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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL CPDOC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA, POLÍTICA E BENS CULTURAIS O DOI-CODI carioca: Memória e cotidiano no "Castelo do Terror" APRESENTADA POR RAFAELLA LÚCIA DE AZEVEDO FERREIRA BETTAMIO ORIENTADOR(A) ACADÊMICO(A): PROF.ª DR.ª MARLY SILVA DA MOTTA Rio de Janeiro, Março de 2012

O DOI-CODI carioca

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Page 1: O DOI-CODI carioca

FUNDACcedilAtildeO GETULIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTACcedilAtildeO DE

HISTOacuteRIA CONTEMPORAcircNEA DO BRASIL ndash CPDOC

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM HISTOacuteRIA POLIacuteTICA E BENS

CULTURAIS

MESTRADO ACADEcircMICO EM HISTOacuteRIA POLIacuteTICA E BENS CULTURAIS

O DOI-CODI carioca

Memoacuteria e cotidiano no Castelo do Terror

APRESENTADA POR

RAFAELLA LUacuteCIA DE AZEVEDO FERREIRA BETTAMIO

ORIENTADOR(A) ACADEcircMICO(A) PROFordf DRordf MARLY SILVA DA MOTTA

Rio de Janeiro Marccedilo de 2012

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FUNDACcedilAtildeO GETULIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTACcedilAtildeO DE

HISTOacuteRIA CONTEMPORAcircNEA DO BRASIL ndash CPDOC

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM HISTOacuteRIA POLIacuteTICA E BENS

CULTURAIS

MESTRADO ACADEcircMICO EM HISTOacuteRIA POLIacuteTICA E BENS CULTURAIS

ORIENTADOR(A) ACADEcircMICO(A) PROFordf DRordf MARLY SILVA DA MOTTA

RAFAELLA LUacuteCIA DE AZEVEDO FERREIRA BETTAMIO

O DOI-CODI carioca

Memoacuteria e cotidiano no Castelo do Terror

Dissertaccedilatildeo de Mestrado Acadecircmico em Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais apresentada

ao Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil ndash CPDOC

como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do grau de Mestre em Histoacuteria

Rio de Janeiro Marccedilo de 2012

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Ficha catalograacutefica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique SimonsenFGV

Bettamio Rafaella Luacutecia de Azevedo Ferreira O DOI-CODI carioca memoacuteria e cotidiano no Castelo do Terror

Rafaella Luacutecia de Azevedo Ferreira Bettamio ndash 2012

218 f Dissertaccedilatildeo (mestrado) ndash Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de

Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais

Orientador Marly Silva da Motta Inclui bibliografia

1 Prisioneiros poliacuteticos 2 Brasil - Histoacuteria - 1964-1985 I Motta Marly Silva da II Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de

Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais III Tiacutetulo

CDD ndash 981063

4

5

Agradecimentos

Agradeccedilo primeiramente agrave minha orientadora Profordf Drordf Marly Silva da Motta

por sua orientaccedilatildeo zelosa pelo apoio e pelos inuacutemeros ensinamentos Com sua ajuda

consegui ultrapassar muitas dificuldades e penetrar com seguranccedila no universo dessa

pesquisa

Ao Professor Ameacuterico Freire de quem tive o prazer de ser aluna durante o

mestrado agradeccedilo pelas aulas pela bibliografia sobre o periacuteodo militar que muito me

ajudou na elaboraccedilatildeo dessa anaacutelise pelas criacuteticas construtivas elaboradas durante o

exame de qualificaccedilatildeo e pela participaccedilatildeo na banca examinadora dessa dissertaccedilatildeo

Ao Professor Luiacutes Reznik agradeccedilo por ter integrado a banca do exame de

qualificaccedilatildeo fazer parte da presente banca examinadora e tambeacutem pelas valiosas

sugestotildees indicaccedilotildees bibliograacuteficas e comentaacuterios incorporados ao estudo e agrave redaccedilatildeo

final desse trabalho

Agrave Professora Dulce Pandolfi agradeccedilo por sua generosidade em aceitar ser de

certa forma sujeito e objeto desta pesquisa desde seu nascimento durante a minha

graduaccedilatildeo em Histoacuteria pela UNIRIO quando permitiu que eu lhe entrevistasse e que

seu depoimento servisse de fonte para minha monografia de fim de curso cuja banca

examinadora contou com sua participaccedilatildeo Tambeacutem lhe agradeccedilo por durante o

mestrado continuar acompanhando de perto esta pesquisa participando da banca do

exame de qualificaccedilatildeo quando trouxe muitas consideraccedilotildees e sugestotildees produtivas a

este trabalho e da banca examinadora final desta dissertaccedilatildeo

Agrave Professora Icleacuteia Thiesen agradeccedilo pela credibilidade e incentivo que vem

injetando na minha face de pesquisadora desde o tempo em que fui sua aluna ainda

durante a graduaccedilatildeo

Aos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados Antocircnio Leite de Carvalho Dulce

Pandolfi Fernando Palha Freire Padre Maacuterio Prigol Ana Batista e Ceciacutelia Coimbra

agradeccedilo por me confiarem suas narrativas e me deixarem penetrar em parte de suas

memoacuterias

6

Agrave Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional onde muito me orgulho de trabalhar agradeccedilo

por incentivar a minha qualificaccedilatildeo enquanto pesquisadora permitindo que eu cursasse

o mestrado e me licenciasse nos uacuteltimos meses para me dedicar a esta dissertaccedilatildeo de

corpo e alma

Ao Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNMRJ) agradeccedilo por me

autorizar a consultar o arquivo da instituiccedilatildeo e por me receber afetuosamente durante

diversas reuniotildees onde pude conhecer alguns de seus integrantes tais como Ana Batista

e Ceciacutelia Coimbra a quem tive o prazer de entrevistar

Aos amigos Joatildeo Cerineu e Alejandra Estevez agradeccedilo a contribuiccedilatildeo

fundamental que efetuaram sobre este trabalho sendo os responsaacuteveis por me apresentar

aos ex-prisioneiros poliacuteticos Antocircnio e Padre Maacuterio

Agradeccedilo aos meus irmatildeos Rodrigo Renata e Melissa ao Rodrigo por despertar

em mim a vontade e a coragem de seguir a profissatildeo de historiadora agrave Renata por me

apoiar e ouvir sobre minha pesquisa atentamente mesmo quando eu repetia as mesmas

histoacuterias diversas vezes e principalmente agrave Melissa que muito me ajudou na

composiccedilatildeo do ldquoabstractrdquo desse trabalho com o seu inglecircs simplesmente perfeito

Aos amigos queridos que a Biblioteca Nacional me deu de presente

companheiros de jornada que me fazem melhorar a cada dia como profissional e que me

acompanharam durante todo o processo do mestrado me apoiando no que foi preciso e

me ajudando a superar os obstaacuteculos do dia-a-dia Agradeccedilo especialmente agrave Lia Jordatildeo

pelo companheirismo diaacuterio ao Francisco Madureira pelo auxiacutelio na ediccedilatildeo final dessa

dissertaccedilatildeo e agrave Regina Santiago pela amizade e disposiccedilatildeo sem igual em ler

minuciosamente este trabalho apontando sugestotildees que indiscutivelmente tornaram o

texto mais claro

Agraves amigas Manuela Joana e Letiacutecia agradeccedilo por estarem sempre comigo nas

alegrias e nas tristezas compartilhando conquistas e derrotas desde os tempos em que

juntas frequentaacutevamos as festas juninas da PE

7

Aos amigos do curso de Histoacuteria da UNIRIO agradeccedilo pelas trocas intelectuais

pelos incontaacuteveis momentos divertidos pela camaradagem e por essa amizade de dez

anos de histoacuteria

Aos meus pais sou e serei eternamente grata pelo carinho pelo apoio e por sempre

estarem ao meu lado durante todos esses anos

Aos meus sogros Eliana Lasmar e Luiz Fernando Arieira agradeccedilo por estarem

sempre por perto dispostos a estenderem a matildeo quando preciso

E por fim meus agradecimentos especiais a Raul Cordeiro meu companheiro de

todas as horas o engenheiro mais humano que eu jaacute conheci Agradeccedilo-lhe por tudo que

temos vivido juntos por nosso cantinho por nossas conversas por nosso conviacutevio de

todo dia por nosso amor pelo tanto e tatildeo pouco que enfeita cada momento da minha

vida me completa e me faz uma pessoa mais feliz

8

Tambeacutem neste lugar pode-se sobreviver e por isso eacute preciso

querer sobreviver para contar para testemunhar e que para

viver eacute importante esforccedilarmo-nos para salvar pelo menos o

esqueleto os pilares a forma da nossa civilizaccedilatildeo [hellip]

(Levi 2001 40)

9

Resumo

O objetivo dessa dissertaccedilatildeo eacute analisar a memoacuteria de seis ex-prisioneiros poliacuteticos

do Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees-Centro de Operaccedilotildees de Defesa Interna

do Rio de Janeiro (DOI-CODIRJ) entrevistados recentemente entre os anos de 2002 e

2004 sobre o cotidiano vivido nessa instituiccedilatildeo em 1970 Naquele ano dentro do

Sistema de Seguranccedila Interna (SISSEGIN) os DOI-CODI haviam sido criados e

distribuiacutedos por todas as Regiotildees Militares do paiacutes tornando-se a principal instituiccedilatildeo

de repressatildeo aos opositores poliacuteticos que optaram pela luta armada como forma de

derrotar a ditadura militar brasileira Assim as narrativas desses seis ex-prisioneiros

satildeo aleacutem de fontes essenciais o principal objeto de estudo deste trabalho Atraveacutes

delas torna-se possiacutevel acessar aspectos cruciais para a caracterizaccedilatildeo do cotidiano

vivido pelos presos em um desses oacutergatildeos ― o DOI-CODI do Rio de Janeiro ― uma

vez que esse passado se liga ao presente por meio de suas memoacuterias Diante disso a fim

de melhor entender tais memoacuterias a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI tambeacutem satildeo

aqui analisadas colocando as narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados em

diaacutelogo com uma bibliografia especialmente selecionada aleacutem de uma fonte a respeito

do DOI feita por um de seus agentes quando este oacutergatildeo ainda estava em atividade em

1978 Para que a essas memoacuterias seja aplicada uma criacutetica efetiva necessaacuteria a todo

trabalho histoacuterico o estudo se debruccedila ainda sobre as interferecircncias que o presente

exerce na construccedilatildeo que fazem com relaccedilatildeo ao passado vivido no DOI-CODIRJ com

o objetivo de esclarecer as bases sobre as quais satildeo construiacutedas cerca de trinta anos

depois

Palavras-chave Ex-prisioneiros poliacuteticos ndash Memoacuteria ndash DOI-CODI ndash Cotidiano ndash

Ditadura militar

10

Abstract

The objective of this thesis is to analyze the memory of six former political

prisoners of the Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees-Centro de Operaccedilotildees de

Defesa Interna do Rio de Janeiro or DOI-CODIRJ (Detachment of Information

Operations Center-Internal Defense Operations Center of Rio de Janeiro) recently

interviewed between 2002 and 2004 about their everyday living in that institution in

1970 At that year in the Sistema de Seguranccedila Interna or SISSEGIN (Internal Security

System) the DOI-CODI had been created and distributed by all the countryrsquos military

regions becoming the repression leading instituion of political opponents who oppted

for armed struggle as a way to defeat Brazilrsquos military dictatorship Thus these six

former prisioners narratives are not only essencial sources but the main study object of

this paper Through them it becomes possible to access crucial aspects for the

characterization of the daily lived by prisioners in one of these agencies - the DOI-

CODI in Rio de Janeiro - since this past connects to present through their memories

Therefore in order to understand such memories the training and the performance of

the DOI-CODI are also analyzed here placing the narratives of the interviewed former

political prisioners in dialogue with a specially selected bibliography and a source

about DOI made by one of its agents when that agency was still active in 1978 In

order to be applied to these memories an effective critique necessary to all historical

work the study still focuses on the interferences that the present exerts on the

construction that make in relation to the past lived in DOI-CODIRJ in order to clarify

the basis on which are built at about thirty years later

Key-Words Former political prisioners ndash Memory ndash DOICODI ndash daily Life ndash Military

dictatorship

11

Sumaacuterio

Agradecimentos 05

Resumo 09

Abstract 10

Introduccedilatildeo 13

Capiacutetulo 1 Os DOI-CODI formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo 28

1 Debate Histoacuterico 35

11 O papel da ESG para o Sistema de Seguranccedila Nacional 35

12 Os conceitos legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar 39

13 A montagem e o funcionamento do SISSEGIN 47

2 O DOI-CODI por ele mesmo 57

3 O DOI-CODI pelos prisioneiros 75

Capiacutetulo 2 Os presos poliacuteticos e suas organizaccedilotildees 85

1 A rede de entrevistas 91

11 Os sujeitos e suas trajetoacuterias 97

12 A nova esquerda brasileira 122

Capiacutetulo 3 O espaccedilo e o cotidiano do DOI-CODI carioca 136

1 O que sofre e o que resiste 137

2 Uma cartografia possiacutevel do ldquoCastelo do Terrorrdquo 142

12

3 Memoacuterias de um cotidiano 154

31 O interrogatoacuterio e a tortura 156

32 O dia-a-dia no caacutercere 184

Conclusatildeo 199

Fontes 205

1 ArquivoDocumentos Pessoais 205

2 Documentos Institucionais 205

3 Fonte Cinematograacutefica 205

4 Fontes Orais 205

5 Fontes Visuais 206

6 Perioacutedicos 206

Bibliografia 207

1 Bibliografia digital 213

Anexo I Glossaacuterio de Siglas 215

Anexo II A Hierarquia do Exeacutercito Brasileiro 218

13

Introduccedilatildeo

Tem dias que a gente se sente

Como quem partiu ou morreu

A gente estancou de repente

Ou foi o mundo entatildeo que cresceu

A gente quer ter voz ativa

No nosso destino mandar

Mas eis que chega a roda viva

E carrega o destino praacute laacute

Roda mundo roda gigante

Roda moinho roda piatildeo

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coraccedilatildeo

A gente vai contra a corrente

Ateacute natildeo poder resistir

Na volta do barco eacute que sente

O quanto deixou de cumprir

Faz tempo que a gente cultiva

A mais linda roseira que haacute

Mas eis que chega a roda viva

E carrega a roseira praacute laacute

Chico Buarque

(Roda Viva 1968)

14

Vivi bons momentos no 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito Era adolescente e os

momentos aos quais me refiro foram vividos durante o final de uma deacutecada

democraacutetica a de 1990 Mal sabia sobre a ditadura militar e muito menos que aquele

Batalhatildeo situado tatildeo proacuteximo agrave minha casa na Tijuca havia sediado um centro de

tortura O nome DOI-CODI nunca tinha ouvido falar Para mim e para todos os

adolescentes da Tijuca o 1ordm BPE era um Batalhatildeo convencional do Exeacutercito que tinha

um grande paacutetio utilizado todos os anos para a melhor festa junina da regiatildeo a ldquofesta

junina da PErdquo Logo para noacutes a principal caracteriacutestica da PE era o fato de durante os

meses de junho abrir as portas do seu paacutetio para tornaacute-lo ldquoponto de encontrordquo de muitos

jovens estudantes Quanta ironia

Jaacute no terceiro periacuteodo da faculdade de Histoacuteria da UNIRIO no primeiro semestre

de 2002 descobri o que aquele preacutedio havia sido durante a ditadura militar Soube

inclusive que ele era tombado pelo antigo Departamento Geral de Patrimocircnio Cultural

(DGPC) da Prefeitura justamente por representar a memoacuteria de muitos ex-prisioneiros

poliacuteticos que ali haviam sido torturados e mortos Fiquei perplexa Como nunca

ningueacutem havia me dito isso Como os professores de Histoacuteria da minha escola

localizada no mesmo bairro natildeo haviam destacado esse fato Por que essa parte da

Histoacuteria natildeo era amplamente divulgada Eu que sempre gostei de Histoacuteria natildeo agrave toa

escolhi fazer dela minha formaccedilatildeo e profissatildeo me senti instigada a revelar as memoacuterias

dos presos poliacuteticos que por laacute passaram A partir dessa descoberta mais do que uma

ldquonovardquo face do 1ordm BPE eu havia me deparado com outra revelaccedilatildeo o meu tema de

pesquisa

A partir de um amigo do curso de Histoacuteria no final de 2002 cheguei ao meu

primeiro entrevistado e daiacute em diante teci uma rede de entrevistas No final de 2004

havia reunido seis entrevistados trecircs homens e trecircs mulheres todos ex-prisioneiros

15

poliacuteticos que passaram pelo DOI-CODIRJ durante o mesmo ano de 1970 Essa

pesquisa resultou em minha monografia apresentada em 2005 como requisito para a

conclusatildeo do curso de Histoacuteria da UNIRIO O Castelo do terror memoacuteria e tortura no

espaccedilo prisional (1970-1974) 1

Natildeo abandonei o tema Ao contraacuterio resolvi aprofundaacute-lo no mestrado em

Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais do CPDOCFGV onde ingressei em marccedilo de 2010

Nessa dissertaccedilatildeo que representa a fase conclusiva do mestrado trabalho com os

depoimentos dos mesmos seis ex-prisioneiros do DOI-CODIRJ de 1970 colhidos entre

os anos de 2002 e 2004 Aqui o objetivo mais amplo eacute se inserir no conjunto de estudos

que reflete sobre a construccedilatildeo de uma determinada memoacuteria a respeito da ditadura

militar

Analisar a memoacuteria de ex-prisioneiros poliacuteticos a fim de entender como essas

foram construiacutedas jaacute em tempos democraacuteticos e o que trazem em benefiacutecio da

caracterizaccedilatildeo daquele passado eacute o objetivo principal desta dissertaccedilatildeo Assim sendo

alguns aspectos especiacuteficos merecem ser destacados

O primeiro deles eacute que as entrevistas foram concedidas entre os anos 2002 e 2004

ou seja o passado ditatorial foi recuperado jaacute em tempos democraacuteticos Ao mesmo

tempo considerou-se que esses depoimentos satildeo fontes essenciais para atingir o

objetivo aqui traccedilado jaacute que a metodologia de histoacuteria oral eacute a mais adequada para

analisar os aspectos subjetivos e repletos de detalhes que correspondem ao rigoroso dia-

a-dia de quem esteve preso em um organismo repressor Logo eacute faacutecil concluir que as

fontes que permitiram a elaboraccedilatildeo deste estudo natildeo poderiam ser encontradas em

documentaccedilatildeo oficial

1 O Castelo do terror memoacuteria e cotidiano de ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI carioca (1970-

1979) monografia de fim de curso de bacharelado e licenciatura plena em Histoacuteria da UNIRIO orientada

pela Profordf Drordf Icleacuteia Thiesen e apresentada em abril de 2005

16

Instituiacutedos por todo o territoacuterio brasileiro a partir de 1970 os DOI-CODI

tornaram-se referecircncia-chave na memoacuteria sobre a tortura e a repressatildeo praticada pela

ditadura militar A partir disso nota-se que o trabalho desenvolvido com as memoacuterias

de ex-prisioneiros de uma de suas sedes a do Rio de Janeiro eacute uma das escassas

possibilidades existentes de se acessar esse passado ainda tatildeo presente

Esse objeto de estudo representa um grande desafio Afinal estaacute inserido entre

duas temporalidades recentes ndash quando a experiecircncia prisional foi efetivamente vivida

em 1970 e quando ela foi narrada pelos entatildeo ex-prisioneiros poliacuteticos entre 2002 e

2004 Por isso mesmo lanccedilou-se matildeo do aparato teoacuterico do que se convencionou

chamar de histoacuteria do tempo presente A partir dos anos 1980 durante o processo de

renovaccedilatildeo da histoacuteria poliacutetica a valorizaccedilatildeo de uma histoacuteria das representaccedilotildees e a

compreensatildeo dos usos poliacuteticos do passado pelo presente acarretou uma reavaliaccedilatildeo das

relaccedilotildees estabelecidas entre histoacuteria e memoacuteria que permitiu agrave historiografia fazer novas

reflexotildees sobre as relaccedilotildees entre passado e presente 2 Diante dessa percepccedilatildeo nasceu

na Franccedila o Instituto de Histoacuteria do Tempo Presente (IHTP) fundado por Franccedilois

Beacutedarida consolidando a histoacuteria do tempo presente como portadora da especificidade

de conviver com testemunhos vivos colocando sob seu foco principal os depoimentos

orais 3

A histoacuteria oral eacute portanto a metodologia principal desta dissertaccedilatildeo e por

conseguinte os depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos dela decorrentes satildeo aqui

tratados com todo o rigor necessaacuterio agrave pesquisa histoacuterica Afinal apesar de ser

demasiadamente criticada por ser uma metodologia apoiada na memoacuteria o que a

tornaria capaz de produzir representaccedilotildees e natildeo reconstituiccedilotildees do real entende-se que

2 Para mais informaccedilotildees sobre o surgimento da histoacuteria do tempo presente na historiografia ver Remoacutend

1996 e Ferreira dez 2002 314-332 3 Para mais informaccedilotildees sobre os fundamentos da histoacuteria do tempo presente ver Beacutedarida 2006 219-

229

17

as narrativas orais devem ser submetidas ao crivo da criacutetica histoacuterica tal como deve

ocorrer com todas as outras fontes Os documentos orais ou escritos tecircm uma razatildeo de

ser pois foram feitos por algueacutem com determinada visatildeo estimulado por algum motivo

eou intenccedilatildeo e por isso nunca seratildeo capazes de representar a realidade pura e absoluta

dos fatos Portanto qualquer fonte caso natildeo seja bem contextualizada e analisada

possibilita que a pesquisa caia em armadilhas e reconstrua um passado que nunca

existiu conforme bem elucidado por Michael Pollak

[] se a memoacuteria eacute socialmente construiacuteda eacute oacutebvio que toda documentaccedilatildeo

tambeacutem o eacute Para mim natildeo haacute diferenccedila fundamental entre fonte escrita e

oral A criacutetica da fonte tal como todo historiador aprende a fazer deve a

meu ver ser aplicada a fontes de tudo quanto eacute tipo (Pollak 1992 207-208)

A histoacuteria oral eacute de grande valia agrave histoacuteria do tempo presente contribuindo para

que o estudo da histoacuteria recente ndash por natureza mais inacabada do que qualquer outra

histoacuteria (Beacutedarida 2006 229) ndash seja incentivado desafiando as dificuldades

relacionadas ao acesso a fontes documentais de periacuteodos pouco distantes Aleacutem disso a

histoacuteria oral traz outro diferencial aqui destacado atraveacutes da fala torna-se possiacutevel

evidenciar uma carga subjetiva tornando acessiacutevel um tipo de informaccedilatildeo capaz de

enriquecer a anaacutelise histoacuterica e que natildeo seria obtido por meio de fontes escritas oficiais

Assim mesmo que uma experiecircncia relatada natildeo seja em si mesma um fato de certa

forma pode vir a secirc-lo jaacute que traz agrave tona o verdadeiro sentimento de algueacutem perante

uma situaccedilatildeo e esse sentimento eacute um fato que soacute pode ser alcanccedilado mediante agraves

memoacuterias trazidas pelos relatos (Portelli 1996 59-72)

Os usos que os ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ fazem de seu passado

prisional eacute um dos principais aspectos aqui ressaltados Para tanto o conceito de

presente do passado de Robert Frank (1999) eacute utilizado ao longo deste trabalho como

18

ferramenta para destacar as influecircncias que o presente de suas narrativas exerce sobre a

maneira pela qual eacute revivido o passado vivenciado no DOI-CODIRJ

Desde que haviam passado pelo DOI-CODI carioca em 1970 em plena ditadura

militar a chamada ldquolei de anistiardquo jaacute havia sido instituiacuteda no paiacutes em 1979 que entre

outras providecircncias anistiava todos quantos no periacuteodo compreendido entre 02 de

setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 cometeram crimes poliacuteticos ou conexos com

estes (lei nordm 66831979) a ditadura militar havia terminado com a eleiccedilatildeo indireta de

um presidente civil em 1985 a Assembleia Nacional Constituinte havia sido instalada

em 1987 e a Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil a chamada ldquoconstituiccedilatildeo

cidadatilderdquo havia sido promulgada no ano seguinte e finalmente o primeiro presidente

civil eleito pelo voto direto apoacutes a ditadura militar havia tomado posse em 1990

completando a transiccedilatildeo poliacutetica do paiacutes ou seja tornando a ditadura uma memoacuteria do

passado e a democracia o momento presente Democracia esta que na eacutepoca em que os

depoimentos foram concedidos apresentava ainda mais sinais de seu fortalecimento e

consolidaccedilatildeo jaacute que o Brasil havia elegido para presidente o socioacutelogo e professor da

USP Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e o ex-operaacuterio e liacuteder sindical Luiacutes

Inaacutecio Lula da Silva (2003-2010) ambos perseguidos poliacuteticos durante o periacuteodo

ditatorial

Com relaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo dos que sofreram danos decorrentes da poliacutetica repressiva

promovida pela ditadura militar desde 1995 estava em curso o reconhecimento pelo

Estado brasileiro dos mortos e desaparecidos poliacuteticos durante a ditadura e a

indenizaccedilatildeo as suas famiacutelias (lei nordm 914095) Aleacutem disso a reparaccedilatildeo financeira aos

males sofridos por aqueles que ficaram presos ou foram perseguidos na eacutepoca tambeacutem

estava em voga desde 2002 (lei nordm 1055902) A demanda desta lei principalmente no

caso daqueles que passavam pelo processo de solicitaccedilatildeo eacute um elemento a ser levado

19

em conta na maneira pela qual os entrevistados construiacuteram suas narrativas Afinal o

procedimento necessaacuterio agrave concessatildeo da reparaccedilatildeo incluiacutea a construccedilatildeo de um memorial

sobre as mazelas a que os requerentes haviam sido submetidos pelo Estado durante a

ditadura militar

Dessa forma as narrativas significavam tambeacutem para os ex-prisioneiros poliacuteticos

um meio de conseguirem apoio da sociedade em favor da ampliaccedilatildeo desse

reconhecimento iniciado pelo Estado brasileiro Atraveacutes de suas narrativas poderiam

contribuir para que suas memoacuterias fossem encampadas pela histoacuteria Logo pode-se

dizer que no sentido atribuiacutedo por Michael Pollak (1992) esses depoimentos foram

concedidos sob o horizonte de contribuir com o trabalho de enquadramento da

memoacuteria nacional sobre a ditadura militar brasileira jaacute que esta ateacute hoje natildeo estaacute

consolidada

Finalmente verifica-se que ainda ocorre uma disputa pela memoacuteria da ditadura

militar onde de um lado estatildeo os que sofreram o peso da matildeo forte da ditadura e de

outro os militares que argumentam que os ldquoanos de chumbordquo devem ser relegados ao

passado Como exemplo a declaraccedilatildeo dada em outubro de 2004 ao jornal O Globo por

um representante do Exeacutercito em resposta agrave publicaccedilatildeo de supostas fotos pelas quais o

jornalista Vladimir Herzog4 aparece sendo humilhado na prisatildeo

As medidas tomadas pelas forccedilas legais foram uma legiacutetima resposta agrave

violecircncia dos que recusaram o diaacutelogo optaram pelo radicalismo e pela

ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e de desencadear accedilotildees

criminosas [] sentiu-se a necessidade da criaccedilatildeo de uma estrutura com

vistas a apoiar em operaccedilatildeo e inteligecircncia as atividades necessaacuterias para

desestruturar os movimentos radicais e ilegais [] Mesmo sem qualquer

mudanccedila de posicionamento e de convicccedilotildees em relaccedilatildeo ao que aconteceu

4 Vladimir Herzog era integrante do PCB e diretor da TV Cultura quando foi preso em outubro de 1975

no DOI-CODISP onde dias depois foi morto sob torturas Para mais informaccedilotildees sobre o caso Vladimir

Herzog e seus sucessivos encadeamentos ver Moraes 2006

20

naquele periacuteodo histoacuterico considera-se accedilatildeo pequena reavivar revanchismos

ou estimular discussotildees esteacutereis sobre conjunturas passadas que a nada

conduzem (Camarotti 19 out 2004 12)

Essa disputa travada entre a lembranccedila e o esquecimento pode ser notada atraveacutes

da batalha em torno do preacutedio que serviu de sede ao DOI-CODIRJ o 1ordm BPE Essa foi

iniciada nos primeiros anos da deacutecada de 1990 por meio de uma tentativa do Exeacutercito

de vender o edifiacutecio Sabendo da situaccedilatildeo um conjunto de moradores dos arredores

buscou impedir a venda solicitando o tombamento de todo o espaccedilo ocupado pelo

quartel agrave Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro alegando a sua importacircncia para a

memoacuteria poliacutetica do paiacutes Essa atitude eacute evidenciada em um manifesto contendo 236

assinaturas em defesa da preservaccedilatildeo do preacutedio que serviu como documento de

abertura para o processo de tombamento do edifiacutecio na Subsecretaria de Patrimocircnio

Cultural da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro

O Exeacutercito brasileiro alegando falta de recursos para seu programa de

construccedilatildeo de quarteacuteis em outros estados pretende vender o imoacutevel onde

estaacute o 1ordm BPE Trata-se de um imoacutevel altamente valorizado pela ampla infra-

estrutura urbana [] Acontece que o valor que o Exeacutercito quer faturar foi

criado a partir de obras e investimentos custeados com os impostos e taxas

que pagamos todos noacutes haacute mais de um seacuteculo O Exeacutercito natildeo contribuiu

em nada para isso e agora quer se apropriar desse valor para investir sabe-se

laacute aonde [] consideramos que o preacutedio do Batalhatildeo da PE estaacute

indissoluvelmente cravado na histoacuteria nas tradiccedilotildees na esteacutetica e na

paisagem local [] Sabemos que o Batalhatildeo da PE foi sede do DOI-CODI

na eacutepoca da ditadura militar e que ali estiveram presos e foram torturados

muitos companheiros nossos tendo inclusive alguns sido dados como

ldquodesaparecidosrdquo Tambeacutem por esta razatildeo o preacutedio estaacute ligado agrave memoacuteria

poliacutetica desse paiacutes [] Queremos na aacuterea um centro cultural com teatro e

museu agrave memoacuteria da luta pela liberdade com parque e jardins Esses satildeo os

21

anseios da comunidade e natildeo outrosrdquo (Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural

da Prefeitura do Rio de Janeiro 1992) 5

Aleacutem desse documento outras solicitaccedilotildees de preservaccedilatildeo do preacutedio foram

enviadas agrave Cacircmara Municipal por Associaccedilotildees de Moradores da Tijuca e bairros

vizinhos Enfim em 29 de marccedilo de 1993 no primeiro mandato do entatildeo prefeito Ceacutesar

Maia o processo de tombamento do 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito foi finalizado

No entanto a ideia de tiraacute-lo do Exeacutercito a fim de tornar o espaccedilo um centro cultural

que contivesse um museu da memoacuteria da luta pela liberdade natildeo se concretizou pois

apoacutes o tombamento o Exeacutercito natildeo deixou o local onde permanece ateacute os dias atuais

sinalizando que natildeo tem interesse em que o edifiacutecio se torne efetivamente um lugar de

memoacuteria tal como o conceito criado por Pierre Nora (1993)

No preacutedio do 1ordm BPE se encontram os trecircs sentidos atribuiacutedos por Nora como

caracteriacutesticos a um lugar de memoacuteria o material o simboacutelico e o funcional (Nora

1993 21) O sentido material no caso eacute o proacuteprio espaccedilo fiacutesico que ainda se conserva

no mesmo local sem grandes intervenccedilotildees o simboacutelico eacute o que o espaccedilo representa para

uma parte da sociedade carioca como marco memorial de um passado que natildeo se deve

esquecer e o funcional eacute a memoacuteria da ditadura militar ali preservada por meio do

tombamento do edifiacutecio Logo querendo ou natildeo o preacutedio do 1ordm BPE eacute um lugar de

memoacuteria jaacute que naquele espaccedilo fiacutesico ou seja material se encontram uma funccedilatildeo e

uma representaccedilatildeo simboacutelicas ligadas agrave memoacuteria da ditadura militar

A disputa em torno dessa memoacuteria parece aos poucos caminhar cada vez mais

para o lado dos ex-presos e perseguidos poliacuteticos Recentemente aleacutem das leis

5 Este documento que deu iniacutecio ao referido processo no ano de 1992 hoje se encontra arquivado na

Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro antigo Departamento Geral de

Patrimocircnio Cultural (DGPC) junto ao restante da documentaccedilatildeo que compocircs o processo Nordm

1200433692 e originou a lei municipal nordm 1954 de 290393

22

reparadoras citadas acima um grande obstaacuteculo foi ultrapassado para que os crimes

ocorridos durante a ditadura militar sejam apurados e desvendados Em outubro de

2011 a Comissatildeo da Verdade foi enfim aprovada pelo Congresso Nacional e em

novembro do mesmo ano a lei que a institui sancionada pela Presidente Dilma

Rousseff Nesse contexto esta dissertaccedilatildeo ao estudar as memoacuterias de seis ex-

prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ relaciona-se com essa atualidade cumprindo

um papel social relevante

O ofiacutecio do historiador que pressupotildee trilhar caminhos e fazer escolhas

significando por exemplo atribuir significado agraves palavras agraves fontes e agrave bibliografia

escolhidas norteou a seleccedilatildeo e os criteacuterios aqui estipulados Conforme apontado por

Reinhart Koselleck (2006 167) eacute impossiacutevel que o ponto de vista do historiador deixe

de influenciar na representaccedilatildeo que faz dos fatos Assim cabe deixar claro que este

trabalho foi movido pelo interesse que as memoacuterias dos ex-prisioneiros poliacuteticos do

DOI-CODIRJ despertaram em mim Vale dizer que essa dissertaccedilatildeo eacute avessa ao

postulado cientiacutefico da total imparcialidade no sentido de neutralidade apartidarismo

ou abstenccedilatildeo seguindo orientaccedilatildeo de Manoel Salgado Guimaratildees (2008)

Ao historiador de ofiacutecio seria exigido cada vez mais uma escrita submetida

aos ditames dos afetos sejam eles derivados de engajamentos poliacuteticos

especiacuteficos de crenccedilas particulares ou mesmo derivados de um convite agrave

individualidade do historiador Este seria instado a mostrar-se atraveacutes de seu

texto postura bastante diversa daquela que o obrigava a esconder-se por traacutes

da pesquisa cientiacutefica (Guimaratildees 2008 17)

O primeiro capiacutetulo tem por objetivo analisar a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-

CODI que a partir de 1970 passaram a integrar o Sistema de Seguranccedila Interna

(SISSEGIN) se espalharam por todas as Regiotildees Militares do Brasil e se tornaram a

principal instituiccedilatildeo de repressatildeo aos opositores poliacuteticos da ditadura militar Afinal a

23

partir do entendimento sobre a criaccedilatildeo e o funcionamento dessa instituiccedilatildeo se pretende

criar as condiccedilotildees necessaacuterias para analisar as memoacuterias dos seis ex-prisioneiros

poliacuteticos sobre uma de suas sedes o DOI-CODIRJ uma vez que a passagem por esse

espaccedilo prisional eacute aqui entendida como um elo fundamental entre essas memoacuterias

Assim optou-se por estruturar este capiacutetulo por meio de trecircs frentes 1) o debate

historiograacutefico 2) a monografia O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI)

do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e

perspectiva escrita em 1978 pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira

3) os depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de

Janeiro concedidos entre os anos de 2002 e 2004

A primeira frente de estudo se concentra em analisar a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos

DOI-CODI agrave luz da historiografia Nela apresentam-se autores e conceitos selecionados

a fim de elucidar algumas questotildees levantadas Qual o papel da Escola Superior de

Guerra (ESG) para a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional e dos DOI-CODI

Como a praxe ditatorial em respaldar atitudes arbitraacuterias por meio de leis

compulsoriamente promulgadas ou seja atraveacutes da legalidade autoritaacuteria conforme

nomenclatura utilizada por Anthony Pereira (2010) gerou as bases para a criaccedilatildeo do

SISSEGIN e dos DOI-CODI Como os conflitos internos gerados no seio da instituiccedilatildeo

militar que ocasionaram dissidecircncias as cizacircnias militares tal como conceituado por

Joatildeo Roberto Martins Filho (1993) influenciaram os rumos da ditadura e a construccedilatildeo

de seu aparato de seguranccedila interna De que maneira a montagem e o funcionamento do

SISSEGIN e dos DOI-CODI foram organizados e constituiacutedos

Jaacute a segunda e a terceira frentes de estudo deste capiacutetulo servem para analisar as

visotildees de atores que de uma forma ou de outra viveram os DOI-CODI Na segunda a

anaacutelise sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI debruccedila-se sobre a visatildeo de um de

24

seus agentes atraveacutes da fonte O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do

Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo escrita pelo coronel de

cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira apontado por ex-prisioneiros poliacuteticos com um dos

torturadores do DOI do Rio de Janeiro Trata-se de uma monografia que o referido

coronel apresentou agrave Escola de Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) em

1978 quando os DOI-CODI apesar de atuantes jaacute sofriam certa diminuiccedilatildeo de suas

atividades O trabalho em cima desse documento se direciona no sentido de analisar

dados representativos do poder coercitivo dos DOI-CODI do iniacutecio dos anos 1970 e de

descrever os afazeres de cada uma de suas seccedilotildees a fim de contribuir para o

entendimento sobre o funcionamento interno deste oacutergatildeo Por fim na terceira frente a

anaacutelise eacute efetuada por meio das memoacuterias dos seis ex-prisioneiros entrevistados entre os

anos de 2002 e 2004 objeto central dessa dissertaccedilatildeo Dessa forma procura-se aqui

responder como eles percebiam a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo do DOI-CODIRJ e ao

entrelaccedilar aspectos de suas memoacuterias com a historiografia e a visatildeo do coronel Pereira

se aproximar do que vinha a ser o aparato de seguranccedila interna de 1970 cujos DOI-

CODI eram parte essencial

O segundo capiacutetulo eacute construiacutedo com a proposta de analisar de que forma e sob

quais influecircncias foram construiacutedas e narradas as memoacuterias dos seis ex-prisioneiros

poliacuteticos entrevistados entre os anos de 2002 e 2004 Parte-se aqui do pressuposto de

que cada uma de suas memoacuterias foi formada e influenciada por idiossincrasias relativas

a vivecircncias pessoais personalidades e outros aspectos individuais que merecem ser

analisados de forma a viabilizar o entendimento loacutegico da construccedilatildeo dessas memoacuterias

Dessa forma busca-se relativizar uma memoacuteria coletiva que aparentemente eacute comum a

todos os ex-prisioneiros poliacuteticos que passaram por algum DOI-CODI O aspecto

coletivo dessas memoacuterias no entanto natildeo eacute abandonado As memoacuterias individuais aqui

25

trabalhadas natildeo estatildeo isoladas e constantemente tomam por referecircncia pontos externos

ao sujeito se apoiando em percepccedilotildees recebidas de determinada memoacuteria coletiva de

um grupo e tambeacutem pela memoacuteria histoacuterica de seu paiacutes (Halbwachs 2004 57-59)

Diante disso a capacidade de intervenccedilatildeo que o presente exerce sobre as

memoacuterias do passado (Frank 1999) toma um aspecto central nesse momento da anaacutelise

o que torna importante considerar aqui natildeo soacute o contexto histoacuterico que rodeava os

entrevistados no momento de suas narrativas (2002-2004) como tambeacutem a forma como

a rede de entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que essas foram realizadas

Assim este segundo capiacutetulo trata primeiramente dessas condiccedilotildees que viabilizaram e

de certa forma influiacuteram nas entrevistas para em seguida analisar as trajetoacuterias de vida

de cada um dos entrevistados e por fim baseando-se em algumas referecircncias sobre o

tema traccedilar um panorama sobre as organizaccedilotildees de esquerda das quais faziam parte ou

com que se relacionavam no momento de suas prisotildees

Finalmente o terceiro capiacutetulo visa analisar efetivamente a memoacuteria como

material para a histoacuteria Assim conforme elucidado por Fernando Catroga (2010) ao

buscar entender a escrita da histoacuteria como um rito de memoacuteria no sentido de lutar

contra o esquecimento e contra a corrosatildeo do tempo tal como ocorre em um ldquogesto de

sepulturardquo a histoacuteria eacute aqui escrita de forma a contribuir para que seja possiacutevel

caracterizar um passado que natildeo mais existe o do cotidiano do DOI-CODIRJ de 1970

Antes dessa caracterizaccedilatildeo a partir dos detalhes trazidos nos depoimentos sobre o

espaccedilo interno do preacutedio do 1ordm BPE conjugados agrave observaccedilatildeo minuciosa de sua fachada

que ateacute hoje ainda permanece preservada faz-se possiacutevel uma cartografia espacial do

local que sediou o DOI-CODIRJ Afinal esse entendimento da disposiccedilatildeo espacial do

referido edifiacutecio estaacute totalmente interligado com o cotidiano ali vivido por seus

prisioneiros logo eacute aqui entendido como essencial para a presente anaacutelise Feita esta

26

cartografia parte-se entatildeo para a caracterizaccedilatildeo do cotidiano vivido no DOI-CODIRJ

de 1970 Para tanto aleacutem da anaacutelise dos seis depoimentos a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos

DOI-CODI a constituiccedilatildeo da rede de entrevistas a trajetoacuteria dos entrevistados e suas

organizaccedilotildees de esquerda estudadas nos capiacutetulos anteriores satildeo incorporadas ao

estudo A partir disso vaacuterios aspectos do cotidiano prisional satildeo abordados tais como

o interrogatoacuterio e a tortura os primeiros momentos na prisatildeo as formas de resistecircncia

os encontros e as relaccedilotildees entre os presos nas celas as formas de lidar com o tempo as

roupas e as refeiccedilotildees

No decorrer dos trecircs capiacutetulos dessa dissertaccedilatildeo faz-se constante referecircncia a

siglas relativas ao tema em abordagem e agrave hierarquia das patentes do Exeacutercito Diante

disso ao final de todo o texto apresentado na parte dos anexos encontra-se o Glossaacuterio

de siglas (Anexo I) e a tabela A hierarquia do Exeacutercito Brasileiro (Anexo II)

A partir dessa configuraccedilatildeo geral pretende-se responder agraves questotildees acima

pontuadas a fim de corroborar algumas hipoacuteteses aqui levantadas

1) A formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo do aparato de seguranccedila interna que abrangia o DOI-

CODIRJ tiveram por base as teses sobre seguranccedila nacional montadas pela

ESG anos antes da ditadura militar a promulgaccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo

arbitraacuteria condescendente a abusos de poder gerada a partir dos primeiros anos

do governo militar bem como a tentativa de solucionar impasses ocasionados

por disputas que vinham ocorrendo no seio do Exeacutercito e por conseguinte

ameaccedilavam sua unidade institucional

2) O peso do presente (200204) teve um papel decisivo na maneira pela qual os

entrevistados construiacuteram a narrativa sobre o periacuteodo (1970) em que estiveram

presos no DOI-CODIRJ

3) As organizaccedilotildees de esquerda e as accedilotildees em que os ex-presos poliacuteticos

27

estiveram envolvidos antes de suas prisotildees influenciaram diretamente no grau

de violecircncia do cotidiano a que foram submetidos no DOI-CODIRJ

28

Capiacutetulo 1 ndash Os DOI-CODI formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo

Se no teu distrito

Tem farta sessatildeo

De afogamento chicote

Garrote e punccedilatildeo

A lei tem caprichos

O que hoje eacute banal

Um dia vai dar no jornal

Se manchas as praccedilas

Com teus esquadrotildees

Sangrando ativistas

Cambistas turistas peotildees

A lei abre os olhos

A lei tem pudor

E espeta o seu proacuteprio inspetor

Chico Buarque

(Hino da repressatildeo 1985)

29

A partir de 1970 os DOI-CODI (Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildeesndash

Centro de Operaccedilotildees de Defesa Interna) parte integrante do Sistema de Seguranccedila

Interna (SISSEGIN) passariam a ser a principal instituiccedilatildeo na repressatildeo aos opositores

da ditadura militar brasileira Seis desses opositores aprisionados no DOI-CODI do Rio

de Janeiro em meio ao primeiro ano de sua existecircncia tecircm na passagem por esse espaccedilo

prisional um elo fundamental entre suas memoacuterias Como essas memoacuterias satildeo o objeto

de estudo da presente dissertaccedilatildeo para melhor entendecirc-las primeiramente torna-se de

extrema importacircncia lanccedilar um olhar mais apurado sobre como foram construiacutedos e de

que forma atuavam os DOI-CODI Logo a anaacutelise sobre a criaccedilatildeo e o funcionamento

dessa instituiccedilatildeo eacute o objetivo desse primeiro capiacutetulo

Esta anaacutelise se estrutura a partir de trecircs frentes distintas 1) o debate

historiograacutefico 2) a monografia O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI)

do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e

perspectiva escrita em 1978 pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira

3) os depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de

Janeiro concedidos entre os anos de 2002 e 2004

Como dito a primeira frente de estudo analisa a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-

CODI agrave luz da historiografia Autores e conceitos foram selecionados tendo em vista

questotildees significativas para analisar a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI 1) o papel

da ESG para a criaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional 2) os conceitos de legalidade

autoritaacuteria e cizacircnia militar 3) a montagem e o funcionamento do SISSEGIN

Para abordar o papel da ESG na construccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional

parte-se da tese de Maria Helena Moreira Alves (2005) em que a autora defende a ideia

de que a institucionalizaccedilatildeo do Estado de Seguranccedila Nacional no Brasil se fez a partir

do papel determinante da Doutrina de Seguranccedila Nacional (DSN) construiacuteda pela

30

Escola Superior de Guerra (ESG) nos anos 1950 Entende-se que este destacado papel

da ideologia esguiana para a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional da ditadura

militar brasileira teve ligaccedilatildeo direta com a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI Afinal

com a DSN surge o conceito de seguranccedila interna que serve como base para a

montagem do aparelho repressivo ditatorial no qual os DOI-CODI duas deacutecadas

depois seriam inseridos

Os conceitos de legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar satildeo aqui utilizados como

ferramentas elucidativas por auxiliarem na anaacutelise de como durante os primeiros anos

de ditadura militar a imperativa forma de legislar o paiacutes e as crises que por disputas

poliacuteticas ameaccedilaram a unidade institucional militar foram essenciais para a formaccedilatildeo e

atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

Nesse sentido a legalidade autoritaacuteria assim designada por Anthony Pereira

(2010) eacute aqui utilizada para destacar de que forma a preocupaccedilatildeo da ditadura militar

brasileira em respaldar legalmente seus atos ainda que arbitrariamente propiciou um

respaldo legal agrave repressatildeo poliacutetica e por conseguinte aos DOI-CODI Logo este

conceito serve para iluminar o entendimento de que a formaccedilatildeo de um aparato de

seguranccedila interna forte centralizado e violento como os DOI-CODI foi possibilitado

respaldado e sustentado no Brasil por um significativo amparo legal A ditadura militar

atraveacutes dessa preocupaccedilatildeo legal atiacutepica a um regime de cunho totalitaacuterio reiterava sua

imagem de regime democraacutetico de exceccedilatildeo perante a sociedade e ao mesmo tempo

possibilitava a criaccedilatildeo de um dos maiores organismos repressores que uma ditadura da

Ameacuterica Latina jaacute havia criado os DOI-CODI

Outro conceito necessaacuterio para entender a construccedilatildeo do cenaacuterio legal que

propiciaria a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI eacute o de cizacircnia militar elaborado por

Martins Filho em sua tese de doutorado A dinacircmica militar das crises poliacuteticas na

31

ditadura (1964-1969) de 1993 em que o autor destaca os conflitos internos no seio

militar que acabariam resultando em dissidecircncias Ao analisar esses conflitos como fator

decisivo para a compreensatildeo dos rumos da ditadura Martins Filho apresenta uma

abordagem diferente da maioria dos estudiosos sobre o tema Ao inveacutes de partir de uma

suposta dicotomia entre dois grupos estanques divididos rigidamente entre a linha dura

e os castelistas apresenta uma visatildeo mais fluida de grupos militares que oscilavam na

forma de agir o palaacutecio representando os militares de altas patentes ocupantes de

cargos poliacuteticos e a caserna militares de patentes meacutedias que trabalhavam nas

instituiccedilotildees militares Esta abordagem eacute crucial para o presente trabalho uma vez que a

base da formaccedilatildeo e da atuaccedilatildeo dos DOI-CODI estava diretamente relacionada agraves

cizacircnias militares e seus decorrentes acontecimentos poliacuteticos Afinal apesar dos DOI-

CODI serem uma instituiccedilatildeo composta por militares das mais diversas posiccedilotildees

hieraacuterquicas a sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo foram estruturadas a partir principalmente de

reivindicaccedilotildees da caserna que com a implantaccedilatildeo dos DOI-CODI passou a ter poderes

poliacuteticos extraordinaacuterios jaacute que se tornava responsaacutevel pelas accedilotildees de prisotildees

apreensotildees e interrogatoacuterios dos perseguidos poliacuteticos

Finalmente para analisar a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Interna o

SISSEGIN composto entre outros pelos DOI-CODI partimos da anaacutelise feita por

Carlos Fico em sua obra Como eles agiam de 2001 Ao ter acesso a documentos

sigilosos sobre a formaccedilatildeo do SISSEGIN e a regulamentaccedilatildeo operacional dos DOI-

CODI Fico caracteriza de forma ineacutedita na historiografia a formaccedilatildeo e o

funcionamento de ambos os oacutergatildeos sendo portanto um referencial historiograacutefico

indispensaacutevel agrave minha pesquisa

Ainda no que toca agrave formaccedilatildeo do SISSEGIN e dos DOI-CODI tambeacutem eacute de

grande valia a tese exposta por Maria Celina DrsquoArauacutejo em Os anos de Chumbo a

32

memoacuteria militar sobre a repressatildeo (1994) de que assim como em qualquer instituiccedilatildeo

militar era alto o grau de hierarquia e coordenaccedilatildeo presente nos DOI-CODI o que natildeo

impedia no entanto que houvesse brechas para uma perda de controle institucional

Logo uma das peculiaridades da atuaccedilatildeo dos DOI-CODI entendido pela a autora como

uma espeacutecie de sofisticaccedilatildeo da repressatildeo era a convivecircncia da obediecircncia hieraacuterquica

militar com a falta de controle sobre algumas accedilotildees deixando que procedimentos natildeo

regulamentares tais como a tortura pudessem ser efetivados com recorrecircncia

A segunda e a terceira frentes de estudo do presente capiacutetulo analisam as visotildees de

atores que de uma forma ou de outra viveram em algum dos DOI-CODI Portanto

diferentes do debate historiograacutefico que tem particular distanciamento analiacutetico do

objeto e preza por se aproximar da imparcialidade e tambeacutem diferentes entre si essas

fontes satildeo influenciadas por seus atoresnarradores e pelas eacutepocas em que foram

construiacutedas

Na segunda frente pode-se dizer que a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI satildeo

analisadas a partir dos proacuteprios DOI-CODI jaacute que nessa etapa debruccedila-se sobre o

estudo O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do Exeacutercito Brasileiro

Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo de um de seus agentes diretos o coronel de

cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira Conhecido entre os presos poliacuteticos do DOI do Rio

de Janeiro do iniacutecio dos anos 1970 como o torturador de codinome ldquoNagibrdquo coronel

Pereira apresentou a referida monografia agrave Escola de Comando e Estado Maior do

Exeacutercito (ECEME) em 1978 quando os DOI-CODI apesar de atuantes jaacute estavam em

decadecircncia Tratava-se de uma eacutepoca em que o presidente Ernesto Geisel comandava a

abertura poliacutetica ldquolenta gradual e segurardquo do paiacutes e vinha diminuindo o poder delegado

aos DOI-CODI que passavam a ter o seu pessoal reduzido e suas accedilotildees apenas voltadas

agrave espionagem e natildeo mais ao combate direto de opositores poliacuteticos jaacute que devido agraves

33

inuacutemeras denuacutencias sobre violaccedilotildees aos Direitos Humanos no Brasil era forte o

desgaste que a ditadura sofria perante a comunidade internacional Em meio a esse

cenaacuterio o coronel em questatildeo construiu tal monografia motivado a por um lado provar

a importacircncia e a necessidade do trabalho de repressatildeo feito nos DOI-CODI e assim

tentar reverter a reduccedilatildeo de suas atividades e por outro conseguir uma promoccedilatildeo na

carreira militar visto que a ECEME eacute uma escola destinada agrave preparaccedilatildeo de oficiais

superiores para o exerciacutecio de funccedilotildees de Estado-Maior A partir disso essa monografia

apresenta dados representativos do poder coercitivo dos DOI do iniacutecio dos anos 1970

bem como a descriccedilatildeo dos afazeres de cada uma de suas seccedilotildees o que traz uma forte

contribuiccedilatildeo para a anaacutelise aqui traccedilada

Por fim na terceira e uacuteltima frente a anaacutelise da formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-

CODI eacute efetuada por meio de outro tipo de fonte que tem por base a memoacuteria os

depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de Janeiro a

mim fornecidos entre os anos de 2002 e 2004 Como essas entrevistas foram concedidas

durante a passagem dos governos dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso

(1995-2002) e Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva (2003-2010) ex-perseguidos poliacuteticos da

ditadura militar que entre seus feitos agrave frente da poliacutetica brasileira agiram no sentido

de reparar danos sofridos pelos perseguidos poliacuteticos daquele periacuteodo esse presente

nelas imprimiu fortes influecircncias Afinal trata-se de memoacuterias sobre o passado vivido

em uma das instituiccedilotildees de repressatildeo mais violentas da eacutepoca o DOI-CODIRJ

construiacutedas a partir de um presente em que jaacute vigorava a lei nordm 9140 de 1995 que

reconhecia mortos e desaparecidos pela ditadura militar e indenizava suas famiacutelias e

havia sido aprovada a lei nordm 10559 de 2002 que reparava financeiramente aqueles que

tivessem sofrido perseguiccedilatildeo ou maus tratos dentro de instituiccedilotildees do Estado durante o

periacuteodo de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988

34

Percebe-se claramente a ideia de presente do passado de Robert Frank (1999)

como um dos principais aspectos criacuteticos aqui aplicados a essas memoacuterias Afinal o

fato de durante o periacuteodo em que se deram as entrevistas conhecidos opositores agrave

ditadura militar estarem agrave frente do governo brasileiro e grande nuacutemero de ex-

prisioneiros poliacuteticos inclusive os entrevistados buscarem se beneficiar da lei nordm

1055902 faz com que o presente seja aqui considerado o elemento organizador dessas

memoacuterias

Essa perspectiva de presente do passado eacute portanto um dos elementos criacuteticos

aplicados a essas memoacuterias que sobre elas trabalham a fim de aqui tornaacute-las objeto da

histoacuteria Dessa forma percebe-se na presente anaacutelise a perspectiva elucidada por Pierre

Nora (1993) ao diferir o trabalho da memoacuteria do trabalho da histoacuteria Afinal o que os

diferencia satildeo justamente os aspectos fluidos da memoacuteria tais como as emoccedilotildees e as

influecircncias conjunturais a que estaacute a todo tempo submetida que aqui satildeo minimizados

pelos aspectos criacuteticos objetivos e analiacuteticos peculiares agrave histoacuteria

35

1 Debate Historiograacutefico

11 O papel da ESG para o Sistema de Seguranccedila Nacional

O golpe civil-militar ocorrido no Brasil em 31 de marccedilo de 1964 quando o

presidente Joatildeo Goulart foi deposto e se instalou um regime militar no paiacutes teria sido

precedido por uma elaborada desestabilizaccedilatildeo poliacutetica que de acordo com Maria Helena

Moreira Alves (2005) envolveu tanto corporaccedilotildees multinacionais o governo dos

Estados Unidos quanto o capital brasileiro associado-dependente e os militares

brasileiros destacando-se entre esses um grupo de oficiais da Escola Superior de Guerra

(ESG) Essa ldquoconspiraccedilatildeordquo foi efetivada anos antes ainda no iniacutecio dos anos 1950 por

instituiccedilotildees civis como o Instituto Brasileiro de Accedilatildeo Democraacutetica (IBAD) e o Instituto

de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) sob a coordenaccedilatildeo da ESG A Doutrina de

Seguranccedila Nacional e Desenvolvimento (DSN) ministrada pela mesma Escola era a

justificativa ideoloacutegica perfeita para a tomada do poder e para o autoritarismo como

uma forma de governo

Um dos criadores dessa doutrina Golbery do Couto e Silva era desde 1952

adjunto do Departamento de Estudos da ESG estabelecimento subordinado ao Estado

Maior das Forccedilas Armadas (EMFA) criado em 1948 com a assistecircncia de consultores

franceses e norte-americanos a fim de desenvolver e consolidar os conhecimentos

necessaacuterios para o exerciacutecio das funccedilotildees de direccedilatildeo e para o planejamento da Seguranccedila

Nacional Dentro da ESG Golbery encontrou condiccedilotildees favoraacuteveis para impulsionar

teses que defenderiam o ecircxito de um projeto global de desenvolvimento em cujas

tarefas o Estado deveria se associar agrave iniciativa privada atraveacutes do apoio intermediaacuterio

de uma elite tecnocraacutetica civil e militar ideologicamente comprometida com um

conjunto de ldquoobjetivos nacionais permanentesrdquo garantindo assim a Seguranccedila

Nacional Essas teses vieram posteriormente a constituir a base do programa da ESG

36

passando a ser conhecidas pela Doutrina de Seguranccedila Nacional (DSN) A DSN

sustentava ainda em meio agrave Guerra Fria o posicionamento do Brasil ao lado do

Ocidente logo em confronto com o bloco sovieacutetico considerando a preservaccedilatildeo da

seguranccedila o fator fundamental de promoccedilatildeo do desenvolvimento Previa dessa forma a

possiacutevel supressatildeo de alguns valores definidores da ordem democraacutetica devido agrave

necessidade de uma progressiva centralizaccedilatildeo de poderes

Para Moreira Alves o grande feito do ldquocomplexo ESGIPESIBADrdquo foi a criaccedilatildeo

antes do golpe de 1964 de uma rede de informaccedilotildees e de uma Doutrina de Seguranccedila

Nacional e Desenvolvimento ambas coordenadas por Golbery para nortear o que viria

a ser um Estado efetivamente centralizado Essa tese eacute sustentada ao se notar que o

general Castelo Branco como primeiro presidente do Estado ditatorial brasileiro

compocircs seus ministeacuterios quase totalmente com membros e colaboradores do complexo

ESGIPESIBAD A DSN passou entatildeo a ser utilizada para moldar as estruturas de

Estado impor formas especiacuteficas de controle para a sociedade civil e delinear um

projeto de governo para o Brasil Assim com destaque para a seguranccedila interna

ameaccedilada pelo comunismo a Doutrina de Seguranccedila Nacional passou a induzir ao

abuso de poder a prisotildees arbitraacuterias agrave tortura e agrave censura agrave imprensa e agraves artes de

forma geral

Eacute interessante perceber que a formulaccedilatildeo da DSN feita pela ESG em colaboraccedilatildeo

com o IPES e o IBAD ao longo de 25 anos tinha como base uma teoria de guerra que

nortearia a atuaccedilatildeo repressora do governo militar A partir do Manual Baacutesico da Escola

Superior de Guerra e dos escritos de Golbery do Couto e Silva em Conjuntura Poliacutetica

Nacional o poder executivo amp a geopoliacutetica do Brasil Moreira Alves destaca os tipos

de guerra apresentados pela Doutrina guerra total guerra limitada ou localizada

guerra revolucionaacuteria ou insurrecional guerra indireta ou ideoloacutegica

37

De acordo com estes paracircmetros a teoria da guerra total baseava-se na estrateacutegia

militar da Guerra Fria deixando de ser estritamente militar para ser tambeacutem econocircmica

financeira poliacutetica psicoloacutegica e cientiacutefica atingindo o mundo de forma global Logo

como as potecircncias envolvidas natildeo podiam travar uma guerra ativa pois existia a

possibilidade de uma destruiccedilatildeo completa e universal a guerra total passou a assumir

diversas formas Ela se destrinchava em guerras limitadas ou localizadas pelas quais as

duas superpotecircncias mediam suas respectivas capacidades de controlar territoacuterios Aleacutem

disso havia as guerras declaradas consideradas claacutessicas e as natildeo-declaradas que

correspondiam agraves formas de guerra revolucionaacuteria ou insurrecional

Essas guerras natildeo-declaradas ou natildeo-claacutessicas representavam uma guerra de

agressatildeo indireta A insurrecional eacute caracterizada como um conflito interno em que

parte da populaccedilatildeo armada busca a deposiccedilatildeo do governo Jaacute a guerra revolucionaacuteria

natildeo envolve necessariamente o emprego da forccedila armada mas significa um conflito

normalmente interno estimulado ou auxiliado do exterior inspirado normalmente em

uma ideologia e que visa agrave conquista do poder pelo controle progressivo da naccedilatildeo A

guerra revolucionaacuteria se referia portanto agrave infiltraccedilatildeo comunista internacional

associada ao bloco sovieacutetico Neste tipo de guerra a guerra ideoloacutegica substituiacutea a

convencional entendida como o enfrentamento direto entre Estados em suas fronteiras

geograacuteficas A caracteriacutestica principal da guerra revolucionaacuteria de acordo com o

Manual Baacutesico da ESG era o envolvimento da populaccedilatildeo do paiacutes-alvo por meio da

conquista ideoloacutegica

[] abrangendo desde a exploraccedilatildeo dos descontentamentos existentes com o

acirramento de acircnimos contra as autoridades constituiacutedas ateacute a organizaccedilatildeo

de zonas dominadas com o recurso agrave guerrilha ao terrorismo e outras taacuteticas

irregulares onde o proacuteprio nacional do paiacutes-alvo eacute utilizado como

combatente (Alves 2005 45)

38

Como a guerra revolucionaacuteria recrutava seus combatentes secretamente toda a

populaccedilatildeo tornava-se suspeita e portanto deveria ser cuidadosamente controlada para

que os ditos ldquoinimigos internosrdquo pudessem ser neutralizados A partir desse

entendimento de guerra revolucionaacuteria que segundo a ESG assombrava o paiacutes cria-se a

necessidade de um planejamento de Seguranccedila Nacional adaptado a essa conjuntura e

por conseguinte de um eficiente e centralizado aparato de informaccedilotildees internas

A partir disso a Constituiccedilatildeo de 1967 criou o Conselho de Seguranccedila Nacional

oacutergatildeo da Presidecircncia da Repuacuteblica responsaacutevel por supervisionar a defesa da seguranccedila

interna e principalmente modificou o significado de Seguranccedila Nacional que desde a

Constituiccedilatildeo de 1946 era associado agrave agressatildeo externa ou seja agrave defesa das fronteiras

territoriais A ameaccedila agrave Seguranccedila Nacional passava entatildeo a ser oficialmente definida

mais como uma ameaccedila agraves fronteiras ideoloacutegicas do que agraves territoriais Portanto ao criar

o Conselho de Seguranccedila Nacional e mudar o entendimento sobre a Seguranccedila

Nacional a Constituiccedilatildeo de 1967 abria o caminho necessaacuterio agrave adaptaccedilatildeo agrave teoria de

seguranccedila interna estipulada anos antes pela ESG

Esta teoria de seguranccedila interna dotou entatildeo o Estado de justificativa para

controlar e reprimir a populaccedilatildeo em geral O caraacuteter oculto da ameaccedila interna tornou

praticamente impossiacutevel se estabelecer limites para as accedilotildees repressivas do Estado e dos

militares e por isso mesmo fragilizou a defesa dos direitos humanos no paiacutes Afinal

todo cidadatildeo passava a ser culpado ateacute que fosse provada a sua inocecircncia Por meio

desse pensamento a raiz dos abusos de poder perpetrados pelo Estado se estruturou Por

isso defende-se aqui que a institucionalizaccedilatildeo dessa crenccedila no inimigo interno criada

pela ESG antes mesmo do golpe civil-militar estimulou a ditadura a nortear o

desenvolvimento das suas estruturas defensivas da sua articulada rede de informaccedilotildees

poliacuteticas e ainda do seu aparato repressivo de controle armado onde os DOI-CODI a

39

partir de 1970 tambeacutem estariam inseridos

12 Os conceitos legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar

Essa crenccedila no inimigo interno criada pela ESG norteou a Seguranccedila Nacional

durante a ditadura militar que se substanciou atraveacutes da alta legalidade autoritaacuteria e

das medidas criadas pelo governo como forma de conter as cizacircnias militares Esses trecircs

fatores juntos contribuiacuteram para consolidaccedilatildeo dos DOI-CODI por todo paiacutes

respaldando a atuaccedilatildeo altamente autoritaacuteria e violenta desses oacutergatildeos

A partir disso o conceito de legalidade autoritaacuteria construiacutedo pelo cientista

poliacutetico norte-americano Anthony Pereira (2010) ajuda a evidenciar como a existecircncia

de laccedilos entre o autoritarismo e o estado de direito do regime militar no Brasil ajudou na

configuraccedilatildeo de uma instituiccedilatildeo como o DOI-CODI Afinal a legalidade autoritaacuteria

identifica as coexistecircncias entre o autoritarismo ditatorial e a continuidade das

instituiccedilotildees juriacutedicas anteriores ao Golpe bem como entre o autoritarismo ditatorial e a

praacutetica de elaboraccedilatildeo de leis ainda que tambeacutem autoritaacuterias

Percebe-se assim que o Brasil obteve um alto grau de legalidade autoritaacuteria na

medida em que a legislaccedilatildeo foi amplamente arbitrada pelo Poder Executivo como forma

de legalizar arbitrariedades poliacuteticas e suprimir direitos da populaccedilatildeo Assim foi

construiacuteda uma sustentaccedilatildeo juriacutedica e poliacutetica necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um aparato de

seguranccedila cada vez mais forte e centralizado que garantiu a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos

DOI-CODI

Afinal a legalidade autoritaacuteria vivenciada no Brasil se baseava na confecccedilatildeo pelo

Poder Executivo de leis publicadas em meios de comunicaccedilatildeo oficiais a fim de

respaldar arbitrariedades A partir dessas leis instrumento associado ao sistema

democraacutetico o governo militar centralizava e reforccedilava o seu poder ditatorial tornando

40

nebuloso o sistema em vigor naquele momento no Brasil Ou seja apesar da existecircncia

de uma ditadura militar consolidada havia integraccedilatildeo entre as Forccedilas Armadas e o

Poder Judiciaacuterio ndash que norteava os seus julgamentos pelas novas leis arbitraacuterias

legitimando-as ndash bem como a manutenccedilatildeo do Congresso em funcionamento na maior

parte do tempo Dessa forma a legalidade autoritaacuteria era um elo entre o autoritarismo

ditatorial e o estado de direito conseguindo fazer parecer por algum tempo que o paiacutes

vivenciava um sistema democraacutetico excepcional A praacutetica da legalidade autoritaacuteria na

forma de atos institucionais da Constituiccedilatildeo de 1967 e de leis de Seguranccedila Nacional

por exemplo forneceu os suportes legais necessaacuterios agrave construccedilatildeo do SISSEGIN e agrave

formaccedilatildeo e agrave atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

Aleacutem disso essa praxe da ditadura de agir por meio de leis arbitraacuterias na maior

parte das vezes se relaciona com as cizacircnias militares provocadas no seio dessa

instituiccedilatildeo como reflexos de acontecimentos poliacuteticos Afinal grande parte das leis

autoritaacuterias foram artifiacutecios usados como forma de acalmar os acircnimos na caserna

formada por militares de meacutedias e baixas patentes que reivindicavam mais poder

poliacutetico Assim para conter a oposiccedilatildeo poliacutetica e tambeacutem as reivindicaccedilotildees de poder da

caserna desenharam-se leis arbitraacuterias capazes de suportar um organismo de repressatildeo

onde esses militares trabalhariam com certa autonomia tal como viriam a ser os DOI-

CODI Logo percebe-se aqui que juntamente com a legalidade autoritaacuteria a leitura

dos encaminhamentos poliacutetico-militares feita por Joatildeo Roberto Martins Filho (1993)

sob a luz de conceitos como o de cizacircnias militares baseadas em dissidecircncias militares

internas entre o palaacutecio e a caserna tambeacutem ilumina o entendimento sobre a formaccedilatildeo

e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

Tais encaminhamentos poliacuteticos militares tecircm iniacutecio no dia 9 de abril dez dias

apoacutes o golpe civil-militar de 1964 e ainda antes da posse de Castelo Branco em 15 de

41

abril quando o Comando Supremo da Revoluccedilatildeo baixou um ato institucional

posteriormente conhecido como AI-1 que conferia aos militares o poder de puniccedilatildeo a

crimes de cidadatildeos contra o Estado seu patrimocircnio e contra a ordem poliacutetica e social

No entanto o AI-1 previa tambeacutem a possibilidade de passar este poder para as matildeos do

novo presidente da Repuacuteblica dois meses apoacutes a sua posse colocando oficialmente o

Poder Executivo acima dos demais Assim Costa e Silva integrante do Comando e

futuro ministro da Guerra fez expedir um pouco antes da posse de Castelo Branco em

complemento ao AI-1 o Ato do Comando Supremo da Revoluccedilatildeo nordm 9 e a Portaria nordm1

que davam continuidade ao poder de puniccedilatildeo dos militares mesmo depois da posse de

Castelo Branco Com isso foram criadas as condiccedilotildees para que coroneacuteis tenentes-

coroneacuteis majores e capitatildees6 continuassem agindo na caccedila ao ldquoinimigo internordquo

O Ato do Comando Supremo da Revoluccedilatildeo nordm 9 estabelecia que os militares

encarregados de inqueacuteritos e processos (de suspensotildees de direitos poliacuteticos cassaccedilotildees

de mandatos etc) poderiam delegar atribuiccedilotildees referentes a investigaccedilotildees bem como

requisitar inqueacuteritos ou sindicacircncias instituiacutedas por outras esferas Jaacute a Portaria nordm1

determinava a abertura de Inqueacuterito Policial Militar (IPM) para apuraccedilatildeo de crimes

praticados contra o Estado e a ordem poliacutetica social

No entanto no dia 15 de junho de 1964 juntamente com o teacutermino da validade do

AI-1 acabaria tambeacutem o prazo dos militares cassarem mandatos e suspenderem direitos

poliacuteticos Tais militares requisitaram que o poder a eles concedido natildeo fosse cessado o

que foi negado pelo entatildeo presidente Castelo A partir disso a insatisfaccedilatildeo desses

militares acabou por causar o surgimento de uma primeira e consideraacutevel discoacuterdia

interna agrave instituiccedilatildeo militar uma primeira cizacircnia militar A partir dessa situaccedilatildeo de

conflito surge entatildeo a chamada linha dura que se formou atraveacutes do eco que um

6 Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II

42

conjunto de pressotildees da jovem oficialidade nessa fase inicial da ditadura encontrou em

meio a alguns ldquoherdeiros civisrdquo do regime e em setores da hierarquia militar Dessa

forma a linha dura foi formada por grupos heterogecircneos de composiccedilatildeo variaacutevel e

ideologia difusa

Logo assim como Martins Filho e diferentemente da interpretaccedilatildeo de grande

parte dos historiadores acredita-se que mesmo em termos ideoloacutegicos a linha dura

estava longe de ser um grupo homogecircneo tendo por denominador comum apenas duas

caracteriacutesticas

Em primeiro lugar as reivindicaccedilotildees de maior rigor na ldquodepuraccedilatildeordquo do

sistema poliacutetico em segundo lugar as expectativas de influenciar

diretamente o processo de tomadas de decisotildees do governo militar Tanto em

um como em outro aspecto suas accedilotildees provocariam problemas para o

governo de Castelo Branco (Martins Filho 1993 61)

Portanto o governo Castelo Branco logo teve que se deparar com a questatildeo da

participaccedilatildeo poliacutetica do conjunto da categoria militar no regime ditatorial Sem atribuir

ao presidente uma visatildeo mais liberal ndash diferentemente daqueles que interpretam as

medidas mais ldquodurasrdquo de Castelo como resultado das pressotildees da linha dura ndash pondera-

se aqui que por parte do governo o redirecionamento de objetivos iniciais era

recorrente sempre que a situaccedilatildeo exigia uma reavaliaccedilatildeo Dessa forma percebe-se que

os rumos poliacuteticos escolhidos pela ditadura tinham como finalidade a preservaccedilatildeo da

hierarquia e da aparente homogeneidade da instituiccedilatildeo castrense o que demandava a

contenccedilatildeo das instabilidades internas

A partir dessa perspectiva destaca-se o caraacuteter flutuante dos conflitos internos ao

regime decorrentes da incompatibilidade de interesses poliacuteticos entre os militares de

altas patentes que possuiacuteam cargos no governo ditatorial representados

43

metaforicamente pelo palaacutecio e militares de meacutedias e baixas patentes que eram

responsaacuteveis por serviccedilos internos a caserna Nesse sentido evidencia-se por exemplo

que apoacutes ser retirado da caserna o poder de cassaccedilatildeo de mandatos e de suspensatildeo de

direitos poliacuteticos as derrotas dos candidatos aliados ao regime ditatorial nas eleiccedilotildees

para governador nos estados da Guanabara e de Minas Gerais em outubro de 1965

ocasionou uma forte divergecircncia entre o palaacutecio e a caserna resultando uma

instabilidade castrense que desembocou em mais uma cizacircnia militar Diante disso na

tentativa de apaziguar a instabilidade militar e por conseguinte os acircnimos da caserna

no fim desse mesmo mecircs Castelo Branco decretaria o AI-27 com vigecircncia prevista ateacute

15 de marccedilo de 1967

Afinal atraveacutes desse Ato a caserna aleacutem de passar a influir no acircmbito da poliacutetica

comeccedilava a ganhar poderes extras Nele se estabelecia a possibilidade de suspensatildeo de

direitos poliacuteticos e de cassaccedilatildeo de mandatos de parlamentares imposiccedilatildeo da eleiccedilatildeo

indireta para a Presidecircncia da Repuacuteblica permissatildeo para o presidente da Repuacuteblica

decretar o recesso do Congresso Nacional e das demais casas legislativas extinccedilatildeo de

partidos poliacuteticos delegaccedilatildeo ao presidente da Repuacuteblica do poder de legislar por

decretos-leis estabelecimento de foro especial militar para civis acusados de crimes

contra a Seguranccedila Nacional ou as instituiccedilotildees militares suspensatildeo das garantias de

vitaliciedade inamovibilidade (dos juiacutezes) e de estabilidade (dos servidores puacuteblicos)

ampliaccedilatildeo de 11 para 16 ministros do Supremo Tribunal Federal (Ato Institucional Nordm2

27 out 1965)

Com a cassaccedilatildeo de mandatos suspensatildeo de direitos poliacuteticos e demissatildeo de

funcionaacuterios puacuteblicos a caserna conseguia alguma interferecircncia nos assuntos poliacuteticos

e com a decretaccedilatildeo de foro militar especial para civis acusados de crimes contra a

7 Para mais informaccedilotildees sobre o AI-2 ver BRASIL Ato Institucional Nordm2 de 27 de outubro de 1965

44

Seguranccedila Nacional ou instituiccedilotildees militares comeccedilava a ganhar um espaccedilo proacuteprio e

aos poucos formar um grupo disposto a agir por sua conta sem maiores consideraccedilotildees

pelas normas legais tendendo a fazer valer suas ideias pela forccedila A futura comunidade

de seguranccedila comeccedilava entatildeo a ser desenhada e a formar o caraacuteter e a atuaccedilatildeo dos

futuros membros de seus oacutergatildeos A montagem do sistema de seguranccedila interna em que

os DOI-CODI seriam inseridos iria a partir das primeiras leis das desavenccedilas internas

e da deflagraccedilatildeo dos primeiros Atos Institucionais se tornando viaacutevel

Entretanto mesmo apoacutes o AI-2 a crise no regime castrense continuava A

caserna ansiosa por mais espaccedilo poliacutetico comeccedilava a se organizar para a ascensatildeo de

outra forccedila ao governo se articulando em torno do entatildeo ministro da Guerra o general

Costa e Silva A desuniatildeo hieraacuterquica provocada pela disputa sucessoacuteria se configurava

naquele momento como um importante fator da crise do regime militar Em meio a este

clima de tensatildeo Castelo Branco e seus partidaacuterios os ditos castelistas se preocupavam

com a ldquoinstitucionalizaccedilatildeo da revoluccedilatildeordquo Diante dessa configuraccedilatildeo a ldquorevoluccedilatildeo

castelistardquo de fato acabou sendo implantada pelo presidente e os pilares de seu

processo foram a Lei de Seguranccedila Nacional e a Constituiccedilatildeo de 1967

