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O Corpo
Página 1
04.08.2013
ISSN: 2236-8221
Edição n. 50, Novembro de 2015 Vitória da Conquista, Bahia.
O corpo é discurso
A voz, o pensamento, o homem... o corpo. A discursividade mais uma vez está presente
em O Corpo é Discurso. Em uma ciranda de cores e texturas, a pluralidade do corpo vai
tomando forma. O homem que já está em dúvida quanto ao que está acontecendo, fica
ainda mais perdido, não entende onde o dono da voz quer chegar. E o corpo? Em um con-
tínuo, a saúde mental e suas medicalizações aparecem para silenciar a voz. Mas, o corpo
grita sua voz. Daí, a memória retoma seu percurso histórico em meio a infinitas condi-
ções de existências. Um corpo black bloc. Dando as mãos na ciranda, aparece Foucault
com seus posicionamentos sobre o sujeito e seus discursos. Com muito corpo. E, ainda,
tem livro sobre vertentes do insólito ficcional. Venham bailar com a gente!
ISSN: 2236-8221
EXPEDIENTE DE
O CORPO É DISCURSO
Editores
Nilton Milanez
(LABEDISCO/CNPq/UESB)
Ricardo Amaral
(PPGMLS/FAPESB)
Vilmar Prata
(PPGMLS/FAPESB)
Organizador
George Lima
(PPGLIN/CAPES)
Joanne Nahla
(IC-CNPq)
Matheus Vieira
(IC-CNPq)
Revisão
Samene Batista
(PPGMLS/CAPES)
Tyrone Chaves
(PPGLIN/CAPES)
Vinícius Reis
(PPGMLS/LABEDISCO)
Diagramador
Ítalo Alberto
Secretária
Géssica Soares
Editoração eletrônica
(MARCA DE FANTASIA)
Henrique Magalhães
Jornal de popularização científica
Acesse o site do Labedisco: www2.uesb.br/labedisco Contato: [email protected]
Página 2 O Corpo
Renato Lima é graduado em Pintura pela Escola de Belas Artes - UFRJ. Para saber mais sobre o autor e
suas produções, acesse também o site Pockets - Histórias de Bolso ou a página de Facebook Pocketscomics.
Página 3 O Corpo
LABORATÓRIO DE ESTUDOS DISCURSIVOS FOUCAULTIANOS
LEDIF – UFU
Bruno Franceschini
Karina Luiza de Freitas Assunção
Criado em 2009, o Laboratório de Estudos Discursivos Foucaultianos (LEDIF) é um grupo de pesquisa do Instituto de Letras e Linguística
da Universidade Federal de Uberlândia (ILEEL - UFU), cadastrado no diretório de grupos de pesquisa do CNPq, e suas pesquisas têm por
orientação teórica os estudos em Análise do Discurso em perspectiva foucaultiana. Sob a supervisão do Prof. Dr. Cleudemar Alves Fer-
nandes, líder do grupo, os pesquisadores do LEDIF, discentes do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da UFU (PPGEL-
UFU), utilizam-se do instrumental teórico-metodológico proposto pelo filósofo francês Michel Foucault para a realização de suas pesqui-
sas com a finalidade de demonstrar a importância do pensamento foucaultiano para o campo dos estudos linguísticos, mais especifica-
mente para os estudos discursivos. Os trabalhos em desenvolvimento estão divididos em três vertentes, a saber: a) Estudos teóricos
sobre o discurso e o sujeito a partir da arquegenealogia e da ética/estética da existência foucaultianas; b) Discurso, histór ia, memória
e constituição de sujeitos na produção artístico-literária; c) Estudos sobre sujeito discursivo, subjetividade e construções identitárias.
Para além desses eixos de trabalho, o grupo procura evidenciar os estudos de Foucault no campo disciplinar da Análise de Discurso por
meio de leituras deste autor, bem como de outros teóricos da área, para que seja possível a utilização dos conceitos discutidos nos
diferentes objetos das pesquisas em desenvolvimento, sendo que as pesquisas têm corpora distintos, tais como: objetos científ icos,
imagéticos, literários e midiáticos. Para que seja possível a compreensão do pensamento foucaultiano e as pesquisas sejam desenvolvi-
das, as últimas obras lidas pelo grupo foram: A Hermenêutica do Sujeito (2004), História da Sexualidade (2007, 2007a, 1985), Deci-
frar o Corpo – Pensar com Foucault (2013) e A
Vontade de Saber (2014). O LEDIF também
realiza desde 2014 colóquios abertos à comuni-
dade acadêmica de modo a divulgar os traba-
lhos em andamento bem como promover a dis-
cussão dos estudos foucaultianos. Dentre os
eventos já realizados, as temáticas foram as
seguintes: Perspectivas Arqueológicas; Pers-
pectivas Genealógicas: sujeito, poder e discurso
e, por fim, Arte, Literatura e Mídia.
Página 4 O Corpo
Realização:
Euzabor (Primeira parte)
Ele abre os olhos turvos lentamente, enxerga galhos secos e negros a sua frente, a paisagem é preenchida
por nuvens escuras e volumosas que revestem o céu deixando fragilmente pequenas frestas onde os raios tímidos
de uma estrela ou astro qualquer insiste em penetrar tentando adentrar um mundo desconhecido e apagado por
um tempo que existiu em outrora. Faz frio, uma leve e sinistra brisa gelada percorre por entre as formações arbó-
reas desprendendo as poucas folhas ressecadas que ainda se mantém agarradas aos galhos sem vida que dançam
ao som de uma música que clama pela morte.
O homem encontra-se deitado em meio ao tapete de folhas e lama, sua cabeça dói e uma súbita lembrança de tem-
pos vorazes lhe atravessa o cérebro quebrando-lhe a carola embriagando-o com o gosto do pecado e do feitiço da
marca amaldiçoada do éden, uma voz suave toma-lhe a mente, seu coração dispara palpitante no mesmo ritmo
musical dos arbustos mirrados.
