o Dic3a1rio de Sarah Collins[1]

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  • 7/25/2019 o Dic3a1rio de Sarah Collins[1]

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    Sarah Collins

    O dirio de

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    Sarah Collins foi uma americana de Salm, Massachusetts, que exercia sua profisso de

    qumica com excelncia, j que por motivos pessoais ela escolheu estar envolvida com esta

    rea, e eram justamente esses motivos que funcionavam como uma espcie de motor para ela

    ir atrs de respostas para todos seus questionamentos. Sarah nasceu em 1655, poca em que

    a Igreja exercia um papel tirano contra os hereges, principalmente contra as mulheres.

    Mulheres que buscavam conhecimentos sobre a natureza e seus efeitos ou at mesmo aquelas

    que apenas tinham aparncia de bruxas eram arduamente perseguidas e torturadas pela

    Igreja Catlica, que atravs da Inquisio realizou uma das maiores crueldades da Histria em

    troca de ganhos monetrios graas expropriao dos lugares no qual as vtimas habitavam. A

    Igreja usava como pretexto para isso tudo um suposto pacto com Sat das bruxas e

    feiticeiras, porm isso nunca foi convincente o bastante para Sarah, que aos 10 anos viu sua

    me ser acusada de heresia e logo aps ser queimada. Isso despertou um sentimento em

    Sarah que a tornou infatigvel, sedenta por desvendar os mistrios atrs das acusaes a

    respeito das bruxas e encontrar respostas racionais frente a todo esse massacre dissimulado.

    O que Sarah conseguiu descobrir pode no ter sido suficientemente importante para a

    poca, mas h de se deixar registrada sua luta, perspiccia e resultados conseguidos at 1692,

    ano de sua morte, que aconteceu na prpria Salm em um episdio fatdico que ficou marcado

    para sempre. O dirio a seguir foi fielmente escrito por ela, sem que mudassem sequer uma

    palavra. Infelizmente ele foi encontrado j sem algumas pginas e um pouco danificado,

    fazendo com que muitas vezes um mistrio pairasse no ar. Ser que as pginas foram

    arrancadas propositalmente? O que estava registrado era importante demais para ser

    publicado? Quem arrancou as pginas do dirio de Sarah? Seria algum da Igreja? Ou foi

    simplesmente o tempo que danificou? So todas perguntas sem resposta, que fazem muitos

    leitores se indagarem a respeito deste humilde dirio, que tinha o intuito de ter apenas relatoscientficos. O nico fato acerca disso tudo que, brilhantemente, Sarah Collins deixou

    registrado nesse dirio um pouco de sua histria, a histria da Inquisio e descobertas com

    relevncia qumica, fazendo um vnculo interdisciplinar entre Histria e Qumica e conseguindo

    ainda contextualizar tudo isso em uma, por mais incrvel e contraditrio que parea, histria

    cientfica emocionante.

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    Quando pequena, sempre desconfiei

    que nesta imensurvel natureza houvesse

    todo o tipo de mistrio, alguns

    desvendveis e outros nem tanto. Mas

    nunca achei que fosse chegar to perto de

    conhecer sequer algum tipo destes. Hoje,

    mais do que nunca, eu descobri que possodesvendar sim alguns enigmas e que essa

    uma das melhores sensaes que se pode

    ter.

    Com muitas pesquisas, estudos e

    conversas com pretensas bruxas, amigas

    de minha querida e falecida me,

    descobrimos as causas e consequncias douso de nacos de sapos em suas poes

    mgicas. Existe no sapo uma molcula

    denominada bufotoxina, altamente

    txica. Ela afeta o corao e semelhante

    em estrutura aos glicosdeos cardacos. As

    principais fontes deste composto so

    exatamente os animais anfbios. Soretirados extratos de certos animais,

    usualmente sapos, para serem usados

    como veneno colocado nas pontas de

    flecha para a caa em muitas partes do

    mundo.

