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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL FERNANDA ZANOL O COTIDIANO TRADUZIDO NAS CRÔNICAS DE MARTHA MEDEIROS CAXIAS DO SUL 2014

O COTIDIANO TRADUZIDO NAS CRÔNICAS DE MARTHA … · Martha Medeiros foi a escritora escolhida, pois uma de suas principais fontes de inspiração são as notícias que saem diariamente

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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL

FERNANDA ZANOL

O COTIDIANO TRADUZIDO NAS CRÔNICAS DE MARTHA MEDEIROS

CAXIAS DO SUL

2014

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FERNANDA ZANOL

O COTIDIANO TRADUZIDO NAS CRÔNICAS DE MARTHA MEDEIROS

Monografia de Conclusão do Curso de Comunicação Social, habilitação em Jornalismo da Universidade de Caxias do Sul, apresentada como requisito para obtenção do título de Bacharel. Orientador: Prof. Dr. Paulo Ricardo Ribeiro

CAXIAS DO SUL

2014

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FERNANDA ZANOL

O COTIDIANO TRADUZIDO NAS CRÔNICAS DE MARTHA MEDEIROS

Monografia de Conclusão do Curso de Comunicação Social, habilitação em Jornalismo da Universidade de Caxias do Sul, apresentada como requisito para obtenção do título de Bacharel.

Aprovada em:

Banca Examinadora Prof. Dr. Paulo Ricardo Ribeiro Universidade de Caxias do Sul Profª. Drª. Alessandra Paula Rech Universidade de Caxias do Sul Prof. Marcell Bocchese Universidade de Caxias do Sul

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................7

2 LITERATURA E JORNALISMO...............................................................................9

2.1 Crônica.................................................................................................................11

2.1.1 Trajetória..........................................................................................................14

2.1.2 Características.................................................................................................17

3 MARTHA MEDEIROS.............................................................................................19

3.1 Trajetória e Obra..................................................................................................20

3.1.1 Strip-tease........................................................................................................21

3.1.2 Meia-Noite e um Quarto, Persona non grata e De cara lavada: Poesia

Reunida.....................................................................................................................21

3.1.3 Geração Bivolt.................................................................................................21

3.1.4 Santiago do Chile............................................................................................22

3.1.5 Topless.............................................................................................................22

3.1.6 Trem-bala.........................................................................................................23

3.1.7 Cartas Extraviadas e Outros Poemas............................................................23

3.1.8 Non Stop...........................................................................................................23

3.1.9 Divã..................................................................................................................24

3.1.10 Montanha-Russa............................................................................................25

3.1.11 Esquisita como eu.........................................................................................25

3.1.12 Coisas da Vida...............................................................................................26

3.1.13 Selma e Sinatra..............................................................................................26

3.1.14 Tudo que eu queria te dizer..........................................................................27

3.1.15 Doidas e Santas.............................................................................................27

3.1.16 Fora de Mim..................................................................................................28

3.1.17 Feliz por nada...............................................................................................29

3.1.18 Noite em Claro...............................................................................................29

3.1.19 Um Lugar na Janela.....................................................................................29

3.1.20 A Graça da Coisa...........................................................................................30

3.2 Desdobramentos da obra.....................................................................................30

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4 MARTHA MEDEIROS E O COTIDIANO................................................................32

4.1 Metodologia..........................................................................................................33

4.1.1 Pré-Análise.......................................................................................................34

4.1.2 Análise..............................................................................................................35

4.1.2.1 A avalanche foi sem querer.........................................................................37

4.1.2.2 Maníacas pela fama......................................................................................39

4.1.2.3 O mal é contagioso......................................................................................40

4.1.2.4 Money, Money...............................................................................................42

4.1.2.5 Pipocas..........................................................................................................43

4.1.2.6 Hoje e depois de hoje...................................................................................44

4.1.2.7 O violinista no metrô....................................................................................45

4.1.2.8 Mato, logo existo..........................................................................................47

4.1.2.9 Quando menos se espera............................................................................48

4.1.2.10 Último Pedido.............................................................................................50

4.1.2.11 Suicídio e Recato........................................................................................51

4.1.2.12 Deus em promoção....................................................................................52

4.1.3 Pós Análise......................................................................................................54

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................56

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS…………………………………………….……….58

ANEXO A – A AVALANCHE FOI SEM QUERER……………………………………..62

ANEXO B - NOTÍCIA FOLHA DE S. PAULO 06/02/98………………………………..64

ANEXO C - MANÍACAS PELA FAMA…………………………………………………..65

ANEXO D - NOTÍCIA FOLHA DE S. PAULO 14/07/98………………………………..67

ANEXO E - O MAL É CONTAGIOSO……………………………………………………68

ANEXO F - NOTÍCIA FOLHA DE S. PAULO ONLINE 28/03/02……………………..70

ANEXO G - MONEY, MONEY…………………………………………………………….72

ANEXO H - NOTÍCIA SITE ÉPOCA 02/08/04………………………………………..…74

ANEXO I – PIPOCAS……………………………………………………………………...75

ANEXO J - NOTÍCIA FOLHA DE S. PAULO 14/06/06………………………………..77

ANEXO K - HOJE E DEPOIS DE HOJE………………………………………………...78

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ANEXO L - NOTÍCIA FOLHA DE S. PAULO 01/10/06……………………………….80

ANEXO M - O VIOLINISTA NO METRÔ………………………………………………..81

ANEXO N - NOTÍCIA SITE TERRA 10/04/07…………………………………………..83

ANEXO O - MATO, LOGO EXISTO………………………………………..……………84

ANEXO P - NOTÍCIA FOLHA DE S. PAULO 20/04/07………………………………..86

ANEXO Q - QUANDO MENOS SE ESPERA…………………………………………..87

ANEXO R - NOTÍCIA ZERO HORA 13/10/11…………………………………………..89

ANEXO S - ÚLTIMO PEDIDO…………………………………………………………….91

ANEXO T - NOTÍCIA FOLHA DE S. PAULO 22/06/12………………………………..93

ANEXO U - SUICÍDIO E RECATO……………………………………………………….94

ANEXO V - NOTÍCIA FOLHA DE S. PAULO 19/01/13………………………………..96

ANEXO X - DEUS EM PROMOÇÃO…………………………………………………….97

ANEXO Z - NOTÍCIA SITE O GLOBO 06/03/13…………………………………..……99

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1 INTRODUÇÃO

A presente monografia intitulada O cotidiano traduzido nas crônicas de Martha

Medeiros tratará da maneira como a autora transforma o noticiário em literatura. A

questão norteadora da pesquisa será “Como Martha Medeiros se apropria de temas

do dia a dia e os aproxima da Literatura?”.

O objetivo geral da pesquisa será demonstrar como Martha Medeiros valoriza

o gênero crônica. Partindo dele, os objetivos específicos serão: observar a fronteira

entre jornalismo e literatura; observar como o tom de conversa informal está

presente nas crônicas; e demonstrar como a crônica se serve das pautas do

noticiário.

Para tanto, foram levantadas as seguintes hipóteses: a cronista escreve no

limite entre ficção e realidade; Martha Medeiros usa, em seus textos, um estilo de

conversa coloquial, característica marcante das crônicas; e o estilo de Martha

Medeiros é marcado pela simplicidade com que olha para os temas do noticiário e

os transforma em inspiração para suas crônicas.

A pesquisa é justificada pela forte ligação entre jornalismo e literatura e a

maneira como a crônica os une. Além disso, é característica marcante nesse tipo de

texto o olhar subjetivo e, muitas vezes, poético da realidade e dos fatos do cotidiano.

Martha Medeiros foi a escritora escolhida, pois uma de suas principais fontes de

inspiração são as notícias que saem diariamente nos jornais. Por meio de suas

crônicas, a autora aproxima da realidade de seus leitores até mesmo os fatos que

parecem tão distantes e faz isso colocando um outro olhar sobre eles, mais subjetivo

e delicado.

Para realizar a pesquisa, se percorrerá o seguinte percurso:

No capítulo 2, será apresentada a ligação entre jornalismo e literatura. Para

isso, serão estudadas as características e a trajetória do principal fruto da união

entre esses dois gêneros: a crônica. O estudo será feito com base na teoria de

diversos autores, que em diferentes épocas e contextos procuraram encontrar o que

une e o que diferencia jornalismo e literatura.

O capítulo 3 tratará da trajetória de Martha Medeiros e o que a levou para os

caminhos da literatura. Em seguida, será apresentada a obra completa da autora,

incluindo seus desdobramentos.

No capítulo 4 será feita a análise das crônicas de Martha Medeiros, com base

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nas teorias anteriormente apresentadas. O objeto de estudo serão 12 crônicas da

autora publicadas nos livros Trem-Bala (1999), Montanha-Russa (2003), Coisas da

Vida (2005), Doidas e Santas (2008) e A Graça da Coisa (2013). Por meio desta

análise, as hipóteses serão comprovadas ou refutadas.

Para estudar a relação das crônicas de Martha Medeiros com as notícias dos

jornais, parte-se de uma revisão bibliográfica a cerca da ligação existente entre

jornalismo e literatura. A crônica, quando inserida no ambiente jornalístico e mesmo

quando conquista a perenidade e vai parar nas páginas de livros, reflete a sociedade

de uma época. Por isso, seu conteúdo precisa ser analisado. A ponte que ela

representa entre jornalismo e literatura já renderam teorias de diversos autores, que

servirão de base para a pesquisa.

Um deles foi o jornalista José Marques de Melo (CASTRO, GALENO, 2002),

que diz que a crônica é um gênero jornalístico opinativo, situado na fronteira entre a

informação de atualidades e a narração literária, configurando-se como um relato

poético do real. Além disso, uma das principais características da crônica, que será

analisada nos textos de Martha Medeiros, é a linguagem coloquial. De acordo com o

escritor Manuel da Costa Pinto (2005), foi essa maneira de escrever, que se

aproxima de um diálogo entre o autor e o leitor, que fez com que a crônica fizesse

tanto sucesso na imprensa brasileira.

A fim de atingir os objetivos da monografia, a pesquisa será qualitativa com

análise de conteúdo. Esse tipo de trabalho reduz a complexidade de um texto e

produz inferências sobre ele com base no seu contexto social, de maneira objetiva.

Além disso, a pesquisa será baseada na teoria de Laurence Bardin (2000),

que divide o desenvolvimento de uma análise em três etapas: a Pré-análise, que é a

fase de organização e sistematização das ideias, a Análise, onde é constituído o

corpus da pesquisa e a Pós-análise, onde estão presentes as inferências que

surgiram ao longo da pesquisa.

Dessa forma, o que se busca por meio desta monografia é a compreensão de

como Martha Medeiros transforma o jornalismo em literatura e aproxima os fatos do

noticiário da realidade de seus leitores, apresentando a eles uma nova maneira de

olhar para o cotidiano.

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2 LITERATURA E JORNALISMO

O jornalismo começou quando o homem aprendeu a escrever a intervalos

regulares e é exatamente esse elemento de periodicidade que se destaca como uma

de suas características básicas. Antonio Olinto diz que o jornalismo já foi chamado

de literatura sob pressão.

Pressão do tempo e do espaço. Em todo o mundo, a cada instante, os cultores desse tipo de literatura lançam palavras sobre o papel, com a preocupação do tempo que passa e dos espaço que é limitado. As frases ajustam-se a um tamanho, o pensamento é obrigado a trabalhar depressa. Contudo, por maior que seja essa pressão, o jornalismo tem, fundamentalmente, as mesmas possibilidades que a literatura, de produzir obras de arte. (OLINTO, 2008, p.13)

Por muito tempo, os jornais serviram apenas para publicações de notícias da

política e de interesse público. De acordo com Fagundes de Menezes (1997), o

jornalismo significa todas as formas nas quais e pelas quais a notícia, a informação

e os comentários chegam ao público. Por meio dele, a informação é transmitida com

exatidão, penetração e rapidez, servindo sempre à verdade e levando ao

conhecimento de muitos o que é certo e evidente a poucos. Porém hoje, também

segundo Fagundes de Menezes (1997), mais do que a notícia em si, o que o leitor

procura no jornal é o pormenor, a minúcia, embora a própria linguagem presente nos

textos jornalísticos seja atualmente mais sucinta e concisa do que antigamente. O

jornal de hoje, de certa forma, apenas complementa aquilo que já foi transmitido ao

público por meio da televisão e do rádio. Ainda assim, tem coisas que só o

jornalismo impresso pode oferecer, como os artigos, os editoriais, determinados

tipos de reportagens e entrevistas e as crônicas.

A partir dessa procura dos leitores por informações que vão além da notícia, é

que fica claro a importância da literatura no jornalismo. De acordo com Edvaldo

Pereira Lima (2004), esses dois gêneros se aproximam desde a etapa histórica em

que a imprensa ganha uma feição mais moderna, industrial, a partir da última

metade do século XIX. A literatura e a imprensa confundem-se até os primeiros anos

do século seguinte, quando muitos jornais abrem espaço para a arte literária.

Segundo Pereira Lima, o jornalismo absorve elementos do fazer literário, mas

transforma-os e utiliza esses elementos de formas diferenciadas. Assim, a união

entre esses dois gêneros deu origem ao Jornalismo Literário, que ele define como

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uma “reportagem ou ensaio em profundidade, nos quais se utilizam recursos de

observação e redação originários da (ou inspirados pela) literatura”. José Domingos

de Brito (2008), também cita algumas de suas principais características: imersão,

humanização, exatidão, autoria e criatividade no momento da escrita.

Jornalismo Literário não é a cobertura noticiosa de livros e autores; não é ficção, invenção ou história baseada (apenas baseada) em fatos; não é masturbação linguística; nem válvula de escape para escritores frustrados, que têm de fazer materinhas descartáveis no dia a dia para poder pagar suas contas. E o mais desolador é a constatação de que o Jornalismo Literário nem sempre se apresenta em forma de crônica. Pelo menos não no Brasil. Por quê? Porque a crônica à brasileira, tão apreciada, singular e excepcional, permite liberdades ficcionais, embora também possa ater-se estritamente ao factual. Se se ativer, ela é uma peça de Jornalismo Literário; do contrário, não, será outra coisa, seja qual for. (BRITO, 2008, p. 21)

Mas o Jornalismo Literário não surgiu do nada. Entre os estilos de escrita que

deram origem a ele podemos incluir o Realismo Social, que teve início com a

publicação do romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Nesse período, os

escritores colocavam em suas obras o relato de acontecimentos e, dessa forma,

retratavam o homem e a sociedade em sua totalidade, mostrando o que antes nunca

tinha sido revelado, como o cotidiano massacrante, o amor adúltero, a falsidade e o

egoísmo humano e a impotência do homem comum diante dos poderosos. O

jornalista Tom Wolfe diz que os romancistas do Realismo Social realizavam um

verdadeiro trabalho de captação do real, como se fossem repórteres do seu tempo.

Eles buscavam representar o mundo exterior, analisando as questões políticas,

econômicas e sociais que influenciavam os comportamentos individuais e

determinavam a organização social.

Esses escritores, segundo Edvaldo Pereira Lima (2004), conseguiram

desenvolver personagens baseadas em pessoas comuns encontradas no dia a dia

dos escritores, com suas obrigações diárias condicionadas a fatores de raça, de

clima e de classe social. Da mesma forma, a linguagem no Realismo é mais simples,

sem muita preocupação estética, de modo a abranger um público maior. Mas essa

tradição realista teria seu fim na Europa em 1870, pois a comunidade literária

começou a achar que o romance estava se tornando muito limitado ao cotidiano.

O renascimento dessas técnicas de escrita e a renovação do Jornalismo

Literário só viria nas décadas de 1960 e 1970, quando os escritores norte-

americanos Norman Mailer e Truman Capote deram início à fase que ficou

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conhecida como New Journalism, ou Novo Jornalismo. Os repórteres autores desse

movimento trouxeram para o Jornalismo Literário técnicas narrativas que ainda não

haviam sido utilizadas, como fluxo de consciência, monólogo interior e digressões.

De acordo com o escritor Tom Wolfe, o New Journalism surge para tentar satisfazer

uma necessidade que muitos jornalistas possuem: o sonho de escrever um grande

romance. Isso porque ele acredita em uma espécie de hierarquia da literatura, no

qual os romancistas estavam no ponto mais alto e os jornalistas desempenhavam o

papel mais baixo na escala de valores literários.

Assim, do Realismo Social da Europa e do New Journalism da América do

Norte, o jornalismo extraiu a melhor contribuição para a renovação no seu estilo de

narrativa em profundidade. Com isso, surgiu um dos textos mais populares no

jornalismo brasileiro dos dias de hoje: a crônica.

2.1 Crônica

Um dos frutos mais importantes do casamento entre Jornalismo e Literatura, a

crônica é um gênero menor. É assim que Antonio Candido (FUNDAÇÃO CASA DE

RUI BARBOSA, 1992) define este gênero, ressaltando que isto não deixa de ser

uma coisa boa, já que, por meio dos assuntos que ela aborda, da composição

aparentemente solta, do ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, a

crônica se ajusta à sensibilidade de todo dia.

A cartaz de Pero Vaz de Caminha é considerada por Jorge de Sá (1985) a

primeira crônica de que se tem notícia. Caminha registra em suas palavras

endereçadas ao rei D. Manuel o primeiro momento em que a paisagem brasileira

desperta o entusiasmo de um homem das letras. E ele escreve sem esquecer que a

experiência vivida torna a narrativa mais intensa, ou seja, ele foi até à terra, conviveu

com os que ali viviam e criou o que hoje é uma das maiores características da

crônica: registrar o circunstancial. E fez isso tudo tão bem que sua “crônica” tornou-

se a certidão de nascimento do Brasil, como define Sá. “Nossa literatura nasceu,

pois, de uma circunstância. Nasceu da crônica.” (SÁ, 1985, p. 7)

Deste acontecimento histórico até hoje, a crônica passou por várias etapas e

evoluiu. Agora, seus relatos circunstanciais não são para apenas um receptor e sim

para muitos leitores de um determinado meio de comunicação. Além disso, ela

deixou de ser uma seção do jornal que apenas informava os leitores sobre os

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acontecimentos do dia ou da semana – quando era chamada de folhetim. Como

relata Jorge de Sá (1985), foi com Paulo Barreto e seu pseudônimo João do Rio que

isso mudou. Ele percebeu que não deveria ficar parado na redação do jornal

esperando acontecimentos que poderiam ser transformados em reportagens e

crônicas. Em vez disso, passou a ir até os locais dos fatos para investigar e dar vida

às suas palavras.

João do Rio construiu uma nova sintaxe, impondo a seus contemporâneos uma outra maneira de vivenciar a profissão de jornalista. Mudando o enfoque, mudaria também a linguagem e a própria estrutura folhetinesca. Com essa modificação, João do Rio consagrou-se como o cronista mundano por excelência, dando à crônica uma roupagem mais literária (…): em vez do simples registro formal, o comentário de acontecimentos que tanto poderiam ser do conhecimento público como apenas do imaginário do cronista, tudo examinado pelo ângulo subjetivo da interpretação, ou melhor, pelo ângulo da recriação real. (SÁ, 1985, p. 8)

Assim, com o tempo, o cronista tornou-se um escritor que age de maneira

mais solta, ou seja, depois de percorrer a cidade, observar as pessoas e registrar

situações é que surge a crônica, um texto cheio de liberdade. Ainda de acordo com

Sá (1985), “a sua sintaxe lembra alguma coisa desestruturada, mais próxima da

conversa entre dois amigos do que propriamente do texto escrito”. Além disso,

Antonio Candido (FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA, 1992) acredita que, ao

dispensar uma linguagem rebuscada e assuntos grandiosos, a crônica acaba se

aproximando mais da realidade do leitor.

Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitada. Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas e também nas suas formas mais fantásticas, - sobretudo porque quese sempre utiliza o humor. (CANDIDO, FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA, 1992)

Porém, em alguns casos, a crônica vai um pouco além do coloquialismo e

chega no campo da poesia. Isso acontece quando o cronista utiliza analogias para

criar um imaginário na mente do leitor. Para isso, precisa ultrapassar um pouco os

limites da realidade, sem se afastar totalmente dela.

Para ver além da banalidade, o cronista vê a cidade com os olhos de um bêbado ou de um poeta: vê mais do que a aparência, e descobre, por isso mesmo, as forças secretas da vida. Não se limita a descrever o objeto que tem diante de si, mas o examina, penetra-o e o recria, buscando sua essência, pois o que interessa não é o real visto em função de valores

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consagrados. É preciso ir mais longe, romper as conceituações, buscar exatamente aquilo que caracteriza a poesia: a imagem. (SÁ, 1985, p. 48)

Outro ponto importante da crônica é que ela, geralmente, representa o

primeiro contato das pessoas com a literatura. Embora seja publicada em meios de

comunicação, a maior finalidade da crônica não é informar o destinatário, mas refletir

sobre o acontecido, sobre as notícias veiculadas nos meios de comunicação.

Segundo o escritor Marcelo Coelho (CASTRO, GALENO, 2002), a crônica é

um texto literário dentro do jornal e sua função é a de ser uma espécie de avesso,

negativo da notícia. Na visão de Antonio Olinto (2008), o artista, neste caso o

escritor e o cronista, “buscam colocar, na aparente gratuidade dessas notícias, um

sentido capaz de permanência, uma mensagem que consiga atingir o ponto em que

todos os homens se unem, a essência humana das pessoas, onde o tempo não tem

presença”.

Sobre isso, Jorge de Sá diz que a crônica é

aprofundar a notícia e deflagrar uma profunda visão das relações entre os fatos e as pessoas, entre cada um de nós e o mundo em que vivemos e morremos, tornando a existência mais gratificante. (…) Logo, o jornal nos dá notícias da vida e da morte; a crônica nos faz compreender a coexistência desses dois elementos que se opõem, mas não se excluem. (SÁ, 1985, p. 56)

Na crônica também estamos diante de experiências do homem comum,

expressas em linguagem simples e publicadas regularmente na imprensa, como

afirma o escritor Manuel da Costa Pinto (2005). A matéria-prima destes textos são os

fatos do dia a dia, as notícias curiosas, acasos e encontros muitas vezes

surpreendentes, acontecimentos e momentos de nostalgia, enternecimento ou

indignação compartilhados pelo cronista e os leitores. Ainda de acordo com Costa

Pinto, a linguagem da crônica busca captar o lirismo contido na simplicidade, a

poesia embutida no diálogo das ruas, o encanto das gírias e dos palavrões e o sabor

dos clichês linguísticos. Mas também pode significar a busca por melhorias na

sociedade e a solução para problemas que acontecem diariamente, como cita

Antonio Olinto.

A vida diária está cheia de necessidades. Ruas mal calçadas, desastres, irresponsabilidades, corrupções, subornos, desonestidades – ou gestos de heroísmos, de desprendimento, de simplicidade – tudo isto faz parte do acontecer de todos os dias e cada um de nós sente que tem de opinar,

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atacar ou defender, tentar influir no assunto. No decorrer de suas atividades cotidianas, o homem sente necessidade de ser combativo. Pessoas, ideias, diretrizes, dogmas religiosos, sistemas políticos, empreendimentos, tudo isto atrai sua capacidade de luta, obrigando-o à defesa ou ataque, em nome de um princípio que julga ser o certo, em nome da justiça. Utiliza-se principalmente da palavra. O que serve de base ao poema, ao conto, ao romance, também é usado para o combate violento, para a expressão de um movimento de ódio e de revolta. (OLINTO, 2008, p.23)

Um dos aspectos que mais chama atenção no modo de escrever dos

cronistas é que seus textos lembram uma conversa informal entre amigos. Aos

mesmo tempo em que podem ser uma reflexão sobre acontecimentos, também

acabam informando possíveis leitores desatualizados.

Diversos autores já definiram a crônica como um relato de fatos cotidianos,

sob a visão do escritor. José Marques de Melo (CASTRO, GALENO, 2007) diz que

as notícias que vemos todos os dias nos jornais são o ponto de partida para os

cronistas e, a partir de seus textos, os leitores podem ver o outro lado, uma nova

visão sobre os acontecimentos e sobre a sociedade. Ou seja, a crônica é a adição

de elementos literários em um espaço tradicionalmente destinado a notícias.

2.1.1 Trajetória

A história da imprensa no século XIX, de acordo com Héris Arnt (2002), se

confunde com a própria história do acesso do povo à leitura, nos países europeus e

nos Estados Unidos. Com os escritores cada vez mais presentes no meio

jornalístico, a qualidade dos textos melhorou e isso levou os jornais a aumentarem

as tiragens, criando um público para a literatura. Esse aumento das tiragens dos

jornais tornou-se possível pelo grande desenvolvimento industrial da época e as

obras literárias que eram impressas neles contribuíram para integrar uma grande

camada da população ao círculo de leitores. Isso se deu porque, na época, os livros

ainda eram muito caros para os assalariados e o jornal conseguiu preencher essa

necessidade por literatura, publicando folhetins, romances e contos.

Segundo Héris, o jornalismo literário não se refere à imprensa especializada

em literatura, que foi um fenômeno que nasceu com os jornais e perdura até hoje.

Jornalismo literário é um estilo que se desenvolveu no século XIX e se caracterizou

pela forte presença de escritores na imprensa e pela publicação de crônicas, contos

e folhetins.

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A partir daí, com a influência dos escritores no jornalismo, o jornal se tornou

mais variado, apresentando textos com um olhar mais sutil sobre a sociedade. Esse

formato se firmou na primeira metade do século XX, motivado principalmente pela

realização da Semana de Arte Moderna de 1922, evento que ampliou a cultura

brasileira, inclusive no setor literário e existe até hoje.