O ar úmido penetra suas narinas enchendo-lhes o pulmão, depois de um instante, quase que num despertar de um
pesadelo, ele se levanta hesitante, sem forças, o medo sobe-lhe a coluna, assustado, seus olhos chamejantes mo-
vimentam-se furiosos procurando algo, que de alguma forma, possa-lhe trazer a tranquilidade ou que lhe mostre o
que está acontecendo, tudo a sua volta lhe é estranho, não sabe onde está e nem como veio parar ali. Ele respira
fundo, tenta manter a calma ou pelo menos não deixar o desespero ser o guia de suas ações, com a mão direita,
ele passa sobre os olhos enxugando o suor frio e o sangue que reveste o seu rosto. Mais uma vez o homem respira
fundo, seu corpo está pesado, talvez pela armadura metálica que carrega ou alguma outra coisa que não sabia
dizer, mas que o corpo pode claramente sentir, estava claro que estivera em batalha, suas vestes se encontram
sujas, em sua armadura, em meio ao brilho infernal do metal tingido de vermelho, cortes aparecem desenhando
lhe o busto e a lamina de sua espada.
Apesar de todas as pistas, nada lhe parece familiar, era como se ele fosse o personagem de um livro ou texto que
havia sido acabado de ser criado, até então não tinha um passado e nem memória de certas experiências que o
guiassem, que lhe dessem um rumo. Ele observa mais uma vez o ambiente a sua volta, árvores gigantes de cascos
negros e tons acinzentados, possuem um aspecto frio e mórbido, suas raízes se espalham por todos os cantos
abraçando a terra, não se nota uma criatura viva, toda a região está morta, apodrecida, de certo, uma doença in-
Página 5 O Corpo
Realização:
curável ou praga se estabeleceu e roubou toda a vitalidade do lugar, se é que já fora vivo um dia.
Não tinha qualquer opção nem sabia para onde ir, sendo assim, qualquer iniciativa que tivesse já seria um começo
que o levaria a algum lugar, ele para por um instante, e sem hesitar põe-se a marchar contra o vento.
Depois de um tempo de caminhada, já na saída da floresta morta, ele chega a uma ária vertical encoberta por
plantas negras e espinhosas, mais a frente, logo após o vale de plantas, um lago pantanoso se estende até onde a
visão pode alcançar e ao longe no alto de uma montanha, uma luz branca ilumina todo o pico.
Certo alívio toma-lhe o coração, apesar de desconhecer todo aquele cenário, aquela luz de algum modo lhe havia
dado um objetivo, seu horizonte já havia sido determinado, toda aquela escuridão já não parecia tão assustadora,
apesar do ar seco, sua respiração agora é leve e esperançosa, finalmente um clarão lhe havia devolvido a vida.
Não o fato de ele achar que a luz seria sua saída, afinal esse pensamento era verdadeiro como possibilidade, mas
pelo fato de agora sim ele ter um objetivo, sendo este, o de alcançar aquela luz.
Mais uma vez põe se a caminhar, dessa vez a caminhada é mais árdua, além da exaustão as trepadeiras espinho-
sas ramificam o solo dificultando sua passagem e escondem prováveis perigos, em alguns momentos o homem
para e arranca espinhos encravados nas pernas e nos braços, em outros, ele retroage quando a passagem se tor-
na de impossível acesso, mas sempre seguindo em frente. Um córrego de águas lamacentas, que antes lhe parecia
um obstáculo, torna-se um aliado, pois seu fluxo serpenteia por entre os dentes espinhosos levando-o direto aos
pântanos mais a baixo, mais tempo de caminhada, porém menos dolorida é a jornada. Meio dia fora gasto andando
por entre os espinhos, não se podia ver que ser emanava luz por entre as nuvens, mas tudo havia ficado mais es-
curo e andar já não era uma boa ideia, o homem rapidamente procura pedra e madeira seca, o que não era difícil
encontrar, a escuridão lançava-se sobre o mundo que não se podia denominar até então, o fogo seria necessário
para aquecê-lo e protege-lo da imensidão desconhecida.
A fome grita em seu estomago e o vento frio sopra raivoso em seus ouvidos, o homem já não tem o mesmo ânimo,
olhar o pico iluminado da montanha a sua frente já não lhe dá mais coragem, a desistência o abraça e a solidão é
sua maior companhia, ele se ré encosta entre as poucas gramas que se espalha pelo chão, fecha os olhos lenta-
mente e em seguida adormece esperando que tudo não passe de um pesadelo. No meio da noite o homem se as-
susta e levanta rapidamente, imediatamente ele volta a montar a fogueira que já se encontra em brasa, com o fogo
estabelecido ele saca sua espada, algo o perturba, mesmo dormindo seus instintos se mantinham em alerta, era
sabido que algo estava por perto.
Sons esquisitos veem dos pés da montanha trazidos pelo vento, não se pode dizer exatamente o que pode ser, pois
Página 6 O Corpo
Realização:
são sons diferentes de tudo o que é conhecido, seja lá o que for, não é algo que o homem já tenha visto. O medo
mais uma vez o domina, seu coração acelera, sua respiração fica mais forte e uma gota de suor lhe escorre pelo
rosto.
- O que é você criatura desconhecida – diz uma voz grave se aproximando lentamente – em toda a minha jornada
não vi nada parecido com tal existência.
O homem se assusta, não imaginava que de repente pudesse existir alguém vivo naquele lugar, ele hesita por um
instante, uma gota amarga e seca lhe desce a garganta, mesmo o medo travando-lhe a boca ele força qualquer
resposta - O que você quer de mim, por que não sai das sombras e me encara de homem para homem?
- Homem? O que é homem criatura? Estou entre as sombras, seus olhos não me enxergam e mesmo assim me
aplica tal adjetivo se assim o é?
O homem, que antes se encontrava com medo, agora se vê em dúvida, não entende o que a voz quer dizer, vendo-
se pressionado, lança qualquer resposta tentando um diálogo mais compreensivo – Suponho que, como eu, você
tenha braços, pernas e vários outros membros que assim o caracteriza como homem?
A voz se cala um instante, depois de um tempo ouve-se a resposta – Então isso é o homem? Então me responda
criatura homem e se eu arrancar as minhas pernas, ainda sim você diria que sou homem?
O homem que já está em dúvida quanto ao que está acontecendo, fica ainda mais perdido, não entende aonde o
dono da voz quer chegar, ele teme tentar fazer algo e isso o levar a uma situação critica, afinal, a voz o vê e sabe
exatamente onde ele está, é mais sábio é continuar com o diálogo, pelo menos até o momento certo de atacar.
- Se arrancasse suas pernas, bem... – o homem para e pensa em uma resposta, depois de um tempo ele responde
– você continuaria sendo homem, pois, você fala e claramente percebe-se que também é dotado de raciocínio,
isso o caracteriza como homem.