    A molcula da bufotoxina escrita

    assim:

    Observando a molcula, notvel a

    similaridade com a molcula de

    digitoxina, encontrada no extrato de

    Digitalis. Mas esse um assunto que

    pretendo abordar mais tarde, j que,

    graas s minhas queridas bruxas, fui

    apresentada a uma herborista muitoexperiente para conversamos sobre as

    ervas nocivas e curativas. Acredito que

    nosso prximo encontro ser daqui a um

    ms, assim terei tempo de avaliar o

    contedo do que conseguirei extrair,

    visitar a biblioteca municipal em busca

    de livros, e ainda adicionar mais

    algumas informaes de carter qumico.

    Espero que at l a Salam prevalea em

    Salm e que este lugar seja digno do nome

    que lhe foi colocado, porque nesses

    tempos de intolerncia e pavor esta a

    ltima coisa presenciada, apesar de ser a

    mais intimamente desejada.

    Salm, 20 de Abril de 1690 Salm, 20 de Abril de 1690

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    Felizmente, aps semanas

    extenuantes com manhs, tardes emadrugadas adentro, consegui concluir

    outra pesquisa muito satisfatria, me

    fazendo sentir particularmente cada vez

    mais realizada e orgulhosa de poder

    participar e deixar minha marca na

    brilhante e incessante busca pela verdade

    cientfica na qual a natureza aprotagonista. Sou extremamente grata

    pelas pessoas que entraram e ainda esto

    entrando em meu caminho, me ajudando

    a construir esta histria. A herborista

    Marah foi uma importante contribuinte

    para as descobertas que relatarei a seguir.

    Afvel, afetuosa e cordial, ela me fez

    manter firme a esperana e a certeza de

    que estas mulheres que esto sendo

    condenadas no merecem tortura alguma,

    so apenas mulheres que pensam

    diferente, a frente desta poca retrgrada

    que insiste em se vitimar culpando

    inocentes e destruindo brutalmente

    famlias, lares e sonhos, separando paisde seus filhos e, por ltimo, mas no

    menos importante, acabando com

    qualquer rastro da cincia que est em

    busca de descobertas que facilitem a vida

    do homem.

    O que Marah me explicou foi de

    grande valia. As ervas possuem poderesmuito maiores que os imaginveis. As

    curativas so diversas e incluem a

    raiz de aipo silvestre, que

    incrivelmente previne cimbras; a

    hera, que alivia os sintomas da asma;

    a salsa, que induzia abortos, mas o

    mais incrvel: o extrato de dedaleira.

    A Digitalis purpurea, conhecida

    trivialmente como dedaleira uma

    espcie oriunda da Europa. Apesar de

    ser txica e envenenar se ingerida em

    demasiadas doses, ela recomendada

    para uso medicinal, evidentemente

    inspirando cuidados. Seu uso implica

    a diminuio e regularizao doritmo cardaco e fortalecimento dos

    batimentos. um exemplo claro de

    glicosdeo cardaco. Os glicosdeos no

    so encontrados apenas na dedaleira.

    Eles tambm esto em outras plantas,

    em geral espcies das famlias do lrio

    e do rannculo. Ela me contoutambm que foi difcil os herboristas

    encontrarem estas espcies de tnicos

    cardacos em seus prprios jardins e

    brejos locais.

    Salm, 14 de Maio de 1690 Salm, 14 de Maio de 1690

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    Nos livros eu descobri que todas essas

    molculas tm uma mesma caracterstica

    estrutural, e provavelmente ela a

    responsvel pelo efeito cardaco. Todas tm

    um anel de lactona de cinco membros

    preso extremidade do sistema asteride e

    um OH extra entre os anis C e D do

    sistema esteride, similar a estrutura da

    bufotoxina,a qual j desenhei

    anteriormente ao falar dos sapos.

    Cada vez mais estou me

    aprofundando e me envolvendo com a

    Qumica desta poca, e isto est sendo

    encantador. J tenho em mente a ideia do

    prximo assunto, mas este ser to extenso

    que eu prefiro manter sigilo.

