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O caráter do cristão

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O caráter do cristão: as bem-aventurançasMateus 5:3-12

No sermão do Monte, Jesus revela aos Seus discípulos oque Ele espera deles: que sejam diferentes. Em razão disso, Jesus

dá vários ensinamentos concernentes ao Seu propósito. Nopresente texto, Jesus fala sobre o caráter do verdadeiro discípulo,destacando oito qualidades, todas seguidas por promessasàqueles que as tem.

AS BEM-AVENTURANÇASAs oito bem-aventuranças que Cristo menciona descre-

vem o Seu ideal para cada cidadão do reino de Deus. Estasqualidades devem caracterizar todos os seus discípulos. Elastais como o fruto do Espírito mencionado por Paulo na sua

carta aos Gálatas 5.22, descrevem o perfil do discípulo de Jesus.Em todas as oito qualidades, seguem promessas para aquelesque as tem; bênçãos subsequentes às qualidades destacadas. 

a. Os humildes de espírito (v. 3)Ser "humilde (pobre) de espírito" é reconhecer nossa pobre-

za espiritual diante de Deus, isto é, nada temos a oferecer, na-da a reivindicar a Deus; somos tão somente pecadores, sob asanta ira de Deus, e nada merecemos senão o juízo de Deus. 

Àqueles que são  pobres de espírito  dizem como Paulo:...nada trouxemos para este mundo, e ...nada podemos levar dele. (1Timóteo 6:7)

 Jesus declarou em outra ocasião aos seus discípulos: Emverdade vos digo que qualquer que não receber o reino de Deus comouma criança, de maneira nenhuma entrará nele. (Marcos 10:15)

O que significa “receber o reino de Deus como uma criança”?A criança nada pode oferecer pelo reino de Deus; àqueles quedesejam entrar neste reino, tem que como uma criança recebê-lo reconhecendo sua pobreza espiritual. Precisamos sempretrazer a memória o que somos:

  Lembra-te de que a minha vida é como o vento... (Jó 7:7)  ...nossos dias sobre a terra são como a sombra. (Jó 8:9)  ...que é a vossa vida? É um vapor que aparece por um pouco,

e depois [desaparece]. (Tiago 4:14)  ...todos foram feitos do pó, e todos ao pó voltarão. (Ec 3:20)  Ele conhece a nossa estrutura; sabe que somos pó. (Sl 103:14)

Não lugar para o orgulho, a altivez ou ao espírito de su-perioridade sobre os demais, aqueles que são pobres de espírito,a semelhança de Paulo, que a respeito de si mesmo disse: ser o“o menor dos apóstolos” (1 Co. 15.9); o “menor de todos os santos” (Efésios 3.8) e “o principal dos pecadores” (1 Tm 1.15).

Esses, e tão somente esses, recebem o reino de Deus:  por-que deles é o reino dos céus (v.3).

b. Os que choram (v. 4) Os que choram aqui não são aqueles que choram a perda

de uma pessoa querida, mas são aqueles que choram a perda de

sua inocência, de sua justiça, de seus valores. São aqueles que cho-ram por seus próprios pecados.Há cristãos que pensam que ser cheio do Espírito Santo,

equivale exibir um sorriso perpetuo e vivo. Não, isso não é sercheio do Espírito Santo. Ser cheio do Espírito Santo é chorar pelosseus pecados e pelos pecados do mundo todo. (Mateus 6.12)

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i. É chorar pelos seus pecados, como escreveu o missio-nário David Brainerd em seu diário: “Em minhas devoçõesmatinais minha alma desfez-se em lágrimas, e chorou amargamente

 por causa da minha extrema maldade e vileza.” ii.  É chorar pelos pecados do mundo todo, como fez o

salmista: Torrentes de águas nascem dos meus olhos porque oshomens não guardam a tua lei (Sl 119.136).

A promessa feita àqueles que choram é o de serem conso-lados, a semelhança do que está escrito Apocalipse 7:17: Deuslimpará de seus olhos toda a lágrima. Pois como declara o salmista:Tu contas o meu lamento; recolhe as minhas lágrimas em teu odre;acaso não estão elas anotadas em teu livro? (Salmos 56:8)

c. Os mansos (v. 5)

Os mansos são aqueles que exercem autocontrole. Aque-les que atem assemelham a Jesus que descreve a si mesmo por“manso e humilde de coração” (Mateus 11.28). A mansidão estáintimamente ligada a nossa reação perante a crítica e ofensados homens. Afinal como afirmou o pastor Martin Lloyd-

 Jones: “Todos nós preferimos nos condenar a nós mesmos do que permitir que outra pessoa nos condene.” 

