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B E A T R I Z G R E G Ó R I O D O S S A N T O S O conto Bliss, de Katherine Mansfield, e três de suas traduções para o português brasileiro: uma análise feminista

O conto , de Katherine Mansfield, · 2020. 7. 2. · satisfação, triunfo.3 A leitura do conto leva a crer que tudo isso está presente, de alguma maneira, e que a escolha do título

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B E A T R I Z G R E G Ó R I O D O S S A N T O S

O conto Bliss, de Katherine Mansfield,

e três de suas traduções para o português brasileiro:uma análise feminista

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O conto Bliss, de Katherine Mansfield,

e três de suas traduções para o português brasileiro

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B E A T R I Z G R E G Ó R I O D O S S A N T O S

uma análise feminista

O conto Bliss, de Katherine Mansfield,

e três de suas traduções para o português brasileiro

P R E F Á C I O

Érica Lima

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CDD: 418.02

Ficha catalográficaUniversidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Estudos da LinguagemLeandro dos Santos Nascimento - CRB 8/8343

Gregório, Beatriz, 1997-. O conto Bliss, de Katherine Mansfield, e três desuas traduções para o português brasileiro: umaanálise feminista / Beatriz Gregório ;organizadores Sophie Galeotti, Beatriz Burgos,João Pedro Missi. – Campinas, SP : Unicamp /Publicações IEL, 2020. 75 p.

ISBN 978-65-87175-06-5

1. Mansfield, Katherine, 1888-1923. Bliss –Crítica e interpretação. 2. Tradução. 3. Linguística.4.Feminismo. I. Galeotti, Sophie, 1997-. II. Burgos,Beatriz, 2000-., III. Missi, João Pedro, 2000-. IV.Título.

G861c

Copyright© 2020 by Beatriz Gregório dos Santos1ª edição 2020, Campinas, TL224 Publicações

TL224 PublicaçõesR. Sérgio Buarque de Holanda, 571 - Cidade

Universitária, Campinas - SP, 13083-859

Brazil 2020Foi feito o depósito legal

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She hardly dared to breathe for fear of fanning it higher, and yet she breathed deeply, deeply. KATHERINE MANSFIELD - Bliss

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Agradeço à professora doutora Érica Lima, minha orientadora nestes últimos doisanos, pela sabedoria dividida, pela paciência, pelas leituras, por me auxiliar nos meusprimeiros passos na vida acadêmica. Sua ajuda em todas as etapas deste processo foifundamental. Agradeço à minha família pelo apoio, pelo zelo e por constantemente reforçarem oquanto acreditam em mim. À tia Rosa e à minha avó Mariana, obrigada. Aos meus pais,que tornaram possível o meu estudo em uma universidade pública. Pai, obrigada porapoiar as minhas escolhas. Agradeço especialmente à minha mãe, que testemunhoumeus momentos de dissabores mais de perto; obrigada pela companhia, pelo colo, peloamor. Agradeço a todos os meus amigos que estiveram comigo nesses quatro anos degraduação e que, de perto ou de longe, contribuíram imensamente na elaboração desteestudo. A companhia de vocês tornou esse período mais leve. Agradeço à Unicamp, minha fonte de saber e de inspiração nos últimos quatro anos,por todas as oportunidades de crescimento que me foram dadas como aluna daInstituição.

Agradecimentos

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Prefácio.........................................................................................................................................07Introdução………………………………………………………………..............................................…..12I. A escola canadense de tradução feminista…………………….………......…....................16II. Considerações sobre o objeto de pesquisa…………………………….…….......................33

II.1. Vida e obra de Katherine Mansfield…...……………………...…….…....................33II.2. O conto Bliss………………………………………………....……...........................….........36II.3. As traduções de Bliss para o português brasileiro…………...........……….......38

II.3.1. Érico Veríssimo e Felicidade…………...………....……………......................40II.3.2. Ana Cristina César e Êxtase……….……………………......……...................41II.3.3. Julieta Cupertino Felicidade....………………….......……….......................43

III. Análise comparativa de três traduções de Bliss………………....….……….................44Considerações finais…………………………………………....……………...................…................67Bibliografia…………………………......……………………....…………...…….....................................72Referências Bibliográficas…….…………………………....…....…………............................….....72

Sumário

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Prefácio  

 

Como prefaciar um trabalho que analisa precisamente o que se escolhe e o                         

que se deixa de lado na tarefa da tradutora? Penso que se pode começar por                             

sublinhar a marca do feminino que atravessou o trabalho de Beatriz e o prazer de                             

ter acompanhado esse caminho de uma análise de três traduções para o português                         

do conto em inglês Bliss, de Katherine Mansfield (1918), fundamentada                   1

teoricamente na vertente da tradução feminista canadense, cujo desenvolvimento                 

ocorreu entre as décadas de 1980 e 1990.  

Aclamada como uma das melhores escritoras da língua inglesa, Katherine                   

Mansfield foi traduzida por Ana Cristina César em seu mestrado na Inglaterra e                         

homenageada em soneto de Vinícius de Moraes, além de muitos outros leitores                       2

brasileiros terem se declarado fascinados pela qualidade literária da neozelandesa.                   

Esse grande interesse fez com que Mansfield se tornasse uma das autoras mais                         

traduzidas no Brasil. Entre as várias traduções do conto, Beatriz selecionou, para                       

análise, a primeira tradução, de Érico Veríssimo (Felicidade, de 1941), responsável                     

por introduzir a obra de Mansfield em português brasileiro, e duas outras, que                         

vieram a público nas décadas em que o movimento feminista de tradução estava em                           

plena efervescência: Êxtase, de Ana Cristina César (1981) e Felicidade, de Julieta                       

Cupertino (1992), destacando as diferentes condições em que ocorreram os                   

processos tradutórios e as publicações, atrelando-os às características das tradutoras                   

e do tradutor.  

1 As obras não referenciadas em notas são as mesmas citadas na bibliografia da monografia de Beatriz Gregório dos Santos.   2 Soneto a Katherine Mansfield, escrito em 1938.

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PREFÁCIO  

 

Ainda que se trate de um trabalho de conclusão de curso da graduação, é                           

notável o olhar crítico de Beatriz, refletido nas análises criteriosas apresentadas em                       

18 excertos. Ao examinar a tradução por um viés feminista, é possível observar que                           

as escolhas (por vezes inconscientes) despertam diferentes leituras e,                 

consequentemente, novas teias de sentido.  

Bliss foi escrito na época em que as suffragettes foram às ruas pela igualdade de                             

direitos, em especial o direito ao voto. No desenrolar de uma narrativa que põe em                             

cena um dia perfeito na rotina da personagem Bertha – com seus afazeres de                           

esposa, dona de casa e mãe –, ao qual se segue uma festa em que ela se dá conta de                                       

que seu casamento não é tão perfeito assim, Mansfield retrata o destino imposto à                           

mulher e, ao mesmo tempo, deixa implícitos impasses sexuais da personagem e traz                         

à tona perturbação e insatisfação.  

Os sentimentos e sensações de Bertha dão título ao conto: Bliss, que pode ser                           

traduzido por “êxtase” e “felicidade”, como foram as escolhas nas traduções                     

estudadas, mas também evoca uma gama enorme de significados, como: alegria,                     

arrebatamento, bênção, carinho, conforto, deleite, euforia, júbilo, paraíso, prazer,                 

satisfação, triunfo. A leitura do conto leva a crer que tudo isso está presente, de                             3

alguma maneira, e que a escolha do título já reflete o intraduzível, que, no entanto,                             

foi traduzido muitas vezes, ecoando a afirmação de Derrida de que “o intraduzível                         

é o que mais pede a tradução”.    4

Assim como a tradução de Bliss, a questão do feminismo na tradução não é                           

nova e foi tema de vários estudos. Embora a origem seja muitas vezes atribuída ao                             

movimento canadense de tradução feminista, representado por Luise Von Flotow,                   

Sherry Simon, Susanne de Lotbinière-Harwood, autoras que Beatriz revisita e de                     

quem consegue se apropriar nas análises desenvolvidas, Costa e Ergun mostram                     5

3 Bliss, Thesaurus, Merriam-Webster. 4 Derrida, J. Sur parole. Instantanés philosophiques, 1999. 5 Castro, O. & Ergun, E. Translation and Feminism. In: Fernandez, F: Evans, J. The Routledge Handbook of Translation and Politics Routledge. 2018. 

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ÉRICA LIMA  

 

que as intervenções feministas em tradução existiam anteriormente e podem ser                     

vistas em paratextos (notas, prefácios, correspondências) de tradutoras ocidentais                 

desde o século XVII, muitas vezes anônimas ou até publicadas sob pseudônimos                       

masculinos. As autoras apresentam um panorama do crescimento interdisciplinar                 

na área e as perspectivas de uma virada interseccional e transnacional do                       

feminismo, ressaltando que ainda há muito trabalho a ser feito. Nesse sentido, a                         

pesquisa de Beatriz é importante porque também mostra a necessidade de                     

continuarmos a discutir o papel da tradução para os movimentos feministas,                     

especialmente no momento atual, quando se reconhece uma evolução para tipos de                       

feminismos mais complexos, que englobam questões políticas, antirracistas e                 

anticapitalistas, e que acabam por se distanciar daqueles movimentos da época de                       

Mansfield ou até do início da escola canadense, cujo ponto de vista predominante                         

era o da mulher branca de classes privilegiadas. De forma ampla, o que se tem hoje                               

é um movimento pelos direitos das mulheres abrangendo uma grande diversidade                     

de lutas: desde questões básicas, como direito à saúde, alimentação, moradia, até                       

representatividade nos mais diversos setores sociopolíticos, com base em                 

perspectivas e finalidades diferentes, sobretudo quando consideramos a               

multiplicidade de mulheres existentes (negras, indígenas, brancas, ocidentais,               

orientais, LGBTQI+, entre outras). Nesse cenário, a tradução tem sido um espaço                       

de intervenção e de resistência, no qual essas várias perspectivas feministas estão                       

em ação, com um número cada vez maior de publicações, principalmente nos                       

últimos anos. 

Ao tratar das três traduções sem buscar emitir juízos de valores, Beatriz                       

mostra que cada tradução é única e é determinada por uma série de aspectos,                           

incluindo a visão de cada tradutor(a) sobre a obra traduzida, a autora e o próprio                             

  

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PREFÁCIO  

 

processo de tradução. Ao apontar que as escolhas e os efeitos de sentido são                           

inerentes a qualquer tradução, que algumas delas acabam por refletir as condições                       

em que foram feitas – em relação ao momento sócio-histórico e em relação às                           

características de quem traduziu e para quem traduziu –, a autora torna evidente o                           

caráter inescapável da ideologia (feminista ou não) na tarefa das tradutoras e do                         

tradutor. 

Érica Lima * 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

* Desde 2015, é docente do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas                               

(IEL/Unicamp), pesquisando e orientando na área de interpretação de textos e tradução. 

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 Introdução 

  

Em 1906, anos antes de escrever Bliss, a jovem Katherine Mansfield declarou                       em seu diário sua indignação em relação ao patriarcalismo inglês. Nas palavras da                         autora: 

 

Acabo de terminar a leitura de um livro de Elizabeth Robins,                     Come and find me [Venha e me encontre]. Realmente, um livro                     brilhante, esplêndido; cria em mim uma tal sensação de poder!                   Sinto que agora realmente posso imaginar do que as mulheres                   serão capazes, no futuro. Até agora não tiveram sua oportunidade.                   Falar de nossos dias iluminados, de nosso país emancipado – pura                     tolice! Estamos firmemente presas com grilhões de escravidão que                 nós mesmas modelamos. Sim, agora percebo que nós os fizemos e                     temos de tirá-los. [...] É a doutrina desesperadamente insípida,                 segundo a qual o amor é a única coisa no mundo que é ensinada e                             posta dentro das mulheres, de geração em geração, e que nos                     detém de um modo tão cruel. Devemos nos livrar desse demônio                     – e então virá a oportunidade de felicidade e libertação.   1

 Naquele que seria um de seus contos mais conhecidos, Mansfield também                     

aborda e critica – por meio de uma narrativa formalmente muito bem construída e                           

com uma linguagem poética e sutil – a situação da mulher na sociedade inglesa                           

pós-vitoriana, levando o leitor a refletir sobre questionamentos muito próprios                   

daquele contexto histórico. O conto Bliss é, muitas vezes, a porta de entrada de um                             

leitor para a obra mansfieldiana. Esta foi uma de suas primeiras histórias a ser                           

traduzida para o português brasileiro e, hoje, é a que conta com o maior número de                               

reescritas diferentes: até a data de conclusão do estudo aqui apresentado, foram                       

encontradas seis traduções de Bliss para o português. 

A popularidade desse conto de Katherine Mansfield, escrito em 1918,                   

resultou na realização de diversos estudos no Brasil que buscam analisá-lo e/ou                       

1 Mansfield, 1996, pp. 30-31.

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BEATRIZ GREGÓRIO DOS SANTOS  

 

comparar suas diversas traduções, concentrando-se principalmente nas escolhas               

tradutórias feitas em Êxtase, tradução de Ana Cristina César, ou em Felicidade, de                         2

Érico Veríssimo; há também trabalhos que comparam diferentes traduções desse                   3

conto – para o português e para outras línguas, como o espanhol. Nenhuma dessas                           4

pesquisas, porém, se concentrou na investigação de uma diferença ideológica em                     

relação à imagem feminina. Por essa razão, o objetivo central deste estudo é                         

analisar se há elementos nas escolhas tradutórias de três versões de Bliss que                         

remetem ou a uma preocupação com a questão de gênero/feminismo, ou a um                         

conservadorismo em relação à mulher. As traduções elegidas para análise são                     

Felicidade, de Érico Veríssimo; Êxtase, de Ana Cristina César; e Felicidade, de Julieta                         

Cupertino. 

Katherine Mansfield foi apresentada ao Brasil na década de 1940, por meio                       

de Felicidade, coletânea de contos traduzidos por Érico Veríssimo da qual Bliss faz                         

parte. Seu trabalho como tradutor foi bastante investigado na academia,                   

principalmente porque o escritor criou, na Editora Globo de Porto Alegre, um                       

escritório de tradução; ali, Veríssimo inaugurou “o que realmente se pode chamar                       

de Idade de Ouro da tradução, de 1942 a 1947”. O público para o qual Érico                               5

Veríssimo traduziu, porém, foi bastante diferente daquele que recebeu as demais                     

traduções do conto: as de Ana Cristina César e Julieta Cupertino, por exemplo,                         

foram lançadas no Brasil quando as discussões feministas estavam em plena                     

ebulição. A tradução de César, no entanto, é a mais privilegiada, já que Bliss foi o                               

tema de sua dissertação de mestrado, na qual a poeta explicou e explicitou o seu                             

processo tradutório. Como estava inserida no meio intelectual, César publicou                   

2 Gomes, Darin & Mello, 2015[2006], pp. 36-53. 3 Arbex, Gonçalves & Souza, 2008.  4 Rodrigues & Rego, 2010. 5 Wyler, 2003, p. 129 apud Oliveira, 2015, p. 130. 

  

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INTRODUÇÃO  

  

também diversos escritos em que defende seu posicionamento em relação ao                     

feminismo e à mulher na literatura – e muitos trabalhos acadêmicos exploraram a                         

postura da poeta quanto a essas questões – tanto nas suas produções “originais”                         

quanto em suas traduções, também bastante originais.  

Dos três tradutores elegidos, o trabalho de Julieta Cupertino foi o menos                       

explorado. Embora tenha se dedicado a traduzir o conjunto da obra de Katherine                         

Mansfield para o português, Cupertino talvez não tenha despertado tanto interesse                     

por não ser, também, uma escritora – ao contrário de seus semelhantes, que                         

exerciam suas atividades tradutórias em concomitância com a prática literária.                   

Ainda assim, há dissertações que cotejam suas versões para o português do texto de                           

Mansfield com as de outros tradutores.  

Três traduções, três textos diferentes – isso é indiscutível. Mas alguns                     

questionamentos aqui surgem que parecem não ter surgido em estudos já                     

realizados, como, por exemplo, se há aspectos nas traduções que remetem a uma                         

preocupação com gênero, principalmente nos textos de César e Cupertino. São                     

duas mulheres, em contextos próximos, mas diferentes – César, uma intelectual,                     

ligada ao feminismo; Cupertino, uma senhora dona de casa que passou a exercer o                           

ofício de tradutora apenas aos 80 anos –, traduzindo uma outra mulher, de um                           

período distante daquele quando as versões para o português foram realizadas. Há                       

relações entre suas traduções e o que se convencionou chamar de tradução                       

feminista? As duas tradutoras são contemporâneas a essa discussão: até que ponto                       

o debate as atingiu? Para entender essas questões, a análise aqui elaborada foi                         

fundamentada sobretudo em Godard (1990), Simon (1996) e von Flotow (1997),                     

autoras que teorizaram a chamada tradução feminista. 

