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540 Conteúdo O CÂNON DO NOVO TESTAMENTO.....................541 INTRODUÇÃO....................................541 A RELEVÂNCIA DO CÂNON DO ANTIGO TESTAMENTO....542 A FORMAÇÃO DO CÂNON DO NOVO TESTAMENTO........547 A IMPORTÂNCIA DO CÂNON DO NOVO TESTAMENTO.....551

O Cânon Do Novo Testamento - CARSON

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Conteúdo

O CÂNON DO NOVO TESTAMENTO..........................................................541

INTRODUÇÃO........................................................................................541

A RELEVÂNCIA DO CÂNON DO ANTIGO TESTAMENTO.........................542

A FORMAÇÃO DO CÂNON DO NOVO TESTAMENTO.............................547

A IMPORTÂNCIA DO CÂNON DO NOVO TESTAMENTO.........................551

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O CÂNON DO NOVO TESTAMENTO1

INTRODUÇÃO

Etimologicamente, Kavwv (kanõn, "cânon") é o empréstimo semítico de uma palavra que originariamente significava "junco" mas passou a significar "vara de medir" e, por conseguinte, "regra" ou "padrão" ou "norma". Com o correr do tempo passou a ter o sentido meramente formal de "lista" ou "tabela". No uso eclesiástico durante os três primeiro séculos, o vocábulo se referia ao conteúdo normativo doutrinário e ético da fé cristã. Por volta do século IV passou a designar a lista de livros que constituem o Antigo e o Novo Testamentos.2 É este último sentido que predomina hoje em dia: a palavra "cânon" passou a designar a coleção encerrada de documentos que constituem Escritura autorizada.

É claro que os primeiros cristãos não possuíam um cânon do Novo Testamento; eles dependiam do evangelho que estava sendo pregado pelos apóstolos e por outros e dos livros existentes naquilo que atualmente chamamos de cânon do Antigo Testamento. A pergunta histórica sobre o cânon do Novo Testamento é, então, como os 27 livros que constituem o nosso Novo Testamento vieram a ser reconhecidos como oficiais e distintos de outros textos. A resposta depende de uma cuidadosa leitura dos Pais. Assim foi feito nos capítulos anteriores, quando rapidamente apresentou-se o relato de como cada livro do Novo Testamento foi incluído no cânon, e estudos de maior envergadura reúnem esse material e tratam-no com certo detalhamento.3

1 Extraído integralmente de CARSON, D. A.; MOO, Douglas J.; MORRIS, Leon. Introdução ao novo testamento. Tradução de Márcio Loureiro Redondo. São Paulo: Vida Nova, 1997. p. 541-556.2 "Veja o verbete kanw/n, no TDNT (vol. 3, p. 596-602), de autoria de H. W. BEYER.3 Veja especialmente Theodor ZAHN, Geschichte des neutestamentlichen Kanans; Brooke Foss WESTCOTT, A general survey of the histary af the canan af the New Testament; Bruce M. METZGER, The canan of the New Testament.·1ts arigin, develapment, and significance; e, numa forma mais resumida, David G. DUNBAR, The Biblical Canon (em Hermeneutic, autharity, and canan, editado por D. A. Carson e Jobn D. Woodbridge, p. 297-360, 424- 446); e R. P. MEYE, Canon of the NT (em ISBE, vol. 1, p. 601-6).

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Entretanto, as indagações teológicas a respeito do cânon são em muitos aspectos mais importantes e, com certeza, mais debatidas. Qual é o relacionamento entre cânon e autoridade? O que vem primeiro: a condição canônica de um livro ou sua autoridade funcional? Qual é o relacionamento entre a autoridade do texto e a autoridade do corpo eclesiástico que reconhece (alguns diriam "confere") sua condição canônica? Estamos obrigados a aceitar hoje em dia as razões (em vez de conclusões) que a igreja primitiva adotou quanto aos limites do cânon? Em caso negativo, será que as conclusões estão a perigo? No que se segue não há tentativa de analisar rigorosamente nenhum dos temas introduzidos; tão somente apresentamos um ligeiro apanhado de algumas das questões mais importantes no debate contemporâneo e algumas indicações das direções em que as evidências nos levam.

A RELEVÂNCIA DO CÂNON DO ANTIGO TESTAMENTO

Uma introdução ao Novo Testamento não é o lugar de fazer um levantamento das questões complexas do desenvolvimento do cânon do Antigo Testamento. Mas deve-se mencionar um dos pontos de debate, pois tem a ver com a maneira como concebemos a formação do cânon do Novo Testamento. Será que já havia um cânon "encerrado" do Antigo Testamento que pudesse servir de modelo para a formação do cânon do Novo Testamento?

Até bem recentemente o consenso crítico dos dois últimos séculos sustentava que o Antigo Testamento veio a ser canonicamente reconhecido em três etapas distintas, correspondentes às três divisões do cânon hebraico. A Torá (aqui entendida com o sentido de Pentateuco) alcançou posição canônica perto do fim do século V a.C.; os Profetas atingiram condição semelhante por volta de 200 a.C.; e os Escritos alcançaram essa condição só perto do fim do século I d.C., por ocasião do Concílio de Jâmnia (ou Jabne). -

Esse consenso crítico está agora se esfacelando. Entre os pontos mais decisivos do debate estão:

1) O papel - e mesmo a existência - do Concilio de Jâmnia está sendo cada vez mais questionado. Provavelmente Lightstone se excede ao considerar o colégio rabínico de Jâmnia na década final do século I nada mais do que o produto imaginário de tradições dos séculos III e IV,4 mas agora é amplamente aceito que, pressupondo-se que havia uma academia de rabinos em Jâmnia, ela não constituía um concilio oficial que se manifestava decisivamente sobre várias questões mas era ao mesmo tempo um colégio e, em menor grau, um corpo legislativo.

4 Jack N. LIGHTSTONE, The formation of the Biblical canon in Judaism of late antiquity: Prolegomenon to a general reassessment (SR 8, p. 141-2). Veja também Jack P. Lzwrs, em What do we mean by Jabneh? (JBR 32, p. 125-32); Robert C. NEWMAN, em The council of Jamnia and the Old Testament canon (WJT 38, p. 319-49).