A crônica aparece como o lado positivo de nossa problemática identidade nacional: a uma realidade apequenada, sem alcance ou possibilidade de utopia, corresponde um gênero que dá cor e forma às miudezas da vida cotidiana, que encontra no humor, no deboche e na banalidade uma expressão saudável dessa informalidade social que, em outros momentos, mascara desigualdades econômicas, autoritarismo e confusão entre as esferas públicas e privadas. Ironicamente, portanto, a crônica surge de uma espécie de complexo de inferioridade da sociedade e da literatura brasileiras, para se transformar num gênero autenticamente brasileiro, com um acervo de textos cuja riqueza poucas potências literárias conseguiram acumular. (PINTO, 2005, p.10)

No Brasil, o jornalismo literário pode ser delimitado entre o período

inaugurado por Manuel Antônio de Almeida, que publicou seu romance no folhetim

do Correio Mercantil intitulado Memórias de um sargento de milícias, entre 1852 e

1853, e as primeiras décadas do século XX, quando nasce o jornal/empresa e

começa a diminuir a influência literária.

Porém, conforme ressalta Héris, o declínio do jornalismo literário não

representa o fim da participação dos escritores no jornal. Inclusive, da passagem

deles pela imprensa, a crônica fica como herança. Dessa forma, jornalismo e

literatura não se separam mais. As notícias dos jornais informam, mas as crônicas

também assumem esse papel, com a diferença de que a informação contida nelas

ultrapassa os limites do factual e se torna fonte de conhecimento social e histórico.

Este aspecto de fonte de informação liga intrinsecamente a crônica ao

cotidiano e à cidade e o estilo literário lhe garante a perenidade. Por isso, como se

caracteriza pela forte presença da visão do autor sobre fatos cotidianos, a crônica

tornou-se um gênero em que se misturam informações factuais e crítica opinativa.

O jornalismo informativo pretende ser isento e objetivo, suprindo as necessidades básicas de informação da sociedade. O jornalismo de opinião é crítico, marcado pela tomada de posição e defesa de ideias políticas e filosóficas. (…) O jornalismo literário faz, então, a interseção entre informação e opinião. Os escritores, ao assumirem funções de editores, articulistas, cronistas e autores de folhetim, vão dar uma nova feição ao jornal, (…) um meio em que se imiscuem notícia, opinião, divertimento e cultura. (ARNT, 2002, p.15)

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A crônica, ao inserir a literatura na imprensa, tem um papel importante na luta

pela liberdade de expressão, pois acaba se tornando uma maneira indireta de

questionar o sistema político e os problemas gerais de uma sociedade. Mas, como

observa Cristiane Costa (2005), se no passado a censura aos órgãos de imprensa

foi um incentivo à busca de um espaço ficcional, para os autores de hoje, a literatura

não é mais sinônimo de liberdade de pensamento, mas sim de expressão subjetiva e

liberdade para experimentação formal. Segundo ela, a questão não é mais política,

mesmo para os que reclamam do pensamento único veiculado pela imprensa, mas

existencial e estética.

No Brasil, o jornalismo literário e a crônica também tiveram grande

importância na criação dos principais fundamentos do romance brasileiro e na

divulgação de obras literárias de grandes autores, como José de Alencar e Machado

de Assis.

Mas, antes de se consolidar em solo brasileiro, a crônica teve dois

antecedentes históricos, de acordo com Manuel da Costa Pinto (2005): 1) o ensaio,

que une experiência autobiográfica e reflexão sobre o mundo com uma lapidação

estilística que transforma sua leitura em algo comparável à fruição de um romance;

2) o familiar essay de origem inglesa, gênero de comentário e devaneio pessoal

veiculado em jornais pelos chamados “folhetinistas”.

Os ensaios nasceram no século XVI, pelas mãos do filósofo francês Michel

Eyquem de Montaigne, ao compor sua obra Ensaios, de 1580. Sua intenção era

produzir algo leve, uma forma simples e informal de ver o mundo. Ou esboços de

literatura, tradução literal do termo ‘essais’. O ensaio se refere ao texto literário

conciso, livre de convenções e formalidades, a meio caminho entre a linguagem

poética e a instrutiva. Por meio dele, é possível discorrer sobre qualquer temática

segundo o ângulo subjetivo de seu autor.

Essas características do ensaio foram incorporadas pela crônica, que acabou

fazendo grande sucesso na imprensa brasileira. Segundo Costa Pinto, o momento

em que este novo gênero perde os vestígios de seus antecessores europeus,

transformando-se na forma de expressão do brasileiro sentir e se situar no mundo se

dá a partir dos anos 1950 e 1960, com cronistas como Rubem Braga, Paulo Mendes

Campos, Nelson Rodrigues e Fernando Sabino. Após o apogeu, a crônica manteve

a tradição de sua forma de escrita cultivada pelos maiores poetas e prosistas de

todos os tempos, como José de Alencar, Machado de Assis e Carlos Drummond de

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Andrade. Assim, este gênero jornalístico e literário tornou-se, ao longo do tempo, a

versão tropical do gênero inglês, ou seja, a crônica é o modo brasileiro de perceber

e representar a realidade.

2.1.2 Características

Uma das características mais marcantes da crônica é o coloquialismo e,

segundo o escritor Manuel da Costa Pinto (2005), foi exatamente essa maneira de

escrever, que se aproxima de um diálogo entre o autor e o leitor, que fez com que a

crônica fizesse tanto sucesso na imprensa brasileira. Hoje, um jornal sem cronista é

um jornal que corre o risco de perder leitores, pois entre tantas notícias, muitas

vezes desagradáveis, a crônica surge como um desvio de rota, uma outra maneira

de olhar para o mundo e de encaixar os acontecimentos na nossa própria vida.

Isso se torna possível pois o emissor está ciente de quem são seus

receptores, ou seja, o cronista constrói o texto sabendo que ele será publicado em

um meio de comunicação onde o público tem poder de resposta. Assim, as crônicas

possibilitam a interação dos leitores, direta ou indiretamente.

Outra característica da crônica é a leveza e a naturalidade na escrita. Luiz

Beltrão (1980) cita a definição do escritor Ralph L. Lowenstein para a crônica. Ele diz

que “o noticiário representa para o jornalista o seu pão de cada dia e a crônica

representa a sobremesa. Ela permite ao jornalista afastar-se do controle frio,

analítico e objetivo do noticiário e trabalhar com o coração. Dá-lhe oportunidade de

ser subjetivo, emotivo, terno e, sobretudo, criador.”

E foi com essa maior liberdade na hora da escrita que, de acordo com Manuel

da Costa Pinto (2005), os cronistas conseguiram superar o abismo entre língua

escrita e língua falada, entre linguagem literária e linguagem coloquial. Mas, como

observa Jorge de Sá (1985), isso acontece “sem que o narrador caia no equívoco de

compor frases frouxas, sem a magicidade da elaboração, pois ele não perde de vista

o fato de que o real não é meramente copiado, mas recriado.” (SÁ, 1985, p.11)

Assim, o coloquialismo presente nas crônicas deixa de ser apenas uma transcrição

do dia a dia e acaba nos levando a outra característica desses textos: o dialogismo.

Além disso, ao mesmo tempo em que fala coisas sem maior consequência, a crônica

também entra fundo no significado dos atos e sentimentos do homem, chegando,

muitas vezes, à crítica social.

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Parece às vezes que escrever crônica obriga a uma certa comunhão, produz um ar de família que aproxima os autores acima da sua singularidade e das suas diferenças. É que a crônica brasileira bem realizada participa de uma língua geral lírica, irônica, casual, ora precisa e ora vaga, amparada por um diálogo rápido e certeiro, ou por uma espécie de monólogo criativo. (CANDIDO, FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA, 1992)

Candido também ressalta uma característica marcante da crônica, que é a

durabilidade, em contraponto às notícias dos jornais. Mesmo sendo feita para eles, a

crônica não perde o sentido ao ser publicada em um livro e isso acontece porque

este gênero usa a palavra de forma com que ela não se dissolva no contexto, mas

ganhe relevo, permitindo que o leitor a sinta de formas diferentes, de acordo com

suas vivências pessoais. Segundo Luiz Beltrão (1980), os cronistas, por não terem

que se submeter à pressão do tempo reduzido, podem aperfeiçoar mais os seus

textos, o que pode acabar tornando-as antológicas e perenes, fato que constitui

exceção no exercício da atividade jornalística.

Ainda segundo ele, a variedade de temas presentes nas crônicas fez com que

surgissem diversas classificações para ela. Quanto à natureza do tema, elas podem

ser gerais, também chamadas de colunas ou seções especiais, quando o autor

aborda os mais diferentes assuntos em uma localização ou página fixa do jornal;

locais, quando o autor é pautado pela vida cotidiana de sua própria cidade; ou

especializadas, quando o autor focaliza apenas assuntos referentes a um campo

específico de atividade, como política, por exemplo.

Já quanto ao tratamento dado ao tema, as crônicas podem ser analíticas,

onde os fatos são expostos ao leitor de forma breve e objetiva por meio de uma

linguagem sóbria e elegante; sentimentais, em que predomina o apelo à

sensibilidade do leitor, ou seja, o cronista explora os aspectos líricos de um assunto,

podendo até utilizar a linguagem poética em substituição à prosa; ou satírico

humoristas, em que o objetivo é criticar, ridicularizando ou ironizando fatos, ações ou

personagens, com a intenção de advertir ou entreter o leitor.

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3 MARTHA MEDEIROS

Martha Medeiros, gaúcha de Porto Alegre, começou sua carreira na área

publicitária, mas encontrou seu caminho na literatura. Sua paixão pelo mundo

literário surgiu com a poesia e, mais tarde, foi convidada para colaborar como

cronista em periódicos brasileiros, como o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e O

Globo, do Rio de Janeiro.

A maior característica dela é o fato de as notícias que saem diariamente nos

jornais acabarem pautando suas crônicas. Dessa forma, jornalismo e literatura se

tornam cada vez mais próximos e até mesmo se confundem em alguns casos. As

crônicas de Martha Medeiros são uma reflexão sobre acontecimentos, mas também

podem informar possíveis leitores desatualizados. E a escritora consegue fazer tudo

isso de forma simples, escrevendo de maneira que consiga atingir o maior número

de leitores. Martha utiliza uma linguagem coloquial, como se estivesse sentada em

uma mesa de bar com amigos, conversando sobre as manchetes do noticiário.

Como observa Gisele Ribeiro (2008), a literatura serve para quebrar a

neutralidade que o jornalismo domina e Martha Medeiros consegue fazer

exatamente isso, pois acaba com a rigidez das notícias usando a literatura e a

poesia em seus textos. “A literatura acaba por incrementar os textos da autora que

trabalha com fatos (…). Martha cria um texto mais atraente e de fácil entendimento

pelos leitores de maneira geral.” (RIBEIRO, 2008, p.67)

Essas características já citadas podem ser percebidas na maioria, senão em

todos, dos seus textos. Por isso, parece que Martha já tem uma fórmula exata e a

estrutura certa para montar suas crônicas e desenvolver suas narrativas.

Normalmente, ela começa abordando uma situação cotidiana, o tema que será o

centro de sua crônica, depois desenvolve esse tema e conclui com uma reflexão e

sua opinião. Ou seja, suas crônicas têm finais parecidos, um padrão pré-

estabelecido e mantido pela autora durante sua carreira. Isso não deixa de ser uma

estratégia, já que em seus textos ricos em detalhes, observações, argumentos e até

mesmo uma certa dose de humor ela encontrou a receita que funciona com seus

leitores.

Martha passeia pelos diversos tipos de crônica. Vai desde a crônica cotidiana que coloca o mundo e o leitor em contato, se caracterizando pela presença de lirismo, passando pela classificação descritiva quando a autora

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descreve situações e episódios da vida corriqueira, até a crônica dissertativa, onde absorve um papel mais crítico e ligado a denúncias, com argumentação e opinião. Além de muitas vezes usar elementos humorísticos para descontrair o texto. Faz de seus textos uma conversa bem impessoal, esbanja naturalidade e fica muito próxima de seu público. (RIBEIRO, 2008, p.68)

Martha desenvolve dois lados marcantes em suas crônicas. Um deles é o que

torna seus textos uma espécie de consultório terapêutico, onde os conflitos e

experiências humanas são expressados por ela de forma poética e sutil, dando

enfâse na complexidade do homem. “É possível sentir o que ela está escrevendo.”

(RIBEIRO, 2008, p.68). O outro lado de Martha é aquele mais crítico, onde ela

assume uma postura mais séria, sem deixar de lado a leveza na hora da escrita. É

quando ela usa como inspiração acontecimentos do mundo, notícias ruins ou até

curiosas que estampam as páginas dos jornais diariamente, e busca neles um outro

sentido, algo que, por algum motivo, passou despercebido pelo leitor do jornal. A

autora, de certa forma, mostra o lado B do noticiário e traz para perto até mesmo o

acontecimento mais distante da realidade de seus leitores.

3.1 Trajetória e Obra

Martha Medeiros nasceu em Porto Alegre no dia 20 de agosto de 1961 e

formou-se em Comunicação Social na PUC-RS. Sua carreira começou na área de

Publicidade e Propaganda, quando trabalhou como redatora e diretora de criação

em várias agências da capital gaúcha. Ao mesmo tempo em que atuava como

publicitária, Martha também começou a escrever poesias e publicou vários livros

neste segmento.

Em 1993, a autora deixou de lado a Publicidade e resolveu dedicar-se à

literatura. Para isso, mudou-se para Santiago do Chile, onde viveu por oito meses.

Lá, sua carreira de escritora deslanchou. Ao voltar para o Brasil, ainda em 1993,

Martha começou a escrever crônicas para o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, onde

mantém sua coluna até hoje. Depois de retornar ao Brasil, Martha ainda publicou

diversos livros de poesia.

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3.1.1 Strip-Tease

Primeiro livro de poesia da autora, Strip-tease foi lançado em 1985 na série

Cantadas Literárias, que publicou obras de jovens poetas nos anos 80, pela Editora

Brasiliense, e também publicou autores como Paulo Leminski, Chacal e Alice Ruiz.

Nessa obra, por meio da metáfora da voz feminina, é possível perceber um pouco

da realidade e da mente da mulher dos anos 80. A escritora, na época com 24 anos,

traz em seus poemas marcas da feminilidade e também do feminismo, sempre com

seu jeito irreverente de escrever.

O título do livro é inusitado e revela um pouco do que a autora quer trazer

com os poemas nele publicados. Martha escreve como se estivesse fazendo um

jogo de sedução com o leitor, revelando aos poucos tudo o que estava escondido,

de forma intencional e que tem por objetivo muito mais do que apenas ser vista. Por

meio de seus poemas, a autora se despe e interage com o leitor. Assim, o corpo e a

voz feminina tornam-se objeto e sujeito.

3.1.2 Meia-Noite e um Quarto, Persona non grata e De cara lavada: Poesia

Reunida

O livro Poesia Reunida, lançado em 1998, é uma seleção de poesias de

Martha Medeiros feita a partir dos livros Strip-Tease (1985), Meia-Noite e um Quarto

(1987), Persona Non Grata (1991) e De Cara Lavada (1995). Com ele, já era

possível perceber o quanto Martha era admirada pelo público e pelos críticos,

tornando-se um dos expoentes da geração de poetas revelados no final dos anos

80.

De acordo com o poeta brasileiro Bruno Tolentino, as Poesias Reunidas de

Martha Medeiros são uma leitura imperdível e compulsiva. Com sua típica leveza na

hora de escrever, a autora traz ao seus leitores, ainda segundo Tolentino, “a

pungência que consola e o sorriso que dói”, tudo contribuindo para a plenitude de

sua voz incomum.

3.1.3 Geração Bivolt

Apesar de ter se aventurado na poesia, o sucesso de Martha Medeiros se

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deve ao seu talento para escrever crônicas. Em 1995, ela publicou seu primeiro livro

deste gênero, Geração Bivolt, em que reuniu artigos publicados no caderno Donna

do jornal Zero Hora, além de textos inéditos. De acordo com crítica escrita pelo

jornalista Augusto Nunes, neste livro a autora “deita seu olhar simultaneamente

agudo e amável sobre a convivência entre homens e mulheres. Como nascemos

uns para os outros, sugerem os textos reunidos neste livro, não seria má ideia

remover de vez preconceitos e outras velharias que anulam a possibilidade do

efetivo conhecimento recíproco. Geração Bivolt localiza com graça, talento e

finíssima ironia, alguns dos caminhos que conduzem a esse conhecimento. E, por

isso mesmo, nos deixam mais distantes das cavernas de onde todos viemos.”

3.1.4 Santiago do Chile

Em 1996, lançou o guia Santiago do Chile – Crônicas e dicas de viagem,

resultado do tempo em que viveu na capital chilena. Por meio dos textos desta

publicação, Martha relata a alma dos chilenos, seus costumes, seus principais

pontos turísticos, tudo com o seu estilo próprio de escrever. De acordo com Letícia

Amaral Carlan, “demonstrando desenvoltura ao trilhar pelas ruas da cidade, a autora

revela, com bom humor, algumas intimidades dos santiaguinos, ensina a escapar

das armadilhas do portunhol, traz dicas de sobrevivência no trânsito e entrega

segredos de alcova: lugares que só os nativos conhecem e que não constam nos

guias oficias.” (CARLAN, 2012)

3.1.5 Topless

Já em Topless (1997), seu segundo livro de crônicas, Martha reúne 54

crônicas que revelam o porquê de ela ser conhecida como uma das mais

importantes cronistas do Brasil, como observa Gisele Ribeiro (2008). “Ao olhar para

o cotidiano, a escritora transforma o trivial em crônica e a crônica em poesia da

atualidade.” (RIBEIRO, 2008, p.45)

Como grande observadora e poeta que é, Martha Medeiros analisa, comenta

e traz para o debate todas as normalidades e esquisitices do homem e da mulher

moderna, com suas neuroses e anseios, medos e expectativas, fazendo um retrato

de nossa época. Comenta filmes e livros, fala sobre o medo da morte, sobre o

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casamento, tudo numa prosa ágil e leve. Este livro rendeu à autora o Prêmio

Açorianos de Literatura no ano seguinte de sua publicação.

3.1.6 Trem-bala

Apesar do prêmio conquistado com o livro anterior, o livro considerado seu

best-seller no gênero é a coletânea Trem-bala (1999). O sucesso deste livro foi tanto

que ele acabou ganhando uma adaptação para o teatro, sob direção de Irene

Brietzke. O livro reúne mais de uma centena de textos de Martha Medeiros. Neles, a

autora reflete sobre as mulheres, os relacionamentos, seus escritores e livros

preferidos, entre outros assuntos. “Com texto direto, que consegue ser comunicativo

e profundo ao tratar do cotidiano das pessoas, Martha passa ao leitor poesia e

opinião.” (RIBEIRO, 2008, p.45)

3.1.7 Cartas Extraviadas e Outros Poemas

Na sinopse do site Skoob, é dito que Cartas Extraviadas e Outros Poemas,

publicado em 2000, é um nervo exposto. Martha Medeiros, nesta obra, volta para o

mundo da poesia e traz versos que têm a ver com a vida de cada um de seus

leitores. Em cada poema, estão presentes fatos do cotidiano de sua geração,

ambientados em esquinas escuras, sessões de cinema, quartos de hotel e cenas

banais. Martha revela em seus poemas e nas cartas, por algum motivo, extraviadas,

a realidade de cada pessoa pertencente à multidão.

3.1.8 Non Stop

No livro Non Stop (2001) estão reunidas mais uma leva de crônicas da autora

e desta vez o tema principal é o cotidiano. Por meio de seus textos, ela consegue

extrair da complexidade da modernidade, uma reflexão que atinge de forma sensível

o seu público. Em uma das crônicas do livro, intitulada Para sempre, até quando?,

ela fala sobre a busca do ser humano pela felicidade eterna, o que às vezes faz com

que ele se acomode e torne sua própria vida monótona.

Tem muita gente que se distrai e é feliz pra sempre, sem conhecer as

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delícias de ser feliz por uns meses, depois infeliz por uns dias, felicíssimo por uns instantes, em outros instantes achar que ficou maluco, então ser feliz de novo em fevereiro e março, e em abril questionar tudo o que se fez, aí em agosto ser feliz porque uma ousadia deu certo, e infeliz porque durou pouco, e assim sentir-se realmente vivo porque cada dia passa a ser um único dia, e não mais um dia. (MEDEIROS, 2001, p.244)

Partindo do tema cotidiano, Martha faz uma ligação entre o grande mundo

que todos veem pela televisão e o pequeno e anônimo mundo de cada um de nós.

O dia a dia das milhares de pessoas que circulam pela cidade grande com suas

incertezas, alegrias, dúvidas, paixões, dramas e esperanças são narrados e pela

autora neste conjunto de crônicas.

3.1.9 Divã

Em 2002, Martha resolveu se aventurar além da crônica e lançou o romance

Divã. Neste livro, a personagem Mercedes conta a sua história: uma mulher com

mais de 40 anos, casada, com filhos, que resolve fazer análise pela primeira vez,

inicialmente por brincadeira, mas que acaba se tornando um ato de libertação. Por

meio de uma narrativa simples, mas envolvente, os leitores entram na vida de

Mercedes e vivenciam os conflitos internos da personagem. Entre eles, a vontade

de viver coisas intensas.

Sempre desprezei as coisas mornas, as coisas que não provocam ódio nem paixão, as coisas definidas como mais ou menos. Um filme mais ou menos, um livro mais ou menos. Tudo perda de tempo. Viver tem que ser perturbador, é preciso que nossos anjos e demônios sejam despertados, e com eles sua raiva, seu orgulho, seu asco, sua adoração ou seu desprezo. O que não faz você mover um músculo, o que não faz você estremecer, suar desatinar, não merece fazer parte da sua biografia. (MEDEIROS, 2002, p.51)

Na verdade, o mundo inventado por sua protagonista é inspirado na realidade

que ela descreve em suas crônicas. Ao deitar-se no divã, Mercedes não hesita em

alertar o terapeuta: "Sou tantas que mal consigo me distinguir. Sou estrategista,

batalhadora, porém traída pela comoção. Num piscar de olhos fico terna e delicada.

Acho que sou promíscua, doutor Lopes. São muitas mulheres numa só, e alguns

homens também. Prepare-se para uma terapia de grupo." Com seu texto simples e

brilhante, Martha seduz os leitores com uma narrativa envolvente e catalizadora. Ao

final da leitura, todos são cúmplices das loucuras, conflitos e questões existenciais

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da personagem e, dessa forma, Martha consegue fazer o leitor se sentir deitado, ele

mesmo, no seu próprio divã.

3.1.10 Montanha-Russa

“Eu não gosto de montanha-russa, o brinquedo, mas gosto de montanha-

russa, a vida”, declara Martha Medeiros na crônica Felizes para sempre. E talvez

essa frase defina a grande ideia deste livro. Montanha-Russa, lançado em 2003, não

é diferente das outras coletâneas de crônicas de Martha. Segundo lugar no Prêmio

Jabuti e vencedor do Prêmio Açorianos, o livro reúne textos que foram publicados no

jornal Zero Hora e no site Almas Gêmeas entre setembro de 2001 e agosto de 2003.

Mais uma vez ela oferece aos leitores sua visão sobre acontecimentos do cotidiano

e da vida moderna.

Montanha-Russa é como a autora vê a vida, com suas engrenagens à mostra, provocando-nos vertigens e frio na barriga, mas sempre dando vontade de dar mais uma volta. O leitor é convidado a dar um passeio pelo sincero, franco e irreverente texto da autora, que pousa o olhar sobre as coisas mais corriqueiras, traz à luz o inusitado e faz confissões politicamente incorretas e inconfessáveis reflexões. (CARLAN, 2012, p. 47)

Montanha-russa, como cita o site da Editora L&PM, mostra os dois lados de

Martha Medeiros: o lado tenso e o lado incorrigível e irremediavelmente otimista,

bem-humorado e de bem com a vida.

3.1.11 Esquisita como eu

Martha também escreveu um livro infantil em 2004, Esquisita como eu. Nele,

a autora fala sobre as esquisitices do ser humano, pela voz de uma menina que se

pergunta por que todos acham que ela é diferente. “Com uma narrativa em verso,

divertida e com muito ritmo, a autora aborda o cotidiano das crianças e as faz

pensar sobre o comportamento das pessoas.” (CARLAN, 2012, p. 48)

A personagem, ao olhar para si mesma, acaba achando os outros muito

iguais, mesmo que o livro mostre aos pequenos leitores as esquisitices de cada um.

Um livro muito alegre e colorido, em que a ilustradora Laura Castilhos usa técnicas

diversas, como papel maché, papelagem, recorte, colagem e pintura sobre papel,

para dar efeitos mágicos de volume.

