o cancioneiro ibérico em josé de anchieta: um enfoque musicológico

  • Upload
    buihanh

  • View
    221

  • Download
    1

Embed Size (px)

Citation preview

  • O CANCIONEIRO IBRICO EM

    JOS DE ANCHIETA:

    UM ENFOQUE MUSICOLGICO

    ROGRIO BUDASZ

    Dissertao apresentada Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Musicologia. Orientador: Prof. Dr. Slvio Augusto Crespo Filho

    SO PAULO

    1996

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • Agradecimentos

    Harry Lamott Crowl, Jr.

    Joo Pedro dAlvarenga

    Manuel Carlos de Brito

    Maurcio Soares Dottori

    Paulo Augusto Castagna

    Slvio Augusto Crespo Filho

    CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico

    Fundao das Casas de Fronteira e Alorna

    Fundao Calouste Gulbenkian

    Instituto Cames

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • RESUMO

    Um dos aspectos da atividade didtica de Jos de Anchieta envolvia a

    composio de letras e preparao de cantigas adaptadas a melodias populares

    ibricas, ou contrafacta, segundo a tcnica de contrafaco ao divino,

    amplamente conhecida e estudada na poesia espanhola do sculo XVI. O estudo

    das referncias musicais contidas no cdice ARSI OPP NN 24 e das

    correspondncias verificadas entre poesias de Anchieta e canes e danas

    ibricas contribui para uma compreenso maior deste aspecto de sua obra

    literria, alm de possibilitar o estabelecimento de um repertrio de msicas

    possivelmente executadas no Brasil do sculo XVI.

    Palavras-chave: Jos de Anchieta, Brasil, msica, cancioneiro, contrafactum,

    jesutas, teatro.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • ABSTRACT

    An outstanding field in Jose de Anchietas pedagogic work was the composition

    of lyrics and the teaching of songs adapted to Iberian popular melodies, the

    contrafacta, or a lo divino versions, a kind of sacred parody fairly known and

    studied in the sixteenth century Spanish literature. The musical references

    existing in ARSI OPP NN 24 codex and the study of correspondences between

    Anchietas works and Iberian songs and dances contribute to enlarge our

    knowledge of his work. Furthermore, it makes possible the establishment of a

    Brazilian sixteenth century musical repertoire.

    Keywords: Palavras-chave: Jos de Anchieta, Brazil, music, cancionero,

    contrafactum, Jesuits, theater.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • NDICE

    1. INTRODUO 1

    Apresentao

    Reviso dos estudos

    Objetivos 8

    Metodologia 9

    2. O CANCIONEIRO IBRICO EM ANCHIETA 10

    O cancioneiro divinizado 10

    Anchieta ao divino 22

    Danas 60

    3. CONCLUSO 73

    BIBLIOGRAFIA 78

    ANEXOS 87

    Ilustraes 87

    Reprodues facsimilares 87

    Transcries musicais 152

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • O Cancioneiro Ibrico em Jos de Anchieta:

    Um Enfoque Musicolgico

    1 Introduo

    Apresentao

    Em 14 de julho de 1945 foi aberta a sesso inaugural da Academia Brasileira de

    Msica. Ao acadmico fundador Heitor Villa-Lobos foi honrosamente concedida a cadeira

    n 1, sob o patronato de Jos de Anchieta.

    A escolha de uma figura como Anchieta para ocupar tal lugar de honra entre os

    expoentes do universo musical brasileiro culto , no mnimo, intrigante. No se justifica

    pela qualidade de suas composies musicais. A respeito destas nada se pode comentar, j

    que no sobreviveram aos nossos dias, possivelmente porque nunca existiram. Muito

    menos por ter sido precursor da atividade musical no Brasil. Antes dele outros religiosos, e

    no somente da Companhia de Jesus, fizeram uso da msica em suas atividades

    missionrias, como o prprio Manuel da Nbrega, alm de Juan de Azpilcueta Navarro e

    Leonardo Nunes.

    O fato que a figura de Anchieta desempenha uma funo simblica muito mais

    importante do que a de qualquer outra personagem ligada msica no Brasil colonial.

    Desde cedo foi cultivada a imagem do Anchieta artista, o poeta-msico-santo, sempre

    explorada por seus bigrafos, embora de importncia histrica menor no conjunto de suas

    realizaes.

    costume, mesmo entre seus bigrafos atuais, ressaltar esta imagem por se fazer

    referncia a seus supostos dotes musicais, s vezes esboando o quadro de um ambiente

    musical familiar. Viotti, por exemplo, cita o depoimento de um certo Andr do Sim, que

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 2

    dizia que em Tenerife dois irmos de Anchieta, sacerdotes, tocavam cravo e rgo.1 Juan

    de Anchieta, capelo e cantor de Isabel, a Catlica e um dos principais compositores

    espanhis do perodo tambm freqentemente includo neste quadro. Sabe-se que era

    parente prximo de Jos de Anchieta. Mais que isso, a hiptese mais comumente aceita

    quanto ascendncia paterna do jesuta, com certeza por ser a mais tentadora, aponta o

    mestre-de-capela como seu av.2

    Que o jesuta conhecia msica no h dvida. A prpria formao sacerdotal exige

    um certo conhecimento de canto e leitura musical. Entretanto, era msico em que nvel?

    No dispomos de relatos seguros quanto sua atividade como compositor, nem da msica

    de suas prprias cantigas e muito menos de msica polifnica. Nada existe, contudo, em

    negao destas hipteses, da o motivo da permanncia do mistrio.

    Muito melhor documentada est sua atividade didtica, que inclua a composio e

    preparao de cantigas destinadas a serem cantadas sobre melodias populares ibricas.

    Dispomos de um conjunto expressivo destas cantigas preservado no manuscrito OPP NN

    1 ANCHIETA, Poesias, So Paulo/Braslia, 1989, p. 25: Em Tenerife, dois irmos seus, sacerdotes - diz o depoimento de Andr do Sim -, ensinaram uns irmos dle, testemunha, tambm sacerdotes, a tanger cravo e rgo (Proc. Apost. do Rio de Janeiro, 83 v). 2 A hiptese, rejeitada por Viotti e Cardoso, foi primeiramente levantada em forma de sugesto por Afrnio Peixoto, sendo mais tarde aceita por Antnio Alcntara Machado, Serafim Leite e, mais recentemente, por Quintn Aldea. Francisco Gonzlez LUIS, Jose de Anchieta, vida y obra, Laguna, 1988, p. 22-24, observa que a idia tem origem num estudo de Adolphe Coster (Juan de Anchieta et la famille de Loyola, Paris, 1930), onde se transcreve o testamento do msico, datado de 1522-23. Neste se encontra a notcia da existncia de um filho seu chamado Juan, a quem deixa uma quantidade de dinheiro para con que se cre y alimente y tenga con qual estudiar, e para su casamiento. Alm disso, referindo-se ausncia de qualquer meno paternidade de Juan de Anchieta, pai de Jos, nos arquivos canrios, Luis nota que en unos archivos donde aparecen tantos testimonios y detalles no slo de la decendencia de la primera familia Anchieta de La Laguna, sino tambin de la ascendencia materna del Apstol del Brasil, no se menciona en ningn momento el nombre del padre del fundador de la estirpe. De la impresin, afirman stos [os que defendem a hiptese], que no era conveniente para las informaciones de hidalgua de sus descendientes que se conociera ese nombre por alguna razn especial, la cual poderia ser, por ejemplo, su condicin de hijo natural. Entre os argumentos contrrios, o mais forte o de Francisco Mateus, que insiste no fato de que o Juan de Anchieta ali mencionado era um menino em 1522 e que, portanto, no poderia ser o fundador da casa Anchieta canria. Cioranescu e Millares refutam o argumento, j que o testamento no faz meno a nenhuma idade determinada, mas especifica todas as etapas da vida de um filho, que o pai tem o dever de atender. Alm disso, como observa Luis, admitir que seu filho fosse um menino em 1522 supone admitir que el msico Juan de Anchieta engendrara este hijo cuando, viejo y enfermo, se retir a su aldea de Urrestilla, lo que no parece demasiado lgico. De qualquer maneira, o prprio Luis no partidrio da hiptese do Anchieta mestre de capela como av de nosso jesuta, embora reconhea que ainda no pode ser descartada, havendo a necessidade de aguardar-se testemunhos mais seguros.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 3

    24 do Archivum Romanum Societatis Iesu - o caderno de poesias - em grande parte

    autgrafo do prprio missionrio.

    E se persiste o vazio referente msica composta no Brasil dos sculos XVI e

    XVII, existe a possibilidade de indiretamente virmos a conhecer algo mais da prtica

    musical daquela poca atravs de um estudo direcionado aos aspectos musicais do caderno

    de poesias de Anchieta.

    Reviso dos estudos

    Desde a publicao da primeira biografia de Anchieta em 1598, apenas um ano

    aps sua morte, suas qualidades poticas e inclinaes musicais tm sido destacadas por

    bigrafos,3 ao lado de consideraes sobre a vida exemplar, feitos milagrosos e

    acontecimentos sobrenaturais. claro que no vamos encontrar nas obras deste primeiro

    perodo a preocupao com o rigor cientfico e histrico e a iseno nos comentrios. A

    ideologia de tais biografias era a mesma que norteava as vidas de santos que circulavam

    durante a idade mdia: provar que o candidato a santo era merecedor de tal honra por

    destacar sua vida virtuosa e modelar, alm de ilustrar por seus atos extraordinrios e

    milagrosos como era divinamente favorecido. Entretanto, abstraindo-se os aspectos

    sobrenaturais, estes relatos de seus contemporneos revelam-se fundamentais para a nossa

    compreenso do papel da msica na obra de Anchieta. Em vrios deles, por exemplo,

    encontramos depoimentos a respeito de seu costume de compor cantigas em portugus,

    espanhol e lngua braslica. Um dos relatos fala inclusive que teve um livro que ele

    comps de cantigas ao divino, assim na lngua portuguesa, como pela do gentio [...] as

    quais todos cantavam.4

    3 CAXA, Breve relao da vida e morte do P. Jos de Anchieta, 1598; RODRIGUES, Vida do Padre Jos de Anchieta da Companhia de Jesus, 1607; VASCONCELOS, Vida do venervel Padre Joseph de Anchieta, Lisboa, 1672. 4 Depoimento de Diogo Teixeira de Carvalho que tratou com Anchieta em So Vicente, antes de 1576 e mais tarde no Esprito Santo. Proc. inform. do Rio de Janeiro f. 107, conf. Cardoso, em ANCHIETA, op. cit., 1984, p. 40.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 4

    Em 1730 o arcebispado da Bahia enviou a Roma documentos para serem

    examinados no processo de beatificao do jesuta. Entre eles encontrava-se um caderno

    de poesias do qual era fama antiga e constante ser autor o venervel Padre Jos de

    Anchieta.5 Foi somente na segunda metade do sculo XIX que brasileiros tiraram as

    primeiras cpias manuscritas do cdice, Franklin Massena e o Baro de Arinos.

