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O Capítulo do Julian - R.J. Palacio

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OcapítulodoJulianR.J.Palacio

TraduçãodeRachelAgavino

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Copyright©2014byR.J.PalacioCopyrightdacapa©2014byTedCarpenterTodososdireitosreservados.

TÍTULOORIGINALTheJulianChapter

PREPARAÇÃOPedroStaite

REVISÃOLuísaUlhoaCarolinaRodrigues

ADAPTAÇÃODECAPAôdecasa

E-ISBN978-85-8057-608-5

Ediçãodigital:2014

TodososdireitosdestaediçãoreservadosàEDITORAINTRÍNSECALTDA.RuaMarquêsdeSãoVicente,99,3ºandar22451-041—GáveaRiodeJaneiro—RJTel./Fax:(21)3206-7400www.intrinseca.com.br

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OcapítulodoJulian

Sejagentil,poiscadapessoaquevocêencontraestátravandoumagrandebatalha.

—IanMaclaren

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Antes

TalvezeutenhacriadoasestrelaseoSoleestacasaenorme,masjánãolembro.

—JorgeLuisBorges,“AcasadeAsterion”

***

Omedonãopodemachucá-lomaisqueumsonho.

—WilliamGolding,Osenhordasmoscas

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Normal

Tábem,tábem,tábem.Eusei,eusei,eusei.NãofuilegalcomAugustPullman!Grandecoisa.Nãoéofimdomundo,gente!Vamospararcomodrama,ok?Omundoéenormee

nemtodos são legais sempre.Éassimqueascoisas são.Entãovocêspodem,por favor, superar isso?Achoquejáestánahoradeseguiremfrenteecuidardassuasprópriasvidas,nãoacham?

MeuDeus!Nãoentendo.Nãoentendomesmo.Emumminutoeusou,tipo,ogarotomaispopulardoquinto

ano.Enominuto seguinte, eu sou...não sei.Não importa.Éhorrível.Este ano inteiro foihorrível!Paracomeçar,euqueriaqueAuggiePullmannuncativessevindoparaaBeecherPrep!Queriaqueeletivessemantidoaquelasuacarinhamedonhaescondida,comoemOfantasmadaópera,oualgoassim.Useumamáscara,Auggie!Tireseurostodaminhafrente,porfavor.Tudoseriabemmaisfácilsevocêsimplesmentedesaparecesse.

Pelomenosparamim.Naverdade,tambémnãoquerodizerqueeletiredeletra.Seiquenãodeveserfácilparaeleseolharnoespelhotodososdias,ouandarpelarua.Masissonãoéproblemameu.Meu problema é que tudo está diferente desde que ele entrou na minha escola. As crianças estãodiferentes.Euestoudiferente.Eissoéumsaco.

Eu queria que tudo fosse como era no quarto ano. Nós nos divertíamos tanto, tanto, tanto!Brincávamos de pique-bandeira no pátio e, sem querer me gabar, mas todo mundo queria andarcomigo,sabe?Sóestoudizendo.Todosqueriamserminhaduplaquandotínhamostrabalhosdeestudossociais.Etodomundosempreriaquandoeudiziaalgoengraçado.

Na hora do almoço, eu sempre me sentava com minha turma e nós éramos, tipo, uma turma.Totalmenteumaturma.Henry.Miles.Amos.Jack.Nóséramosumaturma!Eratãolegal!Tínhamosummontedepiadinhasinternas.Sinaiscomasmãosparaváriascoisas.

Nãoseiporqueissotevequemudar.Nãoseiporquetodomundoficoutãoidiotaemrelaçãoatudo.Naverdade,euseiporquê:foiporcausadeAuggiePullman.Foinomomentoemqueeleapareceu

queascoisasdeixaramdesercomoantes.Tudoeraabsolutamentenormal.Eagoraestátudoconfuso.Eéporcausadele.

EdoSr.Buzanfa.Naverdade,aculpaémeioquetodadoSr.Buzanfa.

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Otelefonema

LembroqueminhamãefezumgrandealardeporcausadotelefonemadoSr.Buzanfa.Naquelanoite,durante o jantar, ela não parou de falar sobre como aquilo era uma honra. O diretor do ensinofundamental II tinha ligadoparaperguntar se eupodia fazerpartedo “comitêdeboas-vindas” aumgarotonovonaescola.Uau!Quenovidade!MamãeagiucomoseeutivesseganhadoumOscaroualgoassim.Eladissequeissoprovavaqueaescoladefatoreconheciaquemeramascrianças“especiais”,eisso era maravilhoso. Minha mãe nunca tinha encontrado o Sr. Buzanfa porque ele era diretor doensinofundamentalIIeeuaindaestavanoI,maselanãoparavadefalar,todaanimada,sobrecomoeletinhasidogentilaotelefone.

Minhamãesemprefoimeioqueumapessoaimportantenaescola.Elafazpartedeumtalconselhodiretor,queeunemseioqueé,masparece sermuito importante.Ela tambémsempresevoluntariaparaascoisas.Tipo,elasemprefoiamãerepresentantedetodososanosemqueestudeinaBeecher.Sempre.Elafazmuitacoisapelaescola.

Então,nodiaemqueeudeveriafazerpartedo“comitêdeboas-vindas”,minhamãemedeixounaportadaescola.Elaqueriamelevaratéládentro,maseufalei:

—Mãe,jáestounoquintoano!Elaentendeuadicaesaiucomocarroantesqueeuentrassenoprédio.CharlotteCody e JackWill já estavamnohall de entrada enósnos cumprimentamos. Jack e eu

demosnossoapertodemãosespecialedissemosoiparaosegurança.DepoissubimosparaasaladoSr.Buzanfa.Eratãoestranhoestarnaescolasemninguémlá!

— Cara, a gente podia andar de skate aqui dentro e ninguém ia descobrir! — falei para Jack,correndoederrapandonochãolisodocorredor,depoisqueosegurançanãopodiamaisnosver.

—Ah,é—disseJack,masnoteique,quantomaispertodasaladoSr.Buzanfaagentechegava,maisquietoJackficava.Naverdade,elemeioquepareciaqueiavomitar.

Quandoestávamoschegandoaotopodasescadas,eleparou.—Nãoquerofazerisso!—falou.Pareiaoladodele.Charlottejáestavaláemcima.—Vamos!—chamouela.—Vocênãomandanagente!—respondi.Elabalançouacabeçaerevirouosolhos.RiedeiumacutucadaemJackcomocotovelo.Agente

adoravaimplicarcomCharlotteCody.Elaerasempretãocertinha!—Issoétãoerrado!—disseJack,esfregandoorosto.—Oquê?—questionei.—Vocêsabequeméessegarotonovo?—perguntouJack.Negueicomacabeça.—Vocêsabequemeleé,nãosabe?—falouentãoparaCharlotte,erguendoosolhosparaela.Charlottedesceuasescadasatéondeagenteestava.

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—Achoquesim—respondeu.Elafezumacareta,comosetivesseacabadodeprovaralgoruim.Jackbalançouacabeçaedepoisbateunelatrêsvezescomapalmadamão.—Eusouumidiotaporterconcordadocomisto!—falou,osdentestrincados.—Peraí,quemé?—perguntei.EmpurreioombrodeJackparafazê-loolharparamim.—ÉaquelemeninochamadoAugust—disseele.—Sabe,ogarotoquetemaquelacara...Eunãotinhaamenorideiadequemeleestavafalando.—Você está de brincadeira?—disse Jack.—Você nunca viu essemenino?Elemora no nosso

bairro.Vaiaoparquinhoàsvezes.Vocêtemquetervistoele.Todomundojáviu!—Elenãomoranessebairro—corrigiuCharlotte.—Mora,sim!—retrucouJack,impaciente.—Não.OJuliannãomoranobairro—disseela,tãoimpacientequantoele.—Oqueissotemaver?—perguntei.—Esquece!— interrompeu Jack.—Não importa.Acredita emmim, cara, você nunca viu nada

comoisso.—Porfavor,Jack,nãosejamau—falouCharlotte.—Issonãoélegal.—Nãoestousendomau!—retrucouJack.—Sóestoudizendoaverdade.—Comoexatamenteeleé?—perguntei.Jacknãorespondeu.Apenasficouparado,balançandoacabeça.OlheiparaCharlotte,quefranziua

testa.—Vocêvaiver—disseela.—Agoravamos,ok?Elasevirou,subiudenovoasescadasesumiunocorredorquelevavaàsaladoSr.Buzanfa.—Agoravamos,ok?—faleiparaJack,imitandoCharlotteperfeitamente.Acheiqueeleririadisso,

masnãofuncionou.—Jack,cara,vamoslá!—insisti.Fingidarumtapãofortenacaradele.Issoofezrirumpouco,eelerevidoucomumsocoemcâmera

lenta.Entãocomeçamosumarápidabrincadeirade“luta”,queconsisteemumtentaracertarascostelasdooutro.

—Vamos,meninos!—chamouCharlottedoaltodasescadas.Elatinhavoltadoparanosbuscar.—Vamos,meninos!—sussurreiparaJack,edessavezelemeioqueriu.Mas,assimqueviramosnocorredorechegamosàsaladoSr.Buzanfa,ficamostodosmuitosérios.Quando entramos, a Sra.Garcia nosmandou esperar na sala da enfermeiraMolly, que era bem

pequena e ficava ao lado da sala do Sr. Buzanfa. Não dissemos nada uns aos outros enquantoesperávamos.Resistiàtentaçãodefazerumbalãocomasluvasdelátexqueestavamnacaixaaoladodamesadeexame,emborasoubessequeissoteriafeitotodosrirem.

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Sr.Buzanfa

OSr.Buzanfaentrounasala.Eraalto,meiomagro,comocabelogrisalhodesgrenhado.—Oi,pessoal—disse,sorrindo.—SouoSr.Buzanfa.VocêdeveseraCharlotte.—Eapertoua

mãodela.—Evocêé...?—perguntou,olhandoparamim.—Julian—respondi.—Julian—repetiu,comumsorriso.Apertouaminhamão.—Evocêé JackWill—faloupara

Jack,eapertouamãodeletambém.OSr.Buzanfasentou-senacadeiraaoladodamesadaenfermeiraMolly.—Emprimeiro lugar,muitoobrigadoporvocêsteremvindoaquihoje.Seiqueestásolecalor lá

fora,evocêsprovavelmentegostariamdefazeroutrascoisas.Comotemsidooverão?Tudobem?Nóstrêsmeioqueconcordamoscomacabeça,nosentreolhando.—Ecomotemsidooseuverão?—pergunteiaele.—Que gentileza a sua perguntar, Julian!—disse ele.—Tem sido ótimo, obrigado.Embora eu

estejamuitoansiosopelooutono.Detestoessecalor.—Elepuxouacamisa.—Estouprontinhoparaoinverno.

Aessaaltura,nóstrêsbalançávamosacabeçaparacimaeparabaixo,comoidiotas.Nãoseiporqueosadultossedãoaotrabalhodebaterpapocomcrianças.Issosófazagentesesentirdesconfortável.Querdizer,pessoalmente,soumuitobomemconversarcomadultos—talvezporqueeuviajebastanteejátenhafaladocommuitosadultos—,masamaioriadascriançasrealmentenãogostadisso.Éassimqueascoisassão.Tipo,seeuvejoopaiouamãedealgumcolegameuenãoestamosdefatonaescola,tentoevitarcontatovisualparanãoterquefalarcomeles.Émuitoincômodo.Tambémésuperesquisitoquandovocêesbarraemumprofessorforadocolégio.Tipo,umavezviminhaprofessoradoterceiroanoemumrestaurantecomonamoradoefiquei,tipo,eeeeca!Nãoqueroverminhaprofessorasaindoporaícomonamorado,sabe?

Enfim,aliestávamosnós,eu,CharlotteeJack,balançandoacabeçacomounsimbecisenquantooSr.Buzanfafalavasempararsobreoverão.Masfinalmente—finalmente!—elechegouaondequeria.

—Então,crianças—disse,batendoasmãosnascoxas.—Émuitolegaldapartedevocêsabriremmãodesuatardeparafazerisso.Emalgunsminutosvouapresentarvocêsaogarotoqueviráaminhasala,esóquerodaralgunsavisossobreissoantes.Bem,faleiumpoucodeleparaassuasmães...Elasconversaramcomvocês?

CharlotteeJackdisseramquesim,maseunegueicomacabeça.—Minhamãesódissequeelefezummontedecirurgias—falei.—Bem,éverdade—respondeuoSr.Buzanfa.—Maselaexplicoualgosobreorostodele?Precisoconfessarquefoinessemomentoquecomeceiapensar:“Ok,quedrogaestoufazendoaqui?”—Bem,eunãosei—falei,coçandoacabeça.Tenteimelembrardoqueminhamãetinhafalado.Nãohaviaprestadoatenção.Achoquenamaior

partedotempoelafalousobrecomoeraumahonraeutersidoescolhido;nãoenfatizouquehaviaalgo

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erradocomogaroto.—Eladissequeosenhorfalouqueomeninotinhaummontedecicatrizesetal.Comosetivessesido

vítimadeumincêndio.—Eunãofaleiisso—corrigiuoSr.Buzanfa,levantandoassobrancelhas.—Oqueeudisseasua

mãeéqueogarototemumaanomaliacraniofacialgrave...—Ah,é,isso,isso—interrompi,porquenaquelemomentoeulembrei.—Elausouessaexpressão.

Eladissequeeracomolábioleporinooualgoassim.OSr.Buzanfacontraiuorosto.—Bem—falou,dandodeombroseinclinandoacabeçaoraparaumlado,oraparaooutro—,é

umpoucomaisqueisso.Eleselevantouedeuumtapinhanomeuombro.—Lamentosenãodeixeiissoclaroparasuamãe.Detodomodo,nãoqueroqueesseencontroseja

constrangedorparavocês.Naverdade,éjustamenteporissoqueestamosconversandoaquiagora.Sóqueriaavisarqueessemeninosemdúvidaémuitodiferentedasoutrascrianças.Eissonãoésegredo.Elesabequeédiferente.Nasceuassim.Eleentende isso.Éumótimogaroto.Muitoesperto.Muitogentil.Nunca frequentouumaescolanormal,porque tinhaaulasemcasa,vocês sabem,porcausadetodasascirurgias.Entãoépor issoquequeroquevocêso levemparadarumavoltanaescola,queoconheçam,sejamseu“comitêdeboas-vindas”.Sequiserem, fiquemàvontadepara fazerperguntasaele.Falemcomelenormalmente.Naverdade,eleé sóumgarotonormalcomumrostoque...vocêssabem,nãoétãonormal.—Eleolhouparaagenteerespiroufundo.—Ah,caramba.Achoquesódeixeivocêsmaisnervosos,nãofoi?

Balançamosacabeça.Elecoçouatesta.—Sabem—disseoSr.Buzanfa—,umadascoisasqueseaprendequandosechegaaminhaidadeé

queàsvezesumasituaçãonovasurge,evocênãotemideiadoquefazer.Nãoexisteummanualquenosdigacomoagiremtodasascircunstânciasdavida,entendem?Entãooquesempredigoéqueémelhorpecarpelagentileza.Esseéo segredo.Quandovocênão sabeoque fazer, simplesmente sejagentil.Não temcomodar errado.E foi por issoquepedi a vocês três queme ajudassemaqui, porque suasprofessorasdoanopassadomedisseramquevocêssãocriançasmuitolegais.

Nãosabíamoscomoresponderaisso,entãoapenassorrimoscomopatetas.—Apenasotratemcomotratariamqualquercriançaquetivessemacabadodeconhecer—disseele.

—Éissoqueestoutentandodizer.Ok,crianças?Concordamosaomesmotempo.Idiotas.—Vocês são demais— falou oSr.Buzanfa.—Então relaxem, esperemumpouco aqui.ASra.

Garcia virá buscá-los em alguns minutos. — Ele abriu a porta. — E, crianças, sério, obrigado porfazeremisso.Atraibomcarmafazerobem.Éummitzvah,sabiam?

Comisso,elesorriu,deuumapiscadelaesaiudasala.Nóstrêsexpiramosaomesmotempo.Olhamosunsparaosoutros,deolhosarregalados.—Ok—disseJack.—Nãoseiqueporcariaéumcarmaenãotenhoamenorideiadoqueéum

mitzvah!Issonosfezrirumpouco,emborafosseumarisadanervosa.

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Primeiravista

Nãovouentraremdetalhessobreoquemaisaconteceunaqueledia.Sóquerodizerque,pelaprimeiravez na vida, Jack não tinha exagerado. Na verdade, tinha feito o oposto. Existe uma palavra quesignifiqueoopostodeexagerar?“Desexagerar”?Nãosei.Mas,comcerteza,Jacknão tinhaexageradosobreorostodaquelegaroto.

NaprimeiravezqueviAugust,bem,tivevontadedecobrirosolhosesaircorrendoegritando.Seiqueissosoacruel,esintomuito.Maséverdade.EqualquerumquedigaquenãoteveamesmareaçãoquandoviuAuggiePullmanpelaprimeiraveznãoestásendohonesto.Sério.