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3.1.12 Coisas da Vida

Coisas da Vida (2005) reúne textos publicados nos jornais Zero Hora e O

Globo, entre setembro de 2003 e setembro de 2005. Neste livro, Martha descreve as

manias e os anseios de homens e mulheres urbanos e modernos, fazendo um

retrato da época. Com sinceridade e texto dinâmico, suas principais características,

a autora relata e explica a vida da sociedade consumista e, muitas vezes,

conformista, e faz tudo isso pelo seu ponto de vista, pois nunca se exclui de suas

considerações. Entre os temas tratados neste livro, está a demasiada importância

que é dada ao dinheiro. Na crônica intitulada Money, Money, Martha diz que hoje

em dia as pessoas “se humilham, se vendem, se prostituem das mais diversas

formas. Por quê? Porque nada mais faz sentido nesta vida senão o dinheiro. E

quanto mais vivemos em função dele, mais miseráveis ficamos.” (MEDEIROS, 2005,

p.72)

Em suas crônicas, Martha Medeiros dá espaço a todas as normalidades e

esquisitices do homem moderno: o sentimento de frustração, o tic-tac do relógio

biológico feminino, a necessidade de dinheiro versus a necessidade de sossego,

mulheres que decidem não ter filhos, o progressivo apagamento das fronteiras entre

um e outro sexo, máquinas de provocar orgasmos, choros, filmes, livros e músicas,

a delícia e a tragédia de amar duas pessoas ao mesmo tempo, a delícia e a tragédia

de não amar ninguém e tantas outras coisas da vida.

3.1.13 Selma e Sinatra

Selma e Sinatra (2005), seu segundo livro de ficção, narra a história de Guta,

uma mulher de 41 anos, jornalista, três livros publicados, mas nenhum sucesso

literário. Em um momento de sua carreira, decide escrever a biografia de Selma,

uma cantora de 70 anos que marcou época, ou seja, é um trabalho que pode lhe

render reconhecimento e fama. Os primeiros encontros com a cantora, porém, são

bem menos promissores do que ela tinha imaginado. Tudo na vida de Selma tinha

dado certo, desde a infância até a velhice. Então como escrever um livro intenso e

apaixonante se tudo parece tão parecido com uma comédia romântica da sessão da

tarde? Contudo, os encontros vão provocar mudanças nas duas mulheres e a

história ganha um andamento sutil e ao mesmo tempo profundo.

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“A convivência humana é um teatro sem fim”, define Selma, em um dos

capítulos. E são muitos os personagens deste teatro que as duas, em um certo

momento, irão perceber que vivem dentro delas mesmas. O quarto onde ocorrem os

encontros entre biógrafa e biografada se transformará num palco de enfrentamento,

onde todos os personagens que vivem em Guta e Selma serão revelados, sob a

ótica leve e precisa de Martha Medeiros.

3.1.14 Tudo que eu queria te dizer

Entre livros de poesia e crônicas, Martha Medeiros também lançou uma

coletânea de cartas, Tudo que eu queria te dizer (2007). As cartas abordam temas

como traição, amores não correspondidos, problemas com a família. Com elas,

Martha lida com situações diversas e, em sua maioria, embaraçosas do universo

humano.

O que você sempre quis dizer a alguém - e nunca teve coragem? O que

precisa falar de uma vez por todas - mas desiste, espera, até chegar o momento

mais apropriado? As respostas que cada um daria para estas perguntas estão nas

cartas dos personagens que Martha Medeiros encarna neste livro. Em comum, todos

eles atravessam um ponto de virada em suas vidas e resolvem colocar, literalmente,

as cartas na mesa.

Martha Medeiros, com sua capacidade de emocionar, de forma simples e

direta, transformou Tudo que eu queria te dizer em um livro de contos, estruturados

de forma independente. Na forma de cartas, a autora revela com delicadeza os

dramas das personagens. Entre eles, a amante que escreve à mulher traída, o

jovem motorista que escreve à mãe do amigo morto num acidente de automóvel, ou

a viúva saudosa que se dirige ao marido morto. Um pouco de cada leitor está em

cada uma dessas vozes, que expressam através de cartas uma confissão ou o

exorcismo de seus demônios.

3.1.15 Doidas e Santas

De volta às coletâneas de crônicas, Martha Medeiros lançou Doidas e Santas

(2008), livro que reúne mais de cem textos da autora que expõem os anseios de sua

geração e de sua época. As alegrias e desilusões, os dramas e as neuroses da vida

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urbana, o prazer que se esconde no dia a dia, os mistérios da maternidade, enfim, o

cotidiano de cada um tornou-se o principal tema da autora. Além disso, neste livro,

mais especificamente no texto Os bastidores da crônica, ela trata do cotidiano dos

próprios cronistas.

Você toca profundamente o coração de uma senhora e com o mesmo texto enoja um estudante. Uma professora te agradece a contribuição em sala de aula, outra proíbe que os alunos te convoquem. Você defende as minorias e alguns vibram com a referência, outros tem certeza que é deboche. E nem ouse citar Deus em suas crônicas, apenas em suas preces. É uma aventura a cada linha, uma salada mista a cada ponto de vista. Franco atiradores a serviço da reflexão, todos nós, os daí e os de cá, sabemos um pouco de tudo e muito do nada, e salve o bom humor diante desta anarquia, já que de algum jeito há que se ganhar a vida. (MEDEIROS, 2008, p.40)

Martha, com sua sensibilidade incomum, mostra aos leitores seu olhar e sua

reflexão sobre qualquer simples acontecimento do cotidiano, com base no seu gosto

pela cultura contemporânea e no seu senso de humor impecável.

3.1.16 Fora de Mim

Em Fora de Mim (2010), outro livro de ficção de Martha, a autora mergulha

mais uma vez nos sentimentos humanos, desta vez aqueles originados pela perda,

comparada por ela a um acidente de avião, em que os sobreviventes “percebem a

perda de altitude, a potência enfraquecida das turbinas e o desastre iminente, até

que acontece a parada definitiva da aeronave.” (MEDEIROS, 2010, p.9). A narrativa

começa no momento da despedida, da queda, no momento em que a personagem

tem a certeza de que já não há mais volta. Aos poucos, o leitor vai entendendo a

trama e compreende como tudo aconteceu. Recém-separada de um casamento

longo e pacífico, a protagonista se apaixona por outro homem, de personalidade

conturbada, com quem vive uma intensa paixão.

Em Fora de mim, a autora vai ainda mais fundo na descrição de sentimentos

universais provocados por uma perda. Consciente do que lhe está acontecendo, a

personagem pressente que no fundo daquela relação só acabaria encontrando a

escuridão da dor. Mesmo assim, dá o salto. E perde. A entrega, nesta história, é um

vício sem saída.

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3.1.17 Feliz por nada

Novamente no universo das crônicas, Feliz por nada (2011), volta com o olhar

de Martha sobre o cotidiano e as questões urgentes do século XXI. Nesta coletânea

com mais de 80 textos, a autora aborda variados temas próximos da realidade de

seus leitores. Como ressalta Letícia Amaral Carlan (2012), Martha tem o dom de

aproximar assuntos por vezes fugidios de questões universais, como o amor, a

família e a amizade, e criar lugares de reconhecimento para o leitor.

“Dentro de um abraço é sempre quente, é sempre seguro. Dentro de um

abraço não se ouve o tic-tac dos relógios e, se faltar luz, tanto melhor. Tudo o que

você pensa e sofre, dentro de um abraço se dissolve.” É com a força transformadora

de um abraço que Martha Medeiros abre este livro e é com a mesma simplicidade

que ela também trata de assuntos sérios. “Feliz por nada”, afirma Martha Medeiros,

é fazer a opção por uma vida conscientemente vivida, mais leve, mas nem por isso

menos visceral.

3.1.18 Noite em Claro

Em Noite em Claro (2012), Martha volta para a ficção onde, na solidão de seu

apartamento, uma mulher narra sua noite de insônia. O livro conta uma história de

relacionamentos marcados por frustrações, dor e prazer. Como cita o site da L&PM,

encorajada pelo champanhe, sem nenhuma censura, ela vai contando sua vida

enquanto chove lá fora. O livro só terminará com o último pingo de chuva. Noite em

Claro é um convite de Martha à reflexão.

3.1.19 Um Lugar na Janela

Em Um Lugar na Janela (2012), Martha Medeiros retorna, depois de muito

tempo, para os relatos de viagem. Diferente do que fez em Santiago do Chile, seu

primeiro livro neste estilo, aqui ela narra suas experiências em diversos lugares do

mundo. Nada nos textos de Um Lugar na Janela é inventado, tudo aconteceu de

verdade e faz parte das lembranças da autora. Martha compartilha com seus leitores

viagens realizadas em várias épocas de sua vida, aos vinte e poucos anos e sem

dinheiro, depois, com mais estrutura mas com o mesmo espírito aventureiro e com

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diversos acompanhantes: amigas, namorado, filhas, marido e até mesmo sozinha.

Um lugar na janela mantém o estilo de escrever crônicas de Martha Medeiros, pois a

forma como tudo é contado faz com que o leitor se sinta companheiro de viagem da

autora.

3.1.20 A Graça da Coisa

No seu último livro, A Graça da Coisa (2013), Martha tenta mostrar aos

leitores, por meio de oitenta crônicas, que a grande questão é se desapegar daquilo

que é desnecessário, que nos faz mal, que nos atrasa, e enxergar exatamente

aquilo que dá nome ao livro. Precisamos encontrar a graça da coisa, sendo a

“coisa”, no caso, a própria vida. Martha, com sua leveza no momento da escrita, nos

ensina a rir de nós mesmo, a se reinventar, estar aberto a encontrar o amor onde

menos se espera, saber ouvir, ou seja, dar valor para as coisas menores, para as

pequenas atitudes que nos levam a uma vida menos estressada e mais

surpreendente. Desde a sua primeira obra até este, que é seu mais recente livro,

Martha consegue tratar da melhor forma de assuntos que são do interesse e da

vivência de todos os seus leitores. E faz tanto sucesso exatamente por isso. Ao se

identificarem com o que a autora escreve, os leitores dos jornais e dos seus livros,

não lhe abandonam. É como se fosse uma verdadeira amizade entre o emissor e o

receptor da mensagem literária – e, por que não, jornalística.

3.2 Desdobramentos da obra

O talento de Martha Medeiros e o grande número de fãs que ela reuniu ao

longo dos anos, fez com que suas obras fossem muito além das páginas dos jornais

e dos livros. O romance Divã (2002), por exemplo, que foi seu primeiro livro de

ficção, ganhou uma adaptação para o teatro a pedido da atriz Lilia Cabral. A peça foi

vista por mais de 175 mil pessoas, ao longo de 150 apresentações.

Após o sucesso nos palcos, em 2009, o livro também se transformou em

filme, com direção de Daniel Filho, tendo Lilia Cabral no papel principal e levando

mais de 1,8 milhão de espectadores ao cinema. Mas Divã ainda rendeu mais para

Martha. Em maio de 2011 ele serviu de base para uma série televisiva de mesmo

nome, na Rede Globo. Na série, porém, a história começa de onde parou no livro,

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sendo uma continuação para a narrativa da autora. O que permanece igual são as

características dos personagens e o tema central da trama – uma mulher com mais

de 40 anos, que muda sua vida após consultar um psicanalista – para apresentar

novas situações. A ideia da adaptação para a televisão foi do diretor Jayme

Monjardim e o resultado foi uma média de 20 pontos no Ibope e 40% de

participação no horário.

Além de Divã, em 2010 outros dois livros de Martha foram adaptados para o

teatro: Doidas e Santas, peça protagonizada e produzida pela atriz Cissa

Guimarães, e o monólogo Tudo que eu queria te dizer, interpretado pela atriz Ana

Beatriz Nogueira. Na TV, as crônicas da autora também serviram de base para a

série Mulheres em Transe, que foi ao ar na RBS TV em abril de 2012.

A autora também já escreveu em um blog, dentro do site clicRBS, criado em

22 de abril de 2008. A ferramente colaborou com a propagação dos textos de

Martha e aumentou sua popularidade, pois com a informalidade da internet ela

acabou expressando suas opiniões de forma mais intensa e variada. Além disso, a

conversa entre a autora e os leitores que, de certa forma, já existia nas suas

crônicas de jornal e de livro, com o blog se tornou real. Isso porque os internautas

podem comentar os textos, dando suas próprias opiniões a respeito do que leem.

Em dados de agosto de 2009, foram registradas 33.806 visitas ao blog por mês. No

entanto, ele foi encerrado em 24 de março de 2011. No último texto que publicou no

blog, Martha justifica o término pela falta de tempo, mas não descarta a

possibilidade de voltar a produzi-lo.

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4 MARTHA MEDEIROS E O COTIDIANO

Esta pesquisa busca compreender a relação entre jornalismo e literatura e a

maneira como o noticiário influencia e inspira as produções literárias. O objeto de

estudo serão 12 crônicas de Martha Medeiros publicadas nos livros Trem-Bala

(1999), Montanha-Russa (2003), Coisas da Vida (2005), Doidas e Santas (2008) e A

Graça da Coisa (2013).

Da relação entre jornalismo e literatura, a crônica é o gênero que mais se

sobressai e que conquistou há muito tempo os leitores dos jornais diários e das

revistas. Embora seja publicada em meios de comunicação, a maior finalidade da

crônica não é informar o destinatário, mas refletir sobre o acontecido.

O que motivou a escolha de Martha Medeiros para esta análise é o fato de

que muitos de seus textos são inspirados em notícias que saem diariamente nos

jornais. Dessa forma, jornalismo e literatura se tornam cada vez mais próximos e até

mesmo se confundem em alguns casos. Ao mesmo tempo que os textos da autora

refletem sobre um determinado acontecimento, também podem informar leitores

desatualizados. E ela consegue fazer isso de maneira simples, usando linguagem

coloquial.

A escolha por esse tipo de linguagem e a inspiração em fatos do noticiário

não é novidade no mundo da crônica. Diversos autores já definiram este gênero

como um relato de fatos cotidianos, sob a visão do escritor. José Marques de Melo

(CASTRO, GALENO, 2007) diz que as notícias que vemos todos os dias nos jornais

são o ponto de partida para os cronistas e, a partir de seus textos, os leitores podem

ver o outro lado, uma nova visão sobre os acontecimentos e sobre a sociedade.

Hoje, nos jornais, a crônica pode ser considerada um desvio de rota, uma

outra maneira de olhar para o mundo e de encaixar os acontecimentos, que muitas

vezes parecem algo tão distante, na nossa própria vida. Assim, ao dispensar uma

linguagem mais rebuscada e optar pelo coloquialismo, a crônica acaba se

aproximando mais da realidade do autor e ajuda a estabelecer ou restabelecer a

dimensão das coisas e das pessoas, como afirma o escritor Antonio Candido

(FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA, 1992).

Ele também ressalta que as crônicas possuem a característica da

durabilidade, ao contrário das notícias dos jornais. Mesmo sendo feitas para eles, a

crônica não perde o sentido ao ser publicada em um livro e isso acontece porque

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este gênero usa a palavra de forma com que ela não se dissolva no contexto, mas

ganhe relevo, permitindo que o leitor a sinta de acordo com seus próprios valores.

Assim, esta análise tem como objetivo entender a forma como Martha

Medeiros constrói suas crônicas a partir de notícias dos jornais e como o noticiário

também pode virar literatura. Com isso, o estudo fará a ponte entre jornalismo e

literatura.

4.1 Metodologia

A presente monografia é uma pesquisa qualitativa com análise de conteúdo.

Quem melhor define esta técnica é Wilson Correa da Fonseca Júnior, que diz que a

análise de conteúdo é uma técnica de investigação destinada a formular, a partir de

certos dados, inferências reproduzíveis e válidas que podem se aplicar a seu

contexto (Fonseca Júnior apud Krippendorff, p.284).

Na análise de conteúdo, a inferência é considerada uma operação lógica destinada a extrair conhecimentos sobre os aspectos latentes das mensagens analisadas. (FONSECA JUNIOR apud BARDIN, 2000, p.284)

Uma análise de conteúdo deve conter os seguintes marcos de referência que

Fonseca Júnior cita, com base em Krippendorff: os dados, que são os elementos

básicos da análise de conteúdo e a superfície da pesquisa; o contexto dos dados,

que precisa ser delimitado de acordo com as convenções e problemas práticos de

cada disciplina, pois uma mesma mensagem pode ser analisada de forma

diferenciada em áreas distintas; o conhecimento do pesquisador, pois é isto que vai

determinar a construção do contexto dentro do qual serão realizadas suas

inferências; o objetivo da análise de conteúdo, que é a finalidade da pesquisa; as

inferências, que são deduções e relações dos dados obtidos com alguns aspectos

de seu contexto; e a validade como critério de sucesso, já que a validação dos

resultados é importante para que outras pessoas possam comprovar se as

inferências apresentadas na pesquisa são de fato exatas.

O pesquisador Martin Bauer define a análise de conteúdo como um método

de análise de texto desenvolvido dentro das ciências sociais empíricas, onde, cada

vez mais, a atenção está voltada para as qualidades e distinções encontradas no

corpus do texto, antes de qualquer quantificação relacionada a ele.

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A análise de texto faz uma ponte entre um formalismo estatístico e a análise quantitativa dos materiais. No divisor quantidade/qualidade das ciências sociais, a análise de conteúdo é uma técnica híbrida que pode mediar esta improdutiva discussão sobre virtudes e métodos. (BAUER, 2003, p.55)

Seguindo estes conceitos, a análise de conteúdo reduz a complexidade de

um texto e produz inferências sobe ele com base no seu contexto social, de maneira

objetivada. De acordo com Bauer, através da reconstrução de representações, os

analistas de conteúdo inferem a expressão dos contextos e o apelo através destes

contextos. “Se enfocarmos a fonte o texto é um meio de expressão. Fonte e público

são o contexto e o foco de inferência. Um corpus de texto é a representação e a

expressão de uma comunidade que escreve”, define ele. Dessa forma, o resultado

de uma análise de conteúdo é a variável independente, a coisa a ser explicada.

Bauer explica ainda que os procedimentos de uma análise de conteúdo

reconstroem representações em duas dimensões: a sintática e a semântica.

Procedimentos sintáticos se enfocam nos transmissores de sinais e suas inter-

relações, descrevendo os meios de expressão e influência, ou seja, como algo é dito

ou escrito. Já os procedimentos semânticos dirigem seu foco para a relação entre os

sinais e seu sentido normal – sentidos denotativos e conotativos em um texto.

4.1.1 Pré-Análise

O objeto de estudo desta análise são as crônicas da escritora Martha

Medeiros e a maneira como ela transforma notícias comuns e curiosas do noticiário

em literatura. Temas do dia a dia dos leitores de jornais acabam se tornando

atemporais a ponto de irem parar nas páginas de livros.

Uma das hipóteses para o sucesso da autora nesta questão é o fato de ela

escrever no limite entre ficção e realidade. Ao mesmo tempo que o tema utilizado

por Martha na maioria dos seus textos são acontecimentos reais, do cotidiano, eles

também fazem uma ponte com o imaginário do leitor, com questões subjetivas.

Outra hipótese para essa apropriação que a autora faz com os temas do dia a

dia é uma de suas características principais: o uso da linguagem coloquial nas

crônicas. Ao ler Martha Medeiros é impossível não se sentir no meio de uma

conversa com a autora. É como se ela estivesse falando diretamente para cada um

de seus leitores, expondo seu ponto de vista sobre acontecimentos locais e

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mundiais e, ao mesmo tempo, abrindo espaço para uma possível intervenção do

público.

A terceira e última hipótese apresentada por esta pesquisa é a maneira como

Martha Medeiros olha para o cotidiano, encontrando em cada notícia um detalhe que

lhe permita construir um texto com olhar simples e profundo, ao mesmo tempo.

Dessa forma, o jornalismo se aproxima e se une cada vez mais com a literatura.

Assim, o objetivo desta análise é demonstrar como Martha Medeiros valoriza

o gênero crônica, dando ênfase na fronteira entre jornalismo e literatura.

4.1.2 Análise

Como foi citado anteriormente, o corpus desta análise serão 12 crônicas

escritas por Martha Medeiros e publicadas em jornais e posteriormente em livros, ao

longo de sua carreira. Elas foram escolhidas por se tratarem de textos que foram

inspirados em notícias publicadas pela mídia jornalística em diversos períodos.

A opção por crônicas já publicadas em livros deve-se ao principal objetivo do

trabalho: entender como o jornalismo pode virar literatura, ou seja, como as notícias

do nosso cotidiano ganham perenidade por meio dos livros. A seguir, o corpus da

pesquisa é descrito de forma mais detalhada. Apresenta-se o título, a data, a notícia

ou assunto a que se refere e o livro em que foram publicadas as crônicas que serão

analisadas.

Título: A avalanche foi sem querer

Data: Fevereiro de 1998

Assunto: Alpinistas brasileiros mortos no pico do Aconcágua (Argentina)

Livro: Trem-Bala (1999)

Título: Maníacas pela fama

Data: Agosto de 1998

Assunto: Maníaco do Parque do Estado (SP)

Livro: Trem-Bala (1999)

Título: O mal é contagioso

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Data: Março de 2002

Assunto: Pediatra que abusava sexualmente seus pacientes adolescentes

Livro: Montanha-Russa (2003)

Título: Money, Money

Data: Agosto de 2004

Assunto: Incêndio em hipermercado no Paraguai

Livro: Coisas da Vida (2005)

Título: Pipocas

Data: Junho de 2006

Assunto: Primeira vitória do Brasil na Copa do Mundo de 2006

Livro: Doidas e Santas (2008)

Título: Hoje e depois de hoje

Data: Outubro de 2006

Assunto: Eleição presidencial de 2006

Livro: Doidas e Santas (2008)

Título: O violinista no metrô

Data: Abril de 2007

Assunto: Jornal Washington Post convidou o violinista Joshua Bell para tocar numa

estação de metrô

Livro: Doidas e Santas (2008)

Título: Mato, logo existo

Data: Abril de 2007

Assunto: Sul-coreano responsável por massacre em universidade americana

Livro: Doidas e Santas (2008)

Título: Quando menos se espera

Data: Outubro de 2011

Assunto: Cantada de fiscal a uma universitária após blitz

Livro: A Graça da Coisa (2013)

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Título: Último Pedido

Data: Junho de 2012

Assunto: Indonésia anuncia que irá fuzilar brasileiro que entrou no país com drogas

em 2003

Livro: A Graça da Coisa (2013)

Título: Suicídio e Recato

Data: Janeiro de 2013

Assunto: Suicídio do ator Walmor Chagas

Livro: A Graça da Coisa (2013)

Título: Deus em promoção

Data: Março de 2013

Assunto: Pastor Marco Feliciano pede o cartão de crédito dos fiéis em troca de

milagres de Deus

Livro: A Graça da Coisa (2013)

4.1.2.1 A avalanche foi sem querer (ANEXO A)

Em 1998, cinco alpinistas brasileiros tentavam chegar ao pico do Aconcágua

na Argentina, quando a temperatura mudou e eles se viram no meio de uma

avalanche. Três deles, Mozart Catão, Alexandre Oliveira e Othon Leonardos,

morreram. De acordo com a notícia publicada no Jornal Folha de S. Paulo (ANEXO

B), em 6 de fevereiro de 1998, a busca pelos alpinistas era muito arriscada, pois a

qualquer momento poderia haver um deslizamento. Além disso, o local que os

brasileiros estavam, na parede sul do Aconcágua, é o mais perigoso para resgates.

Os dois sobreviventes da tragédia, Dálio Zippin Neto e Ronaldo Franzen

Junior, passaram por 30 minutos que marcaram suas vidas, como cita a reportagem

da Folha de S. Paulo. “Foi o momento em que Othon Leonardos, enregelado e com

uma perna quebrada em vários pontos, despediu-se dos companheiros pelo rádio,

pediu que eles enviassem recordações para o pai, a mãe e a namorada e fez, ainda,

uma solicitação típica de quem se conforma com a situação. ‘Tomem um vinho por

mim’, falou, enquanto sua voz ia sumindo.”

O alpinista de 23 anos ainda pediu que seu pai fosse avisado que “a

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avalanche foi sem querer”. E foi esta frase, tão ingênua e repleta de emoção, que

inspirou a crônica de Martha Medeiros. No texto publicado no livro Trem-Bala (1999),

a autora faz uma comparação entre a aventura dos alpinistas e as nossas aventuras

do dia a dia.

A aventura deles era mais emocionante que a nossa. Nossa aventura é atravessar a avenida Carlos Gomes sem ser atropelada, fazer um rancho sem estourar o orçamento, chegar à noite em casa sem ser assaltada, atravessar uma enchente sem ser engolida pelas águas, enfrentar filas de banco, conseguir leito num hospital. Nossas avalanches diárias têm motivo: descaso, relaxamento, falta de infra-estrutura, contingências sociais. Nossa loucura não é romântica e nosso estresse não acontece num cenário de Walt Disney. (MEDEIROS, 1999, p. 57)

Essa analogia de Martha Medeiros entre o objetivo destes alpinistas, que era

chegar no topo do Aconcágua, e os nosso objetivos de vida e do cotidiano se

encaixam em duas características básicas do Jornalismo Literário citadas por José

Domingos de Brito (2008): a imersão, pois a autora teve que entender todos os

momentos da história da notícia e, de certa forma, se imaginar no lugar dos

alpinistas; e a humanização, pois ela trouxe para perto um acontecimento que,

muitas vezes, pode parecer tão distante da nossa realidade.

Como também ressalta José Domingos de Brito, um repórter narrativo

“precisa utilizar sua inteligência emocional para se deixar tocar sensorialmente pelo

tema que aborda, pela ressonância interior causada pelas pessoas com as quais irá

lidar.” (BRITO, 2008, p. 22) E foi exatamente isso que Martha fez nessa crônica. É

possível perceber sua emoção diante do fato em cada palavra do texto. E, ao final,

ela encerra o assunto com a constatação de que, apesar de termos muitas coisas

em comum com os alpinistas, em uma coisa nos diferenciamos deles. Enquanto

Othon Leonardos disse que “a avalanche foi sem querer”, nós, ao nos depararmos

com alguma dificuldade, sempre pensamos que a avalanche é culpa dos outros.