Aqueles que são mansos sabem escutar uma crítica, ouviruma sugestão e suportar uma ofensa, semelhança de Jesus:

Quando insultado, não revidava; quando sofria, não fazia ame-aças, mas entregava-se àquele que julga com justiça. (1 Pedro 2:23)

Em recompensa, Jesus acrescentou, “eles herdarão a terra”.Como acertadamente declarou Rudolf Stier: “ A auto-renúncia éo caminho para o domínio do mundo”.

d. Os que têm fome e sede de justiça (v. 6)  Tal fome e sede espiritual é uma característica do povo

de Deus, cuja ambição suprema não é material, mas espiritual.Os cristãos vivem em "buscar primeiro" o reino de Deus e a sua

 justiça (Mateus 6.33).

Afim que compreendamos esta bem-aventurança, preci-samos compreender o significado de justiça neste versículo.A palavra justiça na Bíblia tem pelo menos três aspectos:

o legal, o moral e o social.

i. A justiça legal  é a justificação, um relacionamentocerto com Deus. Os judeus "buscavam a lei da justiça", escre-veu Paulo na sua carta aos Romanos, mas não a alcançaramporque a buscaram pelo modo errado. Paulo diz explica “pro-curando estabelecer a sua própria justiça”, “não se sujeitaram à que

vem de Deus”, que é o próprio Cristo (Romanos 10.3). Contudonão é essa a justiça que este versículo se refere.

ii. A justiça moral  é aquela justiça de caráter e de con-duta que agrada a Deus. Jesus mais tarde contrasta essa justiçacristã com a do fariseu  (v.20). Esta última era uma conformi-dade exterior às regras; enquanto que a primeira é uma justiçainterior, do coração, da mente e das motivações. É desta quedevemos sentir fome e sede.

iii. A justiça social  refere-se à busca pela libertação do

homem da opressão, junto com a promoção dos direitos civis,da justiça, da integridade e da honra em todas as esferassociais. Enquanto cristãos devemos nos empenhar em sentirfome e sede de justiça em todas as esferas sociais afim de agra-dar a um Deus justo. O grande reformador Martinho Luteroafirmou: “Se você não puder tornar o mundo completamente pie-doso, então faça o que você puder.” 

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"Talvez não exista um segredo maior no progresso davida cristã do que um apetite sadio e robusto. As Escriturasrepetem muitas vezes as promessas aos famintos. Deus"dessedentou a alma sequiosa e fartou de bens a almafaminta".1  Se estamos conscientes de um crescimento lento,

não será devido a um apetite embotado? Não basta chorar opecado cometido no passado; precisamos também ter fome de justiça futura.

Mas, nesta vida, a nossa fome nunca será totalmentesatisfeita, nem a nossa sede plenamente mitigada. É verdadeque recebemos a satisfação que a bem-aventurança promete.Mas a nossa fome é satisfeita apenas para tornar a semanifestar. Até mesmo a promessa de Jesus, de que todoaquele que beber da água que ele dá "nunca mais terá sede",só é cumprida se continuarmos bebendo.2  Cuidado com

aqueles que proclamam estar satisfeitos e que olham para asexperiências do passado mais do que para o desenvolvimentodo futuro! Como todas as qualidades incluídas nas bem-aventuranças, a fome e a sede são características perpétuasdos discípulos de Jesus, tão perpétuas como a humildade deespírito, a mansidão e as lágrimas. Só lá no céu "jamais terãofome" e "nunca mais terão sede", pois só então Cristo, nossoPastor, nos levará às "fontes da água da vida".3 

Mais do que isso, Deus prometeu um dia de juízo, em

que a justiça triunfará e a injustiça será derrotada, e após oqual haverá "novos céus e nova terra, nos quais habita

1 Sl 107:9. 

2 Jo4:13, 14; 7:37. 3 Ap 7:16, 17. 

 justiça".4  Por esta vindicação final da justiça tambémaspiramos e não seremos desapontados.

