O desenvolvimento das funções psicológicas superiores: O ponto de vista de Vigotsky - PEPA

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    O desenvolvimento das funes psicolgicas superiores:

    O ponto de vista de Vigotsky.In: SALVADOR, Csar Coll (org.) Psicologia da educao. Cap 9. Porto Alegre: Artes Mdicas,

    1995, p. 105-110

    A obra de Vigotsky, realizada na Unio Sovitica entre a metade da dcada de 20 ea metade da dcada de 30, apesar de a termos conhecido inicialmente por meio dosaspectos parciais no mbito psicoevolutivo ou da psicologia da linguagem, representa, nofundo, um projeto global ambicioso de estruturao de uma psicologia capaz de empreendero estudo da conscincia 'humana de maneira objetiva e cientfica.

    Atividade 10

    Como no caso da teoria gentica, muito provvel que voc conheaas proposies gerais de Vigotsky ou alguns dos seus aspectos. Tentelembrar-se de tais proposies e tome nota das suas idias,especialmente das que aludem aos fatores que o autor valoriza comoresponsveis pelo desenvolvimento e tambm ao papel que atribui educao nesse processo.

    Este projeto nasce com o propsito de superar o que Vigotsky entendia como umasituao de crise da psicologia da sua poca: o rompimento entre, por um lado, umapsicologia natural e causal, centrada no estudo de processos psicolgicos elementares -comuns essencialmente ao homem e a outras espcies animais - e baseada na utilizaode uma metodologia experimental homologvel a outras disciplinas cientficas; por outrolado, uma psicologia fenomenolgica e hermenutica, centrada no estudo dos processospsicolgicos mais tpicos e caracteristicamente humanos, porm ao custo da renncia explicao causal dos fenmenos e ao uso de uma metodologia cientfica. Por isso, oproblema apresentado por Vigotsky a construo de uma aproximao conceituai e

    metodolgica capaz de abordar, por meio de uma metodologia estritamente cientfica, oestudo das funes psicolgicas especficas ao homem, isto , o estudo da conscincia.O ponto de partida da problemtica vigotskiana , em certo sentido, contrrio ao que adotaPiaget: segundo Piaget, a questo a relao e a continuidade entre as propriedades davida orgnica e as propriedades da cognio humana; segundo Vigotsky, a questo, aocontrrio, a explicao daquilo que especifico dos humanos, isto , do que no redutvel a processos de carter inferior ou mais elementar.

    O ponto de partida da problemtica vigotskiana , em certosentido, contrrio ao que adota Piaget: segundo Piaget, aquesto a relao e a continuidade entre as propriedades da

    vida orgnica e as propriedades da cognio humana; segundoVigotsky, a questo, ao contrrio, a explicao daquilo que especifico dos humanos, isto , do que no redutvel aprocessos de carter inferior ou mais elementar.

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    De acordo com Wertsch (1988), possvel estruturar o ncleo de propostas que Vigotsky sugerecomo uma base para o estudo objetivo da conscincia em tomo de trs idias fundamentais:

    a) a adoo de um mtodo gentico ou evolutivo como um eixo bsico para o estudo das questespsicolgicas;

    b) a tese de que os processos psicolgicos superiores tm uma origem social; e.

    c) a afirmao do carter mediado plos instrumentos desses processos.

    Quanto primeira ideia, Vigotsky afirma que os processos psicolgicos superiores somentepodem ser compreendidos e explicados se estudarmos a sua gnese e o seu desenvolvimento. Isso ocorrena medida em que compreende a mudana como algo consubstanciai com os processos e sistemaspsicolgicos e que pretende ir mais alm da sua descrio para compreender as relaes causais dinmicasque a originam. De acordo com Vigotsky, o estudo da gnese e do desenvolvimento dos fenmenospsicolgicos no pode ficar limitado exclusivamente ao mbito ontognico; ao contrrio, deve ser estendidotambm a outros domnios genticos, como, por exemplo, ( evoluo da espcie a filognese), evoluosociocultural e ao mbito da micrognese.