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Por exemplo, Leiman alega que, embora Jâmnia tenha debatido se Eclesiastes ou talvez Cantares deixavam as mãos impuras (i.e., se eram ou não inspirados), esse debate pendeu mais para um exame teológico do que para uma decisão coercitiva, pois os mesmos temas estavam sendo debatidos um século mais tarde.5 Na verdade, pode-se alegar que o fato de que esses livros eram tão debatidos no século I demonstra que já era amplamente considerados de alguma forma como canônicos; de outra modo não teria havido muito o que questionar. Pode-se pensar como, mais tarde, Lutero questionou a posição de Tiago no cânon: o exame histórico e teológico por Lutero fundamentava-se na pressuposição virtualmente unânime da condição canônica de Tiago. Até onde nossas fontes permitem ver, não há nenhum indício de que Jâmnia tenha atribuído condição canônica a qualquer livro anteriormente não reconhecido, ou que tenha rejeitado algum livro anteriormente aceito.

2) Conquanto Josefo (Contra Ap. 1.37-42), Filo (De Vita Contemp. 3.25) e outras fontes forneçam evidências de que a divisão tripartite do cânon hebreu fosse algo usual no século I d.C., é muito mais difícil descobrir evidências em favor da hipótese de que o processo canônico se deu na seqüência dessas três divisões. É perfeitamente plausível que o Pentateuco tenha sido inicialmente visto como um cânon encerrado, ao qual nada se poderia acrescentar; quanto ao restante do processo, praticamente não há evidências de agrupamentos consistentes de livros bíblicos, o que não permite muito mais do que mera especulação.

3) Um dos argumentos citados com mais freqüência em apoio à teoria de que o Pentateuco foi reconhecido por volta de 400 a.C. e de que os Profetas não o foram senão por volta de 200 a.C. é o fato de que os samaritanos aceitavam apenas o Pentateuco como canônico e de que o cisma samaritano é costumeiramente situado no final do século IV a.C. Mas isso pressupõe, sem que haja evidências, que antes do cisma os conceitos judeu e samaritano sobre o cânon eram idênticos. Além do mais, muitos concordariam com Coggins de que o período decisivo em favor do desenvolvimento teológico do samaritanismo foi do século III a.C. até o século I d.C.6

4) Um dos argumentos mais fortes em favor da data tardia dos Escritos é o fato de que alguns pressupõem que Daniel foi escrito no período macabeu e de que Daniel é colocado entre os Escritos, não entre os Profetas. Mas, deixando totalmente de lado o fato de que muitos estudiosos conservadores ainda sustentam que Daniel foi escrito no século VI, John Barton recentemente sustentou, de forma bem convincente, que, à exceção do Pentateuco,7 não havia nenhuma seqüência reconhecida de livros do Antigo Testamento.

5 Sid Z. LEIMAN, The canonization of the Hebrew Scriptures: The Talmudic and Midrashic evidence (p. 121-4). Veja também Rager BECKWITH, The Old Testament Church canori of the New Testament and its background iri early Judaism (p. 276-7).6 R. J. COGGlNS, Samaritans and Jews: The origins of Samaritanism reconsidered (p. 164).7 Mas mesmo esta exceção pode estar cedendo demais. A antiga lista hebraico-aramaica dos livros do Antigo Testamento preservada no MS 54 da livraria do patriarcado grego de Jerusalém (veja J.-P. AUDET em A Hebrew-Aramaic list of the books fo the Old Testament in Greek transcription JTS 1, p. 135-54) preserva a seguinte ordem: Gênesis, Êxodo, Levítico, Josué, Deuteronômio, Números, Rute, Jó, Juízes [...] Paul E. KAHLE acredita que essa "é possivelmente a mais antiga lista de que dispomos" (The Cairo Geniza, p. 218). Veja também Leon MORRIS, em Ruth (TOTC, p. 231).

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O fato de que esses livros estavam em rolos separados significava que era impossível haver seqüências predeterminadas. As diversas classificações que chegaram até nós refletem a organização do material em bases-temáticas, não em base num corpo de livros que, como grupo, eram considerados canônicos; e a coletânea judaica que não incluiu Daniel entre os Profetas tem a ver com o fato de que os judeus preferiam ver os profetas como "tradentes, aqueles que estão numa linha de sucessão histórica e transmitem tradição de uma geração a outra"8 - o que explica por que os denominados livros históricos também estão relacionados junto com os profetas.

5) Apesar disso há claras evidências de que em alguns contextos, judaicos e cristãos, Daniel era visto como profeta (da mesma forma como Davi pôde ser visto como profeta, muito embora os salmos que lhe são atribuídos constituam parte dos Escritos).9

A explicação mais simples é que podia-se ver "profecia" e "profetas" a partir de diversos ângulos diferentes - em termos de conteúdo presciente, acesso a mistérios divinos, chamar o povo de volta à revelação entregue, e assim por diante.

6) Contudo não resta dúvida de que é ir longe demais concluir que, embora os Profetas e os Escritos fossem vistos no século I como Escrituras e, portanto, como tendo autoridade, eles não eram vistos como canônicos, visto que o adjetivo "canônico" pressupõe uma lista fechada. Apenas a Torá (segundo se alega) era vista como cânon: ninguém poderia acrescentar nada aos livros da Lei.

É certo que a noção de uma lista fixa de livros canônicos pressupõe que cessou ou está suspensa a produção de livros com autoridade. É, no entanto, possível sustentar que essa fosse parte da convicção comum vigente no século I. Josefo, na passagem já citada, é um testemunha de peso em favor de um cânon encerrado no judaísmo do século I em contraste com religiões das regiões vizinhas, que possuíam infindáveis livros sagrados. O fato de que livros bíblicos circulavam em rolos individuais deixa implícito que não havia uma seqüência definida; não exclui a possibilidade de que havia cessado a produção desses livros, ou seja, de que o cânon estava encerrado.

