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111 O DIREITO FUNDAMENTAL À PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DA SAÚDE NO BRASIL: PRINCIPAIS ASPECTOS E PROBLEMAS Ingo Wolfgang Sarlet 1 e Mariana Filchtiner Figueiredo 2 SUMÁRIO • 1. Introdução: o direito fundamental à saúde na ordem constitucional brasileira.; 2. Contornos do regime jurídico-constitucional do direito à saúde.; 2.1. A dupla fundamenta- lidade formal e material do direito à saúde.; 2.2. O dever fundamental de proteção e promoção da saúde.; 2.3. Conteúdo do direito fundamental à saúde.; 2.4. Titulares e destinatários do direito fundamental à saúde.; 3. O Sistema Único de Saúde.; 3.1. O Sistema Único de Saúde como garantia institucional fundamental.; 3.2. Princípios informadores do SUS: unidade, descentralização, regionalização e hierarquização, integralidade e participação da comunidade.; 3.3. A assistência à saúde prestada pela iniciativa privada: a saúde suplementar.; 3.4. A rele- vância pública dos serviços e ações de saúde.; 4. O direito fundamental à saúde como direito exigível: possibilidades e desafios; 4.1. A efetivação do direito fundamental à saúde em face da assim chamada “reserva do possível”; 4.2. Igualdade, universalidade e integralidade: desafios à efetividade do direito à fundamental à saúde. 1. Doutor em Direito do Estado pela Universidade de Munique. Estudos em nível de Pós-Doutorado em Munique (bolsista CAPES/DAAD e Max-Planck) e Georgetown. Professor Titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito e dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito e Ciências Criminais da PUCRS. Representante brasileiro e correspondente científico junto ao Max- Planck-Institut für Sozialrecht und Sozialpolitik (München). Professor Visitante e Orientador de Teses no Doutorado em Direitos Humanos da Universidade Pablo de Olavide (Sevilha), Professor Visitante e Pesquisador pelo Programa Erasmus Mundus na Universidade Católica Portuguesa (Lis- boa) e do Curso de Mestrado em Direito Constitucional Europeu (Granada). Professor da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul (AJURIS). Pesquisador-visitante na Harvard Law School (jan-fev. 2008) e no STIAS – Stellenbosch Institute for Advanced Studies, como fellow do instituto (julho 2011). Juiz de Direito em Porto Alegre. 2. Mestre e Doutoranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com estágio de pesquisas (doutorado “sanduíche”) no Max-Planck-Institut für Sozialrecht und Sozialpolitik (München). Especialista em Direito Municipal pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRITTER). Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Fundamentais (GEADF), vinculado à PUCRS e ao CNPq. Advogada da União.

O DIREITO FUNDAMENTAL À PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DA … · do objeto, tais deveres ainda podem impor obrigações de caráter originário, como no caso das políticas de implementação

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O DIREITO FUNDAMENTAL À PROTEÇÃO E PROMOÇÃO

DA SAÚDE NO BRASIL: PRINCIPAIS ASPECTOS E PROBLEMAS

Ingo Wolfgang Sarlet1 e Mariana Filchtiner Figueiredo2

SUMÁRIO • 1. Introdução: o direito fundamental à saúde na ordem constitucional brasileira.; 2. Contornos do regime jurídico-constitucional do direito à saúde.; 2.1. A dupla fundamenta-lidade formal e material do direito à saúde.; 2.2. O dever fundamental de proteção e promoção da saúde.; 2.3. Conteúdo do direito fundamental à saúde.; 2.4. Titulares e destinatários do direito fundamental à saúde.; 3. O Sistema Único de Saúde.; 3.1. O Sistema Único de Saúde como garantia institucional fundamental.; 3.2. Princípios informadores do SUS: unidade, descentralização, regionalização e hierarquização, integralidade e participação da comunidade.; 3.3. A assistência à saúde prestada pela iniciativa privada: a saúde suplementar.; 3.4. A rele-vância pública dos serviços e ações de saúde.; 4. O direito fundamental à saúde como direito exigível: possibilidades e desafios; 4.1. A efetivação do direito fundamental à saúde em face da assim chamada “reserva do possível”; 4.2. Igualdade, universalidade e integralidade: desafios à efetividade do direito à fundamental à saúde.

1. Doutor em Direito do Estado pela Universidade de Munique. Estudos em nível de Pós-Doutorado em Munique (bolsista CAPES/DAAD e Max-Planck) e Georgetown. Professor Titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito e dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito e Ciências Criminais da PUCRS. Representante brasileiro e correspondente científico junto ao Max-Planck-Institut für Sozialrecht und Sozialpolitik (München). Professor Visitante e Orientador de Teses no Doutorado em Direitos Humanos da Universidade Pablo de Olavide (Sevilha), Professor Visitante e Pesquisador pelo Programa Erasmus Mundus na Universidade Católica Portuguesa (Lis-boa) e do Curso de Mestrado em Direito Constitucional Europeu (Granada). Professor da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul (AJURIS). Pesquisador-visitante na Harvard Law School (jan-fev. 2008) e no STIAS – Stellenbosch Institute for Advanced Studies, como fellow do instituto (julho 2011). Juiz de Direito em Porto Alegre.

2. Mestre e Doutoranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com estágio de pesquisas (doutorado “sanduíche”) no Max-Planck-Institut für Sozialrecht und Sozialpolitik (München). Especialista em Direito Municipal pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRITTER). Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Fundamentais (GEADF), vinculado à PUCRS e ao CNPq. Advogada da União.

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1. INTRODUÇÃO: O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE NA ORDEM CONSTITUCIONAL BRASILEIRA.

A positivação constitucional do direito fundamental à saúde, junta-mente com diversos outros direitos fundamentais sociais, é uma carac-terística marcante da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (doravante designada CF), ligando-a ao constitucionalismo demo-crático-social do período posterior à II Guerra. A proteção constitucio-nal existente no país antes de 1988 limitava-se, ou a normas esparsas, como a garantia de “socorros públicos” e a garantia de inviolabilidade do direito à subsistência3; ou a normas de distribuição de competências, legislativas e executivas4; ou, ainda, a formas indiretas de proteção, quando a saúde integrava os direitos do trabalhador e as normas de assistência so-cial5. Não se podia cogitar propriamente de uma efetiva proteção à saúde na perspectiva do direito constitucional, menos ainda na condição de direito fundamental. A explicitação constitucional do direito fundamental à saúde, correlacionado, embora não subsumido, à garantia de assistência social, bem como a criação do Sistema Único de Saúde, viriam com a nova ordem jurídica inaugurada pela CF, que, nesse aspecto, acolheu grande parte das reivindi-cações do Movimento de Reforma Sanitária6. Essa influência é visível, por exemplo: a) na conformação do conceito constitucional de saúde à concepção estabelecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em que a saúde é compreendida como o estado de completo bem-estar físico, mental e social; b) no alargamento do âmbito de proteção constitucional, ultrapassando a noção meramente curativa de saúde, para abranger os aspectos da proteção e promoção; c) na institucionalização de um sistema único, simultaneamente marcado pela descentralização e regionalização das ações e dos serviços de saúde; d) na garantia de universalidade e igualdade de acesso à assistência à saúde; e) no estabelecimento da relevância pública das ações e dos serviços de saúde; f ) na submissão do setor privado às normas do sistema público

3. Respectivamente: Constituição de 1824, art. 179, XXXI, e Constituição de 1934, art. 113, caput.4. Nesse sentido: Constituição de 1934, art. 5º, XIX, “c”, e art. 10, II; Constituição de 1937, art.

16, XXVII, e art. 18, “c” e “e”; Constituição de 1946, art. 5º, XV, “b” e art. 6º; Constituição de 1967, art. 8º, XIV e XVII, “c”, e art. 8º, § 2º, depois transformado em parágrafo único pela Emenda Constitucional nº 01/1969.

5. Por exemplo: Constituição de 1934, art. 121, § 1º, “h”, e art. 138; Constituição de 1937, art. 127 e art. 137, item 1; Constituição de 1946, art. 157, XIV; Constituição de 1967, art. 165, IX e XV.

6. As principais propostas de reforma do setor sanitário foram discutidas na 8ª Conferência Nacional de Saúde e, uma vez consolidadas, foram apresentadas à Assembleia Nacional Constituinte de 1986/1987, tendo sido em grande parte acolhidas no novo texto constitucional.

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de saúde7. Esta é a matéria dos itens a seguir – sem prejuízo, contudo, das considerações desenvolvidas nos demais textos que integram a presente obra coletiva, dedicados a um ou outro desses tópicos em particular.

2. CONTORNOS DO REGIME jURíDICO-CONSTITUCIONAL DO DIREITO À SAÚDE.

2.1. A dupla fundamentalidade formal e material do direito à saúde.

O direito à saúde comunga, na ordem jurídico-constitucional brasileira, da dupla fundamentalidade formal e material de que se revestem os direitos e garantias fundamentais em geral, decorrentes, notadamente, do regime jurídico privilegiado que lhes outorgou a Constituição de 19888. A fundamentalidade em sentido material encontra-se ligada à relevância do bem jurídico tutelado pela ordem constitucional, que se evidencia, no caso da saúde, por ser o pressuposto da manutenção e gozo da vida (e vida com dignidade, ou seja, vida saudável e com certa qualidade), bem como operar como garantia das condições necessárias à fruição dos demais direitos, fundamentais ou não, inclusive no sentido de viabilização do livre desenvolvimento da pessoa e de sua personalidade9. Dessa forma, a salvaguarda do direito à saúde também se dá pela proteção conferida a outros bens fundamentais, em relação aos quais apresenta zonas de convergência e mesmo de superposição (direitos e deveres), fato que reforça a tese da interdependência e mútua conformação de todos os direitos humanos e fundamentais10, ademais de realçar a “intersetorialidade”das políticas e ações de saúde, aludida pela Declaração de Alma-Ata, de 1978.

7. Cf. RAEFFRAY, A. P. O. de. Direito da Saúde de acordo com a Constituição Federal. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 262 e ss.

8. Nesse sentido, cf. SARLET, I. W. “Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efe-tividade do direito à saúde na Constituição de 1988”. In: Revista Interesse Público. Porto Alegre, v. 12, p. 91-107, 2001; MOLINARO, C. A; MILHORANZA, M. G. “Alcance Político da Jurisdição no Âmbito do Direito à Saúde”. In: ASSIS, A de. (coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos limites da jurisdição e do direito à saúde, Porto Alegre: Notadez, 2007, p. 220 e ss.; FIGUEIREDO, M. F. Direito Fundamental à Saúde: parâmetros para sua eficácia e efetividade. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007.

9. Num caso de inexistência de norma expressa, tais interconexões autorizariam a reconhecer um direito fundamental à saúde, ainda que implícito, mediante aplicação conjugada dos §§ 1º e 2º do artigo 5º com as demais normas constantes, entre outros, dos artigos 5º e 6º, todos da CF – situação análoga àquela observada no direito estrangeiro, como na Alemanha. O que parece certo é que uma ordem constitucional que protege os direitos à vida, à integridade física e corporal e ao meio ambiente sadio e equilibrado evidentemente deve salvaguardar a saúde, sob pena de esvaziamento (substancial) também desses direitos.

10. Cf. LOUREIRO, J. C. “Direito à (protecção da) saúde”. In: Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano. Coimbra: Coimbra Editora (Edição da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), 2006, p. 657-692; BIDART CAMPOS, G. J. “Lo explícito y lo implícito en la salud como

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Já a fundamentalidade formal é propriedade que decorre do direito cons-titucional positivo e, no contexto brasileiro, desdobra-se em três elementos: a) como parte integrante da Constituição escrita, os direitos fundamentais (e, portanto, também o direito à saúde) situam-se no ápice do ordenamento jurí-dico, como normas de superior hierarquia formal e axiológica; b) na condição de normas fundamentais insculpidas na Constituição escrita, encontram-se submetidos aos limites formais (procedimento agravado) e materiais (“cláu-sulas pétreas”) para modificação dos preceitos constitucionais; c) nos termos do § 1º do artigo 5º da CF, as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais são diretamente aplicáveis, vinculando de forma imediata as entidades estatais e os particulares – comando que alcança outros dispositi-vos de tutela da saúde, por força da cláusula inclusiva constante do § 2º do mesmo artigo 5º da CF. Tais questões não são, todavia, pacíficas na doutrina e na jurisprudência, em que nem sempre se reconhece o pleno regime jurí-dico da fundamentalidade do direito à saúde, dando margem a uma série de discussões a respeito de diversos aspectos que envolvem o direito à saúde.

2.2. O dever fundamental de proteção e promoção da saúde.

A saúde, além de objeto de um direito, configura também um dever fundamental, e o texto do artigo 196 da CF não deixa dúvidas quanto à existência desse direito-dever, em que os deveres conexos ou correlatos têm origem e conformação a partir da norma de direito fundamental11, ou seja, os deveres fundamentais decorrentes do direito à saúde guardam pertinência com as diferentes formas pelas quais esse direito fundamental se efetiva. Sem prejuízo de outras possíveis concretizações, pode-se referir, por exemplo, a existência de deveres de proteção concretizados por normas penais de tutela de bem jurídicos conexos (vida, integridade física, ambiente, saúde pública) e por normas administrativas no campo da vigilância sanitária e epidemiológi-ca, assim como da saúde do trabalhador. Deveres prestacionais lato sensu são densificados pelas normas e políticas públicas de regulamentação e organização do SUS, especialmente no que concerne ao acesso ao sistema, à participação

derecho y como bien jurídico constitucional”, in MACKINSON, G.; FARINATI, A. Salud, Derecho y Equidad. Principios constitucionales. Políticas de salud. Bioética. Alimentos y Desarrollo. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2001, p. 21-28; e, na mesma obra coletiva, CAYUSO, S. G. “El derecho a la salud: un derecho de protección y de prestación”, p. 29-45.

