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O CINEMA DA REVOLUÇÃO PORTUGUESA:
A IDEIA REVOLUCIONÁRIA FRENTE ÀS IMAGENS
Mickaël Robert-Gonçalves1
Resumo: Qual é o papel do cinema durante as lutas? Essa questão provocou, dentro do Portugal revolucionário, uma produção de filmes e de documentos sobre as manifestações politicas que acompanhou o pais nos anos setenta. A través da analise de um corpus de filmes realizados entre 1974 e 1975 e de textos (artigos, manifestos, entrevistas) publicados na mesma época, observa-se umas das ultimas tentativas europeias para atingir um cinema de intervenção (politica, social e cultural) inspirado das praticas militantes e da proposta subversiva dos argentinos Fernando Solanas e Octavio Getino que falavam dum “terceiro cinema”. Num primeiro momento, é preciso entender o que esta em jogo na construção orgânica e teórica no cinema deste período, notavelmente em termos de toma de poder da criação e de semelhança entre o programa de produção cinematográfica e o programa revolucionário geral. Num outro lado, e considerando a pouca visibilidade deste corpus, é interessante confrontar a qualidade documentaria dos filmes efetivamente produzidos com o discurso sobre os filmes dos próprios testemunhas e realizadores desta época. Além disso, pode-se então tentar responder as grandes questões relativas a essência do cinema e começar uma reflexão sobre o que a “ideia revolucionaria” pode fornecer ao cinema. Quais foram as experiências feitas durante o PREC? E, finalmente, que ficou dessas tentativas? Palavras-chave: Cinema português, Revolução, História do Cinema, Documentário, Cinema e Política Contacto: [email protected]
“A história é feita de duas necessidades em conflito, a que exige a continuidade da acumulação capitalista e a da resposta a essa opressão crescente: a
necessidade da revolução”. Rosa Luxemburgo2
1 Mickaël Robert-Gonçalves prepara atualmente uma tese de doutoramento sob a orientação da professora Nicole Brenez em Paris. O titulo da tese é “O cinema português (1974-1980): a revolução pela imagem”. Além disso, ele também é curador e tradutor na editora Lowave e conferencista na Cinemateca francesa. O autor agradece sinceramente a Raquel Schefer pela sua ajuda inestimável na redação deste artigo. 2 Frase de Rosa Luxemburgo presente como citação no início do filme Contra as Multinacionais, da Cinequipa (1977). Robert-Gonçalves, Mickaël. 2014. “O cinema da revolução portuguesa: a ideia revolucionária frente às imagens”. In Atas do III Encontro Anual da AIM, editado por Paulo Cunha e Sérgio Dias Branco, 405-415. Coimbra: AIM. ISBN 978-989-98215-1-4.
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Durante o período revolucionário em Portugal, verificou-se uma
importante produção de filmes e de documentos sobre as manifestações e as
organizações revolucionárias do PREC. De acordo com filmografias consultadas
em diversos livros e artigos, podem contar-se mais de cem filmes de diferentes
durações produzidos entre 1974 e 1977. Em muitos dos títulos desse corpus –
que se encontram disponíveis, em grande parte nos arquivos da Cinemateca
Portuguesa e da RTP, é possível detetar uma clara vontade de colaboração com a
luta política – neste caso, revolucionária –, partilhando ou dando ao povo, aos
camponeses, aos operários, às mulheres, a possibilidade de exprimir-se. A
articulação da pesquisa histórica e da análise estética favorece uma aproximação
a esses objetos audiovisuais complexos.
