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O conde e a cidade No 400º aniversário do alemão Maurício de Nassau, o caderno Turismo & lazer traz um especial sobre a passagem do polêmico príncipe no Recife e mostra sua intensa relação com a capital pernambucana CLEIDE ALVES, FABIANA MORAES E VERÔNICA FALCÃO Um homem gentil, simpático e tolerante. Adjetivos como esses são freqüentemente utilizados por historiadores (sejam eles defensores ou detratores) para traçar o perfil do conde que governou o Brasil holandês no período de 1637 a 1644, João Maurício de Nassau-Siegen. Culto e habituado com a corte européia e do Sacro Império Germânico, Nassau desembarcou no Nordeste brasileiro, região habitada por índios, repleta de mosquitos e fustigada pela febre amarela. A despeito das adversidades, o conde fixou residência no Recife, construiu casas, dois palácios e duas pontes para ajudar a desenvolver a cidade, além de outras melhorias urbanas. “Havia mais de 60 pessoas a serviço de Nassau no Recife, além da corte que ele trouxe da

O conde e a cidade - fabmoraes.files.wordpress.com · O conde e a cidade No 400º ... Copiado à mão em arquivos holandeses, entre 1885 e 1886, no século 19, o acervo pertence ao

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O conde e a cidadeNo 400º aniversário do alemão Maurício de Nassau, o caderno Turismo & lazer traz um especial sobre a passagem do polêmico príncipe no Recife e mostra sua intensa relação com a capital pernambucana

CLEIDE ALVES, FABIANA MORAES E VERÔNICA FALCÃO

Um homem gentil, simpático e tolerante. Adjetivos como esses são freqüentemente utilizados por historiadores (sejam eles defensores ou detratores) para traçar o perfil do conde que governou o Brasil holandês no período de 1637 a 1644, João Maurício de Nassau-Siegen. Culto e habituado com a corte européia e do Sacro Império Germânico, Nassau desembarcou no Nordeste brasileiro, região habitada por índios, repleta de mosquitos e fustigada pela febre amarela.

A despeito das adversidades, o conde fixou residência no Recife, construiu casas, dois palácios e duas pontes para ajudar a desenvolver a cidade, além de outras melhorias urbanas. “Havia mais de 60 pessoas a serviço de Nassau no Recife, além da corte que ele trouxe da

Europa para impressionar os nativos”, revela o arquiteto José Luiz Mota Menezes.

Nassau veio acompanhado de desenhistas, pintores, astrônomos e escritores para relatar seus anos de governo. “Ele produziu os melhores livros da sua época”, diz o professor da Universidade Federal de Pernambuco Marcos Galindo. A História Médica, escrita pelo médico Guilherme Piso, foi considerada referência para a categoria por mais de 200 anos.

Como Nassau veio parar no Brasil é uma longa história, que começou a se delinear em 1530. Comerciantes dos Estados Gerais da Holanda, uma união de pequenos países, começaram a financiar a implantação dos engenhos de açúcar no Brasil (almanjarras, rodas dentadas, cilindros, tachos, olaria, pães de açúcar). O açúcar produzido era transportado para Amsterdã, refinado e vendido no mercado europeu.

A ocupação holandesa no Nordeste brasileiro está ligada à situação geopolítica da época. Até 1580, Holanda e Portugal eram nações amigas. Quando o rei Felipe, da Espanha, assumiu o trono português (e conseqüentemente o Brasil, então colônia portuguesa), a situação mudou porque a Espanha era inimiga dos Países Baixos e da família Nassau.

Com os laços cortados, a Holanda ficou no prejuízo e organizou a Companhia de Comércio das Índias Ocidentais para recuperar o dinheiro investido, com suporte político para ficar no Brasil por 24 anos. Somente em 1630, 50 anos depois, os Estados Gerais da Holanda conseguiram se armar e ocupar o Nordeste. João Maurício de Nassau, futuramente conhecido como ‘O Brasileiro’, é escolhido como governante. Em 1640 Portugal se separa da Espanha e em 1648 (em plena guerra dos luso-brasileiros contra os holandeses) a Holanda faz as pazes com o reino espanhol. Tudo era uma questão de negócios e no fim restou uma grande dívida com os Países baixos, paga tintim por tintim.

