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B E A T R I Z G R E G Ó R I O D O S S A N T O S
O conto Bliss, de Katherine Mansfield,
e três de suas traduções para o português brasileiro:uma análise feminista
O conto Bliss, de Katherine Mansfield,
e três de suas traduções para o português brasileiro
B E A T R I Z G R E G Ó R I O D O S S A N T O S
uma análise feminista
O conto Bliss, de Katherine Mansfield,
e três de suas traduções para o português brasileiro
P R E F Á C I O
Érica Lima
CDD: 418.02
Ficha catalográficaUniversidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Estudos da LinguagemLeandro dos Santos Nascimento - CRB 8/8343
Gregório, Beatriz, 1997-. O conto Bliss, de Katherine Mansfield, e três desuas traduções para o português brasileiro: umaanálise feminista / Beatriz Gregório ;organizadores Sophie Galeotti, Beatriz Burgos,João Pedro Missi. – Campinas, SP : Unicamp /Publicações IEL, 2020. 75 p.
ISBN 978-65-87175-06-5
1. Mansfield, Katherine, 1888-1923. Bliss –Crítica e interpretação. 2. Tradução. 3. Linguística.4.Feminismo. I. Galeotti, Sophie, 1997-. II. Burgos,Beatriz, 2000-., III. Missi, João Pedro, 2000-. IV.Título.
G861c
Copyright© 2020 by Beatriz Gregório dos Santos1ª edição 2020, Campinas, TL224 Publicações
TL224 PublicaçõesR. Sérgio Buarque de Holanda, 571 - Cidade
Universitária, Campinas - SP, 13083-859
Brazil 2020Foi feito o depósito legal
She hardly dared to breathe for fear of fanning it higher, and yet she breathed deeply, deeply. KATHERINE MANSFIELD - Bliss
Agradeço à professora doutora Érica Lima, minha orientadora nestes últimos doisanos, pela sabedoria dividida, pela paciência, pelas leituras, por me auxiliar nos meusprimeiros passos na vida acadêmica. Sua ajuda em todas as etapas deste processo foifundamental. Agradeço à minha família pelo apoio, pelo zelo e por constantemente reforçarem oquanto acreditam em mim. À tia Rosa e à minha avó Mariana, obrigada. Aos meus pais,que tornaram possível o meu estudo em uma universidade pública. Pai, obrigada porapoiar as minhas escolhas. Agradeço especialmente à minha mãe, que testemunhoumeus momentos de dissabores mais de perto; obrigada pela companhia, pelo colo, peloamor. Agradeço a todos os meus amigos que estiveram comigo nesses quatro anos degraduação e que, de perto ou de longe, contribuíram imensamente na elaboração desteestudo. A companhia de vocês tornou esse período mais leve. Agradeço à Unicamp, minha fonte de saber e de inspiração nos últimos quatro anos,por todas as oportunidades de crescimento que me foram dadas como aluna daInstituição.
Agradecimentos
Prefácio.........................................................................................................................................07Introdução………………………………………………………………..............................................…..12I. A escola canadense de tradução feminista…………………….………......…....................16II. Considerações sobre o objeto de pesquisa…………………………….…….......................33
II.1. Vida e obra de Katherine Mansfield…...……………………...…….…....................33II.2. O conto Bliss………………………………………………....……...........................….........36II.3. As traduções de Bliss para o português brasileiro…………...........……….......38
II.3.1. Érico Veríssimo e Felicidade…………...………....……………......................40II.3.2. Ana Cristina César e Êxtase……….……………………......……...................41II.3.3. Julieta Cupertino Felicidade....………………….......……….......................43
III. Análise comparativa de três traduções de Bliss………………....….……….................44Considerações finais…………………………………………....……………...................…................67Bibliografia…………………………......……………………....…………...…….....................................72Referências Bibliográficas…….…………………………....…....…………............................….....72
Sumário
6
Prefácio
Como prefaciar um trabalho que analisa precisamente o que se escolhe e o
que se deixa de lado na tarefa da tradutora? Penso que se pode começar por
sublinhar a marca do feminino que atravessou o trabalho de Beatriz e o prazer de
ter acompanhado esse caminho de uma análise de três traduções para o português
do conto em inglês Bliss, de Katherine Mansfield (1918), fundamentada 1
teoricamente na vertente da tradução feminista canadense, cujo desenvolvimento
ocorreu entre as décadas de 1980 e 1990.
Aclamada como uma das melhores escritoras da língua inglesa, Katherine
Mansfield foi traduzida por Ana Cristina César em seu mestrado na Inglaterra e
homenageada em soneto de Vinícius de Moraes, além de muitos outros leitores 2
brasileiros terem se declarado fascinados pela qualidade literária da neozelandesa.
Esse grande interesse fez com que Mansfield se tornasse uma das autoras mais
traduzidas no Brasil. Entre as várias traduções do conto, Beatriz selecionou, para
análise, a primeira tradução, de Érico Veríssimo (Felicidade, de 1941), responsável
por introduzir a obra de Mansfield em português brasileiro, e duas outras, que
vieram a público nas décadas em que o movimento feminista de tradução estava em
plena efervescência: Êxtase, de Ana Cristina César (1981) e Felicidade, de Julieta
Cupertino (1992), destacando as diferentes condições em que ocorreram os
processos tradutórios e as publicações, atrelando-os às características das tradutoras
e do tradutor.
1 As obras não referenciadas em notas são as mesmas citadas na bibliografia da monografia de Beatriz Gregório dos Santos. 2 Soneto a Katherine Mansfield, escrito em 1938.
7
PREFÁCIO
Ainda que se trate de um trabalho de conclusão de curso da graduação, é
notável o olhar crítico de Beatriz, refletido nas análises criteriosas apresentadas em
18 excertos. Ao examinar a tradução por um viés feminista, é possível observar que
as escolhas (por vezes inconscientes) despertam diferentes leituras e,
consequentemente, novas teias de sentido.
Bliss foi escrito na época em que as suffragettes foram às ruas pela igualdade de
direitos, em especial o direito ao voto. No desenrolar de uma narrativa que põe em
cena um dia perfeito na rotina da personagem Bertha – com seus afazeres de
esposa, dona de casa e mãe –, ao qual se segue uma festa em que ela se dá conta de
que seu casamento não é tão perfeito assim, Mansfield retrata o destino imposto à
mulher e, ao mesmo tempo, deixa implícitos impasses sexuais da personagem e traz
à tona perturbação e insatisfação.
Os sentimentos e sensações de Bertha dão título ao conto: Bliss, que pode ser
traduzido por “êxtase” e “felicidade”, como foram as escolhas nas traduções
estudadas, mas também evoca uma gama enorme de significados, como: alegria,
arrebatamento, bênção, carinho, conforto, deleite, euforia, júbilo, paraíso, prazer,
satisfação, triunfo. A leitura do conto leva a crer que tudo isso está presente, de 3
alguma maneira, e que a escolha do título já reflete o intraduzível, que, no entanto,
foi traduzido muitas vezes, ecoando a afirmação de Derrida de que “o intraduzível
é o que mais pede a tradução”. 4
Assim como a tradução de Bliss, a questão do feminismo na tradução não é
nova e foi tema de vários estudos. Embora a origem seja muitas vezes atribuída ao
movimento canadense de tradução feminista, representado por Luise Von Flotow,
Sherry Simon, Susanne de Lotbinière-Harwood, autoras que Beatriz revisita e de
quem consegue se apropriar nas análises desenvolvidas, Costa e Ergun mostram 5
3 Bliss, Thesaurus, Merriam-Webster. 4 Derrida, J. Sur parole. Instantanés philosophiques, 1999. 5 Castro, O. & Ergun, E. Translation and Feminism. In: Fernandez, F: Evans, J. The Routledge Handbook of Translation and Politics Routledge. 2018.
8
ÉRICA LIMA
que as intervenções feministas em tradução existiam anteriormente e podem ser
vistas em paratextos (notas, prefácios, correspondências) de tradutoras ocidentais
desde o século XVII, muitas vezes anônimas ou até publicadas sob pseudônimos
masculinos. As autoras apresentam um panorama do crescimento interdisciplinar
na área e as perspectivas de uma virada interseccional e transnacional do
feminismo, ressaltando que ainda há muito trabalho a ser feito. Nesse sentido, a
pesquisa de Beatriz é importante porque também mostra a necessidade de
continuarmos a discutir o papel da tradução para os movimentos feministas,
especialmente no momento atual, quando se reconhece uma evolução para tipos de
feminismos mais complexos, que englobam questões políticas, antirracistas e
anticapitalistas, e que acabam por se distanciar daqueles movimentos da época de
Mansfield ou até do início da escola canadense, cujo ponto de vista predominante
era o da mulher branca de classes privilegiadas. De forma ampla, o que se tem hoje
é um movimento pelos direitos das mulheres abrangendo uma grande diversidade
de lutas: desde questões básicas, como direito à saúde, alimentação, moradia, até
representatividade nos mais diversos setores sociopolíticos, com base em
perspectivas e finalidades diferentes, sobretudo quando consideramos a
multiplicidade de mulheres existentes (negras, indígenas, brancas, ocidentais,
orientais, LGBTQI+, entre outras). Nesse cenário, a tradução tem sido um espaço
de intervenção e de resistência, no qual essas várias perspectivas feministas estão
em ação, com um número cada vez maior de publicações, principalmente nos
últimos anos.
Ao tratar das três traduções sem buscar emitir juízos de valores, Beatriz
mostra que cada tradução é única e é determinada por uma série de aspectos,
incluindo a visão de cada tradutor(a) sobre a obra traduzida, a autora e o próprio
9
PREFÁCIO
processo de tradução. Ao apontar que as escolhas e os efeitos de sentido são
inerentes a qualquer tradução, que algumas delas acabam por refletir as condições
em que foram feitas – em relação ao momento sócio-histórico e em relação às
características de quem traduziu e para quem traduziu –, a autora torna evidente o
caráter inescapável da ideologia (feminista ou não) na tarefa das tradutoras e do
tradutor.
Érica Lima *
* Desde 2015, é docente do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas
(IEL/Unicamp), pesquisando e orientando na área de interpretação de textos e tradução.
10
11
Introdução
Em 1906, anos antes de escrever Bliss, a jovem Katherine Mansfield declarou em seu diário sua indignação em relação ao patriarcalismo inglês. Nas palavras da autora:
Acabo de terminar a leitura de um livro de Elizabeth Robins, Come and find me [Venha e me encontre]. Realmente, um livro brilhante, esplêndido; cria em mim uma tal sensação de poder! Sinto que agora realmente posso imaginar do que as mulheres serão capazes, no futuro. Até agora não tiveram sua oportunidade. Falar de nossos dias iluminados, de nosso país emancipado – pura tolice! Estamos firmemente presas com grilhões de escravidão que nós mesmas modelamos. Sim, agora percebo que nós os fizemos e temos de tirá-los. [...] É a doutrina desesperadamente insípida, segundo a qual o amor é a única coisa no mundo que é ensinada e posta dentro das mulheres, de geração em geração, e que nos detém de um modo tão cruel. Devemos nos livrar desse demônio – e então virá a oportunidade de felicidade e libertação. 1
Naquele que seria um de seus contos mais conhecidos, Mansfield também
aborda e critica – por meio de uma narrativa formalmente muito bem construída e
com uma linguagem poética e sutil – a situação da mulher na sociedade inglesa
pós-vitoriana, levando o leitor a refletir sobre questionamentos muito próprios
daquele contexto histórico. O conto Bliss é, muitas vezes, a porta de entrada de um
leitor para a obra mansfieldiana. Esta foi uma de suas primeiras histórias a ser
traduzida para o português brasileiro e, hoje, é a que conta com o maior número de
reescritas diferentes: até a data de conclusão do estudo aqui apresentado, foram
encontradas seis traduções de Bliss para o português.
A popularidade desse conto de Katherine Mansfield, escrito em 1918,
resultou na realização de diversos estudos no Brasil que buscam analisá-lo e/ou
1 Mansfield, 1996, pp. 30-31.
12
BEATRIZ GREGÓRIO DOS SANTOS
comparar suas diversas traduções, concentrando-se principalmente nas escolhas
tradutórias feitas em Êxtase, tradução de Ana Cristina César, ou em Felicidade, de 2
Érico Veríssimo; há também trabalhos que comparam diferentes traduções desse 3
conto – para o português e para outras línguas, como o espanhol. Nenhuma dessas 4
pesquisas, porém, se concentrou na investigação de uma diferença ideológica em
relação à imagem feminina. Por essa razão, o objetivo central deste estudo é
analisar se há elementos nas escolhas tradutórias de três versões de Bliss que
remetem ou a uma preocupação com a questão de gênero/feminismo, ou a um
conservadorismo em relação à mulher. As traduções elegidas para análise são
Felicidade, de Érico Veríssimo; Êxtase, de Ana Cristina César; e Felicidade, de Julieta
Cupertino.
Katherine Mansfield foi apresentada ao Brasil na década de 1940, por meio
de Felicidade, coletânea de contos traduzidos por Érico Veríssimo da qual Bliss faz
parte. Seu trabalho como tradutor foi bastante investigado na academia,
principalmente porque o escritor criou, na Editora Globo de Porto Alegre, um
escritório de tradução; ali, Veríssimo inaugurou “o que realmente se pode chamar
de Idade de Ouro da tradução, de 1942 a 1947”. O público para o qual Érico 5
Veríssimo traduziu, porém, foi bastante diferente daquele que recebeu as demais
traduções do conto: as de Ana Cristina César e Julieta Cupertino, por exemplo,
foram lançadas no Brasil quando as discussões feministas estavam em plena
ebulição. A tradução de César, no entanto, é a mais privilegiada, já que Bliss foi o
tema de sua dissertação de mestrado, na qual a poeta explicou e explicitou o seu
processo tradutório. Como estava inserida no meio intelectual, César publicou
2 Gomes, Darin & Mello, 2015[2006], pp. 36-53. 3 Arbex, Gonçalves & Souza, 2008. 4 Rodrigues & Rego, 2010. 5 Wyler, 2003, p. 129 apud Oliveira, 2015, p. 130.
13
INTRODUÇÃO
também diversos escritos em que defende seu posicionamento em relação ao
feminismo e à mulher na literatura – e muitos trabalhos acadêmicos exploraram a
postura da poeta quanto a essas questões – tanto nas suas produções “originais”
quanto em suas traduções, também bastante originais.
Dos três tradutores elegidos, o trabalho de Julieta Cupertino foi o menos
explorado. Embora tenha se dedicado a traduzir o conjunto da obra de Katherine
Mansfield para o português, Cupertino talvez não tenha despertado tanto interesse
por não ser, também, uma escritora – ao contrário de seus semelhantes, que
exerciam suas atividades tradutórias em concomitância com a prática literária.
Ainda assim, há dissertações que cotejam suas versões para o português do texto de
Mansfield com as de outros tradutores.
Três traduções, três textos diferentes – isso é indiscutível. Mas alguns
questionamentos aqui surgem que parecem não ter surgido em estudos já
realizados, como, por exemplo, se há aspectos nas traduções que remetem a uma
preocupação com gênero, principalmente nos textos de César e Cupertino. São
duas mulheres, em contextos próximos, mas diferentes – César, uma intelectual,
ligada ao feminismo; Cupertino, uma senhora dona de casa que passou a exercer o
ofício de tradutora apenas aos 80 anos –, traduzindo uma outra mulher, de um
período distante daquele quando as versões para o português foram realizadas. Há
relações entre suas traduções e o que se convencionou chamar de tradução
feminista? As duas tradutoras são contemporâneas a essa discussão: até que ponto
o debate as atingiu? Para entender essas questões, a análise aqui elaborada foi
fundamentada sobretudo em Godard (1990), Simon (1996) e von Flotow (1997),
autoras que teorizaram a chamada tradução feminista.