O papel do cinema, entendido como porta-voz dos oprimidos, mostra-nos
que este pode ser repensado tanto a partir das práticas, como dos objetivos de
produção. O facto de que os cineastas tenham pensado em organizar-se
coletivamente em cooperativas é também uma prova de que durante esse
período histórico singular houve uma emulação que provocou debates e
interrogações sobre o que deveria ser o cinema. O cinema de luta deva, talvez,
responder às seguintes perguntas: “que imagens são mostradas e que imagens
são escondidas?” (Brenez 2006, 51-52) Além disso, apoiando-nos em filmes “de
intervenção social e cultural”, vislumbramos o modo como o cinema, enquanto
instrumento de registo da realidade, é também uma arma na luta pela
emancipação: representação dos acontecimentos, participação ativa nas lutas,
vontade de cartografar o fenómeno cooperativista e revolucionário. Qual é,
então, o papel do cinema durante a luta política? Assumir um papel único de
registo, aspeto que não deixa de ser muito importante, ou tentar, com os seus
meios, realizar a sua própria revolução? A análise proposta tenta abordar as
particularidades do cinema militante em Portugal – se o 25 de Abril foi uma das
últimas “revoluções românticas”, também é legítimo afirmar que a revolução
portuguesa constituiu uma das últimas tentativas europeias de produzir um
cinema político herdeiro do cinema francês do Maio de 1968 ou inspirado no
cinema Sul-Americano (Solanas sobretudo). Num primeiro momento, é preciso
voltar a certas questões ontológicas da prática da história e confrontá-las com o
cinema enquanto documento; logo, é possível perceber como o cinema tenta
coincidir com o acontecimento. Enfim, o ultimo ponto consiste em saber que
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imagens marcam os espíritos e que imagens se tornam símbolos, ultrapassando
assim a sua ingénua definição como imagens instantâneas, vividas como ações e
condenadas à passagem imparável do tempo.
A difícil receção de um corpus rico: entre a história e a memória
A história do cinema da revolução foi esclarecida e descrita com precisão
num estudo sobre as políticas de cinema entre 1974-1976 de José Filipe Costa,
publicado no livro O Cinema ao Poder! A revolução do 25 de Abril e as políticas de
cinema entre 1974-1976: os grupos, instituições, experiências e projectos (2002).
Nesse retrato da “conquista do poder cinematográfico”, José Filipe Costa mostra
como os serviços cinematográficos foram ocupados, como os profissionais
tomaram conta do Instituto Português de Cinema e fizeram desaparecer o papel
do produtor. Tal como a revolução portuguesa, descrita pelo historiador Jean-
François Labourdette como fazendo-se “com uma rapidez alucinante”
(Labourdette 2000, 612), o cinema seguia com alegria e dinamismo o
desenrolar dos acontecimentos decisivos do PREC. A celeridade da revolução
mencionada por Jean-François Labourdette recorda-nos que, de facto, a queda
do fascismo se deu em pouco tempo, com uma organização precisa e um
relativo pacifismo, excetuando os confrontos à frente da sede da PIDE/DGS. A
rapidez dos acontecimentos contrasta com a riqueza do material fílmico
disponível e com a multiplicidade de imagens da revolução.
A profusão de imagens responde à proposição de que era desejável e
necessário “representar ou prolongar através da imagem os acontecimentos
surgidos e as transformações causadas” (Christian Delage in Ferro 1989, 97). O
caso português é, desta forma, exemplar de uma procura de imortalização
permanente dos acontecimentos revolucionários através da utilização massiva
da câmara. Como modo de expressão móvel e moderno, a câmara, instrumento
e máquina, cumpria o seu antigo papel, muitas vezes abandonado, o de um
registo possível da realidade. A massa de imagens sugeria, então, uma espécie de
ideal democrático em que cada indivíduo que possuísse uma câmara, que
observasse e quisesse mostrar, poderia registar o que então acontecia. O cinema
outorgava a possibilidade de expressão de vozes até então abafadas, escavava
olhares frequentemente proibidos. Esse fenómeno não só atingia os
portugueses, mas também os europeus, que observavam, preocupados, ou
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felizes, a efervescência que se vivia em Portugal, facto que foi depois
confirmado pelo sucesso obtido pelo cinema militante português nos festivais
europeus até ao fim da década de setenta.
Um pouco mais tarde, no filme-síntese, Bom Povo Português, o realizador
Rui Simões "ralentiza" imagens do 25 de Abril. A velocidade antes evocada e a
repetição frenética das imagens poderão ser suscetíveis de diminuir a força do
momento histórico. O mecanismo escolhido por Rui Simões reanima um
problema cinematográfico já muito discutido, que é a relação entre a realidade
histórica e a imagem cinematográfica. O cinema militante interroga
permanentemente a realidade, como o diz Christian Zimmer em Cinema e
Política:
O cineasta engagé, no fundo, está obcecado pela historicidade. A historicidade da ação. Uma ação cumprida toma imediatamente lugar na História e modifica então a minha situação. Uma obra toma lugar nessa História falsa que é a historia da arte, isto é, o museu. Ela foge de mim e os outros servem-se dela para escrever a minha própria História. Um filme engagé deveria coincidir exatamente com o momento em que surge, em que se insere na História. (Zimmer 1974, 241).
