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O discurso do "combate às drogas" e suas ideologias The discourse of the "fight against drugs" and its ideologies Richard Bucher*, Sandra R.M. Oliveira** BUCHER, R. & OLIVEIRA, S.R.M. O discurso do "combate às drogas''e suas ideologias. Rev. Saúde Pública, 28: 137-45, 1994. À luz de considerações científicas sobre o abuso de drogas, discute-se a ideologia dos textos sobre drogas que seguem uma orientação moralista e repressora, a despeito das condições sócio-históricas do consumo. Colocam-se em foco os sentidos não-literais para situar tais discursos no contexto da sua produção e para detectar neles formas de manutenção de poder presentes nas relações sociais. Utiliza-se a teoria da análise do discurso como a metodologia apropriada para se desvendar os indicadores da ideologia que impõe aos textos sobre drogas uma determinada modalidade. Os resultados revelam um discurso com propósitos claramente persuasivos, direcionando e manipulando modos de ser e de ver na sociedade, deixando-se interpretar como parte interessada em um pesado sistema de conformismo social. Conclui-se que a questão das drogas não é tratada em si, mas enquanto mito construído, usado para combater série de desvios da ordem social vigente. Descritores: Abuso de substâncias, prevenção. Linguagem. Autoritarismo. Considerações sobre o discurso do "combate às drogas" Entre as diversas abordagens da "questão das drogas", nas sociedades modernas, destaca- se aquela que enfatiza o "combate às drogas", apresentando-o como a única maneira capaz de enfrentar e erradicar o "grave flagelo". De ex- pressão rigorosamente condenatória, caracteri- za-se pela veemência de uma argumentação mais emotiva e alarmista do que serena e obje- tiva, mais sensacionalista do que científica, mais moralista do que isenta de juízos valorativos. Desta forma, incita a uma "cruzada anti-drogas", cuja beligerância encobre série de fatores que, de certo, contribuem decisivamente para a ex- pansão do fenômeno. Portanto, ao invés de analisar o consumo de drogas em seus múltiplos determinantes para chegar a propostas preventivas pertinentes e prometedoras de eficácia, tal abordagem limita- se a preconizar uma repressão implacável, res- tringindo-se, desta forma, às drogas ilícitas. Ora, * Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília - Brasília, DF - Brasil ** Bolsista junto ao Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília - Brasília, DF - Brasil Separata/Reprints: R. Bucher - PCL-UnB - 70910-900 - Brasília, DF - Brasil em muitos países, entre os quais o Brasil, são precisamente as substâncias lícitas as mais con- sumidas e as mais fortes geradoras de abusos e dependências. Trata-se aí de um fato epidemio- lógico inconteste, a ser levado a sério diante da distorção do fenômeno introduzida pela prega- ção tantas vezes piegas do "combate às drogas". Opor-se a esta visão reducionista não signi- fica, no entanto, entregar-se à apologia do con- sumo de substâncias psicoativas, mas tão so- mente defender uma análise objetiva e contex- tualizada da situação das drogas em uma deter- minada sociedade. Não se trata, pois, da defesa de uma posição extremista de "liberação de todas as drogas" para um consumo indiscrimina- do, mas do respeito por uma experiência huma- na milenar, a ser examinada numa linha históri- co-antropológica para que se torne possível apreender suas significações modernas. Constata-se, de fato, que a cegueira da po- sição repressiva radical traz mais estragos do que benefícios, por fazer prevalecer uma visão unidimensional, inapropriada para o trato do fenômeno em toda sua complexidade. As nume- rosas implicações ideológicas daquela visão não encontram o necessário contra-peso através de análises sociais profundas, pertinentes e abran- gentes (Carlini - Cotrim & Pinski 3 , 1989). Abordar a "questão das drogas" no enfoque combativo citado significa, ainda, não tratá-la

O discurso do combate às drogas e suas ideologias

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O discurso do "combate às drogas" e suas ideologias

The discourse of the "fight against drugs" and its ideologies

Richard Bucher*, Sandra R.M. Oliveira**

BUCHER, R. & OLIVEIRA, S.R.M. O discurso do "combate às drogas '' e suas ideologias. Rev. SaúdePública, 28: 137-45, 1994. À luz de considerações científicas sobre o abuso de drogas, discute-sea ideologia dos textos sobre drogas que seguem uma orientação moralista e repressora, a despeitodas condições sócio-históricas do consumo. Colocam-se em foco os sentidos não-literais para situartais discursos no contexto da sua produção e para detectar neles formas de manutenção de poderpresentes nas relações sociais. Utiliza-se a teoria da análise do discurso como a metodologiaapropriada para se desvendar os indicadores da ideologia que impõe aos textos sobre drogas umadeterminada modalidade. Os resultados revelam um discurso com propósitos claramentepersuasivos, direcionando e manipulando modos de ser e de ver na sociedade, deixando-seinterpretar como parte interessada em um pesado sistema de conformismo social. Conclui-se quea questão das drogas não é tratada em si, mas enquanto mito construído, usado para combatersérie de desvios da ordem social vigente.

Descritores: Abuso de substâncias, prevenção. Linguagem. Autoritarismo.