Nesse sentido, no primeiro capítulo será feita uma apresentação teórica da
escola canadense de tradução feminista, contextualizando seu surgimento dentro de
um contexto específico de revisão crítica das ciências humanas – possibilitado pela
14
BEATRIZ GREGÓRIO DOS SANTOS
entrada do feminismo na academia –; do trabalho de Lori Chamberlain (2005)
sobre as metáforas relacionadas ao feminino na tradução; da virada cultural dos
estudos da tradução e da emergência de escritoras feministas francófonas do
Quebec, autoras de textos que experimentaram com a linguagem patriarcal e a
subverteram.
No segundo capítulo, serão feitas algumas considerações sobre a vida e a
obra de Katherine Mansfield, contista neozelandesa que viveu apenas 34 anos. Uma
breve biografia da autora será relatada, assim como uma pequena descrição das
características de sua poética prosa. Na sequência, será apresentada uma resenha do
conto Bliss, para que, na seção seguinte, o contexto de elaboração e a(o)
autora(autor) de cada tradução seja discutido.
No terceiro capítulo, será feita a análise comparativa das três traduções
selecionadas a partir dos pressupostos teóricos explorados no primeiro capítulo,
tendo como referências principais von Flotow (1991; 1997) e Simon (1996).
Por fim, as considerações finais retomam as questões mais pertinentes deste
trabalho, com base em uma reflexão sobre o que foi aqui estudado.
*
15
I A Escola Canadense de Tradução Feminista
Ao longo da história ocidental, sempre houve mulheres que se rebelaram
contra as condições impostas pela sociedade patriarcal. Apesar disso, foi somente
no fim do século XIX que um movimento de mulheres propriamente dito surgiu,
quando um grupo – inicialmente na Inglaterra (muito inspirado pela obra de Mary
Wollstonecraft), mas posteriormente também em diversos outros países, como o
Brasil – se organizou para lutar pelos seus direitos legais e por seu poder político,
assim possibilitando o surgimento do feminismo como ideologia política. Esse 6
momento inicial do movimento feminista – hoje conhecido como a primeira onda
feminista – trouxe muitas conquistas às mulheres, inclusive o sufrágio feminino,
mas acabou por perder força por volta da década de 1930, só voltando a aparecer
com vigor nos anos 1960, quando outras reivindicações entraram em pauta.
No espaço de tempo que separa esses dois grandes momentos do
feminismo, a filósofa francesa Simone de Beauvoir escreveu O segundo sexo, livro
que seria fundamental para a próxima onda feminista. Em sua obra, dividida em
dois volumes e publicada pela primeira vez em 1949, Beauvoir analisa e questiona a
condição feminina na sociedade, mostrando que o fato de a mulher ser “o segundo
sexo”, o “Outro”, deve-se a uma série de processos históricos e sociais, e não a
razões naturais e imutáveis. Para a autora, a mulher “é o Outro dentro de uma
totalidade cujos dois termos são necessários um ao outro”. 7
6 Pinto, 2010. 7 Beauvoir, 2016a[1949], p. 16.
16
A ESCOLA CANADENSE DE TRADUÇÃO FEMINISTA
Na primeira parte de Fatos e mitos (o primeiro volume de O segundo sexo),
denominada Destino, Beauvoir apresenta e discute três pontos de vista sobre a
mulher. Ao longo desses capítulos, intitulados Os dados da biologia, O ponto de vista
psicanalítico e O ponto de vista do materialismo histórico, a autora identifica e refuta essas
três instâncias – biológica, psicanalítica e histórica – que tentam bloquear a
liberdade da mulher, definindo-a e fixando-a a uma situação de não transcendência.
A autora recorre também à história da humanidade e aos mitos, religiosos e
cotidianos, para entender a condição da mulher na sociedade – desde as sociedades
anteriores à agricultura, ainda que pouco se saiba sobre a situação da mulher na
época, até o período contemporâneo à escrita do livro. Embora todas as
perspectivas contribuam para consolidação da visão da inferioridade feminina,
Beauvoir, após analisar cada um dos argumentos delas, conclui que não há razões
suficientes que justifiquem a condição da mulher na sociedade.
Então, no segundo volume, A experiência vivida, Beauvoir discute quais são as
condições políticas, psicológicas e sociais que impõem à mulher sua submissão ao
outro. A autora analisa cuidadosamente a infância, encontrando diferenciações no
tratamento e na criação das meninas e dos meninos, e conclui que desde esse
momento a mulher aprende a se colocar e se identificar com sua condição
“feminina”. Em seguida, a autora passa a debater sobre a mulher jovem, que vive
uma fase de menos liberdade e sonhos do que na infância. De acordo com
Beauvoir,
Durante toda a infância a menina foi reprimida e mutilada; entretanto, percebia-se como um indivíduo autônomo; em suas relações com os pais, os amigos, em seus estudos e jogos, descobria-se então como uma transcendência: nada fazia senão sonhar com sua futura passividade. [...] Já desligada de seu passado de criança, o presente só lhe aparece como uma transição; ela não descobre nele nenhum fim válido, mas tão somente
17
O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
ocupações. De uma maneira mais ou menos velada, sua juventude consome-se na espera. Ela aguarda o Homem. 8
Simone de Beauvoir também analisa a iniciação sexual da mulher, a
lesbianidade, o papel de esposa, mãe e prostituta, a vida social da mulher, sua
velhice, seu caráter, os estereótipos femininos e conclui sua argumentação
elencando diversos caminhos para a emancipação feminina. Dentre esses,
destaca-se a necessidade de permitir às mulheres realizarem-se por meio de projetos
próprios, ainda que carreguem incertezas e perigos. A autora, então, finaliza sua
longa e importantíssima obra filosófica afirmando que
Libertar a mulher é recusar encerrá-la nas relações que mantém com o homem, mas não as negar; ainda que ela se ponha para si, não deixará de existir também para ele: reconhecendo-se mutuamente como sujeito, cada um permanecerá entretanto um outro para o outro; a reciprocidade de suas relações não suprimirá os milagres que engendra a divisão dos seres humanos em duas categorias separadas: o desejo, a posse, o amor, o sonho, a aventura; e as palavras que nos comovem: “dar”, “conquistar”, “unir-se” conservarão seus sentidos. Ao contrário, é quando for abolida a escravidão de uma metade da humanidade e todo o sistema de hipocrisia que implica, que a “divisão” da humanidade revelará sua significação autêntica e que o casal humano encontrará sua verdadeira fórmula. 9
As análises e conclusões elaboradas por Beauvoir em O segundo sexo
influenciaram fortemente o surgimento, a partir da década de 1960, de uma
segunda onda feminista. Esse novo movimento de mulheres, além de ir para as ruas
reivindicar direitos ainda não conquistados, também concentrou esforços no
trabalho intelectual para a libertação feminina. É nesse momento, mas
principalmente a partir da década de 1970, que o feminismo “surge como novidade
no campo acadêmico e impõe-se como uma tendência teórica inovadora e de forte
potencial crítico e político”, contribuindo, assim, para a revisão crítica de 10
8 Beauvoir, 2016b [1949], p. 75. 9 Idem, grifos da autora, p. 540. 10 Hollanda, 1994, p. 7.
18
A ESCOLA CANADENSE DE TRADUÇÃO FEMINISTA
diferentes disciplinas científicas e humanistas, a partir do questionamento de seu
suposto caráter neutro e objetivo, mostrando que essas disciplinas, na verdade,
atendiam os critérios patriarcais, conforme nos explica Castro (2017).
O debate sobre gênero atingiu primeiramente as ciências sociais, mas logo os
estudos da linguagem passaram a ser também um dos focos das lutas feministas:
um dos lemas do movimento na década de 1970 dizia justamente que a libertação
das mulheres deve, em primeiro lugar, ser uma libertação da/pela linguagem – “la
libération des femmes passe par le langage”. Isso porque a língua é o lugar em que os 11
sujeitos e suas experiências se constituem e, visto que é permeada por ideologia,
nunca é neutra, transparente, mas, como já nos ensinou Bakhtin (2014), sempre
opaca; a língua é, portanto, um instrumento de poder. Por meio desse
entendimento, feministas começaram a refletir sobre as relações de poder presentes
na linguagem e o lugar subordinado que a mulher nela ocupa. Não se vendo
representadas, elas passaram a problematizar e a reformular certas leituras há muito
consolidadas.
Assim, para inverter essa ordem, algumas feministas – principalmente as da
corrente anglo-saxônica – passaram a “denunciar os aspectos arbitrários e mesmo
manipuladores das representações da imagem feminina na tradição literária e
particularizar a escrita das mulheres como o lugar potencialmente privilegiado para
a experiência social feminina”. Foi com isso em mente que algumas escritoras 12
feministas – tais como Hélène Cixous na França, Adrienne Rich nos Estados
Unidos e Nicole Brossard no Canadá – publicaram, durante as décadas de 1970 e
1980, textos em que experimentaram com a linguagem convencional – patriarcal e,
portanto, inerentemente misógina, de acordo com as autoras –, desconstruindo-a,
11 Simon, 1996, p. 7. 12 Hollanda, 1994, p. 11.
19
O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
subvertendo-a e atacando-a, de modo a destacar a presença e as experiências das 13
mulheres.
Ao apresentar essas autoras, Luise von Flotow (1997) explica que, para elas, a
“linguagem não é apenas uma ferramenta de comunicação, mas também uma
ferramenta de manipulação”, feita para refletir exclusivamente a vida dos homens, 14
suas realidades e suas ideias, enquanto as vivências das mulheres permanecem
indescritíveis. A única solução possível para mudar esse cenário seria “uma
reformulação completa da linguagem para que a especificidade das mulheres possa
ser explicada e seu desenvolvimento seja possível”. Assim sendo, tais escritoras 15
feministas “desafiaram a linguagem padrão e criticaram, reescreveram ou ignoraram
dicionários e outros materiais de referência estabelecidos”, pois, em sua visão, “a
sintaxe padrão e os gêneros literários estabelecidos refletiam e perpetuavam as
estruturas de poder patriarcais”. Tentaram, então, “encontrar uma nova linguagem
e novas formas literárias para as mulheres que refletissem e respondessem a suas
realidades” e, assim, “começaram a criticar e mudar radicalmente a linguagem
existente para que ela se tornasse útil, em vez de inerentemente perigosa para as
mulheres”. 16
Dentre as estratégias usadas por essas escritoras feministas, destaca-se aqui a
pesquisa etimológica do vocabulário convencional e sua desconstrução; o uso do
“e” mudo – que marca o gênero feminino no francês – como crítica ao masculino
como termo genérico; trocadilhos e neologismos; a fragmentação da linguagem; o
desprezo pelas estruturas gramaticais e sintáticas, além do “desmantelamento de
13 Von Flotow, 1991. 14 Esta e todas as demais traduções de obras não traduzidas para o português são minhas. “Language is not only a tool for communication but also a manipulative tool”, Von Flotow, 1997, p. 8. 15 “A full-scale revamping of language so that women's specificity might be accounted for and women's development be made possible”, Idem, 1997, p. 9. 16 “Writers took issue with standard language and criticized, rewrote or ignored dictionaries and other established reference materials. They viewed standard syntax and the established literary genres as reflecting and perpetuating patriarchal power structures. They tried to find a new language and new literary forms for women that would have reflect and respond to women's realities; they began to criticize and radically change existing language do that it might be rendered useful, rather than inherently dangerous for women”, Idem, 1997, p. 9.
20
A ESCOLA CANADENSE DE TRADUÇÃO FEMINISTA
palavras individuais, a fim de examinar seus significados ocultos”. Só por meio da 17
contínua desconstrução da linguagem patriarcal, diz von Flotow (1991), será
possível o desenvolvimento do discurso das mulheres, para que, enfim, elas possam
ser ouvidas.
Os estudos da tradução, nesse período, também passavam por uma
transformação, por uma “virada cultural”, devido ao surgimento dos estudos
culturais – que defendiam a importância do contexto cultural nos estudos
científicos – e as teorias pós-estruturalistas – “formulações teóricas que analisam os
fenômenos em seu contexto social e político”. Desse modo, o trabalho tradutório 18
deixou de ser visto apenas como uma mera transposição de significados, um
processo de decodificação entre dois sistemas linguísticos diferentes, passando a ser
entendido como um processo de transferência cultural. Isso significa que a visão 19
dos estudos da tradução como uma prescrição do que é uma “boa tradução” –
visão dominante durante muito tempo – foi substituída pela abordagem descritiva:
“o que fazem as traduções, como elas circulam pelo mundo e provocam
respostas?”. O trabalho do(a) tradutor(a) deixa, então, de ser a busca pela 20
inalcançável fidelidade, pois, de acordo com Arrojo (2000),
[...] mesmo que tivermos como único objetivo o resgate das intenções originais de um determinado autor, o que somente podemos atingir em nossa leitura ou tradução é expressar nossa visão desse autor e suas intenções. [...] Nossa tradução de qualquer texto, poético ou não, será fiel não ao texto “original”, mas àquilo que considerarmos ser o original, àquilo que considerarmos constituí-lo, ou seja, à nossa interpretação do texto de partida, que será [...] sempre produto daquilo que somos, sentimos e pensamos.
17 “The dismantling of individual words in order to examine their concealed meanings”, Von Flotow, 1991, p. 73. 18 Oliveira et al, 2002, p. 2. 19 Idem, ibidem. 20 Simon, 1996, p. 7.
21
O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
A pessoa que traduz, portanto, passa a ser visível, já que agora está sendo
entendida como sujeito inserido em determinado contexto cultural, ideológico e
político que não pode ser ignorado na elaboração de uma tradução. Esse novo
olhar sobre a realidade já constava na agenda feminista, portanto, sua relação com a
tradução seria mutuamente enriquecedora. Assim, algumas tradutoras, que 21
também eram feministas, constataram que ao deixar de marcar conscientemente
suas ideologias nas traduções que produziam, estavam, ainda que não
propositalmente, aderindo à ideologia dominante, que é patriarcal. Com esse novo
olhar sobre o ato tradutório, é possível então pensar em uma teoria e prática de
tradução que leve em conta a mulher na linguagem, que torne visível a experiência
feminina, que não subscreva-se à ideologia dominante.
Antes disso, diversas autoras feministas do Quebec – dentre elas, Nicole
Brossard e Louky Bersianik – escreveram, em francês, textos que experimentaram
com a linguagem patriarcal, subvertendo-a. Suas tradutoras, quando entraram em
contato com esses textos para transmiti-los para o Canadá anglófono, começaram a
refletir sobre a posição da mulher na linguagem e a questionar suas próprias
práticas: é assim que nasce, então, a tradução feminista – resultado direto do
trabalho experimental das escritoras quebequenses. Como exemplo mais
paradigmático desta discussão, von Flotow (1997) nos apresenta o caso de Susanne
de Lotbinière-Harwood, feminista e tradutora canadense. Muito experiente na área,
Lotbinière-Harwood era conhecida principalmente por traduzir para o inglês os
poemas do músico e poeta Lucien Francouer – ela inclusive chegou a ser premiada
pela tradução de uma de suas obras. Porém, depois de receber elogios dizendo que
sua tradução era ainda melhor que o próprio poema original, Lotbinière-Harwood
começou a refletir sobre sua prática; a feminista, então, se deu conta de que suas
traduções partiam de uma perspectiva masculina, como se ela mesma fosse um
21 Castro, 2017.
22
A ESCOLA CANADENSE DE TRADUÇÃO FEMINISTA
homem olhando para uma mulher e, ao constatar isso, optou por nunca mais
traduzir obras literárias escritas por homens.