Voltando os olhos para trás, podemos ver que as quatroprimeiras bem-aventuranças revelam uma progressãoespiritual de inexorável lógica. Cada passo conduz ao seguinte

e pressupõe o anterior. Começando, temos de ser "humildesde espírito", reconhecendo nossa completa e total falênciaespiritual diante de Deus. Depois, temos de "chorar" por causadisto, por causa dos nossos pecados, sim, por causa do nossopecado: a corrupção de nossa natureza decaída, e o poder dopecado e da morte no mundo. Terceiro, temos de ser"mansos", humildes e gentis para com os outros, permitindoque nossa pobreza espiritual (confessada e chorada)condicione o nosso comportamento em relação a eles etambém para com Deus. E, quarto, temos de ter "fome e sede

de justiça". Pois de que vale confessar e lamentar o nossopecado, ou reconhecer a verdade a nosso respeito diante deDeus e dos homens, se pararmos aí? A confissão do pecadodeve levar à fome de justiça.

Na segunda metade das bem-aventuranças (as quatroúltimas), parece que nos afastamos ainda mais de nossaatitude para com Deus e nos voltamos para os seres humanos.Certamente os "misericordiosos" demonstram misericórdiapara com os homens, e os "pacificadores" procuram reconciliar

os homens uns com os outros, e aqueles que são "perseguidos"são perseguidos por homens. Do mesmo modo, parece que asinceridade demonstrada na "pureza do coração" também dizrespeito à nossa atitude e ao nosso relacionamento com osdemais seres humanos.

4 2Pe3:13. 

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 5. Os misericordiosos (v. 7)"Misericórdia" é compaixão pelas pessoas que passam

necessidade. Richard Lenski proveitosamente distinguiu-a da"graça": "O substantivo eleos (misericórdia) . . . sempre trata da

dor, da miséria e do desespero, que são resultados do pecado;e charis (graça) sempre lida com o pecado e com a culpapropriamente ditos. A primeira concede alívio; a segunda,perdão; a primeira cura e ajuda, a segunda purifica ereintegra."5 

Aqui, Jesus não especifica as categorias de pessoas quetinha em mente e a quem os seus discípulos deveriamdemonstrar misericórdia. Não indica se está pensandoprincipalmente naqueles que foram derrotados pela desgraça,corno o viajante que ia de Jerusalém a Jericó e foi assaltado e a

quem o bom samaritano "demonstrou misericórdia"; ou sepensa nos famintos, nos doentes e nos rejeitados pelasociedade, dos quais ele mesmo costumava apiedar-se; ouainda naqueles que nos fazem mal, de modo que a Justiçaclama por castigo, mas a misericórdia concede perdão. Nãohavia necessidade de Jesus desenvolver o assunto. NossoDeus é um Deus misericordioso e dá provas de misericórdiacontinuamente; os cidadãos do seu reino também devemdemonstrar misericórdia.

Naturalmente, o mundo (pelo menos quando é fiel à suaprópria natureza) é cruel, como também a Igrejafreqüentemente o tem sido em seu mundanismo. O mundoprefere isolar-se da dor e da calamidade dos homens. Achaque a vingança é deliciosa e que o perdão é sem graça quando

5 p. 191. 

comparado a ela. Mas os que demonstram misericórdiaencontram misericórdia. "Felizes os que tratam os outros commisericórdia —  Deus os tratará com misericórdia também!(BLH).6 Não que possamos merecer a misericórdia através damisericórdia, ou o perdão através do perdão, mas porque não

podemos receber a misericórdia e o perdão de Deus se não nosarrependermos, e não podemos proclamar que nosarrependemos de nossos pecados se não formosmisericordiosos para com os pecados dos outros. Nada nosimpulsiona mais ao perdão do que o maravilhosoconhecimento de que nós mesmos fomos perdoados. Nadaprova mais claramente que fomos perdoados do que a nossaprópria prontidão em perdoar. Perdoar e ser perdoado,demonstrar misericórdia e receber misericórdia andamindissoluvelmente juntos, como Jesus ilustrou em sua

parábola do credor incompassivo.7  Ou, interpretando nocontexto das bem-aventuranças, "o manso" também é "omisericordioso". Pois ser manso é reconhecer diante dosoutros que nós somos pecadores; ser misericordioso é ter com-paixão pelos outros, pois eles também são pecadores.