A Carta de 1967 incorporou boa parte das medidas autoritaacuterias estabelecidas pelos

atos institucionais Entre essas as que instituiacuteam que toda pessoa natural ou juriacutedica

seria responsaacutevel pela Seguranccedila Nacional nos limites definidos em lei e que o foro

militar previsto no AI-2 por limitado periacuteodo de tempo ficaria definitivamente

estendido aos civis por tempo indeterminado nos casos de crimes contra a Seguranccedila

Nacional Jaacute a Lei de Seguranccedila Nacional reflexo tambeacutem do caraacuteter ldquodurordquo do final do

governo Castelo transformava em legislaccedilatildeo a Doutrina de Seguranccedila Nacional da

ESG legalizando a concepccedilatildeo de ldquoguerra internardquo e de ldquosubversatildeordquo dois dias antes da

chegada de Costa e Silva ao poder presidencial Essas uacuteltimas medidas do governo de

45

Castelo merecem aqui destaque por significarem um impulso agrave criaccedilatildeo de um setor

voltado para a repressatildeo poliacutetica seara em que os DOI-CODI atuariam anos agrave frente

Assim em meio a um clima anti-castelista em 15 de marccedilo de 1967 Costa e

Silva assume o governo militar prometendo inclusive uma maior humanizaccedilatildeo da

poliacutetica Entretanto com a eclosatildeo de protestos de rua contra a violecircncia ditatorial o

novo presidente logo retomaria o aspecto ldquorevolucionaacuteriordquo do regime militar e

decretaria o Ato Institucional Nordm5 (AI-5) 8

Afinal a partir dos discursos do deputado

Maacutercio Moreira Alves evocando os brasileiros a natildeo comparecerem ao tradicional

desfile do dia sete de setembro daquele ano de 1968 Costa e Silva e o palaacutecio passaram

a ser extremamente pressionados pela caserna a reagir A recusa da Cacircmara dos

Deputados em abrir um processo para cassaccedilatildeo do entatildeo deputado foi a justificativa

necessaacuteria para que o presidente convocasse a cuacutepula do aparelho militar e os juristas

palacianos para darem forma ao AI-5 vindo a decretaacute-lo na noite do dia 13 de dezembro

de 1968

Percebe-se que a conjuntura de 1968 iniciado com os protestos estudantis de

massa tornou pela primeira vez desde o golpe de 1964 momentaneamente unificado o

movimento de repuacutedio de expressivos setores sociais ao avanccedilo da repressatildeo militar

Este fato que a princiacutepio pode fazer crer ter estimulado uma desuniatildeo militar parece

ter sido um fator adicional de uniatildeo das Forccedilas Armadas As tensotildees internas agrave

instituiccedilatildeo portanto foram neste momento colocadas em suspenso e a situaccedilatildeo militar

diante da ofensiva da oposiccedilatildeo teria criado uma espeacutecie de unidade de crise Poreacutem

esta unidade de crise das Forccedilas Armadas rapidamente se fragmentou trazendo agrave tona

novamente em meados de 1968 um variado e complexo conjunto de tensotildees no campo

militar Esta unidade no entanto voltaria a existir em torno da decretaccedilatildeo do AI-5 apoacutes

8 Para mais informaccedilotildees sobre o AI-5 ver BRASIL Ato Institucional Nordm5 de 13 de dezembro de 1968

46

a derrota na votaccedilatildeo no Congresso e quando as pressotildees da caserna em prol da

militarizaccedilatildeo do governo se voltaram para o palaacutecio

Nesse momento os generais do governo se sentiram muito mais ameaccedilados do

que na jaacute mencionada instabilidade gerada pelas derrotas nas eleiccedilotildees para governador

de 1965 O fato da oficialidade rebelde de entatildeo natildeo ter um porta-voz em postos de

comando como era na eacutepoca Costa e Silva e por isso parecer mais difusa a tornava

mais ameaccediladora agrave integridade da instituiccedilatildeo militar Assim a explicaccedilatildeo para

juntamente com a caserna os generais cobrarem do Ministro do Exeacutercito uma imediata

tomada de decisatildeo em favor da ldquoRevoluccedilatildeordquo estava portanto na busca pela

permanecircncia de uma unidade das Forccedilas Armadas Dessa forma momentos antes do AI-

5 a unidade da crise novamente se formou soacute que dessa vez por motivos inerentes

unicamente agrave proacutepria instituiccedilatildeo militar (Martins Filho 1993 158-174)

O AI-5 foi ateacute entatildeo a maior expressatildeo legal do autoritarismo da ditadura militar

e construiu uma base essencial para que em 1970 surgissem os DOI-CODI Afinal

aleacutem de natildeo estabelecer um prazo final para sua vigecircncia inovando em relaccedilatildeo aos

demais Atos Institucionais o AI-5 tornou legal a suspensatildeo da garantia de ldquohabeas

corpusrdquo nos casos de crimes poliacuteticos contra a Seguranccedila Nacional Logo a partir

desse Ato foram estabelecidas as condiccedilotildees necessaacuterias para a institucionalizaccedilatildeo dos

sistemas de seguranccedila e de informaccedilotildees bem como o surgimento da Comissatildeo Geral de

Investigaccedilotildees (CGI) na tentativa de combate agrave corrupccedilatildeo O sistema de seguranccedila

esboccedilado naquele momento buscava o aperfeiccediloamento sob a eacutegide da ldquoguerra

revolucionaacuteriardquo mencionada no preacircmbulo do proacuteprio AI-5

Considerando que assim se torna imperiosa a adoccedilatildeo de medidas que

impeccedilam que sejam frustrados os ideais superiores da Revoluccedilatildeo

preservando a ordem a seguranccedila a tranquilidade o desenvolvimento

econocircmico e cultural e a harmonia poliacutetica e social do Paiacutes comprometidos

47

por processos subversivos e de guerra revolucionaacuteria (Ato Institucional nordm

5 13 dez 1968)

Logo as cizacircnias militares e a legislaccedilatildeo a elas relacionada contribuiacuteram para a

formaccedilatildeo do cenaacuterio propiacutecio agrave institucionalizaccedilatildeo do aparato de repressatildeo Aparato este

que a partir do AI-5 foi se estruturando em trecircs grandes sistemas o SISNI Sistema

Nacional de Informaccedilotildees a CGI Comissatildeo Geral de Investigaccedilotildees e o SISSEGIN

Sistema de Seguranccedila Interna Este ao ser criado abriria espaccedilo para a repressatildeo

poliacutetica centralizada e institucionalizada dos DOI-CODI

13 A montagem e o funcionamento do SISSEGIN

Ao longo dos anos 70 os DOI-CODI passariam a ser os principais oacutergatildeos de

atuaccedilatildeo do SISSEGIN e um dos pontos centrais do aparelho de repressatildeo brasileiro Ao

seu lado em outras esferas de competecircncia estavam os oacutergatildeos do Sistema Nacional de

Informaccedilotildees (SISNI) e os da Comissatildeo Geral de Investigaccedilatildeo (CGI) Cada um desses

sistemas possuiacutea uma competecircncia especiacutefica o SISNI era responsaacutevel por buscar as

informaccedilotildees necessaacuterias agrave manutenccedilatildeo do regime de Seguranccedila Nacional procurando

desvendar quem eram os opositores ao governo os chamados ldquoinimigos internosrdquo

enquanto a CGI buscava o combate agrave corrupccedilatildeo no serviccedilo puacuteblico Jaacute o SISSEGIN

operava de forma centralizada tanto na investigaccedilatildeo quanto na apreensatildeo dos mesmos

ldquoinimigos internosrdquo

Para a anaacutelise do SISSEGIN vale-se aqui do trabalho de Carlos Fico Como eles

agiam (2001) feito com base no acervo da extinta Divisatildeo de Seguranccedila e Informaccedilotildees

do Ministeacuterio da Justiccedila inclusive nos documentos sigilosos Afinal nesse estudo Fico

revela em detalhes o que nenhum outro historiador havia conseguido ateacute entatildeo a

48

formaccedilatildeo e o funcionamento das comunidades de informaccedilotildees e de seguranccedila da

ditadura militar brasileira

A partir disso destaca-se aqui que a estrutura e o funcionamento do SISSEGIN

foram instituiacutedos e regulamentados por meio de decretos sigilosos O mesmo padratildeo de

regulamentaccedilatildeo foi seguido pela Operaccedilatildeo Bandeirantes (Oban) instituiccedilatildeo informal

criada em Satildeo Paulo em julho de 1969 bem como pelos DOI-CODI instituiacutedos no

primeiro semestre de 1970 formalizando a experiecircncia da Oban e espalhando-a por

todas as Regiotildees Militares do Brasil Jaacute que eacute atraveacutes dessas Regiotildees que o Exeacutercito

divide geograficamente sua administraccedilatildeo sobre o territoacuterio brasileiro foi tambeacutem por

meio delas que partiu durante parte da ditadura militar as responsabilidades territoriais

dos DOI-CODI Logo o DOI-CODI do Rio de Janeiro ficava responsaacutevel pelos crimes

poliacuteticos ocorridos na Primeira Regiatildeo ou seja nos estados do Rio de Janeiro e do

Espiacuterito Santo

A justificativa para esse sigilo dos atos que regiam o SISSEGIN e os DOI-CODI

estava na maior mobilidade e autonomia de accedilatildeo que o segredo traria para a atuaccedilatildeo

repressora desses organismos Dessa forma a repressatildeo podia agir sem grandes

limitaccedilotildees natildeo esbarrando em questotildees externas agraves decisotildees militares tais como os

Direitos Humanos Universais de 1948

No entanto eacute tambeacutem evidente a importacircncia que alguns atos legais natildeo-sigilosos

tiveram para a construccedilatildeo do cenaacuterio que sustentaria a atuaccedilatildeo do SISSEGIN e dos

DOI-CODI Eacute o caso por exemplo da adoccedilatildeo do foro especial para crimes poliacuteticos

que a partir do AI-2 e da subsequente incorporaccedilatildeo dessa medida pela Constituiccedilatildeo de

1967 passaram a ser julgados pelos tribunais militares e a suspensatildeo de garantias

individuais tal como o habeas corpus feita pelo AI-5 de dezembro de 1968 Afinal

natildeo seria eficaz para a atuaccedilatildeo desses oacutergatildeos repressores que seus prisioneiros poliacuteticos

49

atraveacutes do habeas corpus pudessem ser imediatamente soltos pela Justiccedila ou que

pudessem ser julgados por tribunais civis correndo o risco do juiz responsaacutevel pela

causa natildeo estar totalmente articulado aos princiacutepios impostos pela Doutrina de

Seguranccedila Nacional

Dessa forma ateacute o AI-5 foram levantadas as bases legais para que um Sistema de

Seguranccedila Nacional centralizado combativo e violento fosse institucionalizado Por

outro lado a partir do AI-5 para ter a autonomia e a mobilidade que se julgavam

necessaacuterias a organizaccedilatildeo desse Sistema de Seguranccedila Nacional foi sigilosa Ou seja a

reestruturaccedilatildeo do sistema repressivo com os seus novos oacutergatildeos e o detalhamento de

suas funccedilotildees internas natildeo foi publicada oficialmente por nenhum tipo de legislaccedilatildeo A

operacionalidade da seguranccedila interna foi regida por diretrizes secretas e o SISSEGIN

instituiacutedo por decretos sigilosos do Conselho de Seguranccedila Nacional (CSN) aprovados

pelo Presidente da Repuacuteblica

Por isso mesmo uma das primeiras medidas para o estabelecimento do SISSEGIN

e posteriormente dos DOI-CODI foi o fortalecimento do Conselho de Seguranccedila

Nacional cujas competecircncias foram ampliadas por atualizaccedilatildeo na legislaccedilatildeo operada

em janeiro de 1968 No ano seguinte em julho a Diretriz para a Poliacutetica de Seguranccedila

Interna foi instituiacuteda secretamente a fim de consolidar o SISSEGIN e adotar

nacionalmente o padratildeo da Oban (Operaccedilatildeo Bandeirante) No entanto somente em

1970 durante a vigecircncia do governo Meacutedici o modelo da Oban foi adaptado

transformado em DOI-CODI e de fato instituiacutedo por todas as Regiotildees Militares do

paiacutes

A Oban foi secretamente instituiacuteda em 1ordm de julho de 1969 no quartel do II

Exeacutercito em Satildeo Paulo No intuito de combater de forma mais organizada e eficaz a

esquerda armada a Oban usava de sua ldquoilegalidade oficialrdquo para agir contra os

50

ldquoinimigos internosrdquo sem precisar adequar seus meacutetodos de trabalho aos Direitos

Humanos A Oban criava uma estrutura nova que coordenava e integrava os diversos

oacutergatildeos de repressatildeo poliacutetica ndash entre eles as 2ordf seccedilotildees da Poliacutecia Militar Exeacutercito e

Marinha de Satildeo Paulo responsaacuteveis pelas investigaccedilotildees de crimes poliacuteticos nessas

instituiccedilotildees ndash que operavam de forma desordenada e ineficaz contra a esquerda armada

em aparente ascensatildeo O funcionamento da Oban se dava por meio de um trabalho

coordenado de diversas instacircncias conforme apresenta Fico no seguinte trecho

O funcionamento da Oban supunha um trabalho coordenado de diversas

instacircncias Toda quarta-feira era feita uma reuniatildeo no quartel-general do II

Exeacutercito na qual eram discutidas e avaliadas as accedilotildees da guerrilha da

semana Participavam dessas reuniotildees o chefe da 2ordf Seccedilatildeo do II Exeacutercito o

comandante da Oban major Waldyr Coelho um representante da 2ordf Seccedilatildeo

do II Exeacutercito o oficial chefe da 2ordf Seccedilatildeo do Distrito Naval o chefe da 2ordf

Seccedilatildeo da Poliacutecia Militar do Estado de Satildeo Paulo um representante da Poliacutecia

Federal um representante da Divisatildeo da Ordem Social e outro da Ordem

Poliacutetica ambos do DOPS (Fico 2001 117)

Aleacutem dos meios militar e policial a Oban tambeacutem era sustentada pelo

empresarial financeiro e parte das autoridades civis paulistas da eacutepoca conforme indica

trecho do artigo da historiadora Mariana Joffily para a revista Caros Amigos

O ato que celebrou a criaccedilatildeo da Oban foi organizado com pompa coqueteacuteis

e salgadinhos e contou com a presenccedila das principais autoridades poliacuteticas

de Satildeo Paulo o governador Roberto de Abreu Sodreacute o prefeito Paulo Maluf

o comandante do II Exeacutercito (atual Regional Sudeste) general Joseacute

Canavarro Pereira entre outros Tambeacutem acorreram agrave cerimocircnia figuras

proeminentes da elite paulista oriundas dos meios empresarial e financeiro

Luiz Macedo Quentel Antonio Delfim Netto Gastatildeo Vidigal Paulo Sawaya

e Henning Albert Boilesen Parte do setor empresarial paulista e das

multinacionais ndash com representaccedilatildeo em Satildeo Paulo ndash acreditava que as accedilotildees

guerrilheiras colocavam em risco a boa conduta dos negoacutecios e concorreu

51

para o apoio financeiro e material As autoridades da cidade colaboraram

com infra-estrutura incluindo a cessatildeo de partes das dependecircncias da 36ordf

delegacia de poliacutecia situada na Rua Tutoacuteia (Vila Mariana) para a

acomodaccedilatildeo do novo oacutergatildeo repressivo (Joffily 14 set 2009)

Percebe-se portanto que muitos empresaacuterios de Satildeo Paulo ajudaram a financiar a

Oban Entre outros gastos esse financiamento era destinado agrave capacitaccedilatildeo de seus

agentes e agrave compra de equipamentos de tortura novos entre eles uma maacutequina de

choques eleacutetricos nomeada de ldquoPianola Boilesenrdquo em homenagem a Henning Albert

Boilesen entatildeo presidente da empresa Ultragaacutes e um dos empresaacuterios agrave frente desse tipo

de investimento na Oban Boilesen assim como os demais empresaacuterios envolvidos

financeiramente com a Oban por desacreditar nas instituiccedilotildees do Estado que ateacute entatildeo

eram responsaacuteveis pelo combate agrave esquerda armada e por ter interesses reais nesse

combate optou por capitalizar a Oban Afinal uma instituiccedilatildeo extra-oficial de accedilatildeo

coordenada e com grande investimento teria autonomia e capacidade para neutralizar os

grupos da esquerda armada que vinham causando prejuiacutezos a seus negoacutecios tais como

assaltos e atentados Justamente devido a essa relaccedilatildeo que tinha com a Oban Boilesen

foi assassinado posteriormente em 1971 por militantes da esquerda armada 9

Percebe-se portanto que a Oban tinha caraacuteter paramilitar e unia a iniciativa

privada ao Estado a fim de que o poder de poliacutecia deste fosse fortalecido Sua criaccedilatildeo

empregou portanto um novo tipo de atuaccedilatildeo militar em que o combate ao ldquoinimigo

internordquo contaria com uma forte autonomia de accedilatildeo respaldada pelo sigilo dos decretos

regulamentares e pelo financiamento do empresariado A Oban se consagrava como um

poderoso e promissor modelo de repressatildeo

No entanto o envolvimento de oficiais das Forccedilas Armadas policiais e

empresaacuterios com a repressatildeo poderia assumir proporccedilotildees que fugissem ao controle

9 Para mais informaccedilotildees sobre Henning Albert Boilesen e a relaccedilatildeo do empresariado com a Oban ver o

filme documentaacuterio Cidadatildeo Boilesen (Brasil 2009)

52

militar e configurassem algumas vezes conflitos de interesses Assim com o sucesso

das accedilotildees da Oban no combate aos opositores armados os militares optaram por

ampliar o seu modelo para todo o Brasil desde que incorporasse algumas reformulaccedilotildees

que assegurassem o total controle militar Surgiriam entatildeo os DOI-CODI

Os DOI-CODI eram portanto a institucionalizaccedilatildeo e a sofisticaccedilatildeo do modelo da

Oban Afinal eles coordenavam todas as demais Forccedilas e Poliacutecias sob o comando do

Exeacutercito e estavam espalhados por todas as Regiotildees Militares do paiacutes Eram a nova

estrutura do SISSEGIN implantada por diretrizes secretas que o Conselho de Seguranccedila

Nacional havia formulado Tais diretrizes estabeleceram que para cada um dos

comandos militares haveria um Conselho de Defesa Interna (CONDI) um Centro de

Operaccedilotildees de Defesa Interna (CODI) e um Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees

(DOI) todos sob responsabilidade do comandante do Exeacutercito respectivo denominado

comandante da ldquoZona de Defesa Internardquo (ZDI) O paiacutes ficou assim dividido em seis

ZDI Podiam ser criadas ainda Aacutereas de Defesa Interna (ADI) ou Sub-Aacutereas de Defesa

Interna (SADI) em regiotildees que merecessem cuidados especiais

Aos Conselhos de Defesa Interna (CONDI) cabia assessorar os comandantes das

ZDI e tambeacutem facilitar a esses comandantes a coordenaccedilatildeo de accedilotildees e a necessaacuteria

cooperaccedilatildeo por parte das mais altas autoridades civis e militares com sede nas

respectivas aacutereas de responsabilidade Logo os CONDI podiam ser integrados por

governadores ou seus representantes assim como comandantes das Forccedilas Navais e

Aeacutereas comandantes subordinados secretaacuterios de seguranccedila e comandantes das demais

Poliacutecias ou outras autoridades conforme o comandante da respectiva ZDI julgasse

necessaacuterio Tinham como aacuterea de jurisdiccedilatildeo territorial as Regiotildees Militares cujas sedes

se localizam em Satildeo Paulo Rio de Janeiro (1ordm BPE) Brasiacutelia Minas Gerais Rio Grande

do Sul Bahia Pernambuco e Cearaacute No entanto segundo Fico os CONDI natildeo tiveram

53

funcionamento significativo

Os Centros de Operaccedilotildees de Defesa Interna (CODI) eram oacutergatildeos de planejamento

e coordenaccedilatildeo das medidas de defesa interna dirigidos pelo chefe do Estado-Maior do

Exeacutercito da Regiatildeo e compostos por representantes de todas as Forccedilas bem como da

divisatildeo local de ordem poliacutetica e social das Poliacutecias Civil Militar Federal e da agecircncia

local do Serviccedilo Nacional de Informaccedilotildees (SNI) Entre suas funccedilotildees estavam o

planejamento o controle e a execuccedilatildeo das medidas de defesa interna a coordenaccedilatildeo dos

meios utilizados para esta execuccedilatildeo e a ligaccedilatildeo com todos os escalotildees envolvidos

devendo possibilitar a conjugaccedilatildeo de esforccedilos do Exeacutercito da Marinha da Aeronaacuteutica

do SNI do Poliacutecia Federal e das Secretarias de Seguranccedila Puacuteblica

Jaacute os Destacamentos de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) tinham uma

estruturaccedilatildeo interna tiacutepica composta por setores especializados em operaccedilotildees externas

informaccedilotildees contra-informaccedilotildees interrogatoacuterios e anaacutelises aleacutem de assessoria juriacutedica

e policial e setores administrativos O trabalho nesses destacamentos era ininterrupto

Utilizavam regularmente dois regimes de trabalho um de expediente regular (das 8 agraves

18 horas) e outro atraveacutes de plantotildees de 24 horas por 48 de folga Abaixo visualiza-se a

estrutura orgacircnica dos DOI que sintetiza suas funccedilotildees e sua hierarquia institucional

(FICO 2001 123-125)

54

DOI do Exeacutercito

No organograma acima nota-se que os DOI eram divididos por setores seccedilotildees e

subseccedilotildees Esses satildeo caracterizados por Fico de acordo com suas funccedilotildees e

composiccedilotildees e tambeacutem pelo coronel Freddie Perdigatildeo Pereira em sua monografia que eacute

analisada na segunda frente do estudo aqui traccedilado Percebe-se que essa caracterizaccedilatildeo

feita por Fico e por Pereira eacute muito proacutexima uma vez que eles utilizam os mesmos

termos e palavras para descrever o trabalho ou a formaccedilatildeo de determinado setor ou

seccedilatildeo Diante disso torna-se evidente que ambos os trabalhos se basearam no mesmo

documento que apesar de natildeo ser citado na monografia de Pereira eacute referenciado por

Fico como ldquoSistema de Seguranccedila Interna SISSEGIN Documento classificado como

lsquosecretorsquo [1974] Capiacutetulo 2rdquo Entretanto enquanto o Sistema de Seguranccedila Nacional

como um todo eacute o foco da pesquisa de Fico o DOI eacute o objeto de Pereira o que por

conseguinte o faz apresentar de forma mais detalhada a composiccedilatildeo de cada uma de

suas partes integrantes Logo optou-se aqui por tratar da estrutura interna dos DOI na

Comandante

Seccedilatildeo de contra-informaccedilotildees Turma de comando

Setor de operaccedilotildees de informaccedilotildees Setor de administraccedilatildeo

Turno auxiliar

Assistecircncia juriacutedica

e policial

Seccedilatildeo

administrativa

Seccedilatildeo de busca e

apreensatildeo

Setor de

investigaccedilotildees

Setor de anaacutelise e

informaccedilotildees

Subseccedilatildeo de

interrogatoacuterio Subseccedilatildeo de anaacutelise

55

proacutexima frente de estudo durante a anaacutelise da monografia de Pereira onde

trabalharemos com os DOI-CODI sob o ponto de vista de um de seus agentes ainda

durante a ditadura

Com relaccedilatildeo agrave atuaccedilatildeo dos DOI-CODI dentro do SISSEGIN Maria Celina

DrsquoArauacutejo em Os anos de Chumbo a memoacuteria militar sobre a repressatildeo (1994)

apresenta grandes contribuiccedilotildees para a presente pesquisa uma vez que em sua obra

analisa por meio de depoimentos ineacuteditos de militares a atuaccedilatildeo dos oacutergatildeos de

informaccedilatildeo e repressatildeo poliacutetica durante a ditadura militar

Partindo dessa abordagem de DrsquoArauacutejo destaca-se que diferentemente do que

acontecia na Oban cada um dos DOI-CODI tinha por comandante-geral o chefe do

Estado-Maior do Exeacutercito de sua respectiva Regiatildeo Militar e seu financiamento contava

com recursos orccedilamentaacuterios regulares do governo Logo os DOI-CODI natildeo

estabeleciam uma ligaccedilatildeo direta com o capital privado que entretanto ainda podia

investir de forma indireta na repressatildeo por meio de doaccedilotildees de maacutequinas e serviccedilos

Dessa forma os DOI-CODI tinham uma maior independecircncia financeira que junto com

a centralizaccedilatildeo hieraacuterquica que tambeacutem os caracterizava permitia que suas

investigaccedilotildees e accedilotildees procedessem de forma ainda mais eficiente Afinal esses atributos

evitavam que suas operaccedilotildees estivessem suscetiacuteveis agrave duplicidade de tarefas a

competiccedilotildees e a conflitos de interesses maximizando os seus resultados e tornando-os

uma espeacutecie de sofisticaccedilatildeo da repressatildeo

Aleacutem disso percebe-se que essa sofisticaccedilatildeo dos DOI-CODI tambeacutem era formada

pelo proposital distanciamento ali mantido entre os militares do governo e os agentes

desses oacutergatildeos de repressatildeo Afinal a ditadura ao mesmo tempo em que sancionava a

tortura nos seus ldquoporotildeesrdquo estrategicamente negava a sua existecircncia perante a sociedade

Assim esse cenaacuterio que isentava os governantes e os demais militares relacionados ao

56

poder poliacutetico do paiacutes de qualquer ligaccedilatildeo com a tortura se mantinha atraveacutes da

seguinte configuraccedilatildeo de um lado o torturador ndash que natildeo montou a maacutequina e jamais

efetuaria a tortura num salatildeo do quartel do Exeacutercito se temesse a reaccedilatildeo de seus

comandantes ndash e de outro o seu superior responsaacutevel pela ordem puacuteblica e

beneficiaacuterio direto do poder poliacutetico ndash que sancionava as maacutequinas mas natildeo tocava nos

presos

Dessa forma os DOI responsaacuteveis por accedilotildees que englobavam as prisotildees e os

interrogatoacuterios dos presos poliacuteticos eram instituiccedilotildees que prezavam por natildeo ser

externamente identificadas por seus meacutetodos violentos O sistema funcional dos DOI

era entatildeo complexo e informal de modo que por mais que neles existissem hierarquia e

coordenaccedilatildeo as brechas para que a falta de controle se propagasse eram amplas a fim

de que os meacutetodos natildeo regulamentares tais como as torturas pudessem ser

desempenhados com a eficiecircncia e a recorrecircncia necessaacuterias sem serem relacionados

diretamente a um comando

Diante disso justifica-se que conforme apurado por Maria Celina DrsquoArauacutejo a

versatildeo oficial dos militares ainda possa ser a de que a tortura jamais resultou de

qualquer ordem ou orientaccedilatildeo superior E mesmo quando chega a ser admitida apareccedila

como exceccedilatildeo como abuso ou excesso de poucos Entretanto torna-se aqui evidente a

incoerecircncia dessa versatildeo militar Afinal verifica-se que assim como em todos os

organismos militares nos DOI tambeacutem existiam uma forte hierarquia a ser cumprida

onde apesar de uma estrutura complexa qualquer accedilatildeo deveria ser remetida a um

superior o que sugere que a questatildeo da responsabilidade sempre poderia ser resgatada

Logo se militares reconhecem que existiram ldquoexcessosrdquo na eacutepoca e mesmo assim os

chefes imediatos de tais infratores natildeo tomaram as devidas providecircncias encontra-se

nos DOI entatildeo uma forte incongruecircncia com relaccedilatildeo ao princiacutepio militar de

57

responsabilizaccedilatildeo do chefe-superior Portanto diante dessa constataccedilatildeo de como eram

tratados os torturadores nos DOI percebe-se que apesar de velada em geral a tortura

era um procedimento ali consentido

2 O DOI-CODI por ele mesmo

A anaacutelise ateacute agora feita por meio da historiografia cede aqui lugar para se

concentrar sobre uma fonte especiacutefica pela qual a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

satildeo vistas por um acircngulo mais proacuteximo a partir do olhar de um de seus agentes

enquanto a instituiccedilatildeo ainda estava em atividade Trata-se do trabalho O Destacamento

de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de

combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e perspectivas apresentado em 1978 agrave Escola de

Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie

Perdigatildeo Pereira10

posteriormente apontado por ex-prisioneiros poliacuteticos como o

torturador ldquoNagibrdquo do DOI carioca do iniacutecio dos anos 1970

A referida fonte eacute uma espeacutecie de trabalho final da ECEME estabelecimento de

ensino tradicional do Exeacutercito brasileiro situado no bairro da Praia Vermelha no Rio de

Janeiro cuja missatildeo eacute a preparaccedilatildeo de oficiais superiores para o exerciacutecio de funccedilotildees

de Estado-Maior comando chefia direccedilatildeo e assessoramento dos mais elevados

escalotildees da Forccedila Terrestre 11

Logo eacute fruto de uma espeacutecie de preparaccedilatildeo que o

coronel Pereira estava se submetendo a fim de ocupar algum cargo de chefia dentro do

Exeacutercito

Escrita durante a ditadura militar enquanto os DOI-CODI ainda estavam em

funcionamento embora em menor atividade devido agrave propagaccedilatildeo de denuacutencias sobre

10

Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II 11

ESCOLA de Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) [acesso em 29 jan 2012] Disponiacutevel

em httpwwwecemeensinoebbreceme

58

torturas e mortes ocasionadas dentro do Destacamento a monografia permite trabalhar

diretamente com a visatildeo de um dos agentes do DOI-CODI ainda no ldquocalor da horardquo

como se costuma dizer O tema abordado eacute a atuaccedilatildeo dos DOI durante o seu periacuteodo de

maior efetividade de 1970 a 1973 provavelmente como uma tentativa de fortalecer a

instituiccedilatildeo e reforccedilar o seu poder trazendo agrave tona os ldquovelhos temposrdquo de grande

atividade

Em 1978 momento em que a monografia foi escrita o DOI-CODI havia

diminuiacutedo suas atividades de repressatildeo se restringindo apenas ao papel de investigaccedilatildeo

Como indica o referido coronel no seguinte trecho

Fruto principalmente do trabalho anocircnimo e incansaacutevel dos DOI o

terrorismo no Brasil foi praticamente aniquilado Em funccedilatildeo disso tais

oacutergatildeos foram e continuam sendo alvo de uma das mais virulentas campanhas

difamatoacuterias que a imprensa brasileira e internacional jaacute desencadearam

contra uma instituiccedilatildeo E os DOI que surgiram no fragor da luta e com

estrutura adaptada para enfrentar a accedilatildeo direta no combate aberto

reformulam a sua atuaccedilatildeo [] O efetivo elevado trabalhando atualmente na

Seccedilatildeo de Investigaccedilotildees pode dar ideia do tipo de trabalho que ora eacute

desenvolvido nos DOI com prioridade absoluta Trata-se do levantamento

total das organizaccedilotildees atuantes a partir da vigilacircncia permanente e cerrada

sobre os elementos jaacute identificados [] o trabalho nos DOI deixou de ter

aquele caraacuteter de combate de peito aberto tantas vezes levado a efeito por

seus pioneiros Transformou-se o DOI atual numa verdadeira agecircncia de

informaccedilotildees onde impera o trabalho frio e calculado do analista a teacutecnica

sofisticada de aparelhagem eletrocircnica substituindo a coragem pessoal de

seus elementos

Os DOICODI satildeo e sempre seratildeo as sentinelas atentas e vigilantes de nossa

liberdade (Pereira 1978 28-35)

Essa mudanccedila promovida nos DOI se relaciona diretamente com o momento

vivido pelo Brasil em 1978 Existia entatildeo uma incompatibilidade entre a distensatildeo

59

poliacutetica ldquolenta gradual e segurardquo comandada pelo Presidente Ernesto Geisel a fim de

abrir o paiacutes e instalar futuramente uma democracia e as denuacutencias sobre torturas e

mortes que continuavam a ocorrer dentro dos DOI-CODI e eram com frequecircncia

noticiadas pelos jornais do Brasil e do mundo Assim com o intuito de reverter este

cenaacuterio desfavoraacutevel Geisel optou por exonerar em 1976 o comandante do II Exeacutercito

o general Ednardo DAacutevila Melo afastar do governo no ano seguinte o entatildeo ministro

do Exeacutercito o general Siacutelvio Frota ndash visto por muitos agentes dos DOI como uma

lideranccedila contra a distensatildeo poliacutetica e o enfraquecimento das operaccedilotildees repressoras e

apoiado como eventual candidato agrave Presidecircncia da Repuacuteblica ndash e de forma geral

diminuir a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI no combate direto agrave ldquosubversatildeordquo concentrando suas

atividades apenas na investigaccedilatildeo

Esta atitude logicamente causou resistecircncia entre muitos integrantes dos DOI-

CODI que tentavam provar a necessidade da atuaccedilatildeo repressora da instituiccedilatildeo para a

proteccedilatildeo da Seguranccedila Nacional Essas tentativas incluiacuteam muitas accedilotildees forjadas pelos

proacuteprios agentes dos DOI como atentados a bomba em bancas de jornal instituiccedilotildees que

lutavam contra a ditadura ndash como a sede da OAB no Rio de Janeiro atacada em agosto

de 1980 quando morreu a secretaacuteria Lyda Monteiro ndash e shows populares ndash como a

tentativa frustrada de ataque a bomba de dois agentes do DOI do Rio de Janeiro em

maio de 1980 no show em homenagem ao dia do trabalhador no Riocentro

Outro aspecto dessa fonte que merece tambeacutem ser aqui destacado satildeo as

circunstacircncias pessoais que impulsionaram a sua confecccedilatildeo Afinal se a funccedilatildeo da

ECEME eacute preparar militares para ocupar cargos de chefia dentro do Exeacutercito

certamente a monografia foi um requisito necessaacuterio para que o coronel Pereira se

preparasse para uma promoccedilatildeo na carreira militar Partindo dessa informaccedilatildeo e

juntando-a ao dado que Elio Gaspari apresenta na obra A Ditadura Escancarada (2002

60

184) de que foi oferecido ao mesmo coronel no iniacutecio de 1980 o posto de general de

brigada percebe-se que de fato essa preparaccedilatildeo de Pereira lhe gerou frutos Poreacutem de

acordo com Gaspari para ser general de brigada ele teria que aceitar comandar uma

tropa em uma unidade militar de Satildeo Paulo o que natildeo lhe agradou Preferiu entatildeo a

opccedilatildeo de ir para a reserva e ao mesmo tempo permanecer como contratado em um

cargo na seccedilatildeo de operaccedilotildees do SNI do Rio de Janeiro recebendo no total uma receita

superior agrave de general de Exeacutercito Essa situaccedilatildeo tal como o tema escolhido para sua

monografia eacute mais uma evidecircncia do apreccedilo que coronel Pereira tinha pelo ofiacutecio

investigativo que outrora exerceu nos DOI Diante de sua progressatildeo profissional e do

esvaziamento que os DOI vinham sofrendo o SNI12

se tornava uma opccedilatildeo atraente

pois aleacutem de ser uma instituiccedilatildeo que investigava elementos que ameaccedilavam a

Seguranccedila Nacional estava diretamente ligada ao alto esquadratildeo do Exeacutercito ciacuterculo de

que Pereira fazia parte nesse momento

Com relaccedilatildeo agrave monografia desse coronel muitos pontos interessantes satildeo

destacados Entre eles o detalhamento estrutural dos DOI-CODI

Internamente os CODI eram subdivididos entre trecircs centrais 1- Central de

Informaccedilotildees 2- Central de Operaccedilotildees 3- Central de Assuntos Civis O comando

principal era da 1- Central de Informaccedilotildees que coordenava as investigaccedilotildees locais e

era chefiada pelo dirigente do CODI ou seja pelo chefe do Estado-Maior do Exeacutercito

da aacuterea que deveria ser um general do Exeacutercito Este reunia em sua equipe um

representante local do alto escalatildeo da Aeronaacuteutica da Marinha do SNI e do

Departamento de Poliacutecia Federal o diretor do DOPS e o Comandante do DOI daquela

jurisdiccedilatildeo aleacutem do chefe da 2ordf Seccedilatildeo da Poliacutecia Militar responsaacutevel pela parte de

informaccedilotildees relativas a crimes poliacuteticos Jaacute a 2- Central de Operaccedilotildees e a 3- de

12

Para mais informaccedilotildees sobre a formaccedilatildeo do SNI ver Antunes 2002

61

Assuntos Civis davam suporte agrave equipe da 1- de Informaccedilotildees e para tanto tambeacutem

congregavam em suas equipes representantes das trecircs Forccedilas sendo um representante

do Exeacutercito da Regiatildeo Militar correspondente responsaacutevel por ocupar o cargo de chefe

aleacutem de um representante credenciado da Poliacutecia Civil da Poliacutecia Militar local e de

outros oacutergatildeos quando fosse necessaacuterio para contribuir com alguma anaacutelise especiacutefica

O CODI de cada Regiatildeo Militar tinha por funccedilatildeo centralizar as informaccedilotildees de

caraacuteter ldquosubversivordquo e repassaacute-las ao DOI correspondente para que as operaccedilotildees de

informaccedilotildees fossem realizadas de forma concentrada atraveacutes desse uacutenico oacutergatildeo e por

conseguinte sob um uacutenico comando Assim evitava-se que vaacuterios oacutergatildeos de informaccedilatildeo

ligados a uma das trecircs Forccedilas ou agraves Poliacutecias realizassem suas operaccedilotildees

independentemente de qualquer coordenaccedilatildeo ou planejamento global o que poderia

acabar prejudicando as accedilotildees contra seus ldquoinimigos internosrdquo

Afinal de acordo com as informaccedilotildees levantadas por Pereira em sua monografia

antes dos DOI-CODI serem institucionalizados natildeo foram poucas as vezes que um

desses oacutergatildeos prejudicou a atuaccedilatildeo de outro Em diversos momentos enquanto um

estava realizando uma vigilacircncia sobre determinados elementos ldquosubversivosrdquo por

exemplo outro sem saber da accedilatildeo do primeiro prendia dois ou trecircs desses elementos

Dessa forma os demais membros da mesma organizaccedilatildeo ao saberem da prisatildeo de seus

companheiros natildeo retornavam agrave aacuterea sob vigiacutelia e evitavam ser presos Tambeacutem em

vaacuterias ocasiotildees a documentaccedilatildeo apreendida por determinado oacutergatildeo de seguranccedila ficava

em seu poder e natildeo era encaminhada para outros escalotildees para ser analisada Com essas

informaccedilotildees ldquoencostadasrdquo as accedilotildees armadas de organizaccedilotildees de esquerda que ali

estavam indicadas prosseguiam normalmente sem impedimentos

Percebe-se portanto como a centralizaccedilatildeo de informaccedilotildees e de accedilotildees de

seguranccedila interna implantada pelos DOI-CODI conduziu a resultados positivos para a

62

repressatildeo Natildeo eacute agrave toa que conforme analisado anteriormente a partir da tese de Maria

Celina DrsquoArauacutejo os DOI-CODI satildeo aqui entendidos como a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo

jaacute que os CODI passaram a concentrar e coordenar as informaccedilotildees e atraveacutes dos DOI a

executar de forma concentrada as operaccedilotildees de informaccedilotildees

Oacutergatildeos operacionais dos CODI os Destacamentos de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees

os DOI eram destinados ao trabalho de combate direto ao ldquoinimigo internordquo Para tanto

conforme analisado a partir da monografia de Pereira e da jaacute referida obra de Fico13

os

DOI dividiam-se basicamente entre 1- Setor de operaccedilotildees de informaccedilotildees e 2- Setor de

administraccedilatildeo Tais setores estavam diretamente subordinados ao comandante do

Destacamento daquela Regiatildeo Militar que normalmente deveria ser um tenente-coronel

com vivecircncia na aacuterea de informaccedilotildees Essa patente de tenente-coronel compunha o

ciacuterculo hieraacuterquico de oficiais e a hierarquia de oficiais superiores14

ou seja pertencia

ao acircmbito de convivecircncia desses oficiais e portanto era considerado um deles Isto

significa que os comandantes dos DOI estavam um degrau abaixo do uacuteltimo acircmbito

hieraacuterquico do Exeacutercito o dos oficiais-generais ciacuterculo referente aos chefes dos CODI

que deveriam possuir a patente de general de Exeacutercito

Chefiado pelo subcomandante do DOI o 1- Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees

tinha diretamente subordinado a ele 11- Setor de Investigaccedilatildeo 12- Setor de Anaacutelise e

Informaccedilotildees e 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo Jaacute o 2- Setor de administraccedilatildeo se

subdividia em 21- Assessoria Juriacutedica e Policial e 22- Seccedilatildeo administrativa

Ao 11- Setor de Investigaccedilatildeo cabia fundamentalmente a realizaccedilatildeo de

investigaccedilotildees com a finalidade de identificar e localizar ldquoelementos subversivosrdquo a fim

de repassar as informaccedilotildees para que os agentes da 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo

prendessem os suspeitos e localizassem os seus ldquoaparelhosrdquo (termo designado para

13

Para visualizar o organograma dos DOI voltar agrave paacutegina 54 14

Para mais informaccedilotildees sobre os ciacuterculos hieraacuterquicos e a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II

63

definir o local em que ficavam escondidos os integrantes dos grupos de esquerda que

viviam na clandestinidade) A chefia e a subchefia do 11- Setor de Investigaccedilatildeo era

privativa de oficiais do Exeacutercito e seus integrantes natildeo deveriam ser identificados pelos

elementos a serem presos a fim de que a eficiecircncia da accedilatildeo fosse garantida uma vez que

as suas identificaccedilotildees poderiam ocasionar a fuga dos suspeitos No entanto quando a

situaccedilatildeo exigia os integrantes desse setor poderiam efetuar prisotildees neutralizar

ldquoaparelhosrdquo e apreender material ldquosubversivordquo Esse 11- Setor de Investigaccedilatildeo agia por

meio de diversas turmas de investigaccedilatildeo compostas cada uma por um agente um

auxiliar e um carro normalmente da marca Volkswagen

O 12- Setor de Anaacutelise e Informaccedilotildees tinha por funccedilatildeo fornecer ao comandante

do DOI e aos demais setores seccedilotildees e subseccedilotildees informaccedilotildees estudos e conclusotildees

sobre as organizaccedilotildees ldquosubversivo-terroristasrdquo que atuavam na aacuterea Esse setor era

composto por um chefe sem patente ou ciacuterculo hieraacuterquico preacute-determinados pela

121- Subseccedilatildeo de anaacutelise e pela 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio

A 121- Subseccedilatildeo de anaacutelise tambeacutem natildeo exigia de forma predeterminada a

patente ou o ciacuterculo hieraacuterquico de quem a chefiasse Tinha por funccedilatildeo analisar os

depoimentos prestados pelos presos daquele DOI analisar o material das organizaccedilotildees

ldquoterroristasrdquo que havia sido recolhido pelas turmas da 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo

fornecer subsiacutedios ao chefe do 1- Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees e agrave equipe da

122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio manter para cada organizaccedilatildeo de esquerda uma pasta

com o seu histoacuterico relaccedilatildeo de nomes e codinomes relaccedilatildeo de accedilotildees e uma espeacutecie de

aacutelbum contendo as fichas de qualificaccedilatildeo fotografia atuaccedilatildeo e situaccedilatildeo de cada um de

seus elementos e por fim organizar atualizar e manter o arquivo geral contendo o

dossiecirc de cada elemento fichado

64

Jaacute a 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio era responsaacutevel pelo interrogatoacuterio e por

conseguinte pela aplicaccedilatildeo de torturas nos presos a fim de fazecirc-los falar o que sabiam

Seu chefe deveria ser um oficial do Exeacutercito de niacutevel de capitatildeo ou seja deveria

pertencer ao ciacuterculo hieraacuterquico de oficiais mas natildeo ao meio de oficiais superiores e

sim ao de oficiais intermediaacuterios No entanto a partir do ano de 1971 era preferiacutevel que

ele tivesse o curso B1 da Escola Nacional de Informaccedilotildees (EsNI) Este curso era uma

espeacutecie de especializaccedilatildeo em informaccedilotildees e seguranccedila interna ministrada pela EsNI

escola que havia sido criada pelo SNI durante o ano de 1971 e era a este subordinada

Como a 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio trabalhava ininterruptamente durante 24

horas ela se dividia em trecircs turmas de interrogatoacuterio preliminar cada uma chefiada

tambeacutem por um capitatildeo do Exeacutercito com o curso B1 da EsNI Essas turmas eram

compostas por seis agentes cada e aleacutem disso subordinada ao chefe de cada uma delas

existia uma turma auxiliar encarregada da carceragem e da datilografia de documentos

Jaacute a 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo tinha por ofiacutecio efetuar prisotildees ldquocobrir

pontosrdquo (preparar uma emboscada para prender os militantes esquerdistas no momento

em que se encontravam em algum ponto anteriormente combinado) neutralizar

ldquoaparelhosrdquo apreender material ldquosubversivordquo coletar dados que possibilitassem o

levantamento de elementos ldquosubversivosrdquo conduzir presos ao DOPS auditorias

hospitais etc O chefe deveria ser um oficial do Exeacutercito sem predeterminaccedilatildeo de

patente militar e sua equipe se dividia em trecircs grupamentos ldquoAB e Crdquo Cada um deles

era composto por quatro turmas de busca e apreensatildeo que tinham cerca de trecircs ou cinco

agentes e possuiacuteam cada uma um carro espaccediloso muitas vezes dos modelos C14 Opala

ou Kombi equipado com raacutedio Aleacutem disso a 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo

tambeacutem era composta por quatro turmas de coletas de dados que tinham por missatildeo

reunir informaccedilotildees sobre os ldquosubversivosrdquo em universidades coleacutegios etc Cada uma

65

dessas turmas era constituiacuteda por dois elementos um oficial da PM da regiatildeo ou um

delegado de poliacutecia e um motorista que normalmente dirigia um carro de marca

Volkswagen com raacutedio

Ligada ao 2- Setor de administraccedilatildeo a 22- Seccedilatildeo administrativa garantia o apoio

logiacutestico ao DOI ou seja organizava o pedido de gecircneros alimentiacutecios bem como

outros utensiacutelios e equipamentos necessaacuterios Esta seccedilatildeo natildeo tinha nenhum tipo de

exigecircncia de patente ou ciacuterculo hieraacuterquico para o cargo de chefe Jaacute a 21- Assessoria

Juriacutedica e Policial era chefiada por um delegado de poliacutecia e tinha por missatildeo

assessorar o Comandante do DOI em assuntos judiciais elaborar a documentaccedilatildeo

formal e legal referente ao material apreendido e agraves confissotildees dos prisioneiros e

controlar a menagem dos presos que fossem liberados

A menagem estipulada pelo Coacutedigo Processual Militar criado pelo decreto-lei

1002 de outubro de 1969 era uma espeacutecie de prisatildeo cautelar concedida ao militar ou

ao civil que tivesse praticado um crime de cunho militar com previsatildeo de pena privativa

de liberdade O local de cumprimento da menagem era a cidade onde residisse o

suspeito no momento do crime ou a sede do oacutergatildeo que tivesse investigando a sua accedilatildeo

Como a partir do AI-5 os suspeitos de crimes poliacuteticos passaram a ser julgados pela

Justiccedila Militar e o instituto do habeas corpus foi suprimido atraveacutes da menagem os

suspeitos detidos poderiam ser levados agrave sede do DOI-CODI da respectiva Regiatildeo

Militar Afinal era neste oacutergatildeo que as investigaccedilotildees sobre os crimes poliacuteticos de

determinada aacuterea se concentravam A menagem tinha por fundamento evitar o conviacutevio

do acusado ateacute o seu julgamento em primeira instacircncia com pessoas que jaacute estivessem

condenadas Dessa forma a validade da menagem terminava a partir da abertura de um

processo condenatoacuterio contra o suspeito quando entatildeo este seria transferido para uma

Delegacia de Poliacutecia tal como o DOPS por exemplo para ser enfim julgado e poder se

66

fosse o caso cumprir sua pena em um presiacutedio convencional Poreacutem ateacute isso acontecer

caso fosse enquadrado como um possiacutevel criminoso poliacutetico esse suspeito poderia ficar

detido no DOI correspondente por ateacute trinta dias podendo sua prisatildeo ainda ser

prorrogada por mais sessenta dias

A menagem era entatildeo um respaldo legal tanto para o isolamento do preso poliacutetico

nos quarteacuteis que sediavam os DOI quanto se fosse o caso para o acompanhamento de

sua vida em liberdade ateacute o dia de seu julgamento Caso fosse diagnosticado pelos

agentes do respectivo DOI que o suspeito jaacute tivesse concedido todas as informaccedilotildees que

tinha e natildeo representasse perigo agrave Seguranccedila Nacional a instituiccedilatildeo poderia solicitar ao

juiz a sua liberaccedilatildeo a fim de que a sua menagem fosse cumprida em liberdade Quando

isto ocorria o suspeito deveria ficar na mesma cidade que havia sido preso ateacute o seu

julgamento em primeira instacircncia

Diante dos organogramas dos CODI e dos DOI aqui traccedilados evidencia-se que

existiam diferenccedilas nas patentes hieraacuterquicas dos chefes de cada um desses oacutergatildeos

Enquanto o chefe dos CODI era o chefe de Estado-Maior do Exeacutercito de cada Regiatildeo

Militar ou seja um general de Exeacutercito que por conseguinte pertencia ao ciacuterculo

hieraacuterquico de oficiais-generais localizado no topo da hierarquia militar o chefe de

cada DOI era um tenente-coronel patente que se insere no ciacuterculo hieraacuterquico de

oficiais superiores ou seja imediatamente abaixo do de oficiais-generais Assim como

os DOI eram o braccedilo operacional dos CODI ou seja a eles subordinados o fato de seus

chefes estarem obrigatoriamente no ciacuterculo hieraacuterquico abaixo dos dirigentes dos CODI

leva a crer que dentro dos DOI-CODI havia de fato um respeito agrave hierarquia militar

Este respeito jaacute foi aqui destacado por meio da anaacutelise historiograacutefica baseada na

tese Maria Celina DrsquoArauacutejo (1994) que defende a ideia de que o princiacutepio da

obediecircncia hieraacuterquica apesar de velado existia nos DOI-CODI logo como a tortura

67

fazia parte de suas accedilotildees ela era consentida Afinal se laacute existiam chefias e nelas a

hierarquia militar era minimamente respeitada isso sinaliza que as accedilotildees eram

comandadas por chefes que tinham o consentimento de seus chefes diretos para darem

tal ordem Portanto a tortura impetrada pelas turmas de interrogatoacuterio preliminar era

consentida pelo capitatildeo que as chefiava pelo capitatildeo que comandava a respectiva

Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio a que elas estavam subordinadas pelo chefe do Setor de

Anaacutelise e Informaccedilotildees que chefiava o chefe dessa Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio pelo

subcomandante do DOI que era responsaacutevel pelo Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees a

que o Setor de Anaacutelise e Informaccedilotildees estava vinculado pelo tenente-coronel que

comandava o DOI e estava hierarquicamente acima do chefe do Setor de Anaacutelise e

Informaccedilotildees e pelo general do Exeacutercito que dirigia o CODI e tinha o comandante do

DOI a ele subordinado Logo o DOI-CODI foi construiacutedo de forma tatildeo centralizada que

a maioria das accedilotildees feitas por algum de seus integrantes passava por toda a cadeia

hieraacuterquica nele envolvida

Assim se torna mais uma vez evidente que a tortura como meacutetodo de

interrogatoacuterio quando utilizada pelos agentes do DOI era consentida por seus

superiores e natildeo um fenocircmeno isolado ou mesmo ldquoexcesso de poucosrdquo como muitos

militares costumam argumentar Esta argumentaccedilatildeo que aparentemente encontra

fundamento no alto grau de autonomia e independecircncia que os DOI possuiacuteam eacute

derrubada quando se evidencia que estes eram autocircnomos e independentes apenas em

relaccedilatildeo a batalhotildees e outras instituiccedilotildees militares Afinal os DOI foram programados

para atuar a par das subordinaccedilotildees preacute-existentes em outros oacutergatildeos podendo congregar

agentes de instacircncias militares poliacutecias e Forccedilas diferentes entre si mas sem deixar de

respeitar a hierarquia do Exeacutercito inserida em seu interior tendo por direccedilatildeo maacutexima o

Chefe de Estado-Maior do Exeacutercito

68

Outro ponto interessante que a caracterizaccedilatildeo do organograma dos DOI ajuda a

revelar eacute o fato do cargo de chefe da Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio ser privativo de um

oficial do Exeacutercito de niacutevel de capitatildeo ou seja que deveria pertencer ao ciacuterculo

hieraacuterquico de oficiais intermediaacuterios excluindo-se das atividades afeitas agrave posiccedilatildeo de

membros do ciacuterculo hieraacuterquico dos oficiais superiores e dos oficiais-generais onde se

encontravam os homens que governavam o paiacutes Logo por traacutes dessa condiccedilatildeo de

chefia havia a tentativa de manter a responsabilidade direta dos atos proferidos nessa

Subseccedilatildeo longe do ciacuterculo de oficiais superiores ou de oficiais-generais instacircncias

maacuteximas na hierarquia do Exeacutercito Dessa forma as torturas executadas durante os

interrogatoacuterios natildeo seriam relacionadas aos ocupantes das altas patentes do Exeacutercito

que durante a ditadura eram os que estavam agrave frente do governo brasileiro Essa

medida era portanto para dissociar a imagem dos governantes com o que ocorria nos

porotildees

No entanto eacute notaacutevel que indiretamente o governo ditatorial apoiasse as torturas

que as turmas de interrogatoacuterio preliminar executavam nos DOI-CODI uma vez que

obviamente os governantes tinham conhecimento sobre a determinaccedilatildeo de que os

agentes dessas turmas e os chefes da Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio deveriam ter

preferencialmente uma espeacutecie de especializaccedilatildeo em informaccedilotildees e seguranccedila

ministrada pela EsNI Nesta escola ndash ligada ao SNI que era composto pelas mais altas

patentes do Exeacutercito e diretamente ligado ao alto escalatildeo do governo ndash os alunos

provavelmente recebiam instruccedilotildees sobre os meacutetodos de tortura a serem aplicados

durante o serviccedilo

Aleacutem disso o fato do chefe e dos demais componentes da Subseccedilatildeo de

interrogatoacuterio serem ligados ao ciacuterculo de oficiais intermediaacuterios do Exeacutercito tambeacutem

vai ao encontro da anaacutelise historiograacutefica sobre a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

69

aqui apresentada a partir dos conceitos de Martins Filho de cizacircnia militar palaacutecio e

caserna Afinal a caserna era composta por militares de meacutedias e baixas patentes que

durante os primeiros anos da ditadura lutaram internamente por atuarem no combate ao

ldquoinimigo internordquo a fim de terem uma maior participaccedilatildeo na poliacutetica o que ocasionou

algumas cizacircnias militares Foi justamente por temer o resultado dessas cizacircnias que o

palaacutecio formado pelos militares de altas patentes que possuiacuteam cargos no governo aos

poucos cedeu esses poderes agrave caserna e assim o aparato de seguranccedila nacional foi

sendo instituiacutedo e dentro dele o SISSEGIN e os DOI-CODI Logo como eacute na

Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio e tambeacutem na Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo onde a atuaccedilatildeo

de interrogar torturar e prender traz os poderes poliacuteticos extras que a caserna

historicamente reivindicava percebe-se que a utilizaccedilatildeo de seus militares para compor

essas equipes era mais uma forma de manter a unidade militar contendo possiacuteveis

cizacircnias

Essa perspectiva torna-se completa quando se identifica que no momento em que

tais atribuiccedilotildees passaram a ser retiradas dos militares da caserna essas cizacircnias natildeo

mais puderam ser contidas Afinal conforme jaacute evidenciado anteriormente quando a

partir do governo de Geisel as atividades de busca apreensatildeo e interrogatoacuterio dos DOI

foram sendo abolidas a caserna passou a reagir posicionando-se contraacuteria agrave cuacutepula do

governo que defendia a abertura poliacutetica passando a apoiar a candidatura presidencial

de militares que defendessem a continuidade de tais atribuiccedilotildees aos DOI e ateacute mesmo

forjando situaccedilotildees terroristas tais como os diversos ataques a bomba que ocorreram na

eacutepoca como forma de endossar a necessidade das atuaccedilotildees repressivas desenvolvidas

pelos DOI

A monografia do coronel Pereira aqui analisada pode tambeacutem ser vista como

mais uma dessas reaccedilotildees da caserna Afinal durante toda a escrita de Pereira haacute uma

70

necessidade de comprovar a eficiecircncia dos DOI na atividade de proteger a seguranccedila

interna do paiacutes Percebe-se assim que Pereira apesar de ser coronel e por conseguinte

jaacute estar entre os oficiais superiores nesse momento ainda se via ligado de alguma forma

aos DOI Talvez porque a histoacuteria de sua carreira militar estivesse totalmente

relacionada com as atividades que ele laacute desempenhou e por isso acreditasse que

enquanto tais atividades continuassem sendo desenvolvidas o seu trabalho tambeacutem

continuaria a ser reconhecidamente importante

Os setores seccedilotildees e subseccedilotildees do DOI normalmente seguiam a configuraccedilatildeo aqui

exposta poreacutem nota-se que suas equipes natildeo eram fixas ou seja poderiam variar de

acordo com as necessidades das operaccedilotildees que surgissem Os DOI foram assim

concebidos como organismos instaacuteveis pois dependendo da gravidade e da quantidade

de accedilotildees armadas que deveriam ser reprimidas o nuacutemero de agentes poderia aumentar

ou diminuir Dessa forma os DOI se adaptavam a diversas circunstacircncias a fim de

combater com eficiecircncia o ldquoterrorismordquo e a ldquosubversatildeordquo

Grande parte dessa necessidade de adaptaccedilatildeo vinha da sobrevalorizaccedilatildeo da

guerrilha urbana entre os militares ligados a organismos de repressatildeo Uma vez que ao

verem a forma organizada e ousada com que a esquerda armada montava suas accedilotildees

sentiram que a estrutura repressiva da eacutepoca anterior agrave experiecircncia da Oban e ao

surgimento dos DOI natildeo estava preparada para combatecirc-las e diante disso

interpretaram tais accedilotildees esquerdistas como uma forte ameaccedila ao paiacutes Afinal as

instituiccedilotildees responsaacuteveis pela repressatildeo direta como por exemplo os DOPS estavam

engessadas por corporaccedilotildees fixas que combatiam as referidas accedilotildees de forma pouco

efetiva reprimindo-as sem a centralizaccedilatildeo e a grandiosidade necessaacuterias

A todos estes atos de banditismo [fazendo referecircncia a assaltos a banco a

sequestros de embaixadores e outras accedilotildees efetuadas pela esquerda armada

71

entre os anos de 1969 e 1970] a nossa Poliacutecia Civil e a Poliacutecia Militar

assistiam sem nada poder fazer Vaacuterias radiopatrulhas foram incendiadas e

os poucos soldados que ousavam enfrentar os terroristas eram

impiedosamente mortos Por que isso acontecia Porque as nossas poliacutecias

foram surpreendidas e natildeo estavam preparadas para um novo tipo de luta que

surgia a guerrilha urbana (Pereira 1978 10)

Entatildeo para conter a guerrilha urbana surgiu a necessidade de um oacutergatildeo de

repressatildeo centralizado e de estrutura maleaacutevel que tornasse possiacutevel e praacutetico reprimir

determinada accedilatildeo armada de acordo com a sua grandiosidade aumentando e diminuindo

o corpo funcional conforme o esforccedilo exigido Em meio a esta concepccedilatildeo de repressatildeo

a estrutura dos DOI foi criada tornando a repressatildeo poliacutetica mais combativa e

consequentemente aumentando a sua eficiecircncia

Com tamanha flexibilidade os DOI movimentavam pessoal e material variaacutevel

com grande mobilidade e agilidade Essa destacada autonomia dos DOI era travada

portanto em benefiacutecio de um aproveitamento maacuteximo de suas accedilotildees jaacute que eram

oacutergatildeos destinados ao combate direto agraves organizaccedilotildees subversivo-terroristas e sua

missatildeo era desmontar toda a estrutura de pessoal e de material destas organizaccedilotildees

bem como impedir a sua reorganizaccedilatildeo (Pereira 1978 22)

A utilizaccedilatildeo de codinomes pelos integrantes das turmas de interrogatoacuterio

preliminar era outra face dessa autonomia de trabalho dos DOI Esse costume era um

benefiacutecio de proteccedilatildeo para a instituiccedilatildeo e tambeacutem para tais militares Afinal como

muitos deles possivelmente aplicavam torturas nos presos durante os interrogatoacuterios o

sigilo com relaccedilatildeo aos seus nomes verdadeiros poderia inviabilizar posteriores

denuacutencias e por conseguinte fortes indiacutecios de que nos DOI a tortura era uma praacutetica

institucionalizada

Aleacutem disso essa mesma autonomia tambeacutem permitia que seus agentes para natildeo

serem reconhecidos pelos ldquoinimigosrdquo durante uma accedilatildeo de prisatildeo por exemplo natildeo

72

trabalhassem de farda e usassem trajes civis o que seria impensaacutevel em qualquer quartel

militar

Como norma de seguranccedila para o trabalho diaacuterio eacute obrigatoacuterio o uso de

traje civil (esporte ou social) de acordo com a missatildeo a desempenhar

Mesmo os oficiais e os comandantes de seccedilatildeo devem de preferecircncia usar

trajes esporte para se confundirem com a maioria dos integrantes do DOI

(Pereira 1978 25)

Os cabelos longos eram outra caracteriacutestica que apesar de improacutepria entre as

demais instituiccedilotildees militares a autonomia dos DOI imprimia a seus agentes conforme

evidenciado no seguinte trecho o cabelo deve ter o tamanho normalmente usado pela

maioria da populaccedilatildeo sendo proibido o cabelo com corte do ldquotipo militarrdquo (Pereira

1978 25) Percebe-se portanto que junto aos trajes civis os cabelos maiores

completavam o visual que os militares dos DOI precisavam ter para que evitassem ser

facilmente reconhecidos nas ruas Dessa forma tentavam minimizar os riscos de serem

percebidos durante uma operaccedilatildeo de investigaccedilatildeo ou minutos antes de efetuarem uma

accedilatildeo de prisatildeo Poreacutem apesar da utilizaccedilatildeo dessas caracteriacutesticas natildeo usuais ser em

benefiacutecio das funccedilotildees que exerciam nos DOI esses militares muitas vezes natildeo eram

compreendidos por aqueles que nas palavras de Pereira natildeo possuiacuteam uma

mentalidade de informaccedilotildees e por conta disso viam no uso do cabelo grande um ato de

indisciplina Essa incompatibilidade de interpretaccedilotildees portanto gerava alguns

transtornos para os agentes dos DOI que mesmo condecorados pela eficiecircncia de seus

serviccedilos de informaccedilotildees agraves vezes passavam por alguns constrangimentos

Jaacute aconteceu o fato de um oficial ou sargento de um DOI necessitar

comparecer a sua Unidade Militar a fim de tratar qualquer problema pessoal

ou mesmo de um assunto de serviccedilo Estes elementos eram barrados agrave

entrada de seus quarteacuteis e recebiam ordem dos comandantes para

73

regressarem cortarem o cabelo e a barba e se apresentarem fardados ou com

a posse de um documento de identidade assinado pelo Comandante do

Exeacutercito autorizando o uso do traje civil e o porte de arma Este

procedimento por parte de algumas autoridades militares daacute a entender que

os elementos do Serviccedilo de Informaccedilotildees satildeo indisciplinados

desenquadrados e sem espiacuterito militar Entretanto eacute necessaacuterio frisar que a

realidade eacute que por exemplo no DOI-CODI do II Exeacutercito [DOI-CODISP]

em trecircs anos 90 componentes foram condecorados com a medalha do

pacificador com palma (Pereira 1978 26)

A medalha do pacificador com palma eacute em tempo de paz a mais alta

condecoraccedilatildeo concedida pelo Comandante do Exeacutercito aos militares e civis brasileiros

que no exerciacutecio de sua funccedilatildeo ou no cumprimento de missotildees de caraacuteter militar

tenham se destacado por atos pessoais de abnegaccedilatildeo coragem e bravura com risco de

vida Portanto muitas vezes os agentes dos DOI que exerciam a funccedilatildeo de prender

integrantes de uma organizaccedilatildeo muito procurada de ldquodesmontar aparelhosrdquo de

destacada importacircncia investigativa ou mesmo de conseguir informaccedilotildees cruciais

durante interrogatoacuterios eram condecorados pelo Comandante do respectivo Exeacutercito

pelo serviccedilo prestado agrave paacutetria Logo percebe-se que mesmo existindo os

constrangimentos institucionais anteriormente citados os oficiais envolvidos nos DOI

eram prestigiados por seus serviccedilos e se sentiam valorizados e incentivados a designaacute-

los com rapidez e eficiecircncia

A partir disso evidencia-se mais uma vez que a tortura nos DOI era consentida

pelos militares superiores e ateacute mesmo incentivada pois atraveacutes do ldquoauxiacuteliordquo que

prestava aos interrogatoacuterios as informaccedilotildees poderiam ser mais faacutecil e rapidamente

conseguidas e grande quantidade de suspeitos presos ldquoaparelhos desmontadosrdquo e

materiais ldquosubversivosrdquo recolhidos Como a presteza desse serviccedilo era almejada tantos

pelos agentes dos DOI interessados no destaque e no reconhecimento militar quanto

74

por seus superiores que vislumbravam neutralizar o quanto antes a ameaccedila que o

ldquoinimigo internordquo representava para o governo ditatorial a tortura parecia ser nos DOI

um meio que se justificava pelos fins

Assim a centralizaccedilatildeo a flexibilidade a autonomia e o consentimentoincentivo agrave

tortura pautavam o ldquoeficienterdquo serviccedilo de repressatildeo dos DOI conforme se pode apurar a

partir dos dados do DOI-CODISP levantados ateacute 30 de junho de 1972 e apresentados

na monografia do coronel Pereira

Subversivos terroristas levantados no Brasil 4400

Quedas impostas pelos oacutergatildeos de seguranccedila no territoacuterio nacional 2800

Quedas impostas pelos oacutergatildeos de seguranccedila do II Exeacutercito (inclusive DOI-

CODI) 1600

Quedas impostas pelo DOI-CODI do II Exeacutercito 1400

Quedas impostas pelos outros oacutergatildeos de seguranccedila da aacuterea do II Exeacutercito

200

Periacuteodo de 23 de janeiro de 1969 a 30 de junho de 1972

Subversivo-terroristas que fizeram curso de guerrilha no exterior 340

Subversivo-terroristas que fizeram curso de guerrilha em Cuba 240

Situaccedilatildeo dos 4400 subversivo-terroristas levantados

Foragidos 1600

Liberados 900

Mortos em combate 100

Presos 1490

Banidos 140

Estes resultados vecircm demonstrar a eficiecircncia operacional do destacamento

neste tipo de guerra especial Natildeo eacute agrave toa que os inimigos assim reconhecem

ao destacamento esta assertiva encontrada na revista Times e no panfleto

Quinzenal (maio de 76) distribuiacutedos recentemente

ldquoSatildeo Paulo criou a mais eficiente e admiraacutevel maacutequina repressiva vista ateacute

hoje no mundo ndash a Operaccedilatildeo Bandeirantes que comeccedilou como uma alianccedila

temporaacuteria entre a poliacutecia local as vaacuterias seccedilotildees de inteligecircncia das trecircs

forccedilas armadas e o SNIrdquo (Pereira 1978 27)

75

Entretanto esse perigoso poder excepcional dos DOI-CODI tomou proporccedilotildees

grandiosas Em meados dos anos 1970 mais especificamente apoacutes o fim da guerrilha do

Araguaia no iniacutecio de 1974 as organizaccedilotildees clandestinas armadas estavam derrotadas

e em contrapartida os DOI-CODI se encontravam em pleno vapor com sua atuaccedilatildeo e

seu aparato institucional ampliado e especializado Tornou-se dessa forma

indispensaacutevel para a sobrevivecircncia do SISSEGIN encontrar novos ldquoinimigos internosrdquo

O foco de ameaccedila passou entatildeo a ser o envolvimento de elementos do Partido

Comunista Brasileiro (PCB) no Movimento Democraacutetico Brasileiro (MDB) partido de

oposiccedilatildeo consentida pelo governo e a atuaccedilatildeo repressiva dos DOI-CODI encontrou

argumentos para continuar em atividade Poreacutem como a declarada ldquoguerra internardquo

havia se esgotado e o paiacutes jaacute se preparava para dar lugar a um futuro democraacutetico o

poder de accedilatildeo dos DOI-CODI comeccedilou a parecer abusivo e negativo ao regime Diante

disso muitas foram as tentativas da caserna e dos demais militares a ela relacionados de

provar a importacircncia e a necessidade dos DOI-CODI para a defesa do paiacutes entre elas a

monografia aqui analisada No entanto tais tentativas natildeo conseguiram evitar que esses

oacutergatildeos sofressem num primeiro momento a reduccedilatildeo de suas atividades e no iniacutecio da

deacutecada de 1980 a extinccedilatildeo

3 O DOI-CODI pelos prisioneiros

Enfim na uacuteltima frente de estudo deste capiacutetulo a anaacutelise sobre a formaccedilatildeo e a

atuaccedilatildeo dos DOI-CODI recai sobre a memoacuteria de seis de seus ex-prisioneiros poliacuteticos

Vale lembrar que estes estiveram detidos no DOI-CODI do Rio de Janeiro durante o

segundo semestre do ano de 1970 e suas memoacuterias foram narradas recentemente entre

os anos de 2002 e 2004 quando foram por mim entrevistados Assim o trabalho sobre

esses depoimentos aqui se concentra na interpretaccedilatildeo que fazem a partir da construccedilatildeo

76

de suas memoacuterias sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI e em como suas

perspectivas dialogam com a frente historiograacutefica e com a monografia do coronel

Pereira abordadas anteriormente

Como o objetivo aqui traccedilado eacute analisar as diversas maneiras pelas quais a

historiografia o coronel Pereira e os presos veem a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-

CODI optou-se por apresentar as trajetoacuterias dos entrevistados no proacuteximo capiacutetulo

Essas junto com o conteuacutedo aqui levantado constroem as bases para a anaacutelise travada

na parte final da presente dissertaccedilatildeo onde se aborda a partir de um estudo mais

concentrado nas memoacuterias dos ex-prisioneiros entrevistados o cotidiano do DOI-

CODIRJ

Entretanto a fim de utilizar essas memoacuterias para a abordagem dialeacutetica aqui

desenhada natildeo pode ser dispensada a aplicaccedilatildeo de um olhar criacutetico tiacutepico a anaacutelises

histoacutericas problematizando-as de forma a perceber suas lacunas e modificaccedilotildees

decorrentes do tempo Tais memoacuterias satildeo inconscientemente fluidas pois estatildeo

diretamente ligadas a emoccedilotildees aleacutem de sofrerem muitas influecircncias do momento em

que satildeo narradas conforme bem elucida Pierre Nora (1993)

A memoacuteria eacute a vida sempre carregada por grupos vivos e nesse sentido ela

estaacute em permanente evoluccedilatildeo aberta agrave dialeacutetica da lembranccedila e do

esquecimento inconsciente de suas deformaccedilotildees sucessivas vulneraacutevel a

todos os usos e manipulaccedilotildees suscetiacutevel de longas latecircncias e de repentinas

revitalizaccedilotildees A histoacuteria eacute a reconstruccedilatildeo sempre problemaacutetica e incompleta

do que natildeo existe mais A memoacuteria eacute um fenocircmeno sempre atual um elo

vivido no eterno presente a histoacuteria uma representaccedilatildeo do passado (Nora

1993 9)

Eacute portanto imprescindiacutevel para este estudo perceber que por traacutes dessa fluidez

das memoacuterias dos depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ age um

77

elemento fundamental o presente Logo a feliz expressatildeo de Robert Frank (1999) o

presente do passado elucida a anaacutelise de forma a colocar em destaque a forte influecircncia

que a temporalidade vivida no momento em que as entrevistas foram concedidas tem

para a construccedilatildeo de suas narrativas

Trata-se de fontes que estatildeo marcadas pelo proacuteprio presente inerentes a ele

qualquer que seja a eacutepoca os depoimentos de testemunhas vivas as fontes

orais Aiacute haacute a contemporaneidade intriacutenseca entre o historiador e o ator

(Frank 1999 103)

Por isso eacute aqui crucial considerar o momento das entrevistas Afinal entre 2002 e

2004 o Brasil jaacute vivia uma democracia consolidada onde antigos oposicionistas agrave

ditadura militar se encontravam no poder Fernando Henrique Cardoso exilado no Chile

ateacute o ano de 1968 e na deacutecada de 1970 apoiador convicto do Movimento Democraacutetico

Brasileiro (MDB) havia sido presidente do Brasil entre os anos de 1995 e 2002 Jaacute

Lula ex-liacuteder sindical que havia comandado algumas das mais importantes greves na

virada das deacutecadas de 1970 para 1980 venceu a campanha presidencial em 2002 e se

tornou no ano seguinte o primeiro ex-operaacuterio a presidir o paiacutes Aleacutem disso as pastas

ministeriais de seu governo foram formadas por antigos opositores agrave ditadura tal como

o ex-liacuteder do movimento estudantil Joseacute Dirceu e a partir de 2005 por Dilma

Rousseff ex-militante de duas das organizaccedilotildees de esquerda que optaram na eacutepoca pela

luta armada o Comando de Libertaccedilatildeo Nacional (COLINA) e a Vanguarda Armada

Revolucionaacuteria Palmares (VAR-Palmares) Logo pode-se dizer que com relaccedilatildeo agrave

memoacuteria poliacutetica de vencidos nos anos de chumbo da ditadura os depoentes se

transformaram em vencedores nos tempos democraacuteticos e obviamente a leitura do

passado de prisatildeo e tortura foi iluminada por esse presente

78

Ressalte-se ainda que os depoimentos se vinculavam agrave implantaccedilatildeo da Comissatildeo

de Anistia por meio da Lei nordm 1055902 que atribuiacutea ao Estado a funccedilatildeo de anistiar e

reparar financeiramente todos os cidadatildeos que tivessem vivenciado quaisquer atos de

exceccedilatildeo incluindo torturas prisotildees arbitraacuterias demissotildees e transferecircncias por razotildees

poliacuteticas ocorridas durante o periacuteodo de 18 de setembro de 1946 ateacute 5 de outubro de

1988 Afinal a reparaccedilatildeo soacute poderia ser concedida pela Comissatildeo de Anistia apoacutes a

anaacutelise de um requerimento contendo as memoacuterias das viacutetimas sobre o periacuteodo em

questatildeo escritas individualmente Como na eacutepoca alguns dos depoentes jaacute haviam

construiacutedo suas memoacuterias prisionais para compor o referido requerimento este deve ser

considerado como um importante fator de influecircncia sobre as narrativas de suas

entrevistas

Em contraste com o que foi apresentado a partir da abordagem historiograacutefica e da

monografia do coronel Pereira Fernando Palha Freire um dos ex-prisioneiros do DOI-

CODIRJ destaca a importacircncia da contribuiccedilatildeo inicial dada pelos policiais civis do

DOPS para a utilizaccedilatildeo da violecircncia em favor da extraccedilatildeo de informaccedilotildees Afinal por

mais que os oacutergatildeos de repressatildeo anteriores agrave criaccedilatildeo dos DOI-CODI natildeo estivessem

devidamente preparados para combater as accedilotildees efetuadas pela esquerda armada seus

agentes de fato haviam acumulado uma experiecircncia em interrogatoacuterios Esta num

primeiro momento era importante uma vez que os militares ateacute entatildeo concentravam

sua formaccedilatildeo sobre a atuaccedilatildeo na guerra declarada natildeo possuindo as maliacutecias

necessaacuterias aos interrogatoacuterios

[] a Poliacutecia Civil tinha os caras mais preparados pra tortura mesmo

Porque jaacute vinham haacute muitos anos jaacute tinham a praacutetica da tortura O militar

batia de frente ele era capaz de te matar mas ele ainda natildeo tinha digamos o

seguinte a essecircncia da tortura Por exemplo um coronel virou pro cara e

disse assim - ldquoO senhor eacute um comunistardquo aiacute ele disse assim - ldquoE o senhor eacute

79

uma bestardquo Ele matou o cara quer dizer matou sem colher o que queria

Um policial civil poderia ateacute matar o cara mas antes colheria o que queria

eles tinham a praacutetica da tortura Depois os militares se aperfeiccediloaram []