A partir de então, a luta de Lotbinière-Harwood por meio da linguagem se
deu não só pela sua escolha de não traduzir homens, mas também porque optou
por feminizar suas traduções. Quando ela traduz um texto do francês para o inglês
em que muitas palavras estão escritas de forma neutra ou “genérica”, ou seja, no
gênero masculino, faz questão de colocar todas essas palavras no feminino. Além
disso, a tradutora entende que tem o direito de mudar aspectos do texto-fonte em
sua tradução, se não concorda com o que a autora diz. É por intermédio de espaços
privilegiados como o prefácio que Lotbinière-Harwood explica sua posição e
defende sua intervenção. Ao traduzir Lettres d’une autre, de Lise Gauvin, publicado
originalmente em 1984 – sua tradução para o inglês foi lançada em 1989 –, por
exemplo, a tradutora escreveu:
Querido(a) leitor(a),
Apenas algumas palavras para que saiba que esta tradução é uma reescrita no feminino do que eu li originalmente em francês. Não falo de conteúdo. Lise Gauvin é feminista e eu também. Mas não sou ela. Ela escreveu no genérico masculino. Minha prática de tradução é uma atividade política que visa a fazer a língua falar pelas mulheres. Assim, minha assinatura numa tradução significa: esta tradução utilizou toda estratégia possível de tradução feminista para tornar o feminino visível na linguagem. Isso significa fazer com que as mulheres sejam vistas e ouvidas no mundo real. E esse é objetivo do feminismo. 22
Não só ela, mas diversas tradutoras inseridas no mesmo contexto que
Lotbinière-Harwood começaram a refletir sobre “por que estavam trabalhando em
22 “Dear reader, just a few words to let you know that this translation is a rewriting in the feminine of what I originally read in French. I don’t mean content. Lise Gauvin is a feminist, and so am I. But I am not her. She wrote in the generic masculine. My translation practice is a political activity aimed at making language speak for women. So my signature on a translation means: this translation has used every possible feminist translation strategy to make the feminine visible in language. Because making the feminine visible in language means making women seen and heard in the real world. Which is what feminism is all about”, Lotbinière-Harwood, 1989, p. 9 apud Von Flotow.
23
O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
textos que, de repente, pareciam aliená-las, textos cujas premissas elas não
compartilhavam”, ao mesmo tempo em que “descobriam uma escrita feminista 23
com a qual sentiam intensa afinidade”. Por meio dessa reflexão, ficou claro que 24
até mesmo a língua pode ser um local de subordinação da mulher pelo homem –
para von Flotow (1997), o comportamento linguístico essencialmente patriarcal não
é natural; é preciso, pois, encarar essa linguagem de maneira radical, enxergando-a
como a própria causa da opressão feminina, “o meio pelo qual cada mulher foi
ensinada e passou a ter conhecimento de seu lugar subordinado no mundo”. A 25
tradução, então, foi apropriada como um dos diversos elementos da luta feminista,
a fim de empoderar, representar e evidenciar a mulher na linguagem. Assim, à
mulher tradutora é dada a possibilidade de romper com o silêncio imposto e de
transmitir as experiências femininas, e sua relação com a linguagem. Em seu
trabalho, a tradutora afirma sua diferença crítica e produz um novo discurso, um
novo enunciado em detrimento daquele que a oprime. A tradução é, portanto, um
meio de criação de novos significados e de novas possibilidades de interpretação; é
“uma continuação do processo de criação e circulação de significados dentro de
uma rede contingente de discursos”. Mas, como bem explica Simon (1996): 26
As formas com que as tradutoras chamam a atenção para a sua identidade como mulheres – ou mais especificamente como feministas – são destacadas aqui para explicar as afinidades ou frustrações que sentem em seu trabalho de tradução e para esclarecer textos que exploram os recursos dos gêneros gramaticais para fins imaginativos ou políticos. Gênero nem sempre é um fator relevante na tradução. Não há características a priori que tornem as mulheres mais ou menos competentes em suas tarefas. Onde a identidade entra em jogo é o ponto em que a tradutora transforma o gênero em um projeto social ou literário. 27
23 “Why they were working on texts which suddenly seemed alien to them, texts whose premises they could not share”, Simon, 1996, p. ix.. 24 “women were discovering feminist writing with which they felt intense affinities”, Idem, ibidem. 25 “the medium through which women were taught and came to know their subordinate place in the world”, Von Flotow,, 1997, p. 8. 26 Castro, 2017, p. 222 27 “The ways in which translators draw attention to their identities as women – or more specifically as feminists – are highlighted here in order to explain the affinities or frustrations they feel in their translation work, and in order to elucidate texts which themselves exploit the resources of grammatical gender for imaginative or political purposes.
24
A ESCOLA CANADENSE DE TRADUÇÃO FEMINISTA
Para transformar o texto em feminista, essas tradutoras utilizam inúmeras
estratégias, mas aqui serão discutidas três delas, conforme apresentadas por von
Flotow (1991): (1) supplementing (complementar), (2) prefacing and footnoting
(acrescentar prefácio e notas de rodapé) (3) “hijacking” (sequestrar). A primeira
dessas estratégias se refere à proposta de Walter Benjamin, que defende que “o
texto-fonte é complementado, amadurecido, desenvolvido e ganha uma vida após a
morte por sua tradução”. Enquanto Benjamin via a tradução como um ato 28
apolítico, a tradutora feminista aplica conscientemente a estratégia de seu papel
político como mediadora.
Complementar uma tradução é útil principalmente para compensar as
diferenças entre as línguas, pois a tradutora feminista “recupera as perdas
intervindo e complementando em outra parte do texto”. Um exemplo de 29
supplementing que von Flotow (1991) nos apresenta é a tradução de uma frase
retirada de L’Euguélionne, livro de Louky Bersianik traduzido por Howard Scott. No
original em francês, Bersianik, discutindo sobre as políticas de aborto, diz que “Le
ou la coupable doit être punie”. A adição do “e” – marca do feminino em francês – em
“puni” indica claramente que a mulher é a punida por abortar. No inglês, não é
possível transferir esse jogo diretamente, já que essa língua não tem gêneros
gramaticais. Scott, no entanto, conseguiu contornar bem a situação, encontrando
uma solução – o acréscimo do pronome feminino – que complementa essa perda
ao criar a frase “the guilty one must be punished, whether she is a man or a woman”. 30
Gender is not always a relevant factor in translation. There are no a priori characteristics which would make women either more or less competent at their task. Where identity enters into play is the point at which the translator transforms the fact of gender into a social or literary project”, Simon, 1996, p. 7. 28 The source text is supplemented by its translation, matured, developed, and given an afterlife”, Von Flotow, 1991, p. 75. 29 “Recoups certains losses by intervening in, and supplementing another part of the text”, Idem ibidem. 30 apud Idem, ibidem. Grifos nossos; todos os grifos são nossos, exceto quando houver indicação em contrário.
25
O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
A segunda estratégia usada por tradutoras feministas, prefacing and footnoting,
refere-se à escrita de prefácios e notas de rodapés nas traduções, a fim de refletir
sobre seus trabalhos e salientar sua presença ativa no texto. Como explica Godard
(1990), esses são recursos muito utilizados pelas tradutoras feministas para exibir
sua assinatura e ostentar os sinais de manipulação. Assim, a tradutora se mostra
como “mais do que uma tradutora convencional; ela é cúmplice da(o) autora(autor),
que mantém a estranheza do texto-fonte e busca, ao mesmo tempo, comunicar seus
múltiplos significados, de outra forma ‘perdidos na tradução’.”. Nesses lugares 31
privilegiados, o uso de termos como “subversão”, “intervenção” e “manipulação”
são muito frequentes para a descrição de seus trabalhos.
Por fim, temos a estratégia de hijacking, termo emprestado por von Flotow de
um crítico da tradução feminista, que o empregou para criticar as traduções feitas
por Susanne de Lotbnière-Harwood, visto que essas têm “interferências
excessivas”. Como exemplo do que é considerado “excessivo” para esse crítico, 32
temos o prefácio, já aqui mencionado, escrito por Lotbnière-Harwood para explicar
sua tradução de um livro de Lise Gauvin e suas intervenções conscientes no texto.
A tradutora, ao evitar o genérico masculino e criar formas femininas anteriormente
inexistentes, torna o feminino visto e ouvido na tradução; ela, assim, “sequestra” o
texto, apropria-se dele, tornando-o dela para poder refletir suas próprias intenções
políticas.
Muitas críticas já foram direcionadas a esse olhar sobre a tradução: para
Paulo Henriques Britto (2016), por exemplo, propostas de tradução tais como a
feminista não são éticas, visto que suas tradutoras são deliberadamente infiéis ao
texto-fonte. Britto defende:
31 “She is more than a conventional translator, she is the author’s accomplice who maintains the strangeness of the source text, and seeks at the same time to communicate its multiple meanings otherwise ‘lost in translation’”, Von Flotow, 1991, p. 76. 32 Idem, p. 78.
26
A ESCOLA CANADENSE DE TRADUÇÃO FEMINISTA
O tradutor tem a obrigação de se esforçar ao máximo para aproximar-se tanto quanto possível da inatingível meta de fidelidade, e que ele não tem o direito de desviar-se desse caminho por outros motivos. [...] O tradutor que coloca no texto anacronismos propositais para que o leitor se lembre de que está lendo uma tradução, ou que altera uma passagem de modo consciente para enunciar uma posição ideológica do autor, está, no meu entender, agindo de maneira antiética, na medida em que deveria estar atuando na qualidade de tradutor. Ele tem todo o direito de se tornar visível, mas as maneiras apropriadas de fazê-lo são outras [...] ele não tem o direito de se tornar visível intervindo de modo ostensivo no texto do autor, para chamar a atenção do leitor que o que ele está lendo é uma tradução; ao agir assim, ele está violando o seu compromisso básico, que é o de se esforçar ao máximo para que, após ter lido sua tradução, o leitor possa afirmar, sem mentir, que leu o original. 33
Todas as estratégias de tradução feminista aqui apresentadas mostram que
essas tradutoras não têm a pretensão de ser “invisíveis”. Da mesma forma, seu
compromisso não é manter-se fiel ao texto de origem, mas sim, de acordo com von
Flotow (1997), de manipulação da linguagem para que essa fale em favor das
mulheres e vá contra a ordem falocêntrica dominante. E só a infidelidade permite
com que sua agenda política vá adiante.
A tradução feminista é uma operação criativa, não mera reprodução; é uma
prática altamente transformadora e de caráter político muito evidente. A recusa da
invisibilidade se dá porque essas tradutoras feministas sabem que elas – e todas(os)
tradutoras(es), independentemente de suas ideologias – fazem um trabalho
importantíssimo em relação à transmissão de ideias, o que influencia diretamente na
perpetuação ou contestação dos valores da cultura. Então, em sua visão, a tradução
feminista é uma prática necessária. Por isso, conquanto seja extremamente
necessário traduzir textos de mulheres, feministas ou não, para desse modo
“compactuar de um mercado em expansão, um nicho que precisa ganhar mais
visibilidade”, obras clássicas, escritas por homens e lidas tradicionalmente pelo 34
33 Britto, 2016, p. 38. 34 Schäffer, 2010, p. 280.
27
O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
olhar masculino, podem, e devem, ganhar traduções feministas, pois, de acordo
com Maria Tymoczko (2013),
A ideologia de uma tradução não reside simplesmente no texto traduzido, mas no modo de expressão e na postura do(a) tradutor(a)[...]. Esses últimos aspectos são influenciados pelo lugar de enunciação do tradutor [...] Tais aspectos da tradução são motivados e determinados pelas afiliações culturais e ideológicas do(a) tradutor(a), assim como ou ainda mais motivados pela localização espacial e temporal de onde ele (ela) fala.
35
Lidas por outro olhar, essas novas traduções podem “refletir e chamar a
atenção aos aspectos do texto fonte que são novos, ou inovadores, ou considerados
‘úteis’ para o novo público leitor”. É o caso, por exemplo, da The Woman’s Bible 36
(1895) e da versão francesa da Bíblia publicada em 2001, que trouxeram à tona
detalhes do texto bíblico – principalmente em relação às mulheres – que foram
apagados ou transformados em suas traduções anteriores. Fato semelhante ocorreu
com uma nova tradução para o inglês de Odisseia, a primeira feita por uma mulher,
Emily Wilson: agora temos um olhar feminino sobre o grande épico de Homero,
um olhar que se sensibiliza com as questões das mulheres e procura, na tradução,
soluções para o depreciamento delas, como fizeram alguns tradutores que levaram
Odisseia para a língua inglesa. Reescritas de textos clássicos deixam visível que “esses
detalhes foram desaparecidos, escondidos e perdidos, de forma que sistemas sociais
e políticos inteiros puderam ser fundados na natureza ‘secundária’ das mulheres,
vindas em segundo lugar na Criação, derivadas do corpo de Adão [...]”. Essas 37
novas traduções, feitas por sujeitos que partem de outro lugar discursivo – e
sabemos que a “posição a partir da qual o sujeito fala que determina seu dizer” – 38
35 Tymoczko, 2013, p. 118. 36 Von Flotow, 2013, p. 180. 37 Idem, p. 173. 38 Schäffer, 2010, p. 271.
28
A ESCOLA CANADENSE DE TRADUÇÃO FEMINISTA
possibilitam não só novas leituras e interpretações de textos tão consagrados, mas
também um olhar diferente para a realidade.
Embora seja relativamente recente a intersecção entre feminismo e estudos
tradutórios, a relação entre tradução e mulher existe há mais tempo. Quando
publicou, em 1988, Gênero e a metafórica da tradução. Lori Chamberlain discutiu como
historicamente a tradução tem sido comparada à mulher. Explica a autora:
Como mostra a pesquisa feminista, em diversas áreas, a oposição entre trabalho produtivo e reprodutivo determina o modo como os valores de uma cultura atuam: esse paradigma descreve originalidade e criatividade em termos de paternidade e autoridade, relegando à figura feminina uma série de papéis secundários. 39
Assim, enquanto o escrever seria algo original e “masculino”, o traduzir
remeteria ao derivado e “feminino”. Portanto, no original residiria “o que é natural,
verdadeiro e legítimo; na cópia, o que é artificial, falso e traidor”. Para ilustrar essa 40
comparação, a autora apresenta algumas metáforas amplamente utilizadas no
mundo da tradução. Dessas, a noção de les belles infidèles é o exemplo mais frequente
e conhecido: cunhada no século XVII, a metáfora expõe muito bem a sexualização
da tradução, captando “uma cumplicidade cultural entre as questões de fidelidade
na tradução e no casamento”. O termo evoca a ideia de que as traduções seriam, 41
assim como as mulheres, ou belas ou fiéis. E, tal como ocorre entre o homem e a
mulher, a relação entre o original e a tradução possui um “contrato implícito”, no
qual “a esposa/tradução ‘infiel’ é publicamente julgada por crimes que o
marido/original por lei é isento de cometer”. 42
39 Chamberlain, 2005, p. 38. 40 Idem, p. 38. 41 Idem p. 39. 42 Idem, ibidem.
29
O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
De modo geral, o estudo de Chamberlain sobre as metáforas da tradução
explorou a reivindicação do tradutor ao seu direito à paternidade, exigindo que seu
texto seja considerado legítimo, pois, em sua visão, seu trabalho é “uma atividade
criativa”, uma vez que “traduzir é como escrever”. A autora também enfatizou em 43
seu texto “os mitos da paternidade (ou autoria e autoridade)” e a “ambivalência
sobre o papel da maternidade”. Um dos pontos centrais em Chamberlain é a 44
discussão sobre como o discurso referente à tradução a relaciona ao feminino, visto
que atribuem tanto à tradução quanto à mulher uma função reprodutora, e ambas
têm sido ligadas ao produtor/homem/texto original.
A associação não é à toa: à mulher coube a função de reproduzir a obra
literária, encarregando-se sempre de uma tarefa dita secundária, enquanto o homem
detinha o direito de produzir tais obras. Foi inclusive por meio da prática de
traduzir que as mulheres adentraram o mundo da intelectualidade na Europa
Medieval. Isso se deu porque, segundo Simon (1996), às mulheres foram negados
os privilégios de autoria: durante a Renascença inglesa, elas “eram encorajadas a
traduzir textos religiosos, enquanto eram proibidas de realizar qualquer outro tipo
de atividade de redação pública”. A prática tradutória seria, portanto, a única 45
forma possível de se expressarem pública e criativamente.
Aqui, fica clara a distinção de valor entre o trabalho produtivo (a autoria,
feita pelo homem) e o trabalho reprodutivo (a tradução, realizada pela mulher).
