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O colocador de pronomes (Conto), de Monteiro Lobato Recomende esta página para um amigo Versão para impressão No conto intitulado O colocador de pronomes, publicado em 1924, Monteiro Lobato ridiculariza a personagem central, Aldrovando, exatamente pelo uso de uma linguagem empolada e descabida, cheia de preciosismos e de palavras incompreensíveis para a maioria das pessoas. A certa altura da narrativa, o narrador fala de uma campanha que Aldrovando empreende para evitar erros contra o idioma, propondo a elaboração de leis repressivas. Observe-se em que termos o colocador de pronomes expressa-se para solicitar ao Congresso leis contra os que erram: Leis, Senhores, leis de Dracão, que diques sejam, e fossados, e alcáceres de granito propostos à defensão do idioma. Mister sendo, a forca restaure, que mais o baraço merece quem conspurca o sacro patrimônio da sã vernaculidade, que quem ao semelhante a vida tira. Vede, Senhores, os pronomes, em que lazeira jazem... (Monteiro Lobato, textos escolhidos. Por José Carlos Barbosa Moreira. 3. ed. Rio de Janeiro, Agir, 1972. p. 100 (Nossos Clássicos,65).) Como se vê, trata-se de uma linguagem rebuscada, quase ininteligível, cheia de palavras raras e de termos em ordem inversa. O resultado dessa campanha foi catastrófico: segundo o que diz o próprio conto, Aldrovando caiu no ridículo, já que os congressistas riram-se dele, os jornais fecharam-lhe as portas, e o público, os ouvidos. Conto na íntegra Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática. Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática. E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática. Martir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização, Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no “Itaoquense”, com bastante sucesso. Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada. Triburtino não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da câmara e desd’aí se transformou no tutú da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz. Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostorura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores - o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dia de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o

O colocador de pronomes Monteiro Lobato

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O colocador de pronomes (Conto), de Monteiro Lobato

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No conto intitulado O colocador de pronomes, publicado em 1924, Monteiro Lobato ridiculariza a personagem central, Aldrovando, exatamente pelo uso de uma linguagem empolada e descabida, cheia de preciosismos e de palavras incompreensíveis para a maioria das pessoas.

A certa altura da narrativa, o narrador fala de uma campanha que Aldrovando empreende para evitar erros contra o idioma, propondo a elaboração de leis repressivas. Observe-se em que termos o colocador de pronomes expressa-se para solicitar ao Congresso leis contra os que erram:

Leis, Senhores, leis de Dracão, que diques sejam, e fossados, e alcáceres de granito propostos à defensão do idioma. Mister sendo, a forca restaure, que mais o baraço merece quem conspurca o sacro patrimônio da sã vernaculidade, que quem ao semelhante a vida tira. Vede, Senhores, os pronomes, em que lazeira jazem... (Monteiro Lobato, textos escolhidos. Por José Carlos Barbosa Moreira. 3. ed. Rio de Janeiro, Agir, 1972. p. 100 (Nossos Clássicos,65).)

Como se vê, trata-se de uma linguagem rebuscada, quase ininteligível, cheia de palavras raras e de termos em ordem inversa. O resultado dessa campanha foi catastrófico: segundo o que diz o próprio conto, Aldrovando caiu no ridículo, já que os congressistas riram-se dele, os jornais fecharam-lhe as portas, e o público, os ouvidos.

Conto na íntegra

Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática.

Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática.

E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática.

Martir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização,

Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no “Itaoquense”, com bastante sucesso.

Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.

Triburtino não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da câmara e desd’aí se transformou no tutú da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.

Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostorura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores - o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dia de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o

Acorda, donzela...

Sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.

Aqui se estrepou...

Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:

Anjo adorado!

Amo-lhe!

Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o

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bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto - para umas certidõesinhas, explicou.

Apesar disso o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha.

Não lhe erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:

- A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca - nunca, ouviu? - que contra ela se cometa o menor deslize.

Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor de rosa, desdobrou-o

- É sua esta peça de flagrante delito?

O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.

- Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar... Pois agora...

O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.

- ... é casar! Concluiu de improviso o vingativo pai.

O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:

- Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!...

Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.

- Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!

E voltando-se para dentro, gritou:

- Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!

O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.

- Laurinha, quer o coronel dizer...

O velho fechou de novo a carranca.

- Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama-”lhe”. Se amasse a ela deveria dezer amo-”te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher...

- Oh, coronel...

- ...ou a preta Luzia, cozinheira. Escolha!

O escrevente, vencido, derrubou a cabeça com uma lágrima a escorrer rumo à asa do nariz. Silenciaram ambos, em pausa de tragédia. Por fim o coronel, batendo-lhe no ombro paternalmente, repetiu a boa lição da gramática matrimonial.

- Os pronomes, como sabe, são três: da primeira pessoa - quem fala, e neste caso vassuncê; da Segunda pessoa - a quem fala, e neste caso Laurinha; da terceira pessoa - de quem se fala, e neste caso do Carmo, minha mulher ou a preta. Escolha!

Não havia fuga possível.

O escrevente ergueu os olhos e viu do Carmo que entrava, muito lampeira da vida, torcendo acanhada a ponta do avental. Viu também sobre a secretária uma garrucha com espoleta nova ao alcance do maquiavélico pai, submeteu-se e abraçou a urucaca, enquanto o velho, estendendo as mãos, dizia teatralmente:

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- Deus vos abençoe, meus filhos!

No mês seguinte, e onze meses depois vagia nas mãos da parteira o futuro professor Aldrovando, o conspícuo sabedor de língua que durante cinqüenta anos a fio coçaria na gramática a sua incurável sarna filológica.

Até aos dez anos não revelou Aldrovando pinta nenhuma. Menino vulgar, tossiu a coqueluche em tempo próprio, teve o sarampo da praxe, mas a cachumba e a catapora. Mais tarde, no colégio, enquanto os outros enchiam as horas de estudo com invenções de matar o tempo - empalamento de moscas e moidelas das respectivas cabecinhas entre duas folhas de papel, coisa de ver o desenho que saía - Aldrovando apalpava com erótica emoção a gramática de Augusto Freire da Silva. Era o latejar do furúnculo filológico que o determinaria na vida, para matá-lo, afinal...

Deixê-mo-lo, porém, evoluir e tomêmo-lo quando nos serve, aos 40 anos, já a descer o morro, arcado ao peso da ciência e combalido de rins. Lá está ele em seu gabinete de trabalho, fossando à luza dum lampião os pronomes de Filinto Elísio. Corcovado, magro, seco, óculos de latão no nariz, careca, celibatário impenitente, dez horas de aulas por dia, duzentos mil réis por mês e o rim volta e meia a fazer-se lembrado.

Já leu tudo. Sua vida foi sempre o mesmo poento idílio com as veneráveis costaneiras onde cabeceiam os clássicos lusitanos. Versou-os um por um com mão diurna e noturna. Sabe-os de cór, conhece-os pela morrinha, distingue pelo faro uma séca de Lucena duma esfalfa de Rodrigues Lobo. Digeriu todas as patranhas de Fernão Mendes Pinto. Obstruiu-se da broa encruada de Fr. Pantaleão do Aveiro. Na idade em que os rapazes correm atrás das raparigas, Aldrovando escabichava belchiores na pista dos mais esquecidos mestres da boa arte de maçar. Nunca dormiu entre braços de mulher. A mulher e o amor - mundo, diabo e carne eram para ele os alfarrábios freiráticos do quinhentismo, em cuja soporosa verborréia espapaçava os instintos lerdos, como porco em lameiro.

Em certa época viveu três anos acampado em Vieria. Depois vagabundeou, como um Robinson, pelas florestas de Bernardes.

Aldrovando nada sabia do mundo atual. Desprezava a natureza, negava o presente. Passarinho conhecia um só: o rouxinol de Bernadim Ribeiro. E se acaso o sabiá de Gonçalves Dias vinha citar “pomos de Hesperides” na laranjeira do seu quintal, Aldrovando esfogueteava-o com apostrofes:

- Salta fora, regionalismo de má sonância!

A língua lusa era-lhe um tabu sagrado que atingira a perfeição com Fr. Luiz de Sousa, e daí para cá, salvo lucilações esporádicas, vinha chafurdando no ingranzéu barbaresco.

- A ingresia d’hoje, declamava ele, está para a Língua, como o cadáver em putrefação está para o corpo vivo.

E suspirava, condoído dos nossos destinos:

- Povo sem língua!... Não me sorri o futuro de Vera-Cruz...

E não lhe objetassem que a língua é organismo vivo e que a temos a evoluir na boca do povo.

- Língua? Chama você língua à garabulha bordalenga que estampam periódicos? Cá está um desses galicígrafos. Deletreemo-lo ao acaso.

E, baixando as cangalhas, lia:

- Teve lugar ontem... É língua esta espurcícia negral? Ó meu seráfico Frei Luiz, como te conspurcam o divino idioma estes sarrafaçais da moxinifada!

- ...no Trianon... Por que, Trianon? Por que este perene barbarizar com alienígenos arrevesos? Tão bem ficava - a Benfica, ou, se querem neologismo de bom cunho o Logratório...Tarelos é que são, tarelos!

E suspirava deveras compungido.

