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Cheiros também exalam em meio ao concreto Bruno Moreno [email protected] O mês era dezembro. Poderia ser qualquer um do final da década de 80 e início da de 90. Na tentativa de agradar aos dois lados da família, a festa de Natal começava na casa de uma avó e terminava na da outra. No cami- nho de ida, logo no início da noite, um misté- rio, que, até duas semanas atrás, não havia sido solucionado. A origem do desconhecido é ainda mais antiga. Minha mãe, fluminense de Nite- rói, se mudou para a capital mineira na década de 70, pouco tempo após o corte dos fícus da avenida Afonso Pena, em 1963, e logo se impressionou com o “enig- ma”. Naqueles natais do período da redemocratização do Brasil, no trajeto en- tre as casas das avós, ela sempre revela- va: “Este é o cheiro de Belo Horizonte!” Um perfume sutil e inesquecível. Mas de onde viria? A identificação da árvore foi difí- cil, mas sem pressa. O cheiro passa, você tenta senti-lo novamente, mas não o encon- tra mais. Muitos são os locais onde é possível localizá-lo, principalmente nos bairros Fun- cionários, Lourdes e Serra. Um deles é a Praça ABC, no encontro das avenidas Afonso Pena e Getúlio Vargas. Ao explicar a um botânico o local e as características do aroma da planta, nos últi- mos dias de novembro, ele ponderou que existem algumas espécies que perfumam os ares de Belo Horizonte, como a dama da noite, murta e oiti. Mas logo desvendou o mistério: “Você está falando é da magnólia!” E de onde vem essa flor e por que tem sido cada vez mais difícil de se perceber o seu tradicional cheiro pela capital mineira? Ape- sar de ser originária da Índia, a magnólia está entre as dez espécies mais plantadas pela Prefeitura Municipal em locais públi- cos, como parques, praças, passeios e cantei- ros centrais. Ela pode atingir até 15 metros e, por isso, normalmente não está embaixo de fiação que polui a paisagem da cidade. Nos últimos anos, tem sido complicado encontrá-la nas ruas. Ou melhor, perceber o seu perfume. Há algumas hipóteses. Uma delas é a de que a magnólia gosta de climas mais frios para florir, e Belo Horizonte, assim como o Brasil e o mundo, tem ficado cada vez mais quente. O argumento tem fundamento. A base de dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) comprova que Minas Gerais passa por um processo de aquecimento. Em 1961, quando foi iniciada a série histórica do órgão, a temperatura mínima média anual era de 17º centígrados. No ano passado, o indicador se elevou, alcançado os 20º, ou seja 3º a mais. Outra possibilidade é a poluição da cidade. Quanto mais carros, ônibus e caminhões, com seus escapamentos barulhentos e fedo- rentos, menores são as chances de experimen- tar o tão sutil perfume. Até mesmo na Praça ABC, onde há vários exemplares plantados, é difícil sentir o cheiro. Os donos das três ban- cas, uma papelaria e uma encadernadora que existem no local não o percebem. Apesar de passar despercebido para al- guns, o aroma da magnólia não é apenas mais um perfume na cidade. Está na me- mória olfativa e carinhosa de muitos belo- horizontinos, principalmente daqueles que viveram na capital entre 1970 e 1980. Encontrá-lo, hoje em dia, é um desafio. Há, no entanto, tarefas mais simples, que mostram que os bons ares não estão apenas nas árvores plantadas pela cidade. Todas as sextas-feiras, a feira de flores, ao lado do Colégio Arnaldo, no bairro Santa Efigênia, colore a paisagem e perfuma a vida de quem passa pelo local. Tem de tudo um pouco: gérberas, orquídeas, bromélias, crisântemos, amarílis, rosas. Essas eram algumas das flores que mi- nha mãe vendia em sua floricultura, entre 1996 e 1999. Nove meses antes de a loja ser fechada, ela teve seu último Natal. Nessa época do ano, quando as magnó- lias florescem, me sinto mais em casa, nas ruas de Belo Horizonte. q O cheiro de Belo Horizonte não vem ape- nas das árvores e flores, plantadas nas casas, prédios, parques, praças e passeios. No Mercado Central, um dos principais polos turísticos e gastronômicos da capi- tal, muitas são as iguarias vendidas, com destaque para o fígado com jiló. E ain- da há outras maneiras de perceber os aromas do local. Dona Olga Apa- recida Neves, de 69 anos, trabalha lá desde os 16. Vende todo tipo de especiarias, como pimentas, ervas, cravo e canela. A barraca dela, denominada “Rei das Pi- mentas”, atrai as pessoas pelo perfume. “Quem compra chei- ra antes”, garante. q A feira de flores, ao lado do Colégio Arnaldo, colore a paisagem da capital mineira e perfuma a vida de quem passa pelo local Originária da Índia, a magnólia está entre as dez espécies de flores mais plantadas em Belo Horizonte e tem cheiro inconfundível Os perfumes FOTOS MARCELO PRATES Belo Horizonte, quinta-feira, 12.12.2013 - hojeemdia.com.br - PÁGINA 11 Na barraca de dona Olga, no Mercado Central, cliente experimenta os aromas antes de comprar

O cheiro de BH, no caderno de 116 anos de aniversário da cidade

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Crônica no caderno especial dos 116 anos de Belo Horizonte, apresentando o perfume da cidade, vindo das magnólias. A memória olfativa de BH. Publicado no jornal Hoje em Dia, em 12/12/13.