(Freire 28 jun 2004)

No entanto indo ao encontro do que foi abordado pelas outras duas frentes de

estudo aqui traccediladas Ceciacutelia Coimbra tambeacutem ex-prisioneira do DOI-CODIRJ

evidencia a eficiecircncia desse oacutergatildeo com relaccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo A partir de uma situaccedilatildeo

especiacutefica de sua prisatildeo ela percebe como o niacutevel de organizaccedilatildeo do serviccedilo de

informaccedilotildees dos DOI era superior ao do DOPS

Fomos presos eu e meu marido e levados para o DOPS em agosto de 1970

[] quando deram vistoria laacute em casa encontraram um documento que por

ironia do destino era sobre seguranccedila [] Eu fiquei dois dias e meio no

DOPS sendo interrogada sobre o tal documento que nem eu nem o Novaes

falaacutevamos diziacuteamos que natildeo sabiacuteamos de onde era Dois dias e meio depois

quando noacutes fomos para o DOI-CODI logo eles identificaram de onde era o

documento Para vocecirc ver o niacutevel de competecircncia do serviccedilo de informaccedilotildees

do DOI-CODI comparado ao do DOPS O DOPS era ldquomerdinhardquo comparado

com a eficiecircncia do DOI-CODI (Coimbra 30 nov 2004)

Percebe-se assim tanto pela historiografia e pela monografia do coronel Pereira

quanto pela memoacuteria de ex-prisioneiros poliacuteticos que a centralizaccedilatildeo de informaccedilotildees

nos CODI e a relaccedilatildeo direta que esses travavam com os DOI traziam uma agilidade agraves

anaacutelises que natildeo havia nos demais oacutergatildeos Logo a forma centralizada e orquestrada

com que os DOI-CODI agiam significava uma profissionalizaccedilatildeo cada vez maior da

repressatildeo poliacutetica ou seja a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo

Assim apesar de serem instituiccedilotildees distintas a atuaccedilatildeo dos CODI e dos DOI

estavam totalmente interligadas Como apurado por meio do estudo historiograacutefico e

dos dados contemplados na monografia do coronel Pereira enquanto aos CODI cabia

80

concentrar e analisar as informaccedilotildees sobre a seguranccedila interna de suas Regiotildees

Militares aos DOI cabia a partir das informaccedilotildees passadas pelos CODI atuar

diretamente na repressatildeo aos ldquoinimigos internosrdquo e extrair de seus prisioneiros poliacuteticos

informaccedilotildees a serem repassadas aos CODI Diante dessa forte ligaccedilatildeo essas duas

instituiccedilotildees ficaram conhecidas como se fossem um uacutenico oacutergatildeo por meio da sigla

DOI-CODI Essa simbiose entre os CODI e os DOI ficou marcada sobretudo nas

memoacuterias de suas viacutetimas conforme se pode verificar no seguinte trecho

[] tenta entender o que eacute DOI-CODI o DOI-CODI eacute uma instituiccedilatildeo

montada por diversos oacutergatildeos de repressatildeo que funcionava [no Rio de

Janeiro] no quartel da PE [1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito] (Pandolfi 5

fev 2003)

De acordo com os seis entrevistados assim como indicado pela a anaacutelise das

demais frentes de estudo do presente capiacutetulo a praacutetica de tortura era corriqueira nos

interrogatoacuterios dos DOI Esse fato inclusive poderia ser associado agrave sua proacutepria

designaccedilatildeo que na forma abreviada se apresenta sob a sigla DOI correspondendo

sugestivamente agrave conjugaccedilatildeo do verbo doer na terceira pessoa do singular

Soube que ningueacutem entrava no DOI-CODI sem sofrer algum tipo de tortura

fiacutesica ou psicoloacutegica mas principalmente a fiacutesica e realmente natildeo creio

que algueacutem tenha passado por laacute imune agrave tortura [] Quando a gente chega

ao DOI-CODI chega logo tomando porrada Natildeo tinha essa histoacuteria de meu

senhor era tapa Tapa choque eleacutetrico pau de arara a isso tudo eu fui

submetido O primeiro interrogatoacuterio que natildeo eacute um interrogatoacuterio formal

judicial eacute feito sob essas condiccedilotildees Depois bem depois eacute que eu fui ser

interrogado no DOPS em outras condiccedilotildees [] Eu fui torturado mesmo na

Rua Baratildeo de Mesquita na PE laacute sim eu fui bastante torturado []

(Carvalho 12 set 2002)

81

[] laacute na PE vocecirc natildeo fazia nada a natildeo ser ficar esperando o tempo para ser

interrogada para ser torturada [] (Pandolfi 5 fev 2003)

Laacute no DOI-CODI comia tudo choque pau-de-arara afogamento pancada

Laacute que eu descobri esse termo que fulano virou presunto neacute Porque vocecirc

fica igual a um presunto mesmo porque eles te datildeo pancadas localizadas []

(Freire 28 jun 2004)

[] laacute no DOI-CODI tinha todo tipo de torturas desde choques eleacutetricos na

matildeo direita esquerda peacute esquerdo Eu sofri isso tambeacutem (Prigol 28 set

2004)

[] o meu negoacutecio era ganhar tempo e o deles era conseguir informaccedilatildeo A

luta eacute essa nos primeiros dias eacute vocecirc dar o miacutenimo de informaccedilotildees e eles

querendo arrancar o maacuteximo de informaccedilatildeo neacute Aiacute eles vecircm com a maacutexima

de que torturar eacute investigar (risos) E daiacute se precisar ateacute a morte o negoacutecio

eacute conseguir informaccedilatildeo (Batista 17 nov 2004)

[] onde eram os choques eleacutetricos que na PE eles davam eles me

molhavam toda para o choque ser mais intenso e botavam principalmente

nas partes onde eram mais sensiacuteveis como ouvido nariz boca bico do

peito vagina acircnus[] o choque eleacutetrico eacute indescritiacutevel porque vocecirc perde a

noccedilatildeo do tempo e todo e qualquer controle da bexiga e dos intestinos []

(Coimbra 30 nov 2004)

Portanto ali a incumbecircncia era operar a extraccedilatildeo de informaccedilotildees e para isso a

tortura como meacutetodo era utilizada pelos agentes das turmas de interrogatoacuterio

preliminar Afinal em uma ponta da sofisticaccedilatildeo repressiva apresentada pelos DOI-

CODI estava a concentraccedilatildeo de informaccedilotildees dos CODI e na outra a agilidade que a

extraccedilatildeo de informaccedilotildees possibilitada principalmente pelo uso das torturas durante os

interrogatoacuterios dos presos dava agraves operaccedilotildees de busca e apreensatildeo de mais ldquoelementos

subversivosrdquo

82

A partir dos depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados assim como

da anaacutelise da historiografia selecionada e dos dados trazidos pelo coronel Pereira em sua

monografia percebe-se que os DOI-CODI ocupavam somente uma parte dos quarteacuteis

do Exeacutercito onde se localizavam e na parte restante o funcionamento desses quarteacuteis

continuava normalmente Os DOI-CODI eram portanto prisotildees atiacutepicas diferentes das

convencionais construiacutedas desde o iniacutecio para acomodar prisioneiros Assim eacute coerente

que o serviccedilo de carceragem nos DOI-CODI fosse executado pelos soldados que

serviam ao proacuteprio quartel jaacute que esse era apenas um serviccedilo de apoio um auxiacutelio natildeo

agrave toa feito por agentes de turmas que eram intituladas auxiliares

Os soldados que serviam ao quartel a quem era atribuiacutedo o serviccedilo de

carceragem eram conhecidos no DOI-CODIRJ por ldquocatarinasrdquo devido a suas

caracteriacutesticas fiacutesicas e tambeacutem ao sotaque tiacutepico ao estado de Santa Catarina Os

ldquocatarinasrdquo eram identificados como soldados devido ao fato dos agentes propriamente

do DOI-CODIRJ normalmente andarem a paisana enquanto eles usavam farda ou seja

trajes tradicionais a militares que natildeo estivessem ligados a operaccedilotildees de informaccedilotildees

Os agentes dos DOI-CODI como elucidado por meio da segunda frente deste capiacutetulo

por precisarem ser confundidos com civis se diferenciavam dos demais soldados

Na PE os soldados eram sempre de Santa Catarina [] pessoas de portes

fiacutesicos avantajados e essa condiccedilatildeo fiacutesica era uma espeacutecie de exigecircncia para

servir ao quartel da Poliacutecia Militar Eram entatildeo os ldquocatarinasrdquo [] (Carvalho

8 fev 2003)

[] quem torturava a gente era o pessoal do DOI-CODI normalmente eles

andavam a paisana [] e quem fazia o trabalho burocraacutetico ou seja a

limpeza da PE quem dava o cafeacute da gente quem abria a cela e fechava a

cela eram os soldados uniformizados Eram ateacute os ldquocatarinasrdquo porque

tinham muitos que vinham de Santa Catarina eram soldados altos [] entatildeo

83

os soldados faziam a burocracia e os militares do DOI-CODI faziam essa

parte digamos da investigaccedilatildeo poliacutetica [] (Pandolfi 5 fev 2003)

[] os ldquocatarinasrdquo eram os guardinhas era o pessoal que estava servindo

eles tinham dezoito ou dezenove anos eles estavam servindo ao Exeacutercito e

alguns deles ateacute amenizavam a nossa situaccedilatildeo [hellip] (Batista 17 nov 2004)

Diferentemente do que se percebe na monografia feita pelo coronel Pereira em

1978 nas memoacuterias aqui analisadas a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI no ano de 1970

consagrou-se como um dos periacuteodos mais difiacuteceis de suas vidas Nota-se no entanto

que os nuacutemeros e percentuais que na eacutepoca eram interpretados por muitos militares

como forte indiacutecio de eficiecircncia da instituiccedilatildeo no combate ao ldquoinimigo internordquo estatildeo

em meio ao contexto democraacutetico em que as narrativas dos ex-presos foram construiacutedas

diretamente ligados agrave memoacuteria da tortura e da violaccedilatildeo aos direitos humanos Como se

pode analisar a partir da interpretaccedilatildeo de Ceciacutelia Coimbra uma das ex-prisioneiras

poliacuteticas fundadoras do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro 15

[] eu acho a fala para mim a minha militacircncia no Tortura Nunca Mais

fundamental Em 85 quando a gente fundou o Grupo foi fundamental no

sentido de tornar isso puacuteblico e natildeo soacute como se fosse uma coisa de lamento

da gente uma coisa da dor da gente dessa marca que natildeo vai sair nunca []

mas como instrumento de luta instrumento de denuacutencia [] (Coimbra 30

nov 2004)

Durante o periacuteodo das entrevistas aqueles que viveram a experiecircncia dos DOI-

CODI a partir do outro lado de suas grades muitas vezes veem as dolorosas lembranccedilas

daquele tempo como um meio de fazer justiccedila e ateacute mesmo contribuir para a

solidificaccedilatildeo da democracia enquanto que os militares que no passado se orgulhavam

15

O GTNMRJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-prisioneiros poliacuteticos que viveram situaccedilotildees de

tortura durante o regime militar e por familiares de mortos e desaparecidos poliacuteticos Para mais

informaccedilotildees ver o perfil de Ceciacutelia Coimbra no proacuteximo capiacutetulo

84

de seus feitos lutam no presente por natildeo serem a eles associados Diante disso nota-se

que apoacutes o teacutermino da ditadura em 1985 as memoacuterias dos entatildeo vencidos

movimentam-se de forma a se sobreporem agraves dos vencedores conseguindo aos poucos

garantir seu espaccedilo de viacutetimas da ditadura e ao mesmo tempo de heroacuteis da democracia

na poliacutetica na justiccedila e na histoacuteria

85

Capiacutetulo 2 ndash Os presos poliacuteticos e suas organizaccedilotildees

Nas escolas nas ruas

campos construccedilotildees

Somos todos soldados

Armados ou natildeo

Caminhando e cantando

E seguindo a canccedilatildeo

Somos todos iguais

Braccedilos dados ou natildeo

Os amores na mente

As flores no chatildeo

A certeza na frente

A histoacuteria na matildeo

Caminhando e cantando

E seguindo a canccedilatildeo

Aprendendo e ensinando

Uma nova liccedilatildeo

Geraldo Vandreacute

(Pra natildeo dizer que natildeo falei de flores 1968)

86

Antocircnio Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia satildeo alguns dos brasileiros

que lutaram contra a ditadura militar no paiacutes e que na eacutepoca foram presos pelo governo

nas dependecircncias do DOI-CODI do Rio de Janeiro Trecircs homens e trecircs mulheres que

apesar de suas trajetoacuterias pessoais e poliacuteticas distintas possuem ateacute hoje fortes elos

construiacutedos pela passagem pelo DOI-CODI carioca

Foi especificamente essa vivecircncia prisional comum que me despertou o interesse

pelas memoacuterias desses seis atores histoacutericos O objetivo era a partir da oacutetica dos ex-

prisioneiros entender como funcionava na praacutetica o DOI-CODIRJ Assim entre os

anos de 2002 e 2004 em meio aos governos dos ex-presidentes Fernando Henrique e

Lula ou seja jaacute em tempos democraacuteticos Antocircnio Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana

e Ceciacutelia me concederam entrevistas sobre suas prisotildees no DOI-CODIRJ bem como

sobre suas trajetoacuterias pessoais e poliacuteticas antes e depois de suas prisotildees

Esses depoimentos ndash principal objeto de pesquisa desta dissertaccedilatildeo ndash trazem aleacutem

das lembranccedilas sobre o cotidiano prisional de um DOI-CODI muito da personalidade e

da vivecircncia de cada um desses indiviacuteduos Atraveacutes dessas memoacuterias pode-se lidar com

as idiossincrasias de cada um deles relativizando a ideia de uma memoacuteria coletiva

comum a todos os ex-prisioneiros poliacuteticos que ficaram no quartel da Rua Baratildeo de

Mesquita Pode-se ainda conhecer um pouco mais de perto a loacutegica de construccedilatildeo de

suas memoacuterias individuais analisando como cada um desses indiviacuteduos se vecirc atraveacutes do

passado de militacircncia e prisatildeo como se identifica por meio desse passado imprime essa

identidade no mundo externo e como este mundo influencia na percepccedilatildeo que possui

sobre si mesmo

No entanto as memoacuterias individuais aqui trabalhadas natildeo estatildeo isoladas jaacute que

conforme bem evidenciado por Maurice Halbwachs em A memoacuteria coletiva (2004)

frequentemente tomam como referecircncia pontos externos ao sujeito se apoiando em

87

percepccedilotildees recebidas de determinada memoacuteria coletiva de um grupo e tambeacutem pela

memoacuteria histoacuterica de seu paiacutes (2004 57-59) Partindo dessa ideia percebe-se aqui que

nas memoacuterias narradas por indiviacuteduos que fizeram parte de uma mesma organizaccedilatildeo de

esquerda armada ou que ainda hoje integram um mesmo grupo como por exemplo o

Grupo Tortura Nunca MaisRJ satildeo encontrados mais pontos de contato Aleacutem disso

todos os depoentes mostram ter como base de suas lembranccedilas a memoacuteria histoacuterica

pois em algum momento as localizam no tempo por meio de datas e fatos que se

estabeleceram como histoacutericos tal como o golpe civil-militar de 31 de marccedilo de 1964

ou a decretaccedilatildeo do AI-5 em 13 de dezembro de 1968

Cabe aqui ressaltar que ex-prisioneiros do DOI-CODIRJ entrevistados eram em

sua grande maioria estudantes que se tornaram combatentes da esquerda armada a

partir da proibiccedilatildeo de atividades e manifestaccedilatildeo sobre o assunto de natureza poliacutetica

estipulada pelo inciso III do artigo 5ordm do AI-5 e que em suas memoacuterias a

promulgaccedilatildeo deste Ato representa um marco temporal muito mais forte do que o golpe

civil-militar de 1964 Afinal para suas trajetoacuterias de vida o AI-5 de 13 de dezembro de

1968 foi um divisor de aacuteguas pois tornava as manifestaccedilotildees estudantis proibidas

revoltando-os e estimulando-os ainda mais a lutar pela derrubada do regime ditatorial

Diante disso a maioria dos depoentes sustenta em suas memoacuterias o AI-5 como um

momento em que suas vidas foram postas em xeque A partir do dia de sua

promulgaccedilatildeo eles se viram diante da necessidade de decidir se continuavam ou natildeo a

agir contra a ditadura e em caso positivo se deveriam considerar a violecircncia armada

como uma via de luta uma vez que os movimentos paciacuteficos estavam totalmente

encurralados Como a opccedilatildeo da maior parte deles foi a de pegar em armas ndash decisatildeo que

acarretou natildeo soacute em suas prisotildees mas tambeacutem na mudanccedila da percepccedilatildeo que tinham

sobre a vida jaacute que ao andarem armados passavam a ter a consciecircncia de que viviam

88

sob a ameaccedila da morte ndash o AI-5 tem papel de destaque entre suas memoacuterias do periacuteodo

militar Essa importacircncia do AI-5 pode ser exemplificada no trecho abaixo destacado da

entrevista de Ana de Miranda Batista

O AI-5 foi determinante Porque vocecirc natildeo tinha mais formas de expressatildeo

vocecirc natildeo podia se reunir vocecirc natildeo podia mais fazer nada era impedido pela

poliacutecia A gente estava amordaccedilado a imprensa amordaccedilada os teatros os

cinemas tudo Era um terror muita poliacutecia na rua muita blitz blitz de

montatildeo sabe Quem quisesse ser como a gente -ldquoAbaixo a Ditadura

Abaixo a Repressatildeordquo As formas de expressatildeo se reduziram a quase zero Aiacute

eacute que houve um pontapeacute na decisatildeo de muitos de noacutes de quer dizer soacute

restou a luta armada soacute restou resistir de forma armada mesmo que pra

maioria de noacutes fosse uma decisatildeo extrema [] eu nem uma arma de perto

eu nunca tinha visto Quer dizer esse momento eacute um momento draacutestico

quer dizer um tempo depois eacute que eu conversando eacute que vi que natildeo foi

assim soacute para mim Porque para alguns dos rapazes que tinham servido ao

Exeacutercito e sei laacute o quecirc eles jaacute tinham alguma familiaridade com armas quer

dizer alguns deles Mas a gente menina classe meacutedia natildeo Eu nunca tinha

visto nunca tinha me interessado por arma na vida (risos) natildeo fazia parte do

meu universo E teve muita gente que nessa eacutepoca pirou Pirou que eu digo

de natildeo querer mais saber Muita gente E eu acho extremamente respeitaacutevel

essa decisatildeo porque eacute uma decisatildeo draacutestica [] porque no momento em que

vocecirc estaacute com uma arma vocecirc pode matar ou morrer Eacute muito grave essa

decisatildeo Vocecirc estaacute lidando com a possibilidade da morte e quando vocecirc

nunca teve familiaridade assim quando vocecirc nunca viu uma arma eacute muito

difiacutecil [] (Batista 17 nov 2004)

Vale aqui mais uma vez destacar que essas memoacuterias do passado satildeo lavadas nas

aacuteguas do presente ou seja satildeo o preacutesent du passeacute conforme a feliz expressatildeo de Robert

Frank (1999) As memoacuterias sobre as experiecircncias prisionais do DOI-CODIRJ

ocorridas durante os ldquoanos de chumbordquo da ditadura militar foram construiacutedas em

entrevistas concedidas entre o final do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-

2002) e o iniacutecio do governo de Lula (2003-10) ambos perseguidos poliacuteticos durante o

89

periacuteodo ditatorial Portanto a perspectiva de vencidos que no passado direcionava as

memoacuterias dos depoentes abre lugar para uma narrativa proacutexima agrave de vencedores pela

qual os ex-prisioneiros poliacuteticos se veem como responsaacuteveis pela construccedilatildeo da

democracia e de uma justiccedila de transiccedilatildeo ainda em curso no Brasil

Uma ideia de justiccedila de transiccedilatildeo iniciou-se principalmente a partir da

Constituiccedilatildeo de 1988 quando a reparaccedilatildeo aos perseguidos poliacuteticos do passado

ditatorial se transformou em garantia constitucional No entanto foi somente a partir de

1995 jaacute no governo FHC que ela comeccedilou a ser implantada por meio da primeira

comissatildeo de reparaccedilatildeo a Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos (lei nordm

914095) Aleacutem disso em 2002 sete anos depois a reparaccedilatildeo aos perseguidos pela

ditadura foi complementada por meio da Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio da Justiccedila

(lei nordm 1055902) Assim quando a primeira entrevista me foi concedida em setembro

de 2002 a Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos jaacute trabalhava no sentido de

reconhecer a responsabilidade do Estado brasileiro por mortes e desaparecimentos de

presos poliacuteticos ocorridas durante a ditadura enquanto a Comissatildeo de Anistia iniciava a

sua funccedilatildeo de

[] reparar os atos de exceccedilatildeo incluindo as torturas prisotildees arbitraacuterias

demissotildees e transferecircncias por razotildees poliacuteticas sequestros compelimento agrave

clandestinidade e ao exiacutelio banimentos expurgos estudantis e

monitoramentos iliacutecitos (Abratildeo 2010 4)

Conforme jaacute abordado no primeiro capiacutetulo os procedimentos impostos pela Lei

105592002 influenciaram como natildeo podia deixar de ser o processo de construccedilatildeo das

memoacuterias aqui trabalhadas Afinal o referido processo se iniciava com um relato da

viacutetima sobre as agressotildees e perseguiccedilotildees sofridas agrave eacutepoca ditatorial Este deveria

configurar uma espeacutecie de memorial no qual o requerente deveria destacar todas as

90

violaccedilotildees sofridas a ser apresentado agrave Comissatildeo cabendo a esta apoacutes a verificaccedilatildeo dos

fatos expostos conceder ou natildeo ao requisitante a condiccedilatildeo de anistiado poliacutetico e

dependendo do caso a correspondente reparaccedilatildeo econocircmica Como alguns dos

entrevistados passavam por este processo no mesmo periacuteodo em que concederam as

entrevistas eacute notaacutevel que tal experiecircncia seja mais uma forte influecircncia do presente na

construccedilatildeo das memoacuterias por eles narradas Esse momento de busca por reparaccedilatildeo por

que muitos passavam inconscientemente os conduzia a enfatizar durante as narrativas

suas condiccedilotildees de ldquoviacutetimasrdquo do passado em detrimento por exemplo de suas condiccedilotildees

de ldquosiacutembolos da resistecircnciardquo

Ainda diante da capacidade de intervenccedilatildeo que o presente exerce sobre as

memoacuterias do passado deve-se considerar tambeacutem a forma como essa rede de

entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que as entrevistas foram realizadas

Afinal o caminho trilhado ateacute o depoente e o momento especiacutefico de cada narrativa

composto pelo local e as condiccedilotildees gerais sob as quais ocorreu tambeacutem influenciam na

construccedilatildeo das memoacuterias do entrevistado tanto por parte do historiador na maneira

como aborda o narrador quanto por parte do proacuteprio narrador por meio da forma com

que narra suas memoacuterias Portanto acredita-se aqui que a busca por cada entrevistado

interfere na abordagem que o entrevistador imprime agrave entrevista e na forma como o

narrador se sente ao narrar suas memoacuterias naquele momento tornando o instante de

cada entrevista um fator tambeacutem de intervenccedilatildeo na narrativa das memoacuterias do passado

Dessa forma antes de tratar-se das trajetoacuterias de vida narradas por cada ex-prisioneiro

entrevistado optou-se aqui por considerar como o instante de cada entrevista foi

construiacutedo ou seja como a rede de entrevistas foi formada

91

1 A rede de entrevistas

A primeira entrevista foi feita com o ex-preso poliacutetico Antocircnio Leite de Carvalho

em 12 de setembro de 2002 na sala de sua casa situada bem proacutexima ao quartel do 1ordm

BPE onde se localizava o DOI-CODIRJ O espaccedilo ocupado por esta instituiccedilatildeo que eacute

intensamente abordado no proacuteximo capiacutetulo situava-se nos fundos do referido quartel

cujo edifiacutecio foi construiacutedo durante o Impeacuterio e ainda hoje se encontra entre a Avenida

Maracanatilde e a Rua Baratildeo de Mesquita no bairro da Tijuca na cidade do Rio de Janeiro

Cheguei ateacute Antocircnio atraveacutes de seu filho Joatildeo meu colega do curso de graduaccedilatildeo

em histoacuteria pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Sabedor

do meu interesse sobre o tema da repressatildeo poliacutetica Joatildeo procurou me ajudar e ao

mesmo tempo satisfazer a curiosidade que sentia sobre esta parte da vida de seu pai

Portanto durante a minha primeira visita agrave casa de Antocircnio enquanto ele narrava

suas memoacuterias sobre o periacuteodo em que esteve preso nas dependecircncias do quartel

vizinho Joatildeo atravessava constantemente a sala em direccedilatildeo agrave varanda ou agrave cozinha

Assim sem que Antocircnio aparentemente percebesse jaacute que estava concentrado em sua

narrativa Joatildeo tentava ouvir um pouco mais sobre um passado que seu pai nunca havia

revelado abertamente aos filhos

Percebe-se entatildeo como lidar com detalhes dessa memoacuteria era complicado para

Antocircnio e portanto o quanto aquele momento era importante para ele e para seu filho

Atraveacutes da entrevista enquanto Antocircnio passava a sentir um maior orgulho daquelas

memoacuterias pois por meio do meu interesse em entrevistaacute-lo comeccedilava a percebecirc-las

como fonte para a histoacuteria do paiacutes Joatildeo conhecia melhor o seu pai e passava a entender

algumas de suas atitudes que ateacute entatildeo questionava

Era o caso da reaccedilatildeo arredia que Antocircnio tinha ao ser acordado de forma

inesperada enquanto dormia no sofaacute da casa Assim apoacutes ouvir sobre o cotidiano e as

92

torturas a que seu pai afirma ter sido submetido no DOI-CODIRJ Joatildeo comeccedilou a

compreender que tal reaccedilatildeo tinha relaccedilatildeo com esse passado quando Antocircnio muitas

vezes pode ter sido despertado de desmaios ocasionados por choques eleacutetricos e outras

torturas a ele perpetradas ainda na sala de interrogatoacuterio Logo o fato de acordar

assustado tentando se proteger ou ateacute mesmo agredir quem o acordasse pode ser

compreendido quando relacionado agraves marcas que as violecircncias vividas no DOI-

CODIRJ deixaram na memoacuteria de Antocircnio

A partir dessa primeira entrevista o meu interesse pelo tema se aprofundou

impulsionando-me a buscar outros possiacuteveis entrevistados No dia 5 de fevereiro de

2003 consegui entrevistar Dulce Chaves Pandolfi Seu nome foi aventado por meio da

leitura sobre a passagem de Dulce pelo DOI-CODIRJ encontrada no livro Brasil

Nunca Mais publicado pela Editora Vozes em 1985

A estudante Dulce Chaves Pandolfi 24 anos foi obrigada tambeacutem a servir

de cobaia no quartel da rua Baratildeo de Mesquita no Rio [] Na Poliacutecia do

Exeacutercito foi submetida a espancamento inteiramente despida bem como a

choques eleacutetricos e outros supliacutecios como o ldquopau-de-ararardquo Depois de

conduzida agrave cela onde foi assistida por meacutedico foi apoacutes algum tempo

novamente seviciada com requintes de crueldade numa demonstraccedilatildeo de

como deveria ser feita a tortura [] (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985 32)

Depois de algumas tentativas frustradas de marcar esta entrevista por meio de

mensagens via correio eletrocircnico que encontrei atraveacutes do site do CPDOC centro de

pesquisa onde Dulce trabalha como pesquisadora e professora ela enfim me recebeu em

sua sala no interior deste mesmo centro de pesquisa Sua resistecircncia inicial pode ser

atribuiacuteda ao fato de na condiccedilatildeo de pesquisadora estar mais acostumada ao papel de

entrevistadora do que ao de entrevistada ou seja estar mais afinada com o trabalho de

analisar as fontes do que com o de ser a proacutepria fonte Diante disso durante sua

93

entrevista Dulce natildeo se sentiu agrave vontade em tratar dos detalhes das violecircncias sofridas

no DOI-CODIRJ o que pode ser explicado pela dor que ainda acompanha suas

memoacuterias e tambeacutem pelo desconforto que a situaccedilatildeo lhe trazia jaacute que ela possivelmente

natildeo se desvinculava do fato de ser uma professora universitaacuteria expondo sua intimidade

a uma aluna de graduaccedilatildeo No entanto justamente por lecionar histoacuteria e por

conseguinte jaacute estar convencida da importacircncia de seu depoimento Dulce apresentou

uma narrativa articulada e aparentemente coerente

Apoacutes a entrevista de Dulce ficou evidente a desarticulaccedilatildeo da memoacuteria de

Antocircnio uma vez que esta era silenciada haacute muito tempo e portanto natildeo possuiacutea uma

construccedilatildeo preacute-estabelecida por outros discursos Tal percepccedilatildeo me levou a voltar a

entrevistaacute-lo em 8 de fevereiro de 2003 trecircs dias depois da entrevista de Dulce quando

Antocircnio jaacute demonstrava uma memoacuteria mais articulada Afinal esse silecircncio que

caracterizava sua memoacuteria lhe atribuiacutea um aspecto negativo e um destacadamente

positivo O lado negativo era que conforme elucidado por Michael Pollak em Memoacuteria

esquecimento e silecircncio (1989) dificilmente sua memoacuteria foi transmitida de forma

intacta durante todo o tempo em que ficou guardada ateacute o dia em que a entrevista

significou uma oportunidade para que ela saiacutesse do ldquonatildeo-ditordquo Poreacutem o lado positivo a

meu ver merecedor de destaque era que a memoacuteria de Antocircnio sobre a prisatildeo no DOI-

CODIRJ possuiacutea poucas influecircncias por decorrecircncia do contato com as memoacuterias de

outros ex-prisioneiros pois natildeo estava a elas diretamente relacionada por meio de

nenhuma coletividade especiacutefica

No ano seguinte ao buscar mais informaccedilotildees sobre o DOI-CODIRJ no Arquivo

Puacuteblico do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) conheci Fernando Palha Freire que viria

a ser o meu terceiro entrevistado Na eacutepoca da entrevista em junho de 2004 Fernando

trabalhava neste Arquivo enviando ao governo estadual a documentaccedilatildeo de requerentes

94

agrave reparaccedilatildeo econocircmica conforme constava no decreto nordm 31995 de 10 de outubro de

2002 Este decreto regulamentava a lei estadual Nordm 3744 de 21 de dezembro de 2001

que antes mesmo da lei federal 105592002 entrar em vigor dispunha sobre a

reparaccedilatildeo a pessoas que haviam sido detidas sob acusaccedilatildeo de terem participado de

atividades poliacuteticas entre os dias 1ordm de abril de 1964 e 15 de agosto de 1979 e que

haviam sofrido tortura em oacutergatildeos puacuteblicos estaduais

Ao saber sobre o meu tema de pesquisa um arquivista do APERJ me apresentou a

Fernando que natildeo hesitou em me conceder seu depoimento A entrevista foi realizada laacute

mesmo dentro da sala em que Fernando trabalhava e por ter sido concedida durante o

horaacuterio de expediente fomos constantemente interrompidos por ligaccedilotildees telefocircnicas Ao

longo de sua entrevista Fernando confessou ter falado muitas vezes sobre suas

memoacuterias do periacuteodo militar e que justamente por entender a importacircncia desse

passado havia sido nomeado para instruir os requisitantes agrave reparaccedilatildeo estipulada pelo

Decreto estadual Nordm 319952002 Dessa forma justifica-se a apresentaccedilatildeo tranquila e

eloquente que conduz sua narrativa

Trecircs meses depois no final de setembro Padre Maacuterio Prigol da Paroacutequia de

Nossa Senhora da Salete localizada no bairro do Catumbi no Rio de Janeiro me

concedeu seu depoimento Esta entrevista foi possiacutevel por intermeacutedio de Alejandra

outra colega do curso de graduaccedilatildeo em histoacuteria da UNIRIO que o conhecia por jaacute tecirc-lo

entrevistado sobre a sua participaccedilatildeo nos movimentos da Juventude Operaacuteria Catoacutelica

(JOC) e Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) 16

Durante a entrevista que me concedeu Padre Maacuterio falou muito sobre as lutas

sociais que travou durante a ditadura militar descritas no livro que havia acabado de

publicar ndash Maacuterio Prigol educador da feacute entre trabalhadores e militantes populares

16

Para mais informaccedilotildees ver Estevez 2008

95

(2003) Entretanto sobre sua passagem pelo DOI-CODIRJ pouco fazia questatildeo de

narrar reconhecendo em certo momento que laacute tambeacutem havia sofrido com torturas o

que explica em parte o desconforto que as lembranccedilas prisionais lhe traziam

Provavelmente por sua prisatildeo ter lhe colocado na eacutepoca em uma posiccedilatildeo extremamente

conflitante e perturbadora para uma autoridade da Igreja Catoacutelica anos mais tarde essas

memoacuterias ainda eram difiacuteceis de serem narradas e lembrar a violecircncia sofrida dentro do

DOI-CODIRJ possivelmente trazia de volta alguns transtornos de ordem sentimental

indesejaacuteveis Afinal presume-se que na prisatildeo seus sentimentos oscilassem entre os

tipicamente humanos tais como dor e raiva e os cristatildeos como feacute e perdatildeo tais

memoacuterias remetiam a sentimentos humanos que ele em respeito a sua vocaccedilatildeo de

padre deveria renegar

Decidida a ampliar ainda mais o escopo de minha rede de entrevistados passei a

frequentar as reuniotildees abertas ao puacuteblico agraves segundas-feiras agrave noite na sede do Grupo

Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTMNRJ) no bairro de Botafogo O

GTNMRJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-prisioneiros poliacuteticos que viveram

situaccedilotildees de tortura durante o regime militar bem como por familiares de mortos e

desaparecidos poliacuteticos O Grupo tornou-se por meio das lutas em defesa dos direitos

humanos uma importante referecircncia no cenaacuterio nacional Ao longo dessas deacutecadas o

GTNMRJ vem lutando pelo esclarecimento das circunstacircncias da morte e do

desaparecimento de militantes poliacuteticos pelo resgate da memoacuteria da repressatildeo ditatorial

pelo afastamento imediato dos cargos puacuteblicos de pessoas envolvidas com a tortura e

pela formaccedilatildeo de uma consciecircncia eacutetica condiccedilatildeo que a entidade defende ser

indispensaacutevel na luta contra a impunidade e pela justiccedila Aleacutem disso o Grupo vem

denunciando antigos e novos casos de tortura exigindo puniccedilatildeo para seus perpetradores

96

atraveacutes de notas na miacutedia entrevistas atos puacuteblicos seminaacuterios e outras atividades 17

Minha ida agrave sede do Grupo resultou na incorporaccedilatildeo de duas novas entrevistadas a

minha rede A primeira delas foi Ana de Miranda Batista que em 17 de novembro de

2004 me recebeu em uma das salas do proacuteprio GNTMRJ Ana havia acabado de

escrever seu memorial ndash onde narrava todas as perseguiccedilotildees e prisotildees que havia sofrido

durante a ditadura militar ndash e o havia encaminhado agrave presidecircncia da Comissatildeo Especial

da Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro a fim de comprovar

que fazia jus ao valor maacuteximo da reparaccedilatildeo prevista no Art 5ordm da Lei Estadual nordm 3744

de 21 de dezembro de 2001 O ponto principal de seu argumento era que havia sofrido

todas as mazelas prisotildees torturas fiacutesicas e psicoloacutegicas submetida pelas forccedilas

opressoras da eacutepoca fato este que ateacute hoje tem consequecircncias em sua vida (Batista

2004 10) 18

Antes de comeccedilar a entrevista Ana me concedeu uma coacutepia deste memorial

juntamente com a monografia do entatildeo Coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira

fonte analisada no capiacutetulo anterior cujo teor havia lhe servido como evidecircncia dos

meacutetodos violentos que ocorriam nas dependecircncias do DOI-CODI

Diante disso conforme o esperado seu depoimento oral apresentou um tom

narrativo muito similar ao assumido no referido documento que havia recentemente

escrito Assim orquestrada com o objetivo que tinha de conseguir a reparaccedilatildeo do

Estado Ana buscou construir suas memoacuterias de forma a ressaltar as violecircncias sofridas

ou seja priorizou a condiccedilatildeo de ldquoperseguida poliacutetica e viacutetima da repressatildeo militarrdquo em

detrimento da de ldquolutadora revolucionaacuteriardquo em prol da democracia

No final desse mesmo mecircs de novembro entrevistei a entatildeo vice-presidente do

Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro Ceciacutelia Coimbra Professora do

17

Para mais informaccedilotildees acessar httpwwwtorturanuncamais-rjorgbr 18

Memorial de Ana de Miranda Batista parte do requerimento agrave indenizaccedilatildeo enviado ao Secretaacuterio de

Estado de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro pela proacutepria em outubro de 2004

97

Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Ceciacutelia me

recebeu em uma das salas do preacutedio dessa faculdade localizada no campus do

Gragoataacute na cidade de Niteroacutei Uma das fundadoras do GTNMRJ Ceciacutelia natildeo mostrou

nenhum pudor em lembrar as violaccedilotildees sofridas durante a prisatildeo Detalhou as torturas

recebidas sem demonstrar constrangimento Esta forma de lidar com o passado se

explica pela maneira pela qual Ceciacutelia se auto-identifica Afinal devido a sua profissatildeo

de psicoacuteloga e sua condiccedilatildeo de liacuteder de um grupo que luta por reparar os danos morais e

fiacutesicos deixados pela tortura entende a difusatildeo dos detalhes de sua proacutepria memoacuteria

como uma arma poderosa para que a justiccedila seja feita em prol da redenccedilatildeo dos

torturados e da penalizaccedilatildeo dos torturadores

11 Os sujeitos e suas trajetoacuterias

A partir da anaacutelise dos depoimentos traccedila-se aqui a trajetoacuteria de vida de cada um

dos entrevistados a fim de que sejam desvendados outros fatores que influenciaram a

construccedilatildeo de suas memoacuterias sobre o periacuteodo em que estiveram presos no DOI-

CODIRJ Este periacuteodo se concentra no segundo semestre do ano de 1970 uma vez que

foi nesse momento que todos os seis entrevistados por laacute passaram Este dado temporal

em muito aproxima suas memoacuterias pois significa que estas se referem a uma mesma

fase desse oacutergatildeo repressivo Isso permitiu ateacute mesmo que tais memoacuterias englobassem

momentos compartilhados jaacute que alguns desses ex-prisioneiros laacute se encontraram e ateacute

dividiram uma mesma cela

No entanto cabe aqui destacar que natildeo houve qualquer intenccedilatildeo de entrevistar ex-

prisioneiros que estivessem no DOI-CODIRJ durante esse periacuteodo Conforme exposto

anteriormente a rede de entrevistas foi se desenhando de acordo com as oportunidades

o que torna o fato de todos terem por laacute passado na segunda metade de 1970 natildeo uma

98

feliz coincidecircncia como uma primeira impressatildeo pode fazer crer mas mais uma

demonstraccedilatildeo da alta eficiecircncia dos DOI-CODI Essas prisotildees correspondem justamente

ao periacuteodo em que o DOI-CODIRJ passou a funcionar em meados de 1970

demonstrando na praacutetica o que foi dito no capiacutetulo anterior diante da grande demanda

de accedilotildees que natildeo eram eficientemente combatidas pelos oacutergatildeos de repressatildeo anteriores

a sofisticaccedilatildeo dos DOI ldquorevolucionourdquo de fato a organizaccedilatildeo da repressatildeo agindo jaacute

num primeiro momento de forma avassaladora

Antocircnio Leite de Carvalho19

Antocircnio Leite de Carvalho nasceu no Cearaacute em 13 de agosto de 1945 Quando era

estudante secundarista pertenceu ao movimento que se concentrava no Calabouccedilo

restaurante estudantil proacuteximo ao Aeroporto Santos Dumont do Rio de Janeiro

frequentado por estudantes que eram como ele secundaristas pobres e principalmente

procedentes de outros estados

Em 1967 o governo apresentou planos para a demoliccedilatildeo do Calabouccedilo sob a

justificativa de construir em seu local um trevo rodoviaacuterio para desafogar o tracircnsito do

Aterro do Flamengo A partir disso os estudantes comeccedilaram a protestar contra a sua

demoliccedilatildeo e criaram a Frente Unida dos Estudantes do Calabouccedilo (FUEC) O governo

em maio daquele ano conseguiu demolir o restaurante e entregou em setembro ldquoo novo

Calabouccedilordquo para os estudantes poreacutem em situaccedilotildees precaacuterias Assim a luta da FUEC

continuou em prol da melhoria de suas condiccedilotildees de funcionamento e foi justamente em

torno desses protestos que o primeiro grande conflito de rua do ano de 1968 ocorreu

sensibilizando a opiniatildeo puacuteblica e o movimento estudantil como um todo No dia 28 de

19

Entrevistas realizadas com Antocircnio Leite de Carvalho em 12 de setembro de 2002 e 8 de fevereiro de

2003

99

marccedilo policiais invadiram a tiros o restaurante do Calabouccedilo onde se preparava mais

uma manifestaccedilatildeo contra as peacutessimas condiccedilotildees do local e mataram o estudante

secundarista Edson Luiacutes de Lima Souto de dezoito anos Este assassinato representou o

estopim para o desencadeamento de amplas manifestaccedilotildees contraacuterias agrave ditadura ao

longo do ano de 1968 que seriam cada vez mais reprimidas ateacute se tornarem totalmente

proibidas pelo AI-5 20

A partir desse contexto de ilegalidades e proibiccedilotildees Antocircnio se posicionou entre

os estudantes que optaram por continuar a lutar contra a ditadura de forma radicalizada

Aproximou-se entatildeo do Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR) onde

logo em seguida comeccedilou a militar Antocircnio associa a sua adesatildeo ao PCBR ao

programa deste partido de esquerda que tinha a guerrilha urbana como meio de luta

para a derrubada da ditadura e implantaccedilatildeo do socialismo no paiacutes e principalmente agrave

admiraccedilatildeo que tinha por um dos seus fundadores e liacutederes Apolocircnio de Carvalho

Como Antocircnio teve participaccedilatildeo assiacutedua em muitas passeatas do movimento

estudantil de 1968 conheceu muitas lideranccedilas de organizaccedilotildees que vinham se

formando e buscavam adeptos em meio aos estudantes Assim foi apresentado e

comeccedilou a admirar Apolocircnio de Carvalho um dos grandes motivos que o levaram a

posteriormente militar no PCBR partido cuja formaccedilatildeo atuaccedilatildeo e ideais seratildeo

abordados mais adiante Apolocircnio de Carvalho era uma figura haacute muito atuante na

poliacutetica havia lutado em favor dos republicanos na Espanha durante a Guerra Civil

Espanhola na Resistecircncia Francesa contra o nazismo e participava do Partido

Comunista Brasileiro (PCB) quando em 1967 rompeu com este e foi um dos

fundadores do PCBR 21

20

Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009 108-132 21

Em 1967 Apolocircnio rompeu com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e se tornou um dos fundadores

do PCBR partido em situaccedilatildeo clandestina na eacutepoca motivo que o levou a ser preso Juntamente com

outros 39 presos poliacuteticos Apolocircnio foi trocado pelo embaixador alematildeo que em 11 de junho de 1970

100

O partido era o PCBR que possuiacutea uma grande figura que se chama

Apolocircnio de Carvalho que pertence hoje ao PT ele era uma grande

lideranccedila do partido havia participado da Revoluccedilatildeo Espanhola da

resistecircncia ao nazismo na Franccedila um homem respeitado mundialmente pela

sua coragem e pela luta a favor da democracia e contra os ditadores ele era a

minha grande lideranccedila (Carvalho 12 set 2002)

Em 1970 aos 25 anos Antocircnio Leite de Carvalho foi preso No momento de sua

prisatildeo estava agrave espera de outro militante do PCBR na rua em um ponto de encontro

que havia combinado com ele Relacionando o depoimento de Antocircnio com as

estrateacutegias de captura dos DOI analisadas no primeiro capiacutetulo percebe-se que como o

companheiro de Antocircnio havia sido capturado antes de ir ao seu encontro acabou

informando aos agentes de umas das turmas de interrogatoacuterio preliminar do DOI-

CODIRJ muito provavelmente sob tortura o horaacuterio em que Antocircnio estaria no lugar

marcado A partir disso a informaccedilatildeo foi repassada agrave Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo e

agentes de uma das turmas que a formavam se encaminharam ateacute o local com carros e

roupas descaracterizadas como de praxe e levaram Antocircnio algemado para o DOI-

CODIRJ onde ficou preso durante cerca de trecircs meses

Eu fui preso na rua Eu tinha um encontro com outro militante mas esse

militante foi preso e sob tortura no DOI-CODI aqui no 1deg BPE da Rua

Baratildeo de Mesquita ele abriu o ponto quer dizer o ponto era o local de

encontro que a gente chamava de ponto ldquoTenho um ponto com fulanardquo quer

dizer que vocecirc tinha um encontro Ele abriu o local de encontro que eu teria

com ele e aiacute eu fui preso pelo DOI-CODI (Carvalho 12 set 2002)

havia sido sequestrado por esquerdistas integrantes da Vanguarda Popular Revolucionaacuteria (VPR) e da

Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN) vivendo algum tempo exilado na Argeacutelia Apoacutes a implantaccedilatildeo da Lei

de Anistia no Brasil em 1979 ele e sua famiacutelia retornaram agrave terra natal onde participaram da fundaccedilatildeo

do Partido dos Trabalhadores (PT) em 1980 Apolocircnio faleceu em setembro de 2005 aos 93 anos

(Carvalho 1997 13-16)

101

Antocircnio ressalta que durante a sua prisatildeo no DOI-CODIRJ esteve junto a

Fernando Gabeira e Daniel Aaratildeo Reis Filho Ambos haviam participado do sequestro

do embaixador americano no dia 4 de setembro de 1969 e por terem conseguido trocar

o embaixador por quinze presos poliacuteticos que foram exilados no Meacutexico haviam se

destacado entre os militantes da esquerda armada Aleacutem disso como na eacutepoca em que

Antocircnio concedeu as entrevistas Gabeira e Daniel Aaratildeo eram pessoas publicamente

reconhecidas pela luta contra a ditadura e tambeacutem por suas atividades profissionais ndash

Gabeira como jornalista e entatildeo deputado federal e Daniel Aaratildeo como intelectual ndash

percebe-se que o fato de ter tido contato com eles na prisatildeo eacute importante para a leitura

que Antocircnio faz sobre suas memoacuterias injetando-lhes certo orgulho Afinal apesar de

natildeo ter participado do sequestro Antocircnio tambeacutem havia sido preso e torturado por

pegar em armas contra a ditadura logo o fato de ter convivido na cadeia com essas

figuras jaacute reconhecidas pelos feitos desse mesmo passado lhe trazia no presente uma

dimensatildeo positiva sobre suas memoacuterias

Fiquei preso com pessoas que ficaram famosas como o Fernando Gabeira

que depois se tornou parlamentar foi candidato ao governo do Estado foi

candidato a prefeito e hoje eacute deputado federal Tambeacutem o Daniel Aaratildeo

Reis renomado professor de Histoacuteria e uma seacuterie de outros que hoje estatildeo aiacute

pelo governo inclusive em diversos governos (Carvalho 12 set 2002)

Apoacutes o tempo em que esteve preso no DOI-CODIRJ Antocircnio foi transferido para

o Departamento de Ordem Poliacutetica e Social (DOPS) onde permaneceu por um periacuteodo

de dois ou trecircs meses sendo entatildeo libertado Na eacutepoca em que concedeu a entrevista

Antocircnio aleacutem de bancaacuterio aposentado trabalhava como dirigente sindical em um cargo

eletivo

102

Dulce Chaves Pandolfi22

Dulce Chaves Pandolfi nasceu em Recife no dia 14 de dezembro de 1948

Cursava Ciecircncias Sociais em Pernambuco quando em 1967 entrou para o Diretoacuterio

Acadecircmico se tornando pouco depois secretaacuteria geral do Diretoacuterio Central dos

Estudantes (DCE) A partir de dezembro de 1968 com o AI-5 extinguindo os grecircmios

estudantis e substituindo-os por centros ciacutevicos sem autonomia que natildeo podiam realizar

atividades de natureza poliacutetica a opccedilatildeo de fazer parte da ALN era para Dulce uma

forma de continuar lutando por uma ldquosociedade mais igualitaacuteriardquo Aleacutem disso era

sobretudo um meio de derrubar o regime militar em vigor como se pode conferir na

passagem abaixo

[] a gente queria transformar a sociedade a gente queria o socialismo uma

sociedade igualitaacuteria Mas tinha uma fase anterior que era exatamente a de

querer derrubar a ditadura essa era a meta principal de todos Sabiacuteamos

inclusive que o socialismo natildeo era uma meta imediata era uma luta em

longo prazo [] entatildeo a nossa luta inicialmente era para ser instalado o

regime democraacutetico era a luta contra a ditadura (Pandolfi 5 fev 2003)

Ressalta-se entretanto que a opccedilatildeo de Dulce assim como da maior parte dos

estudantes que a partir do AI-5 se juntaram agraves organizaccedilotildees esquerdistas de luta armada

estava inserida no contexto mundial de 1968 Este por sua vez influenciava-se pela

vitoacuteria da Revoluccedilatildeo Cubana em 1959 pela independecircncia da Argeacutelia em 1962 pela

Guerra Fria que acabou por deflagrar entre os anos de 1959 e 1975 a Guerra do Vietnatilde

e por meio desta o enfrentamento indireto de Estados Unidos e Uniatildeo Sovieacutetica e pela

rebeliatildeo estudantil mundial iniciada a partir do ldquomaio francecircs de 1968rdquo que comeccedilou

por meio de uma manifestaccedilatildeo estudantil pontual questionadora de atitudes culturais

22

Entrevista realizada com Dulce Chaves Pandolfi em 5 de fevereiro de 2003

103

tradicionais e conservadoras e rapidamente atingiu a proporccedilatildeo de uma ldquorevoluccedilatildeo

cultural mundialrdquo Percebe-se entatildeo que o horizonte nesse momento era revolucionaacuterio

e principalmente entre os jovens impulsionava a percepccedilatildeo de que os partidos

tradicionais de esquerda estavam desacreditados e que era hora de uma nova geraccedilatildeo

partir para a accedilatildeo direta rumo agrave revoluccedilatildeo

Assim diferente de como eacute narrado por muitos ex-prisioneiros poliacuteticos em

tempos jaacute democraacuteticos que tais como Dulce veem a democracia do presente como

uma conquista positiva e por isso inconscientemente permitem que essa visatildeo atual

influencie suas memoacuterias de luta percebe-se aqui que a democracia natildeo prevalecia entre

os ideais das organizaccedilotildees de luta armada da eacutepoca muito pelo contraacuterio Afinal

acredita-se que em meio ao contexto mundial do momento as esquerdas armadas

tinham uma perspectiva de fato revolucionaacuteria ou seja valorizavam a revoluccedilatildeo muito

mais que a democracia que inclusive nesse momento estava diretamente associada

aos Estados Unidos e consequentemente ao sistema capitalista Como aponta Daniel

Aaratildeo na obra a Ditadura militar esquerdas e sociedade (2000)

a perspectiva ofensiva revolucionaacuteria que havia moldado aquelas

esquerdas E o fato de que elas natildeo eram de modo nenhum apaixonadas pela

democracia (Aaratildeo Reis 2000 70)

A democracia soacute comeccedilou mesmo a ser valorizada a partir do final da deacutecada de

1970 jaacute em uma nova conjuntura onde jaacute existiam outros significados tais como os

direitos humanos e a luta pela anistia No entanto por outro lado nota-se que conforme

destacado por Dulce a luta contra ditadura era tambeacutem um dos objetivos principais da

esquerda armada no final dos anos 1960 Dessa forma apesar da luta contra ditadura na

eacutepoca estar totalmente vinculada agrave revoluccedilatildeo socialista eacute compreensiacutevel que a

democracia tenha em tempos recentes um papel destacado entre as memoacuterias dos ex-

104

guerrilheiros Tal como analisa Marcelo Ridenti em Resistecircncia e mistificaccedilatildeo da

resistecircncia armada contra a ditadura armadilha para pesquisadores (2004) nota-se

aqui que a face de resistecircncia agrave ditadura das experiecircncias guerrilheiras passou a importar

mais apoacutes a implantaccedilatildeo da democracia que a ofensiva revolucionaacuteria ao contraacuterio da

intenccedilatildeo original dos guerrilheiros Afinal foi esta face que teve o objetivo alcanccedilado

ou seja saiu-se vencedora

Apoacutes o AI-5 Dulce optou entatildeo por militar na Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN)

organizaccedilatildeo de esquerda armada que seraacute abordada ainda neste capiacutetulo Assim no ano

de 1970 sabendo que estava sendo procurada pela repressatildeo por conta de sua militacircncia

clandestina Dulce se mudou para a cidade do Rio de Janeiro Sete meses depois no dia

14 de agosto foi presa na casa do seu namorado e levada direto para o DOI-CODIRJ

onde permaneceu cerca de trecircs meses

[] fui presa na casa do meu namorado noacutes fomos presos agrave noite no dia 14

de agosto Fui levada direto para PE Fiquei na PE mais ou menos uns trecircs

meses fiquei ateacute novembro comecinho de dezembro eu acho Depois eu

fui transferida para o DOPS (Pandolfi 5 fev 2003)

Apoacutes permanecer presa no DOI-CODI Dulce foi levada para o DOPS e depois

de seu julgamento foi transferida para o presiacutedio Talavera Bruce prisatildeo feminina de

regime fechado com grau de seguranccedila maacutexima localizada no bairro de Bangu

Passado um ano foi levada de volta para Recife sua cidade natal onde finalmente foi

libertada Encontrou-se prisioneira por mais de um ano de agosto de 1970 ateacute dezembro

de 1971

[] depois de um tempo praticamente um ano que eu estava presa fui

levada para Recife porque eu tambeacutem tinha processo laacute e de laacute eu saiacute Fui

105

solta laacute em Recife depois de um ano Saiacute em dezembro de 1971 fui presa

em agosto de 70 e fui solta em dezembro de 71 (Pandolfi 5 fev 2003)

Dulce no momento de sua entrevista jaacute era professora e pesquisadora do Centro de

Pesquisa e Documentaccedilatildeo de Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil (CPDOC) da Fundaccedilatildeo

Getuacutelio Vargas (FGV) ofiacutecio que exerce ateacute os dias de hoje

Fernando Palha Freire23

Fernando Palha Freire nasceu em Beleacutem (PA) e se mudou para o Rio de Janeiro

no fim de 1964 Antes de vir para o Rio ainda adolescente aprendeu alguns

fundamentos marxistas com sua irmatilde mais velha jaacute universitaacuteria que lhe deu o que ele

chamou de uma ldquonoccedilatildeo de mundordquo Quando se mudou para o Rio de Janeiro Fernando

mesmo jovem jaacute havia se definido esquerdista

Agrave eacutepoca do AI-5 Fernando tinha muitos amigos que militavam em uma

Dissidecircncia do Partidatildeo de Niteroacutei a Dissidecircncia do Estado do Rio de Janeiro que em

meados de 1969 foi desmontada atraveacutes da prisatildeo de seus integrantes pelo oacutergatildeo de

repressatildeo da Marinha o Centro de Informaccedilotildees da Marinha o CENIMAR Como esta

organizaccedilatildeo natildeo tinha um nome especiacutefico para noticiar o seu desmonte na imprensa

com um efeito grandioso os militares daquele oacutergatildeo optaram por nomeaacute-la de

Movimento Revolucionaacuterio 8 de outubro (MR-8) fazendo alusatildeo agrave data em que Che

Guevara havia sido capturado na Boliacutevia morrendo no dia seguinte Foi inclusive a

partir disso que a Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-GB)24

para provocar o

governo ditatorial que haacute pouco havia noticiado o desmonte do perigoso ldquoMR-8rdquo

23

Entrevista realizada com Fernando Palha Freire em 28 de junho de 2004 24

Tais organizaccedilotildees de esquerda da eacutepoca ainda seratildeo abordadas neste capiacutetulo no item 12 A nova

esquerda brasileira

106

assinou em co-autoria com a ALN o sequestro do embaixador norte-americano

autointitulando-se MR-8 como passou desde entatildeo a ser conhecida 25

[] quando veio o golpe minha irmatilde jaacute era universitaacuteria eu era um garoto

eu tinha quinze anos [] ela que me deu mesmo uma noccedilatildeo de mundo de

marxismo Quando veio o golpe noacutes moraacutevamos em Beleacutem No final de 64

eu estava me mudando para o Rio de Janeiro jaacute com essas noccedilotildees de justiccedila

social que eu havia aprendido com ela Digamos assim eu jaacute era

definidamente um cara de esquerda Aiacute veio a luta armada [] a primeira

organizaccedilatildeo [desmontada pelos militares] era o MR-8 uma organizaccedilatildeo de

Niteroacutei uma dissidecircncia do Partidatildeo [PCB] de Niteroacutei onde muitos de seus

integrantes eram meus conhecidos meus amigos entatildeo quando esses caras

foram presos eu jaacute era digamos assim um simpatizante dessa organizaccedilatildeo

natildeo era militante mas era simpatizante [] (Freire 28 jun 2004)

A partir dessa ligaccedilatildeo com outros militantes Fernando optou pela luta armada e

passou a militar na ALN mesma organizaccedilatildeo de Dulce Sua militacircncia poreacutem

concentrava-se em Niteroacutei no estado do Rio de Janeiro onde morava e estudava

economia na Universidade Federal Fluminense (UFF) Assim em 1970 Fernando e

outros militantes da ALN proacuteximos a ele resolveram planejar uma accedilatildeo para que muitos

de seus companheiros inclusive os do antigo MR-8 fossem libertados

No dia 1deg de julho de 1970 aos 22 anos Fernando participou do sequestro de um

aviatildeo da Companhia Cruzeiro do Sul que ia do Brasil para a Argentina com o objetivo

de negociar a troca dos passageiros por quarenta presos poliacuteticos

[] a gente pensou em fazer uma accedilatildeo accedilatildeo no sentido de tentar libertar esse

pessoal Na eacutepoca jaacute tinham sequestrado o embaixador americano e

trocado por quinze presos poliacuteticos [] Entatildeo nesse sentido a gente

resolveu planejar o sequestro de um aviatildeo A gente sequestrou um aviatildeo com

o objetivo de trocar os passageiros por quarenta presos poliacuteticos Quer dizer

25

Para mais informaccedilotildees sobre a mudanccedila de nome da Dissidecircncia da Guanabara para MR-8 ver

Berquoacute 1997 72-73

107

a gente entrou num processo de radicalizaccedilatildeo mesmo A gente queria era a

libertaccedilatildeo [] soacute que essa accedilatildeo natildeo deu certo [] (Freire 28 jun 2004)

O sequestro parecia correr como o planejado Durante o vocirco Fernando e os outros

militantes conseguiram desviar a rota que saiacutea do Rio de Janeiro para Buenos Aires

com escala em Satildeo Paulo fazendo o aviatildeo retornar ao Rio Poreacutem no Aeroporto

Internacional do Rio de Janeiro o Galeatildeo oficiais da Aeronaacuteutica cercaram o aviatildeo e

conseguiram render os opositores poliacuteticos envolvidos na operaccedilatildeo antes que eles

conseguissem negociar a troca dos refeacutens pelos quarenta prisioneiros poliacuteticos Durante

o combate um dos sequestradores irmatildeo de Fernando levou um tiro vindo a falecer

horas depois

A gente chegou a desviar o aviatildeo um aviatildeo que ia pra Argentina com uma

parada em Satildeo Paulo a gente mandou o aviatildeo voltar e quando chegamos ao

Rio o aviatildeo foi cercado Os caras chegaram com gaacutes lacrimogecircneo lama

arma e nessa accedilatildeo o meu irmatildeo foi baleado e depois morreu Eles mataram

meu irmatildeo A gente foi preso pelo CISA que era a forccedila secreta da

Aeronaacuteutica [] Jaacute na descida do aviatildeo a gente apanhou natildeo se sabe de

quem e nem por onde Depois fomos torturados no aparelho de repressatildeo

deles laacute dentro e de laacute fomos transferidos pro DOI-CODI na PE (Freire 28

jun 2004)

Primeiramente aprisionado pelo Centro de Informaccedilotildees e Seguranccedila da

Aeronaacuteutica (CISA) Fernando foi pouco tempo depois transferido para o DOI-

CODIRJ onde permaneceu cerca de dezoito a vinte dias Posteriormente voltou para

as dependecircncias do CISA no aeroporto do Galeatildeo onde ficou cerca de oito meses ateacute

ser julgado Apoacutes seu julgamento foi conduzido para o Instituto Penal Cacircndido Mendes

(IPCM) presiacutedio de seguranccedila maacutexima localizado em Ilha Grande no estado do Rio de

Janeiro Para Fernando em meio agraves privaccedilotildees que vivia nos oacutergatildeos de repressatildeo ser

transferido para um presiacutedio de fato como o da Ilha Grande era na eacutepoca um desejo

108

Afinal aleacutem de saber que laacute estavam alguns de seus companheiros no IPCM existia

uma rotina de presiacutedio normal com direito a jogar futebol no paacutetio a ler jornais e livros

situaccedilatildeo bem diferente da dos DOI-CODI por exemplo que conforme destacado no

capiacutetulo anterior eram oacutergatildeos estritamente de repressatildeo e investigaccedilatildeo localizados em

quarteacuteis cuja prisatildeo era improvisada apenas para cumprir tais funccedilotildees

Oito meses foi o tempo que a gente ficou laacute na Aeronaacuteutica E aiacute o que eacute a

perspectiva de vida Os sonhos da gente Vocecirc quando estaacute preso o seu

sonho eacute fugir realmente mas se vocecirc natildeo tem perspectiva de fuga o seu

sonho eacute o quecirc Eacute ir pra uma coletividade onde estatildeo os outros presos Entatildeo

meu sonho passou a ser esse ir pra Ilha Grande [] laacute eu sabia que os

companheiros estavam laacute sabia que tinha uma lsquopeladinharsquo que a gente podia

bater uma bola campeonato de xadrez livros para ler coisa que esses caras

sacaneavam tanto a gente que nem livros Jornal Raacutedio Essas coisas Nem

pensar Entatildeo meu sonho era Ilha Grande Apesar de ser um lugar

horroroso Era na eacutepoca um presiacutedio de seguranccedila maacutexima isolado (Freire

28 jun 2004)

Fernando permaneceu mais de seis anos na prisatildeo sendo libertado no dia 29 de

setembro de 1976 Ele e os demais companheiros envolvidos no sequestro tiveram suas

condenaccedilotildees embasadas no artigo 28 do Decreto-lei 898 de 29 de setembro de 1969

que alterava a Lei de Seguranccedila Nacional A partir deste artigo ficava estipulada uma

pena de reclusatildeo que poderia variar de 12 a 30 anos para quem devastasse saqueasse

assaltasse sequestrasse incendiasse depredasse ou praticasse qualquer tipo de atentado

pessoal ato de massacre sabotagem ou terrorismo Aleacutem disso no mesmo artigo havia

um paraacutegrafo uacutenico decretando que se a accedilatildeo resultasse em morte a condenaccedilatildeo seria

no miacutenimo agrave prisatildeo perpeacutetua e no maacuteximo agrave morte

Art 28 Devastar saquear assaltar roubar sequestrar incendiar depredar

ou praticar atentado pessoal ato de massacre sabotagem ou terrorismo

109

Pena reclusatildeo de 12 a 30 anos

Paraacutegrafo uacutenico Se da praacutetica do ato resultar morte

Pena prisatildeo perpeacutetua em grau miacutenimo e morte em grau maacuteximo (Decreto-

lei nordm 898 29 set 1969)

A partir desse decreto durante o julgamento de Fernando tentaram condenaacute-lo agrave

prisatildeo perpeacutetua baseando a argumentaccedilatildeo no fato do sequestro do aviatildeo ter acarretado

uma morte no caso a de seu irmatildeo No entanto como esta morte foi ocasionada pela

repressatildeo militar a pena de Fernando ficou estipulada em doze anos de reclusatildeo e mais

adiante reduzida para seis anos

[] tinha uma lei de seguranccedila nova entrado em evidecircncia os caras queriam

dar o exemplo com pena de morte ou prisatildeo perpeacutetua etc e noacutes fomos os

primeiros casos de pena de morte que eles pediram O meu o de Colombo

Jessie Jane - Jane eacute a ex-diretora daqui [Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio

de Janeiro ndash APERJ] [] tinha um artigo vinte e oito que previa pena capital

ou prisatildeo perpeacutetua em caso de morte Soacute que quem morreu foi um dos

nossos o meu irmatildeo foi morto por eles e eles em cima disso tentando

aplicar essa pena soacute que natildeo colou E eu peguei doze anos Colombo pegou

trinta mas era menor aiacute caiu pra dezoito a Jane de vinte e quatro parece

que a Jane caiu pra dezoito E eu como tinha a questatildeo de ser primaacuterio natildeo

sei mais o quecirc enfim quer dizer eu estou resumindo Aiacute por conta disso

fui condenado e fiquei seis anos [] (Freire 28 jun 2004)

Na eacutepoca da entrevista Fernando trabalhava no Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio

de Janeiro (APERJ) onde possuiacutea um cargo de confianccedila conforme explicado

anteriormente Hoje Fernando Palha Freire eacute comerciante responsaacutevel pela cantina do

primeiro piso do preacutedio do Instituto de Filosofia e Ciecircncias Sociais (IFCS) da

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

110

Padre Maacuterio Prigol26

Padre Maacuterio Prigol nasceu em 12 de novembro de 1928 em Vila Gramado no

municiacutepio de Paulo Bento no Rio Grande do Sul Em 1970 quando foi preso era

assistente da Juventude Operaacuteria Catoacutelica (JOC) e da Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO)

grupos ligados agrave Igreja Catoacutelica criados para atender a problemas de jovens e adultos

trabalhadores 27

Apoacutes o golpe de 1964 organizaccedilotildees como a JOC e a ACO ganharam

forccedila entre muitos trabalhadores devido agraves dificuldades impostas pelo governo militar

para a organizaccedilatildeo em sindicatos

A sede nacional da JOC era aqui no morro de Satildeo Joseacute Operaacuterio atraacutes da

Penitenciaacuteria [antigo Complexo Penitenciaacuterio Frei Caneca] era na favela []

eu trabalhei com a JOC de Satildeo Paulo e depois vim para caacute trabalhava na

Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria que hoje se chama MTC Movimento dos

Trabalhadores Cristatildeos Esse movimento preparava os jovens e adultos dos

sindicatos dos partidos poliacuteticos de todos os setores da sociedade onde haacute

trabalhadores que procuram descobrir os acontecimentos a situaccedilatildeo operaacuteria

e sobretudo melhorar a sua condiccedilatildeo de trabalhador E vamos lembrar que

naquela eacutepoca havia a nova lei [lei 458964] que soacute podia ser diretor do

sindicato quem natildeo tinha nada que comprometesse entatildeo todos aqueles que

lutavam pela greve contra a puniccedilatildeo da greve ou de forma geral pelos

trabalhadores natildeo podiam ser nem diretores de associaccedilotildees nem diretores de

sindicatos [] soacute poderia ser diretor de sindicato quem fosse aprovado pela

Lei de Seguranccedila Nacional (Prigol 28 set 2004)

Padre Maacuterio se destaca entre os ex-prisioneiros entrevistados por aleacutem de ser uma

autoridade de uma instituiccedilatildeo de importacircncia mundial como a Igreja Catoacutelica sua

atuaccedilatildeo ser diferente da dos demais natildeo estando ligada agrave esquerda armada da eacutepoca e

ao meio estudantil Quando foi preso no DOI-CODIRJ em 1970 Padre Maacuterio jaacute natildeo

era mais tatildeo jovem para ser estudante e sua formaccedilatildeo poliacutetica natildeo era a mesma da

26

Entrevista realizada com Padre Maacuterio Prigol em 28 de setembro de 2004 27

A JOC e ACO seratildeo abordadas ainda neste capiacutetulo no item 12 A nova esquerda brasileira

111

geraccedilatildeo que pegava em armas jaacute que sua intenccedilatildeo enquanto assistente da JOC e da

ACO era ajudar os trabalhadores a garantirem os seus direitos e para tanto opunha-se

agraves leis impostas pela ditadura solidificando entre os integrantes dessas associaccedilotildees uma

consciecircncia de reivindicaccedilatildeo classista sem entretanto aspirar propriamente a uma

revoluccedilatildeo socialista

Percebe-se poreacutem que a concomitacircncia entre os periacuteodos prisionais de Padre

Maacuterio e os demais entrevistados natildeo eacute casual Afinal diante da ideia de revoluccedilatildeo

socialista que guiava as accedilotildees armadas que se multiplicavam e ganhavam forccedila apoacutes o

AI-5 a consciecircncia de reivindicaccedilatildeo de classe que a JOC e conforme seraacute abordado

adiante principalmente a ACO disseminavam aos seus trabalhadores eram

interpretadas como ameaccediladoras pela repressatildeo Uma vez que as organizaccedilotildees

guerrilheiras tinham por meta justamente conseguir apoio da classe trabalhadora para

concluiacuterem o plano de revoluccedilatildeo socialista e o trabalho da JOC e da ACO vinha unindo

e organizando uma percepccedilatildeo de classe justamente entre os trabalhadores havia uma

forte propensatildeo que futuramente tais trabalhadores se unissem agrave esquerda em prol da

revoluccedilatildeo socialista

Diante disso explica-se o fato de Padre Maacuterio ter sido preso em meados de 1970

pelos agentes de uma das turmas de busca e apreensatildeo do DOI-CODIRJ durante a

invasatildeo feita ao Instituto Brasileiro de Estudos Sociais (IBRAES) que funcionava na

Casa dos Jesuiacutetas localizada na Rua Bambina no bairro de Botafogo Ele outros

integrantes da JOC e os demais estudantes que assistiam ao curso de desenvolvimento

social foram levados ao DOI-CODIRJ Este curso tinha duraccedilatildeo de aproximadamente

oito meses ao longo dos quais os alunos adquiriam informaccedilotildees sobre o sistema

poliacutetico e econocircmico do Brasil

112

Dias antes dos agentes chegarem ateacute o curso toda a direccedilatildeo nacional da JOC

havia sido presa inclusive dois alunos do IBRAES que foram levados ao DOI-

CODIRJ onde possivelmente sob tortura passaram aos agentes da turma de

interrogatoacuterio preliminar de plantatildeo informaccedilotildees sobre o curso que estava ocorrendo na

Rua Bambina Assim quando os agentes do DOI-CODIRJ chegaram ao local

prenderam todos que estavam participando do curso levando primeiro os militantes e

depois os padres Entre eles estavam Padre Maacuterio e Padre Agostinho de Freitas na

eacutepoca assistente latino-americano da JOC

Noacutes fomos presos natildeo por causa do curso mas porque esses elementos do

DOI prenderam esse pessoal da JOC considerados subversivos e

procuravam um dos assistentes que jaacute tinha sido acusado em Belo Horizonte

de ser subversivo o Padre Manuel de Jesus Ele foi assistente nacional da

JOC mas na eacutepoca natildeo era mais assistente [] entatildeo para prender Manuel

de Jesus foram prendendo toda a direccedilatildeo nacional da JOC que foram

torturados barbaramente torturas como por exemplo os homens

sexualmente em todos os aspectos foram torturados Eram quatro jovens

homens e quatro jovens mulheres e entre esses jovens havia dois alunos do

IBRAES onde eu fazia curso onde vaacuterios desses militantes da JOC tambeacutem

participavam inclusive o Manuel de Jesus Entatildeo no IBRAES os militantes

da JOC foram levados presos primeiro e noacutes padres depois e mais ainda

foi preso o assistente latino-americano da JOC Padre Augustinho Freitas

que hoje trabalha em Nova Iguaccedilu Entatildeo todos noacutes fomos presos []

(Prigol 28 set 2004)

Ao ser preso Padre Maacuterio foi levado diretamente para o DOI-CODIRJ onde

juntamente com os outros padres permaneceu por 54 dias enquanto os jovens

militantes da JOC permaneceram por cerca de trecircs meses Por ser padre sua prisatildeo foi

interrompida pela intervenccedilatildeo de cardeais como explica no trecho a seguir destacado

de seu livro autobiograacutefico

113

D Trevisan D Waldir Dom Aloiacutesio e Padre Celso Pinto que estava ligado

ao Secretariado dos Leigos da CNBB [Conferecircncia Nacional de Bispos do

Brasil] informaram a nossa situaccedilatildeo aos cardeais Mais tarde com a

libertaccedilatildeo de alguns de noacutes realizamos um encontro para discutirmos as

humilhaccedilotildees que sofremos (Prigol 2003 117)

Na eacutepoca em que a entrevista foi concedida Padre Maacuterio aos 75 anos era

missionaacuterio saletino trabalhava na Paroacutequia de Nossa Senhora da Salette no Catumbi e

ainda ocupava o cargo de assistente do MTC (Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos)

antiga Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) Atualmente aos 83 anos Padre Maacuterio ainda

permanece ativamente nessas mesmas funccedilotildees

Ana de Miranda Batista28

Ana Bursztyn nome de solteira de Ana de Miranda Batista nasceu no Rio de

Janeiro em 30 de dezembro de 1948 Era militante estudantil enquanto cursava

Farmaacutecia na UFRJ Foi presa pela primeira perto do clube Botafogo de Futebol e

Regatas localizado na Avenida Venceslau Braacutes no bairro de Botafogo em junho de

1968 juntamente com trezentos estudantes Ela e os demais haviam participado de uma

assembleia estudantil na reitoria da UFRJ no campus da Praia Vermelha que

reivindicava mais verbas do governo federal para o ensino superior Os policiais a

levaram para o DOPS libertando-a no dia seguinte Eleita em outubro de 1968

representante dos estudantes de seu curso participou do Congresso da Uniatildeo Nacional

dos Estudantes (UNE) em Ibiuacutena quando foi novamente capturada pela poliacutecia com

mais de 800 estudantes permanecendo pouco mais de uma semana em reclusatildeo

Ateacute 1968 eu fazia parte do Movimento Estudantil do Diretoacuterio da Faculdade

tudo que tinha de movimento estudantil fazia parte da minha preocupaccedilatildeo

28

Entrevista realizada com Ana de Miranda Batista em 17 de novembro de 2004

114

Em junho a gente foi preso no campus de Botafogo [] Nesse dia em que eu

fui presa pela primeira vez foi um dia que cerca de trezentos estudantes

foram presos porque como a gente estava batalhando por mais verbas era

um dia em que o Conselho Universitaacuterio estava reunido na Praia Vermelha

jaacute que a reitoria era na Praia Vermelha [] laacute pelas tantas veio uma notiacutecia

de que tinham cercado a universidade [] e a gente natildeo estava esperando

isso a gente fazia umas passeatas na cidade mas a barra natildeo era pesada []

Aiacute o reitor decidiu sair na frente dos estudantes e atraacutes dele saiacuteram as

lideranccedilas das faculdades - eu era a lideranccedila da minha faculdade - e depois

uns trezentos estudantes Aiacute eles comeccedilaram a atirar para baixo para o chatildeo

[] e a gente saiu correndo sem enxergar nada e a poliacutecia dando porrada e a

gente sem enxergar nada (risos) Fomos entatildeo andando em direccedilatildeo ao tuacutenel

quando algueacutem disse ldquo- Vem por aqui por aquirdquo Sem saber que era uma

cilada fomos quase os trezentos para laacute Quando a gente entrou ldquo- Todo

mundo pro chatildeordquo Fomos presos no DOPS naquele dia e passamos a noite laacute

[] Daiacute eacute que a gente comeccedilou a fazer as grandes passeatas na cidade ateacute

que comeccedilou a ter passeata sempre mobilizaccedilotildees [] Em outubro de 68 a

gente foi para o Congresso de Ibiuacutena em Satildeo Paulo que foi um congresso

da UNE que estava clandestina na eacutepoca onde fomos todos presos Foi aiacute eacute

que ficou preso natildeo sei cerca de oitocentos estudantes Eles ateacute fizeram um

aacutelbum ficharam todo mundo Esse foi o aacutelbum que eles mostravam na

imprensa e nos cartazes depois porque evidentemente quando a barra

pesou metade das lideranccedilas do movimento estudantil foi para a luta armada

[] mas a gente ficou uma semana preso e depois de uma semana ou dez

dias a gente saiu Mas a barra comeccedilou a pesar mesmo a partir de 13 de

dezembro com o AI-5 [] (Batista 17 nov 2004)