Essa obsessão é também palpável no cinema do PREC. Zimmer descreve
outra questão que era então importante nos grupos de cineastas e, por vezes, de
jornalistas: a rejeição da arte. Um pouco depois, Zimmer cita um artigo dos
Cahiers du Cinéma dos cineastas Paolo e Vittorio Tavani:
Cinema militante. Filme como instrumento: realizado no tempo mais curto possível, assente numa palavra de ordem surgida de um momento de luta, testemunha da própria luta – como exemplo, resultado a propor de novo noutro lado ou como fracasso que deve ser impedido. Propostas-testes sobre alguns problemas concretos, para solicitar respostas não-cinematográficas, mas sim respostas diretas da assembleia de espetadores... (Ibidem, 241).
Zimmer explica que os irmãos Taviani tinham em mente o filme de
Solanas e Getino, La Hora de los Hornos, sendo que uma das palavras
reiteradamente utilizada por Solanas para falar do filme é a palavra “ação”, como
se o filme fosse uma “ação política”, o “ação (facto-ação) revolucionária”. Eis
aqui um dos pontos de definição do cinema militante e coletivo, ponto que é
partilhado por vários cinemas mundiais paralelos: a necessidade de fazer
corresponder a ação do filme ao momento histórico. Uma das maneiras consiste
em dar a palavra ao povo que não pode fugir à historia e que deve então tornar-
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se o criador do filme (Ibidem, 242). A prioridade da ação política ou da critica
social sobre o pensamento artístico sente-se nas palavras dos realizadores que
estiveram ativos durante o PREC, como Fernando Matos Silva, José Nascimento
ou Rui Simões; que contam peripécias sobre o ritmo de produção que impedia a
existência de preocupações artísticas, mesmo se todos eles procuravam produzir
boas imagens e “experimentar” com a pobreza do material.
O uso da câmara lenta no início de Bom Povo Português, de Rui Simões,
pode também ser lido como apontando para um interstício entre a história e a
memória. A história é uma reflexão, uma interrogação, um “ir e vir entre o
passado e o presente”; opõe-se à memória que não é objetivada e que “revive
com uma carga afetiva inevitável” (Prost 1996, 111-113). O processo em obra
no Bom Povo Português produz exatamente essa diferenciação e retrata a
complexidade do que então se vivia e daquilo que se pode ainda ser recordado.
O tempo da Revolução... e do cinema?
A importância do “cinema de Abril” reside na “sua capacidade de mostrar,
através de todos os géneros cinematográficos, os acontecimentos e as questões
do tempo presente, realçados com o retorno do passado recente de Portugal,
elaborando-se uma verdadeira investigação sobre as mentalidades e a identidade
do povo português” (Christian Delage in Ferro 1989, 99). Esta enunciação quase
programática poderia ser entendida como uma tentativa de resumir o cinema
português do período revolucionário.
A questão da profusão de imagens imbrica-se noutra questão
cinematográfica que é a escolha das imagens na rodagem e, depois, na
montagem. Aqui, os cineastas podem escolher várias soluções: respeitar a
cronologia ou jogar com a temporalidade. Por exemplo, quando Rui Simões
realiza Bom Povo Português ou quando José Nascimento (Cinequipa) faz a
montagem de Contra as Multinacionais, os cineastas tinham já uma certa
distância dos acontecimentos, a revolução no caso de Rui Simões, que acaba
Bom Povo Português em 1980; o caso simbólico do despedimento das operárias
da empresa norte-americana Applied Magnetics durante a revolução, no filme
de José Nascimento. Essa distância parece ser a mesma que encontra o
historiador, de acordo com Michel de Certeau em L'écriture de l'histoire:
Os resultados da pesquisa apresentam-se segundo a ordem cronológica. Certamente, a constituição de séries, o isolamento de
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“conjunturas” gerais, tanto como as técnicas da literatura ou do cinema tornaram flexível a rigidez dessa ordem, permitiram a instauração de quadros sincrónicos e renovaram os meios tradicionais de fazer jogar entre eles momentos diferentes. No entanto, a historiografia coloca o tempo das coisas como contraponto e introduz a condição de um tempo discursivo (o discurso “anda” mais o menos rapidamente, atrasa-se ou adianta-se). Com esse tempo de referência, a historiografia pode condensar ou estender o seu próprio tempo, produzir efeitos de sentidos, redistribuir e codificar a uniformidade do tempo que flui. Essa diferença possui já a forma de uma bissecção. Permite um jogo e fornece ao saber a possibilidade de produzir-se num “tempo discursivo” (ou num “tempo diegético”, diz Genette) que se opõe à distância do “real”. (De Certeau 2008, 123)