Tudo fica em silencio, um minuto se passa e nem uma contra resposta, mais uma vez o homem engole seco, teria
aquilo sido algo de sua cabeça ou realmente estivera conversando com alguém? Ele embainha a espada, não é se-
guro continuar ali, ele apaga a fogueira e continua a andar em direção a montanha luminosa.
CÁSSIO BRITO BONFIM: Graduando do curso de licen-
ciatura em filosofia na UESB, blogueiro, mangaká e
instrutor de artes (desenho e pintura).
Página 7 O Corpo
Vinicius Lemos Reis: Como foi
e como está sendo inscrita a sua tra-
jetória pela saúde mental e pelos atra-
vessamentos da loucura?
Antônio Moura: Ao longo dos
anos 80 do século passado, a minha in-
serção na saúde mental se fazia em dois
eixos de trabalho: um, o das práticas da
sociedade civil, incluindo-se o Movimento
da Renovação Médica, a Associação Psi-
quiátrica da Bahia, o Sindicato dos Médi-
cos, o Movimento da Luta Antimanicomial,
entre outros. O segundo eixo refere-se à
pesquisa teórico-clínica com autores da
chamada anti-psiquiatria dos anos 60/70
(Basaglia, Cooper, Laing, Szasz,) e pensa-
dores como Foucault, Sartre, Freud, Hus-
serl, Nietzsche, Deleuze-Guattari, o grupo
“Plataforma” da Argentina e tantos mais.
O essencial a reter desses dois eixos é o
conteúdo fortemente político então pre-
sente nas discussões. Hoje, nas entra-
nhas do século XXI, “está sendo inscrita”
minha trajetória com grandes dificulda-
des, tanto a nível clínico quanto político-
existencial. A chamada luta antimanicomi-
al foi até certo ponto cooptada e
“torcida” pelos poderes hegemônicos,
incluindo-se a própria psiquiatria com o
seu positivismo neuromaníaco, e o momen-
to histórico brasileiro de extrema desmo-
bilização da sociedade civil. De toda sorte,
o conceito de loucura como experiência-
limite, tal como Foucault nos ensinou, per-
manece como o sentido do não-sentido, de
onde e por onde são possíveis conexões
rizomáticas (Deleuze-Guattari) entre sabe-
res e práticas heterogêneas. Os dois eixos
citados (o social e o clínico) se confluem
da produção “trágica” da ação. Como diria
o Deleuze, ações múltiplas de resistência à
servidão consentida.
Vinicius Lemos Reis: Podemos
pensar em uma concepção multifatorial,
com intensidades diversas, para a gê-
nese dos quadros nosológicos em saúde
mental?
Antônio Moura: A gênese dos
quadros nosológicos, ou, para dizer em
termos médicos, a etiopatogenia dos
transtornos mentais remeteria, hoje, a
uma concepção transfatorial, ou seja, à
produção de um não-lugar onde os territó-
rios epistemológicos das disciplinas te-
nham as suas fronteiras dissolvidas. Isto
significa, sobretudo, aprender a pensar a
multiplicidade como o próprio real do
evento dito patológico. Onde? Quando?
Como? Por que? Para que? São perguntas
inscritas num olhar que busca fugir à
linearidade causa-efeito (mecanicismo da
psiquiatria oficial) em prol da criação do
sentido. Este se constitui de linhas exis-
tenciais entremeadas: o acontecimento.
Assim, a origem dos quadros nosológicos
não se achará num ponto fixo (qual uma
lesão cerebral, por exemplo), mas na mis-
tura de linhas de potência e não-potência
que constituem o sofrimento mental, lem-
brando que o sofrimento mental é um
produto social. O paciente que diz ser
Maomé estará “sofrendo”? Desde o tempo
de estudante, ouvia nas aulas o professor
dizer que a etiologia em psiquiatria é
sempre multifatorial. Na prática clínica,
contudo, constatei outras coisas... O tra-
balho transfatorial considera, pois, as
causas do “transtorno mental” como fato-
res atuais e daí colados, aliados à inven-
ção de terapêuticas. Dito de outro modo, a
causa e o tratamento estão implicados
num meio que é o social, por sua vez só
acionado, deflagrado, impulsionado, de-
sencadeado como desejo. Só existe o de-
Página 8 O Corpo
sejo e o social e nada mais (Deleuze-
Guattari).
Vinicius Lemos Reis: A subje-
tividade pode afetar na constituição do
sujeito em sofrimento psíquico e como
pode auxiliar nas propostas de trata-
mento para esses sujeitos?
Antônio Moura: Prefiro usar o
conceito de “modos de subjetivação”
porque tal operação prático-teórica des-
cola a subjetividade do eu, do indivíduo,
da consciência, do cérebro, do organismo
físico-químico e até mesmo do sujeito
que acaba por se individualizar. Sabemos,
desde Foucault, que o indivíduo é um
“produto do poder”. Desse modo, o traba-
lho em saúde mental, numa “proposta da
diferença”, considera as subjetividades
como modos de produção subjetiva, não
só do paciente, mas dos técnicos e de
todos aqueles que estão implicados na
tarefa. São ações dificílimas de empreen-
der, tal o aprisionamento racional levado
a cabo pelas agências de controle social.
Algo se passa na economia dos afetos
(desejo) que torna o trabalho em saúde
mental atrelado às Formas estáveis vi-
gentes. Temos a própria instituição
“saúde mental” que não é mais que a
medicina estabelecendo e demarcando
seu território de saber, ao qual o pacien-
te e seus acompanhantes tem que se
adaptar. Ao inverso, uma prática da dife-
rença implica na criação de novas formas
de sensibilidade, intuição, percepção, sen-
sação e num desmoronamento das cren-
ças básicas em relação à loucura. Ao paci-
ente, o desejo é agenciado segundo cone-
xões em que até o fármaco pode “dar cer-
to”, desde que critérios ético-estéticos
configurem territórios de subjetivação
sequer sonhados pela racionalidade vigi-
lante e controladora.
Vinicius Lemos Reis: Como os
tratamentos em saúde mental, em es-
pecial a terapia medicamentosa, pode
se tornar um aprisionamento do sujeito,
e não um alívio, revelando um biopoder
sobre as subjetividades?
Antônio Moura: Os psicofárma-
cos constituem uma peça essencial do
agenciamento psiquiátrico instituído. Sen-
do assim, em geral eles são mortificações
do desejo, ou mais precisamente, produto-
res de subjetividades serializadas, padro-
nizadas, normatizadas. No entanto, não
são um “mal em si”, tampouco são uma
“essência”, exatamente por se instituírem
como um dispositivo prático, entre outros.