Eurealmentequeriateridoemboraassimqueovi,massabiaque,sefizesseisso,estariaencrencado.Então fiquei olhando para o Sr. Buzanfa e tentei ouvir o que ele estava dizendo, mas tudo o queescutavaerablá-blá-blá,blá-blá-blá,porquemeusouvidosqueimavam.Naminhacabeçaecoava:Cara!Cara!Cara!Cara!Cara!Cara!Cara!Cara!Cara!Cara!

Cara!Cara!Cara!Cara!Cara!Achoquedisseessapalavraparamimmesmoumasmilvezes.Nãoseiporquê.Acertaaltura,elenosapresentouaAuggie.Ahh!Achoquechegueiaapertaramãodele.Milvezes

ahh!Euqueriadaroforadaliomaisrápidopossívelelavaramão.Mas,antesqueeumedessecontadoqueestavaacontecendo,cruzamosaporta,descemosocorredoresubimosasescadas.

Cara!Cara!Cara!Cara!Cara!Cara!Cara!Cara!Jackeeunosentreolhamosenquantosubíamosparaassalasdeaulas.Arregaleibemosolhose,sem

emitirsom,faleiparaele:—Semchance!Elerespondeu,tambémsómovendooslábios:—Euavisei!

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Aterrorizado

Quandoeutinhamaisoumenoscincoanos,lembroqueestavavendoumepisódiodeBobEsponjaumanoite epassouumcomercial quemedeixou completamente apavorado.FaltavampoucosdiasparaoHalloween.Nessaépocadoano,passavammuitoscomerciaisumpoucoassustadores,masesseeraumnovo terror adolescente do qual eu nunca tinha ouvido falar. De repente, enquanto eu assistia àpropaganda,apareceunatelaacaradeumzumbiemclose.Bem,eufiqueitotalmenteaterrorizado.Otipodeterrorquefazvocêsaircorrendodasala,gritandocomosbraçosparacima.A-TERRRRRR-RO-RI-ZAAAAAAAA-DO!

Depoisdaquilo,fiqueicomtantomedodeveroutravezacaradozumbiquepareideassistiràTVatéoHalloweenterpassadoeofilmenãoestarmaisemcartaznoscinemas.Sério,pareideverTV—detãoassustadoqueestava!

Nãomuitotempodepois,euestavabrincandocomumgarotodequemnemlembromaisonome.Eele eramuito fã deHarryPotter, então começamos a assistir a umdos filmes (eununca tinha vistonenhumdeles).Bem,quandoviorostodoVoldemortpelaprimeiravez,aconteceuamesmacoisaquetinhaacontecidocomocomercialdeHalloween.Comeceiagritarhistericamente,berrandocomoumbebezinho.Foitãoruimqueamãedogarotonãoconseguiumeacalmaretevequeligarparaminhamãe irmebuscar.Minhamãe ficoumuito irritada comamãedomeninopor termedeixado ver ofilme,entãoelasacabaramdiscutindo,e—pararesumir—nuncamaisfuibrincarlá.Mas,dequalquerforma, entre o comercial de zumbi no Halloween e o rosto sem nariz do Voldemort, fiquei meioabalado.

Pouco depois, infelizmente, mais ou menos na mesma época, meu pai me levou ao cinema. E,lembrem-se, eu tinha só cincoanos.Talvez seis, àquela altura.Nãodeveria ter sidoumproblema:ofilmeque fomosver erade classificação livre,nadademais,nemumpoucoassustador.MasumdostrailersfoideFadamalvada,umfilmesobrefadasdemoníacas.Eusei:fadassãotãoridículas!E,quandopensonisso,nãoacreditoquefiqueitãoassustadocomaquilo,masentreiempânicocomotrailer.Meupai teve que me tirar do cinema porque — mais uma vez! — eu não parava de chorar. Foi tãoconstrangedor!Querdizer,medode fadas?Oque viriadepois?Pôneis voadores?BonecosdoFofão?Flocos de neve? Era loucura! Mas lá estava eu, tremendo e gritando ao sair do cinema, o rostoescondidonocasacodomeupai.Tenhocertezadequehaviacriançasdetrêsanosnaplateiaolhandoparamimcomoseeufosseomaiorotário!

Masestaéaquestãodeficarapavorado:nãodáparacontrolar.Quandovocêtemmedo,temmedo.E,quandovocêtemmedo,tudoparecemaisassustadordoquedeveriaser—atéascoisasquenãosão.Tudoquedámedomeioquesemisturaparacriaressegrandesentimentodepânico.Écomosevocêestivessecobertopelamantadomedo,eessamantafossefeitadecacosdevidro,cocôdecachorro,puseespinhassangrentasdezumbi.

Comecei a terpesadelos terríveis.Todas asnoites eu acordavagritando.Cheguei aopontode termedode irdormirporquenãoqueria teroutropesadelo, entãocomecei adormirna camadosmeus

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pais.Gostariadedizerquefoiapenasporalgumasnoites,masdurouseissemanas.Eunãoosdeixavaapagaraluz.Tinhaumataquedepânicotodavezquecomeçavaaficarcomsono.Querdizer,asmãoscomeçavamasuardeverdade,ocoraçãodisparava,eeucomeçavaachorareagritarantesdeirparaacama.

Meus pais me levaram a uma médica de “sentimentos”, e só mais tarde entendi que era umapsicólogaespecializadaemcrianças.ADra.Patelmeajudouumpouco.Eladissequeeuestavatendo“terroresnoturnos”,eissomeajudouaconversarcomelasobreoassunto.MasachoqueoquemefezsuperarmesmoospesadelosforamosvídeosdenaturezadoDiscoveryChannelqueminhamãetrouxeparamimumdia.Uhulparaessesvídeos!Todasasnoites,colocávamosumdelesnoaparelhodeDVD,eeupegavanosonoaosomdeumcaracomsotaqueinglêsfalandosobresuricatos,coalasouáguas-vivas.

Porfim,supereiospesadelos.Tudovoltouaonormal.Masdevezemquandoeutinhaoqueminhamãechamavade“pequenarecaída”.Porexemplo,emboraeuadoreStarWarsagora,naprimeiravezqueviStarWars:EpisódioII,emumafestadopijamadeaniversárioquandoeutinhaoitoanos,tivequemandar umamensagemparaminhamãe irme buscar às duas damanhã, porque eu não conseguiadormir:semprequefechavaosolhos,orostodeDarthSidioussurgianaminhamente.Preciseidetrêssemanasdevídeosdenaturezaparamerecuperardessarecaída(edepoisdissotambémpareidedormirnacasadosmeusamigospormaisoumenosumano).Então,quandoeutinhanoveanos,viOSenhordosAnéis:Asduastorrespelaprimeiravezeaconteceuamesmacoisa,sóquedessavezleveiapenasumasemanaparasuperaroGollum.

Quandofizdezanos,noentanto,todosessespesadelosjátinhampraticamentedesaparecido.Eujátinhasuperadoatéomedodeterpesadelos.Tipo,seeuestivessenacasadoHenryeeledissesse“Ei,vamosassistir aumfilmede terror”,minhaprimeira reaçãonão seriapensar: “Não,euposso terumpesadelo!”(comocostumavaser).Minhaprimeirareaçãoseria:“Ah, legal!Cadêapipoca?”Enfimeupodiavertodosostiposdefilmeoutravez.Atécomeceiameinteressarporapocalipsezumbi,enadadissomeincomodavamais.Essacoisadepesadelotinhaficadoparatrás.

Oupelomenoseraoqueeupensava.Masaí,nanoitedepoisdeconhecerAuggiePullman,volteiaterpesadelos.Nãodavaparaacreditar.

Nãoeramapenassonhosruinspassageiros,masaquelespesadeloscompletos,deacordargritandocomocoraçãodisparado,queeutinhaquandoerapequeno.Sóqueeunãoeramaispequeno.

Estavanoquintoano!Tinhaonzeanos!Issonãodeveriamaisestaracontecendocomigo!Masláestavaeuoutravez—assistindoavídeosdenaturezaparameajudaradormir.

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Fotodeturma

TenteidescreverAuggieparaminhamãe,maselanãoentendeuatéasfotosdaescolachegaremporcorreio.Atéentão,elanuncatinhavistoAugust.EstavaviajandoatrabalhoduranteoFestivaldeAçãodeGraças,porissonãooviulá.NoDiadoMuseuEgípcio,orostodeleestavacobertoporfaixasdegaze, que nem uma múmia. E ainda não tinha acontecido nenhum show depois da aula. Então, aprimeiravezqueminhamãeviuAuggieefinalmentecomeçouaentendermeuspesadelosfoiquandoabriuoenvelopegrandecomafotodaminhaturma.

Naverdade,foimeioengraçado.Possodizerexatamentecomofoisuareação,porqueestavaolhandopara ela na hora. Primeiro, rasgou a parte de cima do envelope, toda animada, com um abridor decartas.Depoispegoumeuretratoindividual.Levouamãoaopeito.

— Ooohn, Julian, você está tão bonito! Estou tão feliz por você ter usado a gravata que suaGrandmèremandou.

Euestavatomandosorvetenamesadacozinha,entãoapenassorriparaelaeconcordei.Emseguidaviquandoelatiroudoenvelopeafotodaturma.NoensinofundamentalI,cadaturma

posavaparaumafotocomaprópriaprofessora,masnoensinofundamentalIIéapenasumafotocomtodasasturmasdequintoano:sessentacriançasdepéemfrenteaoportãodaescola.Quinzeemcadafileira.Quatrofileiras.Euestavanaúltima,entreAmoseHenry.

Mamãeolhavaparaafotocomumsorrisonorosto.—Ah,aíestávocê!—falouelaquandomeviu.Continuouolhandoparaafoto,sorrindo.— Meu Deus, veja como Miles está grande! E esse é o Henry? Parece que o bigode dele está

começandoacrescer!Equemé…Aíelaparoudefalar.Osorrisoficoucongeladonorostodelaporumoudoissegundos,eentãosua

expressãosetransformouaospoucosemchoque.Elabaixouafotoeolhouparaafrente,vidrada.Entãovoltouaolharparaafoto.Depoissevirouparamim.Nãoestavasorrindo.—Esseéomeninodequevocêtemfalado?—perguntou.Seutomdevoztinhasetransformadocompletamente.—Euavisei—respondi.Elavoltouaolharparaafotografia.—Issonãoésóumlábioleporino.—Ninguémnuncadissequeeralábioleporino—falei.—OSr.Buzanfanuncadisseisso.—Disse,sim.Aotelefone,naquelavez.—Não,mãe—insisti.—Oqueeledissefoi“problemasfaciais”,evocêdeduziuqueelequisdizer

lábioleporino.Maselenuncadisseissodeverdade.—Eupoderia jurarqueele falouqueogaroto tinha lábio leporino—rebateuela.—Mas issoé

muitopior.

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Elapareciaestarmesmoimpressionada.Nãotiravaosolhosdafoto.—Oqueexatamenteeletem?Algumatrasodedesenvolvimento?Parecequesim.—Achoquenão—respondi,dandodeombros.—Elefaladireito?—Elemeioquemurmura—respondi.—Àsvezesédifícildeentender.Mamãedeixouafotonamesaesesentou.Começouatamborilarnotampodamesa.—Estoutentandoadivinharqueméamãedele—falou,balançandoacabeça.—Hátantospaisde

alunosnovosnaescola,nãoimaginoquemseja.Elaéloura?—Não,temcabeloescuro—respondi.—Euavejoàsvezes,quandoeladeixaAugustnaescola.—Elaé...comoofilho?—Ah,não.Nãomesmo.Eumesenteiaoladodaminhamãeepegueiafoto,espremendoosolhosparanãovercommuita

clareza.Auggieestavanafileiradafrente,napontaesquerda.—Eufaleiparavocê,mãe.Vocênãoacreditou,maseufalei.—Não é que eu não tenha acreditado em você— respondeu ela, na defensiva.—Eu só estou

meio...surpresa.Nãotinhamedadocontadequeeratãograveassim.Ah,achoqueseiqueméela,amãedele.Elanãoémuitobonita,meioexótica,comocabeloescuroeondulado?

—Oquê?—falei,dandodeombros.—Nãosei.Elaéumamãe.—Achoqueseiquemé—disseminhamãe,assentindoparasimesma.—Euavinoencontrode

pais.Omaridoébonitotambém.—Nãotenhoamenorideia—falei,balançandoacabeça.—Ah,coitados!—disse,levandoamãoaocoração.—Agoravocêentendeporquevolteiaterpesadelos?Elapassouamãopelomeucabelo.—Masvocêaindatempesadelos?—perguntou.—Tenho.Nãotodasasnoites,comonoprimeiromêsdeaulas,mastenho,sim!—falei,jogandoa

fotonamesa.—PorqueeletevequeentrarnaBeecherPrep?Olheiparaminhamãe,quenãosabiaoquedizer.Elaguardouafotodevoltanoenvelope.—Aliás,nempenseembotarissonomeuálbumdefotosdaescola—falei,elevandoavoz.—Você

deviaqueimaressafotooualgoassim.—Julian!—exclamouela.Então,donada,comeceiachorar.—Ah,meuquerido!—dissemamãe,meiosurpresa.Elameabraçou.—Nãoconsigoevitar,mãe—falei,emmeioàslágrimas.—DetestoterqueverAuggietodosos

dias!Naquelanoite,tiveomesmopesadeloquevinhatendodesdeoiníciodasaulas:andopelocorredor

principaldaescolae todasascriançasestãoemfrenteaosseusarmários,meencarando,cochichandosobremimquandopassoporelas.Suboasescadasatéchegaraobanheiro,eaímeolhonoespelho.Mas,quandoolhomeureflexo,nãosoueuquevejo.ÉAuggie.Eentãogrito.

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Photoshop

Namanhãseguinte,ouvimeuspaisconversaremenquantosearrumavamparaotrabalho.Euestavamevestindoparairàescola.

—Eles deveriam ter preparadomelhor as crianças— disseminhamãe.—A escola deveria termandadoumacartaparaacasaoualgoassim,nãosei.

—Ora,porfavor—rebateumeupai.—Dizendooquê?Oquepoderiamdizer?Temumgarotofeionasuaturma?Ora,porfavor!

—Émuitomaisdoqueisso.—Nãovamosexagerar,Melissa.—Vocênãooviu,Jules—falouminhamãe.—Émuitograve.Ospaisdeveriamtersidoavisados.

Eudeveriatersidoavisada!AindamaiscomosproblemasdeansiedadedoJulian.—Problemasdeansiedade?—griteidomeuquarto,correndoparaodeles.—Vocêsachamqueeu

tenhoproblemasdeansiedade?—Não,Julian—faloumeupai.—Ninguémestádizendoisso.—Amamãeacaboudedizer!—rebati,apontandoparaela.—Acabeideouvirelafalar“problemas

deansiedade”.Oquefoi,vocêsachamquetenhoproblemasmentais?—Não!—disseramosdois.—Sóporquetenhopesadelos?—Não!—gritarameles.—Aculpanãoéminhaseeleestudanaminhaescola!—berrei.—Nãotenhoculpaseorostodele

medámedo!—Claroquenãotem,querido—disseminhamãe.—Ninguémestáfalandoisso.Sóquisdizerque,

porcausadoseuhistóricodepesadelos,aescoladeveriatermealertado.Dessaforma,pelomenoseuentenderiamelhoromotivodosseuspesadelosrecentes.Saberiaoqueosdesencadeou.

Eumesenteinabeiradacamadeles.Meupaiestavacomafotodaturmanasmãoseeraóbvioqueestavaolhandoparaela.

—Esperoquevocêsestejampensandoemqueimarisso—falei,sembrincadeira.—Não,querido—disseminhamãe, sentando-seameu lado.—Nãoprecisamosqueimarnada.

Vejaoqueeufiz.Elapegououtrafotonamesinhadecabeceiraemeentregou.Deinício,acheiquefosseapenasuma

cópiadafotodeturma,porqueeraexatamentedomesmotamanhoetudonaimagemeraigualzinho.Comeceiadesviaroolharcomnojo,masminhamãeindicouumpontonaimagem—opontoondeAuggiedeveriaestar!Elenãoaparecianafoto.

Eumalpodiaacreditar!Nãohavianemsinaldele!Olheiparamamãe,queestavaradiante.—AmagiadoPhotoshop!—disse,alegre,batendopalmas.—Agoravocêpodeolharafotoesua

memóriadoquintoanonãovaificarmanchada.

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—Issoétãolegal!—falei.—Comovocêconseguiu?—SoumuitoboanoPhotoshop—respondeuela.—Lembra,noanopassado,comofizocéuficar

azulemtodasasfotosdoHavaí?—Ninguémdiriaquechoveutodososdias—faloumeupai,balançandoacabeça.—Riasequiser—rebateuminhamãe.—Masagora,quandoolhoparaaquelasfotos,nãotenho

quemelembrardotemporuimquequaseestragounossaviagem.Possomelembrardelacomoaslindasfériasqueforam!Eéexatamenteassimquequeroquevocêse lembredeseuquintoanonaBeecherPrep.Ok,Julian?Boaslembranças.Nadadelembrançasruins.

—Obrigado,mamãe!—falei,dandoumabraçoapertadonela.Nãofaleinada,claro,mas,apesardeelatermudadoocéuparaazul-claronasfotos,aúnicacoisade

quemelembravadaviagemaoHavaíeracomochoviaefaziafrioenquantoestávamoslá—mesmocomamágicadoPhotoshop.