Assim, a autora faz com que o leitor pare para pensar.

O objetivo dela, com esta crônica, é mostrar o outro lado de uma notícia tão

trágica, é fazer o leitor perceber que avalanches não acontecem só no Aconcágua,

elas estão presentes na vida de cada um, diariamente. Só é preciso saber a forma

certa de lidar com elas.

Ao atingir o objetivo desta crônica, de abrir os olhos dos leitores para suas

próprias vidas, Martha confirma as três hipóteses desta pesquisa. Ela escreve no

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limite entre ficção e realidade, pois cita fatos reais presentes na notícia dos alpinistas

e mistura com acontecimentos hipotéticos, como a intenção de uma pessoa de ter

filhos, ou escrever um livro, por exemplo. Martha também utiliza a linguagem

coloquial, escrevendo de uma maneira simples. E a simplicidade também está

presente na forma como ela traz o assunto do noticiário para sua crônica,

confirmando assim a terceira hipótese.

4.1.2.2 Maníacas pela fama (ANEXO C)

A notícia publicada na Folha de S. Paulo (ANEXO D) no dia 14 de julho de

1998 relata o caso do Maníaco do Parque do Estado, que fica na zona sudeste de

São Paulo. Na ocasião, estavam sendo investigados três casos de estupro em

Diadema (SP) que poderiam ter relação com os crimes cometidos pelo maníaco.

Além disso, a reportagem também revela informações sobre as vítimas que

foram violentadas e mortas no Parque do Estado. “A secretária P.C.S. foi abordada

na Praça da República (região central) por um homem que lhe propôs tirar fotos para

uma empresa de cosméticos. Ele a levou de ônibus ao parque, onde estaria uma

equipe de filmagem. Após entrar numa trilha, ele a agarrou pelo braço. Amarrou,

abusou sexualmente da vítima, ameaçou matá-la e foi embora.” As outras vítimas

também foram atraídas pelo maníaco com a mesma proposta.

Partindo dessas informações sobre o caso, Martha Medeiros constrói sua

crônica abordando exatamente o fato de as mulheres terem sido atraídas pela

possibilidade de ficarem famosas. E traz para os seus leitores o avesso, o negativo

da notícia, que é uma das funções da crônica definidas por Marcelo Coelho

(CASTRO, GALENO, 2002). Esse avesso fica claro no segundo parágrafo da

crônica.

Lamento a morte cruel e precoce dessas meninas, e Francisco tem que ficar enjaulado para sempre, pois ele não é apenas um maníaco. Francisco é o Assassino do Parque, o Tarado do Parque, o Psicopata do Parque. Maníacas eram as vítimas, obcecadas por tornarem-se modelos. (MEDEIROS, 1999, p.111)

Ao enxergar o outro lado dos acontecimentos e passar a considerar as

vítimas como as verdadeiras maníacas da história – pela fama, como já anuncia o

título -, Martha vai além dos limites do jornalismo, que apenas apresenta os fatos

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concretos. Além disso, ela comprova a teoria de Luiz Beltrão (1980), que diz que a

crônica “ultrapassa os limites da ideologia restrita do editor, dos princípios gerais e

das teses orgânicas da empresa, dos compromissos e diretrizes que esta mantém e

busca traçar para o comportamento público” (BELTRÃO, 1980, p.64).

O que deixa a crônica concisa e longe de ser apenas uma opinião de Martha

Medeiros solta nas páginas do jornal, é o fato de essa opinião vir acompanhada de

informações reais e outros casos parecidos que já aconteceram e que comprovam a

teoria da autora. E com isso, ela segue relatando o outro lado do caso do maníaco e

de outros crimes parecidos, mostrando que a culpa também pode ser das vítimas.

Se alguém as chamasse para fazer um teste de datilógrafa ou para um estágio numa indústria de salsichas, a maioria iria perguntar o nome da empresa, o salário, a carga horária, e ainda assim desconfiaria dessa oferta caída dos céus em tempo de tanta demanda. Mas a possibilidade do estrelato cega e emburrece. As garotas tornam-se incapazes de acionar o alarme interno, pois acreditam que o final da história compensará o risco. (MEDEIROS, 1999, p.112)

Martha encerra o texto tentando abrir os olhos dos leitores – nesse caso, as

mulheres – que acabam se deixando levar pela ideia da fama. Para isso, usa sua

habitual “moral da história”, presente na maioria de seus textos. E comprova as

hipóteses da pesquisa, escrevendo na linha tênue entre ficção e realidade,

conversando com suas leitoras com palavras informais e falando sobre o tema de

acordo com seu ponto de vista, apresentando-o para o público de forma simples e

de fácil entendimento.

4.1.2.3 O mal é contagioso (ANEXO E)

Em notícia publicada pela Folha Online (ANEXO F), versão para a internet do

jornal Folha de S. Paulo, é exposto o caso do pediatra Eugenio Chipkevitch,

acusado de sedar e violentar sexualmente seus pacientes adolescentes. Na notícia

do dia 28 de março de 2002, ele afirma que não cometeu o crime, mesmo existindo

provas contra ele.

De acordo com a Folha Online, “a suspeita sobre a conduta do pediatra veio à

tona após exibição, no dia anterior à prisão, de imagens de um lote de 35 fitas no

‘Programa do Ratinho’, do SBT.” Além das fitas, o promotor que acompanhava o

caso entregou ao delegado 47 fotos com imagens das gravações, que foram

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digitalizadas e tiveram alguns trechos “congelados” nas fotos. Foram 35

adolescentes abusados pelo pediatra.

Com base nesta notícia, Martha Medeiros inicia sua crônica, O mal é

contagioso, e usa trechos da música homônima de Dado Villa-Lobos, Gustavo

Dreher e Fausto Fawcett para ilustrar seu pensamento. Ao tratar de um assunto tão

chocante, ela ressalta exatamente o contrário: mostra como já não nos chocamos

tanto com tamanha violência. Da mesma forma, Martha leva em conta o fato de que

o pediatra acusado era um dos mais celebrados do país, estava acima de qualquer

suspeita. Em relação a isso, a autora leva sua crônica adiante mostrando aos

leitores como qualquer pessoa, que aparentemente parece ser inofensivo e incapaz

de fazer mal a alguém, pode ser um assassino ou algo parecido.

Nesta crônica, Martha Medeiros foge um pouco do seu estilo convencional de

escrever, onde introduz o assunto, desenvolve o mesmo e termina com uma espécie

de moral da história. Aqui, ela simplesmente organiza seus pensamentos em partes

durante o texto, sem se preocupar com uma ordem específica e une cada uma

dessas partes com trechos da música já citada anteriormente. E mostra aos leitores,

de forma subentendida, o quanto está assustada com o assunto e com fatos

parecidos com este que acontecem no mundo inteiro.

Antônio Olinto diz que “o que serve de base ao poema, ao conto, ao romance,

também é usado para o combate violento, para a expressão de um movimento de

ódio e de revolta.” (OLINTO, 2008, p.23). E é exatamente isso que acontece nessa

crônica. O texto de Martha, assim como os trechos da música escolhida por ela são

baseados na revolta que todos nós sentimos diante de fatos assustadores, como

este caso do pediatra. Ao mesmo tempo, eles traduzem o medo de descobrir o mal

em pessoas que julgamos boas e também de descobrí-lo dentro de nós mesmos,

como cita Martha no final do texto.

Somos todos parecidos e muito bem-intencionados, de longe ninguém é do mal, mas de perto a surpresa, nossas diferenças não se baseiam mais em escolaridade, poder aquisitivo, berço: a natureza selvagem do homem tem berrado mais alto que as convenções, e nos apavora, amanhã poderemos ter medo não só de ser vítima, como de ser o agressor. (MEDEIROS, 2003, p. 51)

Dessa forma, Martha, além de ressaltar o que já estava claro após a leitura da

notícia, ou seja, o medo de encontrar o mal em pessoas que aparentemente nem

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desconfiamos, também mostra o outro lado da história. Neste lado, como diz o título

de seu texto, “o mal é contagioso” e nós também estamos encaixados nesta

categoria de pessoas de bem, que podem esconder o mal dentro de si. Assim, ela

confirma as hipóteses da pesquisa, escrevendo entre ficção e realidade, usando o

estilo de conversa coloquial – dessa vez utilizando até trilha sonora – e olhando para

os fatos do noticiário com seu próprio viés.

4.1.2.4 Money, Money (ANEXO G)

O site da Revista Época (ANEXO H) publicou no dia 2 de agosto de 2004

informações sobre o incêndio ocorrido em um hipermercado paraguaio. Até o

momento da publicação, 311 pessoas haviam morrido, sendo que mais 276 estavam

feridas. A notícia relata que o fogo começou na cozinha do estabelecimento, após a

explosão de um cano de gás. Em seguida, as chamas tomaram todo o local e as

portas se fecharam. “Para o capitão [dos Bombeiros Voluntários do Paraguai], a

tragédia poderia ter sido evitada se as portas do supermercado da cadeia Ikúa

Bolaños não tivessem sido bloqueadas, de acordo com testemunhas, para controlar

possíveis saques durante o incêndio.”

Ou seja, as pessoas foram impedidas de sair do local para que ninguém

saísse sem pagar suas compras. Por causa disso, o proprietário da cadeia de

supermercados, Juan Pío Pavía, teve decretada sua prisão preventiva.

Martha Medeiros, na crônica Money, Money olha para este caso abordando o

tema dinheiro. A notícia paraguaia não inicia seu texto, mas aparece como base

para os apontamentos da autora. Além disso, ela usa o caso como um exemplo de

atitudes gananciosas que as pessoas costumam ter atualmemte.

Nesta crônica, também fica completamente visível a maneira como a autora

escreve, abusando do coloquialismo. De acordo com Héris Arnt (2002), o poder do

envolvimento entre público e obra é a principal característica do estilo e Martha

consegue fazer isto neste texto, que a cada frase se parece mais com uma conversa

informal.

A autora usa expressões como “encrenca”, “grana”, “um tal de Romário”, além

de metáforas e frases que dialogam com o leitor, como no trecho:

Eu gosto de dinheiro, você também gosta, todo mundo gosta. Não é pecado

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nenhum. O dinheiro possibilita que a gente viva com dignidade e prazer, e tanto uma coisa quanto a outra é de primeira necessidade. Mas há um limite entre o que se deve e o que não se deve fazer por dinheiro. Trabalhar por dinheiro? Básico. Apostar na loteria? Se você tem sorte, tente. Uma herança? É justo. Mesada? Sendo pirralho demais pra trabalhar, ok, mesada. E vamos encerrando o primeiro parágrafo por aqui, porque agora vem a parte podre, chamada ganância. (MEDEIROS, 2005, p.71)

Nesta parte do texto, ela também cria situações hipotéticas, trazendo um

pouco da ficção para o caso real que aborda. Além disso, sua simplicidade na hora

de escrever, faz com que a mensagem que ela quer passar para os leitores seja

entendida facilmente. “Porque nada mais faz sentido nesta vida senão o dinheiro. E

quanto mais vivemos em função dele, mais miseráveis ficamos.” (MEDEIROS, 2005,

p.72) Com esta lição, dada de forma tão simples, a autora encerra a crônica.

4.1.2.5 Pipocas (ANEXO I)

Copa do Mundo de 2006, primeira vitória do Brasil. “Quem esperava ver o

time de Carlos Alberto Parreira, com seu quadrado mágico, encantar na estreia da

Copa, se lembrou do velho Parreira, o campeão em 1994, nos EUA. Aquele do

insistente toque de bola, do jogo burocrático, lento, sem criatividade. Foi assim que

ele iniciou, na Alemanha, a busca de seu segundo título mundial. Foi salvo por um

lampejo de Kaká, eleito o melhor em campo, que, em um de seus poucos momentos

de inspiração, deu a vitória ao time de Parreira.” Assim é descrito o primeiro jogo do

Brasil no mundial da Alemanha pela reportagem da Folha de S. Paulo (ANEXO J),

do dia 14 de junho de 2006.

E foi exatamente esse “lampejo de Kaká”, como a reportagem define, que

inspirou a crônica Pipocas, de Martha Medeiros. Completamente tomado por

metáforas, o texto começa falando sobre o momento em que a autora criou a

comparação de pessoas com pipocas. Segundo ela, durante os jogos da Copa do

Mundo, todos ficam “enclausurados dentro de suas panelas” esperando o momento

do gol, da vitória, ou seja, o momento de explodir e virar pipoca. E ainda dá uma

lição àqueles que não se misturam, que não se contagiam com a alegria e a emoção

de uma vitória brasileira: são os piruás, os milhos que não estouram na panela.

Todas essas metáforas que Martha Medeiros usa são consideradas por

Felipe Pena (2006) como um dos traços básicos do Jornalismo Literário, ou seja, a

autora usa símbolos para explicar seu raciocínio. Além disso, ela comprova outra

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teoria do autor.

Outra característica do movimento [Jornalismo Literário] é o tom informal, declaratório, quase sem preocupações com a elegância estilística, o que não siginifica pobreza vocabular, mas sim o desejo de expressar a linguagem das ruas e se aproximar da atmosfera retratada. (PENA, 2006, p. 61)

Durante todo o texto, Martha parece estar dialogando com seus leitores, como

no trecho em que diz “Não me olhe com essa cara, juro que estou em pleno domínio

das minhas faculdades mentais”, sobre o fato inusitado de estar escrevendo uma

crônica sobre futebol. Ou na parte em que pergunta, de forma completamente

coloquial “Sabe aquele milho que sobra na panela e se recusa a virar um floquinho

branco, macio e alegre? Piruá”. É quase como se a resposta tivesse sido dada em

conjunto com todos os seus leitores, numa roda de conversa.

Com isso, ao escrever de forma coloquial, ao unir a realidade à ficção, no

momento em que utiliza metáforas e ao olhar de outra maneira para um assunto,

que em época de Copa do Mundo, se torna tão repetitivo, Martha Medeiros encaixa

o texto Pipocas em todas as hipóteses desta pesquisa, confirmando-as.

4.1.2.6 Hoje e depois de hoje (ANEXO K)

“A campanha para a Presidência da República chega ao dia da eleição com

resultado indefinido. Segundo pesquisa Datafolha realizada ontem e anteontem em

todo o país, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, tem 50% dos votos

válidos, exatamente o mesmo índice de todos os seus adversários somados. Com

isso, é impossível saber se o petista será reeleito hoje em primeiro turno ou se

disputará o cargo contra Geraldo Alckmin, do PSDB, no próximo dia 29.” É assim

que inicia a reportagem da Folha de São Paulo (ANEXO L), do dia 1º de outubro de

2006, sobre a eleição presidencial daquele ano.

Este é o assunto que pauta a crônica Hoje e depois de hoje de Martha

Medeiros. Porém, enquanto os jornais mostram os índices de pesquisas sobre as

eleições e insistem na importância de cada cidadão ir até as urnas para dar seu

voto, a autora ressalta outro lado dessa história.

A crônica se apresenta como um texto literário dentro do jornal, e que sua

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função é a de ser uma espécia de avesso, de negativo da notícia. Cada notícia procura a todo custo convencer o leitor de que determinado fato é importante, é crucial. A crônica vai sempre insistir na desimportância de tudo. (CASTRO, GALENO, 2002, p. 156)

É justamente a desimportância das eleições que está presente na crônica de

Martha. Em vez de convencer seus leitores a escolherem um candidato, os

impulsiona a fazerem outros tipos de escolhas, que segundo ela, fazem muito mais

diferença na vida, como entrar ou não num negócio ou sorrir ou não para alguém,

por exemplo.

Poderíamos estar aqui conversando – eu daqui, você daí – sobre a calamidade social que o país não consegue conter, sobre como está difícil ter esperança, e quantas decepções já engolimos, mas hoje não, justamente hoje que seria o dia, vamos evitar esta discussão aborrecida e pegar um atalho, outro caminho, lembrar de quanta coisa já escolhemos e que deu certo, em quanta gente depositamos nossa confiança e que não nos faltou, em como já sofremos por pouca coisa e por muita coisa, e por todas elas nos tornamos mais fortes e preparados, então que venha o que vier, nada há de nos pegar desprevenidos, política nunca é mesmo algo muito original: mesmo sem bola de cristas podemos visualizar no horizonte o que irá repetir-se. (MEDEIROS, 2008, p. 107)

Além disso, durante toda a crônica, mais uma vez o seu estilo de escrita em

tom de conversa coloquial está presente, assim como a união entre ficção e

realidade, quando utiliza metáforas para comparar escolhas do dia a dia com

eleições. Martha, neste texto, consegue dar um outro significado para este dia que

parece tão importante para a democracia. Mostrando um pouco da sua

desimportância, a autora permite que os leitores possam respirar e pensar em outras

coisas, mesmo em meio a um turbilhão de informações repetitivas sobre política.

4.1.2.7 O violinista no metrô (ANEXO M)

“Não se trata da oposição entre informar ou entreter, mas sim de uma atitude

narrativa em que ambos estão misturados. Não se trata nem de jornalismo, nem de

literatura, mas sim de melodia.” (PENA, 2006, p.21) É exatamente com melodia que

Martha Medeiros desenvolve esta crônica. Ela foi inspirada no caso noticiado pelo

site Terra (ANEXO N), no dia 10 de abril de 2007. Na ocasião, o famoso violinista

americano Joshua Bell foi convidado para tocar em em uma estação de metrô da

capital americana, a fim de avaliar a reação das pessoas que passassem por ali.

Um trecho da notícia relata essa reação. “Ao longo dos 43 minutos em que

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tocou, o violinista arrecadou US$ 32,17 – posteriormente doados para instituições

beneficentes –, valor bem abaixo dos US$ 100 que os amantes da sua música

pagaram três dias antes por assentos razoáveis (não os melhores) no Boston

Symphony Hall, que na ocasião teve lotação esgotada. Na estação L’Enfant Plaza,

fora dos grandes palcos e tendo como única companhia seu violino, Bell só foi

reconhecido por uma pessoa, e poucas a mais pararam para ouvi-lo por alguns

instantes.” Este fato fez com que Martha refletisse sobre como anda a nossa cultura

atualmente, já que, segundo ela, “não estamos preparados para a beleza pura: é

preciso um mínimo de conhecimento para valorizá-la.” (MEDEIROS, 2008, p.139)

Só é possível valorizar aquilo que foi estudado e percebido em sua grandeza. Se eu não me informo sobre o valor histórico de uma moeda que circulava na época dos otomanos, ela passa a ser apenas uma pequena esfera enferrujada que eu não juntaria do chão. Se eu não conheço o significado que teve uma muralha para a defesa dos grandes impérios, ela vira apenas um muro passível de pichação. Se não reconheço certos traços artísticos, um vitral de Chagall passará tão despercebido quanto o vitral de um banheiro de restaurante. Podemos viver muito bem sem cultura, mas a vida perde em encantamento. (MEDEIROS, 2008, p.139)

Além destes, muitos outros exemplos são dados por Martha para demostrar

que o caso do violinista é só mais um entre tantas desvalorizações culturais que

acontecem atualmente, em qualquer parte do mundo. Além de não estarmos

preparados para reconhecer o valor de uma música, por exemplo, ela atribui este

problema à forma como fomos acostumados a olhar para a cultura e, de certa forma,

gostar apenas daquilo que todo mundo gosta e conhece. O desconhecido, o que não

está nos holofotes, como ela mesma diz, passa despercebido pela maioria. Esta

maneira que a autora utilizou para justificar sua explicação para o fato se encaixa

em uma teoria de Felipe Pena (2006), referente ao Novo Jornalismo Novo, uma das

denominações dada ao longo do tempo para o Jornalismo Literário.

O Novo Jornalismo Novo explora as situações do cotidiano, o mundo ordinário, as subculturas. Mas não envereda pela abordagem do exotismo ou do extraordinário, encarando os problemas como sintomas da vida americana. O objetivo é assumir um perfil ativista, questionar valores, propor soluções. (PENA, 2006, p. 60)

Martha encerra o texto justamente tentando achar uma solução para essa

falha na cultura das pessoas, mas acaba apenas refletindo sobre o tema, já que ela

mesma assume, em tom claro e utilizando linguagem simples e urbana, que nunca

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ouviu falar no violinista Joshua Bell. Porém, diz que gostaria de ter estado naquela

estação de metrô e finaliza com uma espécie de moral da história, típica de seus

textos.

O que eu queria era testar minha capacidade de ficar extasiada sem estímulo prévio. Descobrir se ainda consigo destacar o raro sem que ninguém o anuncie. Tenho a impressão de que eu pararia para escutá-lo, mas talvez eu esteja sendo otimista. Vai ver eu também passaria apressada, sem me dar conta do tamanho do meu atraso. (MEDEIROS, 2008, p.139)

Dessa forma, utlizando exemplos fictícios, linguagem simples e olhando para

o fato de outra maneira, sem se surpreender – ao contrário do que a notícia propõe

- Martha confirma as hipóteses dessa pesquisa.

4.1.2.8 Mato, logo existo (ANEXO O)

“Silêncio. Essa é a característica de Cho Seung-hui que desde a sua infância

mais preocupava parentes do estudante sul-coreano. Três dias depois do massacre

que matou 32 pessoas no campus de uma universidade no Estado da Vírginia,

familiares do autor do maior ataque do tipo na história dos EUA começam a

aparecer. Entretanto, os pais de Cho, que se matou após o crime, continuam eles

próprios em silêncio.” É assim que começa a reportagem da Folha de S. Paulo do

dia 20 de abril de 2007 (ANEXO P). E foi esse massacre que inspirou a crônica de

Martha Medeiros.

Ela começa o texto pedindo a compreensão dos leitores, como se eles

estivessem ali mesmo, conversando com ela, para falar sobre um assunto tão

complicado em um domingo, dia da semana em que a crônica foi publicada.

Segundo ela, “não custa reservar dez minutinhos do nosso dia de folga pra refletir

um pouco sobre que espécie de adultos está sendo formada aqui e no mundo”

(MEDEIROS, 2008, p. 140)

E é exatamente essa reflexão que ela oferece a seus leitores. Martha começa

explicando que ficou mais perplexa com a reação de jovens brasileiros diante do

crime, com seus comentários preconceituosos e agressivos, do que com o crime em

si. E, a partir daí, começa uma reflexão sobre os jovens de hoje em dia e a maneira

como se dá a criação deles. Com isso, ela consegue achar um sentido duradouro

para a notícia, colocando em prática a teoria de Antonio Olinto (2008).

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O importante, para o artista, é colocar, na aparente gratuidade das notícias, um sentido capaz de permanência, uma mensagem que consiga atingir o ponto em que todos os homens se unem, a essência humana das pessoas, onde o tempo não tem presença. (OLINTO, 2008, p. 15)

A mensagem que Martha passa é para os pais de adolescentes, para que

cuidem de seus filhos um pouquinho mais de perto e conversem com eles, para que

o silêncio não os torne outros Cho Seung-hui. E, mais uma vez, a autora passa essa

mensagem aos pais como se estivesse diante deles, numa conversa informal,

utilizando sua típica linguagem coloquial.

É preciso chamar essa garotada pro papo quando estiverem silenciosos demais, ajudá-los a compreender essa loucura aí fora (que nem nós compreendemos direito), levá-los pra viajar quando der, colocá-los em contato com hábitos mais simples e escutá-los muito, não importa sobre que assunto. (MEDEIROS, 2008, p. 141)

Dessa forma, Martha também faz valer a teoria de Felipe Pena (2006). Ele diz

que o autor que escreve jornalismo literário, ou como ele define, o Novo Jornalismo

Novo, “explora as situações do cotidiano, o mundo ordinário, as subculturas (…),

encarando os problemas como sintomas da vida americana. O objetivo é assumir

um perfil ativista, questionar valores, propor soluções.” (PENA, 2006, p. 60). É

exatamente isso que Martha faz. Durante toda a crônica, ela apresenta soluções

para que os adolescentes brasileiros não se tornem, eles também, assassinos, e faz

isso apelando para os pais, principais responsáveis pela educação de seus filhos.

Com tudo isso, ela dá perenidade para a notícia e utiliza, de certa forma, a

ficção, criando situações de relacionamento ideais entre pais e filhos. Além disso, é

evidente que a inspiração para o texto só surgiu por meio da sua forma simples e

leve de olhar para a notícia, buscando um significado que vai muito além do

noticiário.

4.1.2.9 Quando menos se espera (ANEXO Q)

A notícia que inspirou essa crônica é inusitada. “Na madrugada de domingo,

na zona sul de Porto Alegre, depois de ser parada na barreira de trânsito e ter sua

Carteira Nacional de Habilitação (CNH) apreendida por se recusar a fazer o teste do

bafômetro na Avenida Wenceslau Escobar, a universitária Wanessa da Silva, 25

anos, disse ter recebido um torpedo de um dos agentes que participara da blitz.” O

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trecho publicado na versão online do jornal Zero Hora no dia 13 de outubro de 2011

(ANEXO R), relata o caso da estudante que, após receber o torpedo do agente

policial, mandou o texto da mensagem para a empresa prestando queixa por uso

indevido de suas informações pessoais e pedindo providências.

Mas, se a notícia já é inusitada, o olhar com que Martha Medeiros olha para

ela é mais inusitado ainda. Mesclando informações reais sobre o caso com sua

visão, de certa forma romântica e ficcional, a autora comprova a teoria de Ralph

Lowenstein, citada por Luiz Beltrão (1980).