    Que meses terrveis so esses?

    Quanto tempo eu no sinto a paz!

    Apenas perseguio, tortura, queima de

    corpos... So tempos difceis. E o pior

    que no h consolo. O pior sentir-se

    impotente frente a tudo isso. O que

    fazer? Para onde ir? s vezes voc perde

    as esperanas, no h escapatria. Comtodo esse conflito, tumulto, desordem

    espacial, est difcil prosseguir com meu

    sonho de mudar alguma coisa. No tive

    muitas oportunidades de descobertas

    durante esses 3 meses que passaram e

    isso inconsolvel. A nica coisa que

    pude presenciar foi a dor. De onde elestiraram essas ideias absurdas? Bruxas

    esto sendo acusadas de ter relaes

    sexuais com o demnio, comer bebs e

    ainda o motivo de desastres e tragdias

    naturais. Tenho conscincia de que na

    Europa a situao est pesada, pude

    saber por aqueles encarregados pelas

    informaes daqui da regio.

    H pouco descobri o que os donos

    da verdade faziam para saber se as

    mulheres eram bruxas ou no (como se

    esse fosse algum mtodo confivel): as

    Salm, 7 de Setembro de 1690Salm, 14 de Maio de 1690

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    supostas bruxas eram amarradas ejogadas em um poo. Se flutuassem, isso

    significava que eram bruxas, pois "a mo

    de Sat" estava sustentando-a, ento

    eram resgatadas e logo enforcadas. Se elas

    se afogassem, eram inocentes, o que era

    um consolo para a famlia, mas de pouca

    valia para a vtima.

    Alm do pavor, no mais, eu nada

    tenho a acrescentar. S deixo aqui meu

    apelo particular de tranquilidade para

    todas as vtimas destes anos negros.

    Dei incio minha jornada atrsde alcaloides! Como eu no havia

    focado neles antes? Eu tinha noo de

    como eram importantes no quesito

    bruxaria, tanto que eles eram a minha

    surpresa que eu havia contado l no

    final do texto escrito em Maio, mas

    infelizmente no pude iniciar quando

    quis. Agora que as coisas esto em

    momento de calmaria, mas longe de

    entrar em uma estabilidade pacfica,

    consegui obter informaes bastante

    significantes, com ajuda, claro, de

    feiticeiras locais. Ao contrrio do que

    as bruxas confessam sob tortura que

    elas vo voando, saindo pela chamin,montadas em vassouras para os

    encontros marcados para a meia-noite

    que se configuram como uma pardia

    orgaca da missa crist,

    comumente chamados de

    sabs elas no, no

    voam. No pense que as

    bruxas so cretinas

    mentirosas. Voc tambm

    falaria isso sob efeitos

    alucingenos.

    Salm, 7 de Setembro de 1690 Salm, 20 de Novembro de 1690

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    Os alcaloides so substnciasorgnicas cclicas que contm um ou mais

    tomos de nitrognio, em geral como parte

    de um anel de tomos de carbono. Eles

    possuem uma ao biolgica extremamente

    marcante, pois afetam o sistema nervoso e

    tambm so txicos. Muitas herboristas,

    feiticeiras e conhecedores da natureza em

    geral utilizam esses compostos como

    remdios h muito tempo. Mas, voltando ao

    caso da vassoura, existe uma espcie de leo

    e pomada que as bruxas esfregam na

    vassoura conhecido como ungentos de

    vo. Nesses ungentos de vo h a presena

    de extratos de composto como: mandrgora,

    beladona, meimendro, dedaleira, salsa,acnito, cicuta e estramnio. Pretendo

    explicar todos, um por um pacientemente

    aqui. Mas enxergo uma necessidade de

    maior estudo da minha parte para falar

    com convico a respeito deles, pois preciso

    estar ciente de que o que estou relatando

    no nada alm da verdade, e sem estar

    confiante posso acabar cometendo

    equvocos. O que posso deixar adiantado

    que na dedaleira h glicosdeos txicos, na

    salsa h miristicina alucinognica e no

    estramnio h atropina e escapolamina.

