85
 8 O Culto do Pão Sofia Sales Dissertação apresentada à Escola Superior de Educação de Bragança para a obtenção do Grau de Mestre em Animação Artística Orientado por  Professor Doutor Luís Manuel Leitão Canotilho  Bragança 2010

o culto do pão

Embed Size (px)

DESCRIPTION

ténicas de fazer pão

Citation preview

  • 8

    O Culto do Po

    Sofia Sales

    Dissertao apresentada Escola Superior de Educao de Bragana para a obteno do Grau de Mestre em Animao Artstica

    Orientado por Professor Doutor Lus Manuel Leito Canotilho

    Bragana 2010

  • 10

    AGRADECIMENTO

    Na dissertao de mestrado, apesar do processo solitrio a que qualquer investigador/escritor

    est destinado, rene contributos de vrias pessoas.

    Desde o incio do mestrado, contei com a confiana e o apoio de inmeras pessoas e

    Instituies onde pesquisei. Sem aqueles contributos, esta dissertao no teria sido possvel.

    Ao Professor Doutor Lus Manuel Leito Canotilho, orientador da dissertao, agradeo o apoio,

    a partilha do saber e as valiosas contribuies para o trabalho.

    Acima de tudo, obrigada por me continuar a acompanhar nesta jornada e por estimular o meu

    interesse pelo conhecimento e pela vida acadmica.

    A todos, obrigada pela oportunidade de aprender e contribuir.

    Sou muito grata a todos os meus familiares pelo incentivo recebido ao longo destes anos.

    Ao meu filho agradeo o sorriso que me dedicou e peo-lhe desculpa pelo tempo passado longe

    dele. Aos meus pais todo o apoio dado e o meu bem-haja. Ao meu companheiro de vrios percursos,

    Licnio Jorge Pinto Leite obrigado pelo amor, alegria e ateno sem reservas...

    O meu profundo e sentido agradecimento a todas as pessoas que contriburam para a

    concretizao desta dissertao, estimulando-me intelectual e emocionalmente.

    I

  • 11

    RESUMO

    A origem e a evoluo do po acompanham a Histria da Humanidade. A localizao de indcios

    do nascimento da Humanidade a mesma dos vestgios da presena de cereais que foram dando

    lugar s diferentes formas conhecidas do po, alimento base de diferentes civilizaes.

    As grandes civilizaes antigas, egpcia, grega e romana, tiveram neste alimento um centro do

    seu desenvolvimento. Durante a Idade Mdia foi, por vezes, o nico alimento dos povos. Tambm

    assumiu diferentes papis, econmicos, polticos e ideolgicos, em diversos momentos da Histria da

    Humanidade, desde a Revoluo Francesa at I Guerra Mundial.

    Os diferentes processos pelos quais se passa at se chegar ao alimento servem de linha

    orientadora desta investigao: o cultivo e as diferentes caractersticas dos mais diversos cereais

    utilizados, de forma mais ou menos frequente ao longo da Histria, as tcnicas de moagem e as

    tradies populares e mitolgicas que acompanham essa etapa da confeco e o processo de

    cozedura, tal como o significado ou a arquitectura dos fornos, em especial os de lenha.

    Para alm disso de enorme relevncia, seno mesmo primordial nesta investigao, abordar

    as questes ligadas ao simbolismo do po. Os aspectos ligados sacralidade e profanidade

    constituem bases muito bem assentes na cultura judaico-crist que marcam a nossa civilizao

    ocidental. O significado simblico do po bastante vasto e o seu campo semntico envolve conceitos

    muito variados, como a sexualidade e a fecundidade, a religio e as tradies populares ou os mitos e

    conhecimentos mais ou menos cientficos.

    Os rituais que resultam dessa actividade simblica so apresentados nesta investigao

    relativamente ao espao geogrfico portugus do Nordeste Transmontano. O culto do po e as festas

    desta regio so exemplificados atravs de trs casos especficos: Festa de So Gonalo em Outeiro

    (Bragana), Festa do Charolo e do Ramo em Rio Frio e Festa do Bitrr em Soutelo (Bragana). Para

    alm disso objectivo promover a preservao destas tradies populares, atravs da memria e da

    experimentao das mesmas, de modo a potenciar as caractersticas especficas de determinadas

    populaes e territrios. O papel das crianas neste objectivo ser muito importante e, para isso, so

    apresentadas algumas actividades realizadas com crianas do 1 Ciclo do Ensino Bsico.

    II

  • 12

    ABSTRACT

    The origin and evolution of the bread are close of the Mankind History. The evidence location of

    the birth of humanity is the same as evidence of the cereals that were giving rise to the different known

    forms of bread, staple food of various civilizations.

    The great ancient civilizations, Egyptian, Greek and Roman, had this food as the center of their

    development. During the Middle Ages it was, sometimes, the only food of the people. And since the

    French Revolution until the Bolshevik Revolution, through the First World War, bread assumed

    economic, political and ideological roles.

    The various processes by which bread passes until it reaches to food, serve as a guideline to this

    research: the cultivation and the different characteristics of many different cereals used, more or less

    frequent throughout history, the techniques of grinding and traditions and popular mythology that

    accompany this stage of cooking process, such as the meaning of the architecture of the furnaces,

    especially firewood.

    Furthermore, it is of enormous importance, if not paramount in this research, addressing issues

    related to the symbolism of bread. The aspects of the sacredness and profanity bases are very firm on

    the Judeo-Christian culture that marks our Western civilization. The symbolic meaning of the bread is

    quite wide and its semantic field involves very different concepts, such as sexuality and fertility, religion,

    popular traditions and myths and scientific knowledge.

    The rituals that result from this symbolic activity are presented in this investigation from the

    geographic area of northeastern Portuguese (Trs-os-Montes). The cult of bread and the festivals of this

    region are exemplified by three specific cases : Feast of St. Gonalo (Festa de So Gonalo) in Outeiro,

    Feast of the Charolais and the Branch (Festa do Charolo e do Ramo) in Rio Frio and Festival of Bitorro

    (Festa do Bitrr) in Soutelo. Furthermore objective is to promote the preservation of these folk

    traditions, through memory and the trial thereof, in order to enhance the specific characteristics of

    certain population and territories. The role of children in this objective will be very important and,

    therefore, presents some activities with children in primary education are presented.

    III

  • 13

    LISTA DAS ILUSTRAES

    Ilustrao 1- Jeric e a Palestina actualmente......................................................................................................................... 11

    Ilustrao 2 - Exemplo romanizado de uma charrua (exemplar exposto no Museu Etnogrfico Frmista Palencia,

    Espanha) ............................................................................................................................................................................. 13

    Ilustrao 3 - As cheias no Nilo .................................................................................................................................................. 14

    Ilustrao 4 - Encenao da confeco de po no Egipto (Associao Brasileira da Indstria da Panificao).......... 15

    Ilustrao 5 - Esttua da deusa Demter na Grcia ................................................................................................................ 16

    Ilustrao 6 - A organizao de um campo senhorial da Idade Mdia (Miniatura de Pol de Limbourg) ......................... 19

    Ilustrao 7 - A marcha das mulheres parisienses sobre Versailles, no dia 5 de Outubro de 1789 ................................ 21

    Ilustrao 8 - Antoine-Augustin Parmentier (pintura de Franois Dumont) ........................................................................ 22

    Ilustrao 9 - Mapa de fome na Europa em 1918, por Hoover ............................................................................................... 24

    Ilustrao 10 - Utenslios agrcolas pr-histricos ................................................................................................................. 26

    Ilustrao 11 - Espiga de Trigo ................................................................................................................................................... 28

    Ilustrao 12 - Receita de broa de trigo .................................................................................................................................... 29

    Ilustrao 13 - Espiga de Centeio .............................................................................................................................................. 30

    Ilustrao 14 - Receita de po de centeio caseiro ................................................................................................................... 31

    Ilustrao 15 - Espiga de milho .................................................................................................................................................. 31

    Ilustrao 16 - Receita de broa de milho ................................................................................................................................... 32

    Ilustrao 17 - Espiga de aveia ................................................................................................................................................... 33

    Ilustrao 18 - Receita de po de aveia ..................................................................................................................................... 34

    Ilustrao 19 - Espiga de cevada................................................................................................................................................ 34

    Ilustrao 20 - Receita de po fino de cevada.......................................................................................................................... 35

    Ilustrao 21 - Espiga de arroz ................................................................................................................................................... 36

    Ilustrao 22 - Receita de po de arroz ..................................................................................................................................... 37

    Ilustrao 23 - Moinho de poste ................................................................................................................................................. 39

    Ilustrao 24 - Moinho de torre25 ................................................................................................................................................ 39

    Ilustrao 25 - Moinho giratrio25 ............................................................................................................................................... 40

    Ilustrao 26 - Moinho de armao25 ......................................................................................................................................... 40

    Ilustrao 27 - Monho de rodzio ............................................................................................................................................... 41

    Ilustrao 28 - Esquema de um moinho com o rodete submerso (Ciudad Virtual de Antropologia y Arqueologia) .... 42

    Ilustrao 29 - Moinho de mar .................................................................................................................................................. 43

    Ilustrao 30 - Roda de azenha .................................................................................................................................................. 44

    Ilustrao 31 - Fermento ou Saccharomyces cerevisae ......................................................................................................... 45

    Ilustrao 32 - Vnus de Willendorf (exposta no Museu de Histria Natural de Viena) .................................................... 48

    Ilustrao 33 - Pintura de Jean Franois Millet ........................................................................................................................ 50

    Ilustrao 34 - "O conto do padeiro e do diabo", por Ricardo Barros (capa de Jacob, 2003) .......................................... 51

    IV

  • 14

    Ilustrao 35 - A ltima ceia, por Leonardo DaVinci ............................................................................................................... 52

    Ilustrao 36 - Situao geogrfica dos concelhos do Nordeste Transmontano............................................................... 57

    Ilustrao 37 - Vista area do Castelo de Mogadouro ............................................................................................................ 59

    Ilustrao 38 - Traje de um "chocalheiro" ................................................................................................................................ 61

    Ilustrao 39 - Carnaval transmontano ..................................................................................................................................... 63

    Ilustrao 40 - O charolo em Outeiro ......................................................................................................................................... 65

    Ilustrao 41-Esquema da Dana da Pandorcada ................................................................................................................... 67

    Ilustrao 42 - Rosca circular de Rio Frio ................................................................................................................................. 68