Nesse sentido, no primeiro capítulo será feita uma apresentação teórica da                     

escola canadense de tradução feminista, contextualizando seu surgimento dentro de                   

um contexto específico de revisão crítica das ciências humanas – possibilitado pela                       

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BEATRIZ GREGÓRIO DOS SANTOS  

 

entrada do feminismo na academia –; do trabalho de Lori Chamberlain (2005)                       

sobre as metáforas relacionadas ao feminino na tradução; da virada cultural dos                       

estudos da tradução e da emergência de escritoras feministas francófonas do                     

Quebec, autoras de textos que experimentaram com a linguagem patriarcal e a                       

subverteram.  

No segundo capítulo, serão feitas algumas considerações sobre a vida e a                       

obra de Katherine Mansfield, contista neozelandesa que viveu apenas 34 anos. Uma                       

breve biografia da autora será relatada, assim como uma pequena descrição das                       

características de sua poética prosa. Na sequência, será apresentada uma resenha do                       

conto Bliss, para que, na seção seguinte, o contexto de elaboração e a(o)                         

autora(autor) de cada tradução seja discutido. 

No terceiro capítulo, será feita a análise comparativa das três traduções                     

selecionadas a partir dos pressupostos teóricos explorados no primeiro capítulo,                   

tendo como referências principais von Flotow (1991; 1997) e Simon (1996).   

Por fim, as considerações finais retomam as questões mais pertinentes deste                     

trabalho, com base em uma reflexão sobre o que foi aqui estudado.  

 

 

 

 

 

 

 

  

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I  A Escola Canadense de Tradução Feminista 

 

 Ao longo da história ocidental, sempre houve mulheres que se rebelaram                     

contra as condições impostas pela sociedade patriarcal. Apesar disso, foi somente                     

no fim do século XIX que um movimento de mulheres propriamente dito surgiu,                         

quando um grupo – inicialmente na Inglaterra (muito inspirado pela obra de Mary                         

Wollstonecraft), mas posteriormente também em diversos outros países, como o                   

Brasil – se organizou para lutar pelos seus direitos legais e por seu poder político,                             

assim possibilitando o surgimento do feminismo como ideologia política. Esse                   6

momento inicial do movimento feminista – hoje conhecido como a primeira onda                       

feminista – trouxe muitas conquistas às mulheres, inclusive o sufrágio feminino,                     

mas acabou por perder força por volta da década de 1930, só voltando a aparecer                             

com vigor nos anos 1960, quando outras reivindicações entraram em pauta.  

No espaço de tempo que separa esses dois grandes momentos do                     

feminismo, a filósofa francesa Simone de Beauvoir escreveu O segundo sexo, livro                       

que seria fundamental para a próxima onda feminista. Em sua obra, dividida em                         

dois volumes e publicada pela primeira vez em 1949, Beauvoir analisa e questiona a                           

condição feminina na sociedade, mostrando que o fato de a mulher ser “o segundo                           

sexo”, o “Outro”, deve-se a uma série de processos históricos e sociais, e não a                             

razões naturais e imutáveis. Para a autora, a mulher “é o Outro dentro de uma                             

totalidade cujos dois termos são necessários um ao outro”.  7

6 Pinto, 2010. 7 Beauvoir, 2016a[1949], p. 16.

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A ESCOLA CANADENSE DE TRADUÇÃO FEMINISTA  

 

Na primeira parte de Fatos e mitos (o primeiro volume de O segundo sexo),                           

denominada Destino, Beauvoir apresenta e discute três pontos de vista sobre a                       

mulher. Ao longo desses capítulos, intitulados Os dados da biologia, O ponto de vista                           

psicanalítico e O ponto de vista do materialismo histórico, a autora identifica e refuta essas                             

três instâncias – biológica, psicanalítica e histórica – que tentam bloquear a                       

liberdade da mulher, definindo-a e fixando-a a uma situação de não transcendência.                       

A autora recorre também à história da humanidade e aos mitos, religiosos e                         

cotidianos, para entender a condição da mulher na sociedade – desde as sociedades                         

anteriores à agricultura, ainda que pouco se saiba sobre a situação da mulher na                           

época, até o período contemporâneo à escrita do livro. Embora todas as                       

perspectivas contribuam para consolidação da visão da inferioridade feminina,                 

Beauvoir, após analisar cada um dos argumentos delas, conclui que não há razões                         

suficientes que justifiquem a condição da mulher na sociedade. 

Então, no segundo volume, A experiência vivida, Beauvoir discute quais são as                       

condições políticas, psicológicas e sociais que impõem à mulher sua submissão ao                       

outro. A autora analisa cuidadosamente a infância, encontrando diferenciações no                   

tratamento e na criação das meninas e dos meninos, e conclui que desde esse                           

momento a mulher aprende a se colocar e se identificar com sua condição                         

“feminina”. Em seguida, a autora passa a debater sobre a mulher jovem, que vive                           

uma fase de menos liberdade e sonhos do que na infância. De acordo com                           

Beauvoir,  

 

Durante toda a infância a menina foi reprimida e mutilada; entretanto,                     percebia-se como um indivíduo autônomo; em suas relações com os pais,                     os amigos, em seus estudos e jogos, descobria-se então como uma                     transcendência: nada fazia senão sonhar com sua futura passividade. [...] Já                     desligada de seu passado de criança, o presente só lhe aparece como uma                         transição; ela não descobre nele nenhum fim válido, mas tão somente                     

  

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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA  

 

ocupações. De uma maneira mais ou menos velada, sua juventude                   consome-se na espera. Ela aguarda o Homem.  8

 

Simone de Beauvoir também analisa a iniciação sexual da mulher, a                     

lesbianidade, o papel de esposa, mãe e prostituta, a vida social da mulher, sua                           

velhice, seu caráter, os estereótipos femininos e conclui sua argumentação                   

elencando diversos caminhos para a emancipação feminina. Dentre esses,                 

destaca-se a necessidade de permitir às mulheres realizarem-se por meio de projetos                       

próprios, ainda que carreguem incertezas e perigos. A autora, então, finaliza sua                       

longa e importantíssima obra filosófica afirmando que 

 

Libertar a mulher é recusar encerrá-la nas relações que mantém com o                       homem, mas não as negar; ainda que ela se ponha para si, não deixará de                             existir também para ele: reconhecendo-se mutuamente como sujeito, cada                 um permanecerá entretanto um outro para o outro; a reciprocidade de                     suas relações não suprimirá os milagres que engendra a divisão dos seres                       humanos em duas categorias separadas: o desejo, a posse, o amor, o                       sonho, a aventura; e as palavras que nos comovem: “dar”, “conquistar”,                     “unir-se” conservarão seus sentidos. Ao contrário, é quando for abolida a                     escravidão de uma metade da humanidade e todo o sistema de hipocrisia                       que implica, que a “divisão” da humanidade revelará sua significação                   autêntica e que o casal humano encontrará sua verdadeira fórmula.  9

 

As análises e conclusões elaboradas por Beauvoir em O segundo sexo                     

influenciaram fortemente o surgimento, a partir da década de 1960, de uma                       

segunda onda feminista. Esse novo movimento de mulheres, além de ir para as ruas                           

reivindicar direitos ainda não conquistados, também concentrou esforços no                 

trabalho intelectual para a libertação feminina. É nesse momento, mas                   

principalmente a partir da década de 1970, que o feminismo “surge como novidade                         

no campo acadêmico e impõe-se como uma tendência teórica inovadora e de forte                         

potencial crítico e político”, contribuindo, assim, para a revisão crítica de                     10

8 Beauvoir, 2016b [1949], p. 75. 9 Idem, grifos da autora, p. 540. 10 Hollanda, 1994, p. 7.

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diferentes disciplinas científicas e humanistas, a partir do questionamento de seu                     

suposto caráter neutro e objetivo, mostrando que essas disciplinas, na verdade,                     

atendiam os critérios patriarcais, conforme nos explica Castro (2017).  

O debate sobre gênero atingiu primeiramente as ciências sociais, mas logo os                       

estudos da linguagem passaram a ser também um dos focos das lutas feministas:                         

um dos lemas do movimento na década de 1970 dizia justamente que a libertação                           

das mulheres deve, em primeiro lugar, ser uma libertação da/pela linguagem – “la                         

libération des femmes passe par le langage”. Isso porque a língua é o lugar em que os                                 11

sujeitos e suas experiências se constituem e, visto que é permeada por ideologia,                         

nunca é neutra, transparente, mas, como já nos ensinou Bakhtin (2014), sempre                       

opaca; a língua é, portanto, um instrumento de poder. Por meio desse                       

entendimento, feministas começaram a refletir sobre as relações de poder presentes                     

na linguagem e o lugar subordinado que a mulher nela ocupa. Não se vendo                           

representadas, elas passaram a problematizar e a reformular certas leituras há muito                       

consolidadas.  

Assim, para inverter essa ordem, algumas feministas – principalmente as da                     

corrente anglo-saxônica – passaram a “denunciar os aspectos arbitrários e mesmo                     

manipuladores das representações da imagem feminina na tradição literária e                   

particularizar a escrita das mulheres como o lugar potencialmente privilegiado para                     

a experiência social feminina”. Foi com isso em mente que algumas escritoras                       12

feministas – tais como Hélène Cixous na França, Adrienne Rich nos Estados                       

Unidos e Nicole Brossard no Canadá – publicaram, durante as décadas de 1970 e                           

1980, textos em que experimentaram com a linguagem convencional – patriarcal e,                       

portanto, inerentemente misógina, de acordo com as autoras –, desconstruindo-a,                   

11 Simon, 1996, p. 7. 12 Hollanda, 1994, p. 11.

  

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subvertendo-a e atacando-a, de modo a destacar a presença e as experiências das                         13

mulheres.  

Ao apresentar essas autoras, Luise von Flotow (1997) explica que, para elas, a                         

“linguagem não é apenas uma ferramenta de comunicação, mas também uma                     

ferramenta de manipulação”, feita para refletir exclusivamente a vida dos homens,                     14

suas realidades e suas ideias, enquanto as vivências das mulheres permanecem                     

indescritíveis. A única solução possível para mudar esse cenário seria “uma                     

reformulação completa da linguagem para que a especificidade das mulheres possa                     

ser explicada e seu desenvolvimento seja possível”. Assim sendo, tais escritoras                     15

feministas “desafiaram a linguagem padrão e criticaram, reescreveram ou ignoraram                   

dicionários e outros materiais de referência estabelecidos”, pois, em sua visão, “a                       

sintaxe padrão e os gêneros literários estabelecidos refletiam e perpetuavam as                     

estruturas de poder patriarcais”. Tentaram, então, “encontrar uma nova linguagem                   

e novas formas literárias para as mulheres que refletissem e respondessem a suas                         

realidades” e, assim, “começaram a criticar e mudar radicalmente a linguagem                     

existente para que ela se tornasse útil, em vez de inerentemente perigosa para as                           

mulheres”.  16

Dentre as estratégias usadas por essas escritoras feministas, destaca-se aqui a                     

pesquisa etimológica do vocabulário convencional e sua desconstrução; o uso do                     

“e” mudo – que marca o gênero feminino no francês – como crítica ao masculino                             

como termo genérico; trocadilhos e neologismos; a fragmentação da linguagem; o                     

desprezo pelas estruturas gramaticais e sintáticas, além do “desmantelamento de                   

13 Von Flotow, 1991. 14 Esta e todas as demais traduções de obras não traduzidas para o português são minhas. “Language is not only a                                         tool for communication but also a manipulative tool”, Von Flotow, 1997, p. 8.  15 “A full-scale revamping of language so that women's specificity might be accounted for and women's development                                 be made possible”, Idem, 1997, p. 9. 16 “Writers took issue with standard language and criticized, rewrote or ignored dictionaries and other established                               reference materials. They viewed standard syntax and the established literary genres as reflecting and perpetuating                             patriarchal power structures. They tried to find a new language and new literary forms for women that would have                                     reflect and respond to women's realities; they began to criticize and radically change existing language do that it                                   might be rendered useful, rather than inherently dangerous for women”, Idem, 1997, p. 9. 

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palavras individuais, a fim de examinar seus significados ocultos”. Só por meio da                         17

contínua desconstrução da linguagem patriarcal, diz von Flotow (1991), será                   

possível o desenvolvimento do discurso das mulheres, para que, enfim, elas possam                       

ser ouvidas. 

Os estudos da tradução, nesse período, também passavam por uma                   

transformação, por uma “virada cultural”, devido ao surgimento dos estudos                   

culturais – que defendiam a importância do contexto cultural nos estudos                     

científicos – e as teorias pós-estruturalistas – “formulações teóricas que analisam os                       

fenômenos em seu contexto social e político”. Desse modo, o trabalho tradutório                       18

deixou de ser visto apenas como uma mera transposição de significados, um                       

processo de decodificação entre dois sistemas linguísticos diferentes, passando a ser                     

entendido como um processo de transferência cultural. Isso significa que a visão                       19

dos estudos da tradução como uma prescrição do que é uma “boa tradução” –                           

visão dominante durante muito tempo – foi substituída pela abordagem descritiva:                     

“o que fazem as traduções, como elas circulam pelo mundo e provocam                       

respostas?”. O trabalho do(a) tradutor(a) deixa, então, de ser a busca pela                       20

inalcançável fidelidade, pois, de acordo com Arrojo (2000), 

 [...] mesmo que tivermos como único objetivo o resgate das                   intenções originais de um determinado autor, o que somente                 podemos atingir em nossa leitura ou tradução é expressar nossa                   visão desse autor e suas intenções. [...] Nossa tradução de qualquer                     texto, poético ou não, será fiel não ao texto “original”, mas àquilo                       que considerarmos ser o original, àquilo que considerarmos               constituí-lo, ou seja, à nossa interpretação do texto de partida, que                     será [...] sempre produto daquilo que somos, sentimos e                 pensamos.  

17 “The dismantling of individual words in order to examine their concealed meanings”, Von Flotow, 1991, p. 73. 18 Oliveira et al, 2002, p. 2. 19 Idem, ibidem. 20 Simon, 1996, p. 7.

  

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A pessoa que traduz, portanto, passa a ser visível, já que agora está sendo                           

entendida como sujeito inserido em determinado contexto cultural, ideológico e                   

político que não pode ser ignorado na elaboração de uma tradução. Esse novo                         

olhar sobre a realidade já constava na agenda feminista, portanto, sua relação com a                           

tradução seria mutuamente enriquecedora. Assim, algumas tradutoras, que               21

também eram feministas, constataram que ao deixar de marcar conscientemente                   

suas ideologias nas traduções que produziam, estavam, ainda que não                   

propositalmente, aderindo à ideologia dominante, que é patriarcal. Com esse novo                     

olhar sobre o ato tradutório, é possível então pensar em uma teoria e prática de                             

tradução que leve em conta a mulher na linguagem, que torne visível a experiência                           

feminina, que não subscreva-se à ideologia dominante. 

Antes disso, diversas autoras feministas do Quebec – dentre elas, Nicole                     

Brossard e Louky Bersianik – escreveram, em francês, textos que experimentaram                     

com a linguagem patriarcal, subvertendo-a. Suas tradutoras, quando entraram em                   

contato com esses textos para transmiti-los para o Canadá anglófono, começaram a                       

refletir sobre a posição da mulher na linguagem e a questionar suas próprias                         

práticas: é assim que nasce, então, a tradução feminista – resultado direto do                         

trabalho experimental das escritoras quebequenses. Como exemplo mais               

paradigmático desta discussão, von Flotow (1997) nos apresenta o caso de Susanne                       

de Lotbinière-Harwood, feminista e tradutora canadense. Muito experiente na área,                   

Lotbinière-Harwood era conhecida principalmente por traduzir para o inglês os                   

poemas do músico e poeta Lucien Francouer – ela inclusive chegou a ser premiada                           

pela tradução de uma de suas obras. Porém, depois de receber elogios dizendo que                           

sua tradução era ainda melhor que o próprio poema original, Lotbinière-Harwood                     

começou a refletir sobre sua prática; a feminista, então, se deu conta de que suas                             

traduções partiam de uma perspectiva masculina, como se ela mesma fosse um                       

21 Castro, 2017.

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homem olhando para uma mulher e, ao constatar isso, optou por nunca mais                         

traduzir obras literárias escritas por homens.  