    Imperfeitas e incompletas, foram divulgadas em 1882 por Melo Morais Filho6 e em 1923

    pela Academia Brasileira de Letras.7 Finalmente em 1930 o cdice foi inteiramente

    fotografado pelo Pe. Jos da Frota Gentil.

    A publicao do caderno de poesias em 1954 por Maria de Lourdes de Paula

    Martins marca o incio de uma fase mais cientfica de estudos da obra de Anchieta.

    Compreendendo em sua primeira parte a reproduo diplomtica de todo o cdice ARSI

    OPP NN 24 e acompanhada de reprodues em tamanho reduzido das fotografias obtidas

    pelo Pe. Gentil, a edio permanece como obra de consulta fundamental, apesar de certos

    comentrios inexatos e alguns erros na transcrio dos originais. Muitos destes, como

    observa a prpria pesquisadora, devidos pouca nitidez das fotos de que dispunha. Quanto

    traduo da lrica tupi, seus esforos ainda no foram superados.

    Embora tenha-se concentrado mais na transcrio e traduo dos textos, vez por

    outra Martins oferece algumas consideraes acerca da estrutura dos autos e utilizao de

    cantos e danas. Tambm observa a prtica de Anchieta de reaproveitar suas prprias

    composies e adaptar composies de outros autores.

    Hlio de Abranches Viotti, autor do prefcio da edio de M. de L. de Paula

    Martins, um dos principais bigrafos atuais de Anchieta,8 e muito da importncia de sua

    obra deve-se utilizao de documentao indita a que teve acesso no Arquivo Secreto

    5 Cdice ARSI Opp NN 24 , nota prvia pgina de rosto. 6 MORAIS FILHO, Curso de Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, 1882. 7 Primeiras Letras: Cantos de Anchieta, Rio de Janeiro, 1926. 8 VIOTTI, Anchieta, o apstolo do Brasil, So Paulo, 1980.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 5

    do Vaticano. De interesse especial para ns o fato de que muitos dos depoimentos em

    prol da beatificao de Anchieta coligidos por Viotti fazem meno atividade musical e

    potica do jesuta, especificando situaes em que a msica era utilizada e de que maneira

    e com que finalidade era praticada.

    O uso por Anchieta das formas tradicionais ibricas de versificao oriundas da

    idade mdia observado por Leodegrio Amarante do Azevedo Filho,9 que defende

    tambm a perfeita regularidade mtrica das poesias. Quanto msica, seus comentrios

    resumem-se identificao de um ou outro trecho cantado, alm de reconhecer a

    importncia da prosdia musical, muitas vezes responsvel por aparentes irregularidades

    mtricas. A tese defendida por Azevedo a de que o jesuta move-se num plano esttico

    de transio entre a idade mdia e o barroco, sem qualquer influncia renascentista. Se a

    sua obra simples, popular e s vezes primitiva, porque vem marcada pela ideologia

    religiosa da Companhia de Jesus e pela esttica inicial da contra-reforma, marcada pelo

    sentido de repopularizao das artes, a fim de levar o catolicismo ao seio das massas. A

    escolha dos gneros populares de composio, como os vilancetes, seguidilhas, hinos,

    cantigas e danas exploraria ento o gosto natural dos a quem se destinavam as poesias, os

    catecmenos e colonos, a fim de atingir seus objetivos de catequese.

    J Eduardo Portella10 acredita que, em certo sentido, Anchieta deva ser entendido

    como manifestao da cultura medieval no Brasil. Tanto pela simplicidade de sua poesia,

    de timbre didtico, como pela sua forma potica, seus ritmos, sua mtrica e mesmo sua

    linguagem. Observa ainda que, com respeito possvel influncia do cancioneiro popular

    na obra de Anchieta, persistem elementos to comprometedores que vm salientar a

    necessidade de um estudo dessa possvel dvida ou ligao. Infelizmente, o prprio carter

    9 AZEVEDO FILHO, Anchieta, a idade mdia e o barroco, Rio de Janeiro, 1966; As poesias de Anchieta em portugus, Rio de Janeiro/Braslia, 1983. 10 ANCHIETA, Poesia, Rio de Janeiro, 1977.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 6

    antolgico e resumido da obra de Portella no lhe permite um aprofundamento maior nesta

    questo.

    Maior compreenso do assunto revela possuir Armando Cardoso,11 que o

    primeiro a dar-se conta da importncia do processo de divinizao de canes populares, a

    transposio ao divino, na poesia de Anchieta. Plenamente atualizado com estudos sobre o

    assunto, como deixam notar as vrias revises bibliogrficas contidas em suas obras,

    Cardoso , na verdade, a figura de maior destaque na pesquisa da obra literria do

    missionrio, estando empenhado na publicao de suas obra completas.

    Em recente edio antolgico-biogrfica patrocinada pela prefeitura de La Laguna,

    Francisco Gonzlez Luis12 tambm observa a prtica de Anchieta de adaptar letras

    religiosas a canes populares, lamentando a pouca ateno dada at hoje ao tema. Jos

    Gonzlez Luis, o responsvel nesta obra pela anlise da lrica espanhola acredita mesmo

    que esta a essncia da poesia anchietana.13 A publicao, alm de conter estudos

    originais de vrios autores, apresenta uma anlise bastante completa sobre o estado atual

    das pesquisas anchietanas, discutindo inclusive, como h pouco citado, as vrias hipteses

    e mais recentes consideraes acerca da ascendncia do jesuta.

    Os aspectos musicais da obra de Anchieta e a influncia de elementos do

    cancioneiro popular ibrico vm interessando tambm a pesquisadores no campo da

    musicologia. O fato de que a prtica musical jesutica no Brasil foi sempre bem

    documentada contribui igualmente para fazer do estudo desta literatura uma das poucas

    formas possveis de se entrar em contato com a msica praticada no Brasil quinhentista.

    Todavia, a exemplo dos estudos literrios e biogrficos, as pesquisas musicolgicas ainda

    vem tratando o assunto de forma secundria. Alguns destes trabalhos, mesmo no sendo

    11 ANCHIETA, Teatro de Anchieta, So Paulo, 1977; Lrica portuguesa e tupi, So Paulo, 1984; Lrica espanhola, So Paulo, 1984. 12 Citado nota 2. 13 LUIS, op. cit., p. 271.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 7

    direcionados especificamente msica na obra de Anchieta, revestem-se de importncia

    pela originalidade e tratamento cientfico em questes como a funo da msica na

    atividade missionria e a transformao cultural ou entropia verificada no contato entre

    os povos indgenas e os colonizadores.

    Os trabalhos do jesuta Serafim Leite,14 embora demonstrando pouca iseno,

    ofereceram pela primeira vez uma viso clara do ensino da msica pelos jesutas no Brasil

    colonial, enriquecida por farta documentao. Podemos, com a ajuda de seus estudos

    contextualizar melhor a ao didtica de Anchieta.

    Nesse sentido so de interesse especial tambm as pesquisas de Clement McNaspy

    e Thomas Culley,15 apresentando a posio oficial da Companhia de Jesus quanto ao

    emprego e cultivo da msica no sculo XVI. Demonstram os jesutas, em artigo de 1971,

    como a situao peculiar das colnias justificava uma liberdade maior nestas questes do

    que a usufruda na Europa durante o mesmo perodo. O trabalho lana ainda alguma luz

    sobre o tipo de msica praticada no Brasil por apresentar um quadro, um pouco

    fragmentado, das atividades musicais dos jesutas na Europa contempornea. Fica

    evidente, por exemplo, a difuso entre estes da prtica do canto em fabordo, justificada

    pelo fato de no exigir demasiado tempo para a preparao.

    Jos Ramos Tinhoro16 analisou a msica jesutica sob um ponto de vista

    sociolgico, deixando bem claro seu papel funcional. Encara as atividades didticas dos

    jesutas no campo da msica como parte dos esforos de substituir os valores culturais

    indgenas pelos europeus. Papel de destaque cabe a Anchieta nesta pr-histria da

    msica brasileira, por ter sido o primeiro compositor cujas letras sobreviveram.

    14 LEITE, Histria da Companhia de Jesus no Brasil, Lisboa/Rio de Janeiro, 1938; A msica nas primeiras escolas do Brasil, Brotria, Lisboa, 1947; Cantos, msicas e danas nas aldeias do Brasil, Msica sacra, Petrpolis, 1943; Artes e ofcios dos jesutas no Brasil, Lisboa/Rio de Janeiro, 1953. 15 McNASPY e CULLEY, Music and the early jesuits, Archivum Historicum Societatis Iesu, Roma, 1971. 16 TINHORO, A deculturao da msica indgena brasileira, Revista brasileira de cultura, Rio de Janeiro, 1972, e Msica popular de ndios, negros e mestios. Petrpolis, 1972.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 8

    O musiclogo Paulo Castagna17 vem se destacando no sentido de situar a prtica

    dentro do esforo geral de catequese, apresentando as diversas formas de aplicao da

    msica no processo, suas funes, resultados prticos e conseqncia na deculturao dos

    povos submetidos coroa portuguesa.

    Nos ltimos anos vem-se aprofundando o estudo de questes referentes ideologia

    da obra de Anchieta e transformao de sua prpria linguagem durante o processo de

    converso do indgena. Em captulo de recente livro,18 Alfredo Bosi detecta a existncia

    como que de dois poetas distintos em Anchieta, um cuja finalidade a converso do

    nativo e outro que escreve sobre sua prpria experincia espiritual. Inclui-se a msica

    neste quadro por ter sido utilizada pelo jesuta em ambas as categorias, tanto no teatro, de

    cunho persuasivo ou didtico, quanto na poesia de carter pessoal, como veculo de sua

    prpria expresso mstica.

    Objetivos

    Como observamos, vrios pesquisadores tm comentado a influncia da poesia

    popular em Anchieta e o papel desempenhado pela msica em suas obras. Graas a esses

    esforos o quadro vem se tornando cada vez mais claro nos ltimos anos. Entretanto, no

    existe ainda uma plena compreenso quanto ao nvel em que a influncia teria se

    processado e muitos dos prprios pesquisadores mencionados reconhecem a necessidade

    de um estudo mais especificamente direcionado ao assunto.