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Cruel

Olhe, eu não comecei sendo cruel. Quer dizer, não sou um garoto mau! Claro, às vezes façobrincadeiras,masnãosãocruéis.Sãoapenasgozações.Aspessoastêmquerelaxarumpouco!Ok,talvezàs vezesminhas brincadeiras sejam umpouco cruéis,mas só faço esse tipo de brincadeira quando apessoanãoestávendo.Nuncadigonacaranadaquepossamagoaralguém.Nãosouumvalentãodessetipo!Nãofaçobullying,cara!

Atenção,pessoas!Paremdesertãosensíveis!AlgunsamigosaprovaramtodoolancedoPhotoshop,eoutros,não.HenryeMilesacharammuito

legalequiseramqueminhamãemandasseafotopore-mailparaasmãesdeles.Amosachouqueera“esquisito”.Charlottefoitotalmentecontra.NãoseioqueJackachou,porqueaessaalturaelejátinhapassadoparaoladonegrodaforça.PareciaqueeletinhaabandonadodevezseusamigosnaqueleanoesóandavacomAuggie.Issomeincomodou,porquesignificavaqueeunãopodiamaisandarcomele.Dejeitonenhumqueeupegariaa“peste”daquelemonstro.Essefoionomedojogoqueinventei.APeste. Era simples. Se você tocasse em Auggie e não se lavasse da contaminação, morreria. Todomundodoquintoanojogava.MenosJack.

ESummer.Eissoéestranho.EuconheciaSummerdesdeoterceiroano,enuncatinhaprestadoatençãonela,

masnesseanoHenrytinhacomeçadoagostardeSavannaeelesestavammeioque“namorando”.Por“namorando” não quero dizer nada como no ensinomédio, o que seria tão nojento quanto vômito.Estar“namorando”significaapenasandarjuntos,seencontrarnosarmárioseàsvezesiràsorveterianaavenida Amesfort depois da escola. Então, primeiro Henry começou a namorar Savanna, e depoisMilescomeçouanamorarXimena.Eeufiqueimeio“Ei,eeu?”.AíAmosdisse“VouchamarSummerpara sair”, e eu falei “Nem pensar, eu que vou!”. E foi assim que eumeio que comecei a gostar deSummer.

MasoproblemafoiqueSummer,assimcomoJack,eradogrupodeAuggie.Issosignificavaqueeunãopodiasaircomelade jeitonenhum.Eunãopodianemdizer“Eaí?”paraela,porqueomonstropodia achar que eu estava falando com ele ou algo assim. Então pedi ao Henry que falasse com aSavannaparaconvidaraSummerparaafestadeHalloweennacasadela.Acheiquepoderiapassarumtempo com ela e talvez até chamá-la para sair comigo.Mas isso não funcionou, porque ela acabousaindocedodafesta.Edesdeentãoelapassoutodootempocomomonstro.

Ok,ok.SeiquenãoélegalchamarAuggiede“omonstro”,mas,comoeudisseantes,aspessoastêmquecomeçaraserumpoucomenossensíveis!Ésóumapiada,gente!Nãomelevemtãoasério!Nãoestousendocruel.Sóengraçado.

Eerasóissoqueeuestavafazendo,sendomuitoengraçado,nodiaemqueJackWillmedeuumsoco.Eusóestavabrincando!Implicando.

Eunãoesperavamesmoporaquilo!Pelo queme lembro, estávamos nos divertindo juntos e, de repente, eleme acertouna boca sem

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motivoalgum!Pof!Eeufalei,tipo:—Aaaaaai!Seumalucoidiota!Vocêmedeuumsoco?Vocêrealmentemedeuumsoco?Quandomedeiconta,estavanasaladaenfermeiraMolly,comumdosmeusdentesnamão,eoSr.

Buzanfa estava lá, e eu o ouvi ao telefone com minha mãe, dizendo que eles iam me levar para ohospital. Dava para ouvir minha mãe gritando do outro lado da linha. Então a Sra. Rubin, acoordenadora,mepôsnatraseiradeumaambulânciaepartimosparaohospital!Umaloucura!

Quandoestávamosnaambulância,aSra.RubinmeperguntouseeusabiaporqueoJacktinhamebatido.Eudisse:“Dã,porqueeleécompletamentelouco!”Nãoqueeuconseguissefalarmuito,porquemeuslábiosestavaminchadosetinhasangueemtodaaminhaboca.

ASra.Rubinficoucomigonohospitalatéminhamãechegar.Comovocêpodeimaginar,mamãeestava mega-histérica. Chorava dramaticamente sempre que olhava para meu rosto. Tenho queconfessar:foiumpoucoconstrangedor.

Entãomeupaiapareceu.—Quemfezisso?—foiaprimeiracoisaqueeledisse,berrandocomaSra.Rubin.—JackWill—respondeuela,comtranquilidade.—EleestácomoSr.Buzanfaagora.—JackWill?—gritouminhamãe,emchoque.—NósconhecemososWill!Comoissoaconteceu?— Faremos uma investigação completa — respondeu a Sra. Rubin. — No momento, o mais

importanteéqueJulianvaificarbem...—Bem?—berrouminhamãe.—Olheparaorostodele!Vocêachaqueissoestábem?Nãoacho

queestejabem.Issoéumabsurdo.Quetipodeescolaéessa?AcheiqueascriançasnãosesocassememumaescolacomoaBeecherPrep.Achavaqueeraporissoquepagamosquarentamildólaresporano,paraquenossosfilhosnãosemachuquem.

—Sra.Albans—interrompeuaSra.Rubin—,seiqueasenhoraestáchateada...—Imaginoqueessegarotováserexpulso,certo?—questionoumeupai.—Pai!—gritei.—Prometoquevamoslidarcomocasodaformaapropriada—respondeuaSra.Rubin,tentando

manteravozcalma.—Eagora, senão se importam,voudeixá-los sozinhos.Omédicovai voltarevocêspoderãoconfirmarcomele,maseledissequenãohánenhumossoquebrado.Julianestábem.Eleperdeuumdentedeleite,ummolar,masjáestavaparacairmesmo.Vãodaralgunsanalgésicosparaeleevocêsdeverãoaplicargelonolocal.Conversaremosmaispelamanhã.

SóentãopercebiqueasaiaeablusadapobreSra.Rubinestavamcobertascommeusangue.Cara,abocasangrademais!

Mais tarde naquela noite, quando enfim consegui falar sem sentir dor, minha mãe e meu paiquiseram saber o que aconteceu nos mínimos detalhes, começando com o que eu e Jack estávamosconversandologoantesdeelemebater.

— Jack extava chateadoporque fexdupla como garotodeformado— respondi.—Falei que elepodxiatrocardeduplasequixesse.Eaíelemedeuumxoco!

Mamãebalançouacabeça.Paraela,foiagotad’água.Elaestava,literalmente,maisfuriosadoqueeujamaistinhavisto(e,podeacreditar,jáviminhamãemuitofuriosa!).

—Éissoqueacontece,Jules!—falouelaparameupai,cruzandoosbraçosebalançandoacabeçamuitodepressa.—Éissoqueacontecequandovocêobrigacriançaspequenasalidarcomsituaçõesparaas quais não estão preparadas! Eles são novos demais para serem expostos a coisas assim! AqueleBuzanfaéumidiota!

Eladissemaisummontedecoisas,maseramdotipoinapro-pro-pri...(seéquevocêmeentende)

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paraeurepetir.— Mas, pai, não quero que Jack seja expulxo da excola — falei, mais tarde, quando ele estava

colocandomaisgelonaminhaboca,porqueoefeitodoremédioquetinhammedadonohospitalestavapassando.

—Issonãoestánasnossasmãos—respondeuele.—Mas,seeufossevocê,nãomepreocupariacomisso.Aconteçaoqueacontecer,Jacksofreráasconsequências.

TenhoqueadmitirquecomeceiamesentirmalporJack.Querdizer,claroqueelefoiumcompletoidiotapormebater,eeuqueriaqueeleseencrencasse—masnãoquefosseexpulsodaescolanemnadaassim.

Masdavaparaverquemamãeagoraestavaemumadesuasmissões(comomeupaidiria).Àsvezeselaficaassim,quandosesentetãoindignadacomalgumacoisaquenadaécapazdedetê-la.Elaficouassimháalgunsanos,quandoumacriançafoiatropeladaporumcarroaalgumasquadrasdaBeecherPrep, e ela fez tipo um milhão de pessoas assinarem uma petição para a instalação de um sinal detrânsito.Aquele foiummomento supermãe.Ela tambémficouassimnomêspassado,quandonossorestaurantefavoritomudouocardápioepassouanãoservirmaismeupratopreferidodojeitoqueeugostava. Foi outro momento supermãe porque, depois de falar com o novo proprietário, elesconcordaramemfazeropratodeumjeitoespecial—sóparamim!Masminhamãetambémficaassimporcoisasnãotãolegais,comoquandoumgarçomerraonossopedido.Esseéummomentonão-tão-supermãe, porque, bem, você sabe, pode ser meio estranho quando sua mãe começa a falar com ogarçomcomoseeletivessecincoanos.Constrangedor!Alémdisso,comopapaidiz,vocênãovaiquererdeixarumgarçomzangado,sabe?Asuacomidaestánasmãosdele—dã!

Então eu não sabia muito bem como me sentia quandome dei conta de queminhamãe estavadeclarando guerra ao Sr. Buzanfa, aAuggie Pullman e a toda a Beecher Prep. Seria ummomentosupermãeounão-tão-supermãe?Tipo,podiaterminarcomAuggieindoparaoutraescola—uhul!—oucomoSr.Buzanfaassoandoonariznomeulanchedacantina—eca!

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Festa

Levouquaseduassemanasparaoinchaçosumir.Porcontadisso,acabamosnãoindoaParisduranteasférias de fim de ano. Minha mãe não queria que nossos parentes me vissem como se eu tivesseparticipadodeuma“lutadeboxe”.Elatambémnãotirounenhumafotominhanasfériasporquediziaquenão queria se lembrar demimdaquele jeito.Para nosso cartão deNatal, usamos umadas fotosrejeitadasdasessãodoanoanterior.

Embora eu já não tivessemais tantos pesadelos, o fato de eles terem voltado deixouminhamãemuitopreocupada.Eusabiaqueelaestavacompletamenteestressadacomisso.Então,nodiaanterioranossa festa deNatal, ela ficou sabendo por outramãe queAuggie não havia passado pelosmesmostestesdeadmissãoquetodosnós.TodasascriançasqueseinscrevemparaaBeecherPrepdevemserentrevistadasefazerumtestenaescola—masalgumaexceçãoforaabertaparaAuggie.Elenãohaviaido à escola para a entrevista e fizera os testes de admissão em casa. Minha mãe achou isso muitoinjusto!

—Essegarotonãodeveriaterentradonaescola—disseelaparaumgrupodeoutrasmãesnafesta.—ABeecherPrepsimplesmentenãoestápreparadapara lidarcomsituaçõescomoesta!Nãosomosumaescolainclusiva!Nãotemosospsicólogosnecessáriosparalidarcomoefeitodissosobreasoutrascrianças.OcoitadodoJuliantevepesadelosduranteummêsinteiro!

Ai,mãe!Detestoquandovocêcontaaosoutrossobremeuspesadelos.—Henrytambémficouperturbado—disseamãedele,easoutrasconcordaram.—Elesnemnosprepararamcomantecedência!—prosseguiuminhamãe.—Éissoquemaisme

incomoda.Senãovãoprovidenciarapoiopsicológicoextra,queaomenosavisemaospaisatempo!—Claro!—disseamãedeMiles,easoutrasconcordaramdenovo.—ÉóbvioqueJackWillprecisadeterapia—falouminhamãe,revirandoosolhos.—Fiqueisurpresaqueelenãotenhasidoexpulso—comentouamãedeHenry.—Ah,eleseria!—respondeuminhamãe.—Maspedimosquenãofizessemisso.Conhecemosa

famíliaWilldesdeojardimdeinfância.Sãoboaspessoas.Naverdade,nãoculpamosoJack.Sóachoqueelesurtouporcausadapressãodeterquecuidardaquelegaroto.Éoqueacontecequandosepõemcriançaspequenasnessetipodesituação.Sinceramente,nãoseioqueoBuzanfaestavapensando!

—Medesculpem,mastenhoquememeter—disseoutramulher(achoquefoiamãedaCharlotte,porquetinhaomesmocabelolourobrilhosoeosmesmosolhosazuis).—Nãohánadadeerradocomessemenino,Melissa.Eleéumótimogaroto,quesimplesmentetemumaaparênciadiferente,mas...

—Ah, eu sei!—respondeuminhamãe, levandoamãoaocoração.—Ah,Brigit,ninguémestádizendoqueelenãoéumbomgaroto,acredite.Tenhocertezadequeé.Eouvidizerqueospaisdelesão ótimos.A questão não é essa. Paramim, emúltima análise, o problema foi que oBuzanfa nãoseguiuoprotocolo.EleclaramenteignorouoprocessodeinscriçãoaonãochamarogarotoàBeecherPrepparaaentrevistaouparafazeroteste,comotodososnossosfilhos.Quebrouasregras.Eregrassãoregras.Éisso.—ElaolhouparaBrigitcomumaexpressãotriste.—Ah,Brigit,querida.Dápara

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verquevocêdiscordacompletamentedessavisão!—Não,Melissa,de formaalguma—falouamãedeCharlotte,balançandoa cabeça.—Éuma

situaçãomuitodifícil.Olhe,ofatoéqueseufilholevouumsoconorosto.Vocêtemtodoodireitodeficarzangadaeexigiralgumasrespostas.

—Obrigada.—Minhamãeassentiuecruzouosbraços.—Sóachoque lidarammuitomalcomtudo,sóisso.EaculpaédoBuzanfa.Todadele.

—Semdúvida—concordouamãedeHenry.—Eletemqueirembora—falouamãedeMiles.Olheiparaminhamãe,cercadapormulheresconcordandocomela,epensei:“Ok,entãotalvezeste

acabe sendo um daquelesmomentos supermãe.”Talvez tudo que ela estivesse fazendo resultasse namudançadeAuggieparaoutraescola,eentãoascoisasvoltariamasercomoantesnaBeecherPrep.Issoseriaincrível!

Mas parte de mim pensava: “Talvez este se torne um momento não-tão-supermãe.” Quer dizer,algumascoisasqueelaestavadizendosoavammeio...nãosei.Meiocruéis,acho.Comoquandoelaficairritada com um garçom.Você acaba sentindo pena do garçom.A questão é: sei que ela está nessamissãocontraoSr.Buzanfaporminhacausa.Seeunãotivessevoltadoaterpesadelos,eseJacknãotivessemedadoumsoco,nadadisso estaria acontecendo.Elanão estaria criando todoesse casoporcausadoAuggieoudoSr.Buzanfa,econcentrariatodaasuaenergiaemcoisasboas,comoarrecadardinheiroparaaescolaetrabalharcomovoluntárianoabrigoparaossem-teto.Minhamãefazcoisasboascomoessasotempotodo!

Então,não sei.Porum lado, fico felizqueela tentemeajudar.E,poroutro, euadorariaqueelaparasse.

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GrupodoJulian

OquemaismechateouquandovoltamosàsaulasdepoisdasfériasdefimdeanofoiqueJackestavaamigodeAuggieoutravez.ElestinhammeioquebrigadodepoisdoHalloween,efoiporissoqueJackeeuhavíamosnosunidodenovo.Mas,depoisdasférias,elesvoltaramasermelhoresamigos.

Issoeratãochato!FaleiparatodomundoqueagenteprecisavadarumgeloemJack,paraseuprópriobem.Eletinha

queescolher,deumavezportodas,sequeriaficarnoGrupodoAuggieounoGrupodoJulianedoResto do Mundo. Então começamos a ignorar Jack completamente: não falávamos com ele nemrespondíamosàssuasperguntas.Eracomoseelenãoexistisse.

Eleiaversó!Efoiquandocomeceiadeixarmeusbilhetinhos.Umdia,alguémesqueceuumblocodepost-itsem

umdosbancosdopátio,efoiissoquemedeuaideia.Escrevicomumacaligrafiadepsicopata:Ninguémgostamaisdevocê!Passei o bilhete pelas frestas do armário de Jack quando ninguém estava olhando.Observei pelo

cantodoolhoquandoeleoencontrou.JackseviroueviuHenryabrindooarmáriodelealiporperto.—FoioJulianqueescreveuisto?—perguntouele.MasHenryeraumdosmeusparceiros,sabe?EleapenasdeugelonoJack,fingindoquenãotinha

ninguémfalandocomele.Jackamassouopapel,jogou-onoarmárioebateuaporta.DepoisqueJacksaiu,eumeaproximeideHenry.—Uhul!—falei,levantandoomindinhoeoindicadorparaformardoischifrinhos,eHenryriu.Nosdiasseguintes,deixeimaisalgunsbilhetesnoarmáriodeJack.Edepoiscomeceiadeixaralguns

paraAuggie.Nãoeram—repito,nãoeram—grandecoisa.Erambasicamentebobagens.Nãoacheiqueninguém

fosselevarissoasério.Querdizer,eleseramatémeioengraçados!Bem,maisoumenos.Pelomenosalgunsdeleseram.

Vocêfedeaqueijoestragado!Seumonstro!Dêoforadanossaescola,ogro!

