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O “crime da rua Cuba” e o agendamento da monstruosidade no jornalismo policial dos anos 80 Daniele Ramos Brasiliense (UFRJ) Resumo No fim da década de 80, o jornalismo policial brasileiro é surpreendido por um caso de homicídio que fugia às regras cotidianas dos crimes urbanos da cidade de São Paulo. O famoso caso “crime da rua Cuba” traz a história de uma casal da alta sociedade paulista, Jorge Toufic Bouchabki e Maria Cercília Delmanto, assassinados misteriosamente em sua casa, no dia 24 de dezembro, véspera do Natal de 1988. Com o decorrer das investigações a polícia, apoiada pelos jornais, indica o filho mais velho, como principal suspeito da morte dos pais. Tal evidência se acirra na história deste crime pela contribuição da imprensa, especialmente pelo trabalho dos jornalistas investigativos da época. Com base neste episódio, o artigo irá mapear as marcas do sentido da monstruosidade no jornalismo, provocada pela suspeita de um crime de parricídio nunca oficialmente provado. Importa-nos conhecer a maneira pela qual, os jornais Folha de São Paulo e Estado de São Paulo agenciam a provável atitude monstruosa na época, do jovem Jorginho Bouchabki.

O “crime da rua Cuba” e o agendamento da monstruosidade · Este artigo tem o objetivo de pensar sobre o apontamento por parte da imprensa, ... As ocorrências violentas das cidades

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O “crime da rua Cuba” e o agendamento da monstruosidadeno jornalismo policial dos anos 80

Daniele Ramos Brasiliense (UFRJ)Resumo

No fim da década de 80, o jornalismo policial brasileiro é surpreendido por um

caso de homicídio que fugia às regras cotidianas dos crimes urbanos da cidade de São

Paulo. O famoso caso “crime da rua Cuba” traz a história de uma casal da alta sociedade

paulista, Jorge Toufic Bouchabki e Maria Cercília Delmanto, assassinados

misteriosamente em sua casa, no dia 24 de dezembro, véspera do Natal de 1988. Com o

decorrer das investigações a polícia, apoiada pelos jornais, indica o filho mais velho,

como principal suspeito da morte dos pais. Tal evidência se acirra na história deste

crime pela contribuição da imprensa, especialmente pelo trabalho dos jornalistas

investigativos da época.

Com base neste episódio, o artigo irá mapear as marcas do sentido da

monstruosidade no jornalismo, provocada pela suspeita de um crime de parricídio nunca

oficialmente provado. Importa-nos conhecer a maneira pela qual, os jornais Folha de

São Paulo e Estado de São Paulo agenciam a provável atitude monstruosa na época, do

jovem Jorginho Bouchabki.

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Introdução

Nas primeiras semanas do mês de abril, do nosso presente ano de 2008,

estivemos diante de um caso em que o público gritava por uma verdade e a imprensa

prontamente tentava correspondê-lo: o caso do assassinato da menina Isabella Nardoni.

Em momentos de desconhecimento a respeito do sujeito que havia provocado a

brutalidade de espancar uma criança e jogar seu corpo semimorto pela janela do sexto

andar do prédio onde estava, provocou desespero social e sede de respostas. Ora, quem

poderia fazer isso com uma criança no auge da inocência dos seus cinco anos de idade

se não um monstro?

Esse acontecimento foi inicialmente caracterizado pela contradição de uma

realidade ordenada, ou seja, um assassinato sem explicações aparentes, sem indícios de

invasão no local do crime, de alguém com intuito de cometer um assalto ou uma

vingança, mas especialmente, por ter como suspeito mais próximo, Alexandre Nardoni,

o pai de Isabella. Com uma cobertura intensa, logo nos primeiros dias já ouvimos

acusações por parte da imprensa que pintava Alexandre Nardonie sua mulher, Ana

Carolina Jatobá como monstros sociais, sem que tivessem ainda provas concretas de

suas participações no crime, anunciadas por autoridades judiciárias ou policiais. Mas,

não é nenhuma novidade também, que além de espetacularizar as notícias ao aplicar

purpurinas que dêem a ela um tom mais chamativo, a imprensa brasileira tem poder e

autoridade discursiva, que cotidianamente impregna o imaginário social com suas

“verdades” construídas por narrativas agenciadas.