Considerações sobre o discurso do"combate às drogas"

Entre as diversas abordagens da "questãodas drogas", nas sociedades modernas, destaca-se aquela que enfatiza o "combate às drogas",apresentando-o como a única maneira capaz deenfrentar e erradicar o "grave flagelo". De ex-pressão rigorosamente condenatória, caracteri-za-se pela veemência de uma argumentaçãomais emotiva e alarmista do que serena e obje-tiva, mais sensacionalista do que científica, maismoralista do que isenta de juízos valorativos.Desta forma, incita a uma "cruzada anti-drogas",cuja beligerância encobre série de fatores que,de certo, contribuem decisivamente para a ex-pansão do fenômeno.

Portanto, ao invés de analisar o consumo dedrogas em seus múltiplos determinantes parachegar a propostas preventivas pertinentes eprometedoras de eficácia, tal abordagem limita-se a preconizar uma repressão implacável, res-tringindo-se, desta forma, às drogas ilícitas. Ora,

* Departamento de Psicologia Clínica da Universidadede Brasília - Brasília, DF - Brasil

** Bolsista junto ao Departamento de Psicologia Clínicada Universidade de Brasília - Brasília, DF - Brasil

Separata/Reprints: R. Bucher - PCL-UnB - 70910-900 - Brasília,DF - Brasil

em muitos países, entre os quais o Brasil, sãoprecisamente as substâncias lícitas as mais con-sumidas e as mais fortes geradoras de abusos edependências. Trata-se aí de um fato epidemio-lógico inconteste, a ser levado a sério diante dadistorção do fenômeno introduzida pela prega-ção tantas vezes piegas do "combate às drogas".

Opor-se a esta visão reducionista não signi-fica, no entanto, entregar-se à apologia do con-sumo de substâncias psicoativas, mas tão so-mente defender uma análise objetiva e contex-tualizada da situação das drogas em uma deter-minada sociedade. Não se trata, pois, da defesade uma posição extremista de "liberação detodas as drogas" para um consumo indiscrimina-do, mas do respeito por uma experiência huma-na milenar, a ser examinada numa linha históri-co-antropológica para que se torne possívelapreender suas significações modernas.

Constata-se, de fato, que a cegueira da po-sição repressiva radical traz mais estragos doque benefícios, por fazer prevalecer uma visãounidimensional, inapropriada para o trato dofenômeno em toda sua complexidade. As nume-rosas implicações ideológicas daquela visão nãoencontram o necessário contra-peso através deanálises sociais profundas, pertinentes e abran-gentes (Carlini - Cotrim & Pinski3, 1989).

Abordar a "questão das drogas" no enfoquecombativo citado significa, ainda, não tratá-la

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como realidade a ser investigada, mas sim, trans-formá-la em mito fabricado para cumprir deter-minadas funções sociais. Espalhada no bojo da"cruzada anti-drogas", lhe é imputada nitida-mente a função de "bode expiatório", fazendo-aaparecer como responsável por grande partedos revezes sociais; produz-se então uma misti-ficação, erigindo-se uma cortina de fumaça aoredor do pretendido "flagelo", o que impede seudimensionamento correto e averigüável, im-prescindível para se ultrapassar o nível de pre-conceitos, prejulgamentos e visões preconcebi-das, ou ainda, aquele de interpretações unidire-cionais ou tendenciosas (Bucher2 , 1992).

Qualquer discurso que enfoca questões so-ciais pode, conforme os seus efeitos de sentido,transformar ou manipular as representações co-letivas com a finalidade de manter certas estru-turas de poder; da mesma forma, pode modifi-cá-las, visando à superação dessas mesmas es-truturas. Assim, adquirem identidade particu-lar, aparecendo como formações que se defi-nem pelos sentidos ideológicos que reiteram eque vão direcionar a sua função enunciativa.Desencadeadas a partir da interação de opiniõesdiferentes sobre questões de interesse comum,tais formações apresentam regularidades emseu funcionamento que permitem interpretá-lascomo parte de uma matriz ideológica específi-ca, constituindo o que se denomina, em Análisedo Discurso, de formação discursiva.

Aplicando esta concepção à discussão so-bre drogas, pode-se formular a hipótese segun-do a qual determinados textos, ainda que pro-duzidos em setores diferentes, constituem umamesma formação discursiva, promovendo a cir-culação de uma série de sentidos específicos.Estes, no seu conjunto, incorporam toda umaideologia anti-drogas, plataforma para se divul-garem e implantarem medidas de controle da-queles fenômenos de consumo considerados,no referido prisma ideológico, como socialmen-te indesejáveis e portanto, exigindo repressão(Oliveira10 , 1992).

A partir dessas considerações, propõe-seum recorte no extenso campo de produçãosobre drogas, submetendo à análise a forma-ção discursiva do "combate", buscando com-preender os seus processos de significação ea forma como influem na construção do sensocomum do brasileiro a respeito da temática

em pauta, incluindo aí as repercussões no cam-po da saúde pública.

A aproximação dá-se através do conceitode ideologia, enfatizada enquanto categoria ex-plicativa do funcionamento dos discursos so-ciais. Em face deste termo controverso e plurí-voco, lançou-se mão do discernimento de pola-ridades positiva e negativa para incluir seusinúmeros significados em dois registros: o des-critivo e o crítico. O primeiro enfoque refere-sea sistemas de pensamentos, crenças, valores ou"cosmovisão"; por sua vez, o sentido críticoaponta as idéias e atitudes postas ao serviço dasustentação das relações assimétricas de poder,da injustiça social e da distribuição desigual dedireitos e rendas.