- Inútil prosseguir. A folha inteira cacografa-se por este teor. Aí! Onde param os boas letras d’antanho? Fez-se peru o níveo cisne. Ninguém atende à lei suma - Horácio! Impera o desprimor, e o mau gosto vige como suprema regra. A gálica intrujice é maré sem vazante. Quando penetro num livreiro o coração se me confrange ante o pélago de óperas barbarescas que nos vertem cá mercadores de má morte. E é de

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notar, outrossim, que a elas se vão as preferências do vulgacho. Muito não faz que vi com estes olhos um gentil mancebo preferir uma sordície de Oitavo Mirbelo, Canhenho duma dama de servir, (1) creio, à... advinhe ao que, amigo? A Carta de Guia do meu divino Francisco Manoel!...

- Mas a evolução...

- Basta. Conheço às sobejas a escolástica da época, a “evolução” darwinica, os vocábulos macacos - pitecofonemas que “evolveram”, perderam o pelo e se vestem hoje à moda de França, com vidro no olho. Por amor a Frei Luiz, que ali daquela costaneira escandalizado nos ouve, não remanche o amigo na esquipática sesquipedalice.

Um biógrafo ao molde clássico separaria a vida de Aldrovando em duas fases distingas: a estática, em que apenas acumulou ciência, e a dinâmica, em que, transfeito em apóstolo, veio a campo com todas as armas para contrabater o monstro da corrupção.

Abriu campanha com memorável ofício ao congresso, pedindo leis repressivas contra os ácaros do idioma.

- “Leis, senhores, leis de Dracão, que diques sejam, e fossados, e alcaçares de granito prepostos à defensão do idioma. Mister sendo, a forca se restaure, que mais o baraço merece quem conspurca o sacro patrimônio da sã vernaculidade, que quem ao semelhante a vida tira. Vêde, senhores, os pronomes, em que lazeira jazem...

Os pronomes, aí! Eram a tortura permanente do professor Aldrovando. Doía-lhe como punhalada vê-los por aí pré ou pospostos contra-regras elementares do dizer castiço. E sua representação alargou-se nesse pormenor, flagelante, concitando os pais da pátria à criação dum Santo Ofício gramatical.

Os ignaros congressistas, porém, riram-se da memória, e grandemente piaram sobre Aldrovando as mais cruéis chalaças.

- Quer que instituamos patíbulo para os maus colocadores de pronomes! Isto seria auto-condenar-nos à morte! Tinha graça!

Também lhe foi à pele a imprensa, com pilhérias soezes. E depois, o público. Ninguém alcançara a nobreza do seu gesto, e Aldrovando, com a mortificação n’alma, teve que mudar de rumo. Planeou recorrer ao púlpito dos jornais. Para isso mister foi, antes de nada, vencer o seu velho engulho pelos “galicígrafos de papel e graxa”. Transigiu e, breve, desses “pulmões da pública opinião” apostrofou o país com o verbo tonante de Ezequiel. Encheu colunas e colunas de objurgatórias ultra violentas, escritas no mais estreme vernáculo.

Mas não foi entendido. Raro leitor metia os dentes naqueles intermináveis períodos engrenados à moda de Lucena; e ao cabo da aspérrima campanha viu que pregara em pleno deserto. Leram-no apenas a meia dúzia de Aldrovandos que vegetam sempre em toda parte, como notas rezinguentas da sinfonia universal.

A massa dos leitores, entretanto, essa permaneceu alheia aos flamívomos pelouros da sua colubrina sem raia. E por fim os “periódicos” fecharam-lhe a porta no nariz, alegando falta de espaço e coisas.

- Espaço não há para as sãs idéias, objurgou o enxotado, mas sobeja, e pressuroso, para quanto recende à podriqueira!... Gomorra! Sodoma! Fogos do céu virão um dia alimpar-vos a gafa!... exclamou, profético, sacudindo à soleira da redação o pó das cambaias botinas de elástico.

Tentou em seguida ação mais direta, abrindo consultório gramatical.

- Têm-nos os físicos (queria dizer médicos), os doutores em leis, os charlatãs de toda espécie. Abra-se um para a medicação da grande enferma, a língua. Gratuito, já se vê, que me não move amor de bens terrenos.

Falhou a nova tentativa. Apenas moscas vagabundas vinham esvoejar na salinha modesta do apóstolo. Criatura humana nem uma só lá apareceu afim de remendar-se filologicamente.

Ele, todavia, não esmoreceu.

- Experimentemos processo outro, mais suasório.

E anunciou a montagem da “Agência de Colocação de Pronômes e Reparos Estilísticos”.

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Quem tivesse um autógrafo a rever, um memorial a expungir de cincas, um calhamaço a compor-se com os “afeites” do lídimo vernáculo, fosse lá que, sem remuneração nenhuma, nele se faria obra limpa e escorreita.

Era boa a idéia, e logo vieram os primeiros originais necessitados de ortopedia, sonetos a consertar pés de verso, ofícios ao governo pedindo concessões, cartas de amor.

Tais, porém, eram as reformas que nos doentes operava Aldrovando, que os autores não mais reconheciam suas próprias obras. Um dos clientes chegou a reclamar.

- Professor, v.s. enganou-se. Pedi limpa de enxada nos pronomes, mas não que me traduzisse a memória em latim...

Aldrovando empertigou-se.

- Pois, amigo, errou de porta. Seu caso é alí com o alveitar da esquina.

Pouco durou a Agência, morta à míngua de clientes. Teimava o povo em permanecer empapado no chafurdeiro da corrupção...

O rosário de insucessos, entretanto, em vez de desalentar exasperava o apóstolo.

- Hei-de influir na minha época. Aos tarelos hei de vencer. Fogem-me à férula os maráus de pau e corda? Ir-lhes-ei empós, fila-los-eis pela gorja... Salta rumor!

E foi-lhes “empós”, Andou pelas ruas examinando dísticos e tabuletas com vícios de língua. Descoberta a “asnidade”, ia ter com o proprietário, contra ele desfechando os melhores argumentos catequistas.

Foi assim com o ferreiro da esquina, em cujo portão de tenda uma tabuleta - “Ferra-se cavalos” - escoicinhava a santa gramática.

- Amigo, disse-lhe pachorrentamente Aldrovando, natural a mim me parece que erre, alarve que és. Se erram paredros, nesta época de ouro da corrupção...

O ferreiro pôs de lado o malho e entreabriu a boca.

- Mas da boa sombra do teu focinho espero, continuou o apóstolo, que ouvidos me darás. Naquela tábua um dislate existe que seriamente à língua lusa ofende. Venho pedir-te, em nome do asseio gramatical, que o expunjas.

- ???

- Que reformes a tabuleta, digo.

- Reformar a tabuleta? Uma tabuleta nova, com a licença paga? Estará acaso rachada?

- Fisicamente, não. A racha é na sintaxe. Fogem ali os dizeres à sã gramaticalidade.

O honesto ferreiro não entendia nada de nada.

- Macacos me lambam se estou entendendo o que v. s. diz...

- Digo que está a forma verbal com eiva grave. O “ferra-se” tem que cair no plural, pois que a forma é passiva e o sujeito é “cavalos”.

O ferreiro abriu o resto da boca.

- O sujeito sendo “cavalos”, continuou o mestre, a forma verbal é “ferram-se” - “ferram-se cavalos!”

- Ahn! Respondeu o ferreiro, começo agora a compreender. Diz v. s. que ...

- ... que “ferra-se cavalos” é um solecismo horrendo e o certo é “ferram-se cavalos”.

- V. S. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. Aquele “se” da tabuleta refere-se cá a este seu criado. É como quem diz: Serafim ferra cavalos - Ferra Serafim cavalos. Para economizar tinta e tábua abreviaram o meu nome, e ficou como está: Ferra Se (rafim) cavalos. Isto me explicou o pintor, e entendi-o muito bem.

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Aldrovando ergueu os olhos para o céu e suspirou.

- Ferras cavalos e bem merecias que te fizessem eles o mesmo!... Mas não discutamos. Ofereço-te dez mil réis pela admissão dum “m” ali...

- Se V. S. paga...

Bem empregado dinheiro! A tabuleta surgiu no dia seguinte dessolecismada, perfeitamente de acordo com as boas regras da gramática. Era a primeira vitória obtida e todas as tardes Aldrovando passava por lá para gozar-se dela

Por mal seu, porém, não durou muito o regalo. Coincidindo a entronização do “m” com maus negócios na oficina, o supersticioso ferreiro atribuiu a macaca à alteração dos dizeres e lá raspou o “m” do professor.

A cara que Aldrovando fez quando no passeio desse dia deu com a vitória borrada! Entrou furioso pela oficina a dentro, e mascava uma apóstrofe de fulminar quando o ferreiro, às brutas, lhe barrou o passo.

- Chega de caraminholas, ó barata tonta! Quem manda aqui, no serviço e na língua, sou eu. E é ir andando antes que eu o ferre com bom par de ferros ingleses!

O mártir da língua meteu a gramática entre as pernas e moscou-se.

- “Sancta simplicitas!” ouviram-no murmurar na rua, de rumo à casa, em busca das consolações seráficas de Fr. Heitor Pinto. Chegado que foi ao gabinete de trabalho, caiu de borco sobre as costaneiras venerandas e não mais conteve as lágrimas, chorou...

O mundo estava perdido e os homens, sobre maus, eram impenitentes. Não havia desviá-los do ruim caminho, e ele, já velho, com o rim a rezingar, não se sentia com forças para a continuação da guerra.

- Não hei-de acabar, porém, antes de dar a prelo um grande livro onde compendie a muita ciência que hei acumulado.

E Aldrovando empreendeu a realização de um vastíssimo programa de estudos filológicos. Encabeçaria a série um tratado sobre a colocação dos pronomes, ponto onde mais claudicava a gente de Gomorra.