Não há nada intrínseco à tradução que a caracterize como uma atividade
essencialmente feminina, mas, como diz Chamberlain:
Embora obviamente tanto homens e mulheres façam traduções, a lógica binária que nos encoraja a definir o profissional de enfermagem como feminino e o de medicina como masculino, o de ensino como feminino e
43 Idem, p. 51. 44 Idem, p. 45. 45 “Women were encouraged to translate religious texts when they were forbidden from undertaking any other kind of public writing activity”, Simon, 1996, p. 3.
30
A ESCOLA CANADENSE DE TRADUÇÃO FEMINISTA
o de ensino superior como masculino, o de secretária como feminino e o de altos executivos como masculino, também mostra a tradução, de várias maneiras, como uma atividade de arquétipo feminino. 46
A discussão de Chamberlain – que ecoa nos trabalhos das principais teóricas
da área, como Barbara Godard (1990), Sherry Simon (1996) e Luise von Flotow
(1997) – também influenciou fortemente a junção de duas áreas de pesquisa
distintas – os estudos da tradução e o feminismo –, mostrando que ambas têm
diversos aspectos em comum: além de serem dotadas de um caráter interdisciplinar,
tanto os estudos da tradução quanto o feminismo, lidam com questões vistas como
secundárias, derivadas, de “pouca importância”. Então, em um momento de
efervescência político-cultural, com o surgimento dos estudos culturais e das teorias
pós-estruturalistas, ao mesmo tempo em que feministas quebequenses
experimentam com a linguagem, as disciplinas se encontram, e estudiosas das áreas
começam a pensar uma teoria de tradução feminista.
Segundo Godard (1990), o discurso feminista envolve a transferência de uma
realidade cultural para um novo contexto, no qual tradições literárias são
constantemente desafiadas no encontro de diferentes modos de textualização. É
um discurso duplo, “o eco do eu e do outro, um movimento para a alteridade”. 47
Para a autora, mais do que reproduzir, traduzir é produzir; é a partir do ato
tradutório que a exploração feminina se torna visível, pois é a tradução feminista
que permite que a mulher quebre o silêncio, e transmita suas experiências e sua
relação com a linguagem. Essa é uma prática que foge dos padrões tradicionais de 48
fidelidade - ela é um meio de criação de significados. A tradução, portanto, seria
uma maneira de reescrever os sistemas literários.
46 Chamberlain, 2005, p. 52. 47 Godard, 1990, p. 44. 48 Idem, ibidem.
31
O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
Só é possível compreender o encontro da tradução com o feminismo se
refletirmos sobre a posição subalterna que a mulher ocupou desde os seus
primórdios, o status marginal atribuído à tradução e, também, suas transformações
a partir das contribuições de outras áreas na teoria tradutória, uma vez que, como
sintetiza von Flotow, “a visão histórica sobre as mulheres e o controle político
imposto a elas encontrou um bom paralelo na posição também ‘degradada’ da
tradução”. Para Simon: 49
A entrada do gênero na teoria da tradução tem muito a ver com o renovado prestígio da tradução como “reescrita” e como defesa contra as forças desenfreadas da globalização, assim como mostra a importância de uma ressignificação crítica de gênero, identidade e posições de sujeito dentro da linguagem para todas as ciências sociais e humanas. 50
Ambas as disciplinas acrescentaram uma a outra, e ainda têm muito a
acrescentar, pois desde o surgimento da proposta canadense de tradução feminista,
várias outras vertentes do feminismo surgiram. Assim, embora ainda seja vista
como o paradigma da tradução feminista, a proposta canadense não é a única
legítima: novas teorizações sobre a interação entre os estudos da tradução e o
feminismo são possíveis e necessárias para ampliar o debate, como defende Castro
(2017).
*
49Historical views of women and the political controls imposed upon them thus find an easy parallel in the similarly ‘degraded position of translation” (Von Flotow, 1997, p. 76). 50 “The entry of gender into translation theory has a lot to do with the renewed prestige of translation as a ‘re-writing’ and as a bulwark against the unbridled forces of globalization, just as it shows the importance for all the social and human sciences of a critical reframing of gender, identity and subject-positions within language”, Simon, 1996, p. ix.
32
II Considerações Sobre o Objeto de Pesquisa
II. 1. Vida e obra de Katherine Mansfield 51
Nascida Kathleen Mansfield Beauchamp, em 1888, Katherine Mansfield foi
uma contista neozelandesa de reconhecido talento. Apesar de sua breve existência,
a autora deixou uma ampla produção literária: em vida, ela publicou três livros de
contos, além de ter tido uma série de artigos dispersos veiculados em diversos
periódicos. Após sua morte, em 1923, seu marido tornou público seu diário, uma
grande quantidade de cartas que escreveu e vários de seus esboços, rascunhos e
contos inacabados. Hoje, Katherine Mansfield é considerada um dos maiores 52
nomes da literatura de língua inglesa, e até mesmo Virginia Woolf, sua célebre
contemporânea, confessou ter enorme admiração pela autora: “eu tinha inveja de
sua escrita – a única escrita da qual eu já tive inveja”. 53
Filha de pais aristocratas, Mansfield nasceu na cidade de Wellington, na
Nova Zelândia, mas mudou-se para a pequena cidade de Karori em 1893, na qual,
aos nove anos, publicou seu primeiro conto em uma revista chamada The Lone
Hand. Cinco anos mais tarde, voltou para Wellington, permanecendo até 1903, 54
quando partiu para Londres com suas irmãs mais velhas, a fim de concluir seus
estudos no Queen’s College. Foi ali, na metrópole, que Katherine Mansfield expandiu
51 As informações biográficas de Katherine Mansfield aqui relatadas, exceto quando referenciadas, foram coletadas em Mansfield, 1996, pp. 9-11. 52 Gomes & Oliveira, 2009. 53 “And I was jealous of her writing — the only writing I have ever been jealous of”, Mizekowsk, 2008, p. 8 apud Teixeira, 2015, p.54. 54 Alan, 2011
33
O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
seus horizontes, vivendo experiências arrojadas. Em 1906, teve que retornar para
sua terra natal; contudo, não ficou muito tempo por lá, já que, em Wellington, ela
concluiu que seria impossível levar o estilo de vida que desejava. Então, em 1908,
embarcou novamente para Londres, após convencer seus pais da seriedade de seus
planos como escritora.
Em Londres, Mansfield viveu uma vida afetiva, social e profissional
conturbada, trabalhando intensamente e colaborando em diversas revistas literárias.
A liberdade londrina que experimentava, porém, não agradava sua mãe, que a levou
para a Baviera, na Alemanha, onde ficou até o início de 1910, quando voltou para a
capital inglesa e mudou seu nome, de Kathleen Beauchamp, para Katherine
Mansfield – como veio a ser conhecida –, pois, de acordo com Alan (2011), “para
tornar-se escritora, ela sentia que deveria afastar-se de seus pais e se aproximar de
todas as benécies que a vida urbana moderna poderia lhe oferecer”. Depois dos 55
primeiros acessos de tuberculose, foi para o sul da França, ficando um ano por lá;
mais tarde, voltou à Inglaterra, mas, devido à sua luta contra a doença, Mansfield
foi obrigada a viver por temporadas na França e na Suíça, lugares de climas mais
amenos do que a Inglaterra. Em janeiro de 1923, aos 34 anos, Katherine Mansfield
morreu em Fontainebleau, França; até então, havia publicado três livros de contos
– In a german pension (1911), Bliss and other stories (1920) e The Garden party (1922) –,
todos com boa recepção da crítica.
Formalmente muito bem construídas, as narrativas de Mansfield focalizam o
cotidiano e os conflitos internos de seus personagens, com pouca – ou mesmo
nenhuma –, ação. Tudo está milimetricamente calculado em sua obra, o que a
aproxima muito da poesia – a preocupação com a forma, inclusive, já foi pauta em
seu diário:
55 Idem, p. 15
34
CONSIDERAÇÕES SOBRE O OBJETO DE PESQUISA
Tenho paixão pela técnica. [...] Escolhi não apenas o comprimento de cada frase, mas até mesmo o som de cada frase. Escolhi a cadência de cada parágrafo, até conseguir que eles ficassem inteiramente ajustados às frases, criados para elas naquele exato dia e momento. Depois leio o que escrevi em voz alta – inúmeras vezes –, como alguém que estivesse repassando uma peça musical – tentando chegar cada vez mais perto da expressão perfeita, até lograr alcançá-la por completo. 56
Durante sua curta vida, Katherine Mansfield não fez parte de nenhum
movimento a favor da causa feminista; porém, em grande parte de sua obra é
possível encontrar críticas acerca do papel e da posição da mulher na sociedade
inglesa pós-vitoriana – principalmente em Bliss, conto escrito em 1918 – que
tornou Mansfield conhecida dentro e fora da Inglaterra. Nesse mesmo ano, o
direito ao voto foi finalmente concedido às mulheres do Reino Unido, após anos de
protestos das suffragettes; no entanto, conquanto as ativistas desta primeira onda do
feminismo muito tenham lutado para garantir-lhes outros direitos políticos, as
mulheres ainda eram, como afirma Gomes (2006), escravas do homem e da
burguesia e, “fosse da elite ou da classe média, sua vida se passava principalmente
no interior da casa, onde recebia aulas de trabalhos domésticos e bordado”. 57
Katherine Mansfield, porém, não se contentou com o que a vida reservava às
mulheres, e transgrediu, em sua vida e obra, diversos códigos sociais vigentes em
sua época, desafiando os limites estabelecidos nos papéis sexuais. Em sua ficção, 58
conforme diz Santos,
As personagens femininas - sendo jovens ou velhas - são situadas dentro de uma rede de relações que as conduzem a uma espécie de enclausuramento, fato que é enfatizado pela escritora como o resultado das imposições do patriarcado à identidade da mulher. Assim, as esferas
56 Mansfield, 1996 apud César, 2016[1981] , p. 325. 57 Gomes, 2006, p. 98. 58 Santos, 2010.
35
O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
sexuais são extremamente ressaltadas pelas suas diferenças, fazendo com que o homem, em relação à mulher, seja retratado da maneira mais negativa possível. 59
Em Bliss, todas essas características são encontradas: seu enredo é
aparentemente simples, mas com grande valor crítico, construído por meio de uma
a linguagem trabalhada com muito esmero.
II. 2. O conto Bliss
Escrito em 1918 – período de efervescência da primeira onda do feminismo
– e publicado em 1920 na coletânea Bliss and other stories, o conto Bliss, de Katherine
Mansfield, relata a experiência de extrema felicidade vivida por Bertha Young, uma
jovem mulher burguesa, mãe de Little B. e esposa de Harry, que, de repente, é
tomada por uma felicidade absoluta e inexplicável, pois se dá conta que sua vida é
materialmente perfeita: ela é jovem, tem um marido maravilhoso, uma linda bebê,
amigos inteligentes, empregada e uma babá para ajudá-la – não há razão para não
ser feliz. Naquele dia, Bertha recebe em sua casa quatro visitas para um jantar – o
casal Knight, Eddie Warren e Pearl Fulton, mulher por quem Bertha sentia uma
certa atração.
Durante a reunião, a anfitriã toca o braço quente de Pearl e, a partir desse
contato, Bertha sente que está fortemente atraída pela convidada. Mais tarde, a
protagonista é tomada por um intenso desejo por seu marido, Harry. No entanto,
ao final da festa, enquanto os convidados estão se preparando para partir, Bertha
descobre que há algo acontecendo entre aqueles dois personagens que ela deseja.
Isso desestabiliza completamente a protagonista, que passa a ter a noção de que sua
vida não é tão perfeita quanto imaginava.
59 Idem, p. 8.
36
CONSIDERAÇÕES SOBRE O OBJETO DE PESQUISA
Mas, diferentemente do que se espera, Bertha não reage à traição; ela
continua passiva, sem voz e sem força emocional para reclamar a fidelidade de seu
marido – uma vez que não foi educada social e mentalmente para enfrentar
problemas. Quando, ao final do conto, questiona-se o que acontecerá então, 60
“possivelmente Bertha não estava incomodada por perder o marido, mas por ter
agora que vivenciar uma experiência totalmente inusitada para uma pessoa
acostumada e acomodada a uma vida estável e equilibrada”. 61
Essa forte sensação de felicidade que acomete Bertha no início do conto
desperta nela “pensamentos novos, desejos libertários para uma mulher de sua
época”. Bertha não consegue compreender ou controlar o que sente; de fato, 62
tinha tudo para ser feliz, portanto, “não deveria haver motivos para insatisfação e
Bertha devia se sentir realizada em seu gratificante papel de esposa e mãe, servindo
às necessidades da família”, como se sua própria satisfação interior não fosse 63
relevante. No entanto, a protagonista sente que algo está faltando e, por isso,
acredita que está ficando louca. Ao assim retratar Bertha, Katherine Mansfield está
criticando a sociedade em que vive, pois, como aponta Alan (2011) “a felicidade e o
sucesso eram encontrados no social, através do preenchimento de expectativas
exteriores, e não através da satisfação dos desejos íntimos [...]”. Toda a história de 64
Bliss se passa dentro da casa de Bertha Young durante um único dia; seu enredo é
simples, cotidiano, mas revela o grande incômodo de Mansfield quanto à situação
em que vivem as mulheres daquele período. Juliano (2010) sintetiza bem essa
questão quando conclui:
60 Gomes, 2006. 61 Idem, p. 120-121. 62 Juliano, 2010, p. 2. 63 Gomes, 2006, p. 118. 64 Alan, 2011, p. 27.
37
O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
E assim é “Bliss”: uma história ambientada num momento extremamente importante para as mulheres daquela época – em que feministas lutavam por direitos iguais para homens e mulheres – que acontece em um espaço comum, extremamente cotidiano para todos nós, isto é, a própria casa da protagonista, espaço esse que deveria ser de total liberdade para Bertha e não mais uma algema para sua condição de cidadã do gênero feminino – um espaço em que ela deveria ter a total possibilidade de agir conforme sua própria vontade, sem amarras, sem julgamentos, sem ordens da própria babá com relação à sua própria filha –, em um momento que parecia ser trivial para aquela família. 65
II. 3. As traduções de Bliss para o português brasileiro
Os contos de Katherine Mansfield foram traduzidos para o português
brasileiro pela primeira vez alguns anos após a morte da autora. O responsável por
sua chegada ao Brasil foi Érico Veríssimo, escritor e tradutor gaúcho que traduziu e
publicou – entre 1936 e 1938 – seis contos da autora neozelandesa para uma
revista literária da Livraria do Globo. Foi somente no ano de 1940 que Mansfield
finalmente passou a ter um livro em edição brasileira: Felicidade (no original Bliss and
other stories), também traduzido por Veríssimo e publicado pela Livraria do Globo, é
uma obra composta por quatorze contos, incluindo os seis já anteriormente
lançados. Em 1969, a coleção foi revisada e publicada pela Editora Nova Fronteira.
Hoje, uma boa parte dos escritos de Mansfield já encontram-se publicados
no Brasil; porém, Bliss foi o conto que mais ganhou edições por aqui. Além da
tradução de Veríssimo, outros profissionais se aventuraram na tarefa de traduzi-lo
para o português brasileiro. 41 anos depois da primeira publicação de Felicidade, a
poetisa Ana Cristina César ganhou o título de Mestre, com distinção, pela
Universidade de Essex, na Inglaterra, por sua dissertação intitulada O conto “Bliss”
anotado. Nesse trabalho, César traduziu a pequena história de Mansfield para o
português brasileiro, dando-lhe o nome de Êxtase e, por meio de 80 notas, explicou
65 Juliano, 2010, p. 9.
38
CONSIDERAÇÕES SOBRE O OBJETO DE PESQUISA
seu processo tradutório. Embora não tenha sido escrito para publicação no Brasil,
Êxtase foi publicado pela primeira vez em nosso país na revista Status-Plus, em 66
1981. Após sua morte, em 1983, os ensaios sobre tradução e literatura que Ana
Cristina César escreveu durante seu período em terras britânicas – incluindo a
tradução de Mansfield e suas notas – foram reunidos e deram origem à obra Escritos
da Inglaterra, publicada em 1988. Mais tarde, em 1999, a Editora Ática, em parceria
com o Instituto Moreira Salles, agrupou esse e outros livros de ensaios de César em
um novo e único volume, intitulado Crítica e Tradução.