Exploram-se, assim, as relações entre ideo-logia e linguagem, ultrapassando a noção delinguagem como sistema de comunicação paracorrelacioná-la com os fenômenos conflitantesda estruturação social da qual ela própria fazparte. Dessa maneira concebida, a linguagempassa a ser definida como discurso, ou seja,como ato social ou ação que visa a produzirefeitos (Fiorin5, 1990).

Se e verdade que nenhum discurso escapado envolvimento com a dimensão ideológica,discernir os dois enfoques citados propicia umaavaliação contingente dos efeitos de sentidodominantes, permitindo compreender o alcan-ce de determinado fenômeno social, no caso, oconsumo de drogas. Assim, uma contextualiza-ção desse consumo como fenômeno históricoe antropologicamente situado permite apreen-der descritivamente seus sistemas de valores,crenças e representações populares, enquantoque uma análise crítica das produções sobredrogas, proferidas por certas instâncias de po-der ou de autoridade, permite detectar tendên-cias, esforços e manipulações para protegerdeterminadas relações econômicas e políticasvigentes.

É com este intuito de avaliação crítica quetextos representativos do discurso repressivosobre drogas foram analisados no presente tra-balho. Ao visar as coerções institucionais quemarcam tal produção discursiva, levantaram-sequestões vinculadas ao poder institucional, àspráticas repressivas, punitivas e assistenciaisem saúde mental, aos jogos de interesses políti-cos e econômicos no comércio de drogas lícitas

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(além das ilícitas), ao papel do profissional nasáreas de saúde, educação, ação social, justiça epesquisa científica.

Dentre as numerosas contradições possí-veis de se apontar na formação discursiva da"cruzada anti-droga" destacaram-se certospressupostos inerentes à sua vinculação comas estruturas sociais e de poder que as engen-dram e que asseguram sua divulgação - pres-supostos esses detentoras de configuraçõesideológicas, cujos contornos mais precisostentou-se apreender.

Método: Ideologia e análise do discurso

Na investigação proposta, optou-se pelaAnálise do Discurso como instrumento adequa-do para examinar a ligação entre a linguagemapresentada e a ideologia subjacente. Sua meto-dologia permite explicitar os processos comu-nicativos construídos nos textos sobre drogas edetectar intenções secretas ou interesses escu-sos em veicular idéias condenatórias radicais,por razões que ultrapassam os efeitos nefastosdo consumo de drogas em si.

A Teoria do Discurso apóia-se no conceitode linguagem como sendo a materialidadeapropriada à ideologia. Sistematizada inicial-mente por Pecheux12 , (1969), a Análise doDiscurso, somada à contribuição de autorescomo Bakhtin1 (1970), Foucault7,8

(1969,1971), Ducrot4, (1972) e Fairclough6,(1989), vem sendo amplamente utilizada paratrabalhar os sentidos não literais dos enuncia-dos, com base no reconhecimento da dimen-são sócio-histórica da linguagem.

Na sua origem, a Teoria da Análise doDiscurso, tal como idealizada por Pecheux12,aparece ligada à dimensão político-ideológica:suas premissas básicas apoiam-se na concep-ção da linguagem ter um modo de constitui-ção profundamente histórico, não sendo pos-sível dissociá-lo do conjunto das práticas hu-manas. Por esta razão, saber quem fala, paraquem fala, em que situação, de que lugar dasociedade, com que intento, são elementos desuma importância no processo comunicativo.

Na constituição dos significados manifes-tam-se as coerções ideológicas que incidem so-bre a linguagem. Nas chamadas ordens do dis-

curso (Foucault8 , 1971) expressam-se determi-nadas condições sócio-históricas que impreg-nam as formações discursivas, enquanto con-junto de regras limitadas no tempo e no espaçoe que definem as condições de exercício dafunção enunciativa. Os discursos que reiteramprocessos socialmente cristalizados podem serapreendidos como partes de uma mesma ma-triz, determinando regularidades definidas pelarelação que mantém com a ideologia.

Tais idéias chaves servem para a compreen-são da ideologia e das injunções de poder nodiscurso repressivo sobre drogas. Repertorian-do esse discurso no espaço específico onde searticulam linguagem e ideologia, é possível res-saltar os processos de significação que regem oimaginário social sobre drogas no Brasil. Paratanto, série de características lingüísticas relati-vas ao vocabulário e à gramática são considera-das marcas para o entendimento analítico detais processos. O presente trabalho, no entanto,não se limita à análise da superfície lingüística,mas examina também as propriedades discursi-vas que se situam além das marcas formais.

Examinando-se a relação do texto com odiscurso e com o contexto, atingem-se três ní-veis de análise, conforme três níveis de organi-zação: a situação social do momento imediato,a instituição social enquanto matriz do discur-so, o nível mais amplo da sociedade como umtodo e das suas ideologias. O procedimentocompleto da análise passa pelas etapas da des-crição, interpretação e explicação (segundoFairclough6), abrangendo vocabulário, gramáti-ca e estrutura textual, visando a revelar tanto osesquemas classificatórios quanto as combina-ções das formas lingüísticas.