    Ilustrao 43 - Ramo de rosquilha do "Bitrr" de Soutelo................................................................................................... 70

    LISTA DAS TABELAS

    Tabela 1 - Finalidade e Objectivos do Projecto Pedaggico

    Tabela 2 - Descrio da Actividade 1

    Tabela 3 - Descrio da Actividade 2

    Tabela 4 - Descrio da Actividade 3

    Tabela 5 - Descrio da Actividade 4

    V

  • 15

    NDICE

    INTRODUO .........................................................................................................................................8

    METODOLOGIA .......................................................................................................................................9

    1. ORIGEM E EVOLUO DO PO ...................................................................................................... 10

    1.1. O PO E A FUNDAO DA HUMANIDADE .............................................................................................. 11

    1.2. EGIPTO, GRCIA E ROMA: EVOLUO, CULTO E USO DO PO .............................................................. 13

    1.3. A FOME (DE PO) NA IDADE MDIA ..................................................................................................... 18

    1.4. O PO NA REVOLUO FRANCESA ..................................................................................................... 20

    1.5. O PO NO INCIO DO SCULO XX. ....................................................................................................... 23

    2 - A ERA DOS GROS. ........................................................................................................................ 25

    3 - A FARINHA ....................................................................................................................................... 28

    O TRIGO .................................................................................................................................................. 28

    O CENTEIO ............................................................................................................................................... 30

    O MILHO .................................................................................................................................................. 31

    A AVEIA ................................................................................................................................................... 33

    A CEVADA ................................................................................................................................................ 34

    O ARROZ ................................................................................................................................................. 36

    3.1 - MOINHOS DE VENTO. ......................................................................................................................... 38

    3.2 - MOINHOS DE GUA. .......................................................................................................................... 40

    MOINHOS DE RODZIO ............................................................................................................................... 41

    MOINHOS DE RODETE SUBMERSO .............................................................................................................. 42

    MOINHOS DE MAR ................................................................................................................................... 43

    AZENHAS ................................................................................................................................................. 44

    3.3 - A DESCOBERTA DO FERMENTO. ......................................................................................................... 45

    4 - O SAGRADO E O PROFANO. .......................................................................................................... 47

    4.1. SIMBOLOGIA DO PO ......................................................................................................................... 47

    4.2. A ARQUITECTURA DOS FORNOS .......................................................................................................... 49

    4.3. O PO E O CRISTIANISMO ................................................................................................................... 50

    4.4. O PO NA COMUNIDADE JUDAICA ....................................................................................................... 53

    4.5. O CULTO DO PO NA REGIO DE TRS-OS-MONTES.............................................................................. 53

    VI

  • 16

    4.5.1. ORAES E CANES AO PO ......................................................................................................... 54

    5 - RITUAIS DE PO .............................................................................................................................. 57

    6 - AS FESTAS E O CULTO DO PO. ................................................................................................... 62

    RITOS DE PO NA FESTA DE SO GONALO, EM OUTEIRO ........................................................................... 64

    AS FESTAS DO CHAROLO E DO RAMO, DE RIO FRIO ..................................................................................... 67

    O BITRR DE SOUTELO........................................................................................................................... 70

    7. INTEGRAO DO CULTO DO PO NO 1 CICLO ............................................................................ 72

    7.1. O VALOR DO PATRIMNIO E DAS CULTURAS POPULARES ....................................................................... 72

    7.1.1. O PAPEL DA ESCOLA NA VALORIZAO DO PATRIMNIO DE UMA REGIO ............................................... 72

    7.1.2. CONSTRUO DE EXPERINCIAS DE APRENDIZAGEM .......................................................................... 72

    7.2. PROJECTO PEDAGGICO.................................................................................................................... 73

    7.2.1. ALUNOS PARTICIPANTES .................................................................................................................. 73

    7.2.2. PROFESSORES PARTICIPANTES ........................................................................................................ 73

    7.2.3. PROJECTO PEDAGGICO: PLANIFICAO E ACTIVIDADES ................................................................... 73

    CONCLUSO......................................................................................................................................... 76

    BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................................... 78

    ANEXOS ................................................................................................................................................ 80

    VII

  • 8

    INTRODUO

    Neste estudo sobre o culto do po pretende-se elaborar uma anlise histrica da evoluo deste

    alimento a par da evoluo da humanidade. Na realidade, qualquer estudo que procure perceber os

    smbolos do po e a ligao deste com a vida mundana ou espiritual do homem, ver-se-ia quase que

    forado a realizar, ao mesmo tempo, uma sntese da Histria da Humanidade.

    O nascimento do po est associado ao nascimento da civilizao, j que a produo intencional

    dos cereais que o podem constituir tem incio no momento em que o homem decide se sedentarizar. O

    decorrer dos factos que se seguem acontece a um ritmo muito semelhante entre a evoluo da

    humanidade e das tcnicas de cultivo e colheita dos cereais e da confeco do po. Alis, aps a

    consulta de uma vasta bibliografia dedicada ao tema, uma dvida reside: qual factor influiu mais no

    outro? Ter sido a evoluo da civilizao que promoveu o desenvolvimento de tcnicas de confeco

    deste alimento? Ou foi antes a aquisio dessas tcnicas que trouxeram consequncias que tiveram

    um importante peso na Histria da Humanidade e nas vicissitudes da civilizao, desde os seus

    primrdios at aos nossos dias?

    Outro aspecto importante que abordado neste estudo, compreende as simbologias atribudas

    ao po. Sagrado e / ou profano, este alimento figura central em inmeras cerimnias antes e depois

    de Cristo. Simboliza fertilidade e apresentou, e ainda hoje tem essa conotao em alguns rituais,

    imagens ou formas nitidamente sexuais e a sua ostentao sinnimo de posio social ou de poder.

    Ainda o smbolo do povo, do trabalho e do labor em contacto directo com a me natureza. Estes

    aparentes paradoxos so apresentados neste estudo atravs da descrio de algumas festas em que

    se faz o culto do po, nomeadamente no Nordeste transmontano.

    Ao longo das linhas que se seguem, pretende-se entender a histria do culto do po, sob uma

    perspectiva de filosofia da histria do homem. D-se valor ao patrimnio, concreto e abstracto, da

    cultura e da tradio popular e faz-se a apologia, pelo conhecimento, da sabedoria que povo sabe e

    transmite atravs das diferentes celebraes que dinamiza.

  • 9

    METODOLOGIA

    Na elaborao do trabalho foi utilizada uma linguagem clara e objectiva, seguindo uma

    metodologia descritiva, para facilitar a sua leitura e compreenso. A metodologia descritiva inicia-se

    com a recolha e apresentao dos dados. Esta recolha deve ser antecedida e permanentemente

    acompanhada de reflexes, que abordem a pertinncia desses dados. Nesta fase deve ser igualmente

    feita uma averiguao sobre se o estudo apresenta necessidade de recorrer a dados qualitativos ou

    quantitativos, ou mesmo a ambos.

    Os dados devem ser alvo de uma descrio, clara e rigorosa, pelo que exigida uma anlise

    sistemtica dos mesmos.

    Ao longo da pesquisa, cujo objecto de estudo a prtica do culto do po associada evoluo

    da humanidade, e aps a recolha de informaes, procede-se interpretao dos dados e apresentam-

    se as ilaes e concluses que dessa interpretao decorrem. importante perceber que impossvel

    interpretar, sem proceder apreciao, classificao e seleco dos dados. Na realidade, este

    processo implica a perda de alguma objectividade, mas, por outro lado, impregna o estudo de

    inteligibilidade.

    A partir do momento em que feita uma interpretao de dados ou informaes, a formao

    ideolgica, cientfica e cultural do investigador impe-se no decurso do estudo. Este vai dar uma maior

    ou menor valorizao de carcter histrico, sociolgico ou econmico de acordo com as

    particularidades que o definem como pessoa e investigador.

    As variveis podem ser dependentes e independentes. Neste estudo a varivel independente o

    valor simblico que o po tem, como alimento e resultado de um trabalho intimamente ligado ao que a

    Natureza oferece. Enquanto que a varivel dependente consiste nas diferentes relaes que este

    alimento vai proporcionando durante a histria e de que forma este alimento e todos os utenslios e

    objectos do seu campo semntico estiveram ligados evoluo da sociedade. A prtica de cultos e

    rituais do po acrescentam outra varivel dependente, que consiste na definio ou situao do po

    como objecto nos campos simblicos do sagrado ou do profano, ou de uma simbiose dos dois campos.

    As concluses que vo sendo apresentadas, revestem-se de caractersticas descritivas e

    explicativas, sendo formuladas da forma mais clara e concisa possvel. No deixam, contudo, de referir

    e traduzir para o texto toda e qualquer ilao que possa derivar da anlise efectuada e revele alguma

    importncia relevante para o objecto de estudo.

  • 10

    1. ORIGEM E EVOLUO DO PO

    Num gro de trigo habita

    Alma infinita.

    Alma latente, incerta, obscura,

    Mas que geme, que ri, que sonha que murmura

    Ramalho Ortigo (Carvalho, 2003)

    A origem do fabrico intencional e repetido do po data da mesma altura em que o Homem se

    sedentarizou e conseguiu dominar a agricultura, dispondo, assim, das matrias-primas que lhe

    permitiram passar a confeccionar esse alimento (Jacob, 2003). No importando para esta dissertao

    uma detalhada exposio e anlise da Histria da Humanidade e, principalmente, da sua origem, no

    deixa de ser relevante entender a ligao dessa evoluo com a do alimento em estudo.

    A progressiva passagem do Homem primitivo de caador para pastor e, ainda mais

    gradualmente, para agricultor assinala, num intervalo de datas extremamente amplo, em especial se

    nos regermos pelo rigor cientfico que caracteriza a sociedade actual, a origem do fabrico intencional do

    po ter entre nove a doze mil anos. Foi, sem dvida, a par da criao e do aperfeioamento das

    tcnicas de fecundao da terra e de cultivo que o po foi evoluindo ao longo da histria da

    Humanidade.

    Durante este captulo veremos como o po acompanhou a Humanidade na fundao do Homem

    primitivo; moldou civilizaes e foi utenslio poltico e religioso nos Mundos da Antiguidade; subsistiu e

    fez subsistir nos sculos de fome da Idade Mdia; foi arma na Revoluo Francesa; ajudou a terminar

    com o conflito da I Guerra Mundial e fundou a revoluo bolchevique.

