29
REVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE – FORTALEZA – VOL. X – Nº 1 – P . 137-165 – MAR/2010 O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade Maria de Fátima Vieira Severiano Psicóloga, Profª Associada do Depto. de Psicologia da UFC com Doutorado na UNICAMP e no Depto. de Psicología Social da Universidad Complutense de Madrid. Desenvolve pesquisas no Laboratório de Psicologia em Subjetividade e Sociedade, do Mestrado em Psicologia-UFC. End.: Av. Rui Barbosa, 640, apto. 401. Meireles. Fortaleza- CE. Cep: 60115-220. E-mail: [email protected] Mariana Oliveira do Rêgo Psicóloga (UFC) e mestranda em Psicologia (UFC) 1 . End.: R. Amadeu Furtado, 150. São Gerardo. CEP : 60450-130 Fortaleza – CE. E-mail: [email protected] Érica Vila Real Montefusco Psicóloga (UFC) e Profª substituta do Depto. De Psicologia da UFC 1 . End.: R. Professor Heráclito, 313, apto. 1101. Papicu. Fortaleza – CE. Cep: 60175-595. E-mail: [email protected] 137

O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

  • Upload
    phamdat

  • View
    216

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

Maria de Fátima Vieira Severiano

Psicóloga, Profª Associada do Depto. de Psicologia da UFC com Doutorado na UNICAMP e no Depto. de Psicología Social da Universidad Complutense de Madrid. Desenvolve pesquisas no Laboratório de Psicologia em Subjetividade e Sociedade, do Mestrado em Psicologia-UFC.

End.: Av. Rui Barbosa, 640, apto. 401. Meireles. Fortaleza- CE. Cep: 60115-220.

E-mail: [email protected]

Mariana Oliveira do Rêgo

Psicóloga (UFC) e mestranda em Psicologia (UFC)1.

End.: R. Amadeu Furtado, 150. São Gerardo. CEP : 60450-130 Fortaleza – CE.

E-mail: [email protected]

Érica Vila Real Montefusco

Psicóloga (UFC) e Profª substituta do Depto. De Psicologia da UFC1.

End.: R. Professor Heráclito, 313, apto. 1101. Papicu. Fortaleza – CE. Cep: 60175-595.

E-mail: [email protected]

137

Page 2: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

138 MaRia de FátiMa vieiRa seveRiaNo, MaRiaNa oliveiRa do Rêgo e ÉRica vila Real MoNteFusco

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

Resumo Em tempos hipermodernos, nos quais reina o paradoxo do “elogio da moderação e da cultura do excesso” (Lipovetsky, 2004), os corpos, cada vez mais, ganham visibilidade e são tratados enquanto mercadoria a ser vendida pela indústria cultural e pela indústria da saúde. A publicidade, não raro, dá a impressão de que um corpo perfeito, veiculado como sinônimo de saúde, bem-estar e felicidade, está ao alcance de todos, desde que seguidas as devidas prescrições. Assim, o corpo é tratado enquanto “corpo rascunho”, que pode ser modelado e remodelado a gosto de seu “proprietário” no intuito de alcançar o modelo ideal. Diante deste contexto, temos por objetivo, neste artigo, refletir criticamente sobre as diversas facetas desse paradoxo expresso na atual modalidade de “bem-estar” / “mal-estar”, com ênfase em seus “excessos”. Adotamos por eixo teórico-metodológico o referencial da Escola de Frankfurt (Teoria Crítica), além de dados coletados em uma pesquisa acerca dos distúrbios de auto-imagem: anorexia, bulimia e vigorexia. Essa investigação qualitativa, realizada em blogs e sites de relacionamentos Orkut de sujeitos portadores dos referidos distúrbios, nos forneceu dados relativos às contemporâneas formas de disciplina/controle, exclusão social/auto-confinamento e metamorfoses corporais, além de depoimentos significativos vinculados à influência das novas tecnologias e dos modelos midiáticos na busca pelo corpo idealizado do consumo. A análise teórico-crítica apontou para a não existência de um verdadeiro paradoxo, mas sim de um excesso de obediência às normas ideais do corpo padrão, que, quando não cumpridas, engendram sentimentos de fracasso e “mal-estar”. O “bem-estar” transmuta-se, pois, em “mal-estar”, numa jornada em que o prazer se associa ao esforço, o sucesso ao controle e a perfeição ao sofrimento.

Palavras-chave: Corpo. Consumo. Hipermodernidade. Transtornos alimentares. Excessos.

Abstract In the hypermodern times, in which the “compliment to moderation and cult of the excess” (Lipovetsky, 2004) paradox reigns, the bodies increasingly attract visibility and are dealt with as merchandise to

Page 3: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

o coRpo idealizado de coNsuMo: paRadoXos da hipeRModeRNidade 139

be sold by the cultural industry and health industry. Not rarely does the publicity create an impression that a perfect body, diffused as synonymous of health, well-being and happiness is achievable by all as long as the right instructions and prescriptions are followed. This way, the body is seen as a “sketch body”, which can be remodeled over and over according to the “owner’s” taste in order to reach the ideal model. Considering this context, the objective of this article is to reflect critically on the different aspects of this paradox, which are expressed in the current modality of wellness/ discomfort, with emphasis in its excesses and having the Frankfurt school (Critical Theory) as a reference for our theoretic-methodological axis. The collected data from a research on self-image disorders as bulimia, anorexia and overtraining is also examined. This qualitative investigation was executed in blogs, network relationship sites (Orkut) of individuals who carry the referred disorders and it has provided us information related to the contemporaneous ways of discipline/control, social exclusion/ self-confinement, corporal metamorphosis as well as significant testimonials linked to the influence of the new technologies and the media models in a quest for the idealized body of consumption. The theoretic-critical analysis undertaken has pointed out to the non-existence of a true paradox, whereas to an “excessive” obedience to the ideal norms of a standard body, and when not followed they generate feelings of failure and “discomfort”. The “wellness”(well-being) is transmuted into “discomfort”, in a journey in which associates pleasure to effort, success to control and “perfection” to suffering (pain).

Keywords: Body. Consumption. Hypermodernity. Eating disorders. Excesses.

AinserçãodaPsicologianodebatecontemporâneoacercadocorpoidealizadodoconsumona“Hipermodernidade”implicaquestionar-senãoapenassobreadiversidade,masigualmentesobreaadversidadedosnovostempos,seusparadoxos,contradi-çõeseimplicaçõeséticasepolíticas;decorrentesdasnovasformasdeestruturaçãodassubjetividadescontemporâneas,sobosignodoconsumo,dohiperindividualismoedasnovastecnologias.

Pesquisasanteriores(Severiano,2006)nosapontaramque,dentreosobjetosparadigmáticosdoconsumocontemporâneo

Page 4: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

140 MaRia de FátiMa vieiRa seveRiaNo, MaRiaNa oliveiRa do Rêgo e ÉRica vila Real MoNteFusco

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

(celulares,carros,computadoresecartõesdecrédito),outro“ob-jeto”sedestacadeformaespecial,permeandoedandosuporteatodososdemais:ocorpo.Este,consideradoporBaudrillard(1970)como“omaisbeloobjetodeconsumo”,éenquadrado,contempo-raneamente,nalógicafetichistadamercadoria,àsemelhançadequalqueroutroobjeto.Aindamaisagudamentequeosdemais,eleencarnaumapromessaimplícitadeinclusãosocial,diferenciação,status,prazer,poder,amorefelicidade.Todososoutrosobjetosparecemseconstituírememmerasprótesesparaoalcanceda-quiloquepassouaconstituir-se,nahipermodernidade,sinônimodesalvaçãopsíquicaesocial:“ocorpoideal”.

Diantedisso,todososcuidadosconvergemparaasua“cons-trução”:datecnobiologiaàindústriadapublicidade,passandoporspas,clínicasestéticas,dietaslights,fitness,anabolizantes,alémdecomplexosprocedimentoscirúrgicos,quefindamportorná-loum“corpo-rascunho”(LeBreton,2003):amontoadoinstáveleassimétricodepele,músculos,ossosecabelos,eternamenteembuscadodesenhoperfeitoasermodeladopelossignosdoconsu-mo.Erigidoedissolvidoincessantementepelaindústriadasaúdeedoentretenimentoembuscadaformaideal,nesse“corpo-ras-cunho”seconjugariaaexperiênciadabuscadeumafelicidadedespóticaqueimplicapromessasde“bem-estar”,masquetra-zem,paradoxalmente(?),intenso“mal-estar”.