O noticiário representa para o jornalista o seu pão de cada dia… a crônica representa a sobremesa. Ela permite ao jornalista afastar-se do controle frio, analítico e objetivo do noticiário e trabalhar com o coração. Dá-lhe oportunidade de ser subjetivo, emotivo, terno e, sobretudo, criador. (LOWENSTEIN apud BELTRÃO, 1980, p.66)

Esse olhar subjetivo e emotivo de Martha fica claro em diversos trechos da

crônica, como quando ela diz que vibra “com essas conspirações do destino” ou

quando lamenta, dizendo que é “duro viver num mundo sem humor”, já que

desaprova a maneira como a universitária reagiu ao torpedo inesperado. Martha,

neste texto, vai contra a maioria das pessoas que, provavelmente, concordariam

com a garota. E com isso, faz jus à teoria que diz que “o propósito da crônica é fixar

um ponto de vista individual, externo aos fatos, externo ao próprio jornal.” (CASTRO,

GALENO, 2002, p. 157)

E a opinião de Martha Medeiros é dada, mais uma vez, por meio da

linguagem coloquial. Ao usar expressões como “esculhambado”, “pê da vida” e “o

amor não dá mole”, ela se aproxima do leitor e faz com que sua visão dos fatos se

torne mais clara, mais fácil de ler. Na verdade, é como se estivéssemos ouvindo a

autora falar tudo isso na nossa frente. Como cita Jorge de Sá, esse dialogismo, tão

presente nos textos da autora, “equilibra o coloquial e o literário, permitindo que o

lado espontâneo e sensível permaneça como o elemento provocador de outras

visões do tema (…)” (SÁ, 1985, p.11)

Assim, o coloquialismo, o uso de ficção misturada com a realidade e a forma

delicada e simples com que Martha Medeiros interpreta esta notícia, encaixam a

crônica Quando menos se espera nas hipóteses da pesquisa e as confirmam.

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4.1.2.10 Último Pedido (ANEXO S)

“O Governo da Indonésia decidiu que o brasileiro Marco Archer Cardoso

Moreira, 50, condenado à morte por tráfico internacional de drogas em 2004, será

executado nas próximas semanas. (…) A execução se dá por fuzilamento. Além

dele, outros dois estrangeiros morrerão, segundo o procurador. A Indonésia não

executa ninguém desde 2008. Segundo o jornal [The Jakarta Post], Marco já fez até

o último pedido: uma garrafa de Chivas Label.” Este trecho foi publicado no jornal

Folha de S. Paulo de 22 de junho de 2012 (ANEXO T) e, apesar de a história ser um

tanto complicada, por tratar da pena de morte, foi esse último e pequeno detalhe, o

pedido de Marco, que inspirou a crônica de Martha Medeiros.

Ela explica durante o texto que os outros estrangeiros que também serão

executados, escolheram ver seus familiares como o último pedido, ao contrário do

brasileiro, que preferiu entornar uma garrafa de uísque. Ao analisar a escolha do

condenado brasileiro, ela foge do julgamento natural que as pessoas dariam a ele, já

que a maioria acharia essa escolha egoísta e insolente. Martha não pensa assim.

Ela olha para o caso com outros olhos, como explica a teoria de Jorge de Sá (1985).

Para ver além da banalidade, o cronista vê a cidade com os olhos de um bêbado ou de um poeta: vê mais do que a aparência , e descobre, por isso mesmo, as forças secretas da vida. Não se limita a descrever o objeto que tem diante de si, mas o examina, penetra-o e o recria, buscando sua essência, pois o que interessa não é o real visto em função de valores consagrados. (SÁ, 1985, p.48)

Fugindo desses valores consagrados, Martha compreende a escolha do

brasileiro que, “depois de tantos anos isolado num país distante, aguardando um

veredito que, se o livrar do fuzilamento, o conduzirá à prisão perpétua, já não

conserva intenções nobres”. (MEDEIROS, 2013, p. 93). E encerra a crônica dizendo

que ela mesma não tem como saber o que faria estando no lugar dele, fazendo o

leitor também pensar se ele mesmo não escolheria a garrafa de Chivas no lugar dos

familiares. Como cita José Castello (2007), ela oferece ao leitor um espaço de

reflexão, “um espaço para parar, e não para correr. O jornalismo literário pode vir a

ser um lugar para a busca de sentido e para alguma placidez” (CASTELLO, 2007,

p.71)

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Daqui onde estou, usufruindo de liberdade e nenhum paredão à vista, tenho a impressão de que agiria com o mesmo coração singelo dos paquistaneses, mas é muito fácil se atribuir virtudes quando não é o nosso destino que está na reta. Por isso é que esta cronista pisca o olho para Marco Moreira e não o condena, ao menos não pelo Chivas. (MEDEIROS, 2013, p.93)

E finaliza indo contra o possível julgamento das pessoas que leram a notícia,

dizendo que um pouco de insolência no final não há de ser pecado. Assim, com esta

crônica, Martha olha, mais uma vez, com simplicidade e com uma visão diferenciada

para a notícia publicada no jornal; mistura ela com um pouco de ficção, citando

artistas que ela acredita que também escolheria a garrafa de Chivas como seus

últimos pedidos, como o músico Keith Richards, por exemplo; e faz tudo isso usando

a linguagem coloquial.

4.1.2.11 Suicídio e Recato (ANEXO U)

Martha Medeiros inicia esta crônica de uma maneira um pouco diferente das

outras. Em vez de começar o texto fazendo um resumo da notícia que a inspirou, ela

mostra ao leitores o tema que irá tratar, o suicídio, e depois, já na metade do texto,

aborda a notícia, que servirá como uma ilustração de suas divagações.

A notícia que ilustra seu texto foi publicada no jornal Folha de S. Paulo, de 19

de janeiro de 2013 (ANEXO V), e trata da morte do ator Walmor Chagas, que

cometeu suicídio. Um trecho da notícia diz que “o corpo de Walmor foi encontrado

sentado em uma cadeira. Ele tinha um revólver calibre 38 no colo e estava com as

duas mãos sobre ele. Na arma havia quatro balas, além de uma deflagrada. A

cápsula estava no chão. Chagas tinha uma perfuração na têmpora direita. O tiro

atravessou a cabeça.”

Além do caso de Chagas, Martha também dá outros dois exemplos para o

tema suicídio. Um deles é a personagem do filme Amor que, ao perceber que seu

marido dedica seus dias e noites a atender todas as suas necessidades, decide

parar de comer e entregar-se a morte. Porém, não teve resistência suficiente para

tal. Outro exemplo citado pela autora é o caso do escritor Rubem Braga que, ao

saber que tinha um tumor na laringe, preferiu não operar e morreu sedado e sozinho

num quarto de hospital.

Assim, Martha utiliza a notícia como uma espécie de base para aprofundar

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sua reflexão sobre o assunto suicídio.

A função da crônica é aprofundar a notícia e deflagrar uma profunda visão das relações entre o fato e as pessoas, entre cada um de nós e o mundo em que vivemos e morremos, tornando a existência mais gratificante. (…) Logo, o jornal nos dá notícias da vida e da morte; a crônica nos faz compreender a coexistência desses dois elementos que se opõem, mas não se excluem. (SÁ, 1985, p. 56)

Além de tratar de um assunto que envolve vida e morte, a autora consegue

mostrar aos seus leitores uma outra visão para a notícia do jornal que, desta vez,

envolve o ator Walmor Chagas, mas que é tão corriqueira nos dias de hoje. E a

maneira como ela coloca essa visão pessoal no seu texto é feita com todo o

cuidado, pois a autora tem a consciência de que está tratando de um assunto

delicado. Além disso, ela não dá apenas a sua opinião sobre o assunto, mas utiliza

outros exemplos, já citados anteriormente, para tornar suas palavras mais

coerentes. Com isso, ela mostra a preocupação que teve em se informar sobre o

assunto, em vez de só escrever automaticamente, e encaixa seu texto em algumas

características de um repórter narrativo, delimitadas por José Domingos de Brito

(2008).

De um lado, ele precisa usar o melhor de sua inteligência racional para estudar, levantar informações e interpretações básicas. (…) De outro, precisa utilizar sua inteligência emocional para se deixar tocar sensorialmente pelo tema que aborda, pela ressonância interior causada pelas pessoas com as quais irá lidar. (BRITO, 2008, p.22)

E Martha desempenha esse papel perfeitamente, equilibrando o lado racional

com o emocional e mostrando, de forma simples e coloquial, sua opinião sobre o

assunto. Unindo isto ao fato de Martha ter mesclado a notícia do suicídio de Walmor

Chagas com uma personagem fictícia, colocando sobre o tema seu olhar delicado e

profundo, as hipóteses desta pesquisa se confirmam por meio desta crônica.

4.1.2.12 Deus em promoção (ANEXO X)

“Em vídeo que circula pelas redes sociais, o pastor Marco Feliciano (PSC-

SP), indicado para presidir a Comissão de Direitos Humanos da Câmara de

Deputados, recolhe doações de fiéis da Assembleia de Deus (…). Em determinado

momento, com um cartão na mão, ele diz: É a última vez que eu falo. Samuel de

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Souza doou o cartão, mas não doou a senha. Aí não vale. Depois vai pedir o milagre

pra Deus e Deus não vai dar e vai falar que Deus é ruim.” É com essa trecho que se

inicia a notícia publicada no site O Globo (ANEXO Z), no dia 6 de março de 2013. E

é exatamente essa fala do pastor Marco Feliciano que ilustra e inspira a crônica de

Martha Medeiros.

Neste texto, Martha enfrenta este tema tão delicado, a religião, utilizando

algumas características básicas do Jornalismo Literário, delimitadas por José

Domingos de Brito (2008), como a imersão no assunto, a humanização, exatidão,

autoria e criatividade. Esta última fica claro principalmente no momento em que ela

chama de “Serasa Divino”, a situação do fiel que não colabora financeiramente com

a igreja.

Porém, apesar de levar o texto de forma leve, a autora tem a consciência de

que suas palavras estão indo contra a crença de muitas pessoas e, com isso a

crônica se encaixa em uma teoria de José Castello (2007).

Em um tempo que se arma com dogmas e com verdades fixas, cabe à literatura servir de ácido, substância amarga e inquieta que se arrisque a perfurar nossas ilusões. (CASTELLO, 2007, p.62)

É exatamente isso que Martha Medeiros faz: perfura as ilusões dos leitores

que acreditam nas palavras de Marco Feliciano ou que simplesmente defendem

quem acredita.

É preciso ser muito iludido para acreditar que pagar a conta de luz é menos importante do que pagar pelo milagre encomendado a Deus através de seus “assessores” – e que, segundo o pastor Marco Feliciano, só será realizado se você não tiver caído na malha fina do Serasa Divino. O que fazer para acabar com esse transe? Colocar na cadeia esses ilusionistas que se apresentam como pastores? Duvido que ajude. A bispa Sônia e seu marido Estevam Hernandes foram condenados por lavagem de dinheiro e de nada adiantou. Se fossem condenados por lavagem cerebral, quem sabe. (MEDEIROS, 2013, p.177)

Martha consegue levar o texto adiante com linguagem fácil e, de certa forma,

despreocupada, mesmo escrevendo sobre um assunto delicado e estando

consciente das possíveis críticas que surgirão após a publicação do texto – como ela

mesma diz, no trecho “Se essa simples crônica já sofrerá retaliações, imagine

alguém peitar judicialmente um representante de Deus, ou que assim se anuncia

(MEDEIROS, 2013, p. 176) Com isso, ela segue mais uma vez na linha da maioria

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de suas crônicas, onde o texto mais parece uma conversa com o leitor – dessa vez,

tornando-se uma espécie de alerta para quem se deixa levar por pastores como este

que ilustra a notícia.

Além disso, a opinião presente neste texto só poderia ser lida em crônicas,

pois algo assim é impossível de ser lido em um texto jornalístico. Como bem explica

Marcelo Coelho (CASTRO, GALENO, 2002), o propósito da crônica é fixar um ponto

de vista individual, externo aos fatos, externo ao próprio jornal. E Martha faz isso

muito bem, utilizando linguagem coloquial e criatividade para criar situações que

ilustrem o ponto de vista explanado no texto.

4.1.3 Pós Análise

A partir da leitura das crônicas, é possível levantar deduções que comprovam

nossas hipóteses. Em primeiro lugar, fica claro a presença da oralidade nos textos

de Martha Medeiros. Mesmo sendo linguagem escrita, há muito das características

da linguagem falada, o que dá a impressão de que a autora está conversando com

seus leitores por meio das crônicas. Frases leves, que parecem ter sido escritas de

forma tão fácil e natural, formam, juntas, um texto que poderia ser uma simples

conversa de bar, por exemplo.

A forma como essas frases são organizadas permite a segunda dedução: a

estrutura do texto. Martha Medeiros utiliza, na maioria das suas crônicas, a mesma

forma de organizar suas ideias. A autora começa introduzindo o assunto, falando

sobre alguma situação cotidiana – que saiu ou não no jornal -, desenvolve esse

tema e conclui com uma reflexão ou opinião que, muitas vezes, se parece com uma

moral da história, para fazer o leitor pensar. Isso acaba se tornando uma espécie de

estratégia, pois, tendo a mesma estrutura, a leitura de seus textos torna-se natural e

fluente para os leitores.

Mas, para isso, a forma de escrita também precisa estar próxima da realidade

dos leitores. Isso nos leva à terceira dedução, que mostra que Martha Medeiros

utiliza uma escrita pop, moderna. Em seus textos, não estão presentes palavras

difíceis, nem uma linguagem rebuscada. Pelo contrário, utilizando palavras simples,

do vocabulário popular e até mesmo gírias, ela se aproxima mais dos leitores e

encaixa seus textos em uma das principais características da crônica, a linguagem

coloquial.

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E, por último, percebemos que Martha Medeiros une todas essas

características à feminilidade. A maioria de seus textos, apesar de serem

direcionados ao público em geral, parecem ter como ponto principal o universo

feminino. Suas crônicas são voltadas para as mulheres, mas Martha faz isso tão

naturalmente e, de certa forma, automática, que esta feminilidade fica mais nas

entrelinhas e, por isso, ela consegue levar seus textos para todos os tipos de público

e atingir ambos os gêneros.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente monografia até aqui tratou da maneira como Martha Medeiros se

apropria dos temas do notíciário e os transforma em crônicas.

A partir da revisão bibliográfica, as hipóteses foram comprovadas. A hipótese

de que a cronista escreve entre ficção e realidade é comprovada nas crônicas em

que Martha, mesmo tratando de um assunto real, que foi pauta do noticiário,

consegue ir além e buscar outras interpretações para ele. Para isso, ela utiliza

reflexões complexas e ao mesmo tempo simples, além de exemplificações com base

apenas no seu imaginário, ponto em que a ficção se faz presente nos seus textos.

Outra hipótese confirmada é de que Martha Medeiros usa, em suas crônicas,

um estilo de conversa coloquial, característica marcante desse gênero. Ao ler e

analisar os textos da autora, o leitor se sente em uma conversa entre amigos, como

se Martha estivesse presente falando tudo aquilo que escreve. O estilo simples, sem

linguagem rebuscada e difícil, aproxima seus textos da realidade dos leitores.

Por último, a pesquisa comprovou a hipótese de que o estilo de Martha

Medeiros é marcado pela simplicidade com que olha para os temas do noticiário e

os transforma em inspiração para suas crônicas. Mesmo naquelas em que a autora

trata de temas complicados, fatos polêmicos e até mesmo tragédias, é possível

perceber um detalhe, algum ponto que passou despercebido pelo jornalismo e que,

por meio da literatura, se mostra presente. A simplicidade e a delicadeza com que a

autora trabalha os temas do noticiário faz com que eles pareçam muito mais

próximos de seus leitores, além de proporcionar a eles uma visão diferente dos fatos

cotidianos.

Dessa forma, com a comprovação das hipóteses, foram levantadas deduções

sobre o tema. A primeira é a forma como a oralidade está presente nos seus textos,

aproximando-os de um tom de conversa informal. A segunda é a estrutura do texto,

quase sempre organizado da mesma forma, com a introdução ao assunto, o

desenvolvimento e a reflexão final. A terceira é a linguagem pop e moderna utilizada

pela autora, o que aproxima seus textos do vocabulário usado por seus leitores. E a

quarta e última dedução é de que seus textos tem forte influência da feminilidade,

quase sempre sendo direcionados para o público feminino, por mais que acabem

atingindo ambos os gêneros.

Comprova-se então que Martha Medeiros consegue transformar o jornalismo

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em literatura, aproximando e unindo esses dois gêneros, que parecem tão distintos

mas que, observando de perto, são bem parecidos. Por meio de reflexões e de sua

opinião própria, a autora coloca diante de seus leitores os fatos polêmicos ou

mesmo aqueles que passaram despercebidos durante a leitura do jornal e lhes dá

uma nova forma, um novo significado.

A presente monografia pretende servir de base para futuras pesquisas sobre

o tema e valorizar a obra de Martha Medeiros.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Livros de Martha Medeiros:

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________________. Coisas da Vida. Porto Alegre:L&PM, 2005.

________________. Doidas e Santas. Porto Alegre: L&PM, 2008.

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Outros livros:

ARNT, Héris. O Folhetim e a Crônica: A influência da Literatura no Jornalismo. Rio

de Janeiro: E-papers, 2002.

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BAUER, Martin W. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes,

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BELTRÃO, Luiz. Jornalismo Opinativo. Porto Alegre: Sulina – ARI, 1980.

BRITO, José Domingos de. Literatura e Jornalismo. São Paulo: Novera, 2008.

CASTELLO, José. A literatura na poltrona: jornalismo literário em tempos instáveis.

Rio de Janeiro: Record, 2007.

CASTRO, Gustavo de; GALENO, Alex. Jornalismo e Literatura: A sedução da

palavra. São Paulo: Escrituras Editora, 2002.

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Paulo: Companhia das Letras, 2005.

DUARTE, Jorge; BARROS, Antonio. Métodos e técnicas de pesquisa em

comunicação. São Paulo: Atlas, 2005.

FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA. A Crônica: o Gênero, sua fixação e suas

transformações no Brasil. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1992.

LIMA, Alceu Amoroso. O Jornalismo como Gênero Literário. São Paulo: EDUSP,

1990.

LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas Ampliadas: O Livro-Reportagem como extensão do

Jornalismo e da Literatura. Barueri, SP: Manole, 2004.

MENEZES, Fagundes de. Jornalismo e Literatura. Rio de Janeiro: Razão Cultural,

1997.

OLINTO, Antonio. Jornalismo e Literatura. Porto Alegre: JÁEditores, 2008.

PENA, Felipe. Jornalismo Literário. São Paulo: Contexto, 2006.

PINTO, Manuel da Costa. Crônica Brasileira Contemporânea. São Paulo: Moderna,

2005.

SÁ, Jorge de. A Crônica. São Paulo: Editora Ática, 1985.

SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad,

1999.

Teses e dissertações:

BARROS, Sílvia da Silva Freire. A crônica contemporânea de autoria feminina: Lya

Luft, Marina Colasanti e Martha Medeiros. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de

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Letras, 2009. Dissertação de Mestrado em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).

CARLAN, Letícia Amaral. O sujeito comum nas crônicas de Martha Medeiros. Porto

Alegre, PUCRS, Faculdade de Comunicação Social, 2012. Dissertação de Mestrado

em Comunicação Social.

MELLO, Maria Elizabeth Chaves de. Quando o jornalismo e a literatura trocam de

lugar. Tese de doutorado na Université Sorbonne. 2011.

RIBEIRO, Gisele Paula. O que Martha Medeiros quer nos dizer? A mulher moderna

vista pela sutileza da cronista do Jornal Zero Hora. Trabalho de Conclusão de Curso

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fiscal-a-universitaria-apos-blitz-3523979.html?impressao=sim Acesso em 02 de maio

de 2014.

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ANEXO A – A AVALANCHE FOI SEM QUERER

Fiquei sensibilizada com o destino trágico dos três alpinistas brasileiros que

não conseguiram chegar ao cume do Aconcágua. Muita coisa mexe conosco quando

testemunhamos uma fatalidade dessas. O fato de um deles, Othon Leonardos, ter

mantido contato até o fim, mandando mensagens de despedida para os parentes e

pedindo que tomassem um vinho por ele, nos deixa ainda mais comovidos. Nós,

com nossos problemas domésticos, nossas dores na coluna, nossas reuniões de

trabalho, nossa pressa e nossas queixas, ficamos pequenos diante de um rapaz de

23 anos pendurado por uma corda a 6.000 metros de altitude e a 20 graus abaixo de

zero, resignado com o destino: “Diz pro pai que a avalanche foi sem querer”.

Talvez não seja piedade o que sentimos por eles, mas inveja. Esses caras

tinham uma paixão – escalar montanhas – e por ela dedicaram a vida. Não faziam

isso por dinheiro, status ou benemerência: mesmo que chegassem ao topo, não

iriam ser convidados para uma temporada na ilha de Caras. Já tinham realizado

proezas sensacionais e ninguém os conhecia. Mesmo Mozart Catão, citado três

vezes pelo Guiness, era um ilustre anônimo nacional. O lance deles era outro.

Viraram heróis porque levaram sua liberdade às últimas consequências,

fazendo o que amavam e assumindo os riscos de viver além das convenções. A

aventura deles era mais emocionante que a nossa. Nossa aventura é atravessar a

avenida Carlos Gomes sem ser atropelada, fazer um rancho sem estourar o

orçamento, chegar à noite em casa sem ser assaltada, atravessar uma enchente

sem ser engolida pelas águas, enfrentar filas de banco, conseguir leito num hospital.

Nossas avalanches diárias têm motivo: descaso, relaxamento, falta de infra-

estrutura, contingências sociais. Nossa loucura não é romântica e nosso estresse

não acontece num cenário de Walt Disney. Nossos desafios são tão difíceis quanto

os deles, mas escolhemos escalar picos urbanos. Não tem a mesma graça.

Cada um escolhe o topo a que quer chegar. Nossas metas também são altas,

e quando as alcançamos, inventamos outras, como uma maneira de não morrer em

vida. Nosso Aconcágua pode ser editar um livro, ter um filho, virar dono do próprio

negócio, aprender a tocar violino, comprar uma casa. Nossa escalada também exige

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preparo físico e psicológico. A diferença entre nós e esses alpinistas é que, quando

ficamos sem condições para seguir adiante, a primeira coisa que pensamos é que a

avalanche é culpa dos outros. Fica a lição de Othon Leonardos, que não perdeu o

humor e reconheceu a imobilidade como parte da aventura.

Fevereiro de 1998

Publicado no livro Trem-Bala (1999)

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ANEXO B – NOTÍCIA FOLHA DE S. PAULO 06/02/98

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ANEXO C - MANÍACAS PELA FAMA

Todas as vítimas de Francisco de Assis Pereira, o maníaco do Parque do

Estado, eram jovens e tinham cabelos encaracolados. Outra coisa as caracterizava:

todas tinham o miolo mole, a ponto de se deixar levar por um estranho mata adentro

em busca de um sucesso instantâneo.

Lamento a morte cruel e precoce dessas meninas, e Francisco tem que ficar

enjaulado para sempre, pois ele não é apenas um maníaco. Francisco é o Assassino

do Parque, o Tarado do Parque, o Psicopata do Parque. Maníacas eram as vítimas,

obcecadas por tornarem-se modelos.

O golpe de dizer-se fotógrafo em busca de talentos não é novo, e muitas

vezes não é golpe. A modelo brasileira Gianne Albertoni foi descoberta quando

passeava no Parque Ibirapuera, também em São Paulo. Naomi Campbell foi caçada

por um olheiro na saída do colégio, em Londres. Claudia Schiffer estava dançando

numa boate em Frankfurt quando alguém percebeu sua semelhança com Brigitte

Bardot. Todos esses casos costumam ser amplamente divulgados pela imprensa

especializada e dão impressão de que tornar-se uma top model é só uma questão

de estar no lugar certo na hora certa. As garotas que foram atraídas por Francisco

não levaram em consideração o fato de elas não serem deusas do Olimpo e de ele

não portar nenhuma documentação que comprovasse sua suposta atividade

profissional. Foram vítimas, antes de mais nada, de uma tremenda ilusão.

Se alguém as chamasse para fazer um teste de datilógrafa ou para um

estágio numa indústria de salsichas, a maioria iria perguntar o nome da empresa, o

salário, a carga horária, e ainda assim desconfiaria dessa oferta caída dos céus em

tempo de tanta demanda. Mas a possibilidade do estrelato cega e emburrece. As

garotas tornam-se incapazes de acionar o alarme interno, pois acreditam que o final

da história compensará o risco.

Casos como o de Shirley Malmann, ex-funcionária de uma fábrica do interior,

ou da garota que recentemente foi pinçada do Morro da Cruz para um desfile

promovido pela Ford Models são contos de fada que deram certo, mas as chances

de isso acontecer com uma balconista de rodoviária é 0,001%. Cair na real é duro,

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mas é isso que temos que aprender dentro de casa. Sucesso é ter um emprego,

uma vida tranquila, meia dúzia de amigos fiéis, um pouco de lazer, algum estudo e a

cabeça no lugar. Sonhar é bom e saudável, ler revistas é uma delícia, imaginar

cenas de novela acontecendo conosco é permitido e indolor, mas nada nos deixa

mais vulneráveis do que cruzar a fronteira do imaginário. Do outro lado, ninguém

sabe o que há.