A cronologia histórica não se impõe por si mesma. Se alguns dos filmes da
revolução tentam seguir uma estrita sucessão de factos – dando as datas, os
lugares, por vezes inscritos mesmo no filme –, outros deixam as imagens e a
montagem construir um sentido. A questão da montagem pode também fazer-
nos pensar qual é o tempo que o filme apresenta e tenta atingir. No filme As
Armas e o Povo, destaca-se três momentos no filme – o primeiro corresponde às
manifestações do 1° de Maio de 1974, com uma focalização sobre a multidão aí
presente nesse dia; o segundo corresponde às entrevistas de Glauber Rocha, que
permitem ver e ouvir o povo; por fim, os discursos políticos de Soares e de
Cunhal. Sobre a realização do filme, Fernando Matos Silva conta numa
entrevista de Fevereiro de 2011 :
É engraçado porque, durante uma reunião, dizia-se: “temos que fazer a montagem do filme, temos que fazer a montagem do filme!” e arrisco-me a levantar o braço e a dizer: “posso fazer a montagem”, e toda a gente gritou: “então, faz isso!”. Fiz a montagem e foi bastante interessante. No filme, a sequência no estádio que agora se chama Estádio 1° de Maio, e que era o estádio dos trabalhadores durante o fascismo, é a sequência onde vemos as intrigas entre Soares e Cunhal: já se vê o que está a acontecer.3
Fernando Matos Silva descreve o momento, lendo já nas imagens os
acontecimentos futuros e mostrando que a distância entre o momento histórico
e a distância analítica pode ser facilmente atravessada. As declarações do
realizador mostram-nos também que a equipa de rodagem nem sempre
coincidia com a equipa de montagem; o carácter coletivo da produção deste tipo
de cinema conjuga a realização e os olhares no plural. Quando Rui Simões narra
3 Salvo indicação em contrário, as citações de realizadores portugueses provêm de entrevistas realizadas durante a pesquisa realizada no âmbito das minhas teses de mestrado e de doutoramento, entre 2010-12, em Lisboa, em francês e em português.
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a construção dos seus filmes, refere sempre a reação aos acontecimentos e a
vontade de mostrar algo de preciso, o que pode parecer uma ambiguidade. Na
verdade, o cineasta, ainda que aproximando-se do historiador, não cumpre o
mesmo papel; os filmes trazem a sua própria temporalidade como possibilidade:
o tempo da imagem pode constituir um adiantamento do tempo da revolução.
Mais, a dimensão coletiva dos filmes faz com que cada filme seja o resultado de
uma convergência ideal de pontos de vista. Aquilo que é mostrado pelo cinema
da revolução é que, enquanto lugar que combina temporalidades, rostos e
espaços, o cinema é capaz de produzir olhares singulares que permitem
interrogar a existência e a história.
Nos filmes da revolução, as entidades individuais – representantes
políticos, patriarcas – opõem-se à massa difusa e dinâmica do povo. As pessoas
gritam, falam, choram, querelam-se entre partidos políticos e movimentos
militares, entre camaradas, entre famílias. As efusões da história alcançam a
tragédia da palavra de Jean Renoir em La Règle du jeu: “O mais terrível neste
mundo é que toda a gente tem os seus motivos”.
Iconografia e cartografia do cinema do PREC
As primeiras imagens fixadas pela cinematografia da revolução são as
imagens da comunhão nacional e popular e de uma efusão entre o povo e os
militares. São talvez as imagens mais conhecidas da revolução, sobretudo no
estrangeiro – os tanques em Lisboa, a gente na rua, partilhando a liberdade com
os soldados. As imagens mostram as manifestações de alegria, mas também as
primeiras ações do Movimento das Forças Armadas (ocupações das instituições
políticas, prisão dos oficiais da PIDE, a instauração da Junta de Salvação
Nacional). Aqui, o corpus é muito rico, com várias imagens desses
acontecimentos; contudo, as imagens são todas parecidas: as imagens de
Caminhos da Liberdade (Cinequipa, 1974) – filme que responde à urgência de
captação bruta dos acontecimentos – encontram-se também nas Armas e o Povo
(1975) e na curta-metragem O Povo Unido Jamais Será Vencido, de António
Escudeiro (1974). Fernando Matos Silva fala, então, de “documento” para
confirmar essa vontade do filme de inserir-se na historia:
Estávamos a espera do sinal, e logo, filmámos desde a madrugada, aqui, nas ruas, no Carmo, no Terreiro do Paço... Foi assim que nasceu o filme Caminhos da Liberdade, que foi mostrado em
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vários países depois. É um documentário ou, mais precisamente, um documento, que foi realizado sobre o que estava a acontecer e que tinha a vantagem de reunir as primeiras imagens da revolução.