TrabalharcomoconceitodeHipermodernidade(Lipovetsky,2004)implicacompreenderqueascaracterísticasqueembasa-ramamodernidade–oindividualismo,omercadoeoprogressotécnico-científico–nãoapenasnãodesapareceram,masintensifi-caram-se,tornando-sehiperlativas:hipercapitalismo,hipercidade,hiperfenômeno,hiperdesempenho,hipertexto,hiperindividualismo,hipercards,hiperconsumo,hipermercado,hipervigilância,hipervio-lência,hipercorpoetc.

Noqueconcerneaospadrõesdocorpo,observam-seideaishedonistaseamoraldo“aqui-agora”convivendoladoaladocomaideologiadasaúde,dalongevidadeedaprevenção.Ouseja,assiste-seaumhiperindividualismooraprudenteecal-culista;oradesregrado,desequilibradoecaótico-compostoparadoxalde“frivolidadeeansiedade,deeuforiaevulnerabilida-

Page 5: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

o coRpo idealizado de coNsuMo: paRadoXos da hipeRModeRNidade 141

de”(Lipovetsky,p.65).Apesardestaculturado“Hiper”sugerirotriunfodo“excesso”,do“sempremais”,elasecaracterizapredo-minantemente,segundooautor,porseruma“culturaparadoxal”emqueconvivemladoalado,“oexcessoeoelogiodamodera-ção”,numadivisão,comodiriaele,“quaseesquizofrênica”,entremal-estar/bem-estar.

Emqueconsistiriaarealnaturezadeste“paradoxo”?Paraalémdaexcessivapublicizaçãodo“bemestar”-numasociedadequeseapresentatão“plural”,“diversa”,e“dadivosa”(Baudrillard,1970)emsuasapresentaçõesmidiáticas-emquesítiosestariamalocadosocontrole,adominação,oauto-sacrifícioeaexclusãosocial,enfim,osofrimentopsíquico,reveladoresdoatual“mal-estar”?Ressalta-sequeestasociedadese“oferta”igualmente,masnãoigualitariamente,atravésdeseusbensdeconsumo,es-paçosdeentretenimentos,estilosdevida,formasexemplaresdeser,sentireamar.

Nossahipóteseéadequesubjacenteàprudênciaeàmoderação-supostosprovedoresde“bem-estar”–resideum“mal-estar”oriundodos“excessos”(desregramentos,distúrbios,transtornos,adiçõesetc)quenãosãonecessariamenteparado-xais,nosentidodecontraditóriosaosideaisdemoderação,masqueseconstituem,justamente,numcontínuo,numasequênciaderespostascoerentesaosexcessivosapelospormoderação“recei-tados”pelamídia.Excessospodemocorrersejaporobediênciacegaàsregrasestipuladasparaoalcancedocorpoideal,sejaporsucessivosfracassosnocumprimentodessasmesmasregras,ge-rando,porfim,um“mal-estar”.

Aindústriadabeleza,atravésdosdiversosmeiosdecomu-nicaçãodemassa–revistas,internet,blogs,Orkutetc.-expõeocorpoaumasabatinaincessantedeprescrições,vigilânciaeco-brançasparaalcançarotãopropalado“bem-estar”.Entretanto,parecequeainacessibilidadeeonãocumprimentodesteidealdecorporevelamaoutrafacetadesteparadoxo:transtornosdeimagem,exclusãosocial,sentimentosdefracassoeperdadaauto-estima,enfim,sofrimentopsíquico.

Nessesentido,objetivamosnesteartigorefletircriticamentesobreasdiversasfacetasdesseparadoxo,expressosnasatuais

Page 6: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

142 MaRia de FátiMa vieiRa seveRiaNo, MaRiaNa oliveiRa do Rêgo e ÉRica vila Real MoNteFusco

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

formasde“bem-estar”/”mal-estar”,tendoporeixoteóricoorefe-rencialdaEscoladeFrankfurt,alémdedadoscoletadosemumapesquisaquerealizamosacercadedistúrbiosdeauto-imagem:anorexia,bulimiaevigorexia–fenômenosexemplaresdo“mal-estar”contemporâneo.

AbulimiaéumaafecçãoconhecidadesdeaGréciaanti-ga,sobonomedecinorexiaoufomedecachorro.Consisteemhiperfagiaseguidadevômitos.Atualmente,abulimiaéumapsico-patologiabastantedebatida,embora,deformanenhuma,tenha-sechegadoaumconsensoterapêuticoarespeitodesuasestrutu-rasoudeseutratamento.Osprópriosmediatêmcontribuídoparafazerdaafecçãobulímicaumadoençamaisconhecida,“popular”.Fernandes(2006),emseulivroTranstornos Alimentares,defineaafecçãocomo:

(...)episódiosrepetidosdecompulsõesalimentares,acompanhadosporcomportamentoscompensatóriosinadequados,taiscomovômitosauto-induzidos,mauusodelaxantesediuréticos,jejunsouexercíciosfísicosexcessivossemqueseevidencieumaperdadepesotãosignificativacomoocorrenaanorexia.(p.39)

Mesmosabendoqueadoençaéantiga,saltaaosolhosoau-mentodonúmerodecasosnosúltimosanos.Essemesmoperíodofoimarcadopelaintensificaçãodoapelodamídiaparaaobtençãodeumcorpoidealaserconsumidoenquantomodelodesaúde,belezaebem-estar.Aindaqueascondiçõesacimacitadassejamverdadeiras,seriaimprudente,decerto,atribuiroaumentododofenômenodabulimiaunicamenteàaçãodamídiaedasociedadedeconsumo,masnãohádúvidaalgumadequepodemostecercorrelaçõespertinentesentreasvariáveisenvolvidas.

Quantoàanorexia,estaseconstituiemumadoençacujossintomasjásãorelatadosdesdeaIdadeMédia(Weinberg&Cordas,2006),quandomulheresconsideradassantasaderiamajejunsex-tremamenterigorososcomoformadeumaascesecorporalquevisavaapurificaraprópriaalma.Emboraossintomasdaanorexiatenhamsempresidoregistradosatravésdosséculos,adoençasóganhaocenáriodapsiquiatriamodernaem1980,comoadvento

Page 7: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

o coRpo idealizado de coNsuMo: paRadoXos da hipeRModeRNidade 143

doDSM–III.(Fernandes,2006)Aanorexiapodeserclassificadaem“anorexiarestritiva”–naqualocorremepisódiosdejejunsdema-siadorigorosos,havendorecusaapraticamentequalqueralimento–e“anorexiapurgativa”–comsintomasbastantesemelhantesaosdabulimia:hávômitosdepoisdaingestão(nãonecessariamenteexcessiva,comonabulimia)dealimentos.

AvigorexiaouSíndromedeAdônis-termoutilizadopelapri-meiramenteem1993,pelopsiquiatraamericanoHarrisonG.Pope,daUniversidadedeHarvard-éumtranstornonoqualapessoare-alizapráticasesportivasdeformaintensaecontínuaparaganharmassamuscularedefiniçãocorporal,semseimportarcomeven-tuaisconsequênciasprejudiciaisàsaúdeoucontra-indicações.OsportadoresdeVigorexiasão,emsuamaioria,homensentre18e34anos,osquaischegamaingerirmaisde4.500caloriasdiárias(onormalseriacercade2.500),incluindoperigososcomplexosvita-mínicosesuplementosalimentareseatéoconsumodeesteróideseanabolizantes,comofimdeconseguir“melhoresemaisrápidosresultados”.Trata-sedeumadasmaisrecentespatologiaspotencia-lizadaspelacultura,nãotendosidoaindacatalogadacomodoençaespecíficapelosmanuaisdeclassificação(CID.10eDSM.IV).Algunsautoresconsideram-naumamanifestaçãoclínicaparticulardeumquadrodenominadoTranstornoDismórficoCorporal,(historicamenteconhecidocomodismorfofobia),oqualédefinido,deacordocomoDSM-IV,comoumapreocupaçãocomumimaginadodefeitonaapa-rência.Seumaligeiraanomaliafísicaestápresente,apreocupaçãodoindivíduoéacentuadamenteexcessiva.Caracteriza-se,também,porumaobsessãodetraçonarcísico,voltadademaneiraabusivaparaocultoaocorponassuasmaisíntimasefataisproporções.Nãoobstanteoquãomusculososseapresentem,osvigoréxicosconsi-deram-se“fracos”,“raquíticos”,“frangos”ou“mirrados”,recorrendocadavezmaisaanabolizanteseexercíciosintensosnatentativadealcançarasilhueta“ideal”.