A morte da menina Isabella e todo o suspense que cercava a investigação desse

caso e especialmente a liberação por habeas corpus dada ao casal depois de uma semana

do crime, pelo desembargador Canguçu de Almeida, fizeram com que o repórter do

Fantástico, Caco Barcelos, levantasse do tumulo o assassinato misterioso do casal Jorge

Toufic Bouchabki e Maria Cecília Delmanto Bouchabki ocorrido em 1988, na rua cuba

do bairro Jardins, na cidade de São Paulo. O desembargador Canguçu havia dado

também liberdade a Jorge Delmanto Bouchabki, filho do casal e único suspeito do

assassinato na época. Conhecido como “O crime da rua Cuba”, a morte do casal jamais

foi decifrada.

O crime da rua Cuba é um dos casos mais antigos de assassinato de família no

Brasil, onde o agendamento da imprensa marca a trajetória de um típico sujeito monstro

que possivelmente assassinou seus pais a sangue frio, mas que segundo a justiça não

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existem provas que o condenem. A imprensa ciente da não existência de provas que

pudessem culpar Jorginho alimentou esse assunto por anos, julgando indiretamente o

rapaz como um monstro criminoso que matou sua própria família. Vale lembrar que

mesmo com todos os indícios apontados para um provável criminoso, o julgamento

deste só deve ser feito após a acusação e condenação judicial feita por provas e

acareações policiais. Portanto, o jornalismo não é a autoridade legal que tem o direito de

proporcionar tal juízo.

Sobre esse agendamento proporcionado pela imprensa no fim dos anos de 1980

que iremos falar neste artigo. Nossa intenção é apresentar sob a forma de reflexão a

cobertura jornalística de um crime sem respostas, mas que obteve em meio às

investigações, sutis verdades apresentadas pelos jornais da época, que não queriam

deixar desamparados seus leitores. A angústia do caso recente da menina Isabella nos

remete a angústia adormecida do crime da Rua Cuba.

Este artigo tem o objetivo de pensar sobre o apontamento por parte da imprensa,

de possíveis verdades que indicam a monstruosidade criminosa de um sujeito que é

diferente e que se encontra no lugar da anormalidade. Justificar um crime e apontar no

um monstro como causador deste é justificar e confirmar os espaços sociais que se

separam entre ordem e desordem.

Desenvolvimento

1- O crime da rua Cuba

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No dia 24 de dezembro de 1988 o casal Jorge Toufic Bouchabki e Maria Cecília

Delmanto Bouchabki foi encontrado morto na cama onde dormiam, com tiros de

revolver na cabeça. Na manhã deste dia, o filho mais velho, Jorginho, havia chegado

por volta das 7 horas na casa da namorada Flávia Cardoso Soares a convidando para um

passeio. Sem entender sua atitude nada comum, Flávia convida o rapaz para dormir,

mas ele não aceita e diz que tem medo de ter pesadelos. O casal de namorados discute.

Antes do meio dia, Jorginho telefona diversas vezes para casa querendo saber se

estava tudo bem por lá. Á tarde, Jorginho volta para casa e encontra as empregadas e o

irmão intrigados com o sono duradouro dos seus pais que ainda não haviam levantado.

Jorginho pede para uma das empregadas para espiar da janela. Ela apóia uma escada e

com um cabo de vassoura, ao conseguir empurrar um pouco a janela de correr, a

empregada consegue ver o casal deitado cobertos por um lençol como se ainda

estivessem dormindo. Jorginho não quis entrar pela janela ou tentar arrombar a porta do

quarto de seus pais por medo de encontrar algum assaltante.

Correu então pelas ruas e ao encontrar uma viatura policial os chamou para que

fossem averiguar o que havia acontecido no quarto dos pais. Os policiais entraram pela

janela e ao puxar o lençol deram conta que ali havia ocorrido um assassinato.