6. Os limpos de coração (v. 8) Fica imediatamente óbvio que as palavras "de coração"

indicam a que espécie de pureza Jesus se refere, assim como as

palavras "de espírito" indicam o tipo de humildade que eletinha em mente. Os "humildes de espírito" são osespiritualmente pobres, que diferem daqueles cuja pobreza éapenas material. De quem, então, os "limpos de coração" estãosendo distinguidos?

6 6:14 7 Mt 18:21-35 

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A interpretação popular considera a pureza de coraçãocomo uma expressão de pureza interior, a qualidade daquelesque foram purificados da imundície moral, em oposição àimundície cerimonial. E temos bons antecedentes bíblicosacerca disso, especialmente nos Salmos. Sabe-se que ninguém

podia subir ao monte do Senhor ou ficar no seu santo lugar senão fosse "limpo de mãos e puro de coração". Por isso Davi,consciente de que o seu Senhor desejava "a verdade noíntimo", orou: "Cria em mim, ó Deus, um coração puro, erenova dentro em mim um espírito inabaljavel."8 Jesus adotoueste tema na sua controvérsia com os fariseus e queixou-se daobsessão deles pelo exterior e pela pureza cerimonial: "Vós,fariseus, limpais o exterior do copo e do prato; mas o vossointerior está cheio de rapina e perversidade." Eles eram como"sepulcros caiados, que por fora se mostram belos, mas

interiormente estão cheios de hipocrisia e de iniqüidade".9 Lutero deu a esta diferença entre a pureza interior e a

exterior uma interpretação caracteristicamente natural,contrastando a pureza de coração não só com a contaminaçãocerimonial, mas também com a simples sujeira física. "Cristo . .. quer um coração limpo, embora exteriormente a pessoapossa estar confinada à cozinha encardida e cheia de fuligem,fazendo toda espécie de trabalho sujo."10  E novamente:"Embora um trabalhador comum, um sapateiro ou um ferreiro

possa estar sujo e cheio de fuligem ou mesmo cheirar malporque está coberto de pó e piche, . . . e embora cheire malexternamente, no interior é puro incenso diante de Deus"

8 Sl 24:3,4; 51:6,10; cf. Sl 73:1; At 15:9; 1 Tm 1:5.  

9 Lc 11:39; Mt 23:25-28. 10

 p. 33. 

porque, em seu coração, medita na palavra do Senhor e lheobedece.11 

Esta ênfase dada ao interior e à moral, quandocomparado com o exterior e cerimonial, ou com o exterior efísico, certamente torna-se consistente com o todo do Sermão

do Monte, que exige justiça de coração em lugar de simples justiça proveniente de regras. Não obstante, no contexto dasoutras bem-aventuranças, "pureza de coração" parece referir-se, num certo sentido, aos nossos relacionamentos . OProfessor Tasker define os limpos de coração como "osíntegros, livres da tirania e um 'eu' dividido".12 Neste caso, ocoração limpo é o coração sincero que abre o caminho para o"olho bom" mencionado por Jesus no capítulo seguinte.13 

Mais precisamente, a referência primária é à sinceridade. Já no Salmo 24, nos versículos que citamos, a pessoa "limpa de

mãos e pura de coração" é aquela "que não entrega a sua almaà falsidade (sc. um ídolo), nem jura dolosamente" (v. 4). Isto é,em seu relacionamento com Deus e com o homem, está livrede falsidade. Portanto, os limpos de coração são osinteiramente sinceros. Toda a sua vida, pública e particular, étransparente diante de Deus e dos homens. O íntimo do seucoração, incluindo pensamentos e motivações, é puro, semmistura de nada que seja desonesto, dissimulado oudesprezível. A hipocrisia e a fraude lhes são repugnantes, e

não têm malícia.Contudo, como são poucos os que, dentre nós, vivemuma vida aberta! Somos tentados a usar uma máscaradiferente e a representar um papel diferente, de acordo com

11 p. 50; cf. Sl 86:11, 12 

12 p.34. 13

 6:22. 

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cada ocasião. Isto não ê realidade, mas representação, que é aessência da hipocrisia. Algumas pessoas tecem à sua volta umtal emaranhado de mentiras que já não conseguem mais dizerqual a parte real e qual a criada pela imaginação. Só JesusCristo, entre os homens, foi absolutamente limpo de coração,

foi inteiramente sem malícia.Só os limpos de coração verão a Deus (vêem-no agoracom os olhos da fé e, no porvir, verão a sua glória), pois só ostotalmente sinceros podem suportar a deslumbrante visão, emcuja luz as trevas da mentira têm de se desvanecer, e em cujaschamas todas as simulações são consumidas.

