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O CETICISMO PIRRÔNICO E OS PROBLEMAS FILOSOFICOS OSWALDO PORCHAT PEREIRA Universidade de São Paulo ABSTRACT This paper develops two main themes in the first place, one tries to make clear how, from the pomt of view of our contem- porary phdosophteal deas, a retrospective tnterpretatton of Greek sceptic pyrrhonism allows us to read it, not only as a questioning of the theses and arguments of dogmatic phtlosophy, but as a questioning, too, of the very legitimity of the tradi tional plulosophwal problems and plulosophical language But the second part of the text is a "positive" one, which proceeds to an analysis of the relatton between a phenomentc and a dog- matic levei of language and, then, explatris how the idea of a philosophical investigation of problems formulated In the phe nomenic levei is plainly compatible with (neo)pyrrhonic phdoso phy And a discussion is undertaken of the relation between problems formulated in one and another leveis Principia, 1(1) (1997) pp 41 107 Published by Editora da UFSC, and NEL — Epistemology and Logic Research Group, Federal University of Santa Catarina (UFSC), Brami By agreement of the editors, this paper was to be pubhshed simultaneously in this journal and In Cadernos de Historia e Filosofia da Ciencia (series 3, vol 6, special issue, 1996), published by the Center for Logic, Epistemology and History of Science, University of Campinas Because of some delay in the editorial work of Principta's first issue, the special issue of the Cadernos came first to the public The present version of the paper differs from that one in minor details only

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O CETICISMO PIRRÔNICOE OS PROBLEMAS FILOSOFICOS

OSWALDO PORCHAT PEREIRA

Universidade de São Paulo

ABSTRACT

This paper develops two main themes in the first place, onetries to make clear how, from the pomt of view of our contem-porary phdosophteal deas, a retrospective tnterpretatton ofGreek sceptic pyrrhonism allows us to read it, not only as aquestioning of the theses and arguments of dogmatic phtlosophy,but as a questioning, too, of the very legitimity of the traditional plulosophwal problems and plulosophical language Butthe second part of the text is a "positive" one, which proceeds toan analysis of the relatton between a phenomentc and a dog-matic levei of language and, then, explatris how the idea of aphilosophical investigation of problems formulated In the phenomenic levei is plainly compatible with (neo)pyrrhonic phdosophy And a discussion is undertaken of the relation betweenproblems formulated in one and another leveis

Principia, 1(1) (1997) pp 41 107 Published by Editora da UFSC, andNEL — Epistemology and Logic Research Group, Federal University ofSanta Catarina (UFSC), Brami By agreement of the editors, this paperwas to be pubhshed simultaneously in this journal and In Cadernos deHistoria e Filosofia da Ciencia (series 3, vol 6, special issue, 1996),published by the Center for Logic, Epistemology and History ofScience, University of Campinas Because of some delay in theeditorial work of Principta's first issue, the special issue of the Cadernoscame first to the public The present version of the paper differs fromthat one in minor details only

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1 Ao longo da historia de nossa tradição cultural, pensa-dores que foram chamados de filosofos examinaram e dis-cutiram os mais variados temas Eles reconheceram, dia-gnosticaram, formularam e tentaram resolver um numeroimpressionantemente grande de problemas a que habitual-mente se chama problemas filosoficos No mais das vezes,desenvolveram metodos sistematicos de abordar tais pro-blemas e de encaminhar suas soluções Fizeram depender assoluções que propuseram da progressão metodica dos mo-vimentos argumentativos que a elas conduziram De ummodo geral, entenderam que essas soluções se fazem aceita-veis por força de tais argumentos e da maneira toda por queforam construidos Nenhuma tese filosofica se avança semque se vise a sua aceitabilidade Todo filosofe= que sepropõe se quer aceitavel — e, no limite ideal, aceito — pelacomunidade-dos seres racionais Melhor dizendo pela por-ção desta comunidade que e capaz de lidar com a proble-manca filosofica

Vale acrescentar que a pretensão de aceitabilidadeinerente a proposição de teses filosoficas compreensivelmen-te se estende as argumentações que as estabelecem Nempoderia ser de outra maneira, se as teses se fazem solidariasdessas argumentações, se sua aceitação deve destas resultarE, pela mesma razão por que não se dira filosofico um dis-curso que se apresenta como um mero elenco de teses, dir-se-a ma filosofia um discurso que constroi mal a argumen-tação que supostamente deveria conduzir a aceitação desuas teses, que não se faz aceitavel pelo leitor (ou ouvinte)porque sua progressão argumentativa e deficiente, ou por-que a ordem de suas razões e obscura ou menos intehgivel,

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resistindo a toda tentativa razoavel de compreendê-la Afilosofia não e um empreendimento privado

De qualquer modo, um filosofemo se propõe comosolução — ou parte da solução — de um problema filosofi-co Nesse sentido, se pode dizer que filosofemos são tesesproblematicas Teses que não se impõem, por si mesmas anossa aceitação Portanto, teses que podem, ou não, seraceitas e isso porque sua aceitação depende, precisamente,do endosso do leitor (ou ouvinte) a argumentação que ofilosofo expende para sustenta-la Não se empenhara filoso-fo nenhum em construir argumentos, que por vezes sãolongos e complexos, para sustentar uma proposição trivial enão-problematica, cuja aceitação tranquila prescinde dequalquer argumentação Se, por vezes, o filosofo concluiseu longo esforço argumentativo pela proposição de umatese aceita pelo senso comum, e porque tal tese se fizera, natradição filosofica, filosoficamente problematica e fora, tal-vez, rejeitada ou desqualificado pelos filosofos

Se assim e — assim, ao menos, me aparece que seja—, parecera nada menos que paradoxal perguntar sobre aexistencia de problemas filosoficos Mesmo quando não setenham preocupado com formular e discutir explicitamentea noção de problema filosofico, parece adequado dizer queos filosofos não fazem outra coisa senão deles ocupar-se,esse e o seu negocio e profissão O reconhecimento impila-to da existencia de tais problemas e o pressuposto obvio daatividade filosofica Donde parecer impor-se que a perguntasobre a existência de problemas filosoficos, para que ela façasentido, somente pode entender-se como pergunta sobre alegitimidade dos problemas filosoficos, sobre sua validade eefetiva significatividade E o fato de a pergunta ser formu-lada traduz claramente o surgimento de uma duvida sobreessa legitimidade, validade e significatividade Ao aceitar

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ocuparmo-nos de tal pergunta, o fazemos seja porque ali-mentamos uma tal duvida, seja porque outros a têm ali-mentado e a questão nos aparece suficientemente seria edigna de nossa atenção, merecendo que com cuidado aexaminemos, eventualmente propensos a contribuir paraque a duvida não prospere ou mesmo para que se dissipe,total ou parcialmente

Perguntar pela legitimidade dos problemas filosofi-cos e perguntar pela sua aceitabilidade, enquanto proble-mas, pelo auditono formado pela comunidade racional aque o filosofo sempre se dirige Os filosofemos somente sepodem propor como aceitaveis porque estabelecidos porargumentações aceitaveis, dissemos acima Mas os filosofe-mos e as argumentações que neles resultam somente se di-rão acertaveis se os filosofemos se propõem como soluçõespara problemas que se reconhecem como tais, como per-guntas que cabe formular e para as quais cabe elaborar so-luções Indagar se um assim denominado problema filosofi-co e legitimo e, então, indagar se, no exercia° pleno denossa racionalidade, o que quer que possa significar essaexpressão, devemos, ou podemos, aceita-lo como um pro-blema a ser, ao menos tentativamente, resolvido por nossareflexão filosofica Esta qualificação, "filosofica," e impor-tante Isto porque falar propriamente de legitimidade e acei-tabilidade de problemas filosoficos pressupõe alguma formade demarcação entre os problemas que se dirão filosoficos eos que assim não serão chamados, problemas praticos, po-liticos, culturais, religiosos, cientificos, etc Recusar a espe-cificidade do filosofico e recusar a existencia de problemasque se possa adequadamente distinguir de outros que nãoseriam denominados filosoficos

Uma coisa parece absolutamente obvia Se os fi-losofos profissionalmente se ocupam de problemas filo-

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soficos, se para resolve-los elaboram soluções e desenvolvemestrategias argumentativas que alegadamente as justificam,pode-se dizer que estão sempre pelo menos implicitamente areconhecer, no mesmo exercia° de sua atividade filosofan-te, a legitimidade dos problemas de que se ocupam Indagarda legitimidade dos problemas filosoficos, de todos ou deum certo numero ou de uma certa classe deles, e claramen-te, então, por em suspeição, no todo ou em maior ou me-nor parte, esse mesmo reconhecimento e tambem, obvia-mente, a validade dessa mesma atividade filosofante Pois eindagar se os filosofos que se ocuparam dos problemas cujalegitimidade pomos em questão não se terão ocupado, ain-da que disso não se tenham apercebido, de meros pseudo-problemas

Indagar da legitimidade de problemas filosoficos eobviamente problematiza-la E essa problematização, nãovejo como não clizê-la filosofica Porque seu tema e a pro-blemática filosofica, porque tem aquele escopo abrangenteque caracteriza a filosofia em relação a todas as outras for-mas da atividade Intelectual, porque não se vislumbra comopoderia ser pertinente ao dorturno de qualquer disciplinacientifica Aristoteles não tinha certamente outra coisa emmente quando escreveu, em seu Protreptikos "se se deve fi-losofar, se deve filosofar e, se não se deve filosofar, se devefilosofar, de todos os modos, portanto, se deve filosofar" (Etmen Nulosopheteon plulosopheteon kat et me plulosopheteonphilosopheteon, pantos ara philosopheteon )2 Em suma, aoexaminar a questão da legitimidade de todos ou de algunsproblemas filosoficos, esta-se irrecusavelmente a proceder auma problematização filosofica, isto e, esta-se exercendo aatividade filosofica de problematizar

Essas considerações equivalem, por certo, a uma re-

ductio ad absurdum de toda tentativa de recusar legitimidade

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a todo problema filosofico Porque, sendo a indagação sobrea legitimidade de problemas filosoficos uma problematiza-ção filosofica, proceder a uma tal indagação implica, então,em reconhecer a legitimidade de pelo menos um problemafilosofico, esse precisamente que se levanta ao efetuar a in-dagação Nossa investigação filosofica sobre a legitimidadede problemas filosoficos necessariamente repousa, então,sobre um tal reconhecimento

Por outro lado, no entanto, nada nos obriga a es-tender esse reconhecimento de legitimidade a todo proble-ma filosofico Ressalvada a legitimidade em geral de nossaatividade filosofica problematizadora, ela se pode direcionarno sentido de problematizar, precisamente, a legitimidadede muitas problematizações filosoficas, isto e, de criticar filo-soficamente a atividade filosofante que instaurou essasproblematizações Nada nos impede a priori de nos dispor-mos a investigar, se isso nos parecer conveniente e razoavel,se muito assim chamado problema filosofico não se poderiamais adequadamente de fato classificar como pseudopro-blema

E a filosofia do seculo XX tem procedido a esse auto-questionamento Como disse Manuel M Carrilho "Umdos temas que singularizam, disciplinar e tematicamente, afilosofia no nosso seculo, e o da sua autoquestionação, o dasua persistente e funda interrogação sobre a natureza e ajustificação de sua actividade no contexto do mundo con-temporâneo Esta interrogação conduz, de um modo geralmas muito significativo, a tematica da especificidade daproblematzadade filosofica e, mais precisamente, em particu-lar desde a decada de 20, a questão de saber se existem ounão problemas fdosoficos " (Carrilho 1994, p 21)

Em verdade, num certo sentido, pode-se dizer que,ao longo de sua historia, a filosofia com frequencia proce-

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deu a um tal auto-questionamento, ao menos de modoparcial A critica dirigida pelo empirismo dassico a filosofiaanstotelico-tomista, a critica kantiana da metafisica, a criti-ca hegeliana da filosofia classica são alguns exemplos nota-veis de problematização filosofica de certos estilos e manei-ras de fazer filosofia, que implicaa ou explicitamente signifi-caram a desqualificação de vastas classes de problemas filo-soficos com que se tinham ocupado as filosofias criticadasDe modo muito mais abrangente e contundente, em nossoseculo, o empirismo logico, a filosofia do segundo Wingens-tem, a filosofia da linguagem ordmana, o neopragmatismosão outros tantos exemplos conspicuos de denuncia radicaldas formas "dassicas" de filosofar, implicando uma devasta-dora dissolução das problemancas filosoficas tradicionais,em sua totalidade, ou quase totalidade Assim, com o em-pirismo logico, as proposições "metafisicas" são despidas dequalquer significado cognitivo e, com o segundo Watgens-tem, os problemas filosoficos se convertem em pseudopro-blemas, cuja origem esta tão-somente no mau uso de nossalinguagem cotidiana Embora apenas Wittgenstem se sirvaexpressamente da metafora, 4 creio adequado dizer que essasvarias figuras do auto-questionamento filosofico propno acontemporaneidade concebem de algum modo sua propnapostura como uma forma de terapia, uma terapia dirigida atentativa de curar o intelecto da enfermidade configuradapelo exeraao da atividade filosofica tradicional E a filoso-fia que decididamente se empenha em sua auto-dissolução

Não precisamos aqui proceder ao exame e analisedesses empreendimentos, alias sobejamente conhecidos e,em nossos dias, amplamente discutidos O que nos interes-sa realçar e que, em todos esses casos, não se trata apenasde problematizar a legitimidade dos problemas filosoficos,mas de efetivamente recusa-la, mediante a total desquahfi-

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cação das formas filosoficas de que eles são irrecusavelmen-te solidanos Uma desqualificação a que se procede demodo radical e peremptono, com base seja numa teoria dosignificado, seja numa concepção nova da linguagem, sejanuma concepção geral da propna atividade filosofica Sãoessas teorias e concepções — ainda que por vezes, como nocaso de Wittgenstem, sem a estrutura aparente de uma or-ganização teonca — que fornecem os alegados cntenos deafenção da ilegitimidade dos problemas denunciados Emoutras palavras, a denuncia da ilegitimidade encontra, emcada caso, seu fundamento e justificação numa particularpostura positiva que definitivamente se assume, envolvendosempre não apenas articulações determinadas de certosproblemas eminentemente filosoficos, mas tambem umadefinição dirimente quanto a natureza mesma da atividadefilosofante Postura da qual aquela mesma denuncia inelu-tavelmente, então, decorre Mas isso nos permite, então,dizer que tais desqualificações dos problemas filosoficos so-mente se produzem no interior de quadros definidos poropções filosoficas particulares

Isso significa, portanto, que a eventual aceitaçãodessas desqualificações de problemas filosoficos dependeintrinsecamente da adoção daquelas posturas e definiçõesfilosoficas positivas em cujo âmbito elas tem lugar Ora, taisposturas e definições são, como quaisquer outras no dorm-mo da filosofia, objeto de discussão e controversia, sãoeminentemente problematicas e, como e natural e costu-meiro, são por muitos filosofos rejeitadas Tais teorias filo-soficas, como quaisquer outras, têm seus metodos e resulta-dos no mais das vezes contestados Nem se ve como poderiaser de outra maneira Dai necessariamente se segue a mani-festa problemancidade daquelas desqualificações de pro-blemas A mesma problemanzação que se levara a cabo se