No ano anterior ao crime, um ladrão havia invadido o quarto do casal e foi pego pela

polícia que o prendeu imediatamente. Cogitou-se a possibilidade de vingança deste

sujeito, mas logo depois, encontraram o rapaz em outra cidade onde vivia há algum

tempo.

A mãe de Jorginho era filha de um dos maiores juristas do país, Dante Delmanto e o

delegado que primeiro chegou a casa era o tio de Maria Cecília. Um caso de assassinato

numa família influente chamou maior atenção dos jornais e das autoridades policiais.

De acordo com uma inicial perícia a posição dos corpos mostrava a possibilidade do

marido ter matado a mulher e logo depois se matado. Mas não havia revolver algum na

cena do crime que pudesse levar essa história a diante. A perícia também detectou que

os corpos foram mexidos e o local do crime arrumado.

Sem sinais de arrombamento nas portas e com os muros de plantas intactos, sem

aspecto algum de deterioração, a possibilidade de invasão externa para a casa foi

descartada. O assassino estava dentro de casa, conhecia os cômodos e tinha a chave da

porta do quarto onde as vítimas foram encontradas. Tiros não foram ouvidos, nem a

cadela que tomava conta do quintal havia se manifestado naquela madrugada. O

mistério então, do crime da rua Cuba se firmava diante desses sinais.

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Jorge e Maria Cecília estavam sendo ameaçados de morte por donos de uma

construtora da casa que haviam comprado no litoral de São Paulo.Mas depois do

depoimento que deram na delegacia, ficou fora de cogitação qualquer tipo de

envolvimento destes sujeitos no crime.

A polícia resolve acusar Jorginho por diversos motivos. O primeiro deles está ligado

às informações que a polícia colheu de depoimentos de pessoas que conviviam com a

família. Muitos disseram que Jorginho era agressivo e andava dando trabalho para os

pais e que uma vez atirou a prancha de surf na direção do pai.

Outra evidência mostrada pela polícia para incriminar o filho mais velho, era que

Jorginho entregou a chave do quarto na hora em que o delegado chegou, ou seja, ele

tinha a chave e não tentou abrir a porta para ver o que estava acontecendo com os pais.

E se a porta estava fechada e ele estava com uma chave, poderia ter invadido o quarto e

matado os pais. Na noite anterior ao crime, Jorginho havia mentido para o pai ao contar

que havia passado no vestibular e na manhã do dia 24 o resultado oficial sairia e isso

seria muito vergonhoso para o rapaz.

O revolver do vigia da rua cuba, do mesmo calibre da arma usada contra os

Bouchabki sumiu dias antes da guarita do guarda, no mesmo momento em que Jorginho

chamou o vigia para fazer um concerto na sua casa. Um outro indício muito comentado

pela sociedade foi o fato de logo depois da morte dos pais Jorginho ele se dirigiu ao

clube para se divertir na piscina. Isso aparentava frieza e desapego ao luto familiar.

Todos as acusações feitas pela polícia foram amparadas pelas autoridades que

faziam parte da família e que com seu poder acabaram desconstruindo em defesa de

Jorginho e por proteção ao rapaz alguns indícios apontados pela polícia como

importantes. Mesmo com toda a acusação não se conseguiu provas concretas da

participação de Jorginho no crime e muito menos sua confissão.

O crime da rua Cuba então, é um momento da história da cobertura jornalística de

crimes no Brasil muito contraditória, sem resultados plenos. Mas no entanto, não é por

isso que de alguma forma a imprensa não tenha se colocado como uma autoridade

julgadora, mesmo de forma indireta. Seus discursos são criações retóricas que fizeram

com que Jorginho se enquadrasse no perfil de um monstro.

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O agendamento da monstruosidade

Com o aumento da violência urbana a partir de 1980 os jornais acompanharam sua

evolução paralelamente. Nos anos 80 o jornalismo policial, então, deixa de ocupar um

lugar menorizado nos jornais brasileiros e passa a ser considerado tão importante como

a editoria de política, por exemplo. A cumplicidade entre jornalistas e policiais já

existiam desde a década de 60, mas se firmou ainda mais nessa época. Nos começo dos

anos de 1990 os assuntos de segurança pública passam a ser fundamentais para os

leitores que acompanham o avanço de um pais violento.