Em 1984, poucos anos depois da primeira publicação de Êxtase, o conto Bliss
ganhou outra tradução para o português: publicado no livro Aula de canto, pela
Editora Global, dessa vez os responsáveis foram Edla Van Steen e Eduardo
Brandão. Mais tarde, a Editora Revan incumbiu Julieta Cupertino de traduzir todos
os livros de contos de Katherine Mansfield. Sua tarefa iniciou-se pela coleção Bliss
and other stories que, em 1991, foi lançada sob o nome de Felicidade e outros contos.
Essa, porém, não seria a última tradução de Bliss: em 1997, Maura Sardinha foi a
encarregada de traduzi-lo para a Ediouro, que o publicou na coleção de contos As
Filhas do Falecido Coronel e outras Histórias. A versão de Bliss mais recente de que se
tem notícia é uma adaptação feita por Ana Carolina Vieira Rodrigues em 2007,
publicada pela Editora Rideel, juntamente com o conto O estranho.
Embora seis diferentes versões para o português brasileiro do conto Bliss, de
Katherine Mansfield, tenham sido elaboradas até o momento deste estudo, aqui
serão analisadas somente as traduções de Érico Veríssimo, Ana Cristina César e
Julieta Cupertino. Esse recorte foi feito a fim de investigar as diferenças ideológicas
66 De acordo com a cronologia da vida de Ana Cristina César presente na edição de 2016 do livro Crítica e tradução, “Êxtase”, a tradução de César, foi publicada na edição de julho de 1981 da Revista Status-Plus, mas nenhuma outra informação referente a essa publicação foi encontrada.
39
O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
no que se refere à imagem da mulher dentro do conto de Mansfield, visto que
Veríssimo, um homem, traduziu o conto de Mansfield em um período em que o
feminismo não estava em evidência, enquanto as traduções de César e Cupertino
foram elaboradas em um período posterior, quando o movimento feminista já
havia passado por uma nova onda, e outras pautas sobre a situação social feminina
estavam sendo discutidas. Para melhor entendimento do lugar em que se situa cada
uma das traduções selecionadas, uma breve biografia de cada um desses tradutores
foi elaborada. Cabe mencionar que, de acordo com o prestígio do tradutor, um
maior ou menor número de dados foi encontrado.
II. 3. 1. Érico Veríssimo e Felicidade
A Livraria do Globo, editora de Porto Alegre, foi uma das grandes
responsáveis pela época de ouro da tradução no Brasil, que seu deu no período de
1930 a 1940. Entre seu time de tradutores, havia o gaúcho Érico Veríssimo, escritor
consagrado, nascido em 1905, que foi também tradutor, conselheiro literário e
revisor de traduções. Veríssimo já havia traduzido alguns contos de Katherine
Mansfield para o português brasileiro quando, em 1940, a editora em que
trabalhava publicou Felicidade, coletânea que reunia quatorze contos da escritora
neozelandesa e que, surpreendentemente, alcançou grande êxito. Uma nota a
respeito da recepção de sucesso foi escrita na edição de 26 de outubro de 1940 da
Revista do Globo, em um dos quinzenários que a editora então publicava:
Ao publicar a tradução do livro de contos de Katherine Mansfield, Felicidade (Bliss), a Livraria do Globo não esperava pudesse essa encantadora obra obter o sucesso que vem alcançando no Brasil. Katherine Mansfield, pode-se dizer, constitui um caso à parte na literatura universal; seus contos, fugindo à técnica usual e embebidos de uma poesia diferente, revolucionaram toda a arte novelística inglesa. (...). Felicidade,
40
CONSIDERAÇÕES SOBRE O OBJETO DE PESQUISA
cuja primeira edição de 3000 volumes já se encontra esgotada, será reeditada ainda este mês, para ingressar no seu sexto milheiro. 67
Sua tradução de Mansfield, de fato, foi um grande sucesso, tanto que, em
edição posterior, publicada pela Nova Fronteira quase vinte anos após seu
lançamento, o livro foi descrito em sua capa como “o best-seller que comoveu 68
duas gerações”, além de trazer o nome do tradutor em fonte maior do que o nome
da autora – o que revela que foi por meio da leitura do texto traduzido que um 69
maior número de leitores teve acesso à obra, e não pelo texto-fonte; mas também
pode indicar maior relevância do tradutor do que da própria Katherine Mansfield
no Brasil.
Traduzir Katherine Mansfield inspirou profundamente as obras que Érico
Veríssimo viria a escrever, pois, segundo o autor/tradutor, a contista neozelandesa
lhe ensinou boas lições de escrita. Todavia, o processo de traduzir Bliss foi muito
demorado para Veríssimo, que o traduziu “com lento cuidado e comovido
carinho”, pois já estava saturado das leituras de Mansfield. Tematizando essa 70
experiência, o autor/tradutor produziu um texto ficcional intitulado Conversa com o
fantasma de K. Mansfield, publicado em 1942 no livro As mãos de meu filho.
II. 3. 2. Ana Cristina César e Êxtase
Poetisa desde muito jovem, Ana Cristina César, nascida em 1952, começou a
se interessar pela atividade e teoria tradutórias no início dos anos 1970, quando
voltou de um intercâmbio na Inglaterra com uma mala repleta de livros da literatura
67 Moreira, 2005 apud Arbex, 2013, p. 36. 68 Mansfield, 1969. 69 Segundo Veríssimo, apud Arbex, 2013, p. 37, o fato de a editora ter colocado seu nome em fonte maior do que o nome de Mansfield na capa de seu livro traduzido é uma “injustiça”. 70 Idem, p. 43.
41
O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
inglesa, e leu os escritos dos irmãos Haroldo e Augusto Campos, defensores da
ideia de “que os tradutores não são uma parte neutra no processo tradutório e que
a tradução não é uma mera transposição de conteúdo linguístico”. 71
Aos 19 anos, ingressou na faculdade de Letras da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, na qual se formou em 1974. Em 1979, concluiu um
mestrado em comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro. No mesmo
ano, retornou à Inglaterra, dessa vez para realizar um mestrado em Theory and
Practice of Literary Translation, na Universidade de Essex. Sua dissertação era
composta por uma tradução para o conto Bliss, de Katherine Mansfield, antecedida
por uma introdução em que comenta seu processo de tradução, e sucedida por
oitenta notas, nas quais justifica suas escolhas tradutórias.
Com esse trabalho, a poetisa/tradutora recebeu, em 1981, com distinção, o
título de Master of Arts. Foi durante o período em que esteve em terras britânicas
que ali emergiram os estudos de gênero; Gomes (2006) argumenta que esses
estudos certamente influenciaram sua composição poética, sua escolha por traduzir
Mansfield e sua própria prática tradutória. Como afirma Alan (2011):
A tradução de Bliss por Ana Cristina César se deu em um momento de grande efervescência cultural. Havia um novo olhar sobre a função da mulher, do negro, dos homossexuais e as literaturas periféricas estavam emergindo. Além disso, o pensamento desconstrutivista possibilitou a valorização do ato de traduzir e a saliência do seu caráter histórico. A prática dos irmãos Campos, em território nacional, também relativizava as posturas de tradutor, autor, tradução, texto original, e defendia a iniciativa criativa por parte do tradutor. Em meio a todas essas mudanças significativas do modo de pensar e conceber o universo de valores, a tradução de Ana Cristina César aparece tomada de escolhas e notas que a descobrem como uma mulher do seu tempo. 72
71 Gomes, 2006, p. 103. 72 Alan, 2011, p. 89.
42
CONSIDERAÇÕES SOBRE O OBJETO DE PESQUISA
II. 3. 3. Julieta Cupertino e Felicidade
Diferentemente dos outros dois tradutores selecionados neste estudo, Julieta
Cupertino não foi, além de tradutora, autora de prosa e/ou poesia; possivelmente
por essa razão há poucas informações disponíveis sobre sua vida. Sabe-se apenas
que, nascida em 1907, foi dona de casa até os 50 anos, quando decidiu lecionar
inglês.
Após se aposentar e passar por um período de inatividade, seu filho, dono da
Editora Revan, a incumbiu – quando ela já estava na casa dos 80 anos – de traduzir
o conjunto da obra de Katherine Mansfield para o português, além de trechos
selecionados de suas cartas e diários.
*
43
III Análise Comparativa de Três Traduções de Bliss
Neste capítulo, serão cotejadas três traduções para o português brasileiro do
conto Bliss, de Katherine Mansfield. As traduções selecionadas foram Felicidade,
feita por Érico Veríssimo, e publicada pela primeira vez em 1940; Êxtase, realizada
por Ana Cristina César, em 1981; e Felicidade, tradução de Julieta Cupertino, feita
em 1992.
O objetivo deste estudo é comparar as três traduções, analisando suas
diferenças ideológicas, a fim de saber se há escolhas tradutórias que remetem ou a
uma preocupação com a questão de gênero e feminismo, ou a um conservadorismo
em relação à mulher.
Pretende-se, principalmente, investigar se na reescrita de Ana Cristina César
há elementos que aludem à tradução feminista, como descritos por Godard (1990),
von Flotow (1991; 1997) e Simon (1996), uma vez que César, além de ter vivido
durante o período de efervescência dessas discussões, é lida como autora feminista
pela crítica.
Da mesma forma, o texto traduzido por Veríssimo será analisado a fim de
entender como sua tradução se situa nessa questão, já que, durante a época em que
traduzia Mansfield, o pensamento e a tradução feministas ainda não tinham sido
teorizados. Embora pouco se saiba sobre a vida e o posicionamento político de
Julieta Cupertino, sabe-se que sua tradução do conto de Mansfield foi publicada
quando a tradutora já estava na casa dos 80 anos, depois de ter passado boa parte
de sua vida como dona de casa. Tendo isso em vista, as considerações sobre
44
ANÁLISE COMPARATIVA DE TRÊS TRADUÇÕES DE BLISS
Cupertino irão partir da hipótese de que ela tenha feito decisões de tradução mais
conservadoras do que as de Ana Cristina César.
Cabe ressaltar que não é propósito deste texto analisar formal e
estilisticamente essas traduções, a fim de comentar erros ou inadequações, versões
melhores ou piores, pois trabalho semelhante já foi feito por outros autores, os
quais foram citados na Introdução.
Traduzir o conto Bliss, de Katherine Mansfield, mostra-se uma tarefa
desafiadora desde o seu título, pois não há uma palavra em português que englobe
todos os sentidos que a palavra bliss incorpora em inglês. De acordo com os
dicionários de língua inglesa, o vocábulo que nomeia o conto de Mansfield
significa:
Bliss - noun. 1. Perfect happiness; great joy. 2. A state of spiritual blessedness, typically that reached after death. 73
Bliss - noun. 1. Perfect happiness. 2. In American English: complete happiness”. 74
Entre as três traduções elegidas, temos duas escolhas diferentes para o título
do conto de Mansfield: felicidade e êxtase. Segundo o Dicionário Caldas Aulete, essas
palavras têm como significado:
Felicidade – substantivo feminino. 1. Qualidade, condição ou estado de feliz; grande satisfação ou contentamento. 2. Boa sorte. 3. Bom êxito em algo que se fez; sucesso. 75
Êxtase – substantivo masculino. 1. Estado de arrebatamento causado por um prazer muito forte ou por uma grande admiração; arroubo;
73 Oxford Living Dictionaries, 2018. 74 Cambridge Dictionary, 2018. 75 Dicionário Caldas Aulete, 2018.
45
O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
encantamento. 2. Estado espiritual de profundo enlevo, esp. na experiência religiosa da contemplação de Deus ou de entidade santa. 76
Ainda que felicidade tenha sido escolhida pela maior parte dos tradutores, essa
palavra parece estar aquém da sensação que Bertha, a protagonista de Bliss, sente
no decorrer do conto de Mansfield. Êxtase também traz outros sentidos que não
são aparentes em bliss: o vocábulo adotado por César para intitular sua tradução
ousa ao intensificar o sentimento vivido por Bertha. Como explica Alan (2011), a
tradução de Ana Cristina César “não vai falar de plena satisfação, mas de
sentimentos intensos que flertam com a força da entrega ao desconhecido” – o 77
que não é visto nas traduções que optaram pelo título Felicidade. Ana Cristina César
sabia a dificuldade de traduzir esse título, e, na primeira nota a sua tradução, explica
o porquê:
Decidi usar “êxtase”, porque exprime uma emoção que, ou ultrapassa a palavra “felicidade”, ou é mais forte do que ela. Creio que é importante estabelecer a diferença entre os dois termos. Êxtase sugere a sensação de uma espécie de suprema alegria paradisíaca, que só pode ser sentida em ocasiões muito especiais: em momentos de satisfação na relação bebê/mãe, em outras relações apaixonadas “primitivas”, em fantasias homossexuais, no êxtase religioso e, muito raramente, na “vida real”, nos relacionamentos entre adultos. Poder-se-ia dizer que o êxtase é, basicamente, uma emoção imaginária cheia de força e do poder próprios do imaginário. [...] “Êxtase” foi a palavra que escolhi para traduzir bliss. É uma palavra forte, proparoxítona de boa cepa, tem uma aguçada tonalidade religiosa e não pode ser confundida com just plain happiness (felicidade). 78
Ao afirmar que as palavras “bliss” e “êxtase” estão associadas à felicidade que
existe nas relações homossexuais, enquanto “felicidade” remete ao amor
heterossexual, Ana Cristina César parece fazer referência à atração que a
protagonista Bertha sente por Miss Fulton, uma das convidadas para seu jantar.
76 Idem, 2018. 77 Alan, 2011, p. 97. 78 César, [1981] 2016, pp. 368-369.
46
ANÁLISE COMPARATIVA DE TRÊS TRADUÇÕES DE BLISS
Dentre as oitenta notas de sua tradução, César achava que apenas essa primeira
deveria ser mantida em uma edição para o público brasileiro. Também é importante
destacar que, embora tenha traduzido bliss por “êxtase”, Ana Cristina César
manteve no título, entre parênteses, o termo em inglês.
Julieta Cupertino, em nota de rodapé, também justifica a escolha para o
título de sua tradução; reconhecendo a impossibilidade de correspondente exato em
português para bliss, a tradutora afirma que preferiu “felicidade, simplesmente, por
ser a opção mais simples, não excessiva, embora fique faltando alguma coisa”. 79
Como é possível ver na leitura das duas notas, ambas as tradutoras tinham
consciência de que suas escolhas ou eram insuficientes, ou iam além do sentimento
experimentado por Bertha. No entanto, apenas César parece entender que, por
assim escolher, outras leituras seriam possíveis para o conto de Mansfield conforme
sua tradução. Felicidade, como disse Cupertino, é uma “opção mais simples”, mas
também é a opção mais tradicional, mais conservadora, enquanto Êxtase é mais
ousada. Já a partir do título pode-se inferir o tom que cada tradução terá.
Antes de iniciar a análise dos trechos selecionados, é importante ressaltar
que, embora narrado em terceira pessoa, o ponto de vista sobre os acontecimentos
em Bliss é quase sempre o de Bertha; o leitor vê a ação filtrada pela mente da
protagonista, como explica Ana Cristina César ([1981] 2016). Dito isso, olhemos 80
uma parte do segundo parágrafo do conto:
79 Mansfield, 1992, p. 11 80 Optamos por referenciar as duas datas (a da publicação original e a da edição usada no cotejo) para explicitação cronológica.