    Ainda sem aprofundar o significado espiritual e religioso do po, aspecto que deixaremos para

    um outro captulo mais adiante, procuraremos, ento, conhecer estas diferentes dimenses do po:

    desde a sua evoluo como alimento e alteraes e progressos na sua confeco, at s diferentes

    bandeiras que este alimento carregou durante a Histria da Humanidade.

  • 11

    1.1. O Po e a Fundao da Humanidade

    O cultivo dos cereais que permitem a confeco do po no decorreu de uma aco propositada

    e premeditada do Homem, que ter observado e analisado o comportamento das sementes e ter

    percebido como se processava o seu cultivo. Aconteceu, antes, atravs de casualidades e

    coincidncias que, essas sim, foram observadas e constituram-se em experincias que derivaram em

    conhecimento.

    Esse cultivo, necessrio para confeco do po e seus derivados teve o seu incio na colheita

    dos cereais selvagens, que o Homem foi percebendo que podia comer. No entanto, essa percepo s

    acontece quando os pequenos grupos de indivduos, que at a formavam o que se pode chamar de

    comunidades, se sedentarizam e passam a explorar as potencialidades da regio em que se fixam.

    Foram descobertos vestgios de uma comunidade humana que caava e colhia cereal que

    rondar os 10 000 anos a.C. em Jeric, uma antiga cidade da Palestina, muito prxima de Jerusalm,

    situada nas margens do rio Jordo (ver ilustrao 1). Nesta estao foram encontrados gros de trigo e

    de centeio tostados. A colheita destes gros ter sido feita inicialmente mo e mais tarde com recurso

    a pedras talhadas em forma de foice, um trabalho que era realizado por mulheres (Jacob, 2003).

    Ilustrao 1- Jeric e a Palestina actualmente1

    As margens dos rios revelaram-se locais sobejamente utilizados para a plantao de cereais

    uma vez que os agricultores aproveitavam as inundaes para fazerem as sementeiras. Rios como o

    1Fonte:http://4.bp.blogspot.com/_vyrtTA2gDVs/TEV-HOi0gVI/AAAAAAAAAKU/-FwtCGFkvjM/s1600/mapa-

    cidades_ocupadas_270.gif

  • 12

    Nilo e o Eufrates, sitos na rea bero da civilizao humana, so smbolos de fecundidade do cereal,

    tendo sido descobertas, nestas zonas ou em reas similares, vestgios da cultura de cereais. At cerca

    de 4000 a.C. as variedades que se cultivavam no mostravam muitos melhoramentos em relao s

    espcies selvagens, com uma ou outra excepo. Nomeadamente em Jeric, onde os vestgios das

    plantaes l encontradas mostram indicaes de variedades melhoradas de trigo e centeio. O domnio

    das tcnicas de irrigao veio proporcionar esses melhoramentos e intensificou a cultura do trigo e do

    centeio, mesmo em reas que ficavam relativamente longe das sementes selvagens originais que lhes

    deram origem.

    depois destes conhecimentos que o Homem se fortalece, porque no depende unicamente da

    caa para a sua sobrevivncia. Armazena os cereais, aperfeioa a agricultura, aumenta

    demograficamente e faz nascer a noo de sociedade, uma vez que com uma maior esperana de

    vida, passam a existir mais pessoas, com idades e funes diferentes que se relacionam, estratificando

    e hierarquizando a rede de relacionamentos sociais que constituem o embrio da civilizao.

    O cereal, inicialmente ingerido como alimento na sua forma original, cru, tostado ou mesmo

    cozinhado, vai passar mais tarde a ser modo, dando origem farinha. Esta torna-se a base da nutrio

    pelas muitas aplicaes que teve na alimentao dos diferentes povos da Histria da Humanidade,

    como veremos nos seguintes pontos deste captulo.

    Para alm disso, os cereais e o po esto na origem das vias de comunicao, importante marco

    do nascimento da civilizao. Quando as comunidades se tornam sedentrias e se desenvolvem,

    aproveitam as potencialidades da regio em que esto fixadas, o que vai dar origem criao de

    diferentes alimentos em diferentes reas. A necessidade de afirmao de umas comunidades perante

    as outras e a vontade da aquisio do conhecimento e do poder que dele pode derivar, fez sentir no

    Homem um desejo de comunicar. Essa comunicao necessitava de um caminho que se foi abrindo e

    deu lugar s trocas comerciais. As primeiras vias comerciais serviram para trocar alguma espcie de

    cereal por outra, alguma carne por peixe, ou ambos por sementes (Pinto, Couto e Neves, 1993)

    Certa tambm a relao ntima dos cereais, primeiro selvagens, com o aparecimento e

    crescente desenvolvimento da agricultura e das tcnicas que a aperfeioaram.

    O acto de fecundao da terra para a germinao das diferentes espcies cerealferas tem uma

    relao histrica com a mulher. Especulando sobre as tradies seculares que colocavam o homem em

    ocupaes como a caa, a disponibilidade da mulher para a agricultura ter-lhe- permitido descobri-la,

    como teoriza Jacob (2003). Com o progressivo desenvolvimento da agricultura o homem vai poder ter

    os animais perto do local onde vive, domesticando-os e no necessitando de se ausentar e perigar em

    aventurosas e, por vezes, longnquas caadas. E com os animais ao seu servio, da enxada charrua

    foi um pequeno salto.

    Com alguma importncia para o desenvolvimento do tema interessa, ainda, atentar que o

    processo de aquisio das tcnicas agrcolas foi desenvolvido com o nascimento e aperfeioamento de

    um utenslio em especial: a charrua.

    Nenhuma outra inveno se compara com aquela [a charrua]. As invenes da corrente

    elctrica, dos carros elctricos ou dos avies no tiveram a mesma consequncia explosiva, nem

    chegaram a espalhar-se por todo o planeta com a fora transformadora daquele instrumento. O uso da

    charrua, do qual nunca saberemos exactamente onde foi descoberto, cobre o mundo, da Irlanda at

  • 13

    frica do Norte e da Europa at ndia e China. Em stios onde nunca penetraram outras

    transformaes tcnicas, a charrua, contudo, surgiu. (Jacob, 2003).

    Ilustrao 2 - Exemplo romanizado de uma charrua (exemplar exposto no Museu Etnogrfico Frmista Palencia,

    Espanha)2

    Na verdade, o recurso a este utenslio permitiu a intensificao do cultivo, principalmente junto a

    algum rio, de modo a aproveitar a gua, primeiro das inundaes e depois a partir de processos de

    irrigao.

    1.2. Egipto, Grcia e Roma: Evoluo, Culto e Uso do

    Po

    As trs grandes civilizaes do Mundo Antigo, egpcia, grega e romana, representam as

    principais aquisies da Humanidade. A sua histria acompanhou a evoluo do po e este teve um

    papel cimeiro no decorrer destas civilizaes. Na civilizao egpcia ocorreram as principais

    transformaes que acrescentaram variedades ao cultivo e colheita dos cereais e confeco do po;

    os Gregos, sem grandes condies naturais para o cultivo dos cereais revestiram-no de um valor

    emocional e deificaram-no; e os Romanos entenderam o seu valor e aproveitaram-no como utenslio

    poltico.

    O Nilo dota o Egipto das melhores condies para o cultivo dos cereais. No que o Egipto seja,

    na sua totalidade, uma regio com caractersticas propcias para a agricultura, limitando essas

    condies s margens do Nilo. A exactido no calendrio da progresso, das inundaes e da

    2 Fonte:http://www.pueblos-espana.org/castilla+y+leon/palencia/fromista/Arado+romano,+Museo+etnogr%E1fico

  • 14

    regresso das guas deste rio davam as melhores condies para a agricultura: era possvel semear

    os cereais, esperar pela gua e recolher o fruto do trabalho quando o rio baixasse o caudal. Foi esta

    preciso que permitiu o florescimento da civilizao egpcia: a abundncia era uma constante. Na

    ilustrao que se segue podemos observar o sistema de aproveitamento das cheias no rio Nilo para a

    agricultura.

    Ilustrao 3 - As cheias no Nilo3

    A exacta previso das vontades do Nilo, dotou o pensamento egpcio de um clculo que

    aplicou ao trabalho: todos os campos arveis eram cultivados e onde a gua no chegava foram

    construdos canais para a irrigao. No Baixo Egipto havia canais e no Alto Egipto, barragens que

    retinham a gua.

    Mas a grande inovao dos Egpcios para a histria do po est ligada utilizao do forno.

    Enquanto que, at aqui, outros povos coziam os gros em caldos ou tostavam-nos no fogo ou em

    pedras aquecidas, o povo do Egipto descobriu que se o gro modo ficasse algum tempo num espao

    quente formava uma espcie de levedura que aplicada novamente a essa farinha a fazia crescer,

    tornando-a fofa e bastante agradvel ao paladar (Jacob, 2003).

    3 fonte: http://www.francodigi.com/Historia/actividades/nilo/egipto_ficha2.htm

  • 15

    Ilustrao 4 - Encenao da confeco de po no Egipto (Associao Brasileira da Indstria da Panificao)4

    A partir do domnio das tcnicas de confeco e cozedura o po no Egipto tornou-se o alimento

    principal da refeio. Ainda hoje, os ancios egpcios comem os legumes, o peixe ou a carne dentro do

    po. As camadas mais pobres da populao viviam apenas de po e recusar po a um mendigo era

    visto como um enorme pecado e o salrio de um trabalhador era pago em pes.

    A Grcia, por sua vez, no estava dotada das mesmas caractersticas naturais que fizeram do

    Egipto, sedeado nas margens do Nilo, um apogeu da agricultura. As especificidades dos terrenos

    gregos estavam bastante longe de reunir as condies para uma produo agrcola satisfatria: Por

    muito que o clima mediterrnico fosse ameno e favorvel agricultura, a verdade que os terrenos

    eram maus. Terrenos calcrios cobertos por uma fina camada de hmus pobre em argila. Demasiado

    fina para reter a gua e to pouco abundante (Jacob, 2003). Por conseguinte a produo de cereais

    era insuficiente e a cidade de Atenas era obrigada a importar mais de um milho de medidas de cereal,

    o que constitua uma tera parte da totalidade que consumia.

    A forte relao dos gregos com o mar, em conjunto com a necessidade de trazer cereal para o

    seu territrio, fizera com que a sua economia se orientasse para o comrcio de importao de cereais.