11. Sobre os deveres fundamentais, cf. SARLET, I. W. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10ª ed., rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 226 e ss; NABAIS, J. C. Por uma Liberdade com Responsa-bilidade. Estudos sobre direitos e deveres fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 197 e ss.; relativamente à saúde: FIGUEIREDO, M. F., op. cit., p. 86 e ss.

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da comunidade, seja no processo de decisão e controle das ações de saúde, seja na adesão individual aos programas de saúde pública. Isso evidencia o caráter peculiar de alguns deveres fundamentais, que ademais de se fazerem cogentes no âmbito das relações individuais, dão origem a deveres de natureza política e a deveres econômicos, sociais, culturais e ambientais12. A depender do objeto, tais deveres ainda podem impor obrigações de caráter originário, como no caso das políticas de implementação do SUS, da aplicação mínima dos recursos em saúde e do dever geral de respeito à saúde, ou obrigações de tipo derivado, sempre que dependentes da superveniência de legislação infra-constitucional reguladora, cuja hipótese mais eloqüente talvez se encontre na obediência às mais variadas normas em matéria sanitária (de natureza penal, administrativa, ambiental, urbanística, etc.).

Se o principal destinatário dos deveres fundamentais é certamente o Estado, fato reiterado pelas expressões usadas no texto constitucional, isso não afasta a eficácia dos deveres de proteção e promoção à saúde entre par-ticulares, especialmente quanto a obrigações derivadas. O artigo 2º Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, não deixa dúvidas: “[o] dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade”. Releva notar que a mesma Lei Orgânica da Saúde consigna destinar-se à regulação das ações e dos serviços de saúde “executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas de direito Público ou privado”, indicando que o SUS vincula não apenas o Poder Público, como abrange a atuação da iniciativa privada, assim submetida, ainda que se possa discutir dentro de quais limites, aos mesmos princípios e diretrizes, cons-titucionais e legais13. A noção de dever fundamental conecta-se assim ao princípio da solidariedade, no sentido de que a sociedade é responsável pela efetivação e proteção do direito à saúde de todos e de cada um14, no sentido

12. Para exemplos concretos desses deveres, conferir nosso trabalho, originalmente publicado sob o título “Algumas considerações sobre o direito fundamental à proteção e promoção da saúde nos vinte anos da Constituição Federal de 1988” (Revista de Direito do Consumidor, nº 67, 2008, p. 125-172), traduzido e publicado em espanhol sob o título “Algunas consideraciones sobre el derecho fundamental a la protección y promoción de la salud a los 20 años de la Constitución Federal de Brasil de 1988” (trad. Maruja Cabrera de Varese) in: COURTIS, Christian; SANTAMARÍA, Ramiro Ávila (edits.). La protección judicial de los derechos sociales. Quito, Equador: Ministerio de Justicia y Derechos Humanos, 2009, p. 241- 299.

13. Em sentido semelhante: SALAZAR, A. L.; GROU, K. B.; SERRANO JR., V. “Assistência privada à saúde: aspectos gerais da nova legislação”. In: MARQUES, C. L. [et al.] (coord.) Saúde e Respon-sabilidade 2: a nova assistência privada à saúde. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 198-200.

14. Nesse sentido, CASAUX-LABRUNÉE, L. “Le ‘droit à la santé’”. In CABRILLAC, R.; FRI-SON-ROCHE, M-A; REVET, T. Libertés et droits fondamentaux. 6 ed. rev. e aum. Paris: Dalloz, 2000, p. 631 e ss.

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de uma responsabilidade compartilhada (shared responsibility)15, cujos efeitos se projetam no presente e para as futuras gerações16. Com base no princípio da subsidiariedade, especialmente em sua dimensão horizontal, os deveres fundamentais ainda se conectam às ideias de um “suporte recíproco” e de um “movimento circular na esfera pública”, superando a noção de prevalência de quaisquer dos setores, público ou privado17.

2.3. Conteúdo do direito fundamental à saúde.

A CF, salvo algumas pistas, não especificou o conteúdo abrangido pelo direito de proteção e promoção da saúde18. Se essa circunstância não pode ser legitimamente utilizada como argumento para afastar a possibilidade de intervenção judicial, ela indica, de outra parte, a relevância da adequada conformação legislativa e administrativa (inclusive no âmbito do poder nor-mativo da Administração) do texto constitucional, respeitadas, em cada caso, as respectivas esferas de competência. Isso não desmerece alguns elementos que aparecem mais nítidos no texto constitucional, como a adoção de uma concepção ampla de saúde, alinhada àquela propugnada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que, para além do aspecto curativo, ressalta as dimensões preventiva e promocional do direito à saúde. Em vista disso, parece mais apropriado cogitar-se não simplesmente de direito à saúde, mas no direito à proteção e à promoção da saúde19, inclusive como “imagem-horizonte”20 a ser perseguida. Seguindo as diretrizes textuais do artigo 196 da CF, toma-se o termo “recuperação” como referência à concepção de “saúde curativa”, ou seja, à garantia de acesso, pelos indivíduos, aos meios que lhes possam trazer a cura da doença, ou pelo menos uma sensível melhora na qualidade de vida

15. A expressão é de Canotilho. Cf. CANOTILHO, J. J. G. “O direito ao ambiente como direito subjectivo”. In: ____. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra, 2004, p. 178.

16. Nesse sentido, NUNES, J. A.; MATIAS, M. “Rumo a uma Saúde Sustentável: saúde, ambiente e política”. In: Saúde e Direitos Humanos. Ministério da Saúde. Fundação Oswaldo Cruz, Núcleo de Estudos em Direitos Humanos e Saúde Helena Besserman. Ano 3 (2006), n. 3. Brasília: Ministério da Saúde, 2006, p. 11. Disponível em http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/publicacoes/saude-e-direitos-humanos/pdf/sdh_2006.pdf, acesso em 31-05-2008.

17. Cf. COTTURRI, G. “Culture e soggetti della sussidiarietà”. In: LABSUS Papers (2007), Paper n. 2, p. 1-2 e p. 11. Disponível em: http://www.labsus.org/media/Cotturri_2.pdf, acesso em 14-04-2010.

18. Sobre o ponto: FIGUEIREDO, M. F., op. cit., p. 81 e ss.19. Valem aqui as observações feitas por CASAUX-LABRUNÉE, L., op. cit., p. 617-619; e por LOU-

REIRO, J. C. “Direito à (protecção da) saúde”, op. cit.20. SCLIAR, M. Do mágico ao social: A trajetória da saúde pública. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 32-

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(hipótese mais comum nos tratamentos contínuos)21. Já as expressões “redução do risco de doença” e “proteção” reportam-se à ideia de “saúde preventiva”, pela realização das ações e políticas de saúde que tenham por escopo evitar o surgimento da doença ou do dano à saúde (individual ou pública), ensejando a imposição de deveres específicos de proteção, decorrentes, entre outros, da vigência dos princípios da precaução e prevenção. O termo “promoção”, en-fim, atrela-se à busca da qualidade de vida, por meio de ações que objetivem a melhora das condições de vida e de saúde das pessoas22 – demonstrando, ademais, a sintonia do texto constitucional com o dever de progressividade e com a garantia do “mais alto nível possível de saúde”, previstos, respectiva-mente, pelos artigos 2º e 12 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC).

O direito fundamental à saúde (na condição de um direito em sentido amplo) envolve, outrossim, um complexo de posições jurídico-subjetivas di-versas, podendo ser reconduzido às noções de direito de defesa e de direito a prestações. Como direito de defesa (ou direito negativo), o direito à saúde visa à salvaguarda da saúde individual e pública contra ingerências indevidas, por parte do Estado ou de sujeitos privados, individual e coletivamente con-siderados. Na condição de direito a prestações (direito positivo), e especifica-mente como direito a prestações em sentido amplo, o direito à saúde impõe deveres de proteção da saúde pessoal e pública, assim como deveres de cunho organizatório e procedimental (v.g., organização dos serviços de assistência à saúde, de formas de acesso ao sistema, da distribuição dos recursos finan-ceiros e sanitários, etc; regulação do exercício dos direitos de participação e controle social do SUS; organização e controle da participação da iniciativa privada na prestação de assistência sanitária; estabelecimento de instituições e órgãos de promoção das políticas públicas de saúde, assim como de defesa dos titulares desse direito fundamental, como o Ministério Público e a Defensoria Pública, dotando-os de instrumentos processuais para tanto). Como direito

21. Nesse sentido, Rodolfo Arango colaciona interessante precedente da Corte Constitucional colom-biana (sentença T-001, de 1995), referindo que a noção de cura “não necessariamente implica erradicação total dos sofrimentos, senão que envolve as possibilidades de melhoria para o paciente, assim como os cuidados indispensáveis para impedir que sua saúde se deteriore ou diminua de maneira ostensiva, afetando sua qualidade de vida”. Cf. ARANGO, R. “O Direito à Saúde na Jurisprudência Constitucional Colombiana”. In: SOUZA NETO, C. P; SARMENTO, D. (coord.) Direitos Sociais: Fundamentos, Judicialização e Direitos Sociais em Espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 728.

22. SCHWARTZ, G. A. D. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 27 e p. 98-99. Como assinala Germán Bidart Campos, “no es buena una calidad de vida cuando una persona no dispone de cuanto es imprescindible para la atención de la salud” (op. cit., p. 24).

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a prestações em sentido estrito, o direito à saúde abarca pretensões ao forne-cimento de variadas prestações materiais (tratamentos, medicamentos, exames, internações, consultas, etc.). Nesse contexto, registra-se tendência crescente, em sede doutrinária e jurisprudencial, no sentido de afirmar a exigibilidade judicial de posições subjetivas ligadas ao “mínimo existencial” – cujo conteúdo, segundo a concepção prevalente, vai além da mera sobrevivência física, albergando a garantia de condições materiais mínimas para uma vida saudável23 (ou o mais próximo disso, de acordo com as condições pessoais do indivíduo) e com certa qualidade24.

Já no que diz respeito à efetivação do direito à saúde entre os particulares (ou seja, a vinculação dos atores privados ao direito à saúde), expressiva juris-prudência reconhece posições subjetivas dos titulares de planos de saúde frente às respectivas operadoras, sobremodo para coibir, mediante o enquadramento como cláusula abusiva (e, pois, mediante a tutela reforçada que resulta da si-multânea aplicação das normas de proteção do consumidor, com igual assento constitucional25), diversas restrições à cobertura previstas em contratos de planos de saúde, como a limitação do tempo de internação hospitalar, atualmente objeto da Súmula nº 302 do Superior Tribunal de Justiça26.

Por fim, importa destacar a relevante dimensão objetiva do direito à saú-de, que, ademais de outros efeitos comuns à dimensão objetiva dos direitos fundamentais, justifica a imposição de deveres de proteção e promoção da saúde, consoante já mencionado, além de respaldar a extensão da proteção do direito à saúde, em certa medida, ao próprio Sistema Único de Saúde (SUS), na condição de típica garantia institucional, estabelecida e regulada

23. Reportamo-nos aqui ao conceito de dignidade da pessoa humana formulado por SARLET, I. W., Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, 8ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 70.

24. Traçando alguns parâmetros de concretização do mínimo existencial relativamente ao direito à saúde, SARLET, I. W.; FIGUEIREDO, M. F. “Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações”. In: SARLET, I. W.; TIMM, L. B. (org.) Direitos Fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 11-53 (especialmente p. 42-49); e FIGUEIREDO, M. F., op. cit., p. 204 e ss.

25. Ver, por todos, Cláudia Lima Marques: “Para bem analisar a relação entre o Código de Defesa do Consumidor – CDC e a legislação especial sobre planos privados de assistência à saúde e identificar se existe conflito de normas, sugerindo formas para sua resolução, gostaria de destacar [...] a origem constitucional do CDC, a superior hierarquia da proteção do consumidor como direito e mandamento constitucional (art. 5º, XXXII, da CF/88) e como limite constitucional à livre iniciativa dos operadores de planos privados de assistência à saúde (art. 170, V, da CF/88)”. SCHMITT, C. H.; MARQUES, C. L. “Visões sobre os planos de saúde privada e o Código de Defesa do Consumidor”. In: MARQUES, C. L. [et al.] (coord.), op. cit., 2008, p. 110.

26. Súmula nº 302 do STJ: “É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado.”

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originariamente em nível constitucional27, o que, por sua vez, será objeto de consideração logo adiante.

2.4. Titulares e destinatários do direito fundamental à saúde.

A Constituição de 1988 expressamente consignou a titularidade universal do direito à saúde (art. 196, CF), a ser reconhecido e assegurado a todas as pessoas – o que não impede, porém, diferenciações na aplicação prática da norma, notadamente quando sopesada com o princípio da igualdade, porquan-to tais princípios, embora correlacionados, não se confundem28. Isso afasta a tese que, de forma generalizada e sem exceções, reconhece o direito à saúde somente aos brasileiros e estrangeiros residentes no país, entendimento que, na verdade, não guarda sinergia nem com as políticas internas, nem com os tratados internacionais firmados pelo Brasil sobre a matéria. Importa ressalvar, contudo, que a titularidade universal não se confunde com a universalidade de acesso ao SUS, que poderá eventualmente sofrer restrições diante das cir-cunstâncias do caso concreto, sobretudo se tiverem por desiderato a garantia de eqüidade do sistema como um todo – dando-se prevalência ao princípio da igualdade (substancial), que pode justificar discriminações positivas em prol da diminuição das desigualdades regionais e sociais, ou da justiça social, por exemplo.