    , portanto, objetivo deste trabalho contribuir para o melhor esclarecimento destas

    questes buscando aproximaes entre a poesia de Jos de Anchieta e o cancioneiro

    ibrico, desde o nvel da inspirao popular, pelo uso de temas e formas potico-musicais,

    17 CASTAGNA, Paulo Augusto. Fontes bibliogrficas para a pesquisa da prtica musical no Brasil nos sculos XVI e XVII, So Paulo, 1991 e A msica como instrumento de catequese no Brasil dos sculos XVI e XVII, D. O. Leitura, So Paulo, 1994. 18 BOSI, Anchieta ou as flechas opostas do sagrado, em Dialtica da Colonizao, So Paulo, 1993.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 9

    at o da transposio ao divino, verso por verso, de canes populares e danas cantadas.

    Objetivo secundrio e conseqncia natural do anterior, o de apresentar uma

    contribuio ao estabelecimento de um repertrio de msicas executadas no Brasil do

    sculo XVI, baseada em paralelos existentes entre suas poesias e canes e danas

    registradas em obras ibricas do perodo.

    Metodologia

    O trabalho foi dividido em duas etapas principais. Primeiramente foi conduzida

    uma pesquisa bibliogrfica em fontes literrias e musicais ibricas de fins do sculo XV a

    incio do sculo XVII, com vistas identificao de paralelos entre poesias de Anchieta e

    canes e danas populares do perodo. A pesquisa foi realizada em bibliotecas e arquivos

    de So Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Lisboa, Porto, vora, Coimbra, Madri e Barcelona.

    Por correio foram efetuados contatos com o Archivum Romanum Societatis Iesu, em

    Roma.

    As obras selecionadas foram analisadas e comparadas s poesias de Anchieta a que

    supostamente corresponderiam em aspectos referentes forma, mtrica, acentuao e

    rimas. s obras cujo texto musical foi preservado, foram adaptadas as verses ao divino

    do jesuta e efetuadas as transcries em notao musical moderna, apresentadas em anexo

    juntamente com reprodues facsimilares. Nesta segunda etapa foi tambm utilizada a

    bibliografia de referncia, fornecendo subsdios em aspectos como o histrico das canes

    e danas recolhidas e possveis solues quanto transcrio e interpretao.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 2. O Cancioneiro Ibrico em Anchieta

    O Cancioneiro Divinizado

    Que a obra potica de Jos de Anchieta apresenta evidncias de uma forte influncia

    do cancioneiro popular ibrico fato observado por muitos dos que se dedicaram ao estudo

    da lrica do jesuta.

    Se num primeiro nvel esta notada pela utilizao de formas potico-musicais como

    a cantiga, o romance e as trovas, os depoimentos de pessoas que conheceram Anchieta em

    vida, registrados por seus primeiros bigrafos, nos ajudam a ampliar em muito este quadro.

    De Pero Rodrigues,19 por exemplo, temos a declarao de que Anchieta

    mudava cantigas profanas ao divino, e fazia outras novas, honra de Deus e dos Santos, que se cantavam nas igrejas e pelas ruas e praas, todas mui devotas, com que a gente se edificava, e movia ao temor e amor de Deus. Tambm Simo de Vasconcelos20 nos informa que o padre

    traduziu em romances pios, com muita graa e delicadeza, as cantigas profanas que andavam em uso. Finalmente Joo de Souza Pereira,21 num dos primeiros processos cannicos

    institudos, relata que

    Ouvindo o Pe. Jos algumas cantigas profanas, logo compunha outras ao divino, contrafazendo-as e as fazia cantar; e a ele, testemunha, lhas dava escritas e as fazia cantar em lugar das profanas De fato, Anchieta adaptava textos religiosos de sua autoria a melodias cantadas pelos

    ndios e colonos do Brasil quinhentista. At a nenhuma novidade. Mesmo assim, seria til

    atentarmos novamente s informaes de Pero Rodrigues e Simo de Vasconcelos. Ora,

    mudar cantigas profanas ao divino e traduzir em romances pios [...] as cantigas profanas

    so definies perfeitas de um processo amplamente utilizado na literatura espanhola dos

    sculos XVI e XVII: a poesia vertida a lo divino, isto , a divinizao de obras profanas, ou 19 Anais da Biblioteca Nacional, vol. XXIX, 1907, p. 209. 20 VASCONCELOS, op. cit. (1672), 1943, p. 34. 21 Proc. inform. do Rio de Janeiro, f. 79 v., conf. ANCHIETA, op. cit., 1984, p. 40.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 11

    a criao de verses de carter religioso para canes populares. Mas exatamente o que

    caracteriza uma verso ao divino? Trata-se simplesmente de adaptar um texto religioso a

    uma cano popular? E at que ponto teria Anchieta feito uso deste processo?

    caractersticas da poesia vertida ao divino

    O processo consistia em se introduzir determinadas modificaes no texto original de

    alguma poesia ou cano escolhida, a fim de transformar seu sentido profano em espiritual.

    Isto se realizava geralmente com uma certa facilidade: algumas palavras eram substitudas e

    o texto adquiria um novo sentido religioso. As fontes preferidas para a divinizao

    revelaram ser as canes populares, e o motivo simples: j que todos as cantavam, seria

    um timo meio de propagao do sentimento religioso.

    Num dos estudos mais completos sobre o assunto, Bruce Wardropper define o

    contrafactum - termo latino que prope22 para a verso ao divino - como uma obra literria

    (s vezes uma novela ou um drama, mas geralmente um poema lrico de curta extenso) cujo

    sentido profano foi substitudo por outro sagrado. Se trata, pois, da refundio de um texto

    que, s vezes, conserva do original o metro, as rimas, e mesmo - desde que no contradiga o

    propsito divinizador - o pensamento.23

    Tomemos como exemplo o clebre romance de Don Gaiferos:

    Caballero, si a Francia ides, por Gaiferos preguntad.

    22 A escolha do termo contrafactum, em lugar do espanhol contrahechura, justificada pelo fato de que, como amplamente demonstrado no estudo, o processo no era fenmeno exclusivo da literatura espanhola. 23 WARDROPPER, Historia de la poesia lrica a lo divino en la cristandad occidental, Madrid, 1958, p. 6.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 12

    Dmaso Alonso, em seu estudo sobre a poesia ao divino em San Juan de la Cruz e

    Santa Tereza de Jesus,24 nota que existem verses em Lpez de beda:

    ngeles, si vais al mundo, por mi Esposa preguntad.

    em Pedro de Padilla:

    Sospiros que al cielo ides, por Dios Hombre preguntad.

    e em Lope de Vega:

    Lgrimas que al cielo ides, por mi Esposo preguntad.

    De Portugal Carolina Michalis de Vasconcelos apresenta-nos a verso de Sor

    Micaela Margarida de SantAnna (1581-1662):25

    Angeles, si al cielo ide[s] por mi esposo perguntade, e dizedle que su esposa se le enbia encomendar.

    Citando ainda outro exemplo,26 Lope de Vega incluiu em sua comdia El caballero

    de Olmedo uma cano recolhida da poesia tradicional:

    Que de noche le mataron al caballero, la gala de Medina, la flor de Olmedo.

    24 ALONSO, Poesia Espaola - Ensayo de mtodos y lmites estilsticos, Madrid, 1976, p. 228-229. 25 Que, segundo dizem, repetia hinos e formava ex-tempore romances e coplas inspiradas pela veia fecunda da piedade. E dizem mais que, poucos momentos antes de expirar, cantou com voz suave a copla acima. VASCONCELOS, Romances velhos em Portugal - estudos sobre o romanceiro peninsular, Porto, 1980, p. 131. 26 WARDROPPER, op. cit., 169-170.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 13

    Que foi por ele prprio divinizada, e em duas formas distintas. A primeira delas,

    contida no Auto de los Cantares

    Que de noche le mataron al caballero, la gala de Mara, la flor del Cielo.

    mudando muito pouco, apenas os nomes, mas de forma acertadssima. Numa

    segunda verso, includa no auto sacramental del Pan y del Palo, optou por uma versificao

    regular:

    Que de noche le mataron al divino caballero que era la gala del Padre y la flor de tierra y cielo

    Muitas vezes o divinizador indicava, na forma de epgrafe, a fonte da composio

    e/ou a melodia a ser utilizada,27 o tono, ou som, sobre a qual deve ser cantada. Assim,

    encontramos no Cancioneiro de Montesino,28 de 1527, entre outras a indicao:

    Cantanse al son que dice A la puerta esta Pelayo Y llora.

    para a composio que se inicia com os versos:

    Desterrado parte el Nio, Y llora, Dijole su madre as, Y llora, Callad, mi seor agora.

    27 Prez Gomez, citado por WARDROPPER, op. cit., p. 137, acredita que este foi a princpio um simples recurso para indicar ao jogral a melodia em que a copla ou o romance deveria ser cantado. Wardropper comenta ainda que esse costume j era conhecido nas sinagogas hebraicas desde o sculo VIII e estabelecido na liturgia crist na forma do incipit que encabea uma seqncia ou um salmo 28 SANCHA, Romancero y cancionero sagrados, 1950, p. 459.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 14

    Evidentemente a indicao do tono ou melodia em que se deveria cantar a verso

    contrafeita atravs da simples meno do primeiro verso era uma soluo bastante prtica e

    acabava produzindo o mesmo resultado que a reproduo em notao musical. Chamamos a

    ateno tambm para o fenmeno conhecido como centonizao, que o que ocorre em

    grande parte destes casos, onde um texto completamente novo adaptado melodia pr-

    existente. No existe a a refundio do texto, caracterstica da verso contrafeita ao divino.

    Outro processo bastante comum de divinizao consistia em se glosar ao divino, isto

    , tomando como mote um estribilho de determinada poesia ou cano popular, compor uma

    estrofe explicativa sobre cada um dos versos ou simplesmente compor um novo texto

    potico finalizando cada estrofe com um ou s vezes dois dos versos do mote.29

    difuso da literatura ao divino

    As formas tradicionais, especialmente o vilancico e o romance, eram as preferidas

    para a divinizao. No primeiro caso o mais importante para o divinizador era a cabea da

    composio, o estribilho, que por transmisso oral chegou aos sculos XV e XVI e

    permaneceu vivo na tradio popular. Quanto ao romanceiro tradicional, nota Menndez

    Pidal30 que todo romance muito divulgado provocava uma imitao religiosa, para ser

    cantada com a melodia que andava em voga, da em boa parte a origem do romanceiro

    sagrado.