Fê-lo, e foi feliz nesse período de vida em que, alheio ao mundo, todo se entregou, dia e noite, à obra magnífica. Saiu trabuco volumoso, que daria três tomos de 500 páginas cada um, corpo miúdo. Que proventos não adviriam dali para a lusitanidade. Todos os casos resolvidos para sempre, todos os homens de boa vontade salvos da gafaria! O ponto fraco do brasileiro falar resolvido de vez! Maravilhosa coisa...

Pronto o primeiro tomo - Do pronome Se - anunciou a obra pelos jornais, ficando à espera das chusmas de editores que viriam disputá-la à sua porta. E por uns dias o apóstolo sonhou as delícias da estrondosa vitória literária, acrescida de gordos proventos pecuniários.

Calculava em oitenta contos o valor dos direitos autorais, que, generoso que era, cederia por cinqüenta. E cinqüenta contos para um velho celibatário como ele, sem família nem vícios, tinha a significação duma grande fortuna. Empatados em empréstimos hipotecários sempre eram seus quinhentos mil réis por mês de renda, a pingarem pelo resto da vida na gavetinha onde, até então, nunca entrara pelega maior de duzentos. Servia, servia!... E Aldrovando, contente, esfregava as mãos de ouvido alerta, preparando frases para receber o editor que vinha vindo...

Que vinha vindo mas não veio, aí!... As semanas se passaram sem que nenhum representante dessa miserável fauna de judeus surgisse a chatinar o maravilhoso livro.

- Não me vêm a mim? Salta rumor! Pois me vou a eles!

E saiu em via sacra, a correr todos os editores da cidade.

Má gente! Nenhum lhe quis o livro sob condições nenhumas. Torciam o nariz, dizendo “Não é vendável”; ou: “Porque não faz antes uma cartilha infantil aprovada pelo governo?

Aldrovando, com a morte n’alma e o rim dia a dia mais derrancado, retesou-se nas últimas resistências.

- Fá-la-ei imprimir à minha custa! Ah, amigos! Aceito o cartel. Sei pelejar com todas as armas e irei até ao fim. Bofé!

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Para lugar era mister dinheiro e bem pouco do vilíssimo metal possuía na arca o alquebrado Aldrovando. Não importa! Faria dinheiro, venderia móveis, imitaria Bernardo de Pallissy, não morreria sem ter o gosto de acaçapar Gomorra sob o peso da sua ciência impressa. Editaria ele mesmo um por um todos os volumes da obra salvadora.

Disse e fez.

Passou esse período de vida alternando revisão de provas com padecimentos renais. Venceu. O livro compôs-se, magnificamente revisto, primoroso na linguagem como não existia igual.

Dedicou-o a Fr. Luz de Souza:

À memória daquele que me sabe as dores,

O Autor.

Mas não quis o destino que o já trêmulo Aldrovando colhesse os frutos de sua obra. Filho dum pronome impróprio, a má colocação doutro pronome lhe cortaria o fio da vida.

Muito corretamente havia ele escrito na dedicatória: ...daquele que me sabe... e nem poderia escrever doutro modo um tão conspícuo colocador de pronomes. Maus fados intervieram, porém - até os fados conspiram contra a língua! - e por artimanha do diabo que os rege empastelou-se na oficina esta frase. Vai o tipógrafo e recompõe-na a seu modo ...d’aquele que sabe-me as dores... E assim saiu nos milheiros de cópias da avultada edição.

Mas não antecipemos.

Pronta a obra e paga, ia Aldrovando recebê-la, enfim. Que glória! Construíra, finalmente, o pedestal da sua própria imortalidade, ao lado direito dos sumos cultores da língua.

A grande idéia do livro, exposta no capítulo VI - Do método automático de bem colocar os pronomes - engenhosa aplicação duma regra mirífica por meio da qual até os burros de carroça poderiam zurrar com gramática, operaria como o “914? da sintaxe, limpando-a da avariose produzida pelo espiroqueta da pronominuria.

A excelência dessa regra estava em possuir equivalentes químicos de uso na farmacopéia alopata, de modo que a um bom laboratório fácil lhe seria reduzí-la a ampolas para injeções hipodérmicas, ou a pílulas, pós ou poções para uso interno.

E quem se injetasse ou engolisse uma pípula do futuro PRONOMINOL CANTAGALO, curar-se-ia para sempre do vício, colocando os pronomes instintivamente bem, tanto no falar como no escrever. Para algum caso de pronomorreia agudo, evidentemente incurável, haveria o recurso do PRONOMINOL Nº 2, onde entrava a estriquinina em dose suficiente para libertas o mundo do infame sujeito.

Que glória! Aldrovando prelibava essas delícias todas quando lhe entrou casa a dentro a primeira carroçada de livros. Dois brutamontes de mangas arregaçadas empilharam-nos pelos cantos, em rumas que lá se iam; e concluso o serviço um deles pediu:

- Me dá um mata-bicho, patrão!

Aldrovando severizou o semblante ao ouvir aquele “Me” tão fora dos mancais, e tomando um exemplo da obra ofertou-a ao “doente”.

- Toma lá. O mau bicho que tens no sangue morrerá asinha às mãos deste vermífugo. Recomendo-te a leitura do capítulo sexto.

O carroceiro não se fez rogar; saiu com o livro, dizendo ao companheiro:

- Isto no “sebo” sempre renderá cinco tostões. Já serve!

Mal se sumiram, Aldrovando abancou-se à velha mesinha de trabalho e deu começo à tarefa de lançar dedicatórias num certo número de exemplares destinados à crítica. Abriu o primeiro, e estava já a escrever o nome de Rui Barbosa quando seus olhos deram com a horrenda cinca:

“daquele QUE SABE-ME as dores”.

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- Deus do céu! Será possível?

Era possível. Era fato. Naquele, como em todos os exemplares da edição, lá estava, no hediondo relevo da dedicatória a Fr. Luiz de Souza, o horripilantíssimo

- “que sabe-me”...

Aldrovando não murmurou palavra. De olhos muito abertos, no rosto uma estranha marca de dor - dor gramatical inda não descrita nos livros de patologia - permaneceu imóvel uns momentos.

Depois empalideceu. Levou as mãos ao abdômen e estorceu-se nas garras de repentina e violentíssima ânsia.

Ergueu os olhos para Frei Luiz de Souza e murmurou:

- Luiz! Luiz! Lamma Sabachtani?!

E morreu.

De que não sabemos - nem importa ao caso. O que importa é proclamarmos aos quatro ventos que com Aldrovando morreu o primeiro santo da gramática, o mártir número um da Colocação dos Pronomes.

Paz à sua alma.

(Ao todo, a obra de Aldrovando, incluindo tratados sobre circunflexo, vírgula, e psicologia do til, crase, pesava cerca de 4 arrobas, que renderam no sebo, 18 mil réis, vendidas a peso, a três tostões o quilo).

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Os negros (Conto), de Monteiro Lobato

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O conto "Os negros", de Monteiro Lobato, é o mais longo da coletânea "Negrinha". Contém vinte e seis páginas e está dividido em vinte e dois capítulos. Conta a trágica história de amor entre a filha de um fazendeiro e um empregado português.

O narrador e seu amigo Jonas param no meio de uma viagem a cavalo pelo interior, na casa de Adão, um negro ex-escravo, que lhes oferece pouso. Sem espaço em seu barraco, todos vão dormir na casa grande da fazenda, abandonada e amaldiçoada. Durante a noite, Jonas é possuído pelo espírito do jovem Fernão, um português pobre, funcionário da fazenda no tempo da escravidão, e que teve um namoro escondido com a filha do patrão, o temível Capitão Aleixo. Isabel, a filha do capitão, acabou mandada para a corte e enlouqueceu, longe de seu amado. A escrava Liduína, que ajudou o casal, foi morta a relho. O jovem Fernão foi emparedado vivo. Depois do transe, Jonas de nada se lembrava, de modo que ficou só na memória do narrador a história da tragédia dos jovens amantes.

Esta narrativa, semelhante o conto "Negrinha", é digno de nota porque mostra a discordância do autor em relação à discriminação racial e denunciam o aviltamento dos negros no Brasil, fruto de nossa história escravagista.

O conto reúne diversos estereótipos. Um dos estereótipos mais recorrentes nesse texto talvez seja o do negro rude cativo do campo, desprovido de qualquer vestígio de inteligência. O destaque maior é dado à idéia de que o negro foi feito para obedecer, submeter-se, uma vez que tem a alma servil. Os trechos a seguir dão a dimensão dessas características:

– Há de morar aqui por perto algum urumbeva, disse eu.

Page 10: O colocador de pronomes Monteiro Lobato

Não existe tapera sem lacraia.– Pai Adão, viva!– Vassumcristo! Respondeu o preto.– Era dos legítimos...– Tio Bento, pra servir os brancos.O excelente negro sorriu-se, com a gengiva inteira à mostra...

No texto aparece reforçando o vazio social do negro: sem família, sem bens próprios, ele se assemelha aos bichos do mato, conforme citou-se:

O melhor é acomodar-nos na casa grande, que isto cá não é casa de bicho-homem, é ninho de cuitelo...E fomo-nos à casinhola do preto engulir o café e arrear os animais.Morreu tudo, meu branco, e fiquei eu só. Tenho umas plantas na beira do rio, palmito no mato e uma paquinha lá de vez em quando na ponta do chuço.Como sou só...