Apoacutes o decreto do AI-5 Ana assim como Antocircnio se aproximou de alguns

integrantes do PCBR poreacutem diferentemente dele natildeo chegou a militar no partido

tornando-se tal como Dulce e Fernando militante da ALN Em Satildeo Paulo para onde

fugiu quando estava sendo perseguida Ana foi presa no dia 14 de julho de 1970 dentro

do magazine Mappin no centro da cidade Na situaccedilatildeo Ana portava uma arma e

115

carregava carteira de identidade falsa pela qual se chamava Naacutedia Zanzin conforme

descreve na passagem abaixo

Quando eu saiacute da casa que a gente estava o Bacuri [codinome de Eduardo

Collen Leite seu companheiro de organizaccedilatildeo] me deu uma arma e dezoito

caacutepsulas porque eu estava sendo procurada [] eu estava com uma carteira

de identidade falsa me chamava Naacutedia Zanzin [] fui presa entatildeo com

nome falso e foi um bafafaacute o cara quis me tirar a arma da matildeo e entatildeo eu

reagi teve um tiro [] Naquele dia eu tinha perdido o lsquopontorsquo [ponto de

encontro com outro militante] porque eu fiquei conversando com a minha

amiga e cheguei atrasada O ponto era perto do centro da cidade e como eu

tinha que esperar duas ou trecircs horas ateacute o proacuteximo encontro eu fiquei

rodando por laacute onde entrei numa loja grande como se fosse a antiga Mesbla

[] chamava-se Mappin Laacute eu fiquei comprando coisas para maquiagem

para mudar a minha cara [] Laacute dentro eles tinham vaacuterios seguranccedilas e um

ou dois deles ficaram em duacutevida se tinham reconhecido ou natildeo quem eu era

e se aproximaram de mim Eu estava na fila para pagar quando se eles se

aproximaram e disseram ldquo- Essas coisas a senhora paga em outro lugarrdquo Aiacute

eu ldquo- Mas eu estou na fila para pagarrdquo Aiacute eles ldquo- Vem com a gente que a

senhora vai pagar em outro lugarrdquo Entatildeo entrei no elevador e fui parar no

seacutetimo andar na parte de seguranccedila da loja Laacute eles queriam que eu me

explicasse Eu tirei tudo o que eu tinha da bolsa eu fui tirando e mostrei para

eles que estava com dinheiro na bolsa e estava na fila para pagar Aiacute eles ldquo-

Natildeo natildeo eacute isso natildeo mas a gente precisa revistarrdquo E eu fui tirando tudo da

bolsa para ver se eles natildeo me revistavam mas eles ldquo- Natildeo a gente vai

revistarrdquo Aiacute comeccedilaram a lutar comeccedilou um pega bolsa e tira bolsa que eu

natildeo queria porque a arma estava no fundo da bolsa Aiacute eu falava ldquo- Natildeo

mas natildeo precisa estaacute tudo aquirdquo Mas natildeo era isso natildeo era porque eles

achavam que eu estava roubando eles desconfiavam de alguma coisa e natildeo

sabiam bem o quecirc e resolveram me revistar Aiacute eu reagi Depois disso

chamaram o delegado e me botaram amarrada na cadeira laacute em cima no

andar da seguranccedila da loja (Batista 17 nov 2004)

116

Esse mesmo episoacutedio foi retratado dois dias depois em um trecho do Jornal da

Tarde de 16 de julho de 1970 conforme Elio Gaspari destaca em seu livro As Ilusotildees

Armadas a Ditadura Escancarada (2002)

[] Ana Bursztyn ex-estudante de farmaacutecia presa [] no magazine Mappin

Um vigilante desconfiara ao vecirc-la colocar cosmeacuteticos numa sacola (da loja)

e levou-a a uma sala onde estava o chefe de seguranccedila Ana meteu a matildeo na

bolsa puxou um Taurus 32 feriu-o com um tiro na perna mas natildeo

conseguiu fugir (Gaspari 2002 299-300)

De fato no momento de sua prisatildeo Ana resistiu e disparou um tiro atingindo no

peacute um dos seguranccedilas da loja que era policial militar Naquele dia Ana foi levada presa

sem saber o que de fato tinha ocorrido com aquele homem Assim em novembro de

1970 mecircs do aniversaacuterio da ldquoIntentona Comunistardquo de 1935 Ana ainda presa leu em

um jornal uma relaccedilatildeo de mortos pelos terroristas divulgada pelos oacutergatildeos de seguranccedila

do governo Laacute o homem em quem havia atirado estava listado como morto e ela como

sua assassina Ana passou a carregar a culpa de tecirc-lo matado ateacute que algum tempo

depois ao vecirc-lo assistindo a seu julgamento constatou que o seguranccedila havia

sobrevivido e que aquela notiacutecia era mais um dos boatos que o governo na eacutepoca

costumava veicular na imprensa a fim de manipular a opiniatildeo puacuteblica

Depois disso durante anos quando eu estava presa no dia da Intentona

Comunista que eu acho que eacute novembro de 1935 colocavam nos jornais em

todos os jornais uma relaccedilatildeo dos mortos pelos terroristas entre aspas que

eacuteramos noacutes [] eu li que o cara laacute Izidoro Zambaldi foi morto pela

terrorista Ana Bursztyn Ele na hora da briga eu briguei com ele ele recebeu

um tiro acho que no peacute esbarrou assim no peacute ele ficou uns dias internado e

saiu ele estava no meu julgamento na audiecircncia Quer dizer e durante

muito tempo eu achando que tinha o matado Era um dos que eles

117

contabilizavam como mortos por noacutes E provavelmente ele estaacute aiacute vivo ateacute

hoje [] (Batista 17 nov 2004)

Ana foi presa portanto por ter sido reconhecida por um policial que tambeacutem

trabalhava como seguranccedila para a loja Mappin Provavelmente isso ocorreu pelo fato

dos organismos de repressatildeo colarem pelos muros da cidade bem como distribuiacuterem

nos estabelecimentos privados muitos folhetos e cartazes com fotos dos ldquoterroristas

procuradosrdquo pela ditadura militar entre os quais Ana A divulgaccedilatildeo de tais fotos era

mais uma forma que os agentes da repressatildeo utilizavam para cercar os suspeitos Assim

qualquer pessoa poderia denunciar e qualquer policial poderia prender tais suspeitos No

entanto caso a prisatildeo natildeo fosse feita pelos agentes do DOI-CODI da respectiva Regiatildeo

Militar obrigatoriamente depois de preso o cidadatildeo considerado ldquosubversivordquo deveria

ser para laacute transferido conforme ocorreu com Ana Afinal como jaacute analisado no

primeiro capiacutetulo o DOI-CODI de cada Regiatildeo concentrava as informaccedilotildees sobre

seguranccedila interna de cada aacuterea portanto laacute existiam as condiccedilotildees necessaacuterias para que a

extraccedilatildeo e anaacutelise das informaccedilotildees que os prisioneiros detivessem fossem trabalhadas

de forma mais eficiente

Diante disso Ana nos primeiros dias de prisatildeo passou pelo DOPS-SP e em

seguida pelo DOI-CODISP sendo posteriormente transferida para o DOI-CODIRJ

Laacute permaneceu por um mecircs voltando para DOI-CODISP passando ainda pelo

DOPSSP Depois de julgada foi levada para o Recolhimento de Presos Tiradentes ndash

localizado na Rua Tiradentes na cidade de Satildeo Paulo ndash para o Presiacutedio de Mulheres ndash

localizado no antigo Complexo Penitenciaacuterio do Carandiru tambeacutem na cidade de Satildeo

Paulo ndash e ainda passou por delegacias das poliacutecias Federal do Rio de Janeiro e de Satildeo

Paulo pelo Presiacutedio do Forte de Copacabana no Rio de Janeiro e por fim pelo

Depoacutesito de Presas Satildeo Judas Tadeu localizado no preacutedio do DOPS-RJ Permaneceu

118

presa por cerca de quatro anos conseguindo liberdade condicional em fevereiro de

1974

Ana de Miranda Batista nome que adotou depois de casada eacute farmacecircutica

bioquiacutemica e na eacutepoca em que concedeu a entrevista era ativista do Grupo Tortura

Nunca MaisRJ (GTNMRJ)

Ceciacutelia Coimbra29

Ceciacutelia Maria Bouccedilas Coimbra nasceu no Rio de Janeiro em 16 de marccedilo de 1941

Ao ingressar no curso de Histoacuteria da Universidade do Brasil atual UFRJ Ceciacutelia que

era por descendecircncia familiar ldquoconservadora e catoacutelicardquo em suas proacuteprias palavras

comeccedilou a questionar-se poliacutetica e religiosamente Iniciou assim sua militacircncia no

Partido Comunista Brasileiro (PCB) clandestino na eacutepoca Entre 1962 e 1963

trabalhou em um programa de alfabetizaccedilatildeo de adultos pelo meacutetodo do educador Paulo

Freire fato que visivelmente a marcou muito Apoacutes o golpe de 64 Ceciacutelia continuou

militando no Partido Comunista poreacutem com muitas discordacircncias ateacute quando comeccedilou

a fazer parte de uma das dissidecircncias do referido partido a Dissidecircncia Comunista da

Guanabara a que ela se refere por ldquoPC da Guanabarardquo

[] eu vim de uma famiacutelia muito tradicional extremamente tradicional meu

pai era um conservador era um cara que era portuguecircs a favor do regime

ditatorial de Salazar A minha matildee era extremamente catoacutelica Tanto que

quando eu entrei para faculdade para fazer Histoacuteria eu era uma pessoa

extremamente conservadora Era lacerdista a favor do Carlos Lacerda

contra Joatildeo Goulart contra os comunistas A minha famiacutelia era muito

anticomunista E quando eu entrei para a faculdade eu ateacute falei isso na

entrevista para a lsquoCaros Amigosrsquo [sua entrevista havia sido capa da Revista

Caros Amigos naquele mesmo mecircs] comecei a ter contato com algumas

29

Entrevista realizada com Ceciacutelia Maria Bouccedilas Coimbra em 30 de novembro de 2004

119

pessoas que eram comunistas e eram pessoas muito interessantes muito

inteligentes e eram pessoas com as quais as duacutevidas que eu tinha com

relaccedilatildeo agrave religiatildeo eu comecei a tirar Porque eu comecei a ler marxismo aiacute

eu comecei a ler materialismo histoacuterico materialismo dialeacutetico e eu comecei

a ver que de repente a religiatildeo era uma coisa produzida pelo proacuteprio

homem [] Eu comecei entatildeo em 6263 a participar de reuniatildeo do Partido

Comunista que era clandestino na eacutepoca e acabei entrando para o Partido

Aiacute comecei a namorar um cara que depois se tornou meu marido e foi preso

comigo que haacute pouco tempo eu ateacute me separei [] Ele jaacute era do Partido

Comunista haacute muito tempo a famiacutelia dele era toda uma famiacutelia formada por

comunistas ao contraacuterio da minha (risos) Em 64 veio o golpe mas aiacute eu

antes disso eu acho que tem a ver porque isso para mim tambeacutem eacute

militacircncia eu fui trabalhar com um programa de alfabetizaccedilatildeo de adultos

pelo meacutetodo Paulo Freire eu trabalhei com o proacuteprio Paulo Freire em 63 um

pouco antes do golpe [] Entatildeo depois do golpe eu continuei militando no

Partido mas jaacute com muitas discordacircncias quer dizer discordava de muita

coisa e aiacute comecei a fazer parte do que se chamou de Dissidecircncia do PC da

Guanabara (Coimbra 30 nov 2004)

Entretanto Ceciacutelia comeccedilou a discordar tanto da luta armada que a Dissidecircncia

Comunista da Guanabara a partir de 1968 veio a adotar quanto do caminho paciacutefico e

institucional defendido pelo PCB se afastando de ambos Dessa forma em 1968

Ceciacutelia Coimbra natildeo militava em nenhuma organizaccedilatildeo mas continuou a manter

contato com muitos companheiros que se tornaram guerrilheiros Destaca-se portanto a

partir do caso especiacutefico de Ceciacutelia como a histoacuteria oral eacute importante para que a

complexidade da militacircncia poliacutetica da eacutepoca seja compreendida Afinal por meio dessa

metodologia torna-se possiacutevel perceber que nem todos os estudantes que estiveram

ligados ao movimento estudantil e agraves dissidecircncias do Partido Comunista em meio ao

arrocho da repressatildeo acompanharam a decisatildeo de partir para a luta armada tomada por

muitas dissidecircncias e nem mesmo resolveram retornar agrave luta paciacutefica travada pelo

Partido Comunista Logo a histoacuteria oral permite atraveacutes dos depoimentos dos

120

militantes daquele tempo observar que tal como Ceciacutelia muitos desses militantes

ficaram principalmente a partir do AI-5 agrave margem da atuaccedilatildeo poliacutetica apesar de natildeo

terem abandonado os ideais de esquerda

Quando foi presa em 1970 Ceciacutelia natildeo estava diretamente relacionada a nenhuma

organizaccedilatildeo esquerdista entretanto como ainda relacionava-se com muitos militantes

guerrilheiros e algumas vezes ateacute mesmo abrigando-os em sua casa tinha informaccedilotildees

consideradas relevantes para os agentes do DOI-CODIRJ o que veio a ocasionar sua

prisatildeo Como vivia de forma legalizada com famiacutelia e emprego Ceciacutelia tinha passado

juntamente com seu marido a ajudar seus companheiros clandestinos Sua casa na

eacutepoca localizada no bairro do Engenho de Dentro na zona norte do Rio de Janeiro

passou a servir como esconderijo para alguns amigos que diferentemente de Ceciacutelia e

Novaes haviam continuado militantes da Dissidecircncia Comunista da Guanabara mesmo

apoacutes sua opccedilatildeo pela luta armada Entre os amigos que receberam guarida em sua casa

estavam Franklin Martins e Fernando Gabeira ambos envolvidos no sequestro do

embaixador norte-americano

Gabeira inclusive esteve hospedado na casa do casal logo apoacutes a libertaccedilatildeo do

referido embaixador sequestrado em setembro de 1969 Por conta disso em agosto de

1970 Ceciacutelia Coimbra e seu marido Joseacute Novaes foram denunciados e presos

[] eu ajudava muito esses companheiros porque eu tinha vida legal eu jaacute

era professora tinha casa tinha filho e meu marido era professor de

Filosofia entatildeo a nossa casa era onde as pessoas se escondiam passavam

uma noite passavam dias escondidos Por exemplo o pessoal do Movimento

estudantil o Franklin Martins o Fernando Gabeira [] todos eles passaram

por laacute entatildeo a gente ajudava muito [] Em 1969 o pessoal do MR-8 que

eram companheiros nossos amigos e tal vieram nos procurar para perguntar

se noacutes poderiacuteamos dar um apoio a um ato a uma accedilatildeo como se dizia na

eacutepoca a uma accedilatildeo que ia acontecer Mas a gente natildeo sabia que era o

sequestro do embaixador E aiacute depois de um tempo a gente ficou com o

121

Fernando Gabeira [] Eacute oacutebvio que depois a gente soube porque foi depois

que eles entregaram o embaixador que eles se esconderam laacute em casa E aiacute a

televisatildeo dava e a gente sacou que o Gabeira estava ali com a gente porque

natildeo tinha como guardar seguranccedila porque jaacute estava na televisatildeo a cara de

todos eles E a gente guardou ele laacute A gente soube que ele tinha participado

do sequestro do embaixador e conversaacutevamos muito sobre isso Ele ficou

algum tempo laacute em casa e depois saiu Um tempo depois a gente foi

denunciado a casa estava sendo observada e a gente natildeo sabia []

(Coimbra 30 nov 2004)

Ceciacutelia e Joseacute Novaes apoacutes terem a casa onde moravam cercada por agentes do

DOPSRJ foram para laacute levados e laacute permaneceram por dois dias No DOPS Ceciacutelia

ficou sob interrogatoacuterio por um dia e meio para que esclarecesse a origem de um

documento encontrado no interior de sua casa No segundo dia de prisatildeo foi levada para

o presiacutedio feminino Satildeo Judas Tadeu localizado no proacuteprio preacutedio do DOPSRJ Apoacutes

permanecerem dois dias e meio no DOPS Ceciacutelia e Novaes foram transferidos para o

DOI-CODIRJ

Ceciacutelia Coimbra ficou cerca de trecircs meses presa no DOI-CODIRJ sendo

libertada em novembro de 1970 Natildeo foi transferida para nenhum outro presiacutedio sendo

libertada diretamente do DOI-CODIRJ por meio da menagem conforme analisado no

primeiro capiacutetulo Sendo assim uma vez que natildeo foi constatado nenhum envolvimento

direto de Ceciacutelia com alguma accedilatildeo ldquosubversivardquo ela estava impedida de sair da cidade

ateacute a data de seu julgamento e durante esse iacutenterim teve que comparecer ao DOI-

CODIRJ regularmente para se apresentar e responder ao Inqueacuterito Policial Militar

(IPM)

Na eacutepoca da entrevista Ceciacutelia aleacutem de vice-presidente do GTMNRJ lecionava

no curso de Psicologia da UFF Atualmente continua com essas mesmas atividades

poreacutem no GTNMRJ ocupa hoje o cargo de presidente

122

12 A nova esquerda brasileira

Para melhor entender as memoacuterias dos ex-prisioneiros poliacuteticos aqui entrevistados

eacute importante caracterizar as organizaccedilotildees de esquerda nas quais os seis militavam

quando foram presos no DOI-CODIRJ Afinal a opccedilatildeo de atuar atraveacutes de certas

organizaccedilotildees estaacute diretamente relacionada com a percepccedilatildeo de mundo que cada um

tinha e tambeacutem com a ousadia a coragem as frustraccedilotildees por que passaram e com tantos

outros sentimentos e sensaccedilotildees que certamente influiacuteram diretamente na construccedilatildeo da

memoacuteria de cada um desses indiviacuteduos sobre o periacuteodo militar

Como jaacute destacamos ao traccedilarmos o perfil dos entrevistados as organizaccedilotildees em

que os estudantes Antocircnio Leite Fernando Palha Dulce Pandolfi e Ana de Miranda

militavam ao serem presos eram o PCBR e a ALN grupos poliacuteticos de esquerda ligados

ao combate armado Jaacute Padre Maacuterio era assistente da ACO e da JOC ndash associaccedilotildees

criadas para atender demandas de jovens e adultos trabalhadores e catoacutelicos Ceciacutelia

Coimbra era a uacutenica que natildeo era diretamente ligada a alguma organizaccedilatildeo na eacutepoca de

sua prisatildeo mas sua participaccedilatildeo anterior na Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-

GB) influenciou de forma indireta em sua prisatildeo e por isso merece ser aqui

considerada A partir disso analisa-se nesta seccedilatildeo de trabalho o PCBR a ANL a JOC a

ACO e a Dissidecircncia Comunista da Guanabara que passou a chamar-se MR-8

Diferentemente da JOC e da ACO que eram associaccedilotildees ligadas ao trabalho

social feito pela Igreja Catoacutelica o PCBR a ANL a DI-GBMR-8 faziam parte do que

vinha sendo nomeado desde a deacutecada de 1960 de nova esquerda brasileira Essa nova

esquerda era formada pelas dissidecircncias do Partido Comunista surgindo como forma de

buscar caminhos alternativos para a transformaccedilatildeo social e segundo Maria Paula

Arauacutejo em A utopia fragmentada (2000) natildeo era um fenocircmeno tipicamente brasileiro

123

ocorrendo concomitantemente em outras partes do mundo como Alemanha Franccedila

Itaacutelia Estados Unidos e Meacutexico 30

As organizaccedilotildees desta nova esquerda brasileira aleacutem de serem marcadas pelo

signo da dissidecircncia e pela busca de caminhos alternativos possuiacuteam outras ideias em

comum Havia entre elas uma forte desconfianccedila em relaccedilatildeo agraves formas tradicionais de

atuaccedilatildeo e representaccedilatildeo poliacuteticas jaacute que os tradicionais partidos comunistas na

avaliaccedilatildeo desses militantes eram travados por complicados aparatos burocraacuteticos Em

oposiccedilatildeo a essa linha dita ldquoconservadorardquo valorizaram a accedilatildeo revolucionaacuteria imediata

Aleacutem disso a maioria recusava a alianccedila com ldquofraccedilotildees das classes dominantesrdquo forma

como viam o Movimento Democraacutetico Brasileiro (MDB) na eacutepoca uacutenico partido de

oposiccedilatildeo consentido pela ditadura militar Enquanto o PCB continuava mantendo o

programa de via paciacutefica para o socialismo a dita nova esquerda defendia a luta armada

como a principal forma de atuaccedilatildeo naquele momento apesar de divergirem entre si

sobre as estrateacutegias a seguir 31

As divergecircncias internas no PCB atingiram o aacutepice por ocasiatildeo dos preparativos

para o VI Congresso do partido convocado para dezembro de 1967 Os debates acerca

das Teses para Discussatildeo veiculadas na Voz Operaacuteria publicaccedilatildeo clandestina do

Comitecirc Central do PCB causaram muita polecircmica Essas Teses propunham que a

derrota da ditadura deveria ser alcanccedilada por meio da alianccedila com setores progressistas

incluindo a burguesia e da participaccedilatildeo do PCB na poliacutetica institucional reafirmando a

opccedilatildeo pelo caminho paciacutefico para a revoluccedilatildeo social Tais Teses geraram uma total

insatisfaccedilatildeo dos setores oposicionistas do PCB que se revoltaram contra o Comitecirc

Central do chamado Partidatildeo Assim sem a participaccedilatildeo dos dissidentes internos o

PCB realizou o seu VI Congresso e reafirmou a ideia trazida pelas Teses

30

Para mais informaccedilotildees ver Arauacutejo 2000 35-72 31

Para mais informaccedilotildees ver Aaratildeo Reis Saacute 2006 15

124

Pelos jornais da grande imprensa os dissidentes souberam do Congresso e de suas

resoluccedilotildees dentre as quais a que expulsava do partido grandes lideranccedilas da Corrente

Revolucionaacuteria Esta corrente do Partidatildeo divergia de seu Comitecirc Central liderado por

Luiacutes Carlos Prestes e havia se organizado nacionalmente sob a denominaccedilatildeo de

Corrente Revolucionaacuteria Entre suas grandes lideranccedilas expulsas a partir das resoluccedilotildees

do VI Congresso do PCB estavam Carlos Marighella liacuteder da Corrente em Satildeo Paulo

Maacuterio Alves liacuteder em Minas Gerais Jacob Gorender liacuteder no Rio Grande do Sul e

Apolocircnio de Carvalho lideranccedila no antigo Estado do Rio de Janeiro32

Dessa forma em 1968 os principais membros da Corrente Revolucionaacuteria

estavam definitivamente afastados do PCB e juntamente com os militantes que os

seguiram se organizaram e formaram outras organizaccedilotildees poliacuteticas o PCBR e a ALN

Os liacutederes Apolocircnio de Carvalho Jacob Gorender e Maacuterio Alves formaram o Partido

Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR) partido clandestino de esquerda em que

Antocircnio Leite militava ao ser preso e o liacuteder Carlos Marighella fundou a Accedilatildeo

Libertadora Nacional (ALN) organizaccedilatildeo clandestina de esquerda adotada por Dulce

Pandolfi Fernando Palha e Ana Batista

Por outro lado existia outra vertente de divergecircncias internas do PCB as

chamadas Dissidecircncias mais conhecidas pela sigla DI formadas basicamente por

setores estudantis Existiam dissidecircncias em vaacuterios estados brasileiros mas seria a da

Guanabara onde Ceciacutelia Coimbra militou anos antes de ser presa que alcanccedilaria maior

destaque no cenaacuterio poliacutetico e estudantil da deacutecada de 1960

32

Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009

125

Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-GB)

As Dissidecircncias Universitaacuterias surgiram no periacuteodo preacute-1964 em meio a diversas

divergecircncias que abalaram o PCB principalmente em suas bases universitaacuterias Em

1964 esses estudantes divergentes se agruparam e comeccedilaram a reunir militantes de

diferentes universidades a fim de articular posiccedilotildees poliacuteticas que natildeo se afinavam com o

que as direccedilotildees do partido haviam estabelecido ndash no jargatildeo comunista eram as

chamadas ldquofraccedilotildeesrdquo As ldquofraccedilotildeesrdquo eram de acordo com o estatuto proibidas dentro do

partido logo eram executadas secretamente A ldquofraccedilatildeordquo da Guanabara foi inicialmente

constituiacuteda por estudantes comunistas das faculdades de filosofia e de direito hoje

pertencentes agrave UFRJ

Em 1965 as divergecircncias entre os dissidentes e a direccedilatildeo do PCB na Guanabara

comeccedilaram a se mostrar evidentes A orientaccedilatildeo do partido era para que seus militantes

fizessem campanha para o candidato a governador da Guanabara Francisco Negratildeo de

Lima indicado pela alianccedila PTB-PSD considerada de oposiccedilatildeo ao regime militar Com

a crescente radicalizaccedilatildeo do movimento estudantil a Dissidecircncia foi ganhando forccedila

Nas eleiccedilotildees parlamentares de 1966 apesar da orientaccedilatildeo do Partidatildeo para que sua

militacircncia votasse em determinados candidatos os dissidentes da Guanabara resolveram

fazer campanha pelo voto nulo ocasionando o rompimento definitivo entre os dois A

antiga ldquofraccedilatildeordquo passaria a ser a Dissidecircncia Comunista da Guanabara uma nova

organizaccedilatildeo independente com orientaccedilatildeo para a luta armada e com ampla influecircncia

no movimento estudantil carioca 33

Entretanto em 1967 a Dissidecircncia Comunista da Guanabara enfrentaria uma

grave crise poliacutetica interna Naquele momento muitos militantes da organizaccedilatildeo

apresentavam posiccedilotildees divergentes sobre quais rumos ela deveria trilhar Alguns

33

Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009

126

achavam que a Dissidecircncia deveria se integrar agrave Corrente Revolucionaacuteria que ainda

estava lutando internamente para mudar o PCB outros almejavam consolidar a

Dissidecircncia Comunista da Guanabara de forma a tornaacute-la uma organizaccedilatildeo nacional

reunindo nela dissidecircncias que ainda deveriam se desvincular do Partidatildeo e um terceiro

grupo a se juntar ao Partido Comunista do Brasil (PC do B) 34

Afinal a partir do V Congresso do PCB realizado em setembro de 1960 sob

influecircncia da revisionismo aprovado no XX Congresso do Partido Comunista Sovieacutetico

tinha sido aprovada uma nova resoluccedilatildeo poliacutetica para o partido Esta apesar da

resistecircncia dos opositires internos que seguiam a linha de pensamento marxista-

leninista modificava o programa do PCB tornando a nova taacutetica do partido a conquista

de um governo nacionalista e democraacutetico por meio de um processo eleitoral e da

pressatildeo de massas excluindo assim a via armada de seu programa Dessa forma foram

afastados da direccedilatildeo do PCB a maioria de seus opositores e eleito um Comitecirc Central

composto em grande parte por destacados revisionistas como Luiacutes Carlos Prestes

Logo em 18 de fevereiro de 1962 a maior parte dos comunistas que se opunham agrave nova

linha do PCB se separaram do partido e atraveacutes de uma Conferecircncia Extraordinaacuteria

aprovaram um programa que defendia a estrateacutegia chinesa de guerra popular

prolongada se aproximando do maoiacutesmo e adotaram a sigla PC do B (Partido

Comunista do Brasil) Em 1969 o PC do B deflagrou na regiatildeo de Tocantins um foco

guerrilheiro que ficou conhecido como Guerrilha do Araguaia esta foi neutralizada

pelos militares no final de 1973 atraveacutes do extermiacutenio de grande parte dos militantes

envolvidos

Em 1967 um ano depois de se tornar independente a resoluccedilatildeo para a crise

interna da Dissidecircncia Comunista da Guanabara foi o seu desmembramento Apoacutes este

34

Para mais informaccedilotildees ver Aaratildeo Reis 1990 e Ridenti 1993

127

desmembramento e duas conferecircncias internas realizadas em 1968 a Dissidecircncia

Comunista da Guanabara consolidou-se novamente como organizaccedilatildeo autocircnoma tendo

suas lideranccedilas agrave frente das grandes manifestaccedilotildees estudantis ndash que chegavam ao auge

de mobilizaccedilatildeo ndash e conquistando espaccedilo no cenaacuterio nacional Com o seu crescimento

junto ao movimento estudantil a DI-GB se ampliou notavelmente Apoacutes a decretaccedilatildeo

do AI-5 que tornava ilegal o movimento poliacutetico-estudantil a DI-GB organizou em

1969 uma nova conferecircncia reafirmando o seu empenho revolucionaacuterio de caraacuteter

comunista assumindo oficialmente a partir de entatildeo sua opccedilatildeo pela luta armada

Nessa eacutepoca Ceciacutelia Coimbra jaacute havia saiacutedo da organizaccedilatildeo e natildeo participava de

nenhum outro grupo de esquerda apesar de manter contato com muitos companheiros

que continuaram na militacircncia Afinal como abordado durante a anaacutelise de sua

trajetoacuteria Ceciacutelia preferiu se desligar por natildeo concordar nem com a poliacutetica paciacutefica do

entatildeo Partidatildeo e nem com a luta armada das demais organizaccedilotildees inclusive da

Dissidecircncia Comunista da Guanabara pois segundo ela achava que estas estavam

muito desvinculadas da sociedade e por isso natildeo teriam ecircxito

[] eu achava que natildeo era por aiacute eu discordava muito da questatildeo da luta

armada mas eu tambeacutem discordava da posiccedilatildeo do Partido Comunista que

era a favor do caminho paciacutefico a favor do caminho institucional parece

muito o PT de hoje a questatildeo da luta institucional que natildeo era pegando em

armas que natildeo era pela luta armada Eu natildeo concordava nem com um nem

com outro porque o pessoal da luta armada estava totalmente desvinculado

da sociedade brasileira entatildeo eu me afastei mas eu continuei com muito

contato com vaacuterios companheiros e aiacute comeccedilou 67-68 [] (Coimbra 30

nov 2004)

Em setembro de 1969 a Dissidecircncia Comunista da Guanabara juntamente com a

ALN elaborou e promoveu o sequestro do embaixador norte-americano no Brasil

128

Charles Burke Elbrick A accedilatildeo teve ecircxito e os envolvidos conseguiram trocar o

embaixador por quinze prisioneiros poliacuteticos entre eles importantes liacutederes estudantis

da antiga DI-GB Durante esse sequestro conforme explicado anteriormente os

militantes da entatildeo Dissidecircncia resolveram mudar o nome da organizaccedilatildeo para

Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro (MR-8) assinando esse novo nome no

manifesto entregue agrave imprensa

A mudanccedila de Dissidecircncia Comunista da Guanabara para MR-8 era na realidade

uma provocaccedilatildeo agrave ditadura Alguns meses antes do sequestro do embaixador americano

a repressatildeo havia desarticulado uma organizaccedilatildeo poliacutetica e anunciado que tinha

destruiacutedo o grupo terrorista Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro Poreacutem de acordo

com Alberto Berquoacute em O sequumlestro dia-a-dia (1997) o oacutergatildeo repressor que havia

prendido aqueles militantes o CENIMAR inventou esse nome pois o grupo capturado

era na verdade a Dissidecircncia do Estado do Rio de janeiro que a rigor se

autodenominava apenas como Organizaccedilatildeo Os militares entatildeo para anunciar a notiacutecia

na imprensa causando um maior impacto atribuiacuteram agrave Organizaccedilatildeo o nome de MR-8

fazendo referecircncia agrave data em que o guerrilheiro socialista Ernesto ldquoCherdquo Guevara havia

sido preso pela Central Intelligence Agency (CIA) na Boliacutevia Dessa forma ao

utilizarem o nome de MR-8 os militantes da ateacute entatildeo Dissidecircncia Comunista da

Guanabara estariam anunciando pertencerem agrave mesma organizaccedilatildeo que os militares

divulgaram meses antes jaacute estar aniquilada desmoralizando-os publicamente 35

Algum tempo depois do sequestro do embaixador a maioria de seus envolvidos

ou foram presos ou mortos pela repressatildeo Fernando Gabeira um dos militantes do MR-

8 envolvidos nessa accedilatildeo era conhecido de Ceciacutelia Coimbra e de seu marido desde a

eacutepoca em que militavam na Dissidecircncia Comunista da Guanabara Assim apoacutes a troca

35

Para mais informaccedilotildees sobre a mudanccedila de nome da Dissidecircncia Comunista da Guanabara para MR-8

ver Berquoacute 1997 72-73

129

do embaixador pelos prisioneiros poliacuteticos Gabeira por estar sendo procurado acabou

se escondendo na casa do casal fato que veio a ocasionar posteriormente a prisatildeo tanto

de Ceciacutelia quanto de seu marido nas dependecircncias do DOI-CODIRJ

Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR)

O partido clandestino pelo qual Antocircnio Leite militava ao ser preso o PCBR

havia sido criado em abril de 1968 a partir da expulsatildeo de liacutederes da Corrente

Revolucionaacuteria do PCB conforme mencionado anteriormente Um dos liacutederes e

tambeacutem fundador do PCBR Jacob Gorender na obra Combate nas Trevas a esquerda

brasileira (1999 111-116) caracteriza-o como marxista tendo por estrateacutegia de accedilatildeo a

combinaccedilatildeo entre guerrilha rural e trabalho de massas nas cidades com vistas agrave

formaccedilatildeo de um Governo Popular Revolucionaacuterio que abriria caminho para a

revoluccedilatildeo socialista

A partir dessa ideia de trabalho com as massas nas cidades o PCBR buscou

integrar-se agraves lutas estudantis de 1968 por meio das quais Antocircnio Leite de Carvalho

conheceu melhor a ideologia e as lideranccedilas do partido e posteriormente resolveu

tornar-se seu militante Aleacutem disso desenvolveu ainda algum trabalho nas faacutebricas nas

aacutereas rurais e promoveu entre os anos de 1969 e 1970 algumas accedilotildees armadas como

assaltos a bancos e roubos de veiacuteculos a fim de financiar a atuaccedilatildeo do partido Contudo

o PCBR sofreu com sucessivas prisotildees de seus liacutederes e integrantes restringindo de tal

forma o seu poder de accedilatildeo que logo no iniacutecio da deacutecada de 1970 jaacute se encontrava quase

totalmente desarticulado

O precoce fracasso do PCBR segundo a avaliaccedilatildeo feita por Antocircnio ainda

durante sua primeira entrevista (12 set 2002) deve-se ao fato da estrateacutegia de revoluccedilatildeo

pregada pelo partido ser utoacutepica Afinal para Antocircnio os militantes e liacutederes do PCBR

130

inclusive ele proacuteprio acreditavam que com algumas poucas accedilotildees urbanas isoladas

conseguiriam o apoio da grande massa ao movimento revolucionaacuterio e tomariam o

poder Por conseguinte entende que foi justamente esse isolamento a causa da grande

derrota do PCBR como se pode conferir no trecho abaixo

Era uma grande utopia faziacuteamos duas accedilotildees urbanas na cidade e achaacutevamos

que essas accedilotildees seriam capazes de fazer as pessoas aderirem ao nosso

movimento e conseguiriacuteamos o apoio da grande massa [] Isso nunca iria

acontecer porque eram movimentos basicamente de conquistas quer dizer

que trabalhavam isolados e foi o isolamento a causa da nossa grande derrota

(Carvalho 12 Set 2002)

Entretanto eacute importante destacar que esta avaliaccedilatildeo soacute pocircde ser feita a partir do

presente quando jaacute se sabia que a luta armada havia sido derrotada muito antes da

ditadura terminar e que a democracia havia se tornado uma realidade Afinal logo apoacutes

o AI-5 a luta armada e a forma de atuar do PCBR representavam para seus militantes

uma forte possibilidade de derrubar a ditadura militar Eles natildeo se submeteriam a

arriscar suas vidas em prol de uma luta na qual natildeo tivessem total convicccedilatildeo Logo

percebe-se um anacronismo na avaliaccedilatildeo que Antocircnio faz sobre sua luta naquele

passado o que eacute muito comum entre as memoacuterias construiacutedas por ex-guerrilheiros da

eacutepoca conforme destacado pela revolta de um dos que concederam seus depoimentos a

Alzira Alves de Abreu em Os anos de chumbo memoacuteria da guerrilha (1998)

B [nome atribuiacutedo ao ex-guerrilheiro pela autora para preservar sua

identidade] comeccedilou chamando a atenccedilatildeo para o fato de que a mamoacuteria

daquela fase histoacuterica eacute muito precaacuteria ldquoNa verdade ela foi muito mal

construiacuteda acabou virando um folclore e acabou se contando a histoacuteria desse

periacuteodo de traacutes para frente ndash quer dizer sabendo que a luta armada natildeo deu

certo vamos contar por que ela natildeo deu certo Na eacutepoca em que ela ocorreu

ela era um campo de possibilidades natildeo era mais do que isso Mas hoje jaacute se

131

comeccedila a falar desse movimento para se mostrar o fim dessa histoacuteria[]

(Abreu 1998 31)

Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN)

A organizaccedilatildeo em que militavam Dulce Pandolfi Fernando Palha e Ana de

Miranda no momento de suas prisotildees a ALN foi fundada por Carlos Marighella em

fevereiro de 1968 depois de deixar o PCB Marighella havia sido expulso do Partidatildeo

sob a alegaccedilatildeo de ter viajado para Havana em Cuba sem a autorizaccedilatildeo do Comitecirc

Central do partido para participar da conferecircncia da Organizaccedilatildeo Latino-Americana de

Solidariedade (OLAS) ndash organizaccedilatildeo que tinha como objetivo estender a revoluccedilatildeo

armada por toda a Ameacuterica Latina nos moldes da Revoluccedilatildeo Cubana de 1959

Em apoio a Marighella apoacutes sua expulsatildeo do PCB as bases de Satildeo Paulo tambeacutem

se desligaram do partido e formaram o Agrupamento Comunista de Satildeo Paulo O

Pronunciamento desse grupo em fevereiro de 1968 fundou oficialmente a Accedilatildeo

Libertadora Nacional (ALN) muito embora o primeiro quadro de militantes da

organizaccedilatildeo tenha ido treinar em Cuba ainda em setembro de 1967 36

O nome Accedilatildeo Libertadora Nacional seria uma referecircncia agrave Alianccedila Nacional

Libertadora organizaccedilatildeo poliacutetica criada em 1935 composta por setores de diversas

correntes ideoloacutegicas basicamente a fim de lutar contra a influecircncia fascista no Brasil

Nesse mesmo sentido a ALN tambeacutem visava aleacutem da luta socialista a libertaccedilatildeo

nacional buscando adquirir igual ecircxito na congregaccedilatildeo de grande parte da esquerda

brasileira em torno de seus objetivos como ANL havia conseguido durante a deacutecada de

30 No entanto diferentemente da Alianccedila Nacional Libertadora a Accedilatildeo Libertadora

36

Para mais informaccedilotildees ver Lima 2007 31

132

Nacional natildeo era configurada por uma poliacutetica de alianccedilas mas pelo combate pela accedilatildeo

direta 37

Quanto ao programa da organizaccedilatildeo a ALN tinha por estrateacutegia maior a guerrilha

rural embora sua tarefa taacutetica estivesse concentrada nas cidades onde a maior parte de

suas accedilotildees ocorria Essas accedilotildees urbanas eram consideradas pela organizaccedilatildeo como um

meio de apoio para propaganda poliacutetica para obtenccedilatildeo de fundos (atraveacutes de

expropriaccedilotildees como assaltos a bancos) para recrutamento de quadros para a guerrilha e

para ataques estrateacutegicos ao inimigo Aleacutem disso a ALN permitia a existecircncia de

pequenos grupos com total independecircncia taacutetica desde que estivessem subordinados agrave

sua estrateacutegia geral Dessa forma sua estrutura pode ser entendida como horizontal sem

hierarquias jaacute que segundo Denise Rollemberg em Esquerdas revolucionaacuterias e luta

armada (2003) o militante da ALN que se considerasse capaz de fazer accedilotildees era

incentivado a agir e natildeo a ficar esperando a orientaccedilatildeo de um poder centralizado Afinal

uma das criacuteticas da antiga Corrente Revolucionaacuteria do PCB da qual o liacuteder da ALN

Marighella foi integrante era justamente sobre a centralizaccedilatildeo e como esta emperrava a

atuaccedilatildeo do partido Dessa forma a ALN atuava por meio de diversos grupos

multiplicando suas accedilotildees

A partir disso percebe-se como o sequestro do aviatildeo da Companhia Cruzeiro do

Sul efetuado pelo pequeno grupo que Fernando Palha integrava pocircde ser executado

dentro da ALN assim como os inuacutemeros assaltos a bancos e carros-fortes e os

sequestros a embaixadores em que outros pequenos grupos ligados agrave ALN estiveram

envolvidos Dessa forma nota-se tambeacutem como e por que a ALN se tornou a maior

organizaccedilatildeo de luta armada da eacutepoca e por conseguinte Marighella e seus demais

militantes os mais procurados pela ditadura militar 38

37

Para mais informaccedilotildees ver Lourenccedilo 2005 191 38

Para mais informaccedilotildees ver Gorender 1999

133

No trecho seguinte retirado da entrevista de Fernando Palha destaca-se como

muitos desses pequenos grupos da ALN tinham espaccedilo para planejar e administrar suas

proacuteprias accedilotildees sem se desligarem da Accedilatildeo

Eu era da ALN Accedilatildeo Libertadora Nacional era a maior organizaccedilatildeo de luta

armada que tinha na eacutepoca A Jane [Jessie Jane] por exemplo veio para caacute

para Niteroacutei jaacute fugida de Satildeo Paulo onde prenderam o pai prenderam a matildee

a famiacutelia dela toda sabe O pai natildeo era de nenhuma organizaccedilatildeo mas dava

guarida [] ele era um cara politizado e ela tambeacutem e quando ela veio para

caacute para Niteroacutei ela entrou para o nosso grupo de estudo Estudaacutevamos o

marxismo guerrilhas enfim aprendendo um pouco Aiacute a gente pensando

em como soltar eles [os pais de Jessie Jane] surgiu a ideacuteia de sequestrar o

aviatildeo O sequestro do aviatildeo foi tranquilo difiacutecil foi a negociaccedilatildeo da troca

dos passageiros pelos presos que a gente queria (Freire 28 jun 2004)

Essas variadas e espalhadas accedilotildees da ALN repercurtiram de forma negativa entre

os militares dos oacutergatildeos repressivos Afinal a atuaccedilatildeo descentralizada da ALN permitia

que uma grande quantidade de accedilotildees ldquoterroristasrdquo fossem atribuiacutedas ao movimento

tornando-o aos olhos dos agentes da repressatildeo mais ameaccedilador e perigoso agrave

manutenccedilatildeo do regime ditatorial Essa percepccedilatildeo dos militares pode ter causado reflexos

no cotidiano prisional de militantes ligados direta ou indiretamente agrave referida

organizaccedilatildeo como Dulce Fernando Ana e Ceciacutelia39

ndash considerada militante indireta

por ter escondido em sua casa um dos atores do sequestro do embaixador norte-

americano accedilatildeo conjunta entre MR-8 e ALN

39

No terceiro capiacutetulo a anaacutelise da memoacuteria dos seis entrevistados (Antocircnio Dulce Fernando Padre

Maacuterio Ana e Ceciacutelia) se concentra no cotidiano prisional vivido no DOI-CODI carioca

134

Juventude Operaacuteria Catoacutelica (JOC) amp Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO)

A Juventude Operaacuteria Catoacutelica a JOC uma das organizaccedilotildees de que Padre Maacuterio

era assistente no momento de sua prisatildeo surge no Brasil em iniacutecio dos anos 1930

ganhando forccedila apenas a partir de fins de 1940 A JOC objetivava melhorar a vida do

jovem trabalhador atraveacutes de uma accedilatildeo evangelizadora e formadora de uma consciecircncia

criacutetica Eacute a responsaacutevel pela criaccedilatildeo do meacutetodo pedagoacutegico ldquoVer-Julgar-Agirrdquo

ensinando seus jovens a ver o problema a julgaacute-lo agrave luz do Evangelho e a agir para

transformar sua condiccedilatildeo de classe trabalhadora explorada

A JOC que apresentava uma posiccedilatildeo mais conservadora ateacute meados da deacutecada de

1950 a partir do golpe de 1964 assume outra orientaccedilatildeo poliacutetica de caraacuteter mais

progressista realizando uma reflexatildeo mais profunda no que se refere agrave condiccedilatildeo da

classe trabalhadora do paiacutes e da Ameacuterica Latina o que ocasiona uma maior repressatildeo

por parte do governo ditatorial brasileiro Atraveacutes da JOC a criaccedilatildeo da Accedilatildeo Catoacutelica

Operaacuteria (ACO) ndash outra organizaccedilatildeo de que Padre Maacuterio tambeacutem participava no

momento de sua prisatildeo ndash foi incentivada comeccedilando a ser organizada em fins da

deacutecada de 1950 em funccedilatildeo do grande nuacutemero de militantes que haviam chegado agrave idade

adulta mas desejavam continuar a atuar por meio da organizaccedilatildeo

A ACO nasce entatildeo da Liga Operaacuteria Catoacutelica (LOC) que era um movimento

destinado aos adultos ligados agrave Igreja e inicialmente com forte preocupaccedilatildeo

assistencialista assumindo gradativamente um vieacutes poliacutetico e uma identidade de classe

Assim a partir da LOC a ACO brasileira surge de fato em 1962 apresentando-se como

uma continuidade da JOC para que os jovens trabalhadores pudessem quando adultos

permanecerem a atuar politicamente Muitos eram os pontos em comum dos dois

movimentos que vatildeo desde os mesmos participantes que migravam de um para o outro

ao atingirem a idade adulta como a aplicaccedilatildeo do mesmo meacutetodo de accedilatildeo ldquoVer-Julgar-

135

Agirrdquo Entretanto segundo Alejandra Luisa Magalhatildees Estevez em sua dissertaccedilatildeo de

mestrado (2008) O movimento dos trabalhadores catoacutelicos a Juventude Operaacuteria

Catoacutelica (JOC) e a Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) diferentemente da JOC que a

partir de 1969 com a prisatildeo de muitos de seus integrantes ndash como o proacuteprio Padre

Maacuterio Prigol ndash foi perdendo forccedilas e acabou desaparecendo a atuaccedilatildeo da ACO durante

o periacuteodo militar caracterizou-se pelo enfrentamento constante com a hierarquia

eclesiaacutestica e com os proacuteprios militares

Dessa forma Padre Maacuterio que antes de ser preso em 1970 era assistente tanto da

JOC quanto da ACO apoacutes sua prisatildeo deu continuidade ao seu trabalho junto agrave ACO o

que ainda faz atualmente Afinal a ACO permanece em atividade ateacute os dias de hoje

poreacutem sob o nome de Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos (MTC)

Logo mesmo com diferentes atuaccedilotildees no cenaacuterio poliacutetico da eacutepoca as

organizaccedilotildees acima tratadas nas quais os ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados

militavam direta ou indiretamente tinham por confluecircncia algum tipo de manifestaccedilatildeo

em oposiccedilatildeo agrave ditadura militar Entretanto apesar dessa face comum ser o motivo

principal de suas prisotildees as diferenccedilas na forma de agir de suas organizaccedilotildees pode ter

se refletido na intensidade das violecircncias a que foram submetidos no DOI-CODIRJ

Diante disso no capiacutetulo seguinte a partir da anaacutelise das memoacuterias dos seis

entrevistados essa relaccedilatildeo entre a organizaccedilatildeo de esquerda do militante e o seu

tratamento na prisatildeo seraacute abordada assim como os demais aspectos que caracterizavam

o cotidiano vivido no DOI-CODIRJ durante o ano de 1970

136

Capiacutetulo 3 ndash O espaccedilo e o cotidiano do DOI-CODI carioca

A lua

Tal qual a dona de um bordel

Pedia a cada estrela fria

Um brilho de aluguel

E nuvens

Laacute no mata-borratildeo do ceacuteu

Chupavam manchas torturadas

Que sufoco

Louco

O becircbado com chapeacuteu-coco

Fazia irreverecircncias mil

Praacute noite do Brasil

Meu Brasil

Aldir Blanc e Joatildeo Bosco

(O Becircbado e a Equilibrista 1979)

137

1 O que sofre e o que resiste

Os depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ fontes essenciais

para esta pesquisa encontram aqui um desfecho primordial Finalmente uma de suas

especificidades mais importantes eacute aqui trabalhada a possibilidade que trazem de

acessar desde os aspectos mais subjetivos do dia-a-dia do DOI-CODIRJ aos mais

triviais Diante disso neste capiacutetulo torna-se possiacutevel uma caracterizaccedilatildeo da rotina

institucional ali vivida pelos prisioneiros em 1970 trazendo agrave tona detalhes e

sentimentos que compunham esse cotidiano que haacute deacutecadas jaacute natildeo existe mais Essa

faccedilanha natildeo seria possiacutevel atraveacutes de qualquer outra fonte senatildeo a oral Somente as

memoacuterias trazidas nas narrativas orais quando devidamente trabalhadas satildeo capazes de

aproximar-se das sensaccedilotildees e sentimentos vivenciados naquele passado amenizando a

sua corrosatildeo pelo tempo e as lacunas encontradas na histoacuteria da ditadura militar

Diante disso a memoacuteria eacute aqui tratada como material para a histoacuteria conforme

elucidado por Paul Ricoeur em A memoacuteria a histoacuteria e o esquecimento (2008) Nessa

mesma direccedilatildeo vai Fernando Catroga em seu artigo A representaccedilatildeo do ausente

memoacuteria e historiografia (2010) pelo qual busca entender a escrita da histoacuteria como um

rito de memoacuteria anaacutelogo ao ldquogesto de sepulturardquo Afinal a escrita da histoacuteria tem uma

funccedilatildeo anaacuteloga agrave do tuacutemulo e agrave dos ritos de recordaccedilatildeo ajudando tal como no trabalho

do luto a pagar as diacutevidas do presente com o passado que jaacute natildeo existe mais Essa

analogia mostra que se o tuacutemulo eacute o primeiro monumento dos mortos deixado para os

vivos a escrita da histoacuteria tambeacutem atua no sentido de lutar contra o esquecimento e a

degradaccedilatildeo que marcam a passagem do tempo Logo tal como acontece quando se

visita o tuacutemulo de um cemiteacuterio a escrita da histoacuteria sobre o cotidiano do DOI-

CODIRJ pretende contribuir para que agindo sobre os vivos esse passado se

transforme de ldquolugar de sepulturardquo para o de ldquogesto de sepulturardquo (Ricoeur 2008) Essa

138

analogia do tuacutemulo com a escrita da histoacuteria tem como principal ponto em comum a

construccedilatildeo do passado a partir de traccedilos e de representaccedilotildees que almejam situar no

tempo algo que natildeo existe mais O cotidiano do DOI-CODIRJ passa aqui a ser escrito

por meio da anaacutelise de vestiacutegios e representaccedilotildees apresentados nas memoacuterias de seis

dos seus ex-prisioneiros poliacuteticos tal como ocorre com a representaccedilatildeo memorial de

uma sepultura

Evidencia-se que as memoacuterias aqui trabalhadas especialmente por evocarem

fatos vividos pelas proacuteprias testemunhas estatildeo permeadas de razotildees subjetivas

normativas e pragmaacuteticas que satildeo condicionantes e geram efeitos incontrolaacuteveis

resultando em uma construccedilatildeo qualitativa seletiva e apaixonada do passado Daiacute a

importacircncia do olhar criacutetico do historiador sobre essas memoacuterias uma vez que a funccedilatildeo

deste eacute justamente inserir os aspectos criacuteticos objetivos e analiacuteticos da histoacuteria na

fluidez emoccedilatildeo e submissatildeo aos influxos da conjuntura caracteriacutesticos da memoacuteria

(Nora 1993)

Portanto eacute imperativo analisar criticamente essas memoacuterias sobre o cotidiano do

DOI-CODIRJ mesmo sabendo das dificuldades que envolvem essa accedilatildeo como bem

aponta Beatriz Sarlo em Tempo passado Cultura da memoacuteria e guinada subjetiva

(2007) Afinal satildeo depoimentos de viacutetimas cuja confiabilidade sobre as torturas sofridas

na prisatildeo natildeo soacute foi elemento constituinte da instalaccedilatildeo do regime democraacutetico como

ainda eacute responsaacutevel pela solidificaccedilatildeo de um princiacutepio de reparaccedilatildeo e justiccedila Poreacutem

deve-se antes de tudo encaraacute-los como discursos testemunhais pois seguem o modo

persuasivo caracteriacutestico do discurso e por conseguinte natildeo podem ser cristalizados

Afinal esses seis testemunhos satildeo feitos por narradores que buscam firmar no passado a

verdade do presente jaacute que a narrativa no presente tem uma inevitaacutevel hegemonia sobre

o passado conforme bem enuncia Sarlo no trecho abaixo

139

O presente da enunciaccedilatildeo eacute o ldquotempo de base do discursordquo porque eacute

presente o momento de se comeccedilar a narrar e esse momento fica inscrito na

narraccedilatildeo Isso implica o narrador em sua histoacuteria e a inscreve numa retoacuterica

da persuasatildeo (o discurso pertence ao modo persuasivo diz Ricoeur) Os

relatos testemunhais satildeo ldquodiscursordquo nesse sentido porque tecircm como

condiccedilatildeo um narrador implicado nos fatos que natildeo persegue uma verdade

externa no momento em que ela eacute enunciada Eacute inevitaacutevel a marca do

presente no ato de narrar o passado justamente porque no discurso o

presente tem genuiacutena hegemonia reconhecida como inevitaacutevel e os tempos

verbais do passado natildeo ficam livres de uma ldquoexperiecircncia fenomenoloacutegicardquo

do tempo presente da enunciaccedilatildeo ldquoO presente dirige o passado assim como

um maestro seus muacutesicosrdquo escreveu Italo Severo (Sarlo 2007 49)

Daiacute destaca-se novamente a importacircncia de considerar o tempo presente como

base do discurso das memoacuterias sobre o cotidiano do DOI-CODIRJ trabalhadas neste

capiacutetulo evocando mais uma vez a elucidativa expressatildeo preacutesent du passeacute de Robert

Frank (1999) O presente a partir de onde falam os seis entrevistados como ex-

prisioneiros poliacuteticos corresponde a um momento em que a democracia brasileira para a

maioria deles dava passos largos em direccedilatildeo a sua total magnitude o presente vivido no

raiar dos anos 2000 vinha se distanciando poliacutetica e socialmente do passado ditatorial

militar Quem presidia o paiacutes eram antigos opositores poliacuteticos do governo militar os

ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva que vinham

construindo garantias de reparaccedilatildeo aos que sofreram violaccedilotildees aos direitos humanos

durante o passado ditatorial

Estava em curso o reconhecimento dos mortos e desaparecidos poliacuteticos pelo

Estado brasileiro bem como a indenizaccedilatildeo agraves famiacutelias por intermeacutedio da Lei nordm 9140

de 1995 e a reparaccedilatildeo financeira aos males sofridos por aqueles presos ou perseguidos

na eacutepoca da ditadura militar garantida pela Lei nordm 10559 de 2002 Eram esses fatos

140

que compunham o cenaacuterio do presente vivido durante as entrevistas e obviamente

influenciaram diretamente a construccedilatildeo das narrativas dos ex-presos poliacuteticos sobre o

cotidiano do DOI-CODI carioca

Essas influecircncias acabaram em alguns casos direcionando suas narrativas para

os detalhes dos horrores a que foram submetidos e para as sequelas deixadas pelas

torturas daquele tempo a fim de natildeo suscitar duacutevidas sobre o merecimento agrave reparaccedilatildeo

oferecida pelo Estado Afinal o DOI-CODIRJ correspondeu ao espaccedilo onde esses

presos poliacuteticos viveram um dos cotidianos mais violentos de todo o periacuteodo em que

estiveram na prisatildeo Ao enfatizarem em detalhes o lado duro dessa rotina prisional os

entrevistados ambicionavam fortalecer a interpretaccedilatildeo vigente sobre seu papel de viacutetima

e ao mesmo tempo de resistente a um Estado ditatorial Ao procurarem conquistar a

entrevistadora os entrevistados viam-se envolvidos no processo de enquadramento da

memoacuteria sobre a ditadura militar brasileira no sentido atribuiacutedo por Michael Pollak

(1992) O objetivo entre outros era o de fortalecer perante a sociedade e o governo

uma memoacuteria que a eles conferisse o duplo lugar de resistente e de viacutetima e endossasse

a necessidade de reparaccedilotildees financeiras e simboacutelicas aos atingidos

A reparaccedilatildeo financeira aos violentados pela ditadura militar jaacute vinha acontecendo

na eacutepoca em que as entrevistas foram concedidas por meio das leis que implantaram a

Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos e a Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio

da Justiccedila citadas anteriormente e abordadas no segundo capiacutetulo Jaacute a reparaccedilatildeo

simboacutelica soacute comeccedilaria a ser de fato implantada alguns anos depois das entrevistas

principalmente com as Caravanas da Anistia a partir de abril de 2008 e mediante a

aprovaccedilatildeo da Comissatildeo da Verdade pelo Congresso Nacional em outubro de 2011 As

Caravanas da Anistia satildeo sessotildees puacuteblicas itinerantes de apreciaccedilatildeo de requerimentos de

anistia poliacutetica a perseguidos poliacuteticos da ditadura militar acompanhadas por atividades

141

educativas e culturais promovidas pela Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio da Justiccedila

Jaacute a Comissatildeo da Verdade teraacute como finalidade examinar e esclarecer graves violaccedilotildees

de direitos humanos praticadas entre os anos de 1946 e 1988 a fim de promover a

reconciliaccedilatildeo nacional com o seu passado histoacuterico

Eacute faacutecil perceber que os entrevistados em seus testemunhos-discursos acabam

atribuindo um sentido uacutenico agrave histoacuteria e conforme salienta Beatriz Sarlo (2007) ao

acumularem detalhes em suas narrativas produzem um modo realista-romacircntico pelo

qual atribuem sentidos a todos os detalhes mencionados somente pelo fato de incluiacute-los

no relato sem se sentirem na obrigaccedilatildeo de atribuir sentidos ou explicar as ausecircncias ali

tambeacutem apresentadas Dessa forma a anaacutelise aqui traccedilada procura trabalhar de forma

criacutetica no sentido de reconhecer a face realista dos detalhes descritos pelos narradores

e ao mesmo tempo a face romacircntica construiacuteda por eles de forma a fortalecer a

credibilidade e a veracidade de sua narraccedilatildeo Uma vez que diferentemente do que datildeo a

entender os entrevistados ao narrarem suas proacuteprias vidas a anaacutelise histoacuterica do

presente trabalho firma-se longe da utopia de uma narraccedilatildeo total capaz de descrever

todo o passado estudado reconhecendo a necessidade de operar com elipses

No entanto se por um lado os detalhes mencionados nos depoimentos devem ser

submetidos ao pensamento criacutetico histoacuterico por outro lado satildeo exatamente eles que

enriquecem a anaacutelise de um cotidiano jaacute que os detalhes trazidos pelos depoimentos

conseguem muitas vezes tornar a rotina do dia-a-dia que jaacute natildeo mais existe palpaacutevel

ao entendimento Eacute o que ocorre por exemplo com a disposiccedilatildeo espacial interna do

preacutedio-sede do DOI-CODIRJ fator que estaacute intrinsecamente relacionado ao cotidiano

prisional e que torna-se passiacutevel de caracterizaccedilatildeo atraveacutes dos detalhes contidos nos

depoimentos Assim mesmo natildeo sendo possiacutevel visitar o interior do edifiacutecio e nem ter

acesso a alguns registros documentais como fotos ou outros documentos eacute possiacutevel

142

contrapor as descriccedilotildees contidas nos depoimentos com a fachada do preacutedio que ainda

existe e construir uma percepccedilatildeo aproximada sobre o espaccedilo em que de certa forma

essas memoacuterias estatildeo ancoradas

2 Uma cartografia possiacutevel do ldquoCastelo do Terrorrdquo

Constatada essa forte relaccedilatildeo entre as memoacuterias dos ex-prisioneiros que ali

ficaram presos em 1970 com o espaccedilo interno do 1ordm BPE resolvi tentar ver de perto

como este era distribuiacutedo No entanto muitas dificuldades foram encontradas e

inviabilizaram o meu projeto inicial de contrapor o que restava do interior do edifiacutecio

que sediou o DOI-CODIRJ com as memoacuterias de seus ex-prisioneiros

Em 2003 a minha primeira tentativa de visitar o interior do preacutedio do 1ordm BPE foi

interrompida no momento em que apresentei o propoacutesito de minha visita o interesse em

ver o preacutedio do DOI-CODIRJ Percebi imediatamente que o ldquoassunto DOI-CODIrdquo

gerava um grande desconforto para aquele Batalhatildeo Talvez porque apesar do referido

Batalhatildeo natildeo ter tido relaccedilatildeo direta com o DOI-CODIRJ pois eram instituiccedilotildees

distintas o fato desse oacutergatildeo repressivo ter sido instalado em seu interior evoca uma

forte relaccedilatildeo que atualmente imprime uma imagem negativa para seus militares

Percebe-se assim que o 1ordm BPE quer apagar da memoacuteria social sua associaccedilatildeo ao DOI-

CODIRJ o que explica o fato de seus militares natildeo permitirem que eu prosseguisse

com a visita

No ano seguinte em novembro tentei pela segunda vez visitar o interior do dito

edifiacutecio Prevendo dificuldades para a visita utilizei como pretexto uma suposta

pesquisa sobre patrimocircnios histoacutericos do bairro Um primeiro-sargento que se

apresentou como graduado em histoacuteria acompanhou-me pelo paacutetio interno do

complexo Durante o passeio por este espaccedilo ele apontava de longe para os preacutedios que

143

ficavam ao redor inclusive para o que sediava o DOI-CODIRJ agrave esquerda e ao fundo

daquele paacutetio a ceacuteu aberto Ao referir-se ao local o sargento apontou de longe e disse

ldquoLaacute funciona o DOI-CODIrdquo deixando transparecer que ateacute aquele momento natildeo

existia uma nova serventia para aquele local e que a estrutura do DOI-CODI havia sido

preservada Nada mais quis falar alegando que natildeo poderia dar explicaccedilotildees mais

amplas sobre o assunto e que aleacutem do mais eu natildeo poderia me aproximar das

instalaccedilotildees que me interessavam

Esta segunda visita corroborou a minha sensaccedilatildeo anterior de que os militares

daquele Batalhatildeo natildeo queriam que este ficasse historicamente associado ao DOI-CODI

percebendo a imagem negativa que essa associaccedilatildeo poderia conferir-lhes tentando

evitar a manutenccedilatildeo do viacutenculo daquele preacutedio com a memoacuteria das torturas e mortes ali

executadas nos chamados ldquoanos de chumbordquo

Aleacutem disso esta visita trouxe-me um dado novo ao apresentar aquele preacutedio

como sendo o ldquoDOI-CODIrdquo no presente do indicativo o sargento deixou perceptiacutevel

um interesse interno em preservaacute-lo Afinal por que ateacute aquele momento mesmo o

DOI-CODI natildeo estando mais em atividade o seu espaccedilo natildeo havia sido utilizado para

nenhuma outra funccedilatildeo permanente Este interesse reflete talvez um forte orgulho

interno de importantes setores do Exeacutercito pelos feitos do DOI-CODI no sentido de

para alguns mais radicais ter sido esta instituiccedilatildeo uma das principais defensoras da

soberania e da ordem nacional na eacutepoca ameaccediladas pela subversatildeo

Apesar de tais empecilhos os detalhes relatados pelos entrevistados viabilizariam

uma aproximada cartografia espacial do interior do DOI-CODIRJ de 1970 quando eles

laacute estiveram Essa cartografia fez-se aqui necessaacuteria por entender-se que essa disposiccedilatildeo

espacial eacute essencial para a anaacutelise das memoacuterias sobre o cotidiano ali vivido uma vez

que esse espaccedilo prisional estaacute presente a todo o tempo nos relatos de Antocircnio Dulce

144

Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia sendo um dos principais pontos de uniatildeo de suas

memoacuterias

Sendo assim defende-se aqui que o antigo preacutedio do DOI-CODI carioca eacute hoje

um lugar de memoacuteria jaacute que a ele se confere de forma simultacircnea e em graus diversos

os trecircs sentidos atribuiacutedos como necessaacuterios por Pierre Nora o material o simboacutelico e o

funcional (Nora 1993 21) O sentido material no caso eacute o proacuteprio espaccedilo fiacutesico o

preacutedio do 1ordm BPE ainda localizado agrave Rua Baratildeo de Mesquita nordm 425 no bairro da

Tijuca O simboacutelico eacute o que o edifiacutecio representa para parte da sociedade carioca que

partilha as memoacuterias dos ex-presos poliacuteticos e seus familiares sobre o violento

cotidiano as torturas e as mortes ali vivenciados atribuindo ao preacutedio o significado de

ldquoCastelo do terrorrdquo Por fim o sentido funcional eacute a atividade de preservaccedilatildeo da

memoacuteria da ditadura militar ali exercida jaacute que o preacutedio eacute um monumento tombado sob

a justificativa de guardar a memoacuteria ali vivida durante a ditadura militar brasileira e natildeo

deixar que ela venha a cair no esquecimento Este uacuteltimo sentido portanto embute ao

preacutedio o significado completo de um lugar de memoacuteria congregando ao espaccedilo uma

funccedilatildeo e uma representaccedilatildeo simboacutelica ou seja unindo os aspectos material simboacutelico e

funcional

145

Foto Nordm1 fachada entrada principal e paacutetio interno do quartel do 1ordm BPE (Bettamio dez 2004)

Este tombamento foi feito pela Prefeitura do Rio de Janeiro em 1993 e tem por

setor responsaacutevel a Subsecretaria municipal de Patrimocircnio Cultural lei nordm 1954 de

29039340

Seu processo teve iniacutecio atraveacutes da solicitaccedilatildeo de moradores da localidades

da Tijuca Grajauacute Andaraiacute e Praccedila Saens Pentildea que utilizaram para embasar o referido

ato o fato de parte do edifiacutecio do 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito ter abrigado o DOI-

CODI do Rio de Janeiro durante toda a deacutecada de 1970 e iniacutecio dos anos 1980

ressaltando a sua importacircncia para a memoacuteria da resistecircncia e luta pelo fim da ditadura

militar

Percebe-se ainda a grande importacircncia atribuiacuteda a essa memoacuteria quando se

destaca que mesmo o edifiacutecio tendo um valor histoacuterico anterior agrave fase em que cedeu

parte de seu espaccedilo ao DOI-CODIRJ o pedido de tombamento feito pela populaccedilatildeo

fundamentava-se no que ali havia ocorrido em tempos recentes durante a ditadura

militar Afinal esses requerentes propunham que o edifiacutecio fosse tirado do Exeacutercito e

desse lugar a um centro cultural com museu da memoacuteria da luta pela liberdade

40

Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro antigo Departamento Geral de

Patrimocircnio Cultural (DGPC) Nordm do processo 1200433692 1degdocumento de solicitaccedilatildeo de tombamento

26101992

146

O edifiacutecio foi construiacutedo em 1857 pela Imperial Coroa para servir de sede a um

Hospital Militar entretanto laacute se instalou o 1ordm Regimento de Cavalaria Ligeira e

posteriormente o Hospital Militar da Corte com funcionamento ateacute fevereiro de 1877

Desde entatildeo a construccedilatildeo foi utilizada pela Escola do Estado Maior pelo 2ordm Batalhatildeo

de Caccediladores pela Escola de Intendecircncia e a partir de 1946 pelo 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia

do Exeacutercito 41

Em ampla aacuterea estaacute situado na confluecircncia da Rua Baratildeo de Mesquita com a

Avenida Maracanatilde abrangendo tambeacutem a Praccedila Lamartine Babo Conforme pode ser

observado na paacutegina anterior Foto Nordm1 ao redor de todo o espaccedilo ocupado pelo preacutedio

estende-se uma mureta de alvenaria com grade assente na parte frontal do quartel O

complexo arquitetocircnico do 1ordm BPE apresenta nas extremidades alas perpendiculares

que formam no meio um largo paacutetio A uacuteltima dessas alas possui os fundos voltados

para a Avenida Maracanatilde em frente a um dos portotildees de entrada e saiacuteda de veiacuteculos do

quartel Era exatamente nesta parte localizada no final do paacutetio central do Batalhatildeo do

lado esquerdo ao lado da antiga faacutebrica de bebidas Brahma que as celas e a sala de

tortura do DOI-CODIRJ estavam localizadas A seguir na Foto Nordm2 visualiza-se o

fundo deste edifiacutecio na Avenida Maracanatilde

41

Para mais informaccedilotildees ver Gerson 2000 357

147

Foto Nordm2 preacutedio do DOI-CODIRJ nos fundos do quartel localizado na Avenida Maracanatilde (Bettamio dez 2004)

Como se pode ver na Foto Nordm2 em cima do muro do 1ordm BPE exclusivamente na

parte que cerca os fundos do antigo preacutedio do DOI-CODIRJ estaacute localizada uma cerca

de arame farpado Assim aleacutem da descriccedilatildeo dos entrevistados e da forma como o

primeiro-sargento nomeou o local ao apontaacute-lo durante a minha segunda visita ao

Batalhatildeo em 2004 entende-se esta cerca como mais um indiacutecio de que laacute ficavam as

celas do entatildeo DOI-CODIRJ Tais celas estavam distribuiacutedas pelos dois pavimentos do

edifiacutecio conforme pode-se auferir nos relatos e comprovar na Foto Nordm2 onde pela

distribuiccedilatildeo das janelas nota-se que o preacutedio eacute composto de fato por dois andares

O local da prisatildeo era mais nos fundos Quando vocecirc chega ali vocecirc tem duas

entradas uma pela pracinha [Foto Nordm3] onde entram os carros e outra pela

frente bem na Baratildeo de Mesquita [Foto Nordm1] Nesta entrada tem uma mesa

com um oficial do dia depois vem uma espeacutecie de paacutetio aberto como se

fosse uma quadra Jaacute nos fundos do quartel passa a Avenida Maracanatilde por

traacutes da Poliacutecia do Exeacutercito As celas tanto a da prisatildeo como a da tortura

eram mais perto da Avenida Maracanatilde Era laacute naquela parte mais para o

148

final mais isolada Vocecirc ficava mais proacuteximo da Avenida Maracanatilde e da

faacutebrica da Brahma [] (Carvalho 12 set 2002)

Foto Nordm3 uma das entradas do 1ordm BPE para veiacuteculos de frente para a Praccedila Lamartine Babo (Bettamio dez 2004)

Os prisioneiros poliacuteticos receacutem-capturados transferidos de outros oacutergatildeos de

repressatildeo ou mesmo do Hospital Central do Exeacutercito chegavam ao 1ordm BPE dentro de

uma das viaturas das turmas de busca e apreensatildeo do DOI que faziam parte da

estrutura abordada no primeiro capiacutetulo Os automoacuteveis que os traziam entravam no

Batalhatildeo atraveacutes do portatildeo para veiacuteculos que fica em frente agrave Praccedila Lamartine Babo

(Foto Nordm3) entre a Rua Baratildeo de Mesquita e a Avenida Maracanatilde Ao entrarem por

este portatildeo os carros seguiam em linha reta pelo paacutetio interno ateacute chegarem ao preacutedio

do DOI-CODI no fundo do quartel (Foto Nordm2) onde os presos eram deixados

Este trajeto de chegada descrito pelos entrevistados parece ser ateacute hoje um

procedimento formal para controlar a entrada de veiacuteculos no Batalhatildeo e atraveacutes dele

evidencia-se que o DOI-CODI mesmo natildeo sendo subordinado ao 1ordm BPE tinha como

dever respeitar algumas normas de seguranccedila ali vigentes Entre essas normas estava o

impedimento de utilizar o portatildeo para veiacuteculos localizado na Avenida Maracanatilde (Foto

149

Nordm2) para a entrada e a saiacuteda de seus presos mesmo sendo mais praacutetico e reservado

pois este portatildeo ficava ao lado do preacutedio do DOI-CODI Poreacutem como todo quartel

militar preza por um controle riacutegido de seguranccedila uma vez que satildeo responsaacuteveis por

guardar armas e outros equipamentos beacutelicos esses agentes eram obrigados a respeitar a

estrutura de seguranccedila tradicional do 1ordm BPE

[] a gente entrava pela pracinha aqui do lado [aponta para o desenho que

faz no papel] a gente entrava dentro dos carros aqui por esse portatildeo (o da

praccedila) A gente natildeo entrava pela porta principal natildeo E nem entrava ou saiacutea

pelo portatildeo do lado do preacutedio que a gente ficava [] (Coimbra 30 nov

2004)

No preacutedio do DOI-CODIRJ (Foto Nordm2) as celas ldquosolitaacuteriasrdquo se localizavam

somente no andar de baixo Nelas os prisioneiros receacutem-chegados permaneciam nos

primeiros dias de prisatildeo para ficarem no mesmo andar da sala de interrogatoacuterio ou ldquosala

de torturardquo ndash como os presos a chamavam ndash facilitando o deslocamento Era no

momento inicial da prisatildeo que as turmas de interrogatoacuterio preliminar executavam a

parte massiva dos interrogatoacuterios o que por conseguinte demandava a necessidade dos

presos ficarem em celas geograficamente proacuteximas agrave ldquosala de torturardquo

Nos primeiros dias de prisatildeo era quando os presos eram levados assiduamente

para a ldquosala de torturardquo visto que poderiam informar sobre os ldquopontos de encontrordquo e os

ldquoaparelhosrdquo ainda vaacutelidos informaccedilotildees que levariam os agentes dos DOI ateacute outros

ldquosubversivosrdquo Aleacutem da ldquosala de torturardquo a cela do tipo ldquosolitaacuteriardquo era mais um artifiacutecio

para torturar o preso receacutem-chegado a fim de degradaacute-lo e desestruturaacute-lo

psicologicamente de forma a impulsionaacute-lo a falar mais rapidamente o que sabia Para

isso essas celas ldquosolitaacuteriasrdquo aleacutem de deixarem o preso isolado dos demais se

diferenciavam estruturalmente das outras que existiam no mesmo preacutedio localizadas em

150

maior parte no pavimento superior para as quais os presos eram transferidos apoacutes o

momento inicial de sua prisatildeo

Nas celas do segundo andar existia banheiro com chuveiro e um colchatildeo para cada

preso Jaacute nas ldquosolitaacuteriasrdquo aleacutem do preso ficar sozinho natildeo havia cama colchatildeo

banheiro ou mesmo pia Durante o tempo em que laacute permaneciam os prisioneiros natildeo

tinham direito a tomar banho Eram celas pequenas com portotildees de grades vazadas

contendo apenas um buraco no chatildeo para que o preso ali pudesse evacuar Os presos

eram obrigados a conviver com o cheiro de sua proacutepria urina e fezes no provaacutevel intuito

de denegrir a sua condiccedilatildeo de ser humano

[] logo que eu cheguei fui para a lsquosolitaacuteriarsquo era torturada ia para a

lsquosolitaacuteriarsquo era torturada e ia para a lsquosolitaacuteriarsquo [] (Pandolfi 5 fev 2003)

[] primeiro que quando vocecirc eacute preso vocecirc passa alguns dias sem tomar

banho na verdade eu soacute fui tomar banho mesmo depois que eu fui para a

cela coletiva [] (Carvalho 8 fev 2003)

Aqui [aponta para as celas do andar teacuterreo do preacutedio que desenhou em um

papel] era soacute o pessoal que ficava de castigo era barra pesada [] vocecirc natildeo

tinha lugar para dormir natildeo tinha lugar para nada Tinha soacute um buraco para

vocecirc fazer as suas necessidades Na solitaacuteria natildeo tinha nem colchatildeo nem

banheiro nem privada era um buraco Nem tinha chuveiro Pelo menos

essas celas de cima tinham chuveiro [] (Coimbra 30 nov 2004)

151

Foto Nordm4 visatildeo panoracircmica do espaccedilo ocupada pelo 1ordm BPE com destaque aos fundos para o preacutedio do DOI-CODI

(Bettamio dez 2004)

A ldquosala de torturardquo localizada no primeiro pavimento do preacutedio eacute referida pelos

prisioneiros tambeacutem como ldquosala roxardquo pela cor de suas paredes Anexa a ela estava a

sala de observaccedilatildeo que era separada da ldquosala roxardquo por um vidro o chamado ldquoespelho

da verdaderdquo Este vidro composto por uma placa semi-espelhada possibilitava que da

sala de observaccedilatildeo se pudesse ver e reconhecer quem estava do outro lado sem ser

visto Assim presos e militares poderiam identificar pessoas e observar interrogatoacuterios

sem serem reconhecidos

[] a sala de tortura era pintada de uma cor horrorosa como se fosse um

roxo [] essa sala tinha um vidro que era o espelho da verdade porque dava

acesso agrave outra sala onde ficavam pessoas para te observar sem serem vistas

[] (Pandolfi 5 fev 2003)