    De qualquer maneira, o principal fator que indica se a cano, quer seja vilancico,

    romance ou outro gnero adequada divinizao o fato de ser bem conhecida. Esta

    utilizao interessada, devida no somente a motivos estticos ou dramticos salientada

    29 ALONSO, op. cit., p. 231, tambm nos lembra que, embora de forma menos freqente, ainda ocorria a "profanizao" de oraes litrgicas ou poesias religiosas, parodiadas em sentido ertico ou satrico. 30 Menndez PIDAL, Romancero hispnico, Madrid, 1953, vol. I, p. 345. Citado por WARDROPPER, op. cit., p. 186.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 15

    por Jos Maria Aln,31 embora de forma generalizada, quando observa que os poetas

    divinizadores no sentem nenhum embarao em acudir, e portanto adaptar-se, a qualquer

    que seja - despreocupando-se de sua qualidade ou bondade, tanto musical como textual -

    contanto que cumpram o requisito bsico e prioritrio: o de ser bem conhecida. Ilustrando,

    Aln cita o exemplo de Francisco de Ocaa que utiliza sem rubor algum uma cano de

    amor de frade

    No me digais, madre, mal del padre fray Antn que es mi enamorado y yo tngole en devocin.

    como tono de canes religiosas. No se surpreende tambm com o fato de que, para

    cantar um vilancico pastoril que comea com

    Pascualejo, que has habido? Como ests tan aturdido?

    Ocaa tenha indicado o uso da melodia de

    Mi marido anda cuitado yo jurar que est castrado

    De fato, a grande voga do gnero no sculo XVI, aliada aparente facilidade com

    que podem ser compostas as verses acabou resultando tambm numa literatura de

    qualidade inferior, quando no absolutamente disparatada, satirizada por Polo de Medina no

    Hospital de incurables. Entre os incurveis encontra-se um divinizador literrio, que

    pergunta ao diretor do manicmio:

    31 ALN, ed. Cancionero tradicional, Madrid, 1991, p. 20-21.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 16

    -- Hay mandamiento de no poetars? No por cierto. Pues por qu me traen aqu? -- No os han trado por poeta [se le contesta], sino porque sois poeta de volver romances, y andis trabucando las coplas de humano en divino, diciendo en ellas cosas indignas. Bellaco, en qu pensabais cuando dijisteis:

    Helas, helas por d vienen Madalena, Mara y Marta, a ms no poder mujeres, fembras de la vida harta?32

    claro que estes eram casos extremos. Mais comumente procurava o divinizador

    uma transio delicada, conservando tambm o ethos da composio. Neste sentido, j

    consideramos o caso exemplar de Lope de Vega.

    poesia e msica cultas

    No somente no plano do cancioneiro tradicional ocorria a divinizao. Na Frana,

    por exemplo, a poesia de Ronsard mudada ao divino, e de forma bastante dramtica.

    Charles Conte e Paul Lamounnier33 notam que sem pudor, ou melhor, por excesso de

    pudor, se transformavam os sonetos amorosos e odes bquicas em canes devotas e em

    stiras contra a embriaguez. Estas verses foram tambm musicadas por vrios

    compositores, entre eles Orlando Lassus. Encontramos, por exemplo, no Thresor de

    musique dOrlande de Lassus (Kln, 1593) o texto original

    Ores que je suis dispos Je veux boire sans repos

    convertido em

    Ores que tu sois dispos Faut-il boire sans repos?

    32 Citado por WARDROPPER, op. cit., p. 185-186. 33 CONTE e LAMOUNNIER, Ronsard et les musiciens du XVIe sicle, Revue dHistoire Littraire, VII, 1900, p. 341-381. Citado por WARDROPPER, op. cit., p. 279-280.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 17

    Exemplos em maior quantidade ainda existem na Itlia, como as divinizaes do

    Canzoniere e dos Trionfi de Petrarca, das Rime amorose de Tasso e do Orlando de

    Ariosto, transformado em Il Furioso spirituale por Vincenzo Marini em 1596. Tambm

    Monteverdi teve, em 1608, seu quinto livro de madrigais publicado em latim pelo cannico

    Coppini "para que se pudessem cantar nas Igrejas".34 Isto sugere ainda que, no plano da

    msica e poesia cultas, o fenmeno de divinizao possivelmente ocorreu na Itlia de forma

    mais ampla ainda do que na Espanha. Entretanto, gostaramos de destacar mais um exemplo

    espanhol.

    Em 1589 Francisco Guerrero publicou em Veneza sua coleo de Canciones y

    villanescas espirituales, contendo vrias verses ao divino de poesias musicadas por ele

    prprio em sua juventude, a includos, entre outros, textos de Garcilaso de da Vega,

    Gutierre de Cetina e Baltasar de Alczar. O prlogo, de Mosquera de Figueroa justifica a

    publicao da seguinte forma:

    y no pudiendo resistir a la importunacin de sus amigos, y gente curiosa, y aficionada Msica, que hizieron instancia con l, para que sacara en publico este libro, por que andando de mano en mano, se iba con el tiempo perdiendo en sus obras la fidelidad de su compostura, o no quedaba en ellas mas, que el nombre del autor, suele forzoso condescender con lo que todos le pidieron, con condicin, que las Canciones profanas se convertissen lo divino, y otras, que por ser morales se quedaron en su primero estado.

    A obra de especial interesse para este estudo pois nos permite observar as

    modificaes feitas tambm no texto musical quando da divinizao. De fato, a mudana do

    texto de determinada obra musical gera o problema esttico ao qual nos referimos

    anteriormente: adapta-se o novo texto com naturalidade msica pr-existente? E isto no

    apenas no campo da prosdia, pois a msica j leva consigo toda uma carga de afetos.

    Notemos, por exemplo o caso de Ojos claros, serenos:

    34 Citado por Miguel Querol Gavald, em GUERRERO, Opera omnia, vol. 1 - Canciones y villanescas espirituales, Barcelona, 1955, p. 22.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 18

    verso profana

    Ojos claros, serenos, si de un dule mirar sois alabados, por qu, si me miris, mirais airados? Si, quanto ms piadosos, ms bellos pareeis a quin os mira, no me miris con ira, porque no parezcis menos hermosos. Ay, tormentos raviosos! Ojos claros, serenos, ya que ans me miris, miradme almenos.

    verso ao divino

    Ojos claros, serenos, que vuestro apstol Pedro an ofendido, mirad y reparad lo que perdido. Si, atado fuertemente, queris sufrir por m ser aotado, no me miris ayrado, porque no parezcis menos clemente: pues lloro amargamente, bolved, ojos serenos, y, pues mors por m, miradme al menos.

    A considervel modificao do texto levou Guerrero a revisar a parte musical desta

    pea, o que no ocorre no restante da coleo, onde as verses seguem muito mais de perto

    o modelo original. A partir de uma comparao entre o primeiro tiple de ambas as verses,

    observamos algumas das mudanas efetuadas:

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 19

    Europa e mais alm

    A maioria dos estudos sobre o processo de divinizao de obras profanas concentra-

    se na literatura e msica espanholas. Dmaso Alonso,35 justifica:

    en ningun sitio el proceso de divinizacin de obras profanas haya durado tanto tiempo, tenido tal desarrollo, alcanzado a tantos gneros distintos y ofrecido tantos matices como en Espaa. Mas o fenmeno atingiu tambm outros pases, e no s os de cultura latina. Tambm

    no se restringiu ao sculo XVI. novamente Wardropper36 quem demonstra a difuso

    35 ALONSO, op. cit., p. 222. 36 WARDROPPER, op. cit., p. 233-253.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 20

    deste tipo de literatura notando que as verses ao divino, em geral, so um fenmeno da

    cristandade inteira, tanto protestante como catlica, e que parecem haver existido desde o

    primeiro milnio. Considera que sua idade de ouro deu-se na Frana do sculo XIII, na

    Espanha, Alemanha e Itlia de fins do sculo XV e durante todo o sculo XVI, enquanto que

    na Inglaterra houve casos espordicos em vrias pocas.

    Note-se o caso do Greensleeves. Publicado pela primeira vez em 1580, menos de dez

    dias depois desviado de seu uso profano para servir ao elogio divino. No Stationers

    register descrito como Greensleeves, moralizado em conformidade com a Sagrada

    Escritura para declarar as mltiplas vantagens e bendies que outorga Deus ao homem

    pecaminoso. Verses divinizadas desta cano continuam a ser compostas at em nosso

    sculo.

    de se destacar na Frana a figura de Margarita de Navarra, cujas chansons

    spirituelles, publicadas em 1547, muitas vezes so destinadas a ser cantadas sobre melodias

    populares, como:

    sus Sur le pont dAvignon, joys chanter la belle. Sur larbre de la croix dune voix clere et belle Jay bien ouy chanter une chanson nouvelle. onde no apenas a melodia preservada, como tambm as rimas e alguns detalhes

    temticos.

    Na Florena do sculo XV era costume alternar-se as mascaradas e canzoni a ballo do

    carnaval com as sacre rappresentazioni e as canes espirituais sobre melodias profanas

    executadas pelos jovens das fraternidades religiosas. A prtica se acentuou no sculo XVI, a

    ponto de vermos numa coleo de laudi spirituali de 1512 que o hino Jes sumo diletto

    deveria ser cantado com a melodia de Leggiadra damigella; Genetrice di Dio com a de

    Dolce anima mia e Crucifisso a capo chino com a de Una donna damor fino, uma das mais

    indecentes das canzoni a ballo.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 21

    E da Alemanha, onde at as canes de beber eram s vezes divinizadas, Wardropper

    cita o exemplo de uma cano ainda hoje bastante popular nos pases germnicos:

    Innsbruck, ich muss dich lassen, ich fahr dahin mein Strassen, in fremde Land dahin. Mein Freund ist mir genommen, die ich nit weiss bekommen, wo ich im Elend bin.

    contrafeita pelo reformista Johan Hesse (1490-1547), em:

    O Welt, ich muss dich lassen, ich fahr dahin mein Strassen ins ewig Vaterland. Mein Geist will ich aufgeben dazu mein Leib und Leben setzen gndig in Gottes Hand.

    Voltando ao mundo ibrico, so encontrados exemplos em Portugal entre outros na

    citada Sor Micaela Margarida de SantAnna e especialmente nas Vrias rimas ao Bom

    Jesus (1594) de Diogo Bernardes, que consideraremos mais adiante.

    Finalmente, agora passando ao novo mundo, vamos encontrar no Peru a figura de Santa

    Rosa de Lima (1586-1617), que verte a cano

    La media noche es pasada, y no viene: sabedme si otra amada lo detiene

    citada em La Celestina, que parece reminiscncia da popular Si la noche hace escura, em

    Angel de mi guarda, vuela y dile a mi Dios que por qu tarda; la media noche es pasada, y no viene; sabedme si hay otra amada que lo entretiene.37

    37 WARDROPPER, op. cit., p. 179-180.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 22

    Indcios da utilizao deste processo to comum em toda a cristandade do sculo XVI

    encontraremos tambm em terras brasileiras, mais especificamente na parcela espanhola da

    produo literria de Jos de Anchieta.