Há que se ressaltar o estereótipo da submissão, do negro bom e trabalhador, fiel ao branco e disposto a qualquer sacrifício para agradar o mesmo, como se pode observar:

Contente de ser-nos útil, Tio Bento sobraçou a quitanda e deu-me a levar o candieiro.Era mau, meu branco, como deve ser mau o canhoto. Judiava da gente à toa pelo gosto de judiar.Ninguém, entretanto, estranhava aquilo. Os pretos sofriam como predestinados à dor. E os brancos tinham como dogma que de outra maneira não se levavam os pretos.O sentimento de revolta não latejava em ninguém...

Na penúltima transcrição, vê-se a figura do negro digno de compaixão, indefeso e sem nenhuma ação concreta de auto-defesa, como se os castigos recebidos por ele pertencessem à ordem natural das coisas, de forma que, assim, ele os compreendia.

A personagem Liduína, uma crioula muito viva que desde bem criança passou da senzala para a casa grande, como mucama de Sinhazinha Zabé, encarna exaustivamente os estereótipos já assinalados. Ela também, como os outros personagens negros, aparece desprovida de vida própria; suas atenções estão voltadas para a sua Sinhá, como demonstração de subserviência e lealdade. Além disso, seus movimentos e atitudes estão mais próximos dos animais:

Amor? Respondeu a arguta mucama em quem o instinto substituía a cultura.Bobagens, muxoxou a mucama, trepando à pitangueira com agilidade de macaco.Pois Sinhazinha não sabe que sou mais sua amiga do que sua escrava?

Conforme se pode observar, a personagem Liduína vem apenas reforçar, dentre outros, o estereótipo da submissão e do servilismo do negro. Suas atitudes também servem para escamotear e dissimular os conflitos da escravidão.

Crédtos: Prof. Manuel, Colégio Sagrado Coração de Jesus, Marília, SP | Elizamari Rodrigues Becker, Doutora em Literatura Comparada, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRSG) | Enio Passiani, Mestre em Literatura, Unicamp, SP | São Paulo - Educando pela diferença para a igualdade - UFSCar - Mód. 2.

Marabá (Conto), de Monteiro Lobato

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No relato "Marabá", de Monteiro Lobato, o narrador dá ao leitor uma receita de romance romântico. Ele propõe uma recriação do universo romântico a partir de ícones consagrados: A índia Iná liberta um prisioneiro branco da tribo, foge com ele e gera uma filha, Marabá. O índio Ipojuca se apaixona por Marabá e, depois de perseguidos pela tribo, acabam acolhidos pelo exército português. Ipojuca está ferido, um capitão reconhece Marabá como sendo sua filha e a abraça. Sem entender a cena, Ipojuca flecha e mata a sua jovem esposa, morrendo também de um ferimento.

De todos os contos de Negrinha, “Marabá” talvez seja o que melhor representa a curiosidade de Lobato em brincar com a linguagem cinematográfica, todo ele dividido em quadros e letreiros, como no cinema mudo. Tudo no conto lembra o roteiro cinematográfico, inclusive uma nota encontrada bem no meio do conto:

Page 11: O colocador de pronomes Monteiro Lobato

Este papel de Marabá tem que ser feito por Annette Kellermann. Como, porém, Anette já está madura e Marabá é o que existe de mais botão, torna-se preciso inventar um processo que rejuvenesça de trinta anos a intérprete. (LOBATO, 1951, v. 3, p. 227)

Apresenta nesse pequeno trecho uma preocupação que só caberia ao roteirista: compõe uma personagem que desfruta de tal comunhão com a natureza, que se faz de suma importância achar a atriz adequada para o papel, sobretudo no que diz respeito à construção da verossimilhança que, na linguagem cinematográfica, se traduz na imagem, na aparência física da personagem. Conhece a intérprete adequada, mas sua idade é um empecilho.

A ironia é o fio condutor de todo o conto, construída sobre o confronto entre a arte nova e a arte velha, a proposta de uma nova linguagem – a cinematográfica – e a recuperação dos velhos modelos românticos folhetinescos e fora de moda. Todo o rol marginalizado do romance e da poesia indianista é recuperado: José de Alencar (Guarani e Iracema) e Gonçalves Dias (I-Juca-Pirama” e Marabá). Na nova roupagem cinematográfica, entretanto, constrói-se a crítica de Lobato, que sustenta que velhos temas ainda satisfazem ao gosto tanto de escritores quanto de leitores. Segundo o narrador de “Marabá”, a busca pela modernidade é uma imposição que nem sempre se faz associar com a ruptura:

Nada disso. Sejamos da época. A época é apressada, automobilística, aviatória, cinematográfica, e esta minha Marabá, no andamento em que começou, não chegaria nunca ao epílogo. Abreviemo-la, pois, transformando-a em entrecho de filme. Vantagemtríplice: não maçará o pobre leitor, não comerá o escasso tempo do autor e ainda pode ser que acabe filmada quando tivermos por cá miolo e ânimo para concorrer com a Fox ou a Paramount. (LOBATO, 1951, v. 3, p. 223)

Há dois níveis narrativos em “Marabá” – um, crítico e descritivo e outro, da história ou da ação propriamente dita –, reconhecidos como traço comum à escritura de Monteiro Lobato, sobretudo nos contos de Urupês e Negrinha. Quando associados, dão vazão a um enquadramento digressivo e metaliterário de tese, cuja concretude vê-se exercitada no relato. O teor da crítica deve-se, provavelmente, ao fato de que a linguagem da moda simplesmente encobre, com o roteiro técnico um enredo antigo: que os padrões de gosto não mudaram na passagem do século XIX para o século XX.

Narrado em terceira pessoa, neste conto - "Marabá" - quase não há diálogos, o que mais chama a atenção é sua elaboração formal. Logo no início Lobato tece algumas críticas às receitas literárias e às cópias, aos exageros e falsidades do romantismo, e sublinha a importância do compromisso entre os escritor e a “realidade”. Após essa pequena “introdução”, o narrador, alter-ego do autor, chega ao cerne do enredo: confessa ao leitor que tem em mente “uma novela tão ao sabor antigo”, e que se chama “Marabá”.

Começa então a narrar a trágica história de Marabá, filha de uma índia com um português, e justamente por isso perseguida pelos de sua tribo. Marabá se apaixona por Ipojuca, filho do cacique, e ambos são perseguidos pelos membros da tribo. Ao final os dois morrem, vítimas da intolerância.

Além de praticamente virar ao avesso a temática alencariana, o narrador revela sua insatisfação quanto ao ritmo habitual das narrativas literárias, lentas demais, enfadonhas demais; e decide, então, acelerar a cadência do texto, empregando um outro tipo de linguagem, mais afeita à época em que vive, com os tempos modernos. Confere ao texto, pois, um ritmo cinematográfico: “Nada disso. Sejamos da época. A época é apressada, automobilística, aviatória, cinematográfica, e esta minha Marabá, no andamento em que começou, não chegaria nunca ao epílogo.” (LOBATO, 1959: 223) - e passa a dividi-lo em “quadros” (tal como num filme) e “letreiros” (como nos reclames)

A ironia lobatiana está presente no conto a partir do momento que utiliza uma linguagem literária ousada, formalmente “moderna”, ligada a um conteúdo que segue as receitas literárias mais tradicionais, criticadas por Lobato no início do conto. Sua ironia aponta a imbricação entre tradiconal e moderno na cultura e nas artes brasileiras, da qual a própria literatura lobatiana era exemplo. Com um pé fincado no realismo-naturalismo, com o outro pisava o modernismo, e cuja amostra está no desenvolvimento estilístico de Marabá. Monteiro Lobato demonstra estar antenado com o novo horizonte técnico que se abre e afeta inclusive a produção e a recepção literárias.

Crédtos: Prof. Manuel, Colégio Sagrado Coração de Jesus, Marília, SP | Elizamari Rodrigues Becker, Doutora em Literatura Comparada, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRSG) | Enio Passiani, Mestre em Literatura, Unicamp, SP | São Paulo - Educando pela diferença para a igualdade - UFSCar - Mód. 2.

O jardineiro Timóteo (Conto), de Monteiro Lobato

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Page 12: O colocador de pronomes Monteiro Lobato

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O conto "O jardineiro Timóteo", de Monteiro Lobato, apesar de "escorregões" em esteriótipos racistas, é um relato sensível e triste sobre a violência contra os negros no Brasil, podendo ser lido ainda como um lamento sobre certo lado destruidor da humanidade. Lobato parece questionar a modernização a qualquer preço, aquela que destrói sem critérios, sem pesar os sentimentos de quem participou da construção no momento anterior.

O conto relata a história do negro Timóteo, um "preto branco por dentro", negro descendente de escravos, que cuida, há mais de quarenta anos, do jardim de uma fazenda. Por ser zeloso e bom, conforme será reforçado várias vezes, é aceito pela família do senhor e pode viver feliz naquele lugar. Timóteo criado desde pequeno na fazenda onde trabalha, vive em um mundo no qual a comunicação é exclusivamente oral, os códigos sociais estão alicerçados em valores estáveis, e a “palavra de homem” sustentada vale mais que qualquer documento escrito. O jardineiro é assim apresentado:

Verdadeiro poeta, o bom Timóteo.Não desses que fazem versos, mas dos que sentem a poesia sutil das coisas. Compusera, sem o saber, um maravilhoso poema onde cada plantinha era um verso que só ele conhecia, verso vivo, risonho ao reflorir anual da primavera, desmedrado e sofredor quando junho sibilava no ar os látegos do frio. O jardim tornara-se a memória viva da casa.

O narrador, que desta vez não é apresentado como personagem, tem para Timóteo um olhar generoso, quase cúmplice, atribuindo-lhe um valor marcadamente positivo, de depositário de um saber a um só tempo profissional e social.

