1992a, 1992b, 1994a, 1994b, 1994c, 1994d, 1995, 1996, 1997a, 1997b, 1997c). A dialética, como o próprio Ogden sintetiza, "ê um processo em que elementos opostos se

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criam, preservam e negam um ao outro, cada um em relação dinâmica e sempre mutativa com o outro. O movimento dialético tende para integrações que nunca se realizam por completo. Cada integração potencial cria uma nova forma de oposição, caracterizada por sua própria forma distinta de tensão dialética. Aquilo que é gerado dialeticamente está continuamente em movimento, perpetuamente em processo de ser criado e negado, de ser descentrado da auto-evidência estática" (Ogden, 1992a, pg. 99). O sujeito da psicanálise constitui-se (integra-se numa síntese), ou descentra-se (polarizando os opostos) continuamente, seja em termos de sua abordagem metapsicológica (consciente/inconsciente, posição esquizo-paranóide/posição depressiva, realidade/fantasia, unicidade/ separação), seja enquanto sujeito participante de um encontro específico com outro, compondo o que conhecemos como situação analítica. Os sujeitos da situação analítica mantêm uma relação dialética entre si, de maneira que analista e analisando não podem ser pensados como entidades separadas que tomam um ao outro como objetos.

A concepção de intersubjetividade analítica apresentada por esse autor re-presenta uma elaboração e extensão da idéia de Winnicott de que "um bebê é algo que não existe (separado dos cuidados maternos)". A proposição de uma unidade mãe-bebê supõe um estado de contínua tensão dinâmica entre as entidades mãe e bebê, que efetivamente possuem existências física e psicologicamente separadas. Outro conceito de Winnicott que contribui para essa abordagem da intersubjetividade é o de "espaço potencial" (Ogden,1985). Essa expressão refere-se à área intermediária da experiência que se situa entre a realidade e a fantasia, um espaço hipotético que, ao mesmo tempo, reúne e separa a criança (sujeito) e a mãe (objeto). É nesse espaço que surge a atividade imaginativa e se formam os símbolos. Formas mais específicas do espaço potencial incluem o espaço do brincar, a área dos objetos e fenômenos transicionais, a área da criatividade e da experiência cultural e, ainda, o espaço analítico. Nesse último os pólos opostos que compõem a experiência são as respectivas subjetividades de paciente e analista, potencialmente geradoras de um terceiro sujeito, o "terceiro-analítico intersubjetivo". Ogden parafraseia Winnicott, afirmando que "num contexto analítico um analisando é algo que não existe separado da relação com o analista, e um analista é algo que não existe separado da relação com o analisando" (Ogden, 1994a). Enquanto criadores do terceiro analítico, analista e analisando destróem-se e recriam-se mutuamente, mantendo uma constante tensão dialética entre esse terceiro elemento e as individualidades separadas de cada um dos componentes da dupla. A oscilação entre subjetividades e intersubjetividade faz com que o terceiro analítico, embora criado conjuntamente, não seja vivenciado da mesma forma por ambos os participantes, mas constitua-se dentro da assimetria do setting analítico, que é fortemente definido pela

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relação entre os papéis de analista e analisando. O analista deve, portanto, observar o desmantelamento de seus limites individuais de maneira que possa pensar a partir da experiência inconsciente do terceiro intersubjetivo e, ao mesmo tempo, pensar sobre ele, desde uma posição de analista fora dele. "A experiência do analista no e do terceiro analítico é (primariamente) utilizada como veículo para a compreensão das experiências conscientes e inconscientes do analisando (analista e analisando não estão envolvidos num processo democrático de análise mútua)" (Ogden, 1994a pg. 90).

A tarefa analítica, pois, será descrever, da maneira mais completa possível, a natureza da experiência vivenciada na relação entre a subjetividade individual e o terceiro analítico. Para que essa descrição seja possível, deve valer-se daqueles objetos construídos no interjogo de comunicações da dupla e que dão significado à experiência. Ogden nomeia-os "objetos analíticos" conforme a exposição feita por Green: "...o real objeto analítico não está nem do lado do paciente, nem do analista, mas no encontro dessas duas comunicações, no espaço potencial que situa-se entre eles..." (Green,1975).