À semelhança de outros direitos socioambientais, o direito à saúde apre-senta uma titularidade simultaneamente individual e transindividual (coletiva e até mesmo difusa), que não se esgota em nenhum desses aspectos e auto-riza, com isso, que seja exigível judicialmente tanto por ações individuais, quanto por procedimentos coletivos, segundo as circunstâncias concretas. A caracterização como direito coletivo, ou mesmo interesse difuso em certas hipóteses, não exclui a titularidade individual do direito à saúde, visto que, a despeito de questões ligadas à saúde pública e coletiva, o direito à saúde não perde o cunho individual decorrente de sua relação com a proteção da vida, a integridade física e corporal, a dignidade humana e o mínimo existencial de cada indivíduo, pois não é o fato de todas as pessoas terem problemas de saúde que o torna um direito exclusivamente coletivo, pois também a o direito à vida não é um típico direito coletivo. Conquanto possível (e até desejável!) priorizar a tutela processual coletiva no campo da efetivação do

27. Sobre as garantias institucionais: SARLET, I. W., 2009, op. cit., p. 148 e 180 e ss. Sobre o SUS como garantia institucional: FIGUEIREDO, M. F., op. cit., p. 45-46.

28. Para maior aprofundamento acerca da titularidade dos direitos fundamentais em geral: SARLET, I. W., 2009, p. 208 e ss; e ARANGO, R. El concepto de derechos sociales fundamentales. Bogotá: LEGIS, 2005, p. 55-113 (especialmente, p. 60 e 87).

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direito à saúde29, isto não significa que ao direito à saúde possa ser negada a condição de direito de titularidade individual, perante o Poder Público ou como tal invocado, a depender do caso, em face de outro particular30.

Relativamente aos destinatários, o Estado é o sujeito passivo principal do direito à saúde, incumbindo-lhe a realização de medidas que o assegurem e efetivem nas dimensões de defesa, proteção e prestações, seja em sentido amplo, seja em sentido estrito. Conforme assinalado, isso não exclui a eficácia do direito à saúde na esfera privada31, sendo de admitir um dever geral de respeito32 à saúde pelos particulares entre si, tanto num sentido defensivo, com a vedação de condutas excessivamente restritivas à fruição do direito à saúde pelos demais, individual e coletivamente considerados; quanto pela imposição de um dever geral de proteção, calcado nos princípios da solidarie-dade33 e da subsidiariedade, ao menos no sentido de as pessoas privilegiarem, sempre que possível, a salvaguarda do direito à saúde, seja ela individual ou se trate da saúde pública34. Em verdade, a CF não restringe (pelo menos não de forma generalizada e expressa) a eficácia dos direitos sociais às relações entre atores privados e dos indivíduos frente ao Estado, ainda mais em face do dever de aplicabilidade direta das normas de direitos fundamentais (art. 5º, § 1º)35. Ao mesmo tempo, a construção de uma “sociedade livre, justa e solidária”, voltada a “promover o bem de todos” e a “erradicar a pobreza e

29. Nesse sentido: BARROSO, L. R. “Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial”. In: Interesse Público, n. 46, nov.-dez./2007, p. 31-6; SOUZA NETO, C. P. de. “A Justiciabilidade dos Direitos Sociais: Críticas e Parâmetros”, in SOUZA NETO, C. P; SARMENTO, D., op. cit., p. 515-551; nessa mesma obra coletiva: SARMENTO, D., “A Proteção Judicial dos Direitos Sociais: Alguns Parâmetros Ético-Jurídicos”, p. 553-586; BARCELLOS, A. P. de. “O Direito a Prestações em Saúde: Complexidades, Mínimo Existencial e o Valor das Abordagens Coletiva e Abstrata”, p. 803-826; e HENRIQUES, F. V. “Direito Prestacional à Saúde e Atuação Jurisdicional”, p. 827-858.

30. A respeito do tema, com maiores detalhes: SARLET, I. W. “A titularidade simultaneamente in-dividual e transindividual dos direitos sociais analisada à luz do exemplo do direito à proteção e promoção da saúde”. In: Direitos Fundamentais & Justiça. Ano 4, nº 10, jan./mar. 2010, p 205-229; FIGUEIREDO, M. F. “Apontamentos acerca do objeto do direito à saúde: para além do dever de prestação de medicamentos e tratamentos”. Trabalho apresentado como conclusão de disciplina no curso de Doutorado em Direito (PUCRS), dez./2009, especialmente p. 5 e ss.

31. Sobre a eficácia do direito à saúde nas relações privadas: MATEUS, C. G. Direitos Fundamentais Sociais e Relações Privadas: o caso do direito à saúde na Constituição brasileira de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, especialmente p. 137 e ss. Mais amplamente, sustentando uma eficácia direta prima facie dos direitos fundamentais nas relações privadas, SARLET, I. W. “A Influência dos Direitos Fundamentais no Direito Privado: o caso Brasileiro”, in: MONTEIRO, A. P.; NEUNER, J.; SARLET, I. (orgs.) Direitos Fundamentais e Direito Privado: uma Perspectiva de Direito Comparado. Coimbra: Almedina, p. 111-144.

32. SARLET, I. W., 2009, op. cit., p. 381.33. Em direção semelhante, SARMENTO, D., 2004, op. cit., p. 337 e ss.34. FIGUEIREDO, M. F., op. cit., 2009, p. 14 e ss.35. Nesse sentido, SARLET, I. W., 2009, op. cit., p. 383.

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a marginalização e a reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3º, I, III e IV, CF, respectivamente) parece exigir, consoante já frisado, a definição de um papel ativo e de uma responsabilidade compartilhada também pelos atores privados.

3. O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE.

3.1. O Sistema Único de Saúde como garantia institucional fundamental.

A dimensão objetiva do direito à saúde, além de sua função de prote-ção e sua eficácia (direta ou indireta, a depender do caso) entre particula-res, densifica-se de modo especial com o Sistema Único de Saúde (SUS). Tendo sido estabelecido e regulamentado pela própria Constituição de 1988, que estipulou os princípios pelos quais se estrutura e os objetivos a que deve atender, além de consistir reivindicação central do Movimento de Reforma Sanitária, o SUS pode ser considerado uma garantia institu-cional fundamental36. Sujeita-se, por conseguinte, à proteção estabelecida para as demais normas de direitos fundamentais, estando inserido entre os limites materiais à reforma constitucional37 e resguardado contra medidas de cunho retrocessivo em geral, ao menos em linha de princípio. Eventuais ações tendentes a aboli-lo ou esvaziá-lo, formal ou substancialmente, aí com-preendidos os princípios sobre os quais se alicerça, deverão ser estritamente avaliadas em sua constitucionalidade, pois não apenas o direito à saúde é protegido, como o SUS, na condição de instituição pública, conta com a salvaguarda da proteção constitucional. A constitucionalização do SUS como garantia institucional fundamental significa, ainda, que a efetivação do di-reito à saúde deve conformar-se aos princípios e diretrizes pelos quais foi estruturado, estabelecidos primordialmente nos artigos 198 a 200 da CF38, a seguir examinados.

3.2. Princípios informadores do SUS: unidade, descentralização, regio-nalização e hierarquização, integralidade e participação da comunidade.

O princípio da unidade (ou unicidade) significa que o SUS constitui um só e único sistema de saúde e, a despeito da descentralização das ações e dos

36. Sobre as garantias institucionais, SARLET, I. W., 2009, op. cit., p. 148 e p. 180 e ss. Defendendo a natureza de garantia institucional do SUS, FIGUEIREDO, M. F., op. cit., p. 45-46.

37. Em sentido semelhante, no direito português, Acórdão 39/84 (Diário da República, 2ª série, de 05-05-1984); e os comentários de NOVAIS, J. R. Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 312-313.

38. Fazendo uma análise geral sobre os princípios do SUS, FIGUEIREDO, M. F., op. cit., p. 96-102.

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serviços que nele se desenvolvem, está igualmente submetido a uma única direção em cada nível de governo. A garantia de unidade procura superar a multiplicidade de sistemas dos regimes anteriores, caracterizados por graves problemas de igualdade de acesso e de cobertura, não solucionados sequer pela criação do Sistema Nacional de Saúde ou do Sistema Unificado e Des-centralizado de Saúde. De outra parte, o princípio da unidade implica que os serviços e ações públicos de saúde, aqui abrangida a saúde complementar (isto é, a assistência prestada por particulares mediante contrato ou convê-nio com o Poder Público), são pautados por políticas, diretrizes e comando únicos. Interpretado conjugadamente à relevância pública, constitucional e indistintamente outorgada a todos os serviços e ações de saúde (art. 197, CF), o princípio da unidade justifica a vinculação dos particulares, ou seja, dos setores da saúde complementar e suplementar, a pelo menos algumas das demais diretrizes do SUS39.

Conquanto único, o SUS constitui uma rede regionalizada e hierarquizada de ações e serviços de saúde, operando consoante o princípio da descentra-lização. A regionalização atende à necessidade de adaptação da assistência à saúde ao perfil epidemiológico local40, segundo as diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS) e as reivindicações do Movimento de Reforma Sanitária41, conformando-se, ademais, à reconhecida tradição municipalista brasileira, a evidenciar a estreita relação da estrutura do SUS com o princípio federativo, bem como com formas compartilhadas de planejamento e gestão dos serviços. A descentralização da assistência à saúde dá-se primordialmente pela municipalização, com a prestação dos cuidados de saúde primordialmente pelos Municípios, em detrimento dos Estados e, supletiva e subsidiariamente, pela União. Isso não exclui a atuação direta do ente central em certas situa-ções, quer para a garantia da necessária harmonização prática entre os prin-

39. É o caso, por exemplo, da integralidade de atendimento, pela oferta das prestações mínimas contidas no plano-referência (Lei nº 9.656/98, art. 10).

40. Como observa Marcelo Medeiros, os critérios epidemiológicos possuiriam um alto grau de orientação à “coletividade”, levando em consideração o grau de necessidade dos indivíduos, em determinada situação de espaço e tempo, como critério para a alocação e distribuição dos recursos de saúde. Cf. MEDEIROS, M. “Princípios de Justiça na Alocação de Recursos em Saúde”. Texto para discussão nº 687, Rio de Janeiro, dezembro de 1999 – ISSN 1415-4765. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Curso de Iniciação em Economia da Saúde para os Núcleos Estaduais/Regionais, p. 52-53. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/apostila_curso_iniciacao_economia_saude.pdf, acesso em 24-05-2008, p. 67.

41. A 8ª Conferência Nacional de Saúde sugeria que o novo sistema de saúde deveria “ser organizado com base epidemiológica e ter prioridades claramente definidas em função das necessidades locais e regionais”, além de “estruturar-se com base nos conceitos de descentralização, regionalização e hierarquização – só centralizar o que realmente não for possível descentralizar”, conforme referência de RAEFFRAY, A. P. O., op. cit., p. 285.

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cípios constitucionais da eficiência, da subsidiariedade e da integralidade do atendimento, pois a assistência à saúde deve ser executada por quem possua condições para efetivá-la da melhor forma (isto é, com melhor qualidade e condições de acesso), quer em decorrência de uma obrigação de permanente aperfeiçoamento do sistema, notadamente para assegurar equilíbrio à distri-buição de recursos (financeiros e sanitários) e equidade no acesso à assistência.

A hierarquização, por seu turno, consiste em termo técnico do setor sani-tário, indicando que a assistência à saúde desenvolve-se em ordem crescente, dos cuidados mais simples aos níveis mais altos de complexidade42, de acordo com o caso concreto e ressalvadas as situações de emergência e urgência43. Organizam-se os serviços de saúde partindo-se das ações de atenção básica, comuns a todos os Municípios, passando pela assistência de média e alta complexidade, já centralizadas em Municípios maiores, para alcançar então os serviços de notória especialização, disponíveis somente em alguns grandes centros do país. Também aqui guarda o SUS sintonia com os princípios da subsidiariedade e eficiência, o que poderá eventualmente justificar a atuação direta por parte dos Estados ou mesmo da União, diante de circunstâncias e condições específicas postas pela realidade.

O princípio da integralidade de atendimento determina que a cobertura oferecida pelo SUS seja a mais ampla possível, o que evidentemente não afasta a existência de certos limites, sobretudo técnicos. A integralidade é pautada pelos princípios da precaução e prevenção44, por sua vez ligados às noções de eficácia e segurança45, atribuindo prioridade às atividades preventivas, tanto às ações de medicina preventiva, quanto, em sentido mais amplo, às ações de vigilância sanitária, saneamento básico e à garantia de um ambiente sadio

42. SCHWARTZ, G. A. D., op. cit., p. 108.43. Os conceitos não são exatamente idênticos, como alude o artigo 35-C da Lei nº 9.656/98, ao

tratar da cobertura obrigatória dos planos de saúde. Emergência abrange os casos “que implicarem risco imediato de vida ou de lesões irreparáveis para o paciente, caracterizado em declaração do médico assistente”, enquanto urgência envolve as hipóteses “resultantes de acidentes pessoais ou de complicações no processo gestacional”.