O texto desenha a postura humilde, servil e dócil do jardineiro em relação aos proprietários da fazenda, como mostram os trechos

O canteiro principal consagrava-o Timóteo ao ‘Sinhô Velho’, tronco da estirpe e generoso amigo que lhe dera carta d’alforria muito antes da Lei Áurea.

Bem no centro erguia-se um nodoso pé de jasmim do Cabo, de galhos negros e copa dominante ao qual o zeloso guardião nunca permitiu que outra planta sobreexcedesse em altura. Simbolizava o homem que o havia comprado por dois contos de réis, dum importador de escravo de Angola.

Dessa perspectiva, o no mundo de Timóteo e seus senhores não havia as contradições ou conflitos que a escravidão gerou; há, pelo contrário, até uma inversão, a escravidão é “doce” e dá lugar a uma afetividade que a neutraliza por completo:

O canteiro de Sinhazinha era de todos o mais alegre, dando bem a imagem de um coração de mulher. Tal qual a moça, que desde menina se habituara monopolizar os carinhos da família e a dedicação dos escravos, chegando ao ponto de, ao sobrevir a Lei Áurea, nenhum ter ânimo de afastar-se da fazenda. Emancipação? Loucura! Quem, uma vez cativo de Sinhazinha, podia jamais romper as algemas da doce escravidão?

Timóteo era feliz. (...) Sem família, criara uma família de flores; pobre, vivia ao pé de um tesouro.(...) era feliz sim. Trabalhava por amor.

Como podemos perceber, a bondade de Timóteo e sua benevolência são cada vez mais acentuadas, procurando enternecer o leitor e desviando-lhe a atenção, nunca o levando a uma reflexão, pelo contrário, dando aos fatos cores sentimentais. No texto, brancos e negros parecem conviver harmonicamente, uma vez que não há nenhum vestígio de qualquer conflito racial. Todos vivem pacificamente; o negro liberto era feliz vivendo ligado ao seu senhor:

Essa idéia do negro tutelado eternamente é reforçada quando o personagem morre ao ser deixado na fazenda, tendo sido esta vendida. A família parte e Timóteo permanece na fazenda e é “passado” para outra família como se fosse um móvel, um utensílio qualquer ou fizesse parte do “seu” jardim. A idéia de viver sem a tutela do “bom senhor” será insuportável ao doce serviçal e culminará com a sua morte:

Eu vou, mas é embora daqui, morrer lá na porteira como um cachorro fiel. Lá agoniza ao pé da porteira. Lá morre.

Vale observar ainda, que o texto atribuirá ao personagem características eminentemente infantis, de adulto-criança ou do “negro/criança/grande”. Ao pintar sua espontaneidade, sua simplicidade e ingenuidade, o discurso textual passará sutilmente a idéia de total impossibilidade de uma convivência de iguais; dessa forma, sendo o negro ainda criança, precisará de alguém que o guie e que o proteja. A morte de Timóteo apenas virá confirrmar essa idéia. A afetividade do negro em relação aos seus patrões

Page 13: O colocador de pronomes Monteiro Lobato

pode ser resumida como uma apologia ao senhor branco.

Iletrado, Timóteo domina e recria um alfabeto vegetal, escrevendo com as mudas que planta a história da família. Assim, o canteiro central é dedicado ao “Sinhô velho”, “tronco da estirpe”, representado por um “nodoso pé de jasmim do cabo, de galhos negros e copa dominante, ao qual o zeloso guardião nunca permitiu que outra planta sobreexcedesse em altura”. À volta do jasmineiro, periquitos e cravinas, porque o “Sinhô” “era homem simples, pouco amigo de complicações”.

Havia também dois canteiros em forma de coração, um “de Sinhazinha” e o outro reservado para o “Sinhô moço”, com o qual ela viesse a casar-se. O dela era o mais alegre de todos: “livro aberto, símbolo vivo, crônica vegetal, dizia pela boca das flores toda a sua vidinha de moça”; primeiro “flores alegres de criança – esporinhas, bocas-de-leão, ‘borboletas”; em seguida, “flores amáveis da adolescência – amores-perfeitos, damas-entre-verdes, beijos-de-frade, escovinhas, miosótis”; até brotar nele a primeira “planta séria”, o pé de flor-de-noiva que marcou o dia em que foi pedida em casamento; “os primeiros tufos de violeta” Timóteo plantou “quando lhe nasceu, entre dores, o primeiro filho”; “e no dia em que lhe morreu esse malogrado botãozinho de carne rósea, o jardineiro, em lágrimas, fincou na terra os primeiros goivos e as primeiras saudades”. O canteiro do Sinhô-moço, ao contrário, “revelava intenções simbólicas de energia”: “cravos vermelhos”, “roseiras fortes”, “ouriçadas de espinhos”, “palmas de Santa Rita, de folhas laminadas”, “junquilhos nervosos”.

O jardim também consagrava uma planta “a cada subalterno ou animal doméstico”:

Havia a roseira-chá da mucama de Sinhazinha; o sangue-de-Adão do Tibúrcio cocheiro; a rosa-maxixe da mulatinha Cesária, sirigaita enredeira, de cara fuchicada como essa flor. O Vinagre, o Meteoro, a Mangerona, a Tetéia, todos os cães que na fazenda nasceram e morreram, ali estavam lembrados pelo seu pezinho de flor, um resedá, um tufo de violetas, uma touça de perpétuas. [...]Também os gatos tinham memória. Lá estava a cinerária da gata branca morta nos dentes do Vinagre, e o pé de alecrim relembrativo do velho gato Romão.

Vendida a fazenda, os novos proprietários impõem o padrão do gosto da moda, tanto na reforma da casa, incluindo a renovação da mobília, quanto no jardim, que para os recém-chegados, não tem nenhum valor, sendo até ridicularizado: “É incrível! Um jardim destes, cheirando a Tomé de Souza, em pleno século das crisandálias!” E riam “como perfeitos malucos”, correndo o jardim: “É inconcebível que haja esporinhas no mundo”; “E periquito, Odete! Peri- qui-to!”

Uma vez condenado o jardim, mandam “vir o Ambrogi para traçar um plano novo de acordo com a arte moderníssima dos jardins ingleses”. A reforma segue a tendência da época, quando “a fazenda passa a ser extremamente requintada e elementos da arquitetura urbana são levados para a arquitetura rural – móveis, estuques, lustres, etc., além dos jardins de traçado elaborado e com plantas importadas.”

Desde meados do séc. XIX as famílias ricas da Corte vinham introduzindo espécies exóticas, símbolo de status, em seus jardins, que embora privados eramexibidos ao público em frente às fachadas das casas:

Os proprietários das residências senhoriais de Botafogo, das chácaras e de outros recantos da cidade embelezam seus jardins e, possivelmente, recorrem aos “jardins floristas franceses”, que anunciam “plantas exóticas tais como: camélias, azaléias, espirradeiras, peônias, magnólias (...) roseiras de novas espécies, árvores frutíferas. As plantas floríferas e frutíferas vêm diretamente da França”.

O jardineiro como personagem recupera portanto a idéia de trabalho, de cultivo, de execução, que esteve associada, durante séculos, à palavra jardim, mas que foi abandonada em prol da percepção da coisa pronta, no ato da fruição ou do consumo. No caso de Timóteo, seu jardim é o produto de um trabalho que o novo senhor despreza, resultante de um processo do qual não foi testemunha e que de forma alguma é de seu interesse.

A criação de um jardim pode ser considerada uma pintura no espaço, em que estão presentes noções como profundidade, volume, contraste claro-escuro e uso de diferentes tons de uma mesma cor.

Esta observação é particularmente interessante no caso de Lobato por tratar-se de um escritor com imenso gosto pelo desenho e pela pintura, como já foi apontado anteriormente neste trabalho. Mas para o autor de “O jardineiro Timóteo”, o jardim, além de pintura, é também texto, e como tal deve ser lido.

O conto exibe o choque entre tempos e experiências paradoxais vividos pelos diferentes segmentos da sociedade brasileira que, obrigados pelas circunstâncias a conviver no espaço, fazem emergir o inevitável conflito. Situação que vai sendo apresentada ao leitor de maneira a fazê-lo simpático ao jardineiro, à medida que o acompanha no seu desvelo com o jardim por meio do qual registra a história dos patrões.

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O jardim criado por Timóteo: é um jardim com história. As plantas significam, são encaradas como seres vivos e não como objetos que entram ou saem de moda. Esse jardim foi destruído. Os antigos patrões de Timóteo, vivendo por um longo período no ambiente rural, haviam aprendido a respeitar o conhecimento dos subalternos sobre plantas e animais, adquirido e acumulado no contato estreito do trabalho e no cuidado com os mesmos, e transmitido de uma geração a outra pela tradição oral. A entrada em cena dos novos patrões é marcada pela arrogância e pela insensibilidade:

– E para não perder tempo, enquanto o Ambrogi não chega ponho aquele macaco a me arrasar isto – disse o homem apontando para Timóteo.– Ó tição, vem cá!Timóteo aproximou-se, com ar apatetado.– Olha, ficas encarregado de limpar este mato e deixar a terra nuazinha. Quero fazer aqui um lindo jardim. Arrasa-me isto bem arrasadinho, entendes?Timóteo, trêmulo, não pôde engrolar uma palavra:– Eu?– Sim, tu! Por que não?O velho jardineiro, atarantado e fora de si, repetiu a pergunta:– Eu? Eu, arrasar o jardim?O fazendeiro encarou-o, espantado da sua audácia, sem nada compreender daquela resistência.– Eu? Pois me acha com cara de criminoso?E não podendo mais conter-se, explodiu num assomo estupendo de cólera – o primeiro e o único de sua vida.– Eu vou mas é embora daqui, morrer lá na porteira como um cachorro fiel. Mas olhe, moço, que hei de rogar tanta praga que isto aqui há de virar uma tapera de lacrais! A geada há de torrar o café. A peste há de levar até as vacas de leite. Não há de ficar aqui nem uma galinha, nem um pé de vassoura! E a família amaldiçoada, coberta de lepra, há de comer na gamela com os cachorros lazarentos... Deixa estar, gente amaldiçoada! Não se assassina assim uma coisa que dinheiro nenhum paga. Não se mata assim um pobre negro velho que tem dentro do peito uma coisa que lá na cidade ninguém sabe o que é. Deixa estar, branco de má casta! Deixa estar, caninana! Deixa estar!...E fazendo com a mão espalmada o gesto fatídico, saiu às arrecuas, repetindo cem vezes a mesma ameaça:– Deixa estar!...Deixa estar!...

