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O Contador de Histórias... e outras histórias

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Dedicatória Dedico esta obra

a Esopo

a La Fontaine

e principalmente

a todos os Antigos Contadores de Histórias

que nasceram do ventre da Mãe África e Mãe América,

pois são todos eles eternas Fontes de Inspiração

para aqueles que amam o sonho

de criar e recriar um novo entendimento do Mundo!

A. Mayer

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O Contador de Histórias... e outras histórias

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OOO CCCooonnntttaaadddooorrr dddeee HHHiiissstttóóórrriiiaaasss.........

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A. Mayer

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Quando Yemanjá e Xangô

Aganju guerrearam nas

costas de Onilé

O Contador de Histórias certa vez andava em busca de Inspiração...

Como ele a desejava para cantar às pessoas seu Amor pelos Orixás,

cantando e contando as façanhas incríveis que os Senhores e Senhoras do

Kosmos deixaram como herança não só à Humanidade mas igualmente à

Teia da Vida inteirinha!

Ele andava pela sua famosa estrada... andava... andava... e nada da danada

da Inspiração se por em ação!

E ele matutava consigo:

“Ah, se os Orixás houvessem alguma vez escrito um Livro Sagrado para

que eu pudesse dar uma espiadinha e de suas preciosas páginas extrair

minha Inspiração...”

E deu um longo e doído suspiro, pois todos diziam que os Orixás jamais

haviam deixado algo escrito, nem mesmo no tempo em que moravam entre

nós...

Pois houve um remoto tempo em que eles foram os Orixás Andantes –

assim chamados por andarem sobre o mundo, junto à todos os seres

conscientes e ainda não conscientes que respiravam sobre o globo – mas

foram-Se para o Orum sem deixar página alguma escrita...

E que suspiro doloroso foi esse do Contador de Histórias! Pois o que ele

não daria para ter um dia lido uma única página escrita pelos Reis e Rainhas

da Co-Criação que ele tanto amava!

E assim, nesse pesaroso estado de cousas, O Contador de Histórias

prosseguia caminhando pela Estradinha poeirenta...

E caminhou assim, tristonho, até que percebeu que um pequeno e

delicado Vento espiralou-se, formando um sinuoso e gentil redemoinho de

Vento que pegava algumas Folhas soltas deitadas aos pés de um arbusto e as

depositava na Encruzilhada da Estrada. As Folhas caídas pareciam quase

formar letras na Estradinha...

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Parecia poeticamente que Yansã, Ossanha, Ogum e Bará-Exu estavam

montando em conjunto uma gráfica e editora:

Ogum parecia fornecer a Estradinha como base para que os livros fossem

produzidos e impressos...

Yansã parecia fornecer em seu redemoinho de Vento os movimentos

criativos que fariam os pincéis, as canetas e os teclados darem à luz novas

criações...

Ossanha parecia fornecer com suas Folhas, carregadas pelo Vento e

depositadas por este na Estradinha, as tintas para os pincéis e as formas para

que as letras pudessem nascer...

E Bará-Exu parecia fornecer naquela Encruzilhada todas as condições

para que o empreendimento dos demais Orixás prosperasse, como é do

agrado e deve ser de própria conveniência a todo bom empreendedor...

Foi então que o rosto macambúzio do Contador de Histórias se

transfigurou!

Um lampejo se fez em seus olhos e um sorriso de alegria brotou de seu

rosto quando seus lábios pronunciaram as palavras que brotavam,

descobertas por seu Coração:

- Hei! Os Orixás escreveram um livro sim! E que livro! E é um livro tão

especial que raros conseguem perceber: apenas o percebem os Iniciados!

Foi então que seus olhos se estenderam para todas as direções quando ele

balbuciou extasiado:

- Os Orixás escreveram um livro incrivelmente fabuloso, repleto de Seus

grandes feitos! Mas era um livro tão imenso que eu sequer percebia... que eu

mesmo estava andando exatamente sobre suas páginas, caminhando por entre

seus parágrafos, passeando por suas linhas, frases e palavras!

Foi um momento mágico na vida do Contador de Histórias!

Ele havia descoberto o Livro dos Livros, o Livro Mais Sagrado Dentre

Todos os Livros Sagrados: O Livro, que começou a ser publicado há 4,5

bilhões de anos1 quando a Orixá Editora Company foi fundada pelos Orixás,

com a Concessão Federal assinada pela Caneta Presidencial de Olodumare!

O Livro dos Livros da Orixá Company! Com todos os direitos reservados:

copyright, ISBN, Ficha Catalográfica e tudo o mais como mandam todos os

preceitos do figurino!

1 N. A.: Segundo a Geologia, ancorada inclusive em estudos de meteoritos, a idade de formação do Planeta Terra é cerca de 4,5 bilhões de anos.

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Foi um momento mágico ao Contador de Histórias descobrir-se entre as

páginas da Obra-Prima do empreendedorismo dos Orixás!

Desde aquele momento ele começou a ficar sempre mui atento a tudo a

seu redor, pois é um ditado de sagrada sabedoria:

“Para quem sabe o que procurar, as evidências surgem por toda a

parte!”

E assim foi que, certa vez, andando pelo litoral de determinada ilha, O

Contador de Histórias descobriu as seguintes linhas desta História,

dependuradas em um poste para leitura dos passantes que tivessem olhos para

ver:

“Onilé andava cansada... tão abatida estava a Mãe Terra!

Haviam muitas razões para seu abatimento, mas uma delas era esta:

Sobre suas costas Yemanjá e Xangô Aganju não paravam de brigar!

Xangô Aganju com seu Oxé e Yemanjá com sua Espada, um a desferir

golpes no outro, brigavam sem parar... e tudo começou como uma discussão

de vizinhos por causa da cerca!

Pois às vezes Yemanjá colocava a cerca para o lado de Xangô... Xangô

empurrava sua cerca avançando para o lado de Yemanjá...

Atiçado pelos Ventos de Yansã e as Águas de Oxum, Xangô reclamava

que iria ficar sem terras, pois suas esposas acabariam levando cada grão de

sua propriedade para o lado da cerca que pertencia à Yemanjá!

Pronto: estava armada a briga!

E que dor de cabeça aquilo gerava em Onilé... uma enxaqueca daquelas

na Mãe Terra, viu?!

Pois era um tempo de muitas brigas entre muitos Orixás pela partilha do

mundo, numa época em que a Humanidade ainda nem sonhava que sonharia!

Não aguentando mais – pois aquela enxaqueca ficou tão grande mas tão

grande que parecia rachar a cabeça de Onilé – ela foi ter com Olodumare!

Na presença de Olodumare, O Múltiplo, ela expôs todas as suas

reclamações! Não escondeu uma linha sequer do que se sucedia!

Olodumare então mandou chamar à Sua presença Xangô, Yemanjá,

Oxum e Yansã e colocou-Os em acareação!

Xangô dizia que se não fizesse seus Vulcões expelirem muita Terra e

Vapores, em breve Yansã e Oxum o levariam à ruína, mancomunadas com

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Yemanjá: não sobraria um grão para que um dia planta, animal ou pessoa

alguma pudessem se afirmar: haveria Terra apenas para os peixes do Oceano!

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Yemanjá reclamava que Xangô estava mancomunado com suas esposas,

invadindo suas terras, avançando com sua cerca: os Vulcões lhe tiravam

braças e braças da fazenda dos Oceanos numa erupção só, ao mesmo tempo

que Yansã – soprando grãos da fazenda de Xangô para dentro do Mar – e

Oxum – levando água abarrotadas de riquezas em excesso – estavam

entulhando o Oceano de tal forma que no meio de tanta coisa todos os peixes

morreriam sufocados e o Oceano como lar da Vida sumiria! 3

Oxum reclamava que Yemanjá estava roubando suas Riquezas e

escondendo-as no fundo do Mar, e que assim iriam se acabar todos os peixes

de água doce de sua fazenda! Yemanjá iria levá-la à pobreza e miséria por

posse indébita de bens, ao ponto que nada lhe restaria para enfeita-Se! 4

E Yansã reclamava que Xangô andava tão irritado que seus Vulcões

estavam levando os seus Ventos à ruína! Pois fumegavam tanto que dia

chegaria em que ela nem poderia mais soprar, pois sequer poderia ver mais o

Sol, de tanta fumaça! 5

E a cabeça de Onilé doía e doía ouvindo todas essas reclamações,

exatamente em cima de suas costas! Parecia que sua cabeça iria explodir em

milhões de pedaços! Pobre Onilé!

2 N. A.: Trata-se do efeito erosivo que ventos e águas realizam sobre os Continentes,

consumindo-os. Sem a existência das Placas Tectônicas, que canalizam a energia geotérmica do Núcleo da Terra, nosso planeta em poucos milhões de anos seria apenas coberto por Oceanos.

3 N. A.: Trata-se do efeito de assoreamento que ocorre no Leito Oceânico em função

dos ventos e transporte de sedimentos continentais através dos rios. Sem as Placas Tectônicas tais efeitos iriam causar um salinização e mineralização tamanha nos Oceanos que tornariam a vida marinha inviável.

4 N. A.: Os vulcanismos trazem as riquezas minerais para a superfície, mas só podem

fazer isso de forma constante na presença de Placas Tectônicas. Caso contrário as riquezas minerais seriam levadas por transporte de sedimentos (pluvial, fluvial e eólico)até o leito do Oceano.

5 N. A.: Os vulcões eliminam grandes quantidades de Carbono na forma de CO2. Se não

houvessem as Placas Tectônicas, este Carbono não poderia retornar ao Seio da Terra de forma cíclica; com a saturação atmosférica de Carbono, um fortíssimo Efeito Estufa poderia tornar a Terra tão aquecida quanto Vênus impedindo que a Vida Complexa, tal como a conhecemos, florescesse.

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Olodumare, O Múltilplo, olhou para tudo aquilo. E foi exatamente isso o

que Ele fez:

Aproximou-se da cabeça de Onilé, que iria esfacelar-se em milhões de

pedaços, virando pó, e pintou em seu rosto algumas linhas, dividindo sua

cabeça em sete grandes partes que pareciam lindas placas! 6

Quando Olodumare fez isso, imediatamente a enxaqueca de Mãe Terra

desapareceu! Onilé suspirou incrivelmente aliviada, como que em êxtase!

Xangô Aganju expelia agora seu Fogo e vapores com mais calma!

Yemanjá conseguia agora limpar o leito de Sua Casa, devolvendo ao seio

da Terra os excessos que lá haviam se amontoado!

Oxum ficou toda faceira porque recebia novamente as suas Riquezas do

Seio da Terra, podendo novamente andar toda enfeitada!

Yansã agora estava mais tranquila, pois seus Ventos voltavam a ser como

ela apreciava que fossem!

E todos então assinaram um Tratado de Paz!

As brigas haviam terminado! Todos ficaram muito felizes!

Fizeram uma festa para comemorar, onde todos comeram, beberam e

dançaram a noite inteirinha!

Olodumare finalmente mandou Bará-Exu pregar aquele Tratado de Paz

num poste que ficava em uma ilha, para que um dia a Humanidade pudesse

saber tudo aquilo que se sucedeu!

E mais alguns Tratados Olodumare fez entre Seus Grandes Filhos, na

Partilha do Mundo, antes que Ele deixasse os negócios da família ao encargo

de Seus Filhos Grandiosos!”

Naquele dia O Contador de Histórias estava lendo o Tratado que foi

fixado naquela ilha... estava nas Ilhas do Hawai7, no poste da cerca que

separava as lavas do Kilauea do Oceano Pacífico. Oceano que recebeu aquele

6 N. A.: São as Placas Tectônicas. Tais Placas levam à superfície da Terra a preciosa energia geotérmica. Esta energia é eliminada em cadeias vulcânicas as quais fazem as Placas crescerem; este crescimento é controlado de forma cíclica quando uma Placa perde energia e afunda por sob outra, retornando ao manto da Terra. 7 N. A.: Graças às pesquisas acadêmicas de campo que o Arquipélago do Hawai proporcionou, dentre outras pesquisas científicas, a teoria das Placas Tectônicas conseguiu firmar-se por meio de amplas evidências.

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nome por estar inscrito em sua memória cada linha da Pacífica Paz que por

ali surgiu!

Ah, se o surfista Charles Darwin8 tivesse escolhido também, além das

Ilhas Galápagos, o Arquipélago do Hawai para surfar... que ondas maneiras e

tubos incríveis Charles teria pegado no embalo daquele Tratado!

8 N. A.: As Ilhas Galápagos foram um dos locais que mais fortes evidências forneceram ao naturalista britânico Charles Robert Darwin (1809 - 1882) – em suas viagens a bordo do navio HMS Beagle, como naturalista da nau sob comando do Capitão Fitzroy, entre os anos de 1831 a 1836 – para elaborar sua Teoria da Evolução por meio da Seleção Natural, publicada em 1859 em seu livro “A Origem das Espécies”. Tal teoria tornou-se a grande força unificadora que liga, junto com a Célula, todos os conceitos da Biologia.

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eee aaa PPPaaassstttooorrraaa dddeee CCCaaabbbrrraaasss

Certa feita, a Pastora de Cabras de Kwando estava muito triste...

Era Dia dos Namorados... e ela estava absolutamente sozinha!

Andou o dia todo macambúzia... por toda a parte passavam por ela suas

amigas, de mãos dadas com seus pares, tão sorridentes... e ela: nada! Sentia-

se mais no seco do que o Deserto do Calahari!

Foi então que ela se sentou, emburrada, na grande pedra à beira da longa

estradinha poeirenta, na mesma Encruzilhada em que estava sentada certa

pessoa...

Aquela pessoa havia se sentado na Encruzilhada porque estava a pensar e

sentir qual das várias estradas novas que nasciam naquele entroncamento

viário lhe seria mais propícia seguir naquele momento.

Aquela pessoa havia nascido e crescido sempre em sua Aldeia, dela

nunca havia saído: até o dia em que algo aconteceu...

Parecia que aquela imensa estradinha poeirenta, que ligava sua Aldeia

Natal a infinitas outras Aldeias mundo afora – inclusive com a Aldeia de

Kwando – lhe havia lançado um apelo, um chamado:

“Venha para mim! Pois desejo levar seus lábios e seu Coração por

muitas paragens para que o Antigo Encantamento do Mundo seja renovado!

Venha para mim!”

E aquele jovem idealista não resistiu e seguiu o seu chamado!

Foram naqueles tempos que seu nome de nascimento acabou sendo aos

poucos esquecido... e conforme ele realizava os apelos de seu chamado, um

novo nome havia sido lhe dado pelas línguas do povo – às vezes confiável, às

vezes inconfiável...

Seu novo nome?