Caso eles sejam utilizados em conexões
com outros recursos terapêuticos (muitos
a serem inventados) podem ser úteis, sim,
notadamente em psicopatologias graves,
quando há situações de grande risco para
o paciente e/ou outros e em situações
clínicas complexas. Contudo, esta não é a
realidade mais comum, sendo os remédios
químicos, como dito acima, mortificações
do desejo, mormente em quadros não
graves (neuróticos) quando o paciente
costuma substituir seus sintomas por
uma dependência abjeta aos anti-
depressivos, ansiolíticos, sedativos,
hipnóticos, estabilizadores do humor,
neurolépticos em doses pequenas, enfim,
uma invalidação legalizada de suas potên-
cias, tudo isso louvado como a melhor das
soluções possíveis. Desse modo, o concei-
to de “biopoder” expressa o corpo institu-
ído como organismo consumidor da quí-
mica que “naturalmente” lhe falta. Ao
psiquiatra que quer fazer algo pelo paci-
ente e não só farmacologizá-lo, toda essa
realidade já chega pronta, definida, for-
matada, à qual ele deve se dobrar se qui-
ser continuar sendo psiquiatra. Este é um
ponto crucial de inflexão da minha prática
clínica. Ser psiquiatra sem ser psiquiatra.
Um paradoxo que escapa à racionalidade
médica. Mas, ao mesmo tempo, uma es-
tratégia de combate camuflada ao estilo
do agente duplo.
Vinicius Lemos Reis: Como
pensar os modos impostos pelo funcio-
namento da engrenagem social atual
em contraponto aos possíveis modos
de reinvenção de si e modos de existir
singulares, dentro da esfera da saúde
mental?
Antônio Moura: A engrenagem
social é uma engrenagem subjetiva. Sendo
assim, pensar os modos de funcionamento
Página 9 O Corpo
do controle em saúde mental é pensar a
reinvenção da Clínica psicopatológica.
Parece-me que o território da clínica (o
Encontro com o paciente) é por excelên-
cia trabalhado na conjugação de linhas de
controle que não estão ao alcance da
consciência, mas ao contrário, produzem
a consciência com o lugar da polaridade
alienação/desalienação, conceituação
inteiramente obsoleta, mas ainda fazendo
parte das crenças vigentes num cristia-
nismo oculto nas dobras da alma. De
todos nós. Já pensei e já me perguntaram
por que continuo psiquiatra, ou se sou
psiquiatra por que critico tanto a psiquia-
tria, ou, baseado no título do livro “Trair a
psiquiatria”, com quem a traí? Sobre
continuar psiquiatra, creio já ter respon-
dido no item anterior, ao falar da estraté-
gia do disfarce ou da potência do falso
como potência da arte.Quanto a “criticar”
a psiquiatria, duas respostas em uma. É
exatamente por ser psiquiatra que critico
e não ser psiquiatra esvaziaria o teor da
implicação político-institucional. A outra
questão (segunda resposta em uma) é
que busco cada vez menos criticar a psi-
quiatria, de resto uma ação (a crítica, bem
entendido, regida pelo universo da repre-
sentação) e sim de fazer a psiquiatria de
outro modo, ou de outros modos.Já a ter-
ceira pergunta,quanto à traição, e com
quem traí, digo que traí e continuo traindo
a psiquiatria com muita gente, uma série
tão extensa quanto impossível de relatar
aqui.
Vinicius Lemos Reis: O que o(s) corpo
(s) dos louco(s) (em uma concepção
ampla de loucura e quadros nosológicos
dispostos para a saúde mental, e não
somente, os indivíduos classificados
como psicóticos) enunciam? E dizem
sobre si?
Antônio Moura: Os corpos loucos dizem
não dizendo (conforme a razão), pois ex-
pressam singularizações existenciais in-
classificáveis. Fiquei sabendo com Foucault
que a loucura foi transformada e cadas-
trada como Doença no século XIX. Daí tal-
vez se possa inferir que hoje a psiquiatria
precisa mais do doente que o contrário. O
que os corpos enunciam são os gritos do
desejo agenciado nas circunstâncias da
vida social. Neste sentido, a prática clínica
em saúde mental só terá acesso a esses
corpos na medida em que encarne em si
mesmo a experiência do sem-sentido.
Questão prática: sob tais condições, o
Encontro com o paciente passa a ser o
encontro do técnico consigo mesmo, com
o corpo das intensidades que vêm de fora,
que chegam do Fora, entendendo esse
fora como o Coletivo em seus fluxos dese-
jantes, indeterminados e sempre atuais.
Ora pois, o desejo está no mundo, o desejo
é o Mundo, mesmo que se acredite em
outro mundo ou que se professe trans-
cendências astutas e melancólicas.Tais
assertivas podem parecer abstratas, mas
creio que ainda não são suficientemente
abstratas, pelo menos para fazer uma
psiquiatria cujo modelo de intervenção
prático seja a esquizofrenia, não como
entidade clínica (que aliás, não existe)
mas como processo desejante irreversí-
vel, ou seja, um devir.
VINICIUS LEMOS REIS : Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e
Sociedade (UESB - Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - Vitória da Conquista) . Possui
graduação em Psicologia pela Faculdade de Tecnologia e Ciências. Pesquisador/Colaborador do
Labedisco/CNPq - Laboratório de Estudos do Discurso e do Corpo. Currículo Lattes: Clique Aqui!
ANTÔNIO MOURA : Psiquiatra do CAPS II/Vitória da Conquista-Ba (Centro de Atenção
Psicossocial) e autor do blog “O cérebro MENTE”.
Página 10 O Corpo
No campo dos estudos do texto
e do discurso, a presença do texto ima-
gético tem, ao longo dos anos, avançado
em meio à tradição do trabalho com o
texto verbal. Na perspectiva de fomentar
a discussão sobre a leitura de textos
imagéticos, propomos, para este paper,
analisar um enunciado imagético retirado
da página dos Black Blocs, no site de re-
lacionamentos Facebook (https://
www.facebook.com/pages/Black-Bloc-
Brasil/353035154737576).