    Em relao segunda idia, Vigotsky postula o carter primognito da dimenso social e culturalda conscincia e o carter derivado e secundrio da sua dimenso individual. Dito de outra maneira, Vigotsky

    indica que todos os processos psicolgicos superiores aparecem inicialmente no mbito das relaes sociaise sob forma de processos interpsicolgicos ou intermentais (regulados e controlados mediante a interaosocial com outras pessoas) e que, at um momento posterior em que se transformam em processosindividuais, no podem ser efetuados no plano intrapsicolgico ou intramental (regulados e controlados apartir do interior do indivduo).

    A justificativa da tese da origem social dos processos psicolgicos superiores origina-se,segundo Vigotsky, na terceira das idias que destacamos, isto , no carter mediado plos instrumentosdesses processos (ver o texto da margem). Partindo dessa afirmao, podemos dizer que a relao do serhumano com o meio sempre uma relao ativa e transformadora.

    Tal relao possvel graas ao uso de instrumentos intermedirios, plos quais, nas palavrasdeste autor, a atividade humana define-se essencialmente como uma atividade instrumental.

    A partir do ponto de vista de Vigotsky,ou s de sistemas de signos que servem de

    mediadores

    precisamente o que origina a emergncia dos processos psicolgicos superiorestipicamente humanos.

    preciso recordar que...

    ... a obra de Vigotsky, em funo de suamorte prematura e das circunstanciahistricas s quais a sua obra estevesubmetida posteriormente no seu pas,, essencialmente, uma obra inacabado,mas uma teoria completa e bem*elaborada. As suas idias e hiptesescontinuam sendo desenvolvidasatualmente; portanto, basearemo-nos na

    proposta de Wertsch, um dos autorescontemporneo que mais temcontribudo a divulgao e explanao das teses vigotskianas entreos psiclogos ocidentais para poderorganizar a nossa exposio nesseponto.

    Os instrumentos.,.

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    ... que caracterizam a atividade humana podem ser do tipofsico (as ferramenta qu possibilitam que modifiquemos oambiente) ou do tipo psicolgico (os signos ou os sistemas designos, a linguagem, concretamente, alm de outros, como, porexemplo, os sistemas numricos, os sistemas de representaogrfica e. em geral, todo tipo de sistema convencional).

    Por qu? Porque os signospossuem a capacidade especfica de"inverter a ao" (Vigotsky, 1979, p. 70),ou seja, de modificar a mente, voltando a

    apresentar os estmulos, ordenando ecolocando de novo a informao; semprefazendo, por fim, com que o sujeito possaregular a sua conduta de maneira ativa econsciente em funo do significado quea mesmo confere aos signos, e nosimplesmente como uma resposta passivae direta aos estmulos fsicos exteriores.Assim, os signos funcionam comoestmulos artificiais por meio dos quais oser humano controla e regula a suaconduta; a possibilidade desses

    estmulos servirem consiste, dessa forma,na caracterstica diferencial maisimportante dos processos psicolgicossuperiores tpicos da espcie humana:

    a passagem do controle do ambiente espcie humana: a passagem do controle do ambiente aocontrole do indivduo (isto , o surgimento da regulao voluntria) e, portanto, a possibilidade de realizar essesprocessos de uma maneira consciente.

    "O fato de contar com os dedos foi, no seu momento, um triunfo cultural importante dahumanidade. Taldescoberta fazia o papel de ponte entre a percepo quantitativa imediata e o clculo. Assim, os papuas dGuin comearam a contar com o dedo pequeno damo esquerda e, depois, continuavam com os outros deda mesma mo, uniram a moesquerda, o antebrao, o cotovelo, o brao, o brao direito e as

    sucessivamente, atterminar no dedo pequeno da mo direita. Se assim no era suficiente, usavam os dedoutra pessoa ou os dedos de seus ps, conchinhas ou outros objetos pequenos durveis. Nosprimeiros sistemasde contas podemos observar, de uma maneira desenvolvida e ativa, omesmo sistema que se pode apreciar eforma rudimentar durante o desenvolvimento doraciocnio aritmtico da criana. De maneira semelhante, o fde fazer um n para no seesquecer de alguma coisa apresenta-se relacionado com a psicologia da cotidiana. Uma pessoa dever lembrar-se de algo, de cumprir algum pedido,de fazer isso ou aquilo, de pegaalgum objeto, etc.; como no confia na sua memria, tem medo de descuidar-se involuntariamente daquilo quedeve realizar, por isso, faz um n no seu leno ou utiliza um mecanismo semelhante, como, por exemplo, inum pedao de papel sob a aba que cobre o bolso,mais tarde, o n o recordar do que fazer. O mecanisdescrito costuma cumprir satisfatoriamente a sua funo.