O Contador de Histórias!

E, naquela tarde, sentado naquela Encruzilhada, O Contador de Histórias

viu o olhar acabrunhado da Pastora de Cabras de Kwando.

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Ele já conhecia aqueles olhos: sabia exatamente quando estavam alegres e

quando estavam tristes... mas ainda não desconfiava do porquê daquela

acabrunhamento todo...

Foi quando passou pela estrada uma moça de Kwando – de mãos dadas

com seu par e a Pastora de Cabras virou o rosto para não ver aquela imagem!

– que O Contador de Histórias entendeu tudo!

Pegou uma pequena pedra e colocou ao lado da moça.

Sentou-se sobre aquele pedregulho, calmamente...

Ela estava tão borocoxô que sequer virou o rosto para ele!

O Contador de Histórias ficou por alguns instantes em Silêncio Interior,

como se dentro de Si buscasse algo...

Encontrou!

Foi então que, imerso em seu Silêncio Interior, seus lábios começaram a

entoar, como quem não queria nada, a única coisa que eles sabiam fazer:

Contar Histórias!

E, sem sequer olhar para o lado – apenas olhando para dentro de Si

mesmo, imerso naquele seu Silêncio Interior – de seus lábios emanaram tais

palavras:

“Contava-se antigamente

que um nobre guerreiro, filho de Oxaguiã,

de vestes manchadas pelo sangue

e pesada armadura perfurada pela espada

vagava pelas areias do deserto do Calahari:

plena época de horríveis guerras religiosas!

„Desertor, covarde, traidor!‟

lhe acusavam aquelas vozes entoando marchas

para exterminar quem abraçava uma outra fé.

Vozes agressivas, odiosas,

de quem jamais compreenderia

que a batalha daquele guerreiro,

filho do Senhor da Cultura e da Civilização,

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era bem outra:

Progresso! Avanço! Movimento! Soerguer Civilizações!

Pois ele era um guerreiro filho do Senhor do Pilão:

onde a cultura e o progresso estagnavam-se,

lá estava ele e sua espada

trazendo o movimento renovador!

Assim como o Pilão aperta as raízes intragáveis

transformando-as pelo atrito

em preciosa farinha a abençoar as mais diversas refeições

trazendo vida,

o Movimento da Espada do filho de Oxaguiã

buscava trazer renovação!

Mas que renovação poderia haver numa guerra sem solução

tal como a batalha entre o Continente e o Oceano

em que no final nada dos dois sobraria?

E vagando, só, naquele deserto,

seu coração amargurava-se,

secando no mesmo compasso daquelas tórridas paisagens...

Seus olhos, naquelas intermináveis noites gélidas,

contemplando a imensidão do firmamento,

sentia verde inveja das Estrelas:

- Ó, luzes da abóbada celeste,

vós que viveis em harmoniosa companhia umas das outras,

cercadas de Amor e Crescimento,

despertam terrível inveja de vossa Felicidade!

Será meu destino morrer assim, seco?

E, assim, ele vagou...

Até que um dia,

chegando numa rara fonte de límpida água,

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exausto, decidiu ficar à beira daquela fonte

e de lá não mais sair.

Desistia de tudo!

O ápice de sua exaustão!

Porém, naquela fonte,

viu uma doce jovem

dando de beber às suas cabras.

A forma tão gentil como a dama tratava seus animais

gentileza tão distante, em todas as formas,

da crueza dos campos de batalha onde Sua Alma abandonou-o,

hipnotizou a atenção do guerreiro!

E ele se pos a mirá-la com cuidado...

Até que a gentil dama,

cuidando de uma cabra doente

que cerrava os dentes, teimosa,

assim lhe disse:

- A água sempre esteve aqui,

mas enquanto tu não abrires teus lábios para ela

viverás sempre seca por dentro!

O guerreiro teve um choque!

Foi naquele momento que ele percebeu

o Mistério Revelado da Felicidade das Estrelas!

As Estrelas estavam completamente abertas para as Dádivas!

Sabiam estar imersas no Amor e no Crescimento

e a Eles jamais se fechavam!

Sequer precisavam do empurrão de sua Espada

para desempacar o avanço e mover a Civilização:

pois as Estrelas jamais param de mover-se,

avançando sempre resolutas em seu devir!

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Foi então que o guerreiro percebeu

que a causa de toda a sua secura

nunca foi a Estúpida Guerra por fé diferenciada,

seu sangue, seu sofrimento e suas lágrimas sem sentido,

mas sim os seus lábios que,

teimosos, cerrados,

se recusavam a perceber a imensidão das Águas

que sempre estiveram ao seu redor!

O guerreiro, naquele momento,

soltou sua Espada

despiu sua armadura

e vestido com simples túnica

passou a cuidar das cabras doentes daquela região!

E sentiu em Si, pela primeira vez,

o que era o Amor!

Sua sede sumiu!

E a Paz, Água preciosa, passou a viver em seus olhos,

em plena época das Guerras Religiosas,

pois nem só de Movimento vive o Crescimento:

mas também de Tranquila Paz!

E sua gentileza para com aquelas cabras

que sequer lhe pertenciam

cativou o olhar da jovem pastora!

E ambos acabaram se enamorando...

E terminaram por cuidar juntos das cabras

e daquela Fonte do Amor!

E tão bem cuidaram de sua Fonte

que ela muito prosperou

pois com a chegada do guerreiro e filho do Senhor do Pilão,

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nascia um novo vilarejo

repleto de possibilidades

que vicejou em pleno Deserto!

E a junção em Amor

da Doçura da Água da pastora, em Tranquila Paz,

com a Firmeza da Espada e Pilão do guerreiro, em Movimento,

gerou uma Nova Civilização

que fez crescer aquelas bandas

do Deserto do Calahari por séculos!

Eis o segredo do fim da seca interior:

não há Amor lá fora...

O Amor está dentro de Você!

Sempre esteve!

E quando você Senti-Lo, pulsante,

só então sua Alma Afim,

Sua Alma Complementar,

lhe surgirá

e brilhará para você

de onde você menos esperaria...

Pois quando há Amor em você,

quem você espera pode estar

até mesmo numa distante e perdida fonte,

dando de beber à simples cabras

também aguardando pela chegada de você

para que algo completamente novo

cresça e floresça em Beleza!”

Dito isso, O Contador de Histórias olhou de soslaio, muito discretamente,

ao rosto da Pastorinha de Cabras de Kwando.

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Os olhinhos dela brilhavam!

A tristeza lhe havia abandonado!

Sem sequer olhar para o lado, um sorriso de missão cumprida tomou o

rosto do Contador de Histórias!

E assim como faz o Vento, O Contador de Histórias levantou de sua

pedra, fitou um dos caminhos novos que nasciam daquela Encruzilhada e

sentiu-se chamado por ele... e assim continuou o seu caminho, estrada afora...

Como o Vento, ele veio e se foi... pois haviam tantas Histórias que

desejavam nascer e ansiavam por serem contadas para justamente quem delas

necessitasse...

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O Leão, o Veado e o Burro

Houve época em que Dama da Encruzilhada andava muito fogosa!

Ela era muito esperta, e tanto Fogo unido à tanta Esperteza, tornavam-na

a caçadora mais fulminante de toda aquela imensa pradaria: nenhuma presa

resistia aos seus encantos!

O Contador de Histórias, sabedor disso, acabou se preocupando com sua

amiga...

Assim, certa vez, num crepúsculo, quando encontrou-a se preparando,

pintando-se e trajando-se para iniciar sua jornada atlética – que terminaria

apenas quando o Sol amanhecesse! – O Contador de Histórias parou perto

dela... e fez a única coisa que sabia fazer: contar Histórias!

Como quem não queria nada, sequer olhou para seus olhos, apenas

começou a falar como se consigo mesmo estivesse conversando:

“Conta-se, pela língua do povo – às vezes confiável, às vezes

inconfiável... – que uma linda e muito esperta moça havia descoberto as

delícias da Fonte dos Prazeres, de onde brotavam Leite e Mel!

E ela se encantou tanto por essa Fonte que dela queria beber até a última

gota!

A fim de ampliar as suas possibilidades de explorar aquela preciosa Fonte

ao máximo, ela foi procurar alguém entendido na matéria.

Consultando esta pessoa, lhe foi determinado que fizesse um Ebó que,

dentre outros componentes, possuía um pedaço generoso do corpo de um

Leão, os chifres de um Veado e o rabo de um Burro. Com essas parcelas, ela

deveria montá-los como se fossem um só ser, e despachá-lo próximo à Fonte

dos Prazeres.

Mas a pessoa entendida da matéria havia lhe feito uma importante

ressalva para que o Ebó não entornasse o caldo e se virasse contra a jovem

moça: ela teria que jamais achar-se mais esperta do que verdadeiramente era,

pois sua Esperteza e todos os seus Dons seriam exigidos ao máximo a partir

dali... caso ela se descuidasse, o Ebó viraria seu karma... mas se ela seguisse

os preceitos à risca, mesmo ela desejando realizar tal empreendimento de alto

risco, o Ebó viraria seu dharma e ela cresceria em todos os sentidos perante

Si mesma!

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A jovem moça fez o Ebó mas não deu muita atenção para a ressalva...

E, com seus muitos encantos, logo ela assim estava:

Numa noite estava abraçada na cama do Leão, ambos crepitando em

chamas... na outra noite estava com o Veado, que adorava os seus cabelos e

não parava de acariciá-los de todas as formas possíveis... e durante o dia

andava com o Burro, que gostava muito de lhe dar presentes comprados no

mercado da Aldeia...

Contava-se assim, pela língua do povo – às vezes confiável, às vezes

inconfiável... – que a jovem moça havia conseguido realizar um sonho que,

dia viria, seria o sonho de consumo das outras moçinhas da Aldeia: havia em

sua cama um fogoso Leão, possuía um Veado cuidando dos seus cabelos e,

finalmente, montava em um Burro que lhe pagava as contas...

Só que a jovem moça não cuidou dos preceitos do Ebó!

Foi que, certo dia, sedentos, o Burro, o Veado e o Leão foram beber Mel

da Fonte dos Prazeres... justamente à mesma hora! Lá eles encontraram o

Ebó...

Quando o Leão viu o procedimento, achou algo familiar: lá estava parte

generosa de seu corpo que lhe estava faltando... Por sua vez, quando o Veado

mirou o procedimento, também encontrou algo familiar: lá estava aquilo que

há tempos não estava mais enfeitando a sua cabeça...

Finalmente o Burro – sempre o último a saber das coisas! – fitou o

procedimento e também viu algo familiar: lá estava a parte de seu corpo que

sempre usavam para o capturar e aprisionar...

Vendo aquilo, o Leão foi ao procedimento para pegá-lo todo pois,

julgando-se o único consumidor da Fonte, tudo o que estivesse por ali

obviamente lhe pertencia.

O Veado e o Burro protestaram imediatamente: também eram

consumidores daquela Fonte e queriam as suas partes!

Ouvindo aquilo, o Leão se enfureceu! E assim rugiu:

- Está bem: eis as suas partes!

E saltou sobre o pescoço do Burro que, em segundos, foi feito em partes e

devorado pelo Leão faminto!

Só não teve mesmo destino o Veado porque, sem seus chifres, correu tão

veloz, mas tão veloz mato fechado adentro, que escapou da sanha do Leão!

E aquela deliciosa Fonte de Leite e Mel secou para a jovem e esperta

moçinha... pois não há Fonte que resista à sede dos três animais ao mesmo

tempo... assim, para quem quiser uma vida tão arriscada, preservando o

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manancial de Leite e Mel, é fundamental sempre estar no máximo alerta para

que o Leão, o Veado e o Burro nunca bebam do precioso líquido à mesma

hora...”

Quando terminou sua história, cadê Dama da Encruzilhada?

Já havia há muito partido para sua tournée noturna! Talvez não houvesse

ouvido sequer metade da História...

Paciência!

E O Contador de Histórias prosseguiu em suas andanças pelo mundo!

Até que, certa vez, havia chegado a um entroncamento em forma de T na

estradinha poeirenta...

Lá chegando, avistou sua antiga conhecida: Dama da Encruzilhada!

Ela porém estava muito abatida... parecia incrivelmente aborrecida...

Querendo saber o porquê daquele semblante sombrio, O Contador de

Histórias lhe indagou o que lhe havia sucedido.

Ela suspirou fundo... e lhe contou que sua vida afetiva agora estava um

caos... tudo porque, por aquelas armadilhas incompreensíveis que só o

Destino sabe armar, seus três ficantes haviam se encontrado casualmente... e

o resultado de tal encontro havia sido de tremer as pernas de qualquer um e

de fazer escoar um líquido quente pelas pernas abaixo: o fluido do medo e do

pavor!

Agora ela estava envolta por um turbilhão de aborrecimentos sem fim...

E o Contador de Histórias apenas podia suspirar profundamente:

- Para quem deseja arriscar-se junto ao Leão, ao Veado e ao Burro, é

fundamental que os três nunca bebam na mesma Fonte de Mel à mesma

hora...

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O Leão de Fogo de Xangô

e a Pantera-Negra

Dizia a língua do povo – às vezes confiável, às vezes inconfiável... – que

certa vez O Contador de Histórias ouvia os lamentos de sua amiga...

Brisa na Campina, desde que se tornou uma moça, era a mais cobiçada

filha dos Ventos de toda a vastidão daqueles campos!

Ela se movia com seus cabelos negros – emoldurando sua silhueta

cuidadosamente entalhada pelos Orixás – como a mais sensual dentre todas

as filhas de Yansã que já viveram naqueles campos!

E ainda, para completar aquela vívida obra de Arte que ela era em si

mesma, Brisa na Campina possuía um olho ligeiramente mais claro do que o

outro: o que tornava o seu olhar de uma fulminante beleza!

Mas, mesmo sendo tão bela, ela sentia tanta sede... sede de algo que ainda

não sabia o que era... e para tentar aplacar a sua sede ela passou a aproveitar

os dons dos Orixás – esculpidos em sua formosura! – tornando-se sem o

saber numa feroz predadora que devorava os corações dos homens que

ousassem cruzar por aqueles campos fitando em seus olhos...

Todavia, por mais corações que Brisa na Campina devorasse, sua sede

permanecia horrivelmente dolorosa: por vezes parecia até mesmo ampliar-se!

Foi numa noite, em que sua dor estava latejando tão forte, que Brisa na

Campina sentou-se à frente do Contador de Histórias e lhe confessou o

quanto estava sentindo-se infeliz...

O Contador de Histórias?