Agosto de 1998

Publicado no livro Trem-Bala (1999)

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ANEXO D – NOTÍCIA FOLHA DE S. PAULO 14/07/98

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ANEXO E - O MAL É CONTAGIOSO

Um dos principais assuntos da semana passada foi a descoberta de que um

dos pediatras mais celebrados do país, um sujeito acima de qualquer suspeita,

abusava sexualmente de seus pacientes depois de sedá-los.

“Até onde você é capaz de ir?”

O mundo tem um elenco fixo de criaturas assustadoras, mas sua violência já

não nos espanta tanto, tamanha banalização do mal. O que ainda nos choca é que

nem todos são reconhecíveis a olho nu, qualquer pai ou mãe de família pode

amanhã deixar cair a máscara bem aos nossos pés.

“Não adianta, cada minuto de civilização na minha mente pede uma hora de

barbárie. Pede na mente de qualquer pessoa.”

Um padre respeitabilíssimo que abusa de meninos na sacristia, um

sequestrador que era um aluno excelente, uma dona-de-casa incapaz de um furto,

um empresário por quem se colocava a mão no fogo. Qualquer pessoa. Há armas

guardadas em porta-luvas, esperando um motivo besta para serem disparadas. Há

gente com os nervos em frangalhos, cometendo crimes secretos dentro de suas

cabeças.

“Fala pra mim pacato, fala pra mim mulher responsável, fala pra mim singelo,

fala pra mim homem de bem: teu pensamento criminal é calculado ou passional?”

É um mundo em que já não há mocinhos e bandidos disputando o reino dos

céus, estão todos sentados à mesma mesa, uns a incentivar os pecados dos outros,

a maioria lutando bravamente contra seu lado sórdido e vencendo, gente do bem

como eu e você, até segunda ordem. De quem devemos ter medo?

“Não é apologia, é apenas a consciência da sinistra harmonia, da estranha

harmonia, da suculenta harmonia entre o bem e o mal.”

Somos todos parecidos e muito bem-intencionados, de longe ninguém é do

mal, mas de perto a surpresa, nossas diferenças não se baseiam mais em

escolaridade, poder aquisitivo, berço: a natureza selvagem do homem tem berrado

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mais alto que as convenções, e nos apavora, amanhã poderemos ter medo não só

de ser vítima, como de ser o agressor.

“O bem é uma boca, o mal é outra boca. Da saliva desse beijo sai a nossa

alma.”

_____________________________

As frases em destaque fazem parte da letra da música O mal é contagioso, de

Dado Villa-Lobos, Gustavo Dreher e Fausto Fawcett, incluída na trilha sonora do

filme Buffo & Spallanzani.

Publicado no livro Montanha-Russa (2003)

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ANEXO F – NOTÍCIA FOLHA DE S. PAULO ONLINE 28/03/02

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ANEXO G – MONEY, MONEY

Eu gosto de dinheiro, você também gosta, todo mundo gosta. Não é pecado

nenhum. O dinheiro possibilita que a gente viva com dignidade e prazer, e tanto uma

coisa quanto a outra é de primeira necessidade. Mas há um limite entre o que se

deve e o que não se deve fazer por dinheiro. Trabalhar por dinheiro? Básico.

Apostar na loteria? Se você tem sorte, tente. Uma herança? É justo. Mesada?

Sendo pirralho demais pra trabalhar, ok, mesada. E vamos encerrando o primeiro

parágrafo por aqui, porque agora vem a parte podre, chamada ganância.

Cerca de 450 pessoas morreram num incêndio dentro de um supermercado

paraguaio porque os seguranças trancaram as portas para ninguém sair sem pagar.

“Vamos lá, todo mundo se coçando, nada de desculpa, que fogo, o quê.” Ainda que

os seguranças não tenham dimensionado o tamanho da encrenca, ainda assim, por

breves instantes, foi isso que passou pela cabeça deles: o patrão não pode ter

prejuízo senão nosso emprego dança.

Dias depois dessa tragédia, uma peruana viaja num ônibus quando este foi

assaltado. Os ladrões entraram no veículo e começaram a recolher dinheiro e outros

pertences dos passageiros. Ela, lá no fundo, no banco de trás, tinha 800 dólares na

bolsa. Antes que eles chegassem perto, ela não teve dúvida: engoliu as notas

todinhas, a seco, sem água, gelo e limão. Não avaliou os riscos. Se os ladrões a

vissem fazendo isso, poderiam ter se irritado e atirado nela – a gente sabe que um

marginal armado não é exatamente um exemplo de candura. Mas não foi o que

aconteceu, felizmente. O desfecho foi que a cidadã foi parar no hospital para uma

lavagem estomacal. Da grana, nunca mais se teve notícia.

Mulheres sonham engravidar de sujeitos que elas conhecem de ouvir falar –

um tal de Romário, um tal de Ronaldinho, um tal de Diego. Homens, da mesma

forma, procuram aproximar-se de quem possa lhes abrir portas – de preferência, do

cofre. Pessoas ostentam. Pessoas vivem em desacordo com sua realidade. Pessoas

fazem trambiques. Pessoas mantêm relações de interesse. Pessoas se humilham,

se vendem, se prostituem das mais diversas formas. Por quê? Porque nada mais faz

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sentido nesta vida senão o dinheiro. E quanto mais vivemos em função dele, mais

miseráveis ficamos.

Publicado no livro Coisas da Vida (2005)

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ANEXO H – NOTÍCIA SITE ÉPOCA 02/08/04

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ANEXO I - PIPOCAS

A cidade estava em quase absoluto silêncio, até parecia quatro da manhã,

mas era pouco mais do que quatro da tarde. Levantei do sofá um instante, no final

do primeiro tempo, para ir até a janela observar os prédios, as ruas. Todos estavam

dentro de suas “panelas”, feito grãos de pipoca que ainda não estouraram, mas

faltava pouco para que explodissem. Foi bem nessa hora que Kaká marcou o

primeiro gol do Brasil. A tampa da cidade se abriu e as pipocas finalmente

estouraram. O povo saltou da cadeira como aquele desenho animado que passa

antes dos filmes, as pipoquinhas todas em polvorosa, alegres, empolgadas. É isso,

pensei: somos milhões de pipocas em ação.

Não me olhe com essa cara, juro que estou em pleno domínio das minhas

faculdades mentais. É que não é fácil escrever uma coluna um dia após a estreia do

Brasil na Copa, e ainda escrever a jato, porque o jornal tem que fechar a edição.

Bem que eu queria demonstrar aqui neste espaço minha perplexidade com o

assassinato brutal das meninas gaúchas na Grande Florianópolis, ou falar que

minha torcida pela Varig é tão grande quanto a torcida pelos Ronaldos. Mas um dia

após a nossa primeira e suada vitória, não tenho como fugir de falar sobre algo

relacionado a futebol. E já que não sou comentarista, não estou na Alemanha e me

confundo até hoje com a lei do impedimento, pensei em apelar para uma metáfora,

algo assim como comparar pessoas a pipocas, levando em consideração que a

pipoca, alimento tão associado ao cinema, troca de assento durante a Copa do

Mundo e se converte no melhor companheiro em frente à tevê.

Pesquisando sobre o tema, descobri que o milho que não estoura se chama

piruá. Sabe aquele milho que sobra na panela e se recusa a virar um floquinho

branco, macio e alegre? Piruá. E aí tenho que concordar com o escritor Rubem

Alves, que já escreveu sobre o assunto: tem muita gente piruá neste planeta. Gente

que não reage ao calor, que não desabrocha. Fica ali, duro, triste e inútil pro resto da

vida. Não cumpre sua sina de revelar-se, de transformar-se em algo melhor. Não vira

pipoca, mantém-se piruá. E um piruá emburrado, que reclama que nada lhe

acontece de bom. Pois é. Perdeu a chance de entregar-se ao fogo, tentou se

preservar, danou-se.

Domingo vai acontecer outra vez: todo mundo enclausurado dentro de suas

panelas. Silêncio, tensão. O fogo será acendido assim que o juiz apitar o início da

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partida contra a Austrália. Que a seleção seja quente o bastante para nos fazer

explodir. E que possa mostrar para aqueles que têm vocação para piruá que o

importante na vida é reagir às emoções, e não manter-se frio, fechado, feito um grão

que não honrou o seu destino.

Eis a crônica de hoje. Aquela história de que estou em pleno domínio das

minhas faculdades mentais era brincadeira, como se vê.

14 de junho de 2006

Publicado no livro Doidas e Santas (2008)

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ANEXO J – NOTÍCIA FOLHA DE S. PAULO 14/06/06

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ANEXO K – HOJE E DEPOIS DE HOJE

Não que dia de eleição não seja importante, mas vamos lembrar que, seja

quem for que vá tomar decisões políticas daqui por diante, você continuará sendo

dono e senhor da sua vida íntima, é de você próprio que depende o futuro: das

coisas que você elegeu sozinho.

Nenhum candidato impedirá você de ler o que quiser e de dormir na hora que

bem entender. Da sua liberdade, cuida você. Então, cuide mesmo.

Amanhã os jornais estamparão os nomes dos vitoriosos, e os articulistas irão

especular sobre formação de ministérios e sobre as medidas que virão, e você

estará satisfeito por ter votado no homem certo ou insatisfeito por terem eleito

aquele que você não queria, e as coisas vão mudar, mesmo, é muito pouco. As

escolhas decisivas da sua vida seguirão sendo suas, apenas.

Então deixe a vida continuar acontecendo no território que você domina, vá

fazer sua caminhada como faz todos os dias, que isso nunca será impedido por

decreto, e aproveite que está apaixonado para se declarar tão insistentemente que

chegue ao ponto de duvidar que possa amar tanto, e se não estiver amando, trate

de se abrir com urgência para esse sentimento que, entra governo e sai governo,

não muda e não perde a importância.

A vida segue acontecendo nos detalhes, nos desvios, nas surpresas, nas

alterações de rota que não são determinadas pelas urnas, mas por um olhar que

você ainda não havia percebido, por uma palvra que você não esperava escutar e

por fim escutou.

Poderíamos estar aqui conversando – eu daqui, você daí – sobre a

calamidade social que o país não consegue conter, sobre como está difícil ter

esperança, e quantas decepções já engolimos, mas hoje não, justamente hoje que

seria o dia, vamos evitar esta discussão aborrecida e pegar um atalho, outro

caminho, lembrar de quanta coisa já escolhemos e que deu certo, em quanta gente

depositamos nossa confiança e que não nos faltou, em como já sofremos por pouca

coisa e por muita coisa, e por todas elas nos tornamos mais fortes e preparados,

então que venha o que vier, nada há de nos pegar desprevenidos, política nunca é

mesmo algo muito original: mesmo sem bola de cristas podemos visualizar no

horizonte o que irá repetir-se.

No entanto, o dia de amanhã poderá ser absolutamente inusual, e a política

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não terá nada a ver com isso. Prepare-se para fazer alguma escolha: entrar ou não

num negócio, gastar ou não um dinheiro, aceitar ou não um convite, sorrir ou não

para alguém. Sabe-se lá o que esta decisão tão trivial poderá fazer pela sua vida

que o próximo governo não poderá.

Você já passou por tantas eleições pessoais: escolheu sua profissão, a cor do

seu cabelo, o nome que seus filhos têm, o time para o qual torce, a roupa que está

usando bem agora. Quem é que está no comando? Ora. Faça o que bem quiser

deste seu dia e dos dias que virão. Votar é obrigatório, mas viver é muito mais.

1º de outubro de 2006, eleição presidencial

Publicado no livro Doidas e Santas (2008)

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ANEXO L – NOTÍCIA FOLHA DE S. PAULO 01/10/06

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ANEXO M - O VIOLINISTA NO METRÔ

Aconteceu em janeiro. O jornal Washington Post convidou um dos maiores

violinistas do mundo, Joshua Bell, para tocar numa estação de metrô da capital

americana a fim de testar a reação dos transeuntes. Desafio aceito, lá foi Bell, de

jeans e camiseta, às 8 da manhã, o horário mais movimentado da estação, para

tocar no seu Stradivarius de 1713 (avaliado em mais de três milhões de dólares)

melodias de Bach e Schubert.

Passaram por ele 1.097 pessoas. Sete pararam alguns minutos para ouvi-lo.

Vinte e sete largaram algumas moedas. E uma única mulher o reconheceu, porque

havia estado em um de seus concertos, cujo valor médio do ingresso é cem dólares.

Todos os outros usuários do metrô estavam com pressa demais para perceber que

ali, a dois metros de distância, tocava um instrumentista clássico respeitado

internacionalmente.

Não me surpreende. Vasos da dinastia Ching, de valor incalculável, seriam

considerados quinquilharias se misturados a quaisquer outros numa feira de

artesanato ao ar livre. Uma jóia do Antônio Bernardo correria o risco de ser ignorada

se fosse exposta numa lojinha de bijuterias, uma gravura de Roy Lichtenstein seria

considerada amadora se exposta numa mostra universitária de cartoons, e ninguém

pagaria mais de quarenta reais por uma escultura do mestre Aleijadinho que

estivesse misturada a anjos de gesso vendidos em beira de estrada. Desinformados,

raramente conseguimos destacar o raro do medíocre.

Só é possível valorizar aquilo que foi estudado e percebido em sua grandeza.

Se eu não me informo sobre o valor histórico de uma moeda que circulava na época

dos otomanos, ela passa a ser apenas uma pequena esfera enferrujada que eu não

juntaria do chão. Se eu não conheço o significado que teve uma muralha para a

defesa dos grandes impérios, ela vira apenas um muro passível de pichação. Se não

reconheço certos traços artísticos, um vitral de Chagall passará tão despercebido

quanto o vitral de um banheiro de restaurante. Podemos viver muito bem sem

cultura, mas a vida perde em encantamento.

Essa história do violinista demonstra que não estamos preparados para a

beleza pura: é preciso um mínimo de conhecimento para valorizá-la. E demonstra

também que temos sido treinados para gostar do que todo mundo conhece. Se uma

atriz é muito comentada, se uma peça é muito badalada, se uma música é muito

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tocada no rádio, estabelece-se que elas são um sucesso e ninguém questiona. São

consumidas mais pela insistência do que pela competência, enquanto que

competentes sem holofotes passam despercebidos.

Gostaria muito de ter circulado pela estação de metrô em que tocava Joshua

Bell. Não por admirá-lo: pra ser franca, nunca ouvi falar desse cara. O que eu queria

era testar minha capacidade de ficar extasiada sem estímulo prévio. Descobrir se

ainda consigo destacar o raro sem que ninguém o anuncie. Tenho a impressão de

que eu pararia para escutá-lo, mas talvez eu esteja sendo otimista. Vai ver eu

também passaria apressada, sem me dar conta do tamanho do meu atraso.

22 de abril de 2007

Publicado no livro Doidas e Santas (2008)

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ANEXO N – NOTÍCIA SITE TERRA 10/04/07

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ANEXO O – MATO, LOGO EXISTO

Não é um bom assunto para domingo, reconheço. Mas estamos sempre tão

ocupados nos dias da semana que não custa reservar dez minutinhos do nosso dia

de folga pra refletir um pouco sobre que espécie de adultos está sendo formada

aqui e no mundo. O sul-coreano que no dia 16 de abril matou 32 pessoas dentro de

uma universidade americana é um exemplo – a esta altura, já antigo, mas serve. Era

um doente, e qual a doença dele? Solidão, depressão. Não se pode chamar de um

caso raro.

Um dia depois da tragédia, entrei numa sala de bate-papo da internet para ler

os comentários sobre esse episódio. Até então, não estava tão perplexa – é um

crime recorrente nos Estados Unidos. Mas ao me deparar com a reação de alguns

brasileiros da mesma faixa etária do assassino, aí sim, estarreci. Nunca vi um

conjunto de ideias tão preconceituosas, agressivas e mal escritas. Era o festival da

ignorância. Uma amostra da miséria cultural, miséria intelectual e miséria afetiva que

carcteriza os novos tempos. Ninguém discutia com civilidade, os comentários eram

belicosos e ferozes, e quando discordavam uns dos outros aí é que a baixaria rolava

solta. Pensei: eles estão protegidos pelo virtualismo, mas estivesses frente a frente e

com uma arma ao alcance da mão, quem garante que não teriam seu dia de Cho

Seung-Hui?

Esses garotos e garotas possuem a rebeldia natural da idade, mas é uma

rebeldia sem argumento, uma rebeldia vinda do desespero. Eles cresceram

assistindo a uma quantidade exagerada de violência na tevê e no cinema, idolatram

músicos que cantam coisas como “eu escrevo minhas próprias leis com a morte”,

têm pouco contato com o pai e a mãe, mantém amizades de faz-de-conta e são

soterrados por uma avalanche de informações que mal conseguem filtrar. Tudo isso

numa sociedade cada vez mais competitiva, em que a ordem é aparecer a qualquer

custo. A felicidade há muito que deixou de se concentrar na trinca amor-saúde-e-

dinheiro: agora é sexo-popularidade-e-muito-muito-muito-dinheiro. Quem tem uma

vida modesta, se frustra: conclui que é uma pessoa que não existe, que não conta,

que não vale. E resolve dar o seu recado na marra.

Impossível este relato não soar dramático, mas irreal não é. A vida mudou. E

temos alguma responsabilidade nisso, não somos apenas vítimas, mas cúmplices.

Está mais do que na hora de ficarmos mais perto de nossos filhos. De oferecermos a

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eles livros e música boa, darmos muito carinho e elogio, ficarmos de olho nos

lugares onde eles vão e com quem saem – um pouco de controle não faz mal a

ninguém. É recomendável também não cultuar revistas que vivem de fofoca,

ridicularizar a fixação pela estética e mostrar a eles que os super-heróis de verdade

costumam ser mais discretos.

Porém, discrição é uma coisa, fuga é outra. É preciso chamar essa garotada

pro papo quando estiverem silenciosos demais, ajudá-los a compreender essa

loucura aí fora (que nem nós compreendemos direito), levá-los pra viajar quando

der, colocá-los em contato com hábitos mais simples e escutá-los muito, não importa

sobre que assunto.

É guerra: a agressividade e a miséria existencial que caracterizam a nossa

época precisam ser enfrentadas não só com Prozac, mas com cultura e afeto. A

grande maioria dos adolescentes que aí estão não conseguirá ganhar fortunas, não

vai virar artista nem doutor, não vai casar com homens com barriga de tanquinho

nem com mulheres que autografam a Playboy: eles vão ter uma vida normal. E se o

normal seguir não servindo pra eles, pobres de todos nós.

29 de abril de 2007

Publicado no livro Doidas e Santas (2008)

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ANEXO P – NOTÍCIA FOLHA DE S. PAULO 20/04/07

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ANEXO Q – QUANDO MENOS SE ESPERA

Quando alguém se queixa de que não encontra sua cara-metade, que

procura, procura, procura e nada, os amigos logo lembram o queixoso de que o

amor só é encontrado ao acaso. Justamente no dia que você vai à padaria todo

esculhambado, poderá esbarrar na mulher da sua vida. E naquela noite em que

você sai do apartamento de pantufas para ir até a garagem do prédio desligar a

droga do alarme do carro que disparou, o Cupido poderá atacar, fazendo com que o

príncipe dos sonhos divida com você o elevador. Não acredita? Eu acredito. Nas

vezes em que saí de casa preparada para a guerra, voltei de mãos vazias. Todos os

meus namoros começaram quando eu estava completamente distraída. Mas não

vale se fingir de distraída, tem que estar realmente com a cabeça na lua. Aí,

acontece. O amor adora se fazer de difícil.

Pois foi meio assim que aconteceu com a universitária que foi parada numa

blitz semana passada. Ela se recusou a fazer o teste do bafômetro, então teve a

carteira recolhida e prestou algumas informações. Voltou para casa e pouco tempo

depois recebeu um torpedo de um dos agentes perguntando se ela estava no

Facebook, pois ele gostaria de conhecê-la melhor.

Vibro com essas conspirações do destino, que fazem com que duas pessoas

que estavam absolutamente despreparadas para um encontro amoroso (um

trabalhando na madrugada, outra voltando de uma festa) se encontrem de forma

inusitada e a partir daí comece um novo capítulo da história de cada um. Claro,

levando-se em conta que ambos tenham simpatizado um com o outro, que a atração

tenha sido recíproca.

Não foi o caso. A universitária não se agradou do rapaz. Acontece muito. O

Cupido passa trabalho, não é fácil combinar os pares. Nesses casos, todo mundo

sabe o que fazer: basta não responder o torpedo, ou responder amavelmente

dizendo que não está interessada, ou mandar um chega pra lá mais incisivo,

desestimulando uma segunda tentativa.

A universitária desprezou essas três opções de dispensa. Inventou uma

quarta maneira para liquidar o assunto: deu queixa do rapaz aos órgãos

competentes. Dedurou o cara. Não perdoou que uma informação confidencial (o

número do seu celular) houvesse sido utilizado indevidamente por um servidor

público.

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É duro viver num mundo sem humor. Uma cantada, uma reles cantada. Se

fosse num bar, seria óbvia. Tendo sido após uma blitz, foi incomum. No mínimo,

poderia ter arrancado um sorriso do rosto da garota que deveria estar pê da vida por

ter a carteira apreendida. Depois de um fim de noite aborrecido, ela teve a chance

de achar graça de alguma coisa, mas se enfezou ainda mais. No próximo sábado, é

provável que esteja de novo na balada, cercada de outras meninas e meninos, a

maioria se queixando de que o amor não dá mole.

19 de outubro de 2011

Publicado no livro A Graça da Coisa (2013)

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ANEXO R – NOTÍCIA ZERO HORA 13/10/11

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ANEXO S – ÚLTIMO PEDIDO

O nome dele é Marco Cardoso Moreira, tem 50 anos e foi condenado à morte

por tráfico internacional de drogas. Ao viajar para a Indonésia em 2003, foram

encontrados mais de 13 quilos de cocaína na armação de um paraglider que ele

transportava na bagagem, e desde então segue preso, aguardando a execução.

Muitas tentativas ainda estão sendo feitas pelo nosso Governo para que Marco não

sofra uma pena tão radical, mas chegou a ser anunciado num jornal de Jacarta que

o brasileiro irá, nos próximos dias, enfrentar um pelotão de fuzilamento, junto a dois

paquistaneses igualmente condenados por aquele país.

Pena de morte é sempre um assunto difícil e controverso. Ainda assim, um

detalhe dessa tragédia me fez sorrir – pois é, acontece de a gente, às vezes,

encontrar graça nas desgraças. A reportagem que li dizia que os três presos tiveram

a chance de fazer um último pedido. Os dois paquistaneses pediram para conversar,

pela última vez, com seus familiares. O brasileiro pediu uma garrafa de Chivas.

Não posso garantir a veracidade desse pormenor. Tem muito engraçadinho

que escreve o que bem entende: dane-se o fato, publique-se a versão, caso ela

pareça mais interessante. Mas, mesmo que não tenha sido bem assim, poderia ter

sido, e fiquei pensando que um último pedido é um epitáfio em vida.

Diante da morte iminente, pedir para falar pela última vez com os familiares

demonstra o desejo digno de trocar abraços, de se desculpar pelas besteiras

cometida e, vá saber, de revelar aos parentes a senha da sua conta secreta.

Emocionante. Mas eu compreendo o sujeito que, depois de tantos anos isolado num

país distante, aguardando um veredito que, se o livrar do fuzilamento, o conduzirá à

prisão perpétua, já não conserva intenções nobres. Com o diabo bufando em seu

cangote e a contagem regressiva chegando perigosamente perto do zero (…6, 5, 4,

3…) ele tem o direito de mandar às favas seus arrependimentos e de só pensar em

entornar uma garrafa de uísque antes de sair do ar.

Fausto Wolff faria o mesmo. Keith Richards, nem se fala. Janis Joplin. Pablo

Picasso. O que não falta é gente que pediria sua dose com três pedras de gelo – e

um amendoinzinho para acompanhar, se não for abuso.

Eu? Daqui onde estou, usufruindo de liberdade e nenhum paredão à vista,

tenho a impressão de que agiria com o mesmo coração singelo dos paquistaneses,

mas é muito fácil se atribuir virtudes quando não é o nosso destino que está na reta.

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Por isso é que esta cronista pisca o olho para Marco Moreira e não o condena, ao

menos não pelo Chivas. Uma despedida inspirada em Humphrey Bogart pode não

merecer a benção do Vaticano, mas é sempre mais autêntica e menos dramática.

Não há de ser pecado demonstrar alguma insolência no final.

27 de junho de 2012

Publicado no livro A Graça da Coisa (2013)

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ANEXO T – NOTÍCIA FOLHA DE S. PAULO 22/06/12

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ANEXO U – SUICÍDIO E RECATO

Suicídio não casa bem com dias de verão, mas hoje acordei sem saber como

preencher a tela em branco, e não possuindo o talento de Rubem Braga, de quem

se dizia “Quando ele tem assunto, é ótimo, e quando está sem assunto, é

fenomenal”, me rendi a esse tema delicado, difícil, mas que também faz parte da

vida.

Dois acontecimentos me trazem até aqui. O primeiro foi ter assistido ao

impactante Amor, filme do qual já se celebrou tudo: a excepcional atuação do casal

protagonista, o realismo da história e a transcendência de um sentimento que não se

revela apenas nas trocas de carinho, mas na compreensão profunda um do outro.

Anne, interpretada pela magnífica Emmanuelle Riva, sofre um derrame e fica com

um lado do corpo paralisado, e a doença se agrava com o passar dos dias,

degradando-a, retirando dela não apenas os movimentos, mas também boa parte da

consciência. Só lhe resta esperar pela morte, enquanto vê seu marido dedicar dias e

noites a atendê-la em todas as suas necessidades, absolutamente todas. Quem não

desejaria, nessa situação, antecipar o desfecho? Sem nem mesmo conseguir

expressar-se pela fala, ela decide fechar a boca e recusar o alimento que lhe dão,

numa atitude patérica, mas ao mesmo tempo política: é seu ato solitário de protesto.

