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e 4 CORREIO BRAZILIENSE Brasília, sábado, 10 de janeiro de 2015 Diversão&arte C M Y K C M Y K » JOÃO LANARI BO ESPECIAL PARA O C CO OR RR RE EI IO O Se algum acontecimento marcou o século 20, este foi, sem dúvida, a Segunda Grande Guerra. Ou apenas a grande guerra — há quem prefira situar os dois conflitos globais do século como um único fenômeno. Robert Gerwarth, o his- toriador que escreveu a notável biografia acadêmica recém- lançada pela Cultrix sobre Reinhard Heydrich, intitulada O carrasco de Hitler, calcula em 40 mil o número de livros so- bre a Segunda Guerra. Some-se um número análogo de fil- mes, e a resultante só pode ser uma nebulosa de referências, com muita mistificação e pouca objetividade. Seu estudo logrou um feito raro nesse cenário: combinar o rigor da pes- quisa acadêmica com uma escrita fluente e cativante. Sim, cativante, a despeito dos horrores perpetrados e/ou alavancados por Heydrich. A alcunha de “carrasco” lhe foi imposta pelo maior escritor alemão do século, Tho- mas Mann. Lidar com um trauma histórico dessas propor- ções não é fácil sob qualquer circunstância, ainda mais se o objeto do estudo foi um dos principais atores da cha- mada “solução final” dos judeus e outros grupos, como ciganos, testemunhas de Jeová, maçons, homossexuais, deficientes mentais, além de, pura e simplesmente, opositores políticos do nazismo. Uma sucessão de crimes inimagi- náveis para a civilização europeia dita hu- manista, que foram projetados e execu- tados racionalmente, como se fossem a aplicação de princípios consagrados de administração pública. A personalidade de Heydrich, em princípio um burocrata carreirista como tantos outros que circulam à nossa volta, não apresenta traços de um psicopata serial killer como supõe uma leitura superficial ins- pirada numa demonização carica- tural dos nazistas, consequência de uma indústria cultural ávida de lucros; ele tampouco foi um mero representante da “banalização do mal”, como sugere uma certa ima- gem de criminosos nazistas cristali- zada no imaginário popular a partir do famoso relato de Hanna Arendt sobre o julgamento de Adolf Eichmann em 1961 (Eichmann, aliás, trabalhou com Heydri- ch). O historiador se propôs, de saída, a des- pir a figura do seu biografado de todos os ex- tremos e falsas crenças. Não é tarefa fácil. A família Heydrich era relativa- mente abastada: o pai, músico erudito e compositor de óperas, foi proprietário de um conservatório de prestígio em Halle, perto de Berlim. Reinhard, que era um exímio violinista, viu a casa cair logo após a primeira grande guer- ra, que lançou a Alemanha numa espiral de turbulências políticas e alta inflação. Em sua cidade, como em várias ou- tras, milícias de extrema direita duelaram seguidamente contra grupos de esquerda. O jovem ambicioso ingressou na Marinha e passou os anos 20 à margem da pancadaria promovida pelos nazistas, até ser expulso da corporação por uma falsa promessa de noivado — patético exemplo do moralismo conservador dos militares prussianos, de efei- tos funestos. Conheceu, a seguir, sua futura esposa, Lina, nazista entusiasmada, que o levou a ingressar em 1931 na temível SS de Himmler. Para ele, frustrado com fracasso na Marinha, era uma chance de ouro de fazer uma “carreira rápida”. Tornou-se em pouco tempo o quadro mais próxi- mo de Himmler, que, por sua vez, era um dos nazistas mais próximos a Hitler, João Lanari Bo é professor de cinema da UnB. ANATOMIA DE UM AGENTE NAZISTA BIOGRAFIA DESMISTIFICA A FIGURA DE REINHARD HEYDRICH, COLABORADOR DE HITLER E UM DOS ARTICULADORES DO HORROR NOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL p nsar Trecho Se a percepção popular de Heydrich como o frio “administrador da morte” do Terceiro Reich persistiu praticamente sem contestação no decorrer dos anos, os princípios básicos em que essa imagem se apoia sofreram um meticuloso desgaste nas últimas duas décadas. Hoje está claro que a ideologia desempenhou um papel motivador fundamental para os oficiais veteranos da SS e que qualquer tentativa de tratá-los sumariamente como estranhos patologicamente perturbados é extremamente enganadora. No mínimo, os perpetradores da SS tendiam a ser mais instruídos que o alemão médio ou o europeu ocidental seus contemporâneos. Na maioria das vezes, eram jovens graduados na universidade, socialmente emergentes e ambiciosos, vindos de ambientes familiares perfeitamente íntegros, de modo algum elementos de uma minoria desajustada de extremistas saídos das margens criminosas da sociedade. Isolados em uma ilha No poder, Himmler e Heydrich iniciaram uma sistemática perseguição a tudo o que fosse hostil à ideologia nazista, de comunistas e ativistas antinazistas a supostos desvios da eugenia racial ideali- zada por Hitler e colaboradores. Os judeus eram um dos alvos mais visíveis, senão o mais visível, como se sabe, de ações terroristas de intimidação e políticas de deportação. Deportar os judeus da Alemanha e paí- ses anexados — Áustria, República Tcheca, logo Polônia — foi objeto de um enorme esforço político e logís- tico do qual Heydrich foi um dos principais articuladores. Possibilidades que hoje soam delirantes — depor- tar 4 a 5 milhões de pessoas para Madagascar e criar um “cordão sanitário” em torno da ilha — foram seria- mente consideradas. Na prática, deportar significava expulsar para países recém-conquistados grupos residen- tes de regiões anteriormente anexadas. A lógica do processo implicava no estabelecimento de sucessivos campos de deportados, sobretudo na Polô- nia, para os que conseguiam sobreviver à violência da expulsão. Com a invasão da União Soviética, a expectati- va era deportar todos esses grupos para os confins da Sibéria. Foi quando o esquema chegou ao limite: depois da batalha de Stalingrado, no começo de 1943, a derrota alemã começou a revelar-se inevitável, e o setor mais fanático da cúpula nazista reagiu passando a implementar o extermínio em massa, por meio das câmeras de gás, como forma de solução ágil e eficiente para o “problema”. Reinhard Heydrich não viveu para ver a queda do III Reich: foi assassinado aos 38 anos, em junho de 1942, na República Tcheca, onde fora nomeado governador por Hitler. Mesmo fora de Berlim, participava ativamente dos processos decisórios que levaram à “solução final”. Bertolt Brecht e Fritz Lang produziram um memorável filme nos EUA sobre o episódio, Os carrascos também morrem, em 1943. Enfurecidos com a morte de Heydrich, os nazistas executaram milhares de pessoas, in- clusive os habitantes do vilarejo onde se esconderam os responsáveis pelo assassina- to, Lídice. O tiro saiu pela culatra: Lídice virou símbolo da barbárie nazista, e em vários países, inclusive no Brasil, cidades foram rebatizadas de Lídice. Irô- nica e involuntariamente, como salienta o historiador Robert Gerwarth no seu excelente trabalho, Reinhard Heydrich acabou servindo de munição para a guerra de propaganda contra o Eixo. Reinhard Heydrich empreendeu uma perseguição sistemática a todos os que não aderiram à ideologia nazista O CARRASCO DE HITLER Robert Gerwarth/Ed. Cultrix 456 páginas/Preço: R$ 60 Reprodução de Internet Reprodução Internet