A passagem holandesa pelo Nordeste, apesar de ricamente registrada nas imagens de Frans Post e Albert Eckout, nos mapas de Georg Markgraf e manuscritos em holandês arcaico que estão sendo atualmente traduzidos por pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco e Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, não pode ser vista pelas ruas da capital. Os palácios e o casario holandês foram destruídos após a expulsão dos flamengos. Dessa memória, só restam as ruínas enterradas na parte mais antiga do Recife. Mesmo assim, é possível ver alguns resquícios do período em locais como o Museu do Estado e o citado Instituto Arqueológico. Nesta edição especial do caderno Turismo e Lazer, trazemos um pouco sobre o lado político, humano e mesmo contraditório desse conde que elevou o Recife à cidade-modelo em tão pouco tempo de ocupação.

(© JC Online)

bairro de Santo Antônio, Centro, hoje

Com Nassau, Recife viveu período áureoConsiderado um dos maiores administradores que o País já teve, o conde inseriu a capital pernambucana no contexto político mundial daquela época

CLEIDE ALVES Da Editoria de Cidades

Pernambucanos e holandeses comemoram em 17 de junho de 2004 os 400 anos de nascimento do príncipe João Maurício de Nassau-Siegen. Aristocrata alemão a serviço da Companhia de Comércio das Índias Ocidentais, ele governou o Brasil holandês por sete anos, de janeiro de 1637 a maio de 1644. O fundador da Cidade Maurícia (atuais bairros de Santo Antônio e São José, no Centro do Recife) nasceu no dia 17 de junho de 1604, no condado de Dilemburgo, perto de Siegen, que fazia parte do Sacro Império Germânico. Morreu em 1679, aos 75 anos, sem deixar descendentes diretos.

Maurício de Nassau era filho de João VII e neto de João o Velho, que fundou a nação holandesa com o irmão Guilherme Taciturno. Era primo em segundo grau do rei da Holanda Johan Moritz van Nassau. A linhagem nobre (somada à formação acadêmica e militar) pesou na sua escolha para assumir o Nordeste brasileiro. A Companhia das Índias Ocidentais desembarcou em 1630 e retirou-se em 1654, após 24 anos.

Nos primeiros seis anos, houve resistência por parte dos luso-brasileiros. Mas em 1636 a companhia já era vitoriosa. “A empresa decide que não pode fazer um governo civil com militares e envia Nassau para administrar o Brasil”, diz o arquiteto e professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco José Luiz Mota Menezes.

Nassau, na avaliação do arquiteto, era um homem inteligente na arte de governar. “Ele não tinha idéia apenas exploradora e não tratou mal os nativos.” O governante, diz ele, promoveu melhorias urbanas, calçou ruas com tijolos da Frísia, proibiu o tráfego de carros de boi para não destruir as vias, criou um corpo de bombeiros voluntário, organizou a primeira câmara de escabinos de portugueses e holandeses (os judeus eram os tradutores), construiu casas e pontes e implantou o imposto territorial urbano.

“Nos sete anos da administração de Nassau, o Recife era a cidade onde circulava mais

moedas no mundo”, acrescenta o professor do Departamento de Ciência da Informação da UFPE Marcos Galindo. Em sua chegada, o então conde alemão encontra o Nordeste numa situação equilibrada economicamente e inaugura o chamado tempo da boa paz.

PROJETOS – Marcos Galindo afirma que Nassau foi um excelente administrador para o povo, mas não para a Companhia. “Ele tinha um plano pessoal de governo, queria fazer fortuna e se destacar para receber o título de príncipe. Ele era apaixonado por um projeto próprio.”

Conforme o pesquisador, Nassau levou para a Europa tudo o que havia produzido no Brasil. “Ele trocou, vendeu, negociou e virou príncipe como queria”, sublinha. “Por outro lado, com Nassau, o Brasil estava inserido no universo internacional, como nunca esteve com os portugueses, e isso é que faz dele uma pessoa importante”, destaca Marcos Galindo.