Que, claro, não funciona, por falta de resistência. A morte exige uma bravura mais

radical.

Tão radical quanto a que foi capaz o grande Walmor Chagas, um homem de

forte personalidade que conduziu sua vida sem fazer concessões, e que saiu dela

atendendo sua própria vontade, como lhe era peculiar. Aos 82 anos, enxergando

mal, já precisando de ajuda para realizar tarefas corriqueiras, fez sua opção. Com

toda a consideração ao sentimento dos familiares e amigos, reconheçamos: em

casos bem específicos, como o dele, há uma certa dignidade no suicídio.

Não estou encorajando ninguém ao ato. É uma tragédia. Principalmente

quando realizado por jovens, que geralmente o fazem por uma dor momentânea que

os leva ao impulsio, sem conjecturar sobre a longa existência pela frente. Quando

falo em “casos bem específicos”, me refiro à tentativa da personagem Anne, ao

Walmor Chagas e até ao próprio Rubem Braga, que, aos 77 anos, sabedor de que

tinha um tumor na laringe, preferiu não operar nem tratar quimicamente. Dias antes

da sua morte, recebeu os amigos mais chegados em casa, e logo depois morreu

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sedado num quarto de hospital – sozinho, como pediu. Não foi uma morte

provocada, mas teve a participação do principal envolvido, que se deu o direito de

escolha.

Nenhuma morte é bonita. E é nosso dever tentar impedir ações deliberadas

de partir, se estiver ao nosso alcance. Não estando, só nos resta respeitar àqueles

que o fizeram não por tristeza, não por covardia, não por desequilíbrio emocional,

mas, estando com uma idade avançada, sentindo o corpo e a mente deteriorarem-se

e perdendo a capacidade de tomarem conta de si mesmos, o fizeram por pudor.

23 de janeiro de 2013

Publicado no livro A Graça da Coisa (2013)

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ANEXO V – NOTÍCIA FOLHA DE S. PAULO 19/01/13

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ANEXO X – DEUS EM PROMOÇÃO

Pouca coisa me escandaliza, mas fiquei perplexa com o vídeo que andou

circulando pela internet, que mostra um culto da Assembleia de Deus conduzida pelo

pastor Marco Feliciano – sim, o polêmico presidente da Comissão de Direitos

Humanos e Minorias da Câmara de Deputados, o maior para-raios de encrenca da

atualidade.

O vídeo mostra o momento da coleta de dízimos e doações, a parte

mercantilista da negociação dos fiéis com o Pai Supremo, de quem o pastor se julga

uma espécie de contador particular, pelo visto. Entre frases inibidoras como “Você

vai mesmo ficar com esse dinheiro na sua carteira?”, dirigida a pessoas da plateia, e

estimulando que os trabalhadores cedam uma porcentagem do seu salário dizendo

“Aquele que crê, dá um jeito”, aconteceu: alguém entregou seu cartão de crédito nas

mãos do pastor. No que ele retrucou: “Ah, mas sem a senha, não vale. Depois vai

pedir um milagre pra Deus, Ele não vai dar, e aí vai dizer que Deus é ruim.”

Entendi bem? Deus está à venda? Cobrando pelas graças solicitadas?

Essa colocação do pastor bastaria para abrir uma CPI contra os caras de pau

que, abusando da esperança de gente sem muito tutano, arrecadam fortunas e

depois vão fazer suas preces particulares em algum resort em Miami. Quem dera

houvesse um Joaquim Barbosa para colocar ordem nesse galinheiro falsamente

místico, mas quem ousa? Se essa simples crônica já sofrerá retaliações, imagine

alguém peitar judicialmente um representante de Deus, ou que assim se anuncia.

Religiosidade é algo extremamente respeitável. Cada um exerce a sua com a

intensidade que lhe aprouver, de forma saudável, a fim de conquistar bem-estar

espiritual. Todas as pessoas religiosas que conheço, e são inúmeras, nunca

precisaram comprar sua fé nem dar nada em troca – a conquistaram gratuitamente

através de cultura familiar ou de uma necessidade pessoal de conforto e consolo

que é absolutamente legítima.

Religião é, basicamente, isso: conforto e consolo.

Já os crentes mais radicais fazem parte de outra turma. São os que acreditam

cegamente em pecado, castigo, punição e numa recompensa que só virá depois de

algum sacrifício. Quando não pagam em espécie, abrem mãos de prazeres terrenos

como forma de penitência, para tornarem-se dignos da vida eterna – que viagem.

É preciso ser muito iludido para acreditar que pagar a conta de luz é menos

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importante do que pagar pelo milagre encomendado a Deus através de seus

“assessores” – e que, segundo o pastor Marco Feliciano, só será realizado se você

não tiver caído na malha fina do Serasa Divino.

O que fazer para acabar com esse transe? Colocar na cadeia esses

ilusionistas que se apresentam como pastores? Duvido que ajude. A bispa Sônia e

seu marido Estevam Hernandes foram condenados por lavagem de dinheiro e de

nada adiantou. Se fossem condenados por lavagem cerebral, quem sabe.

13 de março de 2013

Publicado no livro A Graça da Coisa (2013)

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ANEXO Z – NOTÍCIA SITE O GLOBO 06/03/13

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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL

FERNANDA ZANOL

O COTIDIANO TRADUZIDO NAS

CRÔNICAS DE MARTHA MEDEIROS

Caxias do Sul

2013

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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL

CENTRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO

CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

HABILITAÇÃO EM JORNALISMO

FERNANDA ZANOL

O COTIDIANO TRADUZIDO NAS

CRÔNICAS DE MARTHA MEDEIROS

Projeto de Trabalho de Conclusão de Curso

apresentado como requisito para aprovação

na disciplina de Monografia I.

Orientador(a): Paulo Ricardo Ribeiro

Caxias do Sul

2013

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................5

2 TEMA........................................................................................................................5

2.1 Delimitação do tema..............................................................................................5

3 JUSTIFICATIVA........................................................................................................5

4 QUESTÃO NORTEADORA......................................................................................7

5 HIPÓTESES ….........................................................................................................7

6 OBJETIVOS ….........................................................................................................8

6.1 Objetivo geral.........................................................................................................8

6.2 Objetivos específicos..............................................................................................8

7 METODOLOGIA......................................................................................................8

8 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA...................................................................................10

8.1 A Crônica – O Gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil, Fundação

Casa de Rui Barbosa……………………...……………………………….………………10

8.2 A Crônica Contemporânea de Autoria Feminina: Lya Luft, Marina Colasanti e

Martha Medeiros, Dissertação de Mestrado de Sílvia Barros da Silva Freire.………12

8.3 A Literatura na Poltrona: jornalismo literário em tempos instáveis, José

Castello………………………………………………………………………………………12

8.4 Crônica Brasileira Contemporânea, Manuel da Costa Pinto………………………13

8.5 História da Imprensa no Brasil, Nelson Werneck Sodré………………………..…13

8.6 Jornalismo e Literatura, Antonio Olinto………………………………………………14

8.7 Jornalismo e Literatura, Fagundes de Menezes……………………………...…….15

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8.8 Jornalismo e Literatura - A Sedução da Palavra, Gustavo de Castro e Alex

Galeno……………………………………………………………………..………………...16

8.9 Jornalismo Literário, Felipe Pena………...…………………………………………..16

8.10 Jornalismo Opinativo, Luiz Beltrão………………………………………………….17

8.11 Literatura e Jornalismo, José Domingos de Brito……………….………..……….18

8.12 O Folhetim e a Crônica – A Influência da Literatura no Jornalismo, Héris Arnt.19

8.13 O Jornalismo como Gênero Literário, Alceu Amoroso Lima……………………..20

8.14 O Sujeito Comum nas Crônicas de Martha Medeiros, Dissertação de Mestrado

de Letícia Amaral Carlan…………………………...…………………………………......21

8.15 Páginas Ampliadas, Edvaldo Pereira Lima…………………………………….….21

8.16 Pena de Aluguel, Cristiane Costa…………………………………………..………22

8.17 Quando o jornalismo e a literatura trocam de lugar, tese de doutorado de Maria

Elizabeth Chaves de Melo…………………………………………..…………………….23

9 ROTEIRO DOS CAPÍTULOS..................................................................................24

10 CRONOGRAMA....................................................................................................25

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................26

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1 INTRODUÇÃO

Este projeto tem como objetivo apresentar o tema que será estudado na

futura monografia. Partindo da relação entre literatura e jornalismo, o trabalho

contará com definições da crônica, bem como sua trajetória e características

principais. Este gênero, localizado na fronteira entre jornalismo e literatura, reflete

sobre fatos do cotidiano, utilizando, muitas vezes, o noticiário como fonte de

inspiração.

A partir das definições de crônica, Martha Medeiros será a escritora estudada.

Ela conquistou seu espaço tanto no jornalismo como na literatura, tendo como

característica principal o seu estilo de escrever, que se aproxima de uma conversa

informal entre amigos. Em suas crônicas, é possível encontrar reflexões sobre o

cotidiano escritas de forma simples, para atingir o maior número de leitores. Martha

utiliza uma linguagem coloquial, utilizada pela maioria dos cronistas, o que motivou

sua escolha para a futura monografia.

2 TEMA

Martha Medeiros e o Cotidiano

2.1 Delimitação do tema

As crônicas de Martha Medeiros, a partir de notícias do jornal, nas obras

Trem-Bala (1999), Montanha-Russa (2003) e Coisas da Vida (2005).

3 JUSTIFICATIVA

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Localizada na fronteira entre o Jornalismo e a Literatura, a crônica conquistou

há muito tempo os leitores dos jornais diários e das revistas. Embora seja publicada

em meios de comunicação, a maior finalidade da crônica não é informar o

destinatário, mas refletir sobre o acontecido.

Talvez por isso os cronistas também sejam chamados de poetas do cotidiano,

já que a visão subjetiva da realidade sempre está presente em seus textos. Segundo

o jornalista José Marques de Melo, que colaborou com seu ensaio A Crônica para o

livro Jornalismo e Literatura – A Sedução da Palavra, organizado por Gustavo de

Castro e Alex Galeno, a crônica é um gênero jornalístico opinativo, situado na

fronteira entre a informação de atualidades e a narração literária, configurando-se

como um relato poético do real.

Uma destas poetas do nosso dia a dia é a jornalista e escritora Martha

Medeiros, que chama a atenção principalmente por seu estilo de escrever, que

lembra uma conversa informal entre amigos. Martha, gaúcha de Porto Alegre,

começou sua carreira como redatora e diretora de criação em agências de

Publicidade e Propaganda, mas encontrou seu caminho na literatura. Sua paixão

pelo mundo literário surgiu com a poesia e, mais tarde, foi convidada para colaborar

como cronista em periódicos brasileiros, como o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e

O Globo, do Rio de Janeiro.

A maior característica de Martha, que motivou esta pesquisa, é o fato de as

notícias que saem diariamente nos jornais acabarem pautando suas crônicas. Dessa

forma, jornalismo e literatura se tornam cada vez mais próximos e até mesmo se

confundem em alguns casos. As crônicas de Martha Medeiros são uma reflexão

sobre acontecimentos, mas também podem informar possíveis leitores

desatualizados. E a escritora consegue fazer tudo isso de forma simples,

escrevendo de maneira que consiga atingir o maior número de leitores. Martha

utiliza uma linguagem coloquial, como se estivesse sentada em uma mesa de bar

com amigos, conversando sobre as manchetes do noticiário.

Esse jeito de escrever não é novidade. Diversos autores já definiram a crônica

como um relato de fatos cotidianos, sob a visão do escritor. José Marques de Melo

diz que as notícias que vemos todos os dias nos jornais são o ponto de partida para

os cronistas e, a partir de seus textos, os leitores podem ver o outro lado, uma nova

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visão sobre os acontecimentos e sobre a sociedade. E os cronistas fazem isso de

forma simples, assim como Martha Medeiros.

O coloquialismo é característica marcante na crônica e, segundo o escritor

Manuel da Costa Pinto, foi exatamente essa maneira de escrever, que se aproxima

de um diálogo entre o autor e o leitor, que fez com que a crônica fizesse tanto

sucesso na imprensa brasileira. Hoje, um jornal sem cronista é um jornal que corre o

risco de perder leitores, pois entre tantas notícias, muitas vezes ruins, a crônica

surge como um desvio de rota, uma outra maneira de olhar para o mundo e de

encaixar os acontecimentos na nossa própria vida. Assim, ao dispensar uma

linguagem rebuscada e assuntos grandiosos, acaba se aproximando mais da

realidade do leitor e ajuda a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e

das pessoas, como afirma o escritor Antonio Candido.

Ele também ressalta uma característica marcante da crônica, que é a

durabilidade, em contraponto às notícias dos jornais. Mesmo sendo feita para eles, a

crônica não perde o sentido ao ser publicada em um livro e isso acontece porque

este gênero usa a palavra de forma com que ela não se dissolva no contexto, mas

ganhe relevo, permitindo que o leitor a sinta na força dos seus valores próprios.

Por isso, o objetivo da futura monografia é analisar a forma como Martha

Medeiros constrói suas crônicas a partir de notícias do jornal e como o noticiário

também pode virar literatura. A análise será baseada em crônicas publicadas nos

livros Trem-Bala (1999), Montanha-Russa (2003) e Coisas da Vida (2005).

4 QUESTÃO NORTEADORA

Como Martha Medeiros se apropria de temas do dia a dia e os aproxima da

Literatura?

5 HIPÓTESES

A cronista escreve no limite entre ficção e realidade.

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Martha Medeiros usa, em seus textos, um estilo de conversa coloquial,

característica marcante das crônicas.

O estilo de Martha Medeiros é marcado pela simplicidade com que olha para

os temas do noticiário e os transforma em inspiração para suas crônicas.

6 OBJETIVOS

6.1 Objetivo geral

Demonstrar como Martha Medeiros valoriza o gênero crônica.

6.2 Objetivos específicos

Observar a fronteira entre Jornalismo e Literatura

Observar como o tom de conversa informal está presente na crônica

Demonstrar como a crônica se serve das pautas do noticiário

7 METODOLOGIA

A futura monografia será uma pesquisa qualitativa com análise de conteúdo.

Quem melhor define esta técnica é Wilson Correa da Fonseca Júnior, que diz que a

análise conteúdo é uma técnica de investigação destinada a formular, a partir de

certos dados, inferências reproduzíveis e válidas que podem se aplicar a seu

contexto (Fonseca Júnior apud Krippendorff, p.284).

Na análise de conteúdo, a inferência é considerada uma operação lógica destinada a extrair conhecimentos sobre os aspectos latentes das mensagens analisadas. (Fonseca Júnior apud Bardin, p.284)

Uma análise de conteúdo deve conter os seguintes marcos de referência que

Fonseca Júnior cita, com base em Krippendorff: os dados, que são os elementos

básicos da análise de conteúdo e a superfície da pesquisa; o contexto dos dados,

que precisa ser delimitado de acordo com as convenções e problemas práticos de

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cada disciplina, pois uma mesma mensagem pode ser analisada de forma

diferenciada em áreas distintas; o conhecimento do pesquisador, pois é isto que vai

determinar a construção do contexto dentro do qual serão realizadas suas

inferências; o objetivo da análise de conteúdo, que é a finalidade da pesquisa; as

inferências, que são deduções e relações dos dados obtidos com alguns aspectos

de seu contexto; e a validade como critério de sucesso, já que a validação dos

resultados é importante para que outras pessoas possam comprovar se as

inferências apresentadas na pesquisa são de fato exatas.

O pesquisador Martin Bauer define a análise de conteúdo como um método

de análise de texto desenvolvido dentro das ciências sociais empíricas, onde, cada

vez mais, a atenção está voltada para as qualidades e distinções encontradas no

corpus do texto, antes de qualquer quantificação relacionada a ele.

A análise de texto faz uma ponte entre um formalismo estatístico e a análise quantitativa dos materiais. No divisor quantidade/qualidade das ciências sociais, a análise de conteúdo é uma técnica híbrida que pode mediar esta improdutiva discussão sobre virtudes e métodos. (Bauer p.)

Seguindo estes conceitos, a análise de conteúdo reduz a complexidade de

um texto e produz inferências sobe ele com base no seu contexto social, de maneira

objetivada. De acordo com Bauer, através da reconstrução de representações, os

analistas de conteúdo inferem a expressão dos contextos e o apelo através destes

contextos. “Se enfocarmos a fonte o texto é um meio de expressão. Fonte e público

são o contexto e o foco de inferência. Um corpus de texto é a representação e a

expressão de uma comunidade que escreve”, define ele. Dessa forma, o resultado

de uma análise de conteúdo é a variável independente, a coisa a ser explicada.

Bauer explica ainda que os procedimentos de uma análise de conteúdo

reconstroem representações em duas dimensões: a sintática e a semântica.

Procedimentos sintáticos se enfocam nos transmissores de sinais e suas inter-

relações, descrevendo os meios de expressão e influência, ou seja, como algo é dito

ou escrito. Já os procedimentos semânticos dirigem seu foco para a relação entre os

sinais e seu sentido normal – sentidos denotativos e conotativos em um texto.

De acordo com Laurence Bardin, o desenvolvimento de uma análise de

conteúdo possui três etapas. A primeira é a pré-análise, que é a fase de organização

e sistematização das ideias, em que ocorre a escolha dos documentos a serem

analisados. No caso da futura monografia, o objeto de estudo é a escritora Martha

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Medeiros e a maneira como ela transforma o noticiário em literatura. A partir da

escolha do tema, vem a segunda parte da pré-análise, que é formulação de

hipóteses que buscam responder a questão norteadora da pesquisa.

A segunda etapa é a Análise, onde é constituído o corpus da pesquisa, ou

seja, onde serão apresentadas as crônicas que servirão como base para o estudo

da escritora Martha Medeiros. Em seguida, a leitura dessas crônicas constitui a

exploração do material, segunda parte da Análise.

A terceira e última etapa delimitada por Laurence Bardin é a Pós-análise,

onde constam as Inferências, que são deduções e evidências que surgiram ao longo

da pesquisa, com base no tema estudado. Com isso, será feita a interpretação

parcial do assunto abordado.

8 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

Para estudar a relação das crônicas de Martha Medeiros com as notícias dos

jornais diários serão utilizados diversos livros. Mas, primeiro, é preciso estudar outra

relação: a da literatura com o jornalismo. E para isso, os livros apresentados a seguir

servirão como base para o Capítulo 2 da monografia, que trata deste assunto

8.1 A Crônica – O Gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil,

Fundação Casa de Rui Barbosa

A crônica é um gênero menor. É assim que Antonio Candido define este

gênero, ressaltando que isto não deixa de ser uma coisa boa, já que, por meio dos

assuntos que ela aborda, da composição aparentemente solta, do ar de coisa sem

necessidade que costuma assumir, a crônica se ajusta à sensibilidade de todo dia.

Além disso, Candido acredita que a crônica, ao dispensar uma linguagem rebuscada

e assuntos grandiosos, acaba se aproximando mais da realidade do leitor e ajuda a

estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas. “Em lugar de

oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes,

pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade

insuspeitada. Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas e

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também nas suas formas mais fantásticas, - sobretudo porque quase sempre utiliza

o humor”, diz Candido.

Originalmente, a crônica não tem a pretensão de durar, já que é feita para o

jornal diário. Mas quando ela passa do jornal ao livro, acaba surpreendendo pela sua

durabilidade, antes não imaginada. Segundo Candido, isso acontece porque este

gênero ensina a conviver intimamente com a palavra, fazendo que ela não se

dissolva no contexto, mas ganhe relevo, permitindo que o leitor a sinta na força dos

seus valores próprios.

Hoje, o prestígio da crônica é um bom sintoma da busca de oralidade na

escrita, isto é, da quebra do artifício e aproximação com o que há de mais natural no

modo de ser do nosso tempo. De acordo com Candido, ao analisarmos alguns

autores, percebemos que a crônica deixou de ser um comentário mais ou menos

argumentativo e expositivo para virar conversa.

Além disso, ao mesmo tempo em que fala coisas sem maior consequência, a

crônica também entra fundo no significado dos atos e sentimentos do homem,

chegando, muitas vezes, à crítica social. “Parece às vezes que escrever crônica

obriga a uma certa comunhão, produz um ar de família que aproxima os autores

acima da sua singularidade e das suas diferenças. É que a crônica brasileira bem

realizada participa de uma língua geral lírica, irônica, casual, ora precisa e ora vaga,

amparada por um diálogo rápido e certeiro, ou por uma espécie de monólogo

comunicativo”, define Candido.

8.2 A Crônica Contemporânea de Autoria Feminina: Lya Luft, Marina Colasanti

e Martha Medeiros, Dissertação de Mestrado de Sílvia Barros da Silva Freire

Neste trabalho, Sílvia Barros da Silva Freire analisa a crônica contemporânea

de autoria feminina na perspectiva das questões de gênero. Logo na introdução,

Sílvia apresenta uma definição da crônica que, desde suas produções mais remotas

até hoje, está localizada na fronteira entre o jornalismo e a literatura. Isso porque

tradicionalmente as crônicas são publicadas nas páginas dos jornais e revistas e

tratam de assuntos do cotidiano, muitas vezes se aproximando de matérias

jornalísticas.

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Segundo Sílvia, a crônica pode incluir uma narrativa, pode ser extremamente

poética ou humorística. Pode apresentar análises cinematográficas ou literárias,

enfim, comportar uma série de possibilidades que tanto se apresentam sozinhas

como associadas. Muitas vezes, o cronista se apropria de fatos ocorridos no curto

espaço de tempo entre uma publicação e outra como assunto para sua reflexão.

Tais fatos podem ser de domínio público, ou episódios de seu cotidiano.

Partindo dessas definições, Sílvia estuda a autoria feminina na crônica,

propondo um olhar sobre os papéis de gênero na Literatura Brasileira. As autoras

selecionadas, Lya Luft, Marina Colasanti e Martha Medeiros, são cronistas com

ampla obra em prosa e poesia. Por meio da análise de suas obras, Sílvia busca

compreender a importância dos seus discursos para entender o papel das mulheres

na sociedade contemporânea.

8.3 A Literatura na Poltrona: jornalismo literário em tempos instáveis, José

Castello

O livro reúne artigos sobre literatura e jornalismo cultural, com base numa

entrevista que o autor realizou com a filósofa e escritora francesa Hélène Cixous. A

partir da conversa com a escritora, Castello chegou a conclusão de que um repórter

tem que agir com precaução, cautela, silêncio e escuta e que é preciso se desarmar,

deixar de lado as teses prontas e os pré-julgamentos.

É com essa perspectiva que Castello começa a falar sobre os múltiplos sentidos da

escrita e da leitura, procurando desmistificar todo o romantismo que costuma rondar

o fazer literário. “Todas essas idealizações atribuem à literatura uma espécie de

magia, capaz de produzir efeitos extraordinários, seja na alma, no mundo, no

intelecto, na realidade social, na vida prática”, ele explica.

Segundo Castello, quanto mais o mundo se torna rápido e superficial, mais

potência a literatura acumula. “É imerso no silêncio da sua poltrona que o leitor, em

contato com a literatura, poderá “expandir sua liberdade interior”, diz o autor, que

acredita que a intensidade do encontro do leitor com o escritor pode variar, mas o

mais provável é que dele não se saia incólume.

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8.4 Crônica Brasileira Contemporânea, Manuel da Costa Pinto

O livro Crônica Brasileira Contemporânea, de Manuel da Costa Pinto,

apresenta textos de dez cronistas brasileiros da atualidade. A partir da leitura das

crônicas fica claro que as vivências cotidianas são a matéria prima destes escritores.

Segundo Manuel, os cronistas podem ser considerados autores de pequenos

fragmentos de reflexão cotidiana, sendo esta uma possível definição para a crônica.

Diversos escritores a utilizam para expressar o que não cabe em outros

gêneros literários. Ao lermos uma crônica, estamos diante da visão daquele autor

sobre os fatos do dia a dia, as notícias curiosas que saem diariamente nos jornais,

momentos de nostalgia e indignação provocados por algum acontecimento. Além

disso, a linguagem usada nesse tipo de texto, segundo Manuel, busca a

simplicidade, a poesia embutida no diálogo das ruas, o encanto de gírias e palavrões

e o sabor de clichês linguísticos.

Talvez por essa forma de escrita, que aproxima a linguagem literária da dicção

coloquia e faz o leitor se sentir no meio de um diálogo com o autor, é que a crônica

se tornou tão importante no Brasil. Foi aqui que ela conquistou seu espaço e hoje

pode ser considerada a forma mais genuinamente brasileira de perceber e

representar a realidade, como define Manuel no prefácio do livro.

8.5 História da Imprensa no Brasil, Nelson Werneck Sodré

Para a futura monografia, o capítulo que se destaca na história da imprensa

no Brasil é a inserção da literatura nos jornais. Sodré destaca em sua obra que, no

início, os escritores buscavam encontrar no jornal o que não encontravam nos livros:

notoriedade e dinheiro. Aos poucos, quando a literatura já fazia parte do jornalismo,

começou a surgir algumas mudanças. O folhetim, antes principal símbolo dessa

união de estilos, entrou em declínio e foi substituído pelo colunismo e depois pela

reportagem; a entrevista entrou no lugar do artigo político e temas que antes eram

tratados como secundários, agora ocupavam um espaço cada vez maior, como

assuntos policiais, esportivos e cotidianos.