    Esses ungentos abarrotados decompostos que afetam o sistema nervoso

    friccionados sobre a pele e

    esparramados pelo cabo da vassoura

    que, no contato direto com as

    membranas genitais, sensveis e cheias

    de vasos sanguneos, produzem as tais

    viagens, que so puramente fantasiosas,

    provocadas pelos alcaloides

    alucinatrios. Se eu estivesse na posio

    das bruxas, no acharia difcil crer no

    efetivo vo, visto que o efeito produzido

    muito forte e que, com a vida rdua

    que as mulheres esto levando,

    qualquer simples motivo seria capaz de

    lev-las a um refgio em outraatmosfera, na qual no existem

    pesadelos e injustias.

    Agora eu espero ansiosamente

    para obter as informaes e escrever o

    prximo texto. Gostaria de agradecer

    minha querida amiga bruxa Abigail

    por estar me ajudando com asinformaes, que por vezes so at

    sigilosas, mas que ela no poupa

    esforos para me ajudar sempre que

    pode e da melhor maneira possvel.

    Salm, 20 de Novembro de 1690 Salm, 20 de Novembro de 1690

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    E nessa luta estamos juntas, no s elaquanto todas as outras que no citei por

    motivos de segurana, mas que eu sei que

    permanecero ao meu lado, pois ningum

    forte sozinho.

    Antes de explicar a composiodos ungentos de vo, pensei e achei

    importante falar um pouco mais sobre

    os alcaloides em geral, mas isso no

    significa que irei deixar de lado a

    graxa das vassouras. Vou tentar dar

    um breve resumo do que pude

    descobrir com as herboristas neste ms

    sobre, basicamente, os efeitos dos

    alcaloides, de maneira bem geral

    mesmo.

    Os alcaloides em pequena

    quantidade podem at servir de bom

    grado para o corpo humano. Eles so

    at usados com efeitos medicinais! A

    Tita, escrava que veio da frica, me

    contou que l eles tm uma palmeira

    arequeira que produz noz-de-areca.

    Essa noz-de-areca tem um alcaloide

    chamado acrecaidina que muito

    usado como estimulante. Novamente,

    veja a estreita relao dos alcaloides

    com o sistema nervoso. Mas essa noztambm apresenta nus. Elas deixam

    os dentes marcados por manchas

    escuras e os usurios pegam o hbito

    de cuspir uma saliva vermelho-

    escura. Tita me contou que a diverso

    Salm, 20 de Novembro de 1690 Salm, 11 de Dezembro de 1690

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    das crianas de sua rua era caar esta noz,tanto para fazer guerrinhas quanto para

    comer, o que era um pesadelo para as

    mes, pois elas no paravam quietas

    depois. Tambm tem uma planta na ndia,

    a Raulwolfia serpentina, que tem

    alcalides voltados para uso medicinal.

    Outra planta com alcalides fica na

    China, e aEphedra snica,mas sobre

    esta planta ainda no sei a fundo os seus

    cunhos medicinais. Alm de produzir estes

    efeitos no corpo, eles tambm so

    importantes para as plantas, servindo de

    fungicidas, inseticidas e pesticidas

    naturais.

    Apesar de exercer um papel favorvel

    ao corpo, perceptvel a fama dos

    alcalides como apenas txicos venenosos.

    Um episdio bastante memorvel acerca

    dos alcalides, e isso eu posso comprovar a

    partir da leitura dos livros de Filosofia da

    biblioteca. Foi um alcaloide que matou

    Scrates. O nome coniina, um alcaloidede estrutura simples, mas letal, presente na

    cicuta. , essa mesma que faz parte dos

    ungentos de vo das bruxas. Scrates

    recebeu como sentena de morte aingesto de uma poo feita de fruta e

    das sementes de cicuta. Ainda no sei

    como os fanticos religiosos no

    aplicaram esse castigo s bruxas. Ah, sei

    sim, na mente deles seria pouca tortura.