Ouvia-a, compadecido... porém jamais a fitava nos olhos... pois sabia ele

que os olhos de Brisa na Campina eram a base de seus misteriosos Arcanos e

que estes poderiam facilmente encantá-lo... e se encantado fosse, não haveria

outra opção para Brisa na Campina senão esta: devorar o seu coração!

Assim, buscando acalentar sua perigosa amiga, o Contador de Histórias

fez a única coisa que sabia fazer: contar histórias!

E de seus lábios, sem fitar os olhos dela em momento algum, sopraram as

seguintes palavras:

Page 23: O Contador de Histórias... e outras histórias

O Contador de Histórias... e outras histórias

23

“Numa frondosa Floresta, Selvagem,

absolutamente Virgem,

vivia uma Pantera-Negra.

Ela era muito dona de si:

tão confiante de suas garras, de suas unhas

e de sua incrível elegância felina,

posto que ela já havia duelado com muitos Lobos e Chacais

e já os havia colocado sob suas patas!

Sua lista de vitórias em duelos era imensa

em todas as estradas daquela Floresta!

Mas dentre todos os caminhos

na parte mais misteriosa dos limites daquela Floresta,

havia uma Antiga Pedreira

e nela o Caminho da Bifurcação,

local onde a estrada se dividia em duas.

Porém, bem ao lado do Pórtico do Caminho da Bifurcação,

postado como se fosse uma estátua de uma Antiga Deidade,

havia um Guardião:

o temido Leão de Fogo de Xangô!

O Guardião da Antiga Pedreira!

Aquele incomum Ser, a postos, como uma temida Esfinge,

como se fosse feito de Fogo e Pedra,

para cada viajante que por ele passava,

para cada criatura da Floresta que cruzava aquele Pórtico,

pronunciava, antes que elas escolhessem

qual dos dois caminhos a seguir, que nasciam da Bifurcação,

o seguinte vaticínio:

“Decifra-Te a ti mesmo, ou devore-Se!”

Page 24: O Contador de Histórias... e outras histórias

A. Mayer

24

Só o Olhar em Chamas daquele Leão mitológico

já estimulava todos os animais da Floresta a pensarem muito melhor

sobre si mesmos!

E todos os animais, depois de muito pensar,

alguns com profundo medo e ansiedade,

temendo até fitar a Juba Fogosa do Guardião,

quanto mais os seus Olhos Flamejantes,

todos, sem exceção, sempre faziam a mesma pergunta:

“Senhor Guardião, o que tu me aconselhas a fazer?

Qual estrada escolho?”

E todos os animais recebiam dele,

apenas o silêncio gélido e marmóreo,

tal qual a lápide de uma pedregosa sepultura, como resposta!

Porém, quando os viajantes estavam a iniciar a jornada pelo Caminho que

escolheu,

do qual não havia mais retorno,

parecia que o Leão de Fogo conseguia prever o futuro daquele viajante...

Mas mesmo vendo o futuro,

o justo Guardião apenas limitava-se a dizer, em tom alto,

quando o animal se afastava, tomando o Caminho que escolheu

o seguinte vaticínio:

“Tu és sempre livre para escolher. Mas tu sempre és o fruto das tuas

próprias escolhas! Tu és totalmente responsável por ti mesmo!”

Foi assim que, certa vez, a sensual Pantera-Negra,

depois de muito e muito andar pela Floresta,

estando nos limites desta, na Antiga Pedreira,

acabou topando com o Leão de Fogo e a Bifurcação que ele guardava!

A Pantera e o Leão cruzaram olhares:

um duelo apenas narrado por suas pupilas!

A Pantera mirou para os dois Caminhos.

Page 25: O Contador de Histórias... e outras histórias

O Contador de Histórias... e outras histórias

25

Nenhuma palavra foi dita entre os dois grandes predadores!

E naquele momento, o Arcano do Leão o fez ver o que aguardava a

Pantera:

Se ela escolhesse o Caminho que descia até a planície... ela terminaria em

um vale inundável... onde havia um Labirinto!

Lá ela encontraria os oponentes que ela nunca esperaria encontrar: os

temíveis Lobos Gigantes dos Pântanos!

Diferentemente dos pequenos Lobos e Chacais da Floresta que ela

conhecia tão bem, os Lobos Gigantes dos Pântanos possuíam o mesmo

tamanho, peso, porte e agilidade da Pantera-Negra!

E diferente dela, atacavam sempre em bandos... e eram cruéis: nunca

davam um único golpe letal! Matavam lentamente suas presas...

A Pantera, no alto de sua autoconfiança, jamais acreditaria que seria

lentamente carneada... dividida gradualmente aos pedaços para a matilha...

ela, que sempre foi uma predadora, jamais imaginava que seria a presa!

Os Lobos Gigantes dos Pântanos a devorariam devagar, até que só

sobrassem seus ossos... e quando os ossos perdessem a graça, ela seria

abandonada no fundo do Pântano... junto com as outras carcaças das outras

Panteras...

Sim... o Antigo Leão de Fogo já havia visto muitas outras Panteras, de

todas as cores e tamanhos, no auge de sua elegância e porte, terem aquele

destino...

Mas o Arcano do Guardião do Pórtico da Antiga Pedreira também viu a

outra opção da Pantera-Negra:

Se ela escolhesse o Caminho que subia, até um planalto... ela terminaria

numa savana... lá havia uma riquíssima Mata, repleta de caça abundante e

fartura! E onde ela encontraria os aliados que ela nunca esperaria encontrar:

os nobres Leões de Oxossi!

Diferente de todos os outros grandes predadores, os Leões de Oxossi

sempre dividiam sua caça com aqueles que buscavam sinceramente a sua

companhia!

Eles não se ocupavam em tirar.

Eles se ocupavam em compartilhar e trocar as suas riquezas!

E, principalmente, os Leões de Oxossi apreciavam compartilhar a maior

de todas as riquezas: era a companhia que eles ofereciam que ensinavam o

tesouro de viver em harmonia em Si mesmos!

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A. Mayer

26

O Leão de Fogo de Xangô fitou severamente a Pantera-Negra

e ela sustentou o seu olhar!

Foi um olhar de reconhecimento e profundo respeito mútuo entre dois

grandes predadores!

A Pantera-Negra, finalmente, abaixou a sua cabeça, pensativa...

Qual Caminho escolher?

E diferente de todas as outras Panteras e animais da floresta,

a Pantera-Negra,

mesmo com toda a sua força e suas infindáveis vitórias,

que a teriam tornado um Pantera arrogante como as outras

que hoje jaziam no fundo do Pântano,

foi a única que não teve medo de assim falar ao Leão de Fogo,

com humildade e respeito:

“Antigo Guardião da Pedreira... não sei se mereço ou não mereço

compartilhar de tua Sabedoria que vem de tua Antiguidade... não desejo que

tu me digas qual Caminho devo escolher, pois isso é decisão que sempre

caberá a mim... mas gostaria que tu me ajudasse a ser mais Sábia, para que

eu possa escolher por mim mesma, um dia, qual dentre os dois Caminhos da

Bifurcação que eu realmente mereço!”

Aquela frase chocou o Leão de Fogo!

E, conta-se que pela primeira vez,

o Antigo Guardião daquela igualmente tão Antiga Pedreira

imponentemente sentou-se!

A Pantera-Negra, vendo isso

sentou-se também!

E os dois começaram o Diálogo dos Diálogos:

aquele que enriquece os dois dialogantes ao mesmo tempo!

E assim contavam os mais antigos moradores daquela Floresta

que foi assim que nasceu,

embalado pelos sentimentos de Justiça e busca pela Sabedoria,

o profundo Amor entre a Pantera-Negra e o Leão de Fogo de Xangô!”

Page 27: O Contador de Histórias... e outras histórias

O Contador de Histórias... e outras histórias

27

Ninguém jamais soube, ao certo, o que aconteceu após aquele encontro

entre Brisa na Campina e O Contador de Histórias...

Alguns disseram que aquela Campina ainda permanecia um local muito

perigoso: era lá onde o coração dos viajantes poderia ser arrancado e

devorado a qualquer momento por uma Brisa sedenta que transformava-se

em Pantera...

Outros, porém, afirmavam algo muito diferente...

Diziam que Brisa na Campina havia aprendido a lidar com seus Dons e

Arcanos dos Ventos e que, desde então, o seu cálido sopro passou a abençoar

a face dos viajantes, trazendo nutrição e Vida por toda a extensão daqueles

campos verdejantes!

Pois, assim contava-se, que ela havia finalmente se tornado,

verdadeiramente, a Beleza dentre as Belezas do Reino de Yansã!

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28

Quando Exu e Pombagira

foram visitados por Jesus

na Catedral

Houve um tempo em que moçinha Intolerância – mui fogosa, porém

reprimida... – roubava toda a tranquilidade do Contador de Histórias: ele não

tinha mais paz pois a moça corria atrás dele o tempo todo, com um certo livro

embaixo de seu braço, para convertê-lo e doutriná-lo à sua fé...

E o pobre Contador de Histórias não sabia mais o que fazer para ter sua

Paz de volta!

Intolerância era moça baixinha... mas o que lhe faltava de estatura,

sobrava-lhe de invocada! Andava com seus longos cabelos loiros, sua longa

saia varrendo as ruas, atrás do Contador de Histórias para “salvar” a sua

Alma e levá-lo ao “Bom Caminho”...

Quando a via nas ruas, O Contador de Histórias tentava fugir, mas nem

sempre conseguia: sua algoz era incrivelmente veloz!

E ainda mais veloz porque havia encasquetado na sua missão de “salvar

aquele pobre pagão”...

Tentando ser educado, ele apenas a ouvia falar... e falar... sempre

referenciando-se ao certo livro debaixo de seu braço... e ela falava... e como

falava... e falava ainda mais!

Por vezes soterrado naqueles escombros de palavras em erupção daquela

boca veloz como uma AK47, O Contador de Histórias revirava os olhos para

cima, suspirava fundo, e pensava consigo mesmo:

“O que a falta de prazer na cama e a repressão do Fogo íntimo não faz

na vida de uma pessoa, heim?! Torna-a insuportável! A faz sempre correr

atrás de conflito... Putz, faça Amor, não faça Guerra!”

E o Contador de Histórias tolerou Intolerância naqueles dias...

Até que, certa feita, mocinha Intolerância foi pé por pé no portão da casa

do Contador de Histórias e colocou em sua caixa de correspondências a

seguinte historinha, em mais uma de suas tentativas de convertê-lo na marra:

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O Contador de Histórias... e outras histórias

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>>Satanás e Jesus9 estavam conversando. Satanás acabava de ir ao

Jardim do Éden e estava fazendo graça e rindo, dizendo:

- Sim senhor. Acabo de apoderar do mundo, cheio de gente lá embaixo.

Eu armei a eles uma armadilha, e usei uma isca que sabia que não poderiam

resistir. Caíram todos!

- O que vai fazer com eles? Perguntou Jesus.

- Ah, vou me divertir com eles. Respondeu Satanás. Vou ensiná-los como se casar e se

divorciar, como odiar e abusar um do outro, a beber e fumar... Realmente vou me

divertir!

- Quanto quer por eles? Perguntou Jesus.

- Ah, você não quer essa gente. Eles não são bons. Porque os salvaria?

- Quanto? Perguntou novamente Jesus.

Satanás olhou para Jesus e respondeu:

- Todo o seu sangue, suas lágrimas e sua vida.

Jesus Disse:

- FEITO!

E assim foi pago o preço.

>>Notas: Não é curioso o quanto é fácil depreciar a Deus e logo perguntar-

se porque o mundo está indo para o inferno?

>> Não é curioso como alguém pode dizer 'Creio em Deus' e seguir a Satanás?

>>Não é curioso que enviem milhares de mensagens com piadinhas pelo e-

mail, as quais se espalham como pólvora, mas quando começa a enviar mensagens

que se referem ao Senhor, a gente pensa duas vezes antes de compartilhá-las?

>> Não é curioso que quando chega o momento de re-enviar esta mensagem, você a

deixará de enviar a muitas das pessoas que estão registradas na sua lista de contatos,

pois não está certo(a) do que vão pensar de você?

>> Não é curioso como as pessoas podem estar mais preocupadas com o que os

demais pensem deles do que o que Deus pensa?

>>Oro por todos aqueles que re-enviar esta mensagem a todos os destinatários de

suas listas de contatos, eles serão abençoados por Deus de uma maneira especial.

Que o Senhor os abençoe grandemente!

Eu a envio porque não me envergonho de Jesus, e quero que todo mundo saiba que o

amo com todo meu coração, aquele que morreu por mim, naquela cruz!

E você se envergonha de Jesus?

Quando leu isso, O Contador de Histórias sentiu um estranho faiscar em

seus olhos! E um sorriso matreiro – que parecia ter sido tomado emprestado

de Exu! – fez-se presente em seus lábios!

Na manhã seguinte, quando mocinha Intolerância acordou e foi ver sua

caixa de correspondências no portão de sua casa, lá dentro estava a folha de

9 N. A.: o texto aqui citado foi recebido pelo Autor, em uma típica corrente de mensagens circulante na internet. Como usualmente ocorre neste tipo de troca de recados (scraps) padronizados, não havia forma alguma de buscar-se a fonte original. Assim sendo foi impossível referenciar a fonte.

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papel que ela mesma havia colocado na caixa de correspondências de uma

certa pessoa... E ela notou que atrás de sua folha de papel havia algo escrito...

Ela conhecia aquela famosa caligrafia!

Sentiu-se vitoriosa!

Havia conseguido uma resposta! Ele certamente havia sido salvo: tornara-

se um convertido!

Muito entusiasmada, moçinha Intolerância – moça danada, como chiclete

no solado! – começou a ler o manuscrito:

“Certa madrugada, resolveu Jesus visitar Exu e Pombagira na boate que

era próspera propriedade do casal: um belo prédio chamado „Catedral‟...

Vendo aquele hippie de cabelos compridos bipartidos, barba longa, olhos

tranquilos e todo trajado de branco entrando em seu estabelecimento, Exu

falou muito contente e orgulhoso:

- Jesus, você por aqui! E logo eu que achava que você não gostava de

mulher!

Perante recepção tão efusiva, o jovem hippie falou entre constrangido e

desapontado:

- Estou aqui para converter essas pobres almas!

Ao ouvir isso Exu buscou ser hospitaleiro:

- Tudo bem, como você quiser... Mas antes vem cá que eu te pago uma

cachaça, e te garanto: é marafo da boa!

O jovem hippie arregalou os olhos e afirmou um tanto aborrecido:

- Eu não bebo, Exu!

Foi a vez de Exu arregalar os olhos:

- Tudo bem, cada um na sua... mas e aí, vai querer uma dama como

companhia? Só para um bate papo inocente...

