120
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Sérgio Guilherme Cabral Bento O co-relato Mallarmé / Haroldo de Campos: O mito moderno em “Um lance de dados” PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA SÃO PAULO 2008

O co-relato Mallarmé-Haroldo

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Análise Tradução de Un coup de dés por Haroldo de Campos

Citation preview

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC-SP

    Srgio Guilherme Cabral Bento

    O co-relato Mallarm / Haroldo de Campos: O mito moderno em Um lance de dados

    PROGRAMA DE ESTUDOS PS-GRADUADOS EM LITERATURA E CRTICA LITERRIA

    SO PAULO 2008

  • SRGIO GUILHERME CABRAL BENTO

    O co-relato Mallarm / Haroldo de Campos: O mito moderno em Um lance de dados

    Dissertao apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Literatura e Crtica Literria sob a orientao do Profa. Dra. Olga de S.

    SO PAULO

    2008

  • Autorizo, exclusivamente para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta dissertao por processos de fotocopiadoras ou eletrnicos. Assinatura:______________________ Local e data: _____________________

    BENTO, Srgio Guilherme Cabral O co-relato Mallarm / Haroldo de Campos: o mito moderno em Um lance de dados. So Paulo: [s.n.], 2008. 120 f. Dissertao (Mestrado em Literatura e Crtica Literria) Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, 2008. Orientadora: Profa. Dra. Olga de S

    1. Teoria Literria. 2. Poesia moderna. CDD 811

  • FOLHA DE APROVAO

    Srgio Guilherme Cabral Bento

    O co-relato Mallarm / Haroldo de Campos: O mito moderno em Um lance de dados

    Dissertao apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Literatura e Crtica Literria sob a orientao do Profa. Dra. Olga de S.

    BANCA EXAMINADORA

    _______________________________________________

    _______________________________________________

    _______________________________________________

    So Paulo 2008

  • Rosa, anti-rosa, no a do poema nem a do bouquet: qualisigno do amor.

  • AGRADECIMENTOS

    A minha famlia, pelo apoio. CAPES, pelo financiamento. Ao programa de ps-graduao em Literatura e Crtica Literria da PUC/SP, em especial professora Olga de S, pela valiosa orientao. s professoras Leda Tenrio da Motta e Viviana Bosi, pelo enriquecimento crtico.

  • Pode conceber-se que haja mitos muito antigos, mas no eternos; pois a histria que transforma o real em discurso, ela e s ela que comanda a vida e a morte da linguagem mtica. Longnqua ou no, a mitologia s pode ter um fundamento histrico, visto que o mito a fala escolhida pela histria: no poderia de modo algum surgir da natureza das coisas.

    Roland Barthes

    A angstia de Kierkegaard, o cuidado de Heidegger, o sentimento do nufrago, tanto em Mallarm como em Karl Jaspers, o Nada de Sartre no so seno sinais de que volta a Filosofia ao medo ancestral ante a vida que devorao. Trata-se de uma concepo matriarcal do mundo sem Deus.

    Oswald de Andrade

  • Resumo

    BENTO, Srgio Guilherme Cabral. O co-relato Mallarm / Haroldo de Campos: o

    mito moderno em Um lance de dados. 2008. 120 f. Dissertao (Mestrado) Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo, 2008.

    Em seu conceito moderno, o mito um paradigma comportamental, um sistema semiolgico

    de algum referente externo. Baseado nisto, este trabalho sustenta que o poema Um lance de dados, de Stphane Mallarm, adquire status mtico, quer pelo seu carter cosmognico comumente ignorado pela crtica quer pela sua inovao formal fato que o consagrou, e sob cujo prisma unicamente lembrado. Em virtude disso, sofreu ao longo do sculo XX um

    processo de mitificao ao ser promovido condio de uma das mais importantes fontes de

    inspirao da poesia recente e contempornea. Para que tal abordagem fosse possvel, buscou-

    se delimitar o estudo do texto proposto em correlao com sua recriao em lngua

    portuguesa, feita por Haroldo de Campos. Tal dilogo traduo/original no apenas atualiza o

    mito Um lance de dados pelo valor ritualstico que possui o ato de traduzir, mas tambm permite anlise uma aproximao da contemporaneidade. Como instrumento de exegese, as

    teorias da Gestalt princpios de organizao da forma; mxima de que o todo no a mera soma das partes, mas possui uma qualidade diferenciada destas; e o fenmeno da correlao

    psiconeural na percepo visual humana asseguraram que a obra fosse considerada em sua totalidade, enquanto entidade visual, verbal e sonora. Deste modo, chegou-se concluso que

    Um lance de dados um relato da (re-) criao do Universo, do ser humano e da Arte no sob a conduo de uma fora divina, mas gerada pelo pensamento humano, novo fator-chave

    na sociedade iluminista-burguesa da Modernidade. Est formado o mito moderno.

    Palavras-chave: Mito Stphane Mallarm Haroldo de Campos Gestalt

  • Abstract

    BENTO, Srgio Guilherme Cabral. The correlation Mallarm / Haroldo de Campos: the modern myth in A throw of the dice.2008. 120 p. Dissertation (Masters Degree) Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, So Paulo, 2008.

    In its modern concept, the myth is a behavioral paradigm, a symbolical model of an external

    reference. Based on that, this paper defends that the poem A throw of the dice, by Stphane Mallarm, acquires such mythical status, either by its cosmogonical nature which is commonly ignored by the critics -, or by its formalistic innovations reason why it got so acclaimed. Due to that, it suffered during the XX century a mythification process, in which it

    was promoted to be elected as one of the inspirational sources of recent and contemporary

    poetry. So that such approach was possible, the study was delimitated to a comparison

    between the proposed text to its re-creation in Portuguese, done by Haroldo de Campos. This

    dialogue translation / original not only updates the myth A throw of the dice by the ritualistic value the translation process has, but also allows the analysis to get closer to the

    current times. As an instrument for this exegesis, the Gestalt theories principles of form organization; concept of whole, which is not a mere addition of its parts, but has a unique quality aggregated; and the phenomenon of psiconeural correlation in human visual

    perception ensure that the poem will be considered in its totality, as a verbal, visual and sound entity. In short, it has been concluded that the poem A throw of the dice is a tale of the (re-) creation of the Universe, the human being and the Art, not under the guidance of a

    divine power, but generated by the human thinking, key factor in the new illuminist bourgeois

    society in Modern Age. The modern myth is formed.

    Keywords: Myth Stphane Mallarm Haroldo de Campos Gestalt

  • Sumrio

    1. INTRODUO ......................................................................................................... 11

    2. O MITO MALLARMAICO .................................................................................. 17

    2.1 A Modernidade ......................................................................................................... 17

    2.2 A arte da Modernidade ............................................................................................ 24

    2.3 A Literatura da Modernidade ................................................................................. 29

    2.4 A Modernidade de Mallarm ................................................................................... 35

    3. O MITO HAROLDIANO ...................................................................................... 53

    3.1 Mallarm e a Modernidade Tardia ......................................................................... 53

    3.2 A teoria da transcriao ........................................................................................... 57

    3.3 O Un Coup de ds transcriado .............................................................................. 61

    4. O MITO UM LANCE DE DADOS ................................................................. 67

    4.1 Kant e Husserl .......................................................................................................... 67

    4.2 A escola de Berlim .................................................................................................... 69

    4.3 Princpios de organizao da forma ........................................................................ 71

    4.4 Outros estudos gestlticos ........................................................................................ 75

    4.5 Crticas Gestalt ...................................................................................................... 77

    4.6 A concepo gestltica da Arte ................................................................................ 78

    4.7 O Um lance de dados enquanto estrutura gestltica ........................................... 80

    4.8 O todo (ou a pr-Gestalt) ......................................................................................... 83

    4.9 Pgina Um ................................................................................................................ 85

    4.10 Pgina Dois ............................................................................................................. 87

    4.11 Pgina Trs ............................................................................................................. 89

    4.12 Pgina Quatro......................................................................................................... 93

    4.13 Pgina Cinco ........................................................................................................... 97

    4. 14 Pgina Seis ............................................................................................................. 99

    4.15 Pgina Sete ............................................................................................................ 101

    4.16 Pgina Oito ........................................................................................................... 103

    4.17 Pgina Nove .......................................................................................................... 106

    4.18 Pgina Dez ............................................................................................................ 108

    4.19 Pgina Onze .......................................................................................................... 110

    4.20 O novo todo (ou a ps-Gestalt) ............................................................................. 113

    CONSIDERAES FINAIS ................................................................................... 114

    REFERNCIAS .......................................................................................................... 117

  • 11

    1. INTRODUO

    O ttulo deste trabalho desvela sua inteno primeira: conferir ao poema Um lance de

    dados o status de mito. A obra-prima de Stphane Mallarm, publicada em 1897 e cada no

    esquecimento no comeo do sculo XX, foi redescoberta a partir da dcada de 1950, no pice

    da corrente estruturalista. Desde ento, adotada como um dos modelos matriciais da

    produo potica recente e contempornea, seja pela indita explorao artstica de recursos

    grficos e tipogrficos, seja pela ambio de renovar os suportes da poesia, aproximando-a

    das outras artes. No Brasil, o poema foi traduzido por Haroldo de Campos em 1972.

    Convm, entretanto, esclarecer o que se pretende com o termo mito. Tal conceito

    sofreu relevante alterao desde a metade do sculo XIX poca em que o pensamento

    cientfico e racional superava a influncia mstico-religiosa nas Humanidades, conseqncia

    das Revolues Francesa e Industrial e do Iluminismo e afastou-se da acepo de seu timo,

    o grego mthos (fbula, relato, discurso).

    Dessa forma, o mito, em sua concepo tradicional, uma narrativa com a funo

    de elucidar a origem ou a razo da existncia das coisas, dados esses no disponveis

    percepo humana. Segundo o mitlogo Mircea Eliade (1991, p. 11),

    O mito conta uma histria sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no

    tempo primordial, o tempo fabuloso do princpio. Em outros termos, o mito narra como, graas s faanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento.

    [grifos nossos]

    interessante notar que o pesquisador romeno atrela a existncia do mito a seres de

    outra realidade, alheia humana. De fato, por muitos sculos viveu-se sob forte influncia da

    crena doutrinria. Mais que isso, as cincias naturais, as artes, a poltica e as universidades

    eram atreladas a instituies religiosas e imposio de seus mitos. Eram eles que explicavam

    a origem de tudo, e o homem, atravs dos ritos, sentia-se em contato com a fonte criadora de

    seu mundo.