O Carrasco de Hitler

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Artigo - Jornal Correio Braziliense

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e4 • CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, sábado, 10 de janeiro de 2015 •Diversão&arte

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» JOÃO LANARI BOESPECIAL PARA O CCOORRRREEIIOO

Se algum acontecimento marcou o século 20, este foi,sem dúvida, a Segunda Grande Guerra. Ou apenas a grandeguerra — há quem prefira situar os dois conflitos globais doséculo como um único fenômeno. Robert Gerwarth, o his-toriador que escreveu a notável biografia acadêmica recém-lançada pela Cultrix sobre Reinhard Heydrich, intitulada Ocarrasco de Hitler, calcula em 40 mil o número de livros so-bre a Segunda Guerra. Some-se um número análogo de fil-mes, e a resultante só pode ser uma nebulosa de referências,com muita mistificação e pouca objetividade. Seu estudologrou um feito raro nesse cenário: combinar o rigor da pes-quisa acadêmica com uma escrita fluente e cativante.

Sim, cativante, a despeito dos horrores perpetradose/ou alavancados por Heydrich. A alcunha de “carrasco”lhe foi imposta pelo maior escritor alemão do século, Tho-mas Mann. Lidar com um trauma histórico dessas propor-ções não é fácil sob qualquer circunstância, ainda mais seo objeto do estudo foi um dos principais atores da cha-mada “solução final” dos judeus e outros grupos,como ciganos, testemunhas de Jeová, maçons,homossexuais, deficientes mentais, além de,pura e simplesmente, opositores políticos donazismo. Uma sucessão de crimes inimagi-náveis para a civilização europeia dita hu-manista, que foram projetados e execu-tados racionalmente, como se fossem aaplicação de princípios consagradosde administração pública.

A personalidade de Heydrich, emprincípio um burocrata carreiristacomo tantos outros que circulam ànossa volta, não apresenta traçosde um psicopata serial killer comosupõe uma leitura superficial ins-pirada numa demonização carica-tural dos nazistas, consequênciade uma indústria cultural ávida delucros; ele tampouco foi um merorepresentante da “banalização domal”, como sugere uma certa ima-gem de criminosos nazistas cristali-zada no imaginário popular a partir dofamoso relato de Hanna Arendt sobre ojulgamento de Adolf Eichmann em 1961(Eichmann, aliás, trabalhou com Heydri-ch). O historiador se propôs, de saída, a des-pir a figura do seu biografado de todos os ex-tremos e falsas crenças.