Considerandoqueopresenteestudonãopossuiumcará-terclínico-diagnósticoequeseinserenumaperspectivanaqualocorpoécompreendidocomoumterritórioemqueseexpressamossintomassociaiscontemporâneos-sofrimentopsíquico,sobosignodohedonismoedapseudoliberação–questionamos:ha-veriaumrealparadoxo,comoreportaLipovetsky,entreo“frenesi

Page 8: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

144 MaRia de FátiMa vieiRa seveRiaNo, MaRiaNa oliveiRa do Rêgo e ÉRica vila Real MoNteFusco

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

consumista”,“asbulímicaseanoréxicas”eos“compulsivosevi-goréxicos”?Nãoseriamtaispatologiase“excessos”,justamente,osfrutoscolhidosanteofracassodoindivíduonãoconseguircum-prirtão“moderadamente”comospadrõesideais?

Perspectivas TeóricasCompreenderocorpoidealizadodoconsumo,comvistas

aelucidarsuasfacetasdemoderação,controle,comedimentoe,emúltimainstância,desubjugação,implicaemreportar-nosaosteóricospioneirosnaanálisedosprocessosderacionalizaçãoedominaçãodasociedademoderna:aEscoladeFrankfurt,especial-menteT.Adorno,M.HorkeimereH.Marcuse.Apropostadessesteóricosancora-senaexigênciadeumaindividualidadecapazderefletirsobreasprópriasvicissitudesdarazãonomundomoderno,comatençãoespecialacertasformasdeconduçãodesatisfação“espontâneas”dodesejo–própriasdaindústriaculturalcontem-porânea–aparentementeprogressistaeliberal;masque,aoelidirocomponentereflexivodarazãoemproldesoluçõesimediatas,pautadasnofascíniodaimagemdoconsumo,findamporremeteroindivíduoaumasituaçãodemenoridade,umavezquesubordi-namodesejoàlógicadomercado.

Asrelaçõesdohomemcomossignosdoconsumoforamexaustivamenteanalisadaspelosfrankfurteanosatravésdoconcei-tode“IndústriaCultural”.Hádécadas,essesautoresafirmaramque,nassociedadesmodernas,adominaçãosaiudaesferarestritadotra-balhoparaimpor-se,deformatotalitáriaeimplícita,porsobretodososaspectosdacultura.Aqui,adominaçãoassumeumanovaforma,nãomaisexplícitaedireta,masatravésdaimposiçãodeumahege-moniaideológica,utilizando-sedaprópriagratificaçãododesejo;sejaatravésdoconsumodemercadoriasfetichizadas,sejaatravésdare-produçãoampliadadaindústriaculturaledolazerprogramadoparaproduzirumasubjetividadehumanahomogeneizadaeacrítica.

Jáem1944,porocasiãodapublicaçãodaobraA Dialética do Esclarecimento,AdornoeHorkheimercunharamotermo“IndústriaCultural”,afimdesubstituiraexpressão,entãoemuso,de“cultu-rademassa”.Negandoambosostermosdaexpressão,ouseja,nem“cultura”,nem“massa”,elesdenunciaramaimpossibilidade

Page 9: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

o coRpo idealizado de coNsuMo: paRadoXos da hipeRModeRNidade 145

dehaverqualquervestígiodeigualdadeentre“culturademassa”edemocratizaçãodaculturaaosublinharocarátercompulsóriodaindústriaculturalporelesconcebidacomo“aintegraçãodelibera-da,apartirdoalto,deseusconsumidores”(1986a,p.92),naqualésuprimidatantoacomplexidadeda“culturaerudita”quantoarude-zaespontâneadaculturapopular,quepermitiaresistiraocontroleda“sociedadeadministrada”.Suafinalidadenãoseriaadeserviràsmassas,masàracionalidadetecnológicaeadministrativadograndecapital,produzindoumafalsaconciliaçãoentreindivíduoesocieda-de,naqualoparticular(indivíduo)seriadiluídonauniversalidadedosocial,instaurando,assim,oreinodapositividadeeocultoaopre-senteimediatocomoasúnicasformasderealidadepossíveis.

Aindústriadabelezaedoentretenimento–ferramentasbási-casdaatualindústriacultural–evidencia,aindahoje,aconciliaçãoentreindivíduoesociedade,oreinodapositividadeeocultoaopre-senteimediatoemseusapelosaocorpoidealizadodoconsumo.Celulares,carros,computadores,cartõesdecréditos,assimcomocorpos“sarados”,sãoconvertidosemumaespéciede“passe”paraainclusãosocialeum“certificado”de“estiloepersonalidade”.

Arespeitodoquedenominamospor“objetodeconsumo”,seguindoBaudrillard(1993),éimportanteressaltarmosquenãoes-tamostratandodeummeroobjeto,funcional,emseuvalordeuso,masdeumcomplexo“códigodesignos”,noqualestãoimplicadostodoumsistemadecomunicação,diferenciaçãoepermutasso-ciais,enfim:“ummodonovoeespecíficodesocialização”(p.92).Oreferidoautor,aotrataroconsumonumaperspectivasemiológi-ca,consideraqueoobjetodeconsumocontemporâneosefundapredominantementenalógicado“valor-signo”,oqualéorientadoporumsistemadistintivodeimagensdemarca,ditadopelamoda,cujosentidonãoestámaisreferidoanenhumarelaçãohumana,massim“enlarelacióndiferencialrespectoaotrossignos”(p.38),quesehierarquizamdeacordocomosatributossubjetivosedeprestígiosocialagregadosaoproduto,regidospelalógicaformaldamodaedadiferenciação.Paraele,oobjeto,deixadeseraso-luçãoparaumproblemaprático(“valordeuso”)paraservaloradoemseusaspectos“inessenciais”,passandoasera“soluçãodeumconflitosocialoupsicológico”.(p.134).

Page 10: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

146 MaRia de FátiMa vieiRa seveRiaNo, MaRiaNa oliveiRa do Rêgo e ÉRica vila Real MoNteFusco

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

Nocaso“domaisbeloobjetodeconsumo”–ocorpo–Baudrillard(1970)enfatizaostatusaeleatribuído,nasociedadedeconsumo.Oatualinvestimentonarcísiconocorpopromove,navisãodesteautor,uma“evoluçãoregressivadaafetividadeparaocorpo/criançaeparaocorpo/objeto”(p.159).Nesseprocesso,osujeitoédissociadodeseucorpo,oqualéobjetificado,passandoasignificarapenas“reflexosdossignosdosistemadamoda”.Nessesentido,in-vestirnarcisicamentenocorponãosignificareapropiá-locomosignodedesejoesexualidadecomfinsdelibertação,masunicamentetratá-locomoum“patrimônio”deacordocom“oprincípionorma-tivodoprazeredarentabilidadehedonista”(p.160)aosmoldesdocódigodeproduçãoeconsumodassociedadescapitalistas.

Nessecontexto,ocorpodeixadeservistocomoumefêmeroedesagradávelinvólucrodaalma(Bruckner,2002)paratransmu-tar-senaprópriafelicidadematerializada:instrumentoepassaportede“bem-estar”,desde quesecumpracomtodasasprescriçõesdaindústriadasaúdemidiática;numajornadaemqueoprazerseassociaaoesforço,osucessoàdeterminação,aauto-estimaaoreconhecimentodooutro,aliberaçãoàadequaçãoàsnovasvi-gentes,afelicidadeaopoderirrestritodeconsumo.

Perspectivas metodológicasEsclarecemosqueopresentemanuscritonãosetratadeum

“relatodepesquisa”propriamentedito,masdeumadiscussãoteórico-críticaquesevaledealgunsdadosilustrativosdepesquisas(Severiano,2007,2008).Entretanto,sefazemnecessáriosalgunsbrevesesclareci-mentosafimdecontextualizarcertosprocedimentosemquestão.

Emtermosmetodológicos,aTeoriaCríticafrankfurteanain-sisteemqueoparticularsomentepodesercompreendidoquandoreferidoaumatotalidademaiorquelhedásentidoesignificação;ouseja,oparticularfuncionacomoíndicedouniversal,éoseure-presentantee,comotal,deveserobjetodeumarigorosareflexãocríticaparaqueseconsigaascenderàcomplexidadedotodo.

Emnossocasoespecífico,apresentaremosalgunsexcertosdasfalasdossujeitosportadoresdeanorexia,bulimiaevigorexia,retiradosdeblogsedecomunidadesdositederelacionamentoOrkut,representando,dessaforma,umelementoparticular,repre-

Page 11: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

o coRpo idealizado de coNsuMo: paRadoXos da hipeRModeRNidade 147

sentativodoatual“bem-estar/mal-estar”queassolaasociedadehipermoderna,emqueseevidenciamos“excessos”;sejasobaformaderigorosadisciplinaeautocontrole,sejapormeiodefe-nômenosdeexclusãosocial,auto-confinamento,metamorfosescorporais,assimcomoainfluênciadasnovastecnologiasedosmodelosmidiáticosnabuscapelocorpoidealizado

Valeaindasalientarqueapenasforamanalisadososdepoi-mentosespontâneos,játornadospúblicospelosprópriosmembrosdossites,semqualquerformadecontatopresencial.