    Porm, a partir do sculo XIX, como dito, as mudanas sociais e intelectuais por que

    passou o homem, e que deram incio ao perodo conhecido por Modernidade, desencadearam

    um processo de derrubada do mito como relato da provenincia de tudo. Os mtodos

    racionalistas e positivistas tomavam a experincia passada como base para o presente: a

    Histria tornou-se a nica fonte de autoconhecimento da humanidade.

  • 12

    A transposio do mito para a Histria no papel de escritura sagrada acarretou uma

    orfandade, que simbolicamente Friedrich Nietzsche chamou de morte de Deus. H, ainda,

    uma paradoxal perda de contato com o passado: diferentemente dos mitos que so

    constantemente reavivados pelos ritos , os fatos histricos no possuem forma de retorno.

    Para Mircea Eliade (1991, p. 124), esta impossibilidade de re-ligao, apesar de angustiante,

    impulsiona o homem:

    A revolta contra a irreversibilidade do tempo ajuda o homem a construir a realidade e, por outro lado, liberta-o do peso do Tempo morto, dando-lhe a segurana de que ele capaz de abolir o passado, de recomear o passado e

    recriar o seu mundo.

    A partir de ento, no h mais sentido em ver nos mitos a origem de tudo. Tais

    narrativas, porm, continuaram a ser amplamente exploradas, seja na Psicologia (Freud, Jung,

    Lacan), na Antropologia (Lvi-Strauss), nas Artes, enfim, em quase todas as categorias de

    produo intelectual humana suas presenas permaneceram ativas. Seu papel que mudou,

    contudo. Distante da funo sagrada, a fbula mtica ganha destaque por espelhar

    paradigmas de comportamentos humanos. Eis o seu conceito moderno.

    Dentro deste prisma, convm citar um clebre estudo do mito na Modernidade: Roland

    Barthes, em sua obra Mitologias (1982, p. 136), define-o como uma mensagem, ou um

    sistema semiolgico. Para o pensador francs, a existncia do fenmeno d-se pela

    transposio de um signo (composto por um significante e um significado prprios)

    condio de significante mtico. Dessa forma, este signo j completo funciona como

    recipiente, invlucro de outro significado agregado pela histria e pela cultura locais:

    No mito, pode encontrar-se o mesmo esquema tridimensional [...]: o significante, o significado e o signo. Mas o mito um sistema particular,

    visto que ele se constri a partir de uma cadeia semiolgica que existe j

    antes dele: um sistema semiolgico segundo. O que signo (isto , totalidade associativa de um conceito e uma imagem) no primeiro sistema,

    transforma-se em simples significante no segundo. [grifos originais]

    Uma narrativa mtica qualquer, como a fbula de dipo, um signo per se, com

    significante (o conto propriamente dito, em sua estrutura) e significado (o enredo de um filho

    que casa-se com a prpria me). Tal signo, entretanto, um mero significante na estrutura do

    mito, em outra trade: MITO SIGNIFICANTE (signo, fbula de dipo) SIGNIFICADO

    (conceito agregado, interpretao psicanaltica do desejo pela me). Curiosamente, este

    significado anexo acaba alienando, deformando o significado primeiro (segundo Barthes, no

    suprimido, apenas afastado), que permanece parte do significante mtico.

  • 13

    O estudo do mito deve desvelar esse significado submerso, a fim de expor o processo

    de mitificao sofrido pelo conceito primeiro:

    Enfim, se eu for focalizar o significante do mito, enquanto totalidade

    inextricvel de sentido e forma, recebo uma significao ambgua; reajo de acordo com o mecanismo constitutivo do mito, com a sua dinmica prpria,

    transformo-me no leitor do mito.[ibid., p. 149]

    Ora, defende-se que Um lance de dados o mito moderno justamente pelo processo

    por que passou desde o seu resgate pela crtica em meados do sculo XX: altamente

    difundido e citado por sua forma (a desconstruo do real em cada uma de suas palavras; a

    explorao de tipografias distintas; a disposio flutuante dos versos na folha, inibindo a

    formao de estrofes; a funo ativa que o branco da pgina adquire na formao de sentido,

    em virtude do espaamento entre sintagmas), tem seu significado quase ignorado, ou

    dissecado apenas em certas exegeses especficas. Em geral, a essncia da obra-prima

    mallarmaica, suas leituras possveis, enfim, seu cerne conteudstico abafado pela

    imponncia de suas ousadias formais.

    Est formado o mito: a obra revolucionria, que introduziu o uso esttico do espao da

    pgina e aproximou a poesia da arquitetura, da pintura, da msica; o antecessor, em cuja

    lista de herdeiros encontram-se cones modernos, como Apollinaire, Ezra Pound e toda a

    poesia visual; o poema hermtico, de um poeta quase inatingvel.

    Uma pesquisa que considera Um lance de dados um mito no pode em se

    respeitando a teoria barthesiana dar nfase a esses conceitos agregados, mas concentrar-se

    no signo primordial, que serve de significante dentro da estrutura mtica, e cuja totalidade

    inextricvel de sentido e forma a chave para a compreenso de todo o duplo sistema

    semiolgico formado a partir dele. Nesse caso, o poema em sua unidade o objeto maior

    desse estudo, e no suas influncias e heranas.

    Em virtude disso, escolheu-se a Gestalt como teoria principal para a anlise. Seu

    preceito maior (o todo no a mera soma das partes, mas uma grandeza independente)

    corresponde necessidade imposta por Barthes no estudo do significante mtico. Essa

    corrente, tambm chamada de Teoria da Forma, nasce da escola de Berlim liderada por

    Max Wertheimer, Wolfgang Khler e Kurt Koffka.

    No incio do sculo XX, tais pensadores (embriagados pelas teorias kantianas e

    fenomenolgicas) aprofundam os estudos de unidade e partio de Christian von Ehrenfels,

    filsofo austraco que uma dcada antes cunhara o termo Gestalt, definio para a qualidade

    nica e diferenciada que o todo de uma estrutura adquire em relao a suas partes. Para tal,

  • 14

    desenvolvera pesquisas com melodias, em que ressaltara a presena de um jogo de relaes

    entre as notas que permite ao ouvido humano identificar determinada cano em qualquer

    tom, ou seja, mesmo quando todas as notaes so alteradas, a estrutura medular do todo

    mantida.

    Este conceito parece adequar-se ao objetivo estabelecido na pesquisa em tela. Um

    lance de dados ser considerado um poema gestltico, ou seja, suas partes existem em

    virtude de seu todo, e dessa maneira que sero estudadas. Com isso, vai-se na contramo da

    mais clebre exegese j feita (e com a qual se dialogar constantemente na anlise), por

    Robert Greer Cohn (1951), crtico literrio americano de orientao estruturalista. Em uma

    obra chamada LOeuvre de Mallarm: Un coup de ds, faz um completo estudo de cada

    palavra do poema, com remisses a poemas anteriores de Mallarm e investigaes

    etimolgicas de todos os termos. um empreendimento de valor documental notvel,

    recomendado por crticos como Haroldo de Campos, Julia Kristeva e Mrio Faustino.

    Entretanto, o trabalho peca pelo excessivo fragmentarismo, que impede a viso global da

    obra.

    Alm de permitir essa integralidade na anlise, a teoria da Gestalt colaborar para a

    compreenso dos caminhos ticos possibilitados pelo poema, dada a flutuao dos termos

    sem conexo aparente. Atravs dos princpios de organizao da forma preceitos

    desenvolvidos pela escola de Berlim que explicam a estruturao da percepo visual humana

    pode-se estabelecer relaes de coordenao e subordinao imagticas, sugerindo chaves

    de entendimento em cada uma das pginas.

    Finalmente, outro conceito gestltico aqui explorado inclusive no ttulo dessa

    pesquisa o de correlao. So correlatos os estmulos perceptivos nas diferentes fases do

    fenmeno visual: fsico, fisiolgico e psquico. Nesse caminho entre a apario de um objeto

    frente ao perceptor e a visualizao consolidada no crebro, tais imagens co-relacionadas,

    quase idnticas, so etapas necessrias para o processamento da informao. Descoberta da

    Escola de Berlim, a teoria da correlao como se ver foi abandonada na Psicologia

    durante dcadas, at ser amplamente retomada j ao final do sculo XX.

    Adotou-se aqui este termo para o fenmeno fundamental divulgao e mitificao de

    Um lance de dados: sua traduo. Verter um texto to complexo e obscuro uma operao

    potica per se, sem a qual dificilmente a tese deste trabalho (elevar o poema ao status de

    mito) seria vlida. Por causa disso, escolheu-se trabalhar com o poema original, em lngua

    francesa, e seu correlato em lngua portuguesa, transposto por Haroldo de Campos.

  • 15

    Com isso, ganha-se outra perspectiva de compreenso da obra, atravs da riqueza

    tradutria do poeta brasileiro. Sua transcriao (termo que ele usava para designar a

    transposio criativa do efeito literrio e no apenas do sentido literal das palavras) foi

    marcante para a gerao de poetas das dcadas de 70 em diante, no Brasil, e seus efeitos

    podem ser notados pela constante remisso a Mallarm na poesia visual, na ciberliteratura, na

    elaborao de livros de artista, entre outros.

    Ento, entende-se por co-relato Mallarm/Haroldo a relao isomrfica do mito

    (relato) original, de Mallarm, e do mito transcriado, de Haroldo de Campos. O primeiro,

    paradigma essencial da Modernidade europia. O segundo, modelo matricial da poesia recente

    brasileira. Para a compreenso de tal fenmeno, esta dissertao procurar localizar cada um

    dos correlatos em sua realidade temporal e espacial, antes da anlise. Assim, h trs captulos:

    a explorao do original, do correlato, e a anlise propriamente dita.

    A primeira seo, O mito mallarmaico, visa a conceituar o termo Modernidade

    (afinal, fala-se aqui do mito moderno), bem como procura entender como tal fase histrica

    afetou a produo artstica da poca. Ser feita uma breve explicitao das conseqncias das

    Revolues Francesa e Industrial consideradas o gatilho das transformaes scio-culturais

    posteriores. Depois, tenta-se um mapeamento da dita arte moderna, cuja fonte est no bojo

    das revolues.

    Finalmente, o foco ir se fechar na poesia. As duas mais claras influncias da poesia

    de Mallarm Poe e Baudelaire sero exploradas, a fim de que se estabelea um suposto

    fio histrico, embora virtual e incontnuo, do desenvolvimento da poesia moderna, da qual

    os trs autores citados so expoentes. Depois, h uma rpida perspectiva da obra de Mallarm

    (essencial compreenso de Um lance de dados, que o seu ltimo poema publicado) sob

    dois pontos de vista diferentes: o da pesquisadora Anna Balakian e o do poeta Mrio Faustino.