Esse grupo ganhou destaque na
mídia brasileira quando das manifesta-
ções que ocorreram no Brasil no mês de
junho de 2013, apesar de já se apresenta-
rem organizados em outros países há
alguns anos em diversos protestos de
ordem anti-capitalista. Ressaltamos que
esse movimento é de base anarquista,
cuja ideologia reside em uma forma de
organização política sem que haja gover-
no em uma perspectiva hierárquica.
A respeito das imagens em dis-
cussão, nosso objetivo é levantar refle-
xões com base na teoria proposta por
Jacques Derrida (2012) acerca dos regi-
mes de visibilidade e de enunciabilidade, da
cegueira constitutiva e das relações de
memória e arquivo presentes nestes enun-
ciados com vistas a interpretar e descre-
ver os processos que fazem falar e que
silenciam os discursos nestas imagens.
Desse modo, esses componentes,
quando em conjunto, podem ser produto-
res de sentidos, uma vez que as práticas
de leitura estão em consonância com o
exercício de uma prática discursiva em
determinada função enunciativa:
Daí sua condição de existência per-mitir afirmar que os sentidos cir-
cunscritos nesse gênero imagético apresentem-se tanto no plano da
visibilidade quanto no plano da invi-
sibilidade; serem desvelados como (re)criação e transformação da
realidade, e, dependendo das articu-lações que se encontram em jogo,
portar um discurso que evidencia determinados aspectos ou elemen-
tos e omite outros considerados irrelevantes aos efeitos de sentido
pretendidos. (TASSO, 2005, p. 149)
O trabalho com a fotografia é
caracterizado pela oportunidade de regis-
trar um determinado momento e reproduzi
-lo inúmeras vezes no futuro. Dessa forma,
“a fotografia será espelho do real se os
sentidos forem estabelecidos por meio da
semelhança existente entre a imagem e
seu referente, o discurso será o da mime-
se.” (TASSO, 2005, p. 140)
Para a realização efetiva do
gesto de descrição e de interpretação da
materialidade imagética, seja no plano da
visibilidade, bem como na invisibilidade, o
analista precisa convocar, além dos co-
nhecimentos técnicos acerca do trabalho
com a imagem, os aspectos relativos às
regras de formação do enunciado em
questão, uma vez que o texto imagético,
semelhante ao texto verbal, também se
vale de estratégias e mecanismos discur-
“O trabalho com a fo-
tografia é caracteriza-do pela oportunidade de registrar um deter-minado momento e re-
produzi-lo inúmeras
vezes no futuro. ”
Página 11 O Corpo
sivos, linguísticos e técnicos para produ-
zirem sentidos acerca de um determina-
do objeto.
Assim, ao tomarmos enquanto
objeto a série de imagens dos Black
blocs, pensamos, num primeiro momento,
na instância do acontecimento, na experi-
ência de emergência do enunciado. Como
expõe Derrida (2012, p. 70) “um aconteci-
mento é o que vem; a vinda do outro co-
mo acontecimento só é um acontecimen-
to digno desse nome, isto é, um aconteci-
mento disruptivo, inaugural, singular, na
medida em que precisamente não o ve-
mos vir”.
A singularidade do aconteci-
mento do enunciado a seguir pode ser
descrito considerando as condições de
possibilidade e de emergência de tal dese-
nho.
Este enunciado foi posto em cir-
culação no dia 28 de junho de 2013, exatos
oito dias após as grandes manifestações
populares nas ruas ocorridas no Brasil no
referido mês. No entanto, faremos, antece-
dendo às análises do trabalho, algumas
considerações acerca do espaço facebook,
no qual se encontram as imagens do Black
Bloc Brasil. Por certo, essa imagem nos
serve como fragmentos de memória para
dar forma a um quadro mais amplo e exte-
rior, invisível ao nosso olhar. O próprio
Derrida (2012, p. 164) nos indica essa dire-
ção:
[...] nuca falo da pintura, justamen-
te, isto é, da cor, da mancha de cor, mas do que vem em torno: o dese-
nho, mas também as bordas, a mol-dura; aquilo que encontra-se no
exterior do desenho, vem de algum modo preencher ou determinar o
que está dentro; o que inscreve o desenho numa superfície, que o
transborda ou, no mercado da pintu-
ra, do desenho, o que o inscreve em especulações que são tanto as do
mercado do desenho quanto especu-
lações teóricas, discursos.
As relações de memória estabe-
lecidas na leitura desta imagem evocam a
bandeira do Brasil e o movimento anar-
quista, cujos símbolos, cores e dizeres
sobredeterminam o texto primeiro. Num
gesto de descrição deste enunciado, ob-
servamos que, quanto ao verbal, a frase
“Ordem e Progresso”, da bandeira brasi-
leira, está ligeiramente apagada e no can-
to superior direito há a inscrição, a deno-
minação do grupo “Black Blocs”. Para
além disso, há, ainda, sobre a bandeira, o
símbolo do Anarquismo. Naquilo que diz
respeito às cores, ocorre o apagamento
do verde, azul e amarelo, constituintes da
bandeira brasileira, em detrimento ao
vermelho e preto, cores-símbolo dos
anarquistas.
Pensamos, deste modo, que
ocorre, neste texto imagético, uma rela-
ção de paráfrase-polissemia, uma vez que
há a retomada do texto primeiro – a ban-
deira do Brasil – e o caráter polissêmico
deste texto se dá quando da ressignifica-
ção, da reatualização dos elementos com-
ponentes da imagem.
Nesse sentido, a noção de rastro
faz-se operante porque, segundo Derrida
“Naquilo que diz res-
peito às cores, ocorre o apagamento do ver-
de, azul e amarelo, constituintes da ban-
deira brasileira, em de-trimento ao vermelho e preto, cores-símbolo
dos anarquistas.”
“Por certo, essa ima-
gem nos serve como fragmentos de memó-
ria para dar forma a um quadro mais am-plo e exterior, invisí-
vel ao nosso olhar.”
Página 12 O Corpo
dos por essas imagens. Seguimos apenas
alguns rastros que nos foram permitidos
a partir do que esses enunciados nos
autorizam a refletir. Fomos conduzidos,
no ato dessa leitura, a fazer um recorte
de interpretação, daquilo que o regime do
arquivo permitiu aparecer e fazer circu-
lar. A cegueira constitutiva encontra-se
também materializada no regime do enun-
ciado, ou seja, daquilo que se encontra no
regime de visibilidade, e o que se mostra
ao campo da invisibilidade, o qual compete
à memória traduzi-la para o visível, bem
como do previsível, já que está arquivado
naquilo que (não) se anulou ao olhar.