Aseleçãoeanálisedosdepoimentosbasearam-seemumaanálisecategorialeteórico-crítica(EscoladeFrankfurt),naqualelegemostemas-chave(subcategorias)queserepeti-ramaolongodosdepoimentos,asaber:disciplina/controle;exclusão social/auto-confinamento;metamorfoses corpo-rais e tecnologia/modelos midiáticos.Essassubcategorias,porsuavez,foramoriundasdasduasgrandescategoriasquenortearamnossasanálises:“bem-estar”e“mal-estar”.

“Bem-Estar” - o elogia da moderação Historicamente,afelicidadenemsempreserelacionouàaqui-

siçãodeumcorpoperfeito.Nasociedademedieval,estavadestinadaàalma,cabendoaocorpoolugardopecado;nasociedademoder-na,eraarazãoquemapareciacomomeiodeasseguraroprogressoeafelicidadehumana.Ésomentenacontemporaneidade,naatual“culturadassensações”,queocorpoganhaolugardemediadordafelicidade,seconstituindonomaiscarodepositáriodapersonalida-de–ajáreferida“personalidadesomática”(Costa,2004).

Bruckner(2002),emsuaobraEuforia Perpétua,consideraqueafelicidade,antescaracterísticautópica,agorasetornouumaobrigação.Osujeitoestá“condenado”dealgumamaneiraaserfelizou,paradizerdeoutraforma,sópodeculparasiprópriosenãocon-seguiraformaideal(p.52).Vejamosnaspalavrasdoautor:

(...) durante séculos o corpo foi reprimido, esmagado em nome da fé ou das conveniências. Pois bem, agora que foi liberado dá-se um estranho fenômeno: em vez de usufruir com toda a inocência, os homens transferiram

Page 12: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

148 MaRia de FátiMa vieiRa seveRiaNo, MaRiaNa oliveiRa do Rêgo e ÉRica vila Real MoNteFusco

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

a proibição para o interior da satisfação. Esta, tornada ansiosa por causa de si mesma, erigiu seu próprio tri-bunal e se condena, não mais em nome de Deus ou do pudor, mas de sua insuficiência: nunca é grande o bas-tante, adequada o bastante. (p. 60)

Nessesentido,odiscursodequequalquerumpodeserbelodeslocaaresponsabilidadedasinsuficiênciasparaopróprioindivíduo.Nãohádesculpas:sempreháoportunidadedesefazerumacirurgiaplástica,dietaseexercícios.Abelezaseartificializae,comoconsequência,se“democratiza”.Aosconsumidoressãoauferidos“direitos”deseremjovensebelos,conquantoqueadi-ramaosmúltiplosplanosdesaúdeebeleza,ditadospelalógicadomercado.Controlesutilepoderosoporqueinculcanoconsumidorumaautoridadetravestidadepoderdeescolha.

Adiversidadeea“acessibilidade”quantoaosinvestimentosestéticose,ainda,aautoridadecientífica,legitimadoradodiscursodequeabelezaestáao“alcancedetodos”,malocultaumamen-sagemvelada:éfelizquemquer,égordoquemquer,ébeloquemquer;àsemelhançadasmercadorias,tudoestáasuadisposiçãoparaoalcancedocorpoideal.Aesterespeito,nossamídiaimpres-saépródigaemexemplos:

“Aspessoasficamàvontadeparaescolheroquedesejamfazer.Massugerimosreeducaçãoalimentar,nutricionaleati-vidadefísica.Tudoissoemumespaçoagradávelquemaispareceaextensãodanossacasa”(RevistaIsto É,de15dedezembrode2006,nº1934);

“Aeradaindústriadabelezaestáemplenaexpansão.Estáhavendoumasocializaçãodaindústriadabelezaedacosmé-tica”(RevistaIsto É,de15dedezembrode2006,nº1934)

“Abeleza,comoantesdelaoautomóvel,aTVemcores,owalkmaneocelular,setornouartigotãocobiçado,eportantagente,quebaixoudoolimpodospreçosproibi-tivosparaomaracanãdaspromoçõesacessíveisaumaboapartedosmortais”.(RevistaVeja,EditoraAbril,edição1835,ano37,nº1,janeirode2004,p.65);

Page 13: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

o coRpo idealizado de coNsuMo: paRadoXos da hipeRModeRNidade 149

“Háempresasquefinanciamascirurgiasematé48vezes,funcionandocomointermediáriasentreosmé-dicoseospacientesquedisponhamdepoucasverbas,comoaMaster Health–SPqueintermedeiacercade2.500cirurgiasporano,eaHigiia–SC,quecontabiliza400anuais”(RevistaVeja,EditoraAbril,edição1835,ano37,nº1,janeirode2004,p.68);

Anteasfacilidadespropiciadaspelaindústriadabeleza-suaobjetificação,“socialização”ecomercializaçãoemmódicasprestações-aênfaseagorarecaisobreavontade/controledeseu“proprietário”–responsávelúnicoporseussucessosefracassos.Assiste-se,hoje,aohorroràfeiúra,àgorduraeàflacidezpercebi-dacomoum“defeito”,uma“fraqueza”daprópriapersonalidadedeseuportador.Ocorre,assim,umapsicologizaçãodosafetoscor-porais,emqueocorpoéconsideradoumaespéciedeextensãomimetizadadaprópriaidentidade;numaeraemqueosatuaisape-losaestadossubjetivoseparticularesdesatisfação(“auto-estima”,“confiança-em-si-mesmo”,“felicidade”,“liberação”etc.)têmporviaprivilegiadaamodelagempadronizadadoprópriocorpo.

Poroutrolado,proliferamasfrustraçõeseaspatologiasin-dividuaisnaquelesque,nabuscapeloalcancedaformaideal,nãoconseguemseadequaraospadrõesprescritos,incidindoemex-cessos.Paraalémdocorpoideal,subjaz,portanto,um“mal-estar”:surgeumcorpo dócil,submisso,quesofrecomnormasemétodosrigorosos,constituídosporrenúncias,sacrifícios,auto-confinamen-to,exclusãosocialouatémesmoamorte.Aquioexercíciodopodernãoserestringeapenasàclassificaçãoouenquadramentodocorpoemdeterminadaspatologias,masaopoderdemanipulá-lodeacordocomosinteressesdomercado,daIndústriadabeleza,estabelecendoestratégiasdecontroleaindamaissutissobreavida–o“Biopoder”(Foucault,1975/2000).

Trata-sedaeternabuscadedefiniçãodeum“corpo ras-cunho”,ocorpoqueestásempreporserrefeito,aexemplodosanoréxicos,bulímicosevigoréxicos.

Page 14: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

150 MaRia de FátiMa vieiRa seveRiaNo, MaRiaNa oliveiRa do Rêgo e ÉRica vila Real MoNteFusco

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

“Mal-Estar” – Cultura do excessoUmaexcessivadisciplina/controle,comfortedosagemde

auto-sacrifícioeculpa,foirepetidamenteexpressaportodosaque-lesquesedenominaramanoréxicas,bulímicasevigoréxicos.

Considerando-secomFreud(1980a;1980b),queédoapa-ratoculturalqueopsiquismoretiraoselementossignificantesparasuaformaçãoevistoqueodeverdeserbela,bemcomoodeverdeserfelizconstitui-senomaisforteimperativodaculturacontempo-rânea,acreditamosqueessesideais(inscritosnoaparelhopsíquico)contribuamsubstancialmenteparaaformaçãodosreferidosdistúr-biosdeauto-imagem.

Emtodosessescasos,abuscapelocorpoperfeitotendeainscrever-seaoníveldoidealdeEudessessujeitos,fazendocomque,inconscientemente,busque-seumobjetoquevenhaaobtu-rarafaltaoriginal;considerando-sequeocircuitododesejonadamaiséqueabuscaincessantedesubstituiçõesparciaisparatam-ponarahiânciaprimordial.