A seta indica a localizaccedilatildeo do preacutedio do DOI-CODI dentro do espaccedilo do 1ordm BPE

152

[] aqui tinha a famosa sala roxa duas uma do lado da outra isso no

primeiro andar Porque ali estavam as pessoas que eles estavam inquirindo

direto [] (Freire 28 jun 2004)

Os dados informados acima satildeo exemplos tiacutepicos de detalhes apresentados pelos

entrevistados que muito podem contribuir para o entendimento desse passado Afinal

em uma primeira impressatildeo essas narrativas podem transmitir a ideia de que as paredes

roxas serviam apenas para imprimir um aspecto sombrio agrave ldquosala de torturardquo servindo

como mais um elemento produzido para intimidar o depoente durante o interrogatoacuterio

No entanto ao saber-se que uma das paredes dessa sala era composta pelo dito ldquoespelho

da verdaderdquo deduz-se que esta era bem iluminada O vidro que a dividia do local anexo

muito utilizado nas salas de reconhecimento em delegacias de poliacutecia age atraveacutes de um

mecanismo pelo qual quem estaacute do lado mais iluminado vecirc apenas o reflexo de sua

proacutepria imagem sem enxergar o que estaacute do lado mais escuro

A partir disso infere-se que as paredes roxas da ldquosala de torturardquo natildeo eram apenas

um aparato de tortura psicoloacutegica mas provavelmente uma forma de deixar os

integrantes das turmas de interrogatoacuterio preliminar mais agrave vontade para interrogar

ameaccedilar e torturar os seus prisioneiros Menos iluminada do que se suas paredes fossem

brancas contribuiacutea para que os prisioneiros natildeo pudessem ver os militares de forma tatildeo

clara e niacutetida fazendo com que os torturadores natildeo se sentissem acuados por atuar com

os seus rostos agrave mostra chegando mesmo a retirar o capuz dos prisioneiros

[] chegando nessa sala de tortura normalmente eles tiravam o capuz Quer

dizer o capuz na verdade era um mecanismo mais de intimidaccedilatildeo de deixar

a gente apavorada do que para eles se esconderem mesmo porque na tortura

a gente acabava vendo os torturadores [] (Pandolfi 5 fev 2003)

No DOI-CODI eu apanhei de cara limpa eu vi quem me bateu quem me

torturou [] (Freire 28 jun 2004)

153

No segundo andar do preacutedio do DOI-CODIRJ em meio agraves demais celas coletivas

e encostada em outra menor se encontrava uma cela feminina bem espaccedilosa onde

Dulce Ana e Ceciacutelia ficaram durante parte do tempo em que estiveram na instituiccedilatildeo

Essa cela mencionada pelas entrevistadas ora por ldquocoletivo das mulheresrdquo ora por

ldquoMaracanatilderdquo tinha no alto da parede de fundo um basculante que como bem se pode

observar na Foto Nordm2 provavelmente estava presente em todas as celas coletivas tanto

as do primeiro quanto as dos segundo andares Entretanto no caso do ldquocoletivo das

mulheresrdquo e da cela nele encostada esses basculantes eram virados para o paacutetio interno

do 1ordm BPE e por conseguinte os portotildees dessas celas ficavam na direccedilatildeo do muro da

Avenida Maracanatilde

[] eu fui para a cela do lado que era o coletivo das mulheres que era a cela

Maracanatilde como a gente chamava [] Eram duas celas Essa era enorme e

tinha a outra na outra ponta [] que era uma cela menor Eu fiquei nas duas

que eram as duas celas que ficavam na frente que davam para o paacutetio A

gente trepava [no basculante da cela] e soacute via o paacutetio (Coimbra 30 nov

2004)

Tinha ateacute uma cela ampla grande que chamavam de coletivo das mulheres

Entatildeo a maior parte do tempo eu fiquei nessa cela grande [] (Pandolfi 5

fev 2003)

No DOI-CODI natildeo havia uma grande separaccedilatildeo entre prisioneiros e prisioneiras

uma vez que as celas do primeiro e do segundo andares comportavam tanto homens

quanto mulheres No entanto natildeo havia celas mistas Apesar de que como somente

homens afirmaram ter permanecido em celas do piso teacuterreo pressupotildee-se que neste

pavimento com exceccedilatildeo das celas ldquosolitaacuteriasrdquo localizavam-se em grande parte caacuterceres

154

coletivos masculinos que tambeacutem existiam no segundo andar demonstrando que era

maior o nuacutemero de prisioneiros homens

[] eu sempre fiquei no teacuterreo nunca subi para aquela parte apesar de que

laacute onde ficavam as celas tinha uma escada Tinha uma parte teacuterrea onde

ficavam nossas celas e tinha tambeacutem umas celas em cima [] (Carvalho 12

set 2002)

No teacuterreo tinha duas celinhas aqui [rabisca em um pedaccedilo de papel] uma no

cantinho aqui e eu fiquei nessa segunda aqui aiacute ainda tinha a do meio e

mais duas para caacute eram cinco celas [] (Freire 28 jun 2004)

A partir dessa cartografia do espaccedilo fiacutesico do DOI-CODI viabilizou-se uma

aproximaccedilatildeo com a geografia do ambiente que mantinha uma iacutentima relaccedilatildeo com o

cotidiano dos entrevistados no periacuteodo em que laacute permaneceram como prisioneiros do

sistema de seguranccedila

3 Memoacuterias de um cotidiano

Falar sobre essa parte da histoacuteria implica muitas dificuldades pois suscita

lembranccedilas mal-vindas poreacutem necessaacuterias ao conhecimento de nossa

sociedade Trata-se aqui de uma viagem de volta ao inferno de uma face que

para muitos traduz supliacutecios fiacutesicos e psiacutequicos sentimentos de desamparo

solidatildeo medo pacircnico abandono e desespero (Coimbra 2004 45) 42

Como jaacute dito o momento da realizaccedilatildeo de uma entrevista eacute definidor da maneira

pela qual o(a) entrevistado(a) recupera o seu passado A construccedilatildeo da memoacuteria sobre o

cotidiano vivido no DOI-CODI em 1970 natildeo escapou desse passeacute do preacutesent e de

42

Artigo Gecircnero Militacircncia e Memoacuteria escrito pela entrevistada Ceciacutelia Coimbra e publicado em Strey

Marlene Neves (org) Violecircncia Gecircnero e Poliacuteticas Puacuteblicas Porto Alegre PUC-RS 2004

155

forma muito interessante ao mesmo tempo em que sofria influecircncias desse presente

tambeacutem agia politicamente sobre ele Beneficiados por uma legislaccedilatildeo que buscava

reparar os variados danos causados pelo Estado ditatorial os entrevistados visavam

sobretudo a obter reparaccedilotildees simboacutelicas comeccedilando pela consolidaccedilatildeo de suas

memoacuterias Por isso mesmo lutavam por accedilotildees governamentais tais como a construccedilatildeo

de museus sobre a ditadura militar em locais que haviam servido como prisatildeo poliacutetica

na eacutepoca e a instalaccedilatildeo da Comissatildeo da Verdade no paiacutes

Assim em 24 de janeiro de 2009 foi inaugurado no anexo do antigo preacutedio do

Departamento de Ordem e Poliacutetica Social de Satildeo Paulo (Deops) o Memorial da

Resistecircncia de Satildeo Paulo Eacute a primeira instituiccedilatildeo do paiacutes a ldquomusealizarrdquo parte de um

edifiacutecio que foi siacutembolo da poliacutecia poliacutetica em eacutepocas de ditadura a fim de salvaguardar

a memoacuteria da resistecircncia e da repressatildeo do Brasil republicano 43

E finalmente em 18

de novembro de 2011 a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei que criava a

Comissatildeo da Verdade (lei nordm 125282011) Esta seraacute composta por sete integrantes que

ainda seratildeo indicados e contaratildeo com ajuda de 14 auxiliares que teratildeo a missatildeo de ouvir

depoimentos em todo o paiacutes requisitar e analisar documentos que ajudem a esclarecer

os fatos da repressatildeo militar A Comissatildeo iraacute apurar as violaccedilotildees de direitos ocorridas

entre os anos de 1946 e 1988 e teraacute um prazo de dois anos para finalizar este trabalho de

investigaccedilatildeo

43

Para mais informaccedilotildees sobre o Memorial da Resistecircncia de Satildeo Paulo consultar

httpwwwmemorialdaresistenciasporgbr

156

31 O interrogatoacuterio e a tortura

Tendo em vista as novas funccedilotildees que se apresentavam para os agentes da

repressatildeo lotados nos DOI-CODI era necessaacuterio um treinamento que incluiacutea entre

outras mateacuterias o manuseio da dosagem de dor infringida durante os interrogatoacuterios

Depois de passarem por tal treinamento os militares poderiam atuar em uma das trecircs

turmas de interrogatoacuterio preliminar que compunham a Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio

responsaacutevel direta por torturar os presos ou em uma das turmas da Seccedilatildeo de busca e

apreensatildeo que capturavam os suspeitos e os direcionavam aos DOI

Esse processo de formaccedilatildeo de matildeo-de-obra para atuar no DOI-CODI surgiu em

1970 quando uma escola de repressatildeo foi criada a partir da mudanccedila de comando e da

reforma curricular do Centro de Estudos de Pessoal (CEP) no forte do Leme O novo

CEP passava a oferecer cursos de informaccedilotildees para oficiais programas de extensatildeo para

sargentos e estaacutegios para quadros das poliacutecias militares todos normalmente com

duraccedilatildeo de um semestre Nesses cursos os alunos assistiam aulas sobre teacutecnicas de

interrogatoacuterio ndash o que incluiacutea o manuseio de aparelhos de tortura ndash e vigilacircncia taacuteticas

de ldquoneutralizaccedilatildeo de aparelhosrdquo e de transporte de presos operaccedilotildees especiais

criptologia e produccedilatildeo de informaccedilotildees Ao fim do curso o aluno recebia uma

certificaccedilatildeo atraveacutes da qual poderia atestar sua aptidatildeo para desempenhar as funccedilotildees de

um oficial de informaccedilotildees

Parte dos meacutetodos aprendidos nessa escola eacute retratada em entrevista para a revista

Veja de 9 de dezembro de 1998 pelo tenente Marcelo Paixatildeo de Arauacutejo que de acordo

com Elio Gaspari (2002) teria atuado como torturador no 12ordm Regimento Interno de

Belo Horizonte entre 1968 e 1971

A primeira coisa era jogar o sujeito no meio de uma sala tirar a roupa dele e

comeccedilar a gritar para ele entregar o ponto [lugar marcado para encontros

157

com militantes do grupo] Era o primeiro estaacutegio Se ele resistisse tinha um

segundo estaacutegio que era vamos dizer assim mais porrada Um dava tapa na

cara Outro soco na boca do estocircmago Um terceiro soco no rim Tudo para

ver se ele falava Se natildeo falava tinha dois caminhos Dependia muito de

quem aplicava a tortura Eu gostava muito de aplicar a palmatoacuteria Eacute muito

doloroso mas faz o sujeito falar Eu era muito bom na palmatoacuteria [] Vocecirc

manda o sujeito abrir a matildeo O pior eacute que de tatildeo desmoralizado ele abre Aiacute

se aplicam dez quinze bolos na matildeo dele com forccedila A matildeo fica roxa Ele

fala A etapa seguinte era o famoso telefone das Forccedilas Armadas [] eacute uma

corrente de baixa amperagem e alta voltagem [] Natildeo tem perigo de fazer

mal Eu gostava muito de ligar as duas pontas dos dedos Pode ligar numa

matildeo e na orelha mas sempre do mesmo lado do corpo O sujeito fica

arrasado O que natildeo pode fazer eacute deixar a corrente passar pelo coraccedilatildeo Aiacute

mata [] o uacuteltimo estaacutegio em que cheguei foi o pau-de-arara com choque

Isso era para o queixo-duro o cara que natildeo abria nas etapas anteriores Mas

pau-de-arara eacute um negoacutecio meio complicado [] O pau-de-arara natildeo eacute

vantagem Primeiro porque deixa marca Depois porque eacute trabalhoso Tem

de montar a estrutura Em terceiro eacute necessaacuterio tomar conta do indiviacuteduo

porque ele pode passar mal (Gaspari 2002 182-183)

Antes de comeccedilar a atuar esses agentes passavam por treinamento no DOI-CODI

feito provavelmente com alguns prisioneiros que jaacute estavam laacute haacute algum tempo e que

haviam mostrado ter boa resistecircncia Conforme se pode evidenciar a partir da

declaraccedilatildeo feita por Dulce Pandolfi em 1970 registrada na auditoria militar 44

[]

que foi exposta perante 20 oficiais como numa demonstraccedilatildeo de aulas de torturas

pau-de-arara e choques [] (Arquidiocese de Satildeo Paulo tomo V 1985 758)

Essa denuacutencia feita na eacutepoca por Dulce na auditoria da Justiccedila Militar foi

publicada em A Tortura tomo V do ldquoProjeto Ardquo da pesquisa coordenada pela

Arquidiocese de Satildeo Paulo e intitulada Brasil Nunca Mais O ldquoProjeto Ardquo eacute constituiacutedo

por doze volumes que contecircm as conclusotildees da referida pesquisa feita a partir da

44

Assim satildeo chamadas as varas criminais com atribuiccedilatildeo especiacutefica de atuar em processos de crimes

militares da Justiccedila Militar brasileira

158

reuniatildeo de coacutepias da quase totalidade dos processos poliacuteticos que tramitaram na Justiccedila

Militar entre abril de 1964 e marccedilo de 1979 Esses volumes foram reproduzidos vinte e

cinco vezes pela Arquidiocese de Satildeo Paulo formando coleccedilotildees que foram doadas a

entidades de direitos humanos pesquisa e documentaccedilatildeo 45

As 6891 paacuteginas do

ldquoProjeto Ardquo estatildeo resumidas no ldquoProjeto Brdquo o livro Brasil Nunca Mais tambeacutem

datado de 1985 e publicado pela Editora Vozes

Os primeiros momentos no DOI-CODI

Desde o momento da detenccedilatildeo o preso era submetido a diversos tipos de maus

tratos Jaacute a caminho do caacutercere ainda dentro do automoacutevel comeccedilavam as agressotildees

como tapas pontapeacutes e empurrotildees a fim de acelerar a sua desestabilizaccedilatildeo para que

entregasse mais rapidamente informaccedilotildees que agilizassem a prisatildeo de outros militantes

procurados

As torturas que Ana Batista relata ter sofrido durante o percurso de transferecircncia

da OBANSP para o DOI-CODIRJ destacadas em seu memorial ndash escrito em outubro

de 2004 um mecircs antes de sua entrevista e encaminhado agrave Comissatildeo Especial da

Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro ndash trazem aspectos

proacuteximos agrave realidade vivida na eacutepoca pelos presos poliacuteticos do DOI-CODIRJ

[] dez dias apoacutes a prisatildeo fui levada de Satildeo Paulo [DOI-CODISP] para o

Rio [DOI-CODIRJ] de madrugada numa C-14 onde permaneci no banco de

traacutes entre dois agentes de grande porte No meio do caminho na Via Dutra

eles entraram por uma estradinha pararam o carro e me mandaram descer

aos berros Com fortes dores no corpo ndash especialmente nos rins ndash

queimaduras infectadas pelos choques eleacutetricos exausta dos interrogatoacuterios e

45

Os doze volumes do ldquoProjeto Ardquo estatildeo disponiacuteveis no Arquivo do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio

de Janeiro (GTMNRJ)

159

sem dormir haacute dias desembarquei meio trocircpega Gritaram impropeacuterios e

ordenaram que eu fugisse Como estava muito tonta sem saber o que pensar

ou fazer natildeo fiz nada Atiraram entatildeo repetidas vezes em volta de mim

que permaneci encostada em uma aacutervore gritaram vaacuterias vezes para que eu

fugisse Caiacute no chatildeo o que os fez parar de atirar e se jogarem em cima de

mim agraves gargalhadas Colocaram-me de volta no carro e continuamos a

viagem rumo ao DOI-CODI-RJ (Batista out 2004)

Assim quando chegavam ao DOI-CODIRJ apoacutes passarem pelo portatildeo de

entrada da Praccedila Lamartine Babo (Foto Nordm3) os presos preenchiam uma ficha de

identificaccedilatildeo e eram levados para a ldquosala roxardquo no andar teacuterreo do preacutedio dessa

instituiccedilatildeo (Foto Nordm2) Laacute em meio a interrogatoacuterio as ameaccedilas e torturas se

intensificavam perpetradas pelos integrantes de uma das trecircs turmas de interrogatoacuterio

preliminar de plantatildeo no momento

Cabe lembrar que tais turmas eram constituiacutedas por militares treinados para

conseguir extrair rapidamente dos presos o maior nuacutemero possiacutevel de informaccedilotildees

principalmente sobre a data hora e local de seu proacuteximo ldquopontordquo de encontro Afinal

caso esses agentes natildeo conseguissem tais dados logo nos primeiros dias natildeo chegariam

ao local a tempo de pegarem o outro militante clandestino que o preso encontraria A

partir do momento em que a ausecircncia desse militante fosse notada integrantes de sua

organizaccedilatildeo poliacutetica deduziriam o motivo e por proteccedilatildeo modificariam os locais dos

ldquoaparelhosrdquo e dos proacuteximos ldquopontosrdquo As informaccedilotildees do preso receacutem-capturado se

tornariam entatildeo desatualizadas o que dificultaria a investigaccedilatildeo dos agentes do DOI-

CODIRJ

As torturas infringidas aos presos eram mais intensas logo depois da prisatildeo

Lutando contra o tempo era comum deixar o preso em celas ldquosolitaacuteriasrdquo localizadas no

andar teacuterreo conforme jaacute indicado Dessa forma os presos receacutem-chegados ficavam

bem proacuteximos agrave sala de interrogatoacuterio a ldquosala roxardquo justamente por serem para laacute

160

levados com frequecircncia Como nas ldquosolitaacuteriasrdquo os presos ficavam sozinhos e natildeo

podiam contar com itens baacutesicos de higiene e proteccedilatildeo do corpo (tais como banheiro

chuveiro colchatildeo e cobertor) acabavam se sentindo ainda mais desestruturados e por

conseguinte desestabilizados Logo no momento inicial da prisatildeo quando os presos

natildeo eram submetidos agraves torturas fiacutesicas eram submetidos agraves torturas psicoloacutegicas das

ldquosolitaacuteriasrdquo as chamadas torturas brancas46

espeacutecie de degradaccedilatildeo fria sem violecircncia

humana expliacutecita

Por outro lado os presos receacutem-capturados tinham consciecircncia de que era naquele

momento inicial que mais poderiam prejudicar seus companheiros de organizaccedilatildeo

Diante disso normalmente tentavam dificultar o acesso dos militares agraves informaccedilotildees

lutando para resistir agraves torturas Apesar de muitas vezes fracassarem tentavam segurar

os dados que tinham ao menos ateacute passar o horaacuterio do proacuteximo ldquopontordquo que haviam

combinado com outro militante Portanto avalia-se que provavelmente o grau de

resistecircncia inicial do prisioneiro estava diretamente relacionado ao da intensidade da

tortura a ele perpetrada e vice-versa conforme analisa-se nos trechos da entrevista de

Ana de Miranda Batista abaixo destacados

[] o meu negoacutecio era ganhar tempo e o deles era conseguir informaccedilatildeo A

luta eacute essa nos primeiros dias eacute vocecirc dar o miacutenimo de informaccedilotildees e eles

querendo arrancar o maacuteximo de informaccedilatildeo Aiacute eles vecircm com a maacutexima de

que torturar eacute investigar [risos] E daiacute se precisar ateacute a morte O negoacutecio eacute

conseguir informaccedilatildeo

46

Em 1971 quando os ex-prisioneiros aqui entrevistados jaacute natildeo estavam mais no 1ordm BPE o projeto

ldquoTortura Limpardquo foi ali instalado Segundo Elio Gaspari o andar teacuterreo do DOI-CODIRJ sofreu obras

para que fossem construiacutedos quatro novos cubiacuteculos um foi forrado com isopor e amianto a fim de fazer

o prisioneiro sentir frio constantemente outro se tornou uma cacircmara de ruiacutedos pela qual o preso ouviria o

barulho por todo o tempo em que laacute estivesse o terceiro foi todo pintado de branco provocando dor na

vista do preso devido agrave claridade constante na cela o uacuteltimo transformou-se em um ambiente todo preto

natildeo fornecendo a quem estivesse em seu interior nenhuma claridade causando choque na vista quando

exposto a claridade normal (Gaspari 2002 189-190)

161

[] quando eu cheguei agrave OBAN [que na eacutepoca de sua prisatildeo jaacute havia se

transformado em DOI-CODISP] jaacute era noite eles estavam tomando cerveja

comemorando que eu tinha caiacutedo E aiacute eu passei o ponto da Ana Maria do

Carlos Eugecircnio com o Bacuri Porque laacute era um inferno [] laacute eu passei um

monte de ponto e todos eles eram procurados Entatildeo aiacute eacute que a barra pegou

mesmo (Batista 17 nov 2004)

Os trechos acima mesmo sendo baseados em uma experiecircncia vivida no DOI-

CODISP trazem muitas informaccedilotildees sobre o cotidiano prisional vivido de forma

geral em todos os DOI-CODI Afinal conforme ressaltado anteriormente esses oacutergatildeos

estavam espalhados por todas as jurisdiccedilotildees territoriais do Brasil e seguiam

basicamente a mesma organizaccedilatildeo Portanto pode-se concluir aqui que em ambos os

DOI-CODI no momento inicial da prisatildeo existia essa relaccedilatildeo entre a intensidade das

sessotildees de tortura adotadas pelos militares e o tamanho da vontade de resistir do preso

Tal relaccedilatildeo se torna ainda mais perceptiacutevel pela frustraccedilatildeo sentida na fala de Ana

ao afirmar ter passado muitos ldquopontosrdquo inclusive o de ldquoBacurirdquo codinome de Eduardo

Collen Leite seu companheiro de organizaccedilatildeo Ana no momento da entrevista sabia

que ldquoBacurirdquo havia sido preso em agosto de 1970 alguns dias depois de sua prisatildeo e

que havia morrido sob tortura Quando admite ter entregado aos agentes do DOISP o

ponto de encontro Ana se culpa O depoimento eacute o momento em que Ana aproveita

para se justificar ao demonstrar que acredita no quanto a resistecircncia agrave tortura era

importante no iniacutecio da prisatildeo mas como ela se tornava limitada sendo rapidamente

derrotada Resistir ao DOI-CODI era muito difiacutecil jaacute que os agentes haviam sido

fortemente preparados para a ldquoguerra internardquo e natildeo por acaso se tornariam os grandes

responsaacuteveis pela desarticulaccedilatildeo das organizaccedilotildees de luta armada

O silecircncio dos demais entrevistados sobre as informaccedilotildees que concederam ou natildeo

aos agentes das turmas de interrogatoacuterio preliminar serve aqui como mais um

argumento para a tese de que apesar da grande resistecircncia inicial dos presos poliacuteticos e

162

tambeacutem por causa dela a violecircncia vivida no DOI-CODIRJ nos primeiros dias de

prisatildeo era intensa e quase sempre prevalecia Afinal caso natildeo fosse desse modo os

entrevistados provavelmente orgulhar-se-iam de sua resistecircncia e por conseguinte natildeo

lhes faltariam motivos para lembraacute-la e narraacute-la Logo o silecircncio aqui tambeacutem se torna

revelador

Atraveacutes desse silecircncio destaca-se ainda que talvez pelos mesmos motivos que

Ana opta por lembrar e justificar-se os demais entrevistados optam por silenciar e tentar

esquecer Todos apesar de agirem de acordo com suas personalidades e experiecircncias de

vida provavelmente se sentem culpados ou envergonhados por natildeo terem aguentado

esconder o que sabiam ateacute o fim e poupado muitos de seus companheiros da prisatildeo e ateacute

mesmo da morte

A segunda fase

Passada esta primeira fase da prisatildeo no DOI-CODIRJ que durava em meacutedia uma

ou duas semanas os presos eram transferidos para celas maiores Estas continham

banheiro colchatildeo e em grande parte das vezes outros prisioneiros

Nessa segunda etapa os presos natildeo ficavam isentos das idas agrave ldquosala roxardquo poreacutem

estas natildeo eram tatildeo frequentes quanto anteriormente Afinal a busca desesperada por

ldquopontosrdquo codinomes ou ldquoaparelhosrdquo natildeo mais cabia pois esses prisioneiros jaacute estavam

distantes de suas organizaccedilotildees haacute tempo suficiente para que suas prisotildees fossem

notadas e por conseguinte para que as informaccedilotildees que tivessem jaacute natildeo fossem mais

ldquoquentesrdquo

Nessa fase as visitas agrave ldquosala roxardquo davam-se por outros motivos Normalmente

para ajudar em anaacutelises de novas suspeitas Os agentes das turmas de interrogatoacuterio

preliminar poderiam levar um preso mais antigo para a ldquosala roxardquo para ser acareado

163

com um receacutem-chegado com quem suspeitavam estar de alguma forma relacionado

Poderiam tambeacutem levaacute-lo ateacute laacute para ser interrogado a respeito de novas e possiacuteveis

accedilotildees da esquerda armada conforme indicassem as informaccedilotildees recebidas pelo CODI

conjugadas agraves anaacutelises feitas pelo Setor de anaacutelise e informaccedilotildees sobre algum material

apreendido pela Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo Eacute o que pode-se concluir a partir da

caracterizaccedilatildeo sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI quando colocadas em diaacutelogo

com as informaccedilotildees trazidas pelos trechos destacados abaixo

ldquoNome codinome e aparelhordquo isso eacute que eles querem saber de imediato

Depois que passa algum tempo isso natildeo interessa mais Aiacute eles tecircm um

trabalho mais analiacutetico que era para saber de outros que acabaram de cair o

que eles tecircm de quecirc jaacute participaram o que estaacute acontecendo [] (Batista 17

nov 2004)

[] de quem era preso eles queriam duas informaccedilotildees imediatas eles

comeccedilavam a te bater e soacute pediam o ponto o local de encontro que vocecirc

tivesse com algueacutem e o aparelho que era o apartamento alugado ou qualquer

coisa assim Era isso o que eles queriam basicamente [] (Freire 28 jun

2004)

Como o DOI-CODIRJ tinha poucas celas e muita rotatividade quando o preso

natildeo mais interessava agraves investigaccedilotildees era normalmente mandado para o DOPS onde

era aberto o processo de crime poliacutetico e ficava detido ateacute o primeiro julgamento ndash

como ocorreu com Antocircnio de Carvalho Dulce Pandolfi e Ana de Miranda Batista

Poreacutem quando o seu caso tivesse relaccedilatildeo com uma das outras Forccedilas Armadas o preso

era transferido para a instituiccedilatildeo repressiva diretamente ligada a esta ndash como aconteceu

com Fernando ao ser levado do DOI-CODIRJ para o CISA oacutergatildeo de repressatildeo ligado agrave

Aeronaacuteutica ndash onde permaneceria ateacute quando seus agentes julgassem necessaacuterio Aleacutem

disso caso os agentes do DOI-CODIRJ constatassem que o prisioneiro natildeo estava

164

envolvido diretamente em nenhum crime poliacutetico ele poderia ser posto em liberdade

provisoacuteria ndash como ocorreu com Padre Maacuterio e Ceciacutelia Coimbra

Vale lembrar que o DOI-CODIRJ natildeo era um presiacutedio comum Laacute os suspeitos de

crimes poliacuteticos natildeo estavam cumprindo pena baseada em um processo e sim na

menagem estipulada pelo Coacutedigo Processual Militar criado pelo decreto-lei Nordm1002

de outubro de 1969 Por meio da menagem os suspeitos de crimes poliacuteticos ndash que a

partir do AI-5 tinham passado a ser julgados pela Justiccedila Militar ndash poderiam ser

arbitrariamente detidos e levados ao quartel responsaacutevel pela Regiatildeo Militar onde

estivessem A menagem era justificada como uma forma de prisatildeo cautelar que visava

evitar o conviacutevio do acusado com pessoas que jaacute estivessem condenadas ateacute o seu

julgamento em primeira instacircncia Dessa forma os suspeitos de crimes poliacuteticos da

Regiatildeo Militar que englobava o Rio de Janeiro ficavam detidos no DOI-CODIRJ

localizado no quartel do 1ordm BPE e ali permaneciam presos sem direito a formalidades

convencionais de uma prisatildeo tais como as visitas de familiares e de um advogado por

um periacuteodo que chegava ateacute 30 dias podendo ser prorrogado por mais 60 dias

Poreacutem como ressaltado anteriormente quando novos grupos de suspeitos laacute

chegavam a saiacuteda dos presos mais antigos era impulsionada mesmo sem ainda terem

sido julgados No entanto como esses presos ainda estavam sob a menagem e por isso

natildeo poderiam ir para um presiacutedio comum a assessoria juriacutedica e policial do DOIRJ ou

os transferia ou os colocava em liberdade provisoacuteria controlando nesse uacuteltimo caso

para que natildeo saiacutessem da respectiva Regiatildeo Militar ateacute o seu julgamento em primeira

instacircncia

[] fiquei trecircs meses laacute na PE na Poliacutecia do Exeacutercito na Rua Baratildeo de

Mesquita Depois fui levada para o DOPS [] laacute na PE a gente ficava nessa

triagem sendo torturado ou ouvindo grito de tortura e esperando laacute o tempo

ateacute eles resolverem a nossa situaccedilatildeo e sermos transferidos Entatildeo laacute era um

165

esquema de uma circulaccedilatildeo muito grande de pessoas Daiacute o quartel estava

sempre cheio porque de repente quando caiacutea alguma organizaccedilatildeo

apareciam laacute 30 ou 40 pessoas presas naquela noite e aquilo ficava

abarrotado de gente Entatildeo tinha momentos que a coisa ficava mais

tranquila e tinha momentos que aquilo ali ficava realmente lotado [] a PE

era isso a PE natildeo tinha uma rotina desses presiacutedios da linha tradicional laacute

ningueacutem recebia visita porque era a fase completamente ilegal da sua prisatildeo

[] (Pandolfi 5 fev 2003)

Outro aspecto interessante da menagem que interferia no cotidiano prisional do

DOI-CODIRJ satildeo as regras para o tempo de inquiriccedilatildeo estipuladas pelo decreto-lei nordm

100269 Este impunha que exceto em casos de urgecircncia os presos que estivessem sob

menagem deveriam prestar depoimentos durante o dia das sete e agraves 18 horas Aleacutem

disso esses prisioneiros natildeo poderiam ser inquiridos por mais de quatro horas

consecutivas tendo direito apoacutes esse periacuteodo a um intervalo de meia hora antes de

voltarem a ser interrogados

Art 19 As testemunhas e o indiciado exceto caso de urgecircncia inadiaacutevel que

constaraacute da respectiva assentada devem ser ouvidos durante o dia em

periacuteodo que medeie entre as sete e as dezoito horas

[]

Inquiriccedilatildeo Limite de tempo

2ordm A testemunha natildeo seraacute inquirida por mais de quatro horas consecutivas

sendo-lhe facultado o descanso de meia hora sempre que tiver de prestar

declaraccedilotildees aleacutem daquele termo O depoimento que natildeo ficar concluiacutedo agraves

dezoito horas seraacute encerrado para prosseguir no dia seguinte em hora

determinada pelo encarregado do inqueacuterito (Decreto-lei nordm 1002 21 out

1969)

A partir disso faz mais sentido ainda as diferentes distacircncias existentes entre as

celas e a sala de tortura nas duas fases da prisatildeo Como o prazo maacuteximo estipulado para

um interrogatoacuterio era de quatro horas tendo o prisioneiro apoacutes este tempo direito a um

166

descanso de ao menos meia hora no primeiro momento da prisatildeo no DOI-CODIRJ

deixar o preso perto do local onde eram feitos os interrogatoacuterios era um facilitador Essa

proximidade entre a cela e a ldquosala roxardquo natildeo era necessaacuteria para o preso que estivesse na

segunda etapa da prisatildeo jaacute que ele natildeo seria transportado de um lugar para o outro com

tamanha frequecircncia e provavelmente os interrogatoacuterios que lhe seriam destinados nem

chegassem agraves quatro horas permitidas pelo referido Decreto-lei

Nas narrativas de todos os entrevistados estatildeo presentes as experiecircncias vividas

nas duas fases da prisatildeo Todos eles passaram os primeiros dias em solitaacuterias e

posteriormente ficaram em celas maiores Padre Maacuterio foi a uacutenica exceccedilatildeo Sua prisatildeo

no DOI-CODIRJ natildeo passou por essas duas etapas encaixando-se portanto em um

dos casos extraordinaacuterios dessa instituiccedilatildeo Afinal desde o momento em que foi levado

para o preacutedio do DOI-CODIRJ Padre Maacuterio afirma ter dividido uma cela no segundo

andar com outros padres e depois ter sido transferido para uma cela do primeiro andar

onde ficou sozinho e de frente para as celas de jovens militantes de sua Associaccedilatildeo

conforme pode-se conferir no trecho abaixo

[] foi exatamente em setembro logo nas primeiras duas semanas em que

noacutes estaacutevamos presos que eles me passaram para o primeiro andar porque

estaacutevamos todos no segundo andar [] entatildeo nos primeiros dias noacutes

padres passamos todos juntos [] e depois fomos separados Entatildeo me

colocaram sozinho nessa cela do andar de baixo bem em frente agraves celas dos

jovens que estavam presos no CENIMAR e que foram levados para laacute para

serem torturados [] (Prigol 28 set 2004)

Essa diferenccedila no cotidiano prisional encontra coerecircncia quando embasada por

alguns argumentos aqui levantados Como a fase em que os presos ficavam nas

ldquosolitaacuteriasrdquo tinha por finalidade desestruturaacute-los e principalmente deixaacute-los mais

proacuteximos da sala de tortura para onde seriam levados com frequecircncia essa fase natildeo

167

deveria ser destinada a um padre sem envolvimento em uma organizaccedilatildeo de luta

armada Os militares teriam que responder agrave Igreja caso algo de mais grave lhe

acontecesse dentro do DOI-CODIRJ Colocar sua vida em risco deveria ser uma opccedilatildeo

somente se ele tivesse informaccedilotildees preciosas para a neutralizaccedilatildeo da guerrilha urbana

principal objetivo do grupo de repressatildeo em 1970 conforme indicado na monografia do

coronel Pereira analisada no primeiro capiacutetulo

Entatildeo como a associaccedilatildeo da qual participava a ACO natildeo tinha envolvimento

com a luta armada a morte de Padre Maacuterio poderia causar desnecessariamente uma

tensatildeo ateacute entatildeo natildeo deflagrada entre o Exeacutercito e a Igreja Catoacutelica 47

Aleacutem disso

como se encontrava em uma faixa etaacuteria mais elevada com cerca de 40 anos ele tinha o

agravante de ter uma sauacutede mais fraacutegil que grande parte dos presos do DOI-CODIRJ

que eram majoritariamente jovens estudantes Assim o tratamento prisional

diferenciado ali recebido por Padre Maacuterio visava diminuir as chances que ele tinha de

desenvolver problemas decorrentes de torturas Essa interpretaccedilatildeo encontra fortes

indiacutecios em um dos trechos de sua entrevista

[] a mim eles soacute colocaram o fio eleacutetrico aqui [aponta para um dedo da

matildeo esquerda] e no peacute esquerdo eu fiquei sabendo que no mesmo lado do

corpo eu natildeo sentiria tatildeo forte mas mesmo assim eu resisti resisti Bom

entatildeo diante da prisatildeo da gente eu sofri tambeacutem torturas mas eu depois

que fingi estar sentindo o coraccedilatildeo eles deixaram de dar choques [risos]

Cada um tem que se defender de alguma forma (Prigol 28 set 2004)

Afinal por meio da descriccedilatildeo acima destacada nota-se que apesar de natildeo

excluiacuterem Padre Maacuterio das sessotildees de tortura uma vez que era esse o procedimento de

investigaccedilatildeo do DOI-CODIRJ existia de fato certo temor em causar-lhe graves

47

Para informaccedilotildees sobre as tensotildees que ocorreram entre a Igreja Catoacutelica e a ditadura militar ver

Serbin 2001 17-77

168

sequelas Dessa forma por mais que Padre Maacuterio relate que sua atitude de defesa

conseguiu inibir a accedilatildeo daqueles agentes conclui-se aqui que caso ele natildeo tivesse as

caracteriacutesticas profissionais morais etaacuterias e ideoloacutegicas aqui descritas certamente tal

inibiccedilatildeo natildeo ocorreria Ao menos natildeo na mesma proporccedilatildeo

Testando a resistecircncia

No ano de 1970 esta preocupaccedilatildeo em evitar sequelas evidentemente natildeo se

aplicava a jovens presos que tivessem algum tipo de ligaccedilatildeo com organizaccedilotildees

oposicionistas adeptas da luta armada Conforme pode-se conferir nos relatos sobre os

danos agrave sauacutede que Dulce Fernando e Ana destacam ter sofrido por conta das torturas

recebidas no DOI-CODIRJ

[] fiquei tomando medicaccedilatildeo especial porque eu estava muito mal estava

com uma paralisia tambeacutem por causa da tortura tinha ficado completamente

travada aquilo vocecirc vai contraindo contraindo e deixava vocecirc semiparaliacutetica

[] (Pandolfi 5 fev 2003)

Eu desmaiava acordava e o pau comia desmaiava acordava e o pau

comia Natildeo foi faacutecil natildeo Eu lembro que quando eu saiacute da PE um mecircs

depois eu fazia assim [passa a matildeo no ouvido] e vinha sangue vinha pus eu

estava bem abalado mesmo (Freire 28 jun 2004)

[] eu fiquei um mecircs no Rio no DOI-CODI Desse mecircs uma semana eu

fiquei no HCE [Hospital Central do Exeacutercito] eu tremia sem parar eu estava

cheia de ferida (Batista 17 nov 2004)

Em todas as fases da prisatildeo para cuidar dos estragos causados agrave sauacutede do preso

durante ou apoacutes a sessatildeo de tortura existiam enfermeiros e meacutedicos no DOI-CODIRJ

Os enfermeiros tratavam os prisioneiros nas celas conforme a recomendaccedilatildeo dos

169

meacutedicos Jaacute esses aleacutem de examinarem e receitarem cuidados especiais aos presos

machucados tambeacutem auxiliavam as turmas de interrogatoacuterio preliminar durante as

torturas averiguando os sinais vitais dos presos a fim de constatarem o quanto eles

ainda poderiam suportar No entanto quando a tortura saiacutea de controle de tal forma que

algum preso ficasse tatildeo mal que natildeo respondesse agrave medicaccedilatildeo e aos cuidados meacutedicos

feitos dentro do quartel esse poderia ser levado pelas turmas de busca e apreensatildeo

conforme demonstrado no primeiro capiacutetulo ateacute o Hospital Central do Exeacutercito48

onde

receberiam um tratamento mais especializado

A existecircncia de meacutedicos no DOI-CODIRJ pode ser averiguada por meio da

confissatildeo de Amilcar Lobo noticiada pela Revista Eacutepoca apresentada abaixo

(EacutePOCA 27 nov 2000 104)

Meacutedico de formaccedilatildeo psicanaliacutetica ele foi denunciado por muitos ex-prisioneiros

por exercer a profissatildeo prestando assessoria a torturas entre 1970 e 1974 no DOI-

CODIRJ Diante disso em 1988 teve o seu registro de meacutedico cassado pelo Conselho

Regional de Medicina do Rio de Janeiro A atuaccedilatildeo de Amilcar Lobo assim como a de 48

O Hospital Central do Exeacutercio (HCE) ainda estaacute localizado no mesmo local da eacutepoca na Rua Francisco

Manoel nordm 126 no bairro de Benfica na cidade do Rio de Janeiro Para mais informaccedilotildees acessar

httpwwwhceebmilbr

170

meacutedicos e enfermeiros em geral tambeacutem eacute encontrada nos depoimentos aqui

analisados conforme pode-se conferir nos trechos destacados a seguir

[] a primeira pessoa que me visitou antes de eu ser torturada foi um

meacutedico o Amilcar Lobo que depois eu denunciei o lsquofilho da putarsquo e a gente

conseguiu cassaacute-lo como meacutedico [] ele acompanhava as torturas antes

durante e depois era o assessor de tortura ele dizia ldquo- Daacute uma paradinha

agorardquo Isso para vocecirc aguumlentar neacute Entatildeo ele entrou na minha cela e me

perguntou se eu era cardiacuteaca tirou a minha pressatildeo e eu natildeo entendendo

nada Ele tinha um esparadrapo aqui [aponta para o lado esquerdo do peito]

para a gente natildeo ver o nome dele Eu fiquei sabendo o nome dele porque

meses depois eu jaacute estava na cela de Dulce [Pandolfi]49

quando ele

porque a Dulce ficou praticamente sem mexer as matildeos [] e ele entrou e

esqueceu o receituaacuterio com o nome dele noacutes olhamos e eu quando saiacute de laacute

o denunciei Anos depois a gente conseguiu que ele fosse cassado []

(Coimbra 30 nov 2004)

[] o meacutedico que vinha te ver vinha para ver as suas condiccedilotildees se tinha que

parar ou se podia continuar a te torturar Os caras batiam muito localizado

em partes que vocecirc resiste mais que satildeo nas naacutedegas nessa parte daqui

[aponta para as costas] Entatildeo satildeo lugares que o seu corpo suporta mais []

(Freire 28 jun 2004)

[] como eu fiquei muito mal eu tive cuidados meacutedicos o tempo quase todo

quer dizer claro que eram cuidados meacutedicos no sentido de me prepararem

para apanhar mais para ser mais torturada queriam evitar que eu morresse

porque politicamente natildeo interessava [] tinha laacute dois enfermeiros de rotina

e tinham tambeacutem dois meacutedicos o mais presente o que sempre visitava a

gente era o Amilcar Lobo Em alguns casos ele participou de algumas

sessotildees de tortura no meu eu me lembro dele dizendo ldquo- ela aguentardquo

tomando minha pressatildeo dizendo que eu aguentava apanhar mais ainda

(Pandolfi 5 fev 2003)

49

Dulce e Ana e Dulce e Ceciacutelia dividiram celas em parte do periacuteodo em que estiveram presas no DOI-

CODIRJ A convivecircncia que laacute tiveram seraacute analisada ainda neste capiacutetulo

171

De fato a tortura estava presente em grande parte do cotidiano do DOI-CODIRJ

e para que fosse eficiente e natildeo causasse maiores problemas tal como mortes

indesejadas ao redor dela havia todo um aparato Esse era formado tanto por

enfermeiros e meacutedicos como tambeacutem por outras especificidades tais como teacutecnicas

treinamentos e equipamentos que seratildeo tratados a seguir

Os meacutetodos da tortura

O meacutedico psicanalista Heacutelio Pelegrino traz uma oacutetima definiccedilatildeo sobre como

funciona a tortura poliacutetica

[] a tortura busca agrave custa do sofrimento corporal insuportaacutevel introduzir

uma cunha que leve agrave cisatildeo entre o corpo e a mente E mais do que isto ela

procura a todo preccedilo semear a discoacuterdia e a guerra entre o corpo e a mente

Atraveacutes da tortura o corpo torna-se nosso inimigo e nos persegue Eacute este o

modelo baacutesico no qual se apoacuteia a accedilatildeo de qualquer torturador [] na tortura

o corpo volta-se contra noacutes exigindo que falemos Da mais iacutentima espessura

de nossa proacutepria carne se levanta uma voz que nos nega na medida em que

pretende arrancar de noacutes um discurso do qual temos horror jaacute que eacute a

negaccedilatildeo de nossa liberdade A tortura nos impotildee a alienaccedilatildeo total de nosso

proacuteprio corpo tornando estrangeiro a noacutes e nosso inimigo de morte

(Pelegrino 5 jun 1982 3)

No interior do DOI-CODIRJ em nenhuma das fases da prisatildeo os presos poliacuteticos

eram poupados de torturas No iniacutecio as visitas agrave ldquosala roxardquo eram mais constantes mas

durante todo o periacuteodo em que permaneciam no DOI-CODIRJ os prisioneiros eram

levados para laacute e laacute eram torturados Nessa sala existiam equipamentos proacuteprios

tornando ainda maior a gama de possibilidades de tortura a serem perpetradas aos

prisioneiros Devido a essa diversidade as torturas recebiam nomes proacuteprios para serem

identificadas pelos oficiais das turmas de interrogatoacuterio preliminar do DOIRJ Tais

172

nomes na maior parte das vezes eram irocircnicos e serviam para demonstrar como ali a

praacutetica da tortura era usual e ao mesmo tempo encarada com naturalidade e frieza

pelos seus executores

Em A Tortura tomo V do ldquoProjeto Ardquo (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985)

encontram-se a caracterizaccedilatildeo e os nomes dessas torturas Comumente citadas pelos

presos poliacuteticos da ditadura militar do Brasil a identificaccedilatildeo dessas torturas foi baseada

sobretudo na anaacutelise da documentaccedilatildeo dos processos judiciais da eacutepoca Afinal muitas

vezes anexadas a esses processos encontram-se denuacutencias sobre torturas feitas por

prisioneiros poliacuteticos nas auditorias militares Essas denuacutencias vatildeo ao encontro de

muitas das descriccedilotildees encontradas nas narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos Antocircnio

Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia construiacutedas jaacute em tempos democraacuteticos

(2002-2004) Algumas delas satildeo destacadas a seguir

Capuz tortura psicoloacutegica Impedimento da visatildeo por meio de um capuz

ficando o indiviacuteduo incapacitado de se defender dos golpes a ele direcionados

Espancamento tapas socos e pontapeacutes aplicados em regiotildees como rins

estocircmago e diafragma

Telefone eletrochoque dado por um telefone de campainha do Exeacutercito

possuindo dois fios longos que satildeo ligados ao corpo molhado normalmente nas

partes genitais e nos mamilos aleacutem dos ouvidos dentes liacutengua e dedos

Pau-de-arara um dos meacutetodos mais antigos de tortura pelo qual se pendura a

viacutetima em posiccedilatildeo de ldquofrango assadordquo nua e de cabeccedila para baixo em um pau

preso no alto por duas barras de ferro causando dores terriacuteveis na cabeccedila e em

todo corpo

Choques eleacutetricos normalmente complemento do pau-de-arara Caracteriza-se

por enviar descargas eleacutetricas em contato com o corpo nu e molhado atraveacutes de

173

um magneto com dois terminais estando um geralmente nos oacutergatildeos genitais e

outro em alguma extremidade sensiacutevel do corpo como liacutengua mamilos e dedos

Palmatoacuteria raquete de madeira aplicada fortemente nas matildeos peacutes naacutedegas e

costas da viacutetima

Afogamento Complemento do pau-de-arara Pode ser aplicado ou por meio de

um pequeno tubo de borracha que lanccedila aacutegua na boca e nas narinas do

torturado ou atraveacutes de uma toalha molhada depositada tambeacutem na boca deste

ao mesmo tempo em que um jato drsquoaacutegua eacute lanccedilado em suas narinas

No referido tomo V do Projeto Brasil Nunca Mais encontram-se trechos das

denuacutencias feitas por Dulce Pandolfi nas auditorias militares em 1970 e tambeacutem por seu

advogado Dr Heleno Fragoso Comparando partes dessas denuacutencias de 1970 com

trechos da entrevista concedida por Dulce em 2003 nota-se que haacute muitos pontos em

comum No entanto percebe-se que em sua narrativa de 2003 as torturas satildeo relatadas

de forma mais impessoal e que talvez pelo tempo que separa este depoimento daquele

de 1970 alguns detalhes se perderam foram esquecidos ou mesmo silenciados Eacute o que

pode-se perceber nas transcriccedilotildees feitas a seguir

Nordm 433 Dulce Chaves Pandolfi Prof estudante Idade 23 Local Rio de

Janeiro (CODI) Ano 1970 Apelaccedilatildeo 39778 Vol 1 PAacuteG 328v LVI

PARTE auto de qualificaccedilatildeo e interrogatoacuterio ndash Auditoria

[] que no quartel da PE na Rua Baratildeo de Mesquita assinou sob torturas o

depoimento () que na sala de torturas da PE foi despida e aplicaram-lhe

choques eleacutetricos nas matildeos que foi levada para uma cela onde deram-lhe

um banho frio e sob o pretexto de ensaboaacute-la os torturadores alisavam o seu

corpo que ao retornar agrave sala de torturas foi colocada no chatildeo com um

jacareacute sobre seu corpo nu que depois foi pendurada num pau-de-arara que

levou choques na vagina no acircnus nos seios na cabeccedila e no restante do

corpo [] que ficou em estado de choque vomitando sangue que por 15

174

dias ficou totalmente paraliacutetica [] que foi exposta perante 20 oficiais

como numa demonstraccedilatildeo de aulas de torturas pau-de-arara e choques []

(Arquidiocese de Satildeo Paulo tomo V 1985 757)

Nordm 433 Dulce Chaves Pandolfi Prof estudante Idade 21 Local R de

Janeiro Ano 1970 Apelaccedilatildeo 39778 Vol 2ordm PAacuteG 712807 LVI

PARTE advogado

[] Com a palavra o Dr Heleno Fragoso defensor da acusada Dulce Chaves

Pandolfi este declarou que ela foi presa em agosto de 1970 tendo sido

submetida a uma seacuterie de torturas tendo inclusive o Delegado do DOPS

mandado submetecirc-la a exame de corpo de delito para salvaguardar a sua

responsabilidade [] Natildeo usaremos a palavra do co-reacuteu Paulo Henrique

Oliveira da Rocha Lins que foi ldquoforccedilado a presenciar a acusada DULCE

PANDOLFI sendo pisoteada nua no chatildeordquo (cf fls 325) Remeteremos o E

Conselho ao laudo fls 358 onde dois meacutedicos legistas do Instituto Meacutedico

Legal examinam a acusada e concluem pela verossimilhanccedila a

plausibilidade de suas alegaccedilotildees no sentido de que fora espancada

constatando os vestiacutegios das lesotildees Estaacute laacute a fls 358 a verdade do

inqueacuterito

Esse sofrimento deve ter sido tanto maior quanto era possiacutevel agrave acusada

fornecer as informaccedilotildees que seus torturadores exigiam [] (Arquidiocese de

Satildeo Paulo tomo V 1985 759)

[] vocecirc apanhava era super torturada ali em 1970 natildeo tinha escapatoacuteria

esse era o procedimento era a rotina e aiacute depois da tortura vocecirc jaacute toda

cheia de hematomas passando mal vocecirc era levada para uma cela muitas

vezes essas pessoas saiacuteam da sala de tortura e iam direto para essa cela onde

eu estava entatildeo eu tambeacutem presenciei muitas pessoas que chegavam laacute

completamente quebradas arrebentadas e essa era a nossa vida []

[] tinha o pau-de-arara que eu fui pendurada vaacuterias vezes nele com os

ferros verdes e as cordas tinha o tal telefone de choque que era para mim

um dos piores instrumentos era um aparelho de choque eleacutetrico tinha a

cadeira que eles tambeacutem te amarravam faziam mil sacanagens e tinha uns

enfim tinha uma espeacutecie de chicote que eles te batiam um porrete A tortura

tem vaacuterios procedimentos e tinha na PE nessa eacutepoca um jacareacute Ele natildeo

ficava na sala de tortura Esse jacareacute ficava do lado de fora Quando algumas

pessoas foram presas eles trouxeram o jacareacute para amedrontar Colocavam o

175

jacareacute sobre o seu corpo Era um filhote de jacareacute mas razoavelmente

grande quer dizer de um metro mais ou menos e era mais um dos

instrumentos que eles usavam [] fiquei tomando medicaccedilatildeo especial

porque eu estava muito mal estava com uma paralisia tambeacutem por causa da

tortura tinha ficado completamente travada eacute aquilo vocecirc vai contraindo

contraindo e deixava vocecirc semiparaliacutetica [] (Pandolfi 5 fev 2003)

A partir da comparaccedilatildeo dos trechos dos diferentes depoimentos acima destacados

dados sobre cenaacuterios e temporalidades distintas nota-se que a narrativa construiacuteda por

Dulce Pandolfi em 2003 eacute muito menos detalhada do que a por ela proferida em 1970

Percebe-se portanto no caso de Dulce que o presente vivido em 2003 de certa forma

agia sobre sua memoacuteria do passado ditatorial impulsionando o silecircncio sobre as

minuacutecias dos sofrimentos vividos no DOI-CODIRJ Logo nas memoacuterias de Dulce

nota-se uma inversatildeo da perspectiva de que o presente democraacutetico promovia uma

narrativa que enfatizasse os detalhes das torturas sofridas durante a ditadura militar a

fim de solidificar as conquistas ateacute entatildeo conseguidas e alcanccedilar outras tantas no futuro

Talvez em 2003 Dulce por jaacute ser uma mulher madura e uma profissional

reconhecida entendesse que o constrangimento trazido pela exposiccedilatildeo total de suas

memoacuterias sobre as torturas sofridas no passado superasse a vontade de denunciaacute-las no

presente Afinal naquele ano a democracia dava fortes sinais de consolidaccedilatildeo uma vez

que Lula ex-liacuteder sindical e perseguido poliacutetico pela ditadura acabava de assumir a

Presidecircncia do Brasil e o Estado brasileiro jaacute vinha reconhecendo sua responsabilidade

diante dos abusos da eacutepoca militar atraveacutes da concessatildeo de reparaccedilotildees financeiras agraves

famiacutelias dos militantes poliacuteticos desde entatildeo desaparecidos (lei nordm 914095) e agraves

viacutetimas de torturas em prisotildees poliacuteticas do periacuteodo (lei nordm 1055902)

Jaacute em 1970 os detalhes sobre as torturas sofridas por Dulce ainda eram

extremamente recentes e portanto muito presentes em sua memoacuteria Aleacutem disso tinha

consciecircncia de que no instante de seu depoimento muitos de seus companheiros

176

continuavam a sofrer dentro dos oacutergatildeos de repressatildeo com as mesmas torturas que havia

recebido E principalmente como estava defendendo-se perante um tribunal a

exposiccedilatildeo dos detalhes de suas torturas apresentava-se como uma arma importante na

luta em prol de sua liberdade

Diante disso enquanto Dulce relata em sua entrevista saber do uso de um filhote

de jacareacute como mais um instrumento de tortura utilizado no DOI-CODIRJ sem no

entanto afirmar ter passado por tal experiecircncia Ceciacutelia Coimbra em 2004 narra que

esse filhote de jacareacute havia sido colocado pelos militares sobre seu corpo nu

[] me botaram nua me amarraram numa cadeira e me puseram um filhote

de jacareacute que era um filhote de jacareacute que eles puxavam por uma corda no

pescoccedilo do pobre do jacareacute Era um filhote e aiacute eles puxavam o jacareacute

botavam o jacareacute em cima Olha era uma coisa horriacutevel Nessa hora eu

desmaiei neacute Natildeo aguentei [] (Coimbra 30 nov 2004)

Durante sua entrevista em 2004 Ceciacutelia descreve ter passado pela mesma

situaccedilatildeo de tortura que Dulce havia descrito em seu depoimento agrave Justiccedila Militar em

1970 mas que no presente em 2003 optou por relatar de forma impessoal Isso se

justifica pelo fato de para Ceciacutelia a descriccedilatildeo dos detalhes ainda ser essencial Afinal

Ceciacutelia eacute uma das fundadoras e ativistas assiacuteduas do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio

de Janeiro (GTNMRJ) onde ocupava entatildeo o cargo de vice-presidente

Eacute evidente portanto que na vida de Ceciacutelia a narrativa sobre os sofrimentos

acarretados pela repressatildeo militar ainda era arma na luta que travava para a

solidificaccedilatildeo das conquistas e para a concretizaccedilatildeo de outras tantas que julgava serem

igualmente importantes Para ela diferentemente de Dulce esse tipo de narrativa era

mais que sua memoacuteria pessoal dizia respeito tambeacutem a seu ofiacutecio Acreditava que o seu

sucesso pessoalprofissional dependia do detalhamento da memoacuteria sobre tais violaccedilotildees

177

o que colocava tais detalhes em um lugar de mais faacutecil aceitaccedilatildeo e por conseguinte

exteriorizaccedilatildeo

Mediante os depoimentos de Dulce e Ceciacutelia que chegaram a dividir cela no DOI-

CODIRJ como poderaacute ser visto paacuteginas agrave frente conclui-se que em meados de 1970

um filhote de jacareacute era utilizado para torturar os presos poliacuteticos do 1ordm BPE O uso

desse tipo de tortura eacute aqui entendido mais por seus efeitos psicoloacutegicos do que fiacutesicos e

como sendo destinado mais agraves presas do que aos presos poliacuteticos Afinal apesar de

tocar nos corpos das viacutetimas como acontece durante as torturas fiacutesicas aparentemente

o jacareacute que era dominado por um militar atraveacutes de uma corda amarrada em seu

pescoccedilo natildeo as atacava ou seja natildeo as causava lesotildees externas Era claramente

utilizado com o intuito de ameaccedilaacute-las Dessa forma mesmo sendo efetuado atraveacutes da

accedilatildeo direta do torturador e mediante o contato fiacutesico esse mecanismo de tortura tinha

por objetivo causar danos exclusivamente psicoloacutegicos Como normalmente as

mulheres possuem mais sensibilidades e fobias relacionadas ao contato com animais

provavelmente esse tipo de tortura atingisse maior eficiecircncia quando destinado agraves

presas

Conforme jaacute analisado e inclusive indicado pelo nome Destacamento de

Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) os presos do DOIRJ estavam ali para fornecer

informaccedilotildees que levassem agrave neutralizaccedilatildeo das organizaccedilotildees poliacuteticas de esquerda

Assim de acordo com a necessidade da raacutepida extraccedilatildeo de tais dados caracterizada

anteriormente natildeo eacute difiacutecil concluir que o clima de ameaccedila e tortura estivesse por toda

parte do preacutedio Portanto percebe-se que as torturas no DOI-CODIRJ de 1970 natildeo se

limitavam agraves fiacutesicas e nem agrave ldquosala roxardquo elas se apresentavam sob diversas faces em

vaacuterios momentos e lugares do edifiacutecio

178

As torturas psicoloacutegicas eram variadas Aleacutem da degradaccedilatildeo inicial que o

desconforto das celas ldquosolitaacuteriasrdquo trazia ao prisioneiro mesmo nas celas coletivas os

presos eram submetidos a muitos outros artifiacutecios desse tipo de tortura tais como luzes

das celas constantemente acesas a fim de que perdessem a noccedilatildeo da passagem do

tempo carcereiros durante a noite abrindo repetidamente a janelinha do portatildeo das

celas para vigiaacute-los acordando-os jaacute que o movimento emitia um som alto visitas

recorrentes de militares agraves celas e gritos vindos da ldquosala roxardquo ouvidos a todo tempo

[] essa porta da nossa cela ela tinha uma abertura era uma porta fechada

natildeo era grade natildeo era uma porta pesada e ela tinha um quadrado em cima

com uma abertura para o lado de fora e esses soldados que faziam a ronda

eles abriam essa portinha de cinco em cinco minutos Entatildeo eles passavam e

ldquopahrdquo e dependendo da maldade desses caras eles batiam com mais forccedila

ou menos forccedila isso era a noite toda Inclusive a luz ficava acesa

permanentemente e essa batidinha desse negoacutecio era uma coisa insuportaacutevel

De vez em quando a gente estava pegando no sono e tomava aquele susto

com aquela batida [] a gente tambeacutem ouvia muito grito de tortura o tempo

todo (Pandolfi 5 fev 2003)

[] nem na hora de dormir apagavam a luz dia e noite era a luz acesa vocecirc

sabia o horaacuterio pela hora do cafeacute da manhatilde Mas ateacute se tinha alguma noccedilatildeo

porque como a janela laacute no alto da parede era de vidro dava para vocecirc

perceber que estava agrave noite [] (Carvalho 8 fev 2003)

[] eles faziam o tal do confere de manhatilde e de noite vinham com catildees

policiais farejando a gente e a gente tinha que ficar em peacute igual a soldado

dizendo - ldquoCeciacutelia Coimbrardquo Tinha que falar o nome [] era o tal do

confere E era uma coisa de humilhaccedilatildeo eles de madrugada abriam

estrondosamente as celas entendeu [] era como se noacutes fossemos animais

animais de circo Animais raros eacuteramos os lsquoterroristasrsquo neacute [] era o tempo

todo as torturas fiacutesicas e a coisa da rotina para te degradar enquanto ser

humano [] (Coimbra 30 nov 2004)

179

Outro tipo de tortura psicoloacutegica aplicada no DOI-CODIRJ de 1970 fora da ldquosala

roxardquo jaacute aqui mencionada era o capuz Os agentes das turmas auxiliares encarregados

da carceragem colocavam uma espeacutecie de capuz no prisioneiro quando o levavam da

cela ateacute a ldquosala de torturardquo No entanto no momento em que o preso chegava nessa sala

tinha o capuz retirado pelos agentes das turmas de interrogatoacuterio preliminar Logo no

DOI-CODIRJ de 1970 o capuz ainda natildeo era um mecanismo para esconder os rostos

dos torturadores e sim mais um artifiacutecio de intimidaccedilatildeo do prisioneiro Aliaacutes foi

exatamente por isso que muitos ex-prisioneiros conseguiram anos depois denunciar

militares que na eacutepoca teriam sido seus algozes 50

Ana Batista ressalta ainda ter sido submetida no DOI-CODIRJ a outro tipo de

tortura psicoloacutegica O meacutedico Amilcar Lobo teria solicitado a um agente da turma

auxiliar de plantatildeo que a carregasse ateacute uma sala do 1ordm BPE fora do preacutedio do DOI-

CODIRJ jaacute que estava com ferimentos que natildeo permitiam que andasse Laacute Ana foi

supostamente examinada pelo referido meacutedico e dele escutou o diagnoacutestico de que natildeo

poderia ter filhos pois tinha o uacutetero infantil e retrovertido ou seja atrofiado e virado

para a parte posterior do corpo No entanto apoacutes ser posta em liberdade quatro anos

depois Ana descobriu que aquela afirmaccedilatildeo natildeo era verdadeira pois poderia

engravidar tendo tido posteriormente dois filhos

Eu sei que tem o paacutetio porque uma vez me carregaram para laacute um soldado

foi e me carregou Eu natildeo estava andando eu estava toda ferida entatildeo ele

me carregou pelo paacutetio ateacute uma espeacutecie de consultoacuterio do Amilcar Lobo []

eu estava toda ferida na vagina devido aos choques eleacutetricos e porque

tinham me enfiado o cassetete [] Aiacute ele me examinou e disse assim ldquo-

Vocecirc tem o uacutetero infantil e retrovertido vocecirc nunca vai poder ter filhosrdquo

Assim Eu tinha 21 anos e passei quase quatro anos achando que eu nunca ia

poder ter filhos O cara sabia o que estava fazendo (Miranda 17 nov 2004)

50

Em Os Funcionaacuterios tomo II do Projeto Brasil Nunca Mais se encontra a relaccedilatildeo alfabeacutetica das

pessoas envolvidas com torturas (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985 1-60)

180

Esse tipo de tortura psicoloacutegica destacada no trecho acima coincide com o tipo de

cotidiano vivido pelos presos do DOI-CODIRJ No entanto encaixa-se tambeacutem com o

estilo enfaacutetico que a narrativa de Ana atribuiacutea em 2004 aos danos que a prisatildeo poliacutetica

lhe causara A recente composiccedilatildeo de seu memorial sobre os sofrimentos vividos

durante a ditadura militar enviado agrave Comissatildeo Especial da Secretaria de Direitos

Humanos do Estado do Rio de Janeiro pautava-se no objetivo de receber o valor

maacuteximo da reparaccedilatildeo financeira oferecida pelo Estado No momento da entrevista era

esse o presente que Ana vivia e era atraveacutes dele que inconscientemente lia o passado

Logo sua narrativa apesar de aparentemente coerente sofria influecircncias que as

aspiraccedilotildees e interpretaccedilotildees do presente involuntariamente impuseram a suas memoacuterias

Poreacutem o fato do meacutedico Amilcar Lobo ter lhe dado um diagnoacutestico falso de

esterilidade encontra explicaccedilatildeo natildeo soacute em sua narrativa construiacuteda a partir da

interpretaccedilatildeo de que a notiacutecia teria sido motivada apenas pelo grande dano psicoloacutegico

que isso causaria a uma jovem de 21 anos mas tambeacutem no papel que o meacutedico

desempenhava dentro daquela instituiccedilatildeo Afinal aleacutem de funcionar como uma tortura

psicoloacutegica o diagnoacutestico dado por Amilcar Lobo foi provavelmente uma forma de

tentar resguardar o DOI-CODIRJ de possiacuteveis acusaccedilotildees posteriores de tecirc-la tornado

infeacutertil tantos eram os ferimentos que Ana havia sofrido em seus oacutergatildeos reprodutores

Afinal conforme constatado a principal funccedilatildeo do meacutedico ali era auxiliar as torturas e

cuidar dos ferimentos dos presos na tentativa de proteger a instituiccedilatildeo de acusaccedilotildees que

poderiam trazer preocupaccedilotildees futuras por exemplo a responsabilidade por graves

ferimentos e mortes

Isso no entanto natildeo quer dizer que as torturas do DOI-CODIRJ natildeo tenham

ocasionado mortes Sabe-se que muitos prisioneiros poliacuteticos depois de laacute entrarem

foram dados como desparecidos Quando esses presos eram mortos dentro de

181

instituiccedilotildees como o DOI-CODIRJ os militares envolvidos ou desapareciam com os

corpos pois assim natildeo se tinha como provar o que havia acontecido e por conseguinte

natildeo existiriam culpados ou quando a prisatildeo tivesse sido noticiada por algum meio de

comunicaccedilatildeo o corpo aparecia sob uma justificativa forjada que excluiacutesse a culpa da

instituiccedilatildeo prisional Na maior parte das vezes dizia-se que o prisioneiro havia

cometido suiciacutedio na prisatildeo ou sido baleado em tiroteio o que se supunha estar

relacionado a uma anterior tentativa sua de fuga

Nas entrevistas aqui trabalhadas alguns depoentes relataram ter tido contato

dentro do DOI-CODIRJ com pessoas que depois foram dadas como mortas sob tais

justificativas Dulce por exemplo afirma ter sido acareada durante uma sessatildeo de

tortura com Eduardo Collen Leite o Bacuri morto segundo a Comissatildeo Especial sobre

Mortos e Desaparecidos (2007 139) no Forte dos Andradas na cidade do Guarujaacute

(SP) trecircs dias apoacutes militares implantarem na imprensa a falsa notiacutecia de sua fuga

atribuindo sua morte a um suposto tiroteio na rua entre ele e militares

Quando eu estava laacute eu fui acareada com o Bacuri Eu jaacute encontrei com ele

assim muito mal ele estava respirando mal foi uma cena assim muito barra

pesada e eu sei que depois ele morreu eu natildeo sei se ele morreu laacute mas logo

depois que eu estive com ele ele morreu Ele eacute um desses mortos do

processo Ele morreu fruto de tortura ele foi brutalmente torturado ele jaacute

chegou na PE muito torturado muito quebrado e teve comentaacuterios de

torturadores que diziam ter feito um estrago muito grande nele e natildeo tinham

conseguido que ele falasse as coisas que eles queriam que ele falasse

(Pandolfi 5 fev 2003)

Fernando teve seu irmatildeo Eiraldo de Palha Freire baleado e junto com ele preso

pelos militares da Aeronaacuteutica no aeroporto do Galeatildeo no Rio de Janeiro Mesmo

gravemente ferido Eiraldo foi segundo Fernando e a Comissatildeo Especial sobre Mortos

e Desaparecidos (2007 131) transferido para o DOI-CODIRJ e laacute morto sob torturas

182

Poreacutem de acordo com Fernando seu corpo foi entregue agrave famiacutelia sob a versatildeo de

suiciacutedio

Meu irmatildeo veja bem ele foi metralhado no aviatildeo mas ele estava vivo e

ainda foi parar no DOI-CODI Ele estava ferido mas chegou a levar tortura

natildeo resistiu e morreu aiacute disseram que ele se suicidou (Freire 28 jun 2004)

Hoje no entanto grande parte dos mortos e desaparecidos foi reconhecida pelo

Estado brasileiro A Comissatildeo Especial sobre Mortos e Desaparecidos Poliacuteticos

implantada pela lei 914095 encerrou em 2006 a etapa de reconhecimento e reparaccedilatildeo

financeira agraves famiacutelias reconhecendo um total de 253 mortos e desaparecidos poliacuteticos

por autoridades do Estado brasileiro entre os anos de 1961 e 1988 A partir de 2007

essa Comissatildeo passou a concentrar-se na busca e no reconhecimento de ossadas para

que muitas famiacutelias descubram o que de fato aconteceu com seus entes desaparecidos e

possa enterraacute-los conforme indicado pelo seu livro-relatoacuterio Direito agrave verdade e agrave

memoacuteria (2007)

A partir da anaacutelise aqui feita a respeito das torturas a que os presos eram

submetidos no DOI-CODIRJ em 1970 nota-se que essas eram destinadas a todos que

laacute entravam No entanto percebe-se que a intensidade das torturas no DOI-CODIRJ de

1970 variava de acordo principalmente com o tempo de prisatildeo com o tipo de

organizaccedilatildeo que o preso integrasse (se era ou natildeo adepta da luta armada) e com a

resistecircncia que ele apresentasse para conceder as informaccedilotildees que os agentes das turmas

de interrogatoacuterio preliminar buscavam

Logo constata-se que quanto mais ativa fosse a organizaccedilatildeo de luta armada a que

o prisioneiro estivesse relacionado mais ele seria submetido a torturas e quanto mais

ele resistisse a essas mais intensas elas seriam podendo inclusive acarretar sua morte

183

Afinal os prisioneiros ligados a organizaccedilotildees armadas em ampla atividade tinham mais

informaccedilotildees sobre outros militantes procurados

Diante disso como a ALN e o MR-8 eram organizaccedilotildees envolvidas em grandes

accedilotildees armadas da eacutepoca ndash tais como os sequestros dos embaixadores americano e

alematildeo e do aviatildeo da Companhia Aeacuterea Cruzeiro do Sul ocorridos em 4 de setembro de

1969 11 de junho de 1970 e 1ordm de julho de 1970 respectivamente ndash os prisioneiros que

delas faziam parte ou tinham algum tipo de relaccedilatildeo com seus militantes foram

submetidos a intensas torturas no DOI-CODIRJ Como os perfis de Dulce Fernando

Ana e Ceciacutelia se encaixavam nessas caracteriacutesticas conforme analisado no segundo

capiacutetulo a eles foi imposto no DOI-CODIRJ um cotidiano ainda mais violento do que

por exemplo a Antocircnio

Afinal em meados de 1970 quando Antocircnio de Carvalho51

foi preso e levado

para o DOI-CODIRJ o PCBR sua organizaccedilatildeo na eacutepoca apesar de adepta da luta

armada jaacute se encontrava relativamente desestruturada uma vez que suas principais

lideranccedilas jaacute haviam ldquocaiacutedordquo Dessa forma o PCBR mesmo ainda em atividade natildeo

estava envolvido em accedilotildees tatildeo organizadas e com tamanha repercussatildeo como estavam a

ALN e o MR-8 por exemplo Entatildeo Antocircnio apesar de passar pelas duas fases da

prisatildeo e natildeo ser poupado de duras torturas como ocorreu com Padre Maacuterio

provavelmente natildeo sofreu o mesmo grau de violecircncia destinado a Dulce Fernando Ana

e Ceciacutelia As informaccedilotildees que ele tinha natildeo levariam o DOI-CODIRJ aos envolvidos

com as accedilotildees armadas em destaque na eacutepoca

51

Para mais informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria poliacutetica que acarretou a prisatildeo de Antocircnio Leite de Carvalho

voltar ao segundo capiacutetulo

184

32 O dia-a-dia no caacutercere

O dia-a-dia vivido pelos prisioneiros poliacuteticos no DOI-CODIRJ natildeo era o mesmo

que o vivido em um presiacutedio comum A ameaccedila de tortura o medo dela decorrente e o

sentimento de abandono que ela causava estavam presentes a todo momento Assim

natildeo poderia ser diferente que na memoacuteria construiacuteda pelos ex-prisioneiros poliacuteticos do

DOI-CODIRJ de 1970 a tortura ocupe a maior parte das narrativas sobre o cotidiano

ali vivido

No entanto a memoacuteria dos prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ de 1970

entrevistados entre os anos de 2002 e 2004 abarca tambeacutem outros aspectos daquele dia-

a-dia A partir de seus relatos aleacutem de se tornar viaacutevel a anaacutelise sobre as refeiccedilotildees os

banhos e os passatempos durante a prisatildeo no DOI-CODIRJ se torna possiacutevel tambeacutem

perceber como a convivecircncia a cumplicidade entre os presos e ateacute algumas

demonstraccedilotildees de solidariedade dos carcereiros foram elementos importantes para que

resistissem ao violento cotidiano ali vivido

Na primeira fase da prisatildeo os presos ficavam sozinhos em pequenas celas onde

natildeo havia colchatildeo banheiro e eram constantemente levados agrave sala de tortura Este

cotidiano inicial era muito degradante fiacutesica e mentalmente natildeo soacute pelo sofrimento

acarretado pelo grande nuacutemero de torturas sofridas e pelo desconforto das celas mas

tambeacutem pela solidatildeo nelas vivenciada Afinal natildeo foi por acaso que tais celas ficaram

conhecidas como ldquosolitaacuteriasrdquo

A solidatildeo era uma caracteriacutestica que contribuiacutea fortemente para a fragilidade do

prisioneiro do DOI-CODIRJ Isto torna-se mais evidente quando percebe-se a grande

importacircncia que um raacutepido contato com outro preso representava durante a primeira

fase da prisatildeo Eacute o que pode-se apurar no seguinte trecho narrado por Fernando

185

[] uma hora eu estava encostado aqui [aponta para onde ficava uma das

ldquosolitaacuteriasrdquo no desenho que fez em um papel] no primeiro dia aiacute botaram um

cara no corredor [] era um dirigente do Partido Comunista um velho da

minha idade atualmente Ele tremia muito [] Aiacute ele disse - ldquoEstaacute frio neacute

companheirordquo aiacute eu - ldquoMuitordquo e ele disse - ldquoMas eacute mais psicoloacutegicordquo Aiacute

eu senti uma vergonha sabe Porque eu estava me sentindo tatildeo mal tatildeo para

baixo e um homem daquela idade estava firme[] Ele me deu uma forccedila

muito maior do que ele imagina [] (Freire 28 jun 2004)

Evidencia-se atraveacutes dessa narrativa como em meio ao sofrimento e agrave solidatildeo que

Fernando lembra ter vivenciado no primeiro dia de sua prisatildeo no DOI-CODIRJ um

simples diaacutelogo foi capaz de revitalizar a sua resistecircncia Esse pequeno contato foi tatildeo

importante para Fernando a ponto de ficar marcado em sua memoacuteria ateacute o momento de

sua entrevista mais de trinta anos depois

A partir disso nota-se que aquele cotidiano criava independente das pequenas

diferenccedilas ideoloacutegicas que poderiam existir uma forte identidade entre os presos As

dores decorrentes das torturas e a sensaccedilatildeo de solidatildeo que sentiam no DOI-CODIRJ

faziam com que presos que nunca tivessem se visto antes criassem rapidamente uma

forte cumplicidade e amizade Assim nos momentos em que estavam juntos

principalmente durante a segunda fase da prisatildeo eles conversavam apoiavam-se e

cuidavam uns aos outros extraindo desse conviacutevio forccedila para encararem os proacuteximos

dias de prisatildeo

Essa experiecircncia coletiva dentro do DOI-CODIRJ era valiosa ateacute porque nem

mesmo quando os presos jaacute estavam na segunda fase da prisatildeo ela era garantida Afinal

apesar do prisioneiro poliacutetico do DOI-CODIRJ durante a segunda fase ficar em celas

com estrutura para mais de um preso ele nem sempre tinha companhia Conforme jaacute

analisado anteriormente no DOI-CODIRJ existia uma grande rotatividade e isso

186

implicava em que em determinados momentos as celas coletivas estivessem cheias e

em outros habitadas por dois ou ateacute mesmo um uacutenico prisioneiro

Logo por ser a primeira fase um periacuteodo de isolamento e a segunda devido agrave alta

rotatividade do DOI-CODIRJ uma fase em que ora se estava sozinho e ora tinha-se

companheiro(s) de cela a convivecircncia era entatildeo muito valorizada pelos presos como se

pode perceber na ecircnfase que ela recebe nas memoacuterias dos entrevistados

[] quando estaacutevamos juntas era bem melhor porque existia uma identidade

muito forte entre a gente Eram pessoas que nunca tinham se conhecido de

um modo geral mas aquele oacutedio contra a ditadura o fato de todas terem sido

torturadas aquilo dava margem a uma liga muito grande entre a gente

Entatildeo quando noacutes estaacutevamos juntas a gente cantava a gente conversava a

gente contava histoacuterias de vida o tempo passava e a gente tinha uma

intimidade Conseguimos construir uma coisa muito soacutelida mesmo com

poucas horas e poucos dias mesmo nesse esquema que eu estou te falando

quer dizer as pessoas natildeo ficavam laacute fixas Teve uma vez que uma moccedila

ficou laacute trecircs dias outra que ficou quatro outra que ficou cinco Mas era

uma coisa muito boa chegar algueacutem mesmo vocecirc vendo a pessoa chegar

toda esbagaccedilada porque os que entravam naquela cela jaacute tinham passado laacute

embaixo [] (Pandolfi 5 fev 2003)