7. Os pacificadores (v. 9)A seqüência de idéias —  de "limpos de coração" para

"pacificadores" —  é natural, pois uma das mais freqüentes

causas de conflito é a intriga, enquanto que a franqueza e asinceridade são essenciais a todas as reconciliaçõesverdadeiras.

Cada cristão, de acordo com esta bem-aventurança, temde ser um pacificador, tanto na igreja como na sociedade. Éverdade que Jesus diria mais tarde que não viera "trazer paz,mas espada", pois veio "causar divisão entre o homem e seupai; entre a filha e sua mãe e entre a nora e sua sogra", demodo que os inimigos do homem seriam "os da sua própriacasa".14  E com isso ele queria dizer que o conflito seria oresultado inevitável da sua vinda, até mesmo dentro dafamília, e que, para sermos dignos dele, teríamos de amá-lomais e colocá-lo em primeiro lugar, até mesmo acima denossos entes mais próximos e mais queridos.15 Entretanto fica

14 Mt 10:34-36. 15

 Mt 10:37. 

mais do que explícito, através dos ensinamentos de Jesus aseus apóstolos, que jamais deveríamos nós mesmos procurar oconflito ou ser responsáveis por ele. Pelo contrário, somoschamados para pacificar, devemos ativamente "buscar" a paz,"seguir a paz com todos" e, até onde depender de nós, "ter paz

com todos os homens".16

 Mas a pacificação é uma obra divina, pois paz significareconciliação, e Deus é o autor da paz e da reconciliação. Naverdade, exatamente o mesmo verbo que foi usado nesta bem-aventurança o apóstolo Paulo aplicou ao que Deus fez atravésde Cristo. Através de Cristo, Deus se agradou em "reconciliarconsigo mesmo todas as cousas", "havendo feito a paz pelosangue da sua cruz". E o propósito de Cristo foi "que dos dois(sc. judeu e gentio) criasse em si mesmo novo homem,  fazendoa paz".17   Portanto, quase não nos surpreende que a bênção

particularmente associada aos pacificadores é que eles "serãochamados filhos de Deus", pois estão procurando fazer o queseu Pai fez, amando as pessoas com o amor dele, como Jesuslogo tornaria explícito.18 O diabo é que é agitador; Deus ama areconciliação e, através dos seus filhos, tal como fez antesatravés do seu Filho unigênito, está inclinado a fazer a paz.

Isto nos faz lembrar que as palavras "paz" e"apaziguamento" não são sinônimas; e a paz de Deus não épaz a qualquer preço. Ele fez a paz conosco a um preço

imenso, o preço do sangue que era a vida do seu Filhounigênito. Nós também, embora em escala menor, vamosdescobrir que fazer a paz é um empreendimento custoso.Dietrich Bonhoeffer tornou-nos familiarizados com o conceito

16 1 Co 7:15; Pe 3:11; Hb 12:14; Rm 12:18. 

17 Cl 1:20; Ef 2:15. 18

 5:44,45. 

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de "graça barata";19  existe também um tipo de "paz barata".Proclamar "paz, paz", onde não há paz, é obra do falso profeta,não da testemunha cristã. Muitos exemplos poderiam serdados de paz através do sofrimento. Quando nós mesmosestamos envolvidos numa disputa, ou haverá a dor do pedido

de desculpas à pessoa que prejudicamos, ou a dor derepreender a pessoa que nos prejudicou. Às vezes, há a dorimportuna de termos de nos recusar a perdoar a parte culpadaaté que esta se arrependa. É claro que uma paz barata pode sercomprada por um perdão barato. Mas a verdadeira paz e overdadeiro perdão são tesouros caros. Deus só nos perdoaquando nos arrependemos. Jesus nos disse para fazer omesmo: "Se teu irmão pecar contra ti, repreende-o; se ele searrepender, perdoa-lhe."20  Como podemos perdoar umainjúria se ela não foi admitida nem lastimada?