    Essa , pois, uma outra operao que se revelaria totalmente impossvel de ser imaginada ouserem realizados

    plos animais. Na introduo de recursos auxiliares e artificiais para amemorizao e na criao e utilizaativa de um estmulo como uma ferramenta para a memria, observamos uma nova caracterstica de cespecificamente humana."

    Vigotsky (1979, p. 190-191)

    Esses estmulos artificiais - os sistemas de signos - tm uma origem social elaborada nodecorrer da evoluo histrica e cultural da espcie humana; so essencialmente de naturezacultural e tm um carter basicamente convencional e arbitrrio. Por isso, possvel que nos

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    apropriemos e que os usemos somente ao participarmos em situaes de interao social com outraspessoas que j os dominam e so capazes de transmiti-los a ns. De Vigotsky, deriva-se a seguinteconcluso: se os processos psicolgicos superiores tpicos da espcie humana se constituem como talgraas mediao semitica - a mediao com a ajuda do uso de signos - e se esses signos so denatureza e origem social e cultural, os processos psicolgicos superiores sero processos de natureza eorigem social e cultural.

    Atividade 11

    Partindo do princpio de que a atividade humana definida principalmente como umatividadeinstrumental,isto , como um a atividade que exec utamos com a ajuda de determinados instrumentosmediadores, no nos cu star encontrar exem plos desses instrumentos.Pense, por exemplo, em umaat iv idade cot idiana com o tomar um caf em u m bar. Tentepreparar uma l ista dos instrumentos m ediadoque voc utiliza para realizar essa atividade.

    As trs idias expressadas, se as considerarmos conjuntamente, delimitam a via que permite abordar demaneira especfica a perspectiva vigotskiana, o estudo cientfico da conscincia: a anlise da gnese social erelacional dos processos psicolgicos superiores tipicamente humanos e, concretamente, de uso e de aquisio dossistemas simblicos que mediatzam esses processos (disso se deriva o interesse de Vigotsky pela linguagem comoum sistema fundamental de mediao semitica). A soluo programtica proposta por Vigotsky implica aproximar aexplicao das formas mais caractersticas do comportamento humano, no dentro do mesmo organismo, masfora dele.

    As palavras de Luria (1968, p. 129) ilustram com clareza essa soluo programtica proposta por Vigotsky:

    "No h nenhuma esperana, dizia Vigotsky, de encontrar as fontes do ato ativo e livre nasalturas doesprito ou nas profundidades do crebro. O critrio idealista dos fenomenlogos to desesperadocomo o critrio positivista dos naturalistas. Para poder descobrir as fontes do ato livre e ativo, preciso sair dos limites do organismo, no na esfera intima doespirito, mas nas formas objetivas davida social; preciso aproximar as fontes da conscincia e da uberdade humanas na histriasocial da humanidade."

    Nesse mbito, Vigotsky entende globalmente o desenvolvimento como um processo em que se produzem

    mudanas ou "saltos" qualitativos e revolucionrios. Esses pontos de transio correspondem precisamente amudanas nas formas de mediao que o indivduo capaz de utilizar e no tipo de processos que essas novasformas possibilitam: processos psicolgicos elementares versus superiores "rudimentares" versus processossuperiores "avanados". Nesse ponto de transio e de crise, portanto, novos fatores incorporam-se aodesenvolvimento e produz-se uma reorganizao global do funcionamento da conscincia. Cada etapa no estgiodo desenvolvimento significa, para Vigotsky, um conjunto de funes psquicas, as quais mantm relaesespecficas entre si, e um conjunto de princpios explicativos tambm especficos, entre os que inclui, no momento,fatores biolgicos e fatores sociais e culturais.

    A distino que Vigotsky prope entre o que denomina "a linha natural do desenvolvimento" e a anlise dassuas relaes podem contribuir para esclarecer e destacar essa maneira de entender o desenvolvimentopsicolgico das pessoas e, sobretudo, para aprofundar os fatores que destacamos, a partir desse ponto de vista,como seus responsveis.