REFERÊNCIAS
DERRIDA, J. Pensar em não ver: escritos
sobre as artes do visível (1979-2004).
Ginette, M.; Masó, J. B. (Orgs.). Florianópo-
lis: UFSC, 2012.
TASSO, I. Linguagem não-verbal e produ-
ção de sentidos no cotidiano escolar. In:
SANTOS, A. R.; RITTER, L. C. B. (Org.). Con-
cepções de linguagem e o ensino de
língua portuguesa - v. 18. Maringá:
EDUEM, 2005. p. 129-171.
(2012, p. 79), este conceito “é a própria
existência, em toda a parte onde nada
nela se resume ao presente vivo e onde
cada presente vivo é estruturado como
presente por meio da remissão ao outro
ou à outra coisa, como rastro de alguma
coisa outra, como remissão-a.”. Ou seja,
vemos funcionar discursivamente neste
texto imagético a questão de uma memó-
ria discursiva do que é/era a bandeira do
Brasil e como, tendo em vista as manifes-
tações, a ressignificação desta bandeira
numa operação parafrásica-polissêmica
assumiu uma nova roupagem, produzindo
assim, outros sentidos.
Faz-se presente, também, a
noção de traço diferencial na leitura dis-
cursiva deste enunciado, como nos ensi-
na Derrida (2012, p. 165), este traço “é
aquilo que permite opor o mesmo e o
outro, o outro e outro, e distinguir”. Nes-
sa perspectiva, os traços diferenciais da
imagem em questão são passíveis de
observação quanto às cores, ao apaga-
mento dos dizeres da bandeira e à inscri-
ção do nome do grupo. No entanto, ao
pensarmos nessa relação de oposição
estabelecida com a bandeira primeira,
constatamos que essa operação de dife-
renciação não nos é dada a ver, é algo
exterior à imagem. Como expõe o filósofo,
“e então, o que separa – o intervalo, o
espaçamento – por si mesmo não é nada,
não é nem inteligível, nem sensível, e na
medida em que não é nada, não está pre-
sente, remete sempre a outra coisa e,
consequentemente, não estando presente,
não se dá a ver” (DERRIDA, 2012, p. 166).
Portanto, a apreensão do que não
é visto, a superfície invisível desses traços
diferenciais diz respeito àquilo que Derrida
(2012, p. 172) trata como “uma experiência
do não-ver”, porque o que há neste gesto
de leitura é um enceguecimento, uma leitu-
ra feita a partir de nossas memórias, a
partir de nosso blind spot, daquilo que nos
é permitido ver, uma vez que o campo de
visibilidade é constituído por uma invisibili-
dade. Assim, segundo Derrida (2012, p.
184), “Todo campo do visível é um campo
de invisibilidade e não há oposição entre
visível e invisível. É preciso, pois, que o
olho não veja ou não se veja para ver”.
Assim, ressaltamos que não pretendemos,
nesse estudo, esgotar os sentidos produzi-
“[...] ao pensarmos
nessa relação de opo-sição estabelecida com a bandeira pri-meira, constatamos
que essa operação de diferenciação não nos
é dada a ver, é algo
exterior à imagem.”
Página 13 O Corpo
O documentário “Foucault na Bahia: a liberdade nunca é demais”, produzido pelo Labedisco,
foi apresentado publicamente pela primeira vez no Colóquio “30 anos com Foucault: Corpo e
Heterotopias”, realizado em dezembro de 2014 na UESB pelo Laboratório de Estudos do Dis-
curso e do Corpo. Acesse clicando na imagem abaixo:
Dica de O Corpo
O filósofo francês Michel Foucault esteve duas vezes em Belém, nos anos de 1973 e 1976. Es-
te documentário faz um inventário de sua segunda visita, quando, a convite de Benedito Nu-
nes proferiu um curso na Universidade Federal do Pará-UFPA. Naquele momento o Brasil
passava pela ditadura militar e a UFPA começava a se organizar às margens do rio Guamá.
Acesse clicando na imagem abaixo:
Página 14 O Corpo
FERNANDES, Cleudemar Alves. Discurso e sujeito em Michel Foucault. São Paulo: Editora Intermeios, 2012. 106 p.
Esta análise dos discursos sobre a
qual estou pensando se articula com o trabalho efetivo dos histori-
adores.
Michel Foucault ([1970] 2013, p. 53-54)
A análise do discurso assim enten-
dida não desvenda a universalidade de um sentido; ela mostra à luz do
dia o jogo de rarefação imposta, com um poder fundamental de
afirmação. Rarefação e afirmação, rarefação, enfim, da afirmação e
não generosidade contínua do sentido, e não monarquia do signi-
ficante.
Michel Foucault ([1970] 2013, p. 66)
A obra Discurso e sujeito em
Michel Foucault de autoria do professor
Cleudemar Alves Fernandes, fruto de seu
estágio de pós-doutoramento junto à
UNESP, Universidade Estadual Paulista –
Campus Araraquara, foi publicado pela
editora Intermeios em 2012 e possibilita
um agradável percurso de leitura que
vem, sem dúvidas, preencher uma lacuna
da área no sentido de não apenas orga-
nizar, de modo apropositado, conceitos
(essenciais) dispersos nas diversas
obras desse pensador e operacionalizá-los
na perspectiva da Análise do Discurso
(AD), mas, também, convencer, até o leitor
mais semoto, da posição teórica que assu-
me.
Seu esforço, já apontado na apresentação
da obra, é o de evidenciar a proficuidade
do pensamento do filósofo para o campo
da AD e tomar conceitos dispersos em sua
“inesgotável” produção intelectual como
instrumentos teóricos e metodológicos
propícios para a analítica de diferentes
corpora. Nesse exercício, o autor conse-
gue reunir, em cada capítulo, reflexões em
torno de conceitos que servem de norte
ao desenvolvimento das problematizações
de Foucault, como é o caso da noção de
sujeito, cuja produção, em diferentes épo-
cas e a partir de analíticas distintas, evi-
dencia o funcionamento da exterioridade
em sua constituição.