Ninguém além de Henry e Miles sabia que eu era o autor dos bilhetes. E eles juraram queguardariamsegredo.

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AsaladoDr.Jansen

Nãotenhoamenor ideiadecomooSr.Buzanfaficousabendodeles.NãoachoqueJackouAuggietenhamsidoburrosobastanteparamededurar,porqueelestinhamcomeçadoadeixarbilhetesnomeuarmáriotambém.Querdizer,quãoestúpidovocêtemqueserparadeduraralguémdealgumacoisaquevocêtambémestáfazendo?

Então, foi isto que aconteceu: alguns dias antes do acampamento da escola, que eu esperavaansiosamente,minhamãerecebeuumtelefonemadoDr.Jansen,oreitordaBeecherPrep.Eledissequequeriadiscutirumassuntocomelaemeupaiemarcouumareunião.

Mamãededuziuqueprovavelmente tinhaaver comoSr.Buzanfa,que talvezele fossedemitido.Entãoelaestavamuitoanimadacomareunião!

ElesapareceramparaocompromissoàsdezdamanhãeestavamesperandonasaladoDr.Jansenquando,derepente,meviramentrandonasalatambém.ASra.Rubintinhametiradodaaula,pedidoqueeuaacompanhasseemelevadoatélá:eunãofaziaideiadoquehaviaacontecido.Eununcatinhaidoàsaladoreitor,então,quandovimeuspaisali,fiqueitãoconfusoquantoeles.

—Oqueestáacontecendo?—perguntoumamãeàSra.Rubin.Antesqueelapudesseresponderqualquercoisa,oSr.BuzanfaeoDr.Jansenentraramnasala.Todossecumprimentaramcomapertosdemãos,cheiosdesorrisos.ASra.Rubindissequeprecisava

voltaràaula,masqueligariaparaminhamãeemeupaidepoisparavercomoestavamascoisas.Issodeixouminhamãesurpresa.Percebiqueelacomeçouaacharque,nofimdascontas,talvezaquilonãotivesseavercomademissãodoSr.Buzanfa.

EntãooDr.Jansennosconvidouasentarnosofáemfrenteàmesadele.OSr.Buzanfasentou-seemumacadeirapertodenós,eoDr.Jansenseacomodouatrásdesuamesa.

—Bem,obrigadoporteremvindo,MelissaeJules—falouparameuspais.Eraestranhoouvi-lochamandomeuspaispelonome.Eusabiaqueelesseconheciamporfazerem

partedoconselhodiretor,massoavaesquisito.—Seicomosãoocupados.Etenhocertezadequeestãoseperguntandoporqueforamchamados.—Bem,sim...—começouminhamãe,masavozdelafalhou.Meupaitossiu,cobrindoabocacomamão.ODr.Jansencontinuou:—Omotivoparatermoschamadovocêsaquihojeéque,infelizmente,estamoscomumproblema

sérioegostaríamosdediscutiramelhorformaderesolvê-lo.Julian,vocêtemalgumaideiadoqueestoufalando?

Eleolhouparamim.Arregaleiosolhos.—Eu?—Jogueiacabeçaparatrásefizumacareta.—Não.ODr.Jansensorriuesuspirouaomesmotempo.Tirouosóculos.—Vocêsabe—disse,olhandoparamim—quelevamosobullyingmuitoasérionaBeecherPrep.

Háumapolíticade tolerância zero aqualquer tipodebullying.Acreditamosque cadaumdenossosalunostemodireitodeaprenderemumaatmosferadecuidadoerespeito...

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— Desculpem-me, mas será que alguém pode me explicar o que está acontecendo aqui? —interrompeuminhamãe,olhandocom impaciênciaparaoDr. Jansen.—Éclaroqueconhecemosadeclaraçãodemissãodaescola,Hal:nóspraticamenteaescrevemos!Vamosdiretoaoponto:oqueestáhavendo?

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Evidências

ODr.JansenolhouparaoSr.Buzanfa.—Porquevocênãoexplica,Larry?—sugeriu.OSr.Buzanfaentregouumenvelopeameuspais.Mamãeoabriuepegouostrêsúltimosbilhetes

queeutinhadeixadonoarmáriodeAuggie.Eusoubenamesmahoraqueeramelesporqueerampost-itscor-de-rosa,enãoamareloscomotodososanteriores.

Entãopensei:“Arrá!FoioAuggiequemcontouaoSr.Buzanfasobreosbilhetes!Quesacana!”Minhamãeleuosbilhetesdepressa,arqueouassobrancelhaseospassouparameupai.Eleosleue

olhouparamim.—Foivocêqueescreveuisto,Julian?—perguntou,estendendoospapéisparamim.Engoliemseco.Olheiparaelemeiovidrado.Elemeentregouosbilhetes,maseusófiqueiolhando

paraeles.—Hum...bem...—respondi.—Sim,euacho.Mas,pai,elestambémdeixarambilhetes!—Quemdeixoubilhetes?—papaiquissaber.—JackeAuggie.Elesdeixarambilhetesparamimtambém!Nãofuisóeu.—Masfoivocêquemcomeçoucomisso,nãofoi?—indagouoSr.Buzanfa.—Comlicença—interveiominhamãe,comraiva.—NãovamosnosesquecerdequefoiJackWill

quemdeuumsoconabocadeJulian,enãoocontrário.Éclaroquehaveriaumresquícioderaiva...—Quantosbilhetesdessesvocêescreveu,Julian?—interrompeumeupai,batendocomodedonos

bilhetesqueeusegurava.—Nãosei—falei.Eradifícilfazeraspalavrassaírem.—Unsseis,maisoumenos.Masosoutros

nãoeramassim tão... você sabe,maus.Esses sãopioresdoqueosoutrosqueescrevi.Osoutrosnãoeramtão...—Minhavozfoisumindoenquantoeureliaoquetinhaescritonaquelestrêsbilhetes:

Oi,DarthHorrível.Vocêétãofeioquedeveriausarumamáscaratodososdias!E:Odeiovc,monstro!Eoúltimo:Aposto que sua mãe queria que você não tivesse nascido. Você deveria fazer um favor a todo mundo... e

morrer.Claro que, olhandopara eles agora, pareciammuito piores do que quando eu os escrevi.Mas eu

estavacomraivanahora—commuitaraiva.Tinhaacabadodereceberumdosbilhetese...—Espere aí!— falei, colocando amão no bolso.Encontrei o último bilhete queAuggie e Jack

tinhamdeixadonomeuarmário,navéspera.Tinhaficadomeioamassado,masestendiobilheteparaoSr.Buzanfaler.—Veja!Elestambémescreveramcoisascruéisparamim!

Odiretorolhouopost-it,leudepressaeoentregouameuspais.Minhamãeleuedepoisdesviouosolhosparaochão.Meupaileuebalançouacabeça,desconcertado.

Elemepassouobilheteeeuoreli.

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Julian,você é tãogato!ASummernãogostadevocê,mas euquero seramãedos seus filhos!Cheirameusovaco!Comamor,Beulah.

—QuemdiaboséBeulah?—perguntoumeupai.—Esquece—respondi.—Nãodáparaexplicar.EntregueiobilheteaoSr.Buzanfadenovo,queopassouparaoDr.Jansenler.Noteiqueeleestava

tentandoesconderumsorriso.—Julian—disseoSr.Buzanfa—,oconteúdodostrêsbilhetesquevocêescreveunemdelongese

comparacomodestequerecebeu.—Nãoachoquecaibaaninguém julgara semânticadeumbilhete—disseminhamãe.—Não

importasevocêachaqueumbilheteépiorqueooutro...Oqueimportaécomoqueapessoaquerecebeo bilhete o lê. O fato é que Julian passou o ano todo gostando dessa menina, Summer, e issoprovavelmenteferiuossentimentosdele...

—Mãe!—gritei,cobrindoorostocomasmãos.—Quevergonha!—Sóestoudizendoqueumbilhetepodemagoarumacriança,quervocêenxergue issoounão—

falouelaparaoSr.Buzanfa.—Vocêestábrincandocomigo?—rebateuoSr.Buzanfa,balançandoacabeça.Elepareciamais

zangado do que eu jamais o vira. — A senhora não acha os bilhetes que seu filho escreveuabsolutamentehorríveis?Porqueeuacho!

—Nãoestoudefendendoosbilhetes!—respondeuminhamãe.—Sóestoulembrandoavocêqueessaéumaviademãodupla.Vocêtemqueentenderque,semdúvida,Julianescreveuessesbilhetesemreaçãoaalgumacoisa.

—Olhe—interveiooDr.Jansen,estendendoumadasmãosàfrente,comosefosseumguardadetrânsito.—Nãohádúvidadequeháumahistóriaportrásdisso.

—Essesbilhetesferirammeussentimentos—falei,enãomeimporteicomofatodeminhavoztersaídocomoseeufossechorar.

—Nãoduvidoqueosbilhetestenhamferidoseussentimentos,Julian—respondeuoDr.Jansen.—E você estava tentando ferir os deles. Este é o problema com esse tipo de coisa: um fica tentandosuperarooutro,easituaçãoacabasaindodecontrole.

—Exatamente!—disseminhamãe,quasegritando.—Masofato—retomouoDr.Jansen,erguendoumdedo—équeexisteumlimite,Julian.Existe

umlimite.Eseusbilhetesoultrapassaram.Elessãocompletamenteinaceitáveis.SeAuggietivesselidoessesbilhetes,comoachaqueeleteriasesentido?

Eleestavameolhandodeumjeitotãointensoquetivevontadededesaparecerdebaixodosofá.—Osenhorquerdizerqueelenãoleu?—perguntei.—Não—disseoDr.Jansen.—GraçasaoscéusalguémcontouaoSr.Buzanfasobreosbilhetes

ontem,eleabriuoarmárioeosinterceptouantesqueAuggiesequerosvisse.Assentiebaixeiacabeça.Tenhoqueadmitir:fiqueifelizporAuggienãoterlidoaquilo.Achoque

sabiaoqueoDr.Jansenquisdizercom“ultrapassarolimite”.Masentãopensei:“SenãofoiAuggiequemededurou,quemfoi?”

Ficamostodosemsilêncioporalgunsminutos.Foimaisconstrangedordoquevocêpodeimaginar.

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Overedicto

—Muito bem— dissemeu pai por fim, esfregando o rosto com a palma damão.—É claro queentendemosagravidadedasituaçãoevamos...fazeralgumacoisaarespeito.

Achoquenuncavimeupaitãodesconfortável.Desculpa,pai!— Bem, temos algumas recomendações — falou o Dr. Jansen. — Obviamente queremos ajudar

todososenvolvidos...—Obrigadapelacompreensão—disseminhamãe,pegandoseulivrocomoseestivesseprontapara

selevantaresair.—Masháconsequências!—falouoSr.Buzanfa,olhandoparaela.—Perdão?—disparoueladevolta.—Comofaleiantes—interrompeuoDr.Jansen—,aescolatemumapolíticaantibullyingmuito

severa.—Ah,sim.NósvimoscomoelaéseveraquandovocêsnãoexpulsaramJackWillporterdadoum

soconabocadoJulian—respondeuminhamãe,depressa.Issoaí!Tomaessa,Sr.Buzanfa!—Ora,porfavor!Aquilofoicompletamentediferente—respondeuoSr.Buzanfacomdesdém.—Ah,foi?—falouminhamãe.—Darumsoconabocadealguémnãoébullyingparavocês?—Ok,ok—interveiomeupai,erguendoamãopara impedirqueoSr.Buzanfarespondesse.—

Vamosdiretoaoponto,ok?Quaissãosuasrecomendações,Hal?ODr.Jansenolhouparaele.—Julianestásuspensoporduassemanas—anunciou.—Oquê?—gritouminhamãe,olhandoparameupai.Maselenãoretribuiuoolhar.—Alémdisso—continuouoDr.Jansen—,recomendamosorientaçãopsicológica.Aenfermeira

Mollytemocontatodeváriosterapeutas,eachamosqueJuliandeveriaveralgum...—Issoéumabsurdo—interrompeuminhamãe,fervendoderaiva.—Esperaaí—falei.—Vocêquerdizerquenãopossovirparaaescola?—Nãonaspróximasduassemanas—respondeuoSr.Buzanfa.—Começandoagoramesmo.—Maseaviagemparaoacampamento?—perguntei.—Vocênãopodeir—disseele,friamente.—Não!—gritei,eagoraestavamesmoapontodechorar.—Euqueroiraoacampamento!—Sintomuito,Julian—falouoDr.Jansen,gentil.—Issoé absolutamente ridículo—dissemamãe,olhandoparaoDr. Jansen.—Nãoachamque

estãoexagerandoumpouquinho?Aquelegarotonemleuosbilhetes!—Aquestãonãoéessa—rebateuoSr.Buzanfa.—Voulhesdizeroqueeupenso!—falouminhamãe.—Tudoissoéporquevocêaceitounaescola

umgarotoque,paracomeçodeconversa,nemdeveriatersidoaceito.Equebrouasregrasparafazer

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isso.Eestádescontandonomeufilhoporquesouaúnicaquetemcoragemdedizeraverdade!—Melissa—disseoDr.Jansen,tentandoacalmá-la.— Essas crianças são novas demais para lidar com esse tipo de coisa... Deformações faciais,

desfiguração—prosseguiuela,virando-separaoDr. Jansen.—Vocêdeveriaveraquilo! Julian tevepesadelosporcausadaquelegaroto.Vocêsabiadisso?Juliantemproblemasdeansiedade.

—Mãe!—exclamei,trincandoosdentes.—O conselho diretor deveria ter sido consultado para deliberar se aBeecherPrep era omelhor

lugarparaumacriançacomoaquela.Ésó issoqueestoudizendo!Nãoestamospreparadospara isso.Outrasescolasestão,masnós,não!

—Vocêpodeacreditarnisso,sequiser—respondeuoSr.Buzanfa,semolharparaela.Minhamãerevirouosolhos.—Issoéumacaçaàsbruxas—murmurouela,baixinho,olhandopelajanela.Elaestavafumegandoderaiva.Eunãotinhaideiadoqueelaestavafalando.Bruxas?Quebruxas?— Ok, Hal, você disse que tinha algumas recomendações — disse meu pai ao Dr. Jansen. Ele

pareciairritado.—Éisso?Duassemanasdesuspensãoeorientaçãopsicológica?—Tambémgostaríamosque Julianescrevesseumacartapedindodesculpas aAugustPullman—

disseoSr.Buzanfa.—Pedirdesculpaspeloque, exatamente?— rebateuminhamãe.—Ele escreveu algunsbilhetes

bobos.Comcertezanãoéaúnicacriançadomundoquejáfezisso.—Émaisdoqueumbilhetebobo!—insistiuoSr.Buzanfa.—Éumpadrãodecomportamento.—

Elecomeçouacontarnosdedos.—Primeiro,foramascaretaspelascostasdomenino.Depois,foio“jogo”queinventou,noqual,sealguémtocaremAuggie,temquelavarasmãos...

EunãopodiaacreditarqueoSr.BuzanfasabiadojogodaPeste!Comoosprofessoressabemtantacoisa?

—Foipeloisolamentosocial—continuouele.—Porcriarumclimadehostilidade.— E você tem certeza de que foi o Julian quem começou tudo isso? — perguntou meu pai. —

Isolamentosocial?Climadehostilidade?VocêestádizendoqueJulianeraaúnicacriançaquenãoeragentilcomessegaroto?Ouestásuspendendotodosquemostraramalínguaparaele?

Boa,pai!UmazeroparaosAlbans!—VocêsnãoseincomodamnemumpoucocomofatodeJuliannãodemonstrarnemumpingode

remorso?—perguntouoSr.Buzanfa,estreitandoosolhosparameupai.—Ok,vamospararporaqui—respondeuele,baixinho,comodedonacaradoSr.Buzanfa.—Por favor, pessoal—pediu oDr. Jansen.—Vamosnos acalmar. Semdúvida é uma situação

difícil.— Depois de tudo o que fizemos por esta escola — disse minha mãe, balançando a cabeça. —

Depoisdetodotempoedinheiroqueinvestimos,seriadeseesperarquerecebêssemossóumpoucodeconsideração.—Elaaproximouopolegareoindicador.—Sóumpouquinho.

Meupaiconcordou.EleaindaestavaolhandocomraivaparaoSr.Buzanfa,masentãosevirouparaoDr.Jansen.

—Melissa temrazão.Achoquemerecemosumpoucomaisdoque isso,Hal.Umavisoamigávelteriasidomelhor.Emvezdisso,vocênoschamaaquicomosefôssemoscrianças...—Eleselevantou.—Merecíamosmaisdoqueisso.

—Lamentoquevocêssesintamassim—falouoDr.Jansen,selevantandotambém.—Oconselhodiretorvaificarsabendodisso—ameaçouminhamãe,quetambémselevantou.

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—Tenhocertezadequesim—respondeuoDr.Jansen,cruzandoosbraçoseassentindo.OSr.Buzanfaeraoúnicoadultoqueaindaestavasentado.—Oobjetivodasuspensãonãoépunição—falou,baixinho.—EstamostentandoajudaroJulian

também. Ele nunca vai entender completamente as consequências de seus atos se vocês sempretentaremjustificá-los.Queremosqueelesintaumpoucodeempatia...