7) Aliás, existem consideráveis evidências cumulativas de que o judaísmo précristão sustentava que a profecia clássica havia cessado. 1 Macabeus 9.23-27 (escrito por volta de 100 a.C.) lamenta que isso ocorreu; Josefo vincula o encerramento do cânon ao fato de que a seqüência de profetas havia sido interrompida. O fato de que os membros da comunidade da aliança de Qumran escreveram comentários apenas sobre livros bíblicos indica que consideravam esses livros como uma categoria parte.

8 John BARTON, Oracles of God: Perception of ancient prophecy in Israel after the exile (p, 15).9 Veja especialmente ibid. (p. 35-7).

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Conforme assinalado por Aune,10 Josefo e outros de fato chamam alguns indivíduos de profetas após o encerramento do cânon; mas o próprio Aune admite que a "profecia canônica e escatológica gozava de uma posição especial que a distinguiu da atividade profética no período interbíblico".11 Em outras palavras, "profeta" e "profecia" não eram termos técnicos que possuíam sempre e exatamente a mesma força, e há amplas evidências de que, no sentido empregado para designar o fenômeno que havia produzido o cânon hebraico, a "profecia" era vista no século I como uma atividade que havia cessado e não voltaria a ocorrer senão nos tempos da promessa escatológica. As opiniões variam consideravelmente quanto à data do encerramento do cânon do Antigo Testamento, indo desde aproximadamente 500 a.C. (para a Lei e os Profetas) até cerca de 200 d.C.12 Todavia reconhece-se cada vez mais que qualquer data posterior ao século I a.C. deve ser rejeitada diante das evidências numerosas.

8) Alguns têm sustentado que a LXX, que chegou até nós em manuscritos dos séculos IV e V d.C. e inclui a maior parte dos livros apócrifos,13 é prova de que o judaísmo da diáspora, ou pelo menos o judaísmo alexandrino, possuía um cânon diferente; e, visto que a maioria dos primeiros cristãos fazia uso de versões gregas do Antigo Testamento (a LXX ou algo bastante parecido), é inútil procurar em fontes semíticas os limites dos livros canônicos. Mas esse argumento é questionado incisivamente por Sundberg e outros.14 Eles destacam que as evidências que temos acerca da LXX são tardias (séculos IV e V d.C. e posteriores), certamente influenciadas por escribas cristãos e sem o apoio de qualquer confirmação independente das crenças dos judeus alexandrinos ou da diáspora. Além do mais, a interpretação mais natural de dois Pais cristãos alexandrinos, Orígenes e Atanásio, indica que aceitavam um cânon judaico que em quase nada diferia da lista judaica (e semítica) tradicional.15 O próprio Sundberg nega que os Escritos fossem canônicos (i.e., um corpo encerrado de Escrituras) em fontes hebraicas e gregas no século I; quer os estudiosos tenham ou não aceitado suas idéias nessa questão específica, o fato é que a maioria foi persuadida por seu ataque avassalador contra o cânon alexandrino.

10 David E. AUNE Prophecy in early Christianity and in the ancient Mediterranean world (p. 103-52).11 David E. AUNE Prophecy in early Christianity and in the ancient Mediterranean world (p. 103-52).12 0s extremos são representados por David Noel Freedman e A. C. Sundberg respectivamente. Quanto ao debate sobre o assunto, veja BARTON, Oracles (p. 27-9).13 B (Códice Vaticano, século IV) inclui todos os apócrifos à exceção de 1 e 2 Macabeus; 1 (Códice Sinaítico, século IV) inclui Tobias, Judite, 1 e 2 Macabeus, Sabedoria e o Eclesiástico; A (Códice Alexandrino, século V) inclui todos os apócrifos mais 3 e 4 Macabeus e os Salmos de Salomão.14 Albert C. SUNDBERG Jr., The Old Testament ofthe early Church.15 Respectivamente H.E. 4.26 (Orígenes citado por Eusébio) e Ep. List. 39 (= NPNF2, vol. 4, p. 552).

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9) Há amplas evidências de que os escritores do Novo Testamento citavam como Escritura a maioria dos livros que constituem o Antigo Testamento, mas não há nenhum indício inequívoco de que os escritores do Novo Testamento tenham considerado as Escrituras do Antigo Testamento como um cânon encerrado. É claro que isso não significa que não as encarassem dessa maneira: argumentos baseados no silêncio podem ser traiçoeiros. E, no Novo Testamento, existem diversas evidências que pelo menos indicam que eles reconheciam um cânon encerrado.

Em primeiro lugar, os padrões de citação do Novo Testamento em grande parte harmonizam-se com a maior parte de evidências judaicas quanto à constituição do cânon. Escritores neotestamentários citam todos os livros do Pentateuco (em sua forma judaica e não na samaritana) e muitos outros livros canônicos, tanto dos profetas (Reis, Isaías, Jeremias, Ezequiel e os Profetas Menores) quanto dos Escritos (Salmos, Jó, Provérbios, Daniel e Crônicas). É possível que haja alusão no Novo Testamento mesmo a alguns livros do Antigo Testamento sem citação direta comprovada (e.g., Js 1.5 em Hb 13.5; Jz em Hb 11.32).

Em segundo lugar, quando ocorrem citações de literatura estranha ao conjunto de livros que é hoje em dia reconhecido como cânon do Antigo Testamento (e.g., Cleantes em At 17.28; Menandro em 1 Co 15.33; Epimênides em Tt 1.12; 1 Enoque em Jd 14-15), essas obras não são mencionadas como Escritura (grafe/ [graphe] nem são atribuídas à autoria subjacente do Espírito Santo ou de Deus.

Em terceiro lugar, não há nenhum indício de que os escritores do Novo Testamento queiram rejeitar alguma parte do Antigo Testamento canônico sob a alegação de ser incompatível com sua fé cristã em desenvolvimento. Paulo chega a insistir em que o motivo pelo qual "as Escrituras" foram escritas foi a instrução e encorajamento dos cristãos (Rm 15.3-6; veja também 1 Co 10.11; 2 Tm 3.14-17; 1 Pe 1.10-12; Hb 11.39-40).