44. Oportuna a sintética distinção proposta por CASAUX-LABRUNÉE, L.: enquanto a precaução visa a limitar os riscos ainda hipotéticos ou potenciais, o princípio da prevenção atrela-se ao controle dos riscos já verificados – sendo princípios complementares, portanto. Op. cit., p. 627-629.

45. O princípio da integralidade, especialmente no que pertine à inserção de novas tecnologias ao SUS, foi objeto da recente Lei nº 12.401, de 28 de abril de 2011, que introduziu os artigos 19-M a 19-U à Lei nº 8.080/90. Apesar de pendente de regulamentação administrativa em alguns aspec-tos, a lei determina que a assistência terapêutica esteja aliada à conformação do medicamento ou produto de interesse para a saúde aos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas adotados pelo SUS, a serem definidos pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS, órgão do Ministério da Saúde, mediante processo administrativo, em que asseguradas a consulta pública ao parecer emitido pelo órgão estatal e, se a relevância da matéria exigir, a realização de audiência pública.

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e equilibrado. A integralidade das prestações é, ainda, balizada pelos princípios da razoabilidade e da eficiência (não, porém, sob uma ótica economicista e uti-litarista), não se considerando razoável um tratamento cuja eficácia não esteja comprovada, ou que acarrete sérios riscos à saúde da coletividade, por exemplo. De outra parte, o princípio da integralidade reflete a ideia de que os serviços de saúde devem ser tomados como um todo, harmônico e contínuo, de modo que sejam simultaneamente articulados e integrados em todos os aspectos (individual e coletivo; preventivo, curativo e promocional; local, regional e nacional) e níveis de complexidade do SUS46.

O SUS ainda se caracteriza pela participação da comunidade, tanto na definição, quanto no controle social das políticas de saúde, notadamente por meio dos Conselhos e das Conferências de Saúde47. Os Conselhos de Saúde, organizados nos três níveis de governo, são órgãos permanentes e deliberativos, que atuam no planejamento e controle do SUS, inclusive no que toca ao seu financiamento, sendo compostos por representantes do governo, prestadores privados, profissionais da saúde e cidadãos. A pluralidade na participação é ainda mais acentuada nas Conferências de Saúde, em que representantes de vários segmentos sociais discutem e fazem proposições para as políticas de saúde em cada um dos níveis da Federação. Importante lembrar, ainda neste contexto, a participação social que se dá pelos representantes da sociedade junto aos órgãos reguladores, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), a Câ-mara de Saúde Suplementar da Agência Nacional de Saúde Suplementar (CSS/ANS) e o Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA). Tais formas de participação evidenciam a faceta democrático-participativa do direito à saúde, efetivado como direito à participação na organização e no procedimento, e que guarda estreita relação com a ideia de um status activus processualis, tal qual defendida por Peter Häberle48.

Convém lembrar, por fim, que esse elenco de princípios não é taxativo, mas exemplificativo, pois é complementado por outros princípios consti-tucionais, por exemplo, os princípios da universalidade e da igualdade do acesso aos bens e serviços de saúde; bem como por princípios acolhidos na

46. O artigo 7º, inciso II, da Lei nº 8.080/90 estabelece que integralidade da assistência deve ser entendida como “conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema”. A respeito do tema: SCHWARTZ, G. A. D., op. cit., p. 108; e PAULI, L. T. S.; ARTUS, S. C.; BALBINOT, R. A. “A Perspectiva do Processo Saúde/Doença na Promoção de Saúde da População”.In: Revista de Direito Sanitário, v. 4, n. 3, p. 32, nov. 2003.

47. A matéria encontra-se regulada pela Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990.48. Sobre os direitos de participação na organização e procedimento, v. SARLET, I. W., 2009, op.

cit., p. 194 e ss.

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legislação ordinária, como é o caso da autonomia ou do direito-dever de informação, ambos previstos na Lei nº 8.080/90.

3.3. A assistência à saúde prestada pela iniciativa privada: a saúde su-plementar.

A participação da iniciativa privada na assistência à saúde ocorre basica-mente de duas formas: a chamada “saúde complementar”, mediante convênio ou contrato de direito público firmado com o SUS, sendo privilegiadas as entidades filantrópicas e aquelas sem fins lucrativos; e a assim designada “saúde suplementar”, em que os cuidados são prestados diretamente pelas operadoras de planos de saúde49, por meio de contrato de direito privado, regulada pela Lei nº 9.656/98, devendo estar, ainda, em conformidade com as diretrizes estabelecidas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Constata--se, desde logo, que a primeira hipótese (saúde complementar) envolve uma atividade delegada à iniciativa privada (excluída a participação de empresas ou capitais estrangeiros), que atua em lugar da Administração Pública, mas está sujeita aos limites e diretrizes estabelecidos no convênio ou contrato administrativo (sendo vedada, contudo, a destinação de recursos a auxílios ou subvenções a instituições privadas com fins lucrativos) e submetida, por-tanto, aos princípios correntes do direito administrativo, inclusive no que se refere à eventual responsabilização na forma do artigo 37, § 6º, da CF. Já os contratos firmados no âmbito da saúde suplementar, individual ou cole-tivamente50, não se submetem integralmente ao mesmo regramento – o que não significa que o tema não mereça maior aprofundamento, até mesmo para justificar o reconhecimento, também em respeito ao princípio da autonomia da vontade, de uma liberdade (fundamental) de não contratação, no sentido de que ninguém é obrigado a contratar plano de saúde privado. Além disso, resta a assistência prestada diretamente pelos profissionais da saúde, mediante consulta ou exame pago pelo próprio interessado, sujeita ao regime comum dos prestadores de serviços, notadamente o Código de Defesa do Consumi-dor (Lei nº 8.078/90, doravante designada como CDC), e às exigências da vigilância sanitária.

49. Embora permaneçam existindo, como institutos próprios, os planos e os seguros de saúde, desde a edição da Medida Provisória nº 1.976-22/2001, que alterou o texto da Lei nº 9.656/98, passou-se a utilizar a expressão “planos de saúde” para designar a generalidade desses contratos.

50. GREGORI, M. S. Planos de Saúde: a ótica da proteção do consumidor. São Paulo: Revista dos Tri-bunais, 2007, p. 145 e ss.

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É certamente no campo da saúde suplementar que se encontram as maiores controvérsias, destacando-se o papel do Estado no cumprimento dos deveres de proteção decorrentes das normas constitucionais, tanto de um dever genérico de tutela pessoa e da sociedade, quanto na concreção de imperativos de tutela específicos, como a proteção do consumidor (art. 5º, XXXII, CF) e a proteção da saúde (art. 196, CF). Na saúde suplementar, o usuário do plano de saúde é também considerado consumidor de bens e serviços51, atraindo a relevante proteção52 decorrente da intervenção direta do Estado no mercado da assistência à saúde (no sentido de um dirigismo contratual53), à vista da natureza indisponível do bem que constitui o objeto do contrato privado de plano de saúde54, que busca assegurar todo o tratamento possível, com vistas à manutenção ou recuperação da saúde do indivíduo, que aciona o plano de saúde na ocorrência do evento55. Ainda sobre tal tópico, salienta a doutrina especializada, que a álea desses contratos está na necessidade da prestação (se será necessária ou não), e não na forma como se dá o cumprimento

51. Como bem lembra Cláudia Lima Marques, a Lei nº 8.078/90 considera consumidor o destinatário final dos serviços ou produtos, o que estende a proteção para as pessoas alcançadas pela cobertura do plano de saúde, ainda que não sejam necessariamente os próprios contratantes. Cf. SCHMITT, C. H.; MARQUES, C. L. “Visões sobre os planos de saúde privada e o Código de Defesa do Consumidor. In: MARQUES, C. L. [et al.], 2008, op. cit., p. 131.

52. Cf. GREGORI, M. S., op. cit., p. 99 e ss. Outrossim, como refere Cláudia Lima Marques, os artigos 3º e 35, § 2º (antiga redação) da Lei nº 9.656/98 determinam a aplicação conjunta do CDC para a disciplina jurídica dos “novos” contratos. Quanto aos contratos “antigos”, isto é, firmados antes da Lei nº 9.656/98, a jurisprudência é uníssona em reiterar que somente é apli-cável o CDC, sustentando a nobre jurista, contudo, que essa aplicação deva dar-se a partir de uma interpretação teleológica e renovada, em que os princípios protetivos da Lei nº 9.656/98 iluminem a interpretação dos princípios gerais de proteção estabelecidos pela Lei nº 8.078/90, num verdadeiro “diálogo das fontes” (expressão de Erik Jayme). Cf. MARQUES, C. L. “Conflito de Leis no Tempo e Direito Adquirido dos Consumidores de Planos e Seguros de Saúde”. In: MARQUES, C. L. [et. al.](orgs.) Saúde e Responsabilidade: seguros e planos de assistência privada à saúde. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, op. cit., p. 117-119.

53. A expressão é corrente em doutrina, citando-se, por todos, PASQUALOTO, A. “A Regulamentação dos Planos e Seguros de Assistência à Saúde: uma interpretação construtiva”. In: MARQUES, C. L., 1999, op. cit., p. 46 e ss.

54. Nesse sentido, cf. LAZZARINI, A.; LEFÈVRE, F. “Análise sobre a Possibilidade de Alterações Uni-laterais do Contrato e Descredenciamento de Instituições e Profissionais da Rede Conveniada”. In: MARQUES, C. L. [et. al.], 1999, op. cit., p. 105. Em sentido semelhante, Rodolfo Arango afirma que “o contrato de saúde não é um simples contrato privado, no qual a autonomia da vontade privada seja o fator determinante, senão que tem além um caráter público devido a seu objeto, razão pela qual o Estado se vê chamado a intervir na liberdade de um âmbito tradicionalmente privado. [...] A saúde [...] é um direito constitucional e um objetivo público que transcende os limites do contrato privado entre beneficiário e entidade asseguradora”. ARANGO, R., 2008, p. 736 e 753.

55. Adalberto Pasqualoto resume a questão: “[o] fornecedor deve assegurar a efetividade da assistência, independentemente do êxito do tratamento. Para o segurado, o crédito deve ser certo, desde que ocorra o fato aleatório.” PASQUALOTO, A., op. cit., p. 48.

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da obrigação de assistência assumida (qualidade, segurança e adequação do tratamento). Não se trata, assim, de obrigação de meio, mas de obrigação de resultado: fornecer assistência adequada à proteção e/ou recuperação da saúde do usuário do plano de saúde56.

A interpretação das cláusulas contratuais segue, em termos gerais, as normas da legislação consumeirista, sendo de frisar que a vulnerabilidade do usuário, princípio estruturante do CDC e, portanto, de todo o regime protetivo outorgado, envolve pelo menos dois aspectos: a) a situação pessoal e individual do beneficiário, já que a saúde constitui condição para o exercício pleno da autonomia individual e para a fruição dos demais direitos, ademais de incluir-se num padrão mínimo (mínimo existencial) a uma vida digna e com certa qualidade; b) a especial posição ocupada pelo indivíduo nos con-tratos de planos de saúde, considerados contratos cativos de longa duração, na medida em que comumente se desenrolam por um período muito longo de tempo, gerando expectativas e dependência por parte do usuário, além de não raras vezes atravessarem sucessivos regramentos legislativos, na precisa lição de Cláudia Lima Marques57. Por tais razões, importa reconhecer a incidência de um sistema de tutela reforçada do usuário-consumidor-paciente, decorrente da convergência dos específicos deveres constitucionais (e fundamentais) de proteção do consumidor (art. 5º, XXXII, CF) e de proteção da saúde (art. 196, CF). Lembre-se que os serviços de saúde, mesmo quando prestados pela iniciativa privada e ainda que por meio de contratos, não perdem a “rele-vância pública” que lhes atribuiu o constituinte (art. 197, CF), não havendo dúvida no sentido de que a interpretação das cláusulas contratuais e o exame da responsabilidade pela execução adequada da assistência sanitária, devem estar submetidos à dupla incidência das normas de proteção, do consumidor e da saúde.

Além disso, é preciso registrar que também incidem as normas que as-seguram o direito (e dever) de informação, a inversão do ônus da prova, a proteção contra cláusulas abusivas, a vigência da boa-fé objetiva como standard de conduta das partes, a proteção contra a lesão enorme e contra a alteração da base do negócio jurídico, inclusive pela aplicação da cláusula rebus sic standibus, quando necessário58. O caráter duplamente indisponível do direito em causa, do consumidor e da saúde, ainda embasa a atuação do Ministério Público, das associações de classe e de entidades da sociedade civil, na defesa

56. Nesse sentido: PASQUALOTO, A., ibidem; e MARQUES, C. L., 1999, op. cit., p. 125. 57. Cf. MARQUES, C. L., 1999, op. cit., especialmente p. 117-118. 58. Em sentido semelhante, GREGORI, M. S., op. cit., p. 97 e ss.

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de uma dimensão coletiva e difusa do direito à saúde e do próprio direito do consumidor, a partir daí configurada. Em termos jurisprudenciais, é visível a tendência de mitigação da autonomia contratual em favor da tutela do usuário-consumidor, impondo-se às operadoras de planos de saúde uma série de deveres destinados à plena assistência à saúde dos segurados, como bem demonstram as decisões relacionadas à extensão da cobertura dos contratos, aos períodos de carência, à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro (especialmente quanto ao reajuste das mensalidades), entre outros, resultando até mesmo na anulação judicial de cláusulas contratuais abusivas (art. 51, da Lei nº 8.078/90)59.