[] a cela coletiva na verdade acabava se constituindo num foacuterum de

debates Sempre discutiacuteamos poliacutetica porque eram companheiros de

diversas organizaccedilotildees natildeo era uma uacutenica organizaccedilatildeo ou um uacutenico partido

que estava ali preso mas sim vaacuterios e havia aquela troca de experiecircncias

cada um contava a sua histoacuteria e assim ia passando o dia-a-dia sempre

havia novidades Assim a gente acabava quebrando um pouco o isolamento

[] (Carvalho 8 fev 2003)

Essa convivecircncia no caacutercere fomentou portanto a solidariedade e instituiu um

forte sentimento de coletividade entre os presos Afinal a luta pela sobrevivecircncia e o

pavor de voltar a ser torturado eram comuns a todos eles que procuravam na uniatildeo criar

forccedilas para suportar aquele pesado cotidiano A troca de apoio servia entatildeo como uma

187

espeacutecie de sustentaccedilatildeo como uma garantia de sobrevida Ao preocuparem-se e

ajudarem-se os presos injetavam-se um acircnimo importante para conseguirem resistir agrave

situaccedilatildeo de desespero e solidatildeo que ali era vivida e diante dessa realidade acabavam

formando um grupo coeso cuja principal caracteriacutestica era justamente esse apoio

Constituiacuteam portanto uma identidade conjunta atraveacutes da qual se viam sob os mesmos

temores e anseios aleacutem de perceberem essa parceria como uma extensatildeo da resistecircncia

agrave ditadura que vinham praticando desde antes de serem presos

Ana Dulce e Ceciacutelia memoacuterias relacionadas

Ana e Dulce e depois Dulce e Ceciacutelia foram companheiras de cela durante parte

da segunda fase de suas prisotildees no DOI-CODIRJ de 1970 Suas narrativas sobre a

convivecircncia que laacute tiveram servem aqui para analisar tanto as relaccedilotildees entre suas

memoacuterias quanto alguns aspectos do cotidiano dessa instituiccedilatildeo

Conforme analisado no segundo capiacutetulo Ana chegou ao DOI-CODIRJ no final

de julho de 1970 Logo depois em 14 de agosto do mesmo ano Dulce foi presa e para

laacute tambeacutem levada Como Ana afirma ter permanecido no DOI-CODIRJ por cerca de

um mecircs constata-se que no final de agosto quando ela jaacute estava em vias de ser

transferida colocaram Dulce em sua cela no segundo andar Dulce acabava de vir da

primeira fase de sua prisatildeo que por ter lhe causado graves consequecircncias fiacutesicas tinha

sido mais curta Nesse momento de extrema fragilidade em que Dulce se encontrava jaacute

que vinha de intensas sessotildees de tortura e de uma das ldquosolitaacuteriasrdquo do andar de baixo

Ana ajudou-a a cuidar de seus ferimentos e a tomar banho

Esse contato que teve com Ana apesar de curto jaacute que dias depois Ana foi

transferida para o DOI-CODISP parece ter sido muito importante para Dulce Afinal

apesar dela ter convivido com outras presas durante os quase trecircs meses em que ficou

188

no DOI-CODIRJ Ana foi a uacutenica companheira de cela que Dulce citou pelo nome

durante a entrevista

[] logo que eu cheguei fui para a solitaacuteria era torturada e ia para a solitaacuteria

era torturada e ia para a solitaacuteria quando eu comecei a passar muito mal

depois de um dia dois dias eles me levaram para outra cela maior onde

estava Ana Bursztyn que me deu banho Logo depois ela saiu da cela e eu

fiquei sozinha [] (Pandolfi 5 fev 2003)

A justificativa para a presenccedila de Ana ter ficado marcada na memoacuteria de Dulce

possivelmente eacute o fato de naquele momento aleacutem de estar extremamente machucada

Dulce natildeo ter ainda dividido cela com mais ningueacutem Estava ateacute entatildeo imersa em uma

rotina de solidatildeo e tortura que caracterizava a primeira fase da prisatildeo no DOI-

CODIRJ A ajuda e o conviacutevio com Ana portanto representaram para Dulce um

primeiro contato com algueacutem em quem podia confiar talvez uma primeira surpresa boa

no cotidiano que vinha vivendo no DOI-CODIRJ Jaacute para Ana que estava haacute mais

tempo presa Dulce provavelmente natildeo tinha sido a uacutenica a contar com sua ajuda logo

natildeo se destacava entre suas memoacuterias sobre o cotidiano ali vivido

Comparando as datas das prisotildees de Ana Dulce e Ceciacutelia percebe-se que apoacutes

Ana ter sido transferida Dulce ficou nessa cela grande chamada de ldquocoletivo das

mulheresrdquo enquanto Ceciacutelia entrava no DOI-CODIRJ Ceciacutelia passou pela fase das

ldquosolitaacuteriasrdquo e depois foi levada ateacute uma cela tambeacutem no segundo andar ao lado da de

Dulce onde esteve em companhia de uma moccedila Um tempo depois foi transferida para

o ldquocoletivo das mulheresrdquo onde estava Dulce com quem conviveu grande parte do

tempo

[] fiquei nessa cela [apontando para o desenho que havia feito mostra a

cela do segundo andar que ficava ao lado do ldquocoletivo das mulheresrdquo]

189

depois fui transferida para uma cela maior onde tinha vaacuterias presas poliacuteticas

inclusive uma pessoa que ficou grande parte do tempo comigo a Dulce

Grande parte do tempo eu fiquei com ela nessa cela era o lsquocoletivo das

mulheresrsquo [] (Coimbra 30 nov 2004)

Apesar de natildeo ser destacada entre as memoacuterias de Dulce Ceciacutelia durante sua

narrativa parece atribuir um papel importante ao conviacutevio que elas tiveram Afinal o

tempo que passou com Dulce no DOI-CODIRJ trouxe-lhe um dado a mais sobre as

aulas de tortura a novos oficiais que ali estavam ocorrendo jaacute que enquanto dividia cela

com Ceciacutelia Dulce serviu de cobaia para tais ensinamentos Assim como Ceciacutelia era

vice-presidente do GTNMRJ no momento de sua entrevista e por conseguinte tinha

como caracteriacutestica enfatizar em sua narrativa os detalhes sobre as torturas cometidas

pelos agentes do DOI-CODIRJ a fim de denunciaacute-las se justifica que Dulce tenha

papel marcante entre suas memoacuterias Esse destaque que a convivecircncia com Dulce

assumiu para Ceciacutelia pode ser conferido no trecho abaixo

[] a Dulce foi chamada para uma tortura de tarde [] a gente comeccedilou a

ouvir os gritos de Dulce e jaacute tinha passado todo o periacuteodo porque eles

torturam logo no iniacutecio para pegar informaccedilatildeo Aiacute eu digo ldquo- Soacute se

algueacutem caiu algueacutem foi preso e Dulce estaacute sendo acareadardquo Daqui a pouco

a Dulce volta para a cela com um soldado toda ferrada e aiacute ela ainda ia

voltar O cara disse ldquo- Oh eacute soacute para ela se lavarrdquo Entatildeo eu entrei no

chuveiro com ela e eu dizia ldquo- Dulce o que estaacute havendordquo E ela ldquo- Eu natildeo

estou entendendo o que estaacute acontecendo tem um bando de homem a minha

volta ningueacutem me faz pergunta nenhuma e estatildeo me torturando estatildeo me

botando no pau-de-arara estatildeo me fazendo afogamento estatildeo me dando

choque eleacutetrico eu natildeo estou entendendordquo E eu falei ldquo- Dulce isso eacute aula

para novos torturadoresrdquo Porque eu jaacute tinha lido num dos panfletos da UNE

sobre os meacutetodos de tortura que estavam sendo utilizados no DOI-CODI

aleacutem do jacareacute que a gente viu e que citavam tinha tambeacutem a aula a novos

torturadores ou seja eles pegavam um preso que tinha tido maior resistecircncia

e botavam laacute como cobaia para ensinar aos novos torturadores todas as

190

teacutecnicas E foi isso que fizeram com Dulce Aiacute eu falei ldquo- Dulce isso eacute aula

para novos torturadores eu li essa porrardquo [] (Coimbra 30 nov 2004)

A partir disso fica claro que para Ceciacutelia a constataccedilatildeo da existecircncia de aulas de

torturas no DOI-CODIRJ utilizando presos poliacuteticos teve uma destacada importacircncia

Logo o seu conviacutevio com Dulce durante o periacuteodo em que ela foi viacutetima desses

ensinamentos tambeacutem teve

Aleacutem disso Ceciacutelia durante sua entrevista perguntou quem eu jaacute havia

entrevistado Assim ao saber sobre a entrevista de Dulce sentiu-se motivada a falar

sobre as experiecircncias que com ela tinha compartilhado durante a prisatildeo no DOI-

CODIRJ Dessa forma alguns outros detalhes sobre essa convivecircncia contidos na

memoacuteria de Ceciacutelia foram naquele momento reconstruiacutedos e narrados

Um deles em especial contribui para a anaacutelise sobre o cotidiano do DOI-

CODIRJ Diz respeito agrave relaccedilatildeo travada com alguns carcereiros ou seja soldados do 1ordm

BPE que integravam as turmas auxiliares Afinal a partir do relato de Ceciacutelia Coimbra

percebe-se que ela e Dulce puderam ir ateacute as celas onde estavam os seus companheiros

que na eacutepoca tambeacutem se encontravam aprisionados no DOI-CODIRJ graccedilas agrave ajuda

de um dos responsaacuteveis pela vigia daquela noite

Teve uma noite tinha um soldadinho que a gente natildeo lembra o nome a

gente soacute se lembra dos lsquofilhos da putarsquo a gente devia lembrar dos caras que

foram legais com a gente Esse cara por exemplo ele soube que o marido de

Dulce estava preso o Alexandre e que o Novaes meu marido estava preso

Aiacute como ele ia ficar a noite toda de guarda ele mandou os soldadinhos

descerem e permitiu que Dulce fosse agrave cela de Alexandre e eu agrave de Novaes

Esse cara natildeo saiu da minha cabeccedila [] Esse cara a gente conversando com

ele ele soube que o Novaes estava na cela do lado e que o Alexandre estava

numa outra cela ali perto e ele deixou Dulce foi para a cela de Alexandre e

eu para a de Novaes Assim rapidinho neacute Demos a matildeo um beijo assim

[beija a proacutepria matildeo para demonstrar] O cara se expocircs mesmo neacute E tinha

191

outros que entregavam neacute Entregavam os bilhetes Era um vendaval de

bilhetes durante a madrugada Os caras se expunham mesmo entendeu

Tinha coisas bonitas ali apesar daquele clima de terror tinha pessoas assim

solidaacuterias E esses nomes a gente natildeo lembra neacute Devia lembrar []

(Coimbra 30 nov 2004)

Conforme analisado no primeiro capiacutetulo tais carcereiros que integravam as

turmas auxiliares do DOI-CODIRJ natildeo eram oficiais de informaccedilotildees treinados

especialmente para trabalhar junto agrave repressatildeo poliacutetica eram soldados que em 1970

serviam ao quartel do 1ordm BPE52

Logo eram passiacuteveis de sentir solidariedade jaacute que

muitos deles natildeo estavam servindo ao DOI-CODIRJ por algum tipo de vocaccedilatildeo

estavam ali somente para cumprir com o serviccedilo militar do quartel Afinal apesar de

haver entre eles alguns que se identificassem com a funccedilatildeo e ateacute almejassem tornar-se

agentes de informaccedilotildees os integrantes dessas turmas auxiliares natildeo trabalhavam nos

interrogatoacuterios dos presos e consequentemente natildeo estavam diretamente relacionados

com as torturas Portanto pode-se dizer que no DOI-COIRJ existia compaixatildeo entre

soldados e prisioneiros

A partir disso evidencia-se como o indiviacuteduo tem um papel primordial para essa

anaacutelise Afinal ao considerar sua memoacuteria como fonte para a histoacuteria torna-se possiacutevel

perceber aqui algumas de suas idiossincrasias ou seja peculiaridades comportamentais

capazes de interferir na percepccedilatildeo sobre o cotidiano vivido no DOI-CODIRJ de 1970

Afinal a ajuda que o soldado deu a Dulce e Ceciacutelia eacute um exemplo tiacutepico de como as

peculiaridades individuais satildeo capazes de atribuir contrastes e inconstacircncias agrave

interpretaccedilatildeo de uma realidade do passado Desse modo entende-se perfeitamente o

porquecirc de Marshall Sahlins afirmar em Histoacuteria e Cultura (2006) que os indiviacuteduos

52

Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar ver o Anexo II

192

representam um feixe uacutenico resultado de uma ligaccedilatildeo peculiar entre infinitos traccedilos

culturais e sociais que natildeo conseguem ser captados por anaacutelises generalizantes

Uma vez que a partir de accedilotildees como a desse soldado pode-se afirmar que o

cotidiano prisional do DOI-COIRJ de 1970 natildeo era formado unicamente pela repressatildeo

e pela violecircncia dos militares que ali representavam o Estado como uma generalizaccedilatildeo

ou uma reduccedilatildeo de varaacuteveis poderia fazer crer Havia tambeacutem compaixatildeo ateacute mesmo

entre lados aparentemente opostos

As formas de lidar com o tempo

Para sobreviver ao cotidiano do DOI-CODIRJ natildeo bastava ser resistente

fisicamente tambeacutem era necessaacuterio manter a mente em equiliacutebrio Essa preocupaccedilatildeo

acompanhava o prisioneiro em todas as fases da prisatildeo mas principalmente quando ele

estava sozinho Afinal a solidatildeo trazia a sensaccedilatildeo de que o tempo natildeo passava e em

meio ao violento cotidiano a que era submetido o preso do DOI-CODIRJ percebia

mais facilmente sinais que lhe causavam medo e desespero

Ceciacutelia Coimbra e Dulce Pandolfi ressaltam que mesmo quando estavam em

celas coletivas com a companhia de outras presas percebiam muitos desses sinais

Ficavam em pacircnico pois na maior parte das vezes significavam que seriam levadas

novamente agrave ldquosala roxardquo Quando sozinhas a sensaccedilatildeo de pavor por natildeo ser

compartilhada provavelmente era ainda mais intensa

[] a gente ficou tatildeo traumatizada com o barulho de chave que quando a

gente ouvia a gente dizia ldquo- Eles vecircm para caacute vecircm pegar alguma de noacutesrdquo

Era uma loucura era um clima de terror [] (Coimbra 30 nov 2004)

[] toda vez que um soldado abria a cela trazia o capuz Era ateacute uma cena

muito dramaacutetica porque todo mundo comeccedilava a tremer de medo porque se

193

sabia que se o capuz estava ali era porque algueacutem ia descer algueacutem ia

circular e descer normalmente significava ser torturada Entatildeo era assim

uma coisa bem dramaacutetica bem traumaacutetica tambeacutem porque quando abriam a

cela e retiravam o capuz a gente pensava ldquo- pronto algueacutem vai agora pro

caceterdquo (Pandolfi 5 fev 2003)

Para manterem suas mentes satildes os prisioneiros do DOI-CODIRJ quando

sozinhos utilizavam alguns artifiacutecios Dulce em sua narrativa relata ter ficado algum

tempo sozinha em uma cela coletiva onde se ocupava em frear a impressatildeo de

vagarosidade do tempo e os maus pensamentos de diversas maneiras tais como

[] eu lembro de duas coisas que eu fazia como exerciacutecio para passar o

tempo Os colchotildees que eram horriacuteveis eram colchotildees de crina eu tirava

aquelas palhas de dentro do colchatildeo e ficava fazendo tranccedilas fazia vaacuterias

tranccedilas e contava uma tranccedila duas tranccedilas e ia montando uma na outra

Fazia filas de tranccedilas depois eu desmanchava tudo eu lembro que eu ateacute

tinha medo ldquo- Se esses caras descobrirem isso vatildeo mandar costurar o

colchatildeordquo Depois eu tirava tudo e guardava de novo laacute dentro do colchatildeo No

dia seguinte eu comeccedilava outra vez Eu dizia ldquo- eu natildeo posso enlouquecer

entatildeo eu tenho que ocupar a minha cabeccedila com alguma coisardquo Porque eu

natildeo tinha nada nada nada para fazer Outra atividade que eu fazia tambeacutem

Como [] o chatildeo da cela era como se fosse de umas lajotas de uns azulejos

sei laacute o quecirc eu contava aqueles quadrados todos multiplicava fazia

milhares de contas Fazia um jogo no chatildeo do quarto contava para frente

para traacutes multiplicava e naquilo ali eu ficava horas naquelas contas

matemaacuteticas naquelas multiplicaccedilotildees naquelas somas naqueles ladrilhos

[] (Pandolfi 5 fev 2003)

A execuccedilatildeo de tais meacutetodos certamente contribuiacutea para aumentar a possibilidade

de sobrevivecircncia e sanidade do prisioneiro do DOI-CODIRJ Poreacutem o preso dependia

de sua capacidade e habilidade para usar recursos que o beneficiassem e que ajudassem

a se opor aos mecanismos desetruturadores e despersonalizadores sobre ele empregados

Nessa situaccedilatildeo assim como Elizabeth Ferreira na obra Mulheres Militacircncia e Memoacuteria

194

(1996 65) acredita-se que o sentimento de auto-estima gerado nos presos poliacuteticos pelo

seu ideal poliacutetico e social eacute um elemento crucial de resistecircncia Atraveacutes desse

sentimento normalmente tais presos costumam sustentar a esperanccedila na mudanccedila o

que lhes gera forccedila e ateacute mesmo uma criatividade para suportar o sofrimento maior que

a de presos comuns

As roupas e as refeiccedilotildees

Como o DOI-CODIRJ de 1970 natildeo era um presiacutedio havia acabado de ser

montado dentro de um preacutedio do quartel do 1ordm BPE para abrigar temporariamente os

presos poliacuteticos que pudessem contribuir com suas investigaccedilotildees laacute natildeo existiam

refeitoacuterios visitas banho de sol ou mesmo uniformes Aleacutem da falta de uma estrutura

que propiciasse uma rotina normal de presiacutedio esse diferencial era importante para o

procedimento investigativo do DOI-CODIRJ Afinal havia ali a necessidade do preso

ficar incomunicaacutevel jaacute que quanto maior seu isolamento maior seria sua fragilidade e

esta se relacionava diretamente com sua capacidade em conceder informaccedilotildees No mais

esse isolamento tambeacutem estava relacionado com a preocupaccedilatildeo em proteger a

instituiccedilatildeo de acusaccedilotildees de maus tratos uma vez que caso os ferimentos dos presos

fossem notados poderiam ser vinculados a torturas e consequentemente denunciados

Dessa forma os prisioneiros do DOI-CODIRJ natildeo podiam nem mesmo tomar sol pois

poderiam ser vistos por pessoas dos preacutedios vizinhos e funcionaacuterios da faacutebrica da

Brahma localizada atraacutes do paacutetio do 1ordm BPE

As refeiccedilotildees eram portanto servidas nas proacuteprias celas pelos soldados da turma

auxiliar de plantatildeo Para colocarem cada uma das quatro refeiccedilotildees a que cada preso

tinha direito esses abriam a cela de manhatilde cedo no iniacutecio e no fim da tarde e agrave noite

Segundo a narrativa dos presos no cafeacute da manhatilde costumavam trazer um patildeo com

195

pasta de amendoim e um cafeacute com leite na caneca para cada preso No almoccedilo uma

bandeja de alumiacutenio com um prato que normalmente continha repolho arroz angu e

algumas vezes um pedaccedilo de carne Durante a tarde deixavam um bule de mate com

um pedaccedilo de patildeo na cela e no fim do dia repetiam para o jantar a mesma comida do

almoccedilo

As comidas servidas em 1970 aos prisioneiros do DOI-CODIRJ satildeo mais alguns

exemplos de detalhes do cotidiano que soacute podem ser abordados por meio da memoacuteria de

quem viveu aquele passado Diante disso eacute interessante perceber aspectos que

justificam o fato dessas refeiccedilotildees terem marcado as memoacuterias dos prisioneiros a ponto

de nelas sobreviverem por cerca de trecircs deacutecadas

[] a gente ateacute brincava que eles deviam ter uma plantaccedilatildeo de repolho ali

porque era repolho todo dia repolho cru repolho assado mas na hora do

almoccedilo normalmente vinha nessa bandeja de alumiacutenio e era repolho um

pouco de arroz feijatildeo e agraves vezes um pedaccedilo de carne era uma comida bem

horrorosa [] (Pandolfi 5 fev 2003)

[] A comida era peacutessima era aquela comida do rancho parecia uma

lavagem de porco uma coisa horrorosa [] Eu fiquei com a pele toda

lsquofodidarsquo porque a uacutenica coisa que eu conseguia comer era o angu []

(Coimbra 30 nov 2004)

Portanto o conteuacutedo das refeiccedilotildees do DOI-CODIRJ aleacutem de ter ficado marcado

na memoacuteria dos prisioneiros pelo aspecto sensorial ou seja pelo gosto e apresentaccedilatildeo

ruins permaneceu tambeacutem pela relaccedilatildeo com a vaidade feminina e pelo fato de remeter a

momentos que foram compartilhados O angu marcou Ceciacutelia por ter feito mal a sua

pele jaacute que como eacute uma comida gordurosa lhe causou espinhas abalando ainda mais a

sua aparecircncia fiacutesica jaacute degrada por aquele cotidiano prisional O repolho por sua vez

deixou marcas na memoacuteria de Dulce por ser motivo de deboche entre as presas pois sua

196

presenccedila recorrente nos pratos ocasionava uma espeacutecie de piada entre elas e trazia um

pouco de descontraccedilatildeo

Outro aspecto do cotidiano do DOI-CODIRJ de 1970 tambeacutem alcanccedilado por

meio dos detalhes trazidos pelas memoacuterias de ex-prisioneiros satildeo as roupas Como natildeo

existiam uniformes institucionais na maior parte do tempo as roupas eram as mesmas

que eles vestiam no dia em que entraram no 1ordm BPE Dessa forma quando jaacute estavam

em celas coletivas os presos muitas vezes lavavam-nas e entatildeo voltavam a vestiacute-las

Depois de algum tempo afinal as famiacutelias acabavam descobrindo onde eles estavam

presos e algumas roupas eram deixadas no Palaacutecio Duque de Caxias antigo preacutedio do

Ministeacuterio do Exeacutercito no Centro da cidade do Rio de Janeiro para serem enviadas e

entregues no 1ordm BPE aos prisioneiros

No entanto ateacute isso chegar a acontecer demorava pois fazia parte da seguranccedila

institucional tentar manter num primeiro momento sigilo sobre seus presos Assim

Ceciacutelia presa em agosto de 1970 lembra que por ter sentido muito frio durante o seu

primeiro mecircs no DOI-CODIRJ ela e suas companheiras de cela costumavam

improvisar formas de protegerem os peacutes

[] a minha matildee ia ateacute o Ministeacuterio do Exeacutercito e ela dizia ldquo- Minha filha

estaacute laacute na PErdquo Aiacute quase um mecircs depois a minha matildee conseguiu mandar

roupa para mim Ateacute entatildeo minha filha era um loucura neacute A gente fedia

sabe A gente tomava banho de chuveiro e botava a mesma roupa a gente

lavava a roupa e era mecircs de agosto e ainda estava frio Era um frio que a

gente sentia que a gente enrolava jornal nos peacutes porque natildeo tinha nenhuma

coisa nada Era no colchatildeo puro que a gente dormia (Coimbra 30 nov

2004)

Quando as famiacutelias conseguiam descobrir onde estavam enviavam aleacutem de

roupas alguns mantimentos como frutas por exemplo Essas vinham muitas vezes

197

embrulhadas em jornais velhos que serviam para alguns como proteccedilatildeo para o corpo e

para outros como distraccedilatildeo conforme pode-se constatar na narrativa de Antocircnio ao

lembrar que ele e seus companheiros de cela passavam o tempo lendo as notiacutecias velhas

contidas em tais jornais

Eu me lembro tambeacutem que quando alguns presos recebiam frutas essas

coisas embrulhadas em papel jornal jornal velho a gente lia o jornal e

ficaacutevamos um bom tempo lendo aqueles jornais com datas de um mecircs trecircs

meses atraacutes mas era sempre bom para a cabeccedila da gente ficar lendo as

notiacutecias mesmo velhas [] (Carvalho 8 fev 2003)

Como jaacute aqui ressaltado a cumplicidade que existia entre os presos do DOI-

CODIRJ ajudava a construir mecanismos que os protegiam das mais diversas

dificuldades Segundo Dulce para amenizar a escassez de roupa a que eram submetidas

num primeiro momento dentro do DOI-CODIRJ as presas do ldquocoletivo das mulheresrdquo

estabeleceram uma espeacutecie de acordo Atraveacutes dele ficou determinado que quem de laacute

saiacutesse deixaria algumas peccedilas para quem ainda ficasse tinha uma espeacutecie de rotina

entre as mulheres que quem saiacutea deixava alguma roupa laacute (Pandolfi 5 fev 2003)

Assim atraveacutes desse tipo de cumplicidade elas ajudavam a diminuir o sofrimento

diaacuterio umas das outras uma vez que as peccedilas deixadas na cela possibilitavam que as

presas conseguissem manter a higiene e amenizar a sensaccedilatildeo do frio

Percebe-se portanto que de fato o dia-a-dia do DOI-CODIRJ de 1970 era

atiacutepico pois este natildeo era um presiacutedio e sim um oacutergatildeo de repressatildeo poliacutetica Assim uma

das poucas semelhanccedilas com a rotina de um presiacutedio comum era basicamente a privaccedilatildeo

da liberdade Poreacutem apesar de ofuscado pela tortura e pelo pavor ali existia um

cotidiano que abarcava outros aspectos muito interessantes Afinal estes satildeo capazes de

198

muito esclarecer sobre o funcionamento praacutetico desse importante oacutergatildeo de repressatildeo da

ditadura militar brasileira e tambeacutem sobre diversos tipos de reaccedilotildees e relaccedilotildees humanas

do passado e do presente

199

Conclusatildeo

Quando o muro separa uma ponte une

Se a vinganccedila encara o remorso pune

Vocecirc vem me agarra algueacutem vem me solta

Vocecirc vai na marra ela um dia volta

E se a forccedila eacute tua ela um dia eacute nossa

Olha o muro olha a ponte

Olha o dia de ontem chegando

Que medo vocecirc tem de noacutes

Olha aiacute

Vocecirc corta um verso eu escrevo outro

Vocecirc me prende vivo eu escapo morto

De repente olha eu de novo

Perturbando a paz exigindo o troco

Vamos por aiacute eu e meu cachorro

Olha um verso olha o outro

Olha o velho olha o moccedilo chegando

Que medo vocecirc tem de noacutes

Olha aiacute

O muro caiu olha a ponte

Da liberdade guardiatilde

O braccedilo do Cristo horizonte

Abraccedila o dia de amanhatilde

Olha aiacute

Mauriacutecio Tapajoacutes amp Paulo Ceacutesar Pinheiro

(Pesadelo 1972)

200

Diante do exposto ao longo desta dissertaccedilatildeo conclui-se que a formulaccedilatildeo da

Doutrina de Seguranccedila Nacional feita pela ESG em colaboraccedilatildeo com o IPES e o IBAD

cerca de vinte anos antes do surgimento dos DOI-CODI tinha por base uma teoria de

guerra que nortearia a atuaccedilatildeo repressora desses oacutergatildeos Essa teoria interpretava os

movimentos de oposiccedilatildeo que vinham crescendo desde o iniacutecio dos anos 1960 como uma

espeacutecie de guerra revolucionaacuteria Todos os cidadatildeos brasileiros passavam entatildeo a ser

encarados como suspeitos e foi esta percepccedilatildeo que estimulou o governo militar a

planejar a Seguranccedila Nacional e por conseguinte criar um centralizado e articulado

aparato de informaccedilotildees internas junto a um eficiente oacutergatildeo repressivo de controle

armado os DOI-CODI

Aleacutem disso constatou-se que a consolidaccedilatildeo dos DOI-CODI por todas as Regiotildees

Militares do paiacutes substanciou-se tambeacutem atraveacutes da alta legalidade autoritaacuteria e das

medidas tomadas pelo governo para conter as cizacircnias militares Afinal o governo

ditatorial brasileiro na medida em que arbitrou leis a fim de legalizar o seu poder

poliacutetico e suprimir direitos antes garantidos agrave populaccedilatildeo construiu uma sustentaccedilatildeo

juriacutedica necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um aparato de seguranccedila cada vez mais forte e

centralizado Grande parte dessas leis autoritaacuterias foi usada como artifiacutecio para acalmar

os acircnimos na caserna responsaacuteveis por importantes conflitos internos que ameaccedilavam a

uniatildeo militar as chamadas cizacircnias militares As leis arbitraacuterias serviam entatildeo tanto

para conter a oposiccedilatildeo poliacutetica quanto para ceder agraves reivindicaccedilotildees por poder vindas da

caserna Completava-se dessa forma um cenaacuterio legal capaz de suportar um organismo

de repressatildeo onde os militares de meacutedias e baixas patentes trabalhariam com autonomia

uma das bases para a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

Diante disso viu-se tambeacutem que natildeo foi agrave toa que a estrutura e o funcionamento

do SISSEGIN e dos seus oacutergatildeos foram instituiacutedos e regulamentados por meio de

201

decretos sigilosos o que incluiu a experiecircncia da Oban criada em Satildeo Paulo em

meados de 1969 e no ano seguinte a institucionalizaccedilatildeo dos DOI-CODI por todo o

paiacutes Afinal a justificativa para esse sigilo estava justamente na maior mobilidade e

autonomia de accedilatildeo que traria para a atuaccedilatildeo repressora desses organismos pois em

segredo podiam agir sem grandes limitaccedilotildees natildeo esbarrando em questotildees externas agraves

decisotildees militares tal como o respeito aos direitos humanos

Os DOI-CODI destacavam-se principalmente pela independecircncia financeira e pela

centralizaccedilatildeo hieraacuterquica que os constituiacuteam essenciais para a alta eficiecircncia de suas

investigaccedilotildees e accedilotildees Tais atributos evitavam que suas operaccedilotildees fossem suscetiacuteveis agrave

duplicidade de tarefas a competiccedilotildees e a conflitos de interesses maximizando os seus

resultados Eram entatildeo organismos de excelecircncia a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo

Entretanto essa sofisticaccedilatildeo tambeacutem vinha do distanciamento mantido entre os

militares do governo e os que agiam nesses oacutergatildeos jaacute que a ditadura ao mesmo tempo

em que sancionava a tortura nessa instituiccedilatildeo estrategicamente negava a sua existecircncia

perante a sociedade isentando governo do paiacutes de qualquer ligaccedilatildeo com ela Em

complemento a essa ideia o sistema funcional dos DOI responsaacuteveis por accedilotildees que

englobavam as prisotildees e os interrogatoacuterios dos presos poliacuteticos apresentava-se

complexo e informal Dessa forma as brechas para que a aparente falta de controle

fosse exercida eram amplas a fim de que meacutetodos violentos ilegais tivessem ali uma

legitimidade excepcional Justifica-se assim como a versatildeo oficial dos militares ainda

possa ser a de que a tortura jamais resultou de qualquer ordem ou orientaccedilatildeo superior

Evidenciou-se poreacutem a incoerecircncia desta versatildeo jaacute que ficou claro que em todos

os organismos militares nos DOI inclusive existiam uma forte hierarquia a ser

cumprida Mesmo com a estrutura complexa ali existente qualquer accedilatildeo deveria ser

remetida a um superior logo a questatildeo da responsabilidade sempre poderia ser

202

resgatada Percebeu-se que em geral apesar de velada a tortura era do conhecimento

de toda a hierarquia militar inclusive dos generais agrave frente do governo

Durante todo o trabalho a intervenccedilatildeo do presente (2002-2004) sobre as

memoacuterias do passado (1970) foi conferida nas narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos

entrevistados Percebeu-se que o contexto poliacutetico e social vivido no presente e o

momento da vida pessoal de cada um tiveram uma contribuiccedilatildeo importante na forma

como os ex-presos construiacuteram suas memoacuterias Aleacutem disso a forma como a rede de

entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que as entrevistas foram realizadas

tambeacutem concorreram para essa intervenccedilatildeo no relato que fizeram sobre o passado

Enfim um dos principais elementos para a anaacutelise criacutetica exercida aqui sobre essas

memoacuterias foi sem duacutevida o reconhecimento dessa influecircncia do presente sobre o

passado

A trajetoacuteria prisional dos entrevistados os grupos oposicionistas que integravam

as accedilotildees de que participaram o momento da prisatildeo o tempo que permaneceram presos

e as funccedilotildees que exerciam no presente foram aspectos aqui ressaltados por mostrarem

um pouco da histoacuteria de vida e por meio desta a personalidade ou seja as

idiossincrasias de cada um deles Dessa forma foi possiacutevel aproximar-se do aspecto

individual de suas memoacuterias uacutenico a cada ser entendendo um pouco mais as bases de

suas construccedilotildees

Tornou-se assim viaacutevel analisar essas memoacuterias e colocaacute-las em diaacutelogo com o

conteuacutedo levantado a partir da anaacutelise historiograacutefica e da monografia sobre o DOI

escrita pelo coronel Pereira em 1978 possibilitando uma caracterizaccedilatildeo do cotidiano

prisional vivido pelos presos do DOI-CODIRJ em 1970 O trabalho organizacional dos

DOI-CODIRJ foi visto portanto de forma praacutetica As funccedilotildees de cada setor e seccedilatildeo

teorizadas principalmente por meio da monografia do coronel foram analisadas a partir

203

do acircngulo dos prisioneiros o que viabilizou a percepccedilatildeo de detalhes que constituiacuteam a

rotina daquela instituiccedilatildeo

Ficou claro que a violecircncia era a principal forma de extraccedilatildeo de informaccedilotildees e o

elemento-chave para a eficiecircncia conferida pela instituiccedilatildeo com relaccedilatildeo ao combate aos

opositores poliacuteticos da eacutepoca A tortura e o medo dela ocupavam um espaccedilo

significativo no cotidiano ali impetrado aos prisioneiros uma vez que eles estavam no

DOI-CODIRJ para serem a ela submetidos de forma a fornecerem mais facilmente

informaccedilotildees que levassem os agentes dos DOI a outros suspeitos Poreacutem verificou-se

que a tortura natildeo era a uacutenica face do cotidiano do DOI-CODIRJ

Afinal este trabalho mostrou outros aspectos que constituiacuteam a rotina dos presos

dentro desse oacutergatildeo que ateacute entatildeo natildeo havia sido alcanccedilada pela historiografia Percebeu-

se aqui outros elementos que apesar de pouco destacados pelas memoacuterias dos

entrevistados muito tecircm a dizer sobre aquele cotidiano as fases prisionais as refeiccedilotildees

as roupas as formas de resistecircncia o conviacutevio ente prisioneiros e ateacute mesmo algumas

accedilotildees solidaacuterias efetuadas por soldados em benefiacutecio dos presos poliacuteticos

Constatou-se como a memoacuteria pode enriquecer a percepccedilatildeo que se tem sobre um

passado revelando faces natildeo evidenciadas em documentos oficiais e tambeacutem como eacute

importante para levar ateacute o presente um passado doloroso mas que deve ser encarado a

fim de ser perdoado e ultrapassado Uma movimentaccedilatildeo nesse sentido vem acontecendo

no Brasil com as Caravanas da Anistia e principalmente com a recente aprovaccedilatildeo da

Comissatildeo da Verdade conforme pontuado anteriormente

A atualidade dessas iniciativas inclusive estimulou esta pesquisa impulsionada

pela curiosidade sobre as memoacuterias do passado vivido nos ldquoporotildees da ditadurardquo Logo

o tema da presente dissertaccedilatildeo foi pautado pela crenccedila na necessidade de uma ampla

revelaccedilatildeo sobre o que ocorreu na eacutepoca de forma a contribuir para que a reconciliaccedilatildeo

204

do presente com o passado seja um dia alcanccedilada uma vez que defende-se aqui tal

como Paul Ricoeur (2008 507) que eacute no caminho da criacutetica histoacuterica que a memoacuteria

encontra o seu sentido de justiccedila Dessa forma tem-se o cidadatildeo como destinataacuterio do

texto histoacuterico cabendo a ele tornar a discussatildeo puacuteblica fazendo um balanccedilo entre

histoacuteria e memoacuteria a fim de que se perceba o sofrimento do outro e daqueles que

continuam a sofrer pelas matildeos do mesmo mal repressor do passado A partir disso a

reconciliaccedilatildeo entre o passado e presente se tornaraacute efetiva contribuindo para que no

futuro a democracia esteja plenamente consolidada

205

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Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em 28 nov 2010]

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BRASIL Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil promulgada em 15 de marccedilo

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Regulamenta a Lei Nordm3744 de 21 de dezembro de 2011 que dispotildee sobre a reparaccedilatildeo

agraves pessoas torturadas entre 1ordm de abril de 1964 e 15 de agosto de 1979 por atividades

poliacuteticas nas condiccedilotildees que menciona e daacute outras providecircncias Rio de Janeiro

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BRASIL Decreto-lei Nordm898 de 29 de setembro de 1969 Define os crimes contra a

seguranccedila nacional a ordem poliacutetica e social estabelece seu processo e julgamento e daacute

outras providecircncias Brasiacutelia Ministeacuterio da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica

[acesso em 12 jan 2012] Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03decreto-

lei1965-1988Del0898htm

BRASIL Decreto-lei Nordm1002 de 21 de outubro de 1969 Coacutedigo de Processo Penal

Militar Brasiacutelia Ministeacuterio da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em 18

dez 2011]

Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03decreto-leiDel1002htm

BRASIL Lei Nordm6683 de 28 de agosto de 1979 Concede anistia e daacute outras

providecircncias Brasiacutelia Ministeacuterio da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em

05 fev 2012] Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL6683htm

214

BRASIL Lei Nordm9140 de 04 de novembro de 1995 Reconhece como mortas pessoas

desaparecidas em razatildeo de participaccedilatildeo ou acusaccedilatildeo de participaccedilatildeo em atividades

poliacuteticas no periacuteodo de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 e daacute outras

providecircncias Brasiacutelia Ministeacuterio da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em

13 nov 2011] Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9140htm

BRASIL Lei Nordm10559 de 13 de novembro de 2002 Regulamenta o art 8 ordm do Ato das

Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias e daacute outras providecircncias Brasiacutelia Ministeacuterio

da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em 13 nov 2011]

Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leis2002L10559htm

BRASIL Lei Nordm12528 de 18 de novembro de 2011 Cria a Comissatildeo Nacional da

Verdade no acircmbito da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica Brasiacutelia Ministeacuterio da

Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em 27 jan 2012] Disponiacutevel em

httpwwwplanaltogovbrccivil_03_Ato2011-20142011LeiL12528htm

DECLARACcedilAtildeO Universal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948

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GRUPO Tortura Nunca Mais Rio de Janeiro GTNM 2008 [acesso em 07 ago 2009]

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HOSPITAL Central do Exeacutercito Rio de Janeiro Seccedilatildeo de Informaacutetica do Hospital

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MEMORIAL da Resistecircncia de Satildeo Paulo Satildeo Paulo Secretaria da Cultura do Governo

do Estado de Satildeo Paulo sd [acesso em 27 jan 2012]

Disponiacutevel em httpwwwmemorialdaresistenciasporgbr

215

Anexo I - Glossaacuterio de Siglas

ACO ndash Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria

ADI ndash Aacutereas de Defesa Interna

ALN ndash Accedilatildeo Libertadora Nacional

APERJ ndash Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio de Janeiro

1degBPE ndash 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito

Condi ndash Conselho de Defesa Interna

CENIMAR ndash Centro de Informaccedilotildees da Marinha

CEP ndash Centro de Estudos de Pessoal

CGI ndash Comissatildeo Geral de Investigaccedilotildees

CIA ndash Central Intelligence Agency

CIE ndash Centro de Informaccedilotildees do Exeacutercito

CISA ndash Centro de Informaccedilotildees de Seguranccedila da Aeronaacuteutica

CNBB ndash Conferecircncia Nacional dos Bispos do Brasil

CONDI ndash Conselhos de Defesa Interna

CPDOC ndash Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil

CSN ndash Conselho de Seguranccedila Nacional

DCE ndash Diretoacuterio Central dos Estudantes

DEOPS ndash Departamento de Ordem e Poliacutetica Social de Satildeo Paulo

DGPC ndash Departamento Geral de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro

DI-GB ndash Dissidecircncia Comunista da Guanabara

DOI-CODI ndash Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees ndash Centro de Operaccedilotildees de

Defesa Interna

216

DOPS ndash Departamento de Ordem Poliacutetica e Social

DSN ndash Doutrina de Seguranccedila Nacional

ECEME ndash Escola de Comando e Estado Maior do Exeacutercito

ESG ndash Escola Superior de Guerra

EMFA ndash Estado Maior das Forccedilas Armadas

EsNI ndash Escola Nacional de Informaccedilotildees

Fafich ndash Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas de Belo Horizonte

FUEC ndash Frente Unida dos Estudantes do Calabouccedilo

FGV ndash Fundaccedilatildeo Getuacutelio Vargas

GTNMRJ ndash Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro

HCE ndash Hospital Central do Exeacutercito

IBRADES ndash Instituto Brasileiro de Estudos Sociais

IFCS ndash Instituto de Filosofia e Ciecircncias Sociais

IHTP ndash Instituto de Histoacuteria do Tempo Presente

IPCM ndash Instituto Penal Cacircndido Mendes

IPM ndash Inqueacuterito Policial Militar

JOC ndash Juventude Operaacuteria Catoacutelica

LOC ndash Liga Operaacuteria Catoacutelica

MDB ndash Movimento Democraacutetico Brasileiro

MR-8 ndash Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro

MTC ndash Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos

N-SISA ndash Nuacutecleo do Serviccedilo de Informaccedilotildees de Seguranccedila da Aeronaacuteutica

Oban ndash Operaccedilatildeo Bandeirantes

OLAS ndash Organizaccedilatildeo Latino-Americana de Solidariedade

217

PCB ndash Partido Comunista Brasileiro

PC do B ndash Partido Comunista do Brasil

PCBR ndash Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio

PT ndash Partido dos Trabalhadores

SADI - Sub-Aacutereas de Defesa Interna

SFICI ndash Serviccedilo Federal de Informaccedilotildees e Contra-Informaccedilotildees

SIM ndash Serviccedilo de Informaccedilotildees da Marinha

SNI ndash Serviccedilo Nacional de Informaccedilotildees

SISNI ndash Sistema Nacional de Informaccedilotildees

SISSEGIN ndash Sistema de Seguranccedila Interna

UFF ndash Universidade Federal Fluminense

UFRJ ndash Universidade Federal do Rio de Janeiro

UNE - Uniatildeo Nacional dos Estudantes

UNIRIO ndash Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

ZDI ndash Zona de Defesa Interna

218

Anexo II - A Hierarquia do Exeacutercito Brasileiro53

Ciacuterculos

Hieraacuterquicos54

Hierarquizaccedilatildeo Patentes do Exeacutercito

Ciacuterculo de oficiais

Ciacuterculo de oficiais-generais

Marechal

General de Exeacutercito

General de divisatildeo

General de brigada

Ciacuterculo de oficiais

superiores Coronel

Tenente-coronel

Major

Ciacuterculo de oficiais intermediaacuterios Capitatildeo

Ciacuterculo de oficiais

subalternos Primeiro- tenente

Segundo- tenente

Ciacuterculo de praccedilas

Ciacuterculo de suboficiais subtenentes e

sargentos

Subtenente

Primeiro-sargento

Segundo-sargento

Terceiro-sargento

Ciacuterculo de cabos e soldados

Cabo e taifeiro-mor

Soldado e taifeiro-de

primeira classe

Soldado-recruta e taifeiro-

de-segunda-classe

Ciacuterculo de praccedilas

especiais

Frequentam o ciacuterculo de oficiais

subalternos Aspirante-a-oficial

Excepcionalmente ou em reuniotildees sociais

tecircm acesso ao ciacuterculo de oficiais

Cadete (aluno da Academia

Militar)

Aluno da Escola

Preparatoacuteria de Cadetes do

Exeacutercito

Aluno de Oacutergatildeo de

Formaccedilatildeo da Reserva

Excepcionalmente ou em reuniotildees sociais

tecircm acesso ao ciacuterculo de suboficiais

subtenentes e sargentos

Aluno da Escola ou Centro

de Formaccedilatildeo de Sargentos

Frequentam o ciacuterculo de cabos e soldados Aluno de Oacutergatildeo de

Formaccedilatildeo de Praccedilas da

Reserva

53

LEIRNER 1997 74-75 54

Os ldquoCiacuterculos hieraacuterquicosrdquo satildeo o acircmbito de convivecircncia entre os militares da mesma categoria Esses

ldquociacuterculosrdquo satildeo incorporados a fundo na conduta militar de forma que a divisatildeo acima exposta eacute seguida

no ambiente de trabalho salas refeitoacuterios e banheiros da instituiccedilatildeo conforme demonstra Piero de

Camargo Leirner em estudo antropoloacutegico sobre a instituiccedilatildeo militar Meia Volta Volver (1997 74-76)

Page 2: O DOI-CODI carioca

2

FUNDACcedilAtildeO GETULIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTACcedilAtildeO DE

HISTOacuteRIA CONTEMPORAcircNEA DO BRASIL ndash CPDOC

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM HISTOacuteRIA POLIacuteTICA E BENS

CULTURAIS

MESTRADO ACADEcircMICO EM HISTOacuteRIA POLIacuteTICA E BENS CULTURAIS

ORIENTADOR(A) ACADEcircMICO(A) PROFordf DRordf MARLY SILVA DA MOTTA

RAFAELLA LUacuteCIA DE AZEVEDO FERREIRA BETTAMIO

O DOI-CODI carioca

Memoacuteria e cotidiano no Castelo do Terror

Dissertaccedilatildeo de Mestrado Acadecircmico em Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais apresentada

ao Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil ndash CPDOC

como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do grau de Mestre em Histoacuteria

Rio de Janeiro Marccedilo de 2012

3

Ficha catalograacutefica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique SimonsenFGV

Bettamio Rafaella Luacutecia de Azevedo Ferreira O DOI-CODI carioca memoacuteria e cotidiano no Castelo do Terror

Rafaella Luacutecia de Azevedo Ferreira Bettamio ndash 2012

218 f Dissertaccedilatildeo (mestrado) ndash Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de

Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais

Orientador Marly Silva da Motta Inclui bibliografia

1 Prisioneiros poliacuteticos 2 Brasil - Histoacuteria - 1964-1985 I Motta Marly Silva da II Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de

Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais III Tiacutetulo

CDD ndash 981063

4

5

Agradecimentos

Agradeccedilo primeiramente agrave minha orientadora Profordf Drordf Marly Silva da Motta

por sua orientaccedilatildeo zelosa pelo apoio e pelos inuacutemeros ensinamentos Com sua ajuda

consegui ultrapassar muitas dificuldades e penetrar com seguranccedila no universo dessa

pesquisa

Ao Professor Ameacuterico Freire de quem tive o prazer de ser aluna durante o

mestrado agradeccedilo pelas aulas pela bibliografia sobre o periacuteodo militar que muito me

ajudou na elaboraccedilatildeo dessa anaacutelise pelas criacuteticas construtivas elaboradas durante o

exame de qualificaccedilatildeo e pela participaccedilatildeo na banca examinadora dessa dissertaccedilatildeo

Ao Professor Luiacutes Reznik agradeccedilo por ter integrado a banca do exame de

qualificaccedilatildeo fazer parte da presente banca examinadora e tambeacutem pelas valiosas

sugestotildees indicaccedilotildees bibliograacuteficas e comentaacuterios incorporados ao estudo e agrave redaccedilatildeo

final desse trabalho

Agrave Professora Dulce Pandolfi agradeccedilo por sua generosidade em aceitar ser de

certa forma sujeito e objeto desta pesquisa desde seu nascimento durante a minha

graduaccedilatildeo em Histoacuteria pela UNIRIO quando permitiu que eu lhe entrevistasse e que

seu depoimento servisse de fonte para minha monografia de fim de curso cuja banca

examinadora contou com sua participaccedilatildeo Tambeacutem lhe agradeccedilo por durante o

mestrado continuar acompanhando de perto esta pesquisa participando da banca do

exame de qualificaccedilatildeo quando trouxe muitas consideraccedilotildees e sugestotildees produtivas a

este trabalho e da banca examinadora final desta dissertaccedilatildeo

Agrave Professora Icleacuteia Thiesen agradeccedilo pela credibilidade e incentivo que vem

injetando na minha face de pesquisadora desde o tempo em que fui sua aluna ainda

durante a graduaccedilatildeo

Aos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados Antocircnio Leite de Carvalho Dulce

Pandolfi Fernando Palha Freire Padre Maacuterio Prigol Ana Batista e Ceciacutelia Coimbra

agradeccedilo por me confiarem suas narrativas e me deixarem penetrar em parte de suas

memoacuterias

6

Agrave Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional onde muito me orgulho de trabalhar agradeccedilo

por incentivar a minha qualificaccedilatildeo enquanto pesquisadora permitindo que eu cursasse

o mestrado e me licenciasse nos uacuteltimos meses para me dedicar a esta dissertaccedilatildeo de

corpo e alma

Ao Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNMRJ) agradeccedilo por me

autorizar a consultar o arquivo da instituiccedilatildeo e por me receber afetuosamente durante

diversas reuniotildees onde pude conhecer alguns de seus integrantes tais como Ana Batista

e Ceciacutelia Coimbra a quem tive o prazer de entrevistar

Aos amigos Joatildeo Cerineu e Alejandra Estevez agradeccedilo a contribuiccedilatildeo

fundamental que efetuaram sobre este trabalho sendo os responsaacuteveis por me apresentar

aos ex-prisioneiros poliacuteticos Antocircnio e Padre Maacuterio

Agradeccedilo aos meus irmatildeos Rodrigo Renata e Melissa ao Rodrigo por despertar

em mim a vontade e a coragem de seguir a profissatildeo de historiadora agrave Renata por me

apoiar e ouvir sobre minha pesquisa atentamente mesmo quando eu repetia as mesmas

histoacuterias diversas vezes e principalmente agrave Melissa que muito me ajudou na

composiccedilatildeo do ldquoabstractrdquo desse trabalho com o seu inglecircs simplesmente perfeito

Aos amigos queridos que a Biblioteca Nacional me deu de presente

companheiros de jornada que me fazem melhorar a cada dia como profissional e que me

acompanharam durante todo o processo do mestrado me apoiando no que foi preciso e

me ajudando a superar os obstaacuteculos do dia-a-dia Agradeccedilo especialmente agrave Lia Jordatildeo

pelo companheirismo diaacuterio ao Francisco Madureira pelo auxiacutelio na ediccedilatildeo final dessa

dissertaccedilatildeo e agrave Regina Santiago pela amizade e disposiccedilatildeo sem igual em ler

minuciosamente este trabalho apontando sugestotildees que indiscutivelmente tornaram o

texto mais claro

Agraves amigas Manuela Joana e Letiacutecia agradeccedilo por estarem sempre comigo nas

alegrias e nas tristezas compartilhando conquistas e derrotas desde os tempos em que

juntas frequentaacutevamos as festas juninas da PE

7

Aos amigos do curso de Histoacuteria da UNIRIO agradeccedilo pelas trocas intelectuais

pelos incontaacuteveis momentos divertidos pela camaradagem e por essa amizade de dez

anos de histoacuteria

Aos meus pais sou e serei eternamente grata pelo carinho pelo apoio e por sempre

estarem ao meu lado durante todos esses anos

Aos meus sogros Eliana Lasmar e Luiz Fernando Arieira agradeccedilo por estarem

sempre por perto dispostos a estenderem a matildeo quando preciso

E por fim meus agradecimentos especiais a Raul Cordeiro meu companheiro de

todas as horas o engenheiro mais humano que eu jaacute conheci Agradeccedilo-lhe por tudo que

temos vivido juntos por nosso cantinho por nossas conversas por nosso conviacutevio de

todo dia por nosso amor pelo tanto e tatildeo pouco que enfeita cada momento da minha

vida me completa e me faz uma pessoa mais feliz

8

Tambeacutem neste lugar pode-se sobreviver e por isso eacute preciso

querer sobreviver para contar para testemunhar e que para

viver eacute importante esforccedilarmo-nos para salvar pelo menos o

esqueleto os pilares a forma da nossa civilizaccedilatildeo [hellip]

(Levi 2001 40)

9

Resumo

O objetivo dessa dissertaccedilatildeo eacute analisar a memoacuteria de seis ex-prisioneiros poliacuteticos

do Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees-Centro de Operaccedilotildees de Defesa Interna

do Rio de Janeiro (DOI-CODIRJ) entrevistados recentemente entre os anos de 2002 e

2004 sobre o cotidiano vivido nessa instituiccedilatildeo em 1970 Naquele ano dentro do

Sistema de Seguranccedila Interna (SISSEGIN) os DOI-CODI haviam sido criados e

distribuiacutedos por todas as Regiotildees Militares do paiacutes tornando-se a principal instituiccedilatildeo

de repressatildeo aos opositores poliacuteticos que optaram pela luta armada como forma de

derrotar a ditadura militar brasileira Assim as narrativas desses seis ex-prisioneiros

satildeo aleacutem de fontes essenciais o principal objeto de estudo deste trabalho Atraveacutes

delas torna-se possiacutevel acessar aspectos cruciais para a caracterizaccedilatildeo do cotidiano

vivido pelos presos em um desses oacutergatildeos ― o DOI-CODI do Rio de Janeiro ― uma

vez que esse passado se liga ao presente por meio de suas memoacuterias Diante disso a fim

de melhor entender tais memoacuterias a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI tambeacutem satildeo

aqui analisadas colocando as narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados em

diaacutelogo com uma bibliografia especialmente selecionada aleacutem de uma fonte a respeito

do DOI feita por um de seus agentes quando este oacutergatildeo ainda estava em atividade em

1978 Para que a essas memoacuterias seja aplicada uma criacutetica efetiva necessaacuteria a todo

trabalho histoacuterico o estudo se debruccedila ainda sobre as interferecircncias que o presente

exerce na construccedilatildeo que fazem com relaccedilatildeo ao passado vivido no DOI-CODIRJ com

o objetivo de esclarecer as bases sobre as quais satildeo construiacutedas cerca de trinta anos

depois

Palavras-chave Ex-prisioneiros poliacuteticos ndash Memoacuteria ndash DOI-CODI ndash Cotidiano ndash

Ditadura militar

10

Abstract

The objective of this thesis is to analyze the memory of six former political

prisoners of the Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees-Centro de Operaccedilotildees de

Defesa Interna do Rio de Janeiro or DOI-CODIRJ (Detachment of Information

Operations Center-Internal Defense Operations Center of Rio de Janeiro) recently

interviewed between 2002 and 2004 about their everyday living in that institution in

1970 At that year in the Sistema de Seguranccedila Interna or SISSEGIN (Internal Security

System) the DOI-CODI had been created and distributed by all the countryrsquos military

regions becoming the repression leading instituion of political opponents who oppted

for armed struggle as a way to defeat Brazilrsquos military dictatorship Thus these six

former prisioners narratives are not only essencial sources but the main study object of

this paper Through them it becomes possible to access crucial aspects for the

characterization of the daily lived by prisioners in one of these agencies - the DOI-

CODI in Rio de Janeiro - since this past connects to present through their memories

Therefore in order to understand such memories the training and the performance of

the DOI-CODI are also analyzed here placing the narratives of the interviewed former

political prisioners in dialogue with a specially selected bibliography and a source

about DOI made by one of its agents when that agency was still active in 1978 In

order to be applied to these memories an effective critique necessary to all historical

work the study still focuses on the interferences that the present exerts on the

construction that make in relation to the past lived in DOI-CODIRJ in order to clarify

the basis on which are built at about thirty years later

Key-Words Former political prisioners ndash Memory ndash DOICODI ndash daily Life ndash Military

dictatorship

11

Sumaacuterio

Agradecimentos 05

Resumo 09

Abstract 10

Introduccedilatildeo 13

Capiacutetulo 1 Os DOI-CODI formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo 28

1 Debate Histoacuterico 35

11 O papel da ESG para o Sistema de Seguranccedila Nacional 35

12 Os conceitos legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar 39

13 A montagem e o funcionamento do SISSEGIN 47

2 O DOI-CODI por ele mesmo 57

3 O DOI-CODI pelos prisioneiros 75

Capiacutetulo 2 Os presos poliacuteticos e suas organizaccedilotildees 85

1 A rede de entrevistas 91

11 Os sujeitos e suas trajetoacuterias 97

12 A nova esquerda brasileira 122

Capiacutetulo 3 O espaccedilo e o cotidiano do DOI-CODI carioca 136

1 O que sofre e o que resiste 137

2 Uma cartografia possiacutevel do ldquoCastelo do Terrorrdquo 142

12

3 Memoacuterias de um cotidiano 154

31 O interrogatoacuterio e a tortura 156

32 O dia-a-dia no caacutercere 184

Conclusatildeo 199

Fontes 205

1 ArquivoDocumentos Pessoais 205

2 Documentos Institucionais 205

3 Fonte Cinematograacutefica 205

4 Fontes Orais 205

5 Fontes Visuais 206

6 Perioacutedicos 206

Bibliografia 207

1 Bibliografia digital 213

Anexo I Glossaacuterio de Siglas 215

Anexo II A Hierarquia do Exeacutercito Brasileiro 218

13

Introduccedilatildeo

Tem dias que a gente se sente

Como quem partiu ou morreu

A gente estancou de repente

Ou foi o mundo entatildeo que cresceu

A gente quer ter voz ativa

No nosso destino mandar

Mas eis que chega a roda viva

E carrega o destino praacute laacute

Roda mundo roda gigante

Roda moinho roda piatildeo

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coraccedilatildeo

A gente vai contra a corrente

Ateacute natildeo poder resistir

Na volta do barco eacute que sente

O quanto deixou de cumprir

Faz tempo que a gente cultiva

A mais linda roseira que haacute

Mas eis que chega a roda viva

E carrega a roseira praacute laacute

Chico Buarque

(Roda Viva 1968)

14

Vivi bons momentos no 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito Era adolescente e os

momentos aos quais me refiro foram vividos durante o final de uma deacutecada

democraacutetica a de 1990 Mal sabia sobre a ditadura militar e muito menos que aquele

Batalhatildeo situado tatildeo proacuteximo agrave minha casa na Tijuca havia sediado um centro de

tortura O nome DOI-CODI nunca tinha ouvido falar Para mim e para todos os

adolescentes da Tijuca o 1ordm BPE era um Batalhatildeo convencional do Exeacutercito que tinha

um grande paacutetio utilizado todos os anos para a melhor festa junina da regiatildeo a ldquofesta

junina da PErdquo Logo para noacutes a principal caracteriacutestica da PE era o fato de durante os

meses de junho abrir as portas do seu paacutetio para tornaacute-lo ldquoponto de encontrordquo de muitos

jovens estudantes Quanta ironia

Jaacute no terceiro periacuteodo da faculdade de Histoacuteria da UNIRIO no primeiro semestre

de 2002 descobri o que aquele preacutedio havia sido durante a ditadura militar Soube

inclusive que ele era tombado pelo antigo Departamento Geral de Patrimocircnio Cultural

(DGPC) da Prefeitura justamente por representar a memoacuteria de muitos ex-prisioneiros

poliacuteticos que ali haviam sido torturados e mortos Fiquei perplexa Como nunca

ningueacutem havia me dito isso Como os professores de Histoacuteria da minha escola

localizada no mesmo bairro natildeo haviam destacado esse fato Por que essa parte da

Histoacuteria natildeo era amplamente divulgada Eu que sempre gostei de Histoacuteria natildeo agrave toa

escolhi fazer dela minha formaccedilatildeo e profissatildeo me senti instigada a revelar as memoacuterias

dos presos poliacuteticos que por laacute passaram A partir dessa descoberta mais do que uma

ldquonovardquo face do 1ordm BPE eu havia me deparado com outra revelaccedilatildeo o meu tema de

pesquisa

A partir de um amigo do curso de Histoacuteria no final de 2002 cheguei ao meu

primeiro entrevistado e daiacute em diante teci uma rede de entrevistas No final de 2004

havia reunido seis entrevistados trecircs homens e trecircs mulheres todos ex-prisioneiros

15

poliacuteticos que passaram pelo DOI-CODIRJ durante o mesmo ano de 1970 Essa

pesquisa resultou em minha monografia apresentada em 2005 como requisito para a

conclusatildeo do curso de Histoacuteria da UNIRIO O Castelo do terror memoacuteria e tortura no

espaccedilo prisional (1970-1974) 1

Natildeo abandonei o tema Ao contraacuterio resolvi aprofundaacute-lo no mestrado em

Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais do CPDOCFGV onde ingressei em marccedilo de 2010

Nessa dissertaccedilatildeo que representa a fase conclusiva do mestrado trabalho com os

depoimentos dos mesmos seis ex-prisioneiros do DOI-CODIRJ de 1970 colhidos entre

os anos de 2002 e 2004 Aqui o objetivo mais amplo eacute se inserir no conjunto de estudos

que reflete sobre a construccedilatildeo de uma determinada memoacuteria a respeito da ditadura

militar

Analisar a memoacuteria de ex-prisioneiros poliacuteticos a fim de entender como essas

foram construiacutedas jaacute em tempos democraacuteticos e o que trazem em benefiacutecio da

caracterizaccedilatildeo daquele passado eacute o objetivo principal desta dissertaccedilatildeo Assim sendo

alguns aspectos especiacuteficos merecem ser destacados

O primeiro deles eacute que as entrevistas foram concedidas entre os anos 2002 e 2004

ou seja o passado ditatorial foi recuperado jaacute em tempos democraacuteticos Ao mesmo

tempo considerou-se que esses depoimentos satildeo fontes essenciais para atingir o

objetivo aqui traccedilado jaacute que a metodologia de histoacuteria oral eacute a mais adequada para

analisar os aspectos subjetivos e repletos de detalhes que correspondem ao rigoroso dia-

a-dia de quem esteve preso em um organismo repressor Logo eacute faacutecil concluir que as

fontes que permitiram a elaboraccedilatildeo deste estudo natildeo poderiam ser encontradas em

documentaccedilatildeo oficial

1 O Castelo do terror memoacuteria e cotidiano de ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI carioca (1970-

1979) monografia de fim de curso de bacharelado e licenciatura plena em Histoacuteria da UNIRIO orientada

pela Profordf Drordf Icleacuteia Thiesen e apresentada em abril de 2005

16

Instituiacutedos por todo o territoacuterio brasileiro a partir de 1970 os DOI-CODI

tornaram-se referecircncia-chave na memoacuteria sobre a tortura e a repressatildeo praticada pela

ditadura militar A partir disso nota-se que o trabalho desenvolvido com as memoacuterias

de ex-prisioneiros de uma de suas sedes a do Rio de Janeiro eacute uma das escassas

possibilidades existentes de se acessar esse passado ainda tatildeo presente

Esse objeto de estudo representa um grande desafio Afinal estaacute inserido entre

duas temporalidades recentes ndash quando a experiecircncia prisional foi efetivamente vivida

em 1970 e quando ela foi narrada pelos entatildeo ex-prisioneiros poliacuteticos entre 2002 e

2004 Por isso mesmo lanccedilou-se matildeo do aparato teoacuterico do que se convencionou

chamar de histoacuteria do tempo presente A partir dos anos 1980 durante o processo de

renovaccedilatildeo da histoacuteria poliacutetica a valorizaccedilatildeo de uma histoacuteria das representaccedilotildees e a

compreensatildeo dos usos poliacuteticos do passado pelo presente acarretou uma reavaliaccedilatildeo das

relaccedilotildees estabelecidas entre histoacuteria e memoacuteria que permitiu agrave historiografia fazer novas

reflexotildees sobre as relaccedilotildees entre passado e presente 2 Diante dessa percepccedilatildeo nasceu

na Franccedila o Instituto de Histoacuteria do Tempo Presente (IHTP) fundado por Franccedilois

Beacutedarida consolidando a histoacuteria do tempo presente como portadora da especificidade

de conviver com testemunhos vivos colocando sob seu foco principal os depoimentos

orais 3

A histoacuteria oral eacute portanto a metodologia principal desta dissertaccedilatildeo e por

conseguinte os depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos dela decorrentes satildeo aqui

tratados com todo o rigor necessaacuterio agrave pesquisa histoacuterica Afinal apesar de ser

demasiadamente criticada por ser uma metodologia apoiada na memoacuteria o que a

tornaria capaz de produzir representaccedilotildees e natildeo reconstituiccedilotildees do real entende-se que

2 Para mais informaccedilotildees sobre o surgimento da histoacuteria do tempo presente na historiografia ver Remoacutend

1996 e Ferreira dez 2002 314-332 3 Para mais informaccedilotildees sobre os fundamentos da histoacuteria do tempo presente ver Beacutedarida 2006 219-

229

17

as narrativas orais devem ser submetidas ao crivo da criacutetica histoacuterica tal como deve

ocorrer com todas as outras fontes Os documentos orais ou escritos tecircm uma razatildeo de

ser pois foram feitos por algueacutem com determinada visatildeo estimulado por algum motivo

eou intenccedilatildeo e por isso nunca seratildeo capazes de representar a realidade pura e absoluta

dos fatos Portanto qualquer fonte caso natildeo seja bem contextualizada e analisada

possibilita que a pesquisa caia em armadilhas e reconstrua um passado que nunca

existiu conforme bem elucidado por Michael Pollak

[] se a memoacuteria eacute socialmente construiacuteda eacute oacutebvio que toda documentaccedilatildeo

tambeacutem o eacute Para mim natildeo haacute diferenccedila fundamental entre fonte escrita e

oral A criacutetica da fonte tal como todo historiador aprende a fazer deve a

meu ver ser aplicada a fontes de tudo quanto eacute tipo (Pollak 1992 207-208)

A histoacuteria oral eacute de grande valia agrave histoacuteria do tempo presente contribuindo para

que o estudo da histoacuteria recente ndash por natureza mais inacabada do que qualquer outra

histoacuteria (Beacutedarida 2006 229) ndash seja incentivado desafiando as dificuldades

relacionadas ao acesso a fontes documentais de periacuteodos pouco distantes Aleacutem disso a

histoacuteria oral traz outro diferencial aqui destacado atraveacutes da fala torna-se possiacutevel

evidenciar uma carga subjetiva tornando acessiacutevel um tipo de informaccedilatildeo capaz de

enriquecer a anaacutelise histoacuterica e que natildeo seria obtido por meio de fontes escritas oficiais

Assim mesmo que uma experiecircncia relatada natildeo seja em si mesma um fato de certa

forma pode vir a secirc-lo jaacute que traz agrave tona o verdadeiro sentimento de algueacutem perante

uma situaccedilatildeo e esse sentimento eacute um fato que soacute pode ser alcanccedilado mediante agraves

memoacuterias trazidas pelos relatos (Portelli 1996 59-72)

Os usos que os ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ fazem de seu passado

prisional eacute um dos principais aspectos aqui ressaltados Para tanto o conceito de

presente do passado de Robert Frank (1999) eacute utilizado ao longo deste trabalho como

18

ferramenta para destacar as influecircncias que o presente de suas narrativas exerce sobre a

maneira pela qual eacute revivido o passado vivenciado no DOI-CODIRJ

Desde que haviam passado pelo DOI-CODI carioca em 1970 em plena ditadura

militar a chamada ldquolei de anistiardquo jaacute havia sido instituiacuteda no paiacutes em 1979 que entre

outras providecircncias anistiava todos quantos no periacuteodo compreendido entre 02 de

setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 cometeram crimes poliacuteticos ou conexos com

estes (lei nordm 66831979) a ditadura militar havia terminado com a eleiccedilatildeo indireta de

um presidente civil em 1985 a Assembleia Nacional Constituinte havia sido instalada

em 1987 e a Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil a chamada ldquoconstituiccedilatildeo

cidadatilderdquo havia sido promulgada no ano seguinte e finalmente o primeiro presidente

civil eleito pelo voto direto apoacutes a ditadura militar havia tomado posse em 1990

completando a transiccedilatildeo poliacutetica do paiacutes ou seja tornando a ditadura uma memoacuteria do

passado e a democracia o momento presente Democracia esta que na eacutepoca em que os

depoimentos foram concedidos apresentava ainda mais sinais de seu fortalecimento e

consolidaccedilatildeo jaacute que o Brasil havia elegido para presidente o socioacutelogo e professor da

USP Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e o ex-operaacuterio e liacuteder sindical Luiacutes

Inaacutecio Lula da Silva (2003-2010) ambos perseguidos poliacuteticos durante o periacuteodo

ditatorial

Com relaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo dos que sofreram danos decorrentes da poliacutetica repressiva

promovida pela ditadura militar desde 1995 estava em curso o reconhecimento pelo

Estado brasileiro dos mortos e desaparecidos poliacuteticos durante a ditadura e a

indenizaccedilatildeo as suas famiacutelias (lei nordm 914095) Aleacutem disso a reparaccedilatildeo financeira aos

males sofridos por aqueles que ficaram presos ou foram perseguidos na eacutepoca tambeacutem

estava em voga desde 2002 (lei nordm 1055902) A demanda desta lei principalmente no

caso daqueles que passavam pelo processo de solicitaccedilatildeo eacute um elemento a ser levado

19

em conta na maneira pela qual os entrevistados construiacuteram suas narrativas Afinal o

procedimento necessaacuterio agrave concessatildeo da reparaccedilatildeo incluiacutea a construccedilatildeo de um memorial

sobre as mazelas a que os requerentes haviam sido submetidos pelo Estado durante a

ditadura militar

Dessa forma as narrativas significavam tambeacutem para os ex-prisioneiros poliacuteticos

um meio de conseguirem apoio da sociedade em favor da ampliaccedilatildeo desse

reconhecimento iniciado pelo Estado brasileiro Atraveacutes de suas narrativas poderiam

contribuir para que suas memoacuterias fossem encampadas pela histoacuteria Logo pode-se

dizer que no sentido atribuiacutedo por Michael Pollak (1992) esses depoimentos foram

concedidos sob o horizonte de contribuir com o trabalho de enquadramento da

memoacuteria nacional sobre a ditadura militar brasileira jaacute que esta ateacute hoje natildeo estaacute

consolidada

Finalmente verifica-se que ainda ocorre uma disputa pela memoacuteria da ditadura

militar onde de um lado estatildeo os que sofreram o peso da matildeo forte da ditadura e de

outro os militares que argumentam que os ldquoanos de chumbordquo devem ser relegados ao

passado Como exemplo a declaraccedilatildeo dada em outubro de 2004 ao jornal O Globo por

um representante do Exeacutercito em resposta agrave publicaccedilatildeo de supostas fotos pelas quais o

jornalista Vladimir Herzog4 aparece sendo humilhado na prisatildeo

As medidas tomadas pelas forccedilas legais foram uma legiacutetima resposta agrave

violecircncia dos que recusaram o diaacutelogo optaram pelo radicalismo e pela

ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e de desencadear accedilotildees

criminosas [] sentiu-se a necessidade da criaccedilatildeo de uma estrutura com

vistas a apoiar em operaccedilatildeo e inteligecircncia as atividades necessaacuterias para

desestruturar os movimentos radicais e ilegais [] Mesmo sem qualquer

mudanccedila de posicionamento e de convicccedilotildees em relaccedilatildeo ao que aconteceu

4 Vladimir Herzog era integrante do PCB e diretor da TV Cultura quando foi preso em outubro de 1975

no DOI-CODISP onde dias depois foi morto sob torturas Para mais informaccedilotildees sobre o caso Vladimir

Herzog e seus sucessivos encadeamentos ver Moraes 2006

20

naquele periacuteodo histoacuterico considera-se accedilatildeo pequena reavivar revanchismos

ou estimular discussotildees esteacutereis sobre conjunturas passadas que a nada

conduzem (Camarotti 19 out 2004 12)

Essa disputa travada entre a lembranccedila e o esquecimento pode ser notada atraveacutes

da batalha em torno do preacutedio que serviu de sede ao DOI-CODIRJ o 1ordm BPE Essa foi

iniciada nos primeiros anos da deacutecada de 1990 por meio de uma tentativa do Exeacutercito

de vender o edifiacutecio Sabendo da situaccedilatildeo um conjunto de moradores dos arredores

buscou impedir a venda solicitando o tombamento de todo o espaccedilo ocupado pelo

quartel agrave Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro alegando a sua importacircncia para a

memoacuteria poliacutetica do paiacutes Essa atitude eacute evidenciada em um manifesto contendo 236

assinaturas em defesa da preservaccedilatildeo do preacutedio que serviu como documento de

abertura para o processo de tombamento do edifiacutecio na Subsecretaria de Patrimocircnio

Cultural da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro

O Exeacutercito brasileiro alegando falta de recursos para seu programa de

construccedilatildeo de quarteacuteis em outros estados pretende vender o imoacutevel onde

estaacute o 1ordm BPE Trata-se de um imoacutevel altamente valorizado pela ampla infra-

estrutura urbana [] Acontece que o valor que o Exeacutercito quer faturar foi

criado a partir de obras e investimentos custeados com os impostos e taxas

que pagamos todos noacutes haacute mais de um seacuteculo O Exeacutercito natildeo contribuiu

em nada para isso e agora quer se apropriar desse valor para investir sabe-se

laacute aonde [] consideramos que o preacutedio do Batalhatildeo da PE estaacute

indissoluvelmente cravado na histoacuteria nas tradiccedilotildees na esteacutetica e na

paisagem local [] Sabemos que o Batalhatildeo da PE foi sede do DOI-CODI

na eacutepoca da ditadura militar e que ali estiveram presos e foram torturados

muitos companheiros nossos tendo inclusive alguns sido dados como

ldquodesaparecidosrdquo Tambeacutem por esta razatildeo o preacutedio estaacute ligado agrave memoacuteria

poliacutetica desse paiacutes [] Queremos na aacuterea um centro cultural com teatro e

museu agrave memoacuteria da luta pela liberdade com parque e jardins Esses satildeo os

21

anseios da comunidade e natildeo outrosrdquo (Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural

da Prefeitura do Rio de Janeiro 1992) 5

Aleacutem desse documento outras solicitaccedilotildees de preservaccedilatildeo do preacutedio foram

enviadas agrave Cacircmara Municipal por Associaccedilotildees de Moradores da Tijuca e bairros

vizinhos Enfim em 29 de marccedilo de 1993 no primeiro mandato do entatildeo prefeito Ceacutesar

Maia o processo de tombamento do 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito foi finalizado

No entanto a ideia de tiraacute-lo do Exeacutercito a fim de tornar o espaccedilo um centro cultural

que contivesse um museu da memoacuteria da luta pela liberdade natildeo se concretizou pois

apoacutes o tombamento o Exeacutercito natildeo deixou o local onde permanece ateacute os dias atuais

sinalizando que natildeo tem interesse em que o edifiacutecio se torne efetivamente um lugar de

memoacuteria tal como o conceito criado por Pierre Nora (1993)

No preacutedio do 1ordm BPE se encontram os trecircs sentidos atribuiacutedos por Nora como

caracteriacutesticos a um lugar de memoacuteria o material o simboacutelico e o funcional (Nora