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faz controversa e problematica Ela somente não apareceproblematica e uma desqualificação radical de problemasfilosoficos somente parece lograr-se para quem decidida-mente assume uma postura filosofica dogmatica (no sentidoque o ceticismo pirrônico deu a essa expressão), para quemefetua uma opção filosofica particular e, nela entnncheira-do, se pronuncia, coerentemente com o ponto de vista as-sumido, sobre a natureza do filosofar e de seus problemas

Como corolario de tudo que vimos, de um lado apa-rentemente resulta uma banalização da questão da legitimi-dade dos problemas filosoficos conforme a postura filosofi-ca que eventualmente adotemos, diremos, ou não, que talou qual classe de problemas, ou que a maioria deles, oumesmo que a totalidade dos problemas tradicionais carecemde legitimidade Por outro lado, fica claro que a problemati-zação de problemas filosoficos e sempre objeto possivel deproblematização, que esta ultima, se levada a efeito, tam-bem pode, por sua vez, ser objeto de nova problematizaçãoe, assim, ao infinito

Mas não e menos certo que, uma vez levantada aquestão da legitimidade dos problemas filosoficos, um novoe fundamental problema filosofico se configurou, um pro-blema que uma reflexão critica sobre a filosofia não maispodera ignorar e tem necessariamente de abordar, o pro-blema precisamente dessa discutida legitimidade Porque daproblematicidade da problematização da legitimidade denenhum modo decorre que a legitimidade esteja assegura-da Se não vemos como tal legitimidade se possa recusarsem dogmatizar, paradoxalmente não vemos tambem comose possa tranquilamente filosofar sem abordar de frente talproblema são legitimos os problemas tradicionais da filo-sofia? Proceder como se a questão não tivesse sido levanta-da seria filosoficamente ingenuo e decorreria de uma pres-

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suposição implicita de legitimidade, em ultima analise nãomenos dogmatica que o dogmatismo oposto que se estariaquerendo evitar Nosso esforço por refletir criticamente nãopôde estabelecer a ilegitimidade dos problemas filosoficos,mas bastou empreendê-lo para que a legitimidade dessesproblemas se nos manifeste agora como eminentementeproblematica O =passe filosofico a que fomos conduzidosparecer-nos-ia, a primeira vista, incontornavel

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2 Falemos agora, um pouco, de ceticismo e recordemos apostura dos ceticos com relação a filosofia por eles ditadogmatica O pirrônico entende por dogmanco o discursoque pretende ter capturado a realidade, ou natureza, ou es-sência, das coisas com que se ocupa, que se julga capaz dedizer adequadamente o que e o caso, exprimir um conheci-mento definitivo de seu objeto,' em suma, o discurso talco,'cuja mesma pretensão o converte num discurso sobre onão-aparente (adelon), o não-evidente, o transcendente, oque se postula para alem da experiência imediata Entretan-to, a experiência sempre renovada do pluralismo conflitualdas soluções propostas pelas filosofias para seus problemas,da oposição permanente das filosofias umas as outras, dacontroversia sempre renascente sobre metodos e criteriospretensamente destinados a resolver essas controversias, dapossibilidade de opor a todo discurso tenco um outro dis-curso não menos persuasivo e contraditono em relaçãoaquele, com ele, portanto, isostenico, 7 da indecidibilidade detais situações conflituais, 8 tudo isso levou connnuadamenteo cetico a suspender seu juizo sobre cada discurso dogman-co Sua suspensão de juizo (epokhe) e tão-somente o não

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O Ceticismo Pirronico e os Problemas Filosoficos

poder optar por uma das teses em conflito,9 em virtudeprecisamente da analise critica a que as submeteu

Por certo, o cetico não pode extrair de sua experi-encia das suspensões de juizo que inexoravelmente se lhevão impondo ao longo de suas investigações qualquer tesegeral sobre a impossibilidade do conhecimento ou a impos-sibilidade de obter-se a verdade Uma tal tese, necessaria-mente transcendendo o ambito de suas experiencias, confi-guraria claramente um posicionamento dogmatico sobre anatureza do conhecimento ou da verdade Uma tal posturaepistemologica negativista, Sexto Empirico a atribui aosfilosofos Academicos e expressamente a rejeita 10

De outro lado, porem, a repetição constante da ex-perienaa suspensiva, que se renova em todo processo deinvestigação, leva compreensivelmente o cetico a perder aesperança de estabelecer qualquer resultado definitivo, depoder articular um conhecimento seguro do que e o caso,de encontrar a verdade com que acena a filosofia dogmati-ca Em outras palavras, não tem o cetico a expectativa devir jamais a encontrar uma solução para os problemas filo-soficos com que os filosofos dogmaticos se ocupam A tran-quilidade que segue a suspensão cetica do juizo' parece-meindissociavel desse desaparecimento do anseio primitivopela verdade, anseio perturbador sobretudo porque acom-panhado da consciência das multiplas soluções conflitantespara os problemas considerados

Se o cetico pirrônico caracteriza sua filosofia comozetetica, como uma investigação permanente,' e porque orenascer frequente do desafio dogmatico e a mesma impos-sibilidade de uma solução pretensamente definitiva para taldesafio — precisamente porque ela seria tambem dogmatica— deixam a problernatica filosofica necessariamente emaberto, convidando continuadamente o cetico ao exercia°

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de sua investigação critica Nem positiva nem negativamen-te, não tem o cetico nenhum problema por resolvido Nessesentido, sua suspensão de juizo e sempre provisoria, emborade uma provisoriedade que, por assim dizer, indefinidamen-te se renova, sem que se justifique qualquer esperança deque seja superada

Poderia parecer que essa mesma natureza da suspen-são cetica do juizo equivale implicitamente ao reconheci-mento da legitimidade dos problemas filosoficos considera-dos Ao examinar detalhadamente as soluções conflitantes,ao reconhecer-se incapaz de decidir entre elas, ao não optarpor nenhuma delas, ao reconhecer que a problematicacontinua em aberto, tudo pareceria indicar que o ceticoesta implicitamente reconhecendo tambem que os proble-mas estudados fazem sentido Tanto mais que, em face deum eventual — e não infrequente — desequilibrio que pare-ça favorecer uma das teses em disputa, o cetico costumei-ramente se empenha em desenvolver a argumentação emfavor da tese oposta e momentaneamente em aparenciamais fraca, de modo a revelar a isostheneict, a igualdade deforça entre as partes em conflito que conduz a suspensão dejuizo Na discussão das questões suscitadas pelo dogmatis-mo, o cetico pratica o metodo das antinomias, opondo tesea tese, argumento a argumento, por vezes empenhando-seem melhor elaborar ou mesmo em construir toda uma ar-gumentação, construida, tambem ela, a maneira dogmattca,contra as teses propostas por alguma filosofia que aindanão tenha sido objeto de contestação melhor articuladaNesses casos, e certo que, mesmo ao inventar e desenvolver"seus" argumentos, não esta o cetico por certo a endossa-losnem a toma-los como argumentos propriamente ceticos, emverdade, seu procedimento e tão-somente dialetico, um ins-trumento em direção a esperada epokhe 13 De qualquer

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modo, toda essa pratica argumentativa pareceria, tambemela, confirmar a hipotese do reconhecimento implicao dalegitimidade dos problemas filosoficos dogmaticos Alias,convem não esquecer que a questão da legitimidade ou ile-gitimidade dos problemas filosoficos não foi trabalhada pelafilosofia grega classica ou helenistica

3 Se abandonamos, no entanto, por alguns momentos, oceticismo grego e refletimos sobre essa questão, tal como elapara nos hoje se delineia, imediatamente compreendemosque, em face da controversia a seu respeito e do confrontoentre as filosofias denunciantes e as filosofias denunciadas,um pirronico — ou um neopirronico 14 — não deveria hesi-tar em falar de um conflito de dogmatismos Se os que de-fendem a legitimidade dos problemas filosóficos dogmaticosvalorizam manifestamente uma forma transcendente depensar que pretensamente captura seu objeto em sua mes-ma natureza para alem da empeiria e de quanto nos aparece,tambem os que a tem contestado levam costumeiramente acabo sua contestação a partir de prmapios e pontos de vis-ta filosoficos positivos cuja natureza, em ultima analise, nãoe menos dogmatica, no sentido cetico deste termo Assimcomo dogmática e a formulação de suas peremptórias con-clusões, que pretendem estabelecer de modo definitivo ailegitimidade dos problemas tradicionais O paralelo com apostura adotada, segundo Sexto, pelos filosofos da NovaAcademia com respeito a questão do conhecimento da ver-dade parece impor-se Estes julgavam poder estabelecer quea verdade e inapreensivel, os filosofos contemporaneos queimpugnam a legitimidade dos problemas filosoficos tradici-onais julgam ter estabelecido de modo concludente a tesede sua ilegitimidade E quando Watgenstem rejeita comopseudoproblemas os problemas filosoficos tradicionais, o

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estilo de seu discurso deixa-nos a impressão de que o filoso-fo pretende ter mostrado de modo definitivo e conclusivo onão-sentido daqueles problemas'

Ao neopirronico não resta, por isso mesmo e umavez mais, outra postura que a da suspensão do juizo em facedesses dogmatismos confinantes Ele e levado a reconhecer-se incapaz de optar entre as argumentações e teses rivais,incapaz, portanto, de concluir que os problemas filosoficosem questão são legitimos, ou que, ao contrario, são ilegal-mos Não ve como se poderia estabelecer, de maneira defi-nitiva, uma ou outra posição Fica-lhe patente que nãopode reconhecer legitimidade aos problemas filosoficos tra-dicionais, precisamente porque essa mesma legitimidade semostra fortemente controvertida no seio mesmo da filosofiadogmatica e o cetico não pode ignorar essa controversiaPor razão analoga, tambem ele se ve impedido de asserir avalidade da tese oposta que proclama a ilegitimidade dosproblemas Como as outras questões filosoficas sobre asquais o cetico se debruçou, a da legitimidade ou ilegitimi-dade dos problemas filosoficos permanece para ele umaquestão em aberto

Por outro lado, tendo-se familiarizado agora comuma tal controversia, não pode o neopirronico não projeta-la sobre sua costumeira atitude em face de qualquer pro-blema filosofico tradicional, atitude que herdou do pino-nismo antigo Debruçando-se sobre qualquer um dessesproblemas, analisando e desenvolvendo as argumentaçõesopostas que levam as conclusões confinantes, o neopirroni-co tera sobre cada problema uma perspectiva por assim di-zer enriquecido, sua epokhe tornando-se de algum modomais complexa sua não-opção agora sera entre a legitimi-dade do problema em pauta — a qual, mesmo se aceita, nãoimplicaria em opção por uma das teses rivais — e a sua ile-

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O Ceticismo Pirronico e os Problemas Filosoficos

gitimidade — caso em que, obviamente, a questão da opçãoentre as teses nem mesmo se colocaria

Mas não somente isso A experiência da controver-sia sobre a legitimidade, propiciada ao neopirronico pelafrequentação da filosofia contemporânea, vem agora per-mitir-lhe uma leitura retrospectiva da postura do cenco pir-ronico antigo, iluminada pela nova problematica Postura aque o neopirrônico, alias, permanece integralmente fiel emseus pontos fundamentais Ele se da, porem, conta de quevanos aspectos dessa postura se podem, em verdade, ade-quadamente considerar sob nova otica, sobretudo se secuida de não cometer o anacronismo de atribuir ao cencogrego a adoção de uma leitura que claramente resulta daprojeção sobre o passado de nossas perspectivas atuais Se oanacronismo, porem, conscientemente se evita, a projeçãose faz valida e seus resultados se mostram filosoficamenteinteressantes

4 Em pnmeiro lugar, com efeito, se pode recordar que eum procedimento frequente de Sexto Empinco dividir seuquestionamento de teses dogmáticas em duas etapas a pri-meira diz respeito a inteligibilidade dos conceitos envolvi-dos nessas teses, a segunda, pressupondo-se, para fins me-todologicos, que essa inteligibilidade não esta em questão,concerne diretamente a aceitabilidade das teses (nos textosde Sexto, boa parte das teses examinadas se formula comoasserções de existência correspondentes a conceitos funda-mentais das doutrinas dogmaticas, tais como criteno, signo,prova, corpo, espaço, tempo, etc ) 16 Assim, ao discutir adoutrina dogmatica que faz do homem o cri-tem da verda-de, Sexto principia por mostrar que "o homem parece , noquanto concerne ao que e dito pelos dogmancos, ser/ nãoapenas inapreensivel (akataleptos), mas tambem inconcebi-

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vel (aneptnoetos) (H P II, 22) E acrescenta "querendo esta-belecer o seu conceito (ennota), em primeiro lugar não sepõem de acordo, em segundo dizem tambem coisas ininte-ligiveis 17 Tambem ao iniciar a discussão sobre osigno indicativo, pretensamente capaz de significar-nos arealidade de coisas não-evidentes a partir de coisas que nossão evidentes, Sexto nos diz "Ora, o signo, no quanto con-cerne ao que e dito sobre ele pelos dogmaticos, e inconce-bivel (aneptnoeton)" (H P II, 104), a sequência do texto con-sagrando-se a mostrar por que isso ocorre Em H P III, 13,a investigação sobre a causalidade começa com as palavras"Ora, no quanto concerne ao que e dito pelos dogmancos,não se poderia conceber (ennoesat) a causa, se e certo que,alem de proporem conceitos (ennown) discrepantes(chaphonous) e diferentes de causa, tambem tornaram suarealidade insuscetivel de descobrir-se, devido ao desacordo(dtaphonta) sobre ela" E, para tomar um ultimo exemplo,consideremos a discussão sobre a realidade absoluta dotempo em A M VIII, no decurso da qual, apos examinaralguns conceitos de tempo propostos por filosofos anterio-res, entre os quais Anstoteles, e antes de proceder a umaargumentação direta contra a asserção da realidade do tem-po, Sexto comenta "sejam estas então nossas consideraçõessobre as dificuldades que dizem respeito a realidade dotempo, a partir de sua concepção (eptnotas)" (A M VIII,1881i189)

O que todas essas passagens tornam claro e que, aosolhos do cetico pirronico, os conceitos envolvidos nas tesesdogmaticas e que supostamente correspondem as realidadesnão-evidentes que se pretendem conhecer padecem degrande obscuridade, seja porque se apresenta uma persis-tente discrepancia (dtaphonta) acerca da propna conceitua-ção, seja porque, como a discussão pormenorizada dessas

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concepções o mostra, delas decorrem consequenaas quetornam problemanca a mesma aceitação dessas pretensasrealidades O que permite dizer que a propna significativi-dade das teses se faz inalcançavel e irremediavelmente pro-blematica Mais não e, então, preciso para que, lendo essestextos sob a luz atual de nossa investigação sobre a legitimi-dade dos problemas filosoficos, nos vejamos autorizados adizer que, ao insistir assim sobre a problematiadade e afundamental obscuridade dos conceitos — ou de, ao menos,boa parte dos conceitos — utilizados pela filosofia dogmati-ca, o cetico antigo estava de fato a questionar a mesma le-gitimidade do discurso filosofico tradicional e, por conse-guinte, dos problemas com que ele lidava Como tratar daapreensão de certas pretensas realidades, se, como os filoso-fos adversamos, eles propnos, reconheciam, "a concepção(eptnota) precede toda apreensão (katalepsts)" (A M VII,263) e nem mesmo a concepção adequadamente se logra?Não pretendeu jamais o cetico pirronico, isto e certo, terestabelecido aquela ininteligibilidade, mas entendeu termostrado de modo irrecusavel o carater duvidoso da inteli-gibilidade pressuposta