    As linhas natural e social do desenvolvimento

    A distino feita por Vigotsky entre a linha natural e a Unha social e cultural do desenvolvimento est ligada suatentativa de compreender os processos psicolgicos mais tipicamente humanos e com as suas teses damediatzaco da conduta. De acordo com isso, a linha natural do desenvolvimento remete a funes psicolgicaselementares: sensaes, ateno no-consciente, memria natural, reaes emocionais bsicas, etc. Tais funes,comuns ao homem e a outras espcies, so controladas plos estmulos do ambiente e no comportam umaexecuo consciente do individuo.

    Por exemplo, esse seria o caso das capacidades de ateno do recm-nascido: os bebes que acabam de nascer do ateno

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    prioritariamente a determinados estmulos visuais e auditivos que cumprem determinadas caractersticas. Esses estmulosatuam sobre seu equipamento sensria! e perceptivo, sempre captando a sua ateno e mantendo-a centrada nele durante umcerto tempo, de maneira que o bebe no possa fazer nada para evit-lo. Vigotsky opina que o aparecimento de funesvinculadas linha natural do desenvolvimento est fundamentalmente justificada por princpios dos tipos biolgicos, associados,sobretudo, maturidade neurofisiolgica.

    A linha social e cultural do desenvolvimento estunida ao surgimento de processos psicolgicossuperiores tipicamente processos psicolgicossuperiores tipicamente humanos: ateno ativa e

    consciente, pensamento abstrato, memriavoluntria, afetividade, etc. Vimos que acaracterstica distintiva desses processos o, seucarter mediado por signos, fato que conduz suaexecuo auto-regulada e consciente. Seguindo como exemplo da ateno, a partir de um determinadomomento no processo de desenvolvimento, osmeninos e as meninas mostram uma ateno quepode "escapar" do controle dos aspectos maisevidentes do ambiente para exercitarem-se demaneira consciente e.voluntria: trata-se dacapacidade de estar para aquilo que se quer ' estar ede manter a ateno sobre aquilo, especialmente se

    aquilo a que d ateno pouco importanteperceptivamente, (como quando somos capazes denos concentrarmos np estudo, mesmo que por voltahaja muito rudo e trfego, ou quando escutamosuma explicao muito montona e pouco atrativa deum conferencista).

    De acordo com o seu carter mediado, esses tipos de processos exigem, para a sua explicao - segundo Vigotsky -, areferncia a explicao - segundo Vigotsky -, a referncia a fatores relacionados com a experincia social, concretamente ainterao com outras pessoas mais competentes a partir do ponto de vista do domnio das ferramentas e habilidadesculturais do grupo em questo.

    A distino entre ambas as linhas de desenvolvimento ajuda a compreender melhores as afirmaes anteriores importncia que OS saltos qualitativos no desenvolvimento representam para Vigotsky e tambm a pluralidade de fatoresque os explicam. Efetivamente, assim como o desenvolvimento natural produz funes com formas primrias ou

    elementares, o desenvolvimento cultural, ao contrrio, permite a transformao dos processos elementares em superiores;isso representa um nvel qualitativamente diferente de funcionamento psicolgico. Vigotsky refere-se principalmente a essatransformao quando alude s descontinuidades e s mudanas qualitativas presentes no desenvolvimento (porexemplo, o acesso linguagem a partir do segundo ano de vida), em que postula igualmente momentos de mudana quecomportam a passagem de verses menos avanadas de uma forma de mediatizao existente (como, por exemplo, apossibilidade de fazer clculos com quantidades para objetos concretos em contextos cotidianos) a verses mais avanadasdessa mediatizao ( o caso da execuo de clculos com cifras, independentemente dos objetos a que se referem e emcontextos imaginrios ou hipotticos).

    O fato de distinguir e de remarcar as diferenas substanciais que analisamos entre as duas linhas dedesenvolvimento no pode deixar que nos esqueamos, apesar de tudo, que, de acordo com o que Vigotsky propusera, alinha natural e a linha social e cultural no so entendidas como paralelas nem independentes, mas, necessariamente,inter-relacionadas.

    Pregao de So Bernardo na Igreja de So Francisco, em Siena , em uma obra

    de Sano di Pietro, no ano de 1430, Homens e Mulheres separados por uma

    barreira, escutam com ateno a palavra do pregador