Assim como fazem os Baranger e Ferro, Ogden também aborda os eventos do campo interpessoal sob o prisma da identificação projetiva. Adota esse conceito na acepção que lhe é dada a partir de Bion e H. Rosenfeld e o considera como uma dimensão de toda a intersubjetividade, às vezes como qualidade predominante da experiência, em outras como um sutil pano de fundo (Ogden, 1994c). Entretanto cria um certo paradoxo quanto a esse caráter "universal" da identificação projetiva, pois também a entende como uma forma específica de terceiridade analítica (Ogden, 1994d). Essa especificidade está no fato que tanto o sujeito que projeta quanto o que recebe a identificação projetiva transformam-se, negando mutuamente suas subjetividades individuais, permitindo, portanto, serem "subjugados" por um terceiro sujeito (o sujeito da identificação projetiva). A resultante disso pode ser um colapso parcial do movimento dialético da subjetividade e intersubjetividade. O autor sugere que, para ocorrer crescimento psicológico, deve haver uma superação do terceiro subjugador e o estabelecimento de uma dialética nova e mais geradora de unicidade e dualidade, similaridade e diferença, subjetividade individual e intersubjetividade. Um processo analítico bem sucedido pressupõe essa superação e uma reapropriação das subjetividades do analista e do analisando como indivíduos separados, ainda que interdependentes (Ogden, 1994c, d).

A maneira peculiar como Ogden enfoca o processo analítico, que tentei expor em linhas gerais, também trás consigo implicações quanto, à forma de encarar a questão da "história passada" do paciente na sessão analítica. As associações que brotam no diálogo não são escutadas como uma via de recuperação de uma memória recalcada, mas "como a criação de uma experiência que, até

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então, não existira sob tal forma" (Ogden,1994c). Diz ele que "o analista não vivência o passado do analisando; vivência sua própria criação do passado do analisando gerada na sua vivência do terceiro analítico". (Ogden,1994d). O "passado", portanto, surge como uma construção inédita daquele par analítico em particular. Esse enfoque aproxima-se das idéias de Ferro sobre o mesmo tema, quando refere que há uma história que está sendo construída em conjunto e que se forma por "lembranças de experiências nunca antes acontecidas" (Ferro,1996).

Finalmente cabe destacar a importância dada por Ogden ao funcionamento da mente do analista durante a sessão. Ele sugere que o sentido da experiência inconsciente do terceiro analítico só pode ser captado de forma indireta, através de uma condição análoga ao estado de reverie descrito por Bion. Essa condição requer uma valorização de todas as nuances e detalhes dos eventos da hora analítica, incluindo aí os pensamentos mais mundanos do analista, suas fantasias, sentimentos, ruminações, devaneios, sensações corporais etc, as quais parecem totalmente desconectadas daquilo que o paciente está dizendo ou fazendo naquele momento. Os pensamentos e sentimentos envolvidos na reverie são geradores de metáforas que dão forma à dimensão inconsciente da relação analítica.

A leitura dos trabalhos de Ogden torna-se extremamente viva pelos inúmeros exemplos clínicos que apresenta. Aí podemos observá-lo trabalhando com seus próprio conteúdos mentais e com o contexto intersubjetivo. Mas, ainda que proponha uma mudança na forma de interpretar, através do que denomina ação interpretativa, não se observa uma alteração substancial na forma do diálogo analítico, como é o caso de Antonino Ferro com as interpretações narrativas. Em sua maioria, as intervenções de Ogden constroem-se sobre o caráter simbólico da comunicação verbal e dirigem-se à expressão mais imediata da transferência do paciente na forma como se apresenta no aqui e agora da sessão.