Em quarto lugar, muitos trechos do Novo Testamento, embora expressos para refutar ou corrigir pontos da teologia judaica tradicional, assim mesmo apelam para aquilo que ambos os lados possuem em comum, a saber, Escrituras sobre as quais há concordância (e.g., Mc 7.6-7, 10-13; 11.17; 12.10-11,24; Lc 4.16-21; Jo 6.45; 10.34-35; 15.25; At 17.2-3, 11, 29.32; 18.28; 24.14-15; 26.22; Rm 3.1-2; Gl 3).

Em quinto lugar, é provável (embora não seja certo) que a referência de Jesus a todo o sangue desde o de Abel até o de Zacarias, filho de Baraquias (Mt 23.35) seja menção ao primeiro homem a ser morto até o último a ser morto no cânon hebreu (Zacarias, filho de Joiada, em 2 Cr 24.20, 22). Certamente Zacarias não foi o último a ser morto num sentido cronológico: dentro do período representado pelo Antigo Testamento, cronologicamente o último a ser morto foi provavelmente Urias, filho de Semaías (Jr 26.20-23). Caso a identificação com o Zacarias de 2 Crônicas 24.20, 22 esteja correta, então ele foi escolhido devido a seu lugar no cânon reconhecido.

Parece então que há suficientes elementos de prova em apoio ao ponto de vista de que havia um cânon (encerrado) de Escrituras para servir de modelo na formação do cânon do Novo Testamento.

Mesmo que essa afirmação seja questionada, há indícios totalmente convincentes de que, até o século I d.C., a Torá e os Profetas eram vistos como coleções encerradas.

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A FORMAÇÃO DO CÂNON DO NOVO TESTAMENTO

Se pensarmos no cânon do Novo Testamento como uma lista "encerrada" de livros reconhecidos, os principais acontecimentos são bem conhecidos e em geral não são questionados. A primeira dessas listas encerradas de que temos conhecimento é a de Marcião. Fortemente influenciado pelo dualismo sírio, ele rejeitou todo o Antigo Testamento e aceitou apenas um evangelho - uma edição de Lucas bastante editada - mais a edição que preparou de dez cartas de Paulo, excluídas aí as pastorais. Mas, embora a lista de Marcião seja a primeira, não se pode dizer que a própria idéia de uma Bíblia cristã seja obra de Marcião.16 As cartas de Paulo já estavam circulando em forma de coleção, e provavelmente o mesmo acontecia com os quatro evangelhos canônicos. Mais importante ainda é o fato de que a idéia de Escritura neotestamentária, certamente bem estabelecida na primeira parte do século II, pressupõe que, mais cedo ou mais tarde, houve algum tipo de limite canônico.

É indubitável que a obra de Marcião e as de outros heréticos levaram a igreja a publicar listas mais abrangentes e menos tendenciosas. Numa situação parecida, o movimento montanista, que buscava alçar a voz da profecia a um nível de autoridade suprema na igreja - que ela não desfrutou nem nos dias de Paulo (1 Co 14.37-38) - também serviu para forçar a igreja a tomar decisões públicas quanto ao padrão de ortodoxia. Por volta do final do século II, a lista Muratoriana, embora praticamente sem valor como orientação quanto à origem dos livros do Novo Testamento a que ela se refere, reflete a opinião da igreja universal que reconhece um cânon do Novo Testamento não muito diferente do nosso. Faltam pedaços da lista, de modo que Mateus e Marcos não aparecem, mas sem dúvida são pressupostos, visto que menciona-se Lucas como o terceiro evangelho e João como o quarto. Lucas também é reconhecido como o autor de "os atos de todos os apóstolos". Treze cartas são reconhecidas como autenticamente paulinas. A lista exclui uma Epístola aos Laodicenses e outra aos alexandrinos (que alguns entendem ser a carta aos Hebreus). Duas epístolas joaninas e Judas são aceitos. Os apocalipses atribuídos a João e a Pedro são ambos aceitos, mas a lista reconhece que havia alguma oposição à leitura pública desta última obra. O Pastor de Hermas é aceito para leitura particular mas não pública, pelo fato de ser uma composição bem recente. Todos os escritos gnósticos, marcionitas e montanistas são rejeitados; um trecho bem estranho reconhece Sabedoria de Salomão como livro canônico.

16 Esse é, acertadamente, o entendimento de F. F. BRUCE, em New light on the origens of the New Testament canon (em New dimensions in New Testament study, editado por Richard N. Longenecker e Merrill C. Tenney, p. 12), em oposição à obra magistral de H. von CAMPENHAUSEN, The formation of the Christian Bible (p. 148).

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Nesta Introdução tem sido visto rapidamente o padrão como estes ou outros Pais citam os vários livros do Novo Testamento como Escritura; mas esse padrão não estabelece quando houve o reconhecimento do cânon do Novo Testamento como uma lista encerrada. Quanto a isso a fonte mais importante provavelmente é Eusébio de Cesaréia (c. 260-340), cujos pontos de vista são baseados em grande parte nos pais alexandrinos Clemente e Orígenes. Ao tratar do cânon do Novo Testamento, Eusébio elabora uma classificação tripartite: os livros reconhecidos (homologoumena), os livros questionados (antilegomena) e os livros introduzidos pelos hereges em nome dos apóstolos mas rejeitados por aqueles que Eusébio considera ortodoxos. Na primeira categoria Eusébio inclui os quatro evangelhos, Atos, 14 epístolas paulinas (Eusébio inclui Hebreus, embora tenha consciência de que a igreja em Roma não considerava que Hebreus tivesse sido escrita por Paulo), 1 Pedro, 1 João e, aparentemente (ainda que com certas reservas), Apocalipse. Eusébio subdivide os livros questionados entre aqueles geralmente aceitos (Tiago, Judas, 2 Pedro, e 2 e 3 João) e os que não são autênticos (Atos de Paulo, Pastor de Hermas, Apocalipse de Pedro, Epístola de Barnabé, o Didaquê e, talvez, o Apocalipse).17 A terceira categoria, que abrange escritos claramente heréticos, inclui evangelhos como os de Pedro e Tomé, atos de André e João, e escritos semelhantes (H.E. 3.25).