—Quersaber,jáouviosuficiente!—disseminhamãe,estendendoamãobemnafrentedorostodoSr.Buzanfa.—Nãoprecisodeconselhos sobrecomocriarmeu filho.Nãodealguémquenemtemfilhos.Vocênãosabeoqueéverseufilhoterumataquedepânicotodavezquefechaosolhosparadormir,ok?Vocênãotemideiadecomoé.—Avozdelafalhouumpouco,comoseelafossechorar.Ela olhou para o Dr. Jansen. — Isso afetou o Julian profundamente, Hal. Lamento se não époliticamentecorretodizer isso,masestouapenas tentando fazeroqueacredito seromelhorparaomeufilho!Sóisso.Vocêentende?

—Entendo,Melissa—respondeuoDr.Jansen,emvozbaixa.Minhamãebalançouacabeça.Oqueixodelatremia.—Játerminamos?Podemosir?—Claro—respondeuele.—Venha,Julian—chamouela,esaiudasala.Eumelevantei.Confesso:nãotinhacertezadoqueestavaacontecendo.—Esperem,éisso?Easminhascoisas?Tudooqueestánomeuarmário?— A Sra. Rubin vai arrumar tudo e mandará entregar em sua casa no fim desta semana —

respondeu o Dr. Jansen. Ele olhou para meu pai. — Realmente sinto muito que as coisas tenhamchegadoaesteponto,Jules.—Estendeuamãoparaumcumprimento.

Meupaiolhouparaamãodoreitor,masnãoaapertou.Depoisergueuosolhosparaorostodele.—Sóqueroumacoisadevocê,Hal—falou,emvozbaixa.—Queisso,tudoisso,sejaconfidencial.

Fui claro? Nada deve sair desta sala. Não quero que a escola transforme Julian em um exemploantibullying.Ninguémdevesaberqueelefoisuspenso.Vamosdaralgumadesculpaparaofatodeelenãoviràescola.Issoestáclaro,Hal?Nãoqueroqueelesejatransformadoemumexemplo.Nãovouficarquietovendoestaescolajogarareputaçãodeminhafamílianalama.

Ah,casoeunãotenhamencionadoantes:papaiéadvogado.ODr.JanseneoSr.Buzanfatrocaramolhares.—Nãoqueremosusarnenhumdenossosalunosparaservirdeexemplo—respondeuoDr.Jansen.

—Naverdade,essasuspensãoéumareaçãorazoávelaumcomportamentoinaceitável.—Dáumtempo—rebateumeupai,olhandoorelógiodepulso.—Issoéumgrandeexagero.ODr.Jansenolhouparaomeupaiedepoisparamim.—Julian—falouele,olhandonosmeusolhos—,possolhefazerumaperguntadireta?Olheiparaomeupai,quebalançouacabeçaemaprovação.Deideombros.—Vocêsentealgumremorsopeloquefez?—perguntouoDr.Jansen.Penseiporumsegundo.Eusabiaquetodososadultosestavammeolhando,esperandoqueeudesse

algumarespostamágicaqueconsertassetodaaquelasituação.—Sim—falei,baixinho.—Sintomuitoporterescritoaquelesbilhetes.ODr.Jansenassentiueperguntou:—Vocêsearrependedemaisalgumacoisa?Olheiparameupaidenovo.Nãosouidiota.Seioqueelequeriaqueeudissesse.Sóqueeunãoia

falarisso.Entãobaixeiosolhosedeideombros.—Possolhepedirumacoisaentão?—disseoDr.Jansen.—Vocêaceitariaescreverumacartapara

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oAuggiepedindodesculpas?Deideombrosnovamente.—Quantaspalavraselaprecisater?—foitudooqueconseguifalar.Assimquedisse aquilo, soube quenãodeveria ter dito.ODr. Jansenolhoupara omeupai, que

desviouosolhos.—Julian—dissemeupai—,váencontrarasuamãe.Esperepormimnarecepção.Estareiláem

umsegundo.Assimquesaíefecheiaporta,meupaicomeçouasussurraralgumacoisaparaoDr.JanseneoSr.

Buzanfa.Eraumsussurroapressadoeirritado.Quandochegueià recepção,encontreimamãesentadaemumacadeira,deóculosescuros.Eume

senteiaoladodela.Elaacariciouminhascostas,masnãodissenada.Achoqueestavachorando.Olhei o relógio. Eram dez e vinte da manhã. Naquele momento, a Sra. Rubin devia estar

entregandoosresultadosdotestedeciênciasquetínhamosfeitonavéspera.Enquantoobservavaohall,meveioàcabeçaaquelediaantesdeasaulascomeçarem,quandoeu,JackWilleCharlottehavíamosnos encontrado ali antes da nossa “comissão de boas-vindas”. Eu me lembro de como Jack estavanervosonaqueledia,eeunemsabiaquemeraAuggie.

Tantacoisatinhaacontecidodesdeentão!

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Foradaescola

Papainãofalounadaquandonosencontrounohall.Apenasatravessamosoportãosemdartchauparaninguém—nemparaosegurançadaentrada.Eraestranhosairdaescolaquandotodomundoaindaestava lá.Eumeperguntei oqueMiles eHenrypensariamquando eunão voltassepara a aula.Eudetestavaaideiadeperderaauladeeducaçãofísicanaquelatarde.

Meuspaisficaramemsilênciodurantetodoocaminhodevoltaparacasa.MoramosnoUpperWestSide,queficaacercademeiahoradecarrodaBeecherPrep,masparecequelevamosumaeternidadeparachegar.

—Nãoacreditoquefuisuspenso—falei,assimqueentramosnagaragemdoprédio.—Aculpanãofoisua,querido—respondeuminhamãe.—Elesestãosevingandodagente.—Melissa!—gritoumeupai,oquedeixouminhamãeumpoucosurpresa.—Éclaroqueéculpa

dele. Toda essa situação é culpa dele! Julian, o que diabos você estava pensando quando escreveuaquelesbilhetes?

—Elefoilevadoaescreveraquilo!—respondeumamãe.Tínhamos parado o carro na garagem. O manobrista estava esperando a gente saltar, mas não

saímos.Papaiseviroueolhouparamim.—Nãoestoudizendoqueaescolalidoucomissodamaneiracorreta—falou.—Duassemanasde

suspensãoéridículo.Mas,Julian,vocênãodeveriaterfeitoisso!—Eusei!Foiumerro,pai!—Todoscometemoserros—disseminhamãe.Papaisevirouparaafrentedenovo.Olhouparaminhamãe.—Jansentemrazão,Melissa.Sevocêcontinuartentandojustificarosatosdele...—Nãoestoufazendoisso,Jules.Meupainãorespondeudeimediato.Masentãofalou:—EudisseaoJansenquevamostirarJuliandaBeecherPrepnoanoquevem.Mamãeficousemfala.Leveiumsegundoparaentenderoqueeletinhadito.—Vocêoquê?—falei.—Jules—começouela,devagar.—FaleiqueelevaiterminaroanonaBeecherPrep—continuoumeupai,calmo.—Masnoano

quevemvaiparaoutraescola.—Nãoacreditonisso!—gritei.—EuadoroaBeecherPrep,pai!Tenhoamigoslá!Mamãe!—Não voumandá-lo de volta para essa escola, Julian— dissemeu pai, decidido.—Não há a

menorchancedeeugastarmaisumcentavoquesejacomaquelaescola.HámuitasoutrasexcelentesescolasparticularesemNovaYork.

—Mamãe!Elapassouamãopelorosto.Balançouacabeça.

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—Vocênãoachaquedeveríamosterconversadosobreissoantes?—perguntou.—Vocênãoconcorda?—rebateumeupai.Elacoçouatesta.—Não,euconcordo—falouemvozbaixa.—Mamãe!—griteidenovo.Elasevirounobanco.—Querido,achoqueopapaitemrazão.—Nãoacreditonisso!—berrei,socandoobancodocarro.—Elesestãosevingandodenósporquereclamamosdasituaçãodaquelegaroto...—Masissofoiculpasua!—falei,porentreosdentestrincados.—Nãopediquevocêtentassefazer

oAuggieserexpulsodaescola.NãoqueriaquevocêtentassefazeroSr.Buzanfaserdemitido.Foiculpasua!

—Esintomuitoporisso,meuamor—disseela,comdoçura.—Julian!—faloumeupai.—Suamãefeztudoissotentandoprotegervocê.Nãoéculpadelavocê

terescritoaquelesbilhetes,é?—Não,masseelanãotivessecriadocasocomtudo...—comecei.— Julian, você está ouvindo o que está falando?Agora a culpa é da suamãe.Antes você estava

culpando os outros garotos por ter escrito os bilhetes.Estou começando ame perguntar se eles nãoestavamcertos!Vocênãosentenenhumremorsopeloquefez?

—Claroquesente!—interrompeuminhamãe.—Melissa,deixeelerespondersozinho!—gritoumeupai.—Não,ok?—explodi.—Nãoestouarrependido!Seiquetodomundoachaqueeudeviaestartodo

“ah, me desculpem por ter sido mau com Auggie, lamento ter falado mal dele, sinto muito por terinsultadoele”.Masnãosintonadadisso.Entãomeprocessem.

Antesquemeupaipudesseresponder,omanobristabateuna janeladocarro.Outroveículotinhaentradonagaragemeagenteprecisavasair.

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Primavera

Nãoconteianinguémsobreasuspensão.QuandoHenrymemandouumamensagemdetextoalgunsdiasdepoisperguntandoporqueeunãoestavaindoàescola,faleiqueestavacomagargantainflamada.Foioquedissemosatodomundo.

Nofimdascontas,duassemanasdesuspensãonãosãotãoruins.Passeiamaiorpartedotempoemcasa assistindo a reprises deBobEsponja e jogandoStar Wars: Cavaleiros da Velha República.Mas euaindatinhaquemanterodeverdecasaemdia,entãonãoestavatotalmenteàtoa.Emumatarde,aSra.Rubinfoiaomeuapartamentoparalevartodasascoisasdomeuarmário:meuslivros,cadernosetodosostrabalhosqueeutinhaquefazer.Eramuitacoisa!

Tudocorreumuitobemcomestudossociaiseinglês,mastivetantadificuldadeparafazerosdeveresdematemáticaqueminhamãearranjouumprofessorparticular.

Apesar de todo o tempo livre, eu estava muito animado para voltar. Ou pelo menos achei queestivesse.Navésperadomeuprimeirodiadevolta,tiveumdaquelespesadelosdenovo.SóquedessaveznãoerasóeuquemepareciacomAuggie—eratodomundo!

Eudeveria ter entendidoaquilo comoumapremonição.Assimquechegueinaescolaparaomeuprimeirodiadevolta,percebiumclimaestranho.Haviaalgodiferente.Aprimeiracoisaquenoteifoiqueninguémestavamuito animadoporme rever.Querdizer, aspessoasdisseramoi eperguntaramcomoeuestava,masninguémreagiutipo“cara,sentimossuafalta!”.

SeriadeimaginarqueMileseHenryreagiriamassim,masnão.Naverdade,nahoradoalmoço,elesnem se sentaramna nossamesa de costume.Eles ficaramnamesa doAmos.Então tive que pegarminhabandejaeencontrarumespaçoespremidonamesadele,oquefoimeiohumilhante.Entãoouvios três falando de ir à quadra depois da aula para treinar uns arremessos livres, mas ninguém meconvidou!

No entanto, omais estranhode tudo eraque todomundo estava sendomuito legal comAuggie.Tipo,ridiculamentelegal.Eracomoseeutivesseatravessadooportalparaoutradimensão,umuniversoalternativoondeAuggieeeuhavíamostrocadodelugar.Derepente,eleeraopopular,eeu,oesquisito.

Logodepoisdoúltimotempo,puxeiHenrydeladoparafalarcomele:—Ei,cara,porquederepentetodomundoestásendotãolegalcomomonstro?—Ah,hum...—disseHenry,olhandoemvolta,nervoso.—Bem,aspessoasnãochamammaisele

assim.Entãoelemecontoutudooquetinhaacontecidonoacampamento.Basicamente,oqueaconteceu

foiqueAuggie e Jack foram importunadosporuns valentõesdo sétimoanodeoutra escola.Henry,MileseAmososdefenderam,entraramemumabrigacomosvalentões—comsocosdeverdade—,eaítodosfugiramporummilharal.Pareciamuitoempolgantee,enquantoelemecontava,volteiasentirraivadoSr.Buzanfapornãotermedeixadoir.

—Ah,cara—falei,animado.—Queriaterestadolá!Euiaquebraracaradaquelesidiotas.—Esperaaí,queidiotas?

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—Osgarotosdosétimoano!—Sério?—Elepareciaconfuso,masHenrysemprepareciaumpoucoconfuso.—Porquenãosei,

Julian.Meioqueacheique,sevocêestivesselá,nósnãoteríamosdefendidoeles.Vocêprovavelmenteiriatorcerparaoscarasdosétimoano.

OlheiparaHenrycomoseelefosseumidiota.—Nãoia,não—falei.—Sério?—perguntouele,desconfiado.—Sério!—Ok!—disseele,dandodeombros.—Ei,Henry,vocêvem?—perguntouAmos,dofimdocorredor.—Opa,tenhoqueir—disseHenryparamim.—Espere.—Tenhoqueir.—Querdarumavoltaamanhãdepoisdaescola?—Nãosei—disseele,seafastando.—Memandaumamensagemhojeànoiteeagentevê.Enquanto via Henry correr para longe, tive aquela sensação terrível na boca do estômago. Ele

achavamesmoqueeueratãocruelapontodetorcerpeloscarasdosétimoanoenquantoelesbatiamnoAuggie?Eraissoqueosoutrospensavam?Queeupodiasertãobabacaassim?

Olhe,souoprimeiroadizerquenãogostodoAuggiePullman,masjamaisiriaquererqueelefosseespancado nem nada!Quer dizer, qual é?Não sou um psicopata! Fiquei realmente chateado por aspessoaspensaremissodemim.

Mandei umamensagemparaHenrymais tarde: “Cara, eununca ia ficar parado e deixar aquelesidiotasmeteremporradanoAuggieenoJack!”

Maselenuncarespondeu.

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Sr.Buzanfa

Aqueleúltimomêsnaescolafoihorrível.Nãoeracomoseaspessoasfossemabertamentemáscomigo,masme senti excluídoporAmos,Henry eMiles.Eu simplesmentenão eramaispopular.Ninguémnemriamaisdasminhaspiadas.Ninguémqueriaandarcomigo.Seeupudessesumirdaescola,pareciaque ninguémdaria falta.Enquanto isso,Auggie andava pelos corredores como o caramais legal daescola,etodososalunosmaisvelhosocumprimentavam.

Dane-se.Umdia,oSr.Buzanfamechamouemsuasala.—Comoestãoascoisas,Julian?—Bem.—Vocêchegouaescreveropedidodedesculpasquelhepedi?—Meupaidissequevousairdaescola,entãonãotenhoqueescrevernada—respondi.—Ah—murmurouele,assentindo.—Achoqueeuesperavaquevocêquisessefazerissoporconta

própria.—Porquê?— rebati.—Todomundo achaque eu souumbabacamesmo.Deque vai adiantar

escreverumpedidodedesculpas?—Julian...—Olha,seiquetodomundoachaquesouuminsensívelquenãosente“remorso”!—falei,fazendo

umgestonoarparaindicarasaspas.—Julian,ninguém...Derepente,sentiquecomeçariaachorar,entãoointerrompi:—Estouatrasadoparaaaulaenãoquerotermaisproblemas.Possoir,porfavor?OSr.Buzanfapareceutriste.Eleassentiu.Entãosaídesuasalasemolharparatrás.Algunsdiasdepois,recebemosumcomunicadooficialdaescolainformandoqueeleshaviamretirado

oconviteparaqueeurenovasseminhamatrículaparaopróximoano.Nãoacheiquefizessediferença, jáquemeupaitinhaditoaelesqueeunãovoltariamesmo.Mas

ainda não recebêramos notícias das outras escolas para as quais eu havia me inscrito e, se eu nãoentrasseparanenhumadelas,pretendíamosmanterminhamatrículanaBeecherPrep.Agora,issoeraimpossível.

Meus pais ficaram furiosos com a escola. Tipo, loucos de raiva. Principalmente porque já haviampagado a matrícula do ano seguinte, e a escola não pretendia devolver o dinheiro. Viu? Este é oproblemacomasescolasparticulares:podemexpulsarvocêporqualquermotivo.

Porsorte,algunsdiasdepois,descobrimosqueeutinhasidoaceitonaescolaqueeraminhaprimeiraopção,nãomuitolongedecasa.Euteriaqueusaruniforme,mastudobem.EramelhordoqueterqueirparaaBeecherPreptododia!

Nemprecisodizerquenãofomosàcerimôniadeformaturanofimdoano.

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Depois

—Sãoapenaslágrimas,comodizemoshomens—falouBagheera.—Agoratereconheçocomoumhomem,enãomais

comofilhotedehomem.Defato,aselvaestáfechadaparatidaquipordiante.Deixe-ascair,Mogli.Sãoapenaslágrimas.

—RudyardKipling,Olivrodaselva

***

Ah,ovento,oventoestásoprando,pelostúmulosoventoestásoprando,

aliberdadelogovirá;entãosairemosdassombras.