Na análise contextual do discurso repressi-vo sobre drogas aparece como particularmenterelevante para a apreensão dos sentidos implíci-tos o exame dos pressupostos e dos subentendi-dos. Estes se deixam considerar como estraté-gias lingüísticas e retóricas para neutralizar pos-síveis conseqüências de uma compreensão lite-ral dos atos da fala. Assim, querendo dizer maisdo que se diz ou apagando sentidos pelo silen-ciamento de aspectos cruciais do consumo dedrogas, é possível produzir representações con-venientes a uma determinada formação social. Onão-dito, por exemplo, sob a vertente do implí-cito (diz "x" querendo dizer "y") e aquela do

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anti-implícito (diz "x" querendo silenciar "y"),pode determinar certas significações ocultadasno discurso "oficial" (Orlandi4, 1990).

A fim de clarear a trama discursiva quesustenta a idéia do "combate às drogas" e apon-tar os elementos usados para dirigir a opiniãopública rumo ao entendimento "certo" da ques-tão, são colocadas na base da investigação per-guntas como: que elementos são articuladospara se chegar a uma representação ideologica-mente orientada da droga? que dados são silen-ciados, quais outros superdimensionados? querelações de poder estão em jogo...?

Material: Os textos analisados

Foi desenvolvida uma análise prévia de umconjunto de textos sobre drogas, lançando-semão de uma leitura assistemática que acaboudeterminando a composição do corpus. Os tex-tos foram selecionados pelas especificidades eregularidades discursivas correspondendo àscaracterísticas da formação impregnada peloLeitmotiv do "combate às drogas". Assim, a re-corrência de determinadas particularidades lin-guísticas, retóricas e temáticas serviu para dife-renciar e agrupar os textos como partes de ummesmo processo de divulgação ideológica.

Na presente análise destacaram-se as seguin-tes características, induzindo à escolha das unida-des de pesquisa e das categorias de referência:

1. Silenciamento acerca das questões so-ciais que concorrem para os fenômenos de uso,abuso e dependência de drogas.

2. Desconsideração da motivação do usuá-rio, da sua dimensão subjetiva.

3. Simplificação do fenômeno das drogas,apontando elementos unidimensionais na etio-logia da dependência.

4. Centralização exclusiva no produto tóxi-co (ilícito).

5. Tratamento genérico dos efeitos dadroga, pela lei do tudo ou nada, sem especifi-cação do produto, do padrão de uso, da per-sonalidade e história de vida do usuário, docontexto.

6. Associação dramática freqüente entredroga e sexo, droga e crime, droga e loucura,droga e morte.

7. Omissão do fato de que a droga pode

propiciar prazer, sensações agradáveis, facilida-des de comunicação e relaxamento.

8. Omissão ou descaso a respeito do uso eabuso de medicamentos psicotrópicos e outrasdrogas lícitas.

9. Crença na intervenção heróica e desinte-ressada que livrará a comunidade e o país, defi-nitivamente, das drogas.

10. Recomendação de atividades religiosas,morais, patrióticas e esportivas como estraté-gias de prevenção (ou mesmo como "vacinas").

De acordo com a prevalência desses temas,foram feitos cortes em três instâncias de produ-ções discursivas: textos americanos divulgadosno Brasil, documentos oficiais brasileiros e tex-tos da imprensa brasileira. Os textos seleciona-dos para a análise foram:

Documentos de produção americana:a) O Presidente Bush adverte estudantes sobre

o consumo de drogas. Brasília, EmbaixadaAmericana. Tradução do documento edita-do pelo USIS - United States InformationService, 1989;

b) Escola sem drogas. Brasília, Embaixada Ame-ricana. Tradução do documento editadopelo US Department of Education, 1989;Documentação oficial brasileira:

c) PREVIDA - Programa de Prevenção, Educa-ção e Vida: subsídios para o educador. Bra-sília, CONEN/DF, 1991;

d) MURAD, J.E.: Como manter sua escola longedas drogas. Belo Horizonte, ABRAÇO/PRE-VIDA*, 1989;Produção jornalística:

e) Império do pó. Jornal do Brasil, 26/02/92,p. 10;

f) Na carteira ao lado. VEJA, 27/03/91, p. 42-48.Com base na interpretação e explicação dos

elementos lingüísticos, da estrutura argumenta-tiva e dos implícitos desses textos, foi possívelapreender os elementos cruciais da ideologiaque formenta a sua produção e os sustenta.

Resultados da análise: O "combate àsdrogas" como construção ideológica

Os resultados demonstram que há série deregularidades discursivas comuns aos textos ana-

* ABRAÇO - Associação Comunitária de Pais e Mestrespara Prevenção ao Abuso de Drogas.PREVIDA - Programa de Prevenção, Educação e Vida.

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lisados (e a muitos outros sobre o assunto, emparticular na imprensa cotidiana) que se ligamentre si, cooperando na fixação de sentidosideologicamente comprometidos. Estes, porsua vez, propiciam práticas que atendem àsnecessidades de controle social e de manuten-ção de certos padrões da ordem vigente.