    J no segundo captulo, O mito haroldiano, faz-se um resumo da influncia de Um

    lance de dados nas artes recentes (desde a dcada de 1950), como em um livro de artista de

    Marcel Broodthaers, artista plstico belga que recria o poema de Mallarm em forma de

    pintura. Tambm citado o Livre obra planejada, mas no realizada, de Mallarm (da

    qual se encontraram apenas manuscritos) , cuja encadernao seria revolucionria, em

    fascculos a se ligar e remontar infinitamente. Era o livro que conteria todos os outros livros,

    sonho de certa forma realizado em iniciativas recentes como o hipertexto. Depois, conceitua-

    se a transcriao e faz-se uma anlise da traduo de Um lance de dados por Haroldo de

    Campos (em um trabalho que se enquadra no que o poeta alemo Novalis chamava de

  • 16

    traduo mtica, ideal, supra-idiomtica, e que justifica o ttulo o mito haroldiano: o re-

    mito).

    No terceiro captulo (O mito Um lance de dados), ento, localiza-se a Teoria da

    Forma historicamente, e tenta-se sua conceitualizao. Depois disso, h a anlise do poema

    sob os preceitos gestlticos em contraposio a duas outras exegeses: a de Robert Greer Cohn,

    j citada, e a de Julia Kristeva. Por fim, breves consideraes finais, em que se ligaro fatos

    repercutidos nos trs captulos, e se tentar mostrar porque Um lance de dados o mito

    moderno.

  • 17

    2. O MITO MALLARMAICO

    2.1 A Modernidade

    Discutir a arte moderna, qualquer que seja a produo, exige o esclarecimento do

    termo moderno, cuja significao extrapola o sentido de contemporneo ou atual. Ele

    carrega uma atitude, uma maneira de (no) ver o mundo que diferencia esta arte daquela feita

    anteriormente.

    Surge ento outra questo: anterior a qu? Pode-se falar em um marco inicial, um

    ponto de partida definido? Dificilmente haveria consenso entre os crticos. No parece haver

    discordncia, entretanto, de que o moderno o resultado de um processo evolutivo por que

    passou a arte desde o sculo XVIII, e principalmente durante o sculo XIX.

    Elencar motivos que motivaram tal mudana no simples. Os pensadores iluministas,

    as Revolues Francesa e Industrial, as reviravoltas por que passou a sociedade europia no

    perodo, o desenvolvimento de novas tecnologias, certamente cada um desses eventos

    contribuiu para a formao do conceito discutido. Mas at que ponto se pode dar relevncia

    ao contexto scio-histrico de uma arte que rejeita o mundo a que pertence?

    As relaes entre artistas e sociedade um tema em aberto. A tradicional viso

    historicista de que a obra repercute o contexto em que est inserido seu produtor duelou,

    no sculo XX, com a crtica estruturalista, que tendia a blindar o objeto de estudo do

    universo exterior e priorizar os aspectos tcnicos e formais da criao artstica.

    Para Antnio Cndido (2000, p.21), ignorar algum ngulo empobrecer a anlise:

    (...) na medida em que o artista recorre ao arsenal comum da civilizao para

    os temas e formas da obra, e na medida em que ambos se moldam sempre ao

    pblico, atual ou prefigurado (como algum para quem se escreve algo), impossvel deixar de incluir na sua explicao todos os elementos do

    processo comunicativo, que integrador e bitransitivo por excelncia. [grifos

    originais]

    O artista e seu pblico esto, assim, inseridos em um contexto sociolgico, que por sua

    vez motivado por fatos histricos. A partir disso uma obra construda, com sua estrutura

    peculiar que respeita outra linha evolutiva, a da Arte. Todos esses elementos formam uma

    sinergia com o pblico, que reage criao e influenciado por ela, na bitransitividade

    aludida por Cndido. Cada parte formadora de tal circuito comunicativo um fator

    influenciador e um objeto influenciado, em um crculo que se renova constantemente:

  • 18

    (...) a arte social nos dois sentidos: depende da ao de fatores do meio,

    que se exprimem na obra em graus diversos de sublimao; e produz sobre

    os indivduos um efeito prtico, modificando a sua conduta e concepo do mundo, ou reforando neles o sentimento dos valores sociais. Isto decorre da

    prpria natureza da obra e independe do grau de conscincia que possam

    ter a respeito os artistas e os receptores de arte. (ibid., p. 19). [grifos nossos]

    Os diversos graus de sublimao podem envolver at a quase-inexistncia dos

    fatores sociais na obra, ideal de boa parte dos artistas modernos. No se pode, entretanto,

    negar a influncia inerente do meio no processo criativo, mesmo que a tal nvel inconsciente

    que nem quem faz Arte, tampouco quem a consome, possa perceber.

    Isto posto, parece demonstrada a relevncia de se considerar o contexto de formao

    do que se chamou de Modernidade na Europa, ao se estudar a arte moderna. No que

    necessariamente uma dependa da outra, ou que tenham se formado de modo concomitante,

    mas pela existncia visvel de pontos onde se encontram e se influenciam.

    A definio de Modernidade, porm, posta outro desafio: como todo processo, no

    surge a partir de um evento isolado, mas o resultado de sculos de fatos sucessivos que

    geraram mudanas significativas no planeta, simbolizadas pelas Revolues Francesa e

    Industrial. Estas, por sua vez, so a nominalizao de uma cadeia evolutiva de situaes

    scio-poltico-econmico-culturais na Frana e na Inglaterra, respectivamente. Suas

    reverberaes, porm, mudaram a histria do restante da Europa e, posteriormente, do

    mundo inteiro nas quatro esferas citadas, como se ver.

    Em nvel poltico, foi a Revoluo Francesa que representou o maior avano do

    processo formador da Modernidade. O pas do rei Lus XVI viu o desespero popular virar

    perspectiva poltica aps a pssima safra de 1788 e 1789, que gerou intensa crise financeira e

    aumentou a dvida da aristocracia. Esta, para manter seus privilgios, tinha que sobrecarregar

    a carga tributria dos camponeses, que passaram a organizar-se. Por isso Eric Hobsbawm

    (1981, p. 76) escreve que a guerra e a dvida [...] partiram a espinha da monarquia. Se os

    levantes eram questo de tempo, no h dvidas que foram antecipados pela recesso

    (dvida) e pelo exemplo da Revoluo Americana (guerra).

    Com a posterior queda da Bastilha e a conquista da Declarao dos direitos do

    Homem e do Cidado, a Monarquia agonizou at 1793, quando o estabelecimento da

    Repblica Jacobina encerrou de vez o Absolutismo e o Feudalismo na Frana. Tais fatos,

    porm, repercutiram universalmente, pois a crena geral na Revoluo provocou agitao

    poltica em todo o continente. Nenhum pas europeu ficou com suas instituies inteiramente

    inalteradas pela expanso ou imitao da Revoluo Francesa (ibid., p. 109). Segundo o

  • 19

    historiador, A Frana deu o primeiro grande exemplo, o conceito e o vocabulrio do

    nacionalismo. A existncia de uma lei dos homens em lugar da lei divina absoluta

    posicionava o ser humano em um contexto social, como se explorar mais adiante.

    Na Europa pr-revoluo, o resto do mundo era assunto dos agentes governamentais

    e dos boatos (ibid., p.26), ou seja, era intangvel e distante ao homem comum, que podia

    interferir apenas na prpria existncia. Aps os primeiros passos para a democratizao, o

    mundo passa a ser problema de todos, e no mais fica sob o controle dos escolhidos por

    Deus. Foi esse o principal legado (e fardo) da Revoluo Francesa.

    J no mbito econmico, o cenrio da Modernidade foi primeiro desenhado na

    Inglaterra, cujas estruturas governamentais e religiosas permitiam a busca do lucro, alm das

    reservas de minrio de ferro e carvo e da abundncia de mo-de-obra. Ali se deu a

    Revoluo Industrial, que Hobsbawm chama de o mais importante acontecimento na histria

    do mundo (ibid., p. 45). a decorrncia do processo de crescimento auto-sustentvel em que

    a tecnologia equipa a indstria, dando-lhe condies de aumentar a produo e gerar ganhos,

    que por sua vez financiam mais pesquisas para suprir as novas demandas tecnolgicas. O

    crculo, uma vez fechado, tende apenas a expandir.

    O primeiro desses ciclos, o do algodo, foi motivado pelas invenes do tear e da

    fiadeira; o segundo, de carvo e ferro, foi marcado pelo advento das ferrovias, espcie de

    smbolo da poca. Posteriormente, j ao final do sculo XIX, as indstrias automotivas e

    qumicas passariam a multiplicar as produes inglesa e europia.

    As duas revolues, assim, mudaram a existncia de maneira definitiva. O sculo XIX

    foi o de transformaes mais radicais na histria, ponto de partida para um cenrio totalmente

    renovado no sculo seguinte. Talvez as mais extremadas repercusses tenham ocorrido na

    esfera social, conseqncia dos planos poltico e econmico. Embora a tecnologia e a cincia

    tenham tido avanos espetaculares, viu-se o aumento da diferena de renda e a difuso da

    pobreza nas grandes (e cada vez maiores) cidades. Por isso Hobsbawm (1981, p. 321) chama

    o perodo de era de superlativos.

    So trs os pilares da nova sociedade ps-revolues: a multido, resultado da feroz

    urbanizao provocada pelo xodo de camponeses; a democracia, que fez com que o homem

    participasse mais ativamente do controle do mundo; e a rotina, surgida com a padronizao

    da jornada de trabalho nas indstrias.

    Os grandes aglomerados humanos formados nas principais cidades europias, em

    especial Paris e Londres, foram o efeito mais visvel da industrializao. A migrao em

    massa de camponeses provocou um crescimento desordenado e meterico, expondo os

  • 20

    habitantes a condies precrias. A expectativa de vida nas cidades era duas vezes menor que

    no campo na primeira metade do sculo XIX. Os pobres foram relegados periferia, jogados

    em cortios onde se misturavam o feio e a imundcie (HOBSBAWM, 1981, p. 223); os

    avanos tecnolgicos e macroeconmicos no refletiam no dia-a-dia da turba trabalhadora,

    exposta a rotinas desumanas e vivendo em um ambiente nada sadio. O infanticdio, a

    prostituio, o suicdio e a demncia tm sido relacionados com esse cataclismo econmico e

    social. (ibid., p. 225).

    Na multido, o indivduo perde sua identidade. Vira o que Jos Ortega y Gasset (1987,

    p. 12) chamou de homem massa, que carece de um dentro, de uma identidade prpria.