—LeonardCohen,“ThePartisan”

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Férias

MeuspaiseeufomosparaParisemjunho.OplanooriginaleravoltarmosparaNovaYorkemjulho,jáqueeuiriaparaumacampamentoderockcomHenryeMiles.Mas,depoisdetudoqueaconteceu,eunãoqueriamaisir.Meuspaisdecidirammedeixarcomaminhaavóatéofimdoverão.

Normalmente,eudetestavaficarcomaminhaGrandmère,masacheibomdessavez.Eusabiaque,depoisquemeuspais voltassempara casa, eupoderiapassarodia inteirodepijama jogandoHalo, eGrandmèrenãoseincomodarianemumpouco.Eupoderiafazerpraticamentetudooquequisesse.

Elanãoéexatamenteuma“vovó”típica.Nadadeassarbiscoitos.Nemdetricotarsuéteres.Comopapai sempre dizia, ela era uma “figura”. Mesmo já commais de oitenta anos, se vestia como umamodelo.Superglamorosa.Muitamaquiagemeperfume.Saltoalto.Nuncaacordavaantesdasduasdatarde,edepois levavapelomenosduashorasparasearrumar.Quandoestavapronta,melevavaparafazercompras,aummuseuouaumrestaurantechique.Elanãogostavadefazercoisasdecriança,seéque você me entende. Nunca me levou para assistir a um filme de classificação livre com ela, porexemplo,eporissoeuacabeivendoummontedefilmestotalmenteimprópriosparaminhaidade.SeiquemamãeficariaumaferasesoubessedealgunsfilmesqueGrandmèremelevouparaver.Maselaerafrancesa,eviviasempredizendoquemeuspaiseram“americanos”demais.

Minhaavótambémnãofalavacomigocomoseeufossecriancinha.Nemquandoeueramaisnovo,nunca usou vocabulário de bebê nem falou comigo do jeito que os adultos falam com as criançaspequenas. Usava palavras normais para tudo. Por exemplo, se eu dissesse “Je veux faire pipi”, quesignifica“querofazerpipi”,eladiria:“Vocêquerurinar?Váaotoalete.”

E às vezes ela falava palavrões. Cara, e que palavrões! E se eu não soubesse o que um delessignificava, era sóperguntar, e elameexplicava—emdetalhes.Nãopossonemcontar algumasdaspalavrasqueelameexplicou!

Enfim,fiqueifelizporpassartodooverãolongedeNovaYork.Euesperavaesquecertodasaquelascrianças.Auggie.Jack.Summer.Henry.Miles.Todas.Seeunãoasvissedenovo,sério,seriaogarotomaisfelizdeParis.

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Sr.Browne

Aúnicacoisaquemedeixouchateadofoiquenãotiveaoportunidadedemedespedirdenenhumdosmeus professores da Beecher Prep. Eu gostava muito de alguns deles. O Sr. Browne, de inglês,provavelmenteerameuprofessorfavoritodetodosostempos.Elesemprefoimuitolegalcomigo.Euadoravaescrever,eelefaziamuitoselogiosporcausadisso.EnãoconteiaelequenãovoltariaparaaBeecherPrep.

Nocomeçodoano,oSr.Brownetinhanosditoquequeriaquemandássemosparaeleumdenossospróprios preceitos no verão. Então, uma tarde, enquanto Grandmère estava dormindo, comecei apensaremenviarumpreceitoparaeledeParis.Fuiaumadessaslojasturísticasnofimdoquarteirãoecompreiumcartão-postaldeumagárgula,umadaquelasnoaltodaNotre-Dame.AprimeiracoisaquemeveioàcabeçaquandoviaimagemfoiquemelembravaoAuggie.Entãopensei:“Ai!Porqueaindaestou pensando nele? Por que ainda vejo o rosto dele em todos os lugares?Mal posso esperar pararecomeçar!”

Efoiaíqueeleveio:meupreceito.Euoescrevimuitodepressa.Àsvezesébomrecomeçar.Pronto.Perfeito.Adorei.PegueioendereçodoSr.Browneemseuperfilnapáginadeprofessoresdo

sitedaBeecherPrepemandeiocartãopelocorreionomesmodia.Masaí,depoisdeenviar,medeicontadequeelenãoiaentenderoqueopreceitosignificava.Não

mesmo.ElenãosabiadetodaahistóriaparaeuestartãofelizporsairdaBeecherPreperecomeçaremalgumlugarnovo.Entãodecidiescreverume-mailparaelecontandotudooquehaviaacontecidonoanopassado.Bem,nemtudo.MeupaitinhasidomuitoclaroaomeproibirdecontaraalguémdaescolaascoisasruinsqueeuhaviafeitocomAuggie—pormotivosjurídicos.MaseuqueriaqueoSr.Brownesoubesseobastanteparaentendermeupreceito.Tambémqueriaqueelesoubessequeeuoachavaumexcelenteprofessor.MinhamãedisseraatodomundoqueeunãoiavoltarparaaBeecherPrepporqueestávamos insatisfeitos com a direção— e comos professores.Eume senti umpoucomal por isso,porquenãoqueriaqueoSr.Browneachassequeeunãoestavasatisfeitocomele.

Então,decidimandarume-mailparaele.

Para:[email protected]:[email protected]:Meupreceito

Oi,Sr.Browne!Acabeidemandarmeupreceitoparaosenhorpelocorreio:“ÀSVEZESÉBOMRECOMEÇAR.”Estánocartão-postalcomaimagemdeumagárgula.Escreviessepreceitoporquevouparaumanovaescolaemsetembro.AcabeiodiandoaBeecherPrep.Nãogostavadosalunos.MasGOSTAVAdosprofessores.Achavaasuaaulaótima.Entãonãotomeminhasaídacomopessoal.

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Nãoseisevocêconhecetodaahistória.Élonga,masbasicamenteomotivoparaeunãovoltarparaaBeecherPrepé...bem,nãovoucitarnomes,mastinhaumalunocomquemeunãomedavanemumpouquinhobem.Naverdade,eramdoisalunos.(Vocêdeveimaginarquemsão.)Enfim,essesgarotosnãoeramaspessoasdequemeumaisgostavanomundo.Começamosaescreverbilhetescruéisunsparaosoutros.Repito:unsparaosoutros.Eraumaviademãodupla!Masfuieuquefiqueiencrencado!Sóeu!Foitãoinjusto!AverdadeéqueoSr.Buzanfafezissocomigoporqueminhamãeestavatentandofazercomqueelefossedemitido.Bem,pararesumir:fuisuspensoporduassemanasporterescritoosbilhetes!(Masninguémsabedisso.Ésegredo,então,porfavor,nãoespalhe.)Aescoladiziaquetinhaumapolíticade“tolerânciazero”contrabullying.Masnãoachoqueoquefiztenhasidobullying.Meuspaisficaramtãoirritadoscomaescola!Decidirammematricularemoutrolugar.Então,essaéahistória.

Eurealmentegostariaqueesse“aluno”nuncativesseentradonaBeecherPrep!Meuanoteriasidomuitomelhor!Eudetestavaterqueestarnaturmadele.Elemedavapesadelos.EuaindaestudarianaBeecherPrepseelenãoestivesselá.Foiumhorror.

Maseugostavamesmodassuasaulas.Vocêeraumexcelenteprofessor.Queriaquesoubessedisso.Achei que tinha sido bom não citar “nomes”.Mas imaginava que ele saberia de quem eu estava

falando.RealmentenãoesperavaternotíciasdoSr.Browne,mas,nodiaseguinte,quandochequeiacaixadeentrada,haviaume-maildele.Fiqueimuitoanimado!

Para:[email protected]:[email protected]:Res:Meupreceito

Oi,Julian.Muitoobrigadopeloseue-mail!Estouansiosoparareceberocartão-postaldagárgula.LamentosaberquevocênãovaivoltarparaaBeecherPrep.Sempreacheiquevocêeraumótimoalunoeumescritortalentoso.

Apropósito,adoreiseupreceito.Concordo,àsvezesébomrecomeçar.Umnovocomeçonosdáachancederefletirsobreopassado,pesarascoisasquefizemoseaplicaraquiloqueaprendemoscomissoemnossonovocaminho.Senãoexaminarmosopassado,nãoaprendemoscomele.

Quantoaos“garotos”dequemvocênãogostava,achoqueseidequemestáfalando.Lamentoquevocênãotenhatidoumanofeliz,masesperoquetireumtempinhoparaseperguntarporquê.Ascoisasqueacontecemconosco,mesmoasruins,muitasvezespodemnosensinarumpoucosobrenósmesmos.Vocêjáseperguntouporquefoitãodifícillidarcomessesdoisalunos?Seráquetalveznãotenhasidoaamizadedelesqueoincomodou?VocêficouperturbadocomaaparênciadeAuggie?Vocêrelatouquecomeçouaterpesadelos.Àsvezesomedopodefazercomqueatéascriançasmaislegaisdigamefaçamcoisasquenormalmentenãodiriamoufariam.Seráquevocênãodeveriaexplorarumpoucomaisessessentimentos?

Detodomodo,desejomuitoboasortenanovaescola,Julian.Vocêéumbomgaroto.Umlídernato.Apenasselembredeusarsualiderançaparaobem,sim?Nãoesqueça:escolhasempresergentil!

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Nãoseiporque,masfiqueitão,tão,tãofelizdereceberessee-maildoSr.Browne!Eusabiaqueeleseriacompreensivo!Estavatãocansadodetodomundoacharqueeueraumcapeta,sabe?FicouclaroqueoSr.Brownenãopensavaissodemim.Relioe-maildele,tipo,umasdezvezes.Estavasorrindodeorelhaaorelha.

— E então? — perguntou Grandmère. Ela tinha acabado de acordar e estava tomando café damanhã:croissantecaféaulait,entreguesládebaixo.—Nãovivocêfelizassimoverãointeiro.Oqueestálendo,moncher?

—Ah,recebiume-maildeumdosmeusprofessores—respondi.—OSr.Browne.—Daantigaescola?Acheiquefossemtodosruins,aquelesprofessores.Acheiquefosseum“passar

bem”paratodoseles!Minhavótinhaumsotaquefrancêscarregadoqueàsvezeseradifícildeentender.—Oquê?–perguntei.—Passarbem!—repetiuela.—Deixeparalá.Acheiquetodososprofessoresfossemestúpidos.Ojeitocomoelapronunciava“estúpidos”eraengraçado:estu-pidos!—Nemtodos.OSr.Browne,não—falei.—Então,oqueeleescreveuquedeixouvocêtãofeliz?—Ah,nadademais.É sóque...Eu achei que todomundomeodiasse,mas agora sei queoSr.

Brownenãomeodeia.Grandmèreolhouparamim.—Porquetodomundoodiariavocê,Julian?—perguntouela.—Vocêéumgarototãobom.—Nãosei—respondi.—Leiaoe-mailparamim—pediuela.—Não,Grandmère...—comeceiadizer.—Leia—ordenou,apontandoodedoparaatela.EntãoliamensagemdoSr.Browneemvozalta.Bom,achoqueaGrandmèresabiaumpouquinho

doquehavia acontecidonaBeecherPrep,mas não a história toda.Quer dizer, achoquemeus paiscontarama ela amesma versãoque contavampara todomundo, talvez comalgunsdetalhes amais.Grandmèresabiaquehaviadoisgarotosquetransformaramaminhavidaemuminferno,porexemplo,masnãosabiadosdetalhes.Sabiaqueeutinhalevadoumsoconaboca,masnãoomotivo.Nomínimo,eladeviaacharqueeutinhasofridobullying,equeeraporissoquesairiadaescola.

Porisso,elanãoentendeualgumaspartesdoe-maildoSr.Browne.—Oqueelequerdizer—falou,estreitandoosolhosparatentarleratela—com“aaparênciade

Auggie”?Qu’est-cequec’est?—Umdosgarotosdequemeunãogostava,Auggie,tinha,tipo,uma...deformaçãohorrívelnorosto

—respondi.—Eramuitograve.Elepareciaumagárgula!—Julian!Issonãoémuitogentil.—Desculpe.—Eessegaroto,elenãoerasympathique?—perguntouela,cominocência.—Nãoeralegalcom

você?Praticavabullying?Penseinisso.—Não,elenãofaziabullyingcomigo.—Entãoporquevocênãogostavadele?Deideombros.—Nãosei.Elesómedavanosnervos.—Comoassim,vocênãosabe?—rebateueladepressa.—Seuspaismedisseramquevocêestava

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saindodaescolaporcausadebullying,nãoé?Vocênãolevouumsoconorosto?—Bem,sim,leveiumsoco.Masnãodogarotodeformado.Doamigodele.—Ah!Entãoeraoamigodelequefaziabullying!—Naverdade,não—falei.—Nãoseisehaviaalguémfazendobullying,Grandmère.Querdizer,

nãofoibemassim.Agentenãosedavabem,sóisso.Nósnosodiávamos.Émeiodifícilexplicar,vocêtinhaqueestarlá.Aqui,medeixemostrarcomoeleera.Aítalvezvocêentendaumpoucomelhor.Querdizer,nãoquerosermaunemnada,maseramuitodifícilterqueolharparaeletododia.Elemedavapesadelos.

EntreinoFacebook,acheinossafotodeturmaedeizoomnorostodeAuggie,paraqueelapudessever.Elapôsosóculosparaenxergarmelhorepassouumlongotempoestudandoorostodelenateladocomputador.AcheiqueelafosseteramesmareaçãodaminhamãequandoviuafotodeAuggiepelaprimeiravez,masnão.Apenasbalançouacabeçaefechouolaptop.

—Bemruim,nãoé?—falei.Elaolhouparamim.—Julian,achoquetalvezseuprofessortenharazão.Achoquevocêtinhamedodessemenino.— O quê? De jeito nenhum — retruquei. — Não tenho medo do Auggie! Quer dizer, eu não

gostavadele...Naverdade,eumeioquedetestavaoAuggie...Masnãoporquetivessemedodele.—Àsvezesodiamosascoisasdequetemosmedo.Fizumacareta,comoseelaestivessefalandoumamaluquice.Elapegouaminhamão.—Euseioqueétermedo,Julian—falou,levantandoodedodiantedomeurosto.—Haviaum

meninodequemeutinhamedoquandoerapequena.—Deixeeuadivinhar—falei,comavozentediada.—ApostoqueeleeraigualzinhoaoAuggie.Grandmèrefezquenãocomacabeça.—Não.Nãohavianadadeerradocomorostodele.—Entãoporquevocêtinhamedo?—perguntei.Tenteifazerminhavozsoaramaisdesinteressada

possível,maselaignorouminhamalcriação.Apenasserecostounacadeira,comacabeçalevementeinclinada.Olhandonosseusolhos,noteique

elahaviaidoparamuitolonge.

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AhistóriadeGrandmère

— Eu era uma garota muito popular quando jovem, Julian — disse minha avó. — Tinha muitosamigos.Usavaroupasbonitas.Comovocêpodever,sempregosteideroupasbonitas.

Elaapontouparaacinturaparagarantirqueeutinhareparadoemseuvestido.Sorriu.—Eueraumagarotafútil—continuou.—Mimada.QuandoosalemãesinvadiramaFrança,quase

não notei. Eu sabia que algumas famílias judias deminha cidade estavam indo embora,masminhafamíliaeratãocosmopolita!Meuspaiseramintelectuais.Ateus.Nemíamosàsinagoga.

Grandmèrefezumapausaemepediuquebuscasseumataçadevinhoparaela.Obedeci.Elaencheuataçae,comosemprefazia,meofereceuumpoucotambém.E,comosempre,falei:

—Non,merci.Comojádisse,minhamãeficariaumaferasesoubessedascoisasqueGrandmèrefaziaàsvezes!—Haviaumgarotoemminhaescolachamado...Bem,eleerachamadodeTourteau—prosseguiu

ela.—Eleera...qualémesmoapalavra?...Aleijado?Éassimquevocêsfalam?—Achoqueaspessoasnãousammaisessapalavra,Grandmère—falei.—Nãoépoliticamente

correta,sevocêmeentende.Elaabanouamãoparamim.—Osamericanosadoramdecidirquenãopodemosmaisusarcertaspalavras!—disseela.—Allors,

bem,aspernasdeTourteaueramdeformadasporcausadapoliomielite.Eleprecisavadeduasmuletasparaandar.Esuascostaseramtodastortas.Achoqueerapor issoqueochamavamde tourteau, quesignifica caranguejo: ele andava de lado, como um caranguejo. Sei que isso parece muito cruel. Ascriançaserammaismalvadasnaqueletempo.

PenseiemcomoeuchamavaAugustde“omonstro”pelascostas.Maspelomenosnuncafizissonafrentedele!

Grandmèrecontinuoufalando.Tenhoqueadmitir:nocomeço,eunãoestavaafimdeouvirumadassuaslongashistórias,masestavaficandointeressadonessa.

—Tourteaueraumacoisinhapequenaemagricela.Nenhumdenósnuncafaloucomele,porqueelenosdeixavadesconfortáveis.Eleeratãodiferente!Nuncanemsequerolheiparaele!Tinhamedodele.Deolhar,defalarcomele.Tinhamedodequeelemetocassesemquerer.Eramaisfácilfingirqueelenãoexistia.

Elatomouumlongogoledevinho.—Certamanhã,umhomementroucorrendoemnossaescola.Euoconhecia.Todosoconheciam.