Por outro lado, quando o cenco antigo, tendo em-bora posto em duvida a inteligibilidade dos conceitos dog-mancos com que esta lidando, passa a questionar direta-mente as teses que envolvem tais conceitos, mostrandocomo argumentações não menos fortes que as empregadaspara sustenta-las podem seriamente contradita-las, por issodesenvolvendo dialeticamente, por exemplo, argumentoscontra pretensas realidades postuladas pelos filosofos (a queos conceitos corresponderiam) ou contra sua apreensibili-dade, ele esta muitas vezes apenas pressupondo, por razõesmetodologicas, que os conceitos envolvidos se tivessemmostrado suscetiveis de uma compreensão clara e não-

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problematica Assim, apos mostrar que não se pode conce-ber adequadamente o ser humano a partir do discursodogmatico e segundo suas proprias exigências, Sexto diz(H P II, 29) "Mas, ainda mesmo que aceitassemos, porconcessão, que o homem pode ser concebido (epinoeisthal),

ele se descobrira inapreensivel," e uma longa argumentaçãose expende nessa direção lambem em H P III, 23, aposarguir a inconcebibilidade da noção de causa e antes depassar a argumentação contra a sua apreensibilidade, assimse exprime Sexto "E mesmo se se concordasse em que acausa pode ser concebida (ennoeistha,), poder-se-ia julgarque ela e inapreensivel devido a discordância (dzaphonta) "

Muitos outros exemplos desse tipo poderiam facilmente serlembrados, todos deixando claro que o uso do metodo ceti-co das antinomias, isto e, da argumentação dialetica con-traditoria que visa levar ao reconhecimento da equipolenciade teses dogmaticas entre si conflitantes, de modo nenhumpressupõe, se não apenas por razões de metodo, que se te-nha definitivamente aceito a significativtdade plena do dis-curso dogmatico Ou, para voltar a nossa problematica e anossa otica contemporânea, não ha por que considerar oengajamento do pirronico no desenvolvimento e articula-ção da problematica dogmatica como implicitamente equi-valente a um qualquer reconhecimento da legitimidade dosproblemas filosoficos tradicionais sobre os quais ele se de-bruça criticamente

5 Mas ainda ha mais Vimos acima que o cetico e levadopela repetição constante de sua experiencia suspensiva emface de todos os problemas filosoficos tradicionais por eleinvestigados a perder compreensivelmente toda esperançade vê-los um dia resolvidos Isto e, não vê o cetico comoconfiar em que a investigação filosofica conduza a solução

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de qualquer desses problemas Se enfrenta decididamentenovas questões que os dogmaticos lhe propõem, não e mais— como dantes o era, quando não se tornara ainda cetico— por anelar pela verdade e empenhar-se em dar-lhes res-posta, mas tem somente em vista a perspectiva da epokhe ea preservação da tranquilidade que a experiência lhe ensi-nou resultar daquela Porque sua memona somente lhe en-sina a conjunção constante entre a investigação filosoficade um tema e a suspensão de juizo que a investigação sem-pre sobrevem 18 Muito natural e, então, que a partir dai sedesenvolva uma desconfiança crescente com relação aodogmatismo e ao seu discurso Desconfiança, alias, que ex-pressamente se formula nos textos de Sexto Empirico atra-ves de uma frequente caracterização depreciativa da posturadogmatica

E, com efeito, na medida mesma em que o resultadoconstante da investigação cetica, repetido ao fim da analisee discussão de cada problema filosofico particular, e a des-coberta da equipolência dos argumentos opostos que se po-dem aduzir a favor de e contra a sustentação de qualquertese dogmatica, num equilibrio sempre alcançado que tornaimpossivel qualquer decisão e opção filosofica, na medidamesma, então, em que assim sempre se passam as coisas e asuspensão de juizo inevitavelmente se segue, o cetico e le-vado a tomar a opção dogmatica por uma qualquer das te-ses em conflito, a aceitação de uma cadeia argumentativaparticular pretensamente conclusiva, a alegada solução,portanto, do problema em pauta, como indicios manifestosque revelam uma condenavel precipitação o dogmaticoaparece necessariamente aos olhos do pirronico comoaquele filosofo que não levou as ultimas consequências oexercido filosofico da postura critica, que não foi capaz deexaminar com o rigor que o empreendimento filosoftco em.-

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ge os movimentos argumentativos envolvidos na discussãoda problematica examinada, que pos prematuramente fimao processo de analise e pesquisa, que se precipitou, enfim,ao dar adesão e assentir a um enunciado que acolhe comoresposta e solução

Vanos são os textos de Sexto Empirico que temati-zam esse ponto Assim, por exemplo, no livro I das Hipoti-poses, apos ter longamente apresentado os dez Modos deEnesidemo que conduzem a epokhe pela manifestação dosincontornaveis conflitos que opõem umas as outras as nos-sas representações, Sexto passa a expor os cinco tropos ge-rais de Agripa contra a assertividade das teses dogmaticas e,concluida a exposição, nos diz que os cencos mais recentesque os elaboraram o fizeram, não para substituir ou rejeitaraqueles dez pnmeiros, mas para, pela conjunção de uns eoutros, refutar de modo mais abrangente "a precipitação(propete/a) dos dogmaticos" (H P I, 177) Do mesmo modo,a apresentação dos oito Modos de Enesidemo contra asteorias dogmaticas da causalidade — teorias que os dogma-ticos têm em mui alta consideração (cf H P I, 180) — e le-vada a cabo, uma vez mais, para mostrar como "e, por con-seguinte, possivel, tambem atraves deles, igualmente refutara precipitação (propeteia) dos dogmaticos em suas etiologias"(H P I, 186) Ao tratar da problematica do cnterio da ver-dade e antes de passar a uma longà e detalhada discussãodas teorias dogmaticas a seu respeito, Sexto desenvolveuma cerrada, ainda que sucinta, argumentação preliminarpara manifestar a impropriedade de uma tal noção e julgaque isso ia e por si suficiente "para mostrar a precipitação(propeteta) dos dogmaticos a respeito de sua doutrina docriteno" (H P II, 21), sua critica visava, com efeito, "os queprecipitadamente (propetos) dizem ter apreendido o critérioda verdade" (H P II, 17) Tambem a investigação contral-

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tona sobre a existência do verdadeiro conduz a epok lie e "see preciso suspender o juizo sobre se ha algo verdadeiro, se-gue-se que se precipitam (propeteuesthal) os que dizem ser adialetica dencia das coisas falsas e verdadeiras e nem umanem outra coisa" (H P II, 94)

Essa propeteia dogmanca evidencia indisfarçavelmen-te uma injustificada presunção (ozests, cf H P III, 280), umamor exagerado de si mesmo os dogmaticos são philautotque, explicita ou implicitamente, "dizem ter de preferir-se asi mesmos com relação aos outros homens no julgamentodas coisas, mas sabemos que sua pretensão e absurda(atopos)" sendo parte na discussão filosofica sobre o julga-mento de aparências conflitantes, eles incorrem em inegavelpetição de principio ao assumir essa preferencia, antesmesmo de o julgamento começar (cf H P I, 90-91) E, defato, no que respeita a verdade, os dogmaticos são homensque, por seu amor de si (piulautos), "dizem tê-la, eles propn-os, sozinhos descoberto" (cf A M VII, 314)

A aguda consciência da inadequação e improprie-dade filosofica dessa precipitação assertiva faz com que ocetico a tema mais que qualquer outra coisa e contra elacuidadosamente se precate Se ele se conforma as leis e cos-tumes ancestrais no que respeita ao culto e veneração dosdeuses, ele o faz "sem em nada precipitar-se (meden prope-teuomenos) no quanto concerne a investigação filosofica" (cfA M IX, 49) Sua postura suspensiva acerca dos problemasfilosoficos que aborda não provem de qualquer precipita-ção, mas e sempre corolano de investigação longa e laborio-sa, desenvolvida com rigor e espirito critico Ao dar porconduida, no inicio do Contra os Logicos, a exposição geralsobre o pirronismo a que consagrou as Hipotiposes, Sextovai ocupar-se de explicar como o procedimento cetico seaplica a cada uma das partes da filosofia (isto e, a logica, a

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fisica e a ética, conforme a divisão tripartite dos estoicos),de modo a não incidir levianamente em precipitação (radiospropiptem), seja na investigação cetica sobre os temas, sejaao contraditar os dogmaticos (cf A M VII, 1)

Compreensivel se nos faz, então, que o discursodogmatico se manifeste ao cetico como eminentemente en-ganador Por isso mesmo alguns ceticos foram levados aexpressar sob forma imperativa o principio cetico da anti-nomia Ao inves de lhe darem a formulação tradicional, "Atodo discurso opõe-se um discurso igual," optaram pelaformulação injuntiva, "A todo discurso opor um discursoigual," para exortar o cetico em geral a cuidar em não per-der a tranquilidade (ataraxia) que acompanha a suspensãode juizo, abandonando por precipitação (propeteusamenos) ainvestigação, enganado pelo dogmatico (hypo tou dogmatdcouparakroustheis), et H P I, 204-205 Um grande enganador eem verdade o Logos E e para denunciar essa sua naturezaque o cetico pirronico por vezes elabora dialeticamente ar-gumentos contrarios as aparências fenomenicas, não paraaboli-las, j a que o cetico se guia sempre e unicamente pelofenômeno que, somente ele, escapa ao escopo da suspensão,mas "para exibir a precipitação (propetaa) dos dogmaticos,se, com efeito, de tal modo enganador e o discurso (logos)que quase arrebata tambem os fenômenos de sob nossosolhos, como não e preciso tê-lo em suspeição no que respei-ta as coisas não-evidentes, de modo a não incidir em preci-pitação (propeteuesthcu) por segui-1&" (H P I, 20)

O pirronico permitir-se-a, então, caracterizar o dis-curso tradicional da filosofia como fruto de mera engenho-sidade verbal Ele dira, por exemplo, que a contestação dadoutrina sobre a existência do verdadeiro, considerada emsuas formulações mais universais, se processa de modo aque nela fiquem tambem incluidas as engenhosas constru-

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ções verbais (eureszlogial) particulares dos dogmaticos sobreo tema, cf H P II, 84 Nas mesmas Hipotzposes, tendo ana-lisado a tese dogmatica segundo a qual e impossivel investi-gar um objeto sem uma anterior apreensão de sua realida-de, diz Sexto que dessa analise imediatamente resulta, assimele o crê, "ser demolida a engenhosidade verbal dogmatica(ten dogrmattken euresilogian)," assim como tambem resulta aintrodução da filosofia suspensiva, cf H P II, 9 E o ceticofalara com ironia da "sutileza" do discurso dogmatico Aodiscutir a tematica dos sofismas no intuito de mostrar que adialetica e impotente e muni para resolve-los e que somentea experiência e as tekhncti nos permitem com eles adequa-damente lidar, Sexto numa passagem assim se exprime"pois e suficiente, penso, conduzir a vida empiricamente esem dogmatizar, em conformidade com as observancias eprenoções comuns, suspendendo o juizo sobre as coisas quese dizem a partir da sutileza (Nriergia) dogmatica e que sãomaximamente estranhas aos usos da vida" (H P II, 246) E,ao fim de toda uma argumentação dialeticamente desen-volvida para contestar a teoria dogmatica da realidadesubstancial dos numeros, tendo mostrado que nem o nu-mero por si mesmo subsiste nem tem sua realidade nas coi-sas numeraveis, conclui Sexto, então, que "no quanto con-cerne as sutilezas (periergtais) introduzidas pelos dogmaticos,o numero nada e" (H P III, 167)

As "realidades" não-evidentes postuladas pela filoso-fia especulativa tenderão a aparecer, por isso mesmo, aocetico como meras ficções Por exemplo, ao introduzir suacritica a teoria dogmatica dos signos e explicar-nos que ocetico não objeta ao signo dito rememorativo, que diz res-peito a conexões observaveis entre fenômenos, mas tão-somente ao signo denominado indicativo, que os dogmati-cos imaginam apto a nos desvendar as realidades não de si

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mesmas evidentes, Sexto não hesita em afirmar que esteultimo "foi, com efeito, forjado (peplastai) pelos filosofosdogmaticos e pelos medicos "racionalistas" (logikots), 19 comocapaz de lhes propiciar a muitissimo necessana assistencia"(A M VIII, 156-157) As pretensas realidades teoncas dafilosofia parecem, então, não passar de eidola, de criaçõesfantasmagoricas da imaginação filosofica Assim, na criticada teoria dogmatica dos generos e especies, ao mostrar aproblematicidade da tese segundo a qual um mesmo gênerorealmente existe em todas as suas especies, continua Sexto"funguem, provavelmente, poderia fazer tal afirmação a nãoser forjando alguns simulacros (anaplasson tinas eidolopoi-eseis)" que a propna chaphoraa entre os dogmaticos, explo-rada pelo metodo cenco, se encarregará de demolir, cf H PII, 222 Forçoso e, pois, que os produtos da imaginação cri-adora do espirito dogmanco se apresentem por vezes aosceticos como produções onincas ou magicas Em sua breveexposição, nas Hipotiposes, da ontologia matematica do pi-tagonsmo, que converte os numeros em elementos do Uni-verso, e com palavras de quase desprezo que Sexto comentaessa doutnna "Tais são, pois, as coisas que revolvem emseus sonhos (oneiropolotism)" (H P III, 156) Por outro lado,a formulação crisipiana da noção estoica de representação(phantasta), caracterizando-a como alteração da parte regen-te da alma, aparece ao filosofo cenco como algo magico ouprodigioso (teratologoumenen hetermotiken), isto e, como umestranho e extraordinano linguajar metafonco cujo signifi-cado não se e capaz de adequadamente conceber (epinoem),cf H P II, 70

Se, tendo essas passagens todas em mente, recorda-mos que Sexto define a crença mitica (mythike pisas) como aaceitação de coisas e eventos que não ocorreram e ficticios(peplasmenon, cf H P I, 147) e atentamos no propno uso,

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nessa definição, do mesmo verbo plass° (ele significa mode-lar, forjar, fingir, imaginar, simular), que acima vimos utili-zado para designar a produção dos conceitos dogmaticos,não temos por que hesitar em dizer que o discurso filosoficodogmatico e frequentemente estigmatizado por Sexto comoum discurso de natureza mitica, que as doutrinas da filoso-fia tradicional lhe aparecem frequentemente como mitosinventados pela imaginação especulativa, mitos que os filo-sofos, tendo-os criado, se comprazem em percorrer e"investigar" Sob esse prisma, a critica cetica da filosofiadogmatica se entendera como o questionamento e denunciadesses dehrios do logos, como um empreendimento voltadopara a restauração do discurso cotidiano e comum e para acorreção de seus usos desviados Alias, ao discorrer no Con-tra os Eticos sobre a moderação (metriopatheta) cetica em facedas afecções que envolvem nossa sensibilidade e se produ-zem em nos de modo necessario e involuntário, tais como afome e a sede, Sexto nos previne de que e ineficaz contraelas o poder argumentativo da Skepsis, os ceticos não con-cebem a filosofia como panaceia para todos os males queafligem o ser humano, o poder dos argumentos ceticos seexerce plenamente, porem, na esfera do logos, onde se tratade corrigir a perversão filosofica da linguagem, porque odiscurso ai foi distorcido "com efeito, as coisas que ocor-rem, não em virtude da distorção do discurso (para ten toülogou dtastrophen) ou da vil opinião, mas conforme a afecçãoinvoluntaria dos sentidos, não ha como se possam elas re-mover pelo discurso dos ceticos" (A M XI, 148-149) E, as-sim, por uma cliastrophe tou logou, por uma distorção do dis-curso, que o pensamento dogmatico se logra instalar Epossivel não pensar aqui na doutrina wittgensteiniana daviolentação filosofica da linguagem comum e de sua"gramatica "