Após a Apresentação, no primeiro capítu-
lo, de cariz introdutório e intitulado En-
contro com Foucault no Discurso, o autor
apresenta a justificativa para a escrita de
sua obra: “Em meu percurso da leitura
dessa obra, constatei que muito desse
aporte ainda não figura nas pesquisas em
Análise do Discurso, aspecto que torna
ainda mais profícua a realização deste
estudo” (FERNANDES, 2012, p. 15). De tal
sorte, evidencia a lacuna existente na
área no sentido de reunir conceitos já
operacionalizados por diversos pesquisa-
dores no Brasil, mas que ainda carecem
de uma organização que facilite uma aná-
lise nessa perspectiva, a qual recebe o
nome de “Análise do Discurso foucaultia-
na” (FERNANDES, 2012, p. 20). Após essa
justificativa e algumas considerações
gerais acerca da relação de Foucault com
o sujeito e o discurso, o autor apresenta a
“[...] o autor consegue
reunir, em cada capí-tulo, reflexões em tor-
no de conceitos que servem de norte ao de-
senvolvimento das problematizações de
Foucault, como é o ca-so da noção de sujei-to, cuja produção, em diferentes épocas e a
partir de analíticas dis-tintas, evidencia o
funcionamento da ex-terioridade em sua
constituição.”
Página 15 O Corpo
noção de discurso para a AD, para em
seguida contrastá-la com as noções de
discurso arroladas nas teses de Foucault.
Nesse batimento, aponta as contribuições
que tais noções, provenientes do pensa-
mento do filósofo, se possibilitam em
pesquisas inscritas na alçada da AD.
O segundo capítulo da obra ora resenha-
da intitula-se O discurso: aspectos teóri-
cos e metodológicos em Foucault e inicia-
se com uma reflexão a respeito da pers-
pectiva histórica adotada pelo filósofo em
sua fase dita arqueológica. Nesse mo-
mento, o autor aponta as críticas de Fou-
cault à história tradicional, vertente esta
que tende a enfatizar apenas os
“grandes” acontecimentos e em que a
singularidade dos eventos “menores” é
desprezada. Nesse ínterim, expõe os
“furos” que tal perspectiva impõe sobre
as formações das ciências e dos objetos
na descontinuidade histórica. Essas ques-
tões servem para apontar a complexida-
de, ou melhor, heterogeneidade da histó-
ria, ótica esta adotada como princípio
para a formação dos discursos e objetos
e que implicam, também, em suas condi-
ções de emergência, a forma-
ção/constituição de sujeitos. Dentro des-
sa perspectiva histórica, o autor segue
revisitando o conceito de enunciado pro-
posto por Foucault em sua Arqueologia e
que se estende também em reflexões
ulteriores. De tal modo, aponta a proficui-
dade de tal conceito para a AD, questão já
levantada por historiadores do discurso,
tal como Jean-Jacques Courtine. O autor
consegue desenhar em cada página deste
capítulo um quadro que evidencia as inú-
meras possibilidades que se instauram
para uma análise arqueológica do discurso
e do sujeito.
Sujeito, Poder e Verdade: discursos e dis-
positivos é o título que abre o terceiro
capítulo. Como se verifica pelo nome, as-
sim como nas diferentes “fases” propostas
por estudiosos da área e também assina-
ladas pelo autor, quer sejam os momentos
ditos arqueológico, genealógico e da éti-
ca/estética da existência, este capítulo
avança a perspectiva do discurso enfati-
zando a problemática das relações de po-
deres e verdades a ele inerentes. Em ou-
tros termos, avança da arqueologia para a
genealogia sem, contudo, desconsiderar as
questões apontadas pelo autor sobre o
sujeito e o discurso em outros períodos. É
preciso assinalar, e isso o autor salienta
muito bem, que a divisão em “fases” é
apenas tomada para cumprir um propósito
didático, o que não implica uma divisão
e/ou separação de uma fase a outra. Tais
questões são pertinentes, pois a despeito
de diferentes aspectos serem tocados por
Foucault em sua analítica de discursos
(epistemes, poder, relação do discurso
com o saber, produção de sujeitos etc.),
percebe-se, na dispersão de suas várias
teses, a possibilidade de reunir conceitos
em torno dos quais gravita o objeto dis-
curso. Assim, as considerações arroladas
por Fernandes acerca do poder (pastoral,
disciplinar, na política, nas relações hu-
manas, diárias, de luta, na relação do
poder com o corpo, com os próprios su-
jeitos, entre outros), servem, sem dúvi-
das, como aporte a ser tomado pelo ana-
l is ta no bat imento descrição-
interpretação de seu objeto.
Assim como as teses de Foucault, cada
capítulo da obra de Fernandes enfoca
diferentes aspectos inerentes ao discurso
e ao sujeito. De tal sorte, no capítulo 4,
Discurso e Produção de subjetividade, o
autor faz referência ao discurso para
demonstrar sua atuação (direta) na pro-
dução de sujeitos, sujeitos sempre em
construção, inacabados, marcados por
incompletude. O sujeito se constitui na
história, e Fernandes recorre a obras
como História da Loucura, Vigiar e Punir e
Hermenêutica do Sujeito para explicitar a
problemática da subjetividade em relação
com o discurso. Cada página nos faz com-
preender que as diferentes possibilidades
apontadas por Foucault acerca da exis-
tência do discurso e de sua construção na
história não se desvinculam das diferen-
tes técnicas que regulam as ações dos
Página 16 O Corpo
sujeitos (sujeitos de linguagem – verbal,
corporal etc.). Em outros termos, o sujei-
to é subjetivado pela exterioridade, “a
subjetividade é compreendida como pro-
duto entre virtualidades produzidas e
resulta de práticas diversas, advindas de
saberes que envolvem uma pluralidade de
discursos” (FERNANDES, 2012, p. 77). Este
capítulo também retoma características
já arroladas anteriormente e prolonga as
discussões sobre o discurso em sua rela-
ção com a verdade, cujas condições
apresentadas são, do mesmo modo, pos-
sibilitadoras da construção de subjetivi-
dades.
Para fechar esta obra, o quinto e último
capítulo versa sobre Discurso e Sujeito
em Foucault: O autor, a história e a me-
mória. Enfocando questões atinentes ao
discurso, já assinaladas anteriormente,
sem contudo mostrar-se repetitivo, o
autor enfatiza a construção do discurso
na história e aponta a relevância da me-
mória neste ínterim: “compreender o
funcionamento da memória discursiva
implica entender o funcionamento do social
e da história como lugares em que os su-
jeitos se inscrevem” (FERNANDES, 2012, p.
96). Portanto, o sujeito produz discursos a
partir de possibilidades históricas e é tam-
bém por meio dessas que se permite com-
preendê-lo. Fernandes também dedica
algumas páginas para tratar do autor,
noção ligada ao conceito de sujeito no que
concerne a uma de suas funções e, do
mesmo modo, muito pertinente para ana-
listas que lidam com o literário como obje-
to discursivo.