O jovem hippie resmungou:

- Mas você só pensa em mulher, Exu?

Dito isso, Exu arregalou ainda mais os olhos, dizendo:

- Oras?! Mas há outra coisa melhor para se pensar? Sou o Portador do

Arcano da Virilidade e da Vitalidade, o que você quer que eu faça?! Mas,

putz... você não transa e também não bebe?! Vai converter quem então?!

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O Contador de Histórias... e outras histórias

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O jovem hippie ficou visivelmente emburrado com essa afirmação

absurdamente espontânea de Exu e respondeu, seco, erguendo o queixo:

- Vou converter aqueles que quiserem levar a sua cruz, se arrepender dos

seus pecados, viver em penitência, em castidade e em obediência ao Livro

Sagrado!

Exu não se aguentou e deu uma enorme risada!

Foi então que ele pegou Pombagira – que estava ali por perto, atendendo

alguns clientes enquanto dava uma inocente dançadinha – colocou-a em seu

colo, tomou um bom gole de Velho Barreiro® 10

no bico da garrafa e disse:

- Cara, você tá out! Isso de pecado, de sofrimento, de penitência, de

culpa, de seguir regrinhas enrijecidas de livrinhos embolorados não cola mais

na Pós-Modernidade não! As pessoas estão mais espertas: elas querem agora

os mesmos prazeres e as regalias que alguns Doutores das Igrejas sempre

tiveram: Palácio de Verão, Dízimo, amantes, regalias nos Hospitais, Carro

Oficial da Igreja, a Ajuda de Custo de milhares de reais por mês que alguns

Pastores de Rebanhos ganham, enfim... quem é que vai querer viver hoje em

dia na dureza, compadre?

O jovem hippie revirou os olhos para cima, suspirou profundamente e

disse:

- Se eu não conhecesse você desde que eu era um garoto, diria que você é

Satanás me tentando outra vez, Exu!

Exu deu uma risada, muito contente:

- Hahaha! Satanás eu não posso ser, porque sou muito mais antigo que

ele! Sou uma Divindade antiga pra dedéu! E você bem sabe que quem te fez

guarda e proteção lá naquele deserto fui eu! Você lembra dos velhos tempos?

Dito isso, o jovem hippie soltou um olhar saudosista:

- E como lembro... bons tempos...

Nisso, Exu colocou a mão esquerda no ombro do amigo e disse:

- Pois é! Me lembro das suas artes! Desde que você era um garotinho, era

tinhoso: transformando água em vinho naquele casamento em Canaã, dando

um porre grátis para aquele povo todo... dançava nas festas, comia na casa

dos amigos toda a hora, até aquelas guloseimas refinadas na casa do Zaqueu,

lembra? Que garoto promissor! Mas agora virou esse velho todo careta aí...

10 Nota do Autor (N. A.): todas as marcas de produtos de empresas citadas nesta obra estão em itálico e seguidas pelo símbolo © a fim de preservar-lhes todos os direitos legais.

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com essa cara tristonha, parecendo precisar duns Prozac®

... O que houve,

cara?! Você ficou triste agora, nessas de não curtir a vida!?

O jovem hippie ficou completamente sem jeito ao ouvir aquilo,

principalmente no tocante à sua vida boêmia no passado...

Exu não se deu por satisfeito:

- Mas olha para mim, meu jovem! Você acha que eu fico careta com o

passar dos anos? Vovô?! Peça de Museu?! Ou que tomo essas boleta dos

brancos para espantar tristeza? Capaz, pois sou a Deidade Africana das

Encruzilhadas, do Elemento Terra, da Virilidade e dos Prazeres que trazem

Alegria de Viver! E Pombagira, aqui no meu colo, tem atributos

complementares aos meus! E note bem: quer coisa que dá mais Alegria de

Viver aos mortais do que dormir abraçadinho numa pessoa gostosa e beber

um bom marafo junto com os amigos? Alegria, Jesus, esse é o caminho! Sai

dessa de sacralizar a dor e o sofrimento da cruz! Putz, aquilo virou trauma

para você que nem Freud explica!?

Quando Exu falou em trauma, o jovem hippie chegou a ter um calafrio,

tremendo todo! Exu notou que bateu no ponto:

- Esquece aquela droga de cruz, aquilo já era, cara! Aquilo tá out! Deixa

lá no passado, deixa esse trauma virar pó! E culto ao sofrimento?! Deixa isso

pros infantis de mentalidade medieval e neo-medieval que insistem nisso

mesmo na era do tablet e dos celulares 4G! Deixa pros infantis essa besteira

de santificar o sofrimento... Sofrimento é porcaria, e porcaria nada tem a ver

com as Divindades! Desde quando o Divino é porcaria, é lixo?! Estamos aí

na Era da Internet, da telepizza e do ipod! Prazer com Sabedoria, Jesus: esse

é o caminho na Pós-Modernidade!

Algo pareceu brilhar diferente nos olhos do jovem hippie ao ouvir aquela

antiga Divindade da Natureza, tão antiga quanto o mundo:

- Prazer com Sabedoria? Fale mais sobre isso...

Prontamente seu velho amigo prosseguiu:

- Claro! Se destruir em prazeres tolos é burrice... pois é tolo todo o prazer

que não nasce da Íntima Natureza, especial e única, que reside em cada ser

vivo, em cada filho de Deus, Olodumare! Esta Íntima Natureza é a própria

expressão de Olodumare vivendo dentro de cada pessoa! E desde quando

Olodumare seria sádico ou masoquista desejando sofrimento e evitando o

prazer em sua própria auto expressão, que são Seus filhos?!

O jovem hippie ouvia com atenção.

Exu, O Grande e O Antigo, prosseguiu:

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O Contador de Histórias... e outras histórias

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- E o Prazer de se Viver surge quando se aprende a ouvir com Sabedoria

os pedidos de prazer de seu corpo, os pedidos de prazer de sua mente, os

pedidos de prazer de sua Alma e os pedidos de prazer de seu Espírito onde

Olodumare mesmo vive! O Supremo Prazer de Existir – também chamado

Libertação! – surge quando estes prazeres são unidos através da poderosa

cola chamada: Sabedoria! É isso que leva ao Reino dos Céus, aqui mesmo na

Terra, rapaz! Natureza, cara! Estar em Harmonia com a Natureza dos Deuses

Antigos que pulsam em Seus Filhos, sem nenhum pudor, sem repressão

alguma, sem culpas, absolutamente livre como as aves do céu e os lírios do

campo: eis o caminho da Felicidade e da Libertação Espiritual!

Jesus, o jovem hippie, estava incrivelmente pensativo!

Fazia tanto tempo que ele não falava com seu velho amigo que havia se

esquecido do quão esperto e sábio ele era!

Foi então que o jovem hippie percebeu que Exu e Pombagira roçavam-se

deliciosamente um no outro, de forma tão carinhosa que pareciam que

fiozinhos de ternura partiam de ambos, ligando-os...

Parecia até que aqueles fiozinhos estavam nutrindo Exu e Pombagira

mutuamente, dotando-os de imensa graça, energia, alegria e um brilho

fulgurante que apenas o Amor abençoado por Exu e Pombagira é capaz de

realizar na química mágica do roçar dos corpos apaixonados!

O jovem hippie fitou aquela cena imensamente profunda, que os olhos

dos não-Iniciados são incapazes de vislumbrar: percebia Pombagira tão

nutrida, toda faceira no colo de Exu, abraçando-o e sendo fogosamente

abraçada... e como ambos riam e sorriam tão felizes, emanando aquele brilho

todo especial que apenas um Coração e um Corpo Nutridos Afetivamente são

capazes de emanar... foi então que o jovem hippie acabou se lembrando com

carinho de quão verdadeiramente graciosa e especial era uma mocinha

chamada Maria Madalena...

E, lembrando daquela Maria toda especial, uma beleza única de Deus, foi

que Jesus acabou sorrindo feliz!

Vendo este sorriso, Exu percebeu que havia concluído sua Divina

Missão! Pegou seu charuto cubano®, deu uma larga baforada, enquanto se

roçava alegremente em Pombagira e disse:

- E aí, Jesus, bebe comigo nessa madrugada, aqui na Boate Catedral?

Jesus, o jovem hippie, respondeu assim, chamando com o dedo o garçom:

- Traz aqui para Exu mais um Velho Barreiro©, e para mim uma Coca-

cola® com limão e gelo! E ponha na conta do Meu Pai! Pois Deus te pague!

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Ao ouvirem isso, Exu e Pombagira caíram na risada! E a Alegria naquele

lugar não teve mais hora para acabar!”

Quando os olhos de Intolerância, moçinha danada, terminaram de ler

aquela História... ninguém jamais soube ao certo dizer o que se sucedeu!

Mas a língua do povo – às vezes confiável, às vezes inconfiável... –

afirmava categoricamente que O Contador de Histórias, desde então, passou

novamente a viver numa deliciosa tranquilidade, imerso num Oceano de Paz

que há muito ele não saboreava!

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O Contador de Histórias... e outras histórias

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A Grande Fazenda

Menino da Pedreira estava muito amuado naquela manhã...

Ao largo da estradinha, que cortava a imensa Pedreira de seu Pai, ele

pegava uma ou outra pedrinha e a jogava ao longe...

Tentava se animar... mas isso não estava funcionando...

Numa dessas, pedra vai, pedra vem, quase que ele acertou sem querer a

cabeça do Contador de Histórias, que por ali passava!

O garoto pediu mil desculpas... e lhe explicou que estava muito borocoxô

naquele dia...

O Contador de Histórias logo viu que seu pequenino amigo não estava na

sua alegria habitual e perguntou o que se sucedia.

Menino da Pedreira disse que andou passeando pelo mundo e havia visto

muito sofrimento... havia percebido que seu Pai e Sua família ajudavam a

tantas pessoas em suas dores, combatendo o sofrimento, mas via como Eles

recebiam tantas vezes como pagamento a incompreensão e a ingratidão!

Reclamou que as pessoas lembravam tantas vezes de Sua família apenas

nas horas difíceis... e quando as coisas amainavam, tinham vergonha de

mostrar aos outros que a Eles recorreram! Seria sempre assim?

O Contador de Histórias compreendeu a angústia do garoto...

Matutou e matutou uma forma de animar Menino da Pedreira...

O Contador de Histórias então resolveu fazer a única coisa que sabia

fazer: contar Histórias!

Foi assim que de seus lábios saíram estas palavras:

“Conta-se que há muito tempo atrás, 30111

Grandes Empreendedores –

todos lindamente diferentes entre Si, cada um sendo Senhor e Senhora de um

11

N. A.: Para os Iorubás, o número 301 significa “muitos, incontáveis”. De forma análoga, o mesmo simbolismo numérico ocorre em outras culturas: para os Hebreus tem-se o 70x7 (setenta vezes sete); para os Hindus tem-se o 1000 (o chakra das mil pétalas); para ao Antigos Gregos tem-se igualmente o 1000, de onde derivou a palavra “miríade”.

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conjunto diferente de Dons e Arcanos! – decidiram realizar um grandioso

empreendimento!

Eles criariam uma grandiosa fazenda: tão grande, rica e próspera que seria

do tamanho de um mundo!

Assim, foi fundada a Cooperativa Grande Fazenda!

E os 301 Grandes Empreendedores começaram a criar os seus primeiros

animais: as Cabras!

Só que havia uma imensa Floresta, repleta de Labirintos, ao lado da

Grande Fazenda, e algumas Cabras acabaram se aventurando por lá, se

perdendo...

Aquelas Cabras?

Acabaram tomando gosto pela vida na Floresta e, com o passar do tempo,

foram sofrendo mutações incríveis: de dar inveja a qualquer plantador de soja

transgênica!

As Cabras desgarradas foram perdendo completamente o contato com

suas origens na Grande Fazenda e isso se refletia em seus corpos, geração

após geração: dentes grandes e afiados começaram a surgir, um olfato cada

vez mais apurado por sangue, e uma cada vez maior ferocidade... as cabras

finalmente se transformaram nos sanguinários Lobos da Floresta!

Porém, dentre esta nova espécie que surgia, alguns eram os mais ferozes

dentre os ferozes e os mais vorazes dentre os vorazes: e eram tão terríveis

que comiam até mesmo os outros Lobos se estes se descuidassem... nascia a

mais monstruosa dentre todas as espécies: os gigantescos Lobos do Abismo!

E o que se sucedeu?

Os Lobos da Floresta, atraídos pelo odor saboroso de suas ancestrais – as

Cabras da Grande Fazenda! – lançaram ataques: e as Cabras começaram a ser

exterminadas pelas mandíbulas dos novos predadores!

Foi nesse estado de coisas que os 301 Grandes Empreendedores

deliberaram que precisariam contratar os serviços de alguém.

Foi então que a Empresa de Segurança Cão Pastor LTDA foi contratada e

começou a operar na Grande Fazenda!

Assim foi que os Cães Pastores começaram a morar junto às Cabras,

protegendo-as da sanha dos Lobos da Floresta.

Finalmente tudo ia muito bem!

Cabras e Cães Pastores formaram uma ótima parceria!

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O Contador de Histórias... e outras histórias

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Porém, não era dos Planos dos 301 Grandes Empreendedores que as

Cabras ficassem para sempre fazendo as coisas de Cabras. Elas não poderiam

ser Cabras para sempre! Precisariam aprender muitas coisas, pois não haviam

limites às potencialidades das Cabras!

Decididos a fazer as Cabras prosseguirem evoluindo, os 301 Grandes

Empreendedores convidaram as Ovelhas para irem ao empreendimento,

compartilhando as muitas coisas que sabiam com as Cabras.

E foi assim que as Ovelhas começaram a morar na Grande Fazenda!

As Ovelhas afirmavam às Cabras que elas poderiam ser mais do que

simples Cabras: que elas poderiam sempre ousar na sua inalienável vocação

de Ser Mais!

Foi assim que as Cabras começaram lentamente a compartilhar das

riquezas que traziam as Ovelhas... mas a aprendizagem estava muito lenta!

Pobres Cabras: tinham tantas dificuldades em entender as poucas Ovelhas

que com elas conviviam!

Foi assim que os 301 Grandes Empreendedores se reuniram e deliberaram

que, para o bom andamento dos negócios da Grande Fazenda, era necessário

que uma maior quantidade de Ovelhas começassem a nascer. Pois assim, na

intimidade da convivência entre tantas Cabras e tantas Ovelhas, o

crescimento de todos se daria!

E assim aconteceu: nasceram tantas Ovelhas que Cabras e Ovelhas agora

conviviam muito intimamente e aprendiam muito umas com as outras!

Porém, o odor das Ovelhas era muito intenso... e inebriante para o mais

terrível predador dentre os predadores: os Lobos do Abismo!