Os textos remetem-nos a uma visão precon-ceituosa, repressora e, por vezes, moralista,obtendo aceitação nos segmentos políticos epúblicos que se destacam seja pelo desconheci-mento do tema, seja pelas tendências conserva-doras ou anti-liberais. O autoritarismo e a mo-nossemia são marcas que direcionam suas ope-rações verbais, dirigidas aos leitores com obje-tivos claramente persuasivos, visando a exercerinfluência decisiva sobre as suas representações- como, de fato, qualquer discurso de propagan-da ou de publicidade. As produções funcionamentão como cúmplices nas explicações e justi-ficações dessa visão preconcebida da questãodas drogas.

Pode-se concluir que os textos analisadosfazem parte de um grande conjunto denomina-do formação discursiva anti-drogas. Enquantoentidade global, ela é abstrata e inacessível, masse deixa conhecer através dos textos particula-res dando corpo material ao seu funcionamento.

Enumeram-se, em seguida, os principaisefeitos de sentido construídos neste discurso,detectados pela análise praticada.

1. Segundo sua retórica argumentativa, des-taca-se como primeira função a meta da persua-são. Termos expressivos e combinações lin-güísticas diversas estão voltados para a constru-ção de um sentido dominante. Palavras carrega-das de conteúdos ameaçadores como sinistro,luta, guerra, espúrio, crime, morte e outros, sãousadas com freqüência, ajudando a construirenunciados de teor passional, o que dificultauma avaliação sóbria da problemática.

Outros recursos, como a reiteração e oargumento de autoridade, capazes de promo-ver o discurso como consensual, colaborampara levar o sujeito a aderir à concepção pro-posta. Por exemplo, enunciados do tipo: "OPresidente Bush deu uma lição aos estudantesnorte-americanos sobre responsabilidade ematuridade"(texto a, p.1), introduzem perso-nagens importantes como estratégia de valo-rização da mensagem. É o chamado argumen-

to de autoridade, que fortalece o efeito persua-sivo na medida do prestígio que se associar aolugar de fala do orador - no caso, o Presidentedos EUA.

Exercem também função decisiva, poiscriam um "efeito verdade", os números e osdados estatísticos freqüentemente apresenta-dos sem citar a fonte. É comum a referência anúmeros de grande porte, de forma a alarmarmais do que informar, como ilustra o seguinteexemplo: "Pesquisas mostram que o uso dedrogas entre as crianças é dez vezes maisprevalente do que os pais suspeitam" (b, p.2).

Vê-se, pois, mensagens que não têm porobjetivo informar, mas convencer, limitando apossibilidade de elaboração de uma concepçãoprópria por parte do leitor. É dessa forma quese constrói o discurso do consenso, pelo qualtransmitem-se idéias como partilhadas virtual-mente por todos, investindo-as do papel de umaxioma do qual não se pode (ou deve) duvidar.Assim sendo, os textos induzem uma verdadeirasubordinação intelectual: o leitor mergulha nomovimento de "combate às drogas" sem se darconta, uma vez que este é apresentado (se nãoapregoado) como único caminho para enfren-tar e "resolver" a questão do consumo.

2. O tom autoritário e alarmista imprimidoaos textos que materializam o discurso em pau-ta traz como resultado a idéia de um saber únicoe exclusivo. A tendência de se apresentar comodetentor da verdade está então duplamente pre-sente: pelo caráter formal da produção mastambém pela força dos argumentos veiculados.O discurso autoritário é o campo da certeza, doimperativo categórico que manifesta um sabersupremo, levando o interlocutor a aceitá-locomo verdade. Impede-se, por conseguinte, aexpansão de um pensamento mais crítico, sejaindividual, seja social ou comunitário.

Uma das maneiras pelas quais os produtoresde textos conseguem impor os seus argumentosdá-se com a utilização de verbos como tenhoencontrado, estou convencido, acredito, preci-samos, que exprimem uma atitude de convic-ção, marcando a posição autoritária do locutor.

Reforça tal análise a presença de termoscomo trincheira, combate, perigoso, danoso,insinuando guerra e sofrimento. Estas são asso-ciadas às drogas para provocar um clima derepúdio incondicional, subsidiando enuncia-

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dos do tipo: "O consumo de drogas não é um fatonovo na história da humanidade, atualmente ob-serva-se um incremento crescente do seu consu-mo, gerando grandes problemas sociais e de saú-de como a violência, a marginalidade, a prostitui-ção, a auto-destruição e morte", (c, p. 15).

O enunciado acima usa o recurso linguísti-co denominado de paralelismo, que repeteuma certa estrutura para reforçar uma idéia,acentuando o seu efeito (a violência, a margina-lidade, a prostituição, a auto-destruição e mor-te). Faz dessa forma emergir o sentido de que adroga é hoje o único fator causal de problemasque, por outras razões, sempre estiveram pre-sentes na história da humanidade.

3. Uma das técnicas fundamentais naconstrução do discurso anti-droga são os si-lenciamentos, utilizados seja para omitir deli-beradamente algo, seja para fala superficial-mente de um fato que poderia enfraquecer aargumentação. Assim, fala-se muito da drogailícita omitindo-se falar das drogas lícitas - asmais consumidas no mundo inteiro e as maisperniciosas para a saúde pública. Aplica-seindiscriminadamente o termo droga, induzin-do o leitor a incluir nesta categoria apenas osprodutos ilícitos, pela associação permanentecom palavras como tráfico, posse, busca,apreensão, aplicação da lei, notificação e ou-tras, termos que excluem qualquer possibili-dade de vínculo com a substância alcoólica ououtro produto legalmente aceito.