    Salm, 11 de Dezembro de 1690Salm, 11 de Dezembro de 1690

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    Como prometido, vou explicar acomposio dos ungentos de vo presentes

    nas vassouras das bruxas. J foi dito, mas

    vou repetir aqui. Os principais compostos

    da graxa so basicamente: mandrgora,

    beladona, meimendro, dedaleira, salsa,

    acnito, cicuta e estramnio, porm darei

    mais ateno s plantas da famlia

    beladona.

    Primeiramente, a mandrgora,

    Mandragora officinarum, uma planta

    nativa da regio mediterrnea e sua forma

    se parece, como dizem, forma humana.

    Pelo que pude ler nos livros, soube que ela

    usada desde a Antiguidade como meio de

    restaurar a vitalidade sexual e tambm

    como soporfico. Uma das diversas lendas

    que existem acerca da mandrgora diz que,

    quando arrancada do solo, ela emitia

    gemidos lancinantes e um fedor

    insuportvel. Como conseqncia dessas

    lendas, muitas teorias tambm eram

    formadas para tentar explicar isso. Umadelas que a mandrgora crescia debaixo

    da forca, germinadas pelo smen que o ru

    ali pendurado deixou escapar.

    A outra planta a beladona,

    Atropa belladonna.Este nome no uma

    coincidncia, ela realmente associada

    vaidade das mulheres, em especial as

    italianas, que pingavam nos olhos o suco

    espremido das bagas pretas dessa planta.

    Como efeito, suas pupilas ficavam

    dilatadas e isso tornava-as mais belas. A

    beladona no se limita a. Se ingeridaem maiores quantidades, acaba

    induzindo a um sono associado morte.

    O grande Shakespeare, morto

    infelizmente h aproximadamente 74

    anos atrs, escreveu sobre esse efeito em

    meu romance favorito: Romeu e Julieta.

    A beladona teria sido a poo tomadapor Julieta, e isso foi imortalizado em

    um trecho da pea que eu me lembro de

    cor: Atravs de todas as tuas veias

    correr / Um humor frio e letrgico, pois

    nenhuma pulsao restar, mas ao fim

    Nessa semelhana emprestada de morte

    constrita / Permanecers por quarenta e

    duas horas, / E ento despertars como

    de um sonho bom. itando Shakespeare,C

    acabo de me lembrar de que ele tambm

    escreveu sobre a mandrgora em Romeu

    Salm, 5 de Janeiro de 1691Salm, 5 de Janeiro de 1691

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    e Julieta. Em certo momento, Julieta diz:

    ... com cheiros repugnantes e guinchos

    como mandrgoras arrancadas terra / Que

    mortais, ouvindo-os, enlouquecem.

    Retomando ao que eu disse l em cima,

    Julieta enfatiza o fedor e os sons que a

    mandrgora emite aps ser arrancada.

    A terceira planta o meimendro,

    Hyoscyamus Nger. No consegui descobrir

    muito sobre ele, pois a biblioteca estava

    com o livro em falta. O que tem pra dizer

    que eles so fortes mitigantes da dor,

    anestsicos e venenos. E, mais uma vez,

    Shakespeare escreveu sobre uma planta

    dessas. Em Hamlet, houve esta passagem:Teu tio roubou, / Com suco de execrvel

    hebona num frasquinho, / E nos meus

    ouvidos derramou / O destilado veneno.

    A palavra hebona foi associada tanto ao

    teixo quanto ao meimendro, mas de um

    ponto de vista qumico o meimendro

    parece fazer mais sentido.

    Por hoje s, estou extremamente

    exausta, tanto fsica quanto mentalmente

    e, estou com um pressentimento de que

    algo ruim ir acontecer em breve.