    S a partir do sculo VI a.C., com a tomada de poder por parte de Slon e potenciao dos

    agricultores, atravs do perdo de dvidas que estes tinham perante os proprietrios dos terrenos e a

    ascenso de partidos polticos compostos por trabalhadores rurais, que os gregos passaram a

    desenvolver o seu esprito de cultivo. A partir desta altura, o indivduo que trabalhasse a terra era visto

    quase como um sacerdote e o trabalho que at ento era visto como vergonhoso, por tornar o homem

    escravo do esforo e do suor, passou a enobrecer quem o praticava (Jacob, 2003).

    A expresso o culto do po faz todo o sentido na civilizao grega. Demter, uma deusa toda

    poderosa, que dava ensinamentos sobre o domnio das tcnicas da agricultura e no tinha qualquer

    ligao a artes guerreiras, salvara o povo ateniense na batalha da Maratona.

    4 fonte: http://abip.org.br/artigos_internas.aspx?cod=4

  • 16

    Ilustrao 5 - Esttua da deusa Demter na Grcia5

    A referncia a esta deusa traz uma outra reflexo que liga o cultivo dos campos mais uma vez ao

    sexo feminino. Numa sociedade que vivia uma democracia que no considerava seu cidado a mulher,

    no deixa de ser interessante que a figura mitolgica ligada agricultura fosse uma deusa e no um

    deus. Muito possivelmente, e a razo com mais lgica apresentada pelos estudiosos do tema, esta

    nomeao segue um processo sequencial histrico que interliga os conceitos de fertilidade, de semear

    e de gestao. Como uma mulher gera um filho acolhendo a semente do homem, a terra recebe a

    semente e procede sua germinao.

    O culto de Demter generalizou-se por toda a Grcia e surgiram vrios santurios dedicados

    deusa dos cereais e do po que, segundo Plato, se transformou, igualmente, em legisladora e

    protectora da vida sedentria.

    Outro fenmeno que deifica o culto do po pelo povo grego, prende-se com a forma como se

    tratava o cereal. Desde o processo de semear at ceifa, o trabalho era duro e feito base da fora

    dos braos dos homens. Depois a debulha era feita pelos bois que pisavam o cereal. A moagem, esta

    j feita por maioritariamente mulheres, era tambm uma tarefa bastante pesada (Jacob, 2003). Ou seja,

    o cereal era como que um mrtir do homem. Era esmagado, queimado, modo para que o indivduo

    saciasse o seu desejo de se alimentar E como, na generalidade das religies, os mrtires so vistos

    como heris, esta viso acrescenta uma conscincia aos povos, praticamente universal, que

    transforma os sacrificados em deuses ou semideuses.

    No Imprio Romano, mais do que analisar o culto ou a evoluo de algumas tcnicas agrcolas

    ou de confeco do po, interessa atentar na ideia central de que a apologia da agricultura era feita

    pelo prprio Estado. No que se deva desvalorizar o culto de sis e mesmo da deusa grega Demter,

    ou a existncia de uma deusa dos fornos: Fornax! Tambm no esquecemos que, aqui surgiram os

    moinhos mecnicos, em substituio dos manuais. No entanto, a facilitao ou no das ferramentas e

    dos diferentes meios de criao dos cereais e do po guiou a poltica romana, condicionando e

    5 Fonte: http://after-lifee.blogspot.com/2010/04/demeter.html

  • 17

    hierarquizando, por exemplo, a necessidade e a importncia das conquistas de determinadas zonas.

    Ou seja, em Roma observou-se o valor poltico do po. Seno vejamos.

    Os soldados que se destacavam na batalha, quando regressavam das campanhas pelo Imprio

    recebiam terras e transformavam-se em camponeses que faziam amanhar o solo. Outra forma de

    distribuio dos terrenos consistia em arrend-los a indivduos mais ricos, fornecendo, desta forma

    parte do financiamento do Estado. Esta linha de pensamento e aco poltica acabou por representar

    um importante factor para o declnio do Imprio: ao permitir e incentivar os grandes latifndios,

    propriedades dos mais abastados, aniquilava toda e qualquer hiptese de sobrevivncia do pequeno

    campons. Este ltimo, ao no ter forma de concorrer com os grandes senhores, que possuam

    escravos, mais e melhores arados e os animais que necessitavam para auxiliar no trabalho humano,

    no viu outra soluo que no a de colocar-se ao servio dos latifundirios. Assim, acabava por ter que

    se radicar nas cidades e viver com o fantasma da angstia de lhe terem retirado as condies de

    sobrevivncia, obrigando-o a subjugar-se aos interesses dos socialmente superiores (Pinto, Couto e

    Neves, 1993)

    Atravs desta ideia apercebemo-nos, imediatamente, do valor poltico da agricultura em Roma. E

    para acentuar essa teoria, importa referir que a expanso do Imprio Romano para a Pennsula Ibrica

    ficou a dever-se escassez de produtos cerealferos em Roma. Esta zona da Hispnia era rica na

    cultura do trigo, essencialmente nos vales dos rios. Outro plo de expanso do Imprio realizado por

    razes ligadas necessidade de cereais foi constitudo pelo Norte de frica, que em conjunto com os

    cereais provindos da Pennsula Ibrica constituam dois teros do cereal consumido em Roma. Na

    zona norte do continente africano as terras foram intensamente cultivadas e, por ordem de Jlio Csar,

    tiveram um importante suporte poltico que se prendeu com a criao de vrias cidades. Nestas, as

    condies de vida situavam-se num muito bom nvel de bem-estar.

    Tambm nestas zonas do Imprio, as razes do declnio prendem-se com o desprezo dos

    camponeses por parte dos rgos de poder. Os camponeses, no conseguiam se sustentar com o

    cultivo das prprias terras: perto de 50 a.C. metade do solo arvel do Norte de frica estava nas mos

    de apenas seis famlias romanas e s cerca de dois mil camponeses cultivavam a seu prprio terreno.

    Jacob (2003) apresenta muito bem a situao que se vivia no Imprio muito prximo do incio da nossa

    era: A partir de dada altura os camponeses tinham passado condio de arrendatrios nas suas

    antigas terras. Os pequenos arrendatrios eram explorados pelos maiores e os grandes arrendatrios

    prestavam contas a algum senador romano, quando no ao milionrio que se encontrava cabea do

    Estado, o prprio Imperador.

    Assim vista, a histria de Roma acaba por ver as razes do seu declnio pelo aproveitamento

    indevido do valor que o alimento por excelncia, o po, tem para a populao. Em Marx, clebre a

    afirmao de que a revoluo nasce quando h fome. Em Roma, o lema Po e Circo para o povo teve

    sucesso at quando este percebeu que os mais ricos da estrutura social no permitiam que existisse

    uma distribuio minimamente democrtica das possibilidades de riqueza (Pinto, Couto e Neves,

    1993). Se de hoje estivssemos a falar, podamos dizer que, no programa poltico dos responsveis

    governativos romanos, no foi dada a devida ateno aos empreendimentos econmicos ou comerciais

    das pequenas e mdias empresas!

  • 18

    1.3. A Fome (de Po) na Idade Mdia

    A Idade Mdia representa, como sobejamente reconhecido, um perodo da histria da

    Humanidade em que no se verificaram significativos avanos globais da sociedade, que permitissem

    alguma melhoria das condies bsicas de vida. Prova desta estagnao a dbil e irregular

    demografia durante este perodo: alguma crescimento populacional nos sculos VII e VIII, crise e

    estagnao entre os sculos X e XI e uma recuperao crescente aps este perodo (Pinto, Couto e

    Neves, 1993). Nesta longa noite de dez sculos a sociedade adoptou uma rgida estratificao, que

    colocava uma muito pequena minoria no topo da estrutura e uma massa enorme de populao na

    base, com menos direitos, menos condies de vida e em servio dos mais poderosos. Referimo-nos,

    obviamente, s classes altas da nobreza e do clero e classe mais pobre, o povo.

    estagnao tcnica e tecnolgica que se verificou nesta altura, e falamos de cerca de 500 d.C.

    a 1400 ou 1500, ou em termos de marcos, desde o fim do Imprio Romano at ao despoletar do

    Renascimento e dos Descobrimentos, observamos que os plos sociais se situaram numa posio em

    que tiveram um relativo crescimento do nmero de populao superior evoluo da sociedade,

    propriamente dita.

    Este factor, populao a mais do que os meios de subsistncia permitiam sustentar, em algumas

    situaes e locais, trouxe uma consequncia que acaba tambm por ser a causa da ausncia evolutiva:

    no se conseguia produzir alimento suficiente para toda a populao. Aqui falamos, unicamente, da

    classe popular, uma vez que a nobreza e o clero estavam dotados de muito mais do que o necessrio

    para sobreviver.

    A falta de evoluo de tcnicas agrcolas, que ser o que importa analisar para esta reflexo,

    obrigava o homem a ser escravo do trabalho para se alimentar. Se juntarmos a este importante factor a

    obrigao que o trabalhador rural tinha de pagar, em gneros que cultivava, a renda da terra que

    trabalhava e ainda uma outra parte ao Rei que levava mais de metade, e a melhor metade, do fruto do

    seu esforo, vemos facilmente que o ser humano no reunia as condies bsicas para viver e,

    portanto, a dificuldade em evoluir (Pinto, Couto e Neves, 1993)

    No entanto, nos tempos da Idade Mdia, nem sempre se verificou esta subjugao do servo.

    Inicialmente, o proprietrio era obrigado a alimentar bem o trabalhador das suas terras: na antiga

    Inglaterra a traduo do proprietrio significava o homem que distribui o po e a sua esposa era a

    mulher que amassava o po. A ampliao das conquistas dos imprios germnicos e de outros a

    partir do ano de 900 e 1000 transformaram a explorao agrcola em grandes empresas, com nmero

    crescente de servos e sem grandes preocupaes com o seu bem-estar. A explorao agrcola estava

    organizada em senhorios (ver ilustrao 6), enormes propriedades pertencentes classe nobre, onde

    os servos trabalhavam a terra em troca dos bens mnimos para a sua sobrevivncia e da sua famlia.