A partir de então, a luta de Lotbinière-Harwood por meio da linguagem se                         

deu não só pela sua escolha de não traduzir homens, mas também porque optou                           

por feminizar suas traduções. Quando ela traduz um texto do francês para o inglês                           

em que muitas palavras estão escritas de forma neutra ou “genérica”, ou seja, no                           

gênero masculino, faz questão de colocar todas essas palavras no feminino. Além                       

disso, a tradutora entende que tem o direito de mudar aspectos do texto-fonte em                           

sua tradução, se não concorda com o que a autora diz. É por intermédio de espaços                               

privilegiados como o prefácio que Lotbinière-Harwood explica sua posição e                   

defende sua intervenção. Ao traduzir Lettres d’une autre, de Lise Gauvin, publicado                       

originalmente em 1984 – sua tradução para o inglês foi lançada em 1989 –, por                             

exemplo, a tradutora escreveu: 

 Querido(a) leitor(a), 

Apenas algumas palavras para que saiba que esta tradução é uma reescrita                       no feminino do que eu li originalmente em francês. Não falo de conteúdo.                         Lise Gauvin é feminista e eu também. Mas não sou ela. Ela escreveu no                           genérico masculino. Minha prática de tradução é uma atividade política                   que visa a fazer a língua falar pelas mulheres. Assim, minha assinatura                       numa tradução significa: esta tradução utilizou toda estratégia possível de                   tradução feminista para tornar o feminino visível na linguagem. Isso                   significa fazer com que as mulheres sejam vistas e ouvidas no mundo real.                         E esse é objetivo do feminismo.  22

 

Não só ela, mas diversas tradutoras inseridas no mesmo contexto que                     

Lotbinière-Harwood começaram a refletir sobre “por que estavam trabalhando em                   

22 “Dear reader, just a few words to let you know that this translation is a rewriting in the feminine of what I                                            originally read in French. I don’t mean content. Lise Gauvin is a feminist, and so am I. But I am not her. She wrote                                               in the generic masculine. My translation practice is a political activity aimed at making language speak for women. So                                     my signature on a translation means: this translation has used every possible feminist translation strategy to make the                                   feminine visible in language. Because making the feminine visible in language means making women seen and heard                                 in the real world. Which is what feminism is all about”, Lotbinière-Harwood, 1989, p. 9 apud Von Flotow. 

  

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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA  

 

textos que, de repente, pareciam aliená-las, textos cujas premissas elas não                     

compartilhavam”, ao mesmo tempo em que “descobriam uma escrita feminista                 23

com a qual sentiam intensa afinidade”. Por meio dessa reflexão, ficou claro que                         24

até mesmo a língua pode ser um local de subordinação da mulher pelo homem –                             

para von Flotow (1997), o comportamento linguístico essencialmente patriarcal não                   

é natural; é preciso, pois, encarar essa linguagem de maneira radical, enxergando-a                       

como a própria causa da opressão feminina, “o meio pelo qual cada mulher foi                           

ensinada e passou a ter conhecimento de seu lugar subordinado no mundo”. A                         25

tradução, então, foi apropriada como um dos diversos elementos da luta feminista,                       

a fim de empoderar, representar e evidenciar a mulher na linguagem. Assim, à                         

mulher tradutora é dada a possibilidade de romper com o silêncio imposto e de                           

transmitir as experiências femininas, e sua relação com a linguagem. Em seu                       

trabalho, a tradutora afirma sua diferença crítica e produz um novo discurso, um                         

novo enunciado em detrimento daquele que a oprime. A tradução é, portanto, um                         

meio de criação de novos significados e de novas possibilidades de interpretação; é                         

“uma continuação do processo de criação e circulação de significados dentro de                       

uma rede contingente de discursos”. Mas, como bem explica Simon (1996): 26

 As formas com que as tradutoras chamam a atenção para a sua identidade                         como mulheres – ou mais especificamente como feministas – são                   destacadas aqui para explicar as afinidades ou frustrações que sentem em                     seu trabalho de tradução e para esclarecer textos que exploram os recursos                       dos gêneros gramaticais para fins imaginativos ou políticos. Gênero nem                   sempre é um fator relevante na tradução. Não há características a priori                       que tornem as mulheres mais ou menos competentes em suas tarefas.                     Onde a identidade entra em jogo é o ponto em que a tradutora transforma                           o gênero em um projeto social ou literário.  27

23 “Why they were working on texts which suddenly seemed alien to them, texts whose premises they could not                                     share”, Simon, 1996, p. ix.. 24 “women were discovering feminist writing with which they felt intense affinities”, Idem, ibidem. 25 “the medium through which women were taught and came to know their subordinate place in the world”, Von                                     Flotow,, 1997, p. 8. 26 Castro, 2017, p. 222 27 “The ways in which translators draw attention to their identities as women – or more specifically as feminists – are                                         highlighted here in order to explain the affinities or frustrations they feel in their translation work, and in order to                                       elucidate texts which themselves exploit the resources of grammatical gender for imaginative or political purposes.                             

24 

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A ESCOLA CANADENSE DE TRADUÇÃO FEMINISTA  

 

Para transformar o texto em feminista, essas tradutoras utilizam inúmeras                   

estratégias, mas aqui serão discutidas três delas, conforme apresentadas por von                     

Flotow (1991): (1) supplementing (complementar), (2) prefacing and footnoting                 

(acrescentar prefácio e notas de rodapé) (3) “hijacking” (sequestrar). A primeira                     

dessas estratégias se refere à proposta de Walter Benjamin, que defende que “o                         

texto-fonte é complementado, amadurecido, desenvolvido e ganha uma vida após a                     

morte por sua tradução”. Enquanto Benjamin via a tradução como um ato                       28

apolítico, a tradutora feminista aplica conscientemente a estratégia de seu papel                     

político como mediadora.  

Complementar uma tradução é útil principalmente para compensar as                 

diferenças entre as línguas, pois a tradutora feminista “recupera as perdas                     

intervindo e complementando em outra parte do texto”. Um exemplo de                     29

supplementing que von Flotow (1991) nos apresenta é a tradução de uma frase                         

retirada de L’Euguélionne, livro de Louky Bersianik traduzido por Howard Scott. No                       

original em francês, Bersianik, discutindo sobre as políticas de aborto, diz que “Le                         

ou la coupable doit être punie”. A adição do “e” – marca do feminino em francês – em                                   

“puni” indica claramente que a mulher é a punida por abortar. No inglês, não é                             

possível transferir esse jogo diretamente, já que essa língua não tem gêneros                       

gramaticais. Scott, no entanto, conseguiu contornar bem a situação, encontrando                   

uma solução – o acréscimo do pronome feminino – que complementa essa perda                         

ao criar a frase “the guilty one must be punished, whether she is a man or a woman”.  30

Gender is not always a relevant factor in translation. There are no a priori characteristics which would make women                                     either more or less competent at their task. Where identity enters into play is the point at which the translator                                       transforms the fact of gender into a social or literary project”, Simon, 1996, p. 7. 28 The source text is supplemented by its translation, matured, developed, and given an afterlife”, Von Flotow, 1991,                                   p. 75.  29 “Recoups certains losses by intervening in, and supplementing another part of the text”, Idem ibidem. 30 apud Idem, ibidem. Grifos nossos; todos os grifos são nossos, exceto quando houver indicação em contrário. 

  

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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA  

 

A segunda estratégia usada por tradutoras feministas, prefacing and footnoting,                   

refere-se à escrita de prefácios e notas de rodapés nas traduções, a fim de refletir                             

sobre seus trabalhos e salientar sua presença ativa no texto. Como explica Godard                         

(1990), esses são recursos muito utilizados pelas tradutoras feministas para exibir                     

sua assinatura e ostentar os sinais de manipulação. Assim, a tradutora se mostra                         

como “mais do que uma tradutora convencional; ela é cúmplice da(o) autora(autor),                       

que mantém a estranheza do texto-fonte e busca, ao mesmo tempo, comunicar seus                         

múltiplos significados, de outra forma ‘perdidos na tradução’.”. Nesses lugares                   31

privilegiados, o uso de termos como “subversão”, “intervenção” e “manipulação”                   

são muito frequentes para a descrição de seus trabalhos.  

Por fim, temos a estratégia de hijacking, termo emprestado por von Flotow de                         

um crítico da tradução feminista, que o empregou para criticar as traduções feitas                         

por Susanne de Lotbnière-Harwood, visto que essas têm “interferências                 

excessivas”. Como exemplo do que é considerado “excessivo” para esse crítico,                     32

temos o prefácio, já aqui mencionado, escrito por Lotbnière-Harwood para explicar                     

sua tradução de um livro de Lise Gauvin e suas intervenções conscientes no texto.                           

A tradutora, ao evitar o genérico masculino e criar formas femininas anteriormente                       

inexistentes, torna o feminino visto e ouvido na tradução; ela, assim, “sequestra” o                         

texto, apropria-se dele, tornando-o dela para poder refletir suas próprias intenções                     

políticas. 

Muitas críticas já foram direcionadas a esse olhar sobre a tradução: para                       

Paulo Henriques Britto (2016), por exemplo, propostas de tradução tais como a                       

feminista não são éticas, visto que suas tradutoras são deliberadamente infiéis ao                       

texto-fonte. Britto defende:  

 

31 “She is more than a conventional translator, she is the author’s accomplice who maintains the strangeness of the source text, and seeks at the same time to communicate its multiple meanings otherwise ‘lost in translation’”, Von Flotow, 1991, p. 76. 32 Idem, p. 78. 

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A ESCOLA CANADENSE DE TRADUÇÃO FEMINISTA  

 

O tradutor tem a obrigação de se esforçar ao máximo para aproximar-se                       tanto quanto possível da inatingível meta de fidelidade, e que ele não tem                         o direito de desviar-se desse caminho por outros motivos. [...] O tradutor                       que coloca no texto anacronismos propositais para que o leitor se lembre                       de que está lendo uma tradução, ou que altera uma passagem de modo                         consciente para enunciar uma posição ideológica do autor, está, no meu                     entender, agindo de maneira antiética, na medida em que deveria estar                     atuando na qualidade de tradutor. Ele tem todo o direito de se tornar                         visível, mas as maneiras apropriadas de fazê-lo são outras [...] ele não tem                         o direito de se tornar visível intervindo de modo ostensivo no texto do                         autor, para chamar a atenção do leitor que o que ele está lendo é uma                             tradução; ao agir assim, ele está violando o seu compromisso básico, que                       é o de se esforçar ao máximo para que, após ter lido sua tradução, o                             leitor possa afirmar, sem mentir, que leu o original.  33

 Todas as estratégias de tradução feminista aqui apresentadas mostram que                   

essas tradutoras não têm a pretensão de ser “invisíveis”. Da mesma forma, seu                         

compromisso não é manter-se fiel ao texto de origem, mas sim, de acordo com von                             

Flotow (1997), de manipulação da linguagem para que essa fale em favor das                         

mulheres e vá contra a ordem falocêntrica dominante. E só a infidelidade permite                         

com que sua agenda política vá adiante.  

A tradução feminista é uma operação criativa, não mera reprodução; é uma                       

prática altamente transformadora e de caráter político muito evidente. A recusa da                       

invisibilidade se dá porque essas tradutoras feministas sabem que elas – e todas(os)                         

tradutoras(es), independentemente de suas ideologias – fazem um trabalho                 

importantíssimo em relação à transmissão de ideias, o que influencia diretamente na                       

perpetuação ou contestação dos valores da cultura. Então, em sua visão, a tradução                         

feminista é uma prática necessária. Por isso, conquanto seja extremamente                   

necessário traduzir textos de mulheres, feministas ou não, para desse modo                     

“compactuar de um mercado em expansão, um nicho que precisa ganhar mais                       

visibilidade”, obras clássicas, escritas por homens e lidas tradicionalmente pelo                   34

33 Britto, 2016, p. 38. 34 Schäffer, 2010, p. 280. 

  

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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA  

 

olhar masculino, podem, e devem, ganhar traduções feministas, pois, de acordo                     

com Maria Tymoczko (2013),  

 

A ideologia de uma tradução não reside simplesmente no texto traduzido,                     mas no modo de expressão e na postura do(a) tradutor(a)[...]. Esses                     últimos aspectos são influenciados pelo lugar de enunciação do tradutor                   [...] Tais aspectos da tradução são motivados e determinados pelas                   afiliações culturais e ideológicas do(a) tradutor(a), assim como ou ainda                   mais motivados pela localização espacial e temporal de onde ele (ela) fala.                       

 35

 

Lidas por outro olhar, essas novas traduções podem “refletir e chamar a                       

atenção aos aspectos do texto fonte que são novos, ou inovadores, ou considerados                         

‘úteis’ para o novo público leitor”. É o caso, por exemplo, da The Woman’s Bible                             36

(1895) e da versão francesa da Bíblia publicada em 2001, que trouxeram à tona                           

detalhes do texto bíblico – principalmente em relação às mulheres – que foram                         

apagados ou transformados em suas traduções anteriores. Fato semelhante ocorreu                   

com uma nova tradução para o inglês de Odisseia, a primeira feita por uma mulher,                             

Emily Wilson: agora temos um olhar feminino sobre o grande épico de Homero,                         

um olhar que se sensibiliza com as questões das mulheres e procura, na tradução,                           

soluções para o depreciamento delas, como fizeram alguns tradutores que levaram                     

Odisseia para a língua inglesa. Reescritas de textos clássicos deixam visível que “esses                         

detalhes foram desaparecidos, escondidos e perdidos, de forma que sistemas sociais                     

e políticos inteiros puderam ser fundados na natureza ‘secundária’ das mulheres,                     

vindas em segundo lugar na Criação, derivadas do corpo de Adão [...]”. Essas                         37

novas traduções, feitas por sujeitos que partem de outro lugar discursivo – e                         

sabemos que a “posição a partir da qual o sujeito fala que determina seu dizer” –                             38

35 Tymoczko, 2013, p. 118. 36 Von Flotow, 2013, p. 180. 37 Idem, p. 173.  38 Schäffer, 2010, p. 271.

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A ESCOLA CANADENSE DE TRADUÇÃO FEMINISTA  

 

possibilitam não só novas leituras e interpretações de textos tão consagrados, mas                       

também um olhar diferente para a realidade.   

Embora seja relativamente recente a intersecção entre feminismo e estudos                   

tradutórios, a relação entre tradução e mulher existe há mais tempo. Quando                       

publicou, em 1988, Gênero e a metafórica da tradução. Lori Chamberlain discutiu como                         

historicamente a tradução tem sido comparada à mulher. Explica a autora:  

 Como mostra a pesquisa feminista, em diversas áreas, a oposição entre                     trabalho produtivo e reprodutivo determina o modo como os valores de                     uma cultura atuam: esse paradigma descreve originalidade e criatividade                 em termos de paternidade e autoridade, relegando à figura feminina uma                     série de papéis secundários.  39

 

Assim, enquanto o escrever seria algo original e “masculino”, o traduzir                     

remeteria ao derivado e “feminino”. Portanto, no original residiria “o que é natural,                         

verdadeiro e legítimo; na cópia, o que é artificial, falso e traidor”. Para ilustrar essa                             40

comparação, a autora apresenta algumas metáforas amplamente utilizadas no                 

mundo da tradução. Dessas, a noção de les belles infidèles é o exemplo mais frequente                             

e conhecido: cunhada no século XVII, a metáfora expõe muito bem a sexualização                         

da tradução, captando “uma cumplicidade cultural entre as questões de fidelidade                     

na tradução e no casamento”. O termo evoca a ideia de que as traduções seriam,                             41

assim como as mulheres, ou belas ou fiéis. E, tal como ocorre entre o homem e a                                 

mulher, a relação entre o original e a tradução possui um “contrato implícito”, no                           

qual “a esposa/tradução ‘infiel’ é publicamente julgada por crimes que o                     

marido/original por lei é isento de cometer”.  42

39 Chamberlain, 2005, p. 38. 40 Idem, p. 38. 41 Idem p. 39. 42 Idem, ibidem.

  

29 

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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA  

 

De modo geral, o estudo de Chamberlain sobre as metáforas da tradução                       

explorou a reivindicação do tradutor ao seu direito à paternidade, exigindo que seu                         

texto seja considerado legítimo, pois, em sua visão, seu trabalho é “uma atividade                         

criativa”, uma vez que “traduzir é como escrever”. A autora também enfatizou em                         43

seu texto “os mitos da paternidade (ou autoria e autoridade)” e a “ambivalência                         

sobre o papel da maternidade”. Um dos pontos centrais em Chamberlain é a                         44

discussão sobre como o discurso referente à tradução a relaciona ao feminino, visto                         

que atribuem tanto à tradução quanto à mulher uma função reprodutora, e ambas                         

têm sido ligadas ao produtor/homem/texto original.  

A associação não é à toa: à mulher coube a função de reproduzir a obra                             

literária, encarregando-se sempre de uma tarefa dita secundária, enquanto o homem                     

detinha o direito de produzir tais obras. Foi inclusive por meio da prática de                           

traduzir que as mulheres adentraram o mundo da intelectualidade na Europa                     

Medieval. Isso se deu porque, segundo Simon (1996), às mulheres foram negados                       

os privilégios de autoria: durante a Renascença inglesa, elas “eram encorajadas a                       

traduzir textos religiosos, enquanto eram proibidas de realizar qualquer outro tipo                     

de atividade de redação pública”. A prática tradutória seria, portanto, a única                       45

forma possível de se expressarem pública e criativamente.  

Aqui, fica clara a distinção de valor entre o trabalho produtivo (a autoria,                         

feita pelo homem) e o trabalho reprodutivo (a tradução, realizada pela mulher).                       

Não há nada intrínseco à tradução que a caracterize como uma atividade                       

essencialmente feminina, mas, como diz Chamberlain:  

 

Embora obviamente tanto homens e mulheres façam traduções, a lógica                   binária que nos encoraja a definir o profissional de enfermagem como                     feminino e o de medicina como masculino, o de ensino como feminino e                         

43 Idem, p. 51. 44 Idem, p. 45. 45 “Women were encouraged to translate religious texts when they were forbidden from undertaking any other kind of public writing activity”, Simon, 1996, p. 3. 