    Pertencer a um grupo funciona como uma defesa, e ao mesmo tempo uma fuga de si. Ele

    sente-se bem por ser idntico aos demais (p. 40).

    Esse novo ser, envolto em um meio degradado, exausto em decorrncia da ganncia

    dos industriais e agindo mecanicamente de acordo com a massa, nem em tais condies atinge

    estabilidade. As mudanas de moradia e emprego so comuns: no se sabe onde se estar no

    dia seguinte: as pessoas ficam merc do acaso, inseguras. Assemelham-se a espectros

    (BRESCIANI, 1994, p. 11).

    Tamanha falta de controle sobre seu prprio destino, conseqncia direta da multido,

    constitui um paradoxo com outra marca fundamental da nova sociedade: a participao

    popular nas decises coletivas.

    O processo de democratizao foi-se estabelecendo gradualmente aps as quedas de

    quase todos os governantes absolutistas durante o sculo XIX. Aps a Primavera dos Povos,

    uma quase revoluo global em 1848, dois fatores levam ao aumento da participao popular

    no rumo dos pases: o nacionalismo e a conscincia de classe. O primeiro surge do

    engajamento em batalhas contra reis absolutistas, e do acesso maior informao que o

    grande desenvolvimento da Imprensa permitia. Entendia-se muito melhor, na segunda metade

    do sculo, que a atitude individual ecoa na coletiva, e que se pode interferir nos rumos da

    nao.

    Alm disso, a extrema pobreza vista nas grandes cidades era o cenrio revoltante ideal

    para insuflar as pessoas ao. A compaixo pelos sofridos passa a ser especialmente em

    Paris e Londres uma obrigao social. A questo pblica era debatida em tabernas, cafs e

    todos os lugares de agitao cultural. A sensao era de se estar em um palco onde se encena

    o espetculo de uma revoluo permanente (ibid., p. 116).

    Foi nos meios industriais, todavia, que se logrou organizar entidades que pudessem de

    fato conquistar benefcios massa. A conscincia de classe nasceu mais da exausto diante de

  • 21

    condies absurdas de trabalho que de alguma ideologia. Essas (embora o Socialismo de

    Marx fosse a base terica da mentalidade operria, no se pode ignorar a grande influncia

    que tiveram outros pensadores, embora de repercusso mais local, como Saint Simon na

    Frana e Robert Owen na Inglaterra) surgiam durante o processo de formao dos sindicatos.

    A luta popular no era mais contra um governante absoluto, com poderes divinos: era contra a

    antiga aliada, a burguesia industrial, que durante a Primavera dos Povos viu o seu direito

    propriedade ser ameaado. Aps tal risco, os novos donos do poder descobriram que a

    manuteno da ordem era a mais segura forma de garantir a manuteno de seus lucros,

    mesmo que para isso tivessem (como fizeram, de fato) de abdicar de pontos do seu programa

    original. Ironicamente, as idias revolucionrias burguesas de cinqenta anos antes passam s

    mos dos lderes operrios: o combatente virara combatido.

    O burgus ps-Primavera dos Povos usufruiu de quase 30 anos de exploso econmica

    com os ciclos do carvo e do ferro. Com isso, afirmou de vez sua condio de classe

    dominante, e constituiu um universo prprio, base da mentalidade do sculo seguinte: o

    burgus moderno perdia seu fervor religioso e consumia muita informao e arte. Na

    monarquia, o artista era visto como um ornador; na sociedade burguesa, ele tomava o lugar

    de sacerdotes no iderio coletivo e era altamente valorizado.

    Este o prottipo do homem-massa, j mencionado, o futuro brbaro moderno do

    sculo XX, para Ortega y Gasset (1987, p. 122). Acostumou-se com as facilidades adquiridas

    pela tecnologia, e deseja cada vez mais; constri sua existncia atravs do binmio

    trabalho/cincia, e deixa valores como famlia e religio em segundo plano. E comea a ver a

    classe proletria como segregada, diferente, alheia a seu mundo. A prpria maneira como a

    urbanizao ocorreu, relegando os mais pobres s periferias, afastados, facilitava o aumento

    do abismo entre burguesia e trabalhadores.

    Era natural, ento, que o movimento operrio virasse a bandeira pela qual os mais

    necessitados tentavam diminuir as diferenas de renda. Era uma organizao de autodefesa,

    de protesto e de revoluo. Mais que isso, virou um modo de vida (HOBSBAWM, 1981,

    p. 235). Seus lderes eram heris populares e suas conquistas, repercutidas nas ruas. Foi tal

    organismo que permitiu s pessoas perceberem o seu poder de influncia, a sua possibilidade

    de participao.

    Isso se dava em um Estado cada vez mais aparelhado e burocratizado, outra marca da

    Modernidade. Criavam-se mais leis, estatutos, documentos, requerimentos e formalidades. A

    monetarizao total da economia e o crescimento dos bancos realavam a importncia das

  • 22

    instituies. O estado-nao encorpava, enraizava-se e passava a controlar as relaes

    sociais.

    Como dito, esse um dos grandes paradoxos modernos: a mesma sociedade da

    multido e da mecanizao, que impunha a repetio ininterrupta das mesmas tarefas

    provocando a anulao da individualidade, era a sociedade da participao coletiva, do

    sufrgio universal, do acesso informao, da luta por direitos trabalhistas no movimento

    operrio. Quanto mais se participava dos destinos do todo, menos se tinha controle de sua

    prpria sorte. Seguir leis, to genricas e impessoais, provoca a diminuio do eu: a

    Modernidade o anti-humanismo (TOURAINE, 2002, p. 38), a destruio criadora (ibid.,

    p. 100), o sentimento angustiante do sem-sentido (ibid., p. 101).

    Sem-sentido expressa bem uma parte da atmosfera da poca. A sobreposio da

    crena religiosa pela cincia exata acaba com o finalismo, mais cmodo e reconfortante. O

    papel social regulador que possuam as leis divinas migra para apenas um princpio moral: h

    uma necessidade de confiana mtua nas relaes. O trabalhador espera que ser pago e o

    empregador cr que seu subordinado cumprir suas obrigaes. O homem tem que aprender a

    viver em um meio sem a obrigatoriedade imposta pelo Absoluto. Tem, ao mesmo tempo, uma

    sensao constante de vazio, e uma gama infinita de possibilidades.

    O socilogo britnico Anthony Giddens (2001) atribui a trs fatores o grande ritmo de

    mudanas sociais nos tempos modernos, que transformaram o conceito de individualidade: A

    descontextualizao das instituies sociais, a reflexividade institucional e o

    esvaziamento do tempo e do espao.

    A primeira diz respeito questo da burocracia: ao se substituir a visita de um oficial

    do governo pelo envio de um documento por correio, ou ao se possibilitar assinar um papel

    que, diz-se, vale o mesmo que quilos de ouro, o Estado de que este homem moderno pensa

    fazer parte torna-se abstrato. a vitria do signo sobre o referente, dos valores-padro, que

    homogenezam o indivduo.

    De reflexividade institucional Giddens chama outro aspecto impulsionador de

    transformaes em mbito coletivo: a capacidade dada pelas cincias humanas e naturais para

    se repensar a prpria vida social. O esprito desbravador e criador do moderno alimenta mais

    estudos e descobertas, que se refletem imediatamente na conduta tomada. So novas teorias

    socialistas mudando o sindicalismo, novas doutrinas econmicas guiando alteraes nas

    polticas financeiras, mquinas e tecnologias inditas que obrigam toda a indstria a se

    renovar: repensam-se todos os sistemas constantemente. uma sociedade absurdamente mais

    dinmica que aquela de cem anos antes.

  • 23

    O socilogo ingls atribui tal dinamismo ao esvaziamento do tempo e do espao, o

    mais fundamental propulsor da revoluo social vista no sculo XIX. As grandezas temporais

    e espaciais no dependiam mais uma da outra, e nenhuma das duas se valia da Natureza como

    no passado.

    Quanto ao tempo, dois exemplos disso so: a difuso do relgio mecnico, que

    facilitou acompanhar totalmente as fases do dia, sem a dependncia de fatores naturais como a

    luz do sol; e a institucionalizao da jornada de trabalho, depois da qual passaram a existir

    dois tempos: o do trabalho e o fora dele. Tudo era, a partir da, arranjado de acordo com as

    horas teis. Talvez tenha sido essa a mais impactante mudana da nova era.

    Tambm o espao passou a ser tomado por signos: aumentou-se muito o conhecimento

    do globo, e mapas universais eram cada vez mais precisos. As distncias diminuram, bem

    como o intercmbio de informaes, com o desenvolvimento de meios de transporte mais

    rpidos e eficientes em rotas mais inteligentes, a partir de uma cartografia mais fidedigna.

    O domnio sgnico do tempo e do espao, assim, dinamizou a existncia. O longe e o

    futuro eram mais acessveis. A quantidade de novas possibilidades abertas com tais adventos

    inumervel. Giddens (op. cit., p. 24) afirma que o esvaziamento do tempo e do espao

    iniciou processos que estabeleceram um s mundo onde nenhum existia antes. Embora isso

    seja mais claro a partir do sculo XX, na segunda metade do sculo anterior as perspectivas

    do que todo esse movimento poderia gerar eram perturbadoras1.

    Assim, a Modernidade foi marcada pelo paradoxo eu x sociedade, o que acabou

    por influenciar diretamente o terceiro pilar citado da nova civilizao: a rotina. Esta, por sua

    vez, encontra-se no meio de outro contraste: se os dias eram todos iguais, com a enfadonha

    tarefa profissional na linha de produo, o mundo mudava freneticamente: um turbilho de

    permanente desintegrao e mudana (BERMAN, 1996, p. 15).

    O que se conclui que o social vencia a batalha contra o indivduo. Alain Touraine

    (2002, p. 221) resume que o sujeito fraco, no apenas dominado pelos aparelhos de poder,

    mas privado de uma grande parte de si mesmo.

    1 O processo de esvaziamento do tempo e do espao resultou na globalizao, conceito mais

    difundido a partir da segunda metade do sculo XX. Em seu estudo citado, Giddens detalha

    esse processo, e conclui que a globalizao diz respeito interseco da presena e da ausncia (p. 19). Por sair do escopo da pesquisa em tela, tal desenvolvimento no foi includo.

  • 24

    2.2 A arte da Modernidade

    Tem-se, portanto, um claro panorama das motivaes da Modernidade em diferentes

    esferas: poltica, com o processo de democratizao desencadeado a partir da Revoluo

    Francesa; econmica, com a auto-sustentao do processo produtivo gerada pela Revoluo

    Industrial; e social, com o surgimento de uma nova mentalidade coletiva de multido

    propulsionando o esvaziamento do sujeito.