EraumMaquis,umpartidáriodaresistênciafrancesa.Sabeoqueéisso?Eleeracontraosalemães.Eleentroudepressanaescolaedisseaosprofessoresqueosalemãesestavamvindoparalevaremboratodasas crianças judias. O quê? O que era aquilo? Eu não podia acreditar no que estava ouvindo! Osprofessores foramemtodasas salas reunindoascrianças judias.Fomosorientadosa seguiroMaquispela floresta. Iríamos nos esconder.Depressa, depressa, depressa!Acho que havia umas dez de nós.Depressa,depressa,depressa!Fujam!

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Grandmèreolhouparamim,paragarantirqueeuestavaouvindo—óbvioqueeuestava.—Nevavanaquelamanhãefaziamuitofrio.Tudoemqueeupensavaera“seeuentrarnafloresta,

vouestragarmeussapatos!”.Sabe,euestavausandooslindossapatosvermelhosnovosquemeuPapahaviacompradoparamim.Comodisseantes,eueraumagarotafútil...talvezatéumpoucoestúpida!Mas era nisso que eu estava pensando.Eunem tinha parado parame perguntar: “Bem, onde estãoMamanePapa?”Seosalemãesestavamvindobuscarascriançasjudias,játeriamlevadoospais?Issonemmeocorreu.Tudoemqueconseguiapensareranosmeuslindossapatos.Então,emvezdeseguiroMaquispela floresta, eume separeidogrupoemeescondina torredo sinodaescola.Haviaumasaletaminúsculaláemcima,cheiadecaixaselivros,efoialiondemeescondi.Eumelembrodepensarque iria para casa à tarde, depois que os alemães já tivessem ido embora, e contaria tudo aquilo aMamanePapa.Eueraestúpidaaesseponto,Julian!

Assenti.Nãoacreditavaquenuncatinhaouvidoaquelahistória!—Entãoosalemãeschegaram.Haviaumajanelaestreitanatorre,econseguivê-losperfeitamente.

Eu os vi correr pela floresta atrás das crianças. Não demoraram muito para encontrá-las. Todosvoltaramjuntos:osalemães,ascriançaseoMaquis.

Elaparou,piscoualgumasvezeseentãorespiroufundo.—ElesderamumtironoMaquisnafrentedetodasascrianças—falou,baixinho.—Elecaiutão

suavemente,Julian,naneve.Ascriançasgritaram.Choraramenquantoeramlevadasemboraemumafila.Umadasprofessoras,MademoisellePetitjean,foicomelas,mesmonãosendojudia!Eladissequenão abandonaria seus alunos! Ninguém nunca a viu de novo, coitadinha. A essa altura, eu tinhaacordadodeminhaestupidez,Julian.Nãoestavamaispensandonosmeussapatosvermelhos.Pensavaem meus amigos que tinham sido levados embora. Em meus pais. Estava esperando anoitecer parapodervoltarparacasa,paraeles!

“Mas nem todos os alemães tinham ido embora. Alguns ficaram, junto com a polícia francesa.Estavamfazendoumabuscanaescola.Eentãoeupercebiqueestavamprocurandopormim!Sim,pormimepormais umaouduas outras crianças judias quenão tinham idopara a floresta.Percebi queminhaamigaRachelnãoestavaentreascriançasquetinhamsidolevadas.NemJakob,umgarotodeoutracidadecomquemtodasasgarotasqueriamsecasar,porqueeleeralindo.Ondeestavam?Deviamestarescondidos,comoeu!

“Então ouvi um rangido, Julian. Passos nas escadas acima, se aproximando de mim. Fiquei tãoassustada! Tentei me encolher o máximo possível atrás da caixa, e escondi a cabeça debaixo de umcobertor.”

Nesse ponto, Grandmère cobriu a cabeça com os braços, para me mostrar como estava seescondendo.

— Aí ouvi alguém sussurrar meu nome — falou. — Não era uma voz de homem. Era voz decriança.“Sara?”,sussurrouavozdenovo.Espieiparaforadocobertor.“Tourteau!”,respondi,atônita.Fiqueitãosurpresaporque,emtodososanosqueoconhecia,nuncatinhadirigidoumapalavraaele,nemeleamim.E,aindaassim,aliestavaele,chamandomeunome.“Elesvãoencontrarvocêaqui”,falou.“Vemcomigo.”

“Eeuoseguimesmo,porquenaquelemomentoestavaapavorada.Elemeconduziuporumcorredoratéacapeladaescola,ondeeununcaestivera.Fomosparaosfundosdacapela,ondehaviaumacripta...tudoaquiloeranovidadeparamim,Julian!Rastejamospelacripta,paraqueosalemãesnãopudessemnosverpelas janelas,porqueaindaestavamnosprocurando.OuviquandoencontraramRachel.Euaouvigritarnopátioenquantoelesalevavam.PobreRachel.

“Tourteaumelevouatéoporãoembaixodacripta.Deviaterpelomenosunscemdegraus.Como

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vocêpodeimaginar,aquilonãoerafácilparaele,comsuadeficiênciaterríveleasduasmuletas,maseledesceu os degraus pulando de dois em dois, olhando para trás para ter certeza de que eu o estavaseguindo.

“Por fim, chegamos a uma passagem. Era tão estreita que precisávamos andar de lado paraatravessar. E então chegamos aos esgotos, Julian! Dá para imaginar? Eu soube imediatamente, porcausadocheiro,claro.Estávamosafundadosemlixoatéosjoelhos.Dáparaimaginarocheiro.Meussapatosvermelhosjáeram!

“Caminhamos a noite inteira.Eu estava com tanto frio, Julian!MasTourteau era umgaroto tãogentil.Elemedeuseucasaco.Essefoi,atéhoje,ogestomaisnobrequealguémjáfezpormim.Eleestava congelando também,masmedeuo casacodele.Fiquei tão envergonhadapelomodo comoohaviatratado!Ah,Julian,tãoenvergonhada!”

Elacobriuabocacomosdedoseengoliuemseco.Depoisterminouataçadevinhoeseserviudeoutra.

— Os esgotos levavam a Dannevilliers, um pequeno vilarejo a cerca de quinze quilômetros deAubervilliers.Maman ePapa sempre tinham evitado essa cidade por causa do cheiro: os esgotos dePariseramescoadosparaasterrasdelá.NósnemcomíamosmaçãscultivadasemDannevilliers!MaseraondeTourteaumorava.Elemelevouàcasadele,ondenoslimpamosjuntoaopoço,edepoiselemelevouaoceleiroatrásdesuacasa.Elemecobriucomumcobertordecavaloemedisseparaesperar.Eleiachamarospais.“Não”,implorei.“Porfavor,nãoconteaeles.”Euestavatãoassustada!Euimaginavaque,quandomevissem,elesiamchamarosalemães.Vocêsabe,eunãoosconhecia!

“MasTourteaufoiemborae,algunsminutosdepois,voltoucomospais.Elesolharamparamim.Eudeviaestarumtantopatéticaali,todamolhadaetremendo.Amãedele,Vivienne,meabraçouparameconfortar.Ah, Julian, aquele foi o abraçomais caloroso que já recebi!Chorei tantonos braços dela,porquenaquelemomentoeusoubequenuncamaischorarianosbraçosdeminhaMamannovamente.Eusoubedissoemmeucoração,Julian.Eestavacerta.ElestinhamlevadoMamannaquelemesmodia,juntocomtodososjudeusdacidade.Meupai,queestavanotrabalho,foraavisadodequeosalemãesestavamvindoefugira.ParaaSuíça.MaseratardedemaisparaMaman.Foideportadanaqueledia.ParaAuschwitz.Nuncamaisavi.MinhalindaMaman!”

Elarespiroufundoebalançouacabeça.

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Tourteau

Grandmère ficouemsilênciopor alguns segundos.Ela estavaolhandoparao ar, como se visse tudoacontecer de novo, bemna sua frente.Agora eu entendia por que ela nunca tinha falado disso: eradifícildemais.

—AfamíliadeTourteaumeescondeunoceleiropordoisanos—continuouela,devagar.—Apesardesermuitoperigosoparaeles.Estávamoscercadosporalemães,eapolíciafrancesatinhaumgrandequartel-generalemDannevilliers.MastodososdiaseuagradeciaaoCriadorpeloceleiroqueeraminhacasaepelacomidaqueTourteauconseguialevarparamim...mesmoquandonãohaviacomidaquasenenhuma.Aspessoasmorriamdefomenaquelaépoca,Julian.Eaindaassimelesmealimentaram.Foiumabondadedaqualjamaismeesquecerei.Serbomésempreumatodecoragem,mas,naqueletempo,tantabondadepodialhecustaravida.

Nesseponto,Grandmèrecomeçouaficarcomosolhoscheiosd’água.Segurouminhamão.—Aúltima vez emque viTourteau foi doismeses antes da libertação.Ele tinhame levadoum

poucodesopa.Nemerasopadeverdade.Eraáguacomumpouquinhodepãoecebolasdentro.Nósdois tínhamos emagrecido tanto!Eu estava em frangalhos.Nem pensar em roupas bonitas!Mesmoassim,conseguíamos rir,Tourteaueeu.Ríamosdecoisasqueaconteciamnaescola.Emboraeunãopudessemaisiràsaulas,claro,Tourteauaindaiatodososdias.Ànoite,elemecontavatudooquetinhaaprendido,paraqueeucontinuasseinteligente.Emefalavadosmeusantigosamigos,também,sobrecomoelesestavam.Todosaindaoignoravam,claro.

“Eelenuncacontouanenhumdelesqueeuaindaestavaviva.Ninguémpodiasaber.Nãopodíamosconfiar em ninguém!MasTourteau era um excelente contador de histórias eme fazia rir bastante.Faziaimitaçõesincríveisetinhaapelidosengraçadosparatodososmeusamigos.Imaginesó:Tourteauzombandodeles!

“‘Eunãofaziaideiadequevocêeratãoendiabrado!’,faleiparaele.‘Todosessesanosvocêtambémdeviaestarrindodemimpelascostas!’

“‘Rindo de você?’, disse ele. ‘Nunca! Eu era apaixonado por você. Nunca ri. Além disso, eu sózombavadosquetambémzombavamdemim.Vocênuncafezisso.Apenasmeignorava.’

“‘EuchamavavocêdeTourteau.’“‘Edaí?Todomundomechamavaassim.Realmentenãomeimporto.Gostodecaranguejos!’“‘Ah,Tourteau,estoutãoenvergonhada!’,falei,elembroquecobriorostocomasmãos.”Nesse momento, Grandmère cobriu o rosto com as mãos. Embora seus dedos agora estivessem

retorcidospelaartriteesuasveiasestivessemvisíveis, imagineisuasmãosdemeninacobrindoorostojovem,tantosanosantes.

—Tourteaupegouasminhasmãos—continuou,tirandoasmãosdorostodevagar.—Easseguroupor alguns segundos. Eu tinha quatorze anos e nunca havia beijado um garoto.Mas eleme beijounaqueledia,Julian.

Grandmèrefechouosolhos.Respiroufundo.

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—Depoisqueelemebeijou,falei“NãoqueromaischamarvocêdeTourteau.Qualéoseunome?”Elaabriubemosolhosemefitou.—Vocêsabeoqueelerespondeu?—perguntou.Arqueeiassobrancelhas,comosedissesse“não,comoeusaberia?”.Entãoelafechouosolhosdenovoesorriu.—Eledisse:“MeunomeéJulian.”

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Julian

—Ah,meuDeus!—gritei.—Foiporissoquevocêdeuessenomeaopapai?EmboratodomundoochamassedeJules,esseeraonomedele.—Oui—disseela,fazendoquesimcomacabeça.—Eeurecebionomeporcausadomeupai!—falei.—Entãotenhoonomedessegaroto!Issoé

tãolegal!Elasorriuepassouosdedospelomeucabelo.Masnãofalounada.Entãomelembreidequeelatinhadito:“AúltimavezqueviTourteau...”—Oqueaconteceucomele?—perguntei.—ComoJulian?Lágrimasrolarampelorostodaminhaavóquasenomesmoinstante.—Osalemãesopegaram—falou.—Naquelediamesmo.Eleestavaacaminhodaescola.Estavam

fazendo outra busca no vilarejo naquelamanhã.A essa altura, estavamperdendo a guerra e sabiamdisso.

—Mas...elenemerajudeu!—Elesopegaramporqueeleeraaleijado—disseela,soluçando.—Desculpe,seiquevocêmedisse

queessanãoéumaboapalavra,masnãoconheçooutranasua língua.Eleeraum invalide.Écomodizemosemfrancês.Efoiporissoqueopegaram.Elenãoeraperfeito.—Elapraticamentecuspiuessapalavra.—Naqueledia,levaramemboradacidadetodososquenãoeramperfeitos.Foiumexpurgo.Osciganos.Ofilhodosapateiroqueera…retardado.EJulian.Meutourteau.Elesopuseramemumacarroçacomosoutros.EdepoisemumtremparaDrancy.EdeláparaAuschwitz,comominhamãe.Mais tarde, alguémque o viu por lá nos contou que eles omandaramdireto para a câmara de gás.Simplesassim,puf,elesefoi.Meuherói.MeupequenoJulian.

Elaparouparasecarosolhoscomumlençoebebeuorestantedovinho.— Os pais dele ficaram arrasados, claro. M. Beaumier e Mme. Beaumier — continuou. — Só

tivemos certezadeque elehaviamorridodepoisda libertação.Mas sabíamos.Nós sabíamos.—Elaesfregouosolhoscomolenço.—Moreicomelespormaisumanodepoisdaguerra.Elesmetrataramcomo sua filha. Foram eles que me ajudaram a localizar Papa, embora tenha demorado um pouco.QuandoPapafinalmentevoltouaParis,fuimorarcomele.MassemprevisitavaosBeaumier,mesmoquandojáestavammuitovelhos.Nuncaesqueciabondadequedemonstraramcomigo.

Elasuspirou.Haviaterminadoahistória.—Grandmère—falei,depoisdealgunsminutos—,issoétipoacoisamaistristequejáouvi!Eu

nãosabiaquevocêtinhavividonaguerra.Querdizer,meupainuncafalousobrenadadisso.Eladeudeombros.—Achoqueébempossívelqueeununcatenhacontadoessahistóriaparaoseupai.Nãogostode

falardecoisas tristes, sabe?Decertomodo,aindasouagarota fútilqueeraantes.Mas,quandoouvivocê falandodaquelegarotinhoda suaescola,nãopudedeixardepensar emTourteau, emcomoeutinhamedodele,emcomootratávamosmalporcausadesuadeformação.Aquelascriançasforamtão

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cruéiscomele,Julian.Ficodecoraçãopartidoaopensarnisso.Quandoelafalouisso,nãosei,foicomosealgumacoisasepartissedentrodemim.Foitotalmente

inesperado.Olheiparabaixoe,derepente,comeceiachorar.Nãoestoufalandodealgumaslágrimasescorrendopelorosto—querodizerchorarmesmo,defazeronarizescorrer.

—Julian—disseela,baixinho.Balanceiacabeçaecobriorostocomasmãos.—Eufuihorrível,Grandmère—sussurrei.—FuitãomaucomAuggie.Sintotanto,Grandmère!—Julian—insistiuela.—Olheparamim.—Não!—Olheparamim,moncher.Elapegoumeurostoemeforçouafitá-la.Euestavatãoenvergonhado!Nãoconseguiaolharnos

olhosdela.Derepente,aquelapalavraqueoSr.Buzanfatinhausado,aquelaquetodomundoficavaempurrandoparacimademim,veiocomoumgrito.REMORSO!

Sim,eraisso.Apalavraemtodaasuaglória.REMORSO.Euestavatremendoderemorso.Chorandoderemorso.—Julian—disseGrandmère.—Todosnóscometemoserros,moncher.—Não,vocênãoentende!—respondi.—Nãofoisóumerro.Eufuiumdaquelesgarotosqueeram

mauscomTourteau...Euqueestavafazendobullying,Grandmère.Fuieu!Elabalançouacabeça.—Eu o chamei demonstro.Ri pelas costas dele.Deixei bilhetes cruéis!— gritei.—Mamãe fica

arranjandodesculpasparaascoisasque fiz...masnão tem justificativa.Euapenas fiz!Enemseiporquê.Nemseiporquê!

Euestavachorandotantoquemalpodiafalar.Grandmèreafagouminhacabeçaemeabraçou.—Julian—falou,comcarinho.—Vocêétãonovo.Vocêsabequeascoisasquefeznãoestavam

certas. Mas isso não significa que você não seja capaz de fazer o que é certo. Significa apenas queescolheuocaminhoerrado.Foi issoqueeuquisdizerquandofaleiquevocêcometeuumerro.Foiomesmocomigo.EucometiumerrocomTourteau.Masobomdavida,Julian,équeàsvezespodemosconsertarnossoserros.Aprendemoscomeles.Nósnostornamospessoasmelhores.NuncamaiscometicomninguémoerroquecometicomTourteau.Etiveumavidamuito,muitolonga.Vocêtambémvaiaprendercomesseerro.Deveprometerasimesmoquenuncamaisvaisecomportarassimdenovo.Um erro não define quem você é, Julian. Entende? Você pode simplesmente fazer a coisa certa dapróximavez.

Concordei,masaindachoreipormuito,muitotempo.