Assim, no enunciado: "(...) apelou paraque tomassem parte na luta contra os narcóti-cos" (a, p. 1), o termo luta, pela sua associaçãocom narcóticos, faz referência ao narcotráfi-co; somado à ausência de informações sobrecontexto, tipo e padrão de uso do produto,determina a inclusão de todas as drogas emuma mesma categoria e reduz a uma únicaforma de consumo toda a gama de possibilida-des de uso - desde o consumo ocasional ourecreativo até o dependente.

Em que pesem referências ocasionais aoconsumo de álcool, fumo, psicofármacos e sol-ventes, o efeito de sentido criado é de que só adroga ilegal "é problema". Transmitindo-se aidéia de que existem duas categorias de substân-cias, as perigosas (= ilegais) e outras benignas,beneficia-se implicitamente a indústria farma-cêutica e o comércio das substâncias lícitas.

4. Uma outra idéia chave diz respeito àapresentação do cidadão, em particular jovem,como ser indefeso, necessitando de orientaçãoe proteção: "O nosso papel é fazer prevenção etentar ajudar os alunos que caem nessa" (f, p.46).Ou ainda: "Precisamos continuar a propiciarapoio e orientação aos jovens para que façamescolhas sãs." (b, p.VI). Enfatiza-se dessa forma orelacionamento vertical (provedor/receptor) ouainda paternalista, articulado à perfeição com omodelo da sociedade disciplinar, cuja racionalida-de estimula o controle institucional, a relaçãoautoritária, o enquadramento dos indivíduos semparticipação criativa, sem responsabilidade civil esem pensamento crítico.

No parágrafo "Se as bocas funcionam nosmorros, administradas por traficantes que ater-rorizam comunidades indefesas, explorando epervertendo menores, os consumidores prolife-ram em todas as camadas sociais"(e, p. 10), vê-seda mesma forma a construção de sujeitos sociaisfrágeis, otários ou vitimados. Note-se o vocábu-lo indefesas, modificando radicalmente o termocomunidade, transmitindo a idéia de inércia,passividade, vulnerabilidade. Embora na pers-pectiva sociológica o termo comunidade carac-terize um agrupamento com forte coesão afeti-va, com capacidade de organização ativa e trans-formadora, prevalece no texto o sentido defragilidade e sujeição.

Insistindo sobre a passividade como inevi-tável - implicando em negar qualquer possibili-dade de autonomia pessoal - incentiva-se comoefeito adicional toda uma desmobilização so-cial. É como se, diante da "ameaça das drogas",o cidadão, "por sua ingenuidade e incapacidadede defesa", precisasse da intervenção regulado-ra das autoridades benevolentes e "competen-tes". Desta forma, ilustra-se (e estimula-se) alonga trajetória da submissão obediente às nor-mas disciplinares, rumo à construção de "cor-pos dóceis" (Foucault9, 1975).

5. Outra característica marcante dos textosanalisados diz respeito àquelas construções so-bre drogas que as apresentam como um mal emsi, independentemente do uso que delas se faz,das ações subjetivas e dos processos sociais.Utilizando os recursos lingüísticos de persona-lização, nominalização, metáforas, apresen-tam-se os fenômenos como desvinculados deoutros fatores que intervêm na dinâmica dos

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comportamentos de consumo.Os enunciados abaixo exemplificam a per-

sonificação, figura de linguagem pela qual osseres inanimados agem como se fossem pessoas.Aplicada à droga, empresta-lhe vida e ação, im-pedindo que fosse percebida como parte de umprocesso social: "As drogas ameaçam a vida denossos filhos, causam ruptura em nossas escolase desagregam famílias" (b, p.41). Ou: "Não existea escola onde a droga nao entra" (f, p.43).

Apaga-se assim a subordinação do consu-mo de drogas às dinâmicas social e individual,necessárias à sua configuração como "proble-ma". Eventos sociais, historicidade, motivaçõese decisões pessoais são negligenciados em be-nefício de determinadas lógicas simplistas que,"inexistentes" por não serem diretamente ex-plicitadas nos textos, não podem ser contesta-dos - tão pouco que as formas de controle socialque encetam.

Na sociedade atual, a individualidade inco-moda. Desta forma, ela é submetida a um meca-nismo disciplinar que a vilipendia como "desvioda norma", para que se possa assegurar a homo-geneização das multiplicidades humanas. Ne-cessitando de um campo social homogêneo, ospoderes hegemônicos - políticos mas sobretudoeconômicos - não conseguem conviver com asdiferenças, marcando-as enfaticamente para po-der normatizá-las. Mas eis o paradoxo: com acoerção normalizadora, a diferença se acentuae faz o sujeito aparecer como desviante (Ve-lho13, 1978).