1993 21) O sentido material no caso eacute o proacuteprio espaccedilo fiacutesico que ainda se conserva

no mesmo local sem grandes intervenccedilotildees o simboacutelico eacute o que o espaccedilo representa para

uma parte da sociedade carioca como marco memorial de um passado que natildeo se deve

esquecer e o funcional eacute a memoacuteria da ditadura militar ali preservada por meio do

tombamento do edifiacutecio Logo querendo ou natildeo o preacutedio do 1ordm BPE eacute um lugar de

memoacuteria jaacute que naquele espaccedilo fiacutesico ou seja material se encontram uma funccedilatildeo e

uma representaccedilatildeo simboacutelicas ligadas agrave memoacuteria da ditadura militar

A disputa em torno dessa memoacuteria parece aos poucos caminhar cada vez mais

para o lado dos ex-presos e perseguidos poliacuteticos Recentemente aleacutem das leis

5 Este documento que deu iniacutecio ao referido processo no ano de 1992 hoje se encontra arquivado na

Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro antigo Departamento Geral de

Patrimocircnio Cultural (DGPC) junto ao restante da documentaccedilatildeo que compocircs o processo Nordm

1200433692 e originou a lei municipal nordm 1954 de 290393

22

reparadoras citadas acima um grande obstaacuteculo foi ultrapassado para que os crimes

ocorridos durante a ditadura militar sejam apurados e desvendados Em outubro de

2011 a Comissatildeo da Verdade foi enfim aprovada pelo Congresso Nacional e em

novembro do mesmo ano a lei que a institui sancionada pela Presidente Dilma

Rousseff Nesse contexto esta dissertaccedilatildeo ao estudar as memoacuterias de seis ex-

prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ relaciona-se com essa atualidade cumprindo

um papel social relevante

O ofiacutecio do historiador que pressupotildee trilhar caminhos e fazer escolhas

significando por exemplo atribuir significado agraves palavras agraves fontes e agrave bibliografia

escolhidas norteou a seleccedilatildeo e os criteacuterios aqui estipulados Conforme apontado por

Reinhart Koselleck (2006 167) eacute impossiacutevel que o ponto de vista do historiador deixe

de influenciar na representaccedilatildeo que faz dos fatos Assim cabe deixar claro que este

trabalho foi movido pelo interesse que as memoacuterias dos ex-prisioneiros poliacuteticos do

DOI-CODIRJ despertaram em mim Vale dizer que essa dissertaccedilatildeo eacute avessa ao

postulado cientiacutefico da total imparcialidade no sentido de neutralidade apartidarismo

ou abstenccedilatildeo seguindo orientaccedilatildeo de Manoel Salgado Guimaratildees (2008)

Ao historiador de ofiacutecio seria exigido cada vez mais uma escrita submetida

aos ditames dos afetos sejam eles derivados de engajamentos poliacuteticos

especiacuteficos de crenccedilas particulares ou mesmo derivados de um convite agrave

individualidade do historiador Este seria instado a mostrar-se atraveacutes de seu

texto postura bastante diversa daquela que o obrigava a esconder-se por traacutes

da pesquisa cientiacutefica (Guimaratildees 2008 17)

O primeiro capiacutetulo tem por objetivo analisar a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-

CODI que a partir de 1970 passaram a integrar o Sistema de Seguranccedila Interna

(SISSEGIN) se espalharam por todas as Regiotildees Militares do Brasil e se tornaram a

principal instituiccedilatildeo de repressatildeo aos opositores poliacuteticos da ditadura militar Afinal a

23

partir do entendimento sobre a criaccedilatildeo e o funcionamento dessa instituiccedilatildeo se pretende

criar as condiccedilotildees necessaacuterias para analisar as memoacuterias dos seis ex-prisioneiros

poliacuteticos sobre uma de suas sedes o DOI-CODIRJ uma vez que a passagem por esse

espaccedilo prisional eacute aqui entendida como um elo fundamental entre essas memoacuterias

Assim optou-se por estruturar este capiacutetulo por meio de trecircs frentes 1) o debate

historiograacutefico 2) a monografia O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI)

do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e

perspectiva escrita em 1978 pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira

3) os depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de

Janeiro concedidos entre os anos de 2002 e 2004

A primeira frente de estudo se concentra em analisar a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos

DOI-CODI agrave luz da historiografia Nela apresentam-se autores e conceitos selecionados

a fim de elucidar algumas questotildees levantadas Qual o papel da Escola Superior de

Guerra (ESG) para a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional e dos DOI-CODI

Como a praxe ditatorial em respaldar atitudes arbitraacuterias por meio de leis

compulsoriamente promulgadas ou seja atraveacutes da legalidade autoritaacuteria conforme

nomenclatura utilizada por Anthony Pereira (2010) gerou as bases para a criaccedilatildeo do

SISSEGIN e dos DOI-CODI Como os conflitos internos gerados no seio da instituiccedilatildeo

militar que ocasionaram dissidecircncias as cizacircnias militares tal como conceituado por

Joatildeo Roberto Martins Filho (1993) influenciaram os rumos da ditadura e a construccedilatildeo

de seu aparato de seguranccedila interna De que maneira a montagem e o funcionamento do

SISSEGIN e dos DOI-CODI foram organizados e constituiacutedos

Jaacute a segunda e a terceira frentes de estudo deste capiacutetulo servem para analisar as

visotildees de atores que de uma forma ou de outra viveram os DOI-CODI Na segunda a

anaacutelise sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI debruccedila-se sobre a visatildeo de um de

24

seus agentes atraveacutes da fonte O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do

Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo escrita pelo coronel de

cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira apontado por ex-prisioneiros poliacuteticos com um dos

torturadores do DOI do Rio de Janeiro Trata-se de uma monografia que o referido

coronel apresentou agrave Escola de Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) em

1978 quando os DOI-CODI apesar de atuantes jaacute sofriam certa diminuiccedilatildeo de suas

atividades O trabalho em cima desse documento se direciona no sentido de analisar

dados representativos do poder coercitivo dos DOI-CODI do iniacutecio dos anos 1970 e de

descrever os afazeres de cada uma de suas seccedilotildees a fim de contribuir para o

entendimento sobre o funcionamento interno deste oacutergatildeo Por fim na terceira frente a

anaacutelise eacute efetuada por meio das memoacuterias dos seis ex-prisioneiros entrevistados entre os

anos de 2002 e 2004 objeto central dessa dissertaccedilatildeo Dessa forma procura-se aqui

responder como eles percebiam a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo do DOI-CODIRJ e ao

entrelaccedilar aspectos de suas memoacuterias com a historiografia e a visatildeo do coronel Pereira

se aproximar do que vinha a ser o aparato de seguranccedila interna de 1970 cujos DOI-

CODI eram parte essencial

O segundo capiacutetulo eacute construiacutedo com a proposta de analisar de que forma e sob

quais influecircncias foram construiacutedas e narradas as memoacuterias dos seis ex-prisioneiros

poliacuteticos entrevistados entre os anos de 2002 e 2004 Parte-se aqui do pressuposto de

que cada uma de suas memoacuterias foi formada e influenciada por idiossincrasias relativas

a vivecircncias pessoais personalidades e outros aspectos individuais que merecem ser

analisados de forma a viabilizar o entendimento loacutegico da construccedilatildeo dessas memoacuterias

Dessa forma busca-se relativizar uma memoacuteria coletiva que aparentemente eacute comum a

todos os ex-prisioneiros poliacuteticos que passaram por algum DOI-CODI O aspecto

coletivo dessas memoacuterias no entanto natildeo eacute abandonado As memoacuterias individuais aqui

25

trabalhadas natildeo estatildeo isoladas e constantemente tomam por referecircncia pontos externos

ao sujeito se apoiando em percepccedilotildees recebidas de determinada memoacuteria coletiva de

um grupo e tambeacutem pela memoacuteria histoacuterica de seu paiacutes (Halbwachs 2004 57-59)

Diante disso a capacidade de intervenccedilatildeo que o presente exerce sobre as

memoacuterias do passado (Frank 1999) toma um aspecto central nesse momento da anaacutelise

o que torna importante considerar aqui natildeo soacute o contexto histoacuterico que rodeava os

entrevistados no momento de suas narrativas (2002-2004) como tambeacutem a forma como

a rede de entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que essas foram realizadas

Assim este segundo capiacutetulo trata primeiramente dessas condiccedilotildees que viabilizaram e

de certa forma influiacuteram nas entrevistas para em seguida analisar as trajetoacuterias de vida

de cada um dos entrevistados e por fim baseando-se em algumas referecircncias sobre o

tema traccedilar um panorama sobre as organizaccedilotildees de esquerda das quais faziam parte ou

com que se relacionavam no momento de suas prisotildees

Finalmente o terceiro capiacutetulo visa analisar efetivamente a memoacuteria como

material para a histoacuteria Assim conforme elucidado por Fernando Catroga (2010) ao

buscar entender a escrita da histoacuteria como um rito de memoacuteria no sentido de lutar

contra o esquecimento e contra a corrosatildeo do tempo tal como ocorre em um ldquogesto de

sepulturardquo a histoacuteria eacute aqui escrita de forma a contribuir para que seja possiacutevel

caracterizar um passado que natildeo mais existe o do cotidiano do DOI-CODIRJ de 1970

Antes dessa caracterizaccedilatildeo a partir dos detalhes trazidos nos depoimentos sobre o

espaccedilo interno do preacutedio do 1ordm BPE conjugados agrave observaccedilatildeo minuciosa de sua fachada

que ateacute hoje ainda permanece preservada faz-se possiacutevel uma cartografia espacial do

local que sediou o DOI-CODIRJ Afinal esse entendimento da disposiccedilatildeo espacial do

referido edifiacutecio estaacute totalmente interligado com o cotidiano ali vivido por seus

prisioneiros logo eacute aqui entendido como essencial para a presente anaacutelise Feita esta

26

cartografia parte-se entatildeo para a caracterizaccedilatildeo do cotidiano vivido no DOI-CODIRJ

de 1970 Para tanto aleacutem da anaacutelise dos seis depoimentos a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos

DOI-CODI a constituiccedilatildeo da rede de entrevistas a trajetoacuteria dos entrevistados e suas

organizaccedilotildees de esquerda estudadas nos capiacutetulos anteriores satildeo incorporadas ao

estudo A partir disso vaacuterios aspectos do cotidiano prisional satildeo abordados tais como

o interrogatoacuterio e a tortura os primeiros momentos na prisatildeo as formas de resistecircncia

os encontros e as relaccedilotildees entre os presos nas celas as formas de lidar com o tempo as

roupas e as refeiccedilotildees

No decorrer dos trecircs capiacutetulos dessa dissertaccedilatildeo faz-se constante referecircncia a

siglas relativas ao tema em abordagem e agrave hierarquia das patentes do Exeacutercito Diante

disso ao final de todo o texto apresentado na parte dos anexos encontra-se o Glossaacuterio

de siglas (Anexo I) e a tabela A hierarquia do Exeacutercito Brasileiro (Anexo II)

A partir dessa configuraccedilatildeo geral pretende-se responder agraves questotildees acima

pontuadas a fim de corroborar algumas hipoacuteteses aqui levantadas

1) A formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo do aparato de seguranccedila interna que abrangia o DOI-

CODIRJ tiveram por base as teses sobre seguranccedila nacional montadas pela

ESG anos antes da ditadura militar a promulgaccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo

arbitraacuteria condescendente a abusos de poder gerada a partir dos primeiros anos

do governo militar bem como a tentativa de solucionar impasses ocasionados

por disputas que vinham ocorrendo no seio do Exeacutercito e por conseguinte

ameaccedilavam sua unidade institucional

2) O peso do presente (200204) teve um papel decisivo na maneira pela qual os

entrevistados construiacuteram a narrativa sobre o periacuteodo (1970) em que estiveram

presos no DOI-CODIRJ

3) As organizaccedilotildees de esquerda e as accedilotildees em que os ex-presos poliacuteticos

27

estiveram envolvidos antes de suas prisotildees influenciaram diretamente no grau

de violecircncia do cotidiano a que foram submetidos no DOI-CODIRJ

28

Capiacutetulo 1 ndash Os DOI-CODI formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo

Se no teu distrito

Tem farta sessatildeo

De afogamento chicote

Garrote e punccedilatildeo

A lei tem caprichos

O que hoje eacute banal

Um dia vai dar no jornal

Se manchas as praccedilas

Com teus esquadrotildees

Sangrando ativistas

Cambistas turistas peotildees

A lei abre os olhos

A lei tem pudor

E espeta o seu proacuteprio inspetor

Chico Buarque

(Hino da repressatildeo 1985)

29

A partir de 1970 os DOI-CODI (Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildeesndash

Centro de Operaccedilotildees de Defesa Interna) parte integrante do Sistema de Seguranccedila

Interna (SISSEGIN) passariam a ser a principal instituiccedilatildeo na repressatildeo aos opositores

da ditadura militar brasileira Seis desses opositores aprisionados no DOI-CODI do Rio

de Janeiro em meio ao primeiro ano de sua existecircncia tecircm na passagem por esse espaccedilo

prisional um elo fundamental entre suas memoacuterias Como essas memoacuterias satildeo o objeto

de estudo da presente dissertaccedilatildeo para melhor entendecirc-las primeiramente torna-se de

extrema importacircncia lanccedilar um olhar mais apurado sobre como foram construiacutedos e de

que forma atuavam os DOI-CODI Logo a anaacutelise sobre a criaccedilatildeo e o funcionamento

dessa instituiccedilatildeo eacute o objetivo desse primeiro capiacutetulo

Esta anaacutelise se estrutura a partir de trecircs frentes distintas 1) o debate

historiograacutefico 2) a monografia O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI)

do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e

perspectiva escrita em 1978 pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira

3) os depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de

Janeiro concedidos entre os anos de 2002 e 2004

Como dito a primeira frente de estudo analisa a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-

CODI agrave luz da historiografia Autores e conceitos foram selecionados tendo em vista

questotildees significativas para analisar a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI 1) o papel

da ESG para a criaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional 2) os conceitos de legalidade

autoritaacuteria e cizacircnia militar 3) a montagem e o funcionamento do SISSEGIN

Para abordar o papel da ESG na construccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional

parte-se da tese de Maria Helena Moreira Alves (2005) em que a autora defende a ideia

de que a institucionalizaccedilatildeo do Estado de Seguranccedila Nacional no Brasil se fez a partir

do papel determinante da Doutrina de Seguranccedila Nacional (DSN) construiacuteda pela

30

Escola Superior de Guerra (ESG) nos anos 1950 Entende-se que este destacado papel

da ideologia esguiana para a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional da ditadura

militar brasileira teve ligaccedilatildeo direta com a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI Afinal

com a DSN surge o conceito de seguranccedila interna que serve como base para a

montagem do aparelho repressivo ditatorial no qual os DOI-CODI duas deacutecadas

depois seriam inseridos

Os conceitos de legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar satildeo aqui utilizados como

ferramentas elucidativas por auxiliarem na anaacutelise de como durante os primeiros anos

de ditadura militar a imperativa forma de legislar o paiacutes e as crises que por disputas

poliacuteticas ameaccedilaram a unidade institucional militar foram essenciais para a formaccedilatildeo e

atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

Nesse sentido a legalidade autoritaacuteria assim designada por Anthony Pereira

(2010) eacute aqui utilizada para destacar de que forma a preocupaccedilatildeo da ditadura militar

brasileira em respaldar legalmente seus atos ainda que arbitrariamente propiciou um

respaldo legal agrave repressatildeo poliacutetica e por conseguinte aos DOI-CODI Logo este

conceito serve para iluminar o entendimento de que a formaccedilatildeo de um aparato de

seguranccedila interna forte centralizado e violento como os DOI-CODI foi possibilitado

respaldado e sustentado no Brasil por um significativo amparo legal A ditadura militar

atraveacutes dessa preocupaccedilatildeo legal atiacutepica a um regime de cunho totalitaacuterio reiterava sua

imagem de regime democraacutetico de exceccedilatildeo perante a sociedade e ao mesmo tempo

possibilitava a criaccedilatildeo de um dos maiores organismos repressores que uma ditadura da

Ameacuterica Latina jaacute havia criado os DOI-CODI

Outro conceito necessaacuterio para entender a construccedilatildeo do cenaacuterio legal que

propiciaria a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI eacute o de cizacircnia militar elaborado por

Martins Filho em sua tese de doutorado A dinacircmica militar das crises poliacuteticas na

31

ditadura (1964-1969) de 1993 em que o autor destaca os conflitos internos no seio

militar que acabariam resultando em dissidecircncias Ao analisar esses conflitos como fator

decisivo para a compreensatildeo dos rumos da ditadura Martins Filho apresenta uma

abordagem diferente da maioria dos estudiosos sobre o tema Ao inveacutes de partir de uma

suposta dicotomia entre dois grupos estanques divididos rigidamente entre a linha dura

e os castelistas apresenta uma visatildeo mais fluida de grupos militares que oscilavam na

forma de agir o palaacutecio representando os militares de altas patentes ocupantes de

cargos poliacuteticos e a caserna militares de patentes meacutedias que trabalhavam nas

instituiccedilotildees militares Esta abordagem eacute crucial para o presente trabalho uma vez que a

base da formaccedilatildeo e da atuaccedilatildeo dos DOI-CODI estava diretamente relacionada agraves

cizacircnias militares e seus decorrentes acontecimentos poliacuteticos Afinal apesar dos DOI-

CODI serem uma instituiccedilatildeo composta por militares das mais diversas posiccedilotildees

hieraacuterquicas a sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo foram estruturadas a partir principalmente de

reivindicaccedilotildees da caserna que com a implantaccedilatildeo dos DOI-CODI passou a ter poderes

poliacuteticos extraordinaacuterios jaacute que se tornava responsaacutevel pelas accedilotildees de prisotildees

apreensotildees e interrogatoacuterios dos perseguidos poliacuteticos

Finalmente para analisar a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Interna o

SISSEGIN composto entre outros pelos DOI-CODI partimos da anaacutelise feita por

Carlos Fico em sua obra Como eles agiam de 2001 Ao ter acesso a documentos

sigilosos sobre a formaccedilatildeo do SISSEGIN e a regulamentaccedilatildeo operacional dos DOI-

CODI Fico caracteriza de forma ineacutedita na historiografia a formaccedilatildeo e o

funcionamento de ambos os oacutergatildeos sendo portanto um referencial historiograacutefico

indispensaacutevel agrave minha pesquisa

Ainda no que toca agrave formaccedilatildeo do SISSEGIN e dos DOI-CODI tambeacutem eacute de

grande valia a tese exposta por Maria Celina DrsquoArauacutejo em Os anos de Chumbo a

32

memoacuteria militar sobre a repressatildeo (1994) de que assim como em qualquer instituiccedilatildeo

militar era alto o grau de hierarquia e coordenaccedilatildeo presente nos DOI-CODI o que natildeo

impedia no entanto que houvesse brechas para uma perda de controle institucional

Logo uma das peculiaridades da atuaccedilatildeo dos DOI-CODI entendido pela a autora como

uma espeacutecie de sofisticaccedilatildeo da repressatildeo era a convivecircncia da obediecircncia hieraacuterquica

militar com a falta de controle sobre algumas accedilotildees deixando que procedimentos natildeo

regulamentares tais como a tortura pudessem ser efetivados com recorrecircncia

A segunda e a terceira frentes de estudo do presente capiacutetulo analisam as visotildees de

atores que de uma forma ou de outra viveram em algum dos DOI-CODI Portanto

diferentes do debate historiograacutefico que tem particular distanciamento analiacutetico do

objeto e preza por se aproximar da imparcialidade e tambeacutem diferentes entre si essas

fontes satildeo influenciadas por seus atoresnarradores e pelas eacutepocas em que foram

construiacutedas

Na segunda frente pode-se dizer que a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI satildeo

analisadas a partir dos proacuteprios DOI-CODI jaacute que nessa etapa debruccedila-se sobre o

estudo O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do Exeacutercito Brasileiro

Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo de um de seus agentes diretos o coronel de

cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira Conhecido entre os presos poliacuteticos do DOI do Rio

de Janeiro do iniacutecio dos anos 1970 como o torturador de codinome ldquoNagibrdquo coronel

Pereira apresentou a referida monografia agrave Escola de Comando e Estado Maior do

Exeacutercito (ECEME) em 1978 quando os DOI-CODI apesar de atuantes jaacute estavam em

decadecircncia Tratava-se de uma eacutepoca em que o presidente Ernesto Geisel comandava a

abertura poliacutetica ldquolenta gradual e segurardquo do paiacutes e vinha diminuindo o poder delegado

aos DOI-CODI que passavam a ter o seu pessoal reduzido e suas accedilotildees apenas voltadas

agrave espionagem e natildeo mais ao combate direto de opositores poliacuteticos jaacute que devido agraves

33

inuacutemeras denuacutencias sobre violaccedilotildees aos Direitos Humanos no Brasil era forte o

desgaste que a ditadura sofria perante a comunidade internacional Em meio a esse

cenaacuterio o coronel em questatildeo construiu tal monografia motivado a por um lado provar

a importacircncia e a necessidade do trabalho de repressatildeo feito nos DOI-CODI e assim

tentar reverter a reduccedilatildeo de suas atividades e por outro conseguir uma promoccedilatildeo na

carreira militar visto que a ECEME eacute uma escola destinada agrave preparaccedilatildeo de oficiais

superiores para o exerciacutecio de funccedilotildees de Estado-Maior A partir disso essa monografia

apresenta dados representativos do poder coercitivo dos DOI do iniacutecio dos anos 1970

bem como a descriccedilatildeo dos afazeres de cada uma de suas seccedilotildees o que traz uma forte

contribuiccedilatildeo para a anaacutelise aqui traccedilada

Por fim na terceira e uacuteltima frente a anaacutelise da formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-

CODI eacute efetuada por meio de outro tipo de fonte que tem por base a memoacuteria os

depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de Janeiro a

mim fornecidos entre os anos de 2002 e 2004 Como essas entrevistas foram concedidas

durante a passagem dos governos dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso

(1995-2002) e Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva (2003-2010) ex-perseguidos poliacuteticos da

ditadura militar que entre seus feitos agrave frente da poliacutetica brasileira agiram no sentido

de reparar danos sofridos pelos perseguidos poliacuteticos daquele periacuteodo esse presente

nelas imprimiu fortes influecircncias Afinal trata-se de memoacuterias sobre o passado vivido

em uma das instituiccedilotildees de repressatildeo mais violentas da eacutepoca o DOI-CODIRJ

construiacutedas a partir de um presente em que jaacute vigorava a lei nordm 9140 de 1995 que

reconhecia mortos e desaparecidos pela ditadura militar e indenizava suas famiacutelias e

havia sido aprovada a lei nordm 10559 de 2002 que reparava financeiramente aqueles que

tivessem sofrido perseguiccedilatildeo ou maus tratos dentro de instituiccedilotildees do Estado durante o

periacuteodo de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988

34

Percebe-se claramente a ideia de presente do passado de Robert Frank (1999)

como um dos principais aspectos criacuteticos aqui aplicados a essas memoacuterias Afinal o

fato de durante o periacuteodo em que se deram as entrevistas conhecidos opositores agrave

ditadura militar estarem agrave frente do governo brasileiro e grande nuacutemero de ex-

prisioneiros poliacuteticos inclusive os entrevistados buscarem se beneficiar da lei nordm

1055902 faz com que o presente seja aqui considerado o elemento organizador dessas

memoacuterias

Essa perspectiva de presente do passado eacute portanto um dos elementos criacuteticos

aplicados a essas memoacuterias que sobre elas trabalham a fim de aqui tornaacute-las objeto da

histoacuteria Dessa forma percebe-se na presente anaacutelise a perspectiva elucidada por Pierre

Nora (1993) ao diferir o trabalho da memoacuteria do trabalho da histoacuteria Afinal o que os

diferencia satildeo justamente os aspectos fluidos da memoacuteria tais como as emoccedilotildees e as

influecircncias conjunturais a que estaacute a todo tempo submetida que aqui satildeo minimizados

pelos aspectos criacuteticos objetivos e analiacuteticos peculiares agrave histoacuteria

35

1 Debate Historiograacutefico

11 O papel da ESG para o Sistema de Seguranccedila Nacional

O golpe civil-militar ocorrido no Brasil em 31 de marccedilo de 1964 quando o

presidente Joatildeo Goulart foi deposto e se instalou um regime militar no paiacutes teria sido

precedido por uma elaborada desestabilizaccedilatildeo poliacutetica que de acordo com Maria Helena

Moreira Alves (2005) envolveu tanto corporaccedilotildees multinacionais o governo dos

Estados Unidos quanto o capital brasileiro associado-dependente e os militares

brasileiros destacando-se entre esses um grupo de oficiais da Escola Superior de Guerra

(ESG) Essa ldquoconspiraccedilatildeordquo foi efetivada anos antes ainda no iniacutecio dos anos 1950 por

instituiccedilotildees civis como o Instituto Brasileiro de Accedilatildeo Democraacutetica (IBAD) e o Instituto

de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) sob a coordenaccedilatildeo da ESG A Doutrina de

Seguranccedila Nacional e Desenvolvimento (DSN) ministrada pela mesma Escola era a

justificativa ideoloacutegica perfeita para a tomada do poder e para o autoritarismo como

uma forma de governo

Um dos criadores dessa doutrina Golbery do Couto e Silva era desde 1952

adjunto do Departamento de Estudos da ESG estabelecimento subordinado ao Estado

Maior das Forccedilas Armadas (EMFA) criado em 1948 com a assistecircncia de consultores

franceses e norte-americanos a fim de desenvolver e consolidar os conhecimentos

necessaacuterios para o exerciacutecio das funccedilotildees de direccedilatildeo e para o planejamento da Seguranccedila

Nacional Dentro da ESG Golbery encontrou condiccedilotildees favoraacuteveis para impulsionar

teses que defenderiam o ecircxito de um projeto global de desenvolvimento em cujas

tarefas o Estado deveria se associar agrave iniciativa privada atraveacutes do apoio intermediaacuterio

de uma elite tecnocraacutetica civil e militar ideologicamente comprometida com um

conjunto de ldquoobjetivos nacionais permanentesrdquo garantindo assim a Seguranccedila

Nacional Essas teses vieram posteriormente a constituir a base do programa da ESG

36

passando a ser conhecidas pela Doutrina de Seguranccedila Nacional (DSN) A DSN

sustentava ainda em meio agrave Guerra Fria o posicionamento do Brasil ao lado do

Ocidente logo em confronto com o bloco sovieacutetico considerando a preservaccedilatildeo da

seguranccedila o fator fundamental de promoccedilatildeo do desenvolvimento Previa dessa forma a

possiacutevel supressatildeo de alguns valores definidores da ordem democraacutetica devido agrave

necessidade de uma progressiva centralizaccedilatildeo de poderes

Para Moreira Alves o grande feito do ldquocomplexo ESGIPESIBADrdquo foi a criaccedilatildeo

antes do golpe de 1964 de uma rede de informaccedilotildees e de uma Doutrina de Seguranccedila

Nacional e Desenvolvimento ambas coordenadas por Golbery para nortear o que viria

a ser um Estado efetivamente centralizado Essa tese eacute sustentada ao se notar que o

general Castelo Branco como primeiro presidente do Estado ditatorial brasileiro

compocircs seus ministeacuterios quase totalmente com membros e colaboradores do complexo

ESGIPESIBAD A DSN passou entatildeo a ser utilizada para moldar as estruturas de

Estado impor formas especiacuteficas de controle para a sociedade civil e delinear um

projeto de governo para o Brasil Assim com destaque para a seguranccedila interna

ameaccedilada pelo comunismo a Doutrina de Seguranccedila Nacional passou a induzir ao

abuso de poder a prisotildees arbitraacuterias agrave tortura e agrave censura agrave imprensa e agraves artes de

forma geral

Eacute interessante perceber que a formulaccedilatildeo da DSN feita pela ESG em colaboraccedilatildeo

com o IPES e o IBAD ao longo de 25 anos tinha como base uma teoria de guerra que

nortearia a atuaccedilatildeo repressora do governo militar A partir do Manual Baacutesico da Escola

Superior de Guerra e dos escritos de Golbery do Couto e Silva em Conjuntura Poliacutetica

Nacional o poder executivo amp a geopoliacutetica do Brasil Moreira Alves destaca os tipos

de guerra apresentados pela Doutrina guerra total guerra limitada ou localizada

guerra revolucionaacuteria ou insurrecional guerra indireta ou ideoloacutegica

37

De acordo com estes paracircmetros a teoria da guerra total baseava-se na estrateacutegia

militar da Guerra Fria deixando de ser estritamente militar para ser tambeacutem econocircmica

financeira poliacutetica psicoloacutegica e cientiacutefica atingindo o mundo de forma global Logo

como as potecircncias envolvidas natildeo podiam travar uma guerra ativa pois existia a

possibilidade de uma destruiccedilatildeo completa e universal a guerra total passou a assumir

diversas formas Ela se destrinchava em guerras limitadas ou localizadas pelas quais as

duas superpotecircncias mediam suas respectivas capacidades de controlar territoacuterios Aleacutem

disso havia as guerras declaradas consideradas claacutessicas e as natildeo-declaradas que

correspondiam agraves formas de guerra revolucionaacuteria ou insurrecional

Essas guerras natildeo-declaradas ou natildeo-claacutessicas representavam uma guerra de

agressatildeo indireta A insurrecional eacute caracterizada como um conflito interno em que

parte da populaccedilatildeo armada busca a deposiccedilatildeo do governo Jaacute a guerra revolucionaacuteria

natildeo envolve necessariamente o emprego da forccedila armada mas significa um conflito

normalmente interno estimulado ou auxiliado do exterior inspirado normalmente em

uma ideologia e que visa agrave conquista do poder pelo controle progressivo da naccedilatildeo A

guerra revolucionaacuteria se referia portanto agrave infiltraccedilatildeo comunista internacional

associada ao bloco sovieacutetico Neste tipo de guerra a guerra ideoloacutegica substituiacutea a

convencional entendida como o enfrentamento direto entre Estados em suas fronteiras

geograacuteficas A caracteriacutestica principal da guerra revolucionaacuteria de acordo com o

Manual Baacutesico da ESG era o envolvimento da populaccedilatildeo do paiacutes-alvo por meio da

conquista ideoloacutegica

[] abrangendo desde a exploraccedilatildeo dos descontentamentos existentes com o

acirramento de acircnimos contra as autoridades constituiacutedas ateacute a organizaccedilatildeo

de zonas dominadas com o recurso agrave guerrilha ao terrorismo e outras taacuteticas

irregulares onde o proacuteprio nacional do paiacutes-alvo eacute utilizado como

combatente (Alves 2005 45)

38

Como a guerra revolucionaacuteria recrutava seus combatentes secretamente toda a

populaccedilatildeo tornava-se suspeita e portanto deveria ser cuidadosamente controlada para

que os ditos ldquoinimigos internosrdquo pudessem ser neutralizados A partir desse

entendimento de guerra revolucionaacuteria que segundo a ESG assombrava o paiacutes cria-se a

necessidade de um planejamento de Seguranccedila Nacional adaptado a essa conjuntura e

por conseguinte de um eficiente e centralizado aparato de informaccedilotildees internas

A partir disso a Constituiccedilatildeo de 1967 criou o Conselho de Seguranccedila Nacional

oacutergatildeo da Presidecircncia da Repuacuteblica responsaacutevel por supervisionar a defesa da seguranccedila

interna e principalmente modificou o significado de Seguranccedila Nacional que desde a

Constituiccedilatildeo de 1946 era associado agrave agressatildeo externa ou seja agrave defesa das fronteiras

territoriais A ameaccedila agrave Seguranccedila Nacional passava entatildeo a ser oficialmente definida

mais como uma ameaccedila agraves fronteiras ideoloacutegicas do que agraves territoriais Portanto ao criar

o Conselho de Seguranccedila Nacional e mudar o entendimento sobre a Seguranccedila

Nacional a Constituiccedilatildeo de 1967 abria o caminho necessaacuterio agrave adaptaccedilatildeo agrave teoria de

seguranccedila interna estipulada anos antes pela ESG

Esta teoria de seguranccedila interna dotou entatildeo o Estado de justificativa para

controlar e reprimir a populaccedilatildeo em geral O caraacuteter oculto da ameaccedila interna tornou

praticamente impossiacutevel se estabelecer limites para as accedilotildees repressivas do Estado e dos

militares e por isso mesmo fragilizou a defesa dos direitos humanos no paiacutes Afinal

todo cidadatildeo passava a ser culpado ateacute que fosse provada a sua inocecircncia Por meio

desse pensamento a raiz dos abusos de poder perpetrados pelo Estado se estruturou Por

isso defende-se aqui que a institucionalizaccedilatildeo dessa crenccedila no inimigo interno criada

pela ESG antes mesmo do golpe civil-militar estimulou a ditadura a nortear o

desenvolvimento das suas estruturas defensivas da sua articulada rede de informaccedilotildees

poliacuteticas e ainda do seu aparato repressivo de controle armado onde os DOI-CODI a

39

partir de 1970 tambeacutem estariam inseridos

12 Os conceitos legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar

Essa crenccedila no inimigo interno criada pela ESG norteou a Seguranccedila Nacional

durante a ditadura militar que se substanciou atraveacutes da alta legalidade autoritaacuteria e

das medidas criadas pelo governo como forma de conter as cizacircnias militares Esses trecircs

fatores juntos contribuiacuteram para consolidaccedilatildeo dos DOI-CODI por todo paiacutes

respaldando a atuaccedilatildeo altamente autoritaacuteria e violenta desses oacutergatildeos

A partir disso o conceito de legalidade autoritaacuteria construiacutedo pelo cientista

poliacutetico norte-americano Anthony Pereira (2010) ajuda a evidenciar como a existecircncia

de laccedilos entre o autoritarismo e o estado de direito do regime militar no Brasil ajudou na

configuraccedilatildeo de uma instituiccedilatildeo como o DOI-CODI Afinal a legalidade autoritaacuteria

identifica as coexistecircncias entre o autoritarismo ditatorial e a continuidade das

instituiccedilotildees juriacutedicas anteriores ao Golpe bem como entre o autoritarismo ditatorial e a

praacutetica de elaboraccedilatildeo de leis ainda que tambeacutem autoritaacuterias

Percebe-se assim que o Brasil obteve um alto grau de legalidade autoritaacuteria na

medida em que a legislaccedilatildeo foi amplamente arbitrada pelo Poder Executivo como forma

de legalizar arbitrariedades poliacuteticas e suprimir direitos da populaccedilatildeo Assim foi

construiacuteda uma sustentaccedilatildeo juriacutedica e poliacutetica necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um aparato de

seguranccedila cada vez mais forte e centralizado que garantiu a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos

DOI-CODI

Afinal a legalidade autoritaacuteria vivenciada no Brasil se baseava na confecccedilatildeo pelo

Poder Executivo de leis publicadas em meios de comunicaccedilatildeo oficiais a fim de

respaldar arbitrariedades A partir dessas leis instrumento associado ao sistema

democraacutetico o governo militar centralizava e reforccedilava o seu poder ditatorial tornando

40

nebuloso o sistema em vigor naquele momento no Brasil Ou seja apesar da existecircncia

de uma ditadura militar consolidada havia integraccedilatildeo entre as Forccedilas Armadas e o

Poder Judiciaacuterio ndash que norteava os seus julgamentos pelas novas leis arbitraacuterias

legitimando-as ndash bem como a manutenccedilatildeo do Congresso em funcionamento na maior

parte do tempo Dessa forma a legalidade autoritaacuteria era um elo entre o autoritarismo

ditatorial e o estado de direito conseguindo fazer parecer por algum tempo que o paiacutes

vivenciava um sistema democraacutetico excepcional A praacutetica da legalidade autoritaacuteria na

forma de atos institucionais da Constituiccedilatildeo de 1967 e de leis de Seguranccedila Nacional

por exemplo forneceu os suportes legais necessaacuterios agrave construccedilatildeo do SISSEGIN e agrave

formaccedilatildeo e agrave atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

Aleacutem disso essa praxe da ditadura de agir por meio de leis arbitraacuterias na maior

parte das vezes se relaciona com as cizacircnias militares provocadas no seio dessa

instituiccedilatildeo como reflexos de acontecimentos poliacuteticos Afinal grande parte das leis

autoritaacuterias foram artifiacutecios usados como forma de acalmar os acircnimos na caserna

formada por militares de meacutedias e baixas patentes que reivindicavam mais poder

poliacutetico Assim para conter a oposiccedilatildeo poliacutetica e tambeacutem as reivindicaccedilotildees de poder da

caserna desenharam-se leis arbitraacuterias capazes de suportar um organismo de repressatildeo

onde esses militares trabalhariam com certa autonomia tal como viriam a ser os DOI-

CODI Logo percebe-se aqui que juntamente com a legalidade autoritaacuteria a leitura

dos encaminhamentos poliacutetico-militares feita por Joatildeo Roberto Martins Filho (1993)

sob a luz de conceitos como o de cizacircnias militares baseadas em dissidecircncias militares

internas entre o palaacutecio e a caserna tambeacutem ilumina o entendimento sobre a formaccedilatildeo

e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

Tais encaminhamentos poliacuteticos militares tecircm iniacutecio no dia 9 de abril dez dias

apoacutes o golpe civil-militar de 1964 e ainda antes da posse de Castelo Branco em 15 de

41

abril quando o Comando Supremo da Revoluccedilatildeo baixou um ato institucional

posteriormente conhecido como AI-1 que conferia aos militares o poder de puniccedilatildeo a

crimes de cidadatildeos contra o Estado seu patrimocircnio e contra a ordem poliacutetica e social

No entanto o AI-1 previa tambeacutem a possibilidade de passar este poder para as matildeos do

novo presidente da Repuacuteblica dois meses apoacutes a sua posse colocando oficialmente o

Poder Executivo acima dos demais Assim Costa e Silva integrante do Comando e

futuro ministro da Guerra fez expedir um pouco antes da posse de Castelo Branco em

complemento ao AI-1 o Ato do Comando Supremo da Revoluccedilatildeo nordm 9 e a Portaria nordm1

que davam continuidade ao poder de puniccedilatildeo dos militares mesmo depois da posse de

Castelo Branco Com isso foram criadas as condiccedilotildees para que coroneacuteis tenentes-

coroneacuteis majores e capitatildees6 continuassem agindo na caccedila ao ldquoinimigo internordquo

O Ato do Comando Supremo da Revoluccedilatildeo nordm 9 estabelecia que os militares

encarregados de inqueacuteritos e processos (de suspensotildees de direitos poliacuteticos cassaccedilotildees

de mandatos etc) poderiam delegar atribuiccedilotildees referentes a investigaccedilotildees bem como

requisitar inqueacuteritos ou sindicacircncias instituiacutedas por outras esferas Jaacute a Portaria nordm1

determinava a abertura de Inqueacuterito Policial Militar (IPM) para apuraccedilatildeo de crimes

praticados contra o Estado e a ordem poliacutetica social

No entanto no dia 15 de junho de 1964 juntamente com o teacutermino da validade do

AI-1 acabaria tambeacutem o prazo dos militares cassarem mandatos e suspenderem direitos

poliacuteticos Tais militares requisitaram que o poder a eles concedido natildeo fosse cessado o

que foi negado pelo entatildeo presidente Castelo A partir disso a insatisfaccedilatildeo desses

militares acabou por causar o surgimento de uma primeira e consideraacutevel discoacuterdia

interna agrave instituiccedilatildeo militar uma primeira cizacircnia militar A partir dessa situaccedilatildeo de

conflito surge entatildeo a chamada linha dura que se formou atraveacutes do eco que um

6 Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II

42

conjunto de pressotildees da jovem oficialidade nessa fase inicial da ditadura encontrou em

meio a alguns ldquoherdeiros civisrdquo do regime e em setores da hierarquia militar Dessa

forma a linha dura foi formada por grupos heterogecircneos de composiccedilatildeo variaacutevel e

ideologia difusa

Logo assim como Martins Filho e diferentemente da interpretaccedilatildeo de grande

parte dos historiadores acredita-se que mesmo em termos ideoloacutegicos a linha dura

estava longe de ser um grupo homogecircneo tendo por denominador comum apenas duas

caracteriacutesticas

Em primeiro lugar as reivindicaccedilotildees de maior rigor na ldquodepuraccedilatildeordquo do

sistema poliacutetico em segundo lugar as expectativas de influenciar

diretamente o processo de tomadas de decisotildees do governo militar Tanto em

um como em outro aspecto suas accedilotildees provocariam problemas para o

governo de Castelo Branco (Martins Filho 1993 61)

Portanto o governo Castelo Branco logo teve que se deparar com a questatildeo da

participaccedilatildeo poliacutetica do conjunto da categoria militar no regime ditatorial Sem atribuir

ao presidente uma visatildeo mais liberal ndash diferentemente daqueles que interpretam as

medidas mais ldquodurasrdquo de Castelo como resultado das pressotildees da linha dura ndash pondera-

se aqui que por parte do governo o redirecionamento de objetivos iniciais era

recorrente sempre que a situaccedilatildeo exigia uma reavaliaccedilatildeo Dessa forma percebe-se que

os rumos poliacuteticos escolhidos pela ditadura tinham como finalidade a preservaccedilatildeo da

hierarquia e da aparente homogeneidade da instituiccedilatildeo castrense o que demandava a

contenccedilatildeo das instabilidades internas

A partir dessa perspectiva destaca-se o caraacuteter flutuante dos conflitos internos ao

regime decorrentes da incompatibilidade de interesses poliacuteticos entre os militares de

altas patentes que possuiacuteam cargos no governo ditatorial representados

43

metaforicamente pelo palaacutecio e militares de meacutedias e baixas patentes que eram

responsaacuteveis por serviccedilos internos a caserna Nesse sentido evidencia-se por exemplo

que apoacutes ser retirado da caserna o poder de cassaccedilatildeo de mandatos e de suspensatildeo de

direitos poliacuteticos as derrotas dos candidatos aliados ao regime ditatorial nas eleiccedilotildees

para governador nos estados da Guanabara e de Minas Gerais em outubro de 1965

ocasionou uma forte divergecircncia entre o palaacutecio e a caserna resultando uma

instabilidade castrense que desembocou em mais uma cizacircnia militar Diante disso na

tentativa de apaziguar a instabilidade militar e por conseguinte os acircnimos da caserna

no fim desse mesmo mecircs Castelo Branco decretaria o AI-27 com vigecircncia prevista ateacute

15 de marccedilo de 1967

Afinal atraveacutes desse Ato a caserna aleacutem de passar a influir no acircmbito da poliacutetica

comeccedilava a ganhar poderes extras Nele se estabelecia a possibilidade de suspensatildeo de

direitos poliacuteticos e de cassaccedilatildeo de mandatos de parlamentares imposiccedilatildeo da eleiccedilatildeo

indireta para a Presidecircncia da Repuacuteblica permissatildeo para o presidente da Repuacuteblica

decretar o recesso do Congresso Nacional e das demais casas legislativas extinccedilatildeo de

partidos poliacuteticos delegaccedilatildeo ao presidente da Repuacuteblica do poder de legislar por

decretos-leis estabelecimento de foro especial militar para civis acusados de crimes

contra a Seguranccedila Nacional ou as instituiccedilotildees militares suspensatildeo das garantias de

vitaliciedade inamovibilidade (dos juiacutezes) e de estabilidade (dos servidores puacuteblicos)

ampliaccedilatildeo de 11 para 16 ministros do Supremo Tribunal Federal (Ato Institucional Nordm2

27 out 1965)

Com a cassaccedilatildeo de mandatos suspensatildeo de direitos poliacuteticos e demissatildeo de

funcionaacuterios puacuteblicos a caserna conseguia alguma interferecircncia nos assuntos poliacuteticos

e com a decretaccedilatildeo de foro militar especial para civis acusados de crimes contra a

7 Para mais informaccedilotildees sobre o AI-2 ver BRASIL Ato Institucional Nordm2 de 27 de outubro de 1965

44

Seguranccedila Nacional ou instituiccedilotildees militares comeccedilava a ganhar um espaccedilo proacuteprio e

aos poucos formar um grupo disposto a agir por sua conta sem maiores consideraccedilotildees

pelas normas legais tendendo a fazer valer suas ideias pela forccedila A futura comunidade

de seguranccedila comeccedilava entatildeo a ser desenhada e a formar o caraacuteter e a atuaccedilatildeo dos

futuros membros de seus oacutergatildeos A montagem do sistema de seguranccedila interna em que

os DOI-CODI seriam inseridos iria a partir das primeiras leis das desavenccedilas internas

e da deflagraccedilatildeo dos primeiros Atos Institucionais se tornando viaacutevel

Entretanto mesmo apoacutes o AI-2 a crise no regime castrense continuava A

caserna ansiosa por mais espaccedilo poliacutetico comeccedilava a se organizar para a ascensatildeo de

outra forccedila ao governo se articulando em torno do entatildeo ministro da Guerra o general

Costa e Silva A desuniatildeo hieraacuterquica provocada pela disputa sucessoacuteria se configurava

naquele momento como um importante fator da crise do regime militar Em meio a este

clima de tensatildeo Castelo Branco e seus partidaacuterios os ditos castelistas se preocupavam

com a ldquoinstitucionalizaccedilatildeo da revoluccedilatildeordquo Diante dessa configuraccedilatildeo a ldquorevoluccedilatildeo

castelistardquo de fato acabou sendo implantada pelo presidente e os pilares de seu

processo foram a Lei de Seguranccedila Nacional e a Constituiccedilatildeo de 1967

A Carta de 1967 incorporou boa parte das medidas autoritaacuterias estabelecidas pelos

atos institucionais Entre essas as que instituiacuteam que toda pessoa natural ou juriacutedica

seria responsaacutevel pela Seguranccedila Nacional nos limites definidos em lei e que o foro

militar previsto no AI-2 por limitado periacuteodo de tempo ficaria definitivamente

estendido aos civis por tempo indeterminado nos casos de crimes contra a Seguranccedila

Nacional Jaacute a Lei de Seguranccedila Nacional reflexo tambeacutem do caraacuteter ldquodurordquo do final do

governo Castelo transformava em legislaccedilatildeo a Doutrina de Seguranccedila Nacional da

ESG legalizando a concepccedilatildeo de ldquoguerra internardquo e de ldquosubversatildeordquo dois dias antes da

chegada de Costa e Silva ao poder presidencial Essas uacuteltimas medidas do governo de

45

Castelo merecem aqui destaque por significarem um impulso agrave criaccedilatildeo de um setor

voltado para a repressatildeo poliacutetica seara em que os DOI-CODI atuariam anos agrave frente

Assim em meio a um clima anti-castelista em 15 de marccedilo de 1967 Costa e

Silva assume o governo militar prometendo inclusive uma maior humanizaccedilatildeo da

poliacutetica Entretanto com a eclosatildeo de protestos de rua contra a violecircncia ditatorial o

novo presidente logo retomaria o aspecto ldquorevolucionaacuteriordquo do regime militar e

decretaria o Ato Institucional Nordm5 (AI-5) 8

Afinal a partir dos discursos do deputado

Maacutercio Moreira Alves evocando os brasileiros a natildeo comparecerem ao tradicional

desfile do dia sete de setembro daquele ano de 1968 Costa e Silva e o palaacutecio passaram

a ser extremamente pressionados pela caserna a reagir A recusa da Cacircmara dos

Deputados em abrir um processo para cassaccedilatildeo do entatildeo deputado foi a justificativa

necessaacuteria para que o presidente convocasse a cuacutepula do aparelho militar e os juristas

palacianos para darem forma ao AI-5 vindo a decretaacute-lo na noite do dia 13 de dezembro

de 1968

Percebe-se que a conjuntura de 1968 iniciado com os protestos estudantis de

massa tornou pela primeira vez desde o golpe de 1964 momentaneamente unificado o

movimento de repuacutedio de expressivos setores sociais ao avanccedilo da repressatildeo militar

Este fato que a princiacutepio pode fazer crer ter estimulado uma desuniatildeo militar parece

ter sido um fator adicional de uniatildeo das Forccedilas Armadas As tensotildees internas agrave

instituiccedilatildeo portanto foram neste momento colocadas em suspenso e a situaccedilatildeo militar

diante da ofensiva da oposiccedilatildeo teria criado uma espeacutecie de unidade de crise Poreacutem

esta unidade de crise das Forccedilas Armadas rapidamente se fragmentou trazendo agrave tona

novamente em meados de 1968 um variado e complexo conjunto de tensotildees no campo

militar Esta unidade no entanto voltaria a existir em torno da decretaccedilatildeo do AI-5 apoacutes

8 Para mais informaccedilotildees sobre o AI-5 ver BRASIL Ato Institucional Nordm5 de 13 de dezembro de 1968

46

a derrota na votaccedilatildeo no Congresso e quando as pressotildees da caserna em prol da

militarizaccedilatildeo do governo se voltaram para o palaacutecio

Nesse momento os generais do governo se sentiram muito mais ameaccedilados do

que na jaacute mencionada instabilidade gerada pelas derrotas nas eleiccedilotildees para governador

de 1965 O fato da oficialidade rebelde de entatildeo natildeo ter um porta-voz em postos de

comando como era na eacutepoca Costa e Silva e por isso parecer mais difusa a tornava

mais ameaccediladora agrave integridade da instituiccedilatildeo militar Assim a explicaccedilatildeo para

juntamente com a caserna os generais cobrarem do Ministro do Exeacutercito uma imediata

tomada de decisatildeo em favor da ldquoRevoluccedilatildeordquo estava portanto na busca pela

permanecircncia de uma unidade das Forccedilas Armadas Dessa forma momentos antes do AI-

5 a unidade da crise novamente se formou soacute que dessa vez por motivos inerentes

unicamente agrave proacutepria instituiccedilatildeo militar (Martins Filho 1993 158-174)

O AI-5 foi ateacute entatildeo a maior expressatildeo legal do autoritarismo da ditadura militar

e construiu uma base essencial para que em 1970 surgissem os DOI-CODI Afinal

aleacutem de natildeo estabelecer um prazo final para sua vigecircncia inovando em relaccedilatildeo aos

demais Atos Institucionais o AI-5 tornou legal a suspensatildeo da garantia de ldquohabeas

corpusrdquo nos casos de crimes poliacuteticos contra a Seguranccedila Nacional Logo a partir

desse Ato foram estabelecidas as condiccedilotildees necessaacuterias para a institucionalizaccedilatildeo dos

sistemas de seguranccedila e de informaccedilotildees bem como o surgimento da Comissatildeo Geral de

Investigaccedilotildees (CGI) na tentativa de combate agrave corrupccedilatildeo O sistema de seguranccedila

esboccedilado naquele momento buscava o aperfeiccediloamento sob a eacutegide da ldquoguerra

revolucionaacuteriardquo mencionada no preacircmbulo do proacuteprio AI-5

Considerando que assim se torna imperiosa a adoccedilatildeo de medidas que

impeccedilam que sejam frustrados os ideais superiores da Revoluccedilatildeo

preservando a ordem a seguranccedila a tranquilidade o desenvolvimento

econocircmico e cultural e a harmonia poliacutetica e social do Paiacutes comprometidos

47

por processos subversivos e de guerra revolucionaacuteria (Ato Institucional nordm

5 13 dez 1968)

Logo as cizacircnias militares e a legislaccedilatildeo a elas relacionada contribuiacuteram para a

formaccedilatildeo do cenaacuterio propiacutecio agrave institucionalizaccedilatildeo do aparato de repressatildeo Aparato este

que a partir do AI-5 foi se estruturando em trecircs grandes sistemas o SISNI Sistema

Nacional de Informaccedilotildees a CGI Comissatildeo Geral de Investigaccedilotildees e o SISSEGIN

Sistema de Seguranccedila Interna Este ao ser criado abriria espaccedilo para a repressatildeo

poliacutetica centralizada e institucionalizada dos DOI-CODI

13 A montagem e o funcionamento do SISSEGIN

Ao longo dos anos 70 os DOI-CODI passariam a ser os principais oacutergatildeos de

atuaccedilatildeo do SISSEGIN e um dos pontos centrais do aparelho de repressatildeo brasileiro Ao

seu lado em outras esferas de competecircncia estavam os oacutergatildeos do Sistema Nacional de

Informaccedilotildees (SISNI) e os da Comissatildeo Geral de Investigaccedilatildeo (CGI) Cada um desses

sistemas possuiacutea uma competecircncia especiacutefica o SISNI era responsaacutevel por buscar as

informaccedilotildees necessaacuterias agrave manutenccedilatildeo do regime de Seguranccedila Nacional procurando

desvendar quem eram os opositores ao governo os chamados ldquoinimigos internosrdquo

enquanto a CGI buscava o combate agrave corrupccedilatildeo no serviccedilo puacuteblico Jaacute o SISSEGIN

operava de forma centralizada tanto na investigaccedilatildeo quanto na apreensatildeo dos mesmos

ldquoinimigos internosrdquo

Para a anaacutelise do SISSEGIN vale-se aqui do trabalho de Carlos Fico Como eles

agiam (2001) feito com base no acervo da extinta Divisatildeo de Seguranccedila e Informaccedilotildees

do Ministeacuterio da Justiccedila inclusive nos documentos sigilosos Afinal nesse estudo Fico

revela em detalhes o que nenhum outro historiador havia conseguido ateacute entatildeo a

48

formaccedilatildeo e o funcionamento das comunidades de informaccedilotildees e de seguranccedila da

ditadura militar brasileira

A partir disso destaca-se aqui que a estrutura e o funcionamento do SISSEGIN

foram instituiacutedos e regulamentados por meio de decretos sigilosos O mesmo padratildeo de

regulamentaccedilatildeo foi seguido pela Operaccedilatildeo Bandeirantes (Oban) instituiccedilatildeo informal

criada em Satildeo Paulo em julho de 1969 bem como pelos DOI-CODI instituiacutedos no

primeiro semestre de 1970 formalizando a experiecircncia da Oban e espalhando-a por

todas as Regiotildees Militares do Brasil Jaacute que eacute atraveacutes dessas Regiotildees que o Exeacutercito

divide geograficamente sua administraccedilatildeo sobre o territoacuterio brasileiro foi tambeacutem por

meio delas que partiu durante parte da ditadura militar as responsabilidades territoriais

dos DOI-CODI Logo o DOI-CODI do Rio de Janeiro ficava responsaacutevel pelos crimes

poliacuteticos ocorridos na Primeira Regiatildeo ou seja nos estados do Rio de Janeiro e do

Espiacuterito Santo

A justificativa para esse sigilo dos atos que regiam o SISSEGIN e os DOI-CODI

estava na maior mobilidade e autonomia de accedilatildeo que o segredo traria para a atuaccedilatildeo

repressora desses organismos Dessa forma a repressatildeo podia agir sem grandes

limitaccedilotildees natildeo esbarrando em questotildees externas agraves decisotildees militares tais como os

Direitos Humanos Universais de 1948

No entanto eacute tambeacutem evidente a importacircncia que alguns atos legais natildeo-sigilosos

tiveram para a construccedilatildeo do cenaacuterio que sustentaria a atuaccedilatildeo do SISSEGIN e dos

DOI-CODI Eacute o caso por exemplo da adoccedilatildeo do foro especial para crimes poliacuteticos

que a partir do AI-2 e da subsequente incorporaccedilatildeo dessa medida pela Constituiccedilatildeo de

1967 passaram a ser julgados pelos tribunais militares e a suspensatildeo de garantias

individuais tal como o habeas corpus feita pelo AI-5 de dezembro de 1968 Afinal

natildeo seria eficaz para a atuaccedilatildeo desses oacutergatildeos repressores que seus prisioneiros poliacuteticos

49

atraveacutes do habeas corpus pudessem ser imediatamente soltos pela Justiccedila ou que

pudessem ser julgados por tribunais civis correndo o risco do juiz responsaacutevel pela

causa natildeo estar totalmente articulado aos princiacutepios impostos pela Doutrina de

Seguranccedila Nacional

Dessa forma ateacute o AI-5 foram levantadas as bases legais para que um Sistema de

Seguranccedila Nacional centralizado combativo e violento fosse institucionalizado Por

outro lado a partir do AI-5 para ter a autonomia e a mobilidade que se julgavam

necessaacuterias a organizaccedilatildeo desse Sistema de Seguranccedila Nacional foi sigilosa Ou seja a

reestruturaccedilatildeo do sistema repressivo com os seus novos oacutergatildeos e o detalhamento de

suas funccedilotildees internas natildeo foi publicada oficialmente por nenhum tipo de legislaccedilatildeo A

operacionalidade da seguranccedila interna foi regida por diretrizes secretas e o SISSEGIN

instituiacutedo por decretos sigilosos do Conselho de Seguranccedila Nacional (CSN) aprovados

pelo Presidente da Repuacuteblica

Por isso mesmo uma das primeiras medidas para o estabelecimento do SISSEGIN

e posteriormente dos DOI-CODI foi o fortalecimento do Conselho de Seguranccedila

Nacional cujas competecircncias foram ampliadas por atualizaccedilatildeo na legislaccedilatildeo operada

em janeiro de 1968 No ano seguinte em julho a Diretriz para a Poliacutetica de Seguranccedila

Interna foi instituiacuteda secretamente a fim de consolidar o SISSEGIN e adotar

nacionalmente o padratildeo da Oban (Operaccedilatildeo Bandeirante) No entanto somente em

1970 durante a vigecircncia do governo Meacutedici o modelo da Oban foi adaptado

transformado em DOI-CODI e de fato instituiacutedo por todas as Regiotildees Militares do

paiacutes

A Oban foi secretamente instituiacuteda em 1ordm de julho de 1969 no quartel do II

Exeacutercito em Satildeo Paulo No intuito de combater de forma mais organizada e eficaz a

esquerda armada a Oban usava de sua ldquoilegalidade oficialrdquo para agir contra os

50

ldquoinimigos internosrdquo sem precisar adequar seus meacutetodos de trabalho aos Direitos

Humanos A Oban criava uma estrutura nova que coordenava e integrava os diversos

oacutergatildeos de repressatildeo poliacutetica ndash entre eles as 2ordf seccedilotildees da Poliacutecia Militar Exeacutercito e

Marinha de Satildeo Paulo responsaacuteveis pelas investigaccedilotildees de crimes poliacuteticos nessas

instituiccedilotildees ndash que operavam de forma desordenada e ineficaz contra a esquerda armada

em aparente ascensatildeo O funcionamento da Oban se dava por meio de um trabalho

coordenado de diversas instacircncias conforme apresenta Fico no seguinte trecho

O funcionamento da Oban supunha um trabalho coordenado de diversas

instacircncias Toda quarta-feira era feita uma reuniatildeo no quartel-general do II

Exeacutercito na qual eram discutidas e avaliadas as accedilotildees da guerrilha da

semana Participavam dessas reuniotildees o chefe da 2ordf Seccedilatildeo do II Exeacutercito o

comandante da Oban major Waldyr Coelho um representante da 2ordf Seccedilatildeo

do II Exeacutercito o oficial chefe da 2ordf Seccedilatildeo do Distrito Naval o chefe da 2ordf

Seccedilatildeo da Poliacutecia Militar do Estado de Satildeo Paulo um representante da Poliacutecia

Federal um representante da Divisatildeo da Ordem Social e outro da Ordem

Poliacutetica ambos do DOPS (Fico 2001 117)

Aleacutem dos meios militar e policial a Oban tambeacutem era sustentada pelo

empresarial financeiro e parte das autoridades civis paulistas da eacutepoca conforme indica

trecho do artigo da historiadora Mariana Joffily para a revista Caros Amigos

O ato que celebrou a criaccedilatildeo da Oban foi organizado com pompa coqueteacuteis

e salgadinhos e contou com a presenccedila das principais autoridades poliacuteticas

de Satildeo Paulo o governador Roberto de Abreu Sodreacute o prefeito Paulo Maluf

o comandante do II Exeacutercito (atual Regional Sudeste) general Joseacute

Canavarro Pereira entre outros Tambeacutem acorreram agrave cerimocircnia figuras

proeminentes da elite paulista oriundas dos meios empresarial e financeiro

Luiz Macedo Quentel Antonio Delfim Netto Gastatildeo Vidigal Paulo Sawaya

e Henning Albert Boilesen Parte do setor empresarial paulista e das

multinacionais ndash com representaccedilatildeo em Satildeo Paulo ndash acreditava que as accedilotildees

guerrilheiras colocavam em risco a boa conduta dos negoacutecios e concorreu

51

para o apoio financeiro e material As autoridades da cidade colaboraram

com infra-estrutura incluindo a cessatildeo de partes das dependecircncias da 36ordf

delegacia de poliacutecia situada na Rua Tutoacuteia (Vila Mariana) para a

acomodaccedilatildeo do novo oacutergatildeo repressivo (Joffily 14 set 2009)

Percebe-se portanto que muitos empresaacuterios de Satildeo Paulo ajudaram a financiar a

Oban Entre outros gastos esse financiamento era destinado agrave capacitaccedilatildeo de seus

agentes e agrave compra de equipamentos de tortura novos entre eles uma maacutequina de

choques eleacutetricos nomeada de ldquoPianola Boilesenrdquo em homenagem a Henning Albert

Boilesen entatildeo presidente da empresa Ultragaacutes e um dos empresaacuterios agrave frente desse tipo

de investimento na Oban Boilesen assim como os demais empresaacuterios envolvidos

financeiramente com a Oban por desacreditar nas instituiccedilotildees do Estado que ateacute entatildeo

eram responsaacuteveis pelo combate agrave esquerda armada e por ter interesses reais nesse

combate optou por capitalizar a Oban Afinal uma instituiccedilatildeo extra-oficial de accedilatildeo

coordenada e com grande investimento teria autonomia e capacidade para neutralizar os

grupos da esquerda armada que vinham causando prejuiacutezos a seus negoacutecios tais como

assaltos e atentados Justamente devido a essa relaccedilatildeo que tinha com a Oban Boilesen

foi assassinado posteriormente em 1971 por militantes da esquerda armada 9

Percebe-se portanto que a Oban tinha caraacuteter paramilitar e unia a iniciativa

privada ao Estado a fim de que o poder de poliacutecia deste fosse fortalecido Sua criaccedilatildeo

empregou portanto um novo tipo de atuaccedilatildeo militar em que o combate ao ldquoinimigo

internordquo contaria com uma forte autonomia de accedilatildeo respaldada pelo sigilo dos decretos

regulamentares e pelo financiamento do empresariado A Oban se consagrava como um

poderoso e promissor modelo de repressatildeo

No entanto o envolvimento de oficiais das Forccedilas Armadas policiais e

empresaacuterios com a repressatildeo poderia assumir proporccedilotildees que fugissem ao controle

9 Para mais informaccedilotildees sobre Henning Albert Boilesen e a relaccedilatildeo do empresariado com a Oban ver o

filme documentaacuterio Cidadatildeo Boilesen (Brasil 2009)

52

militar e configurassem algumas vezes conflitos de interesses Assim com o sucesso

das accedilotildees da Oban no combate aos opositores armados os militares optaram por

ampliar o seu modelo para todo o Brasil desde que incorporasse algumas reformulaccedilotildees

que assegurassem o total controle militar Surgiriam entatildeo os DOI-CODI

Os DOI-CODI eram portanto a institucionalizaccedilatildeo e a sofisticaccedilatildeo do modelo da

Oban Afinal eles coordenavam todas as demais Forccedilas e Poliacutecias sob o comando do

Exeacutercito e estavam espalhados por todas as Regiotildees Militares do paiacutes Eram a nova

estrutura do SISSEGIN implantada por diretrizes secretas que o Conselho de Seguranccedila

Nacional havia formulado Tais diretrizes estabeleceram que para cada um dos

comandos militares haveria um Conselho de Defesa Interna (CONDI) um Centro de

Operaccedilotildees de Defesa Interna (CODI) e um Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees

(DOI) todos sob responsabilidade do comandante do Exeacutercito respectivo denominado

comandante da ldquoZona de Defesa Internardquo (ZDI) O paiacutes ficou assim dividido em seis

ZDI Podiam ser criadas ainda Aacutereas de Defesa Interna (ADI) ou Sub-Aacutereas de Defesa

Interna (SADI) em regiotildees que merecessem cuidados especiais

Aos Conselhos de Defesa Interna (CONDI) cabia assessorar os comandantes das

ZDI e tambeacutem facilitar a esses comandantes a coordenaccedilatildeo de accedilotildees e a necessaacuteria

cooperaccedilatildeo por parte das mais altas autoridades civis e militares com sede nas

respectivas aacutereas de responsabilidade Logo os CONDI podiam ser integrados por

governadores ou seus representantes assim como comandantes das Forccedilas Navais e

Aeacutereas comandantes subordinados secretaacuterios de seguranccedila e comandantes das demais

Poliacutecias ou outras autoridades conforme o comandante da respectiva ZDI julgasse

necessaacuterio Tinham como aacuterea de jurisdiccedilatildeo territorial as Regiotildees Militares cujas sedes

se localizam em Satildeo Paulo Rio de Janeiro (1ordm BPE) Brasiacutelia Minas Gerais Rio Grande

do Sul Bahia Pernambuco e Cearaacute No entanto segundo Fico os CONDI natildeo tiveram

53

funcionamento significativo

Os Centros de Operaccedilotildees de Defesa Interna (CODI) eram oacutergatildeos de planejamento

e coordenaccedilatildeo das medidas de defesa interna dirigidos pelo chefe do Estado-Maior do

Exeacutercito da Regiatildeo e compostos por representantes de todas as Forccedilas bem como da

divisatildeo local de ordem poliacutetica e social das Poliacutecias Civil Militar Federal e da agecircncia

local do Serviccedilo Nacional de Informaccedilotildees (SNI) Entre suas funccedilotildees estavam o

planejamento o controle e a execuccedilatildeo das medidas de defesa interna a coordenaccedilatildeo dos

meios utilizados para esta execuccedilatildeo e a ligaccedilatildeo com todos os escalotildees envolvidos

devendo possibilitar a conjugaccedilatildeo de esforccedilos do Exeacutercito da Marinha da Aeronaacuteutica

do SNI do Poliacutecia Federal e das Secretarias de Seguranccedila Puacuteblica

Jaacute os Destacamentos de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) tinham uma

estruturaccedilatildeo interna tiacutepica composta por setores especializados em operaccedilotildees externas

informaccedilotildees contra-informaccedilotildees interrogatoacuterios e anaacutelises aleacutem de assessoria juriacutedica

e policial e setores administrativos O trabalho nesses destacamentos era ininterrupto

Utilizavam regularmente dois regimes de trabalho um de expediente regular (das 8 agraves

18 horas) e outro atraveacutes de plantotildees de 24 horas por 48 de folga Abaixo visualiza-se a

estrutura orgacircnica dos DOI que sintetiza suas funccedilotildees e sua hierarquia institucional

(FICO 2001 123-125)

54

DOI do Exeacutercito

No organograma acima nota-se que os DOI eram divididos por setores seccedilotildees e

subseccedilotildees Esses satildeo caracterizados por Fico de acordo com suas funccedilotildees e

composiccedilotildees e tambeacutem pelo coronel Freddie Perdigatildeo Pereira em sua monografia que eacute

analisada na segunda frente do estudo aqui traccedilado Percebe-se que essa caracterizaccedilatildeo

feita por Fico e por Pereira eacute muito proacutexima uma vez que eles utilizam os mesmos

termos e palavras para descrever o trabalho ou a formaccedilatildeo de determinado setor ou

seccedilatildeo Diante disso torna-se evidente que ambos os trabalhos se basearam no mesmo

documento que apesar de natildeo ser citado na monografia de Pereira eacute referenciado por

Fico como ldquoSistema de Seguranccedila Interna SISSEGIN Documento classificado como

lsquosecretorsquo [1974] Capiacutetulo 2rdquo Entretanto enquanto o Sistema de Seguranccedila Nacional

como um todo eacute o foco da pesquisa de Fico o DOI eacute o objeto de Pereira o que por

conseguinte o faz apresentar de forma mais detalhada a composiccedilatildeo de cada uma de

suas partes integrantes Logo optou-se aqui por tratar da estrutura interna dos DOI na

Comandante

Seccedilatildeo de contra-informaccedilotildees Turma de comando

Setor de operaccedilotildees de informaccedilotildees Setor de administraccedilatildeo

Turno auxiliar

Assistecircncia juriacutedica

e policial

Seccedilatildeo

administrativa

Seccedilatildeo de busca e

apreensatildeo

Setor de

investigaccedilotildees

Setor de anaacutelise e

informaccedilotildees

Subseccedilatildeo de

interrogatoacuterio Subseccedilatildeo de anaacutelise

55

proacutexima frente de estudo durante a anaacutelise da monografia de Pereira onde

trabalharemos com os DOI-CODI sob o ponto de vista de um de seus agentes ainda

durante a ditadura

Com relaccedilatildeo agrave atuaccedilatildeo dos DOI-CODI dentro do SISSEGIN Maria Celina

DrsquoArauacutejo em Os anos de Chumbo a memoacuteria militar sobre a repressatildeo (1994)

apresenta grandes contribuiccedilotildees para a presente pesquisa uma vez que em sua obra

analisa por meio de depoimentos ineacuteditos de militares a atuaccedilatildeo dos oacutergatildeos de

informaccedilatildeo e repressatildeo poliacutetica durante a ditadura militar

Partindo dessa abordagem de DrsquoArauacutejo destaca-se que diferentemente do que

acontecia na Oban cada um dos DOI-CODI tinha por comandante-geral o chefe do

Estado-Maior do Exeacutercito de sua respectiva Regiatildeo Militar e seu financiamento contava

com recursos orccedilamentaacuterios regulares do governo Logo os DOI-CODI natildeo

estabeleciam uma ligaccedilatildeo direta com o capital privado que entretanto ainda podia

investir de forma indireta na repressatildeo por meio de doaccedilotildees de maacutequinas e serviccedilos

Dessa forma os DOI-CODI tinham uma maior independecircncia financeira que junto com

a centralizaccedilatildeo hieraacuterquica que tambeacutem os caracterizava permitia que suas

investigaccedilotildees e accedilotildees procedessem de forma ainda mais eficiente Afinal esses atributos

evitavam que suas operaccedilotildees estivessem suscetiacuteveis agrave duplicidade de tarefas a

competiccedilotildees e a conflitos de interesses maximizando os seus resultados e tornando-os

uma espeacutecie de sofisticaccedilatildeo da repressatildeo

Aleacutem disso percebe-se que essa sofisticaccedilatildeo dos DOI-CODI tambeacutem era formada

pelo proposital distanciamento ali mantido entre os militares do governo e os agentes

desses oacutergatildeos de repressatildeo Afinal a ditadura ao mesmo tempo em que sancionava a

tortura nos seus ldquoporotildeesrdquo estrategicamente negava a sua existecircncia perante a sociedade

Assim esse cenaacuterio que isentava os governantes e os demais militares relacionados ao

56

poder poliacutetico do paiacutes de qualquer ligaccedilatildeo com a tortura se mantinha atraveacutes da

seguinte configuraccedilatildeo de um lado o torturador ndash que natildeo montou a maacutequina e jamais

efetuaria a tortura num salatildeo do quartel do Exeacutercito se temesse a reaccedilatildeo de seus

comandantes ndash e de outro o seu superior responsaacutevel pela ordem puacuteblica e

beneficiaacuterio direto do poder poliacutetico ndash que sancionava as maacutequinas mas natildeo tocava nos

presos

Dessa forma os DOI responsaacuteveis por accedilotildees que englobavam as prisotildees e os

interrogatoacuterios dos presos poliacuteticos eram instituiccedilotildees que prezavam por natildeo ser

externamente identificadas por seus meacutetodos violentos O sistema funcional dos DOI

era entatildeo complexo e informal de modo que por mais que neles existissem hierarquia e

coordenaccedilatildeo as brechas para que a falta de controle se propagasse eram amplas a fim

de que os meacutetodos natildeo regulamentares tais como as torturas pudessem ser

desempenhados com a eficiecircncia e a recorrecircncia necessaacuterias sem serem relacionados

diretamente a um comando

Diante disso justifica-se que conforme apurado por Maria Celina DrsquoArauacutejo a

versatildeo oficial dos militares ainda possa ser a de que a tortura jamais resultou de

qualquer ordem ou orientaccedilatildeo superior E mesmo quando chega a ser admitida apareccedila

como exceccedilatildeo como abuso ou excesso de poucos Entretanto torna-se aqui evidente a

incoerecircncia dessa versatildeo militar Afinal verifica-se que assim como em todos os

organismos militares nos DOI tambeacutem existiam uma forte hierarquia a ser cumprida

onde apesar de uma estrutura complexa qualquer accedilatildeo deveria ser remetida a um

superior o que sugere que a questatildeo da responsabilidade sempre poderia ser resgatada

Logo se militares reconhecem que existiram ldquoexcessosrdquo na eacutepoca e mesmo assim os

chefes imediatos de tais infratores natildeo tomaram as devidas providecircncias encontra-se

nos DOI entatildeo uma forte incongruecircncia com relaccedilatildeo ao princiacutepio militar de

57

responsabilizaccedilatildeo do chefe-superior Portanto diante dessa constataccedilatildeo de como eram

tratados os torturadores nos DOI percebe-se que apesar de velada em geral a tortura

era um procedimento ali consentido

2 O DOI-CODI por ele mesmo

A anaacutelise ateacute agora feita por meio da historiografia cede aqui lugar para se

concentrar sobre uma fonte especiacutefica pela qual a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

satildeo vistas por um acircngulo mais proacuteximo a partir do olhar de um de seus agentes

enquanto a instituiccedilatildeo ainda estava em atividade Trata-se do trabalho O Destacamento

de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de

combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e perspectivas apresentado em 1978 agrave Escola de

Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie

Perdigatildeo Pereira10

posteriormente apontado por ex-prisioneiros poliacuteticos como o

torturador ldquoNagibrdquo do DOI carioca do iniacutecio dos anos 1970

A referida fonte eacute uma espeacutecie de trabalho final da ECEME estabelecimento de

ensino tradicional do Exeacutercito brasileiro situado no bairro da Praia Vermelha no Rio de

Janeiro cuja missatildeo eacute a preparaccedilatildeo de oficiais superiores para o exerciacutecio de funccedilotildees

de Estado-Maior comando chefia direccedilatildeo e assessoramento dos mais elevados

escalotildees da Forccedila Terrestre 11

Logo eacute fruto de uma espeacutecie de preparaccedilatildeo que o

coronel Pereira estava se submetendo a fim de ocupar algum cargo de chefia dentro do

Exeacutercito

Escrita durante a ditadura militar enquanto os DOI-CODI ainda estavam em

funcionamento embora em menor atividade devido agrave propagaccedilatildeo de denuacutencias sobre

10

Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II 11

ESCOLA de Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) [acesso em 29 jan 2012] Disponiacutevel

em httpwwwecemeensinoebbreceme

58

torturas e mortes ocasionadas dentro do Destacamento a monografia permite trabalhar

diretamente com a visatildeo de um dos agentes do DOI-CODI ainda no ldquocalor da horardquo

como se costuma dizer O tema abordado eacute a atuaccedilatildeo dos DOI durante o seu periacuteodo de

maior efetividade de 1970 a 1973 provavelmente como uma tentativa de fortalecer a

instituiccedilatildeo e reforccedilar o seu poder trazendo agrave tona os ldquovelhos temposrdquo de grande

atividade

Em 1978 momento em que a monografia foi escrita o DOI-CODI havia

diminuiacutedo suas atividades de repressatildeo se restringindo apenas ao papel de investigaccedilatildeo

Como indica o referido coronel no seguinte trecho

Fruto principalmente do trabalho anocircnimo e incansaacutevel dos DOI o

terrorismo no Brasil foi praticamente aniquilado Em funccedilatildeo disso tais

oacutergatildeos foram e continuam sendo alvo de uma das mais virulentas campanhas

difamatoacuterias que a imprensa brasileira e internacional jaacute desencadearam

contra uma instituiccedilatildeo E os DOI que surgiram no fragor da luta e com

estrutura adaptada para enfrentar a accedilatildeo direta no combate aberto

reformulam a sua atuaccedilatildeo [] O efetivo elevado trabalhando atualmente na

Seccedilatildeo de Investigaccedilotildees pode dar ideia do tipo de trabalho que ora eacute

desenvolvido nos DOI com prioridade absoluta Trata-se do levantamento

total das organizaccedilotildees atuantes a partir da vigilacircncia permanente e cerrada

sobre os elementos jaacute identificados [] o trabalho nos DOI deixou de ter

aquele caraacuteter de combate de peito aberto tantas vezes levado a efeito por

seus pioneiros Transformou-se o DOI atual numa verdadeira agecircncia de

informaccedilotildees onde impera o trabalho frio e calculado do analista a teacutecnica

sofisticada de aparelhagem eletrocircnica substituindo a coragem pessoal de

seus elementos

Os DOICODI satildeo e sempre seratildeo as sentinelas atentas e vigilantes de nossa

liberdade (Pereira 1978 28-35)