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A ESCOLA CANADENSE DE TRADUÇÃO FEMINISTA  

 

o de ensino superior como masculino, o de secretária como feminino e o                         de altos executivos como masculino, também mostra a tradução, de várias                     maneiras, como uma atividade de arquétipo feminino.  46

 

 

A discussão de Chamberlain – que ecoa nos trabalhos das principais teóricas                       

da área, como Barbara Godard (1990), Sherry Simon (1996) e Luise von Flotow                         

(1997) – também influenciou fortemente a junção de duas áreas de pesquisa                       

distintas – os estudos da tradução e o feminismo –, mostrando que ambas têm                           

diversos aspectos em comum: além de serem dotadas de um caráter interdisciplinar,                       

tanto os estudos da tradução quanto o feminismo, lidam com questões vistas como                         

secundárias, derivadas, de “pouca importância”. Então, em um momento de                   

efervescência político-cultural, com o surgimento dos estudos culturais e das teorias                     

pós-estruturalistas, ao mesmo tempo em que feministas quebequenses               

experimentam com a linguagem, as disciplinas se encontram, e estudiosas das áreas                       

começam a pensar uma teoria de tradução feminista. 

Segundo Godard (1990), o discurso feminista envolve a transferência de uma                     

realidade cultural para um novo contexto, no qual tradições literárias são                     

constantemente desafiadas no encontro de diferentes modos de textualização. É                   

um discurso duplo, “o eco do eu e do outro, um movimento para a alteridade”.                             47

Para a autora, mais do que reproduzir, traduzir é produzir; é a partir do ato                             

tradutório que a exploração feminina se torna visível, pois é a tradução feminista                         

que permite que a mulher quebre o silêncio, e transmita suas experiências e sua                           

relação com a linguagem. Essa é uma prática que foge dos padrões tradicionais de                           48

fidelidade - ela é um meio de criação de significados. A tradução, portanto, seria                           

uma maneira de reescrever os sistemas literários.  

46 Chamberlain, 2005, p. 52. 47 Godard, 1990, p. 44. 48 Idem, ibidem. 

  

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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA  

 

Só é possível compreender o encontro da tradução com o feminismo se                       

refletirmos sobre a posição subalterna que a mulher ocupou desde os seus                       

primórdios, o status marginal atribuído à tradução e, também, suas transformações                     

a partir das contribuições de outras áreas na teoria tradutória, uma vez que, como                           

sintetiza von Flotow, “a visão histórica sobre as mulheres e o controle político                         

imposto a elas encontrou um bom paralelo na posição também ‘degradada’ da                       

tradução”. Para Simon:  49

 A entrada do gênero na teoria da tradução tem muito a ver com o                           renovado prestígio da tradução como “reescrita” e como defesa contra as                     forças desenfreadas da globalização, assim como mostra a importância de                   uma ressignificação crítica de gênero, identidade e posições de sujeito                   dentro da linguagem para todas as ciências sociais e humanas.  50

 

Ambas as disciplinas acrescentaram uma a outra, e ainda têm muito a                         

acrescentar, pois desde o surgimento da proposta canadense de tradução feminista,                     

várias outras vertentes do feminismo surgiram. Assim, embora ainda seja vista                     

como o paradigma da tradução feminista, a proposta canadense não é a única                         

legítima: novas teorizações sobre a interação entre os estudos da tradução e o                         

feminismo são possíveis e necessárias para ampliar o debate, como defende Castro                       

(2017).  

 

 * 

49Historical views of women and the political controls imposed upon them thus find an easy parallel in the similarly                                     ‘degraded position of translation” (Von Flotow, 1997, p. 76). 50 “The entry of gender into translation theory has a lot to do with the renewed prestige of translation as a ‘re-writing’                                           and as a bulwark against the unbridled forces of globalization, just as it shows the importance for all the social and                                         human sciences of a critical reframing of gender, identity and subject-positions within language”, Simon, 1996, p. ix.   

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II Considerações Sobre o Objeto de Pesquisa  

   

II. 1. Vida e obra de Katherine Mansfield  51

 

Nascida Kathleen Mansfield Beauchamp, em 1888, Katherine Mansfield foi                 

uma contista neozelandesa de reconhecido talento. Apesar de sua breve existência,                     

a autora deixou uma ampla produção literária: em vida, ela publicou três livros de                           

contos, além de ter tido uma série de artigos dispersos veiculados em diversos                         

periódicos. Após sua morte, em 1923, seu marido tornou público seu diário, uma                         

grande quantidade de cartas que escreveu e vários de seus esboços, rascunhos e                         

contos inacabados. Hoje, Katherine Mansfield é considerada um dos maiores                   52

nomes da literatura de língua inglesa, e até mesmo Virginia Woolf, sua célebre                         

contemporânea, confessou ter enorme admiração pela autora: “eu tinha inveja de                     

sua escrita – a única escrita da qual eu já tive inveja”.  53

Filha de pais aristocratas, Mansfield nasceu na cidade de Wellington, na                     

Nova Zelândia, mas mudou-se para a pequena cidade de Karori em 1893, na qual,                           

aos nove anos, publicou seu primeiro conto em uma revista chamada The Lone                         

Hand. Cinco anos mais tarde, voltou para Wellington, permanecendo até 1903,                     54

quando partiu para Londres com suas irmãs mais velhas, a fim de concluir seus                           

estudos no Queen’s College. Foi ali, na metrópole, que Katherine Mansfield expandiu                       

51 As informações biográficas de Katherine Mansfield aqui relatadas, exceto quando referenciadas, foram coletadas                           em Mansfield, 1996, pp. 9-11. 52 Gomes & Oliveira, 2009. 53 “And I was jealous of her writing — the only writing I have ever been jealous of”, Mizekowsk, 2008, p. 8 apud                                             Teixeira, 2015, p.54. 54 Alan, 2011 

33 

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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA  

 

seus horizontes, vivendo experiências arrojadas. Em 1906, teve que retornar para                     

sua terra natal; contudo, não ficou muito tempo por lá, já que, em Wellington, ela                             

concluiu que seria impossível levar o estilo de vida que desejava. Então, em 1908,                           

embarcou novamente para Londres, após convencer seus pais da seriedade de seus                       

planos como escritora.  

Em Londres, Mansfield viveu uma vida afetiva, social e profissional                   

conturbada, trabalhando intensamente e colaborando em diversas revistas literárias.                 

A liberdade londrina que experimentava, porém, não agradava sua mãe, que a levou                         

para a Baviera, na Alemanha, onde ficou até o início de 1910, quando voltou para a                               

capital inglesa e mudou seu nome, de Kathleen Beauchamp, para Katherine                     

Mansfield – como veio a ser conhecida –, pois, de acordo com Alan (2011), “para                             

tornar-se escritora, ela sentia que deveria afastar-se de seus pais e se aproximar de                           

todas as benécies que a vida urbana moderna poderia lhe oferecer”. Depois dos                         55

primeiros acessos de tuberculose, foi para o sul da França, ficando um ano por lá;                             

mais tarde, voltou à Inglaterra, mas, devido à sua luta contra a doença, Mansfield                           

foi obrigada a viver por temporadas na França e na Suíça, lugares de climas mais                             

amenos do que a Inglaterra. Em janeiro de 1923, aos 34 anos, Katherine Mansfield                           

morreu em Fontainebleau, França; até então, havia publicado três livros de contos                       

– In a german pension (1911), Bliss and other stories (1920) e The Garden party (1922) –,                                 

todos com boa recepção da crítica.  

Formalmente muito bem construídas, as narrativas de Mansfield focalizam o                   

cotidiano e os conflitos internos de seus personagens, com pouca – ou mesmo                         

nenhuma –, ação. Tudo está milimetricamente calculado em sua obra, o que a                         

aproxima muito da poesia – a preocupação com a forma, inclusive, já foi pauta em                             

seu diário: 

55 Idem, p. 15

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O OBJETO DE PESQUISA  

 

Tenho paixão pela técnica. [...] Escolhi não apenas o comprimento de                     cada frase, mas até mesmo o som de cada frase. Escolhi a cadência de                           cada parágrafo, até conseguir que eles ficassem inteiramente ajustados às                   frases, criados para elas naquele exato dia e momento. Depois leio o que                         escrevi em voz alta – inúmeras vezes –, como alguém que estivesse                       repassando uma peça musical – tentando chegar cada vez mais perto da                       expressão perfeita, até lograr alcançá-la por completo.  56

 

Durante sua curta vida, Katherine Mansfield não fez parte de nenhum                     

movimento a favor da causa feminista; porém, em grande parte de sua obra é                           

possível encontrar críticas acerca do papel e da posição da mulher na sociedade                         

inglesa pós-vitoriana – principalmente em Bliss, conto escrito em 1918 – que                       

tornou Mansfield conhecida dentro e fora da Inglaterra. Nesse mesmo ano, o                       

direito ao voto foi finalmente concedido às mulheres do Reino Unido, após anos de                           

protestos das suffragettes; no entanto, conquanto as ativistas desta primeira onda do                       

feminismo muito tenham lutado para garantir-lhes outros direitos políticos, as                   

mulheres ainda eram, como afirma Gomes (2006), escravas do homem e da                       

burguesia e, “fosse da elite ou da classe média, sua vida se passava principalmente                           

no interior da casa, onde recebia aulas de trabalhos domésticos e bordado”.   57

Katherine Mansfield, porém, não se contentou com o que a vida reservava às                         

mulheres, e transgrediu, em sua vida e obra, diversos códigos sociais vigentes em                         

sua época, desafiando os limites estabelecidos nos papéis sexuais. Em sua ficção,                       58

conforme diz Santos, 

As personagens femininas - sendo jovens ou velhas - são situadas dentro                       de uma rede de relações que as conduzem a uma espécie de                       enclausuramento, fato que é enfatizado pela escritora como o resultado                   das imposições do patriarcado à identidade da mulher. Assim, as esferas                     

56 Mansfield, 1996 apud César, 2016[1981] , p. 325. 57 Gomes, 2006, p. 98. 58 Santos, 2010.

  

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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA  

 

sexuais são extremamente ressaltadas pelas suas diferenças, fazendo com                 que o homem, em relação à mulher, seja retratado da maneira mais                       negativa possível.  59

 

Em Bliss, todas essas características são encontradas: seu enredo é                   

aparentemente simples, mas com grande valor crítico, construído por meio de uma                       

a linguagem trabalhada com muito esmero. 

 

II. 2. O conto Bliss 

 

Escrito em 1918 – período de efervescência da primeira onda do feminismo                       

– e publicado em 1920 na coletânea Bliss and other stories, o conto Bliss, de Katherine                               

Mansfield, relata a experiência de extrema felicidade vivida por Bertha Young, uma                       

jovem mulher burguesa, mãe de Little B. e esposa de Harry, que, de repente, é                             

tomada por uma felicidade absoluta e inexplicável, pois se dá conta que sua vida é                             

materialmente perfeita: ela é jovem, tem um marido maravilhoso, uma linda bebê,                       

amigos inteligentes, empregada e uma babá para ajudá-la – não há razão para não                           

ser feliz. Naquele dia, Bertha recebe em sua casa quatro visitas para um jantar – o                               

casal Knight, Eddie Warren e Pearl Fulton, mulher por quem Bertha sentia uma                         

certa atração.  

Durante a reunião, a anfitriã toca o braço quente de Pearl e, a partir desse                             

contato, Bertha sente que está fortemente atraída pela convidada. Mais tarde, a                       

protagonista é tomada por um intenso desejo por seu marido, Harry. No entanto,                         

ao final da festa, enquanto os convidados estão se preparando para partir, Bertha                         

descobre que há algo acontecendo entre aqueles dois personagens que ela deseja.                       

Isso desestabiliza completamente a protagonista, que passa a ter a noção de que sua                           

vida não é tão perfeita quanto imaginava.  

59 Idem, p. 8.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O OBJETO DE PESQUISA  

 

Mas, diferentemente do que se espera, Bertha não reage à traição; ela                       

continua passiva, sem voz e sem força emocional para reclamar a fidelidade de seu                           

marido – uma vez que não foi educada social e mentalmente para enfrentar                         

problemas. Quando, ao final do conto, questiona-se o que acontecerá então,                     60

“possivelmente Bertha não estava incomodada por perder o marido, mas por ter                       

agora que vivenciar uma experiência totalmente inusitada para uma pessoa                   

acostumada e acomodada a uma vida estável e equilibrada”.    61

Essa forte sensação de felicidade que acomete Bertha no início do conto                       

desperta nela “pensamentos novos, desejos libertários para uma mulher de sua                     

época”. Bertha não consegue compreender ou controlar o que sente; de fato,                       62

tinha tudo para ser feliz, portanto, “não deveria haver motivos para insatisfação e                         

Bertha devia se sentir realizada em seu gratificante papel de esposa e mãe, servindo                           

às necessidades da família”, como se sua própria satisfação interior não fosse                       63

relevante. No entanto, a protagonista sente que algo está faltando e, por isso,                         

acredita que está ficando louca. Ao assim retratar Bertha, Katherine Mansfield está                       

criticando a sociedade em que vive, pois, como aponta Alan (2011) “a felicidade e o                             

sucesso eram encontrados no social, através do preenchimento de expectativas                   

exteriores, e não através da satisfação dos desejos íntimos [...]”. Toda a história de                           64

Bliss se passa dentro da casa de Bertha Young durante um único dia; seu enredo é                               

simples, cotidiano, mas revela o grande incômodo de Mansfield quanto à situação                       

em que vivem as mulheres daquele período. Juliano (2010) sintetiza bem essa                       

questão quando conclui:   

 

60 Gomes, 2006. 61 Idem, p. 120-121. 62 Juliano, 2010, p. 2. 63 Gomes, 2006, p. 118. 64 Alan, 2011, p. 27.

  

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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA  

 

E assim é “Bliss”: uma história ambientada num momento extremamente                   importante para as mulheres daquela época – em que feministas lutavam                     por direitos iguais para homens e mulheres – que acontece em um espaço                         comum, extremamente cotidiano para todos nós, isto é, a própria casa da                       protagonista, espaço esse que deveria ser de total liberdade para Bertha e                       não mais uma algema para sua condição de cidadã do gênero feminino –                         um espaço em que ela deveria ter a total possibilidade de agir conforme                         sua própria vontade, sem amarras, sem julgamentos, sem ordens da                   própria babá com relação à sua própria filha –, em um momento que                         parecia ser trivial para aquela família.  65

   

II. 3. As traduções de Bliss para o português brasileiro 

 

Os contos de Katherine Mansfield foram traduzidos para o português                   

brasileiro pela primeira vez alguns anos após a morte da autora. O responsável por                           

sua chegada ao Brasil foi Érico Veríssimo, escritor e tradutor gaúcho que traduziu e                           

publicou – entre 1936 e 1938 – seis contos da autora neozelandesa para uma                           

revista literária da Livraria do Globo. Foi somente no ano de 1940 que Mansfield                           

finalmente passou a ter um livro em edição brasileira: Felicidade (no original Bliss and                           

other stories), também traduzido por Veríssimo e publicado pela Livraria do Globo, é                         

uma obra composta por quatorze contos, incluindo os seis já anteriormente                     

lançados. Em 1969, a coleção foi revisada e publicada pela Editora Nova Fronteira. 

Hoje, uma boa parte dos escritos de Mansfield já encontram-se publicados                     

no Brasil; porém, Bliss foi o conto que mais ganhou edições por aqui. Além da                             

tradução de Veríssimo, outros profissionais se aventuraram na tarefa de traduzi-lo                     

para o português brasileiro. 41 anos depois da primeira publicação de Felicidade, a                         

poetisa Ana Cristina César ganhou o título de Mestre, com distinção, pela                       

Universidade de Essex, na Inglaterra, por sua dissertação intitulada O conto “Bliss”                       

anotado. Nesse trabalho, César traduziu a pequena história de Mansfield para o                       

português brasileiro, dando-lhe o nome de Êxtase e, por meio de 80 notas, explicou                           

65 Juliano, 2010, p. 9.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O OBJETO DE PESQUISA  

 

seu processo tradutório. Embora não tenha sido escrito para publicação no Brasil,                       

Êxtase foi publicado pela primeira vez em nosso país na revista Status-Plus, em                         66

1981. Após sua morte, em 1983, os ensaios sobre tradução e literatura que Ana                           

Cristina César escreveu durante seu período em terras britânicas – incluindo a                       

tradução de Mansfield e suas notas – foram reunidos e deram origem à obra Escritos                             

da Inglaterra, publicada em 1988. Mais tarde, em 1999, a Editora Ática, em parceria                           

com o Instituto Moreira Salles, agrupou esse e outros livros de ensaios de César em                             

um novo e único volume, intitulado Crítica e Tradução.  

Em 1984, poucos anos depois da primeira publicação de Êxtase, o conto Bliss                         

ganhou outra tradução para o português: publicado no livro Aula de canto, pela                         

Editora Global, dessa vez os responsáveis foram Edla Van Steen e Eduardo                       

Brandão. Mais tarde, a Editora Revan incumbiu Julieta Cupertino de traduzir todos                       

os livros de contos de Katherine Mansfield. Sua tarefa iniciou-se pela coleção Bliss                         

and other stories que, em 1991, foi lançada sob o nome de Felicidade e outros contos.                               