    Salm, 5 de Janeiro de 1691

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    H algumas semanas, Salm vemsendo alvo, conforme dizem os fofoqueiros

    de planto, de rumores ao redor do

    mundo, pois todos esto curiosos para

    saber o que se passa na cidadezinha

    americana onde todos enlouqueceram e se

    tornou um verdadeiro manicmio. Claro

    que so rumores em demasia exagerados,

    mas qualquer um consegue enxergar que

    h algo esquisito no comportamento dos

    moradores: convulses, alucinaes,

    distores estranhas dos membros, ataques

    apoplticos, desarticulao da fala, e

    perturbaes sensoriais vm causando um

    pnico total na cidade e na vizinhana,

    embora at agora no tenha ocorridonada nas aldeias das redondezas.

    No incio, a Igreja acreditava que

    eram casos de possesses demonacas, uma

    vez que as pessoas comeam a se contorcer

    e a sentir seus membros queimando, mas

    agora, como centenas j apresentam os

    mesmos sintomas, esto colocando a culpaem uma maldio rogada na cidade pelas

    bruxas, e vrias idosas que vivem em

    reas mais afastadas do centro esto sendo

    acusadas e abrasadas.

    Nunca se viu antestamanhosofrimento aqui, tanto por parte dos

    infectados pelo mal quanto pelas bruxas

    condenadas, a inquisio em Salm est

    apresentando nveis terrveis de

    crueldade. Como no acredito nessas

    explicaes sobrenaturais da Igreja,

    comearei a investigar esse caso e espero

    trazer respostas o mais rpido possvel.

    Salm, 20 de Maio de 1691Salm, 20 de Maio de 1691

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    Passei esses ltimos meses retrada em

    meus pensamentos e devaneios, noconseguia me conformar em no

    compreender o mal que vem acometendo a

    nossa comunidade. Fiz de tudo possvel:

    conversei com Marah e outras herboristas,

    Abigail e suas amigas, e praticamente

    morei na biblioteca municipal, fiz at

    uma bela amizade com o simptico

    bibliotecrio, o Giles - um velhinho que

    me ajudava com uma enorme fora de

    vontade nas pesquisas, incrvel o que

    dizem a respeito do conhecimento, ele

    realmente vem com a maturidade. Mas

    apesar dos esforos, no achava nada de

    grande valia aqui, ento decidi expandir

    meus horizontes e pedir para amigosenviarem alguns livros da Biblioteca

    Nacional e outros vindos das principais

    capitais culturais europeias. Quando eles

    chegaram fiquei to animada que passei

    noites sem dormir s os desfrutando, at

    que comecei a achar alguns relatos muito

    interessantes, e os fatos foram seencaixando perfeitamente!

    Diversos livros descrevem surtos

    espordicos desse mal que assola Salm

    pela Europa, causando os mesmos efeitos

    sobre as pessoas. Por volta de 857 d.C.,

    no Vale do Reno, Alemanha, observou-se a primeira ocorrncia em terras

    europeias e um sculo depois, na Frana,

    cerca de 40 mil pessoas (isso mesmo, 40

    mil!) morreram com os mesmos sintomas.

    Aps descobrir que outras

    sociedades j passaram pelo mesmo que

    ns, fiquei mais instigada ainda paraprocurar e saber o porqu disso, de onde

    vem essa doena, se que se pode

    chamar assim. Lendo livros mais

    antigos, encontrei algo que mudou todo

    o meu ponto de vista: em 600 a.C., os

    assrios notaram uma pstula nociva

    na espiga dos cereais que causava

    exatamente os mesmos sintomas que

    podemos observar nos moradores de

    Salm. Ser ento que toda essa dor,

    sofrimento, acusaes e mortes tm uma

    nica origem: uma substncia presente

    na superfcie dos cereais? Combinei com

    Marah de irmos visitar amanh

    algumas das principais plantaes queabastecem a cidade para coletar

    amostras e estud-las. No vejo a hora

    de conseguir novas informaes e

    compartilh-las aqui.