6. Outro sentido prevalente refere-se a umavisão do mundo simplista e maniqueista. Seusautores, referenciados por ideologias represso-ras e moralistas, enveredem então com facilida-de pelo campo do dogmatismo absoluto, con-siderando a verdade como propriedade pessoal.Usam verbos na forma imperativa e termoscomo jamais, nunca, que insinuam uma posiçãode certeza, de verdade, de supremacia das afir-mações expressas:

"Ensine aos seus filhos desde criança a dizernão" ... "Mostre-lhes que o uso de drogas éperigoso"... "Jamais permitam que os filhos me-nores façam uso de bebidas alcoólicas"(d, p.8).

Tais enunciados ensinam e ordenam comtamanha convicção que não resta ao leitor se-não acatar e submeter-se à força da argumenta-ção construída no texto. Simultaneamente, são

evitados os advérbios modalizadores possivel-mente, provavelmente, ou verbos no futuro dopretérito, o que revela o postulado de uma visãotransparente da realidade.

Prevalecem então os verbos na forma pre-sente, atestando significados absolutos, verda-des incontestáveis que não necessitam de inter-pretação: "O uso ocasional de drogas é respon-sável pelas vítimas na guerra das drogas"(a,p.1); "as instituições, principalmente a família,estão sofrendo uma de suas piores crises" (c,p. 15); "o traficante está na sala de aula sentadona carteira ao lado do estudante, a quem iráoferecer maconha ou cocaína" (f, p.43).

Com a separação maniqueista do mundoem dois blocos compactos e inconciliáveis - omundo dos bons e o mundo dos maus, aoexemplo das fábulas de mocinhos e bandidos -os autores de tais textos legitimam os própriospapéis: protetores dos "bons cidadãos", cujoscomportamentos correspondem às expectati-vas de "normalidade", e perseguidores dos "vi-ciados e traficantes" e outros desviantes denormas, cujos comportamentos são incrimina-dos de ameaçarem a "ordem social".

Vilipendiando representantes de diferen-ças como desviantes, cria-se todo um sistema deacusação, podendo funcionar como estratégiavaliosa para a manutenção de certos poderesdiscriminatórios. São acusações que, uma vezformalizadas, implicam um elaborado ritual deexorcização - segundo o exemplo bem conhe-cido do bode expiatório - envolvendo todo umaparato institucional respaldado pela lei, isto é,pela possibilidade de coerção e punição.

"Viciado", em particular, contém toda umaacusação moral que assume explicitamenteuma dimensão policial e política. Implicitamen-te, carrega uma acusação totalizadora pondo emdúvida não apenas a cidadania, mas a própriahumanidade do usuário de drogas. Rotuladocomo "maconheiro" ou "marginal", passa a servisto como alguém que atenta contra a moral eos bons costumes, mas também contra as pró-prias instituições, o que faz dele um ser anti-so-cial. Vítimas de uma tal estigmatização, os dro-gaditos são considerados como "desviantes" etransformam-se, a partir daí, em excluídos daconvivência social pacífica, em função de prin-cípios rígidos, impostos, mantidos e manipula-dos ideologicamente.

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Conclusão: "Combate às drogas" paraquê?

As análises dos mecanismos de poder envol-vidos no discurso de "combate às drogas" indicamformas de um processo disciplinar referentes aum contexto autoritário, discriminatório e re-pressivo. Seus textos contribuem com o traba-lho político (senão policial) de sujeição do cida-dão a um determinado ideário de harmonia so-cial, ajudando a encobrir as contradições ineren-tes às sociedades modernas e sustentando rela-ções de força estabelecidas entre certos grupossociais. Ele contrasta em particular com a abor-dagem do "problema das drogas" que o situa noâmbito da saúde pública, enquanto ameaça nãoà "ordem social", mas à saúde da população nosentido amplo, visando em particular os danoscausados pelos abusos de álcool e fumo.

O discurso em pauta não se constitui, por-tanto, como uma simples idéia, um conheci-mento objetivo e benéfico ou uma ideal idadediscursiva sobre drogas e seus inegáveis malefí-cios. Sua ação mais eficaz consiste no papel dedisciplinarização das pessoas, na medida emque compactua com normas de conduta consti-tutivas de um amplo projeto normalizador dasrelações sociais. Apontando a possibilidade e aameaça de condutas desviantes, funda-se a pres-crição normativa que desencadeia o controle, aintervenção e a exclusão.

Reproduz-se assim, a cada instante, as con-dições de possibilidades de implantação, nasociedade, de uma estratégia de normalizaçãofundada numa razão aparentemente concreta eirrefutável: o indivíduo social reduzido à suacondição de usuário ou dependente de drogas- reduzido, em suma, a ser um "viciado" emfunção de um não conformismo qualquer.

Dessa forma, as justificativas, explicações,recomendações e argumentos que o discursode "combate às drogas" usa ou inventa paradesestimular o consumo, devem ser entendidosmenos em razão do próprio fenômeno e maisem função das estruturas de poder e do sistemade normas dominantes que impõem a suprema-cia da ordem moral, social e econômica vigente.

Em suma, esta formação discursiva apre-senta-se como uma abordagem unilateral e res-tritiva, de natureza persuasiva, que fortalece

posições radicais contra usuários e dependen-tes. Atém-se, fundamentalmente, à propagaçãode duas metas: por um lado, veicular explica-ções e recomendações que garantam a adapta-ção dos cidadãos à ordem social, concebidacomo entidade ahistórica, inquestionável, imu-tável e ideal; por outro, a de prover interven-ções repressoras e punitivas que excluem osujeito diferente, apontado como uma ameaçaàs instituições e à sociedade como um todo.