Com isso, os jornais marcam suas pautas policiais com as reportagens sobre crimes

que chamem a atenção do público e o trabalho de espetacularização se fortalece a partir

desse agendamento.

As ocorrências violentas das cidades eram gerenciadas pelos textos dos jornalistas

policiais que ficavam com a parte mais emocionante do jornal, onde o sangue escorria.

E foi no momento auge do final da década de 80 que o crime da rua Cuba ocorreu. Era

uma história perfeita para prender o leitor, um crime misterioso sem aparentes

conclusões.

O jornalismo policial especificamente aposta suas fichas nessa escolha simbólica

dos sujeitos envolvidos direta ou indiretamente num crime, condenados ou não, para

que seus discursos se tornem mais confiantes. Não podemos deixar de lembrar do

personagem Mão Branca criado na década de 1970 como uma forma de materialização

da criminalidade. Portanto, verdadeiros ou criados, os sujeitos monstruosos sempre são

prioridade na construção dos discursos da imprensa. Os títulos e textos que apontam os

sujeitos como monstros, assassinos frios e violentos são a base de uma reportagem

policial que irá fazer sucesso entre os leitores.

Enquanto apontar um bandido, traficante ou seqüestrador como monstro faz com

que aumente sua fama de mal e ele se torne uma celebridade criminosa como acontece

hoje em dia com os grandes personagens do tráfico do Rio de Janeiro, por exemplo, ou

como aconteceu com a criação de Mão Branca, ao mesmo tempo, o uso deste padrão de

tipificação de sujeitos criminosos se encaixam em personagens que não foram

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condenados pela justiça, mas que sem pudor, o jornalismo policial se encarrega de faze-

lo.

Os manuais de redação são claros ao dizerem que não existe culpado antes do

julgamento de um crime, mas sim acusado. Ora mais isso muda alguma coisa para

apontar uma pessoa indiciada por um crime como um monstro? Não muda, pois mesmo

como suspeito, as manchetes desejam apontar um personagem que se enquadre como

culpado do crime, por mais que se escolha nos textos o uso da palavra acusado,

indiciado, ao invés de criminoso ou assassino. O jornalismo cotidianamente e há anos

procura sempre apontar um culpado aos seus leitores que aguardam tal resposta.

Interessa-nos aqui, pensar a diferença, como essência da identidade criminosa,

que a partir da representação é marcada pela exclusão. Kathryn Woodward fala sobre

sistemas classificatórios que demarcam o lugar da diferença. Citando Durkheim, a

autora se apóia na idéia de que o sistema classificatório gera ordem à vida social e

produz os significados por afirmações discursivas e por rituais (WOODWARD in

SILVA, 2000).

As concepções de Durkheim acerca da relação entre autoridade moral e consciência

coletiva (DURKHEIM, 1970) podem ser tomadas para pensarmos a atuação da

imprensa, que, ao produzir sentidos através de práticas rituais, estimula os valores uma

vez classificados pela sociedade. Ou seja, a mídia utiliza-se de sistemas classificatórios

observados na cultura para dar sentido e construir representações do mundo social.

Woodward diz que, entre os membros de uma sociedade, há um consenso sobre como

classificar as coisas para manter a ordem social. Neste sentido, entendemos que a mídia

ajuda na padronização e naturalização dos valores determinados pela cultura, e organiza

assim os sentidos separando o puro do impuro e o que pertence à ordem do que não

pertence.

A idéia de ordem e desordem nasce a partir de uma classificação simbólica. Os

criminosos só constituem o lugar da transgressão e da exclusão quando classificados

como tais. Mary Douglas, em Pureza e Perigo, diz que se enxergarmos a diferença

entre dentro e fora, masculino e feminino, com e contra, iremos criar uma aparência de

ordem. Porém, quando as noções de sagrado e impuro se misturam, entramos na idéia

de tabu. O tabu é o elemento demoníaco que não pode ser tocado, é algo intocável,

proibido, misterioso, consagrado e perigoso.