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Desse modo, o desenvolvimento da pratica filosoficacetica, a experiência continuada do lidar criticamente como discurso dogmatico sempre culminando na manifestaçãode sua indesmentivel problematicidade, a desconfiançasempre justificada e crescente com relação a ele que de talpratica e expenencia necessariamente resulta, induzem ocetico a ver no dogmatismo filosofico uma enfermidade darazão Aquela enfermidade que afasta a razão dos "usos davida" e nos projeta em delino para o que seria um espaçoextramundano Mas o cenco faz a razão empenhar-se nacura da razão, converte o discurso em terapia do discurso,essa a sua contribuição para a humanidade "O cetico, poramar a humanidade, quer curar pelo discurso, na medidade suas forças, a presunção e a precipitação dos dogman-cos" (H P III, 280) 20 Mil e setecentos anos antes dettgenstein, a filosofia se concebeu pela vez primeira comouma terapêutica, voltada para a cura da propna filosofia

E podenamos ainda lembrar a metafora das drogaspurgativas de que Sexto se serve a proposito de formulasceticas, como por exemplo em H P I, 206, quando diz "nãofazemos nenhuma asserção positiva quanto a serem elas ab-solutamente verdadeiras, ja que dizemos poderem elas serpor si mesmas demolidas, a si mesmas incluindo-se naque-las coisas a cujo respeito se dizem, assim como as drogaspurgativas não somente eliminam os humores do corpo,mas tambem a si mesmas com os humores se expelem" as-sim uma formula tal como "não ha nada verdadeiro" recusaa verdade substancial de qualquer proposição, recusa que seestende por certo tambem a ela propna, cf H P I, 14 Demodo semelhante, os argumentos cencos dialeticamentedirigidos contra a noção dogmatica de prova ou demons-tração (apodam) operam tambem "purgativamente","provando" não haver provas ou demonstrações num em-

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preendimento argumentativo que, confessadamente, aominar as pretensões demonstrativas do discurso, de si mes-mo no mesmo movimento retira qualquer força demons-trativa, cf H P II, 188, tambem A M VIII, 480 21 O quedestas passagens aqui nos interessa e, ainda uma vez, a me-tafora terapêutica a argumentação cetica e um remedioutilizado e apto para eliminar da alma os nefastos humoresdogmaticos que comprometem sua sanidade

Um dogmatico menos cauteloso poderia ver-se ten-tado, em face de todos esses textos que comentamos, aapontar para uma contradição interna na postura do ceti-co, o qual, ao mesmo tempo em que diz abster-se de qual-quer pronunciamento definitivo sobre o discurso dogmaticoe condena como dogmatico o negativismo dos Academicos,proclamando a suspensão de juizo sobre todo assunto dog-matico tratado, estaria, no entanto, procedendo de maneiratotalmente oposta ao falar da presunção e da precipitaçãodogmatica, ao denunciar o carater mitico ou "magico" dodiscurso filosofico tradicional, ao diagnosticar as doençasfilosoficas da alma Mas e facil ver que não e assim O queos ceticos dizemos e que não temos como pronunciar-nosconclusivamente sobre o carater não-significativo do discur-so dogmatico, que somos forçados a reconhecer a equipo-lência dos argumentos dogmaticos e dos que se lhes podemopor no que concerne a sua persuasividade discursiva, quesobre isso somos forçados a uma inevitavel epokhe Mas di-zer tudo isso e ipso facto reconhecer que o discurso dogmati-co falha em todas as suas pretensões de impor-se a nossaaceitação e reconhecimento, que sua significatividade, suademonstrativtdade, sua aceitabilidade, enfim, permanecemirrecusavelmente em suspenso, que por isso mesmo ele for-çosamente nos aparece, enquanto permanecemos"condenados" a suspender nosso juizo, como possivelmente

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não sendo mais que uma mera rede de engenhosas constru-ções verbais, ou um jogo de linguagem caprichoso e apenasludico que não consegue lograr jamais seus objetivos, emface de um espirito rigoroso e critico Sua perseverança emsuas pretensões originarias, seu desconhecimento obtuso desuas inegaveis limitações, a ausência nele de qualquer refle-xão sobre a precipitação de seus pronunciamentos, assimcomo tambem sua resistência, ativa ou passiva, a analisecritica a que o pensamento cetico o submete, tudo isso nosconstrange e obriga a denuncia-lo como enfermidade darazão filosofica Por certo, não pode ele de outro modo apa-recer-nos Nosso diagnostico, muito ao inves de opor-se anossa postura suspensiva, se faz dela naturalmente o coro-lano E me parece tranquilo poder afirmar que, do ponto devista de nossa otica contemporânea, um tal diagnostico forte-mente sugere a ilegitimidade dos problemas filosoficos dodogmatismo

6 Se assim e — e nos aparece que e assim —, podemos ago-ra finalmente tornar a nossa questão primeira, a da legiti-midade do discurso filosofico tradicional e de seus proble-mas dogmaticos, com novas armas armados Podemos pro-jetar agora sobre a reflexão toda do ceticismo antigo sobreo discurso dogmatico nossa otica neopirronica e contempo-rânea, iluminando aquela a luz de nossa postura filosoficaatual, em particular de nossas considerações sobre a ques-tão da legitimidade ou ilegitimidade dos problemas Mosca-cos Porque nada mais impede agora o neopirrônico de to-mar a suspensão cetica do juizo, não apenas como um porem suspenso a verdade das teses dogmaticas, mas como umpôr em suspenso a mesma legitimidade do discurso que as pro-duz, dos problemas que, portanto, ele formula e se propõe a re-

solver Legitimamente pode o neopirrônico agora dizer que,

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embora reconhecendo a impossibilidade de demonstrar oumesmo de afirmar declarativamente a ilegitimidade dosproblemas especulativos tradicionais, não ha mais comoreconhece-los legamos, que sua legitimidade ficou irreme-diavelmente, tambem ela, por demais problematizada, quenão ha como descartar a possibilidade de serem apenaspseudoproblemas os problemas tradicionais da filosofia,uma duvida irreprimivel sobre eles incessantemente pairan-do agora e sobre sua legitimidade Reescrevendo o relato deSexto sobre a gênese da postura cetica (cf H P I, 12, tam-bem 26-27), o neoparônico poderia dizer que o cetico foilevado, por sua sempre renovada experiencia da diaphonia edas contradições do discurso filosofico, a desconfiar perma-nentemente, não somente da possibilidade de se obter aoutrora almejada Verdade sobre as coisas e o Mundo, mastambem da mesma significatividade cognitiva de um usopretensamente transcendente da linguagem, da mesma le-gitimidade dos problemas mediante tal uso formulados, damesma possibilidade de se tornar inteligivel o empreendi-mento filosofico que promete conduzir-nos para alem denossa humana emparia

Os resultados dessa nossa reflexão cetica são, numaprimeira aparência, muito proximos dos que resultaram dediferentes analises filosoficas contemporaneas, todas elasempenhadas na desqualificação da legitimidade dos pro-blemas tradicionais da filosofia Mas a diferença fundamen-tal e inequivoca as analises em questão se firmam, no maisdas vezes, de modo muito manifesto, sobre pressupostosdoutrinarios que um cetico se vê obrigado a denunciarcomo outros tantos pontos de vista filosoficos particulares ede carater irrecusavelmente dogmatico E, quando esse nãoe o caso — em respeito ao segundo Wittgenstein conceda-mos essa hipotese —, não se cuida de deixar sufiQentemen-

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te claro o carater "empirico" e "fenomênico" — permita-se-nos um vocabulario conforme a nossa postura pirronica —das analises efetuadas, seja a proposito da indole da lingua-gem cotidiana e comum, seja com respeito a qualquer outrotema Quanto ao cetico, a minima prudência o impele aescrupulosamente cuidar que sua recusa do dogmatismonão se possa ler dogmaticamente E parece-me ter mostradoque ele o consegue

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7 Não quero seguir adiante sem antes considerar — mesmose muito sucintamente e de maneira algo simplificada, por-que mais não comportam infelizmente as dimensões que meparecem adequadas a este texto — a elaborada reflexão con-sagrada por M M Carrilho ao tema da problematiedadefilosofica, refiro-me a seu livro intitulado Jogos de Ractonctli-dade, cf Carrilho (1994) Entendendo com razão que umdos temas que singulariza de modo todo especial a filosofiacontemporânea e o seu autoquestionamento, numa inter-rogação que inevitavelmente a conduz a tematica da espe-cificidade da problematiedade filosofica (cf p 21), Carrilhodesenvolve o que denomina uma perspectiva pragmatico-interrogativa sobre a atividade filosofica, que diz inspiradana convergência tematica que detecta, no que respeita aostemas da linguagem e da racionalidade, entre a concepçãointerrogativa de M Meyer e a abordagem neopragmatica deR Rorty (cf p 127-128)

Carrilho e sensivel, como poucos infelizmente o são,a conflitualidade inegavel das filosofias "Esta insuperavelconflitualidade e — e vinte seculos de filosofia são, aqui, umargumento bastante — a mais indiscutivel caracteristica daatividade filosofica" (p 103) A perspectiva que o autor

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explicita oferece uma nova compreensão dessa conflituali-dade (cf p 18), considerada como intrinseca a filosofia, en-tendendo a mesma racionalidade como "um espaço de ins-crição e desenvolvimento" das conflitualidades filosóficas(cf p 130, tambem p 122) E ele propõe que se abandone opostulado da unidade da razão e o da homogeneidade deseu exercido, entendida como manifestação de sua pretensauniversalidade (cf p 18, 126) Prolongando, como diz, atematização wittgensteniana da noção de jogo de lingua-gem (cf p 122 seg ), introduz sua original noção — tãopouco definivel como a wittgensteiniana e por razões ana-logos — de jogo de ractonaltdade e pensa a racionandade "deum modo plural e não-redutor, isto e, como um jogo de ract-onaltdades entendido como uma pratica de diversidades enão como a aproximação a um modelo previamente reco-nhecido" (p 121), associando a noção de jogo a de "matrizesde radonalidade, isto e, de perspectivas que regem aquelesjogos e lhes orientam a progressão, a orientação e o sentidode seus lances" (p 122) o que o autor claramente pretende,com essa noção de jogo de racional-idade, e tornar possivel,no interior desta ultima, "o acolhimento e a compreensãodas diversas praticas em que o exercido sempre contextuali-zado da linguagem se configura como um exercido de ra-zão" (p 18), não como o exercido da razão Ora, não e di-flui compreender que, numa tal concepção pluralista daracionalidade, o conflito das filosofias se pensara de modototalmente outro, ja que "a radonalidade aparece aquisimplesmente como o campo daquele jogo, em que diversasposições se confrontam quanto as suas pretensões explicati-vos, as suas potencialidades heunsticas" (p 121-122) Ospropnos jogos de radonalidade se instauram "como proces-sos de racionalização diferenciados, heterogêneos, conflitu-ais, regulados por matrizes diversas conforme as areas, os

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periodos, as comunidades em que emergem e se desenvol-vem", abrindo "o jogo infinito da contingencia" (p 127)

Esse repensar a racionalidade, pluralizando-lhe asformas, exige, segundo o autor, "a compreensão da retorici-dade da propna racionalidade," numa total reformulação daarticulação retorica/racionalidade (cf pp 16-17), que vaiculminar numa concepção retonca da filosofia Porque"cada filosofia elabora um dispositivo retonco propno que,ao assegurar-lhe a sua singularidade, lhe traça tambem aomesmo tempo limites de aceitabilidade e, mesmo, de inteli-gibilidade no interior da comunidade filosofica" (p 106), afilosofia aparecendo como um dispositivo retonco circuns-crito pela historicidade e pelo contexto (cf p 130) E a sin-gularidade do trabalho filosofico vai ser compreendida"atraves da articulação entre a sua actividade problematiza-dora e uma pratica argumentativa de âmbito e objectivosrenovados" (cf p 18) A filosofia assume a sua singularida-de "no registo da problematização" (cf p 70) e a atividadefilosofica e entendida como eminentemente problematiza-dora "A interrogatividade revela aqui a sua função opera-tona essencial, nomeadamente pela positividade que permi-te revelar ao nivel dos problemas, pela orientação de aber-tura e de acolhimento da complexidade ao nivel da argu-mentação e pela exigencia de pluralismo ao nivel do espaçode racionalidade " (p 130) A argumentação afirma-se coex-tensiva a problematização filosofica (cf p 59), a retórica dafilosofia e pensada como um dispositivo não apenas persu-asivo, mas tambem inventivo (cf p 69) e a valorizaçãoheuristica da noção de problema e feita "solidaria de umaperspectiva que sublinha a não identidade, a mobilidade e atransformação dos problemas" (cf p 26)

A filosofia aparece, então, como uma disciplina que"so tem problemas," como "um trabalho problematizador

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que a rigor não conhece soluções, mas apenas respostas quesão sempre tematizações dos seus problemas," a problemati-cidade filosofica revelando-se inclissociavel dos registros dahistoricidade e da contemporaneidade (cf p 38) Assim,recusa-se qualquer realidade a-histonca e a-cultural para osproblemas filosoficos e deles se pode dizer que "surgemsempre numa cultura, numa filosofia, numa linguagem sãohistoricos e contextuais" (cf pp 41-42), entendendo-se quesua identificação, formulação e solução "são sempre, em fi-losofia, locais, isto e, dependentes do contexto que os susci-ta," acentuando-se a solidariedade sempre existente entreum problema e a teoria no ambito da qual ele surge (cfp 30) Ou, mais precisamente "os propnos problemassão solidanos dos jogos de racionalidade em que se insereme da dinâmica continuai que os atravessa" (p 130)

Fica, pois, manifesto estarmos diante de uma nova eonginal concepção do filosofico, aquela mesma que Carri-lho dizia ser preciso suscitar, "em que a procura de inteligi-bilidade substitua, nos seus designios reguladores, a preten-são a verdade," a retórica filosofica orientando-se "por uma`logica" não de exclusão mas de natureza, ou de vocação,englobante" (cf p 79) Essa nova concepção, ao envolver asubstituição da referência logica pela referência retonca,implica "a substituição das exigencias de validade pelas deinteligibilidade" (cf p 102)

A perspectiva pragmatico-interrogativa de Carrilhoe uma denuncia sui generis dos dogmatimos tradicionais,empenhada em mostrar a fragilidade de sua postura propo-sicionalista e da pretensão a aceitabilidade e a verdade desuas teses, que a essa postura se associa E, de fato, o que oceticismo chama de dogmatismo e de algum modo estigma-tizado — ainda que não nestes termos — como uma grandee milenar ilusão da filosofia ocidental Recusa-se decidida-