À vista do quadro esboçado, cabe fazer referência a algumas das princi-pais controvérsias sobre a matéria. O problema inicial, cuja solução permite definir o regime jurídico aplicável ao setor da saúde suplementar, refere-se à interpretação do artigo 35-G da Lei nº 9.656/98 (redação da MP nº 2.177-44/2001), que objetiva estabelecer uma precedência da lei em relação ao CDC, que incidiria então apenas subsidiariamente. Como acentua Cláudia Lima Marques, o argumento estaria nos critérios da temporalidade e espe-cialidade, sustentando a jurista, porém, aplicarem-se “cumulativamente e complementarmente o CDC e a Lei 9.656/98”, já que a hierarquia superior do CDC arrima-se na Constituição (art. 5º, XXXII; e art. 170, caput e V, CF)60. Aprofundando a discussão, pode-se defender que o CDC é norma de caráter geral (art. 24, V e § 1º, CF), cuja restrição por lei destinada à regulação específica dos planos de saúde parece duvidosa, mormente por imputar tratamento discriminatório em prejuízo dos direitos assegurados, em lei geral e com caráter universal, a todos os consumidores. Como lei geral de proteção dos consumidores, o CDC também é geral quanto ao seu objeto, incidindo de modo vinculante sobre todas as relações jurídicas que sejam passíveis de enquadramento no suporte fático descrito por seu artigo 2º, cuidando-se – convém enfatizar – de lei geral em sentido formal e material. Por consequência, a Lei nº 9.656/98, conquanto mais nova, não

59. Além da mencionada Súmula nº 302 do STJ, confiram-se, exemplificativamente, os seguintes precedentes: REsp 469.911/SP (abusividade da cláusula que limitava tempo de internação em UTI); AgRgAg 973.265/SP (ilicitude da restrição da cobertura à doença preexistente, face à boa-fé da consumidora e à não exigência, por parte de seguradora, de realização de exame prévio); AgRgAg 704.614 (julgada abusiva cláusula contratual que excluía da cobertura a realização de transplante para consumidor que declarou previamente sofrer de enfisema pulmonar); REsp 993.876/DF (é causa de indenização por danos morais a recusa indevida à cobertura médica, “já que agrava a situação de aflição psicológica e de angústia” do segurado); REsp 466.667/SP (considerada abusiva a aplicação de cláusula de carência diante de situação de urgência, pela a ocorrência de doença surpreendente e grave).

60. SCHMITT, C. H.; MARQUES, C. L., 2009, op. cit., p. 110 e ss.

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prevalece sobre o CDC, seja porque lei especial não revoga lei geral, segundo conhecido cânone hermenêutico; seja porque, em termos materiais, a Lei nº 9.656/98 não tem por objeto a disciplina dos direitos dos consumidores de planos de saúde, mas, sim, a regulação do setor da saúde suplementar como um todo – tanto é que, dentre outros aspectos, prevê quem pode atuar no setor, os requisitos para requerer autorização de funcionamento, as normas para operação e dissolução dessas empresas, etc.

Com base nisso, pode-se indagar a respeito da constitucionalidade e mesmo da legalidade formal e material das disposições da Lei nº 9.656/98, que, ao disciplinarem direitos dos consumidores, estabelecem níveis de pro-teção insuficientes, ou pelo menos mais fracos do que os já consagrados pela lei geral, qual seja, o CDC, como ocorre com a pretendida aplicação subsidiária de que trata o artigo 35-G da Lei nº 9.656/98. A afronta ao sis-tema dos direitos fundamentais (e especialmente ao dever constitucional de proteção do consumidor) não está na superveniência, em si, de lei especial que disponha sobre certas relações de consumo, mas reside na circunstância de que a nova legislação representa um retrocesso em relação aos níveis de proteção anteriormente alcançados61. Tal medida desatende ao princípio da proporcionalidade em sua dupla função: a) como proibição de excesso, portanto, na sua condição de limite à restrição dos direitos fundamentais; b) como vedação de proteção deficiente ou insuficiente, mormente em face da existência de deveres específicos de proteção do consumidor e da saúde, que exigem a realização de níveis de proteção minimamente eficientes62.

Além disso, é preciso considerar que o dever constitucional de proteção dos consumidores-pacientes convive com deveres fundamentais conexos, tais como a proteção da criança e do adolescente (art. 227, CF, e Lei nº 8.069/90), a proteção ao idoso (art. 230, CF, e Lei nº 10.741/2003) e a proteção dos trabalhadores (art. 7º, CF, além de toda a legislação infraconstitucional es-pecial). No plano internacional, o Estado brasileiro assentiu com o dever de realização progressiva dos direitos elencados no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), também concretizado por medidas

61. “Inegável, porém, que a lei nova, ao expressamente autorizar algumas cláusulas, às quais a juris-prudência brasileira, ao aplicar, ao interpretar e ao concretizar as normas do CDC, considerava como abusivas, com base na cláusula geral do art. 51, IV, do CDC, acaba ameaçando o nível anterior de proteção do consumidor”, adverte Cláudia Lima Marques. Cf. SCHMITT, C. H.; MARQUES, C. L., 2008, op. cit., p. 126.

62. Sobre ao tópico, SARLET, I. W., 2009, op. cit., p. 395 e ss.

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de cunho legislativo (prestações em sentido amplo)63. Finalmente, lembre-se que a ordem econômica, ademais da proteção do consumidor, “tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (art. 170, caput, CF), estando assim vinculada, pelo menos, aos princípios da dignidade humana e da solidariedade.

Em face de tal arcabouço normativo, é questionável a constitucionalidade do mencionado artigo 35-G da Lei nº 9.656/98, porquanto a pretendida aplicação subsidiária do CDC redunda em proteção deficitária e tratamen-to discriminatório de uma classe específica de pessoas, designadamente, os consumidores de planos de saúde. O CDC regula os contratos de planos de saúde na condição de lei geral das relações de consumo, sendo excepcionado apenas por legislação especial superveniente e efetivamente mais benéfica ao consumidor, que reforce os níveis de proteção já alcançados. Eventual in-terpretação que excepcione ou relegue a uma função subsidiária a aplicação do CDC não se mostra consentânea com o sistema de proteção dos direitos fundamentais, implicando insuficiência de proteção em relação à conferida pela Lei nº 8.078/90 e, em certas hipóteses, tratamento discriminatório e injustificável retrocessão.

Nesse contexto, cabe argumentar em favor da proteção dos consumidores no âmbito dos assim chamados planos de saúde “antigos”, por meio da apli-cação das normas mais favoráveis previstas pela legislação superveniente, em especial o contido no artigo 10, § 2º (expressão “e atuais”) e no artigo 35-E da Lei nº 9.656/98 (redação da MP nº 2.177-44/2001), sendo até mesmo possível cogitar de novo debate a respeito da legitimidade constitucional dos dispositivos cautelarmente suspensos por decisão tomada na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.931/DF. Pondere-se que a supressão de tais nor-mas do ordenamento jurídico acarreta, na prática, a imposição de tratamento discriminatório e prejudicial no âmbito de uma mesma classe de pessoas (os consumidores de planos de saúde) e no âmbito de relações jurídicas de trato sucessivo, continuadas e perenes (contratos cativos de longa duração). Caso mantido o entendimento liminarmente adotado, a esse grupo de indivíduos, cuja participação permitiu o crescimento e a consolidação do setor da saúde suplementar no país, não será assegurada a aplicação das normas de proteção específicas, supervenientes e mais favoráveis – como é o caso da exigência

63. PIDESC, artigo 2º, item 1: “Cada um dos Estados Partes no presente Pacto compromete-se a agir, quer com o seu próprio esforço, quer com a assistência e cooperação internacionais, especialmente nos planos econômico e técnico, no máximo dos seus recursos disponíveis, de modo a assegurar progressivamente o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto por todos os meios apro-priados, incluindo em particular por meio de medidas legislativas” (grifou-se).

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de oferta mínima do plano-referência, a necessidade de autorização da ANS para os reajustes de contratos sempre que o consumidor possuir mais de 60 (sessenta) anos, a vedação da suspensão ou rescisão unilateral dos contratos, bem como a limitação da internação hospitalar (matéria da Súmula nº 302 do Superior Tribunal de Justiça, conforme referido). A vedação de tratamen-to discriminatório64, além de fundada no princípio da igualdade (art. 5º, caput, CF), constitui desdobramento da noção de igual dignidade de todos os seres humanos. Em nível internacional, a proibição de discriminações no campo do direito à saúde (art. 2º, 2, PIDESC65) foi reforçada pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, mediante a edição do Comentário Geral nº 14, quando se reiterou o alcance da tutela protetiva às relações entre particulares, notadamente aos prestadores privados. “Obrigações de proteger incluem, inter alia, os deveres dos Estados de adotar legislação ou tomar outras medidas assegurando igual acesso aos cuidados de saúde e serviços relacionados à saúde providos por terceiros”, assim como “assegurar que a privatização do setor da saúde não constitua uma ameaça a disponibili-dade, acessibilidade, aceitação e qualidade de instalações, produtos e serviços de saúde”66. O “diálogo das fontes”, de que trata Cláudia Lima Marques67, respalda o entendimento pela vigência e aplicação conjunta de todo um complexo de normas jurídicas, constitucionais e ordinárias, voltadas à den-sificação de deveres de proteção decorrentes de vários direitos fundamentais, justificando a releitura dos dispositivos da Lei nº 9.656/98, que se encontram ora suspensos, em favor de uma interpretação pro homine68 e conformada ao

64. O artigo 14 da Lei nº 9.656/98 veda a discriminação dos consumidores na contratação, assentando que “ninguém pode ser impedido de participar de planos privados de assistência à saúde”, em con-sonância, aliás, com a norma do CDC que estipula a vinculação do fornecedor à oferta (art. 30).

65. PIDESC, artigo 2º, item 2: “Os Estados Partes no presente Pacto comprometem-se a garantir que os direitos nele enunciados serão exercidos sem discriminação alguma baseada em motivos de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou qualquer outra opinião, origem nacional ou social, fortuna, nascimento, qualquer outra situação.”

66. Tradução livre do original em inglês: “Obligations to protect include, inter alia, the duties of States to adopt legislation or to take other measures ensuring equal access to health care and health-related services provided by third parties; to ensure that privatization of the health sector does not constitute a threat to the availability, accessibility, acceptability and quality of health facilities, goods and services; […]”. United Nations. Committee on Economic, Social, and Cultural Rights.General Comment nº 14 (2000). The Right to Highest Attainable Standard of Health (Article 12 of the International Covenant on Economic, Social, and Cultural Rights. UN doc. E/C 12/2000/4, 4 July 2000. In: GRUSKIN, Sofia [et al.] (edit.) Perspectives on Health and Human Rights.New York-London: Routledge, 2005, p. 483.

67. SCHMITT, C. H.; MARQUES, C. L., 2008, op. cit., p. 140.68. Em sentido semelhante, sustentando a aplicação do princípio da prevalência da norma mais fa-

vorável, comum às relações de direito social e trabalhista, assim como a interpretação pro homine, ABRAMOVICH, V.; COURTIS, C. Los derechos sociales como derechos exigibles. Madrid: Editorial Trotta, 2002, p. 112 e ss.

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dever de aplicabilidade direta e máxima eficácia e efetividade das normas de direitos fundamentais (art. 5º, § 1º, CF), com escopo de assegurar a regulação proporcional e razoável dos contratos de planos de saúde. Tem-se aqui uma “eficácia negativa das normas constitucionais”, isto é, a eficácia dos direitos fundamentais (individuais e sociais) como proibições de eliminação de de-terminadas posições jurídicas (ou como proibição de intervenção e afetação de certos bens jurídicos fundamentais)69, tenham tais posições sido, ou não, estabelecidas pelas normas gerais de proteção do consumidor ou pelos dis-positivos atualmente suspensos da Lei nº 9.656/98.

3.4. A relevância pública dos serviços e ações de saúde.À semelhança de outras normas, a relevância pública das ações e

serviços de saúde integrou a pauta de reivindicações do Movimento de Reforma Sanitária, e sua explicitação constitucional denota o caráter in-disponível do direito à saúde e dos valores que visa a proteger (vida, dignidade, integridade física e psíquica, adequadas condições de vida e de desenvolvimento da pessoa, meio ambiente saudável e equilibrado). Com base nisso, reconhece a jurisprudência a legitimidade ativa ad causam do Ministério Público para a defesa do direito à saúde, individual e coletiva-mente, perante o Poder Público ou os atores privados, alicerçada, ademais, nos mencionados direitos fundamentais conexos. Outrossim, a norma constitucional atua como parâmetro de modelação e (re)adequação das relações privadas, quer daquelas concernentes à exploração de recursos naturais e à produção de bens, quer das atividades exercidas propriamente no setor da saúde, especialmente a saúde suplementar70. Pela relevância pública de que se revestem, as ações e os serviços de saúde, públicos e privados, restam jungidos à incidência de dife-rentes deveres constitucionais de proteção – o que, de seu turno, responde ao problema da solução de continuidade dos serviços de saúde, pois, conquanto eventualmente prestada por particulares, a assistência à saúde não perde a relevância e o caráter público que lhe são inerentes, justificando a imposição de obrigações típicas do regime de direito público.