Essa, porém, não seria a última tradução de Bliss: em 1997, Maura Sardinha foi a                             

encarregada de traduzi-lo para a Ediouro, que o publicou na coleção de contos As                           

Filhas do Falecido Coronel e outras Histórias. A versão de Bliss mais recente de que se                               

tem notícia é uma adaptação feita por Ana Carolina Vieira Rodrigues em 2007,                         

publicada pela Editora Rideel, juntamente com o conto O estranho. 

Embora seis diferentes versões para o português brasileiro do conto Bliss, de                       

Katherine Mansfield, tenham sido elaboradas até o momento deste estudo, aqui                     

serão analisadas somente as traduções de Érico Veríssimo, Ana Cristina César e                       

Julieta Cupertino. Esse recorte foi feito a fim de investigar as diferenças ideológicas                         

66 De acordo com a cronologia da vida de Ana Cristina César presente na edição de 2016 do livro Crítica e tradução,                                           “Êxtase”, a tradução de César, foi publicada na edição de julho de 1981 da Revista Status-Plus, mas nenhuma outra                                     informação referente a essa publicação foi encontrada.  

  

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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA  

 

no que se refere à imagem da mulher dentro do conto de Mansfield, visto que                             

Veríssimo, um homem, traduziu o conto de Mansfield em um período em que o                           

feminismo não estava em evidência, enquanto as traduções de César e Cupertino                       

foram elaboradas em um período posterior, quando o movimento feminista já                     

havia passado por uma nova onda, e outras pautas sobre a situação social feminina                           

estavam sendo discutidas. Para melhor entendimento do lugar em que se situa cada                         

uma das traduções selecionadas, uma breve biografia de cada um desses tradutores                       

foi elaborada. Cabe mencionar que, de acordo com o prestígio do tradutor, um                         

maior ou menor número de dados foi encontrado.  

 

II. 3. 1. Érico Veríssimo e Felicidade 

 

A Livraria do Globo, editora de Porto Alegre, foi uma das grandes                       

responsáveis pela época de ouro da tradução no Brasil, que seu deu no período de                             

1930 a 1940. Entre seu time de tradutores, havia o gaúcho Érico Veríssimo, escritor                           

consagrado, nascido em 1905, que foi também tradutor, conselheiro literário e                     

revisor de traduções. Veríssimo já havia traduzido alguns contos de Katherine                     

Mansfield para o português brasileiro quando, em 1940, a editora em que                       

trabalhava publicou Felicidade, coletânea que reunia quatorze contos da escritora                   

neozelandesa e que, surpreendentemente, alcançou grande êxito. Uma nota a                   

respeito da recepção de sucesso foi escrita na edição de 26 de outubro de 1940 da                               

Revista do Globo, em um dos quinzenários que a editora então publicava: 

 

Ao publicar a tradução do livro de contos de Katherine Mansfield,                     Felicidade (Bliss), a Livraria do Globo não esperava pudesse essa                   encantadora obra obter o sucesso que vem alcançando no Brasil.                   Katherine Mansfield, pode-se dizer, constitui um caso à parte na literatura                     universal; seus contos, fugindo à técnica usual e embebidos de uma poesia                       diferente, revolucionaram toda a arte novelística inglesa. (...). Felicidade,                 

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O OBJETO DE PESQUISA  

 

cuja primeira edição de 3000 volumes já se encontra esgotada, será                     reeditada ainda este mês, para ingressar no seu sexto milheiro.  67

 

Sua tradução de Mansfield, de fato, foi um grande sucesso, tanto que, em                         

edição posterior, publicada pela Nova Fronteira quase vinte anos após seu                     

lançamento, o livro foi descrito em sua capa como “o best-seller que comoveu                         68

duas gerações”, além de trazer o nome do tradutor em fonte maior do que o nome                               

da autora – o que revela que foi por meio da leitura do texto traduzido que um                                 69

maior número de leitores teve acesso à obra, e não pelo texto-fonte; mas também                           

pode indicar maior relevância do tradutor do que da própria Katherine Mansfield                       

no Brasil. 

Traduzir Katherine Mansfield inspirou profundamente as obras que Érico                 

Veríssimo viria a escrever, pois, segundo o autor/tradutor, a contista neozelandesa                     

lhe ensinou boas lições de escrita. Todavia, o processo de traduzir Bliss foi muito                           

demorado para Veríssimo, que o traduziu “com lento cuidado e comovido                     

carinho”, pois já estava saturado das leituras de Mansfield. Tematizando essa                     70

experiência, o autor/tradutor produziu um texto ficcional intitulado Conversa com o                     

fantasma de K. Mansfield, publicado em 1942 no livro As mãos de meu filho.   

 

II. 3. 2. Ana Cristina César e Êxtase 

 

Poetisa desde muito jovem, Ana Cristina César, nascida em 1952, começou a                       

se interessar pela atividade e teoria tradutórias no início dos anos 1970, quando                         

voltou de um intercâmbio na Inglaterra com uma mala repleta de livros da literatura                           

67 Moreira, 2005 apud Arbex, 2013, p. 36. 68 Mansfield, 1969. 69 Segundo Veríssimo, apud Arbex, 2013, p. 37, o fato de a editora ter colocado seu nome em fonte maior do que o                                             nome de Mansfield na capa de seu livro traduzido é uma “injustiça”.  70 Idem, p. 43.

  

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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA  

 

inglesa, e leu os escritos dos irmãos Haroldo e Augusto Campos, defensores da                         

ideia de “que os tradutores não são uma parte neutra no processo tradutório e que                             

a tradução não é uma mera transposição de conteúdo linguístico”.  71

Aos 19 anos, ingressou na faculdade de Letras da Pontifícia Universidade                     

Católica do Rio de Janeiro, na qual se formou em 1974. Em 1979, concluiu um                             

mestrado em comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro. No mesmo                       

ano, retornou à Inglaterra, dessa vez para realizar um mestrado em Theory and                         

Practice of Literary Translation, na Universidade de Essex. Sua dissertação era                     

composta por uma tradução para o conto Bliss, de Katherine Mansfield, antecedida                       

por uma introdução em que comenta seu processo de tradução, e sucedida por                         

oitenta notas, nas quais justifica suas escolhas tradutórias.  

Com esse trabalho, a poetisa/tradutora recebeu, em 1981, com distinção, o                     

título de Master of Arts. Foi durante o período em que esteve em terras britânicas                             

que ali emergiram os estudos de gênero; Gomes (2006) argumenta que esses                       

estudos certamente influenciaram sua composição poética, sua escolha por traduzir                   

Mansfield e sua própria prática tradutória. Como afirma Alan (2011): 

 A tradução de Bliss por Ana Cristina César se deu em um momento de                           grande efervescência cultural. Havia um novo olhar sobre a função da                     mulher, do negro, dos homossexuais e as literaturas periféricas estavam                   emergindo. Além disso, o pensamento desconstrutivista possibilitou a               valorização do ato de traduzir e a saliência do seu caráter histórico. A                         prática dos irmãos Campos, em território nacional, também relativizava as                   posturas de tradutor, autor, tradução, texto original, e defendia a iniciativa                     criativa por parte do tradutor. Em meio a todas essas mudanças                     significativas do modo de pensar e conceber o universo de valores, a                       tradução de Ana Cristina César aparece tomada de escolhas e notas que a                         descobrem como uma mulher do seu tempo.   72

   

71 Gomes, 2006, p. 103. 72 Alan, 2011, p. 89.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O OBJETO DE PESQUISA  

 

 II. 3. 3. Julieta Cupertino e Felicidade 

 

Diferentemente dos outros dois tradutores selecionados neste estudo, Julieta                 

Cupertino não foi, além de tradutora, autora de prosa e/ou poesia; possivelmente                       

por essa razão há poucas informações disponíveis sobre sua vida. Sabe-se apenas                       

que, nascida em 1907, foi dona de casa até os 50 anos, quando decidiu lecionar                             

inglês.  

Após se aposentar e passar por um período de inatividade, seu filho, dono da                           

Editora Revan, a incumbiu – quando ela já estava na casa dos 80 anos – de traduzir                                 

o conjunto da obra de Katherine Mansfield para o português, além de trechos                         

selecionados de suas cartas e diários.  

 

 

  

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III Análise Comparativa de Três Traduções de Bliss 

 

 

Neste capítulo, serão cotejadas três traduções para o português brasileiro do                     

conto Bliss, de Katherine Mansfield. As traduções selecionadas foram Felicidade,                   

feita por Érico Veríssimo, e publicada pela primeira vez em 1940; Êxtase, realizada                         

por Ana Cristina César, em 1981; e Felicidade, tradução de Julieta Cupertino, feita                         

em 1992.  

O objetivo deste estudo é comparar as três traduções, analisando suas                     

diferenças ideológicas, a fim de saber se há escolhas tradutórias que remetem ou a                           

uma preocupação com a questão de gênero e feminismo, ou a um conservadorismo                         

em relação à mulher.  

Pretende-se, principalmente, investigar se na reescrita de Ana Cristina César                   

há elementos que aludem à tradução feminista, como descritos por Godard (1990),                       

von Flotow (1991; 1997) e Simon (1996), uma vez que César, além de ter vivido                             

durante o período de efervescência dessas discussões, é lida como autora feminista                       

pela crítica.  

Da mesma forma, o texto traduzido por Veríssimo será analisado a fim de                         

entender como sua tradução se situa nessa questão, já que, durante a época em que                             

traduzia Mansfield, o pensamento e a tradução feministas ainda não tinham sido                       

teorizados. Embora pouco se saiba sobre a vida e o posicionamento político de                         

Julieta Cupertino, sabe-se que sua tradução do conto de Mansfield foi publicada                       

quando a tradutora já estava na casa dos 80 anos, depois de ter passado boa parte                               

de sua vida como dona de casa. Tendo isso em vista, as considerações sobre                           

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ANÁLISE COMPARATIVA DE TRÊS TRADUÇÕES DE BLISS  

 

Cupertino irão partir da hipótese de que ela tenha feito decisões de tradução mais                           

conservadoras do que as de Ana Cristina César. 

Cabe ressaltar que não é propósito deste texto analisar formal e                     

estilisticamente essas traduções, a fim de comentar erros ou inadequações, versões                     

melhores ou piores, pois trabalho semelhante já foi feito por outros autores, os                         

quais foram citados na Introdução.   

Traduzir o conto Bliss, de Katherine Mansfield, mostra-se uma tarefa                   

desafiadora desde o seu título, pois não há uma palavra em português que englobe                           

todos os sentidos que a palavra bliss incorpora em inglês. De acordo com os                           

dicionários de língua inglesa, o vocábulo que nomeia o conto de Mansfield                       

significa: 

 

Bliss - noun. 1. Perfect happiness; great joy. 2. A state of spiritual                         blessedness, typically that reached after death.  73

Bliss - noun. 1. Perfect happiness. 2. In American English: complete                     happiness”.  74

 

Entre as três traduções elegidas, temos duas escolhas diferentes para o título                       

do conto de Mansfield: felicidade e êxtase. Segundo o Dicionário Caldas Aulete, essas                         

palavras têm como significado:  

 

Felicidade – substantivo feminino. 1. Qualidade, condição ou estado de                   feliz; grande satisfação ou contentamento. 2. Boa sorte. 3. Bom êxito em                       algo que se fez; sucesso.   75

Êxtase – substantivo masculino. 1. Estado de arrebatamento causado                 por um prazer muito forte ou por uma grande admiração; arroubo;                     

73 Oxford Living Dictionaries, 2018. 74 Cambridge Dictionary, 2018. 75 Dicionário Caldas Aulete, 2018. 

  

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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA  

 

encantamento. 2. Estado espiritual de profundo enlevo, esp. na                 experiência religiosa da contemplação de Deus ou de entidade santa.  76

Ainda que felicidade tenha sido escolhida pela maior parte dos tradutores, essa                       

palavra parece estar aquém da sensação que Bertha, a protagonista de Bliss, sente                         

no decorrer do conto de Mansfield. Êxtase também traz outros sentidos que não                         

são aparentes em bliss: o vocábulo adotado por César para intitular sua tradução                         

ousa ao intensificar o sentimento vivido por Bertha. Como explica Alan (2011), a                         

tradução de Ana Cristina César “não vai falar de plena satisfação, mas de                         

sentimentos intensos que flertam com a força da entrega ao desconhecido” – o                       77

que não é visto nas traduções que optaram pelo título Felicidade. Ana Cristina César                           

sabia a dificuldade de traduzir esse título, e, na primeira nota a sua tradução, explica                             

o porquê: 

 

Decidi usar “êxtase”, porque exprime uma emoção que, ou ultrapassa a                     palavra “felicidade”, ou é mais forte do que ela. Creio que é importante                         estabelecer a diferença entre os dois termos. Êxtase sugere a sensação de                       uma espécie de suprema alegria paradisíaca, que só pode ser sentida em                       ocasiões muito especiais: em momentos de satisfação na relação                 bebê/mãe, em outras relações apaixonadas “primitivas”, em fantasias               homossexuais, no êxtase religioso e, muito raramente, na “vida real”, nos                     relacionamentos entre adultos. Poder-se-ia dizer que o êxtase é,                 basicamente, uma emoção imaginária cheia de força e do poder próprios                     do imaginário. [...] “Êxtase” foi a palavra que escolhi para traduzir bliss.                       É uma palavra forte, proparoxítona de boa cepa, tem uma aguçada                     tonalidade religiosa e não pode ser confundida com just plain happiness                     (felicidade).  78

 

Ao afirmar que as palavras “bliss” e “êxtase” estão associadas à felicidade que                         

existe nas relações homossexuais, enquanto “felicidade” remete ao amor                 

heterossexual, Ana Cristina César parece fazer referência à atração que a                     

protagonista Bertha sente por Miss Fulton, uma das convidadas para seu jantar.                       

76 Idem, 2018. 77 Alan, 2011, p. 97. 78 César, [1981] 2016, pp. 368-369. 

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ANÁLISE COMPARATIVA DE TRÊS TRADUÇÕES DE BLISS  

 

Dentre as oitenta notas de sua tradução, César achava que apenas essa primeira                         

deveria ser mantida em uma edição para o público brasileiro. Também é importante                         

destacar que, embora tenha traduzido bliss por “êxtase”, Ana Cristina César                     

manteve no título, entre parênteses, o termo em inglês.  

Julieta Cupertino, em nota de rodapé, também justifica a escolha para o                       

título de sua tradução; reconhecendo a impossibilidade de correspondente exato em                     

português para bliss, a tradutora afirma que preferiu “felicidade, simplesmente, por                     

ser a opção mais simples, não excessiva, embora fique faltando alguma coisa”.  79

Como é possível ver na leitura das duas notas, ambas as tradutoras tinham                         

consciência de que suas escolhas ou eram insuficientes, ou iam além do sentimento                         

experimentado por Bertha. No entanto, apenas César parece entender que, por                     

assim escolher, outras leituras seriam possíveis para o conto de Mansfield conforme                       

sua tradução. Felicidade, como disse Cupertino, é uma “opção mais simples”, mas                       

também é a opção mais tradicional, mais conservadora, enquanto Êxtase é mais                       

ousada. Já a partir do título pode-se inferir o tom que cada tradução terá. 

Antes de iniciar a análise dos trechos selecionados, é importante ressaltar                     

que, embora narrado em terceira pessoa, o ponto de vista sobre os acontecimentos                         

em Bliss é quase sempre o de Bertha; o leitor vê a ação filtrada pela mente da                                 

protagonista, como explica Ana Cristina César ([1981] 2016). Dito isso, olhemos                     80

uma parte do segundo parágrafo do conto: 

79 Mansfield, 1992, p. 11 80 Optamos por referenciar as duas datas (a da publicação original e a da edição usada no cotejo) para explicitação                                       cronológica. 

  

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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA  

 

   

Texto-fonte  Trad. de Veríssimo  Trad. de César  Trad. de Cupertino What can you do if you           are thirty and, turning       the corner of your own         street, you are     overcome, suddenly by     a feeling of bliss [...].  ( p. 69) 

Que é que podemos       fazer se temos trinta       anos e, ao dobrar a         esquina de nossa     própria rua, somos     invadidos subitamente   por uma sensação de       felicidade [...]. (p. 1) 

O que fazer se aos         trinta anos, de repente,       ao dobrar uma esquina,       você é invadida por       uma sensação de êxtase       [...].  (p. 353) 

O que pode alguém       fazer quando tem trinta       anos e, virando a       esquina de repente, é       tomado por um     sentimento de absoluta     felicidade [...].  (p. 11). 

 

 

No original, o uso do pronome “you” aproxima o leitor à situação narrada,                         

provocando uma identificação daquele que lê com Bertha. Cupertino, porém, ao                     

utilizar “alguém” como o sujeito da oração, distancia o leitor do                     

narrador/personagem. Por outro lado, Érico Veríssimo e Ana Cristina César                   

mantêm, em suas traduções, a proposta do texto-fonte: enquanto, no recorte acima,                       

o autor gaúcho usa a primeira pessoa do plural, César opta por traduzir o pronome                             

literalmente. Ambas as opções dão o mesmo efeito de proximidade, como se o                         

leitor fizesse parte da história.  