47
O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
Texto-fonte Trad. de Veríssimo Trad. de César Trad. de Cupertino What can you do if you are thirty and, turning the corner of your own street, you are overcome, suddenly by a feeling of bliss [...]. ( p. 69)
Que é que podemos fazer se temos trinta anos e, ao dobrar a esquina de nossa própria rua, somos invadidos subitamente por uma sensação de felicidade [...]. (p. 1)
O que fazer se aos trinta anos, de repente, ao dobrar uma esquina, você é invadida por uma sensação de êxtase [...]. (p. 353)
O que pode alguém fazer quando tem trinta anos e, virando a esquina de repente, é tomado por um sentimento de absoluta felicidade [...]. (p. 11).
No original, o uso do pronome “you” aproxima o leitor à situação narrada,
provocando uma identificação daquele que lê com Bertha. Cupertino, porém, ao
utilizar “alguém” como o sujeito da oração, distancia o leitor do
narrador/personagem. Por outro lado, Érico Veríssimo e Ana Cristina César
mantêm, em suas traduções, a proposta do texto-fonte: enquanto, no recorte acima,
o autor gaúcho usa a primeira pessoa do plural, César opta por traduzir o pronome
literalmente. Ambas as opções dão o mesmo efeito de proximidade, como se o
leitor fizesse parte da história.
No entanto, a tradução de César revela algo interessante: ao traduzir
literalmente “you” para o português, a tradutora precisa definir o gênero gramatical
do verbo posposto ao pronome sujeito, o que não acontece no trecho em inglês.
Na língua inglesa, “you”, independentemente da conjugação do verbo, pode ser
tanto masculino quanto feminino – e plural também –, mas, em sua tradução, Ana
Cristina César emprega o verbo no singular feminino, definindo o “você” – a
leitora – como mulher, o que nunca esteve explícito no texto original de Mansfield.
Ao assim escolher, César evidencia a mulher na linguagem, tal como fazem as
tradutoras feministas do Quebec apresentadas por Simon (1996) e von Flotow
(1997) – aqui discutidas previamente –, que, em seus trabalhos, destacam
constantemente o feminino.
48
ANÁLISE COMPARATIVA DE TRÊS TRADUÇÕES DE BLISS
Mais adiante no conto, Bertha dialoga com Mary, a empregada doméstica de
sua casa, e pede para que ela traga as frutas para a sala de jantar:
Texto-fonte Trad. de Veríssimo Trad. de César Trad. de Cupertino
“Bring the fruit up to the dining-room, will you?”. (p. 9).
“Traze as frutas para cá, sim?”. (p. 2).
“Traga as frutas para a sala de jantar, por favor [...]”. ( p. 353).
“Traga as frutas para a sala de jantar”. (p. 12).
O uso de “will you” ao final da frase dá um tom gentil ao pedido, e Veríssimo
e César reproduziram isso em suas traduções – o primeiro utilizou um “sim?” em
sua frase; a segunda optou por substituí-lo por “por favor”, que, inclusive, é mais
marcadamente educado do que a opção de Veríssimo. Cupertino, por sua vez,
apenas omitiu esse fragmento em seu trabalho, produzindo mais uma ordem do
que um pedido cortês, o que acaba por reforçar a relação desigual e autoritária entre
empregada e patroa, o que, se visto pela perspectiva feminista, não é adequado, pois
evidencia a opressão de uma mulher sobre outra.
No texto de Mansfield, quando vai se referir à babá de sua filha, a
protagonista alterna entre dois nomes: “nurse” e “Nanny”, ambos remetendo à
própria profissão da personagem, como se vê no seguinte recorte:
Texto-fonte Trad. de Veríssimo Trad. de César Trad. de Cupertino
“Is nurse back?”. (p. 69).
“Has she been good, nanny?”.
(p. 70).
“A nurse voltou?”. (p. 2).
“Ela se comportou direitinho, Nanny?”.
(p. 3).
“A babá já voltou?”. (p. 353).
“Ela ficou boazinha, babá?”.
(p. 355).
“A babá voltou?”. (p. 12).
“Ela tem estado bem, Nanny?”.
(p. 13).
49
O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
Veríssimo não traduz nenhum dos termos referentes à mulher que cuida do
bebê de Bertha: quanto a “nurse”, Alan (2011) declara que possivelmente essa
palavra era usada “no Brasil quando da tradução, ao ponto de seu texto não causar
estranhamento aos leitores da época”; porém, o leitor de hoje que não tem 81
conhecimento da língua inglesa, só entenderia seu significado mais adiante no
conto, pelo contexto. Julieta Cupertino optou por traduzir “nurse” por “babá”, mas
também manteve “Nanny” em sua tradução, levando o leitor a crer – assim como
Veríssimo – que esse é o nome da personagem, quando, na verdade, é apenas outro
termo para aludir a sua profissão. Ana Cristina César traduz ambos os termos para
“babá” e, dessa forma, não deixa margem para a interpretação de que Bertha, ao
chamar a mulher que cuida de sua filha pelo seu suposto primeiro nome, tem com
ela uma relação amigável para além da profissional – e, por isso, infere-se uma
relação tensa –, como se vê mais adiante no texto.
Embora seja uma relação patroa-empregada, no texto de Mansfield, a babá
alterna, em diversos momentos, os pronomes para tratar de Bertha: ora refere-se à
patroa como “m’m”, ora apenas como “you”. Os dois casos podem ser vistos nas
falas da babá selecionadas a seguir:
Texto-fonte Trad. de Veríssimo Trad. de César Trad. de Cupertino
“Oh, you should have seen her”.
“Well, M'm, she oughtn't to be changed hands while she's eating”. (p. 71).
“Ah! Eu queria que a senhora visse...”.
“Ora, Madame, não se deve trocar a mão que está dando a comida do nenê”. (p.3).
“[...] só vendo”.
“Não é bom para ela mudar de mãos durante a refeição”. (p. 355).
“Ah! a senhora devia ter visto.”.
“Bem, madame. Ela não devia mudar de mãos enquanto come”. (p. 13).
81 Alan, 2011, p. 105.
50
ANÁLISE COMPARATIVA DE TRÊS TRADUÇÕES DE BLISS
Nos trechos supracitados, pode-se ver que as traduções de Veríssimo e
Cupertino, quanto aos pronomes referentes à Bertha, são as mesmas; ambos usam
“senhora” e “madame” como equivalente a “you” e “M’m”, respectivamente. O
curioso é que César omite, nas duas ocorrências, os pronomes. Enquanto Érico
Veríssimo e Julieta Cupertino reforçam, como visto acima, a relação desigual entre
patroa e empregada, Ana Cristina César simplesmente suprime os pronomes de
tratamento, deixando o tom da babá mais informal, e apagando, de certa forma, a
tensão existente entre as duas.
Outro trecho que ilustra essa tensão entre patroa e empregada é a fala de
Bertha que antecede a segunda frase do quadro acima. Para que a situação possa ser
melhor visualizada, o diálogo entre Bertha e a babá será transcrito a seguir:
Texto-fonte Trad. de Veríssimo Trad. de César Trad. de Cupertino
“Oh, nanny, do let me finish giving her her supper while you put the bath things away”. “Well, M'm, she oughtn't to be changed hands while she's eating”. (p. 71).
“Oh, Nanny, deixa que eu acabe de dar a comidinha dela, enquanto tu arrumas as coisas do banho!”. “Ora, Madame, não se deve trocar a mão que está dando a comida do nenê”. (p. 3).
“Babá, deixa que eu termino de dar a comida dela enquanto você arruma as coisas do banho”. “Não é bom para ela mudar de mãos durante a refeição”. (p. 355)
“Ah! Nanny, deixe que eu termine de dar o jantar dela, enquanto você arruma o banheiro”. “Bem, madame. Ela não devia mudar de mãos enquanto come”. (p. 14).
No paralelismo criado por Mansfield com “Oh, nanny” e “Well, M’m”, há uma
sutil batalha entre Bertha e a babá. Érico Veríssimo e Julieta Cupertino mantiveram
esse recurso em suas traduções: “Oh, Nanny” e “Ora, Madame”, e “Ah, Nanny!” e
“Bem, madame”, respectivamente. Na reescrita de Ana Cristina César, porém, a
tensão foi mais uma vez suprimida.
51
O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
Durante a leitura atenciosa da tradução de Veríssimo, foi possível perceber
que o tradutor, em diversos momentos, cortou trechos presentes no texto-fonte. O
momento em que isso acontece pela primeira vez se dá quando Bertha está rindo,
em estado de completa felicidade:
Texto-fonte Trad. de Veríssimo Trad. de César Trad. de Cupertino
“‘No, no. I’m getting hysterical”. And she seized her bag and coat and ran upstairs to the nursery. (p. 70).
Apanhou a bolsa e o casaco e subiu correndo para o quarto da filha. (p. 2).
“Não, não. Estou ficando histérica”. E ela agarrou a bolsa e o casaco e correu escada acima para o quarto do bebê. (p. 354).
“Não, não. Estou ficando histérica”. Pegou sua bolsa e seu casaco e subiu correndo para o quarto da filha. (p. 13).
Para conjecturar o porquê de Veríssimo ter eliminado a frase inicial do
parágrafo acima, vejamos o significado dos termos hysterical, em inglês, histérica, em
português, opção usada nas traduções de César e Cupertino, e histeria, também em
português:
Hysterical – ADJECTIVE. 1. Affected by or deriving from wildly uncontrolled emotion. 1.1 informal Extremely funny. 2. Relating to or suffering from hysteria. 82
Histérica – substantivo feminino. 1. mulher que padece histeria. 2. (Fig.) Mulher desequilibrada, mulher de caprichos insensatos. 3. (Pop.) Ninfomaníaca. F. fem. de Histérico. 83
Histeria – substantivo feminino. 1. Psiq. Neurose cujos sintomas se manifestam por meio de distúrbios corporais, sem que existam problemas orgânicos. 2. Reação emocional exagerada em face de estímulos sociais ou sentimentais. 84
82 Oxford Living Dictionaries, 2018. 83 Dicionário Caldas Aulete, 2018. 84 Idem, 2018.
52
ANÁLISE COMPARATIVA DE TRÊS TRADUÇÕES DE BLISS
Definir uma mulher como “histérica”, em português ou em inglês, tem uma
conotação altamente negativa - nos verbetes supracitados, pode-se ver que em
português ainda mais do que em inglês. Mesmo assim, as duas tradutoras decidiram
manter em seus textos tal adjetivo, porque Mansfield, ao assim retratar Bertha,
expõe sua crítica à representação da mulher na sociedade pós-vitoriana. Dessa
forma, conservar o trecho em que esse adjetivo aparece não é apenas respeitar o
texto-fonte, mas também fazer uma escolha ideológica, feminista de fato, e está de
acordo com os pressupostos das tradutoras feministas, que expõem e explicitam em
suas traduções as visões negativas do homem sobre a mulher, mesmo quando não
presentes no original. Veríssimo, ao suprimir deliberadamente a frase e, por
conseguinte, o adjetivo, não só omite esse olhar do homem da época de Mansfield
sobre a mulher, mas também nega à Bertha o direito de viver “uma emoção
descontrolada”.
Veríssimo, assim como Cupertino, fez também uma escolha que estaria de
acordo com a tradução feminista nesse mesmo trecho, quando traduz “nursery” por
“o quarto da filha”, embora a ideia do termo em inglês, nessa tradução, seja deixada
de lado – o que não vemos na tradução de Ana Cristina César, que optou por
traduzir “nursery” como “quarto do bebê” ; em diversos momentos, a criança de
Bertha é referenciada apenas como “the baby” ou “Little B.”. No entanto, sabe-se
que, devido aos pronomes usados, a criança de Bertha é uma menina e, por um
olhar feminista, evidenciar o gênero da filha, sempre que possível, seria o mais
apropriado.
Assim sendo, a tradução de César apaga o feminino nesse contexto, visto
que a tradutora poderia ter utilizado “quarto da bebê”, sem nenhuma perda em seu
texto. Em outros momentos do conto, Little B. é mencionada, seja como “the baby”
53
O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
– substantivo sem gênero –, ou por meio de pronomes femininos que a retomam.
Nos textos em português brasileiro, os tradutores variaram no uso de substantivos
masculinos e femininos, como se pode observar nos seguintes exemplos:
Texto-fonte Trad. de Veríssimo Trad. de César Trad. de Cupertino
[…] We went to the park and I sat down on a chair and took her out of the pram and a big dog came along and put its head on my knee and she clutched its ear, tugged it.
Bertha wanted to ask if it wasn't rather dangerous to let her clutch at a strange dog's ear. (p. 70).
[...] Fomos ao parque, eu me sentei num banco, tirei o nenê do carrinho, um cachorro grande chegou, botou a cabeça no meu joelho e ela agarrou as orelhas do cachorro e puxou.
Berta quis perguntar se não era um pouco perigoso deixar a menina pegar as orelhas de cachorros desconhecidos.(p. 3).
[...] A gente foi ao parque e eu sentei e tirei ela do carrinho e apareceu um cachorro enorme e ele deitou a cabeça no meu colo e ela agarrou a orelha dele e deu um puxão. Bertha queria perguntar se não era perigoso deixar um bebê agarrar a orelha de um cachorro estranho. (p. 355).
[...] Fomos ao parque; eu me sentei em uma cadeira e tirei-a do carrinho. Um cachorro enorme veio até nós, e pôs a cabeça sobre meus joelhos. Ela agarrou a orelha dele, e puxou. Bertha teve vontade de perguntar se não seria perigoso deixar que a criança puxasse a orelha de um cão desconhecido. (pp. 13-14).
No trecho em inglês acima, sempre que há referência à Little B., são usados
os pronomes pessoais femininos “her” e “she”, que funcionam, respectivamente,
como objeto e sujeito nas frases. Em português, há apenas um pronome pessoal
para as duas funções: “ela”. Ana Cristina César, em duas ocasiões, usou esse
mesmo pronome para traduzir “her” e “she”, porém, em um terceiro caso, para
evitar ambiguidade, ela optou por, no lugar de “her”, escrever “um bebê”. O
narrador, ao dizer “to let her clutch”, está se referindo à Little B., filha de Bertha, não
a qualquer bebê, como a tradução de César faz parecer – essa escolha mostra frieza
e distanciamento em relação à criança. Além disso, utilizar “bebê”, um substantivo
masculino, para falar de Little B. não evidencia o feminino na linguagem, como “a
menina”, opção que Veríssimo faz.
54
ANÁLISE COMPARATIVA DE TRÊS TRADUÇÕES DE BLISS
A reescrita desse trecho em português por Veríssimo, no entanto, não está
inteiramente de acordo com a tradução feminista, pois o primeiro “her” no
texto-fonte é traduzido por Veríssimo como “o nenê”, outro substantivo
masculino. Somente Cupertino usou, em todos os casos, substantivos e pronomes
femininos; sua última solução, porém, também não está em total consonância com
a visão feminista de tradução, principalmente aquela mais radical, defendida por
von Flotow (1997), já que o emprego de “a criança” não explicita o gênero.
No parágrafo de introdução dos convidados para o jantar de Bertha, o
narrador apresenta o casal Knight pela primeira vez, descrevendo-os da seguinte
maneira:
Texto-fonte Trad. de Veríssimo Trad. de César Trad. de Cupertino
The Norman Knights – a very sound couple – he was about to start a theatre, and she was awfully keen on interior decoration. (p. 72).
Os Norman Knights – casal muito correto; ele estava para abrir um teatro e ela se entregava apaixonadamente à decoração de interiores. (p. 4).
Os Norman Knight – um casal sólido –, ele ia abrir um teatro, ela era entusiasmada por decoração de interiores. (p. 356).
Os Norman Knights, um casal muito distinto – ele estava abrindo um teatro e ela tinha muito entusiasmo por decoração de interiores. (p. 15).
Ao traduzir a expressão “awfully keen” por “se entregava apaixonadamente”,
Veríssimo exagera o interesse de Mrs. Knight por decoração de interiores – não é
exatamente paixão que ela sente, mas um grandíssimo entusiasmo. Sua opção
tradutória reforça a ideia de que mulheres são sempre mais sentimentais e
passionais do que homens, mesmo em suas profissões ou hobbies, ao contrário dos
homens, seres mais “racionais”. No trecho seguinte, observa-se a relação entre
homem e mulher no casal Knight:
55
O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
Texto-fonte Trad. de Veríssimo Trad. de César Trad. de Cupertino
And Mrs. Norman Knight: “Oh, Mr. Warren, what happy socks?”. “I am so glad you like them,” said he. (p. 74).