  • 19

    Ilustrao 6 - A organizao de um campo senhorial da Idade Mdia (Miniatura de Pol de Limbourg)6

    A situao de fome, ou da necessidade de um trabalho extremo para conseguir alimentar as

    suas famlias, fazia com que o servo nada mais fizesse do que trabalhar, da manh noite, a terra,

    para dela conseguir tirar algum proveito, depois de pagas as contribuies ao Rei e ao proprietrio. A

    vida era muito dura e s sobreviviam os mais fortes. O po era o alimento por excelncia das classes

    mais pobres e, ainda assim, estas comiam o po mais escuro e duro, uma vez que os cereais que

    faziam um po mais branco, fofo e saboroso estavam destinados s classes altas.

    Um sintoma muito bvio da fome que existia na Idade Mdia foi a frequncia de pestes e

    infeces que dizimavam populaes desnutridas e fisicamente desprotegidas. A mais famosa foi a

    Peste Negra, que chegou Europa, vinda do Oriente, no sculo XIV e dizimou mais de 10% da

    populao (Pinto, Couto e Neves, 1993)

    6 Fonte: PINTO, A.; COUTO, C. & NEVES, P. (1993) Temas de Histria. Porto Editora, Porto, p.190.

  • 20

    1.4. O Po na Revoluo Francesa

    A fome a me de todas as revolues. E, no caso da revoluo francesa que ditou um enorme

    conjunto de mudanas polticas, econmicas e, acima de tudo, culturais na sociedade europeia, no

    deixa de ser uma afirmao com uma validade total. Mas como se chegou a uma situao de fome,

    depois dos avanos que surgiram na poca renascentista?

    Ao florescimento dos Estados e do desenvolvimento social que decorreu do Renascimento

    sucedeu-se uma etapa de ostentao, em especial dos reis e da vida da corte. Os Estados eram

    meramente gastadores, e gastavam uma riqueza que provinha do trabalho das classes mais baixas,

    principalmente dos que tinham a sua lide nos campos. Pelas seguintes linhas, observamos uma

    interessante descrio da situao que viviam os franceses, no final do sculo XVII, no reinado de Lus

    XIV, Le Roi Soleil:

    os camponeses devoravam urtigas e carcaas de animais em decomposio. Encontravam-se

    crianas e mulheres mortas beira dos prados, com a boca cheia de ervas venenosas. Pelos

    cemitrios andavam os loucos a comer carne dos cadveres () Por volta de 1715 tinha desaparecido

    um tero da populao, seis milhes de pessoas. (Jacob, 2003)

    A fome e a misria estavam impregnadas na plebe ao mesmo tempo que a realeza,

    acompanhada dos seus nobres e clericais vivia grande e francesa. Daqui vem esta expresso que

    significa viver desafogadamente e com o maior esplendor e ostentao possvel. As classes populares,

    trabalhadores rurais, artesos, vendedores, gente que acabava por vaguear nas cidades, em busca de

    alguma fonte de subsistncia, viam os seus poucos bens a serem confiscados e o fruto do seu trabalho

    a ser maioritariamente absorvido pelos impostos. A Frana vivia uma enorme represso, ou era mesmo

    uma grande priso para os seus habitantes, que se viam despojados dos seus direitos. O absolutismo

    do Estado tudo controlava.

    A revoluo precisou de po, e primeiro da falta dele e de educao. Referimo-nos aqui

    educao, antes de abordar a temtica principal dos cereais e do po, uma vez que nesta altura,

    finais do sculo XVII que surge, pela primeira vez no mundo, uma escola grtis e, logo a partir das suas

    fundaes, direccionada e vocacionada para os mais pobres, os filhos dos camponeses e artesos. As

    crianas dos estratos mais ricos tinham j acesso educao, ou por professores ou por escolas para

    nobres. Esta escola universal foi protagonizada por Jean La Salle, tambm ele um membro do Clero, e

    oferecia aos seus alunos os saberes bsicos da escrita e da leitura, a componente prtica de uma

    profisso, formao crist e regras de postura e atitudes na sociedade. Como bvio, esta iniciativa foi

    alvo, por parte do Estado, em funo dos interesses dos mais ricos, de vrias tentativas de destruio.

    No entanto, acabou por se expandir por toda a Frana e ultrapassou mesmo as suas fronteiras. Ainda

    hoje, existem milhares de centros educativos La Salle por todo o mundo.

    Ora, um povo com fome e com alguma capacidade de pensamento e sabedoria pelas iniciativas

    educativas que surgiram nesta altura, foram a base para que, em 1789, se originasse a Revoluo

    Francesa.

  • 21

    Ilustrao 7 - A marcha das mulheres parisienses sobre Versailles, no dia 5 de Outubro de 17897

    A populao comeou por pensar porque razo os camponeses eram tratados daquela forma e

    no eram incentivados a produzir mais cereais, permitindo o Estado que o trabalhador pudesse viver do

    seu trabalho e at mesmo contrair riqueza. Este interesse que comeou a surgir pela produo de

    cereais, incentivou as actividades econmicas que lhe esto interligadas e, desde ao cultivo da

    semente at produo do po, surgiram algumas inovaes. Uma que importa referir, pertence ao

    campo da moagem e trouxe o moinho com uma dupla m que no esmagava demasiadamente o gro

    e permitia, assim, que a farinha no se misturasse com o farelo. A importncia dos moinhos ganhava

    um novo alento e, a sua cincia procurava com se tirasse o melhor partido possvel do cereal, j que o

    farelo no digerido. E o po com grande quantidade de farelo pode enganar o estmago

    momentaneamente, mas no alimenta. (Balland, 2008).

    Um importante investigador da nutrio alimentar nos finais do sculo XVIII foi Antoine-Augustin

    Parmentier (1737 1813). Para alm das contribuies para a nutrio humana o seu trabalho foi

    distinguido na sade e na higiene pblica. Foi ele o responsvel pela primeira campanha de vacinao

    da varicela em Frana. No campo da alimentao foi um pioneiro na extraco de acar de beterraba,

    estudou mtodos de conservao de alimentos, incluindo os de refrigerao e fundou uma escola de

    panificao. O trabalho de Parmentier (ilustrao 8) no teve o mesmo reconhecimento que o teve

    7 Fonte: JACOB, H. E. (2003) 6000 anos de po. Antgona, Lisboa, p.386

  • 22

    aps a sua morte, no entanto as suas ideias foram fazendo crescer na populao o sentimento e a

    vontade de se revoltarem para terem direitos de cidadania.

    Ilustrao 8 - Antoine-Augustin Parmentier (pintura de Franois Dumont)8

    No entanto a tomada da Bastilha no resolveu, por si s, o problema da falta de po. Os cereais

    no apareceram assim que o povo se revoltou. Alis, nos meses que se seguiram a situao de fome,

    da falta de cereais e de po agravou-se e, consequentemente, os episdios de revoltas, pilhagens,

    assassnios brutais e demais atrocidades aplicadas a figuras de autoridade repetiram-se. Estas

    percebiam que, enquanto o problema do po no fosse resolvido o pas no estaria em condies de

    governabilidade. As iniciativas de incentivo agricultura e comrcio de cereais foram surgindo, as

    primeiras foram infrutferas, mas, com o passar dos tempos, o fim da guerra e a desmobilizao da

    revoluo permitiram aos soldados que voltassem terra para a trabalhar (Jacob, 2003).

    Se o po teve efeito directo e a falta dele foi causa da revoluo, os ideais da liberdade e da

    igualdade que dela resultaram tiveram, igualmente, consequncia na distribuio dos cereais. Se

    anteriormente o po mais claro era para as classes mais altas e o po mais escuro para a plebe, o

    primeiro resultante do trigo e o segundo do centeio, depois da revoluo o trigo foi universalizado e, em

    8 Fonte: http://www.artexpertswebsite.com/pages/artists/dumont.php

  • 23

    alguns pases como a Blgica ou a Holanda, o centeio passou a ser usado apenas para as raes de

    gado.

    1.5. O Po no Incio do Sculo XX.

    O incio do sculo passado foi marcado por bastante instabilidade poltica, com muitas alteraes

    de regime e pelas duas guerras mundiais que ocuparam, primeiro, a Europa e, depois o Mundo. Que

    papel teve o po nestas vicissitudes que marcam a histria mundial? A resposta a esta questo passa

    por diferentes fases: se, mais uma vez, a fome e a falta de po teve importante peso para o surgimento

    do segundo grande conflito mundial, na I Grande Guerra, o cereal foi primeiro sustento e depois arma

    para negociar o final do conflito.

    A partir do final da primeira dcada do sculo, a Alemanha promoveu uma crescente procura dos

    cereais, em especial russos. Inicialmente, esta medida foi vista como uma inteno de os alemes

    aumentarem a produo de cerveja. No entanto, quando, em Agosto de 1914, a cavalaria alem

    invadiu a Rssia percebeu-se que os cereais que importara tiveram outro propsito que no o aumento

    da produo de cerveja. Serviram, antes, para alimentar e preparar animais e soldados para o rigor das

    batalhas.

    No entanto, o plano alemo, como sabido, no correu como tinham planeado. A guerra que

    previram curta, acabou por se estender por quatro anos e os depsitos de cereais que haviam

    importado no seriam suficientes para todo este tempo. A situao que se verificou foi, ento, da falta

    de cereais e de consequente fome.

    Primeiro, porque quem importa um bem porque no o tem dentro das suas fronteiras e, logo,

    bastou impedir que chegassem Alemanha cereais para o fabrico de po. Depois, porque a mo-de-

    obra masculina estava ocupada a combater, o que deixava o importante labor de alimentar o pas para

    uma mo-de-obra feminina e infantil, sem capacidade fsica para tal.

    curioso notar que, no ano que a Alemanha inicia a I Grande Guerra, a sua produo de cereais

    tinha sido superior a outros Estados que lhe fariam frente durante o conflito. Ou seja, fica uma ideia que

    se esta nao decide ter uma poltica de pacificao e expanso interna, poderia, atravs do

    crescimento econmico a que estaria sujeita, ter alcanado, de uma outra forma, o desejado domnio

    mundial que ansiou e lutou durante os conflitos.

    No deixa de ser interessante verificar que a soluo que os alemes procuraram para este

    problema assentava na cincia. Surgiu a ideia de que seria possvel fabricar po sem cereais. Com o

    objectivo de fornecer 2000 calorias dirias e 60 gramas de protena necessria para a sobrevivncia,

    foram muitas as experincias de modo a poder substituir o cereal em falta para poder fabricar po.

    Tentou-se produzir po com restos de palha, usaram-se juncos, juntaram-se lquenes da Islndia na

    massa do po, adicionou-se sangue de animais, tratou-se quimicamente a serradura, entre outras

    experimentaes.