    Tudo isso reverbera na quarta esfera que se pretende explorar: a cultural. Com as

    agitaes no campo poltico, era natural que as produes das cincias humanas fossem mais

    voltadas Poltica e Sociologia. Liberta da religio desde o Renascentismo e da aristocracia

    desde o Iluminismo, a intelectualidade do sculo XIX abraa o conceito liberal-humanitrio

    de que o homem responsvel pelo seu prprio destino. Teorias socialistas, que

    fundamentavam a luta operria por melhores condies de trabalho, repercutiam com grande

    rapidez nas tabernas, na bomia, espcie de palco onde revolucionrios e lderes sindicais

    discutiam seus prximos passos.

    O que seguramente diferencia a Modernidade de outras pocas tal intercmbio quase

    instantneo: o desenvolvimento da Imprensa e a melhoria das tcnicas de reproduo grfica

    facilitavam a divulgao de idias. Formou-se um mercado consumidor de folhetins, em que

    cultura e arte eram, pela primeira vez, tratados como mercadoria. A influncia da tecnologia

    revolucionou a produo artstica, e permitiu que mais pintores, escritores e msicos vivessem

    exclusivamente de suas criaes.

    Walter Benjamin (1994), em seu clebre ensaio A obra de arte na era de sua

    reprodutibilidade tcnica, descreve as conseqncias da formao desse mercado de

    consumo. Para ele, a reproduo tcnica difere da manual consagrada at ento j que

    esta, apesar de ser uma falsificao, preserva a autoridade da obra. Aquela, entretanto,

    desvaloriza o original: ela substitui a existncia nica da obra por uma existncia serial (p.

    168). Com isso, perde-se o que o pensador alemo chama de aura, que a figura singular,

    composta de elementos espaciais e temporais: a apario nica de uma coisa distante, por

    mais perto que ela esteja (p. 170). A arte, que entre os homens primitivos era sagrada, secreta

    e acessvel a poucos, emancipa-se, escancarada ao grande pblico.

  • 25

    Os adventos da fotografia e de novas tcnicas tipogrficas2 provocaram reaes

    diversas na classe artstica: aqueles que cumpriam as exigncias dos editores e eram bem

    aceitos pelo pblico, produzindo de acordo com as demandas dos consumidores; e os que

    reagiam a tudo isso, isolando e protegendo sua arte da banalizao3. Isso no significava que

    deixavam de publicar o que criavam, mas que blindavam suas obras do grande pblico.

    Em outro ensaio, Sobre alguns temas em Baudelaire, Benjamin (1989, p. 140)

    explica que essa crise percebida pelos artistas gerava nostalgia dos tempos em que se

    sacralizava a arte, e a maneira que encontraram de resgatar tal esprito era afastar a obra da

    compreenso da massa leitora, j que a inacessibilidade uma qualidade fundamental da

    imagem do culto.

    Aflorada essa necessidade, o mistrio passa a ser uma constante, ao menos nas

    produes no voltadas exclusivamente ao mercado do entretenimento. Na primeira metade

    do sculo XIX, o artista romntico j se fechara em sua obra, mas no objetivando um

    afastamento do receptor: ele almejava distanciar-se da realidade. Limitar seu mundo sua arte

    era um mecanismo de defesa, de negao ao presente, seja no lirismo dramtico de

    Beethoven, no escapismo frente tragdia de Francisco Goya ou no saudosismo de Vitor

    Hugo.

    O artista do final do sculo, entretanto, tem outra motivao. Ele no quer fugir

    realidade, mas evitar que sua obra seja desvirtuada. Diminuir a acessibilidade para aumentar

    seu valor: o hermetismo uma das mais aparentes caractersticas das tendncias ditas

    modernas.

    Contudo, antes de se listar de modo indiscriminado possveis atributos de uma nova

    arte, h que se voltar s questes expostas anteriormente: o que a Arte Moderna?

    possvel achar pontos de contato nas produes recentes que estabeleam assim a existncia

    de uma tendncia mundial? H um marco inicial?

    O contexto histrico exposto aponta o surgimento de um mundo cujas particularidades

    scio-poltico-econmico-culturais justificam seu rtulo de moderno. A Modernidade seria

    ento o cenrio industrial, urbanizado e interativo estabelecido durante a segunda metade do

    sculo XIX, e definitivamente instaurado nos anos posteriores.

    2 A difuso da propaganda barateou os peridicos, que passavam a contar com outra fonte de

    renda. Isso popularizou a compra de jornais nas grandes cidades europias. 3 Muitos artistas, hoje consagrados como cnones, publicavam suas obras em jornais sem

    grande sucesso. Baudelaire, cuja produo ser discutida mais adiante, um exemplo de

    escritor e ensasta mal colocado no mercado consumidor da poca.

  • 26

    Afirmar que a Arte Moderna a arte da Modernidade constitui uma simplificao

    limitante. A mais definitiva certeza sobre a Arte Moderna de que ela no existe enquanto

    tendncia mundial, parmetro ou padro esttico. Ela simplesmente a juno grosseira e

    didtica de inmeros artistas reunidos em movimentos ou no que reverberaram as

    radicais mudanas por que a Sociedade passou. Absorveram a inteligncia crtica iluminista e

    a sensibilidade romntica, mas ao mesmo tempo as negaram como dogmas.

    Logo, no se pretende encontrar regras aplicveis a todos os artistas do perodo

    estudado. Isso seria utpico. O objetivo apreender o esprito moderno que de certo modo

    habita a maior parte das criaes, e componha no uma linha de conduta, mas um painel4 da

    arte na poca.

    Em O nome e a natureza do Modernismo, Malcolm Bradbury e James McFarlane

    (1999, p. 18) arriscam uma generalizao:

    [A arte moderna ] o advento de uma nova era de alta conscincia esttica e

    no-figurativismo, em que o artista passa do realismo e da representao

    humanista para o estilo, a tcnica e a forma espacial.

    Deixar o realismo de lado era no dar sua obra funo social: estava estabelecida

    a crise entre a arte e a histria (ibid., p. 21). O comprometimento do artista no ser scio-

    poltico, mas para com a evoluo da prpria Arte. a segunda caracterstica (tendo em vista

    que o hermetismo foi a primeira) que pode ser observada na arte da Modernidade: o

    engajamento artstico. Jamais houve tantos movimentos, debates, crticas e dissidncias

    como no sculo XX. Quase todos os artistas foram crticos por excelncia no s de outros

    trabalhos, mas tambm de sua criao. As vanguardas talvez sejam o melhor exemplo disso:

    com seus manifestos, verdadeiros elementos blicos com frmulas originais de composio:

    procuram a radicalizao das inovaes e a produo de estranhamentos que as isolassem e

    as protegessem do presente (MENEZES, 1994, p. 88).

    a busca da originalidade a qualquer preo: para tal, h o desenvolvimento do estilo,

    citado por Bradbury e McFarlane. Este deve ser pessoal e utopicamente incomparvel com

    qualquer outra tendncia: o artista renova a maneira pela qual encara o seu trabalho: inovar

    agora mais importante que criar. A Arte Moderna caracteriza-se, assim, pela esttica do

    choque.

    4 As sete caractersticas escolhidas so uma generalizao sem ambicionar a definir o que

    moderno ou no, porm visa a ser uma condensao de tendncias. Haver artistas e

    movimentos que no se enquadram em uma ou outra, mas como inclinao geral, todas

    parecem consagradas pela crtica como sendo inerentes produo de Arte da Modernidade.

  • 27

    Nota-se que o consumidor dessa obra mais uma vez afastado. Sua natureza hermtica

    e surpreendente, conforme explicitado anteriormente, anula um dos plos naturais da

    comunicao, a recepo. No se compe mais para o outro.

    A pergunta inevitvel : para quem , ento, destinada a criao? Ao prprio artista?

    Ora, seria difcil conceber isso na era em que o eu estava claramente enfraquecido. A quase

    (ou, em alguns casos, total) inexistncia de traos pessoais nas criaes faz supor que o outro

    extremo comunicativo, a emisso, tambm fora alijado da obra.

    O que sobra ento? A mensagem, pura e concentrada, acontecendo por si s no iderio

    moderno. Ela deixa de vincular-se a seu criador ou a seu consumidor: ela torna-se

    independente, e sua auto-realizao d-se em um entre-lugar desses dois estgios. A

    procura de uma arte-objeto pura (BERMAN, 1996, p. 29) constitui uma marca dessa nova

    maneira de se fazer Arte.

    Arte-objeto, a arte que no significa, mas . O significante livre do desgaste do

    significado, transformado em um ser, cuja ressonncia interior, para Kandinsky (1996, p.

    166) poeta e pintor revolucionrio a nica coisa que resta.

    a idia sendo vencida pela estrutura 5. Na arte pr-moderna, aquela o ponto de

    partida para essa. A partir do final do sculo XIX, entretanto, a significao emana da forma,

    que lhe anterior. Isso obriga os artistas a investirem no refinamento de sua tcnica, outro

    ponto em comum das obras de arte modernas. A industrializao galopante e a mentalidade

    cientificista da poca, aliadas profissionalizao dos autores, pintores e msicos,

    estabeleceram o cenrio necessrio para uma aguda especializao dos envolvidos com o

    processo artstico. Havia mais discusses, estudos e os j mencionados movimentos de

    diversas ordens, o que levou a Arte a um perodo de enriquecimento formal, atravs de

    experimentalismos, desenvolvimento de uma crtica mais atuante e o surgimento de novas

    possibilidades tecnolgicas:

    A arte moderna deve recriar, para si, as prodigiosas transformaes de

    matria e energia que a cincia e a tecnologia modernas [...] haviam

    promovido (BERMAN, 1996, p. 141)

    Este constitui mais um dos tantos paradoxos modernos: o artista, com as

    caractersticas j mencionadas, negava o mundo exterior e protegia sua obra dele, tornando-a

    5 Como dito, as caractersticas levantadas da Arte Moderna so genricas, pela imensa

    heterogeneidade da poca. Pablo Picasso, pintor smbolo da Modernidade, afirmava que a

    idia era seu ponto de partida, e nada mais (s/d, apud CHIPP, 1996, p. 277). Embora haja clara predileo pela forma, ela ainda subjugada a uma significao apriorstica.

  • 28

    hermtica, chocante e independente. Alm disso, no se engajava politicamente6, mas apenas

    no mbito artstico. Entretanto, ao se especializar ao mximo e aprimorar sua tcnica, apenas

    repetiu o que tanto o perturbara na sociedade industrial. Transformou-se em uma variao do

    especialista fabril, produzindo incessantemente para ganhar seu sustento.