As comemorações, diz o pesquisador, estão apoiadas na memória positiva que ficou desse período da história brasileira. “Pernambuco nunca viveu outro momento com tanta importância no cenário universal. Depois disso nunca mais fomos tão vassalos de Portugal.” José Luiz, que identificou no bairro de São José o traçado urbano holandês, afirma que Nassau passou a desagradar à Companhia porque gerava muita despesa com suas obras de urbanização e pouco lucro. “Ele tinha visão colonizadora e esse não era o interesse da empresa.” Os holandeses encontraram 40 casas no atual Bairro do Recife e oito em Santo Antônio. Quando partiram, deixaram 295 casas construídas.

(© JC Online)

Parceria entre Brasil e Holanda permite tradução de manuscrito

As comemorações pelos 400 anos de nascimento do governador do Brasil holandês Maurício de Nassau extrapolam a fronteira das festividades. Um dos mais importantes legados da data é a tradução de documentos produzidos pela Companhia de Comércio das Índias Ocidentais, no período da ocupação holandesa (1630-1654), de interesse brasileiro.

Copiado à mão em arquivos holandeses, entre 1885 e 1886, no século 19, o acervo pertence ao Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Instituição particular, sem fins lucrativos, foi criada em 1862 e cuida da preservação da memória cultural do Estado. Os manuscritos foram selecionados pelo ex-jurista e ex-sócio da entidade, José Hygino Duarte Pereira. São 11.176 páginas escritas em holandês arcaico.

A coleção só era utilizada por historiadores com domínio do idioma, como José Antônio Gonsalves de Mello (1916-2002) – que, a partir das informações contidas nos documentos, escreveu Tempo dos Flamengos – Evaldo Cabral de Mello e Alfredo de Carvalho. Agora, os textos estão sendo traduzidos para o português e digitados em holandês moderno.

“Cada volume corresponde a um ano. Respeitamos a fonte original e vamos manter a mesma organização. Já traduzimos os manuscritos até o fim de 1644, ano da partida de Nassau”, informa o coordenador do trabalho e professor do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal de Pernambuco, Marcos Galindo.

Os primeiros volumes (1635 e 1636) serão lançados até agosto deste ano pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), em edição bilíngüe. Os pesquisadores Pablo Gallindo e Lodewijk Hulsman, que trabalham na tradução dos documentos, informam que serão necessários mais cinco ou seis anos para concluir o projeto. Ao todo, cinco pessoas trabalham na tradução dos manuscritos.

A coleção José Hygino é composta de documentos (Nótulas Diárias) do Alto Conselho da Companhia das Índias Ocidentais quando atuava no Nordeste brasileiro. Está encadernada em 32 volumes. “É o sistema holandês de registro. Todas as decisões tomadas pela empresa estão registradas”, comenta Lodewijk Hulsman. Ele e Pablo Gallindo observam que o acervo é de extrema importância.

“Todos os dias, o Alto Conselho se reunia e havia decisões. Podia ser o confisco de um engenho ou a tomada de uma igreja católica. Diferentes escrivões tomavam nota, eles eram testemunhas oculares e é possível identificar a interpretação diferenciada de cada um. O

documento é muito rico e revela a situação da colônia com o passar do tempo”, destacam.

Marcos Galindo acrescenta que a tradução dos documentos vai preencher um vazio que existe na história do Brasil entre 1630 e 1654, período da ocupação holandesa. “Só agora, depois de 118 anos, os documentos estão sendo traduzidos com apoio da Embaixada do Reino dos Países Baixos e recursos da Lei Estadual de Incentivo à Cultura. Isso é importante também para despertar o interesse da Holanda no assunto”, declara. Os textos também serão disponibilizados para pesquisa em CD-ROM e na Internet. (C.A.)

(© JC Online)

(carta de Gaspar van der ley, 1645)

Os Wanderleys ainda estão entre nós No prefácio do livro Tempo dos Flamengos, o sociólogo Gilberto Freyre tece o seguinte comentário a respeito da tradicional família Wanderley: “Só eles bastam para assegurar a sobrevivência de olhos azuis e de sangue flamengo em nosso País”. Originários do Sul de Pernambuco, os Wanderley são descendentes de Gaspar van Nieuhof van der Ley.