69. Nesse sentido, cf. SARLET, I. W. “Posibilidades y desafíos de un derecho constitucional común lati-noamericano. Un planteamiento a la luz del ejemplo de la llamada prohibición de retroceso social”. In: http://www.ugr.es/~redce/REDCE11/articulos/04IngoWolfgangSarlet.htm, acesso em 27-05-2010; e Eficácia dos Direitos Fundamentais..., 2009, p. 433 e ss.

70. Como lembra Roberto Augusto Pfeiffer, a assistência prestada pelas operadoras de planos e seguros de saúde não perde o caráter de “serviço de relevância pública”, determinado pelo artigo 197 da CF – PFEIFFER, R. A. C. “Cláusulas Relativas à Cobertura de Doenças, Tratamentos de Urgência e Emergência e Carências”. In: MARQUES, C. L. [et al.], 1999, op. cit., p. 73.

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O artigo 197 da CF ainda atribui ao Estado os deveres de regulamentação, fiscalização e controle das ações e dos serviços de saúde, públicos e privados. Tais competências traduzem deveres de prestação lato sensu do direito à saúde, notada-mente deveres de proteção e de organização de instituições e procedimentos, embora sem neles se esgotar. Porque já anteriormente assinalado, cabe apenas recordar que exercem tais competências, entre outros, os seguintes órgãos: Conselhos e Conferências de Saúde, Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (INPI) e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA). O cumprimento desses deveres constitucionais, impostos ao Estado na condição de imperativos de tutela, encontra--se também sujeito ao controle, inclusive judicial, em termos de proporcionalidade (proibição de excesso e vedação de insuficiência) e eficiência (art. 37, caput, CF), de modo a assegurar sustentabilidade e eqüidade ao sistema de saúde.

4. O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE COMO DIREITO ExI-GívEL: POSSIBILIDADES E DESAFIOS

A efetivação dos direitos fundamentais sociais é tema de permanente debate, destacando-se a problemática da exigibilidade administrativa e judicial do direito à saúde71, ou seja, da condição do direito à saúde como direito subjetivo72, oponível, individual e coletivamente, ao Estado e aos particulares. Várias circunstâncias concorrem para isso. Em termos formais, os artigos 6º e 196 da CF são normas dotadas de certa abertura e indeterminação, que permitem a constante atualização do conteúdo da proteção constitucional, mas, por isso mesmo, não eliminam os conflitos inerentes a esse processo de integração prática e tópica dos comandos constitucionais. De sua vez, o reconhecimento da dimensão economicamente relevante dos direitos fun-damentais, que se revela ainda mais evidente no caso dos direitos sociais na condição de direitos a prestações materiais, atrai a polêmica sobre os critérios de alocação dos recursos públicos (e sanitários, no caso da saúde)73,

71. SARLET, I. W.; FIGUEIREDO, M. F., op. cit.; e FIGUEIREDO, M. F., op. cit., em que analisados alguns dos parâmetros mínimos de garantia do direito à saúde em oposição às objeções passíveis de incidência sobre a exigibilidade judicial desse direito.

72. Sustentando a insuficiência do modelo jurídico do direito subjetivo como instrumento para a tutela do direito à saúde, LIMA, R. S. de F. “Direito à saúde e critérios de aplicação”. In: SARLET, I. W.; TIMM, L. B. (org.), op. cit., p. 11-53 (especialmente p. 42-49).

73. Observe-se que mesmo depois de aprovada com o nítido objetivo de resolver o problema geral do financiamento das políticas públicas de saúde, a Emenda Constitucional nº 29/2000 ainda pende de regulamentação definitiva por lei complementar, que estabeleça os critérios de rateio dos recursos entre as esferas federativas (“objetivando a progressiva redução das disparidades regionais”, saliente-se) e “as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde” – o que só corrobora a complexidade das decisões alocativas nesse campo. Conferir SARLET, I. W., 2009, op. cit., p. 299 e ss; e especificamente sobre o direito à saúde, FIGUEIREDO, M. F., op. cit., p. 87 e ss.

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seara na qual se incluem a discussão acerca do cumprimento dos deveres de informação e transparência, bem como da garantia fundamental de proteção do mínimo existencial.

Longe de se manter alheio a tudo isso e sendo-lhe vedado responder com o non liquet, o Poder Judiciário brasileiro adotou uma postura crescente-mente interventiva, em especial no que diz com as medidas de concretização material do direito à saúde, de modo a provocar a crítica de uma hipertrofia jurisdicional nesta seara. Passados mais de 20 anos da promulgação do texto constitucional e da conformação legal do SUS pelas Leis de nº 8.080 e 8.142, ambas de 1990, bem como firmados dois leading cases pelo Supremo Tribunal Federal sobre a matéria (RE-AgR 271.286/RS e STA 175/CE), é possível hoje verificar uma tendência pela busca de critérios objetivos para a aferição dessas pretensões, num claro resgate da noção de jurisprudência, permeada ainda pelo diálogo interdisciplinar e interinstitucional, o que se pretende ilustrar a partir da identificação e breve exame de alguns dos aspectos mais relevantes e polêmicos vinculados ao problema da exigibilidade do direito à saúde.

4.1. A efetivação do direito fundamental à saúde em face da assim chamada “reserva do possível”

O direito à (proteção e promoção da) saúde engloba uma gama de posi-ções jurídico-subjetivas de natureza diversa (defesa, proteção, organização e procedimento, prestações materiais), de caráter originário e derivado74, cujas peculiaridades repercutem sobre a eficácia prática da proteção constitucional. De modo geral, admite-se sem maiores problemas a efetividade do direito à saúde como direito de defesa, coibindo interferências indevidas na saúde das pessoas, individual e coletivamente, o que não significa que mesmo nessa esfera não se possam enfrentar problemas, pois também como direito de defesa o direito à saúde não é direito absoluto, no sentido de imune a restrições. No que diz com a sua dimensão protetiva, o direito à saúde implica um dever geral de respeito à saúde pessoal e pública, como pauta de conduta (standard) a ser observada pelo Estado e pelos particulares, mas também um dever de alocação minimamente razoável de recursos financeiros e sua conseqüente execução orçamentária, para assegurar a efetiva fruição do direito pelos cidadãos, em sintonia com o que prescreve a Constituição. Como direito a prestações em

74. Importa retomar a distinção, centrada na exigibilidade direta ou indireta do objeto resguardado pela norma jusfundamental, entre direitos originários, depreendidos imediatamente da norma constitucional; e direitos derivados, cujo reconhecimento é mediado pela legislação ordinária e/ou por um sistema de políticas públicas já implementado, como direito de (igual) acesso às prestações assim estipuladas.

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sentido amplo, ou seja, no que diz com a garantia da organização de institui-ções e procedimentos, o direito à saúde parece dependente de atos normativos conformadores, efetivando-se primordialmente de modo derivado, o que, por sua vez, remete à discussão dos instrumentos de controle das omissões inconstitucionais, em termos de uma inexistência ou manifesta insuficiência das medidas de concretização do direito à saúde, relevando o papel exerci-do pelo Supremo Tribunal Federal nesta seara pelas vias da ação direta de inconstitucionalidade por omissão e do mandado de injunção. Dificilmente se cogita de típicos direitos subjetivos originários a prestações normativas, à exceção, talvez, apenas dos deveres de organização e procedimento necessários à operacionalização do próprio SUS, que se impõem por força dos deveres de proteção e promoção deduzidos da CF, ainda mais quando esta criou o SUS como sistema destinado à realização do direito à saúde.

As maiores controvérsias, todavia, prendem-se aos limites e possibilidades do direito à saúde como direito a prestações materiais (fáticas) oponível ao Poder Público pelo cidadão, especialmente quando se trata de, mediante recurso à via judicial, definir o objeto das prestações, à revelia do legislador ou dos órgãos administrativos competentes para a gestão do sistema de saú-de. As decisões judiciais, embora o aplauso de muitos, não ficam a salvo de fortes críticas, mormente nos casos-limite, além de aportarem um elemento agravante no que diz com a discussão sobre a equidade no sistema de saúde, porquanto parcela significativa da população, segundo alegado, não teria efetivo acesso aos bens e serviços assegurados pela via judicial, por conta da satisfação dos interesses e necessidades de alguns75, fato que, ademais, aponta para a relevância da dimensão organizatória e procedimental dos direitos fundamentais, merecedora de maior investimento76. Nesse contexto, há quem sustente a prevalência da tutela coletiva77 em detrimento das ações judiciais

75. Ressaltando o caráter não-igualitário das decisões judiciais que concedem direitos sociais, cf. LOPES, J. R. de L. Em torno da “reserva do possível”. In: SARLET, I. W.; TIMM. L. B., op. cit., p. 186 e ss.Ainda na mesma obra coletiva: LUPION, R. “O direito fundamental à saúde e o princípio da impessoalidade”, p. 352-353; e BARCELLOS, A. P. de. “Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático”, p. 111-147. Consultar também SARLET, I. W., 2009, op. cit., p. 323 e ss.

76. Sobre o assunto, FIGUEIREDO, M. F., op. cit., p. 91.77. A título ilustrativo, confiram-se alguns dos ensaios publicados em SARLET, I. W.; TIMM. L. B.,

op. cit., sobremodo: TIMM, L. B. “Qual a maneira mais eficiente de prover direitos fundamen-tais: uma perspectiva de direito e economia?”, p. 55-68; SCAFF, F. F. “Sentenças aditivas, direitos sociais e reserva do possível”, p. 149-172 (o autor contrapõe a efetivação individual do direito à saúde às políticas públicas); LOPES, J. R. de L., op. cit., p. 173-193; LIMA, R. S. de F., op. cit., p. 265-283. Em sentido semelhante: BARROSO, L. R., op. cit., p. 31-61; SOUZA NETO, C. P. de., op. cit., p. 515-551; SARMENTO, D., p. 553-586; BARCELLOS, A. P. de., op. cit., p. 803-826; HENRIQUES, F. V. op. cit., p. 827-858; SILVA, V. A.; TERRAZAS, F. V. “Claiming

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individuais, argumentando que estas não seriam instrumento adequado, por inviabilizarem decisões de “macro-justiça” no âmbito das prestações materiais em saúde. Reiterando a posição anteriormente firmada, o direito à saúde é, antes de tudo, um direito de cada pessoa, porque estreitamente vinculado à proteção da vida, da integridade física e corporal e da dignidade inerente a cada ser humano como tal. Por via de conseqüência (e a despeito da sua dimensão coletiva ou difusa), o direito à saúde jamais prescindirá da tutela individual, ainda que no âmbito da execução individual nos processos cole-tivos. A prevalecer entendimento diverso, estar-se-ia desconsiderando que o acesso à jurisdição também constitui direito-garantia fundamental (art. 5º, XXXV, CF)78.

A defesa da exigibilidade judicial (individual ou coletiva) do direito à saúde não negligencia, de outra parte, a problemática da limitação dos recursos públicos (e privados) para garantia de efetiva fruição do direito, aspecto que costuma ser reportado à assim chamada “reserva do possível”79 e ao debate acerca das decisões que implicam alocação de recursos num ambiente de escassez. Importante destacar que o argumento da reserva do possível desdobra-se em pelo menos um aspecto de contornos eminentemente fáticos, e, outro, de cunho jurídico. No concernente ao aspecto fático, assu-mem destaque a dimensão econômica e a real disponibilidade dos recursos (inclusive bens e serviços) que, em princípio, compõem o objeto das presta-ções. Além das constrições orçamentárias, que, no limite, corresponderiam à efetiva ausência de reservas financeiras, questiona-se a limitação dos recursos sanitários, também restritos em sua existência e disponibilidade80. O aspecto jurídico da reserva do possível refere-se ao poder ou capacidade de disposição sobre tais recursos, envolvendo as normas constitucionais de repartição de competências, bem como a ponderação entre princípios constitucionais de igual hierarquia. Confrontam-se os argumentos da inviabilidade do controle judicial das políticas públicas, especialmente quanto à alocação dos recursos públicos, e o princípio da separação dos poderes (art. 2º, CF), com a garan-

the Right to Health in Brazilian Courts: the exclusion of the already excluded”, disponível em http://ssrn.com/abstract=1133620, consulta em 19-06-2008.

78. Enfocando a problemática do direito subjetivo, MELLO, C. A. “Os direitos fundamentais sociais e o conceito de direito subjetivo”. In: MELLO, C. A. (coord.) Os Desafios dos Direitos Sociais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 105-138. Na mesma obra coletiva: BARZOTTO, L. F. “Os direitos humanos como direitos subjetivos: da dogmática jurídica à ética”, p. 47-88, embora apresentando proposta mais restritiva e avessa, em termos gerais, à titularidade individual.

79. Sobre a reserva do possível e o direito à saúde, SARLET, I. W.; FIGUEIREDO, M. F., op. cit., p. 11-53; e FIGUEIREDO, M. F., op. cit., p. 131-177.

80. Salientando o problema da escassez dos recursos de saúde, cf. AMARAL. G; MELO, D. “Há direitos acima dos orçamentos?” In: SARLET, I. W.; TIMM, L. B., op. cit., p. 98.