OSupereu,-parteconscienteeparteinconsciente–teriacomoumadesuasfunçõesimpeliroEu,atodocusto,aseen-quadrarnopadrão(idealdeEu)internalizadoenquantosublime.Esseidealé,entretanto,inalcançável,oquefazcomqueoSupereudispenseváriassançõespunitivasaoEu,comoformadecasti-gopornãoatingirametadesejada.Amagnitudedetalpunição–presente,defato,emtodosossereshumanos-podeser,noen-tanto,exponencialmenteaumentadaselevarmosemcontaquea“hipermodernidade”responsabilizatotalmenteosujeitoporseusfracassos.Assim,aculpabilização,nestecaso,édupla:primeiro,sesenteculpadopornãoterumcorpopadrãoideal.Segundo,sente-semaisculpadoaindaporserincapazdeconsegui-lo.

Vejamos,aesterespeito,algunsdepoimentos:

Fiqueitristecomissoehojedemanhãacabeinãomecontrolandoecomi4fatiasdepãodeformaintegral.É nessas horas que me sinto uma fracassada.Me esforço pra olhar pra frente e continuar.Não posso desistir, isso vai ser pior... mas poroutro lado eu não consigo fugir da compulsão.Acabeidemiareagoratôcomdordeestômago.(etira-

Page 15: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

o coRpo idealizado de coNsuMo: paRadoXos da hipeRModeRNidade 151

dodehttp://cristinaproana.livejournal.com/)

Tenhoatévergonhaemcontarpravocesotantoquetenhocomidorecentemente.Eumesintomalemcomer,euseioqtoestouengordandoeoqtoestouficandofeia,masháumaforçamaiordentrodemimquemefazcomerabsur-damenteeoqeumaisqueroédestruirissoeserdominadanovamentepelavontadeeforçadeemagreçer!(extraídodehttp://www.fatnever-anaforever.blogger.com.br/)

Osupereutenderásempreacobrar,deumeufragilizado,aobtençãodeumidealque,defato,nuncachegará;acresce-seaistoumaintensacargadeapelosmidiáticos,járeferidos,enalte-cendoas“facilidades”e“múltiplasescolhas”paraoalcancedesteideal,oqueexacerbaaindamaisaculpaanteanãoobtençãodomesmo,gerando,porsuavez,necessidadedeautopunição.Entretanto,aculpapelofracassopodeserredimidaatravésdeumasériedeatitudes(exercícios,dietas,fitness,etc.)quepreten-dempropiciarbem-estar,masque,devidoaoexcessoderigoredeidealizaçãodoobjetivo,causamtantomal-estarquefindamporservir,também,comopurgaçãopelo“pecado”denãoconseguiro“corpoperfeito”.Sendoassim,vemosumcicloderetroalimenta-ção,noqualomal-estar(deser“feio/a”,gordo/a,etc.)geraculpaeaculpageraoscomportamentosautopunitivos.Osprópriossin-tomasdaspatologiasestudadas(fome,desnutrição,problemascardíacos,musculareseintestinais,dentreoutros)sãoboasilus-traçõesdessecaráterdestrutivodoSupereuemrelaçãoaumEusupostamentenãoadequado.Taiscomportamentosteriamduasfunções:purgaçãodaculpaeviadeobtençãodameta(obem-estar).Emambososcasos,findamporgerarummal-estarquedaráinícioaumnovociclo:

Purgaçãopelaculpa

Mal-estar→Culpa→Comportamentospunitivos→Bem-estar(nãoserbelo) ↓ (Intenção)

↑ ← ← ← Mal-estar(fracassoedesprazer)

Page 16: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

152 MaRia de FátiMa vieiRa seveRiaNo, MaRiaNa oliveiRa do Rêgo e ÉRica vila Real MoNteFusco

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

Apatologiaestarianãoemtentarencontrarumobjetosubstitu-to,masemquereramalgamar-seaele,emumacondiçãoregressivaquetentailusoriamentereativaroestadodenarcisismoprimário.Emumasociedadedoespetáculocomoanossa,queenalteceosupérfluoeraramentepropiciaprojetosculturaisidentificatóriosprovedoresdodesenvolvimentodoEu,aadoçãodecondiçõesre-gressivassetornaumaviamaisacessívelàrealizaçãodosideais.

Adisciplinaé,nessecontexto,associadaà“forçadecaráter”etambémaomeiomaissegurodesealcançarocorpoalmejadojáque,acimadetudo,“meucorpo”édeminhainteiraresponsabili-dade,passandoabelezadeumaquestãoestéticaaumaquestãomoral,permeadaporsentimentosdeculpaefracasso.

Vejamosumdepoimentoexemplar:

Hoje,eucansei.DelaeujácanseiatemposmashojeeurealmentedigoCHEGA.Nãomeinteressaopreçoquevocêvaimecobrar,euaceitoqualquercoisa.Sómedeixebonita.Mefaçasentirbem.Euaindarepito,contravocê,nãotenhoarmas,nãoeunãotenho.Tudoéinútilcontravocê,poisvocêsabeomeupontofracoeeunãoseioseu.Claro,vocênãotemum.Vocêéperfeitaemesmoquerendoqueeusejacomovocê,meincentivando,euousoteapunhalar.Desculpaseeunãofuiboaobastan-teatéontem,ana.Hojeeumudei,vocêviu.Tantoviuqueeujápercebisuapequenarecompensa.Jásentiminhabarrigaumpouco,muitopouco,maisbaixa.Maspramimquecomeçeihojeefuitãofraca,jáémuitacoisa.(retiradodehttp://pro.anna.zip.net/)

Adisciplina,noscasosdevigorexia,podeabrangerdesdeapráticadeexercíciosaosdomingoseferiadosatéasdietasdein-gestãodecarboidratoseproteínasextremamenterigorosas.Paraalcançaroobjetivodehipertrofia,éprecisosacrifício,dedicaçãoedor.Énecessáriodaromelhordesi.Éocorposendomortificadoparaseraceito.Ossacrifíciosdacarneatuaisenvolvemalémdador,tempoedinheiro,econvergemparaabuscaincessantedocorpoperfeito,ávidoporolharesdeadmiraçãoereconhecimento.

Page 17: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

o coRpo idealizado de coNsuMo: paRadoXos da hipeRModeRNidade 153

Modificarocorpotambémsemostraligadoàsquestõesdedife-renciaçãoentrefracosefortes.Paraos“fortes”e“musculosos”,mesmoindivíduostidoscomo“desfavorecidos”podemsetransfor-mar,atravésdeseuesforçoededicação,numarquétipodebelezaeforçahercúlea.Vejamosalgunsdepoimentosdestesúltimos:

Não importa quem é você, ou o que você faz.Aqui é um local para aqueles que estão prepara-dosparador.Disciplina,Dedicação,Determinação,oquetecaracteriza.Muitosnãoentendem:oquelevaumapessoaabuscaraperfeição?(retiradodehttp://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=26426390)

ADISCIPLINAdenosalimentarmoscorretamente,noshorárioscertos,demantermossempreaqueleritmodetreinointensoeforte!(retiradodehttp://www.orkut.com.br/Main#Community.aspx?cmm=31063063)

Outro fenômeno peculiar que encontramos nos dis-cursoscoletados foiumempobrecimentodavidasocialdosindivíduos,sejaporexclusão socialdospares,sejaporumauto-confinamento.

Emmeioauma“SociedadedoEspetáculo”(Debord,1992),emqueaimagemécadavezmaisvalorizada-“oqueapareceéobomeoqueébomaparece”-easrelaçõessociaissãome-diadasporimagens,ocorpotorna-seoprotagonistamaiordestecenário.Dessaforma,amensagemdosmeiosdecomunicaçãoemtornodosideaisdebelezaacabareduzindoosujeitoaumcorpoemevidência–socialmenteaceitooupublicamentedepre-ciado.Astecnologiasderede(osblogsewebcamsnainternet)easnovastécnicasdevigilânciapromovemumamudançanoestatutodoolhardooutro,possibilitandoumaexteriorizaçãodoindivíduo,emqueomaisimportanteéomodocomoseaparentaserdoqueoqueoutroraeraconsideradocomorelevante:ossentimentoseocaráter.Costa(2004)falada“desconfiança persecutória”,ouseja,senossaidentidade,felicidade,saúdeenormalidadeestão,hoje,expostasnocorpofísico,estãotambémexpostosaosolha-resdooutro,supostamenteacusador.