Nada lhes havia de mais apetitoso do que um pernil de Ovelha!

Famintos, estimulados por aquela flagrância emanada pelas Ovelhas, eles

finalmente saíram das fossas abissais! E eles eram tão grandes e terríveis que

até os Lobos da Floresta os temiam!

O massacre começou!

Ovelhas e Cabras sendo devoradas como o prato principal e os Cães

Pastores tornando-se o aperitivo para o banquete!

Eram necessários dezenas de Cães Pastores apenas para imobilizar um

imenso Lobo do Abismo: quanto mais derrotá-lo!

Cães Pastores, Cabras e Ovelhas agora corriam o risco de... extinção!

Foi então que os 301 Grandes Empreendedores foram para a Antiga

Pedreira... e lá buscaram um pequeno grupo de animais até então esquecidos

e desvalorizados por todos os outros animais da Grande Fazenda... um clã de

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A. Mayer

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animais solitários, temidos e absolutamente incompreendidos quanto aos

Dons e Arcanos que possuíam...

Quem eram?

Os raros Leões da Antiga Pedreira!

Eles eram muito raros... e injustamente muito temidos: pois os outros

animais não compreendiam os mistérios do seu rugido, de seus dentes afiados

e de sua imponente juba!

Os 301 Grandes Empreendedores foram ter com aqueles animais tão

raros... e com eles fizeram um convênio!

Os Leões da Antiga Pedreira poderiam agora morar na Grande Fazenda,

desfrutando de todas as possibilidades que o Empreendimento poderia

oferecer e, em troca, protegeriam todos os animais da Grande Fazenda da

sanha devoradora dos Lobos do Abismo!

Quando os raros Leões da Antiga Pedreira chegaram na Grande Fazenda,

ela estava sob implacável ataque dos Lobos do Abismo!

Imediatamente ouviu-se os rugidos imponentes e furiosos dos Leões e,

com suas jubas gloriosas tremulando ao vento, saltaram por sobre os Lobos

do Abismo!

E houve a mais terrível batalha jamais vista na Grande Fazenda!

Os Cães Pastores, antes completamente acuados, se animaram e também

entraram na luta!

Os Leões da Antiga Pedreira eram maiores que os Lobos do Abismo e

muito mais poderosos! Suas mandíbulas ferozes eram capazes de destroçar

gloriosamente o mais terrível predador que já caminhou sobre o mundo!

Os Lobos do Abismo não tiveram outra opção senão retornar às suas

fossas abissais, aguardando por uma possibilidade futura... afinal, o odor das

Ovelhas era absolutamente irresistível!

Desde então, na Grande Fazenda, convivem as muitas Cabras, as muitas

Ovelhas, alguns Cães Pastores e os raríssimos Leões da Antiga Pedreira...

todos convivendo uns com os outros, aprendendo uns com os outros...

todavia, enquanto é a Empresa de Segurança Cão Pastor LTDA que faz a

guarnição interna da Fazenda, afugentando os Lobos da Floresta, é a Tropa

de Elite dos Leões da Antiga Pedreira que vigiam os Portais da Cooperativa

Grande Fazenda!

Pois são os imponentes Leões, postados nos Pórticos, que mantém todo o

empreendimento a salvo, pois a fome dos terríveis Lobos do Abismo está

ainda mui longe de ser saciada...”

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O Contador de Histórias... e outras histórias

39

Quando O Contador de Histórias terminou sua contação, ele vislumbrou

por um momento o olhar do Menino da Pedreira: seus olhos faiscavam de

alegria!

O Contador de Histórias deu um discreto sorriso... seu trabalho ali estava

terminado!

Foi quando ele fitou a longa estrada que cortava aquela Pedreira... ela era

tão vasta... caso desejasse, haveria ainda muito o que percorrer!

E foi assim que ele pôs-se novamente a caminhar... pois sabe-se lá

quantas Histórias mais seu Coração ainda lhe avisaria que nasceriam para

soar aos ouvidos justamente daqueles que as desejassem...

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A. Mayer

40

......... eee ooouuutttrrraaasss HHHiiissstttóóórrriiiaaasss

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O Contador de Histórias... e outras histórias

41

Quando Moçinha da Praia

sentiu-se rejeitada por um

vampiro

Certa vez O Contador de Histórias sentiu muito medo!

Havia se assustado verdadeiramente!

A causa?

Sua amiga, Moça da Praia, havia lhe confessado que havia se apaixonado

perdidamente por um... Vampiro!

Aos seus olhinhos inocentes, ele era perfeito!

Brilhava à luz do Sol como se fosse feito de diamantes, era dotado de

dotes musicais, e todo o mais necessário para encantá-la!

Mas Moça da Praia estava infinitamente triste... imensamente

acabrunhada porque o Vampiro... a rejeitava!

Não queria se aproximar dela o suficiente para lhe dar a tão desejada

mordidinha... Como ela estava infeliz, pois dizia desejar tanto que a língua

dele se misturasse à dela...

“Cada gosto que aparece por aí... mas gosto é gosto, não se discute...”

pensou consigo O Contador de Histórias ao ver Moça da Praia suspirando

sentada ao seu lado, naquele crepúsculo à beira-mar, ambos sobre aquela

imensa rocha acariciada pelas ondas do Reino de Yemanjá.

Enquanto alugava os ouvidos do Contador de Histórias, contando-lhe as

maravilhas de seu Vampiro, ela lhe contou outras coisas arrepiantes!

Moçinha da Praia estava em terrível dúvida: “será que o Vampiro era

gay?!”

Somente assim ele poderia recusar roçar seus lábios em seu delicioso

pescoçinho, afirmava ela consumida por dúvidas!

E tal dúvida foi tão cruel que Moça da Praia revelou ao Contador de

Histórias que ela procurou um... Lobisomem! E lhe pediu... conselhos!?

Page 42: O Contador de Histórias... e outras histórias

A. Mayer

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O Lobisomem, que odiava ser preterido pelas belas moçinhas – que eram

cada vez mais seduzidas pela concorrência dos Vampiros! – deu uma risada e

assim disse à Moça:

- Quer saber se um Vampiro é gay? Fácil! Pegue-o, agarre-o e lhe dê um

beijo na boca! Se não negar fogo... é macho! Se negar fogo... é gay!

O Contador de Histórias ficou arrepiado!

Mas não sabia se o que o arrepiava mais eram os dentões e a saliva do

Lobisomem – como se quisesse saltar sobre Moça da Praia e devorá-la! – ou

se o que o arrepiou foi a sabedoria da besta-fera: sabedoria tão profunda

quanto uma poça d‟água e tão imensa quanto uma de suas pulgas...

Vampiro... Lobisomem...

Mas, que coisa! Que classe de companhias Moça da Praia havia escolhido

para compartilhar a sua vida!

Sinistro...

Mas o Contador de Histórias apiedou-se tanto de sua amiga...

Ela realmente sofria em seus dilemas...

Assim o Contador de Histórias resolveu agir: contou à Moça da Praia que

havia recebido uma carta de um homem muito sábio!

A maior autoridade internacional sobre Vampiros!

Seu nome?

Professor Doutor Abraham Van Helsing! 12

Este sábio do século XIX, nascido nas terras da Holanda, certamente iria

ter a resposta que salvaria os sentimentos de Moça da Praia!

Obviamente seria uma resposta imersa em todos os preconceitos europeus

do século XIX, pois eram naquelas terras e naquele tempo em que morava o

velho sábio...

A Moça? Queria muito saber o que eminente Professor, a maior

autoridade sobre Vampiros da face da Terra, diria sobre a sua situação!

Os olhinhos dela brilharam:

12 N. A.: Suave paródia, com pinceladas de Sabedoria, que O Contador de Histórias dividiu com sua amiga – ávida leitora de obras literárias versando sobre vampiros – amiga à época que passava por grandes dilemas afetivos. Para tal, o Contador de Histórias inspirou-se no famoso personagem criado por Bram Stoker em STOKER, Bram. Drácula. Porto Alegre : L&PM, 2009.

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O Contador de Histórias... e outras histórias

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Imploravam tanto por ouvir o que ele lhe diria!

E assim O Contador de Histórias retirou do bolso de seus lábios a carta

que Professor Van Helsing havia escrito com carinho para ela, vinda

diretamente da Londres do século XIX... e assim começou a ler a preciosa

epístola:

“Minha cara Senhorita Moça da Praia,

As sutilezas de uma Alma Masculina, de sua Psique, quando se tratar de

um espécime que realmente tenha valor agregado – e não apenas um destes

pobres brutos de feições patibulares condenados a descarregar caixotes no

degradante porto de Londres – são muito mais complexas do que um mero

teste de „corresponder ao agarramento‟ poderiam revelar...

Um bruto, de Cérebro, Coração e Mente pautadas pela crueza,

obviamente comportar-se-ia neste teste como um chimpanzé faminto perante

um cacho de bananas: iria devorá-las!

Mas, mesmo se ele estivesse sem fome e mesmo que a banana não lhe

apetecesse, tal bruto iria devorá-la também!

Por quê?

Para que este fosse socialmente aceito por seus pares primatas,

igualmente tão toscos quanto ele!

Tal chimpanzé é um pobre espécime macho absolutamente inseguro de

sua masculinidade: inseguro porque depende da aprovação de seus pares para

que, ao ouvir os seus aplausos em furor, possa afirmar a si mesmo, em sua

débil mente:

„Vejam, eu sou verdadeiramente um macho! Agora eu sou respeitado!‟.

Seus pares? São igualmente tão inseguros quanto ele. Como frágeis

gravetos, tentam sustentar-se uns sobre os aplausos dos outros...

O resultado positivo a este teste do agarramento, minha caríssima Srta.

Moça da Praia, oferecido por este pobre e tosco símio, apenas revelaria duas

coisas:

Primeira: ou meramente uma bestial fome a ser saciada – e

posteriormente defecada, como sempre é natural a todo processo digestivo;

Segundo: ou nada mais seria que pura insegurança!

Insegurança... ou – na linguagem popular dos becos londrinos onde

Drácula se esgueirava – este espécime macho seria chamado por seus pares

de um „medroso‟, um „cagão‟, um „borra-bostas‟, pois precisa mostrar a

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todos os seus pares e a todas as outras fêmeas que é „um macho‟, e esconder

– a todo pano! – de todos a sua própria insegurança sobre sua virilidade.

E, nesta autoafirmação doentia, este pobre desgraçado símio macho

também faria questão de colocar o nome da banana que devorou em uma lista

– junta da denominação de outras bananas! – e expô-la na convenção dos

símios machos de seu grupo social, dizendo-lhes sob salva de aplausos:

„Vejam, quantas bananas eu já comi! Isso prova a minha virilidade! Isso

me faz ser grande perante vocês, meus pares! Agora eu serei respeitado por

vocês, pois adquiri Poder, um imenso Poder que vocês mesmo me deram

através destes aplausos!‟

Não, não, Srta. Moça da Praia! „Pegar e agarrar‟ não é a regra, senão

para os símios! Sim, tal regra para eles é válida, todavia jamais se aplica aos

Homens, com “H” maiúsculo!

Sou um velho médico holandês nestas terras inglesas, minha cara Srta.

Moça da Praia, e isso me confere a lucidez necessária para poder avaliar o

comportamento dos londrinos.

Dizem que sou inteligente – e talvez, quiçá, eu até o seja, do contrário

jamais teria vencido o Conde em seu próprio castelo na longínqua

Transilvânia...

Portanto, talvez isso me gabarite a lhe afirmar isto, minha respeitável

dama, a quem tanto admiro:

Não, não, um verdadeiro Homem não agiria desta forma neste tolo teste!

Meus olhos já enfrentaram tantas bestas, infindáveis criaturas da noite:

olhos que percorreram Cemitérios nas madrugadas, vistas que caçaram

Mortos-vivos nos becos mais daninhos... isso gabarita-me, adorada senhorita,

a lhe dizer algo tão triste:

Há tantas bestas, bestas-fera e monstros neste mundo, que se lançam

ferozes sobre as bananas... mas são tão, tão raros os Homens presentes neste

mundo!

Aquele olhar profundo de Humanidade, aquela Sensibilidade, aquela

expressão de Perspicácia, aquela preocupação com o real Bem Estar da dama

que lhes afeiçoa o coração: que atributos tão raros de se encontrar neste tão

doloroso mundo, Srta. Moça da Praia! Atributos estes que, se vislumbrados

por mim nos olhos de um exemplar macho, me fariam imediatamente

exclamar, louvando aos céus:

„Eis um Homem!‟

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O Contador de Histórias... e outras histórias

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Este, Srta. Moça da Praia, é muito diferente do pobre chimpanzé macho

que descrevi há pouco – infeliz símio que ainda ousa auto intitular-se

arrogantemente de „Homo sapiens‟...

O pobre desgraçado símio que descrevi anteriormente possui seu órgão

genital no alto da cabeça, no lugar exato onde deveria habitar seu cérebro – e

no meio do seu peito nada se encontra senão uma dura rocha de puro gelo! –

e desta forma, perante a deliciosa banana, ele jogar-se-ia feroz para comê-la,

seja por fome bestial, seja pelo medo do que os seus pares e as outras fêmeas

iriam dele dizer, caso recusasse...

Mas jamais um Homem faria tal coisa, Srta. Moça da Praia!

Ele – o Homem! – obviamente apreciaria, e muito, a doçura da banana em

seus lábios, quando esta se lhe oferecesse! Mas, cavalheiro que é, iria

delicadamente afastá-la de si, respeitoso... e iria tentar principiar a

compreender a bela natureza daquela deliciosa fruta.

O Homem iria perscrutar o que aquela fruta pensa e sente... iria se

aproximar dela com a delicadeza que um fino e raro alimento merece... iria

querer conhecer o que pulsa em seu mundo íntimo... iria cobiçar adentrar em

seu Universo...

Ele – o Homem! – jamais aceitaria a pressão daqueles que para ele não

tem Humanidade em Si: mandaria a opinião deles e delas – e perdoe-me por

assim dizer, ó senhorita Moça da Praia! – ao inferno!

Às galhofas que lhe poderiam lançar, tais como „gay‟ ou quaisquer

aberrações linguísticas que colocassem em dúvida sua virilidade, este – o

Homem! – simplesmente lhes daria de ombros, ignorando-as, pois os sibilos

que vem das serpentes rastejantes são tão baixos que não ecoam em seus

ouvidos no cume de sua Nobreza!

Sim, sim, Srta. Moça da Praia! Assim o seria!

E se aquela fruta verdadeiramente o encantasse – se transmutando em um

sagrado Elixir de Vida perante seus olhos, um precioso dom a lhe abençoar!