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mente para o filosofico a dimensão que o dogmatismo lheatribuiu, donde resulta dissipar-se qualquer alegada neces-sidade de buscar uma solução definitiva, positiva ou negati-va, dos problemas filosoficos

Mas se poderia, então, perguntar se cabe ainda em-penhar-se o homem em buscar respostas para problemas fi-losóficos Com efeito, pareceria que tal não mais cabe Eisto porque se adquiriu a consciência da relatividade deproblemas e respostas aos jogos de racionalidade em queestão inseridos, de sua total historicidade e contextualida-de mesmo se, tendo-nos reconhecido profundamente imer-sos no contexto historia) e cultural que e o nosso, por issomesmo incapazes de a ele refugir, decidimos aceitar essaslimitações e nos dispomos a operar dentro delas, aparente-mente não teremos como nem por que optar por qualquerum dos inumeros jogos de racionalidade que o atravessam eadota-lo como o nosso, preferindo jogar apenas este e nãoaquele ou aquele outro, sobretudo porque somos particu-larmente atentos a sua "dinâmica confirmai" e a insupera-bilidade de seus conflitos Nossa consciência critica invali-dando qualquer opção a que alguma tentação nos quisesseatrair

Desenha-se, assim, para nos, uma situação que temalgo de semelhante aquela que os ceticos pirrônicos descre-veram como de isostheneict, de equilibrio entre as doutrinasdogmaticas em conflito Mas não esqueçamos que a isosthe-nela de que falavam os ceticos se estabelecia num registroproposicionalista e dizia respeito unicamente a igualdade deforça persuasiva de teses opostas A isostheneict de Carrilho,ao contrario, conceituada de modo muito mais complexo eelaborado, diz respeito a "processos de racionalização dife-renciados, heterogeneos, conflituais, regulados por matrizesdiversas" De qualquer modo, parece, tambem aqui, seguir-

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se analoga impossibilidade de opção critica, o que, a primei-ra vista, deveria conduzir a uma analoga suspensão de jui-zo

Mas não e o que acontece e a postura suspensivados ceticos não tenta Carrilho E que, sob sua otica, aquestão tradicional, dogmatzca tanto quanto cetzca, que per-gunta primordialmente pelas soluções dos conflitos, nãomais se coloca 2' Isso precisamente porque o autor, comovimos, entende a filosofia como eminentemente Problema-tizadora, que para os problemas com que lida propõe, nãoexatamente soluções, mas respostas que os tematizam Res-pondendo a nossa dificuldade, ele nos dira, com certeza,que sua perspectiva mantem plenamente abertos todo S oscaminhos para a investigação filosofica e que cabe plena-mente continuar a buscar respostas para os problemas le-vantados Esta investigação concebe-se agora como consis-tindo substancialmente na exploração de problemas que sedesenham no interior dos diversos jogos de racionalidade —consistindo, nesse sentido, na exploração da riqueza ecomplexidade interna desses mesmos jogos — e as respostas,entendidas como tematizadoras dos problemas que as susci-tam, são elementos importantes dessa tarefa exploratoriaInventar e desenvolver problemas, propor respostas quecontribuem para melhor analisa-los e precisa-los e que, porsua vez, engendrarão novos problemas, essa a atividade in-finita da filosofia O autor poderia, talvez, acrescentar que aopção por trabalhar dentro de um particular jogo de racio-nandade e não de tal outro se farta eventualmente por ra-zões meramente pragmaticas, conforme os interesses inte-lectuais do investigador Seja como for, não ha, então, porque falar em suspensão de juizo, porque não se tem maiscomo objetivo a proposição de um juizo E devemos convir

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em que uma tal replica seria plenamente coerente com todaa postura assumida

8 Essa coerência tem, entretanto, o seu preço e me pergun-to se Carrilho estaria disposto a paga-lo Uma vez privilegi-ada a função problemanzadora da filosofia, concebido ago-ra o filosofico sob uma otica inteiramente outra, as possibi-lidades que se lhe abrem são — mais que nunca, se se mepermite assim falar — infinitas e Carrilho fala com razão do"jogo infinito da contingência" Infinita e a capacidade cri-adora da imaginação filosofica, seus recursos são inesgota-veis, ela pode infindavelmente inventar problemas, constru-ir perspectivas e angulos para aborda-los, produzir metodospara com eles lidar, descobrir para eles todo tipo de respos-tas e, sobretudo, inventar novas regras para os jogos Masaqui cabe perguntar, fingindo ingenuidade e dissimulandoa maldade por que joganamos tais jogos .? Por que jogar osjogos de racional-idade, quando sabemos que os problemasnão são, a rigor, suscetiveis de serem resolvidos ? Por queenveredar pelos caminhos das interminaveis problematiza-ções? Ou, para ser mais direto, por que ainda fanamos filo-sofia?

Uma resposta sena dizer que o jogo filosofico e paranos, para aqueles que expenenciamos a vocação do filosofi-co, uma fonte inesgotavel de prazer intelectual, um exerci-ao sublime de nossa capacidade de pensar Ninguem queseja verdadeiramente filosofo, qualquer que se ja sua posturafilosofica, negara que assim expenenciamos a filosofia Massera apenas isso a filosofia, um jogo inteligente e fascinante?A atividade filosofica não passana, então, de uma atividademeramente ludica ? Se assim fosse, não vejo por que um ce-tico teria algo a objetar contra as praticas filosoficas, nemvejo mesmo por que se deveria ele abster de participar dos

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jogos da filosofia Ja que os fantasmas do juizo não maisrondam por perto

Ou ainda se poderia, talvez, dizer que a perspectivapragmatico-interrogativa nolens volens implica, em últimaanalise, uma assimilação da filosofia a arte, mais particu-larmente a literatura A investigação filosofica se vera comoum trabalho de criação artistica, isto e, de produção litera-na, ainda que de uma natureza sta generts e toda especial,porque levada a cabo, seguindo a esteira de uma venerandatradição, conforme estritas inteligencias de inteligibilidade emediante o uso de tecnicas argumentanvas E diremos, en-tão, que a obra filosofica e instaurada a maneira da obra dearte e goza tambem do estatuto privilegiado desta ultimaPara quem a contempla e estuda, ela se fara objeto de frui-ção estetica Ninguem que seja verdadeiramente filosofo,qualquer que seja sua postura filosofica, ousara recusar ovalor estenco dos grandes sistemas filosoficos, ou mesmo deobras menos abrangentes E o mesmo filosofo cetico se dei-xa gostosamente fascinar pela beleza de muita construçãofilosofica Mas sera apenas isso a filosofia, uma forma su-blime de arte? Se assim fosse, não vejo por que um ceticoteria algo a objetar contra as praticas filosoficas, nem vejomesmo por que, se para isso tivesse a disposição e algumtalento, se absteria ele de delas participar

De um modo ou de outro, Carrilho se teria tornadoum grande aliado do ceticismo Estaria ele disposto a reco-nhecê-lo? Temo que não Mas então 7 Por outro lado, nãoresisto a tentação de, enveredando por outra linha de pen-samento, formular o que me parece representar uma outraimportante dificuldade para a perspectiva pragmático-interrogativa Trata-se, por certo, de uma perspectiva me-tafilosofica, de uma reflexão sobre a especificidade do filo-sofico e sobre a natureza do discurso filosofico O que

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Carrilho nos oferece e uma filosofia das filosofias, uma filo-sofia que explicita claramente e justifica os pontos de vistaque assume, positiva ou negativamente Recusa-se o propo-sicionalismo, substitui-se a noção de verdade pela de inteli-gibilidade, o discurso filosofico considera-se integralmenterelativo a historicidade e ao contexto, recusa-se a intempo-randade dos problemas filosoficos, rejeita-se a unidade e auniversalidade da razão, afirma-se uma natureza confhtualdas filosofias, faz-se da interrogatividade uma função opera-tona essencial do pensamento filosofico e adota-se um de-cidido pluralismo na concepção da raconalidade, decor-rendo, alias, obrigatona da propna noção de jogos de rad-onalidade

Qual o estatuto desse discurso metafilosofico ? Deveele dizer-se uma mera construção retonco-discursiva parti-cular, em meio a outras, limitada por nosso contexto his-tonco-filosofico? Um modo apenas, entre outros, de jogarum jogo de filosofia ? Participando da "dinamica conflitual"que sempre atravessa os jogos de racionalidade, colidindocom outras orientações metafilosoficas e a elas se opondonum, como sempre, insoluvel conflito ? Pareceria que aperspectiva pragmatico-interrogativa deveria desse modo asi mesma coerentemente tematizar-se Assim fazendo, noentanto, ipso facto, ela estam dramaticamente reduzindoseu alcance, pretensão e encanto Esse excesso de relativi-zação nos fana pena s E, por outro lado, voltando a teclaque ja tocamos, por que se preferiria esse discurso metafilo-softco a algum de seus muitos rivais?

Mas e obvio, por outro lado, que ela se proibe — etem de proibir-se — de construir seus pontos de vista,aqueles todos por exemplo que acima enumeramos e queela articuladamente compõe em seu discurso, como dogma-ta, no sentido tradicional do vocabulano cetico Ela não

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pode permitir-se um discurso tetico, ela tem de tomar suasrespostas como meras tematizações de seus problemas, elanão pode propor-se a fornecer soluções, ela não pode per-mitir-se juizos Em suma, e-lhe absolutamente vedado, pelalogica interna de seu propno discurso, constituir-se comouma metafilosofia dogmática

Fica obscuro, então, para mim, o estatuto que o dis-curso de Carrilho a si propno se confere Ele se propõe, cla-ramente, preservar a legitimidade da problematica filosofi-ca Para fazê-lo, ele recusa o valor de face do dogmatismotradicional e o proposicionalismo que lhe e via de regra ine-rente, operando essa recusa atraves de uma nova concep-ção, não apenas do filosofico, mas da mesma racionandadeMas como enfrentaria o problema de sua propna autolegi-timação?

Quanto ao cenco pirronico, este toma o dogmatis-mo tradicional com seu valor de face Não endossa tesesann-proposiconalistas, tanto quanto não endossa o pro-posicionalismo Não assume que o discurso filosofico sejaprimordial e essencialmente problematizador, do mesmomodo como não assume que sua natureza seja basicamenteassertiva Não se vê compelido a defender um pluralismofilosofico, mas nem por isso defende uma concepção monis-ta da razão e da raaonandade Não ve como preservar alegitimidade dos problemas tradicionais da filosofia (emboratambem não veja como mostrar sua ilegitimidade) Tam-bem sobre essas questões, entre as teses do velho dogma-tismo tradicional e as que que eventualmente as contradi-gam, o cetico se sente uma vez mais condenado a suspenderseu juizo E segue desconfiado Estamos de volta ao pontoonde nos unhamos detido

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9 Vimos acima por que se pode entender o ceticismo deinspiração pirronica como um questionamento radical damesma legitimidade dos problemas filosoficos propnos afilosofia tradicional e dogmatica Dever-se-a então dizer queo ceticismo somente lida com problemas filosoficos paradeles construir sua denuncia, que seu tratamento deles emeramente dialenco, que ele se vê obrigado, em decorrên-cia de sua mesma postura, a renunciar a todo empenho"positivo" na solução de todo e qualquer problema filosofi-co? Procurarei aqui mostrar que, por paradoxal que issopossa parecer, esse não e de modo algum o caso Que, mui-to pelo contrario, toda uma infinda gama de problemas fi-losoficos se pode reconhecer pelo ceticismo como legitimos,que uma filosofia plenamente cenca pode e deve ocupar-seem examina-los, discuti-los e tentar soluciona-los Porquesão problemas que se situam compreensivelmente fora do escopoda suspensão pirrônica de juizo

Para tanto, cumpre-nos primeiramente rever aindauma vez a conhecida distinção pirrônica entre dogma(dogma) e phainomenon (fenomeno, o que aparece), distinçãoda maior importância na doutrina cetica O discurso dog-matico se propõe a exprimir a natureza mesma das coisas, adescobrir-nos sua essência e natureza, a capturar e dizer suarealidade em si mesma, fazendo-se o instrumento obrigadode um conhecimento transcendente e absolutamente ver-dadeiro, definitivamente para alem de todas as aparencias,isto e, de todo o conteudo de nossa experiência imediata 2'Nesse sentido, ele nos revela e para nos instaura o absoluto— ou nos instaura no absoluto —, tal e, ao menos, a suapretensão E não menos na esfera ontologica que na epis-temologica Ao suspender o cetico seu juizo sobre os discur-

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sos dogmaticos, resta-lhe no entanto toda a esfera fertomê-nica,' onde reconhece quanto lhe aparece de modo sensivelou inteligivel, crendo em quanto se oferece a sua imediataexperiência e experienciando as "certezas" praticas do seucotidiano,' vivendo adogmaticamente a vida comum ecompartilhando-a com os outros seres humanos, utilizandoos ensinamentos daquelas disciplinas (tekimai) todas queorganizam e sistematizam os fenômenos para o beneficio detodos Porque o cetico entende que a tekhne, em plena con-tinuidade com os procedimentos da vida comum, que elaapenas sistematiza e submete a um metodo mais rigoroso ecritico, vem ensejar uma exploração positiva do mundo fe-nomênico, que ela procura submeter aos interesses e aobem-estar dos homens 26

Assim, reconhecendo que o fenomeno e sempre re-lativo — o que aparece aparece a alguem aqui e agora e,manifestamente, não são necessariamente as mesmas coisasque aparecem aos distintos sujeitos —, reconhece o ceticotambem que muitas coisas de modo idêntico a muitos denos aparecem, os "fenômenos comuns", 27 e que nosso mun-do se nos apresenta como a todos nos comum e como am-plamente suscetivel tambem, em muitos ao menos de seusaspectos, de descrições consensuais o intersubjetivo apare-ce-nos recobrir muito do fenomenico E do cetico cabe dizerque, "conforme o espirito das tekhnai, das quais se fez de-fensor, confortado pelos resultados inegaveis da experiênciapassada, ele apostara no aprimoramento progressivo daimagem comum do mundo, desse mundo que de modo in-sistente lhe aparece como suscetivel de uma descrição con-sensual Sob esse prisma, pode dizer-se que se delineia algocomo uma objetividade para nos, definida precisamente peloacordo intersubjetwo E o cetico se aliara de bom grado ao

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esforço comum por ampliar continuamente o escopo dessaobjetividade relativa "28

Atendo-se ao fenomeno, o cetico serve-se do discur-so comum Isto e, do discurso de que se servem cotidiana-mente todos os seres humanos, agora porém expurgado deconotações dogmaticas Esse discurso fenomêmco exprime aexperiência cotidiana, reflete a vida comum, usa-se tambempara descreve-la, ele e, alias, o dicurso da tekne Discursoque continuamente se rearticula e se reforma com vistas afazê-lo cada vez mais adequado à continua ampliação e en-riquecimento de nossa experiencia do mundo E nesse dis-curso que o cetico pensa, nele ele se exprime, nele ele secomunica com os outros homens e dialoga com eles 29 Nessediscurso não-tetico, exprime o cetico sua visão do mundo 30Ao expor-nos em que sentido se pode dizer que o cetico,mantendo coerência com toda a sua postura, possui umadoutrina, Sexto Empirtco nos falava desse logos conformadoaos fenômenos que, de um lado, nos mostra como e possi-vel viver corretamente, enquanto de outro lado articula osprocedimentos que deverão levar a suspensão de juizo (cfH P 1,17)