O fundador da família Wanderley no Brasil tinha sido contratado pela Companhia das Índias Ocidentais como capitão da cavalaria das tropas holandesas. Há controvérsia sobre a nacionalidade de Gaspar van der Ley. Há historiadores que o consideram holandês e outros que atribuem origem alemã. O certo é que, estando no Brasil, casou com uma moça da aristocracia do açúcar do Cabo de Santo Agostinho, Maria de Mello.

“Todos os Wanderleys de Pernambuco são descendentes de Gaspar van der Ley”, afirma o genealogista Reinaldo Carneiro Leão, do Instituto Arqueológico. O médico Flávio Wanderley, 53 anos, com raízes no município de Rio Formoso, é um dos representantes dessa legião.

Bisneto do Barão do Rio Formoso, Flávio Wanderley revela uma característica marcante da família: namorar muito. “Eu já me casei três vezes e meu pai também casou mais de uma vez, depois de ficar viúvo. Os Wanderleys gostam de amar, esse é um lado positivo que deve ser preservado”, afirma.

Segundo ele, inicialmente, a grafia era wan der Ley. “’Senhor dos lagos’, na tradução holandesa.” No fim do século 19 virou uma só palavra. Com relação aos Vanderleis, ele disse que essa era a grafia dada aos filhos bastardos que os barões Wanderleys tinham com as mucamas, para diferenciá-los dos herdeiros legítimos. (C.A.)

(© JC Online)

Holandeses chegam a Recife e Olinda

Celebramos um general invasor?Críticos dizem que Nassau, ganhando um salário astronômico, tentou ocupar o Nordeste, sem sucesso, comandando esquadras de mercenários

O jornalista e escritor Marco Aurélio de Alcântara é um crítico contumaz das comemorações

pelos 400 anos de nascimento do governador do Brasil holandês, João Maurício de Nassau. “Não se deve enaltecer um general invasor”, afirma. Ele ressalta que Nassau era um funcionário da Companhia das Índias Ocidentais, com luva de seis milhões de florins. “Era um salário alto até para os dias de hoje”, comenta o escritor.

Marco Aurélio observa que Nassau veio ao Brasil como conquistador da terra que já era luso-brasileira. “Duarte Coelho, o primeiro português a desembarcar no Brasil com a família, para morar realmente na colônia, chegou em 1530. Cem anos depois, quando os holandeses invadiram, já havia uma população luso-brasileira ou luso-ameríndia estabelecida”, declara.

Ele diz, ainda, que a Companhia das Índias Ocidentais, financiadora da ocupação, era uma multinacional formada por soldados mercenários das províncias unidas. “Havia húngaros, poloneses, alemães, ingleses. Não eram só holandeses. Eles passaram 24 anos e foram expulsos. Não há porque cultuar um general invasor que foi expulso”, reforça. Na opinião de Marco Aurélio, há uma tentativa de reavaliação crítica da presença holandesa no Nordeste brasileiro, patrocinada por empresas e investidores holandeses.

“Mas a história não deixa dúvidas. As ocupações holandesas foram um fracasso no Brasil, na Indonésia, na África do Sul, em Java e em Sumatra”, elenca. Marco Aurélio crê que os eventos comemorativos organizados no Recife para a data de hoje “são frutos dessa tentativa de revalorização do período holandês misturada a uma nostalgia imperial ou aristocrática da presença de Nassau no Nordeste brasileiro, que durou menos de oito anos.”

O escritor argumenta, ainda, que os holandeses não tinham intenção de colonizar o Brasil. “Se assim fosse, eles teriam trazido agricultores para se fixar na terra, não soldados. A companhia fez apenas feitorias na costa para garantir o embarque do açúcar e do pau-brasil”.

Sobre a colocação do busto de Nassau na Praça da República, ele afirma que isso afronta o brio pernambucano. “É o mesmo que os americanos receberam do governo japonês um busto de Yamamoto, o homem que bombardeou Pearl Harbor”, exagera. O almirante japonês Yamamoto Isokoru atacou Pearl Harbor, no Honolulu (Havaí), em dezembro de 1941.