O novo fazendeiro, representante da “modernidade” que despreza o passado, e com ele os saberes tradicionais, torna impossível para Timóteo a vida na fazenda. Além disso, ao apagar-lhe a história, arrancando uma a uma todas as páginas do livro que escrevera, inviabiliza também qualquer possibilidade de plano para o futuro.

Conflito insolúvel, como na tragédia clássica. Já que não existe conciliação possível, o jardineiro encontra no amaldiçoamento e na morte as únicas respostas à altura daquela desgraça, sendo alçado assim à estatura de um herói trágico. Seu corpo será encontrado na manhã seguinte, “ao pé da porteira”, “enrigecido pelorelento, de borco na grama orvalhada, com a mão estendida para a fazenda num derradeiro gesto de ameaça”.

A morte de Timóteo retoma a idéia do primeiro projeto de livro feito por Lobato, “Dez mortes trágicas”. Ao escolher a maneira como quer morrer, lançando, contra o “branco de má casta”, pragas que conjuram contra ele as forças da natureza afrontada, Timóteo se vinga e inscreve pela última vez sua experiência na memória dos vivos, que contarão sua história.

Timóteo seria, enquanto representante de uma tradição de narradores, também alguém que se relaciona de maneira intensa com a morte. Morrer para ele é um ato, um gesto totalmente afirmativo, pleno de sentidos.

O conto na íntegra:

O casarão da fazenda era ao jeito das velhas moradias coloniais: frente com varanda, uma ala e pátio interno. Neste ficava o jardim, também à moda antiga, cheio de plantas antigas cujas flores punham no ar um saudoso perfume d’antanho. Quarenta anos havia que lhe zelava dos canteiros o bom Timóteo, um preto branco por dentro. Timóteo o plantou quando a fazenda se abria e a casa inda cheirava a reboco fresco e tintas d’óleo recentes, e desd’aí – lá se iam quarenta anos – ninguém mais teve licença de pôr a mão em “seu jardim”.Verdadeiro poeta, o bom Timóteo.Não desses que fazem versos, mas dos que sentem a poesia sutil das coisas. Compusera, sem o saber, um maravilhoso poema onde cada plantinha era um verso que só ele conhecia, verso vivo, risonho ao reflorir anual da primavera, desmedrado e sofredor quando junho sibilava no ar os látegos do frio. O jardim tornara-se a memória viva da casa. Tudo nele correspondia a uma significação familiar de suave

Page 15: O colocador de pronomes Monteiro Lobato

encanto, e assim foi desd’o começo, ao riscarem-se os canteiros na terra virgem ainda recendente a escavação. O canteiro principal consagrava-o Timóteo ao “Sinhô velho”, tronco da estirpe e generoso amigo que lhe dera carta d’alforria muito antes da Lei Áurea. Nasceu faceiro e bonito, cercado de tijolos novos vindos do forno para ali ainda quentes e embutidos no chão como rude cíngulo de coral; hoje, semi-desfeitos pela usura do tempo e tão tenros que a unha os penetra, esses tijolos esverdecem nos musgos da velhice.(...)Ninguém, a não ser Timóteo, colhia flores naquele jardim. Sinhazinha o tolerava desde o dia em que ele explicou:– Não sabem, Sinhazinha! Vão lá e atrapalham tudo. Ninguém sabe apanhar flor...Era verdade. Só Timóteo sabia escolhê-las com intenção e sempre de acordo com o destino. Se as queriam para florir a mesa em dia de anos da moça, Timóteo combinava os buquês como estrofes vivas. Colhia-as resmungando.– Perpétua? Não. Você não vai pra mesa hoje. É festa alegre. Nem você, dona violetinha! ... Rosa maxixe? Ah! Ah! Tinha graça a Cesária em festa de branco!...(...)Vendeu-se a fazenda. E certa manhã viu Timóteo arrumarem-se no trole os antigos patrões, as mucamas, tudo o que constituía alma do velho patrimônio.– Adeus, Timóteo! – disseram alegremente os senhores-moços, acomodando-se no veículo.– Adeus! Adeus!...E lá partiu o trole, a galope... Dobrou a curva da estrada... Sumiu-se para sempre...Pela primeira vez na vida Timóteo esqueceu de regar o jardim. Quedou-se plantado a um canto, a esmoer o dia inteiro o mesmo pensamento doloroso:– Branco não tem coração...Os novos proprietários eram gente da moda, amigos do luxo e das novidades. Entraram na casa com franzimentos de nariz para tudo.– Velharias, velharias...E tudo reformaram. Em vez da austera mobília de cabiúna, adotaram móveis pechisbeques, com veludinhos e frisos.Determinaram o empapelamento das salas, abertura de um hall, mil coisas esquisitas... Diante do jardim, abriram-se em gargalhadas.– É incrível! Um jardim destes, cheirando a Tomé de Souza, em pleno século das crisandálias!E correram-no todo, a rir, como perfeitos malucos.– Ó tição, vem cá!Timóteo aproximou-se, com ar apatetado.– Olha, ficas encarregado de limpar este mato e deixar a terra nuazinha. Quero fazer aqui um lindo jardim. Arrasa-me isto bem arrasadinho, entendes?Timóteo, trêmulo, mal pôde engrolar uma palavra:– Eu?– Sim, tu! Por que não?O velho jardineiro, atarantado e fora de si, repetiu a pergunta:– Eu? Eu, arrasar o jardim?O fazendeiro encarou-o, espantado da sua audácia, sem nada compreender daquela resistência.– Eu? Pois me acha com cara de criminoso?E não podendo mais conter-se explodiu num assomo estupendo de cólera – o primeiro e o único de sua vida.- Eu vou mas é embora daqui, morrer lá na porteira como um cachorro fiel. Mas olhe, moço, que hei de rogar tanta praga que isto há de virar uma tapera de lacraias! A geada há de torrar o café. A peste há de levar até as vacas de leite! Não há de ficar aqui nem uma galinha, nem um pé de vassoura! E a família amaldiçoada, coberta de lepra, há de comer na gamela com os cachorros lazarentos!... Deixa estar, gente amaldiçoada! Não se assassina assim uma coisa que dinheiro nenhum paga. Não se mata assim um pobre negro velho que tem dentro do peito uma coisa que lá na cidade ninguém sabe o que é. Deixa estar, branco de má casta! Deixa estar, caninana! Deixa estar! ...E fazendo com a mão espalmada o gesto fatídico, saiu às arrecuas, repetindo cem vezes a mesma ameaça: “Deixa estar! Deixa estar!...”.E longe, na porteira, ainda espalmava a mão para a fazenda, num gesto mudo:– Deixa estar...Anoitecia. Os curiangos andavam a espacejar silenciosos vôos de sombra pelas estradas desertas. O céu era todo um recamo fulgurante de estrelas. Os sapos coaxavam nos brejos e vaga-lumes silenciosos piscavam piques de luz no sombrio das capoeiras.Tudo adormecera na terra, em breve pausa de vida para o ressurgir do dia seguinte.Só não ressurgirá Timóteo. Lá agoniza ao pé da porteira. Lá morre. E lá o encontrará a manhã, enrijecido pelo relento, de borco na grama orvalhada, com a mão estendida para a fazenda num derradeiro gesto de ameaça:– Deixa estar!...

Créditos parciais: PUC Rio - Teses abertas

Page 16: O colocador de pronomes Monteiro Lobato

Negrinha (Livro), de Monteiro Lobato

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Negrinha, publicado em 1920, segundo os especialistas em Monteiro Lobato, reúne o melhor em sua obra de literatura não-infantil. São vinte e dois contos, alguns são de sua fase atormentada, antes de viajar aos Estados Unidos. "Negrinha", "O Jardineiro Timoteo", "O colocador de pronomes" e a obra-prima, "A facada imortal", que foi escrita em seu regresso, são alguns deles.

Muitos contos de Negrinha são experimentos com as linguagens dramática ou cinematográfica, que conferem a seu texto maior velocidade e promovem deslocamentos temporais e narrativos curiosos.

Os contos abordam tragédias, ódio e romantismo. Os personagens destes 22 contos são um retrato da população brasileira das décadas iniciais do século XX. Através deles, Lobato denuncia e desnuda os bastidores de uma sociedade patriarcal que deixa entrever os vestígios de uma persistente mentalidade escravocrata, mesmo décadas após a abolição.

O conto "Negrinha" é narrado em terceira pessoa, é impregnado de uma carga emocional muito forte. Leia mais...