    O que certo que nada substituiu o verdadeiro valor nutritivo que resulta dos cereais, tanto

    para a alimentao directa do homem como para as raes dos animais. A nica soluo seria a de

  • 24

    terminar a guerra e permitir que os cereais fossem cultivados, os animais alimentados e se matasse a

    fome a milhes de pessoas. O mapa da fome na Europa, no final da I Guerra Mundial era assombroso

    (ver ilustrao 9). Se tal fosse feito ter-se-ia evitado, logo partida os milhes de vidas que se

    perderam na guerra e depois a tragdia da II Guerra Mundial. A situao de fome em que ficou o povo

    alemo, mesmo depois de terminada a I Guerra, fez crescer um sentimento de revolta, do qual nasce

    Hitler e tudo o resto, conhecido de todos, que da derivou.

    Ilustrao 9 - Mapa de fome na Europa em 1918, por Hoover9

    9 Fonte: JACOB, H. E. (2003) 6000 anos de po. Antgona, Lisboa, p478

  • 25

    2 - A ERA DOS GROS.

    Com quantos gros de trigo um po se fez?

    Dez mil talvez?

    Dez mil almas, dez mil calvrios e agonias,

    Todos os dias.

    Ramalho Ortigo Ramalho Ortigo (Carvalho, 2003)

    O sedentarismo do homem primitivo dotou-o da habilidade de organizar a sua capacidade

    alimentar, uma vez que passou a armazenar alimentos durante mais tempo. Referimo-nos, como ser

    bvio, ao armazenamento dos cereais, inicialmente selvagens, que afastou a necessidade da procura

    diria de alimentos. Procura que derivava, essencialmente da caa, que representava, por sua vez, um

    enorme perigo para o homem e era um importante factor de mortandade. Esta habilidade retirou,

    tambm, peso s calamidades naturais que traziam fome e, consequentemente a morte e a diminuio

    da espcie humana, como os fogos que afastavam os animais ou os Invernos rigorosos que gelavam

    ou afogavam os escassos resultados da pastorcia e da tnue agricultura.

    Poder-se- dizer, por conseguinte, que o incio da Era dos Gros, atravs do seu

    armazenamento, constitui um marco assinalvel, se no essencial, para a evoluo da espcie

    humana:

    Os silos, que nesta altura se resumiam a simples buracos naturais, ou escavados nas rochas

    onde se deitava o cereal protegido por palha ou encerrado em jarras de barro, poderiam, no futuro,

    fornecer alimento suficiente para acudir s primeiras necessidades ou, bem racionados, fornecer

    mantimentos durante largos perodos do ano. (Cruz, 1996)

    Desta forma, a populao sentia-se mais segura, com mais alimento e de melhor qualidade,

    factores que influam directamente no seu crescimento. No entanto, esse mesmo crescimento que

    acontecia por no existirem perodos de fome e carncia, levava por vezes existncia da prpria

    fome: a existncia de populao a mais do que as reservas permitiam alimentar, fazia acontecer que

    estas se esvaziassem rapidamente e a fome voltava. A soluo para este problema cclico foi

    aparecendo com o crescente domnio da agricultura, o que permitia um melhor clculo e racionamento

    tanto da produo como do armazenamento dos cereais.

  • 26

    Este novo valor que os cereais representavam para a espcie humana no substituiu a caa. O

    homem continuou a caar e a pastorear, mas o racionamento destes gros deu-lhe mais segurana,

    por permitir-lhe gerir adequadamente e de forma mais organizada a sua vida. Para alm disso, outro

    factor-causa do crescimento demogrfico foi a melhor capacidade fsica que derivava da melhor

    alimentao, o que acabou por trazer ao caador maior habilidade, mais fora e resistncia para a sua

    exigente tarefa.

    Esta Era dos Gros traz, com a alterao demogrfica que provoca, uma evoluo social, pelas

    modificaes que acarreta. Nascem mais crianas e morrem menos pessoas e o aumento da

    esperana de vida traz novos relacionamentos que at agora no ocorriam: passam a existir membros

    da comunidade mais velhos, o que deriva numa estratificao social e em hierarquias.

    Para alm disso, e mais importante para a evoluo do Homem, passa a existir um maior

    conhecimento global. Se as pessoas vivem mais tempo, acabam por ter mais experincias e a

    aumentar a sua sabedoria. Por outro lado, os mais velhos, dotados dessa sabedoria, tm ainda a

    oportunidade de a transmitir aos mais novos. O homem passa a estar dotado de memria, de cultura.

    Sendo assim, so bastante curiosas as concluses que se podero tirar da analogia da palavra

    cultura, que tanto aponta significados para o desenvolvimento da Humanidade como para o

    crescimento das diversas sementes, como refere Saramago (1996): no ser por acaso que assim se

    chama tambm o acto de trabalhar a terra para o nascimento dos cereais. Nasceram, ao mesmo

    tempo, a cultura dos povos e a cultura das plantas..

    No haver muitas dvidas de que os cereais trouxeram as condies para o nascimento e o

    desenvolvimento da civilizao humana. Se no vejamos, para os cultivar, o Homem necessitou de

    aperfeioar as suas tcnicas agrcolas, adquirindo, transmitindo e fazendo evoluir conhecimentos de

    mbito metalrgico ou cermico, para a criao de ferramentas de trabalho e utenslios de reserva e

    armazenamento. Veja-se a figura abaixo.

    Ilustrao 10 - Utenslios agrcolas pr-histricos10 11

    10 Fonte: http://www.mapc.com.br/cultura/tecnologia.html

  • 27

    Por outro lado, as trocas comerciais tiveram a sua gnese tambm em ligao com este capital:

    se uma comunidade tinha as melhores condies, naturais ou tcnicas, para o cultivo de determinado

    cereal, poderia no as ter para outro, o que proporcionou as condies para se realizarem os primeiros

    negcios da espcie humana. Podemos ainda acrescentar que daqui tambm nasceram as primeiras

    vias comerciais, necessrias para essas trocas de bens.

    Neste captulo, importa ainda referir que, provavelmente o cultivo dos cereais ter nascido de

    coincidncias e casualidades. No ter sido o Homem a perceber que poderia colocar esta semente e

    ela daria os seus frutos, mas antes dever ter acontecido que, aquando da colheita dos gros

    selvagens, alguns foram caindo fora da zona de onde cresciam e a forma crescendo novos campos

    cerealferos. No entanto, o rigor cientfico no pode ser aplicado nestas afirmaes. O que se pode

    presumir que, no cultivo dos cereais existir uma forte relao com o sexo feminino. Provavelmente a

    apanha dos cereais, inicialmente selvagens, seria feito pelas mulheres, uma vez que os homens se

    dedicavam essencialmente caa, o que explica, a tradicional ligao da fecundidade feminina ao

    desabrochar das sementes.

    Os gros, como componente da alimentao do Homem, eram ingeridos, enquanto semente, no

    seu estado cru ou tostados, depois de serem queimados, ainda nas espigas, para os fazer sair. O facto

    de estarem torrados facilitava a sua mastigao e fazia prolongar o seu tempo de conservao. Com a

    utilizao de utenslios cermicos e a confeco de caldos, os gros eram tambm colocados nesses

    caldos para cozerem. Mais tarde, com o aparecimento dos moinhos, o Homem vai esmagar os gros e

    transform-los em farinha.

    11 Estas ferramentas agrcolas primitivas datam do ano 6000 a.C. O machado (abaixo) servia para abrir clareiras, as

    foices (esquerda) para colher cereais, uma rocha plana e outra arredondada (centro) serviam para moer gros, e as lminas

    de argila perfuradas (acima direita) provavelmente serviam para ventilar os fornos onde se fazia o po.

  • 28

    3 - A FARINHA

    Com quem tiver moinho a andar no te ponhas a soalhar!

    Provrbio popular portugus Ramalho Ortigo (Carvalho, 2003)

    O principal ingrediente do po , como bvio a farinha, que resulta da moagem de vrias

    substncias, nomeadamente os cereais. Para perceber a passagem do gro a farinha, preciso no

    esquecer que o uso do cereal para a confeco do po ocorre depois da confeco de papas, uma vez

    que o processo de moagem precisou de se desenvolver. A inveno dos moinhos manuais primitivos

    representou um dos primeiros passos para que o Homem dispusesse dos ingredientes necessrios

    para a confeco do po: a farinha, com a adio de gua subjugada ao fogo.

    O primeiro processo de moagem praticado pelo homem resultou da frico de um pedao de

    madeira ou de pedra com uma extremidade arredondada contra uma superfcie cncava, com encaixe

    entre uma pea e outra, permitindo a colocao do material a ser modo entre uma e outra, falamos

    obviamente do almofariz.

    A farinha pode resultar de diferentes cereais: trigo, centeio, milho, aveia, cevada, arroz e outros.

    Cada um destes tem caractersticas diferentes e particularidades na confeco da farinha e do po,

    bem como percursos histricos distintos.

    O trigo

    Ilustrao 11 - Espiga de Trigo12

    12 Fonte: http://www.cceseb.ipbeja.pt/ecos/agrup/alun_actividades_eventos_vid.htm

  • 29

    Para Cruz (1996) o trigo , de longe, o mais importante cereal para a fabricao da farinha de

    po em todo o mundo. O seu cultivo ter mais de 8000 anos, ter surgido nas margens do rio Eufrates,

    actual Iraque, e deu origem a muitas espcies. Os mais comuns so o trigo candeal, o trigo estival, o

    trigo espelta ou o trigo duro.

    Nas zonas mais amenas do globo, como o Norte de frica ou o Mdio Oriente a sua colheita

    decorre entre Maro e Abril, enquanto que nas zonas mais frias, a sua ceifa acontece a partir final de

    Junho e incios de Julho, j no Vero. Actualmente, graas aos avanos cientficos que trouxeram

    seleces e cruzamentos, apuraram-se espcies possveis de serem cultivadas a 4000 metros de

    altitude ou em plancies frias. Do Alasca Escandinvia e da Argentina Sibria, a sua colheita vai

    desde Janeiro no hemisfrio austral at Novembro ou Dezembro nos pases tropicais. Estas

    particularidades fazem com que este cereal tenha uma rea de cultivo superior a 240 milhes de

    hectares e estima-se que sejam produzidas mais de um milho de toneladas por dia e os principais

    produtores mundiais so os Estados Unidos da Amrica, a China, a ndia, a Rssia e a Ucrnia. Na

    Europa, a Frana tem um lugar de destaque e no hemisfrio sul a Austrlia, a frica do Sul e a

    Argentina so grandes exportadores.