Ou, então, podemos não estar pessoalmente envolvidosnuma disputa, porém lutando pela reconciliação de duaspessoas ou dois grupos que estão separados, em divergência.Neste caso, será o sofrimento de ouvir, de despir-se depreconceitos, de tentar entender com simpatia os dois pontosde vista oponentes, de arriscar-se a ser mal interpretado, dereceber ingratidão, ou de até fracassar.

Outros exemplos de pacificação são o trabalho pela uniãoe a evangelização, isto é, procurando de um lado unir igrejas

e, de outro, levar pecadores a Cristo. Nos dois casos, averdadeira reconciliação pode ser aviltada a um baixo preço.A visível união da igreja compete ao cristão buscar, mas sóquando tal união não é buscada às expensas da doutrina. Jesus

19 pp. 9ss. 20

 Lc17:3. 

orou pela união do seu povo. Ele também orou que fossemguardados do mal e na verdade. Não temos nenhuma ordemde Cristo para buscarmos a união sem a pureza, pureza dedoutrina e de conduta. Havendo uma coisa tal como a "uniãobarata", também há a "evangelização barata", isto ê, a

proclamação do evangelho sem o custo do discipulado, aexigência da fé sem o arrependimento. São atalhos proibidos.Transformam o evangelista em um fraudulento. Degradam oevangelho e prejudicam a causa de Cristo.

8. Os perseguidos por causa da justiça (vs. 10-12) Pode parecer estranho que Jesus passasse dos

pacificadores para a perseguição, da obra de reconciliação àexperiência de hostilidade. Mas, por mais que nos esforcemosem fazer a paz com determinadas pessoas, elas se recusam a

viver em paz conosco. Nem todas as tentativas dereconciliação têm sucesso. Na verdade, alguns tomam ainiciativa de opor-se a nós e, particularmente, de nos injuriar eperseguir. Não por causa de nossas fraquezas ouidiossincrasias, mas "por causa da justiça" (v. 10) e "por minhacausa" (v. 11), isto é, porque não gostam da justiça, da qualsentimos fome e sede (v. 6), e porque rejeitaram o Cristo queprocuramos seguir. A perseguição é simplesmente o conflitoentre dois sistemas de valores irreconciliáveis.

Como Jesus esperava que os seus discípulos reagissemdiante da perseguição? O versículo 12 diz: Regozijai-vos eexultai! Não devemos nos vingar como o incrédulo, nem ficarde mau humor como uma criança, nem lamber nossas feridasem autopiedade como um cão, nem simplesmente sorrir esuportar tudo como um estóico, e muito menos fazer de contaque gostamos disso como um masoquista. Então, como agir?

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Devemos nos regozijar como um cristão, e até mesmo "pularde alegria"21  Por quê? Em parte porque, Jesus acrescentou, é

 grande o vosso galardão nos céus (y. 12a). Podemos perder tudoaqui na terra, mas herdaremos tudo nos céus, não como umarecompensa meritória, mas porque "a promessa da

recompensa é gratuita".22

  E, por outro lado, porque aperseguição é um sinal de genuinidade, um certificado daautenticidade cristã,  pois assim perseguiram aos profetas queviveram antes de vós (v. 12b). Se somos perseguidos hoje,pertencemos a uma nobre sucessão. Mas o motivo principalpelo qual deveríamos nos regozijar é porque estamossofrendo, disse ele, por minha causa (v.) 11), por causa de nossalealdade para com ele e para com os seus padrões de verdadee de justiça. Certamente os apóstolos aprenderam esta liçãomuito bem, pois, tendo sido açoitados pelo Sinédrio, "eles se

retiraram . . . regozijando-se por terem sido consideradosdignos de sofrer afrontas por esse Nome".23 Eles sabiam, assimcomo nós devemos saber, que "ferimentos e contusões sãomedalhas de honra"24 

É importante notar que esta referência à perseguição éuma bem-aventurança como as demais. Na verdade, tem oprivilégio de ser uma bem-aventurança dupla, pois Jesusprimeiro declarou-a na terceira pessoa como as outras sete(Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, v. 10) e,

então, repetiu-a na oração direta da segunda pessoa (Bem-aventurados sois quando . . . vos injuriarem e vos perseguirem . . .,v. 11). Considerando que todas as bem-aventuranças

21 Lc6:23. 

22 Calvino, p. 267 

23 At5:41. 24

 Lenski, p. 197. 

descrevem o que cada discípulo cristão deve ser, concluímosque a condição de ser desprezado e rejeitado, injuriado eperseguido, é um sinal do discipulado cristão, da mesmaforma que um coração puro ou misericordioso. Cada cristãodeve ser um pacificador, e cada cristão deve esperar oposição.