DINHEIRO - O arqueólogo da Universidade Federal de Pernambuco Plínio Victor também critica as comemorações a Nassau. “Os holandeses vieram para o Brasil apenas para buscar o dinheiro que haviam investido. Eles financiavam o tráfico de escravos para garantir a produção de açúcar e as especiarias. A Companhia das Índias Ocidentais quebrou o Nordeste brasileiro e depois da saída dos holandeses nunca mais a região conseguiu se erguer”, destaca Plínio de Araújo Victor.

Diretor da Casa de Cultura dos Povos de Língua Portuguesa, com sede em Olinda, Plínio Victor afirma que Nassau era um bon vivant e construiu uma cidadela no Recife, com palácios e fortalezas, só para defendê-lo. “Olinda e o Nordeste eram as regiões mais ricas do mundo quando os holandeses chegaram. O resto do País, colonizado por portugueses, prosperou mais do que o Nordeste”, compara.

O arqueólogo discorda que havia liberdade religiosa no Brasil holandês. “Tinha liberdade de consciência, porque judeus e católicos praticavam suas religiões dentro de casa. Como havia liberdade religiosa, se os holandeses (calvinistas) quebraram igrejas católicas e proibiam as procissões? Os judeus, por causa do dinheiro, tinham mais privilégios que os católicos”, sustenta.

Ele questiona a associação comumente feita entre a figura de Maurício de Nassau e a Renascença. “Pedro Álvares Cabral é o homem na Renascença, ele é que atravessou oceanos no século 16. Nassau pode ser considerado pós-renascentista”, diz.

Outra crítica feita pelo arqueólogo está centrada na herança holandesa. “Nassau levou tudo o que ele havia produzido no Nordeste brasileiro quando foi embora. Os holandes não deixaram nada, apenas uma terra arrasada”, destaca. Plínio Victor acrescenta que os portugueses levaram ouro do Brasil para o reino, mas construíram Ouro Preto, Sabará e Mariana, três cidades mineiras.

“Na verdade, apenas um quinto do ouro saiu do Brasil para Portugal. Mesmo assim, parte era desviada no caminho. Onde foram parar os 80% restantes, que ficaram no Brasil, não se sabe”, diz Plínio Victor. (C.A.)

Um passeio pela cidade MauríciaFABIANA MORAES

Antes de iniciar uma caminhada pelo Recife holandês, é preciso estar atento a um fato: ele não é feito de monumentos, estátuas comemorativas e baluartes. Tampouco de placas indicativas e fôlderes explicativos distribuídos por guias apressados. A tão evocada Cidade Maurícia repousa sob outra urbe, caótica, reconstruída, de cara portuguesa. Mas é entre essas vias bagunçadas e desatentas ao próprio passado que se percebe parte da passagem do vaidoso conde por essas terras. No traçado das ruas estreitas dos arredores do Mercado de São José. Nas ruínas da sinagoga da Rua dos Judeus. Nas moedas e artefatos de guerra espalhados pelos museus da cidade.

“Para entender e perceber o que foi a presença holandesa no Recife, é preciso também fechar os olhos”, diz o professor Marcos Galindo, especialista em estudos sobre a ocupação flamenga em Pernambuco. Ele está certo. A Cidade Maurícia é vista sobretudo através de uma caminhada pelas três ilhas que hoje formam o centro da capital de Pernambuco. A cada passo sobre os rios, a cada novo ângulo de paisagem, vê-se por que Nassau cobiçou tanto essa cidade um dia. E por que cravou nela seu próprio nome, numa espécie de continuação de sua personalidade.

Mas nem só de evocações e ruínas se constituem os passos do conde pela Recife holandesa. “Grande parte da memória desse período está bem contada tanto textualmente quando cartograficamente”, comenta o arquiteto José Luís Mota Menezes, que defende a sinalização turística de pontos importantes na história do nascimento do município.