    Salm, 26 de Setembro de 1691 Salm, 26 de Setembro de 1691

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    Hoje venho aqui partilhar umagrande surpresa que tive ao analisar

    algumas amostras coletadas em centeios: a

    superfcie de grande parte est coberta por

    alcaloides! Sim, logo eles que venho

    estudando por tanto tempo.

    Ao observar algumas plantaes de

    cereais como trigo, milho, cevada, nada

    me parecia anormal, mas ao olhar os

    centeios, sua aparncia no era das

    melhores: suas pontas estavam todas

    cobertas por um fungo preto, e imaginem o

    meu espanto ao descobrir que eram

    alcaloides. Comecei a me aprofundar nessa

    questo e cheguei a um termo comum:cravagem, nela encontram-se grupos de

    alcaloides que possuem molculas com

    efeitos devastadores, e o envenenamento

    por meio delas chamado de ergotismo. Na

    Prsia, por exemplo, foi registrado que

    uma dessas molculas, a ergotamina,

    causava o aborto. At os soldados de Jlio

    Csar e Pedro o Grande no escaparam:

    foram acometidos pelo ergotismo, que

    dizimou seus exrcitos e os obrigou a

    adiar a realizao de suas ambies

    expansionistas e estratgias geopolticas.

    Outra indagao que fiz a mimmesma foi: como esse fungo se desenvolve

    no centeio? Encontrei a resposta em um

    livro de Biologia, o qual dizia que o

    crescimento dos fungos nos cereais era

    estimulado com a presena de um

    perodo chuvoso antes da colheita ou

    com seu armazenamento inadequado

    em condies midas. Logo me recordei

    da temporada de clima quente e

    chuvoso que comprometeu as plantaes

    de Salm em 1961, que

    coincidentemente foi na mesma poca

    em que os surtos comearam a surgir.

    Outra coincidncia foi

    o fato de culparem logo as

    mulheres idosas dos

    arredores da cidade, que por

    viverem apenas de seus

    conhecimentos herboristas,

    encontram-se em condies

    de misria, sem dispor ao

    menos de uma somanecessria para comprar

    farinha (a ingesto de uma

    pequena quantidade de

    farinha j suficiente para

    Salm, 9 de Dezembro de 1691Salm, 9 de Dezembro 1691

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    causar o ergotismo) do moleiro da vila, no

    sendo infectadas. Seus nveis de pobreza as

    salvam do ergotismo, porm, por no serem

    atingidas pelos venenos da cravagem, se

    tornam mais vulnerveis s acusaes de

    bruxaria.

    No prximo texto pretendo comear a

    falar das estruturas moleculares dos

    alcaloides da cravagem, pois estou espera

    de um aparelho mais moderno de

    ampliao que est vindo da capital e deve

    chegar essa semana, est muito difcil fazer

    anlises com essas parafernlias arcaicas do

    interior.

    As pessoas aqui em Salm estochamando o ergotismo de Dana-de-

    so-vito, sendo o termo dana uma

    aluso aos espasmos e contores

    compulsivas, que hoje eu sei que so

    decorrentes dos efeitos neurolgicos de

    alguns alcaloides da cravagem. A Igreja

    est comandando cultos e rezas todas asnoites ao santo Antnio, que teria

    poderes especiais contra o fogo e a

    epilepsia e poderia acabar com seus

    sofrimentos. Queria tanto ajud-los de

    alguma maneira, me sinto to

    impotente em saber de tanta coisa e

    ficar calada, vou procurar finalizar

    meus estudos introdutrios o mais

    rpido possvel e tentar achar uma

    cura para a doena, pois acredito que a

    cincia pode salv-los, j que

    perceptivelmente, a reza no est os

    ajudando muito.