No entanto, a tradução de César revela algo interessante: ao traduzir                     

literalmente “you” para o português, a tradutora precisa definir o gênero gramatical                       

do verbo posposto ao pronome sujeito, o que não acontece no trecho em inglês.                           

Na língua inglesa, “you”, independentemente da conjugação do verbo, pode ser                     

tanto masculino quanto feminino – e plural também –, mas, em sua tradução, Ana                           

Cristina César emprega o verbo no singular feminino, definindo o “você” – a                         

leitora – como mulher, o que nunca esteve explícito no texto original de Mansfield.                           

Ao assim escolher, César evidencia a mulher na linguagem, tal como fazem as                         

tradutoras feministas do Quebec apresentadas por Simon (1996) e von Flotow                     

(1997) – aqui discutidas previamente –, que, em seus trabalhos, destacam                     

constantemente o feminino. 

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ANÁLISE COMPARATIVA DE TRÊS TRADUÇÕES DE BLISS  

 

Mais adiante no conto, Bertha dialoga com Mary, a empregada doméstica de                       

sua casa, e pede para que ela traga as frutas para a sala de jantar: 

 

Texto-fonte  Trad. de Veríssimo  Trad. de César  Trad. de Cupertino 

“Bring the fruit up to         the dining-room, will     you?”. (p. 9). 

“Traze as frutas para cá,         sim?”.  (p. 2). 

“Traga as frutas para a         sala de jantar, por favor         [...]”.  ( p. 353). 

“Traga as frutas para a         sala de jantar”. (p. 12). 

 

O uso de “will you” ao final da frase dá um tom gentil ao pedido, e Veríssimo                                 

e César reproduziram isso em suas traduções – o primeiro utilizou um “sim?” em                           

sua frase; a segunda optou por substituí-lo por “por favor”, que, inclusive, é mais                           

marcadamente educado do que a opção de Veríssimo. Cupertino, por sua vez,                       

apenas omitiu esse fragmento em seu trabalho, produzindo mais uma ordem do                       

que um pedido cortês, o que acaba por reforçar a relação desigual e autoritária entre                             

empregada e patroa, o que, se visto pela perspectiva feminista, não é adequado, pois                           

evidencia a opressão de uma mulher sobre outra. 

No texto de Mansfield, quando vai se referir à babá de sua filha, a                           

protagonista alterna entre dois nomes: “nurse” e “Nanny”, ambos remetendo à                     

própria profissão da personagem, como se vê no seguinte recorte: 

 

Texto-fonte  Trad. de Veríssimo  Trad. de César  Trad. de Cupertino 

“Is nurse back?”. (p.       69). 

“Has she been good,       nanny?”.  

(p. 70). 

“A nurse voltou?”. (p. 2). 

“Ela se comportou     direitinho, Nanny?”. 

(p. 3). 

“A babá já voltou?”.  (p. 353). 

“Ela ficou boazinha,     babá?”. 

(p. 355). 

“A babá voltou?”.  (p. 12). 

“Ela tem estado bem,       Nanny?”. 

(p. 13). 

  

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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA  

 

Veríssimo não traduz nenhum dos termos referentes à mulher que cuida do                       

bebê de Bertha: quanto a “nurse”, Alan (2011) declara que possivelmente essa                       

palavra era usada “no Brasil quando da tradução, ao ponto de seu texto não causar                             

estranhamento aos leitores da época”; porém, o leitor de hoje que não tem                         81

conhecimento da língua inglesa, só entenderia seu significado mais adiante no                     

conto, pelo contexto. Julieta Cupertino optou por traduzir “nurse” por “babá”, mas                       

também manteve “Nanny” em sua tradução, levando o leitor a crer – assim como                           

Veríssimo – que esse é o nome da personagem, quando, na verdade, é apenas outro                             

termo para aludir a sua profissão. Ana Cristina César traduz ambos os termos para                           

“babá” e, dessa forma, não deixa margem para a interpretação de que Bertha, ao                           

chamar a mulher que cuida de sua filha pelo seu suposto primeiro nome, tem com                             

ela uma relação amigável para além da profissional – e, por isso, infere-se uma                           

relação tensa –, como se vê mais adiante no texto.  

Embora seja uma relação patroa-empregada, no texto de Mansfield, a babá                     

alterna, em diversos momentos, os pronomes para tratar de Bertha: ora refere-se à                         

patroa como “m’m”, ora apenas como “you”. Os dois casos podem ser vistos nas                           

falas da babá selecionadas a seguir: 

 

Texto-fonte  Trad. de Veríssimo  Trad. de César  Trad. de Cupertino 

“Oh, you should have       seen her”.  

“Well, M'm, she     oughtn't to be changed       hands while she's     eating”. (p. 71). 

“Ah! Eu queria que a         senhora visse...”. 

“Ora, Madame, não se       deve trocar a mão que         está dando a comida do         nenê”. (p.3). 

 

“[...] só vendo”. 

“Não é bom para ela         mudar de mãos durante       a refeição”. (p. 355). 

“Ah! a senhora devia       ter visto.”.  

“Bem, madame. Ela     não devia mudar de       mãos enquanto come”.     (p. 13). 

81 Alan, 2011, p. 105. 

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ANÁLISE COMPARATIVA DE TRÊS TRADUÇÕES DE BLISS  

 

Nos trechos supracitados, pode-se ver que as traduções de Veríssimo e                     

Cupertino, quanto aos pronomes referentes à Bertha, são as mesmas; ambos usam                       

“senhora” e “madame” como equivalente a “you” e “M’m”, respectivamente. O                     

curioso é que César omite, nas duas ocorrências, os pronomes. Enquanto Érico                       

Veríssimo e Julieta Cupertino reforçam, como visto acima, a relação desigual entre                       

patroa e empregada, Ana Cristina César simplesmente suprime os pronomes de                     

tratamento, deixando o tom da babá mais informal, e apagando, de certa forma, a                           

tensão existente entre as duas.  

Outro trecho que ilustra essa tensão entre patroa e empregada é a fala de                           

Bertha que antecede a segunda frase do quadro acima. Para que a situação possa ser                             

melhor visualizada, o diálogo entre Bertha e a babá será transcrito a seguir: 

 

Texto-fonte  Trad. de Veríssimo  Trad. de César  Trad. de Cupertino 

“Oh, nanny, do let me         finish giving her her       supper while you put       the bath things away”.  “Well, M'm, she     oughtn't to be changed       hands while she's     eating”. (p. 71). 

“Oh, Nanny, deixa que       eu acabe de dar a         comidinha dela,   enquanto tu arrumas as       coisas do banho!”. “Ora, Madame, não se       deve trocar a mão que         está dando a comida do         nenê”. (p. 3). 

 

“Babá, deixa que eu       termino de dar a       comida dela enquanto     você arruma as coisas       do banho”. “Não é bom para ela         mudar de mãos durante       a refeição”. (p. 355) 

“Ah! Nanny, deixe que       eu termine de dar o         jantar dela, enquanto     você arruma o     banheiro”. “Bem, madame. Ela     não devia mudar de       mãos enquanto come”.     (p. 14). 

 

No paralelismo criado por Mansfield com “Oh, nanny” e “Well, M’m”, há uma                         

sutil batalha entre Bertha e a babá. Érico Veríssimo e Julieta Cupertino mantiveram                         

esse recurso em suas traduções: “Oh, Nanny” e “Ora, Madame”, e “Ah, Nanny!” e                           

“Bem, madame”, respectivamente. Na reescrita de Ana Cristina César, porém, a                     

tensão foi mais uma vez suprimida. 

  

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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA  

 

Durante a leitura atenciosa da tradução de Veríssimo, foi possível perceber                     

que o tradutor, em diversos momentos, cortou trechos presentes no texto-fonte. O                       

momento em que isso acontece pela primeira vez se dá quando Bertha está rindo,                           

em estado de completa felicidade: 

Texto-fonte  Trad. de Veríssimo  Trad. de César  Trad. de Cupertino 

“‘No, no. I’m getting       hysterical”. And she     seized her bag and coat         and ran upstairs to the         nursery.  (p. 70). 

Apanhou a bolsa e o         casaco e subiu correndo       para o quarto da filha.         (p. 2). 

“Não, não. Estou     ficando histérica”. E ela       agarrou a bolsa e o         casaco e correu escada       acima para o quarto do         bebê. (p. 354). 

“Não, não. Estou     ficando histérica”.   Pegou sua bolsa e seu         casaco e subiu correndo       para o quarto da filha.  (p. 13). 

 

Para conjecturar o porquê de Veríssimo ter eliminado a frase inicial do                       

parágrafo acima, vejamos o significado dos termos hysterical, em inglês, histérica, em                       

português, opção usada nas traduções de César e Cupertino, e histeria, também em                         

português: 

 Hysterical – ADJECTIVE. 1. Affected by or deriving from wildly                   uncontrolled emotion. 1.1 informal Extremely funny. 2. Relating to or                   suffering from hysteria.  82

 

Histérica – substantivo feminino. 1. mulher que padece histeria. 2. (Fig.)                     Mulher desequilibrada, mulher de caprichos insensatos. 3. (Pop.)               Ninfomaníaca. F. fem. de Histérico.  83

 

Histeria – substantivo feminino. 1. Psiq. Neurose cujos sintomas se                   manifestam por meio de distúrbios corporais, sem que existam                 problemas orgânicos. 2. Reação emocional exagerada em face de                 estímulos sociais ou sentimentais.  84

 

82 Oxford Living Dictionaries, 2018. 83 Dicionário Caldas Aulete, 2018. 84 Idem, 2018. 

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ANÁLISE COMPARATIVA DE TRÊS TRADUÇÕES DE BLISS  

 

Definir uma mulher como “histérica”, em português ou em inglês, tem uma                       

conotação altamente negativa - nos verbetes supracitados, pode-se ver que em                     

português ainda mais do que em inglês. Mesmo assim, as duas tradutoras decidiram                         

manter em seus textos tal adjetivo, porque Mansfield, ao assim retratar Bertha,                       

expõe sua crítica à representação da mulher na sociedade pós-vitoriana. Dessa                     

forma, conservar o trecho em que esse adjetivo aparece não é apenas respeitar o                           

texto-fonte, mas também fazer uma escolha ideológica, feminista de fato, e está de                         

acordo com os pressupostos das tradutoras feministas, que expõem e explicitam em                       

suas traduções as visões negativas do homem sobre a mulher, mesmo quando não                         

presentes no original. Veríssimo, ao suprimir deliberadamente a frase e, por                     

conseguinte, o adjetivo, não só omite esse olhar do homem da época de Mansfield                           

sobre a mulher, mas também nega à Bertha o direito de viver “uma emoção                           

descontrolada”. 

Veríssimo, assim como Cupertino, fez também uma escolha que estaria de                     

acordo com a tradução feminista nesse mesmo trecho, quando traduz “nursery” por                       

“o quarto da filha”, embora a ideia do termo em inglês, nessa tradução, seja deixada                             

de lado – o que não vemos na tradução de Ana Cristina César, que optou por                               

traduzir “nursery” como “quarto do bebê” ; em diversos momentos, a criança de                         

Bertha é referenciada apenas como “the baby” ou “Little B.”. No entanto, sabe-se                         

que, devido aos pronomes usados, a criança de Bertha é uma menina e, por um                             

olhar feminista, evidenciar o gênero da filha, sempre que possível, seria o mais                         

apropriado.  

Assim sendo, a tradução de César apaga o feminino nesse contexto, visto                       

que a tradutora poderia ter utilizado “quarto da bebê”, sem nenhuma perda em seu                           

texto. Em outros momentos do conto, Little B. é mencionada, seja como “the baby”                           

  

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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA  

 

– substantivo sem gênero –, ou por meio de pronomes femininos que a retomam.                           

Nos textos em português brasileiro, os tradutores variaram no uso de substantivos                       

masculinos e femininos, como se pode observar nos seguintes exemplos: 

 

Texto-fonte  Trad. de Veríssimo  Trad. de César  Trad. de Cupertino 

[…] We went to the         park and I sat down on           a chair and took her out           of the pram and a big           dog came along and put         its head on my knee         and she clutched its ear,         tugged it. 

Bertha wanted to ask if         it wasn't rather     dangerous to let her       clutch at a strange dog's         ear. (p. 70). 

[...] Fomos ao parque,       eu me sentei num       banco, tirei o nenê do         carrinho, um cachorro     grande chegou, botou a       cabeça no meu joelho e         ela agarrou as orelhas       do cachorro e puxou.  

Berta quis perguntar se       não era um pouco       perigoso deixar a     menina pegar as orelhas       de cachorros   desconhecidos.(p. 3). 

[...] A gente foi ao         parque e eu sentei e         tirei ela do carrinho e         apareceu um cachorro     enorme e ele deitou a         cabeça no meu colo e         ela agarrou a orelha       dele e deu um puxão. Bertha queria perguntar     se não era perigoso       deixar um bebê agarrar       a orelha de um       cachorro estranho. (p.     355). 

[...] Fomos ao parque;       eu me sentei em uma         cadeira e tirei-a do       carrinho. Um cachorro     enorme veio até nós, e         pôs a cabeça sobre       meus joelhos. Ela     agarrou a orelha dele, e         puxou.  Bertha teve vontade de       perguntar se não seria       perigoso deixar que a       criança puxasse a orelha       de um cão     desconhecido. (pp. 13-14). 

 

No trecho em inglês acima, sempre que há referência à Little B., são usados                           

os pronomes pessoais femininos “her” e “she”, que funcionam, respectivamente,                   

como objeto e sujeito nas frases. Em português, há apenas um pronome pessoal                         

para as duas funções: “ela”. Ana Cristina César, em duas ocasiões, usou esse                         

mesmo pronome para traduzir “her” e “she”, porém, em um terceiro caso, para                         

evitar ambiguidade, ela optou por, no lugar de “her”, escrever “um bebê”. O                         

narrador, ao dizer “to let her clutch”, está se referindo à Little B., filha de Bertha, não                                 

a qualquer bebê, como a tradução de César faz parecer – essa escolha mostra frieza                             

e distanciamento em relação à criança. Além disso, utilizar “bebê”, um substantivo                       

masculino, para falar de Little B. não evidencia o feminino na linguagem, como “a                           

menina”, opção que Veríssimo faz.  

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ANÁLISE COMPARATIVA DE TRÊS TRADUÇÕES DE BLISS  

 

A reescrita desse trecho em português por Veríssimo, no entanto, não está                       

inteiramente de acordo com a tradução feminista, pois o primeiro “her” no                       

texto-fonte é traduzido por Veríssimo como “o nenê”, outro substantivo                   

masculino. Somente Cupertino usou, em todos os casos, substantivos e pronomes                     

femininos; sua última solução, porém, também não está em total consonância com                       

a visão feminista de tradução, principalmente aquela mais radical, defendida por                     

von Flotow (1997), já que o emprego de “a criança” não explicita o gênero. 

No parágrafo de introdução dos convidados para o jantar de Bertha, o                       

narrador apresenta o casal Knight pela primeira vez, descrevendo-os da seguinte                     

maneira: 

 

Texto-fonte  Trad. de Veríssimo  Trad. de César  Trad. de Cupertino 

The Norman Knights –       a very sound couple –         he was about to start a           theatre, and she was       awfully keen on interior       decoration.  (p. 72). 

Os Norman Knights –       casal muito correto; ele       estava para abrir um       teatro e ela se entregava         apaixonadamente à   decoração de interiores.     (p. 4). 

Os Norman Knight –       um casal sólido –, ele ia           abrir um teatro, ela era         entusiasmada por   decoração de interiores.  (p. 356). 

Os Norman Knights,     um casal muito distinto       – ele estava abrindo um         teatro e ela tinha muito         entusiasmo por   decoração de interiores.     (p. 15). 

 

Ao traduzir a expressão “awfully keen” por “se entregava apaixonadamente”,                   

Veríssimo exagera o interesse de Mrs. Knight por decoração de interiores – não é                           

exatamente paixão que ela sente, mas um grandíssimo entusiasmo. Sua opção                     

tradutória reforça a ideia de que mulheres são sempre mais sentimentais e                       

passionais do que homens, mesmo em suas profissões ou hobbies, ao contrário dos                         

homens, seres mais “racionais”. No trecho seguinte, observa-se a relação entre                     

homem e mulher no casal Knight: 

  

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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA  

 

 

Texto-fonte  Trad. de Veríssimo  Trad. de César  Trad. de Cupertino 

And Mrs. Norman     Knight: “Oh, Mr.     Warren, what happy     socks?”.  “I am so glad you like           them,” said he. (p. 74). 

A Sra Norman Knight:       “Oh, Mr. Warren, que       carpins de bom gosto!” “Folgo em saber que os         aprecia” – respondeu     Warren. (p. 8). 

E a sra. Norman       Knight: “Ah, mas que       escolha tão feliz de       meias, sr. Warren!”. “Fico tão contente que       a senhora tenha     gostado”, disse Eddie.     (p. 360). 