A Sra Norman Knight: “Oh, Mr. Warren, que carpins de bom gosto!” “Folgo em saber que os aprecia” – respondeu Warren. (p. 8).
E a sra. Norman Knight: “Ah, mas que escolha tão feliz de meias, sr. Warren!”. “Fico tão contente que a senhora tenha gostado”, disse Eddie. (p. 360).
A Sra. Knigth (sic) interveio: “Mas que meias lindas, Sr. Warren!” “Que bom que a senhora tenha gostado delas”, disse ele. (p. 19).
Conforme o quadro acima, o casal Knight é apresentado ao leitor a partir do
nome e sobrenome do marido. No trecho selecionado, a esposa é referida, mais
uma vez, com o nome de seu cônjuge. Veríssimo e César mantêm, em suas
traduções, a escolha de Mansfield, mas Cupertino suprime o primeiro nome,
referindo-se à esposa apenas como “Sra. Knight”. Ainda atualmente, a mulher pode
ser reconhecida pelo sobrenome do marido, mas dificilmente se usa o primeiro
nome do cônjuge para denominá-la. Assim, ela não só perde o sobrenome como
também o próprio nome – e sua identidade –, já que passa a ser exclusivamente a
esposa de alguém. Nesse caso, então, a escolha de Cupertino deixa mais sutil essa
relação de perda do nome próprio.
Na resposta de Eddie Warren ao comentário recebido, o personagem, no
texto em inglês, trata a Sra. Knight pelo pronome “you”; César e Cupertino, porém,
substituem-no por “senhora”, atribuindo ao diálogo uma seriedade e formalidade
não presente no original. Para evitar esse problema, Veríssimo simplesmente traduz
“you” pelo pronome oblíquo “os”. No entanto, ainda que imprima mais respeito do
que o texto-fonte, o uso de “senhora” marca que Warren está falando com uma
mulher; mesmo que já esteja claro pelo contexto, as escolhas das tradutoras
brasileiras evidenciam, mais uma vez, a mulher na linguagem.
56
ANÁLISE COMPARATIVA DE TRÊS TRADUÇÕES DE BLISS
Vejamos agora um trecho em que o narrador, a partir do ponto de vista de
Bertha, expressa um pensamento da protagonista em relação a seu marido:
Texto-fonte Trad. de Veríssimo Trad. de César Trad. de Cupertino
He made a point of catching Bertha's heels with replies of that kind... "liver frozen, my dear girl," or "pure flatulence," or "kidney disease," ... and so on. For some strange reason Bertha liked this, and almost admired it in him very much. (p. 72).
Fazia questão de lançar água fria nos entusiasmos de Berta com respostas como essas: ... “fígado gelado, minha pequena” ou “pura flatulência”, ou “doença dos rins” ... e assim por diante. Por alguma estranha razão, Berta gostava disso, era um traço que admirava muito no marido. (p. 5).
Ele fazia questão de provocá-la com respostas no gênero... “fígado congelado, menina”, ou “pura flatulência”, ou “mal dos rins” ... e assim por diante. Por alguma estranha razão Bertha gostava disso e quase que o admirava por falar assim. ( p. 357).
Ele se empenhava em pegar Bertha pelo pé com respostas daquele teor... “fígado gelado, minha querida”, ou “pura flatulência”, ou “doença dos rins” ... e assim por diante. Por alguma estranha razão, Bertha gostava disso e quase o admirava por falar desse modo. (p. 16).
Enquanto as duas tradutoras empregaram o “quase” como correspondente
de “almost”, Veríssimo traduziu o advérbio em inglês como “muito”, assim
transformando a “quase admiração” de Bertha em uma “admiração total” por seu
cônjuge, o que corrobora com uma ideia tradicional da relação conjugal, pela
suposta grande admiração que a mulher deve ter pelo marido.
No próximo quadro, a pereira presente no jardim da protagonista é descrita.
Essa é uma passagem fundamental do conto, pois a árvore “sugere a Bertha uma
imagem de sua própria vida [...]. Insinua uma metáfora da sexualidade dessa
personagem, que desabrocha nesse dia. Metaforicamente, é possível sugerir que ela
é a própria árvore”. 85
85 Gomes & Oliveira, 2009, p. 47.
57
O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
Texto-fonte Trad. de Veríssimo Trad. de César Trad. de Cupertino
The windows of the dawing-room opened on to a balcony overlooking the garden. At the far end, against the wall, there was a tall, slender pear tree in fullest, richest bloom, it stood perfect, as though becalmed against the jade-green sky. (p. 72).
As janelas da sala se abriram para um balcão que dava para o jardim. No fundo, contra o muro, erguia-se uma pereira alta e esguia na sua mais rica floração; estava ali perfeita, serena contra o céu verde-jade. (p. 5).
As janelas da sala se abriam para uma varanda que dava para o jardim. No extremo oposto, contra o muro, havia uma árvore alta e esguia, em flor, luxuriantemente em flor, perfeita, como se apaziguada contra o céu de jade. (p. 357).
As janelas da sala abriam-se para um balcão, e davam para um jardim. No fundo, perto do muro, havia uma esguia pereira, toda florida, esplêndida, que permanecia imóvel contra o céu verde-jade. (p. 16).
“Pereira”, ainda que no Brasil seja comumente lembrado como um
sobrenome, é a árvore que dá peras. Sua caracterização exuberante, cheia de
detalhes, é de grande importância, pois ela simboliza a vida de Bertha. Dessa forma,
traduzir “pear tree” como “pereira” é essencial. Foi o que fizeram Cupertino e
Veríssimo. César, porém, optou por generalizar, traduzindo “pear tree” simplesmente
como “árvore”. A tradutora explica o porquê na nota 29 de sua dissertação:
Esta frase constituiu um problema muito sério na tradução de “Bliss”. O símbolo central da história se concentra na pereira florescente do jardim. [...] O nome dessa árvore corresponde, em português, ao termo “pereira”, uma palavra desarmoniosa e inexpressiva (em termos de experiência). Na expressão “pear tree” existe uma suave conotação familiar, que não existe na palavra “pereira”, usada frequentemente como nome próprio, tal qual Smith ou Brown. Em inglês, a palavra “pereira” sugere uma imagem que não tem correspondência na experiência de um leitor de língua portuguesa. [...] A palavra “pereira” não servia; era um sério obstáculo, uma palavra maciça demais, que levava a associações incorretas e transmitia um som desagradável. Por fim, novamente decidi optar pela generalização e usei a palavra “árvore” (uma palavra proparoxítona, forte e bonita por natureza). Examinei o conto cuidadosamente e concluí que essa palavra não prejudicaria a intenção da autora. 86
86 César, [1981] 2016, pp. 384-386.
58
ANÁLISE COMPARATIVA DE TRÊS TRADUÇÕES DE BLISS
Muitos dos que analisaram Êxtase discordam da última afirmação de Ana
Cristina César; para Alan (2011), Ocorre um empobrecimento do conto em significado, dado que pereira constrói uma porção de possibilidades interpretativas no contexto (o fato de gerar um fruto macio, doce e suave, cujo formato pode ser associado à figura feminina). A árvore pereira, embora não nos seja tão próxima quanto aos ingleses, tem um importante papel na composição do conto e, na tradução de Ana C, esse significado se perde. 87
Em outro momento do conto, quando começa a racionalizar sobre as causas
de sua felicidade, Bertha alterna entre coisas que ela tem e coisas que ela e seu
marido, eles, têm:
Texto-fonte Trad. de Veríssimo Trad. de César Trad. de Cupertino
“And friends—modern, thrilling friends, writers and painters and poets or people keen on social questions—just the kind of friends they wanted”. (p. 73).
“Além disso, tinham boas relações – amigos modernos, vibrantes, escritores e pintores e poetas ou gente interessada em questões sociais – exatamente a espécie de amigos que ela desejava”. ( p. 6).
“E os amigos – amigos modernos, envolventes, escritores e pintores e poetas ou pessoas interessadas em questões sociais –, exatamente os amigos que eles desejavam” (p. 358).
“E amigos modernos, interessantes; amigos escritores, pintores e poetas ou pessoas voltadas para as questões sociais, justo a espécie de amigos que eles queriam” ( p. 17).
Ana Cristina César e Julieta Cupertino traduzem, cada uma de sua forma,
“they wanted” mantendo pronome e verbo conjugados na terceira pessoa do plural.
Veríssimo, no entanto, decide individualizar o “desejo” que, no texto-fonte, é do
casal, transformando-o em algo apenas de Bertha. Essa ocorrência é um caso
singular na reescrita de Veríssimo: a individualização de um querer originalmente
coletivo não ocorre em outros trechos de sua tradução.
87 Alan, 2011, p. 117.
59
O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
Texto-fonte Trad. de Veríssimo Trad. de César Trad. de Cupertino
For my darling monkeys so upset the train that it rose to a man and simply ate me with its eyes. Didn’t laugh - wasn’t amused - that I should have loved. No, just stared - and bored me through and through. ( p. 73).
Porque os meus queridos macacos causaram um tal alvoroço no trem, que todos os passageiros se levantaram como um só homem e simplesmente me comeram com os olhos. Não riram… não acharam divertido… coisa que me teria agradado.. Não. Ficaram apenas me contemplando de olhos parados… e isso foi me deixando cada vez mais danada… ( p. 6).
Os meus macacos queridos causaram um verdadeiro escândalo no trem – chegou ao ponto do trem inteiro simplesmente me devorar com os olhos. Ninguém riu, ninguém achou graça, nada disso que eu teria adorado. Simplesmente me devoravam com os olhos - e eu me entediei como o diabo. (p. 358).
Meus queridos macacos chocaram tanto as pessoas do trem que elas simplesmente se puseram a me devorar com os olhos. Não riram, não estavam achando graça, o que eu teria gostado. Apenas olharam-me fixamente e me fuzilaram com os olhos. (p. 17).
Acima, a Sra. Knight conta sua experiência em um trem, no qual estava
vestida com um “casaco laranja dos mais divertidos, com uma fileira de macacos
pretos” ([1981] 2016) – o mesmo casaco que vestiu para ir à casa de Bertha. Para
descrever a tremenda atenção que recebeu pela sua roupa, a Sra. Knight diz que foi
“devorada pelos olhos” de todos no trem. No texto em inglês, a personagem diz
que sentiu como se todos os passageiros fossem um só homem a encarando.
Veríssimo mantém a comparação em sua tradução, mas César e Cupertino
fazem adaptações: a primeira diz que “o trem inteiro” a devorou com os olhos; a
segunda afirma que “as pessoas do trem” assim o fizeram. No entanto, quando a
Sra. Knight retoma a situação nessa mesma fala, ela afirma que eles “apenas
encararam” (“just stared”). Enquanto Érico Veríssimo traduz “stared” como
“contemplaram”, as outras duas tradutoras escolheram vocábulos mais fortes: Ana
Cristina César repetiu o verbo “devorar” e Julieta Cupertino optou por usar
“fuzilaram com os olhos”.
60
ANÁLISE COMPARATIVA DE TRÊS TRADUÇÕES DE BLISS
Essa intensificação do ocorrido teria um efeito ainda mais forte se César e
Cupertino, assim como Veríssimo, mantivessem a comparação do trem inteiro com
um homem, evidenciando as maneiras nada sutis que os homens tendem a encarar
as figuras femininas – e o quão desagradável isso é para a mulher, como a Sra.
Knight enuncia no fim de sua fala: “and bored me through and through” – trecho
suprimido na tradução de Cupertino, e traduzido de forma diferente por César, que
escolheu o verbo “entediar” como tradução de “bore".
Nas seleções a seguir, temos novamente o narrador mostrando o ponto de
vista de Bertha:
Texto-fonte Trad. de Veríssimo Trad. de César Trad. de Cupertino
Miss Fulton did not look at her; but then she seldom did look at people directly. ( p. 75).
Miss Fulton não olhou para a amiga; mas ela raramente olhava as pessoas de frente. (p. 19).
Miss Fulton não olhou para ela; mas Miss Fulton raramente olhava diretamente para as pessoas. (p. 361).
Pearl Fulton não olhava para ela; quase nunca olhava as pessoas diretamente. (p. 20).
No trecho, Bertha menciona uma de suas convidadas, no texto-fonte, como
“Miss Fulton”, e Veríssimo e César mantêm o pronome em suas traduções;
Cupertino, no entanto, opta por se referir à personagem pelo seu nome próprio,
“Pearl Fulton”, deixando de lado o “Miss”.
Destaca-se, mais uma vez, a tradução dos pronomes “she” e “her”. Para que
não houvesse repetição na pequena frase, Veríssimo traduziu o pronome objeto
“her” por “a amiga”, assim podendo transpor para o português o pronome sujeito
“she” como “ela” e evitando a repetição de seu nome, como acontece na tradução
de César. No entanto, em nenhum momento do conto, Pearl Fulton é
explicitamente descrita como “amiga” de Bertha Young, apesar de, nesse mesmo
parágrafo, a protagonista perceber que ela e Miss Fulton compartilhavam as
61
O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
mesmas sensações. O sentimento de Bertha por Pearl, pelo menos inicialmente, ia
além da simples amizade.
O marido de Bertha, interrompendo esse momento de conexão entre Pearl
Fulton e sua esposa, exprime uma fala bastante curiosa:
Texto-fonte Trad. de Veríssimo Trad. de César Trad. de Cupertino
Harry said: “My dear Mrs. Knight, don't ask me about my baby. I never see her. I shan't feel the slightest interest in her until she has a lover”. ( p. 77).
Harry disse: “Minha prezada Sra. Knight, não me pergunte de minha filha. Nunca a vejo. Não sentirei por ela o mais leve interesse senão depois que ela tiver um noivo”. (p. 12).
Harry dizia: “Minha querida, não me pergunte nada sobre o bebê. Eu nunca vejo a minha filha. E não vou me interessar o mínimo até o dia em que ela arranjar um amante”. (p. 364).
Harry dizia: “Minha querida Senhora Norman Knigth, não me pergunte pela minha filha. Eu jamais a vejo. Não terei por ela o menor interesse até o dia em que tenha um amante”. (p. 23).
A falta de interesse de Harry por Little B. até que ela tenha um lover parece
não chocar seus ouvintes, mas certamente choca o leitor – não apenas o atual,
como se pode presumir a partir da escolha deveras conservadora de Veríssimo para
a tradução do vocábulo – o que revela “os padrões de aceitabilidade de conduta
social” – exclusivamente para as mulheres – de sua época. Suas colegas 88
tradutoras, porém, optaram pela palavra mais óbvia – e mais chocante: “amante”.
É pertinente analisar também as traduções das palavras referentes a Little B.,
principalmente no texto de César. Ao transpor “my baby” para “o bebê” – omitindo
o pronome pessoal –, a tradutora torna bastante impessoal a relação entre Harry e
sua filha. Porém, logo em seguida, César reescreve o pronome “her” como “minha
filha”, levando a uma leitura dúbia, porque usa o masculino – “o bebê” – e depois
passa para o feminino com possessivo – “minha filha” –, o que faz com que a
relação referencial fique prejudicada.
88 Alan, 2011, p. 136
62
ANÁLISE COMPARATIVA DE TRÊS TRADUÇÕES DE BLISS
Além disso, nesse trecho Cupertino acrescenta mais uma vez o primeiro
nome do marido quando a Sra. Knight é mencionada, enquanto César faz o
movimento contrário, e exclui o sobrenome da personagem – fato que reforça a
ideia e a menor formalidade do termo “minha querida”. Os adjetivos usados
também mudam de “prezada”, em Veríssimo, para “querida” nas outras duas.