Neste caso, o filme “nasce” com o acontecimento. Caminhos da Liberdade é
um filme realizado pelo grupo que conformava a Cinequipa e utiliza imagens de
operadores da RTP. A relação com a televisão explica também o facto de que
essas imagens tenham sido mostradas frequentemente e que sejam hoje
conhecidas. Um dos primeiros símbolos da revolução fixado através do cinema é
a síntese aparentemente feliz entre o povo e o MFA. Entre os militares, há
figuras individuais que se destacam, como Otelo, muito presente nos filmes em
variadas atitudes, discursos ou ações, e também Salgueiro Maia, outro herói do
25 de Abril, fixado também com o seu olhar sério em vários filmes da “euforia
revolucionária”.
Depois de um período preliminar (25 de Abril-1° de Maio 1974), as
cooperativas vão muitas vezes trabalhar em colaboração com a televisão para
produzir programas culturais com o objetivo de colocar o cinema ao lado da
revolução. Os títulos dos filmes desenham uma cartografia das lutas em Portugal
até 1976-77, lutas agrárias sobretudo, mas também lutas operárias ou sociais
(entre as quais se insere o a luta pela emancipação feminina). Os filmes traçam
uma cartografia – ainda que não exaustiva – no sentido geográfico, atravessando
vários lugares de Portugal: cidades ou outros pontos precisos, como a Herdade
da Torre Bela (há pelo menos três filmes sobre essa cooperativa), Gonçalo
(Cooperativa Cesteira de Gonçalo de António de Macedo, Cinequanon, 1975) ou
Zambujal (Herdade do Zambujal – Unidade de Produção Cinematográfica N°1,
1975). Dão também a ver uma cartografia das possíveis formas de organização
dos trabalhadores; assim, uma grande parte do corpus concentra-se no processo
cooperativista. O trabalho da Cinequipa e da Cinequanon permite obter
documentos visuais importantes sobre a maneira como as pessoas, os
camponeses o as mulheres se inseriam no movimento através do seu próprio
trabalho e na sua própria localidade. Comunal, Uma Experiência Revolucionária,
de José de Sá Caetano (Cinequanon), mostra diferentes testemunhas que se
exprimem sobre a cooperativa em que participam; os sacrifícios, as vantagens o
as hesitações são aflorados numa descrição do significado que a cooperativa
tinha para as pessoas. O filme Torre Bela, realizado pelo alemão Thomas Harlan,
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sobre o qual José Filipe Costa fez uma pesquisa muito relevante4, é sem duvida
um dos exemplos mais singulares e interessantes do que era uma cooperativa e
de como se organizavam as pessoas dentro dessas estruturas. Ao lado desses
filmes, há uma outra cartografia complementar, que consiste em mostrar os
diferentes pontos de luta nas empresas ; assim, Candidinha de António Macedo
relata a fuga dos dois patrões de um atelier de costura de Lisboa e a subsequente
luta das costureiras para organizar uma cooperativa de produção; Greve na
Construção Civil da Cinequanon mostra a contestação dos trabalhadores da
construção civil que se opõem tanto ao patronato, como ao Ministério do
Trabalho. Há também Applied Magnetics da Cinequipa que mostra a organização
das operárias despedidas da empresa norte-americana homónima (o patrão
preferiu voltar para os Estados Unidos) durante o PREC; o filme concentra-se
sobretudo nas consequências dessa situação conflituosa sobre o estado moral
das mulheres; a força do filme aparece nas várias entrevistas às operárias, mais
nova das quais só tem quatorze anos, e explicando com um certa pudor a
vivência do presente e a visão do futuro.
Uma outra espécie de cartografia possível seria uma cartografia da situação
feminina em Portugal nos anos setenta. À primeira vista, muitas vezes, o caso
das mulheres aparece em filmes cuja objecto é mais amplo – é possível entrever
a situação das mulheres num filme sobre a reforma agrária ou sobre a revolução
em geral, mas há também um corpus de filmes que se concentra principalmente
nas mulheres. Aqui, são sobretudo filmes da Cinequipa, que fazia um programa
especificamente sobre a condição feminina. Os filmes Lúcia e Conceição –
retrato da vida de duas meninas que trabalham no campo nos Açores – e Nascer,
Viver, Morrer que contém entrevistas a mulheres sobre a maternidade, o
casamento e o divórcio são documentos que merecem também ser nomeados.