Em outras palavras, os quatro evangelhos, Atos, as 13 epístolas paulinas, 1 Pedro e 1 João são universalmente aceitos já bem cedo; a maior parte do restante do cânon do Novo Testamento já está estabelecida à época de Eusébio. O manuscrito Cheltenham, que acredita-se represente o ponto de vista vigente no norte de África c. 360 d.C., inclui todos os livros do Novo Testamento, à exceção de Hebreus, Tiago e Judas. A primeira lista que inclui todos e tão somente os 27 livros do nosso Novo Testamento é a da carta de Páscoa escrita por Atanásio em 367 à igreja alexandrina - claramente prescritiva e não descritiva. O sexagésimo cânone do Concílio de Laodicéia (c. 363) inclui todos os 27 livros com exceção do Apocalipse, mas os indícios do manuscrito sugerem que esse cânone pode ter sido um acréscimo posterior (embora com toda probabilidade ainda no século IV).18 O Terceiro Concílio de Cartago (397), em que Agostinho esteve presente, reconheceu os 27 livros do Novo Testamento e, depois disso, no Ocidente praticamente não houve quem se afastasse dessa posição.

17 A incerteza quanto ao lugar dado por Eusébio a Apocalipse é resultado de sua própria maneira confusa de se expressar. Embora o livro de Apocalipse fosse quase universalmente reconhecido como Escritura no século II, tornou-se objeto de suspeita na igreja oriental. A posição de Eusébio parece variar entre uma aceitação inicial de Apocalipse como obra do apóstolo João, uma posterior e total rejeição do livro por considerá-lo falsificação feita pelo herege Cerinto e uma aceitação da condição canônica do livro com uma simultânea negação de sua autoria apostólica. Veja a análise feita por Robert M. GRANT, em Eusebius as church historian (p. 126-37).18 Veja METZGER, Canon (p. 210).

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A igreja oriental, pelo menos como é representada pela Peshitta Siríaca, omitiu 2 Pedro, 2 e 3 João, Judas e o Apocalipse, que é seguido hoje em dia pela igreja síria que usa a língua local (em contraste com a igreja síria de fala grega). Por outro lado é importante reconhecer que não é pequeno o número de pais da igreja oriental que reconheciam exatamente os 27 livros que formam nosso cânon hoje em dia.19 No outro extremo, a igreja etíope reconhece não apenas os 27 livros aceitos como padrão, mas acrescenta outros oito, dos quais a maioria trata da ordem eclesiástica.20 Apesar disso Dunbar está certo em sua conclusão:

Assim mesmo é correto dizer que sempre que cristãos em locais específicos têm se preocupado em conhecer a extensão do Novo Testamento e têm procurado esse conhecimento num espírito de comunicação aberta com a igreja em sua dimensão mais ampla, em geral o resultado tem sido uma unanimidade de opinião. De sorte que é significativo que a reabertura das questões de canonicidade por parte dos líderes da Reforma protestante levou a um encolhimento do cânon do Antigo Testamento em contraste com o uso católico romano, mas não provocou nenhuma mudança parecida na extensão do cânon do Novo Testamento.21

Aliás, é importante observar que, embora não houvesse nenhum poder eclesiástico como o papado medieval para impor decisões, assim mesmo a igreja em todo o mundo veio quase universalmente a aceitar os mesmos 27 livros. A questão não foi tanto a de a igreja ter feito a seleção do cânon, mas de o cânon ter feito a seleção de si próprio. Freqüentemente tem-se feito essa colocação, e ela merece ser repetida aqui:

O fato de que a igreja como um todo veio substancialmente a reconhecer os mesmos 27 livros como canônicos é notável quando se lembra que o resultado não foi imposto. Tudo o que as diversas igrejas espalhadas pelo Império podiam fazer era darem testemunho de suas próprias experiências com os documentos e partilharem todo e qualquer conhecimento que pudessem ter sobre a origem e o caráter desses documentos. Quando se leva em conta a diversidade de contextos culturais e de orientações quanto aos aspectos essenciais da fé cristã dentro das igrejas, o fato de terem concordado quanto a quais livros pertenciam ao Novo Testamento serve para indicar que essa decisão final não teve origem no nível humano apenas.22

19 Veja WESTCO'IT, History of the canori (p. 445-8).20 Veja R. W. COWLEY, em The Biblical canon ofthe Ethiopian Orthodox Church today (OstK 23, p. 318-23).21 DUNBAR, Biblical canon (p. 317-8). Numa nota de rodapé Dunbar assinala que isso vale até mesmo para Martinho Lutero, que levantou as indagações mais incisivas sobre os antilegamena (p. 432, nota 117). Com freqüência se afirma que no sumário da tradução da Bíblia por Lutero este separa Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse dos demais livros e deixa de contá-los entre os canônicos (e.g., MEYE, em Canon [p. 605]); nem sempre se destaca que esse arranjo dos livros apareceu na edição de 1522 mas, junto com os mais incisivos juízos negativos sobre desses livros (expressos nos prefácios que ele escreveu), foi abandonado em edições subseqüentes. Apenas sua apreciação negativa de Tiago permaneceu até o fim da sua vida. Veja Paul ALTHAUS, em Theology of Martin Luther (p. 83-5).22 BARKER/LANE/MICHAELS (p. 29).

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Quaisquer que tenham sido as pressões que estimularam a igreja a publicar listas canônicas - perseguição, distância do Jesus histórico, a pressão dos montanistas, o surgimento do gnosticismo e de outros movimentos que tinham escrituras que deviam ser rejeitadas - foram basicamente três os critérios que a igreja empregou nos debates para determinar quais livros eram canônicos.23

1) Uma exigência básica para determinar a canonicidade era a conformidade à "regra de fé" (o( kanw\n th=c pi/stewv [ho písteos tes pisteos]; em latim, regula fidei), conformidade entre o documento e a ortodoxia, ou seja, a verdade cristã reconhecida como normativa nas igrejas. Embora muitos estudiosos tenham negado a existência de uma distinção clara entre "ortodoxia" e "heresia" na época imediatamente posterior aos apóstolos e muito menos no período do Novo Testamento, é difícil deixar de identificar as raízes dessa distinção em textos tais como Gálatas l.8-9; Colossenses 2.8 e ss.; 1 Timóteo 6.3 e ss. e 1 e 2 João. E já em Inácio ocorre uma considerável preocupação em distinguir o verdadeiro do falso. Essa preocupação cresceu rapidamente com o tempo.