A dimensão ideológica permeia o conjuntodesses textos, vinculando suas formas e idéias asistemas de poder presentes nas relações so-ciais, necessitando de controles eficazes. Etica-mente descompromissado com o ser humano esua existência, constrói um quadro de moralis-mo que se baseia na intolerância quanto à plu-ralidade das opções e visões; por não se fundarnuma ética humanista, torna-se incapaz de ca-minhar em direção a valores representativos deliberdade e dignidade, esteios de uma convivên-cia democrática se não harmoniosa, pelo menosnorteada pelos ideais de justiça e respeito àsdiferenças.

O modelo repressivo apregoado pelo dis-curso anti-droga deve ser questionado não ape-nas pela sua comprovada ineficácia em diminuiro consumo de drogas e em contribuir significa-tivamente para resolver as questões de saúdepública que levanta, mas por impor um sistemade intervenção injusto e freqüentemente desu-mano. Obcecados pela idéia de combater asdrogas ilícitas por mecanismos jurídicos e poli-ciais - o que significa, de fato, redução da pro-blemática social e sanitarista do abuso de drogasao combate ao narcotráfico - os adeptos destediscurso esquecem-se da dimensão humana,bem como da necessidade de modelos de pre-venção e tratamento que valorizem a vida e apessoa, dentro de um contexto abrangente deecologia humana.

Esquecem-se, ainda, de que não existe ne-nhuma razão, nem filosófica, nem farmacológi-ca, nem antropológica, nem alopata, nem ho-meopata, de se posicionar "contra" as drogas,visto que essas são neutras em si e que eventuaisproblemas decorrem das condições de consu-mo adotadas por determinados sujeitos; esque-cem-se, afinal, que "ser do contra" raramenterepresenta uma contribuição construtiva, massim, uma postura defensiva, em prol, por exem-

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plo, mais do "status quo" do que das mudançasestruturais necessárias para que as sociedadesse tornem menos desequilibradas e injustas.

A idéia do "contra" merece uma última aná-lise: até que ponto o discurso anti-droga nãosatisfaz a uma antiga, mas sempre viva necessi-dade dos detentores de poder, aquela de preci-sar de um inimigo - se não externo, entãointerno à sociedade...?Afinal, a atual onda deintolerância diante das drogas iniciou-se nosEstados Unidos após a derrota no Vietnam,onde os narcóticos, em particular os opiáceos,tinham um papel não desprezível, devidamenteapontado pelos defensores da gloria militaramericana. A potencialidade "explicativa" da in-culpação das substâncias psicoativas ilícitas foisem dúvida realçada com o desaparecimento dogrande inimigo externo, o comunismo e seuspoderes militares.

O embate belicista deslocou-se, desde en-tão, de preferência para o plano do narcotráfi-co, inimigo econômico poderoso, bem organi-zado e bem protegido, superado pelos merca-dos do petróleo e dos armamentos, mas capazde desestabilizar as economias de mercado oci-dentais pela instalação de poderes paralelos.Esta nova vertente da ameaça às hegemoniasestabelecidas no ocidente suscitou colossais es-tratégias de combate transferidas de outroscampos de batalha - com certeza não pelo peri-go das drogas em si, mas pelo envolvimentomacro-econômico que as caracteriza.

Eis talvez um outro sentido, e não dos maisinocentes, da dimensão ideológica detectada nodiscurso de combate às drogas. Pela sua preva-lência no setor das políticas públicas, o serhumano mais uma vez sai perdendo, descartadoque é diante de interesses apresentados comosuperiores àqueles da saúde pública, senãocomo "suprahumanos". Fica a questão, inquie-tante, de saber quem seria, afinal, o verdadeiroinimigo do homem - este sim a ser investido, nointeresse da humanidade e dos direitos do ho-mem, como alvo de um combate mais nobre emais ético do que aquele dirigido, aparente-mente, às drogas e aos seus mitos.

BUCHER, R. & OLIVEIRA, S. R. M. [The discourse of the"fight against drugs" and its ideologies]. Rev. SaúdePública, 28: 137-45, 1994. The ideological contents ofthe literature on drug consumption and addiction with

a moralistic and enforcement approach are analysedfrom a scientific and public health point of view. Anon-literal sense is brought out so that the discourse maybe understood in its original context and its links withthe forms of power present in social relations. Thetheory of discourse analysis is used as the appropriatemethodology by which the ideological indicators thatimpose on the texts on drugs a predetermined bias areto be found. The results clearly reveal a persuasivediscourse that has the propose of directing andmanipulating ways of being and seeing in society,allowing the authors to be seen as interested parties ina heavy-handed system for the maintenance "of thesocial status quo". The conclusion is that in these tests,it is not really the drug question in itself that is dealt with,but rather a mythical construction, used do combatsocial deviation.

Keywords: Substance abuse, prevention and control.Language. Authoritarianism.

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Recebido para publicação em 12.4.1993Reapresentado em 24. 11993

Aprovado para publicação em 7.3.1994