É de autoria de Menezes a maquete presente na exposição Eu, Maurício, em cartaz no Instituto Cultural Bandepe até o próximo dia 20. O trabalho (que publicamos ao lado), resultado da sobreposição de vários mapas, é sem dúvida o ponto mais interessante da exposição por mostrar justamente como se dispersavam as construções flamengas nas ilhas do Recife, de Antônio Vaz e da Boa Vista. É precioso também por mostrar tão claramente como a cidade foi realmente parida só a partir do momento que as esquadras holandesas, repletas de corsários, aportaram no Recife, então um arruado com cerca de 48 casas. Olinda, a capital pernambucana de então, já contava com mais de 500. Sete anos após a chegada das Companhias das Índias Ocidentais, Nassau é enviado a Pernambuco para instituir paz em meio às constantes batalhas travadas entre colonos portugueses e os novos ‘visitantes’. Anima-se com o que vê: rios e uma natureza exuberante atraem a atenção do conde. Pouco tempo depois, o arruado começa a ganhar ares de importância. Logo, quase trezentas casas já estão construídas na Ilha do Recife.

E havia o outro lado. A Ilha de Antônio Vaz foi logo escolhida pelo conde para abrigar seu Palácio de Friburgo, construído de tijolinhos e madeira. O local onde hoje está o Palácio do Campo das Princesas, centro nervoso da política estadual, abrigou Friburgo e outras construções autorizadas por Nassau. De lá, ele observava o Recife e a movimentação de seus

portos. Sua casa dava para o rio e, naquelas margens, ele criou uma espécie de jardim botânico de tirar o fôlego. Não fosse o calor e o insistente cheiro de mangue, podia-se dizer que um pedaço dos Países Baixos estava ali.

UM POUCO DE HOLANDA – Os brios portugueses não permitiram que nenhuma construção nassoviana ficasse de pé após a expulsão dos holandeses. Era uma questão de reconstruir a identidade portuguesa, ferida durante os 24 anos de ocupação. Tudo foi destruído: a casa-observatório onde viveu Nassau logo ao chegar ao Recife e onde Markgraf fez seus estudos sobre a terra e o céu (no local, existe hoje a famosa lanchonete A Cristal, na Rua 1º de Março), o casario erguido nas três ilhas que hoje formam o centro, o Forte Ernesto (hoje, o terreno é ocupado pelo Convento de Santo Antônio, na Rua do Imperador). Apesar disso, é possível ver de perto alguns resquícios da ocupação flamenga. O Instituto Arqueológico de Pernambuco guarda algumas raridades como um canhão utilizado nas batalhas (cravado com o WIC – West Indische Compagnie, ou Companhia das Índias Ocidentais), moedas holandesas e um quadro que retrata a primeira casa de Nassau. Em Itamaracá, Litoral Norte, o Forte Orange guarda, além do nome, as muralhas holandesas, hoje encobertas pelos paredões portugueses. “Todos esses locais deveriam possuir indicações sobre sobre a importância de cada um. Temos uma série de informações sobre isso”, comenta Mota Menezes. Na arte ao lado, mostramos outros pequenos tesouros holandeses que podem ser localizados na cidade.

(© JC Online)

Holandeses visitam Estado em busca de sol, praia e história O holandês Joreon van Zureten, 34 anos, nascido em Breda, sul da Holanda, nunca havia ouvido falar na colonização de uma cidade brasileira por seus antepassados. Tampouco havia visto algo sobre Johann Moritz von Nassau-Siegen, o conde Maurício de Nassau. Mas, ao ler o material informativo de uma agência de turismo em sua cidade (localizada na região de onde saíram as esquadras das Companhias Marítimas Ocidentais rumo ao Nordeste), descobriu que a história do seu país de pele branca se confunde com a de uma cidade mestiça cravada no Nordeste do Brasil. Resolveu vir.

“Conhecer a relação e a história do Recife e da Holanda foi um dos motivos que me trouxeram aqui”, disse ele, que, na última segunda (14), caminhava pelo bairro do Recife ao lado de outros sete holandeses. Guiados pelo professor de francês Pablo Gallindo, o grupo está no Estado até o próximo fim de semana para conhecer a cultura e a história – feita com grande quantidade de açúcar – de Pernambuco.