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tia fundamental de inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, CF), que impede o non liquet e, ao menos acerca da garantia do mínimo existencial, respalda decisões judiciais tutelando originariamente o direito à saúde. No que respeita ao princípio federativo (arts. 1º e 18, CF), a reserva do possível relaciona-se à descentralização da assistência à saúde (art. 198, CF), no âmbito da distribuição constitucional de competências legislativas e executivas (arts. 21 a 30, CF). Além disso, o marco jurídico-constitucional respalda uma prefe-rência por soluções afinadas com os princípios da subsidiariedade, eficiência e proporcionalidade, visando a reconhecer responsabilidade ao ente (público ou privado) que detenha condições de melhor efetivar o direito à saúde81. Resta em aberto, todavia, uma análise mais profunda e produtiva sobre a estrutu-ração e conformidade dessas competências, no sentido vertical e horizontal, com os princípios da solidariedade, subsidiariedade e sustentabilidade, tanto para uma definição mais precisa e transparente da responsabilidade de cada ente federativo na assistência à saúde, quanto no que concerne ao delicado equilíbrio de incumbências entre Poder Público e iniciativa privada na con-cretização do direito à saúde. Enquanto isso não ocorre na esfera legislativa, o Supremo Tribunal Federal (e o Poder Judiciário de um modo geral) tem afirmado a solidariedade entre os diversos entes da Federação, de modo a inviabilizar alguma lacuna em termos de responsabilização do poder público.

Quanto ao objeto do direito à saúde como direito subjetivo, nota-se uma forte tendência à afirmação de posições subjetivas originárias a prestações materiais (portanto, a condenação do Poder Público ao fornecimento de prestações com base na aplicação direta da CF, ou seja, impostas ao poder público mesmo sem previsão legal ou regulamentar específica) especialmente nos casos de iminente risco à vida humana (como, aliás, amplamente reco-nhecido no direito estrangeiro82) e/ou quando em causa o assim chamado mínimo existencial. Com efeito, a partir do significativo precedente firmado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE-AgR 271.286/RS, e res-salvadas anteriores decisões isoladas, a jurisprudência dos Tribunais Superiores e das instâncias ordinárias vem admitindo posições subjetivas originárias a diversas prestações materiais em saúde. No julgamento da ADPF-MC 45/DF, e apesar da extinção da ação por superveniente perda de objeto, asseverou

81. Cf. SARLET, I. W., 2009, op. cit., p. 323 e ss.82. Consultar, ilustrativamente: ARANGO, R.; LAMAÎTRE, J. (dir.). Jurisprudencia constitucional sobre

el mínimo vital. Caracas: Ediciones Uniandes, 2002(Colômbia); ABRAMOVICH, V.; COURTIS, C., op. cit. (Argentina); MATHIEU, B. “La protection du droit à la santé par le juge constitutionnel. A propos et à partir de la décision de la Cour constitutionnelle italienne nº 185 du 20 mai 1998”. In: Cahiers du Conseil Constitutionnel, n. 6, 1998. Disponível em http://www.conseil-constitu-tionnel.fr/cahiers/ccc6/mathieu.htm, consulta em 18-04-2005 (França); CANOTILHO, J. J. G. 2003, op. cit., e NOVAIS, J. R., op. cit., (Portugal).

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o Pretório Excelso que a efetivação do direito à saúde atrela-se à garantia de proteção ao mínimo existencial, devendo-se interpretar “com reservas” a alegação estatal de violação à reserva do possível. Mais recentemente, destaca-se o acórdão exarado no julgamento da STA-AgRg 175/CE, relator Ministro Gilmar Mendes, em que o Pleno do Supremo Tribunal Federal, buscando estabelecer alguns parâmetros à efetividade administrativa e judicial do direito à saúde, asseverou: a) a competência do Judiciário para o controle das políticas públicas, notadamente porque o problema muitas vezes está no descumprimento de diretrizes legislativas já existentes; b) a existência de direito subjetivo sempre que haja omissão estatal no cumprimento de política pública de saúde antes estabelecida; c) o caráter simultaneamente coletivo e individual do direito à saúde; d) a solidariedade dos entes federativos na consecução da assistência à saúde, conforme as competências constitucionais comuns e o princípio da lealdade à Federação, primando-se pela construção de um modelo cooperativo na definição das responsabilidades internas de cada ente, notadamente quanto ao financiamento83; e) a presunção em favor dos tratamentos oferecidos pelo SUS, porque respaldados na Medicina Base-ada em Evidências (Evidence Based Medicine), embora possível a impugnação judicial diante da ineficácia ou impropriedade da política pública existente ou de omissão administrativa na inclusão de novos tratamentos, assegurada, em qualquer caso, ampla produção probatória; f ) a necessidade de análise in-dividualizada do caso, que pode justificar a intervenção do Judiciário ou da Administração, para assegurar o fornecimento de tratamento diferente daquele usualmente custeado pelo SUS, pois ineficaz frente às condições pessoais do indivíduo; g) a impossibilidade de condenação do Estado ao fornecimento de tratamentos experimentais; h) a relevância do registro dos medicamentos pleiteados junto à ANVISA, cuja ausência, porém, não constitui circunstância intransponível; i) a natureza programática inerente ao direito à saúde, cuja efetivação permanece aberta à evolução da medicina.

O Supremo Tribunal Federal ainda admitiu a existência de repercussão geral, no âmbito do direito à saúde, quanto aos seguintes aspectos: RE 566.471/RN, “obrigatoriedade de o Poder Público fornecer medicamento de alto custo”; RE 578.801/RS (atualmente substituído pelo ARE 652.492 e pelo ARE 649.845), “aplicação retroativa de leis sobre planos de saúde aos contratos firmados antes da sua vigência”; RE 605.533/MG, “legitimidade

83. O acórdão não “fechou” completamente a questão, seja pelos limites próprios ao juízo de contra-cautela das suspensões de segurança, seja porque a matéria ainda pende de julgamento no âmbito do RE-RG nº 566.471/RN.

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do Ministério Público para ajuizar ação civil pública com objetivo de com-pelir entes federados a entregar medicamentos a pessoas necessitadas”; RE 607.582/RS, “possibilidade de bloqueio de verbas públicas para garantia” do fornecimento de medicamentos; RE 597.064/RJ, “ressarcimento ao Sistema Único de Saúde SUS das despesas com atendimento de pacientes beneficiários de planos privados de saúde”; RE 630.852/RS, “aumento da contribuição [ao plano de saúde] em razão de ingresso em faixa etária diferenciada; aplicação da Lei 10.741 (Estatuto do Idoso) a contrato firmado antes da sua vigência”.

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, que concentra o maior número de demandas, registra-se farta jurisprudência estabelecida em favor da efetividade do direito à saúde, merecendo destaque os recursos especiais representativos da controvérsia (art. 543-C, CPC), no âmbito dos quais se busca definir as seguintes questões para efeitos de um tratamento uniforme: REsp 1.069.810/RS, “fornecimento de medicamento necessário ao tratamento de saúde, sob pena de bloqueio ou sequestro de verbas do Estado, a serem depositadas em conta-corrente”; REsp 1.102.457/RJ, “obrigatoriedade de fornecimento, pelo Estado, de medicamentos não contemplados na Por-taria nº 2.577/2006 do Ministério da Saúde (Programa de Medicamentos Excepcionais)”; REsp 1.110.552/CE, “legitimidade ad causam do Ministério Público para pleitear medicamento necessário ao tratamento de paciente, bem como acerca da admissão da União Federal como litisconsorte passiva necessária, nesta modalidade de demanda”; REsp nº 1.101.725/RS, “pos-sibilidade de aplicação da multa prevista no art. 461 do CPC nos casos de descumprimento da obrigação de fornecer medicamentos imposta ao ente estatal”; REsp nº 1.144.382/AL, “controvérsia relativa à solidariedade passiva de União, Estados e Municípios, para figurar no polo passivo de demanda concernente ao fornecimento de medicamentos”.

4.2. Igualdade, universalidade e integralidade: desafios à efetividade do direito à fundamental à saúde.

A garantia de “acesso universal e igualitário” às ações e aos serviços de saúde (art. 196, CF) coaduna-se, mormente em países com marcada desigual-dade social como o Brasil, com a exigência de cotejo entre a necessidade da prestação postulada e as reais possibilidades do interessado (em acedê-la) e da sociedade (em oferecê-la), justificando o questionamento da equiparação

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entre universalidade e gratuidade de assistência84. Em termos de direitos so-ciais (existenciais) básicos, a efetiva necessidade deverá constituir parâmetro importante na ponderação entre a gratuidade do SUS e os princípios da solidariedade, subsidiariedade, sustentabilidade e proporcionalidade. Parece razoável, portanto, que o acesso universal e igualitário aos cuidados de saú-de seja conectado à perspectiva substancial do princípio da isonomia (que determina o tratamento desigual entre os desiguais e não significa direito a idênticas prestações para todas as pessoas irrestritamente85), assimilado à no-ção de equidade86 (no acesso e na distribuição dos recursos de saúde), assim como ao princípio da proporcionalidade (permitindo a ponderação concreta dos bens jurídicos em causa).

Tais circunstâncias indicam que a gratuidade em termos de acesso e as-sistência à saúde – que não é necessariamente a regra no direito comparado – deve ser melhor investigada e avaliada, discutindo-se uma distribuição mais equitativa das responsabilidades e encargos, seja pela maximização do acesso em termos do número de pessoas atendidas pelo sistema público de saúde, seja pela melhor distribuição dos recursos sanitários, com o incremento na qualidade da assistência prestada. Diversamente do que defende parcela sig-nificativa da doutrina87, o princípio da universalidade não acarreta, como co-rolário inexorável, a gratuidade irrestrita das prestações materiais, assim como a integralidade da cobertura não significa a satisfação de toda pretensão em termos ideais. A concepção de uma igualdade substancial (incluindo o respeito às diferenças), se assegurado acesso universal a serviços de qualidade, poderia levar à restrição da gratuidade (ainda que compreendida como “tendencial gratuidade”, consoante dispõe a Constituição Portuguesa, revisada quanto a

84. Nesse sentido, SARLET, I. W., 2009, op. cit., p. 323 e ss; FIGUEIREDO, M. F., op. cit., p. 170 e ss.; e, ainda, SARLET, I. W.; FIGUEIREDO, M. F., op. cit., p. 44-45.

85. Cf. NOVAIS, J. R., op. cit., p. 109.86. No âmbito do direito sanitário, o princípio da igualdade é normalmente compreendido no sentido

de isonomia formal, deixando-se para o princípio da equidade aquilo que, em Teoria do Direito, corresponderia à noção de igualdade em sentido material ou substancial. Nesse sentido, e.g.: BRA-SIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Economia da Saúde. Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde – SIOPS. “A Alocação Eqüitativa Inter-regional de Recursos Públicos Federais do SUS: A Receita Própria do Município como Variável Moderadora”. Relatório de Consultoria – Projeto 1.04.21. Brasília, 2004. In http://siops.datasus.gov.br/Documentacao/Aloc_Equitativa_SIOPS.pdf, acesso em 24-05-2008, p. 09.

87. Com fundamentação aprofundada, WEICHERT, M. A. Saúde e Federação na Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, especialmente p. 158-162 e p. 169-171.

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esse aspecto88) do acesso e das prestações oferecidas pelo SUS, como ocorre em algumas políticas públicas89 e reconhece parte da literatura especializada90.

Nessa seara, e sem prejuízo de outros casos relevantes, duas controvérsias merecem especial atenção. A primeira situação envolve a pretensão à internação com “diferença de classe”, ou seja, mediante pagamento de uma remuneração complementar, pelo indivíduo que acessa gratuitamente os serviços de saúde, com a finalidade de receber tratamento diferenciado (quarto privativo, por exemplo). Inicialmente admitida pelo Supremo Tribunal Federal em ações individuais91, a pretensão problematiza os limites da gratuidade da assistência à saúde, especialmente frente aos princípios da universalidade, igualdade e integralidade. Todavia, se os pacientes, nessas ações, possuíam indicação clínica de necessária internação em quarto privativo por suas circunstâncias pessoais, a solução talvez estivesse na garantia de efetiva integralidade ao atendimento, como tratamento adequado e digno, com a oferta de quarto privativo pelo próprio SUS. Por outro lado, em sentido diverso, é possível argumentar que o pagamento complementar e o tratamento diferenciado seriam admissíveis somente quando oferecido e organizado em procedimento isonômico (a todas as pessoas) e transparente (sujeito ao controle sobre o ingresso e a destinação

88. O artigo 64º do texto constitucional português, que inicialmente previa o acesso universal, iguali-tário e gratuito aos serviços de saúde, passou a dispor: “O direito à protecção da saúde é realizado: a) Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições eco-nómicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito. [...]”. Essa alteração já fora antecipada pelo Tribunal Constitucional lusitano, que, no Acórdão nº 330/89 – antes, portanto, da alteração formal da Constituição – admitira a fixação de “taxas moderadoras” para o acesso aos cuidados públicos de saúde.

89. A Lei nº 9.908/93 do Rio Grande do Sul exige a prévia comprovação da carência de recursos econômicos pelo cidadão-requerente, como pressuposto à prestação estatal de medicamentos ex-cepcionais. No âmbito nacional, o artigo 43 da Lei nº 8.080/90 assegura gratuidade apenas aos serviços públicos de saúde já contratados. Recentemente, a Lei Complementar nº 141/2012, ao estabelecer os parâmetros para a definição das despesas com ações e serviços públicos de saúde, fixou, entre outros critérios, que se trate dos recursos destinados “às ações e serviços públicos de saúde de acesso universal, igualitário e gratuito”. Já o artigo 4º da lei, ao dispor sobre os gastos que não serão considerados como despesas com ações e serviços públicos de saúde, para fins de aplicação dos recursos mínimos em saúde, estipula apenas a universalidade, e não a gratuidade, como critério de distinção, como consta do inciso III: “assistência à saúde que não atenda ao princípio de acesso universal”. Embora tal ponto não possa ser aqui aprofundado, tais circunstâncias são suficientes para corroborar a necessidade de investigação e maior debate das questões envolvendo a gratuidade no SUS.