Essa distinção entre o registro dogmatico e o registrofenomênico da linguagem e absolutamente fundamental paraa compreensão adequada da postura cetica O cetico, noentanto, a ve como decorrencia necessaria da postura dog-manca, por ela exigida, mesmo quando não explicitamentetematizada pelo pensamento que se quer transcendente Oregistro dogmatico e o locus do absoluto, do transcendente,do extra-mundano — ou, pelo menos, assim pretende odogmatico O registro fenomêmco, que o dogmatico nomais das vezes explicita ou implicitamente desdenha doponto de vista filosofico, e o do nosso discurso ordinario detodos os dias, do discurso de nossa experiência vivida E e

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nesse registro que o cetico fala de filosofia e desenvolve asua filosofia E nele, então, que o cetico organiza seu ques-tionamento da filosofia dogmatica E certo que, na praticado metodo das antinomias, opondo discurso dogmatico adiscurso dogmatico para manifestar a equipotencia(isostheneia) entre eles, o cetico e multas vezes levado a pro-duzir, ele proprio, argumentos dogmaticos, que obviamentenão endossa, mas que são dialeticamente uteis para a pro-dução do fim colimado 31 Mas, inclusive nestes casos, o usodialetico de argumentos dogmaticos, puramente instrumen-tal, de um modo geral se insere num discurso contextualfenomenico, onde o cetico comenta seu mesmo procedi-mento, avalia seus resultados e eventualmente explica comoe por que se segue a suspensão de juizo Em inumeras ou-tras ocasiões, alias, mesmo a polêmica contra o dogmatismose efetua atraves de movimentos argumentativos e proce-dimentos inferenciais que se desenvolvem unicamente aonivel da experiência dos fenômenos 32 E no interior do discur-

so fenomenico — esse me parece um ponto importante a serdevidamente compreendido — o cetico caracteriza o dog-matismo, comenta a propria distinção entre os registrosdogmatico e fenomenico e exprime sua crescente desconfi-ança quanto a legitimidade da mesma postulação de umregistro dogrriatico,' conduzido por sua investigação filoso-fica a suspeitar de que este não passe de quimera e ficção

O que e absolutamente crucial, no que concerne aessa tematica, e, então, compreender que a epokhe diz ape-nas respeito ao uso pretensamente transcendente da lin-guagem, aos discursos pertinentes ao registro dogmaticoEsta inteiramente fora de seu escopo o registro fenomênicoda linguagem, na mesma medida em que estão, por defini-ção, fora de seu escopo o que nos aparece e a esfera inteirada fenomenicidade O que significa que não ha por que falar

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em suspensão de juizo acerca das naturais divergências entre pon-tos de vista que tem lugar no interior da esfera fenomêmca,quando, uma vez afastada toda pretensão ao conhecimentoe a verdade absolutos, se trata tão-somente de exprimir oque nos aparece

E os ceticos reconhecemos que o diálogo, a discus-são e a argumentação frequentemente levam a que mude-mos nossos pontos de vista, a que eventualmente adotemosos de nossos interlocutores aos quais antes nos opunhamos,ou a que, ao contrario, nossos interlocutores sejam as vezespor nos persuadidos e abandonem seus antigos pontos devista, passando a compartilhar os nossos Essas adoções depontos de vista, essas divergências, esses debates, esses tra-balhos de persuasão e essas eventuais modificações de nos-sas crenças em decorrendo de todo um processamento ar-gumentativo, essas preferências e mudanças de preferenciapor tal ou qual posição, se situam todos, quando foi explicitaou implicitamente removida toda conotação dogmatica, no inte-rior da esfera fenomênica Como o homem comum, pode,então, tombem o cetico tranquilamente argumentar, tentarpersuadir, persuadir ou ser persuadido, optar por uma posi-ção apos exame e discussão, sobretudo se vigiou e cuidou,como de um cetico se exige, de manter-se adstrito aos fe-nomenos, de impedir que ingredientes dogmaticos se vies-sem misturar a seu discurso ' Aqui não se aplicam, nãoentende o cetico que se apliquem, os conceitos ceticos tra-dicionais de diaphonia, de isostheneia, ou de epokhe 35

Disso e, então, necessaria decorrência haver plena-mente lugar, no interior da esfera fenomenica, para diver-gendas de pontos de vista tambem entre ceticos Uma mesmasituação fenomenica pode, obviamente, aparecendo a dis-tintos ceticos sob diferentes perspectivas, ser ob jeto de dife-rentes pontos de vista E esses ceticos, precisamente porque

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valorizam o consenso intersubjenvo ao mesmo tempo emque reconhecem a unicidade da situação que em comumexpenenciam, podem empenhar-se num dialogo que even-tualmente pudesse conduzi-los — e que esperam possa con-duzi-los — a unificar suas perspectivas e a lograr sobre talsituação um ponto de vista comum Podem, então, empe-nhar-se em argumentar e contra-argumentar, em tentar umao outro persuadir, e pode eventualmente ocorrer que umdeles seja pelo outro persuadido Como tambem pode ocor-rer que, apos exame, discussão e argumentação, preservemno entanto suas posições originais, ou que elaborem umaterceira posição sobre a qual finalmente se acordem

10 Feito esse breve excurso atraves da tematica do logoscetico, relembrados agora alguns topicos importantes paranossos propositos, podemos retomar nosso tema dos pro-blemas filosoficos Que o discurso fenomêmco lide comproblemas, na vida cotidiana ou na esfera da tekhne e da"ciência cetica" e, por certo, trivialmente verdadeiro Noque concerne, então, a esse discurso, uma proposição se dizproblematica, ela constitui problema, quando, havendo denossa parte interesse em sua verdade ou falsidade — esta-mos aqui considerando verdade e falsidade de um ponto devista exclusivamente fenomenico' —, não dispomos, inici-almente, de meios para atribuir-lhe um valor de verdade,seja porque mnguem lhe conferiu ainda um valor qualquer,seja porque lhe são atribuidos por diferentes pessoas valoresopostos, uns dizendo-a verdadeira, outros falsa, seja aindaporque, ainda que algum valor de verdade lhe tenha sidoatnbuido, tal atribuição e considerada por outros duvidosae não fundada 38 Situações como essas são obviamente dasmais comuns

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Que tambem o cetico pode, a proposito de qualquerdesses problemas, aderir a pontos de vista, propor possiveissoluções, discutir, argumentar, optar por este ou aqueleposicionamento parece-me claramente decorrer de tudoquanto acima dissemos sobre o uso cenco do discurso fe-nomenico Somente nos resta estabelecer se se pode legiti-mamente falar de problemas filosoficos pertinentes a esferafenomênica, com que possa o cenco "positivamente" lidar,ele que permanentemente proclama sua total desconfiançacom relação aos problemas de que a filosofia dogmatica seocupa Comporta acaso problemas filosoficos a esfera fe-nomênica?

Não precisamos de cntenos precisos de demarcaçãoentre o filosofico e o não-filosofico para responder a essapergunta, bastando-nos que possamos caracterizar certosproblemas como inegavelmente filosoficos, isto e, comomanifestamente merecedores de que se lhe chame de filoso-ficos, no sentido costumeiro e tradicional do termo Ora, seassim é, uma multidão inumerável de problemas — que sepodem articular no interior da esfera fenomenica e equacionarnum discurso fenomênico, ja que e apenas dessa esfera e dessediscurso que estamos aqui falando — facilmente nos ocor-rem, que somente poderemos dizer filosoficos Isso, porexemplo, devido a seu escopo extremamente amplo, demuito excedendo as "regiões" em que operam as disciplinasparticulares, ou devido à sua clara afinidade e analogia comproblemas filosoficos tradicionais com que tem sempre lida-do a filosofia dogmatica

Creio ser pertinente a nossa reflexão demorarmo-nos por alguns momentos na indicação de uns poucos des-ses problemas, que podemos formular sob forma de interro-gação Uns deles dirão respeito diretamente ao tema mesmodo pensamento filosofico e possivel uma demarcação razo-

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avelmente precisa entre o filosofico e o não-filosofico ? Emque extensão e dentro de que limites de pode desenvolveruma investigação filosofica que se proibe de recorrer ao dis-curso dogmatico? Pode falar-se, ou não, de uma continui-dade entre a vida comum, a ciência fenomênica e a filoso-fia? E assim por diante

Outros problemas, por exemplo, dirão especifica-mente respeito a noção mesma de fenômeno que fronteirasse podem traçar entre o dogma e o fenômeno, entre o pre-tensamente absoluto e o que nos aparece ? E sempre possivelclaramente distinguir entre o discurso dogmatico e o feno-mênico? O fenomeno esta, ou não, associado sempre a con-teudos proposicionais ? Que relações existem entre as apa-rencias fenomenicas e o chamado senso comum? E possivelfalar da contribuição da tradição e dos costumes para aprodução das aparências fenomênicas ? Como equacionar aaceitação dos fenômenos comuns e o recurso a intersubje-tividade com o carater em apare= primordialmente pri-vado de toda aparência fenomênica?

Muitos problemas, definidos sempre numa perspec-tiva fenomênica, serão pertinentes a certas areas tradicio-nais da filosofia cabe falar em conhecimento, se se renun-ciou a toda pretensão a um conhecimento absoluto? Cabeainda falar em verdade e, particularmente, em verdade cor-respondenaal, quando se suspendeu o juizo sobre o discur-so do realismo metafisico ? Por outro lado, cabe preservarcertas distinções tradicionais como, por exemplo, a distin-ção entre percepção sensivel e entendimento ? Como lidar,numa perspectiva fenomênica, com as noções tradicionaisde espirito, ou alma, ou mente, e corpo ? Na descrição doque nos aparece, têm acaso os eventos costumeiramentechamados de mentais um lugar privilegiado ? E assim pordiante

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Na area habitualmente denominada filosofia da a-encia cabe falar de demarcação, de um ponto de vista fe-nomenico, entre ciência e filosofia ? Cabe distinguir entreproposições observacionais e proposições que exprimem asaparências fenomênicas? Pode uma ciência que se quer livrede todo compromisso com o dogmatismo (no sentido que oceticismo empresta ao termo), postular entidades teoncasou inobservaveis? Ou devera limitar-se a alguma forma deinstrumentahsmo ? Como caracterizar, numa perspectivafenomênica, as teorias cientificas ? O que entender por acei-tação de uma teoria cientifica? Que sentido conferir ao uso,na ciência empirica,de metodos probabilisticos? Como de-finir o papel da explicação em ciência ? Que estatuto definir-se-a em ciência para as assim chamadas relações de causa eefeito entre fenomenos?

Para concluir, escolhamos alguns exemplos no do-mimo da etica Quando se deixou de lado toda perspectivadogmanca, cabe ainda falar em valores morais, em açãomoral, em agente moral ? Se positiva a resposta, como en-tender-se-ão essas noções? Como relacionar moral, direito epolitica? Numa perspectiva assumidamente fenomênica enão-dogmatica, cabe falar de racionalidade politica ? Da pre-feribilidade racional de um determinado regime politico?

Podenamos, salta aos olhos, continuar indefinida-mente Talvez um ultimo exemplo de problema filosoficofenomenico mereça ser aqui mencionado o da existencia elegitimidade dos problemas filosoficos Esta reflexão inteiranão e mais que uma tentativa de propor uma solução paraesse problema no ambito de um discurso filosofico feno-menico

11 Muitos dos exemplos que dei, a maioria talvez deles,são manifestamente problemas com que lidou e lida a filo-

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sofia dogmatica O que o pirronismo faz, nestes casos, e ni-tidamente desloca-los para o interior da esfera fenomênica ecom eles trabalhar no registro fenomênico do discurso Issode nenhum modo significa que caiba um tal deslocamento— ou "tradução", se assim se prefere dizer — para todos osproblemas filosoficos dogmaticos, ou mesmo, não hesito emdizer, para a maior parte deles Quando um problema dog-manco, por exemplo, concerne tão-somente a existencia eas propriedades de entidades ou processos transcendentespostulados e definidos no interior do discurso dogmaticosem nenhuma referencia direta a entidades ou processosque se reconhecem no mundo fenomenico, ou quando dizrespeito as alegadas relações de tais entidades e processosuns com os outros ou mesmo com aparencias fenomenicas,não se vislumbra em geral como possa o cetico "traduzir" talproblema no discurso da fenomenicidade Pela sua mesmanatureza, esses problemas parecem totalmente internos aodiscurso especulativo Mas a maioria dos que acima menci-onei como exemplos podem claramente ser formuladosnum ou noutro registro

Assim, para retomar apenas um dentre eles, pode-mos postular a existencia de relações causais absolutas entreeventos tomados como em si mesmos absolutamente reais einvestigar problemas concernentes a exata natureza e esco-po dessas relações, discutir e examinar a pertinência, ounão-pertmencia, de conceber nosso universo fisico, tomadocomo absolutamente e em si mesmo real, sob a perspectivade um determinismo (ou de um indeterminismo) radical,etc nossas problematizações e nosso discurso todo são ai,obviamente, dogmaticos Mas podemos tambem, com baseem nossa experiencia comum, descrever de modo sistemati-co e critico as situações em que costumeiramente nos ser-vimos do vocabulario da causalidade, assim como nossa

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compreensão e concepção "natural" e costumeira dos pro-cessos ditos causais, e a partir dai investigar, por exemplo,se a referência a causas e ou não imprescindivel para aconstituição de uma ciência voltada para a experiencia, secabe ou não falar — e em que sentido — de necessidade nasrelações ditas causais, etc esses e outros problemas se po-dem manifestamente formular — e tentar resolver — man-tendo-nos no interior do registro fenomenico Umaremissão a Sexto Empinco e aqui oportuna Sexto nos pre-servou os oito Modos de Enesidemo contra as etiologiasdogmaticas (cf H P I, 180-185) e tambem, ele propno, des-envolveu extensamente em A M IX, 195-330, toda umaargumentação contraditoria acerca da causalidade, cuida-dosamente expondo os argumentos com que os dogmáticosdefendem a existência da causa, assim como aqueles quedialeticamente os ceticos lhes opõem em favor da tese con-trana, insistindo, como de habito, em sua igual força e ca-pacidade de persuasão (cf, , tbidem, 207), o mesmo procedi-mento e repetido de modo mais resumido em H P III, 17-29, passagem em cujo final, apos relembrar a igual plausibi-lidade dos argumentos numa e noutra direção, conclui pela"necessidade de suspender o juizo tambem sobre a realidadesubstancial da causa, dizendo que uma causa não mais exis-te que não existe, no quanto respeita ao que e dito pelosdogmaticos (hoson ept tos legomenots hypo ton dogmattkent) "O que não impede o filosofo de, ao lidar com a doutrinados signos e, em particular, dos signos rememorativos, des-envolver toda uma teoria "humeana" da conjunção cons-tante entre fenômenos observados," reintroduzindo inclu-sive o vocabulano da causalidade num uso não-dogmatico(cf A M V, 103-104) Suspenso o juizo no que concerneao discurso dogmatico sobre a causa, o filosofo cetico, en-tretanto, aborda, discute e tenta solucionar o problema da

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causalidade, agora deslocado para a esfera fenomênica Oproblema e, por assim dizer, recuperado sob outra roupa-gem