As primeiras reportagens sobre o crime da rua Cuba dão evidência de culpa ao filho

do casal Jorge Delmanto. O jornal Estado de S.Paulo trás na capa do dia 20 de abril,

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meses depois de muita investigação sobre o assassinato dos Bouchabki o título:

“Polícia indicia Jorginho no caso rua Cuba”. A matéria traz duas fotos do lado

esquerdo Jorginho e ao lado a cama do casal morto coberto por um lençol. Os destaques

dos subtítulos das fotografias estampadas em larga resolução eram: “Jorginho, principal

suspeito”e “ crime na véspera de Natal”. Essa matéria coloca Jorginho em um lugar de

destaque não apenas por causa do apontamento policial sobre sua possível participação

no crime, mas especialmente como forma de resposta sobre a “verdade” daquele

misterioso assassinato no qual a sociedade clamava por respostas concretas.

O poder de revelação de um acontecimento, dado por um mediador como o

jornal, contém uma autoridade mundana, onde suas objetividades em pronunciar os

fatos e suas técnicas de ordem se misturam a esta composição do sistema cultural, que

se baseia, como mostra Geertz, apenas em crenças consolidadas. A proclamação da

experiência, ao mesmo tempo em que reafirma, provoca e retifica estereótipos e

normaliza preconceitos, também empobrece determinadas experiências.

A naturalização dos fatos contribui também para a afirmação da imagem dos

sujeitos sociais a partir do senso comum. Tratar a realidade de forma diferente, como

mostra Clifford Geertz (1997), é mais do que uma surpresa empírica, é um desafio

cultural, no mundo onde o aceitável é o que é comum. A familiaridade nos cega,

segundo o autor, quando ficamos imersos no cotidiano.

Sobre essa afirmação de imagens dos sujeitos sociais, Michel Foucault, em sua

obra Os anormais, fala sobre o poder dos discursos psiquiátricos da década de 50

(séc.XX), que tinham, de certa forma, autoridade para condenar um criminoso, ao

relatar seus comportamentos. Foucault classifica tais discursos como grotescos pelo fato

de serem criados por pessoas desqualificadas que detinham efeitos de poder

(FOUCAULT, 2001: 16). Para ele, os discursos sobre os criminosos são “enunciados

que possuem o estatuto de discursos verdadeiros, que detêm efeitos judiciários

consideráveis e que têm, no entanto, a curiosa propriedade de ser alheios a todas as

regras, mesmo as mais elementares de formação de um discurso científico (...)”

(FOUCAULT, 2001:14). Esta observação de Foucault nos remete ao pensamento sobre

os jornalistas e sua relação com os discursos providenciados pelas noções do senso

comum sobre sujeitos identificados como criminosos na sociedade contemporânea. As

“rotinas interacionais”, como propôs Fairclough, são similares no caso dos discursos

psiquiátricos da época e das narrativas jornalísticas sobre as imagens dos indivíduos.

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As concepções arraigadas do senso comum fazem com que os jornalistas

construam lógicas de pensamentos não contraditórias, como as dos relatos psiquiátricos

da década de 50, mesmo na tentativa de usar regras como a neutralidade. Foucault, ao

analisar os relatos dos peritos, percebe que seus valores são princípios para descrever o

criminoso e para criar hipóteses sobre as realidades dos crimes cometidos. Estes

profissionais demonstram ter pensamentos naturalizados pelo senso comum e pelas

noções de tabu existentes na história social. Os raciocínios não se baseiam nas

realidades contraditórias, mas, como relata Foucault, o pensamento se valida de uma

falsa objetividade onde os psiquiatras declaram: “nós como peritos, não temos de dizer

se ele cometeu o crime que lhe imputamos. Mas suponhamos que ele tenha cometido”

(FOUCAULT, 2001: 21). A partir disso, criam-se hipóteses a respeito dos acusados e

geralmente as narrativas são sobre sujeitos que ocupam o lugar da desordem, da

impureza. São indivíduos que quebraram algum tipo de tabu e, portanto, precisam ser

separados.