    Anchieta ao divino

    estudos sobre o processo de divinizao em Anchieta

    Na apresentao de seu estudo sobre a poesia de Jos de Anchieta, Eduardo

    Portella38 j sugeria que

    Talvez pudssemos estabelecer uma relao da poesia de Anchieta com o cancioneiro ibrico, tantos devem ter sido os romances por ele escutados na infncia ou adolescncia. Jos Gonzlez Luis.39 vai um pouco mais adiante ao afirmar que o metamorfosear ao

    espiritual constitui a essncia da maioria das poesias anchietanas. Colocando nosso poeta

    entre os altos representantes do fenmeno de divinizao de obras profanas, sugere que o

    modelo principal de inspirao das poesias anchietanas deve ser buscado numa original

    imitao da poesia cancioneiril e na divinizao de letras profanas Todavia, como no caso

    de Portella, seus comentrios permanecem apenas no nvel da sugesto e o assunto no

    desenvolvido.

    O mesmo no ocorre com Armando Cardoso, que demonstra uma maior compreenso

    do fenmeno. Em, sua introduo lrica espanhola, por exemplo, busca evidenciar uma

    srie de paralelos entre as poesias do jesuta e obras de autores espanhis do sculo XVI.40

    38 ANCHIETA, op. cit., 1977, p. 10. 39 LUIS, op. cit., p. 271. 40 ANCHIETA, op. cit., 1984, p. 19-29.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 23

    Nestas comparaes, seu objetivo foi, como ele prprio explica, o de "rastrear alguns

    exemplos do que o nosso poeta podia ter lido nessas colees, cotejando-o com o que ele

    prprio escreveu, quase como uma possvel e longnqua reminiscncia".41 Dentre estes,

    destacamos o confronto entre a poesia Maria, luz del da, de Fernn Prez de Guzmn e a

    cano de Anchieta Recemos, Ruben, la prima:

    Lpez de Guzmn

    Cual balada e cancioneta bastara a te loar, con perfecta meloda?

    Anchieta

    Nuestra prima y nuestra hermana es Mara, que cubri con nuestra lana al Mesa

    Armando Cardoso nota que Anchieta parece ter imitado a estrofe, os versos e at as

    rimas do poema de Guzmn. No entanto, como em todos os exemplos apontados em seu

    estudo, os paralelos so encontrados entre poemas de contedo religioso, tanto no texto

    supostamente original como no de Anchieta. J que o teor moral no sofre modificaes,

    no podemos ainda falar em transposio e o prprio Cardoso procura, mais adiante,

    dissipar qualquer sugesto de que Anchieta tivesse criado verses para poesias alheias:42

    no se deve ver propriamente uma dependncia literria direta, mas um sentir comum, com expresses s vezes semelhantes, mas tambm com suas caractersticas a definir um estilo particular.

    Todavia, em sua anterior obra Teatro de Anchieta, de 1977, Cardoso apresentava

    um exemplo dessa negada "dependncia direta", que constitui-se na primeira evidncia

    41 ANCHIETA, op. cit., 1984, p. 21. 42 ANCHIETA, op. cit., 1984, p. 29.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 24

    detectada do processo de divinizao de obras profanas em Anchieta. Trata-se da

    comparao entre a pea O Pelote Domingueiro, do jesuta e as Trovas do Moleiro:43

    O assunto das trovas do moleiro vem da idade mdia. Guardam-se na Biblioteca do Porto quatro composies, transcritas por Tefilo Braga em sua Antologia Portuguesa. [...] Anchieta refaz toda a letra da cantiga e aprimorou-se em dar-lhe magnfico sentido bblico.

    A Biblioteca Nacional, em Lisboa tambm possui outra edio, praticamente

    idntica, das Trovas do Moleiro. Tanto estas quanto a verso de Anchieta so baseadas no

    mesmo mote:44

    J furtaram ao moleyro seu/o pelote domingueiro.

    Comparando as obras, notamos que algumas estrofes so muito semelhantes:

    Trovas do moleiro45

    [29] Furtaram-lhe um pelote que chegou a trez tostes j no falo dos botes, que eram de pano mui forte; um debrum de chamalote tinha um quarto dianteiro o pelote domingueiro.

    O pelote domingueiro46

    [52] Tinha um monte de botes em o quarto dianteiro, que lhe deram sem dinheiro, que so os divinos des. Por menos de dois tostes, foi o parvo do moleiro a vender tal domingueiro.

    Tais similaridades, aliadas existncia de um mote comum, parecem confirmar a

    possibilidade aventada por Cardoso. Entretanto, somos mais propensos a crer que tanto

    Anchieta como os quatro autores das Trovas do Moleiro reportam a uma mesma composio

    anterior, tomando-a como modelo, e isso no apenas no que se refere ao uso do mote. No

    segundo caso a confirmao parece ser dada pelo prprio ttulo: trovas novamente feytas do

    43 ANCHIETA, op. cit., 1977, p. 63. 44 Ver anexos, p. 117-121. A verso que utilizamos a de BRAGA, Antologia portugueza, Porto, 1876, p. 247. Em colchetes a nica variao no mote de Anchieta. 45 BRAGA, op. cit, p. 248. 46 ANCHIETA, op. cit., 1989, p. 425.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 25

    moleyro. Lembramos entretanto que na literatura desta poca a indicao novamente feito

    nem sempre significa refeito, ou feito mais uma vez, mas apenas que uma nova obra

    impressa. Existem outras razes, contudo, que indicam que estas Trovas do Moleiro no so

    exatamente as que Anchieta conheceu.

    Referimo-nos data de impresso destes folhetos: 1602, segundo Barbosa Machado.

    A informao dada por Inocncio Francisco da Silva, no Dicionrio bibliogrfico

    portugus,47 onde conclui que o impressor Antnio Alvarez s comeou a trabalhar em

    Lisboa muitos anos depois de 1544 e que em 1621 j havia sido substitudo por seu filho de

    mesmo nome. Todavia, Barbosa Machado s menciona uma impresso das Trovas do

    Moleiro e nem o exemplar do Porto e nem o de Lisboa apresentam informaes sobre o ano

    e local da impresso, existindo a possibilidade de se tratarem de duas ou mesmo trs datas

    diferentes. Notamos, porm, que os caracteres tipogrficos e gravuras dos dois exemplares

    em questo so os mesmos utilizados por Antnio Alvarez e seu filho durante toda a

    primeira metade do sculo XVII, bastante diversos do estilo do sculo anterior. Quanto aos

    autores, Barbosa Machado informa apenas a respeito da procedncia de um deles, Lus

    Brochado, natural de Tnger.

    Acreditamos que a verso das Trovas do Moleiro conhecida por Anchieta anterior

    s duas impresses de que dispomos, provavelmente transmitida oralmente e que constituiu-

    se em base para as variaes posteriores.

    De qualquer forma, todas estas consideraes nos fazem concluir que o processo de

    divinizao de obras profanas na obra de Anchieta tenha ocorrido de forma mais ampla e

    mais explcita do que at hoje tem sido demonstrado.

    47 SILVA, Dicionrio bibliogrfico portugus, Lisboa, 1860, vol. 5, p. 234.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 26

    verses ao divino de canes populares

    A exemplo dos poetas divinizadores espanhis, tambm Anchieta fornece indicaes

    do tono, ou melodia a ser utilizada, na forma de epgrafe em vrios de seus poemas.

    Consideraremos a seguir cada uma delas.

    S. Tom de Mira

    A epgrafe encontra-se s folhas 13-13v do cdice de poesias de Anchieta,

    encabeando a poesia que tem como primeira de dez estrofes:48

    S. tomedemira Oh Dios infinito por nos humanado, voos tan chiquito que estoy espantado! .............................

    O ttulo interpretado como So Tom de Mira pela maioria dos crticos. Maria de

    Lourdes de Paula Martins lembra tambm que Mira uma vila de Portugal, no Douro,

    freqentada por romarias, especialmente a de So Tom, em 24-25 de julho. J Viotti l So

    Tom admira,49 Entretanto, a poesia no dedicada a So Tom, nem a ele se refere.

    Cardoso sugere que poderia ser, portanto, o ttulo de um hino, sob cuja melodia se devia

    cantar esta composio. Isto parece bem provvel, tambm porque mtrica do ttulo igual

    dos versos.

    48 ANCHIETA, op. cit, 1989, p. 464-465. 49 VIOTTI, op. cit., p. 242-243.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 27

    cantiga por o sem ventura / el sin ventura

    folha 25 do cdice encontramos a seguinte poesia em tupi:50

    Cantiga por o sem ventura a N. Sra. Tupansy poranget, oropb oromanmo, or moigob jep nde membyra moyrmo, inongatubo; or rarmo, or nga pysyrmo. ..............................

    Me de Deus muito formosa, conforta-nos na nossa morte, fazendo manso o teu filho e compassivo; defende-nos, salva a nossa alma.

    prosseguindo por mais quatro estrofes e sob a mesma epgrafe, folha 26, outra em

    quatro estrofes, iniciando com a seguinte51

    Cantiga por el sin ventura Jand rubet Iesu, jande rekob meegara oimomboreausukat jand amotareimbra anga aba morapitira jand nga jukasra. ..............................

    Jesus, nosso verdadeiro pai, senhor de nossa existncia, aniquilou nosso inimigo, o anjo mau, o corruptor, assassino de nossa alma.

    Cardoso p. 68 nota que Jand rubet Jes e Tupansy poranget possuem o mesmo

    estribilho de Oh nia, hermosa estrella (f. 132v-133) e Aquel que tiene por nombre (f. 133v-

    134), sendo provvel que fossem cantadas com a mesma melodia.

    50 ANCHIETA, op. cit, 1989, p. 569-570. As tradues do tupi neste exemplo e nos seguintes so de Maria de Lourdes de Paula Martins. 51 ANCHIETA, op. cit, 1989, p. 573-574.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 28

    Quanto sua identificao podemos somente fazer algumas conjecturas. El que

    naci sin ventura / solo va sin compaia so os primeiros versos de um romance de Nuez

    de Reynoso, impresso em 1552.52 No corresponde exatamente epgrafe e tampouco h a

    identificao morfolgica. A temtica do desdichado, contudo, bastante comum na

    literatura da poca, mesmo no cancioneiro tradicional, e o fato de que o tono indicado em

    duas lnguas faz-nos pensar que o ttulo usado por Anchieta aludisse ao assunto da cano,

    no sendo apenas a reproduo do primeiro verso. Partindo desta hiptese, voltemos nossa

    ateno para um dos mais populares romances ibricos no estilo das endechas:53

    Parime mi madre una noche escura, cubrime de luto faltome ventura .......................