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Page 1: O cheiro de BH, no caderno de 116 anos de aniversário da cidade

Cheirostambémexalam

emmeioaoconcreto

BrunoMoreno

[email protected]

O mês era dezembro. Poderia ser qualquerum do final da década de 80 e início da de90.Na tentativadeagradaraosdois ladosdafamília, a festadeNatal começavanacasadeuma avó e terminava na da outra. No cami-nhode ida, logono iníciodanoite,ummisté-rio, que, até duas semanas atrás, não haviasido solucionado.A origem do desconhecido é aindamais

antiga. Minha mãe, fluminense de Nite-rói, se mudou para a capital mineira nadécada de 70, pouco tempo após o cortedos fícus da avenida Afonso Pena, em1963, e logo se impressionou como “enig-ma”. Naqueles natais do período daredemocratização do Brasil, no trajeto en-tre as casas das avós, ela sempre revela-va: “Este é o cheiro de Belo Horizonte!”Um perfume sutil e inesquecível. Mas de

onde viria?A identificação da árvore foi difí-

cil, mas sem pressa. O cheiro passa, vocêtenta senti-lo novamente, mas não o encon-tramais.Muitos sãoos locais ondeépossívellocalizá-lo, principalmente nos bairros Fun-cionários, Lourdes e Serra. Um deles é aPraçaABC,noencontrodasavenidasAfonsoPena e Getúlio Vargas.Ao explicar a um botânico o local e as

características do aroma da planta, nos últi-mos dias de novembro, ele ponderou queexistem algumas espécies que perfumamos ares de BeloHorizonte, como a damadanoite, murta e oiti. Mas logo desvendou omistério: “Você está falando édamagnólia!”Ede ondevemessa flor e por que temsido

cada vez mais difícil de se perceber o seutradicional cheiro pela capitalmineira? Ape-sar de ser originária da Índia, a magnóliaestá entre as dez espécies mais plantadaspela Prefeitura Municipal em locais públi-cos, comoparques, praças, passeios e cantei-roscentrais. Elapodeatingiraté15metrose,por isso, normalmente não está embaixo de

fiação que polui a paisagem da cidade.Nos últimos anos, tem sido complicado

encontrá-la nas ruas. Oumelhor, perceber oseu perfume. Há algumas hipóteses. Umadelas é a de que a magnólia gosta de climasmais friospara florir, eBeloHorizonte,assimcomo o Brasil e o mundo, tem ficado cadavez mais quente.O argumento tem fundamento. A base de

dados do InstitutoNacional deMeteorologia(Inmet) comprova que Minas Gerais passapor um processo de aquecimento. Em 1961,quandofoi iniciadaasériehistóricadoórgão,a temperatura mínima média anual era de17ºcentígrados.Noanopassado,o indicadorseelevou,alcançadoos20º,ouseja3ºamais.Outra possibilidade é a poluição da cidade.

Quanto mais carros, ônibus e caminhões,com seus escapamentos barulhentos e fedo-rentos,menoressãoaschancesdeexperimen-tar o tão sutil perfume. Até mesmo na PraçaABC, onde há vários exemplares plantados, édifícil sentir o cheiro. Os donos das três ban-cas,uma papelariaeumaencadernadora queexistem no local não o percebem.Apesar de passar despercebido para al-

guns, o aroma da magnólia não é apenasmais um perfume na cidade. Está na me-mória olfativa e carinhosa de muitos belo-horizontinos, principalmente daquelesque viveram na capital entre 1970 e 1980.Encontrá-lo, hoje em dia, é um desafio.Há, no entanto, tarefas mais simples,

que mostram que os bons ares não estãoapenas nas árvores plantadas pela cidade.Todas as sextas-feiras, a feira de flores, aolado do Colégio Arnaldo, no bairro SantaEfigênia, colore a paisagem e perfuma avida de quem passa pelo local. Tem detudo um pouco: gérberas, orquídeas,bromélias, crisântemos, amarílis, rosas.Essas eram algumas das flores que mi-

nha mãe vendia em sua floricultura, entre1996 e 1999. Nove meses antes de a lojaser fechada, ela teve seu último Natal.Nessa época do ano, quando as magnó-lias florescem, me sinto mais em casa,nas ruas de Belo Horizonte. q

O cheiro de Belo Horizonte não vem ape-nas das árvores e flores, plantadas nascasas, prédios, parques, praças e passeios.No Mercado Central, um dos principaispolos turísticos e gastronômicos da capi-tal,muitas são as iguarias vendidas, comdestaque para o fígado com jiló. E ain-da há outras maneiras de perceberosaromasdo local.DonaOlgaApa-recidaNeves, de69anos, trabalhalá desde os 16. Vende todo tipode especiarias, como pimentas,ervas, cravoe canela.Abarracadela, denominada “Rei das Pi-mentas”, atrai as pessoas peloperfume. “Quem compra chei-ra antes”, garante.q

Afeirade flores, ao ladodoColégioArnaldo, coloreapaisagemdacapitalmineiraeperfumaavidadequempassapelo local

Origináriada Índia,amagnóliaestáentreasdezespéciesde floresmaisplantadasemBeloHorizontee temcheiro inconfundível

OsperfumesFOTOS MARCELO PRATES

Belo Horizonte, quinta-feira, 12.12.2013 - hojeemdia.com.br - PÁGINA 11

NabarracadedonaOlga,no

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