    O afastamento do local e do pessoal nas manifestaes artsticas gerou uma

    necessidade de universalizao, mais uma das qualidades tpicas da Modernidade. No texto

    Realidade natural e realidade abstrata, em que lana as bases do movimento neoplstico, o

    pintor Piet Mondrian (1996) afirma:

    Se a realidade for contemplada de um modo preciso e definido, a ateno se

    dirigir unicamente para o universal, e, em conseqncia, o particular, o

    individual, desaparecer da arte. (p. 326)

    a tentativa de apreender o instante do fenmeno exterior e captar sua unidade e seu

    encanto esttico antes da mcula deixada pela impresso pessoal. Tal necessidade nasce do

    trabalho com a forma (modo preciso e definido), cujo equilbrio e excelncia universalizam

    o produto artstico. O mtodo de criao passa a ser mais importante que a prpria obra.

    Para o msico Igor Stravinsky, o papel do artista moderno respeitar uma

    sistematizao procedimental que organize sua imaginao criativa. Quanto mais a arte

    controlada, limitada, trabalhada, mais ela livre (1996, p. 63). Cabe ao criador perceber a

    necessidade de dogmatizar sob pena de perder o nosso objetivo (p. 65).

    Ele divide o dogma em trs premissas fundamentais: apenas se atinge a

    universalidade pelo trabalho de seleo (busca do Um a partir do Mltiplo (p. 69)) dos

    estmulos; o respeito e a submisso a uma ordem (mtodo) estabelecida; e a submisso da

    liberdade criadora ao objeto da obra.

    No seguir os supracitados preceitos cair no cosmopolitismo estril, que leva ao

    isolamento do artista e no o consagra no Uno artstico, por estar em desacordo com essa

    ordem vigente.

    De tal maneira unidos pela forma e pelos movimentos de que participavam, e

    beneficiados pela melhoria dos meios de comunicao e de transporte, os artistas mais uma

    vez refletiram uma tendncia do mundo que abominavam: a globalizao, embora ainda

    fosse limitada poltica e economicamente, j era sentida na Arte. Tcnicas e temas orientais

    eram incorporados pelos trabalhos ocidentais; peculiaridades de povos indgenas passaram a

    6 Foram muitos os artistas modernos com envolvimento poltico, como o futurista Filippo

    Marinetti, ativo no Partido Fascista Italiano. Suas obras, porm, nascem em resposta a um

    contexto muito mais artstico que poltico.

  • 29

    gerar interesse; o inusitado de outras culturas foi mais uma maneira de violar a continuidade e

    trazer fatos novos s criaes.

    Hermetismo; engajamento artstico; choque; auto-realizao; tcnica; universalizao

    e globalizao. Tais as sete caractersticas mais abrangentes da Arte Moderna. Todas elas

    transpareceram nas mais diversas formas de criao, j que poetas, msicos e artistas plsticos

    comunicavam-se em freqncia muito maior que antes: em virtude disso, as diferentes

    modalidades de arte desenvolvem-se em uma linha evolutiva bastante similar.

    Na pintura e na escultura, o Simbolismo e o Impressionismo so geralmente

    associados ao comeo do Modernismo, pela quebra da representao pictrica da realidade e

    pela sublimao de contornos e formas. Movimentos posteriores, como o Neoplasticismo de

    Mondrian e o Cubismo de Picasso intensificaram a sofisticao no trato do significante, o que

    obscureceu ainda mais as obras.

    Na msica, a modernidade refletiu na luta contra a tradio clssica da tonalidade. A

    busca da atonalidade na obra de Gustav Mahler, no sculo XIX, prenncio de grandes

    revolues no sculo posterior, como o serialismo de Igor Stravinsky e principalmente o

    Dodecafonismo de Arnold Schnberg, que encerra o conceito de nota tnica e estabelece que

    cada uma das doze notas musicais que compe a oitava aparea o mesmo nmero de vezes em

    cada composio. O sculo XX caracterizou-se pelo crescente hermetismo da msica dita

    erudita, cada menos menos acessvel s massas.

    2.3 A Literatura da Modernidade

    J na Literatura, o Romantismo que dominou todo o comeo do sculo XIX j

    continha em seus arqutipos traos de Modernidade. Ao viver o conflito eu-mundo, o artista

    romntico por um lado, desvinculado dos valores religiosos e aristocrticos de antes, e

    embriagado pela epistemologia ontolgica de Kant e Fitche, que centralizava a razo a partir

    do Ser; e por outro, mais ativo politicamente, em constante contato com teorias historicistas

    inaugura a tendncia moderna de fechar-se em sua prpria obra. Mas tal processo uma fuga

    decorrente de sua inadaptao euforia vigente frente os avanos conquistados pela

    Humanidade. Ao no compartilhar integralmente desse sentimento, sente a angstia do

    isolamento.

  • 30

    O Eu romntico , ainda, voltado multido. O sentimento nacionalista presente em

    tantos autores e sua luta pela integridade da lngua ptria expressam um comprometimento

    que se tornaria raro no moderno.

    Podem-se creditar aos romnticos, ainda, tmidas inovaes na forma literria, que

    seriam amplamente intensificadas posteriormente. O coloquialismo de Victor Hugo ou a

    magia das palavras de Novalis7 antecipam a moderna revoluo no modo de fazer literrio.

    Definir uma data, um acontecimento ou um artista que tenha quebrado os padres

    romnticos e iniciado a Modernidade na Literatura seria ignorar um processo dinmico e

    gradual de concentrao na forma e de dissassociao do eu com o mundo. Pode-se falar

    que ser moderno tambm fechar-se na prpria obra, mas sem o escapismo romntico de

    negar o presente. Ao isolar-se na estrutura de sua criao, o artista da Modernidade aspira a

    fundar um novo ser, a recriar a realidade sem a influncia do eu ou do outro.

    Na poesia, so dois os nomes geralmente associados inaugurao dessa tendncia:

    Edgar Allan Poe, nos Estados Unidos e na Inglaterra; e, quase concomitantemente, Charles

    Baudelaire, na Frana. O americano viveu de 1809 a 1849, e exerceu declarada influncia no

    francs (1821 1867), que foi seu tradutor e admirador.

    Dificilmente pode-se crer que Poe teve tempo de conhecer algo da obra baudelairiana.

    Sua vida errtica e biografia incerta, porm, dificultam o acesso a esse tipo de informao. De

    qualquer modo, costuma ser considerado o ponto nodal (MENEZES, 1994, p. 48) da

    transio entre o Romantismo e o Modernismo, quando de fato os impulsos intelectuais da

    obra passam a (querer) controlar os sensoriais. A criao-smbolo de tal conflito O corvo

    e seu ensaio explicativo Filosofia da Composio, em que cada passo da produo do

    poema detalhado aprioristicamente. O efeito construdo, e no emanado: a forma precede

    o tema, e deve ser sempre inovadora, encarada como um problema matemtico. Ela passa a

    ser uma metfora dos produtos da racionalidade, representao das produes cientficas e

    tcnicas dos processos dirigidos pelo intelecto (ibid., p. 50).

    Alguns crticos, porm, no acreditam na aprioridade do ensaio em relao ao poema.

    O crtico Antonio Brasileiro (2002, p. 39) corrobora com tal linha:

    Para ns, contudo, o excelente ficcionista Poe, precursor de Borges,

    brincava. Seu poema j estava pronto quando decidiu justific-lo. E no

    havia por que ser diferente: a mente do grande poeta, no ato da criao, dispensa os lentos instrumentos do raciocnio.

    7 Por defender que cada palavra um encantamento, e atribuir ao poeta o papel de mago,

    Novalis vem sendo considerado um dos mais modernos romnticos. Ver FRIEDRICH, 1978,

    p. 27 30.

  • 31

    No parece ser relevante se de fato o poeta construiu sua obra a partir do efeito

    desejado, ou se a Filosofia da Composio nasceu depois. Mas fica clara a inteno de Poe

    de apontar a necessidade de se filtrar a inspirao pelo julgamento mental. Tal preocupao

    reverbera tambm em seus textos tericos: a mente do grande poeta parecia em luta com

    seu lado racional.

    Com o poder da razo, Poe acreditava ser possvel dominar o acaso na obra de arte. A

    sada era o trabalho sobre a linguagem. Em uma de suas Notas Marginais, intitulada Entre

    a viglia e o sono, diferencia os conceitos de pensamento e fantasia. Estas so

    atemporais e acontecem apenas beira do sono. J aqueles demandam a cognio atravs do

    tempo. Sobre a expresso das duas distintas imagens, afirma (1989, p. 57):

    No creio que qualquer pensamento, propriamente assim chamado, esteja

    fora do alcance da linguagem. [...] H, no entanto, uma espcie de fantasias, de refinada sutileza, que no so pensamentos, e s quais, at aqui, tenho

    considerado absolutamente impossvel aplicar a linguagem. [grifos originais]

    Nota-se que Poe reconhece uma limitao da linguagem (tema que retornar de forma

    mais relevante em Mallarm) em expressar suas fantasias, racionalizar suas experincias

    sensrias. Buscar isto papel do poeta (ibid., p. 58):

    To completa a minha f no poder das palavras que [...] no perco de

    todo a esperana de corporificar em palavras pelo menos o suficiente das

    fantasias em questo para transmitir [...] uma vaga concepo do seu carter. [grifo original]

    Como j citado, os romnticos j ensaiavam uma valorizao lexical, especialmente

    Novalis. Mas apenas com Poe o ritmo, os fonemas, os efeitos sonoros passam a valer mais

    que o significado. Poesia, para ele, era a juno da Idia com a Msica. Depois desse marco, o

    poema moderno passou a descolar cada vez mais as palavras de seus referentes.

    Ressaltar a influncia de Poe em Baudelaire no significa diminuir o francs:

    primeiramente, graas a ele o americano teve grande repercusso na Frana antes mesmo que

    sua obra fosse difundida em seu prprio pas; alm disso, Baudelaire soube amplificar os

    conceitos absorvidos e compreender o esprito moderno como ningum havia antes dele.

    Em estudo sobre Poe, Paul Valery (1989, p. 138) ressalta que sua concepo [de

    poesia], por ele exposta em diversos artigos, foi o principal agente de modificao nas idias e

    na arte de Baudelaire. Para o poeta e crtico francs, so trs os legados que Baudelaire

    apreende do autor de O Corvo: A filosofia da composio, a compreenso do moderno e o

    gosto pela elegncia e preciso.