    [29] Muriendo, mi madre, con voz de tristura psome por nombre hijo sin ventura. .........................

    Impresso e citado vrias vezes durante os sculos XVI e XVII, o romance ainda

    persiste no folclore sefard.54 Muito sugestivas so as endechas ao som de Parime mi

    madre, de Pero de Andrade Caminha, pois nos permitem constatar a popularidade do tema

    entre os poetas portugueses e a difuso da prtica de se compor poesias sobre canes

    conhecidas.55

    52 Reproduzido em DURN, Romancero general, Madrid, 1945, vol. 2, p. 418, n 1362. 53 Impresso em Flor de enamorados, 1550, totalizando dez estrofes. Citado na antologia de ALN, op. cit., p.231-233, n 306. 54 Segundo FRENK, Corpus de la antigua lrica popular hispnica, p. 357, n 772, supervivencias, que cita ALVAR, Endechas judeo-espaolas, Granada, 1953, n 11b; cf. 11a:

    Parime mi madre en una noche oscura ponme por nombre nia y sin fortuna.

    55 VASCONCELOS, Pero de Andrade Caminha, Lisboa, 1982, p. 38-39, acha mesmo que a cano Do la mi ventura / que no veo ninguna, de Cames, era cantada com a mesma msica. Tambm Antonio Prestes cita o romance na representao que precede o Auto dos dois irmos, conf. VASCONCELOS, op. cit., 1980, p. 203-204.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 29

    Admitindo a hiptese de ser esta a cantiga por El sin ventura, confrontamo-nos com

    a divergncia mtrica entre o romance e as correspondentes poesias de Anchieta. claro

    que, dependendo do carter silbico ou melismtico da cano original, possvel a

    adaptao de textos de mtrica diversa a uma mesma melodia. Alm disso existem exemplos

    de divinizaes com modificao da mtrica e mesmo da estrutura originais.56 Infelizmente

    no localizamos nenhuma verso musical das endechas, nem contempornea do jesuta e

    nem das remanescentes na tradio popular, o que por hora impossibilita novas

    comparaes.

    querendo o alto Deus

    A seguir o primeiro quarteto de uma cantiga em tupi, registrada s folhas 25v-26 do

    cdice, que perfaz seis estrofes:57

    Cantiga por querendo o alto Deus Jand kaemyra, jand rauspa, Tup am kuangat mongi. Ab sos pabe imomorngi tekokat res imojekospa. ..............................

    Amando-nos, a ns condenados, Deus criou uma santa. Mais linda que toda a gente, pela virtude a enalteceu.

    56 Para citar um, encontramos no Cancioneiro D. Maria Henriques, atribudo a D. Francisco da COSTA, Lisboa, 1956, a cano

    En la pea y sobre la pea duerme la nia y suea

    indicada p. 356 como tono para

    En la pea firme, Cristo, y sobre tan firme pea, duerme Agustino y suea

    e p. 418 para

    Francisco, nosso professo, pobre, casto e obediente exemplo sers da gente.

    57 ANCHIETA, op. cit, 1989, p. 571-572.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 30

    A mtrica diferente nos faz pensar que epgrafe no representa o primeiro verso

    completo. A este respeito, valem aqui as observaes feitas no tpico anterior. Esta epgrafe,

    juntamente com O sem ventura, difere das demais por se apresentar em portugus e, ao lado

    de Quin tiene vida en el cielo e S. tomedemira (no caso de se tratar mesmo de cano), por

    ser das poucas de carter religioso. Talvez estas cantigas j fossem divinizaes.58

    Novamente, embora exista um romance de ttulo parecido - queriendo el Seor del cielo59 -

    no foi possvel a identificao.

    cantiga polo tom de quien tiene vida en el cielo

    a outra epgrafe de teor religioso, tambm usada para indicar a melodia de um

    poema em tupi (f. 74v) integrante do Auto de S. Loureno. Neste caso a mtrica da epgrafe

    equivale dos versos. Devido sua curta extenso, reproduzimo-lo integralmente:60

    Cantiga polo tom de Quien tiene vida enel cielo Tasory jand rayra Tup opysyronspe! Guaixar tos tatpe!... Guaixar tos tatpe!... Guaixar, Aimbir, Saraui tos tatpe...

    Alegrem-se os nossos filhos por Deus os ter libertado! Guaixar v para o inferno!.. Guaixar v para o inferno!.. Guaixar, Aimbir, Saravaia vo para o inferno...

    Volta

    [7] Tasoryb, oikokatubo, tek poxy pura tyma, Tup mokaemeyma, anga rausupebo.

    Alegrem-se, vivendo bem, enterrando os velhos maus hbitos, no afugentando a Deus, e repudiando ao diabo.

    [11] Tasoryb, oputugubo, Tup opysyronspe! Guaixar tos tatpe!.. Guaixar tos tatpe!.. Guaixar, Aimbir, Saraui tos tatpe...

    Alegrem-se, em paz, por Deus os ter libertado! Guaixar v para o inferno!.. Guaixar v para o inferno!.. Guaixar, Aimbir, Saravaia vo para o inferno...

    58 Como o caso de Quin te visit, Isabel?, que consideraremos adiante. 59 SANCHA, op. cit., p. 303. 60 ANCHIETA, op. cit, 1989, p. 719-720.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 31

    sobre el ciego amor

    Esta epgrafe encontrada em duas das poesias em espanhol, localizadas s folhas

    94v-95v do cdice de Anchieta, ambas em cinco estrofes. Reproduzimos as primeiras de

    cada um dos poemas61

    sobre el ciego amor El buen Jesus me prendi, y me di por madre aquella que yo moria, sin ella, y ella vida me di. ..............................

    Outra pola mesma toada Esta se cantou estando S. L.o nas grelhas Por Ies, mi salvador, que muere por mis mancillas, me aso en estas parrillas, con fuego de su fuerte amor. ..............................

    mais uma vez Cardoso quem v nessas palavras no um ttulo, mas a indicao da

    msica que, para o pesquisador, comeava com o verso El ciego amor me prendi. Imagina

    que seria uma cano popular da poca mudada ao divino por Anchieta.62

    O tema do cego deus de amor tambm foi bastante explorado na poca,

    especialmente no campo da poesia culta. Encontramos, por exemplo, no romanceiro de

    Durn, ttulos como Cuando el ciego dios de amor e Forzado del ciego amor.63 Na esfera

    tradicional, assunto muito mais comum o do cego de amor, ainda presente no romanceiro

    61 Ver anexos, p. 99. 62 Em ANCHIETA, op. cit., 1984, p. 91, nota 1, Cardoso sugere: A 1 estrofe profana ou primitiva devia ser algo assim:

    El ciego amor me prendi, y me di por dona aquella que yo mora sin ella, y ella vida me di. 63 DURN, op. cit, ns 1881 e 494 respectivamente.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 32

    popular ibero-americano. Nenhum destes apresenta qualquer similaridade com as cantigas

    de Anchieta.

    por graci gco gtz

    Aparecendo por trs vezes no manuscrito, a mais utilizada e tambm a mais

    enigmtica das epgrafes. Encontramo-la primeiramente encabeando o poema s folhas

    131-131v:

    por graci gco gtz Cuando la muerte quera combatir al rey del cielo, l, con mortal agona, de rodillas se pona con su rostro por el suelo64 ..............................

    que prossegue por mais oito quintilhas. O poema de quatro estrofes imediatamente

    seguinte (f. 131v-132), embora sem indicao de tono, deve ter sido cantado com a mesma

    melodia. A semelhana bvia especialmente na primeira quintilha:

    Cuando la Virgen Mara quiso vencer el corsario, que las almas destrua, orden que, cada da, se rezasse su rosario. ..............................

    64 Ver anexos, p. 100. H uma certa semelhana entre os primeiros versos desta composio e uma cano de Mira de Amescua citada na antologia de FRENK, op. cit., p.393, n 870A, correspondencias:

    Qundo ser aquel da Seor de tierra y cielo que deste fuego libres vuestra vista gocemos

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 33

    A epgrafe surge novamente s folhas 147v. e 171v, agora em um poema de nove

    quintilhas em tupi. Da composio, que aparece repetida no cdice, apresentamos a primeira

    estrofe da segunda verso:65

    Da Conceio de N. S.a por graci gco gtz

    Eva, jand sy ypy oemomotaret yb pornga res, mbia enga rupi ijikybo, igubo e. ..............................

    Eva, nossa primeira me, cobiou muito a bela fruta, pelas palavras da cobra colhendo-a, comendo-a.

    No se pode afirmar com certeza de que se trate de uma indicao de melodia.

    Existem mesmo vrias hipteses a respeito. Viotti sugere que se trate da abreviatura de um

    nome, talvez Graci Gonalo Gutirrez. A hiptese de Martins, que imagina o ttulo Por

    graciar Jes Cristo, decididamente mais fraca, o que por ela reconhecido ao incluir a

    abreviatura entre os problemas que em seus estudos no lograram soluo cabal. Cardoso,

    novamente, acredita que se trate das primeiras palavras de uma cano popular de seu tempo

    que, talvez por profana demais, o jesuta no quis nunca desdobrar. No nos parece muito

    fcil, substituindo as abreviaturas por palavras correspondentes em espanhol ou portugus,

    formar algum verso que faa sentido. Talvez em idioma basco, lngua materna do pai de

    Anchieta. Na falta de outras solues optamos por uma mescla das hipteses de Viotti e de

    Cardoso: a abreviatura significaria um nome prprio, contido no primeiro verso da cantiga

    ou indicando o compositor. Devemos reconhecer, contudo, que o segundo caso seria

    bastante incomum, pois de fato existem canes citando nomes pessoais, mas no

    localizamos nenhum caso de meno do compositor como indicao de tono.

    65 ANCHIETA, op. cit., 1989, p. 663-664.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 34

    polo moleiro

    O significado desta epgrafe, para a composio em tupi s folhas 169v-170,

    revelado pela comparao com as j citadas Trovas do moleiro. Notemos apenas a primeira

    das treze estrofes:66

    polo Moleiro

    Pitangi morausubra jand rba, jand jra.

    O meninozinho querido nosso pai, Nosso Senhor.

    Pitangi pa Iesu oguejy jand rekope. Jand nga rausuppe, ybat su o jand rausba kat, pitangi morausubra jand rba, jand jra. ..............................