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Da mesma forma, em meados de 1916, as colaborações literárias começam a

ser separadas nas páginas dos jornais e se tornam matéria a parte. Também

aparecem seções de crítica em rodapé, e esboços dos suplementos literários. Tudo

isso, segundo Sodré, está ligado à tardia divisão do trabalho, que começava a se

impor. Assim, com o tempo, alguns escritores começam a migrar para as revistas,

que por um longo período mantiveram um caráter totalmente literário.

8.6 Jornalismo e Literatura, Antonio Olinto

Antonio Olinto começa seu livro Jornalismo e Literatura dizendo que o

jornalismo é uma literatura sob pressão. “Em todo o mundo, a cada instante, os

cultores desse tipo de literatura lançam palavras sobre o papel, com a preocupação

do tempo que se passa e do espaço que é limitado. As frases ajustam-se a um

tamanho, o pensamento é obrigado a trabalhar depressa. Contudo, por maior que

seja essa pressão, o jornalismo tem, fundamentalmente, as mesmas possibilidades

que a literatura de produzir obras de arte”, diz Olinto.

Apesar dessa definição, o escritor também destaca que os periódicos diários

já apresentam espaço para uma literatura sem tanta pressão e de maior alcance. É

o caso da crônica, gênero literário de maior popularidade no Brasil e que já

conquistou tanto público, que nenhum jornal se arrisca a ficar sem cronistas, por

medo de perder leitores.

Nesta obra de Antonio Olinto também é possível encontrar uma explicação

até mesmo para o estilo da escritora Martha Medeiros, assim como da maioria dos

cronistas. Ele diz que, a todo momento, o homem tem notícias a dar. Não só os

jornalistas, ao colocar essas notícias nos jornais, mas todas as pessoas contam pelo

menos uma notícia para alguém todos os dias, seja para contar como foi o fim de

semana, o que está sentindo ou o que viu no caminho de casa. E são tantas notícias

que, às vezes, a gratuidade e a efemeridade parece tomar conta delas.

Assim, segundo Olinto, cabe ao escritor dar a essas notícias um sentido

capaz de permanência, uma mensagem que consiga atingir o ponto em que todos

os homens se unem, a essência humana das pessoas, onde o tempo não tem

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presença. E é isso que os cronistas fazem. Eles encontram, em cada notícia do

jornal, um ponto que une todos os leitores. Por mais que alguns acontecimentos nos

pareçam tão distantes, a crônica tem em si o motivo para desacreditarmos nisso.

Tudo pode estar perto de nós e fazer sentido, só depende da forma como vamos

olhar. Pelos olhos de um cronista parecem passar todos os olhares.

8.7 Jornalismo e Literatura, Fagundes de Menezes

Logo no início do livro Fagundes de Menezes diz que as fronteiras entre

Jornalismo e Literatura estão se diluindo. A história do jornalismo é apresentada por

ele, que diz que esta atividade da comunicação começou quando o homem

aprendeu a escrever a intervalos regulares. Essa periodicidade ainda é, depois de

tanto tempo, uma carcterística básica do jornal e o distingue de escritos esporádicos.

Por muito tempo, os jornalistas se preocupavam apenas em transmitir as

notícias para seus leitores, de forma clara e formal. Hoje, segundo Fagundes, não é

só isso que as pessoas querem encontrar em um periódico. “O que o leitor procura

no jornal é o pormenor, a minúcia, embora a própria linguagem jornalística seja

atualmente mais sucinta e concisa do que antigamente”. Além disso, os jornais

acabaram se tornando um complemento para as notícias que já foram transmitidas

pelo rádio e pela televisão, por isso utilizam outros atrativos para os leitores: os

artigos, os editoriais, as reportagens, entrevistas, e as crônicas.

São esses textos mais elaborados que fazem com que alguns escritores

considerem o jornalismo, um gênero literário. Outros, até fazem alusão à arte para

defini-lo. Fagundes cita Alceu Amoroso Lima em seu livro. Ele diz que a literatura é

um tipo especial de arte e o jornalismo é um tipo especial de literatura. Tanto o

gênero literário em geral, como a espécie jornalística em particular, são formas

artísticas.

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8.8 Jornalismo e Literatura - A Sedução da Palavra, Gustavo de Castro e Alex

Galeno

O livro Jornalismo e Literatura – A Sedução da Palavra, organizado por

Gustavo de Castro e Alex Galeno, apresenta uma reunião de ensaios escritos por

diversos autores, que tratam sobre a relação entre o jornalismo e a literatura. Um

deles, Rildo Cosson, em seu texto Romance reportagem: o império contaminado, diz

que a literatura é uma espécie de apropriação ficcional da realidade. “A literatura

está sempre dizendo o mundo, mas ao dizê-lo o contrói segundo a sua semelhança”,

define.

O gênero que segue essa definição é a crônica e um dos escritores presentes

nesta obra dedicou seu ensaio a ela. José Marques de Melo, em A Crônica, ressalta

que esse gênero assumiu, ao longo da história, o caráter de relato circunstaciado

sobre feitos, cenários e personagens, a partir da observação do próprio narrador.

Assim, o que vemos nas crônicas dos jornais diários são formas alternativas de

relatar o cotidiano, além de críticas sociais com caráter opinativo. “É o palpite

descompromissado do cronista, fazendo da notícia do jornal o seu ponto de partida,

que dá ao leitor a dimensão sutil dos acontecimentos nem sempre revelada

claramente pelos repórteres ou pelos articulistas.”

Com estas definições, juntamente com todas as outras encontradas nos

demais ensaios, esta obra torna-se imprescindível para o estudo do jornalismo

literário e de cronistas que utilizam o noticiário como fonte de inspiração. Sobre a

ligação entre jornalismo e literatura, uma frase do escritor Juremir Machado Silva, no

texto O que escrever quer calar?, traz uma das possíveis respostas: “A literatura é

uma forma de dizer o mesmo com outras palavras. O jornalismo é um conteúdo dito

de forma que se perca o mínimo.”

8.9 Jornalismo Literário, Felipe Pena

O escritor Felipe Pena define o Jornalismo Literário como linguagem musical

de transformação expressiva e informacional. Segundo ele, o resultado da união

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entre esses dois estilos de escrita pode ser dividido em vários subgêneros, onde a

informação e o entretenimeto não são opostos, mas complementos. “Não se trata

nem de Jornalismo, nem de Literatura, mas sim de melodia”, define Pena.

Tendo como base a história do Jornalismo, a influência da Literatura está

mais presente nos chamados primeiro e segundo jornalismos, quando escritores de

prestígio se fizeram presentes nos jornais e descobriram a força desse novo espaço

público. Foi nessa época, meados do século XIX, que a influência da Literatura no

Jornalismo tornou-se mais visível. “O casamento entre imprensa e escritores era

perfeito. Os jornais precisavam vender e os autores queriam ser lidos. Só que os

livros eram muito caros e não podiam ser adquiridos pelo público assalariado. A

solução parecia óbvia: publicar romances em capítulos na imprensa diária”, diz.

Esse novo gênero literário, que teve que adotar características diferentes para atrair

a atenção dos leitores de jornais, ficou conhecido como Folhetim.

Com este novo gênero, os jornais estavam cada vez mais próximos da

Literatura. Mas foi em 1973 que o Jornalismo Literário ganhou força, com o New

Journalism, ou Novo Jornalismo, que teve seu manifesto escrito pelo americano Tom

Wolfe. Ele diz que os repórteres devem seguir um caminho mais subjetivo e o texto

deve ter valor estético, valendo-se sempre de técnicas literárias.

Mais tarde, em 2005, surgiu o Novo Jornalismo Novo, uma versão atualizada

do New Journalism. Este explora as situações do cotidiano, o mundo ordinário e as

subculturas, assumindo um perfil ativista que questiona valores e propõe soluções.

Além disso, os textos do Novo Jornalismo Novo apresentam um tom informal,

declaratório, quase sem preocupações com a elegância estilística, o que, segundo

Pena, não significa pobreza vocabular, mas sim o desejo de expressar a linguagem

das ruas e se aproximar da atmosfera retratada.

8.10 Jornalismo Opinativo, Luiz Beltrão

Neste livro, como o próprio nome já diz, Luiz Beltrão fala sobre o espaço da

opinião no jornalismo. Normalmente, ela está presente em forma de artigos e

crônicas. Segundo o autor, articulistas e cronistas são autênticos literatos, e, não

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tendo, como o profissional do dia a dia, de submeter-se à maior pressão do tempo

reduzido da produção diária, podem escrever suas matérias de forma que elas se

tornem perenes, o que constitui exceção no exercício da atividade jornalística.

A crônica é a forma de expressão do jornalista para transmitir ao leitor sua

opinião sobre fatos, ideias e estados psicológicos pessoais e coletivos. O comentário

presente neste tipo de texto é leve, concreto e incisivo. O autor cita ainda a

definição de Ralph Lowenstein para a crônica: “O noticiário representa para o

jornalista o seu pão de cada dia… a crônica representa a sobremesa. Ela permite ao

jornalista afastar-se do controle frio, analítico e objetivo do noticiário e trabalhar com

o coração. Dá-lhe a oportunidade de ser subjetivo, emotivo, terno e, sobretudo,

criador.” Dessa forma, a crônica está totalmente ligada à atualidade e à realidade,

interpretadas por meio de reações pessoais do autor. É um gênero flexível e livre

que permite a maior liberdade na hora de escrever.

8.11 Literatura e Jornalismo, José Domingos de Brito

Em sua obra Literatura e Jornalismo, José Domingos de Brito define o

Jornalismo Literário como o casamento entre jornalismo e literatura e cita a frase do

escritor Edvaldo Pereira como base: “jornalismo literário é a reportagem ou ensaio

em profundidade, nos quais se utilizam recursos de observação e redação

originários da (ou inspirados pela) literatura.” Segundo Brito, as características

básicas deste gênero são a imersão, humanização, exatidão, autoria e criatividade.

E a crônica, segmento comum entre jornalismo e literatura, viveu o seu auge nos

anos 1960 e 1970, assim como todo o Jornalismo Literário.

Esse período, marcado por diversos autores, como Norman Mailer e Truman

Capote, teve grande importância, principalmente nos Estados Unidos, e ficou

conhecido como New Journalism, ou Novo Jornalismo. De acordo com Brito, os

repórteres-autores do New Journalism trouxeram para o Jornalismo Literário

algumas técnicas narrativas até então não utilizadas, como fluxo de consciência,

monólogo interior e digressões. Além disso, o importante, neste gênero, é a busca

pelo conteúdo e forma ancorados no real, mas expressos de maneira que chame a

atenção do leitor, como se fosse um dos melhores textos de ficção.

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No Brasil, o Jornalismo Literário teve sua maior força no final dos anos 1990 e

hoje, como cita José Domingos de Brito, “é uma alternativa valiosa para o processo

de busca por compreensão social, assim como fora a literatura realista no século

XIX”. Talvez por isso a crítica à sociedade e a busca pelo entendimento dos fatos

que nos cercam estejam tão presentes nas crônicas diárias.

8.12 O Folhetim e a Crônica – A Influência da Literatura no Jornalismo, Héris

Arnt

Logo na introdução do livro O Folhetim e a Crônica – A influência da Literatura

no Jornalismo, a autora Héris Arnt nos leva para os primórdios do jornalismo e da

sua ligação com a literatura. Segundo ela, a história da imprensa, no século XIX, se

confunde com a própria história do acesso do povo à leitura. Com os escritores cada

vez mais presentes no meio jornalístico, a qualidade dos textos melhorou e isso

levou os jornais a aumentarem as tiragens, criando um público para a literatura.

Héris afirma que a influência dos escritores no jornalismo deu origem a um

jornal mais variado, que apresentava textos com um olhar mais sutil sobre a

sociedade. Foi neste momento que surgiu a crônica, definida pela autora como um

gênero literário e informativo. “Se este aspecto de fonte de informação liga

intrinsicamente a crônica ao cotidiano, à cidade, o estilo literário lhe garante a

perenidade.” Se caracterizando pela forte presença da visão do autor sobre fatos

cotidianos, a crônica tornou-se um gênero em que se misturam informações factuais

e crítica opinativa.

No livro, ainda podemos encontrar, de forma clara, a percepção do lugar

exato em que a literatura se encaixa no jornalismo. Como a autora explica, o

jornalismo possui várias formas e estilos de escrita. O informativo é aquele que

busca ser isento e objetivo, transmitindo a informação para os leitores. O opinativo é

crítico e marcado pela tomada de posição e defesa de ideias políticas e filosóficas. E

é exatamente entre esses dois estilos que se encontra o jornalismo literário. Ele

assume o papel de interligar a informação e a opinião.

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8.13 O Jornalismo como Gênero Literário, Alceu Amoroso Lima

“Os jornais se aproximam hoje das revistas, como as revistas dos livros. E

com isso se transformam, cada vez mais, em instrumentos de um autêntico gênero

literário.” É com essa declaração que Alceu Amoroso Lima introduz seu livro que

trata da relação entre Jornalismo e Literatura. Ele afirma que o jornalismo apresenta

o traço diferencial da literatura ao colocar ênfase no estilo, como meio de expressão.

No início do livro, de 1958, Amoroso Lima enfoca a literatura, definida por ele

como a arte da palavra e, com isso, conclui que o jornalismo tem todos os elementos

que lhe permitem a entrada no campo da literatura, sempre que seja uma expressão

verbal com ênfase nos meios de expressão. “O jornalismo como gênero literário,

deve antes de tudo ser uma arte, isto é, uma atividade livre do nosso espírito no

sentido de fazer bem alguma coisa. Essa obra, para ser arte estética; e não apenas

arte mecânica ou liberal, deve fazer de seu modo de expressão o seu fim, ao menos

relativo. O jornalismo é uma arte da palavra, em que esta possui um valor próprio.”,

diz o autor.

Quanto ao estilo jornalístico, Amoroso Lima ressalta que a objetividade é um traço

natural do jornalismo como gênero literário e o importante é manter o contato com o

fato, que é a medida do jornalista. A preocupação com a verdade também

desempenha um papel capital neste gênero, que o põe mais em contato com o

espírito científico do que a literatura de ficção.

8.14 O Sujeito Comum nas Crônicas de Martha Medeiros, Dissertação de

Mestrado de Letícia Amaral Carlan

Nesta dissertação, a autora busca compreender como as crônicas de Martha

Medeiros representam o sujeito comum. Utilizando como fonte de análise a

produção da escritora, publicada no caderno Donna do jornal Zero Hora, de

setembro de 2011 a fevereiro de 2012, é possível perceber que o sentido produzido

pelos textos de Martha diz respeito a algo que acontece com a maioria das pessoas.

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Uma das formas do sujeito tomar consciência do que acontece ao seu redor é

pela mídia. As notícias dos jornais retratam os acontecimentos de determinada

cidade, estado ou país. As crônicas publicadas nesse veículo são responsáveis por

discutir questões ligadas ao cotidiano da vida social, mas também por mostrar o lado

subjetivo que diversas situações vividas em sociedade acarretam. Portanto, segundo

Letícia, as crônicas tem papel importante na construção da subjetividade coletiva e

refletem a sociedade de uma época.

Dessa forma, a representação que Martha Medeiros faz da sociedade e de

seu tempo é a a chave para o sucesso de suas crônicas e de seus livros. A autora

representa, por meio de seus textos, padrões de comportamento e,

consequentemente, os diferentes tipos de leitores. “Por exemplo, quando a cronista

fala sobre uma peça de teatro a que foi assistir, ela está dialogando com as

pessoas que também têm o hábito de ir ao teatro, ou seja, com a tribo das pessoas

que gostam desse tipo de entretenimento. Se Martha Medeiros escreve sobre o dia

dos namorados, mostrando o quanto é bom estar apaixonado, mas também que o

mais importante é saber viver sozinho, ela está conversando com tribos distintas: a

das pessoas que têm namorados e as que não têm”, exemplifica Letícia.

8.15 Páginas Ampliadas, Edvaldo Pereira Lima

De acordo com Edvaldo Pereira Lima, de todas as formas de comunicação

jornalística, a reportagem, especialmente em livro, é a que mais se apropria do fazer

literário. O jornalismo e a literatura ao mesmo tempo se aproximam e se afastam

desde a última metade do século XIX. Por causa do elo comum da escrita, os

jornalistas já se sentiam inclinados a se inspirar na arte literária para encontrar seus

próprios caminhos de narrar o real.

Na verdade, fica claro no livro, que a literatura e a imprensa acabam se

confundindo até os primeiros anos do século XX, quando muitos jornais abrem

espaço para a publicação de folhetins e suplementos literários. De alguma forma,

segundo Pereira Lima, o veículo jornalístico se transformou numa indústria

periodizadora da literatura.

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Assim, com o tempo, o jornalismo foi absorvendo elementos do fazer literário

e os aproveitando para outros fins. Na literatura não há a necessidade de reportar e

informar e é essa tarefa, a de sair do real para coletar dados e retratá-los, a missão

que o jornalismo exige das formas de expressão que importa da literatura. “Num

primeiro movimento, o jornalismo bebe na fonte da literatura. Num segundo, é esta

que descobre, no jornalismo, fonte para reciclar sua prática, enriquecendo-a com

uma variante bifurcada em duas possibilidades: a de representação do real efetivo,

uma espécie de reportagem – com sabor literário – dos episódios sociais, e a

incorporação do estilo de expressão escrita que vai aos poucos diferenciando o

jornalismo, com suas marcas distintas de precisão, clareza e simplicidade”, define

Pereira Lima.

A literatura tornou-se, então, o canal de transmissão do real, o espaço para

relato de acontecimentos, acompanhamento do cotidiano, elucidação do que ocorre

com uma sociedade em transformação e os efeitos dessa mudança sobre os

indivíduos.

8.16 Pena de Aluguel, Cristiane Costa

Em 1904, o escritor e jornalista Paulo Barreto, conhecido como João do Rio,

realizou uma enquete com os principais intelectuais da época, para saber se o

exercício do jornalismo ajudava ou atrapalhava o exercício da literatura e publicou o

resultado no livro O Momento Literário. Cristiane Costa, em seu livro Pena de

Aluguel ampliou e atualizou esse projeto cobrindo o período 1904-2004, incluindo

mais algumas perguntas na pesquisa.

Sua enquete abrangeu 39 escritores jornalistas de todo o Brasil que

começaram a se destacar a partir da década de 1990. Nesta pesquisa, Cristiane

considerou como jornalistas somente aqueles que efetivamente trabalham na

imprensa como repórteres, redatores e editores, assim como escritores apenas os

que trabalham com a imaginação, produzindo ficção ou poesia. Não estão incluídos

cronistas e colunistas, nem escritores de não-ficção, autores de biografias, grandes

reportagens e ensaios.

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Cristiane dividiu os autores em cinco períodos para traçar uma história

comparada da literatura e da imprensa brasileira. O resultado referente a pergunta “o

jornalismo é prejudicial ou não à literatura?” foi um pouco diferente da pesquisa

realizada por João do Rio. Na enquete dele, que conta com 36 respostas, dez

autores acharam que prejudica; 11 acharam que não; 11 acharam que ajuda, mas

também atrapalha; três não responderam e um não entendeu a pergunta. Na

pesquisa de Cristiane, que abrange 39 autores, apenas cinco acharam que

prejudica; 23 acharam que não prejudica e 11 acharam nenhuma coisa nem outra,

ou uma coisa e outra.

A possibilidade de viver de escrever foi considerado o principal ponto a favor

da imprensa e a falta de tempo e a esterilização da linguagem, os fatores mais

prejudiciais. Mas, da mesma forma como na pesquisa de João do Rio há 100 anos,

achar uma conclusão ainda parece inviável.

8.17 Quando o jornalismo e a literatura trocam de lugar, tese de doutorado de

Maria Elizabeth Chaves de Melo

O trabalho é um estudo sobre os principais escritores-jornalistas brasileiros, a

fim de investigar o ofício e a arte de viver das palavras. Por meio da análise de

escritores como Machado de Assis, Graciliano Ramos e Nelson Rodrigues, Maria

Elizabeth busca delimitar a divisa entre as obras literárias e os textos jornalísticos e

assim compreender onde termina a realidade e começa a ficção, ou onde o ficcional

cede espaço ao real.

Segundo ela, essas fronteiras continuam, na maioria das vezes, indistintas.

Quando a realidade não cabe mais no espaço “oficialmente” a ela destinado,

Jornalismo e Literatura trocam de lugar. Depois da década de sessenta,

principalmente, o jornalismo e a literatura brasileiros seguiram por caminhos

diferentes. Nos jornais, os espaços destinados à opinião e aos textos literários

tornaram-se bem mais delimitados e as matérias jornalísticas passaram a privilegiar

a informação objetiva.

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Maria Elizabeth ressalta que hoje os jornalistas tentam ser o mais imparciais

possíveis e precisam ser éticos, já que a realidade e a ficção serão sempre inerentes

a toda e qualquer narrativa. Mas mesmo com essa clara separação entre jornalismo

e literatura, também é possível perceber que os dois dialogam abertamente.

Exemplos para isso não faltam: a genialidade literária de um escritor pode vir à tona

por meio da experiência e da maturidade de um grande jornalista; por meio da

poética de crônicas encontramos a apreensão de instantes do dia a dia; grandes

obras literárias podem surgir de reportagens.

Dessa forma, Maria Elizabeth conclui que as premissas de Truman Capote,

Gay Talese e Norman Sims, de que a literatura realista/naturalista pode e deve ser

lida, não apenas como obra literárias, mas também como uma grande reportagem,

são verdadeiras. Por isso, é preciso abrir espaço para os textos que sabem dividir

em doses exatas o realismo e a subjetividade.

9 ROTEIRO DOS CAPÍTULOS

1 Introdução

2 Literatura e Jornalismo

2.1 Crônica

2.1.1 Trajetória

2.1.2 Características

3 Martha Medeiros

3.1 Trajetória

3.2 Obra

4 Metodologia e Análise

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10 CRONOGRAMA

Data Atividade

13/03/14 Encontro com a coordenadora de Monografias

20/03/14 Leituras e anotações do Capítulo 2

27/03/14 Entrega da primeira versão do Capítulo 2

03/04/14 Entrega do Capítulo 2 versão final

10/04/14 Leituras e anotações do Capítulo 3

17/04/14 Entrega da primeira versão do Capítulo 3

24/04/14 Entrega do Capítulo 3 versão final

08/05/14 Leituras e anotações do Capítulo 4

15/05/14 Entrega da primeira versão do Capítulo 4

22/05/14 Entrega do Capítulo 4 versão final

29/05/14 Entrega da Conclusão

05/06/14 Entrega da Introdução

12/06/14 Entrega Final

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Livros de Martha Medeiros:

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________________. Montanha-Russa. Porto Alegre: L&PM, 2003.

________________. Trem-Bala. Porto Alegre: L&PM, 1999.

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ARNT, Héris. O Folhetim e a Crônica: A influência da Literatura no Jornalismo. Rio

de Janeiro: E-papers, 2002.

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2000.

BAUER, Martin W. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes,

2003.

BELTRÃO, Luiz. Jornalismo Opinativo. Porto Alegre: Sulina – ARI, 1980.

BRITO, José Domingos de. Literatura e Jornalismo. São Paulo: Novera, 2008.

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CASTELLO, José. A literatura na poltrona: jornalismo literário em tempos instáveis.

Rio de Janeiro: Record, 2007.

CASTRO, Gustavo de; GALENO, Alex. Jornalismo e Literatura: A sedução da

palavra. São Paulo: Escrituras Editora, 2002.

COSTA, Cristiane. Pena de aluguel: escritores jornalistas no Brasil 1904-2004. São

Paulo: Companhia das Letras, 2005.

DUARTE, Jorge; BARROS, Antonio. Métodos e técnicas de pesquisa em

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FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA. A Crônica: o Gênero, sua fixação e suas

transformações no Brasil. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1992.

LIMA, Alceu Amoroso. O Jornalismo como Gênero Literário. São Paulo: EDUSP,

1990.

LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas Ampliadas: O Livro-Reportagem como extensão do

Jornalismo e da Literatura. Barueri, SP: Manole, 2004.

MENEZES, Fagundes de. Jornalismo e Literatura. Rio de Janeiro: Razão Cultural,

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OLINTO, Antonio. Jornalismo e Literatura. Porto Alegre: JÁEditores, 2008.

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PENA, Felipe. Jornalismo Literário. São Paulo: Contexto, 2006.

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2005.

SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad,

1999.

Teses e dissertações:

BARROS, Sílvia da Silva Freire. A crônica contemporânea de autoria feminina: Lya

Luft, Marina Colasanti e Martha Medeiros. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de

Letras, 2009. Dissertação de Mestrado em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).

CARLAN, Letícia Amaral. O sujeito comum nas crônicas de Martha Medeiros. Porto

Alegre, PUCRS, Faculdade de Comunicação Social, 2012. Dissertação de Mestrado

em Comunicação Social.

MELLO, Maria Elizabeth Chaves de. Quando o jornalismo e a literatura trocam de

lugar. Tese de doutorado na Université Sorbonne. 2011.

Sites consultados:

http://www.lpm.com.br/site/default.asp?TroncoID=805134&SecaoID=948848&Subse

caoID=0&Template=../livros/layout_autor.asp&AutorID=607705 Acesso em 26 de

agosto de 2013.

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http://pensador.uol.com.br/autor/martha_medeiros/biografia/ Acesso em 26 de

agosto de 2013.