    Marah, que tem me ajudado

    bastante, andou conversando com

    algumas herboristas de Salm e de

    outras comunidades e descobriu que os

    alcaloides da ergotina, embora txicos e

    perigosos, so usados para fins

    Salm, 9 de Dezembro de 1691 Salm, 28 de Janeiro de 1692

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    medicinais at hoje por parteiras para

    acelerar o parto ou induzir o aborto,

    tambm so usados para a cura da

    enxaqueca. Fora isso, no tenho mais

    notcias relevantes, apenas continuo

    esperando pela chegada do novo aparelho

    qumico para estudar as molculas, pelo o

    que eu ouvir falar eles tiveram umproblema com os cavalos de entrega, o que

    me resta aguardar.

    Finalmente o novo equipamento

    chegou, ele fantstico e rapidamente

    consegui concluir a minha anlise. A

    seguir, os resultados:

    Ao estudar cuidadosamente as

    molculas de diversos alcaloides que

    causam o ergotismo, observei que eles

    apresentam uma caracterstica

    qumica em comum: todos so

    derivados de uma molcula chamada

    de cido lisrgico. O grupo OH

    (indicado na figura pela seta) presente

    no cido lisrgico substitudo por um

    grupo lateral maior, como na molcula

    de ergotamina, a qual j tecicomentrios anteriormente, e na

    molcula ergovina, que muitas

    parteiras usam para cessar

    sangramentos que podem ocorrer ps-

    parto. A poro do cido lisrgico

    encontra-se circulada nessas duas

    molculas.

    Salm, 28 de Janeiro de 1692 Salm, 2 de Abril de 1692

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    Com meus estudos sobre a cravagem

    quase concludos, estou pensando em

    lev-los e explic-los ao padre Atansio,

    amvel como ele s, tenho certeza que me

    entender e ir levar os pensamentos para

    os outros membros da Igreja local e para

    os governantes. J pensou minha utopia

    de tempos de paz se tornando realidade?

    Hoje me encontro em profundatristeza, pois ontem fui fazer uma visita

    ao Padre Atansio, como havia falado

    que faria, e ele nem parecia a mesma

    pessoa que me visitava todos os dias

    para confortar-me aps o falecimento

    da minha me. Ao revel-lo minhas

    descobertas, ele foi direto e frio dizendo

    que essas conspiraes (termo que

    usou para se referir s minhas

    pesquisas) no me levariam a lugar

    nenhum, a no ser para a forca, e que

    se eu mostrasse isso a mais algum,

    achariam que sou uma bruxa ou

    simplesmente louca e, para completar,

    repetiu diversas vezes que a entrega f o nico caminho para a minha

    salvao. No pode ser, ser que ele

    tambm se tornou um deles? Um

    intolerante, que no consegue enxergar

    essa realidade absurda que estamos

    vivendo? Realmente, as pessoas mudam

    da gua para o vinho, e pior: sem voc

    ao menos perceber.

    Salm, 2 de Abril de 1692 Salm, 15 de Julho de 1692

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    Eles esto atrs de mim, tenho quase

    certeza que o padre Atansio me entregou

    Cotton Mather, um homem arrogante e

    temido pela populao, conhecido na

    Amrica como O Pai da Caa s Bruxas,

    se ele te delata seu destino j conhecido:

    a morte. Pois bem, alm de conspirar

    dizendo que eu tenho a bruxaria no meusangue devido minha me, ele me

    acusou de heresia, calnia e de cooperar

    com as bruxas. No sei quanto tempo mais

    conseguirei me esconder, ento deixo aqui

    minhas ltimas palavras... Comecei

    escrevendo esse dirio com o intuito de

    relatar meus avanos cientficos, mas eleacabou se tornando mais, se tornou uma

    maneira de escapar da doentia realidade,

    das mortes e das acusaes. Espero que um

    dia algum o encontre e veja a real

    histria por trs de todas as inocentes que

    morreram queimadas. E muito mais que

    um dirio, esse meu legado para a

    humanidade.

    Com amor,

    Sarah Collins.

    Salm, 30 de Novembro de 1692