Assim fazem também os jornalistas, quando, ao relatarem os fatos, apresentam

os criminosos como personagens que são incapazes de interagir com o mundo ordenado,

ou que têm preferência pelo lugar da desordem, sendo estes motivos que os levam ao

crime. As narrativas espetaculares fazem muitas vezes com que a realidade passe do ato

à conduta, como explica Foucault. O comportamento histórico da vida de um criminoso

relatado por um poder discursivo não é nunca visto fora do crime. Todos seus atos são

justificados pela sua maneira de viver a vida. Explica Foucault: “descrever seu caráter

de delinqüente, descrever o fundo das condutas criminosas que ele vem trazendo

consigo desde a infância, é evidentemente contribuir para fazê-lo passar da condição de

réu ao estatuto de condenado” (FOUCAULT, 2001:27).

Como se organiza o discurso da imprensa sobre a condição do sujeito que

cometeu o crime? A imprensa demonstra, a partir das suas idéias tradicionais do senso

comum, o perigo social e faz um discurso direcionado somente para o medo.

A idéia de normalidade nos faz pensar imediatamente a construção do anormal e

do monstruoso. Sobre isso, Foucault diz: “só há monstruosidade onde a desordem da lei

natural vem tocar, abalar, inquietar o direito...” (FOUCAULT, 2001:79). Para ele, a

desordem da natureza e a idéia de formação de um homem mais animal abalam a ordem

e, daí, faz surgir o monstro. É neste sentido que as identidades dos criminosos são

constituídas, como monstros sociais, seres dignos de estar separados do mundo da

normalidade, pessoas dignas de morte de acordo com a mentalidade dos que ocupam o

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lugar da ordem. É este, por exemplo, o objeto da investigação foucaultiana em Eu,

Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão: como se constroem os

diferentes discursos da ordem sobre um acontecimento “monstruoso”, no caso, um

crime de parricídio (FOUCAULT, 1977).

Jorge Delmanto, o principal suspeito da morte dos seus pais em entrevista quatro

anos depois, fala a Folha de S. Paulo sob sua tipificação monstruosa por parte da

imprensa que buscou desde a morte dos seus pais até o último julgamento que o

absolvera transforma-lo em bode expiatório para uma resposta ao caso que jamais havia

sido provado. A morte da família Bouchabki não poderia ser relacionada diretamente ao

filho mais velho do casal, Jorge Delmanto, sem que se concluísse sua culpa por parte da

justiça.

A história de Jorginho nos remete ao caso de Lizzie Bordem em Massachusetts, na

Nova Inglaterra do século XIX. Uma acusação de parricídio cai sobre a jovem Lizzie

Borden, que era a única suspeita por matar seu pai e madrasta a machadadas. Ao

contrário dos monstros originais e cotidianos (pobres, camponeses, sem referência de

família), considerados assim naquela época, Lizzie era uma moça jovem que ensinava

catequese todos os domingos na igreja, única herdeira de um rico patrimônio construído

pelos seus antecedentes e não uma simples camponesa pobre e descrente da ordem

cristã, pronta para ser condenada por uma típica prática de bruxaria. Seus advogados

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conseguiram sua absolvição no julgamento, com argumentos sobre sua fidelidade à

igreja e sua descendência nobre.1

Mas mesmo sendo absolvida pela justiça, Lizzie é condenada pela imprensa da

cidade que, com intuito de vender seu jornal, constrói uma rima popular que começa a

circular na época em que ela passou pelo tribunal. A história do julgamento de Lizzie

teve grande abrangência nacional americana, visto que a jovem e rica donzela não teria

motivo nenhum aparente, assim como Jorge Delmanto, segundo os conceitos

estabelecidos pela ordem, para matar sua família, mas estava sendo acusada pelo

assassinato. A imprensa, então, se responsabiliza em anunciar este possível monstro e,

com ideais consolidados em um determinado tipo de sabá estereotipado, permite com

que sua imagem se aproxime no imaginário social a imagem de uma bruxa. Por muitos

anos, esse episódio foi lembrado pelos jornais, quando o crime fazia aniversário. A

imprensa acusava Lizzie todos os anos, embora ela tivesse sido considerada inocente

pelos juízes. A rima feita para propagar a história de Lizzie é até hoje cantada por

crianças em brincadeira de corda e especialmente em dias de Hallooween: “Lizzie

Borden took an axe; age gave has mother forty wacks; when she saw what she sad

done; she gave her father forty-one”.