Comentários finais

O seguimento diacrônico de um conceito busca delinear os acréscimos que cada versão renovada propõe ao conhecimento do fenômeno observado. Aqui temos como objeto a situação analítica e diferentes formas de compreendê-la. Mas, se a abertura de novos ângulos de percepção significou um avanço no processo, ela também trouxe consigo os limites de seu alcance. Freud, certamente, não escapou desse imperativo. Ao abandonar a idéia da transferência como um fenômeno pontual, um mero desvio, ou "falsa ligação", no fluxo associativo do paciente, ele a coloca no centro dos acontecimentos, definindo-a, não apenas como poderoso auxiliar do tratamento, mas como elemento essencial de convicção, pois nada poderia ser atingido in absentia ou in effigie. Assim fazendo, Freud enreda-se, novamente, na problemática da sugestão: se a transferência está sem-

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presente, como delimitar a verdadeira ação terapêutica do efeito sugestivo que ela comporta? Para contrapor-se a esse incômodo questionamento, ele elabora as conhecidas recomendações técnicas que disciplinam, mas não resolvem o problema. Não sendo possível evitar a disposição do paciente à sugestão, nutrida pela própria transferência, impunha-se que se tentasse neutralizá-la do lado do analista. Como vimos, o próprio mentor dessas regras não conseguiu segui-las à risca, deixando dúvidas quanto à almejada neutralidade analítica. Em 1937 as restrições do método são apresentadas, admitindo os limites da pretensa purificação da mente do analista e sua total isenção sobre o processo. Restava, como "fórmula" para evitar as más conseqüências dessa interferência, a recomendação de uma "reciclagem analítica" a cada cinco anos.

Não sendo eficaz a tentativa de banir a contratransferência da cena analítica, ela é integrada ao método, mas com a função restrita de balizador da transferência. Fala-se, então, no "uso" que o analista pode (ou não) fazer de sua contratransferência para melhor entender seu paciente. Essa condição de instrumento no arsenal técnico da psicanálise traz consigo novas controvérsias: como fazer uso de algo que se situa, essencialmente, no âmbito da experiência inconsciente, se esse uso é um atributo do sujeito mesmo da experiência? Portanto, o que se impõe ao analista não é uma opção de uso, mas a percepção da contratransferência e a possibilidade de pensá-la, para que ele possa, então, dar continuidade à sua tarefa. Mais ainda, onde situar a fronteira entre aquilo que é uma reação emocional induzida pelo paciente e as manifestações oriundas estritamente da constelação psíquica do analista? Aqui as complicações proliferam, apesar das propostas que visam encontrar um meio termo (Gabbard, 1995). O modelo parece se esgotar em sua origem, na medida em que transferência e contratransferência são conceituadas como fenômenos individuais, ocorrendo no paciente e no analista respectiva e separadamente. Sua ação recíproca será melhor apreendida com os ajustes ao modelo trazidos pela noção de campo, ou, mais genericamente, de intersubjetividade.

Com a concepção de um campo relacionai estruturado pelo jogo de identi-ficações projetivas recíprocas, não há mais como pensar as ocorrências da vida mental de paciente e analista isoladamente. A idéia de uma tensão oscilatória constante entre as individualidades de cada um e a absorção dessas para dentro da intersubjetividade relaxa a premência analítica de distinguir o que é de um ou do outro. Amplia-se o ângulo de observação, possibilitando ao analista reconhecer os fatos psicanalíticos que estão sendo construídos simultaneamente por ele e por seu analisando (Vollmer F°., 1994). É através desse reconhecimento que cada um poderá discriminar melhor a sua participação no campo, recuperando seus aspectos projetados, agora certamente modificados pela análise da experiência bipessoal.

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Convém lembrar que as diferentes abordagens desse modelo são inequívocas em preservar a necessária assimetria de funções dentro da situação analítica, pois afinal, como assevera Ogden, não se trata de um processo democrático de análise mútua. Ainda que não seja o detentor de uma verdade irrefutável, cabe ao analista presidir o processo, o qual será sempre dirigido à realidade psíquica do paciente. A vivência intersubjetiva proporciona condições de crescimento mental ao próprio analista, mas, acima de tudo, habilita-o a um contato emocional mais genuíno que, se refletido numa prática exitosa, poderá promover a mudança psíquica em seu paciente.

Nesse comentário procurei mostrar como o acompanhamento de um estudo evolutivo revela, a cada momento, as insuficiências próprias aos diferentes modelos teóricos que buscam entender a situação analítica. Essas restrições, em vez de invalidar o modelo, requerem a sua ampliação ou mudança. O mesmo deve valer para a questão do campo. Espero que essa exposição do tema permita tal reflexão e contribua ao conhecimento da tarefa analítica.

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