2) Nos Pais o critério mais comumente mencionado é talvez apostolicidade, que, como critério, veio a incluir aqueles que estiveram em contato direto com os apóstolos. Nesse sentido o evangelho de Marcos era entendido como ligado a Pedro; o de Lucas estava ligado a Paulo. Quando o Fragmento Muratoriano rejeita a leitura pública do Pastor de Hermas, assim o faz com a justificativa de que tinha sido escrito muito recentemente e, por isso, não podia achar um espaço "entre os profetas, cujo número está completo, nem entre os apóstolos" (aqui "os profetas" é referência aos livros do Antigo Testamento, e "os apóstolos", aos do Novo). Pelo mesmo motivo, sempre que suspeitam pseudonímia, os Pais rejeitam a obra.

Por essa razão, como já vimos (cap. 15), o próprio Novo Testamento revela, por princípio, uma rejeição de cartas pseudônimas (esp. 2 Ts 2.2; 3.17); agora observamos que os Pais rejeitam universalmente a pseudonímia como categoria literária aceitável para documentos com a autoridade de Escrituras. Isso deixa quase nenhum espaço para a afirmação contemporânea bastante comum de que a pseudonímia era uma prática amplamente aceita no mundo antigo. Que apocalipses pseudônimos eram bastante comuns é demonstrável; que cartas pseudônimas eram bastante comuns é inteiramente desprovido de prova; que algum pseudônimo foi conscientemente aceito no cânon do Novo Testamento é negado pelas evidências.24

3) Um critério quase tão importante é a aceitação disseminada e contínua de um documento e seu uso por igrejas em toda parte.

23 Veja METZGER, em Canon (p. 251-4).24 Veja ainda a seção "Pseudonímia" no cap. 15 acima.

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É assim que Jerônimo insiste em que não importa quem escreveu Hebreus, pois de qualquer maneira esse livro é a obra de um "escritor da igreja" (ecclesiastici viri, expressão com que Jerônimo provavelmente quis designar alguém que escreve de conformidade com a verdade ensinada nas igrejas, uma variação do primeiro critério) e é de qualquer forma lido constantemente nas igrejas (Epist. 129). Se as igrejas latinas foram lentas em aceitar Hebreus e as igrejas gregas foram lentas em aceitar Apocalipse, Jerônimo aceita ambos, em parte porque muitos escritores antigos haviam aceitado os dois como canônicos.25

A IMPORTÂNCIA DO CÂNON DO NOVO TESTAMENTO

Deve-se reconhecer que esse estudo mais ou menos tradicional do cânon cria o risco de dar uma impressão falsa, a saber, de que a igreja levou um tempo excessivamente longo para reconhecer a autoridade dos documentos que constituem o Novo Testamento. Isso é totalmente falso. O debate sobre o cânon é sobre uma lista encerrada de livros autorizados. Os próprios livros necessariamente estavam circulando muito antes, sendo que a maioria deles era oficialmente reconhecida por toda a igreja e todos eles eram aceitos em grandes segmentos da igreja.26

Desde o princípio houve uma mensagem oficialmente reconhecida. Já no início de sua pregação Jesus colocou a si próprio como autoridade em pé de igualdade com as Escrituras do Antigo Testamento, cumprindo-as em certo sentido (Mt 5.17-48, esp. v. 21 e ss.). A revelação da boa notícia, o evangelho do Filho amado de Deus, esteve tão intimamente ligada à vida, ministério, morte e ressurreição de Jesus que os relatos dessa "boa notícia" vieram a ser denominados evangelhos. Essa boa notícia foi transmitida pelos apóstolos: em Atos 2 Lucas insiste em que os crentes que constituíam a primeira igreja se dedicavam ao ensino dos apóstolos. Já em 2 Coríntios 3.14 Paulo escreve que os judeus lêem as Escrituras da antiga aliança.27 Subentendia-se que uma nova aliança havia raiado, a nova aliança predita por Jeremias (esp. 31.31-34; cf. Hb 8) e anunciada por Jesus nas palavras de instituição na noite em que foi traído ("este cálice é a nova28

aliança no meu sangue").

25 Talvez deva-se mencionar que os pais não reconhecem uma obra como canônica pelo fato de ser inspirada, visto que, sem maiores restrições, também aplicam o vocábulo "inspiração" e expressões correlatas a livros não-canônicos (veja METZGER, em Canon [p. 254-7]). No debate teológico contemporâneo "inspiração" é um construto teológico elaborado a partir de várias estruturas históricas e teológicas importantes e é costumeiramente objeto de uma definição mais precisa do que no uso bem flexível dos primeiros séculos.26 Theo DONNER, Some thoughts on the history of the New Testament canon (Themelios 7, nº 3, p. 23-7).27 Provavelmente a referência é à Torá e não ao Antigo Testamento como um todo; veja o v. 15.28 Lucas e Paulo retém a palavra "nova" (1 Co 11.23-26); Mateus e Marcos omitem-na.

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Implicitamente Escrituras da nova aliança não estão muito distantes. A epístola aos Hebreus começa contrastando o período prévio de revelação com aquilo que havia ocorrido "nestes últimos dias", nos quais Deus se revelou por meio de seu Filho (Hb 1.1-3). O centro e a fonte de toda revelação da nova aliança, reconhecida como oficial, repousa, em última instância, no Filho. Os apóstolos, no sentido mais restrito do termo,29 eram vistos como aqueles que mediaram essa revelação para o restante da igreja; mas, exatamente porque essa revelação estava vinculada ao Jesus que apareceu na história real, um encerramento implícito foi incorporado nessa afirmação. Não poderia haver uma seqüência interminável de "revelações" sobre Jesus, uma vez que aquelas revelações estavam-se distanciando do Jesus que se apresentou na história real e que foi confessado pelas primeiras testemunhas oculares e pelos apóstolos.