– eis que finalmente o Homem iria desejá-la abençoando os seus lábios!

Finalmente ele teria encontrado a língua no qual poderia satisfazer a sua

própria, numa linda dança sagrada, tal qual a Srta. Moça da Praia tanto

desejava!

Portanto, minha adorada Srta. Moça da Praia, lhe suplico!

Preste sempre atenção em quem está perante vosso cacho de bananas!

Avalie sabiamente se perante o cacho se encontra ou um símio – um

pobre „Pan tloglodites‟, destes chimpanzés que tanto abundam sobre a face

destas tristes terras – ou se é um Homem, algo tão raro de vislumbrar-se

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nestes tristes tempos do século XXI em que viveis – tempos em que, ao invés

de ler-se o London Times, assiste-se a Big Brother...

Atente sempre à Sabedoria, ó minha adorada senhorita, e poderás alar-se

um dia à Completude Afetiva, tendo por companhia o fruto de sua sábia

escolha!

Com devoção,

do sempre seu amigo,

Abraham Van Helsing”

Moçinha da Praia ficou muito pensativa ao ouvir a carta do grande

especialista em Vampiros e criaturas da Noite... mas que agora mostrava-se

também como um grande especialista a respeito dos abundantes chimpanzés

e... dos raros Homens!

Porém ninguém jamais soube ao certo o que Moça da Praia fez em

relação ao seu dilema...

Todavia... contava-se que alguns dos moradores locais passaram a vê-la

andando naquela linda Praia Paradisíaca, à beira do Reino de Yemanjá, como

uma investigadora:

Carregando na mão esquerda um microscópio, uma caneta e uma

caderneta de notas... e não mão direita um cacho de bananas...

E contava-se que assim saltava na língua do povo:

A linda Moçinha da Praia agora carregava aquelas coisas todas porque

queria muito investigar e descobrir quem eram os “Pan tloglodites” e quem

eram os Homens!

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O Contador de Histórias... e outras histórias

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Uma antiga Lenda da Campina

Dizia a língua do povo – às vezes confiável, às vezes inconfiável... – que

certa vez O Contador de Histórias se encantou por uma linda moça!

Naqueles dias haviam reuniões na Aldeia... e a linda moça muitas vezes

chegava atrasada e sempre tinha por necessidade sair mais cedo... mas nessas

reuniões, era só ela chegar... e os olhos do Contador de Histórias pareciam

adquirir a moléstia da bússola: teimavam e teimavam em mover-se para um

novo Norte!

Quando ela chegava e sentava-se próxima ao Contador de Histórias... era

quando ele começava a perder-se completamente ao ouvir aquela voz tão

meiga quanto o cântico de uma filha de Oxum...

Não fosse só isso, haviam mais coisas que lhe agravavam os efeitos da

moléstia da bússola:

Que olhos castanhos tão límpidos os daquela moça: tão puros e sapecas

como os de uma filha de Yansã!

E quando ela expressava suas idéias... ah, parecia envolvida na sabedoria

de uma filha de Nanã!

Diziam as más línguas do povo da Aldeia que O Contador de Histórias

havia se apaixonado perdidamente pelo conjunto da obra de formosura que

era a dita moça!

Mas pobre do Contador de Histórias!

A única coisa que ele sabia fazer... era contar Histórias!

E foi assim que, certa vez – num raro momento em que tudo lhe parecia

propício! – de seus lábios saíram essas palavras:

“Contava-se que, certa vez, a Princesa do B611, andando numa estrada à

beira de um Campo de alto capinzal do Planeta Terra, cruzou com a Raposa

Vermelha13

!

E não era um vermelho qualquer não o desta Raposa: era o vermelho

como o Fogo de Xangô moldando o Aço de Ogum!

13 N. A.: Suave paródia à raposa e ao asteróide B612 de O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry. SAINT-EXUPÉRY, Antoine. O Pequeno Príncipe. Rio de Janeiro : Agir, 2006.

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A Raposa Vermelha, porém era muito, mais muito arisca...

De onde vinha tamanha timidez em bichinho tão moço?

Ah, aquela Raposa... ela já havia combatido ferozmente contra enormes

Lobos, recebido tiros de Caçadores e até mesmo picadas de Serpentes... tudo

isso porque ela teimava em proteger aquela Campina e a Vida que ali

florescia, Campina e Vida tão Sagradas para a Raposa! A Campina por onde

a Princesa do B611decidiu passear!

Eram tantas as marcas e cicatrizes de combate no pelo de sentimentos da

Raposa que este mais parecia um mosaico, uma colcha de retalhos viva, do

que a maciez de uma pelagem...

Mas mesmo contra todas as probabilidades possíveis, quando a Princesa e

a Raposa se encontraram naquela Campina, começaram a prosear!

E o papo ia tão gostoso!

Até sobre o tempo eles falavam: a Princesa, manhosa, gostava de Sol de

tarde e Chuva de manhã, pois amava dormir!

A Raposa, madrugadora, gostava de Sol de manhã e Chuva de tarde, pois

amava o perfume do orvalho pela manhã e o aroma de terra molhada à tarde!

E a conversa ia tão gostosa que a Raposa, mesmo muito arisca, fraquejou

eu suas decisões:

Ela desejou confiar na Princesa!

E fraquejou a tal ponto que cedeu ao desejo de ficar mais próxima à

Princesa: ensinou-a um Ritual Mágico!

Se a Princesa fizesse tal Ritual com precisão, a Raposa poderia ser

evocada!

E, dependendo do sentimento da Princesa na evocação, talvez até mesmo

a arisca Raposa pudesse ser cativada!

Caso a Raposa fosse cativada pela Princesa, a linda moça seria a única

mortal capaz de ver as pontas das orelhinhas do Espírito da antiga Raposa

Vermelha de Fogo e Aço vigiando aquele Campina, por dentre o capinzal.

Porque nem as pontas das suas orelhinhas a Raposa permitia ser vista

para quem não a cativasse!

Após ensinar a Evocação Mágica, a Raposa desapareceu novamente entre

a vegetação, acolhida por sua melhor amiga: a Campina que ela protegia!

E a Princesa ao B611 retornou, com o Ritual de Evocação nas mãos...

E como essa antiga lenda da Campina termina?

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Nem mesmo os antigos e sábios anciões sabem.

Nenhum mortal sabe, e talvez jamais saberá...

Apenas Alguém sabe: Aquele que nutre o Capinzal, que nutre a Raposa (e

que mesmo sem ela desconfiar, nutre a própria Princesa!): O Grande

Espírito!

Pois só O Grande Espírito sabe o imenso desafio, de Mente e de Coração,

que é cativar uma arisca Raposa Vermelha...”

Ninguém da Aldeia, nem mesmo os antigos sábios e anciões, souberam o

que se sucedeu quando O Contador de Histórias disse tais palavras àquela

moça tão encantadora...

Porém uma única coisa foi descoberta pelos antigos sábios e anciões: o

nome do Ritual Mágico de Evocação que a Raposa ensinou à Princesa do

B611!

Era um nome incrivelmente especial:

Chamava-se... “o número do celular da Raposa”!

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Quando o Contador de

Histórias teve um comichão

Houve um dia em que O Contador de Histórias soube que alguém

contaria uma bela história na reunião da Aldeia.

Ele compareceu à reunião, se sentou quieto e ouviu atentamente a

contação da história:

>A CANOA14

Em um largo rio, de difícil travessia, havia um barqueiro que atravessava as pessoas

de um lado para o outro. Em uma das viagens, iam um advogado e uma professora.

Como gosta de falar muito, o advogado pergunta ao barqueiro:

- Companheiro, você entende de leis?

- Não! Responde o barqueiro.

E o advogado compadecido:

- É pena, você perdeu a metade da vida!

A professora muito sociável entra na conversa:

- Seu barqueiro, o Sr. sabe ler e escrever?

- Também não! - responde o remador.

- Que pena! - condói-se a mestra - você perdeu metade da vida!

Nisso chega uma onda bastante forte e vira o barco. O canoeiro preocupado,

pergunta: - Vocês sabem nadar?

Não! - responderam eles rapidamente.

Então é uma pena - Concluiu o barqueiro - Vocês perderam toda a vida!

> Não há saber mais ou saber menos: há saberes diferentes.

> Pense nisso e valorize todas as pessoas com as quais tenha contato. Cada uma

delas tem algo de diferente para ensinar...”

Quando O Contador de Histórias terminou de ouvi-la, um comichão lhe

tomou!

Estava se sentindo tão descontente: aquela história era tão curta em

tamanho, em criticidade e contexto!

14

N. A.: O texto aqui citado foi recebido pelo Autor, de uma colega, em uma típica corrente de e-mails circulante na internet. Como usualmente ocorre neste tipo de troca de mensagens padronizadas, não havia forma alguma de buscar-se a fonte original. Assim sendo, foi impossível referenciar a fonte.

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Faltava-lhe cor, faltava-lhe sabor e cheiro: que comida insossa mais

difícil de engolir!

Que decepção!

Mas a língua do Contador de Histórias parecia implorar que ele tomasse a

palavra e recontasse aquela História em uma nova versão... porém ele ficou

em profunda dúvida se, ao fazer isso, não ofenderia os brios do outro

contador de histórias...

Mas o danado do Fogo de seu Espírito parecia lhe queimar por dentro!

Sua língua comichava e coçava a tal ponto que ele não conseguiu mais

aguentar!

E O Contador de Histórias fez a única coisa que sabia fazer: contar

Histórias!

Ele sequer havia percebido que sua língua já começava a se soltar, nem

ouvindo as dúvidas sobre qual seria o comportamento socialmente adequado

que pairavam sobre sua cabeça... e eis a obra de sua língua:

“Quando me contaram esse causo, fiquei meio arrepiado!

Vou tentar contar para vocês.

Havia, no interior do Rio Grande do Sul, pra lá das bandas de Agudo, um

rio.

Certa vez caiu uma chuvarada, uma baita chuvarada... e a ponte da

cidade, sobre o rio, caiu igual mamão maduro.

Sumiu gente, sumiu carro, sumiu de tudo!

Acontece que a cidade que ficava naquelas bandas ficou isolada pelo rio.

O que fazer, se a ponte desabou?

Construir uma nova ponte era complicado: por causa dos engenheiros?

Dos operários? Não... Por causa do Governo Maior que não mandava para o

Governo Menor o dinheiro necessário para reconstruir a ponte...

O povo se organizou então do jeito que pôde, e uma nova profissão surgiu

na cidade, mas uma profissão que na verdade era muito, muito antiga: o

balseiro!

Reconstruíram uma velha balsa, há muito tempo abandonada pelos

progressos da civilização – rodovias, pontes asfaltadas – e chamaram de volta

quem 23 anos atrás operava a balsa: o Nego D‟água!

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Como o INSS lhe pagava muito, muito bem pouco, Nego D‟água aceitou

o novo serviço. Oitenta e oito anos nas costas, cheio de bisnetos, mas com

saúde de ferro.

Só quem estava sempre doente era o bolso do afro-descendente... e a

doença do bolso tinha um nome bem chique, muito fino: “Reforma da

Previdência”...

Nego D‟água começou então a trabalhar na velha balsa reformada,

fazendo a travessia do rio.

Pessoas dum lado, galinhas do outro, batata doce dum lado, pizza

congelada e whiskey importado do outro... carroças de um lado, carros de

luxo do outro, e carros usados no meio...

A coisa estava movimentada!

Até que certo dia, num carro que ia para a cidade, estavam um advogado

e uma professora, funcionários de uma ONG criada por uma grande

Siderúrgica da capital, empresa tão grande que já tinha colocado fábrica até

nos Estados Unidos! E o advogado e a professora cruzaram o rio na balsa do

Nego D‟água.

Como o rio estava muito cheio, porque chovia há muitos dias quase sem

parar, as águas iam longe do leito do rio e a travessia estava lenta.

Com o tempo passando, a idéia de uma prosa parecia boa, e os dois

passageiros começaram a puxar conversa com o balseiro, que era meio quieto

por natureza.

O advogado puxou conversa, perguntando:

- Cidadão, você entende de leis?

Nego D‟água respondeu, meio sem jeito:

- Não senhor, se entendo é muito pouco.

O advogado, com pena da sinceridade e da humildade do balseiro, fez

cara de compadecido e disse:

- Bah, que pena... Sem saber de leis, você perdeu a metade da vida...

A professora foi ao socorro de Nego D‟água:

- Ah, só porque ele não é versado em ciências jurídicas, isso não quer

dizer que ele perdeu a metade da vida!

Nego D‟água queria saber o que era “versado” e “ciências jurídicas”,

mas resolveu ficar quieto...

A professora então perguntou:

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- Mas me diga, tu sabes ler e escrever?

Nego D‟água respondeu de novo, meio sem jeito:

- Não senhora, se entendo é muito pouco.

A professora, sem querer, soltou essa exclamação:

- Bah, que pena... perdeu a metade da vida...

O advogado, quando ouviu a exclamação espontânea da colega que antes

o havia repreendido, soltou uma risada!

De repente, não se sabe até hoje de onde veio – alguns dizem que veio de

uma barragem da região, em que o diretor da represa resolveu abrir as

comportas sem sequer avisar ao povo, antes que a barragem estourasse pelo

excesso de chuvas! – surgiu uma onda enorme e forte, muito forte, que veio

varrendo todo o rio!

Nego D‟água, olhando para aquela onda enorme que ia bater na balsa,

perguntou preocupado ao advogado e à professora:

- Vocês sabem nadar?

E os dois responderam assustados, em coro:

- Não!

O barqueiro falou então:

- Bah, que pena... Sem saber nadar, vocês perderam as duas metades da

vida!”

Terminada sua história, ainda em meio aos aplausos efusivos, contam as

línguas do povo – às vezes confiáveis, às vezes inconfiáveis... – que apenas

se viu O Contador de Histórias deitando seu cabelo para dentro do mato,

fugindo da sanha do facão do outro contador de histórias, pois aquela lâmina

de metal bem que queria sovar uma lasquinha de couro e tomar a metade da

vida de um certo alguém...

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Quando a Raposa Vermelha

encontrou Deus no Espelunca

Contava-se pela língua do povo – às vezes confiável, às vezes

inconfiável... – que a Princesa do B611 e a Raposa Vermelha certa vez

brigaram...

O motivo?

Divergências quanto à Política de Privacidade...

Foi que, sentindo falta da companhia da Princesa do B611, a Raposa

Vermelha resolveu afogar suas mágoas embriagando-se no cafezinho do Bar

Espelunca...