  • 32

    Les Fleurs du mal um rduo exerccio de racionalizao poemtica. Embora no

    haja grandes inovaes formais na versificao, a maneira como os poemas so divididos

    subordinados a uma disposio medular , seu grau de remissibilidade interna e o

    obscurantismo intimidador ao leitor fazem desta a primeira obra cosmolgica da Literatura,

    j que ela pretende existir por si s, dentro de sua estrutura, deixando de fora o eu e o

    outro. A evaporao do emissor e do receptor, marca da arte moderna conforme visto, d tal

    estado ontolgico criao. esse um importante legado baudelairiano.

    O maior deles, porm, claramente a compreenso do esprito moderno. Mais que um

    grande autor, Baudelaire foi um observador de sua poca. Como um heri, mistura-se

    massa, e dela apreende elementos para sua crtica e arte. A Modernidade ao mesmo tempo o

    encanta e o desaponta. Como forma de fuga a tal sentimento duplo, isola-se, e usa o incgnito

    para analisar as figuras tpicas da sociedade parisiense.

    Com os contos policiais de Poe, Baudelaire percebe que o Belo no estava apenas

    no Bem. Em sua atividade noturna de boemia, capta o infernal, as cenas urbanas

    chocantes do mundo ps-industrial: prostitutas (tipo freqente em seus poemas), ladres,

    miserveis e todos os renegados pelo progresso.

    Sua poesia brota do sentimento de revolta advindo daquele cenrio que o cerca. Walter

    Benjamin (1989, p. 21) no considera o satanismo manifestao de crena relevante, ou ainda

    de adorao, mas uma sada para expressar seu inconformismo: [...] quase sempre a

    confisso religiosa brota de Baudelaire como um grito de guerra. No quer que lhe tirem o seu

    Sat 8.

    O Sat de Baudelaire foi a percepo dos paradoxos modernos. As restries

    temporais, a automatizao humana nas fbricas e em meio multido, a proliferao da

    misria: tudo isso gerou nele uma sensao que ficaria por toda a Modernidade, a idia da

    morte de Deus. Sem um ente superior, no h mais uma salvao extraterrena. Perde-se

    assim uma explicao da vida, desobriga-se a humanidade de seguir preceitos morais: o vazio

    da descrena fez com que o no-Deus fosse at ingenuamente transformado em Sat.

    Por conseguinte, a morte , em Baudelaire, desmistificada, pois deixa de ser

    possibilidade de expiao, ou ainda justificativa para suportar uma vida degradante. O ps-

    morte passa a ser o Nada, e tal perspectiva gera uma insegurana ontolgica que repercutir

    em todo o conceito de Ser. De uma forma evidentemente rudimentar, ele antecipa conceitos

    8 Mais uma vez nota-se a inerncia das influncias do meio sobre a obra de arte. O artista, ao

    usar sua criao para fugir do mundo, acaba inserindo nela dados externos, ainda que

    inconscientemente.

  • 33

    existencialistas que apareceriam no sculo XX em toda a Europa: esta experincia da morte

    de Deus acompanhada em toda a Modernidade pela sensao de asfixia e angstia (LIMA,

    1980, p. 126).

    esse o arqutipo do decadente 9, a expresso mais fidedigna do homem da

    Modernidade, que Baudelaire construiu a partir de insights seminais de Poe. O americano,

    porm, no teve a clareza do esprito moderno tal qual seu tradutor francs.

    Ainda para Paul Valery, o terceiro dos conceitos de Poe que Baudelaire amplifica o

    gosto pela elegncia e preciso. Poeta-arquiteto, combina a mstica da msica com elementos

    psquicos de maneira consciente, atravs de um mtodo. Apenas assim conseguiria ser

    esteticamente moderno.

    Com essa sistemtica, cabia ao artista ser capaz de tirar de moda o que pode conter de

    potico no histrico, de extrair o eterno no transitrio. Baudelaire afirma isso em um ensaio

    sobre o artista plstico Constantine Guys, chamado Sobre a modernidade (2004, p. 25). A

    obra de arte deve conter, para ele, essa marca de seu tempo, a beleza misteriosa que a vida

    humana involuntariamente lhe confere (p. 26). a condio para que o moderno de hoje se

    torne antigo futuramente.

    As figuras tpicas da sociedade parisiense de seu tempo esto de fato presentes em sua

    obra. Suas imagens, entretanto, no so meramente ilustrativas, mas emanam da fora de suas

    palavras. O arqutipo de poeta que o romntico consagrou como um bardo transmissor de

    mensagens lricas transforma-se, em Baudelaire, no equivalente a um sbio, decifrador do

    mundo, com a funo sagrada de encontrar a eternidade no instante.

    A riqueza simblica da cadeia de imagens usada torna o poema um enigma, como se o

    poeta se recusasse a dar ao leitor a vitria da compreenso. Pelo contrrio, o objetivo choc-

    lo.

    O soneto O inimigo (Lennemi), o dcimo de Flores do Mal (1964, p. 102),

    retrata algumas caractersticas baudelairianas citadas10:

    9 Embora Paul Verlaine e outros integrantes do Decadentismo tenham tido influncia direta de

    Baudelaire, o termo decadente usado, aqui, em sentido muito mais amplo, como uma postura existencial diante do fracasso do progresso. 10 Traduo de Jamil Haddad. No original: Ma jeunesse ne fut qu'un tnbreux orage,/Travers et l par de brillants soleils;/Le tonnerre et la pluie ont fait un tel

    ravage,/Qu'il reste en mon jardin bien peu de fruits vermeils./Voil que j'ai touch l'automne

    des ides,/Et qu'il faut employer la pelle et les rteaux/Pour rassembler neuf les terres

    inondes,/O l'eau creuse des trous grands comme des tombeaux./Et qui sait si les fleurs

    nouvelles que je rev/Trouveront dans ce sol lav comme une greve/Le mystique aliment ...

  • 34

    Foi minha juventude um vendaval aziago

    Em que raro brilharam os sis como espelhos:

    Nele a chuva e o trovo fizeram tal estrago Que sobram no jardim poucos frutos vermelhos.

    Eis que chego estao das idias fanadas

    E usarei p e ancinho por manhs obscuras Para juntar de novo as terras inundadas

    Com crateras enormes como sepulturas.

    Quem sabe se a flor nova e que o meu ser anseia

    Achar neste cho lavado como a areia

    O mstico alimento que lhe d vigor?

    Devora o tempo a Vida, suprema agonia!

    Se ri o corao o inimigo traidor,

    Cresce por se nutrir desta nossa anemia!

    No primeiro quarteto, o eu - lrico usa intensos fenmenos da natureza para simbolizar

    emoes fortes, claramente negativas. A partir delas, quase nada (poucos frutos vermelhos)

    produzido. H aqui ironia aos romnticos e sua produo potica baseada na inspirao

    subjetiva, no gnio. A associao de tal postura com a fase da juventude conota uma

    ingenuidade artstica de quem cria dessa maneira.

    J no segundo quarteto h a evoluo, a chegada estao das idias fanadas, fase

    em que consegue pensar mais objetivamente. O caminho para a racionalizao o trabalho, o

    esforo e a busca da melhoria de seu poema. As ferramentas so metforas desse labor, que

    deve operar no apenas no texto, mas na prpria mente do poeta: h que se evitar que as

    terras inundadas, que as reminiscncias da emotividade vinda das experincias pessoais

    interfiram na feitura do novo. O nascer potico deve fazer-se de um cho lavado como a

    areia, seco, racional, e no mais da comoo.

    Para que o poema, a flor nova, surja, o inimigo traidor, que a emotividade, deve

    ser contido. Para tal, cabe ao poeta armar-se para evitar que suas experincias pessoais

    alimentem esse lirismo frgil, tal qual dos romnticos.

    Na escolha lexical, percebe-se outra tendncia moderna: a busca do choque, atravs do

    uso de palavras no-poticas como sepulturas (tombeaux) e ri (ronge). Alm disso,

    imagens altamente metafricas, como crateras enormes como sepulturas, que evidenciam

    um smbolo de dor psquica, e no uma grandeza espacial. Os versos baudelairianos buscavam

    obscurecer suas alegorias, como que as protegendo da compreenso do leitor.

    qui ferait leur vigueur? O douleur! douleur! Le Temps mange la vie,/Et l'obscur Ennemi qui nous ronge le coeur/Du sang que nous perdons crot et se fortifie!

  • 35

    A preocupao com o efeito da obra no seu receptor tambm marca a modernidade do

    soneto: o uso de pontos de exclamao, o tom exageradamente grandioso com que se fala do

    sofrimento e o vocativo que abre o ltimo soneto (O douleur! douleur! 11) so recursos de

    ironia para com o Romantismo.

    Depois de Baudelaire, a arte jamais foi a mesma. Atravs de seu pensamento,

    entendeu-se mais da sociedade e da vida modernas. Mais que isso, entendeu-se que a

    literatura tenderia a se afastar cada vez mais da cognoscibilidade do leitor. Nos movimentos

    europeus do fim do sculo XIX e nas vanguardas do sculo XX, a repercusso dessa idia

    atingiria o seu limite: o quase-rompimento com o real.

    2.4 A Modernidade de Mallarm

    Na Frana da segunda metade do sculo XIX, as idias de Baudelaire seriam

    continuadas das mais diferentes maneiras. Anna Balakian (1985, p. 37) ressalta algumas das

    heranas deixadas pelo autor de Flores do Mal:

    Baudelaire resume o processo potico do seguinte modo: o estmulo afeta os sentidos, os sentidos afetam a mente; o resultado a linguagem, produzida

    por uma vigilncia super-racional da mente. O poema emerge como um todo

    sem que o poeta o tenha conscientemente formado. Neste caso, a esttica de

    Baudelaire dubiamente arrumada: a descrio do ato potico o torna um precursor dos surrealistas; enquanto as vises poticas, resultantes da

    organizao e da estilizao pelo poeta do caos da realidade,

    funcionaro como um trampolim para as imagens simbolistas [grifos nossos]

    O fato de a terica usar o termo imagens simbolistas, e no Simbolismo enquanto

    um movimento literrio, relevante, j que esta escola resumia-se a um grupo de poetas

    parisienses, liderados por Verlaine, cuja atuao deu-se entre 1885 e 1895.

    A denominao simbolismo enquanto recurso literrio, entretanto, bem mais ampla.

    Encarna uma revolta contra o modo romntico de poetar, e o uso de imagens que transmitem

    o arqutipo decadente tpico da poca. Ser simbolista (com letra minscula) expressar

    preocupaes metafsicas, refletir sobre o papel do artista, da arte e do ser humano em si. Para

    Anna Balakian (ibid., p. 88), , ainda, transcender o significado direto do poema [...] para

    11 dor, dor. Perdido na traduo de Jamil Haddad, que preferiu suprema agonia, atingindo o efeito da hiperbolizao da idia de sofrimento com o adjetivo suprema em vez da repetio, como no original.