De maneira que, desde o início, houve a idéia de autoridade extraordinária e de encerramento implícito. O reconhecimento extracanônico dessa dupla afirmação já ocorria à época de Inácio. Quando questionado por alguns homens (presumivelmente judeus) que se recusam a crer em qualquer coisa do evangelho que não se ache em "nossos registros antigos" (o Antigo Testamento"), Inácio responde: "Mas de minha parte os meus registros são Jesus Cristo, para mim os registros sagrados são a sua cruz e morte e ressurreição e a fé que vem por intermédio dele" (Phil. 8.2). Possivelmente a gênese do cânon do Novo Testamento acha-se no apelo a "evangelho" e "apóstolo",30

sendo que, em última instância, o próprio Jesus Cristo se encontra por trás de ambos.

Se, então, investigamos a questão de quando e como os vários livros do Novo Testamento eram interpretados como testemunhas do evangelho com autoridade, em vez de investigarmos quando e como o cânon foi encerrado, somos forçados a remontar não às listas encerradas preparadas pelos pais, que tendem a ser posteriores, mas ao uso dos livros do Novo Testamento (em comparação com outras fontes) nos pais primitivos. Descobrimos então que até mesmo a maioria dos antilegomena são amplamente citados. Hebreus, por exemplo, é citado extensamente em 1 Clemente (provavelmente 90-110 d.C.); Tiago é atestado em 1 Clemente e Hermas (meados do século II). Aliás, mesmo dentro do Novo Testamento, um texto do Antigo Testamento e uma citação evangélica podem estar lado a lado e serem introduzidas pela expressão "a Escritura declara" (1 Tm 5.18). Mesmo que essa citação evangélica não seja de um evangelho escrito, o trecho pelo menos comprova que um ensino do Senhor Jesus desfruta o mesmo grau de autoridade das Escrituras do Antigo Testamento. Em 2 Pedro 3.16 as epístolas de Paulo são reconhecidas como Escrituras.

Três outros elementos de prova são importantes:

29 Veja D. A. CARSON, em Shouiing the spirit (Grand Rapids, Baker, 1987, p. 88-91).30 Veja Donald ROBINSON, em Faith's framework: The structure of New Testament theology.

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1) Nas primeiras etapas da transmissão, antes que se fizessem esforços de oferecer registros escritos (veja Lc 1.1-4), a "tradição" era transmitida oralmente. Como freqüentemente se tem admitido,31 no Novo Testamento a palavra "tradição" (para/dosis [paradosis]) não traz necessariamente nuanças negativas. Por exemplo, para Paulo as tradições têm aspectos negativos quando são meramente humanas ou quando estão totalmente divorciadas do evangelho (GI 1.14; CI 2.8); deve-se tê-las em alta estima e deve-se ter apego a elas quando elas são o evangelho transmitido por um mensageiro oficialmente reconhecido (1 Co 11.2; 2 Ts 2.15; 3.6).

2) Isso, contudo, não significa que a tradição oral fosse geralmente vista como intrinsecamente superior aos documentos escritos que logo começaram a circular. A única passagem que todos citam para justificar a noção de que a tradição oral era tida num grau mais elevado de estima é uma afirmação de Papias registrada por Eusébio (H.E. 3.39.4), que, na tradução de Campenhausen, diz: "Parece-me que aquilo que procede de livros não é tão útil quanto aquilo que começa como uma fala viva e assim continua".32 Tem-se alegado convincentemente que Papias acentua a importância da tradição oral para privilegiar seu comentário sobre as palavras do Senhor, não o conteúdo em si dessas palavras.33 A menção desdenhosa a livros é provavelmente referência aos escritos de hereges que, a essa altura, estavam fazendo o mesmo que Papias: comentando as palavras recebidas do Senhor, mas com base em sua própria perspectiva teológica. A reação de Papias é, na verdade, de que prefere reter as interpretações tradicionais (orais) das palavras do Senhor. Afinal, em outro lugar Papias se apressa em negar a existência de qualquer erro no evangelho de Marcos, muito embora aquele evangelho não seja uma apresentação cronológica: essa atitude com certeza seria estranha caso Papias tivesse uma opinião negativa de todos os registros escritos.

3) Se indagarmos quando e como foram feitas as primeiras coleções de pelo menos alguns dos livros do Novo Testamento, a resposta direta é que não sabemos. Sabemos seguramente que no máximo até meados do século II os quatro evangelhos canônicos estavam circulando juntos na forma do evangelho quádruplo "segundo Mateus", "segundo Marcos" e assim por diante. Provavelmente ainda antes as epístolas paulinas estavam em ampla circulação. O processo de promover a circulação desses materiais recebeu, sem dúvida alguma, o impulso do amplo uso, pelos cristãos, de livros na forma de códices. Até aquele tempo escritos de valor eram normalmente publicados em rolos; a adoção do códice (algo mais ou menos parecido com os livros de hoje, em que folhas avulsas são costuradas ou coladas numa borda) não somente tornou os livros mais fáceis de serem usados, mas também tornou mais fácil publicar vários e diferentes livros juntos num só volume.34

31 Veja especialmente F. F. BRUCE, em Scripture in relation to tradition and reason (em Scripture, tradition, and reason: A study in the criteria of Christian doctrine, Fs. Richard P. C. Hanson, editado por Richard Bauckham e Benjamin Drewery, p. 35-64).32 Veja a análise que CAMPENHAUSEN faz em Formation (p. 130 e ss.). Semelhantemente, veja BRUCE, em Scripture (p. 37-8).33 Essa linha de interpretação parece ter tido origem em J. B. LIGHTFOOT, em Essays on the work entitled Supernatural religion (p. 156 e ss.).34 Veja MOULE (p. 239-41).