No conto "As fitas da vida", um velho, ex-soldado da Guerra do Paraguai, sozinho e cego, acaba por engano sendo levado ao prédio da imigração em São Paulo. Velho e cego, ele declara que gostaria de reencontrar seu antigo capitão, ao qual serviu durante a guerra. Se queixava sempre de que todas as suas desgraças provinham de ter perdido o seu capitão durante a Guerra do Paraguai, e dizia que, se ele encontrasse o seu capitão, as suas agruras teriam fim, e até a visão certamente ele recobraria. Ele acreditava que o bom homem seria capaz de cura-lo até mesmo da cegueira.

E, afinal, um dia, aparece, incógnito, o seu querido capitão, e este, para experimentar a fidelidade do velho cego e identificá-lo, fala mal de si próprio, diz que o capitão não passava de um covarde, etc. e o cego se enfureceu, e chorou, e disse que não se insultava assim uma pessoa que não poderia reagir... Então, “mal pronunciara essas palavras, sentiu-se apertado nos braços do Major, também em lágrimas, que dizia: - Abrace, amigo, abrace o seu velho capitão! Sou eu, o antigo capitão Boucault...”

A partir daquele momento a vida do cego mudou, ele foi operado e recuperou a visão e tudo passou a lhe sorrir porque ele achara o seu capitão.E ele exclamava: - “Achei meu capitão! Achei meu pai! Minhas desgraças acabaram-se!...”

Então, o médico-capitão o encaminhou para uma cirurgia de catarata, devolvendo-lhe de fato a visão.

Em "O drama da geada", um rico fazendeiro do café enlouquece, depois de ver todo seu cafezal queimado pela geada. Durante a noite ele desaparece e, depois de muito procura-lo, seus parentes o encontram pintando de verde as folhas amareladas pela geada.

O autor constrói neste conto a ambientação em frases curtas, como as encontramos no texto dramático:

Junho. Manhã de neblina. Vegetação entanguida de frio. Em todas as folhas o recamo de diamantes com que as adereça o orvalho.Passam colonos para a roça, retransidos, deitando fumaça pela boca.Frio. Frio de geada, desses que matam passarinhos e nos põem sorvete dentro dos ossos.Saímos cedo a ver cafezais, e ali paramos, no viso do espigão, ponto mais alto da fazenda. (LOBATO, 1951, v. 3, p. 21)

O trecho acima abre o conto de forma muito próxima do texto dramático em sua forma concisa de descrever o cenário, no uso do Presente do Indicativo para descrever a ação das personagens antes que se dê o primeiro diálogo.

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No relato de "O Bugio moqueado", o narrador nos fala de sua experiência assustadora depois de ter visitado um bruto fazendeiro no Mato Grosso. Ele jantou com o homem e viu que uma estranha carne fora servida à esposa do fazendeiro. Ela comeu a contra-gosto o esquisito prato. Mais tarde, conversando com um amigo negro, descobrira que esse tal fazendeiro teria assassinado e moqueado (preparado a carne) um negro de sua fazenda por suspeitar que ele tivesse tido um caso com a sua esposa, o que se supunha pura maledicência.

O escritor retorna ao tema da decadência e morte do sertão brasileiro tratada a partir da história sombria e aterradora de um marido provavelmente traído (um poderoso coronel-fazendeiro) que mata o suposto amante da esposa e a obriga a comer sua carne. Formalmente, o texto apresenta uma estrutura interessante, uma vez que existem dois enredos que servirão de condutores da história. O narrador descreve um jogo de pelota; a descrição é interrompida para o protagonista narrar o segundo e principal enredo, que posteriormente também é interrompido para se voltar ao jogo. Ao final do conto ambos fios condutores se entrecruzam com a intervenção de um segundo narrador, que oferece o desfecho da trágica história. Todo o texto é marcado pelo uso constante de diálogos, conferindo maior dinamismo à narrativa e um caráter de linguagem informal, como se fosse uma conversa entre os participantes do jogo de pelota.

Neste conto a novidade está na adequação entre assunto e estrutura da narrativa, uma vez que o inusitado dos fatos contamina a construção do texto. Apoiado na estrutura dos "causos" narrados pelos interioranos ao pé das fogueiras nas fazendas, o conto relata um estranho fato ouvido pelo narrador durante um jogo pelo sertão de Minas Gerais. Ao construir uma narrativa sobreposta a outra, ancorada em crenças e histórias populares, com uma linguagem bastante próxima a essa realidade insólita, Lobato aproximou-se tanto do Macunaíma, de Mário de Andrade, como da linguagem mito-poética de Guimarães Rosa, trinta anos depois.

O conto "O jardineiro Timóteo", apesar de "escorregões" em esteriótipos racistas, é um relato sensível e triste sobre a violência contra os negros no Brasil, podendo ser lido ainda como um lamento sobre certo lado destruidor da humanidade. Lobato parece questionar a modernização a qualquer preço, aquela que destrói sem critérios, sem pesar os sentimentos de quem participou da construção no momento anterior. Leia mais...

Em "O Fisco" o cenário é a cidade de São Paulo, mais precisamente, o parque do Anhangabaú. Leia mais...

O conto "Os negros" é o mais longo da coletânea, contém vinte e seis páginas e está dividido em vinte e dois capítulos. Conta a trágica história de amor entre a filha de um fazendeiro e um empregado português. Leia mais...

Em "Barba Azul", um amigo do narrador conta-lhe a história de um facínora que descobriu um terrível meio de enriquecer: casava-se com mulheres feias, magras e pequenas, inaptas para o parto; fazia-lhes seguro de vida e , assim que engravidavam, morriam no parto, deixando-o com o dinheiro do seguro.

Pânfilo Novais, o Barba Azul, era um rico aristocrata, assustador por ser muito feio, com uma horrível barba azul. Ele já havia se casado três vezes, mas ninguém sabia o que tinha acontecido com as esposas, que desapareceram. Quando Barba Azul visitou um de seus vizinhos e pediu para casar com uma de suas filhas, a familía ficou apavorada. O Barba Azul acabou por convencer a filha caçula. Os dois se casaram e foram viver no castelo do nobre.

Pouco tempo depois do casamento, o Barba Azul avisou que iria viajar por uns tempos; ele entregou todas as chaves da casa para sua esposa, incluindo a de um pequeno quarto que ele a havia proibido de entrar. Logo que ele se ausentou, a mulher começou a sofrer de grande curiosidade sobre o quarto proibido. Ela contou à sua irmã que a convenceu a entrar no quarto. Ao satisfazer a curiosidade e entrar no quarto, ela descobriu seu macabro segredo: o chão estava todo manchado de sangue, e os corpos das ex-esposas do Barba Azul estavam pendurados na parede. Apavorada, ela trancou o quarto, mas não viu que o sangue havia sujado a chave.

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Quando Barba Azul retornou, ele imediatamente percebeu o que sua esposa tinha feito. Cego de raiva, ele a ameaçou, mas ela conseguiu escapar e trancar-se junto da irmã, na torre mais alta da casa. Quando o Barba Azul, armado com uma espada, tentava derrubar a porta, chegaram dois irmãos das mulheres. Os irmãos mataram o nobre enlouquecido e salvaram as mulheres. A mulher ficou com a fortuna do marido morto: com parte do dinheiro, ela ajudou sua irmã a casar com seu amado; outra parte ela deu a seus irmãos. O dinheiro restante ela guardou para si, até se casar com um cavalheiro que lhe fez esquecer do suplício que passara.

O conto "O colocador de pronomes" ilustra muito bem o desinteresse e o desapego de Lobato quanto ao rigor gramatical. Leia mais...

Em "Uma história de mil anos", Monteiro Lobato interpreta os valores expressivos dos sons com que representamos o canto dos pássaros, bem como de vocábulos onomatopéicos que a Língua Portuguesa herdou do tupi. Vidinha é uma bela jovem, um anjo de candura, vive com a família nos confins do interior, sem sonhos, ilusões ou paixões. Um dia, um forasteiro desperta em seu coração o amor, beija-lhe e desaparece. Na solidão, agora percebida depois de conhecer o amor, Vidinha definha, entristece e acaba morrendo.”Não vive na terra o que não é da terra”.

No conto "Os pequeninos" o personagem se sente aprendiz da dolorosa vida sangrenta dos animais selvagens por ter calado a voz interior, que lhe ditava tolas lembranças do passado, e ter aberto o ouvido agudo e curiosíssimo para ouvir as peripécias duma estória original contada por um desconhecido. Enquanto espera o navio que trará um amigo de Londres, o narrador ouve histórias dos marinheiros. Uma delas narra um episódio em que um gaviãozinho ataca uma ema, cravando-lhe sob as asas as suas garrinhas e bicando-lhe sem piedade a carne viva e macia. Sem defesa, a grande ema é vítima do gaviãozinho. A outra história é de um português, Manuel, que é acusado de roubar um saco de arroz e depois descobre que quem o roubou foram as formigas, tão pequeninas. Enfim o narrador recebe o amigo, tuberculoso, vítima do pequenino bacilo de Koch.

No conto, o personagem se sente aprendiz da dolorosa vida sangrenta dos animais selvagens por ter calado a voz interior, que lhe ditava tolas lembranças do passado, e ter aberto o ouvido agudo e curiosíssimo para ouvir as peripécias duma estória original contada por um desconhecido.