Page 18: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

154 MaRia de FátiMa vieiRa seveRiaNo, MaRiaNa oliveiRa do Rêgo e ÉRica vila Real MoNteFusco

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

Nessecontexto,umcorpobeloé,supostamente,garantiadevisibilidade,sucesso,auto-estima,saúdeefelicidade;enquantoumcorpo“feio”e“disforme”étratadocomosimplesconsequênciadodesleixoedafaltadevontadedeseus“proprietários”,quefindamporseremtachadosde“fracosdevontade”e“desregulados”,passandoapertenceràcategoriadosestultos:“Aestultíciaéainépcia,ain-competênciaparaexerceravontadenodomíniodocorpoedamentesegundoospreceitosdaqualidadedevida”.(Costa,2004,p.195)

Dentreosreferidosestultossituam-seos“frangos”,ouaque-lesquenãoseconsideramaindasuficientemente“musculosos”,osquaissãoalvosdeumaduplaexclusão:aquelaoriundadosvigoré-xicoseoutra,origináriadopróprioindivíduo,expressasobaformadeauto-confinamento.Vejamosumexemplodoprimeirotipo:

Oquemaismeirritasãoosinstrutoresfrangosqnemtreinammasmsmassimpagamdeforte...eqdovcvaipedirpraelesteajudaremapegarumalterde50kgpravcfazesupinonaumaguentamergueropeso...vaitreinarfrangoouvaidarauladeedfísicaproprimário...(http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs?cmm=2606889&tid=2483060459428110738)

Osegundotipodeexclusãosocial,maisabundantementeobservadonossites,refere-seaumasegregaçãoauto-infligida.Osuperinvestimentonarcísicoemsieoinvestimentoexcessivoematividadesvinculadasamodelarocorpofindamporcomprometeravidasocialdosujeito.Emalgunscasos,estepretereasativida-dessociaisparasededicaradietas,exercíciosououtrasatividadesrelacionadasaocorpo.Noauto-confinamento,aexclusãoé,por-tanto,auto-imposta,sejaporconsiderar-seaquémdopadrãoideal,sejapordefesafrenteaosupostoolharacusadordooutro.

deixodesaircommeusamigosnasemanaparairaacademia,minhanamoradabrigamuitocomigopornãopodersaircomelanasemana,semprevouaacademiaembuscaderesultadoscadavezmelhoresesempreaindanãoestabom.(extraídodehttp://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=26426390);

Page 19: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

o coRpo idealizado de coNsuMo: paRadoXos da hipeRModeRNidade 155

Eunãosaiomaisdenoitehámaisdeumano,háumanoemeiomaisoumenosnãoentraumgoledealcoolnaminhaboca,tocom43debraço,masdificilmen-tesaiosemmoletompormeacharminusculo,tododiameolhonoespelhoeachoqdiminui,peguei2in-fecçoesintestinaisemummêsetocomumproblemanoesôfagoporcausadaminhaalimentaçãoexagera-da. (extraídodehttp://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=2606889&tid=2484105560270835915);

pownemfalanessaparada,sofropakacomisso,mesintoocaramaismagrelo,dakelesfrangos,bemfrangomesmo...geralfalaquejauseibomba,geralfalaquetenhocorpomaneiro,geralfalatudo,maisnaomevejodojeitoquefalam...àsvezesdeixodesairporinsegurançadealguemficarmeolhando,asvezesmeolhaeujamesintomal,poisachoquejaestafalandoquesoufrango,magreloetal...http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=2606889

Treino4horaspordia...senãotreinoficodepre,depreapontodnemsairdecasa....antesdsairdacasaecolocarcamisetasemprefaçoabdominal...eseachaqnãofiqueiinchado,trocoacamiseta,semesmoassimnãoajudo,nãosaioindpendntdolugarqeuia)....(extraídodehttp://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=26426390);

Odesinteresseporatividadesqueanteriormenteeramdecapi-talimportância,comootrabalhoeocírculodeamizades,écrescente.OsujeitovoltaumaconsiderávelparceladesuaenergialibidinalparaopróprioEu.Ora,seaquantidadedelibidopresentenopsiquismodeformaalgumaéilimitada,elevandoemcontaqueessesindivíduosemmuitoinvestememsimesmos,nãoédeseespantarqueoenvolvimen-tocomoutremoucomgrupamentossociaissofraumembotamento.

Há,aqui,umaíntimarelaçãoentreessasexclusões.Sósepodesairquandoseatingeoideal,mas,aomesmotempo,essainteraçãosocialrepresentaoperigodedesperdiçartodoumárduoesforçoe,ainda,deserridicularizadapelospares.Aexclusão,assimcomoomal-estarcausadopela“fraquezadevontade”,age,maisumavezcomoummecanismoderetroalimentação.

Page 20: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

156 MaRia de FátiMa vieiRa seveRiaNo, MaRiaNa oliveiRa do Rêgo e ÉRica vila Real MoNteFusco

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

Outrofenômenorealçadonosdiscursoscoletadosdizres-peitoaosexcessosprovenientesdemetamorfoses corporais.Oestadode“excesso”eabuscaconstanteportransformaçõescorporais,porsimesmasexcessivas,encontram-sepresentesemtodasaspatologiasobservadas-anorexia,bulimiaevigorexia-,di-ferindoapenasnaformacomqueesseexcessosemanifesta.

Oexcessoestápresente,nasanoréxicasebulímicas,sobváriasformas:excessodeexercícios,excessodedietas,excessodeinibidoresdeapetite,excessodecomida,excessodejejuns,excessodevômitos,excessodemedodagorduraetc.Sendoomodelodecorpoidealinalcançável,nenhumatransformaçãoserásuficienteparaatingi-loe,assim,osujeitoentraemumcicloinfin-dáveldemetamorfoses.Nocasodasanoréxicas,aperdadepesoémaisnotável.Asbulímicas,porsuavez,frequentementenãoapre-sentamumganhoouumaperdadepesoconsiderável,emboraseentreguemadietas,purgativosevômitosconstantes.

Asbulímicascometemumduploexcesso:odecomereodepurgar.Ahiperfagiaprovocaumaculpaquaseinsuportável.Culpadecomer,culpadenãotercontrole,culpadeser“gorda”.Àguisadepurgação,recorremavômitos,laxantes,anorexígenos,exercíciosedietasfadadasaduraremapenasatéapróximacrise.Exemplosdeexcessosbulímicos:

Achava-megordaesuspeitavaqueadietaqueelamedavaeramuitoparamim.Estariaelameenganando?Estariaelaenganada?Acabavadecomer,pesava-meeiafazerexercícios.Meupersonaltrainereralouco!Só40minutosdecorrida?Fazia40minutoscomelewedepoismais40epedalavaecaminhava.Evitavasexocommeumaridopoistinhaqueestarempémuitocedoparacorreretreinar.Comoeunãovomitava,nãomeachavabulímica!Masoexercíciosempreerapouco.(retiradodehttp://www.tommaso.psc.br/html/alimentar/bulimi/bulimi3.htm)

Vocesconseguemimaginarumapessoaqsemprefoineu-roticacomocorpo,sempreseachougorda,semprefezregimes,sempretentoucomercosiassaudaveiselevesparanaovirarumabolaeagoraestaapropriabola?!?!?!?!(http://www.fatnever-anaforever.blogger.com.br/);

Page 21: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

o coRpo idealizado de coNsuMo: paRadoXos da hipeRModeRNidade 157

Asanoréxicassedestacampeloexcessodeexercícios(ge-ralmentenafaseinicialdadoença)epelosperíodosprolongadossemingerirnenhumtipodealimentação.A“forçadevontade”ina-balávelearesistênciaemnãocomertransformammuitasdessasmeninasemmodelosparaasoutras.Comoexemplo,podemosveraprópriapersonificaçãodadoençaaolermosumacartaescrita,tendopor“autoria”,aprópriaAnorexia:

Euvoutefazerdiminuircaloriasconsumidasevouau-mentaracargadeseusexercícios.Euvouteforçaratéolimite!Euprecisofazerisso,poisvocênãopodemederrotar!Euestareicomeçandoamecolocardentrodevocê.Logo,eujávouestarlá.Euvouestarláquandovocêacordardemanha,ecorrerparaabalança.Osnú-meroscomeçamseramigoseinimigosaomesmotempo,evocê,empensamentorezaparaqueelessejamme-noresdoqueontemànoite.Vocêolhanoespelhocomenjôo.Vocêficaenjoadaquandovêtantabanhanesseseuestomago,esorriquandocomeçamaaparecerseusossos.Eeuestouláquandovocêpensanosplanosdodia:400cale2hdeexercícios.(http://br.geocities.com/proana_paradise/cartadaana.htm)

NocasodosindivíduosacometidospelaVigorexia,oex-cessosemostraatravésdapráticaconstanteedesmesuradadeexercíciosdelevantamentodepesoepeloconsumodeanabo-lizantesesuplementosalimentares,bemcomopelaingestãodecomidaemquantidadesexageradas.Acomidaévistanãocomoinimiga,mascomoelementoimprescindívelnaconstruçãodemús-culosparaalcançaroobjetivodaperfeiçãoerobustezmáscula.Vejamosalgunsrelatos:

Começeiamalharcom15anosmalhei1anoefuiprojiu-jitsu,pesava64kg,treineiatéos19anosquefoiqndoeumedediqueiamusuculaçãohojetenho23anos,1,73,93kgmeulimite?!OCÉU.(http://www.orkut.com.br/Community.aspx?cmm=2606889);

Comeceiacomermuito,muitomsm.com12anoseujaestavacomendomaisde1kgporrefeição.hojeeuestou

Page 22: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

158 MaRia de FátiMa vieiRa seveRiaNo, MaRiaNa oliveiRa do Rêgo e ÉRica vila Real MoNteFusco

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

consumindoquase5kgpordia(issosemcontarosliquidoscomosucos,vitaminas,agua,etc...)jativevariosproblemascomgastriteporcausadoexcessodecomidaqeujogonomeuestomago...hojeeutenho17anos,1.76e97kg(http://www.orkut.com.br/Community.aspx?cmm=26426390)

Emboraonãoalcancedameta,adespeitodetodososexageroscometidosparaatingi-la,causemal-estar,esteévistocomoumpreçoasepagarpelobelocorpodesejado.Talqualalógicamonetária,naqualgrandeslucrosimplicamalgumrisco,ocorpoidealexigeumagrandecotadesacrifícios.Éafilosofiadono pain, no gain.Odesconfortoévistocomomeiolegítimodesechegaraoideal,e,aomesmotempo,“nãoexisteumavitóriasemsacrifícios”.Entretanto,atentemosparaodetalhesutildequeapa-tologianãoestánecessariamenteimplicadanalógicadono pain, no gain,queremonta,inclusive,àsorigensprotestantesdoespíri-tocapitalistamoderno,masaosextremosaqueelaélevadaporalgunsindivíduoshipermodernos.Oefeitonocivoestáemcon-siderarmesmoomal-estarmaisexcruciantecomoumaviarégiaparaaperfeiçãocorporal.

Apromessadefelicidadeparaaquelesque“seesforçam”tambémestáfortementereferendadaporcorposdemodelos midiáticosapresentadosvianovas tecnologias,dosquaisas“celebridades”parecemseraencarnaçãomaisfidedigna.

Apesardesersabidoquesempreexistirammulheresdebelezaexemplar,deCleópatraàGiseleBundchen,eíconesdamusculaçãocomoArnoldSchwarzenegger,ainfluênciadamídiasobreoscorpostem-seintensificadosobremaneiranosúltimosanos,eissosedeve,emparte,aosnovosrecursostecnológicosdainformática.

Comousomassivodatecnologia,aspersonalidadesqueservemdemodeloaessesjovensaparentam,emvídeoefoto,umasilhuetacadavezmaisbemdefinidaedistantedareal.Pequenasimperfeiçõesdapeleouexcessosdegorduraslocalizadassãoapa-gadascomumsimplesclickatravésdeprogramasdecomputador.Trata-sedavirtualizaçãodoscorposque,comtécnicascomputa-dorizadascadavezmaisrefinadas,tornamoscorposaindamaisperfeitos-objetosdedesejoaseremreproduzidosnaprópriacarne

Page 23: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

o coRpo idealizado de coNsuMo: paRadoXos da hipeRModeRNidade 159

-semos“defeitos”herdadospelanatureza.Nestesentido,asame-açasaocorpoperfeitopodematualmenteserdesfeitase“curadas”atravésdeprogramasdecomputadorcomoPhotoShop, Illustrator e Indesign.Comessesprogramas,tudooqueéconsiderado”feio”podeserapagado,retocado,corrigido,numaverdadeiraaversãoatudooqueéorgânico:porosnapele,pêlos,veias,tendões,gor-dura,flacidez,manchas,rugasetc.

DeacordocomSibila (2005),ossonhosde“virtuali-zação”eocultoao“corpobelo”escondemumverdadeirodesprezopelacarneimpura-sendoestaaquetrazemsiopesodaorganicidade,aquenãoatendeaosideaispregadospelacorpolatria-,alémdavontadedeeliminá-lacomaajudadasnovasferramentasdatecnologia,demodoa“deletar”todaequalquereventualimpureza.

Istotudocolaboraparaqueosideaisdebelezamidiáticossetornemaindamaistirânicos,propelindojovensaumametaimpos-síveldeseralcançadajáquenãosepodeconcorrercomosefeitosdacomputaçãográfica–umaespéciedecirurgiaplásticavirtual.

Nacomunidadeintitulada“QueroterocorpodaBeyoncé”,emumaenquête,foiperguntadocomoseriase“vocêtivesseocorpodaBeyoncé”,duasusuáriasafirmam:

Nossa eu seria a pessoa + feliz do mundo...num eh nem pra usá AKELA ropa...mais prepelo menos as q eu uso ficarem melhores nehe achar mais roça e ate um namoradopqgordanumdacertoneh..hehehe(extraídodehttp://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=5108446&tid=2444588255528763409&start=1)

Nossaaaaseeutivesseumcorpoqnemodelasriafelisissimas...usariavestidoscomdecoteprasbaladasheheblusinhasagarradinhas...shortinhus...calçabaixatudofikariaótimoooo!!!!Hehe(extraídodehttp://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=5108446&tid=2444588255528763409&start=1)

Page 24: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

160 MaRia de FátiMa vieiRa seveRiaNo, MaRiaNa oliveiRa do Rêgo e ÉRica vila Real MoNteFusco

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

Com certeza..90% das pessoas usam pho-toshopdepoisqviramq tiravadefeitoseblablabláDaí quando vc encontra a pessoa é capazde nem reconhecer em alguns casos ¬¬Quemnãotemsinais,defeitinhos,algumasespinhasetal?(extraídodehttp://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=7359645&tid=2438700669260147232);

Noque tangeaosmodelosmasculinos, tem-seafigu-raparadigmáticadeArnoldSchwarzeneggercomooídolomaiordosvigoréxicos,tendosidovencedordeváriascompetiçõesdefisiculturismo.

Vejamosexemplosdestaidolatria:

Arnold eh o DEUS da musculação!” (Usuário anô-nimo,em 24/04/06 ,Comunidade: “SeguidoresdoMestre Arnold). http://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=2550506&tid=2459426946624683799);

Para todos os “bombados” ou FANATICOS porACADEMIAeMUSCULAÇÃOqueseINSPIRAnesseGRANDEhomem,umverdadeiroVENCEDOR.(http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=28587930);

Para todos que são simplesmente FANATICOSpor suplementos e musculação. Se vc nãovive sem eles, gasta seu salario todo comeles e quase fali, entre nessa comunidades.Parafanaticosporessas“BOMBAS”naturais.(http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=26538582);

Comunidadepara todosqueachaqueoquecres-ce natural é planta... Não é só para quem tomabomba,maissimtbparaquemtomasuplementos...S u p l e m e n t o n ã o é b o m b a .Se ja bem v indo os BOMBADOS e os“SUPLEMENTADOS”.(http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=25994780).

Page 25: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

o coRpo idealizado de coNsuMo: paRadoXos da hipeRModeRNidade 161

Taltiraniacorporaltambéméfomentadapelaatualindústriadealimentos.Nãoraro,ascompulsõesbulímicas(ouasrestriçõesanoréxicas)acabamseestendendotambémaoalimentotecno-logicamentemodificadoparaajudaramanterocorpoemforma:hiperfagiadeprodutosdiet, light e low carb.Nocasodavigorexia,atecnologiapromoveacriaçãodenovoseeficazescomplexosvi-tamínicos,anabolizantesesuplementosalimentares,capazesdepromoveralteraçõesmetabólicasquepotencializamahipertrofia,levandoocorpoasuperarseuslimitesgenéticos.

Emtodososcasos,ocorpoévistocomoalgoquepodeserconstruídoereconstruídoemseuscontornos,comoumterrenoondesãocultivadasasidentidades,umquadroinacabadoesem-prepassíveldetransformações.“Sódependedevocê”–nosdizamídia,quemostraoqueé“belo”e,ainda,nosapresenta,deforma“acessívelatodos”,umainfinidadedeprodutostecnológicosparasê-lo.Algunslidamcomissonãocomendo,outros,compensandooexcessodecomida,eoutros,remodelandoseuscorpos.Assim,onãoalcancedetãoperseguido“bem-estar”somenteproduzin-tensosofrimentopsíquicoe“mal-estar”.