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É certo que Paulo escreveu outras cartas que não chegaram até nós (veja 1 Co 5.9; CI 4.16), mas os princípios de seleção e o grupo ou grupos de pessoas que fez a coleção não foram identificados em nenhuma de nossas fontes. Apesar disso, com base em algumas inferências cuidadosamente estabelecidas, é plenamente plausível supor que a coleção foi reunida por pessoas ligadas a Paulo, tais como Timóteo, logo após o martírio de Paulo.35

Finalmente, deve-se rapidamente assinalar quatro perspectivas contemporâneas da importância do cânon.

1) Alguns (e.g., Koester) têm sustentado que se deve abolir a noção de um cânon. Dizem que não há diferenças qualitativas entre os livros do Novo Testamento e outros textos cristãos antigos; todas as fontes que derramem luz sobre o movimento cristão primitivo devem ser tratadas de igual maneira, de forma que, digamos, Tiago, não deve ser tratado como uma fonte que merece mais respeito ou tem mais autoridade do que, digamos, Clemente de Roma.

Fica claro que essa teoria só se torna viável caso se rejeite não somente a noção de cânon como uma lista encerrada de livros oficialmente reconhecidos, mas também a noção de Escrituras. Essa teoria também é reforçada pela prontidão em abandonar rapidamente a herança estabelecida da igreja e, especialmente, de idéias críticas que consideram diversos livros canônicos como escritos tardios e pseudônimos, concluídos depois de várias outras fontes cristãs primitivas que chegaram até nós.

2) No momento ocorre um debate complexo sobre um possível "cânon dentro do cânon". Todos nós tendemos a nos apoiar mais em algumas partes do cânon do que em outras - da mesma forma como Lutero e Calvino destacaram mais Romanos e Gálatas do que, digamos, 1 Pedro ou Apocalipse. Então por que não aceitar a realidade dos fatos e reconhecer que grupos diferentes têm a liberdade, talvez até mesmo a obrigação, de definir certas partes do cânon como inquestionáveis para eles? Uma forma mais atenuada dessa teoria propõe que devemos pensar no cânon como uma espiral, na qual os elementos exteriores (Tiago, 2 Pedro) vão gradualmente abrindo espaço para o núcleo básico, o âmago do cristianismo autêntico (João, Romanos).36

Certamente, no entanto, as noções de Escritura e de cânon proíbem tais abordagens. É verdade que pregadores podem acentuar mais uma parte do que outra, julgando-a ter uma maior relevância imediata aos contextos em que vivem do que outras.

35 Veja GUTHRIE (p, 986-1000).36 Esse é o entendimento de C. K BARRETT, em The centre of the New Testament and the canon (em Die Mitte des Neuen Testaments: Einheit und Vielfalt neutestamentlicheii: Theologie, Fs. Eduard Schweizer, editado por Ulrich Luz e Hans Weder, p. 5-21).

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Algumas partes do Novo Testamento podem exercer continuamente uma maior influência porque são mais longas e abrangentes. Mas deixar que escolhas pastorais pragmáticas e detalhes da composição impliquem na obrigação de tornar relativo o cânon é negar que existe um cânon que deve permanecer como o teste de nossas escolhas pastorais.

3) Às vezes a teologia católica romana tradicional tem falado do papel da igreja na formação (ou estabelecimento) do cânon, e isto, por sua vez, tem dado origem a um ponto de vista sobre a autoridade da igreja bem diferente do encontrado no protestantismo. Este situa nas Escrituras o depósito do evangelho; o catolicismo conservador situa na igreja o depósito da fé, do qual as Escrituras são apenas um dos componentes.

Alguns dos debates resultantes desses pontos de vista estão-se dissipando hoje em dia, pois tanto o protestantismo quanto o catolicismo romano se encontram numa situação de imensa mutação. Mas alguns dos problemas ligados à posição protestante são em grande parte diminuídos caso se mantenha cuidadosamente a distinção aqui defendida entre Escritura e cânon. O papel da igreja não é estabelecer quais livros constituem Escrituras. Em vez disso, os livros bíblicos impõem-se por si mediante amplo uso e autoridade, e o papel da igreja é reconhecer que somente certos livros - e não outros - exigem a lealdade e obediência da igreja, e isso tem o resultado de constituir um cânon, uma lista encerrada de Escrituras reconhecidas oficialmente.

4) Tem havido considerável interesse na denominada crítica do cânon. Conquanto esse ramo de estudo apresente muitas formas,37 a sua pressuposição central é que, não importando quais fontes e pressões tenham estado presentes na elaboração das Escrituras conforme as conhecemos, o texto na forma em que se encontra representa a maneira de a igreja lidar com suas próprias tradições, inclusive as interpretações peculiares estabelecidas por conexões intrabíblicas, e estas devem ser aceitas como normativas para a igreja.

Há muitas coisas proveitosas nesse movimento. Ele representa um esforço de ler a Bíblia como um todo e de ler livros bíblicos como produtos acabados. Na prática, contudo, alguns defensores da crítica do cânon tendem a defender verdades abstratas que podem ser inferidas do texto como um todo, mas rejeitam numerosas afirmações bíblicas que têm referentes históricos. Essa inconsistência cria a impressão negativa de certo tipo de fideísmo cru: aceitar o cânon onde ele não pode ser testado e reservar o direito de julgá-lo onde pode ser testado. Essa forma de fideísmo faz com que a crítica do cânon, como é freqüentemente praticada (pelo menos em alguns círculos), seja intrinsecamente instável.

Em suma, o fato de que Deus é um Deus que se revela, fala e é fiel à aliança, tendo se revelado de modo supremo num personagem histórico, o Messias Jesus, estabelece a necessidade do cânon e, implicitamente, o seu encerramento. A noção de cânon proíbe todas as tentativas conscientes de escolher apenas uma parte do cânon como o padrão de governo da igreja cristã: isso seria descanonizar o cânon, uma contradição de termos.

37 E.g., CHILDS; James A. SANDERS, From sacred story to sacred text.

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Pelo fato de o cânon ser constituído de livros cuja autoridade, em última instância, brota da graciosa auto-revelação de Deus, é melhor falar em reconhecer o cânon do que em estabelecê-lo. E a teologia canônica não pode ao mesmo tempo ser correta e estar divorciada de questões difíceis que vinculam a revelação de Deus à história concreta.