Aqui fica a hipótese de que, mesmo tendo passado o tempo de caça às bruxas, na

Idade Média, e os tribunais já não estivessem mais condenando as mulheres por

participação em um sabá, o imaginário coletivo, depois de séculos, não deixa de fazê-lo.

Reparamos, no caso de Lizzie Borden, na condenação da jovem pela imprensa, com sua

fala autorizada, mesmo que a justiça, por falta de provas ou por não conseguir distinguir

ao certo a ordem da desordem, neste caso, diga que há inocência. Por isso, Lizzie

permanece até hoje no imaginário do que diz respeito à bruxaria, pelo folclore popular

das festas de halloween. As marcas populares do sabá, os estereótipos naturalizados por

séculos, davam direito, à sociedade do século XIX e à imprensa da época, a fazer tal

condenação. A grande massa, então, movida por um discurso sobre a verdadeira ordem

e sentindo-se ameaçada por tamanho ser monstruoso, promove uma espécie de

“julgamento merecido” e, consequentemente, sua condenação.

1 As pistas do crime que acabaram levando Lizzie ao tribunal foram todas justificadas, mesmo as mais evidentes. Em quatro de agosto de 1892, Lizzie Borden anuncia para a empregada doméstica de sua família que seu pai estava morto. Logo depois, sua madrasta também é encontrada com marcas da mesma ferramenta que causou a morte do marido. Suspeitou-se de um machado encontrado no porão que, mesmo sem ter marcas de sangue, estava com a alça destruída, como se tivesse passado por uma bruta limpeza. Encontraram sangue nas roupas do quarto de Lizzie, mas essa prova também foi anulada por conta do período menstrual pelo qual a acusada passava.

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Esse julgamento merecido parte da condenação agendada pela imprensa, quando há

exploração da imagem de um culpado. Jorge Delmanto passou a ser o personagem

principal do crime da rua Cuba, onde sua monstruosidade é elegida pela sociedade

como resposta a um crime sem esclarecimentos. Jorginho é a celebridade do crime.

A imprensa individualiza uma realidade absolutamente contraditória como o crime

da rua Cuba ao reduzir seus sentidos a existência de um personagem que ilustre sua

história, que para o leitor será a “verdade” que mais se aproxima daquilo que ele crê que

possa ter acontecido. Faz parte do esquema de construção narrativa da imprensa sobre

um determinado fato, eleger um símbolo que aponte uma “verdade” mais conivente.

Jorge Delmanto além de personagem principal do caso da rua Cuba talvez tenha se

tornado para os jornalistas de policia uma espécie de inimigo, pois com tamanha

aproximação que estes profissionais tinham com a delegacia e especialmente, neste

caso, com o delegado Veloso Sampaio que indiciou Jorginho como suspeito foi afastado

do caso por insistir que ele era o autor do assassinato dos pais.

Meses depois do afastamento do delegado Sampaio, Jorginho volta a depor no

tribunal do júri e a imprensa faz a cobertura e como uma espécie de vingança chama

atenção de uma possível performace feita por Jorginho sob orientação de seu advogado.

Jorginho permanece o principal suspeito de suas narrativas. Esquece-se todas as

contradições do acontecimento e todas as lentes se voltam para a celebridade acusada.

O título da matéria na Folha de S.Paulo do dia 3 de junho de 1989 diz: “Jorginho chora

3 vezes no depoimento que seu advogado considera “excelente”.” A narrativa se

encaminha dessa forma: “A performace de Jorginho foi aplicada e eficiente na

demonstração da distância entre seu temperamento, sua personalidade e a

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possibilidade de ter cometido o terrível crime de matar os pais na véspera do Natal de

1988. Ele foi seguro, tranqüilo, respeitoso, respondeu a todas as questões da juíza sem

cair em contradições, se manteve circunspeto com certa dose contida de sentimento e

choro a cada clímax emocional. José Carlos Dias achou “excelente” o desempenho de

Jorginho. A boa atuação de Jorginho ia contra todas as denúncias da investigação

policial, segundo o acusado, passadas integralmente à imprensa, o que Dias pediu a

juíza fazer constar e o advogado dava uma espécie de troco. “Agora respira-se um

clima diferente: o caso sai da alçada da polícia e passa à plenitude da razão

judiciária”, disse.”