    As condies ideais para o cultivo do trigo exigem uma boa drenagem do solo e para o bom

    amadurecimento dos gros deve haver bastante sol e uma temperatura do ar entre os 22 e os 24 C.

    Em termos da sua composio bsica destaca-se a riqueza em vitaminas E e B, a abundncia de

    carbo-hidratos (amido), protenas (em especial, glten), fibras e sais minerais. Da farinha de trigo

    resultam os pequenos pes de fabrico industrial, presentes no dia-a-dia actual e que so apelidados de

    vrios nomes, de acordo com a regio: papos-secos, carcaas, po espanhol, brandeiras, entre outros.

    Ilustrao 12 - Receita de broa de trigo13

    13 Fonte: http://www.gastronomias.com/receitas

    Broa de Trigo

    Ingredientes:

    500g de farinha de trigo fina

    10g de fermento de padeiro

    1 colher de banha

    10g de sal

    3dl de gua

    Preparao:

    Misture a farinha com o sal e junte-lhe a banha, trabalhando-a com a ponta dos dedos para a incorporar na

    massa. Adicione o fermento desfeito num pouco de gua, que deve estar amornada, e misture. Sempre

    amassando a farinha, v juntando mais gua at obter uma massa suave, elstica e bem homognea. Molde

    em bola e ponha numa tigela ou num alguidar, previamente untado com um pouco mais de banha e

    polvilhado de farinha.

  • 30

    O centeio

    Ilustrao 13 - Espiga de Centeio14

    Este cereal ter surgido mais tarde do que o trigo, provavelmente na Idade do Bronze, entre os

    anos 3000 e 3500 a.C., com origem nas montanhas perto do Mar Mediterrneo. A sua utilizao, para

    alm do fabrico de po, estende-se alimentao do gado ao fabrico de bebidas alcolicas, como

    cerveja, usque e aguardente. Pelo facto de ter uma grande resistncia ao frio e de no ser muito

    exigente no que respeita qualidade dos solos em que semeado, o centeio viu a sua contribuio

    para o fabrico do po ser muito considerada. Numa altura em que as diferentes variedades de trigo no

    estavam to bem aperfeioadas de modo a resistir a climas mais frios como esto actualmente, ou pela

    razo histrica de que o po mais branco e mais saboroso seria para os senhores da terra, o centeio

    era maioritariamente utilizado pelas populaes. Os seus principais produtores mundiais so a Rssia,

    a Polnia e a Ucrnia. Numa segunda linha esto pases como a Espanha, Alemanha ou China. Em

    Portugal, as zonas da Beira Interior e de Trs-os-Montes tem vastos campos de cultivo de centeio.

    Por estar associado s classes mais pobres, o centeio viu-se preso a alguma fama menos

    positiva. A esta situao poder estar associado o facto deste cereal ser muitas vezes atacado por um

    fungo, a cravagem. A doena que o fungo provoca hoje facilmente controlada, mas numa altura em

    que no existia uma cincia mdica eficaz, as classes mais pobres eram muitas vezes afectadas por

    este mal, j que subsistia na sua alimentao o po de centeio. De nome cientfico Claviceps purprea,

    a cravagem tem vrios nomes populares: corno do centeio, gro de corvo, cornicho, dento, centeio

    negro esporo do centeio.

    A composio alimentar e o valor do centeio so muito similares s do trigo. No entanto, uma

    vez que as suas farinhas so mais escuras do origem a um po acastanhado e mais pesado. Odiados

    por alguns, mas venerados por outros existe uma panplia de pes possveis de se fazer com a farinha

    de centeio: po cabreiro (com queijo), po de cerveja, po de azeite, entre outras receitas.

    14 Fonte: http://bp3.blogger.com/_HKR2O4gcwl4/R0StOz3K2iI/AAAAAAAAAgg/UgzRtdrFDIU/s1600-h/Centeio.jpg

  • 31

    Ilustrao 14 - Receita de po de centeio caseiro15

    O milho

    Ilustrao 15 - Espiga de milho16

    O milho o terceiro cereal mais cultivado no mundo, depois do trigo e do arroz. Chegou

    Europa h meio sculo vindo do continente americano e depressa dominou a cozinha do po. Nas

    investigaes sobre as civilizaes Maia e Azteca encontraram referncias e vestgios que indicam que

    15 Fonte: http://www.moo.pt /receitas

    16 Fonte: http://2.bp.blogspot.com/_wLceRuQV4bk/SQntrpD8vsI/AAAAAAAAAN8/aSLQQCopsHA/s1600-h/milho.jpg

    Po de Centeio Caseiro

    Ingredientes:

    500 gr de centeio

    1 kg de farinha de trigo

    1 xcara(s) (ch) de leite

    2 copo(s) de gua morna(s)

    1 colher(es) (sopa) de sal

    1 colher(es) (sopa) de manteiga

    1 colher(es) (ch) de acar Unio

    2 tablete(s) de fermento biolgico fresco

    Preparao:

    Dissolva o fermento no leite morno junte o acar e deixe levedar por 20 minutos. Adicione os demais

    ingredientes intercalando com a gua morna at sentir, que a massa desgrude das mos. Coloque a massa

    numa tigela e cubra com plstico, deixe crescer por uma 1 hora. Torne a sovar bem a massa (de preferncia

    apenas com as palmas das mos para a massa no grudar), divida-a em duas partes e coloque em duas

    assadeiras tipo po de forma bem untada.

    Deixe crescer at dobrar de volume, pincele com gua fria e leve ao forno quente (pr-aquecido) por

    uma 1 hora aproximadamente.

  • 32

    o cultivo deste cereal ter mais de 4000 anos. Em Portugal, em especial no Litoral Norte, so vastos e

    muitos os campos de cultivo de milho, uma vez que as condies ideais para o seu cultivo devem

    reunir um clima ameno e hmido. Nesta zona portuguesa muito famosa broa de milho.

    Os grandes produtores mundiais deste cereal so os Estados Unidos da Amrica, o Mxico, a

    Itlia, a Frana, a China, a Argentina e o Brasil. Portugal, sua dimenso, tem, tambm um lugar de

    destaque na sua produo. Em termos de composio alimentar, este cereal mais pobre que o trigo e

    o centeio em glten, mas mais rico em amido, exigindo que, para o fabrico de po base deste cereal,

    sejam necessrias algumas farinhas provenientes de outros cereais. muito rico em vitamina A e sais

    minerais, mas a falta de vitamina B faz com que, em quem tenha uma alimentao muito exclusiva dos

    derivados de milho, se manifeste uma doena com o nome de pelagra17, caracterizada por uma pele

    escamosa e seca.

    A utilizao culinria da farinha de milho ampla: para alm do fabrico de po, usa-se em

    papas, no espessamento de molhos (como fcula), na confeco de bolachas e pes no levedados e

    de muitos doces. O gro inteiro ou com alguma preparao d origem aos flocos de milho (cornflakes),

    a bebidas alcolicas (usque americano e bourbon) e s famosas pipocas. Tambm possvel ser

    comido enquanto no completou o processo de amadurecimento, cozido ou assado em brasas.

    Ilustrao 16 - Receita de broa de milho18

    17 Pelagra - s. f. (fr. pellagre; ing. pellagra). Doena devida a uma carncia de vitamina PP (V. nicotinamida), observada nas populaes que se alimentam habitualmente com milho ou outros cereais pobres nesta vitamina. Traduz-se por placas vermelhas eczematiformes da pele das partes descobertas, inflamao da mucosa bucal e da lngua, gastrenterites e perturbaes nervosas (astenia, insnia, cefaleias, etc.). Sin. de avitaminose PP. (adj.: pelagroso.)

    Fonte: Climepsi Editores [www.climepsi.pt]

    18 Fonte: http://www.gastronomias.com/receitas

    Broa de Milho

    Ingredientes:

    2 kgs. de farinha de milho (amarela);1 kg de farinha de trigo;30 grs. de fermento de padeiro;150 grs. de

    crescente (massa levedada da broa anterior); gua q.b.

    Preparao:

    Peneira-se a farinha de milho para um alguidar. Adiciona-se a farinha de trigo e mistura-se tudo. Aquece-se

    gua numa panela. Amasse a farinha, adicionando a gua quente. Junta-se o crescente e o fermento de

    padeiro. Amassa-se tudo, de modo a massa ficar com uma consistncia mdia. Tapa-se o alguidar com um

    pano e um cobertor de l. Coloca-se num local de temperatura amena e sem correntes de ar, para a massa

    levedar. Aquece-se o forno de lenha. Quando o forno estiver bem quente puxam-se as brasas para a boca do

    forno. Traz-se o alguidar com a massa lveda para junto do forno e comea-se a tender a broa para um

    tabuleiro previamente polvilhada com farinha. Coloca-se a broa no forno com o auxlio de uma p polvilhada

    com farinha, a fim de cozer, tendo o cuidado de comear do fundo para a boca. Tapa-se a boca do forno. Vai-

    se verificando se a broa no est a ficar queimada e, se necessrio abre-se um pouco a porta do forno. No fim

    de cozida, retira-se do forno e coloca-se no mesmo alguidar que serviu para amassar e deixa-se arrefecer.

    Deve-se reservar um pouco de massa lveda para servir de crescente na vez seguinte. Essa massa colocada

    no alguidar que serviu para amassar, que se tapa e guarda em local fresco.

  • 33

    A aveia

    Ilustrao 17 - Espiga de aveia19

    A origem da aveia ter tido lugar durante a era do neoltico, h 8000 anos, e ter derivado da

    gramnea bravia que crescia como erva daninha nas culturas de trigo no Ocidente do continente

    europeu. As condies para o seu cultivo no apresentam grandes exigncias: suporta o duro clima do

    frio no Norte europeu e cresce em terras cidas, saibrosas e pouco frteis.

    A sua composio alimentar similar do milho, verificando-se a mesma situao no que diz

    respeito sua culinria: a carncia de glten obriga a presena de farinha de outros cereais.