No excerto seguinte, o Sr. Knight falará, no texto original, sobre os “jovens
escritores homens” (“young writing men”). Ao utilizar o substantivo “men”, Mansfield
deixa claro que o personagem está falando dos escritores homens, não dos
escritores em geral, nos quais seriam incluídas as mulheres escritoras. No entanto,
as traduções para o português não deixam essa especificidade clara, como é possível
ver no quadro:
Texto-fonte Trad. de Veríssimo Trad. de César Trad. de Cupertino
What I want to do is to give the young men a show. […] The trouble with our young writing men is that they are still too romantic. (p. 78).
O que quero fazer é dar aos moços uma oportunidade. [...] A dificuldade com nossos escritores moços é que eles ainda são românticos demais. ( p. 12).
O que eu quero é abrir um espaço para os novos. [...] O problema com os nossos novos escritores é que eles ainda são românticos demais. (p. 364).
O que eu quero é dar lugar aos outros jovens. [...] A dificuldade com nossos autores jovens é que eles são ainda demasiadamente românticos. (p. 24).
A versão que mais se aproxima do original, nesse sentido, talvez seja a
tradução de Veríssimo, que utiliza a palavra “moço” como tradução de “young”. Na
tradução de César, apesar de o masculino ficar marcado por meio da concordância,
não fica claro que o personagem está se referindo a jovens. No quadro seguinte
temos Bertha racionalizando sua relação com Harry, seu marido:
63
O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
Texto-fonte Trad. de Veríssimo Trad. de César Trad. de Cupertino
Oh, she’d loved him -- she’d been in love with him, of course, in every other way, but just not in that way. And equally, of course, she’d understood that he was different. They’d discussed it so often. It had worried her dreadfully at first to find that she was so cold, but after a time it had not seemed to matter. They were so frank with each other -- such good pals. That was the best of being modern.(pp. 78-79).
Oh! ela o amava -- ela o amara, sempre, estava claro, de outra maneira, mas não exatamente daquela. E era do mesmo modo ardente que ela compreendia que Harry estava diferente. Tinham discutido isso tantas vezes! No princípio ela ficara terrivelmente atormentada. Eles eram tão francos um com o outro, tão bons camaradas. Era a melhor maneira que tinham de ser modernos. (p. 12).
Ela o tinha amado, claro, e tinha estado apaixonada por ele, mas nunca exatamente daquele jeito. E ela havia compreendido, é claro, que ele era diferente. Eles haviam discutido tantas vezes sobre isso. A princípio, ela se preocupara terrivelmente ao descobrir que era tão fria, mas depois de um tempo não parecia mais importar. Eles eram tão francos um com o outro – tão bons companheiros. Nisso residia o melhor de ser moderno. (p. 365).
Ah! Ela o amava! Ela o amara sempre, é claro, mas com outras formas de amor, não com o que sentia agora. E também, é claro, ela havia compreendido que ele era diferente. Haviam discutido isto inúmeras vezes. Ela havia se afligido horrivelmente, a princípio, ao descobrir sua própria frigidez, mas, com o passar do tempo, isso deixara de incomodá-la. Havia tanta franqueza entre os dois, eles eram tão bons companheiros! Nisso estava a vantagem de serem modernos . (p. 25).
Este fragmento trata da descoberta do desejo de Bertha por seu marido e da
relação sexual do casal, tudo de modo bastante sutil, mas que fica mais fácil de
inferir com base em sua descrição como “cold”, vocábulo que César traduz para o
português simplesmente como “fria”.
Desta vez é Julieta Cupertino quem ousa, pois ela explicita o implícito no
texto de Mansfield quando traduz esse mesmo adjetivo como a “própria frigidez”
de Bertha. Para Alan (2011), essa opção tradutória é incoerente com o original,
porque “ainda que o parágrafo trate da relação do casal e da descoberta do desejo
de Bertha, a palavra frígida parecer ser forte demais para o contexto”. No entanto, 89
para os propósitos desta análise, a escolha de Cupertino é extremamente
89 Alan, 2011, p. 139
64
ANÁLISE COMPARATIVA DE TRÊS TRADUÇÕES DE BLISS
interessante, pois, embora o uso de “frigidez” não condiga com a sutileza de
Mansfield no texto em inglês, a tradutora, ao explicitar o que está implícito no texto
original, deixa o tom mais forte e provocativo, assim como fazem as tradutoras
feministas.
A versão de Veríssimo, no entanto, suprime o trecho em que Bertha
expressa sua frigidez, dando mais ênfase ao amor e desejo que Bertha sente pelo
marido do que a sua “frieza” – o que pode ser explicado pelo público-leitor
brasileiro da década de 1940, época em que essa tradução foi publicada.
Para finalizar a análise comparativa, segue o excerto :
Texto-fonte Trad. de Veríssimo Trad. de César Trad. de Cupertino
“But now–ardently! ardently! The word ached in her ardent body! Was this what that feeling of bliss had been leading up to?” (p. 79).
“Mas agora, com que ardor, com que ardor! A palavra lhe doía no corpo ardente! Era a isso que aquele sentimento de felicidade a conduzia?” (p. 13).
“Mas agora – ardentemente! ardentemente! A palavra doía no seu corpo ardente! Era para aí que a levava toda aquela sensação de êxtase?” (p. 365).
“Mas agora – era com desejo! Com tesão! A palavra doía em seu corpo em brasa. Era a isto que o seu sentimento de felicidade tinha levado?” (p. 25).
Mais uma vez, Julieta Cupertino quebra a sutileza do texto de Mansfield em
sua tradução, evidenciando o implícito em Bliss. Neste trecho, isso acontece com o
advérbio “ardently” – usado duplamente –, que Cupertino transpõe em seu texto
como “(...) com desejo! Com tesão!”. As escolhas de seus colegas tradutores estão
mais de acordo com o estilo de Katherine Mansfield, como esclarece Alan (2011):
O trecho, ainda que trate do desejo intenso que Bertha descobriu sentir pelo marido, o faz de forma sutil. Essa sutileza se perde na tradução de Cupertino, em função do uso das expressões tesão e brasa, que, embora sejam possibilidades de interpretação do léxico em inglês, apresentam um problema de colocação com relação ao contexto. É interessante notar, porém, que esta é a tradução mais recente do texto, o que pode justificar
65
O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
a escolha do vocábulo, uma vez que a tradutora pode ter entendido que a palavra havia perdido sua vulgaridade. Assim, ainda que em nossa leitura a palavra esteja inadequada, é possível que a inadequação tenha ocorrido em função de uma tentativa de aproximação do texto ao público leitor. 90
“Tesão” é uma palavra de carga semântica demasiadamente forte, que pouco
se espera que saia da boca de uma mulher. Portanto, a escolha de Cupertino de
retratar assim as sensações de Bertha é extremamente significativa e bastante
provocativa e, por isso mesmo, essencialmente feminista.
*
90 Alan, 2011, p. 140.
66
Considerações Finais
Ao longo deste livro, procurou-se analisar três traduções para o português
brasileiro do conto Bliss, de Katherine Mansfield, a fim de investigar as diferenças
ideológicas no que concerne às representações femininas construídas por seus
tradutores. Em outras palavras, tencionou-se observar se havia elementos nas
escolhas tradutórias que remetem ou a uma preocupação com a questão de gênero
e feminismo, ou a um conservadorismo em relação à imagem da mulher. Isso
porque o conto de Mansfield é extremamente crítico acerca da situação feminina na
sociedade pós-vitoriana – período auge da primeira onda do feminismo –, e as suas
traduções para o português aqui selecionadas foram elaboradas em contextos
distintos, por pessoas de gêneros diferentes, com propostas diferentes: a primeira
delas foi feita em 1940 por Érico Veríssimo, escritor gaúcho de reconhecido
talento; a segunda em 1981 por Ana Cristina César, poetisa, acadêmica, tradutora e
feminista; e, por fim, a terceira tradução foi feita em 1992 por Julieta Cupertino,
dona de casa e tradutora que, à época, estava na casa dos 80 anos.
Ana Cristina César, em trabalhos anteriores, já havia mostrado ter interesse
pelas teorias tradutórias, e na introdução à sua própria reescrita do conto de
Mansfield, declarou o que entende por tradutora/tradutor: “alguém que procura
absorver e produzir em outra língua a presença literária de um autor”. Portanto, 91
ainda que não tenha entrado diretamente em contato com a tradução feminista
canadense, César, quando elaborou Êxtase, sua tradução acadêmica de Bliss, já
conhecia, ao menos, alguns autores que desenvolveram novas ideias após a virada
91 César, [1981] 2016, p. 328.
67
CONSIDERAÇÕES FINAIS
cultural dos estudos da tradução. Ao mesmo tempo, a poetisa defendia, em sua
obra, ideais feministas.
Em vista disso, este estudo partiu da hipótese de que a reescrita de César
estaria mais alinhada à tradução feminista ou teria, ao menos, uma preocupação
maior em relação às questões femininas. Sua reescrita de fato tem um tom muito
mais ousado que as de Veríssimo e Cupertino – desde o título, que intensifica o
sentimento vivido por Bertha Young – e, por vezes, reforça o feminino na
linguagem – como quando assume que o leitor de Bliss é uma mulher ou quando
utiliza o gênero gramatical feminino para traduzir palavras que em inglês são
neutras–; além disso, foi possível observar que César procurou minimizar a relação
de opressão entre duas mulheres, patroa e empregada, quando, por exemplo,
suprimiu em sua tradução os pronomes de tratamento utilizados pela babá para se
referir à Bertha. No entanto, a análise de Êxtase não revelou uma tradução
feminista aos moldes das tradutoras canadenses, visto que, em certos momentos do
conto, como quando a narradora vai se referir a sua filha, César diz “um bebê” ou
“quarto do bebê”, dessa forma não evidenciando o gênero feminino na linguagem,
o que seria possível nos dois contextos citados.
Cabe ressaltar também que a tradução de Ana Cristina César acompanha
oitenta notas que explicam suas escolhas tradutórias, uma vez que Êxtase compõe
parte de sua dissertação de mestrado. Essas notas se assemelham à estratégia de
prefacing e footnoting, usada pelas tradutoras feministas e apresentada por von Flotow
(1991), pois, ao compor sua tradução junto de oitenta notas, César salienta sua
presença ativa no texto, ainda que não defendendo – explicitamente – um ponto de
vista feminista. Êxtase, contudo, não foi pensada como uma tradução a ser
publicada, mas como um trabalho acadêmico; César, inclusive, afirmou que, se
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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
lançada para o leitor brasileiro, sua reescrita do conto de Mansfield seria
acompanhada apenas da primeira nota. 92
Da mesma forma, o texto traduzido por Veríssimo foi analisado a fim de
entender como sua tradução se situa nessa questão, já que o escritor traduziu
Mansfield em uma época – os anos 1940 – muito mais conservadora do que a que
viveu sua sucessora nesta tarefa. Após examiná-la, foi possível concluir que sua
reescrita é muito mais contida do que as de César e Cupertino, usando palavras
muito sutis para descrever as personagens femininas e suas emoções, ou mesmo
suprimindo trechos em que “emoções descontroladas” são descritas, assim
amenizando o tom crítico do texto de Mansfield, e diminuindo sua força no que
tange à manifestação de sentimentos. Porém, diferentemente de Ana Cristina César,
que por vezes se refere à filha de Bertha como “o bebê”, utilizando do gênero
gramatical masculino para uma criança que é menina, Veríssimo sempre recorre a
substantivos no feminino para referenciar Little B. – alternando entre o pronome
“ela” e os substantivos “filha” ou “bebê” – esse último acompanhado de artigo
definido feminino.
Por muito tempo, foi por meio dessa leitura que o público brasileiro teve
contato com o conto de Katherine Mansfield, visto que a tradução de Érico
Veríssimo só ganhou uma concorrente mais de quarenta anos depois de ter sido
publicada pela primeira vez. Além disso, uma edição de Felicidade, publicada pela
Nova Fronteira, sinaliza seu nome em fonte maior do que a do nome da própria 93
Mansfield.
Embora uma das hipóteses deste livro tenha sido de que a tradução de Julieta
Cupertino seria mais conservadora do que a de Ana Cristina César, o cotejo dessas
92 Idem, ibidem. 93 Veríssimo, [1940] 1969.
69
CONSIDERAÇÕES FINAIS
traduções não mostrou isso: em alguns momentos do conto, Cupertino foi também
muito ousada – e, por isso, acabou oscilando no tom de sua tradução–, como
quando utiliza, quase ao fim do conto, a palavra “tesão” para traduzir o advérbio
“ardently” ou quando traduz o adjetivo “cold” como “frigidez”– explicitando e
intensificando sentimentos implícitos no texto-fonte, o que muito se assemelha à
estratégia das tradutoras feministas, que se apropriam do texto-fonte para, em suas
traduções, refletirem suas próprias intenções políticas.
O texto de Cupertino, porém, não pode ser classificado como uma tradução
feminista nos moldes em que propuseram as canadenses, pois, em outros
momentos do conto, a tradutora elegeu estratégias pouco condizentes com essa
corrente de trabalho e pensamento, a exemplo dos trechos em que reforçou a
relação desigual e autoritária entre patroa e empregada.
Assim, foi possível concluir que nenhuma das três traduções analisadas do
conto Bliss, de Katherine Mansfield, são, como as estudiosas canadenses
teorizaram, traduções feministas, embora certas estratégias utilizadas por essas
tradutoras tenham sido empregadas em todas as traduções aqui selecionadas. Todas
as traduções, de uma forma ou de outra, têm elementos que remetem a uma
preocupação com a mulher na linguagem, porém sem grande consistência, sendo
que o uso de estratégias que vão de encontro ao que propuseram as tradutoras
feministas canadenses não é constante – principalmente na tradução de Veríssimo,
que minimiza o tom crítico e feminista do conto de Mansfield.
A linguagem tem um papel primordial para a reflexão de como a mulher e o
feminino são vistos em determinadas circunstâncias da nossa sociedade. Dessa
forma, colocar lado a lado três traduções diferentes para um mesmo texto-fonte,
observando-as por um olhar feminista, foi um exercício muito proveitoso. A
escolha por assim fundamentar a análise aqui realizada, aliás, se justifica pela
importante contribuição da tradução feminista para os estudos da tradução,
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O CONTO BLISS E TRÊS DE SUAS TRADUÇÕES - UMA ANÁLISE FEMINISTA
especialmente em relação a questões sociais e de poder. Nesse sentido, a relevância
deste livro consiste em demonstrar que, a depender do olhar que a tradutora ou o
tradutor tenha sobre o texto que está a traduzir, seu caráter feminista e ideológico
pode ser minimizado ou maximizado.
Os três textos em português selecionados são traduções carregadas de
ideologia – ainda que pretendam ser fiéis ao texto original, tarefa impossível–, são
três textos que, ao trazer para o português brasileiro aquilo que Mansfield escreveu
em inglês, reproduzem não só os valores de cada um dos tradutores em relação à
mulher, mas também os valores vigentes no contexto político-social no qual as
traduções foram feitas. Érico Veríssimo, Ana Cristina César e Julieta Cupertino são,
portanto, tanto quanto Katherine Mansfield, autores: cada um deles, em sua
reescrita de Bliss, possibilitou diferentes leituras para o conto da neozelandesa –
todas possíveis e legítimas.
*
71
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Título
Autor
Design de capa
Preparação do original
Diagramação
Projeto gráfico
Revisão
Formato
Tipologia
Beatriz Gregório dos Santos
João Pedro Missi
Beatriz BurgosJoão Pedro MissiSophie Galeotti
Beatriz BurgosJoão Pedro MissiSophie Galeotti
Beatriz BurgosJoão Pedro MissiSophie Galeotti
Beatriz BurgosJoão Pedro MissiSophie Galeotti
21,0 x 29,7 cm
Garamond
O conto "Bliss", de Katherine Mansfield,e três de suas traduções para oportuguês brasileiro: uma análisefeminista
BEATRIZ GREGÓRIO DOS SANTOS é formada em Letras (2018) pela
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Em 2018, este livro foi premiado foi premiado no IV Concurso de
Monografias do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/Unicamp)
na categoria "Linguística Aplicada".