Por fim, entre os diversos méritos de
Discurso e sujeito em Michel Foucault,
destacamos o refinamento teórico ímpar, a
clareza de linguagem e, sem dúvidas, o
convencimento a que chegamos ao longo
da trajetória efetuada por Fernandes em
que se vislumbra a presença (des)contínua
do discurso e do sujeito nas densas teses
do filósofo. Além disso, percebe-se uma
recorrência no que tange à exterioridade,
aos discursos em dispersão como fundan-
tes e constitutivos dos sujeitos. O sujeito
é produzido somente a partir de condi-
ções históricas e sociais que o rodeiam, a
partir de discursos outros. Ademais, des-
tacamos que a obra ora referida muito
contribui no sentido de solidificar uma
perspectiva de pesquisas já adotada por
diversos grupos no Brasil , cujos partici-
pantes e líderes possuem notável acervo
de publicações na área, além de estarem
envolvidos na organização de eventos
científicos de relevância internacional.
Portanto, recomendamos essa obra a
acadêmicos de Letras, Filosofia e História,
a estudiosos da linguagem em geral – em
especial àqueles interessados na intrica-
da relação do discurso com a história –,
bem como a todos os pesquisadores ins-
critos na alçada da AD. Em especial a es-
tes últimos, tal leitura é, sem dúvidas,
imprescindível.
WELISSON MARQUES : Pós-doutorando pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor em Estu-
dos Linguísticos pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da Universidade
Federal de Uberlândia (PPGEL-UFU). Integrante do Laboratório de Estudos Discursivos Foucaul-
tianos (LEDIF/UFU). Currículo Lattes: Clique Aqui!
MARIANA NUCCITELLI SIMÕES : Orientanda de iniciação científica (PIVIC/IFTM). Instituto Fede-
ral do Triângulo Mineiro.
Leitura do Livro “Vertentes do Insólito Ficcional – ensaios I”, escrito por Flavio Garcia e Marisa Martins
Gama-Khalil.
Dica de O Corpo
Página 17 O Corpo
“Um dos produtos desse trabalho intenso e in-
cessante é o presente livro, que abre a série
“Vertentes do Insólito Ficcional – ensaios”. Pre-
tende-se, com os volumes que virão a compor a
série que ora se inaugura, oxigenar ainda mais
os estudos do insólito ficcional, em sua mais
ampla dimensão e diversidade, reunindo resul-
tados parciais ou finais de pesquisas realizadas
pelos membros do Grupo de Trabalho ou por
seus orientandos e supervisionandos. Não se
exclui, obviamente, contribuições de pesquisa-
dores externos, sempre que contribuam com a matéria central de unidade, que flutua at-
mosfericamente pelas manifestações do insólito na ficção, em sentido lato.
O “Vertentes do Insólito Ficcional – ensaios I” traz, ao todo, vinte e um trabalhos, que, em
sua maioria, correspondem ao texto integral das apresentações acontecidas durante o
XXIX Encontro Nacional da ANPOLL, realizado na Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC), em Florianópolis, entre 9 e 11 de junho de 2014.”
Clique aqui para baixar o livro!
O corpo é discurso
Conselho Editorial Internacional
Beatriz de Las Heras (Universidad Carlos III de Madrid)
Jean-Jacques Courtine (University of Auckland)
Martha Guadalupe Loza Vazquez (Universidad Autônoma de Guadalajara)
Philippe Dubois (Sorbonne Nouvelle – Paris 3)
Conselho Editorial Nacional
Adilson Ventura da Silva (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia)
Amanda Batista Braga (Universidade Federal da Paraíba)
Anderson de Carvalho Pereira (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia)
Antônio Fernandes Júnior (Universidade federal de Goiás)
Conceição de Maria Belfort de Carvalho (Universidade Federal do Maranhão)
Denise Gabriel Witzel (Universidade Estadual do Centro-Oeste)
Edvania Gomes da Silva (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia)
Elmo José dos Santos (Universidade Federal da Bahia)
Flávia Zanutto (Universidade Estadual de Maringá)
Francisco Paulo da Silva (Universidade do Estado do Rio Grande do Norte)
Ilza do Socorro Galvão Cutrim (Universidade Federal do Maranhão)
Ivânia dos Santos Neves (Universidade Federal do Pará)
Ivone Tavares Lucena (Universidade Federal da Paraíba)
Leda Verdiani Tfouni (Universidade de São Paulo)
Luzmara Curcino Ferreira (Universidade Federal de São Carlos)
Maíra Fernandes Martins Nunes (Universidade Federal de Campina Grande)
Maria do Rosário Gregolin (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho)
Maria Regina Baracuhy Leite (Universidade Federal da Paraíba)
Marisa Martins Gama-Khalil (Universidade Federal de Uberlândia)
Mônica da Silva Cruz (Universidade Federal do Maranhão)
Nádia Regia Maffi Neckel (Universidade do Sul de Santa Catarina)
Nilton Milanez (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia)
Nirvana Ferraz Santos Sampaio (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia)
Paula Chiaretti (Universidade do Vale do Sapucaí)
Pedro Luis Navarro Barbosa (Universidade Estadual de Maringá)
Sandra Márcia Campos Pereira (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia)
Simone Hashiguti (Universidade federal de Uberlândia)
Vanice Maria Oliveira Sargentini (Universidade Federal de São Carlos)
Página 18 O Corpo
O Corpo é Discurso
é o primeiro jornal
eletrônico de
popularização
científica da Bahia.
Colaboradores
Popularização da Ciência
A pesquisa científica gera conhecimentos, tecnologias e inovações que benefi-
ciam toda a sociedade. No entanto, muitas pessoas não conseguem compreender a
linguagem utilizada pelos pesquisadores. Neste contexto, a grande mídia e as novas
tecnologias de comunicação cumprem o papel de facilitadores do acesso ao conhe-
cimento científico. Para contribuir com esse processo, em sintonia com o espírito
que anima o Comitê de Assessoramento de Divulgação Científica do CNPq, criamos
esta seção no portal do CNPq. Seja bem-vindo ao nosso espaço de popularização da
ciência e aproveite para conhecer as pesquisas dos cientistas brasileiros e os bene-
fícios provenientes do desenvolvimento científico-tecnológico.