Como se fosse um lobo na pele de cordeiro o comportamento de Jorginho é descrito

no momento em que estava no tribunal. A ênfase do jornal é dada a provável teatral

apresentação do rapaz a justiça. Mas em nenhum momento se coloca em questão se ele

havia feito uma performance, isso é tratado como verdade. É como se o monstro

Jorginho estivesse enganando as autoridades em cumplicidade com seu advogado ao

forçar o choro e ao se comportar bem, coisa que não é natural quando se trata de um

indivíduo reconhecido como monstro após ter sido apontado pela polícia como

assassino de seus pais.

Em novembro deste mesmo ano, o jornal Tribuna da imprensa no Rio publica a

matéria do jornalista José Louzeiro com o título: “Uma pedra no caminho da eficaz

polícia de SP: o crime da rua Cuba.” A polícia de São Paulo passava por bons

momentos nessa época, pois havia sido referência no pais por trabalhos importantes

como o de decifrar a ossada do carrasco nazista Joseph Mengale. E era sobre isso que

Louzeiro estava destacando em sua matéria, o bom trabalho da polícia e a contradição

do crime da família Bouchabki não solucionado. Mas toda a narrativa que Louzeiro faz

do crime parte dos movimentos feitos por Jorginho no dia do crime, seu histórico de

depoimentos e tudo que o poderia julgar como culpado do crime. José Louzeiro se

baseou no livro do colega jornalista de casos policiais, Percival de Souza, que na época

acabava de ter sido publicado. “O Crime da Rua Cuba” é o livro que acusa

deliberadamente em sua narrativa Jorge Delmanto de cometer tal atrocidade com sua

família. Toda a história é contada sob a observação policial do delegado Sampaio e os

rastros e indícios que poderiam ter julgado o filho mais velho como culpado.

Dessa forma ficou conhecido o crime da rua Cuba, pelas narrativas que se

agendaram para incriminar o personagem Jorginho que uma vez indiciado pela polícia

que nunca conseguiu de fato provar sua participação no crime, ficou taxado como um

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indivíduo monstruoso que se encontrava no lugar da desordem social e que com isso

merecia a exclusão, ainda que fosse por exibição da sua figura nos jornais como

mentiroso.

Conclusão

O jornalista especializado em assuntos criminais se dedica a reportar a realidade

violenta da sociedade. Não é mais novidade que a partir de seus discursos, os jornais

enfatizam os crimes cotidianos sob a forma espetacular e como nos filmes de ação e

suspense hollywoodianos convocam a massa por agendamento, a acompanhar os fatos.

A chance de chamar a atenção do público com grandes coberturas de casos

policiais nunca é deixada de lado, ao contrário, quanto mais ênfase for dada a este tipo

de acontecimento, mais autoridade se ganha para apontar suas verdades. Os

infográficos, as fotografias e os textos bem elaborados formam um conjunto discursivo

que contribui para apontar uma “verdade” sobre determinado fato, embora o emblema

jornalístico ainda seja a imparcialidade. Mas é dessa “verdade” que o leitor gosta e essa

preferência se dá por rejeição á dúvida, por não aceitar uma não-resposta ou não-

justificativa sobre qualquer acontecimento que mesmo distante de sua vida pessoal,

fazem parte de sua realidade social. A sociedade se sente desamparada, “sem chão”,

desequilibrada se não conhecer “verdades”, causas ou comprovações sobre os

acontecimentos violentos que a cercam. É mais simples então, por questões de conforto

e segurança, reconhecer verdades afirmativas, impregnadas por um senso comum, do

que entender as contradições que cercam a humanidade em constante conflito.

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