  • 36

    elevar a experincia limitada do homem-poeta e do homem-leitor a um nvel de mltiplas

    possibilidades.

    Tal elevao ocorre pelo smbolo. Diferente da metfora, que tem presena apenas

    local dentro do poema, ele tem valor independente da obra. um esforo de linguagem, ou

    uma insurreio contra ela: tentativa de apreenso da imagem imediatamente anterior

    nominalizao de um objeto. No tem, assim, a ingnua espontaneidade dos Simbolistas de

    Verlaine, mas fruto de uma reflexo desconstrutora da pretensa realidade imposta pela

    lngua.

    Se essas imagens simbolistas nascem em Baudelaire e so presentes em Rimbaud,

    atingem seu grau mximo de maturao em Stphane Mallarm. Poeta muito grandioso e

    peculiar para ser enquadrado em um determinado movimento, deixou um legado de inovao

    nos nveis conteudsticos, formais e tericos da poesia, o que ditou algumas das diretrizes da

    Literatura do sculo XX.

    A produo de Mallarm, entretanto, no foi extensa. Escreveu poucos poemas, sobre

    os quais trabalhou intensamente. Herdou o labor e o refinamento estilstico de Poe e

    Baudelaire, mas no a preocupao declarada com a Modernidade: as imagens do cotidiano

    urbano, to comuns em seus antecessores, no aparecem na obra mallarmaica. Sua quase

    exclusiva inquietao o seu prprio processo de criao potica.

    Devido a esse fechamento na prpria obra, Jos Merquior (1972, p. 22) chama a

    produo de Mallarm de poesia da poesia, que a encarnao de uma teoria do ser em

    geral, ou uma fenomenologia do processo potico. Seu poema visa a ser enquanto

    estrutura. Longe do entusiasmo ou do delrio romntico, ele criado artificialmente, como um

    esforo de raciocnio. E, diferentemente do egocentrismo de Baudelaire que, como visto,

    elevava a sua funo de poeta de sbio decifrador , Mallarm busca uma independncia

    de esprito, como se sua fora criadora no dependesse de suas impresses ou emoes. Est

    aniquilado o poeta, e com isso, o risco da mcula do sentimentalismo ser expresso na obra.

    Restava o leitor: sua fruio e compreenso do poema era outro risco de limitao da

    ontologia literria. Mallarm, ento, nega-lhe a compreensibilidade, e radicaliza o

    obscurantismo baudelairiano. Se este temia a mercantilizao vulgarizadora, aquele pressentia

    a morte da poesia12. Roland Barthes (1971, p. 90-91), em luminosa analogia, explica:

    12 Convm lembrar que Mallarm, por ter vivido praticamente toda a segunda metade do

    sculo XIX, viu um cenrio editorial muito mais complexo que Baudelaire, e,

    conseqentemente, ainda mais banalizado.

  • 37

    Mallarm, espcie de Hamlet da escritura, exprime bem esse momento frgil

    da Historia, em que a linguagem literria s se mantm para melhor cantar

    sua necessidade de morrer. A agrafia tipogrfica de Mallarm quer criar em torno das palavras rarefeitas uma zona de vcuo na qual a fala, liberta das

    harmonias sociais e culpadas, felizmente no ressoa mais. O vocbulo,

    dissociado da ganga dos chaves habituais, dos reflexos tcnicos do escritor,

    ento plenamente irresponsvel por todos os contextos possveis; ele se aproxima de um ato breve, singular, cuja matidez afirma uma solido,

    portanto uma inocncia. Essa arte tem a estrutura mesma do suicdio: nela, o

    silncio um tempo potico homogneo, que aperta a palavra entre duas camadas e a faz explodir no como fragmento de um criptograma, mas sim

    como uma luz, um vazio, um assassnio, uma liberdade.

    Cabe literatura seguir sendo? esse o questionamento mximo que se desprende da

    obra mallarmaica. O suicdio a que Barthes se refere a total descontextualizao que sofre o

    lxico na obra de Mallarm: mais que uma leitura no eixo paradigmtico da linguagem, seus

    poemas exigem uma abstrao anterior referencializao vocabular. Essa idia claramente

    utpica, pela carga emotiva inerente que cada palavra suscita em determinada pessoa. O poeta

    comparava tal processo com o desgaste que sofrem as cdulas de papel aps o repetido uso.

    Por visar transcender a funcionalidade da lngua, Mallarm aproxima-se da tentativa

    de Poe de expressar, via linguagem, suas fantasias. O francs, entretanto, pretende atingir o

    Absoluto: a zona de vcuo que cita Barthes, e no uma viso pessoal, como Poe.

    Ideal; Absoluto; Nada. Trs palavras sem cuja compreenso no se penetra no

    universo mallarmaico. Ao tentar, como se exps, afastar sua poesia do real, do mundano, do

    emprico, Mallarm busca o Ideal, que no tem nenhuma conotao metafsica, nem

    tampouco um desejo implcito de escapismo. Sua Idealidade ocorre no nvel da linguagem, e

    o desejo de supresso total das marcas do mundo extramental.

    O processo para se chegar a tal resultado a desconstruo do objeto pela fantasia, e o

    registro das impresses causadas pela sua essncia. O objetivo captar a zona de vcuo em

    torno da palavra, ou a carga semntica que o desgaste funcional do uso cotidiano impediu que

    ela trouxesse. Ou seja, visa-se apreender o Absoluto, a idealidade sem contedos empricos.

    Extinguir a concretude das coisas e buscar a abstrao conceitual leva Mallarm a

    acreditar que apenas a palavra potica, a poesia pura, pode ser um canal de contato com o

    Absoluto. A evoluo de sua obra, porm, sugere que ele tenha atingido um impasse: a

    linguagem incapaz de expressar fielmente esse Absoluto buscado, pois ao ser

    descontextualizada de forma to radical, deixa de ser comunicao.

    O outro aspecto que inviabiliza uma soluo a ininteligibilidade do Absoluto, que

    permanece inalcanvel, alm das possibilidades cognitivas humanas.

  • 38

    Essa a dissonncia que conduz Mallarm ao Nada, indeterminao total, ao ponto

    em que no h significao. onde, invariavelmente, a busca do Absoluto leva, j que o Ser

    puro que se visa atingir o Nada puro 13.

    Frente a tudo isso, resta o questionamento a que Barthes se refere: convm Literatura

    existir? Como fazer poesia, sabendo-se a priori de seu fracasso? Sua talvez nica sada o

    suicdio, o silncio, a confisso de sua incapacidade. Ao dilema mallarmaico, o crtico Hugo

    Friedrich (1978, p. 125) deu o nome de niilismo idealista, que

    Nasce de uma deliberao quase sobre-humana da abstrao, de pensar no

    absoluto como a essncia pura (livre de todo contedo) do Ser e de aproximar-se, experimentalmente, de uma poesia em que a prpria

    linguagem torne presente o Nada, na medida em que este pode realizar-se

    mediante o aniquilamento do real.

    Mallarm, ento, fecha-se na estrutura, no pensar potico, nas inovaes formais,

    como tbua de salvao frente irrealidade do contedo, para talvez reelaborar a linguagem

    com o ideal utpico de que, recriada, ela possa finalmente atingir o Absoluto.

    Cada um de seus poemas uma entidade ontolgica independente, to complexa que

    dificulta uma generalizao de caractersticas formais de sua obra; por outro lado, trazem

    traos similares uns com os outros, aluses e repetio de smbolos. Alm disso, tratam

    praticamente da mesma temtica: o processo de criao potica.

    Nota-se, em grande parte dos escritos de Mallarm, a conciso como forma de

    fragmentar a idia e atomizar a frase, cuja condensao ajuda a obscurecer o sentido e gerar

    mais multiplicidade interpretativa.

    Outra propriedade comum em seus poemas a atemporalidade dos verbos, geralmente

    usados no infinitivo, como que para manter um distanciamento do agora, e inserir a idia no

    infinito. Alm disso, a ordem das palavras no segue a sintaxe natural, visando o choque e a

    perturbao da ordem instaurada pelo uso corrente da lngua.

    O uso de expresses adverbiais sem funo sinttica definida, mas como recurso de

    realce a determinado smbolo, tambm pode ser encontrado amide. Outras rupturas, como a

    supresso das dicotomias feminino/masculino e singular/plural; a preferncia por particpios

    verbais com funo adjetivadora por conterem em si a energia seminal da ao expressa

    pelo verbo; e a adio ideogramtica de imagens de diferentes substantivos, so

    peculiaridades passveis de serem listadas na busca da compreenso da sintaxe mallarmaica.

    13 O conceito que liga a pureza ontolgica ao Nada fez com que diversos trabalhos ligassem a

    obra de Mallarm a Hegel. Ver CAMPION, 1994.

  • 39

    Ao aproximar-se da gerao mental da linguagem em estado anterior nominalizao

    do objeto, Mallarm percebe que, antes de um conjunto de palavras, a linguagem pressupe

    um ritmo. Assim, em seu texto terico O livro, instrumento espiritual (1991, p. 127), afirma

    que a Poesia, prxima Idia, Msica, por excelncia no admite qualquer

    inferioridade. essa uma das mais marcantes caractersticas em seus poemas: o uso da

    musicalidade, a tentativa de capturar a forma da Msica e transport-la Poesia.

    No se pode dizer que a obra de Mallarm seja homognea. De fato, h poemas to

    diferentes entre si que se poderia pensar na existncia de distintas foras criadoras em sua

    produo potica. Duas generalizaes feitas por crticos (Anna Balakian e Mrio Faustino),

    baseadas em critrios opostos, so relevantes para a pesquisa em tela, e sero analisadas. Cabe

    ainda ressaltar que nenhuma das duas leva em conta o fator cronolgico: os vrios

    Mallarms atuam como que simultaneamente, o que inviabiliza que se considerem suas fases

    como um processo evolutivo, mas a pluralidade artstica de um poeta que extrapolou padres

    e tendncias estticas.

    Anna Balakian apia-se no nvel temtico para considerar trs divises em sua obra:

    para ela, h o Mallarm clssico, o sonhador e o hermtico.

    O primeiro, mais prximo aos Simbolistas, tem como principal preocupao o ennui, o

    tdio humano. Em Brisa Marinha (Brise marine) 14, a ltima estrofe retrata sua luta

    contra tal sentimento, e aponta smbolos que permearo toda a sua obra:

    Um Tdio, desolado por cruis silncios,

    Aind