Reflexões finaisComoresultadodenossasreflexões“teórico-críticas”acerca

docorpoidealizadodoconsumonahipermodernidadecabe-nos,porfim,apontarasnovasformasdecontroleedominaçãoimpos-tassobosignodaliberdade,dadiversidadeedaabundância.Aquinãoháparadoxos,tampoucocontradições.

Trata-sedeum“excesso”deobediênciaàsnormasideaisdocorpopadrão,quequandonãocumpridasengendramsen-timentosdefracasso,provocamsériosdistúrbiosalimentareseproduzemforteexclusãosocialdirigidaàquelesquemuitosedis-tanciamdetaisnormas.O“bem-estar”tãoalmejadotransmuta-seem“mal-estar”quandodonãocumprimentodasregras.Aquele–obem-estar–quesepautavapeloelogiodamoderaçãoedoequi-líbrio,quandonãoalcançado(apesardedito“acessívelatodos”),evidenciaseucaráterautoritárioecoercitivo:redundaemcompor-tamentosexcessivos,arriscadosedesmesurados,produzindoumintenso“mal-estar”.Nãoháparadoxos!

Page 26: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

162 MaRia de FátiMa vieiRa seveRiaNo, MaRiaNa oliveiRa do Rêgo e ÉRica vila Real MoNteFusco

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

Aesterespeito,Costa(1986,p.180)jánosalertara:“ooutroéumaabstraçãoreificadadocorpoinventadopelasociedadedeconsumo”,ouseja,ooutroportadordocorpoidealnãoexiste,éapenasumsignofeérico,um“simulacro”,que,comotal,nãore-meteosujeitoalugaralgumquenãoàsuaprópriaordem;seufundamentoconsiste,justamente,emjamaisremeterosujeitoaoidealproposto,nãopodendo,portanto,realizar,efetivamente,oquepromete.Nistoconsiste,oqueesseautorchamadea“maiorviolênciadasociedadedeconsumo”,umavezqueinstilafrustra-ção–pormanterosujeitoemumcicloinfindáveldetentativasfracassadas–eculpa.

Talideologiaestimulaapenas“omitodaigualdadediantedoprazer,simulacrodaigualdadediantedosdireitosdohomem,ereforça-seaideologiadacompetiçãoedosucessoindividu-al”(Costa,1986,p.178).Neste“paraíso”,somenteos“inaptos”,“doentes”ou“neuróticos”continuamasofrer,numsuposto pa-radoxo,umavezque“tudo”lhesé“solicitamenteofertado”.Aresponsabilidade,portanto,recaiinteiramentesobreoindivíduo.Esta“renúncia”eestafrustração,tornadasaindamaispatentesnocasodocorpoidealizadodoconsumoproduzem,deformacoeren-te,sentimentosde“ansiedade,depressãoefadigascrônicas”;aodesejoexcitadoesemprefrustrado,correspondem,tambémsen-timentosde“friezaafetivaedescompromissoemocional”(Ibd.p.184),exacerbando,destaforma,o“malestar”queFreud(1980c)descreveemo“Mal Estar da Civilização”.

Portanto,consideramosque,naesferadocorpo,aanálisedosparadoxosrevelamaisumaquestãodecontroleedomina-çãodoquepropriamentede“moderação”.Oenquadramentodocorponosditamesdoscódigosdoconsumoseria,destemodo,oresponsávelpeloregimecorpóreofundadordeste“corpo-rascu-nho”,cujafragmentação,liquidezeeternabuscadecompletuderevela,sobumacapadehedonismo,novasformasdedominaçãoecontrole,travestidasdeliberaçãoefelicidade.

Notas1.Apesquisaqueoriginouestetrabalhofoidesenvolvida

enquantoaautoraeragraduandaemPsicologiapelaUFCebol-sistadeiniciaçãocientíficapeloprogramaPIBIC/CNPq,aoqualagradecemospelofinanciamento.

Page 27: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

o coRpo idealizado de coNsuMo: paRadoXos da hipeRModeRNidade 163

ReferênciasAdorno,T.(1986).Aindústriacultural.InG.Cohn(Org.),Theodor

W.Adorno:Sociologia(ColeçãoGrandesCientistasSociais,n.54).SãoPaulo:Ática.

Adorno,T.,&Horkheimer,M.(1944).Dialética do esclarecimento.RiodeJaneiro:Zahar.

American Psychological Association (1989). Diagnostic and statistical manual for mental disorders IV.Recuperadoem10junho2007dahttp://www.psiqweb.med.br

Baudrillard,J.(1970).A sociedade de consumo.SãoPaulo:MartinsFontes.

Baudrillard,J.(1976).La génesis ideológica de las necesidades.Barcelona,España:Anagrama.

Bauman,Z.(2001).Modernidade líquida.RiodeJaneiro:Zahar.

Birman,J.(2000).Mal-estar na atualidade a psicanálise e as novas formas de subjetivação.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira.

Bruckner,P.(2002).A euforia perpétua.SãoPaulo:Difel.

Costa,J.F.(1991).Narcisismoemtempossombrios.InTempo do desejo: Sociologia e psicanálise.SãoPaulo:Brasiliense,1991.

Costa,J.F.(2004)O vestígio e a aura: Corpo e consumismo na moral do espetáculo.RiodeJaneiro:Garamond.

Debord,G.(1997).A sociedade do espetáculo(E.dosS.Abreu,Trad.).RiodeJaneiro:Contraponto.

Fernandes,M.H. (2006)Transtornos alimentares: Anorexia e bulimia.SãoPaulo:CasadoPsicólogo.

Foucault,M.(2000).Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France.SãoPaulo:MartinsFontes(Originalmentepublicadoem1975-1976)

Freud,S.(1980a).Sobre o narcisismo: Uma introdução(EdiçãoStandardBrasileiradasObrasCompletasdeSigmundFreud,Vol.14)RiodeJaneiro:Imago.(Originalmentepublicadoem1914).

Freud,S.(1980b).Psicologia de grupo e análise do ego(Edição

Page 28: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

164 MaRia de FátiMa vieiRa seveRiaNo, MaRiaNa oliveiRa do Rêgo e ÉRica vila Real MoNteFusco

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

StandardBrasileiradasObrasCompletasdeSigmundFreud,Vol.18).RiodeJaneiro:Imago.(Originalmentepublicadoem1921).

Freud,S.(1980c).O mal-estar na civilização(EdiçãoStandardBrasileiradasObrasCompletasdeSigmundFreud,Vol.21).RiodeJaneiro:Imago.(Originalmentepublicadoem1929).

Lasch,C.(1983).A cultura do narcisismo: A Vida Americana numa era de esperanças em declínio.RiodeJaneiro:Imago.

Lasch,C.(1987).O mínimo eu: Sobrevivência psíquica em tempos difíceis.SãoPaulo:Brasiliense.

LeBreton,D.(2003).Adeus ao corpo: Antropologia e sociedade.Campinas,SP:Papirus.

Lipovetsky,G. (2004).Os tempos hipermodernos.SãoPaulo:Barcarolla.

Marcuse,H.(1982).A ideologia da sociedade industrial: O homem unidimensional.RiodeJaneiro:Zahar.

Novaes,J.(2001a).Perdidas no espelho? Sobre o culto ao corpo nas sociedades de consumo.DissertaçãodeMestradonãopublicada,PontifíciaUniversidadeCatólica,RiodeJaneiro.

Novaes,J.(2001b).Mulher e beleza: Em busca do corpo perfeito: Práticas corporais e regulação social (TempoPsicanalítico,Num.33).RiodeJaneiro:SPID.

Pope,H.G.(2000).O complexo de Adônis: A obsessão masculina pelo corpo.RiodeJaneiro:Campus.

Sant´Anna,D.(1995).Políticas do corpo: Elementos para uma história das políticas corporais.SãoPaulo:EstaçãoLiberdade.

Severiano,M.F.V.(2001).Narcisismo e publicidade: Uma análise psicossocial dos ideais do consumo na contemporaneidade.SãoPaulo:Annablume.

Severiano,M.F.V.(2006).Pseudo-individuaçãoehomogeneizaçãona cultura do consumo: Reflexões críticas sobre assubjetividadescontemporâneas.Estudos e Pesquisas em Psicologia, 6(2),105-121.

Page 29: O corpo idealizado de consumo: paradoxos da hipermodernidade

Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. X – Nº 1 – p. 137-165 – MaR/2010

o coRpo idealizado de coNsuMo: paRadoXos da hipeRModeRNidade 165

Weinberg,C.,&Cordás,T.(2006).Do altar às passarelas: Da anorexia santa à anorexia nervosa.SãoPaulo:Annablume.

Recebido em 24 de agosto de 2009Aceito em 29 de outubro de 2009Revisado em 15 de dezembro de 2009