Entre uma taça e outra – bebendo aquela poção mágica preta que parecia

que ia fazer a Raposa entrar em órbita ou correr mais rápida que o Papa-

léguas® da ACME! – a Raposa recebeu em suas patinhas uma mensagem

15

do carteiro, vinda da Princesa do B611!

Fazia muito tempo que eles não trocavam palavra alguma!

A Raposa abriu a cartinha e nela assim estava escrito:

“Deus me pediu que te dissesse que tudo vai dar certo, que tudo irá bem contigo

a partir de agora. Esta manhã bati ao meu jeito na porta do céu e Deus me

perguntou: Filho, o que posso fazer por você?

>>Eu respondi:Pai, por favor, protege e bendiz a pessoa que está lendo esta

mensagem.

>>Deus sorriu e confirmou: Petição concedida

>>Leia isso em voz baixa:

>>Senhor Jesus, perdoa meus pecados. te amo muito, te necessito sempre, estás

no mais profundo do meu coração, cobre com tua luz preciosa a minha família,

minha casa, meu lugar, meus emprego, minhas finanças, meus sonhos, meus projetos

e a meus amigos.

>> Receberás um milagre amanhã, não o ignore.

15

N. A.: o texto aqui citado foi recebido pelo Autor, em uma típica corrente de e-mails circulante na internet. Como usualmente ocorre neste tipo de troca de mensagens padronizadas, não havia forma alguma de buscar-se a fonte original. Assim sendo foi impossível referenciar tal fonte.

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O Contador de Histórias... e outras histórias

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>>Deus tem visto as tuas lutas e disse que elas estão chegando ao fim. Se

acredita em Deus envia esta mensagem a vinte pessoas. Se rejeitar, lembre que Jesus

disse: “Se me negas entre os homens, te negarei diante do Pai”

Ao ler isso, a Raposa percebeu algo diferente...

O carteiro!

Ele lhe tinha um rosto familiar... a Raposa já o tinha visto antes...

Era... era...

Era Deus!

Deus visitou a Raposa Vermelha! Ele, pessoalmente, havia levado para o

Guardião da Campina aquela tímida mensagem de reconciliação da Princesa

do B611, justamente enquanto a Raposa apreciava um croquete ordinário no

Espelunca!

Logicamente que o croquete estava acompanhado por um cafezinho para

afogar as mágoas... e a Raposa imediatamente convidou Deus para

acompanhá-la, convidando-O a sentar-se com ela.

Lógico que a Raposa não podia deixar de perguntar:

- Deus, o Senhor por aqui, por estas bandas?

Deus?

Soltou um sorrisinho meio maroto... safado... E enquanto puxava uma

cadeira e se sentava, piscou:

- E tem algum lugar onde Eu não estou, guri?

Nesse momento a Raposa Vermelha se lembrou do banheiro... e assim

pensou:

“Já imaginou: se Deus está em todo o lugar, Ele poderia estar lá com

você justo no banheiro também?”

Mas pelo jeito o Velho leu o pensamento da Raposa Vermelha, pois Ele

imediatamente respondeu em voz alta:

- Até lá Eu estou, guri!

Se a Raposa Vermelha não fosse meio cara de pau, certamente teria

ficado ainda mais vermelha naquele momento...

Deus?

Deu uma risada, bem gostosa! E em seguida emendou:

- E aí, guri, o que tu queres de Mim desta vez?

Page 56: O Contador de Histórias... e outras histórias

A. Mayer

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A Raposa? Disse:

- Pai... olha... sabe a Princesa que me enviou esta mensagem? Protege-a e

a bendiz... Sei e sinto que ela é tão louca quanto eu, e eu a acho incrível...

Lógico que nós brigamos um com o outro por questões de Política de

Privacidade... mas lá no fundo os dois loucos amam papear um com outro e a

falta que um faz para o outro está tão doída... por favor, abençoa-a, tá bem?

Deus?

Sorriu com aquele sorriso tão safado que só Ele bem sabia emanar e

assim respondeu:

- Petição concedida! Mas tem mais...

A Raposa fez uma expressão de curiosidade, aguardando o que mais Deus

queria dizer... e Ele imediatamente assim prosseguiu:

“Diga à Princesa que Eu Sou a Estrela Preciosa que brilha no peito da

Raposa e da Princesa do B611!

Vocês nasceram de meu Ventre e são amados pelo Meu Peito!

E de Mim vocês nasceram imaculados: assim sempre serão livres de todo

e qualquer pecado!

Vocês nada tem do que Me pedir perdão, pois foram criados por Mim

livres de qualquer imperfeição e pecado... ou vocês julgam que Eu sou burro

ou sádico a ponto de criar Meus filhos repletos de imperfeições e impurezas?

Sai dessa! Que pensamento mais antiquado: isso tá out!

Vocês nunca cometeram erros ou pecados, exceto um: se esquecerem de

Me sentir brilhando bem no meio do peito de vocês! Pois Eu Sou vossa

Estrela Divina! Se há um arrependimento que vocês possam ter, é única e

exclusivamente este:

Esquecerem-se de Me sentir em vós! Esquecerem de me sentir pulsando

dentro de vós, sempre presente no Íntimo de vós, pois Eu Sou o Bem Maior

que é vocês mesmos!

Sou a Luz Preciosa que sempre brilha em vós, cobrindo a vossa família,

vosso lar, vosso trabalho, vossas finanças, vossos amigos que tem alegrado

os vossos passos em seu viver, cada um dos vossos sonhos mais belos que

valem a pena ser sonhados, cada um de vossos projetos por um mundo que

manifeste mais Beleza, com menos sofrimento e mais Poesia!

Mas o segredo de Me sentir está em parar de ouvir toda essa porcaria que

as pessoas, sofrendo, jogam nesse mundo e nas outras pessoas: pois Eu me

mostro nas profundezas de tudo!

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O Contador de Histórias... e outras histórias

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Jamais Me busquem fora do Íntimo de vós: Me sintam dentro de vós,

onde Eu moro desde aquele milenar dia em que criei a cada um de vós!

E nenhum de vós receberá de Mim milagre algum amanhã... porque o

amanhã não passa de delírio da ansiedade e a doença duma sociedade que se

perdeu no futuro sem jamais viver no presente. Não! Vós recebeis Meus

milagres Agora, no Agora, quando fecham seus olhos para as porcarias que

as pessoas acreditam serem reais e Me sentem, em cada respiração vossa, no

Silêncio cândido e delicioso em seus próprios peitos!

Quereis vós, que leem isso, maior milagre do que este? De ter a mim, o

Criador de tudo o que é Bom, Belo e Verdadeiro que sempre existiu e sempre

existirá, ao alcance de vossos dedinhos todos os dias, toda a hora, exatamente

aí, no calor e no pulsar de seus próprios peitos?

Não vos dou milagre algum amanhã... e sabeis o porquê!

Porque é nesse momento, no Agora, o único momento em que vós podeis

sentir Meu latejar em vossos Corações, porque Eu sempre estive e sempre

estarei convosco – até mesmo quando vocês comem um croquete ordinário e

bebem um cafezinho vagabundinho – eis o milagre dos milagres! Vocês

nunca estarão sós! Pois Eu, a Felicidade Suprema, sempre morei, moro e

morarei Agora dentro de vós!

Por isso, milagre algum vos virá amanhã... ele já veio e sempre vem, e

está convosco sempre!

E o fim de vossas lutas? Jamais será amanhã... já o é hoje, no Agora!

Assim benção alguma vos virá amanhã, porque em Verdade vos digo:

Ela já veio! Ela no Agora está! Apenas abra os seus olhos e sinta-a no

meio do vosso peito, filho Meu!”

Quando o Velho terminou sua mensagem, a Raposa Vermelha sentia o

seu próprio peito pulsante: grande, espaçoso, puro, lindo e incrivelmente

brilhante!

O Velho?

Sorriu lindamente e com aquele olhar de menino arteiro e sapeca que só

Ele é capaz de fazer – enquanto tomava um gole do cafezinho do Espelunca

com a Raposa – ainda lhe disse:

- E, pra finalzinho de conversa: avisa a tua amiga aí, a Princesa do B611,

que esse papinho furado de “se me negas entre os homens, te negarei diante

do pai”, dando idéia de punição, é pura balela... só invenção bem porcaria de

alguns religiosos salafras que queriam muito ganhar Dízimo, sabe? Porque

Eu nunca nego ninguém... são as pessoas que negam a Si mesmas, oprimindo

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A. Mayer

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a Minha manifestação em seus próprios peitos: elas são os seus próprios

juízes e carrascos e depois vêm, na maior cara de pau, botar a culpa em Mim?

Sai dessa!

A Raposa só balançava a cauda, feliz e satisfeita com a verdadeira Boa

Notícia, as reais Boas Novas que o Velho lhe trazia!

E Ele ainda arrematou:

- Lembrem-se: Eu tô sempre por aí... tri aberto e disponível pra fazer

companhia pra vocês, seja chimango ou maragato, seja gremista ou colorado,

seja petista ou anti-petista, seja filho de fé ou ateu... Eu tô sempre por aí,

disponível, até mesmo pra tomar esse cafezinho horroroso aí, meio frio e sem

açúcar nessa Espelunca... e sabe o porquê? Porque vocês são a linda tela que

eu pintei, e o Espírito do Artista sempre pulsa e ama as suas telas mais

lindas! Eu tô em cada pincelada que dei na tela de cada um de vocês... sacou

a idéia, guri?

A Raposa Vermelha?

Balançando contente sua cauda, colocou a mensagem de Deus numa

cartinha e rapidamente enviou-a para sua querida Princesa do B611! E

enquanto enviava a mensagem, ainda sentada na mesa do Espelunca, chamou

o garçom:

- Hei! Manda aqui mais um rodada de cafezinho, só que desta vez bem

quentinho e com mais açúcar!

O Velho?

Deu um abraço na Raposa e caiu na risada!

Foi assim que conta-se, na língua do povo – às vezes confiável, às vezes

inconfiável... – que, desde aquele dia, a Raposa Vermelha e a Princesa do

B611 voltaram a manifestar carinho um para o outro, sem mais sinal algum

de desavenças políticas entre os dois... e as orelhas pontudas da Raposa e os

lindos olhos daquela Princesa tão especial voltaram a se fitar carinhosamente

naquela Campina!

E contava-se pela língua do povo – às vezes confiável, às vezes... bem,

você já sabe, não é!? – que tudo isso foi graças... a um Carteiro

absolutamente todo especial, que mui apreciava um cafezinho quentinho e

docinho!

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O Contador de Histórias... e outras histórias

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Uma antiga lenda do Oriente

Conta-se que houve um tempo em que O Contador de Histórias andava

preocupado com uma amiga...

Christine andava tão agitada: fazia, fazia e fazia coisas... e fazia e fazia

ainda mais coisas... mas tudo que ela não fazia, pois não o fazia achando que

estava fazendo, era cuidar de Si!

Sentiu O Contador de Histórias que grave doença e outros Fechamentos

de Caminhos estavam navegando de encontro à sua amiga para lhe obrigar a

mergulhar dentro de Si mesma...

Assim foi que naquele dia, como quem não quer nada, na beira daquele

Rio, quando ele e Christine se encontraram, ele fez a única coisa que sabia

fazer: contar Histórias!

E de seus lábios nasceram tais palavras:

“Certa vez, no antigo Reino de Shu, vivia uma linda e nobre dama do

Povo do Oriente. Mas como seu nome de amarelo era muito complicado de

se dizer, foi chamada pelo Povo dos Orixás apenas de Lady Mary.

Ocorreu que Lady Mary tinha uma amiga, chamada Lady Pittysburg. E as

duas moravam juntas. Na mesma casa, no Reino de Shu.

Era uma casa muito bonita, toda vermelha e com quatro cômodos, que

ficava exatamente entre uma montanha que parecia uma cabeça e entre um

desfiladeiro que pareciam pés, ao longo de um riozinho muito bonito – que

parecia uma serpente sinuosa unindo a montanha em forma de cabeça e o

desfiladeiro em forma de pés.

Acontecia que Lady Pittysburg andava sempre cercada de pessoas e fazia,

fazia, fazia, tinha, tinha, tinha, e ainda “tinha que!”. Vivia repleta de

missões!

Mas Lady Pittysburg escondia um segredo, que ninguém poderia saber:

ela o escondia a todo custo!

Lady Pittysburg, fazendo tanta coisa, obviamente era muito barulhenta:

quanto barulho ela fazia!

E quanto mais barulho, mais Lady Pittysburg falava! O barulho a

alimentava!

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Mas Lady Mary só podia falar quando havia o Silêncio do grilo ecoando

na madrugada, do louva-a-deus repousado sobre a folha e do grou pescando

no lago. E com todo aquele tumulto dentro da linda casinha, Lady Mary

nunca mais conseguiu falar...

Com isso, Lady Mary estava cada vez mais infeliz naquela casinha,

sentindo-se abandonada, sem receber a atenção de Lady Pittysburg, sua

eterna companheira... Afinal, elas estariam para sempre morando juntinhas

naquela casinha tão linda ao redor do Paraíso...

Até que, um dia, Lady Pittysburg contraiu uma gripe muito forte e ficou

de cama: se sentia tão fraca que não conseguia nem ficar de pé e mal podia

falar!

Lady Mary fazia sopinha Knorr® para Lady Pittysburg e, somente assim,

enquanto tomava sua sopinha, Lady Pittysburg dava atenção à Lady Mary.

E depois de muito tempo sendo obrigada a emudecer, finalmente Lady

Mary olhou bem fundo nos olhos de Lady Pittysburg, quebrou seu mutismo,

e assim lhe disse:

- Será que recebo Atenção de você só quando você fica doente? E eu sei

qual é o seu segredo: é o vazio, é a falta! Você está desesperada para

preenchê-lo e nunca consegue. E sem mim, nunca conseguirá! Porque só eu

sei a resposta para curar o vazio, mas eu só lhe falarei quando ouvirmos

juntas o Silêncio do cantar do grilo na madrugada e a Calma do louva-a-deus

fazendo sua prece repousado sobre a folha...”

Levantando-se e indo embora da orla daquele Rio, O Contador de

Histórias ainda disse tais palavras finais à sua amiga:

- Dizem que Lady Pittysburg ficou muito encafifada quando ouviu isso de

sua eterna companheira... mas ninguém nunca soube e nunca saberá qual a

resposta que ela deu a Lady Mary! Afinal, é algo muito pessoal e íntimo entre

as duas, portanto só elas saberão...

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O Contador de Histórias... e outras histórias

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Cérebro, Coração e Intestino

Conto sobre as doenças de nossa civilização

Há muito tempo atrás,

havia um Todo!

O Todo compreendia um longo e sinuoso Rio.

Neste Todo, ao longo deste Rio, moravam três irmãos:

Cérebro, que morava bem no alto do Rio, perto da Nascente...