No que concerne, alias, a esse processo de"tradução" do discurso filosofico dogmatico no discurso fe-nomemco, e tambem oportuno lembrar que frequentes ve-zes se utilizam os mesmos termos do discurso dogmatico,como se um outro indice lhes fosse aposto o cenco critica adoutrina dogmatica do criterio (de realidade e verdade) esuspende o juizo sobre a existência de critenos, mas diz ori-entar-se por critenos (praticos) (ef H P I, 21-24, A M VII,29 ss ), ele critica o carater doutrmano do discurso dogma-tico, mas diz possuir uma doutrina (fenomêmea) (cf H P16-17), ele suspende o juizo sobre as opiniões e crençasdogmaticas e critica, como de algum modo dogmatizantes,as crenças dos neo-acadêmicos, mas reconhece ter crenças eopiniões (fenomenicas) (cf H P I, 13-15, 229-230), ele,como ha pouco vimos, questiona a doutrina dogmanca dacausalidade, mas se permite falar em causas (fenomêmeas)E como se o cetico, a proposito desses termos, nos propu-sesse distinguir entre criteno-indice 1 e cnteno-indice O,doutrina-1 e doutrina-O, crença-1 e crença-O, causa-1 e cau-sa-O 4° Foi em consonancia com essa linha de pensamentoque, em "Verdade, Realismo, Ceticismo," propus, para usareste modo de expressão, a distinção entre verdade-1 e ver-dade-O, entre realismo-1 e realismo-O Assim como propo-nho que se introduza a distinção entre eiencia-1 e ciência-0Sexto Empine°, por certo, não introduziu estas ultimasdistinções, fazê-lo e no entanto plenamente conforme aoespirito do pirronismo

Mas talvez devamos corrigir nosso modo de expri-mir-nos Estamos falando de "tradução" do discurso filoso-fico dogmatico no discurso fenomenico, devenamos antes

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falar de "retradução " Ou, mais diretamente ainda e commais propriedade, de retorno ao discurso comum Pois, namesma medida em que o discurso comum e anterior, crono-logica e logicamente, ao discurso dogmatico, na mesmamedida em que foi a filosofia dogmatica que se aproprioude termos da linguagem comum e lhes acrescentou signifi-cados pretensamente transcendentes — estes, em verdade,se tornaram, para nos, filosofos, e para quantos receberamuma formação influenciada pela tradição filosofica, de talmodo costumeiros que tendemos a esquecer o fato de queforam sobrepostos pela filosofia aos significados originais dalinguagem comum —, nessa medida caberia antes dizer que,no quanto concerne ao uso de muitos dos termos que em-prega, foi o dogmatismo que empreendeu uma "tradução"do discurso comum no discurso dogmatico que instaurouO que o cetico agora se propõe e a fazer o caminho inverso,recuperando o discurso da fenomeniadade, isto e, o discur-so da vida comum expurgado de quaisquer conotaçõesdogmaticas 41

Devemos, então, compreender que muitos dos pro-blemas filosoficos — certamente apenas uma parte deles —com que se ocupou e ocupa a filosofia dogmatica não repre-sentam outra coisa senão o deslocamento de problemas fe-nomenicos para o espaço extramundano por ela pretensa-mente constituido Problemas que se formularam, ou sepoderiam ao menos ter formulado, anteriormente a sua"tradução" no discurso dogmatico Problemas pertinentes aesfera do fenômeno e a investigação que o homem filosofo,que se libertou do dogma, pode legitimamente sobre elaempreender E, nesse caso então, parte importante do tra-tamento desses problemas no registro dogmatico pode seramplamente aproveitada pela filosofia cética em sua explo-ração do mundo fenomênico, bastando que se opere a de-

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vida "retradução " Aparece-me, com efeito, que importantesanalises, discussões, hipoteses de trabalho, construções ar-gu/mentativas e, mesmo, propostas de soluções para osproblemas aventados que foram desenvolvidas pelos filoso-fos dogmaticos muitas e muitas vezes não estão essencialmentevinculadas com a interpretação transfenomênica e dogmatica queeles lhes associaram, por isso mesmo sendo eventualmentesuscetiveis de serem utilizadas num contexto estritamentefenomênico Tal parece-me ser o caso com um numero ex-traordinariamente grande de discursos filosoficos em areastão diferentes como as da filosofia moral, teoria da ação,filosofia politica, teoria do conhecimento, filosofia da logi-ca, filosofia da ciência, etc

E como se, na historia do pensamento filosofico, noque concerne a tais discursos, a adoção de uma perspectivadogmatica tivesse sido mera contingencia historica — insis-tente, duradoura, milenar, nem por isso menos contingên-cia —, explicavel pelas caracteristicas proprias as constela-ções culturais em cujo interior essas formas de pensamentose produziram Ou, dira o filosofo cetico se quiser adotarum tom algo provocativo e exprimir-se de um modo quehorrorizaria Aristoteles, um recorrente acidente de percur-so Esse ponto parece-me extremamente importante por-que permite dissipar um compreensivel temor que se podeapossar de quem, sensivel embora ao questionamento ceti-co das filosofias dogmaticas, relutaria talvez em assumir apostura cetica, temeroso de que fazê-lo devesse significaruma dolorosa renuncia a tudo quanto se contem nos dis-cursos todos de nossa tradição filosofica, a maior parte daqual inegavelmente se construiu no registro dogmattcoMas essa renuncia e totalmente desnecessaria e, mais queisso, e injustificavel e, mesmo, inaceitavel, se examinada aluz de um ceticismo consequente Sob exteriores dogmati-

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cos se escondem, nessa tradição, tesouros preciosos quecumpre integralmente recuperar E mais um desafio para oneopirronismo

12 Perguntar-se-a acaso se não se podem repetir a respeitodos problemas filosoficos fenomênicos os mesmos percalçosque vimos comprometer os problemas dogmaticos Mas elesnão se podem de fato repetir, porque se erradicou a causaque os gerava, a qual, em ultima analise, não era outra senão o fato mesmo de formularem-se os problemas e tentar-se resolve-los num registro pretensamente transfenomenicoEm primeiro lugar, a formulação de muitos dos problemasdogmaticos tem claramente pressupostos filosoficos especifi-cos, tais problemas dependem estritamente da aceitação decertas perspectivas filosoficas particulares e de perspectivas,não seria preciso acrescentar, claramente dogmaticas, en-quanto isso evidentemente não ocorre com os problemasfenomênicos, cuja formulação se propõe inteiramente noregistro fenomenico e não decorre, direta ou indiretamente,de qualquer postura filosofica particular

Por outro lado, os problemas filosoficos fenomeni-cos, ao contrario do que ocorre com os dogmaticos, sãoformulados exclusivamente em termos da linguagem feno-mênica, mesmo se enriquecida e sofisticada, cu j as sig-nificações sempre remetem a experiencia da vida comum esão, nessa medida, ao menos potencialmente, objeto de re-conhecimento consensual Porque não se trata de significa-ções pretensamente transcendentes, porque suas definiçõesimplicitas ou explicitas não estão vinculadas a nenhumaperspectiva filosofica, as dificuldades semanticas que afligemas formulações filosoficas dogmaticas não ressurgem aqui

As premissas sobre as quais se construirão as infe-rencias argumentativas proprias aos problemas filosoficos

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fenomênicos não poderão, por definição, exprimir senão ofenômeno comum, intersubjetivamente reconhe-cido Aplena consciencla de que a investigação filosofica não podeprogredir, se não se busca o acordo em torno das premissasutilizadas, e de que somente as que exprimem o fenômenocomum são candidatas habeis a serem objeto de um talconsenso torna o filosofo cetico particularmente atento aomodo e aos termos com que as formula Ele confere grandeimportancia a qualquer eventual objeção que venha im-pugnar o carater fenomenico comum, que ele assume comoreconhecido, de uma premissa qualquer de seu discurso Eele não entende — nem poderia, como cetico, entender —que sua linguagem fenomenica seja essencialmente e pornatureza apta a exprimir de modo preciso as aparências fe-nomênicas Ao cetwo aparece que a significatividade dalinguagem e meramente convencional' e que torna-la ade-quada a expressão da vida e do mundo comum e um em-preendimento coletivo continuado e sem fim Ele sabe tam-bem, por experiencia, que muito dogma subrepticamentese dissimula em meio a linguagem cotidiana e nem semprefacilmente se detecta Por essas razões todas, ele esta per-manentemente disposto a rever e refazer sua linguagem, apropor novas formulações para seu pensamento, a levarcuidadosamente em conta quantas impugnações se lheoponham

De outro lado, na construção fenomênica da argu-mentação filosofica, não servira o fenomeno a que se recor-re de ponto de embarque para nenhuma viagem transcen-dental E se manterá sempre viva a consciencia da relativaprecariedade das inferências construidas E forçoso reco-nhecer que não se dispõe de antidotos seguros para garantira preservação das mesmas significações dos termos nas dife-rentes proposições que fazem sua aparição ao longo do des-

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envolvimento do discurso argumentanvo, conforme acomplexidade da tematica envolvida Alem disso, as infe-rências se constroem de acordo com a logica "natural" dalinguagem comum e o filosofo cetico esta plenamenteconsciente de que os desenvolvimentos inferenciais da lin-guagem comum não comungam da demonstratividade pro-pria as linguagens formalizadas com que lida a logica for-mal

Eis por que o filosofo fenomênico — permitamo-nosassim falar — tera sempre de considerar as soluções propos-tas para os problemas de que se ocupa como soluções me-ramente tentativas, como necessariamente hipoteticas Maisainda que no caso das premissas, ele se obriga a submeterseus resultados, que sabe intrinsecamente precanos, ao cri-vo de seus pares A busca de um possivel consenso inter-subjetivo em torno de suas conclusões e para ele de muitaimportância, donde o seu necessano empenho em estabele-cer um dialogo aberto com os que condescenderem emexaminar, debater e criticar, sem fazer valer nesse exame,debate e critica, razões quaisquer de ordem dogmatica Por-que, sendo cenco, nosso filosofo teme, mais que tudo, servitima da precipitação que vitima os dogmatismos Elepermanentemente considera que somente uma eventualaceitação, pelos outros, de seus resultados tendera a indicarque conseguiu superar os caprichos de sua subjetividadeCaso lograda, essa aceitação, conseguida por via de argu-mentos, podera configurar um passo de alguma importânciapara a obtenção de um certo progresso, mesmo se precano erelativo, em torno de problemas concernentes a nossomundo fenomênico De qualquer modo, o filosofo ceticoaposta na comunidade da razão humana, toda a sua experi-ência o induz a essa aposta

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Mas o filosofo esta tambem plenamente conscientede que obstaculos inumeros naturalmente estorvam — eestorvarão sempre — a consecução de tais acordos, mesmoentre sujeitos identicamente empenhados em utilizar tão-somente um discurso fenomênico, entre sujeitos firmementedecididos a não deixar-se recontammar pelo virus dogmati-co Para não falar da grande raridade de interlocutores não-dogmaticos E, por outro lado, não e tranquilo, mesmopara os ceticos, o empreendimento de superação das parti-cularidades idiossincraticas dos pontos de vista individuaisem direção a concretização de uma perspectiva fenomenicacomum, devido, entre outras causas, a propria complexida-de de grande parte dos problemas enfrentados Uma explo-ração mais profunda do mundo fenomênico compreensi-velmente exige um trabalho de aprimoramento critico euma reelaboração inventiva permanente dos recursos lin-guisticos a serem utilizados, sobretudo quando se renuncioua ilusão de uma adequação espontânea e natural da lingua-gem ao conteudo rico e em permanente evolução de nossaexperiência comum E as circunstâncias físicas, sociais e cul-turais tornam problematica a ocorrência de situações quefacilitem a consulta e o dialogo permanentes, condições en-tretanto impresandiveis para levar a cabo uma investigaçãoque se desejaria fosse empreendida num esforço comum ecompartilhado A filosofia dogrnatica privilegiou sempre asindividualidades e a "livre" operação de sua inventividadeimaginosa Entretanto, por sua propria natureza, o progres-so da investigação filosofica fenomenica depende grande-mente de uma interação fecunda entre os que a ela se resol-vam dedicar Certamente, não tem sido essa a regra de nos-so filosofar Ao propô-la, estaremos acaso dando apenasexpressão a um pensamento desejoso? Talvez não devamosser tão pessimistas

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De tudo isso resulta claramente que divergências depontos de vista muito compreensivelmente dever-se-ãomanifestar na construção de uma filosofia fenomênica e ce-tica, estou obviamente falando de divergencias entre pen-sadores ceticos que comungam da mesma postura fenome-nica basica Entretanto, se essa e efetivamente sua postura,se seus pontos de vista não estão por isso mesmo associadosa nenhuma opção dogmatica, não se fazem, então, presen-tes os obstaculos que condenam o pensamento dogmatico,sempre e em cada caso, a uma indecidível diaplionía Pois oque assegura o equilibrio sempre encontrado no debatedogmatico entre as teses confinantes parece precisamenteser a "liberdade criadora" do logos que, decididamente refu-gindo de qualquer limitação oriunda da experiência feno-mênica, se faz sempre suficientemente poderoso para mode-lar e interpretar a argumentação ao sabor de suas ficçõesNesse sentido, divergências no interior da esfera fenomêni-ca, necessariamente circunscritas e limitadas pelas exigênci-as da fenomenicidade comum, nada têm a ver com a dia-phonia entre dogmas, não exibem habitualmente uma situa-ção de isosthenela e não têm por que tender a uma suspen-são de juizo Ainda que em muitos casos, obviamente, situ-ações de equilibrio possam ocorrer e suspensões de juizo sepossam eventualmente produzir (cf, , acima, n (35)) Osproblemas filosóficos fenomênicos não comungam dos via-os que afetam os problemas dogmaticos e não têm por quecompartilhar do destino que a experiencia tem a estes cos-tumenamente reservado

Sexto Empirico disse ser o ceticismo, nisso residindosua diferença basica com relação as filosofias dogmatica eacadêmica, uma filosofia da investigação (zetesis) permanen-te (cf H P 1, 1, tambem 7) Ele tinha em mente o caratersempre pontual e precario da atitude suspensiva, o fato de

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que a nenhum momento pretende o cetico ter encontradouma solução, positiva ou negativa, para a busca dogmaticada verdade, a nenhum momento pretende ter alcançadoresultados definitivos, qualquer que seja a natureza dessesresultados, com relação a problematica instaurada pela filo-sofia tradicional Por isso mesmo, porque a tentação do ab-soluto e ameaça sempre recorrente e não ha nem pode ha-ver como erradica-Ia, porque não ha como dispensar seucontinuo questionamento, a zeteszs cetica, denuncia e ques-tionamento do absoluto, e uma tarefa sem fim

Eu proponho, no entanto, que se acrescente um ou-tro sentido à expressão Isto e, que se fale de zetesis tambema proposito da investigação e exploração filosofica da feno-meniadade, estendendo e em alguma medida corrigindo ouso sextiano Procurei esboçar acima, com algumas rapidaspinceladas, um perfil dessa proposta de investigação, intei-ramente adstrita a esfera fenomênica, lidando com proble-mas filosoficos formulados, equacionados e por vezes tenta-tivamente solucionados no interior do registro fenomenicodo discurso Tambem aqui se trata, mas por razão bem dife-rente, de uma tarefa sem fim e que não ha por que suporque faça algum sentido aspirar a uma imagem definitiva domundo fenomênico O que de nenhum modo, entretanto,exclui que se façam avanços e que por vezes se fale, comboas razões, em progresso