Aqueles que têm fome de justiça sofrerão por causa da justiçaque anseiam. Jesus disse que seria assim em qualquer lugar.Também o disseram seus apóstolos Pedro e Paulo.25 Tem sidoassim em todas as épocas. Não deveremos nos surpreender sea hostilidade anticristã aumentar, mas, antes, se ela não existir.Precisamos nos lembrar do infortúnio complementarregistrado por Lucas: "Ai de vós, quando vos louvarem!"26 Apopularidade universal está para os falsos profetas, assimcomo a perseguição para os verdadeiros. Poucos homensdeste século têm entendido melhor a inevitabilidade do

sofrimento do que Dietrich Bonhoeffer. Ele parece nunca tervacilado em seu antagonismo cristão contra o regime nazista,embora isto significasse prisão, ameaça de tortura,

perigo para a sua própria família e, finalmente, morte.Ele foi executado por ordem direta de Heinrich Himmler, emabril de 1945, no campo de concentração de Flossenburg, aapenas poucos dias antes da libertação. Era o cumprimento doque ele sempre crera e ensinara: O sofrimento é, pois, a

25 Por exemplo Jo 15:18-25; 1 Pe4:13,14; At 14:22; 2 Tm 3:12.

26 Lc6:26. 

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característica dos seguidores de Cristo. O discípulo não estáacima do seu mestre. O discipulado é "passio passiva", ésofrimento obrigatório. Por isso também o Dr. M. Luteroincluiu o sofrimento no rol dos sinais da verdadeira Igreja.Um anteprojeto da Confissão de Augsburg definiu a Igreja

como comunidade dos que são 'perseguidos e martirizadospor causa do Evangelho' ... O discipulado é união com Cristosofredor. Por isso nada há de estranho no sofrimento docristão, antes é graça, ê alegria."27 As bem-aventurançaspintam um retrato compreensivo do discípulo cristão.Primeiro, vemo-lo de joelhos diante de Deus, reconhecendosua pobreza espiritual e chorando por causa dela. Isto o tornamanso ou gentil em todos os seus relacionamentos,considerando que a honestidade o compele a permitir que osoutros pensem dele aquilo que, diante de Deus, já confessou.

Mas longe dele aquiescer em seu pecado, pois ele tem fome esede de justiça; anseia crescer na graça e na bondade.

Vemo-lo, depois, junto aos outros, lá fora, nacomunidade humana. Seu relacionamento com Deus não o fazfugir da sociedade nem o isola do sofrimento do mundo. Pelocontrário, permanece no meio deste, demonstrandomisericórdia àqueles que foram golpeados pela adversidade epelo pecado. Ele é transparentemente sincero em todos os seusrelacionamentos e procura desempenhar um papel tão

construtivo como pacificador. Mas ninguém lhe agradecepelos esforços; antes, é hostilizado, injuriado, insultado eperseguido por causa da justiça que defende e por causa doCristo com o qual se identifica.

27 Bonhoeffer, p. 46 

Tal é o homem ou a mulher que é "bem-aventurado", istoé, que tem a aprovação de Deus e alcança realização própriacomo ser humano.

Mas, nisso tudo, os valores e padrões de Jesus estão emconflito direto com os valores e padrões comumente aceitos

pelo mundo. O mundo considera bem-aventurados os ricos,não os pobres, tanto na esfera material como na espiritual; osdespreocupados e folgazões, não aqueles que consideram omal com tanta seriedade que choram por causa dele; os fortese impetuosos, não os mansos e gentis; os saciados, não osfamintos; aqueles que cuidam de sua própria vida, nãoaqueles que se envolvem nos assuntos dos outros e se ocupamem fazer o bem, "demonstrando misericórdia" e "fazendo apaz"; aqueles que alcançam seus propósitos, mesmo apelandopara meios escusos, e não os limpos de coração, que se

recusam a comprometer sua integridade; aqueles que sãoconfiantes e populares e que vivem sossegados, não aquelesque têm de sofrer perseguição.