Coração, que morava um pouco mais adiante...

e Intestino, também chamado de Segundo Cérebro: ele morava na parte

mais baixa do Rio, próximo à Foz.

Cérebro, o primeiro irmão,

era o mais valorizado membro de toda a Aldeia:

por todo o povo daquelas bandas

era ele conhecido por ser a Força do Discernimento do Todo!

Coração, o segundo irmão,

já não era tão respeitado pelo povo das redondezas:

era ele conhecido por ser a Força Luz,

a Presença de Espírito do Todo!

E Intestino, o terceiro irmão,

este sim era não apenas o mais ignorado e desrespeitado membro de toda

a Aldeia:

também era incrivelmente desprezado por todo o povo que vivia naquelas

bandas!

Intestino era conhecido por ser a Força Sombra do Todo!

Todavia, os três irmãos sempre trabalhavam juntos,

harmoniosamente,

no próspero Moinho que era propriedade dos três,

construído na beira do Grande Rio:

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e não se importavam nem um pouco

seja com o desprezo que o povo da Aldeia tinha por Intestino

seja com a indiferença com que tratavam Coração...

E assim os três viviam felizes!

Até que, certo dia...

Chegou na Aldeia uma mulher completamente diferente!

A forasteira tinha a pele incrivelmente branca!

Possuía longos cabelos negros, perfeitamente lisos,

que criavam um impressionante contraste entre sua pele

e os cabelos que emolduravam seu rostinho angelical

iluminados por olhos verdes incrivelmente magnéticos!

A chegada de Mademoiselle Desconexão na Aldeia

foi um evento que revirou toda a vida social daquele lugar!

Por onde ela andava, causava sensação!

Sua beleza era tão exótica que encantava a todos

e suas palavras pareciam envolvidas

por ondas de pura sedução!

Foi assim que muitas idéias estranhas

chegaram à Aldeia...

Mademoiselle Desconexão rapidamente

tinha uma legião de adeptos às suas doutrinas e sistemas:

nascia um novo estilo de vida, desejado por todos!

Mas na verdade, por quase todos:

os três irmãos não haviam ainda se convertido

ao way of life que ela criara...

Mademoiselle Desconexão preocupou-se:

os três irmãos eram donos da mais próspera propriedade

de toda aquela Aldeia

e ela necessitava dos frutos daquele Moinho mais do que tudo:

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O Contador de Histórias... e outras histórias

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Mademoiselle Desconexão era incapaz de produzir seu próprio alimento

pois para tal era necessária a Conexão,

uma Arte em que os três irmãos eram Mestres!

E como ela era incapaz de produzir seu próprio alimento

ela dedicava-se a retirá-los dos outros,

da mesma forma que o morcego hematófago

salta sobre suas vítimas e lhes drena o sangue:

foi assim que surgiu a lenda de que Mademoiselle Desconexão

era na verdade... uma Vampira!

Ela era a quarta Força, nascida das profundezas da desarmonia:

a Força Trevas!

Ela precisava muito apoderar-se daquele próspero Moinho,

pois sem aquela fonte de alimento ela não sobreviveria!

Como ela conseguiria se adonar dele?

Decidiu que a maneira mais fácil de obter aquelas posses

seria fazer com que os três irmãos brigassem entre si

separando-os, desconectando-os:

Dividir para Conquistar!

Foi assim que Mademoiselle Desconexão foi se aproximando

justamente de Cérebro!

E assim lhe dizia, sensualmente:

“Bem se vê que você é o mais nobre dentre os seus irmãos!

E quem, sendo tão nobre, necessitaria trabalhar servindo aos outros, ao

invés de ser servido?

Pelo contrário: a um altivo nobre é dado o direito de governar

sem a ninguém necessitar dar satisfações!”

Cérebro?

Começou a gostar daquelas idéias...

A Vampira continuou fazendo suas visitas, dizendo:

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“Seus irmãos não valorizam a sua nobreza... eles deveriam tornar-se

seus súditos obedientes...”

Cérebro redarguiu, porém confuso:

- Mas eles jamais aceitariam isso! Nós nascemos como iguais!

Foi então que a Vampira, Mademoiselle Desconexão,

beijou os lábios de Cérebro

na mais intensa das volúpias, enquanto lhe fazia carícias,

e assim lhe disse:

“Oras... então reprima-os! Construa uma masmorra e prenda-os! E

jamais escute o que eles lhe falarem da prisão, meu amor!”

Cérebro apaixonou-se perdidamente pela Vampira!

Apaixonou-se tanto por seu estonteante corpo

quanto por suas sedutoras idéias...

E foi assim que Cérebro

perdeu sua capacidade de Discernimento!

Cérebro construiu uma torre e,

enganando seus irmãos,

os prendeu na masmorra!

Foi assim que o próspero Moinho foi governado por Cérebro

que nele arduamente trabalhava

enquanto sustentava a Vampira que se aninhava em sua cama!

Coração e Intestino, aprisionados,

rogaram a Cérebro para que ele os ouvisse por bem

e os libertasse!

Mas Cérebro estava completamente seduzido

pelos ardentes encantos que entre os lençóis

a Vampira lhe proporcionava

e não ouviu aos seus irmãos!

Foi nesse momento que Intestino,

também conhecido como O Segundo Cérebro,

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O Contador de Histórias... e outras histórias

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a Força Sombra,

deu um sorriso sacana e disse a Coração:

“Se ele não me escutar por bem... me escutará por mal!

Vou atormentá-lo tanto que uma hora ele virá aqui,

nesta torre, de joelhos,

implorando por ajuda! Está comigo nessa?”

Coração balançou a cabeça afirmativamente...

E os dois irmãos deram início ao seu Plano de Reconexão:

Coração, a Força Luz,

utilizando seus imensos poderes,

alterou todo o sabor das águas do Rio

que ficara com um gosto horrível!

Quando Cérebro ia bebê-la, ele não conseguia:

vomitava-a!

Mas não apenas o sabor das águas havia se estragado:

todos os frutos do Rio e todos os peixes se foram!

Foi assim que Coração fez com que Prazer sumisse da vida de Cérebro!

Cérebro entristeceu-se tanto...

Mas mesmo triste e sedento, ainda permanecia surdo

aos chamados de seus dois irmãos...

Foi então que Coração disse a Intestino:

- Pelo que parece, chegou sua vez de agir!

Ao ouvir aquilo, Intestino soltou um sorriso indescritivelmente sacana,

soltou uma gargalhada e assim disse:

- Ah, como será divertido dar uma lição no maninho... Let‟s go!

Intestino, a Força Sombra,

utilizando seus imensos poderes,

fez com que o Rio, cada vez mais imundo,

começasse a produzir todo o tipo de animal peçonhento,

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e Cérebro nunca mais pode entrar no Rio para banhar-se...

E o pior: os animais venenosos ainda saíam das águas do Rio

para picar Cérebro, que não tinha mais paz!

Mas a vingança de Intestino estava recém começando...

Intestino produziu tantas plantas no Rio de águas imundas

que as plantas se prenderam às pás do Moinho

emperrando-o!

Cérebro passava agora a maior parte de seu dia

ou lutando contra os animais peçonhentos

ou tentando inutilmente desobstruir as pás do Moinho

para que as coisas voltassem a funcionar...

Mas Cérebro ainda não ouvia os chamados de seus irmãos,

de tão seduzido que estava pela Vampira,

Mademoiselle Desconexão!

Foi então que Intestino e Coração,

as Forças Sombra e Luz do Todo,

deram o seu golpe mais poderoso:

secaram o Rio!

Simplesmente a Água da Vida não jorrava mais

e tudo o que havia, seja no Rio,

seja em todos os seus arredores,

secou e morreu!

Cérebro, sedento e faminto,

absolutamente derrotado pela exaustão

desesperou-se e foi até a masmorra:

- Irmãos, salvem-me!

Os dois prisioneiro responderam a uma só voz:

“Não! Você decidiu escutar às Trevas: colocou-a a dormir em sua cama

e sequer quis nos ouvir: a Luz e a Sombra do Todo! Você traiu a você

mesmo: o Discernimento!”

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Cérebro suplicou:

- Mas se vocês nada fizerem, nós três iremos morrer!

Intestino e Coração responderam em uníssono:

“Que assim seja! Pois nós já estamos mortos mesmo: pois quando a Luz,

o Discernimento e a Sombra deixam de trabalhar juntos, em Harmonia,

apenas a morte triunfa! A menos que...”

- A menos que... – indagou Cérebro, muito interessado!

E Coração e Intestino falaram:

- A menos que você se arrependa de tudo o que fez, nos liberte e mate a

Vampira!

Cérebro tremeu ao ouvir aquilo...

Mas sua situação era desesperadora...

Ele não tinha mais opções: estava à beira da morte...

Foi assim que finalmente Cérebro disse:

“Sim, eu me arrependo de tudo o que fiz e libertarei vocês! Mas não

posso matar a Vampira: pois ela conhece todas as minhas fraquezas e me

domina... Apenas nós três, juntos, poderemos matá-la!”

Intestino e Coração concordaram com Cérebro... e foram libertados!

Naquela mesma noite

Intestino armou uma emboscada:

feriu a Vampira!

Ela, acuada, fugiu para a Floresta!

Cérebro a perseguiu e a alcançou,

porém como ela conhecia todas as suas fraquezas

a Vampira rapidamente o imobilizou!

Ela agora dirigia feroz seus caninos aduncos

ao pescoço de Cérebro:

iria drenar-lhe até sua última gota de sangue!

Mas Coração estava à espreita,

atrás de um arbusto:

aproveitando que a poderosa Vampira

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havia sido ferida pela emboscada de Intestino

e agora estava ocupada imobilizando Cérebro,

Coração saltou sobre o monstro

e cravou sua estaca de madeira bem no meio do peito da Criatura das

Trevas!

Foi o fim de Mademoiselle Desconexão,

a monstruosa Vampira!

Depois daquela madrugada horrível

em que foi posta à prova toda a capacidade daquela família

de trabalharem juntos, em Harmonia,

os três irmãos renovaram a sua Antiga Aliança!

Eles demoliram a torre,

reconstruíram o Moinho,

e o Rio voltou a fluir

trazendo consigo a preciosa Água da Vida!

E a propriedade da família voltou a ser rica, próspera!

O Todo finalmente havia atingido

o sonho dos sonhos a ser sonhado:

a Paz Ativa,

a única paz dentre as pazes capaz de gerar

a maior das riquezas:

a Paz Interior!

Ficou para Cérebro uma lição...

No mundo há muitos vampiros,

de todos os tipos, cores e formatos:

as Forças Trevas!

E ele deveria sempre manter seu Discernimento

em compasso de Harmonia com seus dois irmãos,

Espírito e Vitalidade,

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O Contador de Histórias... e outras histórias

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para que nunca mais fosse seduzido

por idéias que arruinariam o Todo!

Será que Cérebro aprendeu tal lição?

Corria, pela boca do povo da Aldeia,

boca às vezes confiável, às vezes inconfiável,

que Cérebro havia a aprendido muito bem!

Até que, um dia,

uma linda forasteira surgiu na Aldeia!

Seus cabelos eram tão negros como o mais doce chocolate!

Sua voz emanava uma atração tão doce

que faria inveja ao mais refinado açúcar!

Sua pele, tão branquinha, parecia ter sido polvilhada

pela mais cara farinha refinada jamais produzida!

E suas roupas, parecendo reluzir como alumínio e enlatados,

repletas de encantadoras estampas

brilhavam à luz do Sol de forma quase divina!

Era a irmã mais moça de Mademoiselle Desconexão...

Quando Cérebro a viu... seus olhos brilharam!

E os olhos dela brilharam para Cérebro...

Ela ofereceu sua refinada mãozinha

para que o cavalheiro a beijasse e,

de seus açucarados lábios

brotaram tais palavras:

- Oi! Meu nome é Toxina...

Coração e Intestino, percebendo aquele clima todo,

olharam um para o outro e não tiveram dúvidas:

pegaram Cérebro pelos braços e o arrastaram direto para casa...

E lá teriam uma séria, mas muito séria conversinha!

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O Obelisco de Ouro e o Obelisco

de Pirita

Conto sobre os 80 anos da Revolução de 1930,

iniciada em 03 de outubro

Dizem que foi justo em um dia 03 de outubro,

e que foi um Caudilho do Sul de um distante país...

(E tinha que ser do Sul... mas que diabos há no Sul

que há tanta concentração de caudilhos revolucionários por metro

quadrado?

Só poderia ser por culpa... ou do tempero do churrasco... ou da cerveja

Polar®... ou por algo muito pior:

a culpa seria do Grêmio® e do Inter

® – viva o São José

®!)

O Caudilho partiu de lança em punho do Sul

para amarrar seu valoroso cavalo

no Obelisco da então capital daquele distante país,

nos distantes anos de 1930,

e assumir o governo de um povo inteiro!

Por isso, naquele distante país,

em homenagem àquele Fato Histórico,

as pessoas combinaram de escolher seus governantes

justamente num dia 03 de outubro:

Eleições!

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O Contador de Histórias... e outras histórias

71

Só que aquele Caudilho do Sul não sabia

que haviam dois Obeliscos,

um ao lado do outro,

muito parecidos na forma – idênticos por fora!

mas totalmente diferentes na Essência:

Um era o Obelisco de Ouro...

e o outro era o Obelisco de Pirita: o ouro dos tolos!

E o grande erro daquele Caudilho do Sul

foi que ele, lá nas bandas do Norte,

amarrou o seu cavalo no Obelisco de Pirita!

Um Obelisco perigoso, traiçoeiro,

de muitos nomes e de muitas formas:

Ego... mente... cabeça... karma... desejo... insatisfação... conflito... culpa...

medo!

E amarrado seu cavalo por lá,

o valente guerreiro passou a acreditar que governava...

Pobre Caudilho!

Se ele soubesse que do ladinho daquele Obelisco,

tão pertinho de seus dedos,

estava o outro Caminho,

o Obelisco de Ouro,

de também muitos nomes, mas de uma só forma:

Eu Sou... Ser... Self... Agora... Dharma... Essência Divina... Chama...

Alma (Yang)... Sombra (Yin)... Jissô...

Imagem Verdadeira... Atma... Pneuma... Daemon... Orixá... Inkinse...

Bacuri... Kami...

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72

Se o Caudilho tivesse amarrado seu cavalo naquele Obelisco

verdadeiramente Dourado,

ele teria realmente adquirido

o maior e mais precioso governo de todo o Kosmos:

o governo de Si mesmo!

Um governo tão precioso

que por isso mesmo também é chamado:

LIBERTAÇÃO!