Toda essa tematica me parece de muita importânciaE preciso rejeitar de vez malentendidos seculares que distor-cem o significado e alcance filosofico de uma postura ceticade inspiração pirronica Eu tentei definir aqui, sob umprisma integralmente cetico, algumas condições em que meparece dificil recusar a legitimidade de problemas filosoficosNa esperança de que isso represente alguma contribuição

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para o bom equacionamento de um dos problemas maiscandentes — e mais legaimos — da filosofia em nossos dias

Bibliografia

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— 1958 Aristotelis Topica et Sophistia Elencht ed W DRoss, Oxonn e Typographeo Clarendoniano

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Frede, M 1987 "Philosophy and Medicine in Antiquity "in Essays in Anctent Phdosophy Oxford Clarendon Press,pp 225-242

Porchat Pereira, O 1993 Vida Comum e Ceticismo SãoPaulo Editora Brasihense O livro reune vanos textos,entre os quais "Sobre o que Aparece" (p 166-212) e"Ceticismo e Argumentação" (p 213-254), que são cita-dos neste artigo

— 1995 "Verdade, Realismo, Ceticismo " Discurso 25São Paulo

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Palavras-chaveProblema filosófico, legitimidade, discurso fenomênico

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O Ceticismo Purontro e os Problemas Fdosoficos

Oswaldo Porchat PereiraDepartamento de FilosofiaUniversidade de São Paulo

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Notas

1 Lidei com esse tema nas paginas iniciais de "Ceticismo e Argu-mentação", cf Porchat (1993), p 213 ss2 Estou citando o fragm 2 do Protreptikos na versão de Elias, inPorph 3 17-23, cf Aristoteles (1958), p 273 Parte importante da obra filosofica de Manuel Maria Carrilhogira fundamentalmente em torno da noção de problema filosofi-co Seu livro Jogos de Racionaltdade (Carrilho (1994)) elabora otema com profundidade e abrangendo4 Cf Wittgenstem (1968), 139, 255, cf tombem 109, 1195 O dogmatico, isto e, o filosofo que entende ter descoberto averdade (cf Sexto Emptrico (1933-1936), H P I, 2-3), "põe comoreal aquela coisa sobre a qual se diz que ele dogmatiza" (hos hypa-rkhon tithetai to pragma eketno ho legetai dogmatizem) (H P I, 14),"põe como real aquilo sobre o que dogmatiza" (H P I, 15) Odogma e "assentimento a algo não-evidente" (tini adelo sygkatathesm) (H P I, 16), "assentimento a uma das coisas não-evidentesinvestigadas pelas dencias" (H P I, 13) Usarei, como e praxe, assiglas "H P " e "A M " para referir-me as Htpottposes Pirromancts eaos livros Adversus Mathematccos de Sexto6 Acerca do carater tetico do discurso dogmatico, cf "Sobre oque Aparece", in Porchat (1993), p 1817 A tsostheneta, equipolenda, e a igualdade dos discursos quantoa credibilidade e incredibilidade, "de modo a nenhum dos discur-sos confinantes ser superior a nenhum outro, como mais dignode fe" (H P I, 10), cf tambem H P I, 202-205 O cetico conduzsua investigação de modo a realçar essa posição de equihbrio dasforças em disputa, cf A M VIII, 159, tombem "Ceticismo e Ar-rmentação", tn Porchat (1993), p 228

Sobre a insistenda pirronica na diaphonia (discrepando, discor-dando, controversia) das doutrinas dogmaticas e sua fundamen-

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tal mdeadibilidade, cf "Ceticismo e Argumentação", p 219 ss ,onde se faz referencia a grande numero de passa-gens da obra deSexto Empina) nas quais surge essa temanca9 Em varias passagens, Sexto nos apresenta a epokhe como umestado da mente caracterizado pela incapacidade de optar entreposições opostas, cf H P I, 7, 10, 26, 165 Cf tambem "Sobre oque Aparece", p 169-170, e "Ceticismo e Argumenta-ção", p228-2291 ° Sobre o negativismo epistemologico atribuido por Sexto aosfilosofos da Nova Academia, cf H P I, 1-4, 226 ss11 Sobre a ataraxia cetica como corolano da suspensão de juizo,cf H P I, 25 ss12 Sexto assim caracteriza a filosofia cetica desde o inicio mesmodas Hipotiposes, cf H P I, 1-3, 713 Sobre o uso dialetico pelo ceticismo pirromco do metodo dasantinomias, cf "Ceticismo e Argumentação", pp 227-23214 Introduzi o termo "neopirromco" no final de "Sobre o queAparece" (cf p 212) e continuo a dele servir-me, na medida emque me tenho proposto a repensar e reelaborar a postura pirrom-ca do ceticismo grego de modo a desenvolve-la e atualiza-la eadapta-la a reflexão filosofica de nossos dias, cf Porchat (1995),

315 Reconheço ser controverso que se possa falar, no sentido cenco

do termo, de um dogmatismo do segundo Wittgenstem Em seuexcelente artigo sobre Wittgenstem e o pirromsmo (cf Smith(1993)), Mimo Smith recusa a tese de que o filosofo teria elabora-do uma concepção dogmatica da natureza da filosofia e do dis-curso filosofico (cf p 183), entendendo, ao contrario, que elepromoveu "uma espeae de renovação da tradição pirromca, numsentido bastante original" (p 180), posicionando-se "no campodo não-saber pre-filosofico" e partindo da linguagem comum paraindagar pelo significado de cada discurso filosofico, pensando sua"terapia" a partir do reconhecimento do fato lustonco filosofico repre-sentado pela frequente instauração, pelos filosofos, de um dona-= linguistico tornado possivel pela distorção do uso ordmanodas palavras e pela violação da "gramatica" da lingua comum (cfp 184) Se Smith tem razão, então Wittgenstem constituiria umaexceção dentro do panorama a que me estou referindo

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16 E preciso dizer que, por vezes, Sexto não distingue explicita-mente entre essas duas etapas e mistura a discussão das teses so-bre pretensas realidades asseridas pelos dogmaticos com conside-rações sobre a inteligibilidade dos conceitos utilizados, cf, , porexemplo, H P II, 123 (acerca do signo), 171 (so-bre a prova)17 Tambem em A M VII, 283-284, apos passar em revista e criti-car os varios conceitos de homem propostos por diferentes filoso-fos, Sexto diz ter mostrado que "o homem e mconcebivel(anepmoetos), no quanto concerne aos conceitos (ennoiais) dosdogmaticos "18 Cabe, sem duvida, aplicar aqui a doutrina sextiana dos signosrememoramos o cetico não faz nenhuma objeção a doutrina detais signos e reconhece que certos fenomenos legitimamente nosremetem a certos outros, mesmo se estes ocasio-nalmente não seobservam — ou ainda não se observam —, quando a experienciapassada fez reter em nossa memoria a sua constante e observavelconjunção diremos, então, que a investigação presente de umtema a que o cetico se dedica opera como um signo rememorati-vo a anunciar a epokhe futura, tendo em vista a experiencia pas-sada Sobre a aceitação pirronica dos signos rememoramos, cf"Ceticismo e Argumentação," pp 236-819 Sigo o uso de Frede (cf Frede (1987) particularmente pp 234-7), traduzindo, nesse contexto, logzkoi por "racionalistas" Comose sabe, tres foram as grandes correntes medicas da epoca hele-mstica os "dogmaticos" ou "racionalistas", que atribulam ao ra-mo.= especulativo um papel determinante no diagnostico etratamento das doenças, os "empincos", que postulavam a ma-preensibilidade das causas ocultas das enfermidades, e os"metodicos" que, conforme nos diz Sexto, adotavam uma posturaconforme a dos ceticos, guiando-se pelos fenomenos observaveis eevitando a precipitação dogmatica das duas primeiras correntes,cf H P I, 236-5120 E Sexto nos diz (ibidem) que, assim como os medicos receitamremedios diferentes conforme a maior ou menor intensidade dasafecções a serem tratadas, assim tambem os ceticos usam de ar-gumentos de diferente força, de argumentos mais "pesados" e demais intensa capacidade demolidora contra a afecção dogmaticada presunção (to tes oieseos fon dogmatzkon pathos) para com os

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intensamente maltratados pela precipitação (propeteia), de argu-mentos mais leves para com aqueles cuja afecção de presunção esuperficial e facil de curar21 Na sequencia do texto (VIII, 481), introduz Sexto a famosametafora da escada, que Wittgenstem retomaria os argumentosque o cenco dialeticamente utiliza para sustentar contra a logicadogmanca a inexistencia de provas ou demonstrações são comouma escada de que alguem se serviu para subir a um lugar alto e

2que pode, apos ter subido, derrubar com o pe O tratamento adequado desta questão, consoante a perspectiva

introduzida pelo autor, exigiria que considerassemos mais deti-damente o tema da critica ao proposicionalismo e o papel decisi-vo que Carrilho atribui a assimilação entre proposição e proble-ma no desenvolvimento da racionalidade ocidental, ao mesmotempo em que insiste, em sentido contrario, na importancia deque essas noções sejam claramente distinguias, cf Carrilho(1994), pp 28-9 Mas não dispomos aqui de espaço para tanto23 Vejam-se os textos acima referidos na nota (6) Cf, tan-ibern,"Ceticismo e Argumentação", pp 213-1524 Sobre a noção de fenomeno e seu amplo escopo na filosofiacenca, cf "Sobre o que Aparece" /ri Porchat (1993), cf, , tambem,"Ceticismo e Argumentação", pp 233 ss25 Sobre o sentido das "crenças" e das "certezas" de um cenco, cf"Sobre o que Aparece", pp 194-9526 Cf ibidem, pp 206-7 e os textos de Sexto ai referidos na nota(31), tambem "Ceticismo e Argumentação", pp 238-3927 Em "Verdade, Realismo, Ceticismo" comentei vanos textos deSexto Empinco que temanzam os fenomenos comuns, cf Porchat(1995), pp 33-428 Transcrevo essa passagem de "Verdade, Realismo, Ceticismo",cf, , ibidem, p 4929 Sobre o uso pelos ceticos do discurso comum, cf "Sobre o queAparece", pp 180-1, tambem "Ceticismo e Argumentação", pp236SS39 Sobre por que cabe plenamente falar de uma visão cetica domundo, cf "Sobre o que Aparece", pp 198 ss31 A esse respeito, cf "Ceticismo e Argumentação", pp 231-2

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32 Sobre esse ponto, cf "Ceticismo e Argumentação", pp 244 sse, particularmente, p 24933 Pertence, assim, inteiramente ao registro fenomemco, leitoratento, este discurso que voce agora esta lendo Ele exprime oque aparece, aqui e agora, a quem o escreve e eu espero contribu-ir para que estas coisas tambem apareçam assim a voce34 Sobre o uso cenco da argumentação "fenomenica", cf toda aseção 5 de "Ceticismo e Argumentação", pp 239-44, nesse texto,insisti na necessidade de se atentar para o fato de que o cencoquestionou tão-somente a argumentação dogmanca, de que ele anenhum momento vinculou a argumentação, enquanto tal, aodiscurso dogmanco e tenco e de que, em verdade, recuperou in-tegralmente o valor comunicacional da argumentação, cf, , ibi-dem, p 24333 Ou, se assim se preferir, se dira que diaphonia se diz em doissentidos, num primeiro sentido dizendo respeito as controversiasdogmancas, cujo exame conduz sempre a uma situaçao de equih-brio e equipolencia (isostheneta) entre as teses confinantes e acar-reta sempre a suspensão de juizo (epokhe), num segundo sentido,dizendo respeito a divergencias quaisquer de opiniões e pontos devista, divergencias estas que, quando concernem tão-somente aaparenaas fenomenicas, no mais das vezes não envolvem umaequipolencia dos opostos, permitindo por conseguinte definiçõese opções relativas, situações as vezes podem, e certo, ter lugar,nas quais uma eventual equipolencia entre os pontos de vistaconfinantes (isostheneta, portanto, num segundo sentido) condu-zira a uma suspensão provisona de juizo (epokhe, num sentidosegundo)36 Sobre a postura do ceticismo pirromco com relação a aenaa,que a meu ver confere plenamente sentido a expressão "cienciacetica", cf "Sobre o que Aparece", seção 13, pp 205 ss , e"Ceticismo e Argumentação", pp 238-9 Cf, tambem, Porchat(1995), pp 34-537 No artigo "Verdade, Realismo, Ceticismo" defendi a legitimi-dade e a necessidade de redefinir-se o conceito de verdade emtermos conformes a postura pirronica, cf particularmente pp 40ss Conforme as considerações que desenvolvo a seguir, todo

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aquele texto pode tomar-se como uma discussão e equacionamen-to, no registro fenomemco, do problema filosofico da verdade38 Cf Anstoteles, Top I, 11, 104 b1-5 "Problema dialetico e umobjeto de investigação que se direaona ou para a escolha e rejei-ção ou para a verdade e conhecimento e ou por ele propno oucomo auxilio para algo outro dessa natureza, a cujo respeito ounão tem opinião ou tem opiniões contrarias a maioria com rela-ção aos sabios ou os sabios com relação a maioria ou cada umdestes grupos em seu mesmo interior"39 Sobre a doutrina cenca dos signos rememorativos e sua extra-ordmana afinidade com a doutrina humeana da causalidade, cf"Ceticismo e Argumentação", pp 236-840 Como assinalei em outro contexto (cf Porchat (1995), pp 42-3e n (34), tambem p 52), Sexto Empinao utiliza com frequenciaas palavras hoson ept seguidas do dativo de certas expressões (porexemplo, como em hoson epi tots legomenots hypo tõn dogmatikõn,na passagem de H P III, 29, que acabo de citar, ou em constru-ções semelhantes em H P II, 22 (sobre o conceito de homem),H P II, 104 (sobre o conceito de signo), H P III, 13 (sobre o con-ceito de causa), passagens estas que acima citei no inicio da seção4), para qualificar e restringir o quesnonamento e a consequentesuspensão pirronica de juizo, indicando que este quesnonamentoe esta suspensão somente incidem sobre usos, comentanos ouinterpretações dogmaticas dos termos e noções discutidas, preser-vando-se portanto o uso fenomenico dos mesmos termos e noções Re-corde-se, por exemplo, que e nesse sentido — e cabe acrescentarapenas nesse sentido —, isto e, enquanto a questão se pretendeequacionar atraves do logos ou razão dogmatica, que a epokhecetica incide sobre a existencia dos objetos ditos exteriores "nossuspendemos o juizo, no quanto respeita ao logos (hoson ept tologo), sobre os objetos exteriores" (H P I, 215)41 Na seção 11 de "Verdade, Realismo, Ceticismo" (cf pp 51 ss ),defendi a ideia de que ao chamado realismo de senso comum —que pode ser lido como um realismo fenomemco, expressão quepretendo traduza a postura cettca diante do mundo de sua expenencia — veio sobrepor-se, ao longo de seculos de filosofia, orealismo metafisico Ao suspender seu juizo sobre o discursodogmanco deste ultimo, o filosofo cem() recupera o discurso on-

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guiam da mundarndade, a introdução do vocabulario do apare-cer cumprindo esta função distinguir entre ser-1 e ser O, substitu-ir o Ser dos filosofos pelo ser do mundo42 Sobre tal perspectiva convencionalista do ceticismo pirronicoem matem de linguagem, cf Porchat (1995), p 41 e notas (32) e(33)

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