A Sra. Knigth (sic)       interveio: “Mas que     meias lindas, Sr.     Warren!” “Que bom que a       senhora tenha gostado     delas”, disse ele.  (p. 19). 

 

Conforme o quadro acima, o casal Knight é apresentado ao leitor a partir do                           

nome e sobrenome do marido. No trecho selecionado, a esposa é referida, mais                         

uma vez, com o nome de seu cônjuge. Veríssimo e César mantêm, em suas                           

traduções, a escolha de Mansfield, mas Cupertino suprime o primeiro nome,                     

referindo-se à esposa apenas como “Sra. Knight”. Ainda atualmente, a mulher pode                       

ser reconhecida pelo sobrenome do marido, mas dificilmente se usa o primeiro                       

nome do cônjuge para denominá-la. Assim, ela não só perde o sobrenome como                         

também o próprio nome – e sua identidade –, já que passa a ser exclusivamente a                               

esposa de alguém. Nesse caso, então, a escolha de Cupertino deixa mais sutil essa                           

relação de perda do nome próprio.  

Na resposta de Eddie Warren ao comentário recebido, o personagem, no                     

texto em inglês, trata a Sra. Knight pelo pronome “you”; César e Cupertino, porém,                           

substituem-no por “senhora”, atribuindo ao diálogo uma seriedade e formalidade                   

não presente no original. Para evitar esse problema, Veríssimo simplesmente traduz                     

“you” pelo pronome oblíquo “os”. No entanto, ainda que imprima mais respeito do                         

que o texto-fonte, o uso de “senhora” marca que Warren está falando com uma                           

mulher; mesmo que já esteja claro pelo contexto, as escolhas das tradutoras                       

brasileiras evidenciam, mais uma vez, a mulher na linguagem. 

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ANÁLISE COMPARATIVA DE TRÊS TRADUÇÕES DE BLISS  

 

Vejamos agora um trecho em que o narrador, a partir do ponto de vista de                             

Bertha, expressa um pensamento da protagonista em relação a seu marido: 

 

Texto-fonte  Trad. de Veríssimo  Trad. de César  Trad. de Cupertino 

He made a point of         catching Bertha's heels     with replies of that       kind... "liver frozen, my       dear girl," or "pure       flatulence," or "kidney     disease," ... and so on.         For some strange     reason Bertha liked this,       and almost admired it       in him very much.  (p. 72). 

Fazia questão de lançar       água fria nos     entusiasmos de Berta     com respostas como     essas: ... “fígado gelado,       minha pequena” ou     “pura flatulência”, ou     “doença dos rins” ... e         assim por diante. Por       alguma estranha razão,     Berta gostava disso, era       um traço que admirava       muito no marido. (p. 5). 

Ele fazia questão de       provocá-la com   respostas no gênero...     “fígado congelado,   menina”, ou “pura     flatulência”, ou “mal     dos rins” ... e assim por           diante. Por alguma     estranha razão Bertha     gostava disso e quase       que o admirava por       falar assim. ( p. 357). 

Ele se empenhava em       pegar Bertha pelo pé       com respostas daquele     teor... “fígado gelado,     minha querida”, ou     “pura flatulência”, ou     “doença dos rins” ... e         assim por diante. Por       alguma estranha razão,     Bertha gostava disso e       quase o admirava por       falar desse modo. (p. 16). 

 

Enquanto as duas tradutoras empregaram o “quase” como correspondente                 

de “almost”, Veríssimo traduziu o advérbio em inglês como “muito”, assim                     

transformando a “quase admiração” de Bertha em uma “admiração total” por seu                       

cônjuge, o que corrobora com uma ideia tradicional da relação conjugal, pela                       

suposta grande admiração que a mulher deve ter pelo marido. 

No próximo quadro, a pereira presente no jardim da protagonista é descrita.                       

Essa é uma passagem fundamental do conto, pois a árvore “sugere a Bertha uma                           

imagem de sua própria vida [...]. Insinua uma metáfora da sexualidade dessa                       

personagem, que desabrocha nesse dia. Metaforicamente, é possível sugerir que ela                     

é a própria árvore”.  85

 

85 Gomes & Oliveira, 2009, p. 47.  

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Texto-fonte  Trad. de Veríssimo  Trad. de César  Trad. de Cupertino 

The windows of the       dawing-room opened   on to a balcony       overlooking the garden.     At the far end, against         the wall, there was a         tall, slender pear tree in         fullest, richest bloom, it       stood perfect, as     though becalmed   against the jade-green     sky. (p. 72). 

As janelas da sala se         abriram para um balcão       que dava para o jardim.         No fundo, contra o       muro, erguia-se uma     pereira alta e esguia na         sua mais rica floração;       estava ali perfeita,     serena contra o céu       verde-jade.  (p. 5). 

As janelas da sala se         abriam para uma     varanda que dava para       o jardim. No extremo       oposto, contra o muro,       havia uma árvore alta e         esguia, em flor,     luxuriantemente em   flor, perfeita, como se       apaziguada contra o céu       de jade.  (p. 357). 

As janelas da sala       abriam-se para um     balcão, e davam para       um jardim. No fundo,       perto do muro, havia       uma esguia pereira, toda       florida, esplêndida, que     permanecia imóvel   contra o céu verde-jade.  (p. 16). 

 

“Pereira”, ainda que no Brasil seja comumente lembrado como um                   

sobrenome, é a árvore que dá peras. Sua caracterização exuberante, cheia de                       

detalhes, é de grande importância, pois ela simboliza a vida de Bertha. Dessa forma,                           

traduzir “pear tree” como “pereira” é essencial. Foi o que fizeram Cupertino e                         

Veríssimo. César, porém, optou por generalizar, traduzindo “pear tree” simplesmente                   

como “árvore”. A tradutora explica o porquê na nota 29 de sua dissertação:   

 Esta frase constituiu um problema muito sério na tradução de “Bliss”. O                       símbolo central da história se concentra na pereira florescente do jardim.                     [...] O nome dessa árvore corresponde, em português, ao termo “pereira”,                     uma palavra desarmoniosa e inexpressiva (em termos de experiência). Na                   expressão “pear tree” existe uma suave conotação familiar, que não existe                     na palavra “pereira”, usada frequentemente como nome próprio, tal qual                   Smith ou Brown. Em inglês, a palavra “pereira” sugere uma imagem que                       não tem correspondência na experiência de um leitor de língua                   portuguesa. [...] A palavra “pereira” não servia; era um sério obstáculo,                     uma palavra maciça demais, que levava a associações incorretas e                   transmitia um som desagradável. Por fim, novamente decidi optar pela                   generalização e usei a palavra “árvore” (uma palavra proparoxítona, forte                   e bonita por natureza). Examinei o conto cuidadosamente e concluí que                     essa palavra não prejudicaria a intenção da autora.  86

 

86 César, [1981] 2016, pp. 384-386.

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ANÁLISE COMPARATIVA DE TRÊS TRADUÇÕES DE BLISS  

 

Muitos dos que analisaram Êxtase discordam da última afirmação de Ana                     

Cristina César; para Alan (2011),  Ocorre um empobrecimento do conto em significado, dado que pereira                   constrói uma porção de possibilidades interpretativas no contexto (o fato                   de gerar um fruto macio, doce e suave, cujo formato pode ser associado                         à figura feminina). A árvore pereira, embora não nos seja tão próxima                       quanto aos ingleses, tem um importante papel na composição do conto                     e, na tradução de Ana C, esse significado se perde.  87

 

Em outro momento do conto, quando começa a racionalizar sobre as causas                       

de sua felicidade, Bertha alterna entre coisas que ela tem e coisas que ela e seu                               

marido, eles, têm: 

 

Texto-fonte  Trad. de Veríssimo  Trad. de César  Trad. de Cupertino 

“And friends—modern,   thrilling friends, writers     and painters and poets       or people keen on       social questions—just   the kind of friends they         wanted”. (p. 73). 

“Além disso, tinham     boas relações – amigos       modernos, vibrantes,   escritores e pintores e       poetas ou gente     interessada em questões     sociais – exatamente a       espécie de amigos que       ela desejava”. ( p. 6). 

“E os amigos – amigos         modernos, envolventes,   escritores e pintores e       poetas ou pessoas     interessadas em   questões sociais –,     exatamente os amigos     que eles desejavam”  (p. 358). 

“E amigos modernos,     interessantes; amigos   escritores, pintores e     poetas ou pessoas     voltadas para as     questões sociais, justo a       espécie de amigos que       eles queriam” ( p. 17). 

 

Ana Cristina César e Julieta Cupertino traduzem, cada uma de sua forma,                       

“they wanted” mantendo pronome e verbo conjugados na terceira pessoa do plural.                       

Veríssimo, no entanto, decide individualizar o “desejo” que, no texto-fonte, é do                       

casal, transformando-o em algo apenas de Bertha. Essa ocorrência é um caso                       

singular na reescrita de Veríssimo: a individualização de um querer originalmente                     

coletivo não ocorre em outros trechos de sua tradução.  

87 Alan, 2011, p. 117.  

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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA  

 

 

Texto-fonte  Trad. de Veríssimo  Trad. de César  Trad. de Cupertino 

For my darling     monkeys so upset the       train that it rose to a           man and simply ate me         with its eyes. Didn’t       laugh - wasn’t amused -         that I should have       loved. No, just stared -         and bored me through       and through. ( p. 73). 

Porque os meus     queridos macacos   causaram um tal     alvoroço no trem, que       todos os passageiros se       levantaram como um só       homem e simplesmente     me comeram com os       olhos. Não riram… não       acharam divertido…   coisa que me teria       agradado.. Não.   Ficaram apenas me     contemplando de olhos     parados… e isso foi me         deixando cada vez mais       danada… ( p. 6). 

Os meus macacos     queridos causaram um     verdadeiro escândalo   no trem – chegou ao         ponto do trem inteiro       simplesmente me   devorar com os olhos.       Ninguém riu, ninguém     achou graça, nada disso       que eu teria adorado.       Simplesmente me   devoravam com os     olhos - e eu me entediei           como o diabo. (p. 358). 

Meus queridos macacos     chocaram tanto as     pessoas do trem que       elas simplesmente se     puseram a me devorar       com os olhos. Não       riram, não estavam     achando graça, o que eu         teria gostado. Apenas     olharam-me fixamente   e me fuzilaram com os         olhos. (p. 17). 

 

 

Acima, a Sra. Knight conta sua experiência em um trem, no qual estava                         

vestida com um “casaco laranja dos mais divertidos, com uma fileira de macacos                         

pretos” ([1981] 2016) – o mesmo casaco que vestiu para ir à casa de Bertha. Para                               

descrever a tremenda atenção que recebeu pela sua roupa, a Sra. Knight diz que foi                             

“devorada pelos olhos” de todos no trem. No texto em inglês, a personagem diz                           

que sentiu como se todos os passageiros fossem um só homem a encarando.  

Veríssimo mantém a comparação em sua tradução, mas César e Cupertino                     

fazem adaptações: a primeira diz que “o trem inteiro” a devorou com os olhos; a                             

segunda afirma que “as pessoas do trem” assim o fizeram. No entanto, quando a                           

Sra. Knight retoma a situação nessa mesma fala, ela afirma que eles “apenas                         

encararam” (“just stared”). Enquanto Érico Veríssimo traduz “stared” como                 

“contemplaram”, as outras duas tradutoras escolheram vocábulos mais fortes: Ana                   

Cristina César repetiu o verbo “devorar” e Julieta Cupertino optou por usar                       

“fuzilaram com os olhos”.  

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ANÁLISE COMPARATIVA DE TRÊS TRADUÇÕES DE BLISS  

 

Essa intensificação do ocorrido teria um efeito ainda mais forte se César e                         

Cupertino, assim como Veríssimo, mantivessem a comparação do trem inteiro com                     

um homem, evidenciando as maneiras nada sutis que os homens tendem a encarar                         

as figuras femininas – e o quão desagradável isso é para a mulher, como a Sra.                               

Knight enuncia no fim de sua fala: “and bored me through and through” – trecho                             

suprimido na tradução de Cupertino, e traduzido de forma diferente por César, que                         

escolheu o verbo “entediar” como tradução de “bore".  

Nas seleções a seguir, temos novamente o narrador mostrando o ponto de                       

vista de Bertha: 

 

Texto-fonte  Trad. de Veríssimo  Trad. de César  Trad. de Cupertino 

Miss Fulton did not       look at her; but then         she seldom did look at         people directly.  ( p. 75). 

Miss Fulton não olhou       para a amiga; mas ela         raramente olhava as     pessoas de frente.  (p. 19). 

Miss Fulton não olhou       para ela; mas Miss       Fulton raramente   olhava diretamente para     as pessoas. (p. 361). 

Pearl Fulton não olhava       para ela; quase nunca       olhava as pessoas     diretamente.  (p. 20). 

 

No trecho, Bertha menciona uma de suas convidadas, no texto-fonte, como                     

“Miss Fulton”, e Veríssimo e César mantêm o pronome em suas traduções;                       

Cupertino, no entanto, opta por se referir à personagem pelo seu nome próprio,                         

“Pearl Fulton”, deixando de lado o “Miss”.  

Destaca-se, mais uma vez, a tradução dos pronomes “she” e “her”. Para que                         

não houvesse repetição na pequena frase, Veríssimo traduziu o pronome objeto                     

“her” por “a amiga”, assim podendo transpor para o português o pronome sujeito                         

“she” como “ela” e evitando a repetição de seu nome, como acontece na tradução                           

de César. No entanto, em nenhum momento do conto, Pearl Fulton é                       

explicitamente descrita como “amiga” de Bertha Young, apesar de, nesse mesmo                     

parágrafo, a protagonista perceber que ela e Miss Fulton compartilhavam as                     

  

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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA  

 

mesmas sensações. O sentimento de Bertha por Pearl, pelo menos inicialmente, ia                       

além da simples amizade. 

O marido de Bertha, interrompendo esse momento de conexão entre Pearl                     

Fulton e sua esposa, exprime uma fala bastante curiosa: 

 

Texto-fonte  Trad. de Veríssimo  Trad. de César  Trad. de Cupertino 

Harry said: “My dear Mrs. Knight,       don't ask me about my         baby. I never see her. I           shan't feel the slightest       interest in her until she         has a lover”.  ( p. 77). 

Harry disse: “Minha prezada Sra.     Knight, não me     pergunte de minha     filha. Nunca a vejo.       Não sentirei por ela o         mais leve interesse     senão depois que ela       tiver um noivo”. (p.       12). 

Harry dizia: “Minha     querida, não me     pergunte nada sobre o       bebê. Eu nunca vejo a         minha filha. E não vou         me interessar o mínimo       até o dia em que ela           arranjar um amante”.  (p. 364). 

Harry dizia: “Minha     querida Senhora   Norman Knigth, não     me pergunte pela minha       filha. Eu jamais a vejo.         Não terei por ela o         menor interesse até o       dia em que tenha um         amante”. (p. 23). 

 

A falta de interesse de Harry por Little B. até que ela tenha um lover parece                               

não chocar seus ouvintes, mas certamente choca o leitor – não apenas o atual,                           

como se pode presumir a partir da escolha deveras conservadora de Veríssimo para                         

a tradução do vocábulo – o que revela “os padrões de aceitabilidade de conduta                           

social” – exclusivamente para as mulheres – de sua época. Suas colegas                       88

tradutoras, porém, optaram pela palavra mais óbvia – e mais chocante: “amante”.  

É pertinente analisar também as traduções das palavras referentes a Little B.,                       

principalmente no texto de César. Ao transpor “my baby” para “o bebê” – omitindo                           

o pronome pessoal –, a tradutora torna bastante impessoal a relação entre Harry e                           

sua filha. Porém, logo em seguida, César reescreve o pronome “her” como “minha                         

filha”, levando a uma leitura dúbia, porque usa o masculino – “o bebê” – e depois                               

passa para o feminino com possessivo – “minha filha” –, o que faz com que a                               

relação referencial fique prejudicada. 

88 Alan, 2011, p. 136

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ANÁLISE COMPARATIVA DE TRÊS TRADUÇÕES DE BLISS  

 

Além disso, nesse trecho Cupertino acrescenta mais uma vez o primeiro                     

nome do marido quando a Sra. Knight é mencionada, enquanto César faz o                         

movimento contrário, e exclui o sobrenome da personagem – fato que reforça a                         

ideia e a menor formalidade do termo “minha querida”. Os adjetivos usados                       

também mudam de “prezada”, em Veríssimo, para “querida” nas outras duas.  

No excerto seguinte, o Sr. Knight falará, no texto original, sobre os “jovens                         

escritores homens” (“young writing men”). Ao utilizar o substantivo “men”, Mansfield                     

deixa claro que o personagem está falando dos escritores homens, não dos                       

escritores em geral, nos quais seriam incluídas as mulheres escritoras. No entanto,                       

as traduções para o português não deixam essa especificidade clara, como é possível                         

ver no quadro: 

 

Texto-fonte  Trad. de Veríssimo  Trad. de César  Trad. de Cupertino 

What I want to do is to             give the young men a         show. […]  The trouble with our       young writing men is       that they are still too         romantic.  (p. 78). 