    Medicinalmente, segundo Cruz (1996), esta planta tem atributos notveis, sendo os produtos feitos

    com o gro ou com a farinha integral dele resultante, muito alimentcios, completos, reconstituintes, de

    fcil digesto, ligeiramente diurticos e laxativos. Estas propriedades devem-se presena de

    vitaminas A, B, C e PP, de aminocidos, enzimas, polipptideos, clcio, fsforo, ferro e at de

    alcalides. J na antiguidade, da aveia fazia-se uma bebida calmante e diurtica e, acompanhada de

    mel, era utilizada para tratar certas maleitas respiratrias (Gatto, 2005).

    O seu consumo no se generalizou nos locais e povos onde existiam mais abundante e

    facilmente outros gros de cereal, como o trigo, o milho ou o centeio, ou seja no Ocidente europeu. No

    entanto, no Norte deste continente existem variadssimas aplicaes da aveia: na Bretanha preparam-

    se sopas, papas e doces, do lado ingls e do lado francs, na Alemanha, na zona do Bltico e na

    Bielorrssia confeccionam-se sopas e papas de smola. Actualmente, mundial o consumo de flocos

    de aveia ao pequeno-almoo.

    19 Fonte: http://www.fundacaoms.org.br/page.php?32

  • 34

    Ilustrao 18 - Receita de po de aveia20

    A cevada

    Ilustrao 19 - Espiga de cevada21

    Da cevada julga-se ter sido a primeira a ser cultivada pelo Homem, com origem numa variedade

    que cresce no Sudoeste Asitico. Esta planta tpica das zonas frias e dos planaltos elevados e

    apresenta algumas variedades que se distinguem pelo nmero de gros na espiga.

    20 Fonte: http://www.moo.pt/receitas/ 21 Fonte: http://www.cnpt.embrapa.br/biblio/co/p_co112_f1.htm

    Po de Aveia

    Ingredientes:

    500 gr de farinha de trigo

    10 gr de sal

    20 gr de acar

    50 gr de gordura vegetal hidrogenada

    5 gr de acar

    125 gr de aveia em flocos

    20 gr de fermento

    300 ml de gua

    35 gr de farinha de aveia

    Preparao:

    Misturar o fermento com o acar. Em seguida, adicionar o resto dos ingredientes at obter uma massa

    lisa e enxuta, nunca dura. Dividir a massa em duas ou trs partes e modelar como po de forma. Descansar de

    45 a 60 minutos ou quando ver que o po j dobrou de tamanho. Assar em forno 180C.

  • 35

    O rpido desenvolvimento que decorre entre a semeadura e a colheita da cevada, apenas 90

    dias, fez com que a farinha desta semente tivesse um importante papel num passado relativamente

    recente, tendo em conta a histria da humanidade. Chegou mesmo a ser o principal cereal fornecedor

    de farinha para o fabrico de po entre os Hebreus, os Gregos e os Romanos. No norte da Europa a sua

    importncia foi bastante visvel at meados do sculo XIX, j que o seu rpido crescimento permitia

    aproveitar o curto Vero que nesta zona do globo se faz verificar. O seu declnio deveu-se aos

    progressos nas variedades de trigo, que o tornaram mais resistente s baixas temperaturas, e ao

    desenvolvimento das trocas comerciais a um nvel global.

    As suas caractersticas nutritivas so menos apuradas que as do centeio e do trigo, originando

    um po escuro e pesado, dada a pouca permanncia de glten, semelhana do milho e da aveia. Por

    isso, tal como esses cereais, a farinha de cevada sempre usada em conjunto com outras farinhas.

    Tambm foi utilizada para fins medicinais, mas a sua associao mais forte , hoje em dia, feita na

    preparao de cervejas e aguardentes. O segredo da sua fermentao remonta a tempos muito

    antigos, altura em que no se fazia muita distino entre sopas, cervejas, pes e papas.

    Ilustrao 20 - Receita de po fino de cevada22

    22 Fonte: CRUZ, M. (1996) Po Nosso Uma Histria do po na sociedade do ocidente europeu. Colares

    Editora, Sintra.

    Po Fino de Cevada

    Ingredientes

    350 g de farinha de cevada

    150 g de farinha de trigo integral

    15 g de fermento de padeiro

    0,8 dl de azeite, 2,5 dl de gua

    10 g de sal e 10 g de sementes de coentros

    Preparao:

    Misture ambas as farinhas com o sal, as sementes de coentro previamente esmagadas no almofariz, o

    azeite e, se gostar do aroma, umas gotinhas de vinagre. Acrescente o fermento dissolvido num pouco de gua

    amornada e v juntando o resto da gua tpida, amassando sempre muito bem at obter uma massa macia,

    elstica e bem homognea. Deixe-a fermentar e, depois, divida-a em pores, tantas quantos forem

    os pes que queira preparar. Deixe levedar mais uma vez e leve-os a forno quente. Neste po, se

    preferir, substitua as sementes de coentro por uma outra umbelfera que aprecie o gosto, como o funcho, a

    alcarva, a erva-doce, etc.

  • 36

    O Arroz

    Ilustrao 21 - Espiga de arroz23

    O arroz cultivado h mais de 8000 anos na sia Oriental, de onde resulta, ainda hoje, 90% da

    sua produo mundial. As condies para o seu cultivo devem reunir um clima ameno e com elevado

    grau de humidade. Na Europa, a Itlia, em especial no norte, a sua principal produtora.

    As caractersticas deste cereal so abrangentes, uma vez que existem mais de 8000 variedades,

    que vo de uma cor branca at ao negro. Ainda assim possvel afirmar que na sua composio

    alimentar abunda a fcula e escasseia o glten, obrigando, mais uma vez a associao a outras

    farinhas.

    A sua utilizao pode compreender papas, massas, bolos e mesmo pes, mas, na nossa

    civilizao, o arroz utilizado como guarnio de outros alimentos. No Oriente fazem-se vinhos e

    aguardentes, como o famoso sak do Japo.

    23 Fonte: http://www.imagenesdominicanas.com/2009/04/el-arroz-nuestro-de-cada-dia.html

  • 37

    Ilustrao 22 - Receita de po de arroz24

    Nenhuma destas farinhas seria possvel sem a existncia dos moinhos. O primeiro moinho ter

    sido o conhecido almofariz, ainda hoje utilizado em algumas civilizaes e, nas mais modernizadas,

    constitui um recurso em receitas que apologizam algum requinte na sua preparao. A evoluo deste

    processo de moagem fez desenvolver as prprias farinhas e capacitou o Homem do poder da melhor

    preparao dos seus derivados, j que pde seleccionar as caractersticas do gro que moa que

    melhor serviam ao propsito da sua confeco.

    S durante os anos que precederam a Revoluo francesa, como vimos anteriormente, uma

    poca de escassez do cereal e de fome da populao se verificaram importantes avanos no processo

    de moagem. A actividade de moagem servia para separar a farinha do farelo e portanto procurava-se

    que este processo fosse o mais profundo possvel. No entanto, esta inteno tinha um efeito contrrio,

    j que o gro ficava to desfeito que era impossvel distinguir e separar o farelo pela peneira. Matisser,

    um padeiro da cidade francesa de Paris, inventou um moinho de triturao progressiva, em que no se

    esmagava em trs fases o gro: o cereal passava primeiro por uma dupla m em que as pedras

    estavam afastadas trs milmetros, depois por outra com dois milmetros, depois ainda por uma terceira

    com um milmetro apenas de distncia entre as pedras (Lavisse, 1922).

    Os vestgios mais antigos deste tipo de utenslios remontam a datas de aproximadamente

    10.000 a.C., na Palestina. Contudo, existem registos da sua utilizao em outros locais, tais como no

    Egipto, na Prsia, na Grcia e um pouco por toda a Europa, incluindo alguns exemplares do perodo

    neoltico em Portugal.

    Estes sistemas de triturao do gro continuam a ser utilizados hoje em dia, nomeadamente por

    alguns povos de frica. Em Portugal, a sua utilizao encontra-se documentada at dcada de 70,

    nas regies de Paredes de Coura e ilhas da Madeira. Tambm existem documentos da sua utilizao

    em algumas zonas dos distritos de Vila Real e Viseu, at pocas relativamente recentes.

    24 Fonte: http://www.moo.pt/receitas/

    Po de Arroz Integral

    Ingredientes:

    200 g de farinha de arroz integral

    300 g de farinha de trigo

    15 g de fermento de padeiro

    80 g de margarina ou de banha

    3 dl de gua

    10 g de sal

    Preparao:

    Misture ambas as farinhas com o sal e a gordura, trabalhando-as com a ponta dos dedos. Junte o

    fermento diludo num pouco de gua amornada e v amassando a preparao, enquanto acrescenta mais gua

    at obter uma massa firma e homognea. Deixe fermentar dentro de uma tigela coberta. Volte a amassar a

    preparao durante uns minutos, tenda pes do tamanho desejado, coloque-os sobre um tabuleiro polvilhado

    de farinha, voltando a deixar repousar para uma segunda fermentao. Leve-os ao forno, ento, a cozer.

  • 38

    Segundo a definio do Dicionrio de Lngua Portuguesa, moinho deriva do latim molino e um

    engenho para moer cereais, composto de duas pedras ou ms, accionadas pelo vento, gua ou motor,

    colocadas uma sobre a outra.

    Na matria da moagem do gro dois tipos de moinhos se destacaram na histria e resistiram

    praticamente at aos dias de hoje como principais trituradores de cereais: os moinhos de gua e os

    moinhos de vento.

    3.1 - Moinhos de Vento.

    A primeira referncia escrita sobre moinhos de vento surge no sculo X: os moinhos de vento

    Persas. Na Europa, no final do sculo XII aparecem os primeiros moinhos de vento, usados para

    bombagem de gua e moagem. A par da revoluo industrial foram surgindo avanos tecnolgicos que

    fizeram com que os moinhos de vento cassem em desuso, pois estas tecnologias permitem

    rendimentos energticos muito maiores. Recentemente alguns destes moinhos tm vindo a ser

    recuperados para habitaes particulares ou como ponto de interesse turstico.25

    No entanto, apesar das primeiras referncias de moinhos de vento se situarem perto do ano

    1000 da nossa era, o recurso energia elica bem mais antigo. Na navegao martima, o recurso

    energia elica para aproveitamento motriz existe h vrios milhares de anos, tendo os antigos egpcios

    inventado a embarcao com mastro e vela e ainda o remo. Em Portugal foi o recurso energia elica

    que permitiu os Descobrimentos. Os navios portugueses durante os sculos XV a XVII percorreram os

    oceanos descobrind