“Trazemos grupos de holandeses semanalmente para esse lado da cidade para que eles conheçam um pouco da passagem de Nassau por aqui”, comenta Pablo. O pacote turístico comprado por Joreon em Breda é vendido pela agência Sunrise (na Holanda). No Brasil, a agência faz parceria com a Scandinavian Plus. Ambas mantêm um vôo charter que pousa em Natal. Curiosamente, é lá que os turistas aportam antes de se dirigir ao Recife.

De acordo com Pablo, o roteiro traçado pelos holandeses no bairro do Recife inclui visitas à sinagoga Kahal Zur Israel, onde se podem ver as ruínas do antigo templo religioso dos judeus, ao Marco Zero e a algumas ruas importantes durante a colonização flamenga, como a Muntstraat (hoje a Rua da Moeda). É claro que a Bokstraat (Rua do Bom Jesus) também está obrigatoriamente incluída no passeio, mesmo nos dias em que a sinagoga está fechada (às segundas). “Para eles, é uma surpresa saber que os holandeses fundaram a cidade”, comenta Gallindo, que recebe grupos que unem cada vez mais a dupla cultura e memória ao clássico duo sol e mar.

É LENDA – Um dos pontos turísticos ‘holandeses’ mais famosos de Pernambuco é, sem dúvida, a casa vermelha localizada na Praça do Carmo, em Olinda. É comum ver guias, mirins ou não, cercados por grupos de brasileiros ou estrangeiros falando que aquela construção abrigou o conde durante sua passagem pelo Estado. “Os holandeses jamais morariam em Olinda. Preferiam locais planos, pois acreditavam que terrenos montanhosos desperdiçavam o terreno”, comenta Marcos Galindo.

A famosa ‘casa vermelha nassoviana’ foi, na verdade, construída em 1885, ou seja, séculos

depois da partida dos holandeses.(F.M.)

(© JC Online)

Imagens do Recife estão em lugares como Paris e Cracóvia Recife está em Paris (França), em Amsterdã (Holanda) e na Cracóvia (Polônia). Recife retratado de todas as formas, escrito a partir de várias visões. Quem sai da capital de Pernambuco rumo ao exterior tem a oportunidade de conferir quadros que retratam a cidade então Maurícia em locais como o Museu do Louvre, em Paris, no Rijks Museum, no centro de Amsterdã, no Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque (está lá o quadro A Brazilian Landscape, de 1650), na Academia Carrara, em Bérgamo, na Itália.

Entre eles, o Louvre é talvez o que exiba a maior quantidade de obras de Frans Post, que pintou diversos quadros mostrando a urbe em expansão. São sete, entre eles Rio São Francisco e Forte Maurício, Carro de Bois, Forte dos Reis Magos e Paisagem das Cercanias de Porto Calvo (o último curiosamente assinado por F. C., uma espécie de tradução no nome do pintor para o português).

No Museu Botânico de Copenhague, na Dinamarca, estão guardados, em perfeito estado de conservação, o Herbarium Vivum Brasiliense, de autoria de Georg Markgraf, outro que foi patrocinado por Nassau para realizar estudos (no caso, sobre nossa fauna e flora. Leia mais sobre o assunto nas páginas 7 e 8). Também em Copenhague estão guardados 24 quadros de Albert Eckhout, além de enormes mantas de penas de galo-da-serra e de tucanos feitas pelos índios do Nordeste. Tais raridades chegaram ao local entre 1650 e 1655.

NA CASA DE NASSAU – Quem se interessa especificamente pela figura do conde pode conhecer a casa dedicada à sua memória, em Haia, na Holanda. Lá, está sendo exibida (até o dia 24), a exposição Descobrindo o Brasil com Albert Eckout – 1610/1666, que exibe quadros já vistos na mostra inaugurada no Instituto Ricardo Brennand. Na casa, construída por Pieter Post, irmão de Frans, estão guardados documentos relativos ao homem que comprou seu título de príncipe para realizar o antigo sonho de legitimar sua nobreza. É possível conhecer a casa virtualmente através do www.mauritshuis.nl. (F.M.)

(© JC Online)