    O meninozinho Jesus desceu nossa morada. Por amar a nossa alma, veio do cu o nosso grande amor, o meninozinho querido, nosso pai, nosso senhor.

    Cardoso j havia concludo que a poesia seria cantada com a msica do Pelote

    domingueiro, da a razo da mesma mtrica, a quintilha com o estribilho, no mesmo

    esquema de rimas. Ora, isso implicaria em que tanto o Pelote domingueiro, de Anchieta

    como ainda as Trovas do moleiro portuguesas fossem tambm musicadas. Se servir de apoio

    a esta hiptese, destacamos que uma das trs gravuras impressas na pgina de rosto das duas

    edies das trovas apresenta um tocador de gaita de foles. Como comum nos autos

    impressos da poca, as gravuras representariam as personagens, indicando tambm a

    destinao cnica das trovas.67

    Assim como a temtica do desventurado e do cego amor so muito comuns na

    literatura dos sculos XVI e XVII, tambm proliferam canes de moleiro, especialmente na

    66 ANCHIETA, op. cit., 1989., p. 655-660. 67 Ver anexos.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 35

    msica tradicional. Orellana, Padilla, Lope de Vega e Tirso de Molina, entre outros,

    incluram canes deste tipo em obras para o teatro. H at uma ensalada potico-musical -

    El molino - de Chacn, uma espcie de pout-pourri de canes sobre o assunto. Nada h,

    entretanto, que nem de longe lembre as Trovas do moleiro.

    Mira Nero

    A interpretao do ttulo desta composio (f. 94-94v) tem gerado alguns mal-

    entendidos. J em 1948 Maria de Lourdes de Paula Martins, referindo-se possibilidade de

    a poesia pertencer ao auto de So Loureno, contestava algumas opinies estabelecidas:

    Nero no parece personagem do auto. [...] Aps o Finis com que se encerra a pea

    encontra-se, no manuscrito, uma poesia intitulada Mira Nero!. Mas nada informa sobre a

    presena do imperador. Para Cardoso,68 o ttulo indicaria as primeiras palavras de uma

    cano de amor incorrespondido, em que Nero seria o cruel, o duro, o ingrato. Em outras

    palavras, uma transposio ao divino de uma cano profana, cuja msica seria mantida.

    A hiptese de Cardoso encontra-se bastante prxima da verdade. Trata-se de fato de

    uma divinizao, no de uma cano de amor, mas do romance Mira Nero de Tarpeya, da a

    razo da presena desta figura no ttulo de uma poesia sobre o Jesus sacrificado. O romance

    foi vrias vezes impresso avulso e em cancioneiros espanhis do sculo XVI.69 Citado e

    parodiado em obras literrias do perodo,70 aparece musicado em pelo menos quatro verses

    68 ANCHIETA, op. cit., 1984, p. 67. 69 Cancionero de romances, 15__, p. 212 a 214; Espejo de enamorados, 15__, f. 6v e 7; Silva de varios romances, 1578; Cancionero atribudo a Velzquez de VILA, 15__. Ver anexos, p. 122-123.

    70 Como observa Carolina Michalis de VASCONCELOS, op. cit., 1980, p. 185-186, o romance foi

    memorado constantemente em livros castelhanos como a Celestina, o Orfeo de Cancer, o Diablo Cojuelo (Tranco V, 51, v); citado por Lopes na Roma abrasada, e por Alarcn na comdia Mudarse por mejorarse (Acto II Cena XIV) e parodiado no Don Quixote (Parte II, Cap. 44 e 58)

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 36

    diferentes.71 Os quatro primeiros versos72 do romance encontram eco em Mira Nero de

    Anchieta:73

    Velzquez de vila

    Anchieta

    Mira Nero Mira Nero, de Tarpeya A Roma como se ardia: Gritos dn nios y viejos, Y l de nada se dola. El grito de las matronas sobre los cielos subia; Como ovejas sin pastor Unas tras otras corrian, Perdidas, descarriadas, [10] Llorando lgrima viva. Todas las gentes huyendo A las torres se acogian; Los siete montes romanos Lloro y fuego los hundia. En el grande Capitolio Suena muy grande voceria: Por el collado Aventino Gran gentio discurria, Y en Cabalo y en Rotundo [20] La gente apenas cabia. Por el rico Coliseo Gran nmero se subia; Lloraban los dictadores, Los cnsules porfia; Daban voces los tribunos, Los magistrados plaian, Los cuestores lamentaban,

    Mira el malo, con dureza, a Jess, como mora. Lloraba la redondeza, con dolor y gran tristeza... Y l de nada se dola!

    [6] La justicia furiosa, viendo en pena al inocente, deca, muy rigorosa: Sumo Dios omnipotente! no vengis tan grave cosa?"

    [11] Mas la clemencia, muy pa, del hijo de Dios clamaba, y al Padre perdn peda para aquel que lo mataba. Y l de nada se dola!

    [16] El sol con verguenza y duelo, ver morir a Dios no pudo, y cubrise oscuro velo, porque mora desnudo, en la cruz, el rey del cielo.

    [21] Toda la tierra bulla, y las piedras se quebraban. En noche se vuelve el da. Todas las cosas lloraban... Y l de nada se dola!

    [26] El corazn de la madre de dolor est oprimido,

    Uma verso a lo divino deste romance, de autoria de Lpez de beda, apresentada por ALONSO, op. cit., p. 228:

    Mira el Limbo Lucifer de los santos residan gritos dn nios y viejos y l de nada se dola. 71 BERMUDO, Declaraccin de instrumentos, 1555, f. 101 e 101v (duas verses, ver anexos); FLECHA, Las ensaladas, 1581, f. 1 a 3 (ver anexos); Venegas de HENESTROSA, Libro de cifra nueva, 1557, f. 55 e 55v (ver anexos). 72 A verso que utilizamos a de Velazquez de VILA, contida em DURAN, op. cit., vol. I, p. 393-394 [n 571]. 73 ANCHIETA, op. cit., 1989, p. 493.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 37

    viendo su hijo querido ser de Dios, su eterno padre, como puesto ya en olvido.

    [31] Puesto en mortal agona, su Seor y Dios miraba, y viva, con l mora. Mas el malo duro estaba, y de nada se dola!

    Los senadores gemian Llora la rden ecuestre, [30] Toda la caballeria, Por la crueldad de Neron Que lo ve con alegria. Siete dias con sus noches La ciudad toda se ardia; Por tierra yacen las casas, Los templos de talleria. Los palacios mas antiguos, De alabastro y silleria, En ceniza van por tierra [40] Los lazos y pedreria; Las moradas de los dioses Han triste postrimeria. El templo capitolino Do Jpiter se servia, El grande templo de Apolo, Y el que de Mars se decia, Sus tesoros y riquezas, El fuego los derretia. Por los carneros y osarios [50] La gente se defendia, De la torre de Mecnas Lo miraba todo y via El ahijado de Claudio Que su padre parescia, Que su Sneca di muerte; El que matara su tia; El que antes de nueve meses Que Tiberio se moria, Con prodigios y seales [60] En este mundo nascia; El que persigui cristianos, El padre de la tirania, De ver abrasar Roma Gran deleite rescebia. Vestido en cnico traje Decantaba en poesia. Todos le ruegan que amanse Su crueldad y su porfia; Diopro le rogaba, [70] Esporo lo combatia, A sus pis Rubria se lanza, Acre los besa, y Lamia; Claudio Augusto se lo ruega, Rugaselo Mesalina;

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 38

    Ni lo hace por Popea, Ni por su madre Agripina; No hace caso de Antonia, Que la mayor se decia, Ni del padre y tio Claudio, [80] Ni de Lpida su tia. Anco Planio se lo habla Rufino se lo pedia; Por Britnico, ni Tusco Ninguna cuenta hacia. Los ayos se lo rogaban El tonsor, y el que taia; A sus pis se tiende Octavia, Esa que ya no queria; Cuanto mas todos le ruegan, [90] El de nadie se dolia.

    A estrutura potica aqui alterada. Anchieta opta por sete quintilhas, com as rimas

    esquematizadas em abaab, ababa, e abbab, enquanto o romance apresenta noventa versos

    corridos, com as rimas em versos alternados. Mesmo assim a relao entre as peas

    evidente, no s pelo ttulo dado, que no apresenta relao direta com o texto, parecendo

    antes se tratar de indicao de melodia a ser usada, como tambm pela manuteno do verso

    y l de nada se dola, agora como refro em estrofes alternadas. Devemos lembrar ainda que

    o romance foi grandemente popularizado na quadra inicial. desta forma que aparece citado

    em obras literrias e musicais e neste trecho que notamos as similaridades com a

    composio de Anchieta.

    Esta modificao na estrutura da pea poderia significar a impossibilidade de uma

    melodia comum. Entretanto, em trs das verses musicais de que dispomos, pequenas

    modificaes resultam em uma perfeita adaptao do novo texto.

    Bermudo nos apresenta a mesma melodia, bastante ornamentada, submetida a duas

    diferentes formas de acompanhamento, para vihuelas de seis e de sete ordens. Podemos

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 39

    acomodar o texto de Anchieta simplesmente por ignorar as repeties que ocorrem em

    Bermudo:

    Na ensalada El Fuego, de Mateo Flecha, encontramos uma verso de Mira Nero a

    quatro vozes, menos ornamentada mas tendo ainda algumas semelhanas com a melodia de

    Bermudo. Tambm aqui pequenas modificaes precisam ser feitas para a adaptao do

    novo texto:

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 40

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 41

    Existe ainda uma verso instrumental de Mira Nero de Tarpeya, impressa no Libro

    de Cifra Nueva de Venegas de Henestrosa. O romance aparece a na forma de cantus firmus,

    como base para uma srie de variaes ou glosas de autoria de Francisco Palero.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 42

    Apresentamos a seguir as trs verses bsicas de Mira Nero transpostas ao mesmo grau:

    As melodias apresentam algumas diferenas a considerar. A de Flecha a nica em

    compasso ternrio. Concordam as verses de Flecha e Henestrosa no carter de

    simplicidade. Mesmo assim, alguns movimentos meldicos anlogos, como o impulso

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 43

    inicial ascendente e tambm o tratamento das clusulas nos fazem pensar numa origem

    comum. Das trs verses, acreditamos que a de Henestrosa est mais prxima da melodia

    popular original. A de Bermudo, muito ornamentada, a mais distante, representando o

    modelo culto. Deve-se admitir, entretanto, que em pocas e regies diferentes o romance era

    cantado sob melodias diversas, tornando praticamente impossvel precisar qual das verses

    seria conhecida pelo jesuta.