Não é tarefa fácil. A família Heydrich era relativa-mente abastada: o pai, músico erudito e compositor deóperas, foi proprietário de um conservatório de prestígioem Halle, perto de Berlim. Reinhard, que era um exímioviolinista, viu a casa cair logo após a primeira grande guer-ra, que lançou a Alemanha numa espiral de turbulênciaspolíticas e alta inflação. Em sua cidade, como em várias ou-tras, milícias de extrema direita duelaram seguidamentecontra grupos de esquerda. O jovem ambicioso ingressouna Marinha e passou os anos 20 à margem da pancadariapromovida pelos nazistas, até ser expulso da corporaçãopor uma falsa promessa de noivado — patético exemplo domoralismo conservador dos militares prussianos, de efei-tos funestos. Conheceu, a seguir, sua futura esposa, Lina,nazista entusiasmada, que o levou a ingressar em 1931 natemível SS de Himmler. Para ele, frustrado com fracasso naMarinha, era uma chance de ouro de fazer uma “carreirarápida”. Tornou-se em pouco tempo o quadro mais próxi-mo de Himmler, que, por sua vez, era um dos nazistas maispróximos a Hitler,

JoãoLanariBoéprofessordecinemadaUnB.

ANATOMIADE UMAGENTENAZISTA

BIOGRAFIADESMISTIFICAAFIGURADEREINHARDHEYDRICH,COLABORADORDEHITLEREUMDOSARTICULADORESDOHORRORNOSCAMPOSDECONCENTRAÇÃODURANTEASEGUNDAGUERRAMUNDIAL

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Trecho

Se a percepção popular deHeydrich como o frio“administrador da morte” doTerceiro Reich persistiupraticamente sem contestaçãono decorrer dos anos,os princípiosbásicos em que essa imagem seapoia sofreram um meticulosodesgaste nasúltimas duas décadas. Hojeestá claro que a ideologiadesempenhouum papel motivadorfundamental para os oficiaisveteranos da SS e quequalquer tentativa de tratá-lossumariamente como estranhospatologicamente perturbadosé extremamente enganadora.No mínimo, os perpetradoresda SS tendiama ser mais instruídos que oalemão médio ou o europeuocidental seuscontemporâneos.Na maioria das vezes, eramjovens graduados nauniversidade, socialmenteemergentes e ambiciosos,vindos de ambientes familiaresperfeitamente íntegros, demodo algum elementos deuma minoria desajustada deextremistas saídos das margenscriminosas da sociedade.

Isolados em uma ilhaNo poder, Himmler e Heydrich iniciaram uma sistemática perseguição a tudo o que fosse hostil

à ideologia nazista, de comunistas e ativistas antinazistas a supostos desvios da eugenia racial ideali-zada por Hitler e colaboradores. Os judeus eram um dos alvos mais visíveis, senão o mais visível, como se

sabe, de ações terroristas de intimidação e políticas de deportação. Deportar os judeus da Alemanha e paí-ses anexados — Áustria, República Tcheca, logo Polônia — foi objeto de um enorme esforço político e logís-

tico do qual Heydrich foi um dos principais articuladores. Possibilidades que hoje soam delirantes — depor-tar 4 a 5 milhões de pessoas para Madagascar e criar um “cordão sanitário” em torno da ilha — foram seria-mente consideradas. Na prática, deportar significava expulsar para países recém-conquistados grupos residen-tes de regiões anteriormente anexadas.

A lógica do processo implicava no estabelecimento de sucessivos campos de deportados, sobretudo na Polô-nia, para os que conseguiam sobreviver à violência da expulsão. Com a invasão da União Soviética, a expectati-va era deportar todos esses grupos para os confins da Sibéria. Foi quando o esquema chegou ao limite: depoisda batalha de Stalingrado, no começo de 1943, a derrota alemã começou a revelar-se inevitável, e o setor maisfanático da cúpula nazista reagiu passando a implementar o extermínio em massa, por meio das câmeras degás, como forma de solução ágil e eficiente para o “problema”.

Reinhard Heydrich não viveu para ver a queda do III Reich: foi assassinado aos 38 anos, emjunho de 1942, na República Tcheca, onde fora nomeado governador por Hitler. Mesmo fora

de Berlim, participava ativamente dos processos decisórios que levaram à “solução final”.Bertolt Brecht e Fritz Lang produziram um memorável filme nos EUA sobre o episódio,

Os carrascos também morrem, em 1943.Enfurecidos com a morte de Heydrich, os nazistas executaram milhares de pessoas, in-

clusive os habitantes do vilarejo onde se esconderam os responsáveis pelo assassina-to, Lídice. O tiro saiu pela culatra: Lídice virou símbolo da barbárie nazista, e em

vários países, inclusive no Brasil, cidades foram rebatizadas de Lídice. Irô-nica e involuntariamente, como salienta o historiador Robert

Gerwarth no seu excelente trabalho, Reinhard Heydrichacabou servindo de munição para a guerra de

propaganda contra o Eixo.

ReinhardHeydrich empreendeu umaperseguição sistemática a todos os

que não aderiramà ideologia nazista

O CARRASCO DE HITLER

Robert Gerwarth/Ed. Cultrix456 páginas/Preço: R$ 60

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