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Meusonho

Naquela noite, sonhei com Auggie. Não me lembro de detalhes, mas acho que estávamos sendoperseguidospelosnazistas.Auggiefoipego,maseutinhaachaveparasoltá-lo.E,nomeusonho,achoqueosalvei.Outalveztenhasidoissoquedisseamimmesmoquandoacordei.Comossonhos,àsvezesédifícilsaber.Querdizer,emmeusonhotodososnazistassepareciamcomossoldadosdoImpériodeDarthVader,entãoédifícildarmuitosignificadoaossonhos.

Masoquemaismepareceuinteressante,quandopenseinisso,foiofatodetersidoumsonho—nãoumpesadelo.E,nosonho,Auggieeeuestávamosdomesmolado.

Acordeisupercedoporcausadosonhoenãovolteiadormir.NãoparavadepensaremAuggie,emTourteau—Julian—,omeninoheróidequemeu receberaonome.Éestranho:durante todoessetempo pensei em Auggie como se fosse meu inimigo, mas quando Grandmère me contou aquelahistória, não sei, a ficha meio que caiu. Fiquei pensando como o Julian original teria ficadoenvergonhadodesaberquealguémquehaviarecebidoseunometinhasidotãocruel.

TambémfiqueipensandoemcomoGrandmèrepareciatristeaocontarahistória.Comoselembravadetodososdetalhes,mesmoquetudotivesseacontecido,tipo,unssetentaanosatrás.Setentaanos!SeráqueAuggieselembrariademimdaquiasetentaanos?Aindaselembrariadascoisascruéisdequeeuohaviachamado?

Nãoqueroserlembradoporcoisasassim.QueriaqueselembrassemdemimdamesmaformacomoGrandmèreselembradeTourteau!

Sr.Buzanfa,euentendoagora!R.E.M.O.R.S.O.Eumelevanteiassimqueamanheceueescreviestebilhete:

PrezadoAuggie,Queropedirdesculpaspelascoisasquefizanopassado.Tenhopensadomuitonisso.Vocênão

merecia.Queriapodervoltaratrás.Euseriamaislegal.Quandovocêtiveroitentaanos,esperoquenãoselembredecomoeufuicruel.Sejafeliz.

—Julian

Obs:SefoivocêquemcontouaoSr.Buzanfasobreosbilhetes,nãosepreocupe,nãoestouzangado.QuandoGrandmèreacordounaquelatarde,liobilheteparaela.

—Estouorgulhosadevocê,Julian—disse,apertandomeuombro.—Vocêachaqueelevaimeperdoar?Elapensouumpouco.—Issoécomele—respondeu.—Nofim,moncher,tudooqueimportaéquevocêseperdoe.Você

estáaprendendocomseuerro.ComoeuaprendicomTourteau.—Você achaqueTourteaumeperdoaria?—perguntei.—Se ele soubesse que eu, batizado em

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homenagemaele,fuitãocruel?Elabeijouminhamão.—Tourteauperdoariavocê—falou.Eeusabiaqueeraverdade.

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Voltandoparacasa

EumedeicontadequenãotinhaoendereçodeAuggie,entãoescrevioutroe-mailparaoSr.BrowneperguntandoseelepoderiamandarpormimobilheteparaAuggie.OSr.Brownemerespondeunahora.Ficariafelizemfazerisso.Tambémdissequeestavaorgulhosodemim.

Fiqueifelizporisso.Tipo,felizmesmo.Eerabomficarfeliz.Émeiodifícildeexplicar,masachoqueestavacansadodesentirqueeraumgarotohorrível.Nãosou.Comonãoparoderepetir, sousóummeninocomum.Ummeninotípico,normal,comum.Quecometeuumerro.

Mas,naquelemomento,euestavatentandofazeracoisacerta.Meuspaischegaramumasemanadepois.Minhamãenãoparavademeabraçarebeijar.Eununca

tinhaficadotantotempolongedecasa.Euestavaanimadoparacontaraelessobreoe-maildoSr.Browneeobilhetequeeuhaviaescrito

paraAuggie.Maselesmecontaramasnovidadesdelesantes.—Estamosprocessandoaescola—dissemamãe,animada.—Oquê?—gritei.— Seu pai está processando a Beecher Prep por quebra de contrato — respondeu ela, quase

gritando.OlheiparaGrandmère,quenãodissenada.Estávamosjantando.— Eles não têm o direito de romper o contrato de matrícula — explicou meu pai, com calma,

assumindoseuperfildeadvogado.—Nãoantesdevocêtersidoaceitoemoutraescola.Haltinhamedito,nasaladele,queesperariampararomperocontratodepoisquevocêfosseaceitoemoutraescola.Equedevolveriamodinheiro.Tínhamosumacordoverbal.

—Maseuiaparaoutraescolamesmo!—falei.—Não importa— insistiu ele.—Mesmoque tivessemdevolvidoodinheiro,oqueconta sãoos

princípios.—Queprincípios?—disseGrandmère.Elaselevantoudamesa.—Issonãofazsentido,Jules.É

estúpido.Estu-pído!Absolutamentesemsentido!—Maman!—exclamoumeupai.Elepareciasurpresodeverdade.Eminhamãetambém.—Vocêdeveriadesistirdessaestupidez—disseGrandmère.—Vocênãosabedosdetalhes,Maman—faloumeupai.—Euseidetodososdetalhes!—gritouela,agitandoopunhonoar.Pareciafuriosa.—Ogaroto

estavaerrado,Jules!Oseufilhoestavaerrado!Elesabedisso.Vocêsabedisso.Elefezcoisasruinscomooutromeninoeestáarrependido,evocêdeveriadeixarissoparalá.

Meuspaisseentreolharam.—Comtodoorespeito,Sara—começouminhamãe—,achoquesabemosoqueémelhorpara...—Não,vocêsnãosabemdenada!—gritouminhaavó.—Vocêsnãosabem.Osdoissãoocupados

demaiscomprocessosecoisasassim.—Maman—dissemeupai.

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—Elaestácerta,pai—falei.—Aculpafoitodaminha.TodaasituaçãocomAuggie.Aculpafoiminha. Fui cruel comele, semmotivo algum.Foi culpaminha Jack termedadoum soco.Eu tinhachamadoAuggiedemonstro.

—Oquê?—falouminhamãe.—Escreviaquelesbilheteshorríveis—continuei,depressa.—Fizmaldades.Aculpafoiminha!Eu

queestavapraticandobullying,mãe!Ninguémmaistemculpadisso,sóeu!Meuspaispareciamnãosaberoquedizer.—Emvezdeficaremsentadosaquicomodoisidiotas—começouGramdmère,quesemprediziaas

coisas sem rodeios —, deveriam dar os parabéns a Julian pela confissão! Ele está assumindo aresponsabilidade!Estáreconhecendoseuserros.Éprecisomuitacoragemparafazerisso.

—Sim,claro—dissemeupai,coçandooqueixoeolhandoparamim.—Mas...achoquevocênãoentendetodososdesdobramentoslegais.Aescolarecebeunossodinheiroeserecusouadevolvê-lo,oque...

—Blá-blá-blá—falouGrandmère,comumgestodedesprezo.—Escreviumbilhetepedindodesculpasaele—contei.—ParaAuggie.Escreviumbilheteparaele

emandeiporcorreio!Pedidesculpaspelomodocomoagi.—Vocêoquê?—perguntoumeupai.Eleestavaficandoirritado.—EtambémconteiaverdadeparaoSr.Browne—acrescentei.—Escreviumlongoe-mailpara

elecontandoahistóriatoda.—Julian...—começoumeupai,atestafranzidaderaiva.—Porquevocêfezisso?Eudissequenão

queriaquevocêescrevessenadaqueadmitisse...—Jules!—disseGrandmèreemvozalta,brandindoamãona frentedo rostodele.—Tu as un

cerveaucommeunsandwichaufromage!Nãoconseguiseguraroriso.Papaiseencolheu.—Oqueeladisse?—perguntouminhamãe,quenãosabiafrancês.—Grandmèreacaboudedizerqueocérebrodopapaipareceumsanduíchedequeijo—respondi.—Maman!—faloumeupaiduramente,comoseestivesseprestesacomeçarumlongosermão.Masminhamãeesticouamãoetocounobraçodele.—Jules—falou,baixinho.—Achoquesuamãetemrazão.

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Inesperado

Àsvezesaspessoasnossurpreendem.Nunca,nememummilhãodeanos,euimaginariaqueminhamãe voltaria atrás no que quer que fosse, por isso fiquei totalmente chocado com o que ela tinhaacabadodedizer.Noteiquepapaiestavachocadotambém.Eleolhavaparaelacomosenãoacreditassenoqueouvia.Grandmèreeraaúnicaquenãopareciasurpresa.

—Vocêestábrincando?—perguntoumeupai.Mamãefezquenãocomacabeçadevagar.—Jules,agentedeveriaacabarcomisso.Seguiremfrente.Suamãeestácerta.Papaiarqueouassobrancelhas.Eusabiaqueeleestavazangado,mastentavanãodemonstrar.—Foivocêquenoscolocounessaguerra,Melissa!—Eusei!—respondeuela,tirandoosóculos.Seusolhosbrilhavammuito.—Eusei,eusei.Eachei

que era coisa certa a fazer na época.Aindanão acho que oBuzanfa tenha lidado com tudo isso daforma correta, mas... Estou pronta para deixar tudo isso para trás, Jules. Acho que devemossimplesmente...esquecereseguiremfrente.—Eladeudeombros.Olhouparamim.—Foiumgrandegestodo Julianentrar emcontato comessegaroto, Jules.Éprecisomuita coragempara isso.—Elaolhoudevoltaparameupai.—Deveríamosapoiá-lo.

—Euoapoio,éclaro—faloupapai.—Maséumamudançaradical,Melissa!Querdizer...—Elebalançouacabeçaerevirouosolhosaomesmotempo.

Minhamãesuspirou,semsaberoquedizer.—Olhemaqui—falouGrandmère.—NãoimportaoqueMelissatenhafeito,elaqueriaverJulian

feliz.Eésó isso.C’est tout.Eeleestá felizagora.Dáparavernosolhosdele.Pelaprimeiravezemmuitotempo,seufilhoestácompletamentefeliz.

—Éexatamenteisso—disseminhamãe,secandoumalágrima.Eumeio que senti pena dela nessemomento.Dava para ver que ela estava se sentindomal por

algumascoisasquehaviafeito.—Pai—falei—,porfavor,nãoprocesseaescola.Eunãoqueroisso.Estábem,pai?Porfavor?Eleserecostounacadeiraesibiloubaixinho,comoseestivessesoprandoumavelaemcâmeralenta.

Depoiscomeçouaestalara línguanocéudaboca.Ficouassimporumminutointeiro.Nósapenasoobservamos.

Porfim,eleseaprumoueolhouparaagente.Deudeombros.—Ok—falou,comaspalmasdasmãosparacima.—Voudesistirdoprocesso.Vamosesquecero

dinheirodamatrícula.Temcertezadequeéissoquevocêquer,Melissa?Mamãeassentiu.—Tenhocerteza.Grandmèresuspirou.—Enfim,avitória!—murmurouelaparasuataçadevinho.

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Recomeçando

Voltamos para casa uma semana depois, mas não antes de Grandmère nos levar a um lugar muitoespecial:ovilarejoondecrescera.AcheiincrívelelanuncatercontadoaopapaiahistóriadeTourteau.TudooqueelesabiaeraqueumafamíliadeDannevilliersaajudaraduranteaguerra,maselanuncalhe contara todososdetalhes.Elenunca soubeque suaprópria avó tinhamorridoemumcampodeconcentração.

—Maman,comovocênuncamecontounadadisso?—perguntoueleenquantoíamosdecarroaovilarejo.

—Ah, vocêmeconhece, Jules—respondeuela.—Nãogostode reviraropassado.Avida estádiantedenós.Seperdemosmuitotempoolhandoparatrás,nãovemosaondeestamosindo!

Ovilarejoestavamuitodiferente.Muitasbombasegranadastinhamexplodido.Amaioriadascasasoriginaistinhasidodestruídanaguerra.AescoladeGrandmèrenãoexistiamais.Nãohaviamuitoparaver.ApenasStarbucksesapatarias.

MasentãofomosaDannevilliers,queeraondeJulianhaviamorado.Olugarestavaintacto.Elanoslevou ao celeiro onde passara dois anos. O velho fazendeiro que morava ali nos deixou andar pelapropriedadeedarumaolhada.Grandmèreencontrousuasiniciaisentalhadasemumcantinhodeumabaia para cavalo, que era onde ela se escondia debaixo de montes de feno sempre que os nazistasestavamporperto.Elaparounomeiodoceleiro,comumadasmãosnorosto,eolhouemvolta.Pareciatãopequenaalidentro.

—Comovocêestá,Grandmère?—perguntei.— Eu? Ah! Bem — falou, sorrindo. Inclinou a cabeça. — Eu sobrevivi. Lembro-me de pensar,

quando estava aqui, que o cheiro de estrume de cavalo nunca sairia das minhas narinas. Mas eusobrevivi.EJulesnasceuporqueeusobrevivi.Evocênasceu.Entãoqueimportânciatemocheirodeestrumedecavalodiantedissotudo?Perfumeetempofazemtudoficarmaisfácildesuportar.Agora,temmaisumlugarquequerovisitar...

Levamos cerca de dez minutos de carro até um minúsculo cemitério no limite do vilarejo.Grandmèrenoslevoudiretoaumtúmulonaextremidadedocemitério.

Haviaumapequenaplacadecerâmicabrancaemformadecoração.Nela,estavaescrito:

ICIREPOSENT

VivienneBeaumiernéele27deavril1905

décédéele21denovembre1985

Jean-PaulBeaumiernéle15demai1901

décédéle5dejuillet1985

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MèreetpèredeJulianAugusteBeaumiernéle10deoctobre1930

tombéenjuin1944Puisse-t-iltoujoursmarcherlefronthaut

danslejardindeDieu

Olheiparaminhaavó,parada,osolhosfixosnaplaca.Elabeijouosdedosedepoisseinclinouparatocaracerâmica.Estavatremendo.

—Elesmetrataramcomoumafilha—falou,aslágrimasrolandopelorosto.Elacomeçouasoluçar.Pegueisuamãoeabeijei.Mamãepegouamãodopapai.—Oquedizaplaca?—perguntouela,baixinho.Papailimpouagarganta.—Aqui jazVivienneBeaumier...—traduziuele.—EJean-PaulBeaumier.Mãeepaide Julian

AugusteBeaumier,nascidoemdezdeoutubrode1930.Mortoemjunhode1944.QuecaminheparasempredecabeçaerguidanojardimdoSenhor.

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NovaYork

VoltamosparaNovaYorkumasemanaantesdoiníciodasaulasemminhanovaescola.Foibomestarnomeu quarto de novo.Minhas coisas estavam todas iguais.Mas eume sentia, não sei, um poucodiferente.Nãoconsigoexplicar.Sentiaqueestavamesmorecomeçando.

—Jávenhoajudarvocêadesfazerasmalas—disseminhamãe,correndoparaobanheiroassimqueentramospelaporta.

—Tudobem—respondi.Ouvi meu pai na sala escutando os recados da secretária eletrônica. Então identifiquei uma voz

conhecidasaindodoaparelho.Pareioqueestavafazendoefuiparaasala.Papaiergueuosolhosepausouagravação.Entãovoltou

amensagemparaqueeuaescutasse.EraAuggiePullman.—Ah,oi,Julian.É,então...Humm…Sóqueriadizerquerecebiseubilhete.E,hum…é,obrigado

porterescrito.Nãoprecisameligardevolta.Eusóqueriadarumoi.Estátudobem.Ah,eapropósito,nãofuieuquefaleidosbilhetesparaoSr.Buzanfa,sóparavocêsaber.TambémnãofoioJacknemaSummer. Realmente não sei como ele descobriu, mas isso não tem importância. Então, ok. Enfim,esperoquegostedaescolanova.Boasorte.Tchau!

Clique.Papaimeolhouparavercomoeuiriareagir.—Uau—falei.—Poressaeunãoesperava.—Vocêvailigardevoltaparaele?Fizquenãocomacabeça.—Não—respondi.—Soucovardedemais.Papaiseaproximoudemimepôsamãonomeuombro.—Achoquevocêprovouqueétudomenos covarde—falou.—Estouorgulhosodevocê, Julian.

Muitoorgulhoso.—Eleseinclinouemeabraçou.—Tumarchestoujourslefronthaut.Sorri.—Esperoquesim,pai.Esperoquesim.

FIM

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Sobreaautora

R.J.PalaciomoraemNovaYorkcomomarido,dois filhosedoiscachorros.Pormaisdevinteanosfoidiretoraeditorial,diretoradearteedesignergráfica,trabalhandonoslivrosdeoutraspessoasenquantoesperavaomomentoidealparacomeçaraescreverseupróprioromance.Masumdia,muitosanos atrás, umencontro casual comuma criança extraordinária em frente a uma sorveteria fezR. J.perceberqueomomentoidealfinalmentehaviachegado.Extraordinárioéseuprimeirolivro.Elanãocriouacapa,massemdúvidaadoraoresultado.

Fotodaautora©RussellGordon

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Conheçaooutrolivrodaautora

Extraordinário

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