Enfim, para voltar à questão da iconografia e da cartografia: como se
constrói uma iconografia memorável? A questão constitui um dos aspetos do
cinema militante: não se sabe inicialmente quais são as imagens que se tornarão
os símbolos do acontecimento na historia visual, mas cada filme que acompanha
o acontecimento é um documento e, como tal, pode deixar imagens que serão
4 José Filipe Costa escreveu uma tese de doutoramento com uma secção teórica (Cinema forges the event. Filmmaking and the case of Thomas Harlan’s Torre Bela, thesis for the degree of Doctor of Philosophy, Londres, The Royal College of Art, 2011) e uma componente prática, que originou o filme Linha Vermelha (2011).
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reutilizadas. Tal é evidente no caso das imagens do 25 de Abril presentes em
vários filmes do PREC e depois reutilizadas em documentários recentes e
reportagens da televisão. Um outro caso simbólico tem a ver com as imagens
das operárias despedidas da Applied Magnetics – o rosto de uma jovem
chorando, exausta, acabou por constituir um símbolo da dureza do capitalismo;
essas imagens foram registadas pela Cinequipa em Applied Magnetics – O Inicio
de uma Luta (1975), para além de terem sido utilizadas no filme de Rui Simões,
Deus, Pátria, Autoridade (1975) como ilustração da violência capitalista; dois
anos depois, a Cinequipa transformou o caso da Applied Magnetics num
exemplo do capitalismo brutal que existia em Portugal e no mundo ocidental em
geral no filme panfletário Contra as Multinacionais (1977). A circulação das
imagens favorece a modificação do sentido – de um caso singular a um modelo
exemplar – e contribui para introduzir essas imagens nas recordações e fazer
com que a memória de uma luta particular entre também na história do
movimento revolucionário ou, de uma forma mais em geral, na história do
movimento histórico do capitalismo e dos seus impactos sobre as sociedades.
Anos depois da revolução, na edição digital do filme Deus, Pátria,
Autoridade, Rui Simões incluiu um documento na caixa do DVD: um excerto de
um artigo do Diário Popular de 24 de Abril de 1976, onde é descrita a vontade de
alguns trabalhadores de ver o filme inserido no programa da RTP antes das
eleições. Para obter a emissão do filme, os trabalhadores escreveram ao
Presidente da República. Aqui, os fenómenos invertem-se: o cinema fazia parte
da luta e tornava-se uma reivindicação dos trabalhadores. O cinema como arma,
mas também como possível componente de emancipação.
Os conflitos entre os cineastas, as cooperativas e os indivíduos mostravam
desde logo a complexidade do acontecimento e da sua inscrição na memória. O
cinema do PREC, um cinema militante que tentava fazer coincidir o tempo da
revolução com o tempo cinematográfico, oscilava entre respostas urgentes e a
necessidade de recordar e de ver a história no processo de fazer-se. Se questões
políticas separavam famílias inteiras, a prática artística e, no nosso caso
particular, o cinema, revela as tensões e as experiências empreendidas. A
coincidência entre o tempo do filme e o tempo histórico cria problemas na
perceção dos filmes: pensados como objetos eficazes no quadro de uma
temporalidade definida, passam a tornar-se documentos pertinentes mas sem
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qualidades artísticas. A reflexão e a análise aqui propostas servem para repensar
esse corpus como fonte documental, mas também como um panorama de
práticas cinematográficas alternativas, por vezes muito simples, pobres, mas
outras vezes mostrando que a beleza pode surgir da urgência.
Referências bibliográficas: Brenez, Nicole. 2006. Cinémas d'avant-garde. Paris: Cahiers du
Cinéma/SCEREN-CNDP. De Certeau, Michel. 2008. L'écriture de l'histoire. Paris: Gallimard. Ferro, Marc, dir. 1989. Révoltes, révolutions, cinéma. Paris: Centre Georges
Pompidou. Labourdette, Jean-François. 2000. Histoire du Portugal. Paris: Fayard. Prost, Antoine. 1996. Douze leçons sur l'histoire. Paris: Seuil.
Zimmer, Christian. 1974. Cinéma et politique. Paris: Seghers.