    A poesia Tras del rio de los ciedros (f.19-20), poderia ter sido cantada com a mesma

    melodia de Mira Nero. Isso devido s claras aproximaes entre ambas, das quais as mais

    destacadas so a permanncia das rimas em a em versos alternados durante toda a

    composio, exatamente como ocorre no romance original, e a repetio quase literal de

    alguns versos, como con pavor [dolor] y gran tristeza e puesto en mortal agonia.

    Nem sempre poesias vertidas ao divino ou destinadas a serem cantadas apresentavam

    epgrafes indicativas. Na verdade os exemplos mais claros do processo de divinizao e do

    uso da msica em Anchieta surgem justamente ao analisarmos outras de suas poesias,

    desprovidas de indicaes to explcitas. o que veremos em seguida.

    Quin te visit, Isabel?

    O Cancionero general,74 impresso em 1557, apresenta o texto da cano popular

    Quin te me enoj, Isabel?, cuja melodia foi preservada por Francisco de Salinas75 e

    utilizada por Antonio de Cabezn76 como tema para variaes. Encontramos paralelo em

    Anchieta na estrofe que serve de mote ao Auto da visitao de Santa Isabel77 (f. 200 e 206):

    74 Cancionero general, Anvers, 1557, f. 390 v. 75 SALINAS, De musica libri septem, 1577, p. 356. Ver anexos. 76 CABEZN, Obras de musica para tecla, arpa y vihuela, 1578, f. 193v-196v. Ver anexos. 77 ANCHIETA, op. cit, 1989, p. 531.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 44

    Salinas Anchieta Quin te me enoj, Isabel,que con lgrimas te tiene?Yo hago voto solene que pueden doblar por l.

    Quin te visit, Isabel, que Dios en su vientre tiene?Hazle fiesta muy solene, pues que viene Dios en l.

    Notamos o paralelismo primeira leitura: o mesmo impulso inicial, na forma de

    pergunta, alm da mesma estruturao potica quanto mtrica, acentuao e rimas. No s

    o primeiro verso praticamente o mesmo, como ocorrem ainda vrias expresses idnticas.

    Aliando isto grande popularidade da cano durante o sculo XVI, o que diminui a

    possibilidade de Anchieta ter utilizado uma verso intermediria, 78 podemos afirmar que

    estamos diante de uma verso ao divino e de sua fonte.79 No h dificuldade na adaptao

    dos versos de Anchieta melodia de Salinas:

    78 Popularizou-se a ponto de ser transformado em cantar proverbializado. A este respeito existem os comentrios de J. PUYOL Y ALONSO em sua edio crtica de La Pcara Justina, Madrid, 1912, vol. III, p. 267-269 e o artigo de Margit FRENK, Refranes cantados y cantares proverbializados, Nueva revista de filologia hispnica, XV, 1961, p. 166. 79 Chamamos a ateno para o verso final do mote original: que pueden doblar por l. Em Anchieta encontramos idia semelhante na poesia (f. 18v-19):

    l que muere en el pecado sin arrepentirse de l, este tal es excusado campanas doblar por l.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 45

    O tema no aparece assim de forma to clara nas Diferencias sobre el villancico

    Quin te me enoj, Ysabel? de Cabezn. Notemos os compassos iniciais, comparados

    melodia de Salinas transposta um tom abaixo:

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 46

    Venid a suspirar con Ies amado

    Dois cancioneiros quinhentistas portugueses, o de Elvas80 e o de Belm81 registram a

    cantiga Venid a suspirar al verde prado, que comparamos a uma cantiga de Anchieta82 (f.

    12v-13):

    Cancioneiro de Belm Anchieta

    Venid a suspirar con Jes amado, los que quereis gozar de sus amores, pues muere por dar vida a pecadores.

    Tendido est en la cruz, corriendo sangre,sus sanctas llagas hechas limpios baos, con que se da remedio a nuestros daos.

    Venid a suspirar al verde prado comigo zagaleja y (vos) pastores Pues muero sin morir de mal damores

    [4] Tu eres soled(ad) que esta comigo saberes que es padescer novos dolores Pues muero sin morir de mal damores

    [7] Venid, que el buen pastor ya di su vida,con que libr de muerte su ganado, y dale de beber a su costado.

    Tambm neste caso os paralelos so muito claros, embora apenas no primeiro

    terceto. As duas composies so iniciadas com o mesmo convite e, como no exemplo

    anterior, temos a mesma mtrica, rimas e vrias expresses idnticas. O segundo terceto,

    existente apenas no Cancioneiro de Belm, no tem nada em comum com a seqncia do

    poema de Anchieta, formado por trs estrofes. verdade que o ltimo verso a repetio

    literal do terceiro, mesmo assim, a pea de Anchieta no apresenta este paralelismo.

    80 Cancioneiro de Elvas, f. 103v e 104. Ver anexos. 81 Cancioneiro de Belm, f. 65. 82 ANCHIETA, op. cit., 1989, p. 461.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 47

    As duas verses musicais existentes, ambas a trs vozes, so bastante similares,

    como observamos a partir de uma comparao, qual adaptamos tambm o texto do

    primeiro terceto de Anchieta:

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 48

    Mil suspiros di Maria

    Pedro de Moncayo83 incluiu em sua coletnea a cano Un sospiro dio Luca, que

    tem seu paralelo em Mil suspiros di Maria84 (f. 12-12v):

    Moncayo Anchieta

    Mil suspiros di Maria por se estar Jesus finando, Quin con l fuera expirando pues muere la vida mia!

    Un sospiro dio Luca ayer estando lavando: quin fuera tras l bolando, por saber donde le emba!

    [5] Tan grandes suspiros di, que los cielos lo sintieron, y luego se entristecieron con el sol, que se eclips.

    [9] Mas viendo, la madre pa, su hijo estarse finando, "Quin con l fuera expirando!"con mil suspiros deca.

    [13] Pues la vida mo llev, con l morirme quisiera, y muriendo con l fuera ms viva que muerta yo.

    [17] Oh que terrible agona de Dios, que se est finando! Quin con l fuera expirando, pues muere la vida ma!

    [21] Como puedo yo vivir, pues que se muere mi vida? Y, con muerte tan sentida, como vivo sin morir

    [25] Mi Jess, qu el luz del dacon muerte se va apagando! Quin con l fuera expirando y muriendo, vivira!

    83 MONCAYO, Flor de romances nuevos y canciones, Huesca, 1589. Reproduzida em FRENK, op. cit., 1987, p. 46-47, n 92. 84 ANCHIETA, op. cit., 1989, p. 459.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 49

    Citamos ainda o mote alheo, j divinizado, sobre o qual Diogo Bernardes85 comps novas voltas

    Un suspiro di Maria Por ver su nio llorando, Quien tras el fuera bolando Para ver donde lembia.

    e a verso do Cancioneiro de Juromenha,86 tambm ao divino,

    Un suspiro di Maria su Jes muerto buscando; quin fuera trs l volando, [p]or ver adnde le envia!

    que demonstram a grande voga da cantiga e o interesse especial que despertou nos poetas divinizadores.

    A nica verso musical existente a contida no mtodo de guitarra de Luis de Briceo:87

    Un suspiro di Maria alla en el rio lavando Ay Dios, quin fuera bolando. por saber ado le imbia

    Como a estrutura potica tambm idntica, no h problema em acomodar a letra

    de Anchieta melodia supostamente original. O problema reside no fato de que a nica

    verso musical que conhecemos data de 1626, quase trs dcadas aps a morte de Anchieta.

    Alm de serem escassas as possibilidades de a melodia ter permanecido imutvel, a verso a

    que nos reportamos no apresenta a linha meldica da cano, mas apenas o ritmo e os

    85 BERNARDES, Vrias rimas ao Bom Jesus, Lisboa, 1594, f. 18v-19. 86 Fins do sc. XVI, incios do XVII, citado por FRENK, op. cit., 1987, p. 47, a lo divino. 87 BRICEO, Metodo mui facilissimo para aprender a taer la guitarra a lo espaol, 1626, f. 10. Ver anexos.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 50

    acordes para o acompanhamento, o que caracterstico da literatura para canto e guitarra de

    meados do sculo XVII.88 Ao extrairmos a melodia a partir das notas agudas dos acordes,

    obtemos como resultado uma configurao extremamente simples:

    88 A popularidade das canes, aliada reduo no custo das edies parecem ser os principais fatores para a no impresso da parte do canto nestas obras. Tambm possvel que a linha meldica devesse ser improvisada pelo solista sobre a base harmnica oferecida pela guitarra. Ver JENSEN, The guitar and italian song. Early music, 13 (3), 1985, p. 376-383 e BARON, Secular spanish solo song in non-spanish sources, 1599-1640. Journal of American Musicological Society, 30, 1970, p. 20-42.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 51

    Quin ver al pastor

    Os temas pastoris sempre se mostraram propcios divinizao, basta lembrar que o

    Bom Pastor foi primeiramente revelado aos pastores de Belm. J notamos em Venid a

    suspirar como o prprio Anchieta aproveitou-se das afinidades entre o pastoril e o cristo.

    Vejamos mais um caso nesta composio do Cancioneiro de vora89 comparada a outra

    cantiga de Anchieta (f. 14v-15v):90

    Cancioneiro de vora Anchieta Em Sam Julio de so el colhado, se Joo me viera Jugar el caiado.

    [5] Estava zagala vestida de festa y tambin compuesta con otra zagala; yo, en ver su gala. .............................

    Quin ver al pastorvestido de fiesta, su zamarra puesta? Verlo la pastora. ..............................

    A correspondncia muito clara. Anchieta repete um verso, substitui expresses por

    sinnimos em zagala/pastor mantm parte de uma palavra em compuesta/puesta, algo da

    atitude em ver/verlo e tambm da sonncia em zagala/zamarra. Como nota Askins o refro

    foi coletado tambm por Juan Timoneda,91 glosado em seis estrofes, das quais a quarta

    relaciona-se verso de vora e conseqentemente tambm de Anchieta:

    89 ASKINS, The Cancioneiro de vora, Berkeley, 1965, p. 30, n XVI. 90 ANCHIETA, op. cit., 1989, p. 467. 91 TIMONEDA, Cancionero llamado sarao de amor [...] segunda parte, Valencia, 1561. ASKINS, op. cit., p. 108 e 109, reproduz o texto impresso por CEJADOR Y FRAUCA, La verdadera poesia castellana, vol. 6, n 2612.

    BUDASZ, Rogrio. O cancioneiro ibrico em Jos de Anchieta: Um enfoque musicolgico. So Paulo: ECA-USP, 1996.

  • 52

    [30] Vestida y dispuesta Estaba Pascuala hermosa y compuesta m