O tema de "A facada imortal" é simples: uma facada que Indalício deu em seu companheiro de roda, Raul. A abordagem baseada na psicologia do "mordedor" se reveste em uma de narrativa primorosa. O conto foi escrito por uma razão sentimental, para dar alegria a Raul de Freitas, seu amigo doente, personificado em Raul. Raul de Freitas recebeu o trabalho de Lobato como morfina para suas aflições de saúde. Trata-se de um célebre golpe que Indalício Ararigbóia deu em seu amigo Raul. Chamava-se na época FACADA o empréstimo que se fazia sem a intenção de pagar. O golpista era conhecido por faquista. Indalício consegue arrancar um empréstimo do pão-duro amigo Raul ao mexer com a vaidade do amigo. Após o golpe, Indalício sente-se vitorioso e Raul sente-se derrotado.

Em "A policitemia de Dona Lindoca", temos a protagonista, D. Lindoca, desgostosa do descaso e das traições do marido, queixando-se de um mal-estar. Procura então o doutor Lorena, um médico charlatão, e descobre-se vítima de uma policitemia (aumento no número de glóbulos vermelhos no sangue). O médico recomenda-lhe descanso e carinho da parte do marido. A vida está uma maravilha, até que o médico é descoberto e foge da cidade. O marido volta aodescaso e dona Lindoca sente saudades da policitemia.

No conto "Duas cavalgaduras", o narrador conta que havia lido um conto de Ribeiro Couto, em que um estudante mata um judeu, dono de um sebo, depois que este lhe explora num negócio de livros. O narrador suspeita que a história se refere a um judeu, dono de um sebo que ele conhece. Ele vai até o sebo, lá vê um coelhinho de lã que imagina ter sido comprado pelo judeu de uma pobre criança faminta. Depois de interrogar o judeu acerca do coelhinho, o narrador descobre que se tratava de uma lembrança que o judeu guardava de um seu filho adotivo que morrera ainda jovem. A imagem de judeu ganancioso de desfaz e o narrador escreve ao amigo Ribeiro Couto dizendo-lhe:”Somos duas cavalgaduras”.

Duas cavalgaduras é um exercício metaliterário. O personagem-narrador começa sua história resumindo um conto de Ribeiro Couto, O crime do estudante Batista, e se diz impressionado por um dos tipos

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elaborados por Couto, um vendedor de livros judeu (e mulato). O narrador acredita existir tal figura e começa a procurá-la; e numa loja próxima ao palácio do Catete o curioso “herói” encontra um comerciante muito parecido. Lobato, por meio de seu personagem, interrompe a narrativa e inicia uma segunda história - a interrupção é marcada pela frase “Abra-se um parêntesis”-, toda ela fruto da imaginação do personagem, dando a impressão de que Lobato perdeu o controle sobre a narrativa.

Na segunda história, as relações entre vida e arte, a todo momento, são questionadas e discutidas (a citação explícita a Oscar Wilde e seu O retrato de Dorian Gray não é à-toa). Este segundo mote chega ao fim assinalado por um “Fecha-se o parêntesis”; a narrativa “principal” é retomada e o personagem reinicia suas investigações sobre o vendedor de livros, e conclui que ele nada tem a ver com o tipo descrito por Ribeiro Couto. Outro recurso formal utilizado por Lobato é o convite, repetido várias vezes, para as interferências do leitor, ou diretas (quando é o próprio leitor quem dialoga com o escritor) ou indiretas (pelo uso das reticências, que abrem um outro tempo e um outro espaço no interior do texto para as reflexões do leitor; por intermédio de períodos muito curtos, quase telegráficos, estimulando o leitor a completá-los, a pensar sobre eles).

Na refinada elaboração desse conto é possível notar o quanto o processo de autonomização do campo está presente no texto: ao se utilizar de um conto de Ribeiro Couto para construir o seu próprio, quando toma de empréstimo parte de um outro enredo para tecer sua narrativa, ao citar explicitamente não apenas um segundo escritor mas até um personagem alheio, Lobato reafirma uma certa tradição do campo e rende tributo à história interna do campo literário. Retomar a história interna ao campo, ou seja, retomar outros escritores, outras histórias e personagens, significa continuar a escrevê-la.

Em "O bom marido", Teofrasto Pereira da Silva Bermudes é um explorador. Casou-se com Isabel, que teve de sustentar o folgado trabalhando como professora enquanto ele discutia política na farmácia. Mas ele era carinhoso e tratava a esposa sempre com dengos, fazendo-se de injustiçado pelo destino. A pobre Isabel adorava o marido, mas morreu de tanto trabalhar para sustentar os filhos e o marido. Ele, então, casou-se com a dona da quitanda, que tinha ouvido falar do quanto era bom o tal de Teofrasto.

No relato "Marabá", o narrador dá ao leitor uma receita de romance romântico. Ele propõe uma recriação do universo romântico a partir de ícones consagrados: A índia Iná liberta um prisioneiro branco da tribo, foge com ele e gera uma filha, Marabá. O índio Ipojuca se apaixona por Marabá e, depois de perseguidos pela tribo, acabam acolhidos pelo exército português. Ipojuca está ferido, um capitão reconhece Marabá como sendo sua filha e a abraça. Sem entender a cena, Ipojuca flecha e mata a sua jovem esposa, morrendo também de um ferimento. Leia mais...

No conto "Fatias da vida", em uma conversa com um cônego, o “esquisitão” Bonifácio observa que a caridade nem sempre é boa. Ilustra sua tese com a história de sua lavadeira Isaura, que perdeu dois filhos e uma neta por culpa da caridade de uma vizinha. Eles estavam com gripe e foram levados ao hospital. Lá pegaram infecções mais graves e vieram a falecer. O cônego não soube o que responder.

Em "A morte do Camicego" vemos um um monstro imaginário criado por um menino de 4 anos, Edgard. Um dia, ao ver um morcego morto, Edgard o identificou como sendo o famigerado Camicego. Estava aí desfeito o medo diante do misterioso monstro.

Nesta narrativa notamos vários elementos importantes para a posterior construção da literatura infantil lobatiana, como a presença da cozinheira Anastácia, o imaginário infantil, a incapacidade generalizada dos adultos em se relacionar com as fantasias pueris. Apesar de o conto não ser datado, é razoável supor que é anterior a 1926, ano a partir do qual Lobato se voltaria com mais afinco à literatura infantil.

Esta narrativa,"Quero ajudar o Brasil", é uma crônica por meio da qual o autor relata sua experiência na campanha pela exploração do petróleo no país. Um negro, funcionário da Sorocabana, procura pelos incorporadores da empresa que luta pela exploração do petróleo (seria de Lobato?) e deseja comprar 30 ações da empresa no total de 3 contos, toda a economia de uma vida inteira de trabalho duro. Ele declara que não se importa com os riscos que corre, pois tudo o que quer é ajudar o Brasil.”Abençoado negro!... Os teus três contos foram mágicos. ... Trancaram com pregos a porta da deserção.”

No conto "Sorte grande", Maricota é filha de dona Teodora. Moram numa pequena cidade, Santa Rita,

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com mais seis irmãos. Vivem na pobreza e, para piorar, Maricota desenvolve uma doença rara que lhe faz crescer o nariz. Do tamanho de uma beterraba, o nariz agora é notório e vexatório. A família junta um dinheiro para uma consulta com um especialista de uma cidade grande, mas no caminho, num barco, Maricota conhece um jovem médico, Dr. Cadaval, que se interessa pelo seu caso e a convida para uma tratamebto no Rio de Janeiro. Maricota aceita se mudar para o Rio desde que o dr. lhe consiga alguns favores, emprego para os irmãos e até casamento para as irmãs. Afinal ele, como pesquisador irá colher os louros da vitória pela descoberta do Rinofima, nome do tumor de Maricota. Ela acaba operada e seu nariz volta ao normal, a família se ajeita e o médico ganha fama. O que fora considerado uma vergonha, agora passou a ser chamado de sorte grande pelo povo de Santa Rita.

Em "Dona Expedita" vemos a protagonista, Dona Expedita, uma senhora de 60 anos que ainda diz a todos que tem 36. Ela procura um emprego de criada para serviços leves, mas a situação está difícil. O narrador então nos conta dois episódios engraçados vividos por ela na sua bysca por um emprego ideal. Um dia ela viu no jornal uma oferta de emprego leve de acompanhante para o qual se pagaria 400 mil réis por mês, mas ao chegar ao local descobriu que se tratava de um erro no anúncio, o salário seria de 40 mil réis. O segundo episódio foi quando uma imigrante alemã a procurou falando de um serviço excelente, de uma boa patroa e um bom salário. Dona Expedita achou que ela era a patroa interessada em contratá-la, mas descobriu desconsolada que a alemã também procurava por um emprego assim.

No conto "Herdeiro de si mesmo", temos Lupércio Moura, aos 36 anos, que começa a ser acompanhado por uma maré de boa sorte. Tudo conspira para seu enriquecimento. Por acaso, embriagado, acaba comprando o casco de um velho navio, uma sucata, por 45 contos de réis, tudo o que possuía. Um ano depois, o preço do ferro sobe em função da guerra e ele vende a sucata por mais de 400 contos. No fim da vida está rico, uma fortuna de 60 mil contos, sem ter um herdeiro. Então, procura o médium, dr. Dunga e pede-lhe que se informe com os espíritos sobre quem será sua mãe na sua próxima encarnação, para fazê-la depositária da fortuna dele no seu testamento, queria ser herdeiro de si mesmo.

Crédtos: Prof. Manuel, Colégio Sagrado Coração de Jesus, Marília, SP | Elizamari Rodrigues Becker, Doutora em Literatura Comparada, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRSG) | Enio Passiani, Mestre em Literatura, Unicamp, SP | São Paulo - Educando pela diferença para a igualdade - UFSCar - Mód. 2.