Provavelmente ninguém odiou mais a "suavidade" doSermão do Monte do que Friedrich Nietzsche. Embora sendofilho e neto de pastores luteranos, rejeitou o Cristianismoquando estudante. O seu livro, The Anti-Christ (O Anticristo,um título que ele ousou aplicar a si mesmo em seu esboçoautobiográfico Ecce homo),28  é a sua mais violenta polêmica,

escrita em 1888, um ano antes de ficar louco. Nele, definecomo sendo "bom" "tudo o que eleva o sentimento de poder, aforça de vontade, o poder propriamente dito no homem",considerando "mau" "tudo o que procede da fraqueza".29 

28 Primeira edição 1895: Penguin Classics 1968. 29

 p.15. 

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Conseqüentemente, em resposta à sua própria pergunta, "Oque é mais prejudicial do que qualquer vício?", ele responde:"Simpatia ativa pelo que é mal constituído e fraco: oCristianismo."30  Ele considera o Cristianismo como umareligião de piedade e não uma religião de poder; por isso,

"nada em nossa modernidade doentia é mais doentio do que apiedade cristã".31  Ele despreza "o conceito cristão de Deus,Deus como espírito", um conceito do qual "tudo o que é forte,corajoso, dominador, orgulhoso", foi eliminado.32 "Em todo oNovo Testamento, só encontramos uma única figura solitáriaque é preciso respeitar", ele afirma, e esta é Pôncio Pilatos, ogovernador romano.33  Jesus, por outro lado, é desprezadocomo sendo o "Deus sobre a cruz", e o Cristianismo como "amaior das desgraças da humanidade".34  A razão de suamalevolência está clara. O ideal que Jesus elogiou é a

criancinha. Ele não deu apoio algum ao elogio do "super-homem" de Nietzsche. Por isso, este repudiou todo o sistemade valores de Jesus. "Eu condeno o Cristianismo", escreveu. "Aigreja cristã não deixou nada intacto com sua depravação;transformou cada valor em um desvalor."35 Ele, pelo contrário(nas últimas palavras do seu livro), convocou a uma"reavaliação de todos os valores".36 

Mas Jesus não transigirá nos seus padrões paraacomodar-se a Nietzsche, ou aos seus seguidores, ou a

qualquer um de nós que possa, inconscientemente, ter30 p. 116. 31

 pp. 118-119. 32 pp. 127-128. 33

 p. 162. 34

 pp. 168ss 35 p.186. 36

 p.187. 

assimilado traços ou partes da filosofia do poder de Nietzsche.Nas bem-aventuranças, Jesus apresenta um desafiofundamental ao mundo não-cristão e ao seu ponto de vista, eexige que seus discípulos adotem o seu sistema de valores,totalmente diferente. Como Thielicke disse, "qualquer pessoa

que entre em comunhão com Jesus tem de passar por umareavaliação de valores".37 Foi isto que Bonhoeffer (que, aliás, foi criado na mesma

tradição luterana de Nietzsche) chamou de os"extraordinários" da vida cristã. "A cada nova bem-aventurança aprofunda-se o abismo entre os discípulos e opovo. A separação do discipulado torna-se cada vez maisevidente." Isso é particularmente óbvio na bênção dos quechoram. Jesus está falando dos que "não sintonizam com omundo, os que não podem equiparar-se ao mundo. Choram

sobre o mundo, sua culpa, seu destino e sua sorte. Enquanto omundo festeja, ficam à parte; enquanto o mundo chama:'Gozai a vida!', os discípulos choram. Sabem que o naviofestivamente engalanado já faz água. O mundo sonha com oprogresso, com o poder, com o futuro — os discípulos sabemdo fim, do juízo e da vinda do reino dos céus para o qual omundo não está apto. Por esta razão são os discípulosestranhos ao mundo, hóspedes indesejáveis, perturbadoresque são rejeitados."38 

Tal inversão dos valores humanos é básica na religiãobíblica. Os métodos do Deus das Escrituras parecem umaconfusão para os homens, pois exaltam o humilde e humilhamo orgulhoso; chamam de primeiros, os últimos, e de últimos,

37 p.77. 38

 pp. 58,59. 

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os primeiros; atribuem grandeza ao servo, despedem o rico demãos vazias e declaram que os mansos serão seus herdeiros. Acultura do mundo e a contracultura de Cristo estão em totaldesarmonia uma com a outra. Resumindo, Jesus parabenizaaqueles que o mundo mais despreza, e chama de "bem-

aventurados" aqueles que o mundo rejeita.