90. Cf., entre outros, SARLET, I. W., 2009, op. cit., p. 323 e ss.; AZEM, G. B. N. “Direito à Saúde e Comprovação da Hipossuficiência”. In: ASSIS, A. de. (coord.). Aspectos Polêmicos e Atuais dos Limites da Jurisdição e do Direito à Saúde, p. 13-25; e FIGUEIREDO, M. F., op. cit, p. 170 e ss.

91. O primeiro precedente sobre o tema parece ter sido estabelecido pelo então Min. Ilmar Galvão, no julgamento do RE 226.835/RS (DJ 10-03-2000). Desde então outras ações individuais foram julgadas e, recentemente, a matéria está sendo apreciada em ações civis públicas, ajuizadas contra alguns Municípios e pleiteando a extensão da diferença de classe para toda a população. Confira-se, exemplificativamente, o RE 603.855/RS, relatora Min. Cármen Lúcia, pendente de recurso.

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dos recursos), e, ainda assim, se aprovado depois de ampla discussão nas instâncias política e social. O que é de se evitar, em qualquer caso, é que com isso se estimule a oferta de níveis diferenciados de qualidade dentro do mesmo sistema público, assegurando melhores cuidados a quem dispõe de melhores condições financeiras e, não raro, possui também plano de saúde privado, em detrimento da camada menos favorecida e mais numerosa da população, com provável comprometimento dos objetivos traçados pelo artigo 3º da Constituição. A decisão final sobre essa matéria, contudo, pressupõe uma nova leitura (devidamente contextualizada) dos princípios e diretrizes do SUS, além de intenso debate e reflexão crítica – o que, entretanto, escapa aos limites deste texto.

O segundo caso refere-se ao ressarcimento ao SUS, pelas operadoras de saúde, dos serviços prestados pelo sistema público às pessoas que também contem com a cobertura do plano de saúde (art. 32, da Lei nº 9.656/98). Além do questionável argumento de que estaria a ocorrer enriquecimento ilícito por parte das operadoras, a norma não soluciona a hipótese de im-possibilidade de identificação do paciente como titular ou dependente de plano de saúde, situação comum nos planos mais antigos, quando inexistente obrigação das operadoras em fornecerem tais dados aos órgãos estatais de fiscalização – atualmente, à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Para além de tais questões, que, de todo modo, aqui foram apresentadas em caráter ilustrativo e com o intuito de provocar a reflexão, não se pode olvidar que ainda remanescem limites de ordem técnica e científica que im-pactam a efetividade do direito à saúde, limites esses calcados em critérios de segurança e eficiência dos tratamentos pretendidos, que se contrapõem à idéia de irrestrita integralidade e privilegiam princípios como precaução, prevenção, sustentabilidade e economicidade92. Quanto a tais aspectos, nada obstante a legislação conformadora (arts. 19-M a 19-U da Lei nº 8.080/90, na redação dada pela Lei nº 12.401/2011), algumas diretrizes podem ser sugeridas: a) pelo caráter eminentemente técnico e público que apresentam, admite-se uma presunção em favor da adequação dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) do SUS e das listas oficiais de medicamen-tos, o que não exclui, outrossim, um dever de permanente atualização desses instrumentos normativos; b) pela incidência conjunta dos princípios da pre-caução, prevenção e eficiência, aliados ao princípio da dignidade da pessoa humana, inclusive como proteção do indivíduo contra si mesmo, sustenta-se uma presunção de vedação aos tratamentos e medicamentos experimentais

92. Cf. HENRIQUES, F. V., op. cit., p. 834 e ss.

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(abrangendo, em princípio, as hipóteses de inexistência de registro junto à ANVISA, assim como de uso off-label dos medicamentos93), o que também não impede o questionamento das orientações do SUS, especialmente diante de prova robusta da eficácia e segurança do tratamento pleiteado, nem tam-pouco obsta que os indivíduos participem em pesquisas, segundo as normas éticas, sob o controle dos órgãos competentes e mediante responsabilidade das entidades interessadas nos resultados a serem obtidos94; c) o estabelecimento de uma preferência pelo uso da Denominação Comum Brasileira (DCB) ou, quando não seja possível, pela Denominação Comum Internacional (DCI)95, além da evidente prevalência de uso dos “medicamentos genéricos”, idênticos em termos de bioequivalência e biodisponibilidade, nas condenações impostas ao SUS. Nos planos de saúde, além de uma tendente conformação à Evidence Based Medicine, a Lei nº 9.656/98 autoriza restrições à cobertura oferecida (art. 10), como os tratamentos experimentais ou meramente estéticos96, o fornecimento de medicamentos importados ainda não nacionalizados e me-dicamentos para tratamento domiciliar – hipótese problemática, sobretudo no caso de neoplásicos que não demandam internação hospitalar, cuja análise, porém, foge aos limites deste ensaio. Em suma, o que se busca sublinhar é que não se pode ampliar de modo desproporcional os riscos impostos ao Estado e à sociedade, mormente em homenagem aos princípios da prevenção e da precaução e aos imperativos de tutela decorrentes da proteção à saúde, individual e coletivamente.

5. CONSIDERAÇõES FINAIS

Um ponto ainda nevrálgico para a garantia de efetiva proteção e promoção do direito fundamental à saúde diz com o financiamento e, de modo espe-

93. Trazendo diversos dados sobre o processo de pesquisa e registro de medicamentos junto à Food and Drug Administration (FDA), com uma abordagem crítica a respeito de diferentes estratégias de pesquisa e marketing utilizadas pelos laboratórios farmacêuticos, conferir ANGELL, M. A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos. Tradução de Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Record, 2007.

94. No direito colombiano, a Corte Constitucional convalidou a negativa de fornecimento de trata-mento cuja eficiência não estava comprovada pelas instâncias administrativas competentes (T-076, de 1999), como refere ARANGO, R., op. cit., p. 734. No direito argentino, a Corte Superior de Justicia de la Nación, em decisão de 1987, já entendia que “es razonable afirmar que es condición inexcusable del ejercicio legítimo de ese derecho [o direito à saúde], que el tratamiento reclamado tenga eficiencia para el fin que lo motiva”, vedando a submissão do filho da autora da ação a uma experiência farmacológica; conferir CAYUSO, S. G., op. cit., p. 43.

95. Conforme o artigo 3º da Lei nº 6.360/75, na redação da Lei nº 9.787/99. 96. O novo art. 10-A da Lei nº 9.656/98 (redação da Lei nº 10.233/2011) determina a realização de

cirurgia plástica reconstrutiva de mama para tratamento de mutilações decorrentes do tratamento contra o câncer.

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cial, com a implantação de instrumentos que assegurem um contínuo fluxo de caixa entre os entes federativos. As contradições entre uma realidade de centralização de recursos e um ideal de federalismo cooperativo abrem todo um novo capítulo à discussão (inviável, todavia, nos limites deste trabalho), assim como, pelo menos, a garantia de aplicação dos percentuais mínimos estabelecidos pela Constituição para as ações e os serviços de saúde. As di-ficuldades de efetiva aplicação da Emenda Constitucional nº 29/2000 (cuja regulamentação sobreveio apenas recentemente, com a Lei Complementar nº 141/2012, e ainda assim com vários vetos), somadas à problemática da Desvinculação das Receitas da União (DRU)97, rondam as políticas públicas de saúde como verdadeiras ameaças, impondo um fundado receio a respeito do sucesso dos programas de saúde. A carência de infra-estrutura nos dife-rentes níveis de complexidade do sistema, por sua vez, embora atenuada pelas diversas ações estatais que vêm sendo implementadas, ainda é uma realidade enfrentada por muitos brasileiros, e, pior, pelos mais carentes, que não têm a opção pelos serviços privados dos planos de saúde, menos ainda o acesso a consultórios e clínicas particulares.

No Judiciário, a criação de Varas Especializadas nas questões de saúde e o aperfeiçoamento dos magistrados em nível técnico-formativo específico merecem ser cogitados, como caminho a uma compreensão integrada do “problema sanitário” e ao melhor aparelhamento, incentivando-se um papel mais ativo por parte do juiz da causa. Iniciativas do Conselho Nacional de Justiça, como a inclusão do “direito à saúde” no conteúdo mínimo dos concursos públicos para ingresso na magistratura e a divulgação de orien-tações que auxiliem o processamento e a decisão das ações judiciais sobre medicamentos, conforme dispõe a Recomendação nº 31/201098, trilham essa mesma direção, embora não se afaste o risco de uma interferência indevida na autonomia e independência decisória dos juízes, aqui refutada de modo veemente. De outra parte, a necessidade de profissionais especializados e que não apresentem conflito de interesses com a matéria discutida na demanda

97. Sobre o tema, v., por todos: PINTO, E. G. Financiamento de Direitos Fundamentais. Políticas Públicas Vinculadas, Estabilização Monetária e Conflito Distributivo no Orçamento da União do Pós-Plano Real. Belo Horizonte: Editora O Lutador, 2010; bem como MENDONÇA, E. B. F. de. A Constitucionalização das Finanças Públicas no Brasil. Devido Processo Orçamentário e Democracia. Rio de Janeiro: Renovar, 2010.

98. O inteiro teor do documento está disponível no site do Conselho Nacional de Justiça: http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=10547:recomendacao-no-31-de-30-de-marco-de-2010&catid=60:recomendas-do-conselho&Itemid=515. A respeito, conferir TESSLER, M. I. B. “As recomendações do Conselho Nacional de Justiça em face das demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde”. In: Revista do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a. 22, n. 79, 2011, p. 46 e ss.

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em juízo abre espaço não somente para a formação de novos experts, quanto para a colaboração das entidades de classe, especialmente dos profissionais da saúde, relevando, também aqui, outra faceta dos princípios constitucionais da subsidiariedade, da eficiência e da solidariedade, pela procura por infor-mações de quem as possa dispor e prestar com maior propriedade e isenção.

Por outro lado, a discussão dos critérios de alocação dos recursos públicos, financeiros e sanitários, em programas de saúde e outras políticas públicas, atrai a indagação dos limites e possibilidades do controle judicial nesta seara. A solução certamente não se encontra nem no ativismo judicial exacerbado, nem tampouco na omissão judicial a respeito, mas requer um esforço dos operadores do Direito no sentido de criar mecanismos e foros adequados para a discussão, revigorando o sentido do princípio da separação dos Poderes como harmonização e mútua colaboração, especialmente diante dos objetivos maiores fixados pelo artigo 3º da Constituição. A tendência de elaboração de pautas objetivas (standards) que possam auxiliar o magistrado na decisão do caso concreto merece todo o aplauso e reconhecimento, indicando uma diretriz mais segura a ser perseguida, tanto nas ações individuais, quanto na tutela coletiva da saúde, desde que – e este ponto há de ser destacado! – não resultem em desconsideração da individualidade dos casos, nem acarretem a funcionalização do direito fundamental e da dignidade de cada pessoa em prol de um absoluto interesse coletivo. Cabe enfatizar a discussão proposta por diversos doutrinadores acerca das ações coletivas sobre o direito à saúde, especialmente se a elas se puderem aportar novos instrumentos, como é o caso da intervenção do amicus curiae, agregando elementos fáticos importantes à compreensão da matéria e, pois, ao deslinde da causa, assim como o incentivo a novas formas de acordos extrajudiciais, ou, quando isso não for possível, ao desenvolvimento de competências normativas semelhantes àquelas já vigentes no (também social) direito do trabalho.

No campo das relações entre particulares, o registro, pela Agência Nacio-nal de Saúde Suplementar (ANS), da existência, em 2011, de 46,6 milhões de vínculos de beneficiários de planos de saúde de assistência médica, com ou sem odontologia, correspondendo a 24,4% da população brasileira, sendo que 35,7 milhões desses vínculos se referiam a planos coletivos99, demonstra a absoluta relevância do tema, bem como da necessidade de se investigarem e se aperfeiçoarem as relações entre o setor público e o setor privado na efetivação do direito à saúde. Nesse sentido, a pendência de julgamento da

99. Dados colhidos junto ao site da Agência Nacional de Saúde: http://www.ans.gov.br/index.php/materiais-para-pesquisas/perfil-do-setor/dados-gerais, acesso em 22-11-2011.

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ADI nº 1.931/DF permite trazer à discussão a efetividade do direito à saúde em interconexão com outros direitos fundamentais, notadamente voltados à proteção de grupos especiais de pessoas, indicando, também aqui, a exigência de uma reflexão mais comprometida com os objetivos elencados no artigo 3º da Constituição.

Ao fim e ao cabo, as perplexidades e contradições que enfrentamos devem-se às próprias carências do sistema de proteção dos direitos sociais como um todo, agravadas pelas dificuldades de um país marcado por ta-manhas desigualdades sociais e regionais como o Brasil. Se o caminho do desenvolvimento humano passa pela construção de instrumentos de tutela e de implementação de todos os direitos fundamentais, com especial ênfase para os direitos sociais, o igual respeito à dignidade de todo o brasileiro e a certeza de que terá condições adequadas de se desenvolver como pessoa e cidadão pressupõem essa reflexão, no âmbito do direito fundamental à saúde e, mais amplamente, dos demais direitos sociais. Assim, espera-se que, com o presente texto, a despeito da sua incompletude, tenha sido possível pelo menos contribuir para um balanço da evolução da proteção e promoção da saúde no marco jurídico-constitucional brasileiro.

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