O que quero fazer é dar           aos moços uma     oportunidade. [...] A dificuldade com     nossos escritores   moços é que eles ainda         são românticos demais.     ( p. 12). 

O que eu quero é abrir           um espaço para os       novos. [...] O problema com os       nossos novos escritores     é que eles ainda são         românticos demais.  (p. 364). 

O que eu quero é dar           lugar aos outros jovens.       [...] A dificuldade com     nossos autores jovens é       que eles são ainda       demasiadamente românticos. (p. 24). 

 

A versão que mais se aproxima do original, nesse sentido, talvez seja a                         

tradução de Veríssimo, que utiliza a palavra “moço” como tradução de “young”. Na                         

tradução de César, apesar de o masculino ficar marcado por meio da concordância,                         

não fica claro que o personagem está se referindo a jovens. No quadro seguinte                           

temos Bertha racionalizando sua relação com Harry, seu marido: 

 

  

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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA  

 

 

Texto-fonte  Trad. de Veríssimo  Trad. de César  Trad. de Cupertino 

Oh, she’d loved him --         she’d been in love with         him, of course, in every         other way, but just not         in that way. And       equally, of course, she’d       understood that he was       different. They’d   discussed it so often. It         had worried her     dreadfully at first to       find that she was so         cold, but after a time it           had not seemed to       matter. They were so       frank with each other --         such good pals. That       was the best of being         modern.(pp. 78-79). 

Oh! ela o amava -- ela o             amara, sempre, estava     claro, de outra maneira,       mas não exatamente     daquela. E era do       mesmo modo ardente     que ela compreendia     que Harry estava     diferente. Tinham   discutido isso tantas     vezes! No princípio ela       ficara terrivelmente   atormentada. Eles eram     tão francos um com o         outro, tão bons     camaradas. Era a     melhor maneira que     tinham de ser     modernos. (p. 12). 

Ela o tinha amado,       claro, e tinha estado       apaixonada por ele, mas       nunca exatamente   daquele jeito. E ela       havia compreendido, é     claro, que ele era       diferente. Eles haviam     discutido tantas vezes     sobre isso. A princípio,       ela se preocupara     terrivelmente ao   descobrir que era tão       fria, mas depois de um         tempo não parecia mais       importar. Eles eram tão       francos um com o       outro – tão bons       companheiros. Nisso   residia o melhor de ser         moderno. (p. 365). 

Ah! Ela o amava! Ela o           amara sempre, é claro,       mas com outras formas       de amor, não com o         que sentia agora. E       também, é claro, ela       havia compreendido   que ele era diferente.       Haviam discutido isto     inúmeras vezes. Ela     havia se afligido     horrivelmente, a   princípio, ao descobrir     sua própria frigidez,     mas, com o passar do         tempo, isso deixara de       incomodá-la. Havia   tanta franqueza entre os       dois, eles eram tão bons         companheiros! Nisso   estava a vantagem de       serem modernos . (p. 25). 

 

 

Este fragmento trata da descoberta do desejo de Bertha por seu marido e da                           

relação sexual do casal, tudo de modo bastante sutil, mas que fica mais fácil de                             

inferir com base em sua descrição como “cold”, vocábulo que César traduz para o                           

português simplesmente como “fria”.  

Desta vez é Julieta Cupertino quem ousa, pois ela explicita o implícito no                         

texto de Mansfield quando traduz esse mesmo adjetivo como a “própria frigidez”                       

de Bertha. Para Alan (2011), essa opção tradutória é incoerente com o original,                         

porque “ainda que o parágrafo trate da relação do casal e da descoberta do desejo                             

de Bertha, a palavra frígida parecer ser forte demais para o contexto”. No entanto,                           89

para os propósitos desta análise, a escolha de Cupertino é extremamente                     

89 Alan, 2011, p. 139

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ANÁLISE COMPARATIVA DE TRÊS TRADUÇÕES DE BLISS  

 

interessante, pois, embora o uso de “frigidez” não condiga com a sutileza de                         

Mansfield no texto em inglês, a tradutora, ao explicitar o que está implícito no texto                             

original, deixa o tom mais forte e provocativo, assim como fazem as tradutoras                         

feministas.  

A versão de Veríssimo, no entanto, suprime o trecho em que Bertha                       

expressa sua frigidez, dando mais ênfase ao amor e desejo que Bertha sente pelo                           

marido do que a sua “frieza” – o que pode ser explicado pelo público-leitor                           

brasileiro da década de 1940, época em que essa tradução foi publicada.  

Para finalizar a análise comparativa, segue o excerto :  

 

Texto-fonte  Trad. de Veríssimo  Trad. de César  Trad. de Cupertino 

“But now–ardently!   ardently! The word     ached in her ardent       body! Was this what       that feeling of bliss had         been leading up to?”  (p. 79). 

“Mas agora, com que       ardor, com que ardor!       A palavra lhe doía no         corpo ardente! Era a       isso que aquele     sentimento de   felicidade a conduzia?”     (p. 13). 

“Mas agora –     ardentemente! ardentemente! A   palavra doía no seu       corpo ardente! Era para       aí que a levava toda         aquela sensação de     êxtase?” (p. 365). 

“Mas agora – era com         desejo! Com tesão! A       palavra doía em seu       corpo em brasa. Era a         isto que o seu       sentimento de   felicidade tinha   levado?” (p. 25). 

 

Mais uma vez, Julieta Cupertino quebra a sutileza do texto de Mansfield em                         

sua tradução, evidenciando o implícito em Bliss. Neste trecho, isso acontece com o                         

advérbio “ardently” – usado duplamente –, que Cupertino transpõe em seu texto                       

como “(...) com desejo! Com tesão!”. As escolhas de seus colegas tradutores estão                         

mais de acordo com o estilo de Katherine Mansfield, como esclarece Alan (2011): 

O trecho, ainda que trate do desejo intenso que Bertha descobriu sentir                       pelo marido, o faz de forma sutil. Essa sutileza se perde na tradução de                           Cupertino, em função do uso das expressões tesão e brasa, que, embora                       sejam possibilidades de interpretação do léxico em inglês, apresentam um                   problema de colocação com relação ao contexto. É interessante notar,                   porém, que esta é a tradução mais recente do texto, o que pode justificar                           

  

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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA  

 

a escolha do vocábulo, uma vez que a tradutora pode ter entendido que a                           palavra havia perdido sua vulgaridade. Assim, ainda que em nossa leitura                     a palavra esteja inadequada, é possível que a inadequação tenha ocorrido                     em função de uma tentativa de aproximação do texto ao público leitor.  90

 

“Tesão” é uma palavra de carga semântica demasiadamente forte, que pouco                     

se espera que saia da boca de uma mulher. Portanto, a escolha de Cupertino de                             

retratar assim as sensações de Bertha é extremamente significativa e bastante                     

provocativa e, por isso mesmo, essencialmente feminista.   

 

*        

90 Alan, 2011, p. 140.

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Considerações Finais   

Ao longo deste livro, procurou-se analisar três traduções para o português                     

brasileiro do conto Bliss, de Katherine Mansfield, a fim de investigar as diferenças                         

ideológicas no que concerne às representações femininas construídas por seus                   

tradutores. Em outras palavras, tencionou-se observar se havia elementos nas                   

escolhas tradutórias que remetem ou a uma preocupação com a questão de gênero                         

e feminismo, ou a um conservadorismo em relação à imagem da mulher. Isso                         

porque o conto de Mansfield é extremamente crítico acerca da situação feminina na                         

sociedade pós-vitoriana – período auge da primeira onda do feminismo –, e as suas                           

traduções para o português aqui selecionadas foram elaboradas em contextos                   

distintos, por pessoas de gêneros diferentes, com propostas diferentes: a primeira                     

delas foi feita em 1940 por Érico Veríssimo, escritor gaúcho de reconhecido                       

talento; a segunda em 1981 por Ana Cristina César, poetisa, acadêmica, tradutora e                         

feminista; e, por fim, a terceira tradução foi feita em 1992 por Julieta Cupertino,                           

dona de casa e tradutora que, à época, estava na casa dos 80 anos.  

Ana Cristina César, em trabalhos anteriores, já havia mostrado ter interesse                     

pelas teorias tradutórias, e na introdução à sua própria reescrita do conto de                         

Mansfield, declarou o que entende por tradutora/tradutor: “alguém que procura                   

absorver e produzir em outra língua a presença literária de um autor”. Portanto,                         91

ainda que não tenha entrado diretamente em contato com a tradução feminista                       

canadense, César, quando elaborou Êxtase, sua tradução acadêmica de Bliss, já                     

conhecia, ao menos, alguns autores que desenvolveram novas ideias após a virada                       

91 César, [1981] 2016, p. 328.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS  

 

cultural dos estudos da tradução. Ao mesmo tempo, a poetisa defendia, em sua                         

obra, ideais feministas. 

Em vista disso, este estudo partiu da hipótese de que a reescrita de César                           

estaria mais alinhada à tradução feminista ou teria, ao menos, uma preocupação                       

maior em relação às questões femininas. Sua reescrita de fato tem um tom muito                           

mais ousado que as de Veríssimo e Cupertino – desde o título, que intensifica o                             

sentimento vivido por Bertha Young – e, por vezes, reforça o feminino na                         

linguagem – como quando assume que o leitor de Bliss é uma mulher ou quando                             

utiliza o gênero gramatical feminino para traduzir palavras que em inglês são                       

neutras–; além disso, foi possível observar que César procurou minimizar a relação                       

de opressão entre duas mulheres, patroa e empregada, quando, por exemplo,                     

suprimiu em sua tradução os pronomes de tratamento utilizados pela babá para se                         

referir à Bertha. No entanto, a análise de Êxtase não revelou uma tradução                         

feminista aos moldes das tradutoras canadenses, visto que, em certos momentos do                       

conto, como quando a narradora vai se referir a sua filha, César diz “um bebê” ou                               

“quarto do bebê”, dessa forma não evidenciando o gênero feminino na linguagem,                       

o que seria possível nos dois contextos citados. 

Cabe ressaltar também que a tradução de Ana Cristina César acompanha                     

oitenta notas que explicam suas escolhas tradutórias, uma vez que Êxtase compõe                       

parte de sua dissertação de mestrado. Essas notas se assemelham à estratégia de                         

prefacing e footnoting, usada pelas tradutoras feministas e apresentada por von Flotow                       

(1991), pois, ao compor sua tradução junto de oitenta notas, César salienta sua                         

presença ativa no texto, ainda que não defendendo – explicitamente – um ponto de                           

vista feminista. Êxtase, contudo, não foi pensada como uma tradução a ser                       

publicada, mas como um trabalho acadêmico; César, inclusive, afirmou que, se                     

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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA  

  lançada para o leitor brasileiro, sua reescrita do conto de Mansfield seria                       

acompanhada apenas da primeira nota.  92

Da mesma forma, o texto traduzido por Veríssimo foi analisado a fim de                         

entender como sua tradução se situa nessa questão, já que o escritor traduziu                         

Mansfield em uma época – os anos 1940 – muito mais conservadora do que a que                               

viveu sua sucessora nesta tarefa. Após examiná-la, foi possível concluir que sua                       

reescrita é muito mais contida do que as de César e Cupertino, usando palavras                           

muito sutis para descrever as personagens femininas e suas emoções, ou mesmo                       

suprimindo trechos em que “emoções descontroladas” são descritas, assim                 

amenizando o tom crítico do texto de Mansfield, e diminuindo sua força no que                           

tange à manifestação de sentimentos. Porém, diferentemente de Ana Cristina César,                     

que por vezes se refere à filha de Bertha como “o bebê”, utilizando do gênero                             

gramatical masculino para uma criança que é menina, Veríssimo sempre recorre a                       

substantivos no feminino para referenciar Little B. – alternando entre o pronome                       

“ela” e os substantivos “filha” ou “bebê” – esse último acompanhado de artigo                         

definido feminino.  

Por muito tempo, foi por meio dessa leitura que o público brasileiro teve                         

contato com o conto de Katherine Mansfield, visto que a tradução de Érico                         

Veríssimo só ganhou uma concorrente mais de quarenta anos depois de ter sido                         

publicada pela primeira vez. Além disso, uma edição de Felicidade, publicada pela                       

Nova Fronteira, sinaliza seu nome em fonte maior do que a do nome da própria                             93

Mansfield. 

Embora uma das hipóteses deste livro tenha sido de que a tradução de Julieta                           

Cupertino seria mais conservadora do que a de Ana Cristina César, o cotejo dessas                           

92 Idem, ibidem. 93 Veríssimo, [1940] 1969.

  

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CONSIDERAÇÕES FINAIS  

 

traduções não mostrou isso: em alguns momentos do conto, Cupertino foi também                       

muito ousada – e, por isso, acabou oscilando no tom de sua tradução–, como                           

quando utiliza, quase ao fim do conto, a palavra “tesão” para traduzir o advérbio                           

“ardently” ou quando traduz o adjetivo “cold” como “frigidez”– explicitando e                     

intensificando sentimentos implícitos no texto-fonte, o que muito se assemelha à                     

estratégia das tradutoras feministas, que se apropriam do texto-fonte para, em suas                       

traduções, refletirem suas próprias intenções políticas.  

O texto de Cupertino, porém, não pode ser classificado como uma tradução                       

feminista nos moldes em que propuseram as canadenses, pois, em outros                     

momentos do conto, a tradutora elegeu estratégias pouco condizentes com essa                     

corrente de trabalho e pensamento, a exemplo dos trechos em que reforçou a                         

relação desigual e autoritária entre patroa e empregada.  

Assim, foi possível concluir que nenhuma das três traduções analisadas do                     

conto Bliss, de Katherine Mansfield, são, como as estudiosas canadenses                   

teorizaram, traduções feministas, embora certas estratégias utilizadas por essas                 

tradutoras tenham sido empregadas em todas as traduções aqui selecionadas. Todas                     

as traduções, de uma forma ou de outra, têm elementos que remetem a uma                           

preocupação com a mulher na linguagem, porém sem grande consistência, sendo                     

que o uso de estratégias que vão de encontro ao que propuseram as tradutoras                           

feministas canadenses não é constante – principalmente na tradução de Veríssimo,                     

que minimiza o tom crítico e feminista do conto de Mansfield.  

A linguagem tem um papel primordial para a reflexão de como a mulher e o                             

feminino são vistos em determinadas circunstâncias da nossa sociedade. Dessa                   

forma, colocar lado a lado três traduções diferentes para um mesmo texto-fonte,                       

observando-as por um olhar feminista, foi um exercício muito proveitoso. A                     

escolha por assim fundamentar a análise aqui realizada, aliás, se justifica pela                       

importante contribuição da tradução feminista para os estudos da tradução,                   

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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA  

  especialmente em relação a questões sociais e de poder. Nesse sentido, a relevância                         

deste livro consiste em demonstrar que, a depender do olhar que a tradutora ou o                             

tradutor tenha sobre o texto que está a traduzir, seu caráter feminista e ideológico                           

pode ser minimizado ou maximizado.  

Os três textos em português selecionados são traduções carregadas de                   

ideologia – ainda que pretendam ser fiéis ao texto original, tarefa impossível–, são                         

três textos que, ao trazer para o português brasileiro aquilo que Mansfield escreveu                         

em inglês, reproduzem não só os valores de cada um dos tradutores em relação à                             

mulher, mas também os valores vigentes no contexto político-social no qual as                       

traduções foram feitas. Érico Veríssimo, Ana Cristina César e Julieta Cupertino são,                       

portanto, tanto quanto Katherine Mansfield, autores: cada um deles, em sua                     

reescrita de Bliss, possibilitou diferentes leituras para o conto da neozelandesa –                       

todas possíveis e legítimas.  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

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 Bibliografia  

 

MANSFIELD, K. Felicidade. Trad. de Érico Veríssimo. Rio de Janeiro, Nova                     

Fronteira, 1969[1940].  

______. Felicidade e outros contos. Trad. de Julieta Cupertino. 2. ed. Rio de Janeiro,                           

Revan, 1991.  

______. The collected stories of Katherine Mansfield. Ware, Wordsworth Editions, 2006. 

______. Êxtase (bliss). Trad. de Ana Cristina César. In: CÉSAR, A. C. Crítica e                           

Tradução. São Paulo, Companhia das Letras, 2016[1981]. 

 

 

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Título

Autor

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Projeto gráfico

Revisão

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Beatriz Gregório dos Santos

João Pedro Missi

Beatriz BurgosJoão Pedro MissiSophie Galeotti

Beatriz BurgosJoão Pedro MissiSophie Galeotti

Beatriz BurgosJoão Pedro MissiSophie Galeotti

Beatriz BurgosJoão Pedro MissiSophie Galeotti

21,0 x 29,7 cm

Garamond

O conto "Bliss", de Katherine Mansfield,e três de suas traduções para oportuguês brasileiro: uma análisefeminista

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BEATRIZ GREGÓRIO DOS SANTOS é formada em Letras (2018) pela

Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Em 2018, este livro foi premiado foi premiado no IV Concurso de

Monografias do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/Unicamp)

na categoria "Linguística Aplicada".