Essa mudanccedila promovida nos DOI se relaciona diretamente com o momento

vivido pelo Brasil em 1978 Existia entatildeo uma incompatibilidade entre a distensatildeo

59

poliacutetica ldquolenta gradual e segurardquo comandada pelo Presidente Ernesto Geisel a fim de

abrir o paiacutes e instalar futuramente uma democracia e as denuacutencias sobre torturas e

mortes que continuavam a ocorrer dentro dos DOI-CODI e eram com frequecircncia

noticiadas pelos jornais do Brasil e do mundo Assim com o intuito de reverter este

cenaacuterio desfavoraacutevel Geisel optou por exonerar em 1976 o comandante do II Exeacutercito

o general Ednardo DAacutevila Melo afastar do governo no ano seguinte o entatildeo ministro

do Exeacutercito o general Siacutelvio Frota ndash visto por muitos agentes dos DOI como uma

lideranccedila contra a distensatildeo poliacutetica e o enfraquecimento das operaccedilotildees repressoras e

apoiado como eventual candidato agrave Presidecircncia da Repuacuteblica ndash e de forma geral

diminuir a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI no combate direto agrave ldquosubversatildeordquo concentrando suas

atividades apenas na investigaccedilatildeo

Esta atitude logicamente causou resistecircncia entre muitos integrantes dos DOI-

CODI que tentavam provar a necessidade da atuaccedilatildeo repressora da instituiccedilatildeo para a

proteccedilatildeo da Seguranccedila Nacional Essas tentativas incluiacuteam muitas accedilotildees forjadas pelos

proacuteprios agentes dos DOI como atentados a bomba em bancas de jornal instituiccedilotildees que

lutavam contra a ditadura ndash como a sede da OAB no Rio de Janeiro atacada em agosto

de 1980 quando morreu a secretaacuteria Lyda Monteiro ndash e shows populares ndash como a

tentativa frustrada de ataque a bomba de dois agentes do DOI do Rio de Janeiro em

maio de 1980 no show em homenagem ao dia do trabalhador no Riocentro

Outro aspecto dessa fonte que merece tambeacutem ser aqui destacado satildeo as

circunstacircncias pessoais que impulsionaram a sua confecccedilatildeo Afinal se a funccedilatildeo da

ECEME eacute preparar militares para ocupar cargos de chefia dentro do Exeacutercito

certamente a monografia foi um requisito necessaacuterio para que o coronel Pereira se

preparasse para uma promoccedilatildeo na carreira militar Partindo dessa informaccedilatildeo e

juntando-a ao dado que Elio Gaspari apresenta na obra A Ditadura Escancarada (2002

60

184) de que foi oferecido ao mesmo coronel no iniacutecio de 1980 o posto de general de

brigada percebe-se que de fato essa preparaccedilatildeo de Pereira lhe gerou frutos Poreacutem de

acordo com Gaspari para ser general de brigada ele teria que aceitar comandar uma

tropa em uma unidade militar de Satildeo Paulo o que natildeo lhe agradou Preferiu entatildeo a

opccedilatildeo de ir para a reserva e ao mesmo tempo permanecer como contratado em um

cargo na seccedilatildeo de operaccedilotildees do SNI do Rio de Janeiro recebendo no total uma receita

superior agrave de general de Exeacutercito Essa situaccedilatildeo tal como o tema escolhido para sua

monografia eacute mais uma evidecircncia do apreccedilo que coronel Pereira tinha pelo ofiacutecio

investigativo que outrora exerceu nos DOI Diante de sua progressatildeo profissional e do

esvaziamento que os DOI vinham sofrendo o SNI12

se tornava uma opccedilatildeo atraente

pois aleacutem de ser uma instituiccedilatildeo que investigava elementos que ameaccedilavam a

Seguranccedila Nacional estava diretamente ligada ao alto esquadratildeo do Exeacutercito ciacuterculo de

que Pereira fazia parte nesse momento

Com relaccedilatildeo agrave monografia desse coronel muitos pontos interessantes satildeo

destacados Entre eles o detalhamento estrutural dos DOI-CODI

Internamente os CODI eram subdivididos entre trecircs centrais 1- Central de

Informaccedilotildees 2- Central de Operaccedilotildees 3- Central de Assuntos Civis O comando

principal era da 1- Central de Informaccedilotildees que coordenava as investigaccedilotildees locais e

era chefiada pelo dirigente do CODI ou seja pelo chefe do Estado-Maior do Exeacutercito

da aacuterea que deveria ser um general do Exeacutercito Este reunia em sua equipe um

representante local do alto escalatildeo da Aeronaacuteutica da Marinha do SNI e do

Departamento de Poliacutecia Federal o diretor do DOPS e o Comandante do DOI daquela

jurisdiccedilatildeo aleacutem do chefe da 2ordf Seccedilatildeo da Poliacutecia Militar responsaacutevel pela parte de

informaccedilotildees relativas a crimes poliacuteticos Jaacute a 2- Central de Operaccedilotildees e a 3- de

12

Para mais informaccedilotildees sobre a formaccedilatildeo do SNI ver Antunes 2002

61

Assuntos Civis davam suporte agrave equipe da 1- de Informaccedilotildees e para tanto tambeacutem

congregavam em suas equipes representantes das trecircs Forccedilas sendo um representante

do Exeacutercito da Regiatildeo Militar correspondente responsaacutevel por ocupar o cargo de chefe

aleacutem de um representante credenciado da Poliacutecia Civil da Poliacutecia Militar local e de

outros oacutergatildeos quando fosse necessaacuterio para contribuir com alguma anaacutelise especiacutefica

O CODI de cada Regiatildeo Militar tinha por funccedilatildeo centralizar as informaccedilotildees de

caraacuteter ldquosubversivordquo e repassaacute-las ao DOI correspondente para que as operaccedilotildees de

informaccedilotildees fossem realizadas de forma concentrada atraveacutes desse uacutenico oacutergatildeo e por

conseguinte sob um uacutenico comando Assim evitava-se que vaacuterios oacutergatildeos de informaccedilatildeo

ligados a uma das trecircs Forccedilas ou agraves Poliacutecias realizassem suas operaccedilotildees

independentemente de qualquer coordenaccedilatildeo ou planejamento global o que poderia

acabar prejudicando as accedilotildees contra seus ldquoinimigos internosrdquo

Afinal de acordo com as informaccedilotildees levantadas por Pereira em sua monografia

antes dos DOI-CODI serem institucionalizados natildeo foram poucas as vezes que um

desses oacutergatildeos prejudicou a atuaccedilatildeo de outro Em diversos momentos enquanto um

estava realizando uma vigilacircncia sobre determinados elementos ldquosubversivosrdquo por

exemplo outro sem saber da accedilatildeo do primeiro prendia dois ou trecircs desses elementos

Dessa forma os demais membros da mesma organizaccedilatildeo ao saberem da prisatildeo de seus

companheiros natildeo retornavam agrave aacuterea sob vigiacutelia e evitavam ser presos Tambeacutem em

vaacuterias ocasiotildees a documentaccedilatildeo apreendida por determinado oacutergatildeo de seguranccedila ficava

em seu poder e natildeo era encaminhada para outros escalotildees para ser analisada Com essas

informaccedilotildees ldquoencostadasrdquo as accedilotildees armadas de organizaccedilotildees de esquerda que ali

estavam indicadas prosseguiam normalmente sem impedimentos

Percebe-se portanto como a centralizaccedilatildeo de informaccedilotildees e de accedilotildees de

seguranccedila interna implantada pelos DOI-CODI conduziu a resultados positivos para a

62

repressatildeo Natildeo eacute agrave toa que conforme analisado anteriormente a partir da tese de Maria

Celina DrsquoArauacutejo os DOI-CODI satildeo aqui entendidos como a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo

jaacute que os CODI passaram a concentrar e coordenar as informaccedilotildees e atraveacutes dos DOI a

executar de forma concentrada as operaccedilotildees de informaccedilotildees

Oacutergatildeos operacionais dos CODI os Destacamentos de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees

os DOI eram destinados ao trabalho de combate direto ao ldquoinimigo internordquo Para tanto

conforme analisado a partir da monografia de Pereira e da jaacute referida obra de Fico13

os

DOI dividiam-se basicamente entre 1- Setor de operaccedilotildees de informaccedilotildees e 2- Setor de

administraccedilatildeo Tais setores estavam diretamente subordinados ao comandante do

Destacamento daquela Regiatildeo Militar que normalmente deveria ser um tenente-coronel

com vivecircncia na aacuterea de informaccedilotildees Essa patente de tenente-coronel compunha o

ciacuterculo hieraacuterquico de oficiais e a hierarquia de oficiais superiores14

ou seja pertencia

ao acircmbito de convivecircncia desses oficiais e portanto era considerado um deles Isto

significa que os comandantes dos DOI estavam um degrau abaixo do uacuteltimo acircmbito

hieraacuterquico do Exeacutercito o dos oficiais-generais ciacuterculo referente aos chefes dos CODI

que deveriam possuir a patente de general de Exeacutercito

Chefiado pelo subcomandante do DOI o 1- Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees

tinha diretamente subordinado a ele 11- Setor de Investigaccedilatildeo 12- Setor de Anaacutelise e

Informaccedilotildees e 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo Jaacute o 2- Setor de administraccedilatildeo se

subdividia em 21- Assessoria Juriacutedica e Policial e 22- Seccedilatildeo administrativa

Ao 11- Setor de Investigaccedilatildeo cabia fundamentalmente a realizaccedilatildeo de

investigaccedilotildees com a finalidade de identificar e localizar ldquoelementos subversivosrdquo a fim

de repassar as informaccedilotildees para que os agentes da 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo

prendessem os suspeitos e localizassem os seus ldquoaparelhosrdquo (termo designado para

13

Para visualizar o organograma dos DOI voltar agrave paacutegina 54 14

Para mais informaccedilotildees sobre os ciacuterculos hieraacuterquicos e a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II

63

definir o local em que ficavam escondidos os integrantes dos grupos de esquerda que

viviam na clandestinidade) A chefia e a subchefia do 11- Setor de Investigaccedilatildeo era

privativa de oficiais do Exeacutercito e seus integrantes natildeo deveriam ser identificados pelos

elementos a serem presos a fim de que a eficiecircncia da accedilatildeo fosse garantida uma vez que

as suas identificaccedilotildees poderiam ocasionar a fuga dos suspeitos No entanto quando a

situaccedilatildeo exigia os integrantes desse setor poderiam efetuar prisotildees neutralizar

ldquoaparelhosrdquo e apreender material ldquosubversivordquo Esse 11- Setor de Investigaccedilatildeo agia por

meio de diversas turmas de investigaccedilatildeo compostas cada uma por um agente um

auxiliar e um carro normalmente da marca Volkswagen

O 12- Setor de Anaacutelise e Informaccedilotildees tinha por funccedilatildeo fornecer ao comandante

do DOI e aos demais setores seccedilotildees e subseccedilotildees informaccedilotildees estudos e conclusotildees

sobre as organizaccedilotildees ldquosubversivo-terroristasrdquo que atuavam na aacuterea Esse setor era

composto por um chefe sem patente ou ciacuterculo hieraacuterquico preacute-determinados pela

121- Subseccedilatildeo de anaacutelise e pela 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio

A 121- Subseccedilatildeo de anaacutelise tambeacutem natildeo exigia de forma predeterminada a

patente ou o ciacuterculo hieraacuterquico de quem a chefiasse Tinha por funccedilatildeo analisar os

depoimentos prestados pelos presos daquele DOI analisar o material das organizaccedilotildees

ldquoterroristasrdquo que havia sido recolhido pelas turmas da 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo

fornecer subsiacutedios ao chefe do 1- Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees e agrave equipe da

122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio manter para cada organizaccedilatildeo de esquerda uma pasta

com o seu histoacuterico relaccedilatildeo de nomes e codinomes relaccedilatildeo de accedilotildees e uma espeacutecie de

aacutelbum contendo as fichas de qualificaccedilatildeo fotografia atuaccedilatildeo e situaccedilatildeo de cada um de

seus elementos e por fim organizar atualizar e manter o arquivo geral contendo o

dossiecirc de cada elemento fichado

64

Jaacute a 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio era responsaacutevel pelo interrogatoacuterio e por

conseguinte pela aplicaccedilatildeo de torturas nos presos a fim de fazecirc-los falar o que sabiam

Seu chefe deveria ser um oficial do Exeacutercito de niacutevel de capitatildeo ou seja deveria

pertencer ao ciacuterculo hieraacuterquico de oficiais mas natildeo ao meio de oficiais superiores e

sim ao de oficiais intermediaacuterios No entanto a partir do ano de 1971 era preferiacutevel que

ele tivesse o curso B1 da Escola Nacional de Informaccedilotildees (EsNI) Este curso era uma

espeacutecie de especializaccedilatildeo em informaccedilotildees e seguranccedila interna ministrada pela EsNI

escola que havia sido criada pelo SNI durante o ano de 1971 e era a este subordinada

Como a 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio trabalhava ininterruptamente durante 24

horas ela se dividia em trecircs turmas de interrogatoacuterio preliminar cada uma chefiada

tambeacutem por um capitatildeo do Exeacutercito com o curso B1 da EsNI Essas turmas eram

compostas por seis agentes cada e aleacutem disso subordinada ao chefe de cada uma delas

existia uma turma auxiliar encarregada da carceragem e da datilografia de documentos

Jaacute a 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo tinha por ofiacutecio efetuar prisotildees ldquocobrir

pontosrdquo (preparar uma emboscada para prender os militantes esquerdistas no momento

em que se encontravam em algum ponto anteriormente combinado) neutralizar

ldquoaparelhosrdquo apreender material ldquosubversivordquo coletar dados que possibilitassem o

levantamento de elementos ldquosubversivosrdquo conduzir presos ao DOPS auditorias

hospitais etc O chefe deveria ser um oficial do Exeacutercito sem predeterminaccedilatildeo de

patente militar e sua equipe se dividia em trecircs grupamentos ldquoAB e Crdquo Cada um deles

era composto por quatro turmas de busca e apreensatildeo que tinham cerca de trecircs ou cinco

agentes e possuiacuteam cada uma um carro espaccediloso muitas vezes dos modelos C14 Opala

ou Kombi equipado com raacutedio Aleacutem disso a 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo

tambeacutem era composta por quatro turmas de coletas de dados que tinham por missatildeo

reunir informaccedilotildees sobre os ldquosubversivosrdquo em universidades coleacutegios etc Cada uma

65

dessas turmas era constituiacuteda por dois elementos um oficial da PM da regiatildeo ou um

delegado de poliacutecia e um motorista que normalmente dirigia um carro de marca

Volkswagen com raacutedio

Ligada ao 2- Setor de administraccedilatildeo a 22- Seccedilatildeo administrativa garantia o apoio

logiacutestico ao DOI ou seja organizava o pedido de gecircneros alimentiacutecios bem como

outros utensiacutelios e equipamentos necessaacuterios Esta seccedilatildeo natildeo tinha nenhum tipo de

exigecircncia de patente ou ciacuterculo hieraacuterquico para o cargo de chefe Jaacute a 21- Assessoria

Juriacutedica e Policial era chefiada por um delegado de poliacutecia e tinha por missatildeo

assessorar o Comandante do DOI em assuntos judiciais elaborar a documentaccedilatildeo

formal e legal referente ao material apreendido e agraves confissotildees dos prisioneiros e

controlar a menagem dos presos que fossem liberados

A menagem estipulada pelo Coacutedigo Processual Militar criado pelo decreto-lei

1002 de outubro de 1969 era uma espeacutecie de prisatildeo cautelar concedida ao militar ou

ao civil que tivesse praticado um crime de cunho militar com previsatildeo de pena privativa

de liberdade O local de cumprimento da menagem era a cidade onde residisse o

suspeito no momento do crime ou a sede do oacutergatildeo que tivesse investigando a sua accedilatildeo

Como a partir do AI-5 os suspeitos de crimes poliacuteticos passaram a ser julgados pela

Justiccedila Militar e o instituto do habeas corpus foi suprimido atraveacutes da menagem os

suspeitos detidos poderiam ser levados agrave sede do DOI-CODI da respectiva Regiatildeo

Militar Afinal era neste oacutergatildeo que as investigaccedilotildees sobre os crimes poliacuteticos de

determinada aacuterea se concentravam A menagem tinha por fundamento evitar o conviacutevio

do acusado ateacute o seu julgamento em primeira instacircncia com pessoas que jaacute estivessem

condenadas Dessa forma a validade da menagem terminava a partir da abertura de um

processo condenatoacuterio contra o suspeito quando entatildeo este seria transferido para uma

Delegacia de Poliacutecia tal como o DOPS por exemplo para ser enfim julgado e poder se

66

fosse o caso cumprir sua pena em um presiacutedio convencional Poreacutem ateacute isso acontecer

caso fosse enquadrado como um possiacutevel criminoso poliacutetico esse suspeito poderia ficar

detido no DOI correspondente por ateacute trinta dias podendo sua prisatildeo ainda ser

prorrogada por mais sessenta dias

A menagem era entatildeo um respaldo legal tanto para o isolamento do preso poliacutetico

nos quarteacuteis que sediavam os DOI quanto se fosse o caso para o acompanhamento de

sua vida em liberdade ateacute o dia de seu julgamento Caso fosse diagnosticado pelos

agentes do respectivo DOI que o suspeito jaacute tivesse concedido todas as informaccedilotildees que

tinha e natildeo representasse perigo agrave Seguranccedila Nacional a instituiccedilatildeo poderia solicitar ao

juiz a sua liberaccedilatildeo a fim de que a sua menagem fosse cumprida em liberdade Quando

isto ocorria o suspeito deveria ficar na mesma cidade que havia sido preso ateacute o seu

julgamento em primeira instacircncia

Diante dos organogramas dos CODI e dos DOI aqui traccedilados evidencia-se que

existiam diferenccedilas nas patentes hieraacuterquicas dos chefes de cada um desses oacutergatildeos

Enquanto o chefe dos CODI era o chefe de Estado-Maior do Exeacutercito de cada Regiatildeo

Militar ou seja um general de Exeacutercito que por conseguinte pertencia ao ciacuterculo

hieraacuterquico de oficiais-generais localizado no topo da hierarquia militar o chefe de

cada DOI era um tenente-coronel patente que se insere no ciacuterculo hieraacuterquico de

oficiais superiores ou seja imediatamente abaixo do de oficiais-generais Assim como

os DOI eram o braccedilo operacional dos CODI ou seja a eles subordinados o fato de seus

chefes estarem obrigatoriamente no ciacuterculo hieraacuterquico abaixo dos dirigentes dos CODI

leva a crer que dentro dos DOI-CODI havia de fato um respeito agrave hierarquia militar

Este respeito jaacute foi aqui destacado por meio da anaacutelise historiograacutefica baseada na

tese Maria Celina DrsquoArauacutejo (1994) que defende a ideia de que o princiacutepio da

obediecircncia hieraacuterquica apesar de velado existia nos DOI-CODI logo como a tortura

67

fazia parte de suas accedilotildees ela era consentida Afinal se laacute existiam chefias e nelas a

hierarquia militar era minimamente respeitada isso sinaliza que as accedilotildees eram

comandadas por chefes que tinham o consentimento de seus chefes diretos para darem

tal ordem Portanto a tortura impetrada pelas turmas de interrogatoacuterio preliminar era

consentida pelo capitatildeo que as chefiava pelo capitatildeo que comandava a respectiva

Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio a que elas estavam subordinadas pelo chefe do Setor de

Anaacutelise e Informaccedilotildees que chefiava o chefe dessa Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio pelo

subcomandante do DOI que era responsaacutevel pelo Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees a

que o Setor de Anaacutelise e Informaccedilotildees estava vinculado pelo tenente-coronel que

comandava o DOI e estava hierarquicamente acima do chefe do Setor de Anaacutelise e

Informaccedilotildees e pelo general do Exeacutercito que dirigia o CODI e tinha o comandante do

DOI a ele subordinado Logo o DOI-CODI foi construiacutedo de forma tatildeo centralizada que

a maioria das accedilotildees feitas por algum de seus integrantes passava por toda a cadeia

hieraacuterquica nele envolvida

Assim se torna mais uma vez evidente que a tortura como meacutetodo de

interrogatoacuterio quando utilizada pelos agentes do DOI era consentida por seus

superiores e natildeo um fenocircmeno isolado ou mesmo ldquoexcesso de poucosrdquo como muitos

militares costumam argumentar Esta argumentaccedilatildeo que aparentemente encontra

fundamento no alto grau de autonomia e independecircncia que os DOI possuiacuteam eacute

derrubada quando se evidencia que estes eram autocircnomos e independentes apenas em

relaccedilatildeo a batalhotildees e outras instituiccedilotildees militares Afinal os DOI foram programados

para atuar a par das subordinaccedilotildees preacute-existentes em outros oacutergatildeos podendo congregar

agentes de instacircncias militares poliacutecias e Forccedilas diferentes entre si mas sem deixar de

respeitar a hierarquia do Exeacutercito inserida em seu interior tendo por direccedilatildeo maacutexima o

Chefe de Estado-Maior do Exeacutercito

68

Outro ponto interessante que a caracterizaccedilatildeo do organograma dos DOI ajuda a

revelar eacute o fato do cargo de chefe da Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio ser privativo de um

oficial do Exeacutercito de niacutevel de capitatildeo ou seja que deveria pertencer ao ciacuterculo

hieraacuterquico de oficiais intermediaacuterios excluindo-se das atividades afeitas agrave posiccedilatildeo de

membros do ciacuterculo hieraacuterquico dos oficiais superiores e dos oficiais-generais onde se

encontravam os homens que governavam o paiacutes Logo por traacutes dessa condiccedilatildeo de

chefia havia a tentativa de manter a responsabilidade direta dos atos proferidos nessa

Subseccedilatildeo longe do ciacuterculo de oficiais superiores ou de oficiais-generais instacircncias

maacuteximas na hierarquia do Exeacutercito Dessa forma as torturas executadas durante os

interrogatoacuterios natildeo seriam relacionadas aos ocupantes das altas patentes do Exeacutercito

que durante a ditadura eram os que estavam agrave frente do governo brasileiro Essa

medida era portanto para dissociar a imagem dos governantes com o que ocorria nos

porotildees

No entanto eacute notaacutevel que indiretamente o governo ditatorial apoiasse as torturas

que as turmas de interrogatoacuterio preliminar executavam nos DOI-CODI uma vez que

obviamente os governantes tinham conhecimento sobre a determinaccedilatildeo de que os

agentes dessas turmas e os chefes da Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio deveriam ter

preferencialmente uma espeacutecie de especializaccedilatildeo em informaccedilotildees e seguranccedila

ministrada pela EsNI Nesta escola ndash ligada ao SNI que era composto pelas mais altas

patentes do Exeacutercito e diretamente ligado ao alto escalatildeo do governo ndash os alunos

provavelmente recebiam instruccedilotildees sobre os meacutetodos de tortura a serem aplicados

durante o serviccedilo

Aleacutem disso o fato do chefe e dos demais componentes da Subseccedilatildeo de

interrogatoacuterio serem ligados ao ciacuterculo de oficiais intermediaacuterios do Exeacutercito tambeacutem

vai ao encontro da anaacutelise historiograacutefica sobre a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

69

aqui apresentada a partir dos conceitos de Martins Filho de cizacircnia militar palaacutecio e

caserna Afinal a caserna era composta por militares de meacutedias e baixas patentes que

durante os primeiros anos da ditadura lutaram internamente por atuarem no combate ao

ldquoinimigo internordquo a fim de terem uma maior participaccedilatildeo na poliacutetica o que ocasionou

algumas cizacircnias militares Foi justamente por temer o resultado dessas cizacircnias que o

palaacutecio formado pelos militares de altas patentes que possuiacuteam cargos no governo aos

poucos cedeu esses poderes agrave caserna e assim o aparato de seguranccedila nacional foi

sendo instituiacutedo e dentro dele o SISSEGIN e os DOI-CODI Logo como eacute na

Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio e tambeacutem na Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo onde a atuaccedilatildeo

de interrogar torturar e prender traz os poderes poliacuteticos extras que a caserna

historicamente reivindicava percebe-se que a utilizaccedilatildeo de seus militares para compor

essas equipes era mais uma forma de manter a unidade militar contendo possiacuteveis

cizacircnias

Essa perspectiva torna-se completa quando se identifica que no momento em que

tais atribuiccedilotildees passaram a ser retiradas dos militares da caserna essas cizacircnias natildeo

mais puderam ser contidas Afinal conforme jaacute evidenciado anteriormente quando a

partir do governo de Geisel as atividades de busca apreensatildeo e interrogatoacuterio dos DOI

foram sendo abolidas a caserna passou a reagir posicionando-se contraacuteria agrave cuacutepula do

governo que defendia a abertura poliacutetica passando a apoiar a candidatura presidencial

de militares que defendessem a continuidade de tais atribuiccedilotildees aos DOI e ateacute mesmo

forjando situaccedilotildees terroristas tais como os diversos ataques a bomba que ocorreram na

eacutepoca como forma de endossar a necessidade das atuaccedilotildees repressivas desenvolvidas

pelos DOI

A monografia do coronel Pereira aqui analisada pode tambeacutem ser vista como

mais uma dessas reaccedilotildees da caserna Afinal durante toda a escrita de Pereira haacute uma

70

necessidade de comprovar a eficiecircncia dos DOI na atividade de proteger a seguranccedila

interna do paiacutes Percebe-se assim que Pereira apesar de ser coronel e por conseguinte

jaacute estar entre os oficiais superiores nesse momento ainda se via ligado de alguma forma

aos DOI Talvez porque a histoacuteria de sua carreira militar estivesse totalmente

relacionada com as atividades que ele laacute desempenhou e por isso acreditasse que

enquanto tais atividades continuassem sendo desenvolvidas o seu trabalho tambeacutem

continuaria a ser reconhecidamente importante

Os setores seccedilotildees e subseccedilotildees do DOI normalmente seguiam a configuraccedilatildeo aqui

exposta poreacutem nota-se que suas equipes natildeo eram fixas ou seja poderiam variar de

acordo com as necessidades das operaccedilotildees que surgissem Os DOI foram assim

concebidos como organismos instaacuteveis pois dependendo da gravidade e da quantidade

de accedilotildees armadas que deveriam ser reprimidas o nuacutemero de agentes poderia aumentar

ou diminuir Dessa forma os DOI se adaptavam a diversas circunstacircncias a fim de

combater com eficiecircncia o ldquoterrorismordquo e a ldquosubversatildeordquo

Grande parte dessa necessidade de adaptaccedilatildeo vinha da sobrevalorizaccedilatildeo da

guerrilha urbana entre os militares ligados a organismos de repressatildeo Uma vez que ao

verem a forma organizada e ousada com que a esquerda armada montava suas accedilotildees

sentiram que a estrutura repressiva da eacutepoca anterior agrave experiecircncia da Oban e ao

surgimento dos DOI natildeo estava preparada para combatecirc-las e diante disso

interpretaram tais accedilotildees esquerdistas como uma forte ameaccedila ao paiacutes Afinal as

instituiccedilotildees responsaacuteveis pela repressatildeo direta como por exemplo os DOPS estavam

engessadas por corporaccedilotildees fixas que combatiam as referidas accedilotildees de forma pouco

efetiva reprimindo-as sem a centralizaccedilatildeo e a grandiosidade necessaacuterias

A todos estes atos de banditismo [fazendo referecircncia a assaltos a banco a

sequestros de embaixadores e outras accedilotildees efetuadas pela esquerda armada

71

entre os anos de 1969 e 1970] a nossa Poliacutecia Civil e a Poliacutecia Militar

assistiam sem nada poder fazer Vaacuterias radiopatrulhas foram incendiadas e

os poucos soldados que ousavam enfrentar os terroristas eram

impiedosamente mortos Por que isso acontecia Porque as nossas poliacutecias

foram surpreendidas e natildeo estavam preparadas para um novo tipo de luta que

surgia a guerrilha urbana (Pereira 1978 10)

Entatildeo para conter a guerrilha urbana surgiu a necessidade de um oacutergatildeo de

repressatildeo centralizado e de estrutura maleaacutevel que tornasse possiacutevel e praacutetico reprimir

determinada accedilatildeo armada de acordo com a sua grandiosidade aumentando e diminuindo

o corpo funcional conforme o esforccedilo exigido Em meio a esta concepccedilatildeo de repressatildeo

a estrutura dos DOI foi criada tornando a repressatildeo poliacutetica mais combativa e

consequentemente aumentando a sua eficiecircncia

Com tamanha flexibilidade os DOI movimentavam pessoal e material variaacutevel

com grande mobilidade e agilidade Essa destacada autonomia dos DOI era travada

portanto em benefiacutecio de um aproveitamento maacuteximo de suas accedilotildees jaacute que eram

oacutergatildeos destinados ao combate direto agraves organizaccedilotildees subversivo-terroristas e sua

missatildeo era desmontar toda a estrutura de pessoal e de material destas organizaccedilotildees

bem como impedir a sua reorganizaccedilatildeo (Pereira 1978 22)

A utilizaccedilatildeo de codinomes pelos integrantes das turmas de interrogatoacuterio

preliminar era outra face dessa autonomia de trabalho dos DOI Esse costume era um

benefiacutecio de proteccedilatildeo para a instituiccedilatildeo e tambeacutem para tais militares Afinal como

muitos deles possivelmente aplicavam torturas nos presos durante os interrogatoacuterios o

sigilo com relaccedilatildeo aos seus nomes verdadeiros poderia inviabilizar posteriores

denuacutencias e por conseguinte fortes indiacutecios de que nos DOI a tortura era uma praacutetica

institucionalizada

Aleacutem disso essa mesma autonomia tambeacutem permitia que seus agentes para natildeo

serem reconhecidos pelos ldquoinimigosrdquo durante uma accedilatildeo de prisatildeo por exemplo natildeo

72

trabalhassem de farda e usassem trajes civis o que seria impensaacutevel em qualquer quartel

militar

Como norma de seguranccedila para o trabalho diaacuterio eacute obrigatoacuterio o uso de

traje civil (esporte ou social) de acordo com a missatildeo a desempenhar

Mesmo os oficiais e os comandantes de seccedilatildeo devem de preferecircncia usar

trajes esporte para se confundirem com a maioria dos integrantes do DOI

(Pereira 1978 25)

Os cabelos longos eram outra caracteriacutestica que apesar de improacutepria entre as

demais instituiccedilotildees militares a autonomia dos DOI imprimia a seus agentes conforme

evidenciado no seguinte trecho o cabelo deve ter o tamanho normalmente usado pela

maioria da populaccedilatildeo sendo proibido o cabelo com corte do ldquotipo militarrdquo (Pereira

1978 25) Percebe-se portanto que junto aos trajes civis os cabelos maiores

completavam o visual que os militares dos DOI precisavam ter para que evitassem ser

facilmente reconhecidos nas ruas Dessa forma tentavam minimizar os riscos de serem

percebidos durante uma operaccedilatildeo de investigaccedilatildeo ou minutos antes de efetuarem uma

accedilatildeo de prisatildeo Poreacutem apesar da utilizaccedilatildeo dessas caracteriacutesticas natildeo usuais ser em

benefiacutecio das funccedilotildees que exerciam nos DOI esses militares muitas vezes natildeo eram

compreendidos por aqueles que nas palavras de Pereira natildeo possuiacuteam uma

mentalidade de informaccedilotildees e por conta disso viam no uso do cabelo grande um ato de

indisciplina Essa incompatibilidade de interpretaccedilotildees portanto gerava alguns

transtornos para os agentes dos DOI que mesmo condecorados pela eficiecircncia de seus

serviccedilos de informaccedilotildees agraves vezes passavam por alguns constrangimentos

Jaacute aconteceu o fato de um oficial ou sargento de um DOI necessitar

comparecer a sua Unidade Militar a fim de tratar qualquer problema pessoal

ou mesmo de um assunto de serviccedilo Estes elementos eram barrados agrave

entrada de seus quarteacuteis e recebiam ordem dos comandantes para

73

regressarem cortarem o cabelo e a barba e se apresentarem fardados ou com

a posse de um documento de identidade assinado pelo Comandante do

Exeacutercito autorizando o uso do traje civil e o porte de arma Este

procedimento por parte de algumas autoridades militares daacute a entender que

os elementos do Serviccedilo de Informaccedilotildees satildeo indisciplinados

desenquadrados e sem espiacuterito militar Entretanto eacute necessaacuterio frisar que a

realidade eacute que por exemplo no DOI-CODI do II Exeacutercito [DOI-CODISP]

em trecircs anos 90 componentes foram condecorados com a medalha do

pacificador com palma (Pereira 1978 26)

A medalha do pacificador com palma eacute em tempo de paz a mais alta

condecoraccedilatildeo concedida pelo Comandante do Exeacutercito aos militares e civis brasileiros

que no exerciacutecio de sua funccedilatildeo ou no cumprimento de missotildees de caraacuteter militar

tenham se destacado por atos pessoais de abnegaccedilatildeo coragem e bravura com risco de

vida Portanto muitas vezes os agentes dos DOI que exerciam a funccedilatildeo de prender

integrantes de uma organizaccedilatildeo muito procurada de ldquodesmontar aparelhosrdquo de

destacada importacircncia investigativa ou mesmo de conseguir informaccedilotildees cruciais

durante interrogatoacuterios eram condecorados pelo Comandante do respectivo Exeacutercito

pelo serviccedilo prestado agrave paacutetria Logo percebe-se que mesmo existindo os

constrangimentos institucionais anteriormente citados os oficiais envolvidos nos DOI

eram prestigiados por seus serviccedilos e se sentiam valorizados e incentivados a designaacute-

los com rapidez e eficiecircncia

A partir disso evidencia-se mais uma vez que a tortura nos DOI era consentida

pelos militares superiores e ateacute mesmo incentivada pois atraveacutes do ldquoauxiacuteliordquo que

prestava aos interrogatoacuterios as informaccedilotildees poderiam ser mais faacutecil e rapidamente

conseguidas e grande quantidade de suspeitos presos ldquoaparelhos desmontadosrdquo e

materiais ldquosubversivosrdquo recolhidos Como a presteza desse serviccedilo era almejada tantos

pelos agentes dos DOI interessados no destaque e no reconhecimento militar quanto

74

por seus superiores que vislumbravam neutralizar o quanto antes a ameaccedila que o

ldquoinimigo internordquo representava para o governo ditatorial a tortura parecia ser nos DOI

um meio que se justificava pelos fins

Assim a centralizaccedilatildeo a flexibilidade a autonomia e o consentimentoincentivo agrave

tortura pautavam o ldquoeficienterdquo serviccedilo de repressatildeo dos DOI conforme se pode apurar a

partir dos dados do DOI-CODISP levantados ateacute 30 de junho de 1972 e apresentados

na monografia do coronel Pereira

Subversivos terroristas levantados no Brasil 4400

Quedas impostas pelos oacutergatildeos de seguranccedila no territoacuterio nacional 2800

Quedas impostas pelos oacutergatildeos de seguranccedila do II Exeacutercito (inclusive DOI-

CODI) 1600

Quedas impostas pelo DOI-CODI do II Exeacutercito 1400

Quedas impostas pelos outros oacutergatildeos de seguranccedila da aacuterea do II Exeacutercito

200

Periacuteodo de 23 de janeiro de 1969 a 30 de junho de 1972

Subversivo-terroristas que fizeram curso de guerrilha no exterior 340

Subversivo-terroristas que fizeram curso de guerrilha em Cuba 240

Situaccedilatildeo dos 4400 subversivo-terroristas levantados

Foragidos 1600

Liberados 900

Mortos em combate 100

Presos 1490

Banidos 140

Estes resultados vecircm demonstrar a eficiecircncia operacional do destacamento

neste tipo de guerra especial Natildeo eacute agrave toa que os inimigos assim reconhecem

ao destacamento esta assertiva encontrada na revista Times e no panfleto

Quinzenal (maio de 76) distribuiacutedos recentemente

ldquoSatildeo Paulo criou a mais eficiente e admiraacutevel maacutequina repressiva vista ateacute

hoje no mundo ndash a Operaccedilatildeo Bandeirantes que comeccedilou como uma alianccedila

temporaacuteria entre a poliacutecia local as vaacuterias seccedilotildees de inteligecircncia das trecircs

forccedilas armadas e o SNIrdquo (Pereira 1978 27)

75

Entretanto esse perigoso poder excepcional dos DOI-CODI tomou proporccedilotildees

grandiosas Em meados dos anos 1970 mais especificamente apoacutes o fim da guerrilha do

Araguaia no iniacutecio de 1974 as organizaccedilotildees clandestinas armadas estavam derrotadas

e em contrapartida os DOI-CODI se encontravam em pleno vapor com sua atuaccedilatildeo e

seu aparato institucional ampliado e especializado Tornou-se dessa forma

indispensaacutevel para a sobrevivecircncia do SISSEGIN encontrar novos ldquoinimigos internosrdquo

O foco de ameaccedila passou entatildeo a ser o envolvimento de elementos do Partido

Comunista Brasileiro (PCB) no Movimento Democraacutetico Brasileiro (MDB) partido de

oposiccedilatildeo consentida pelo governo e a atuaccedilatildeo repressiva dos DOI-CODI encontrou

argumentos para continuar em atividade Poreacutem como a declarada ldquoguerra internardquo

havia se esgotado e o paiacutes jaacute se preparava para dar lugar a um futuro democraacutetico o

poder de accedilatildeo dos DOI-CODI comeccedilou a parecer abusivo e negativo ao regime Diante

disso muitas foram as tentativas da caserna e dos demais militares a ela relacionados de

provar a importacircncia e a necessidade dos DOI-CODI para a defesa do paiacutes entre elas a

monografia aqui analisada No entanto tais tentativas natildeo conseguiram evitar que esses

oacutergatildeos sofressem num primeiro momento a reduccedilatildeo de suas atividades e no iniacutecio da

deacutecada de 1980 a extinccedilatildeo

3 O DOI-CODI pelos prisioneiros

Enfim na uacuteltima frente de estudo deste capiacutetulo a anaacutelise sobre a formaccedilatildeo e a

atuaccedilatildeo dos DOI-CODI recai sobre a memoacuteria de seis de seus ex-prisioneiros poliacuteticos

Vale lembrar que estes estiveram detidos no DOI-CODI do Rio de Janeiro durante o

segundo semestre do ano de 1970 e suas memoacuterias foram narradas recentemente entre

os anos de 2002 e 2004 quando foram por mim entrevistados Assim o trabalho sobre

esses depoimentos aqui se concentra na interpretaccedilatildeo que fazem a partir da construccedilatildeo

76

de suas memoacuterias sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI e em como suas

perspectivas dialogam com a frente historiograacutefica e com a monografia do coronel

Pereira abordadas anteriormente

Como o objetivo aqui traccedilado eacute analisar as diversas maneiras pelas quais a

historiografia o coronel Pereira e os presos veem a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-

CODI optou-se por apresentar as trajetoacuterias dos entrevistados no proacuteximo capiacutetulo

Essas junto com o conteuacutedo aqui levantado constroem as bases para a anaacutelise travada

na parte final da presente dissertaccedilatildeo onde se aborda a partir de um estudo mais

concentrado nas memoacuterias dos ex-prisioneiros entrevistados o cotidiano do DOI-

CODIRJ

Entretanto a fim de utilizar essas memoacuterias para a abordagem dialeacutetica aqui

desenhada natildeo pode ser dispensada a aplicaccedilatildeo de um olhar criacutetico tiacutepico a anaacutelises

histoacutericas problematizando-as de forma a perceber suas lacunas e modificaccedilotildees

decorrentes do tempo Tais memoacuterias satildeo inconscientemente fluidas pois estatildeo

diretamente ligadas a emoccedilotildees aleacutem de sofrerem muitas influecircncias do momento em

que satildeo narradas conforme bem elucida Pierre Nora (1993)

A memoacuteria eacute a vida sempre carregada por grupos vivos e nesse sentido ela

estaacute em permanente evoluccedilatildeo aberta agrave dialeacutetica da lembranccedila e do

esquecimento inconsciente de suas deformaccedilotildees sucessivas vulneraacutevel a

todos os usos e manipulaccedilotildees suscetiacutevel de longas latecircncias e de repentinas

revitalizaccedilotildees A histoacuteria eacute a reconstruccedilatildeo sempre problemaacutetica e incompleta

do que natildeo existe mais A memoacuteria eacute um fenocircmeno sempre atual um elo

vivido no eterno presente a histoacuteria uma representaccedilatildeo do passado (Nora

1993 9)

Eacute portanto imprescindiacutevel para este estudo perceber que por traacutes dessa fluidez

das memoacuterias dos depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ age um

77

elemento fundamental o presente Logo a feliz expressatildeo de Robert Frank (1999) o

presente do passado elucida a anaacutelise de forma a colocar em destaque a forte influecircncia

que a temporalidade vivida no momento em que as entrevistas foram concedidas tem

para a construccedilatildeo de suas narrativas

Trata-se de fontes que estatildeo marcadas pelo proacuteprio presente inerentes a ele

qualquer que seja a eacutepoca os depoimentos de testemunhas vivas as fontes

orais Aiacute haacute a contemporaneidade intriacutenseca entre o historiador e o ator

(Frank 1999 103)

Por isso eacute aqui crucial considerar o momento das entrevistas Afinal entre 2002 e

2004 o Brasil jaacute vivia uma democracia consolidada onde antigos oposicionistas agrave

ditadura militar se encontravam no poder Fernando Henrique Cardoso exilado no Chile

ateacute o ano de 1968 e na deacutecada de 1970 apoiador convicto do Movimento Democraacutetico

Brasileiro (MDB) havia sido presidente do Brasil entre os anos de 1995 e 2002 Jaacute

Lula ex-liacuteder sindical que havia comandado algumas das mais importantes greves na

virada das deacutecadas de 1970 para 1980 venceu a campanha presidencial em 2002 e se

tornou no ano seguinte o primeiro ex-operaacuterio a presidir o paiacutes Aleacutem disso as pastas

ministeriais de seu governo foram formadas por antigos opositores agrave ditadura tal como

o ex-liacuteder do movimento estudantil Joseacute Dirceu e a partir de 2005 por Dilma

Rousseff ex-militante de duas das organizaccedilotildees de esquerda que optaram na eacutepoca pela

luta armada o Comando de Libertaccedilatildeo Nacional (COLINA) e a Vanguarda Armada

Revolucionaacuteria Palmares (VAR-Palmares) Logo pode-se dizer que com relaccedilatildeo agrave

memoacuteria poliacutetica de vencidos nos anos de chumbo da ditadura os depoentes se

transformaram em vencedores nos tempos democraacuteticos e obviamente a leitura do

passado de prisatildeo e tortura foi iluminada por esse presente

78

Ressalte-se ainda que os depoimentos se vinculavam agrave implantaccedilatildeo da Comissatildeo

de Anistia por meio da Lei nordm 1055902 que atribuiacutea ao Estado a funccedilatildeo de anistiar e

reparar financeiramente todos os cidadatildeos que tivessem vivenciado quaisquer atos de

exceccedilatildeo incluindo torturas prisotildees arbitraacuterias demissotildees e transferecircncias por razotildees

poliacuteticas ocorridas durante o periacuteodo de 18 de setembro de 1946 ateacute 5 de outubro de

1988 Afinal a reparaccedilatildeo soacute poderia ser concedida pela Comissatildeo de Anistia apoacutes a

anaacutelise de um requerimento contendo as memoacuterias das viacutetimas sobre o periacuteodo em

questatildeo escritas individualmente Como na eacutepoca alguns dos depoentes jaacute haviam

construiacutedo suas memoacuterias prisionais para compor o referido requerimento este deve ser

considerado como um importante fator de influecircncia sobre as narrativas de suas

entrevistas

Em contraste com o que foi apresentado a partir da abordagem historiograacutefica e da

monografia do coronel Pereira Fernando Palha Freire um dos ex-prisioneiros do DOI-

CODIRJ destaca a importacircncia da contribuiccedilatildeo inicial dada pelos policiais civis do

DOPS para a utilizaccedilatildeo da violecircncia em favor da extraccedilatildeo de informaccedilotildees Afinal por

mais que os oacutergatildeos de repressatildeo anteriores agrave criaccedilatildeo dos DOI-CODI natildeo estivessem

devidamente preparados para combater as accedilotildees efetuadas pela esquerda armada seus

agentes de fato haviam acumulado uma experiecircncia em interrogatoacuterios Esta num

primeiro momento era importante uma vez que os militares ateacute entatildeo concentravam

sua formaccedilatildeo sobre a atuaccedilatildeo na guerra declarada natildeo possuindo as maliacutecias

necessaacuterias aos interrogatoacuterios

[] a Poliacutecia Civil tinha os caras mais preparados pra tortura mesmo

Porque jaacute vinham haacute muitos anos jaacute tinham a praacutetica da tortura O militar

batia de frente ele era capaz de te matar mas ele ainda natildeo tinha digamos o

seguinte a essecircncia da tortura Por exemplo um coronel virou pro cara e

disse assim - ldquoO senhor eacute um comunistardquo aiacute ele disse assim - ldquoE o senhor eacute

79

uma bestardquo Ele matou o cara quer dizer matou sem colher o que queria

Um policial civil poderia ateacute matar o cara mas antes colheria o que queria

eles tinham a praacutetica da tortura Depois os militares se aperfeiccediloaram []

(Freire 28 jun 2004)

No entanto indo ao encontro do que foi abordado pelas outras duas frentes de

estudo aqui traccediladas Ceciacutelia Coimbra tambeacutem ex-prisioneira do DOI-CODIRJ

evidencia a eficiecircncia desse oacutergatildeo com relaccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo A partir de uma situaccedilatildeo

especiacutefica de sua prisatildeo ela percebe como o niacutevel de organizaccedilatildeo do serviccedilo de

informaccedilotildees dos DOI era superior ao do DOPS

Fomos presos eu e meu marido e levados para o DOPS em agosto de 1970

[] quando deram vistoria laacute em casa encontraram um documento que por

ironia do destino era sobre seguranccedila [] Eu fiquei dois dias e meio no

DOPS sendo interrogada sobre o tal documento que nem eu nem o Novaes

falaacutevamos diziacuteamos que natildeo sabiacuteamos de onde era Dois dias e meio depois

quando noacutes fomos para o DOI-CODI logo eles identificaram de onde era o

documento Para vocecirc ver o niacutevel de competecircncia do serviccedilo de informaccedilotildees

do DOI-CODI comparado ao do DOPS O DOPS era ldquomerdinhardquo comparado

com a eficiecircncia do DOI-CODI (Coimbra 30 nov 2004)

Percebe-se assim tanto pela historiografia e pela monografia do coronel Pereira

quanto pela memoacuteria de ex-prisioneiros poliacuteticos que a centralizaccedilatildeo de informaccedilotildees

nos CODI e a relaccedilatildeo direta que esses travavam com os DOI traziam uma agilidade agraves

anaacutelises que natildeo havia nos demais oacutergatildeos Logo a forma centralizada e orquestrada

com que os DOI-CODI agiam significava uma profissionalizaccedilatildeo cada vez maior da

repressatildeo poliacutetica ou seja a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo

Assim apesar de serem instituiccedilotildees distintas a atuaccedilatildeo dos CODI e dos DOI

estavam totalmente interligadas Como apurado por meio do estudo historiograacutefico e

dos dados contemplados na monografia do coronel Pereira enquanto aos CODI cabia

80

concentrar e analisar as informaccedilotildees sobre a seguranccedila interna de suas Regiotildees

Militares aos DOI cabia a partir das informaccedilotildees passadas pelos CODI atuar

diretamente na repressatildeo aos ldquoinimigos internosrdquo e extrair de seus prisioneiros poliacuteticos

informaccedilotildees a serem repassadas aos CODI Diante dessa forte ligaccedilatildeo essas duas

instituiccedilotildees ficaram conhecidas como se fossem um uacutenico oacutergatildeo por meio da sigla

DOI-CODI Essa simbiose entre os CODI e os DOI ficou marcada sobretudo nas

memoacuterias de suas viacutetimas conforme se pode verificar no seguinte trecho

[] tenta entender o que eacute DOI-CODI o DOI-CODI eacute uma instituiccedilatildeo

montada por diversos oacutergatildeos de repressatildeo que funcionava [no Rio de

Janeiro] no quartel da PE [1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito] (Pandolfi 5

fev 2003)

De acordo com os seis entrevistados assim como indicado pela a anaacutelise das

demais frentes de estudo do presente capiacutetulo a praacutetica de tortura era corriqueira nos

interrogatoacuterios dos DOI Esse fato inclusive poderia ser associado agrave sua proacutepria

designaccedilatildeo que na forma abreviada se apresenta sob a sigla DOI correspondendo

sugestivamente agrave conjugaccedilatildeo do verbo doer na terceira pessoa do singular

Soube que ningueacutem entrava no DOI-CODI sem sofrer algum tipo de tortura

fiacutesica ou psicoloacutegica mas principalmente a fiacutesica e realmente natildeo creio

que algueacutem tenha passado por laacute imune agrave tortura [] Quando a gente chega

ao DOI-CODI chega logo tomando porrada Natildeo tinha essa histoacuteria de meu

senhor era tapa Tapa choque eleacutetrico pau de arara a isso tudo eu fui

submetido O primeiro interrogatoacuterio que natildeo eacute um interrogatoacuterio formal

judicial eacute feito sob essas condiccedilotildees Depois bem depois eacute que eu fui ser

interrogado no DOPS em outras condiccedilotildees [] Eu fui torturado mesmo na

Rua Baratildeo de Mesquita na PE laacute sim eu fui bastante torturado []

(Carvalho 12 set 2002)

81

[] laacute na PE vocecirc natildeo fazia nada a natildeo ser ficar esperando o tempo para ser

interrogada para ser torturada [] (Pandolfi 5 fev 2003)

Laacute no DOI-CODI comia tudo choque pau-de-arara afogamento pancada

Laacute que eu descobri esse termo que fulano virou presunto neacute Porque vocecirc

fica igual a um presunto mesmo porque eles te datildeo pancadas localizadas []

(Freire 28 jun 2004)

[] laacute no DOI-CODI tinha todo tipo de torturas desde choques eleacutetricos na

matildeo direita esquerda peacute esquerdo Eu sofri isso tambeacutem (Prigol 28 set

2004)

[] o meu negoacutecio era ganhar tempo e o deles era conseguir informaccedilatildeo A

luta eacute essa nos primeiros dias eacute vocecirc dar o miacutenimo de informaccedilotildees e eles

querendo arrancar o maacuteximo de informaccedilatildeo neacute Aiacute eles vecircm com a maacutexima

de que torturar eacute investigar (risos) E daiacute se precisar ateacute a morte o negoacutecio

eacute conseguir informaccedilatildeo (Batista 17 nov 2004)

[] onde eram os choques eleacutetricos que na PE eles davam eles me

molhavam toda para o choque ser mais intenso e botavam principalmente

nas partes onde eram mais sensiacuteveis como ouvido nariz boca bico do

peito vagina acircnus[] o choque eleacutetrico eacute indescritiacutevel porque vocecirc perde a

noccedilatildeo do tempo e todo e qualquer controle da bexiga e dos intestinos []

(Coimbra 30 nov 2004)

Portanto ali a incumbecircncia era operar a extraccedilatildeo de informaccedilotildees e para isso a

tortura como meacutetodo era utilizada pelos agentes das turmas de interrogatoacuterio

preliminar Afinal em uma ponta da sofisticaccedilatildeo repressiva apresentada pelos DOI-

CODI estava a concentraccedilatildeo de informaccedilotildees dos CODI e na outra a agilidade que a

extraccedilatildeo de informaccedilotildees possibilitada principalmente pelo uso das torturas durante os

interrogatoacuterios dos presos dava agraves operaccedilotildees de busca e apreensatildeo de mais ldquoelementos

subversivosrdquo

82

A partir dos depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados assim como

da anaacutelise da historiografia selecionada e dos dados trazidos pelo coronel Pereira em sua

monografia percebe-se que os DOI-CODI ocupavam somente uma parte dos quarteacuteis

do Exeacutercito onde se localizavam e na parte restante o funcionamento desses quarteacuteis

continuava normalmente Os DOI-CODI eram portanto prisotildees atiacutepicas diferentes das

convencionais construiacutedas desde o iniacutecio para acomodar prisioneiros Assim eacute coerente

que o serviccedilo de carceragem nos DOI-CODI fosse executado pelos soldados que

serviam ao proacuteprio quartel jaacute que esse era apenas um serviccedilo de apoio um auxiacutelio natildeo

agrave toa feito por agentes de turmas que eram intituladas auxiliares

Os soldados que serviam ao quartel a quem era atribuiacutedo o serviccedilo de

carceragem eram conhecidos no DOI-CODIRJ por ldquocatarinasrdquo devido a suas

caracteriacutesticas fiacutesicas e tambeacutem ao sotaque tiacutepico ao estado de Santa Catarina Os

ldquocatarinasrdquo eram identificados como soldados devido ao fato dos agentes propriamente

do DOI-CODIRJ normalmente andarem a paisana enquanto eles usavam farda ou seja

trajes tradicionais a militares que natildeo estivessem ligados a operaccedilotildees de informaccedilotildees

Os agentes dos DOI-CODI como elucidado por meio da segunda frente deste capiacutetulo

por precisarem ser confundidos com civis se diferenciavam dos demais soldados

Na PE os soldados eram sempre de Santa Catarina [] pessoas de portes

fiacutesicos avantajados e essa condiccedilatildeo fiacutesica era uma espeacutecie de exigecircncia para

servir ao quartel da Poliacutecia Militar Eram entatildeo os ldquocatarinasrdquo [] (Carvalho

8 fev 2003)

[] quem torturava a gente era o pessoal do DOI-CODI normalmente eles

andavam a paisana [] e quem fazia o trabalho burocraacutetico ou seja a

limpeza da PE quem dava o cafeacute da gente quem abria a cela e fechava a

cela eram os soldados uniformizados Eram ateacute os ldquocatarinasrdquo porque

tinham muitos que vinham de Santa Catarina eram soldados altos [] entatildeo

83

os soldados faziam a burocracia e os militares do DOI-CODI faziam essa

parte digamos da investigaccedilatildeo poliacutetica [] (Pandolfi 5 fev 2003)

[] os ldquocatarinasrdquo eram os guardinhas era o pessoal que estava servindo

eles tinham dezoito ou dezenove anos eles estavam servindo ao Exeacutercito e

alguns deles ateacute amenizavam a nossa situaccedilatildeo [hellip] (Batista 17 nov 2004)

Diferentemente do que se percebe na monografia feita pelo coronel Pereira em

1978 nas memoacuterias aqui analisadas a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI no ano de 1970

consagrou-se como um dos periacuteodos mais difiacuteceis de suas vidas Nota-se no entanto

que os nuacutemeros e percentuais que na eacutepoca eram interpretados por muitos militares

como forte indiacutecio de eficiecircncia da instituiccedilatildeo no combate ao ldquoinimigo internordquo estatildeo

em meio ao contexto democraacutetico em que as narrativas dos ex-presos foram construiacutedas

diretamente ligados agrave memoacuteria da tortura e da violaccedilatildeo aos direitos humanos Como se

pode analisar a partir da interpretaccedilatildeo de Ceciacutelia Coimbra uma das ex-prisioneiras

poliacuteticas fundadoras do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro 15

[] eu acho a fala para mim a minha militacircncia no Tortura Nunca Mais

fundamental Em 85 quando a gente fundou o Grupo foi fundamental no

sentido de tornar isso puacuteblico e natildeo soacute como se fosse uma coisa de lamento

da gente uma coisa da dor da gente dessa marca que natildeo vai sair nunca []

mas como instrumento de luta instrumento de denuacutencia [] (Coimbra 30

nov 2004)

Durante o periacuteodo das entrevistas aqueles que viveram a experiecircncia dos DOI-

CODI a partir do outro lado de suas grades muitas vezes veem as dolorosas lembranccedilas

daquele tempo como um meio de fazer justiccedila e ateacute mesmo contribuir para a

solidificaccedilatildeo da democracia enquanto que os militares que no passado se orgulhavam

15

O GTNMRJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-prisioneiros poliacuteticos que viveram situaccedilotildees de

tortura durante o regime militar e por familiares de mortos e desaparecidos poliacuteticos Para mais

informaccedilotildees ver o perfil de Ceciacutelia Coimbra no proacuteximo capiacutetulo

84

de seus feitos lutam no presente por natildeo serem a eles associados Diante disso nota-se

que apoacutes o teacutermino da ditadura em 1985 as memoacuterias dos entatildeo vencidos

movimentam-se de forma a se sobreporem agraves dos vencedores conseguindo aos poucos

garantir seu espaccedilo de viacutetimas da ditadura e ao mesmo tempo de heroacuteis da democracia

na poliacutetica na justiccedila e na histoacuteria

85

Capiacutetulo 2 ndash Os presos poliacuteticos e suas organizaccedilotildees

Nas escolas nas ruas

campos construccedilotildees

Somos todos soldados

Armados ou natildeo

Caminhando e cantando

E seguindo a canccedilatildeo

Somos todos iguais

Braccedilos dados ou natildeo

Os amores na mente

As flores no chatildeo

A certeza na frente

A histoacuteria na matildeo

Caminhando e cantando

E seguindo a canccedilatildeo

Aprendendo e ensinando

Uma nova liccedilatildeo

Geraldo Vandreacute

(Pra natildeo dizer que natildeo falei de flores 1968)

86

Antocircnio Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia satildeo alguns dos brasileiros

que lutaram contra a ditadura militar no paiacutes e que na eacutepoca foram presos pelo governo

nas dependecircncias do DOI-CODI do Rio de Janeiro Trecircs homens e trecircs mulheres que

apesar de suas trajetoacuterias pessoais e poliacuteticas distintas possuem ateacute hoje fortes elos

construiacutedos pela passagem pelo DOI-CODI carioca

Foi especificamente essa vivecircncia prisional comum que me despertou o interesse

pelas memoacuterias desses seis atores histoacutericos O objetivo era a partir da oacutetica dos ex-

prisioneiros entender como funcionava na praacutetica o DOI-CODIRJ Assim entre os

anos de 2002 e 2004 em meio aos governos dos ex-presidentes Fernando Henrique e

Lula ou seja jaacute em tempos democraacuteticos Antocircnio Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana

e Ceciacutelia me concederam entrevistas sobre suas prisotildees no DOI-CODIRJ bem como

sobre suas trajetoacuterias pessoais e poliacuteticas antes e depois de suas prisotildees

Esses depoimentos ndash principal objeto de pesquisa desta dissertaccedilatildeo ndash trazem aleacutem

das lembranccedilas sobre o cotidiano prisional de um DOI-CODI muito da personalidade e

da vivecircncia de cada um desses indiviacuteduos Atraveacutes dessas memoacuterias pode-se lidar com

as idiossincrasias de cada um deles relativizando a ideia de uma memoacuteria coletiva

comum a todos os ex-prisioneiros poliacuteticos que ficaram no quartel da Rua Baratildeo de

Mesquita Pode-se ainda conhecer um pouco mais de perto a loacutegica de construccedilatildeo de

suas memoacuterias individuais analisando como cada um desses indiviacuteduos se vecirc atraveacutes do

passado de militacircncia e prisatildeo como se identifica por meio desse passado imprime essa

identidade no mundo externo e como este mundo influencia na percepccedilatildeo que possui

sobre si mesmo

No entanto as memoacuterias individuais aqui trabalhadas natildeo estatildeo isoladas jaacute que

conforme bem evidenciado por Maurice Halbwachs em A memoacuteria coletiva (2004)

frequentemente tomam como referecircncia pontos externos ao sujeito se apoiando em

87

percepccedilotildees recebidas de determinada memoacuteria coletiva de um grupo e tambeacutem pela

memoacuteria histoacuterica de seu paiacutes (2004 57-59) Partindo dessa ideia percebe-se aqui que

nas memoacuterias narradas por indiviacuteduos que fizeram parte de uma mesma organizaccedilatildeo de

esquerda armada ou que ainda hoje integram um mesmo grupo como por exemplo o

Grupo Tortura Nunca MaisRJ satildeo encontrados mais pontos de contato Aleacutem disso

todos os depoentes mostram ter como base de suas lembranccedilas a memoacuteria histoacuterica

pois em algum momento as localizam no tempo por meio de datas e fatos que se

estabeleceram como histoacutericos tal como o golpe civil-militar de 31 de marccedilo de 1964

ou a decretaccedilatildeo do AI-5 em 13 de dezembro de 1968

Cabe aqui ressaltar que ex-prisioneiros do DOI-CODIRJ entrevistados eram em

sua grande maioria estudantes que se tornaram combatentes da esquerda armada a

partir da proibiccedilatildeo de atividades e manifestaccedilatildeo sobre o assunto de natureza poliacutetica

estipulada pelo inciso III do artigo 5ordm do AI-5 e que em suas memoacuterias a

promulgaccedilatildeo deste Ato representa um marco temporal muito mais forte do que o golpe

civil-militar de 1964 Afinal para suas trajetoacuterias de vida o AI-5 de 13 de dezembro de

1968 foi um divisor de aacuteguas pois tornava as manifestaccedilotildees estudantis proibidas

revoltando-os e estimulando-os ainda mais a lutar pela derrubada do regime ditatorial

Diante disso a maioria dos depoentes sustenta em suas memoacuterias o AI-5 como um

momento em que suas vidas foram postas em xeque A partir do dia de sua

promulgaccedilatildeo eles se viram diante da necessidade de decidir se continuavam ou natildeo a

agir contra a ditadura e em caso positivo se deveriam considerar a violecircncia armada

como uma via de luta uma vez que os movimentos paciacuteficos estavam totalmente

encurralados Como a opccedilatildeo da maior parte deles foi a de pegar em armas ndash decisatildeo que

acarretou natildeo soacute em suas prisotildees mas tambeacutem na mudanccedila da percepccedilatildeo que tinham

sobre a vida jaacute que ao andarem armados passavam a ter a consciecircncia de que viviam

88

sob a ameaccedila da morte ndash o AI-5 tem papel de destaque entre suas memoacuterias do periacuteodo

militar Essa importacircncia do AI-5 pode ser exemplificada no trecho abaixo destacado da

entrevista de Ana de Miranda Batista

O AI-5 foi determinante Porque vocecirc natildeo tinha mais formas de expressatildeo

vocecirc natildeo podia se reunir vocecirc natildeo podia mais fazer nada era impedido pela

poliacutecia A gente estava amordaccedilado a imprensa amordaccedilada os teatros os

cinemas tudo Era um terror muita poliacutecia na rua muita blitz blitz de

montatildeo sabe Quem quisesse ser como a gente -ldquoAbaixo a Ditadura

Abaixo a Repressatildeordquo As formas de expressatildeo se reduziram a quase zero Aiacute

eacute que houve um pontapeacute na decisatildeo de muitos de noacutes de quer dizer soacute

restou a luta armada soacute restou resistir de forma armada mesmo que pra

maioria de noacutes fosse uma decisatildeo extrema [] eu nem uma arma de perto

eu nunca tinha visto Quer dizer esse momento eacute um momento draacutestico

quer dizer um tempo depois eacute que eu conversando eacute que vi que natildeo foi

assim soacute para mim Porque para alguns dos rapazes que tinham servido ao

Exeacutercito e sei laacute o quecirc eles jaacute tinham alguma familiaridade com armas quer

dizer alguns deles Mas a gente menina classe meacutedia natildeo Eu nunca tinha

visto nunca tinha me interessado por arma na vida (risos) natildeo fazia parte do

meu universo E teve muita gente que nessa eacutepoca pirou Pirou que eu digo

de natildeo querer mais saber Muita gente E eu acho extremamente respeitaacutevel

essa decisatildeo porque eacute uma decisatildeo draacutestica [] porque no momento em que

vocecirc estaacute com uma arma vocecirc pode matar ou morrer Eacute muito grave essa

decisatildeo Vocecirc estaacute lidando com a possibilidade da morte e quando vocecirc

nunca teve familiaridade assim quando vocecirc nunca viu uma arma eacute muito

difiacutecil [] (Batista 17 nov 2004)

Vale aqui mais uma vez destacar que essas memoacuterias do passado satildeo lavadas nas

aacuteguas do presente ou seja satildeo o preacutesent du passeacute conforme a feliz expressatildeo de Robert

Frank (1999) As memoacuterias sobre as experiecircncias prisionais do DOI-CODIRJ

ocorridas durante os ldquoanos de chumbordquo da ditadura militar foram construiacutedas em

entrevistas concedidas entre o final do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-

2002) e o iniacutecio do governo de Lula (2003-10) ambos perseguidos poliacuteticos durante o

89

periacuteodo ditatorial Portanto a perspectiva de vencidos que no passado direcionava as

memoacuterias dos depoentes abre lugar para uma narrativa proacutexima agrave de vencedores pela

qual os ex-prisioneiros poliacuteticos se veem como responsaacuteveis pela construccedilatildeo da

democracia e de uma justiccedila de transiccedilatildeo ainda em curso no Brasil

Uma ideia de justiccedila de transiccedilatildeo iniciou-se principalmente a partir da

Constituiccedilatildeo de 1988 quando a reparaccedilatildeo aos perseguidos poliacuteticos do passado

ditatorial se transformou em garantia constitucional No entanto foi somente a partir de

1995 jaacute no governo FHC que ela comeccedilou a ser implantada por meio da primeira

comissatildeo de reparaccedilatildeo a Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos (lei nordm

914095) Aleacutem disso em 2002 sete anos depois a reparaccedilatildeo aos perseguidos pela

ditadura foi complementada por meio da Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio da Justiccedila

(lei nordm 1055902) Assim quando a primeira entrevista me foi concedida em setembro

de 2002 a Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos jaacute trabalhava no sentido de

reconhecer a responsabilidade do Estado brasileiro por mortes e desaparecimentos de

presos poliacuteticos ocorridas durante a ditadura enquanto a Comissatildeo de Anistia iniciava a

sua funccedilatildeo de

[] reparar os atos de exceccedilatildeo incluindo as torturas prisotildees arbitraacuterias

demissotildees e transferecircncias por razotildees poliacuteticas sequestros compelimento agrave

clandestinidade e ao exiacutelio banimentos expurgos estudantis e

monitoramentos iliacutecitos (Abratildeo 2010 4)

Conforme jaacute abordado no primeiro capiacutetulo os procedimentos impostos pela Lei

105592002 influenciaram como natildeo podia deixar de ser o processo de construccedilatildeo das

memoacuterias aqui trabalhadas Afinal o referido processo se iniciava com um relato da

viacutetima sobre as agressotildees e perseguiccedilotildees sofridas agrave eacutepoca ditatorial Este deveria

configurar uma espeacutecie de memorial no qual o requerente deveria destacar todas as

90

violaccedilotildees sofridas a ser apresentado agrave Comissatildeo cabendo a esta apoacutes a verificaccedilatildeo dos

fatos expostos conceder ou natildeo ao requisitante a condiccedilatildeo de anistiado poliacutetico e

dependendo do caso a correspondente reparaccedilatildeo econocircmica Como alguns dos

entrevistados passavam por este processo no mesmo periacuteodo em que concederam as

entrevistas eacute notaacutevel que tal experiecircncia seja mais uma forte influecircncia do presente na

construccedilatildeo das memoacuterias por eles narradas Esse momento de busca por reparaccedilatildeo por

que muitos passavam inconscientemente os conduzia a enfatizar durante as narrativas

suas condiccedilotildees de ldquoviacutetimasrdquo do passado em detrimento por exemplo de suas condiccedilotildees

de ldquosiacutembolos da resistecircnciardquo

Ainda diante da capacidade de intervenccedilatildeo que o presente exerce sobre as

memoacuterias do passado deve-se considerar tambeacutem a forma como essa rede de

entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que as entrevistas foram realizadas

Afinal o caminho trilhado ateacute o depoente e o momento especiacutefico de cada narrativa

composto pelo local e as condiccedilotildees gerais sob as quais ocorreu tambeacutem influenciam na

construccedilatildeo das memoacuterias do entrevistado tanto por parte do historiador na maneira

como aborda o narrador quanto por parte do proacuteprio narrador por meio da forma com

que narra suas memoacuterias Portanto acredita-se aqui que a busca por cada entrevistado

interfere na abordagem que o entrevistador imprime agrave entrevista e na forma como o

narrador se sente ao narrar suas memoacuterias naquele momento tornando o instante de

cada entrevista um fator tambeacutem de intervenccedilatildeo na narrativa das memoacuterias do passado

Dessa forma antes de tratar-se das trajetoacuterias de vida narradas por cada ex-prisioneiro

entrevistado optou-se aqui por considerar como o instante de cada entrevista foi

construiacutedo ou seja como a rede de entrevistas foi formada

91

1 A rede de entrevistas

A primeira entrevista foi feita com o ex-preso poliacutetico Antocircnio Leite de Carvalho

em 12 de setembro de 2002 na sala de sua casa situada bem proacutexima ao quartel do 1ordm

BPE onde se localizava o DOI-CODIRJ O espaccedilo ocupado por esta instituiccedilatildeo que eacute

intensamente abordado no proacuteximo capiacutetulo situava-se nos fundos do referido quartel

cujo edifiacutecio foi construiacutedo durante o Impeacuterio e ainda hoje se encontra entre a Avenida

Maracanatilde e a Rua Baratildeo de Mesquita no bairro da Tijuca na cidade do Rio de Janeiro

Cheguei ateacute Antocircnio atraveacutes de seu filho Joatildeo meu colega do curso de graduaccedilatildeo

em histoacuteria pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Sabedor

do meu interesse sobre o tema da repressatildeo poliacutetica Joatildeo procurou me ajudar e ao

mesmo tempo satisfazer a curiosidade que sentia sobre esta parte da vida de seu pai

Portanto durante a minha primeira visita agrave casa de Antocircnio enquanto ele narrava

suas memoacuterias sobre o periacuteodo em que esteve preso nas dependecircncias do quartel

vizinho Joatildeo atravessava constantemente a sala em direccedilatildeo agrave varanda ou agrave cozinha

Assim sem que Antocircnio aparentemente percebesse jaacute que estava concentrado em sua

narrativa Joatildeo tentava ouvir um pouco mais sobre um passado que seu pai nunca havia

revelado abertamente aos filhos

Percebe-se entatildeo como lidar com detalhes dessa memoacuteria era complicado para

Antocircnio e portanto o quanto aquele momento era importante para ele e para seu filho

Atraveacutes da entrevista enquanto Antocircnio passava a sentir um maior orgulho daquelas

memoacuterias pois por meio do meu interesse em entrevistaacute-lo comeccedilava a percebecirc-las

como fonte para a histoacuteria do paiacutes Joatildeo conhecia melhor o seu pai e passava a entender

algumas de suas atitudes que ateacute entatildeo questionava

Era o caso da reaccedilatildeo arredia que Antocircnio tinha ao ser acordado de forma

inesperada enquanto dormia no sofaacute da casa Assim apoacutes ouvir sobre o cotidiano e as

92

torturas a que seu pai afirma ter sido submetido no DOI-CODIRJ Joatildeo comeccedilou a

compreender que tal reaccedilatildeo tinha relaccedilatildeo com esse passado quando Antocircnio muitas

vezes pode ter sido despertado de desmaios ocasionados por choques eleacutetricos e outras

torturas a ele perpetradas ainda na sala de interrogatoacuterio Logo o fato de acordar

assustado tentando se proteger ou ateacute mesmo agredir quem o acordasse pode ser

compreendido quando relacionado agraves marcas que as violecircncias vividas no DOI-

CODIRJ deixaram na memoacuteria de Antocircnio

A partir dessa primeira entrevista o meu interesse pelo tema se aprofundou

impulsionando-me a buscar outros possiacuteveis entrevistados No dia 5 de fevereiro de

2003 consegui entrevistar Dulce Chaves Pandolfi Seu nome foi aventado por meio da

leitura sobre a passagem de Dulce pelo DOI-CODIRJ encontrada no livro Brasil

Nunca Mais publicado pela Editora Vozes em 1985

A estudante Dulce Chaves Pandolfi 24 anos foi obrigada tambeacutem a servir

de cobaia no quartel da rua Baratildeo de Mesquita no Rio [] Na Poliacutecia do

Exeacutercito foi submetida a espancamento inteiramente despida bem como a

choques eleacutetricos e outros supliacutecios como o ldquopau-de-ararardquo Depois de

conduzida agrave cela onde foi assistida por meacutedico foi apoacutes algum tempo

novamente seviciada com requintes de crueldade numa demonstraccedilatildeo de

como deveria ser feita a tortura [] (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985 32)

Depois de algumas tentativas frustradas de marcar esta entrevista por meio de

mensagens via correio eletrocircnico que encontrei atraveacutes do site do CPDOC centro de

pesquisa onde Dulce trabalha como pesquisadora e professora ela enfim me recebeu em

sua sala no interior deste mesmo centro de pesquisa Sua resistecircncia inicial pode ser

atribuiacuteda ao fato de na condiccedilatildeo de pesquisadora estar mais acostumada ao papel de

entrevistadora do que ao de entrevistada ou seja estar mais afinada com o trabalho de

analisar as fontes do que com o de ser a proacutepria fonte Diante disso durante sua

93

entrevista Dulce natildeo se sentiu agrave vontade em tratar dos detalhes das violecircncias sofridas

no DOI-CODIRJ o que pode ser explicado pela dor que ainda acompanha suas

memoacuterias e tambeacutem pelo desconforto que a situaccedilatildeo lhe trazia jaacute que ela possivelmente

natildeo se desvinculava do fato de ser uma professora universitaacuteria expondo sua intimidade

a uma aluna de graduaccedilatildeo No entanto justamente por lecionar histoacuteria e por

conseguinte jaacute estar convencida da importacircncia de seu depoimento Dulce apresentou

uma narrativa articulada e aparentemente coerente

Apoacutes a entrevista de Dulce ficou evidente a desarticulaccedilatildeo da memoacuteria de

Antocircnio uma vez que esta era silenciada haacute muito tempo e portanto natildeo possuiacutea uma

construccedilatildeo preacute-estabelecida por outros discursos Tal percepccedilatildeo me levou a voltar a

entrevistaacute-lo em 8 de fevereiro de 2003 trecircs dias depois da entrevista de Dulce quando

Antocircnio jaacute demonstrava uma memoacuteria mais articulada Afinal esse silecircncio que

caracterizava sua memoacuteria lhe atribuiacutea um aspecto negativo e um destacadamente

positivo O lado negativo era que conforme elucidado por Michael Pollak em Memoacuteria

esquecimento e silecircncio (1989) dificilmente sua memoacuteria foi transmitida de forma

intacta durante todo o tempo em que ficou guardada ateacute o dia em que a entrevista

significou uma oportunidade para que ela saiacutesse do ldquonatildeo-ditordquo Poreacutem o lado positivo a

meu ver merecedor de destaque era que a memoacuteria de Antocircnio sobre a prisatildeo no DOI-

CODIRJ possuiacutea poucas influecircncias por decorrecircncia do contato com as memoacuterias de

outros ex-prisioneiros pois natildeo estava a elas diretamente relacionada por meio de

nenhuma coletividade especiacutefica

No ano seguinte ao buscar mais informaccedilotildees sobre o DOI-CODIRJ no Arquivo

Puacuteblico do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) conheci Fernando Palha Freire que viria

a ser o meu terceiro entrevistado Na eacutepoca da entrevista em junho de 2004 Fernando

trabalhava neste Arquivo enviando ao governo estadual a documentaccedilatildeo de requerentes

94

agrave reparaccedilatildeo econocircmica conforme constava no decreto nordm 31995 de 10 de outubro de

2002 Este decreto regulamentava a lei estadual Nordm 3744 de 21 de dezembro de 2001

que antes mesmo da lei federal 105592002 entrar em vigor dispunha sobre a

reparaccedilatildeo a pessoas que haviam sido detidas sob acusaccedilatildeo de terem participado de

atividades poliacuteticas entre os dias 1ordm de abril de 1964 e 15 de agosto de 1979 e que

haviam sofrido tortura em oacutergatildeos puacuteblicos estaduais

Ao saber sobre o meu tema de pesquisa um arquivista do APERJ me apresentou a

Fernando que natildeo hesitou em me conceder seu depoimento A entrevista foi realizada laacute

mesmo dentro da sala em que Fernando trabalhava e por ter sido concedida durante o

horaacuterio de expediente fomos constantemente interrompidos por ligaccedilotildees telefocircnicas Ao

longo de sua entrevista Fernando confessou ter falado muitas vezes sobre suas

memoacuterias do periacuteodo militar e que justamente por entender a importacircncia desse

passado havia sido nomeado para instruir os requisitantes agrave reparaccedilatildeo estipulada pelo

Decreto estadual Nordm 319952002 Dessa forma justifica-se a apresentaccedilatildeo tranquila e

eloquente que conduz sua narrativa

Trecircs meses depois no final de setembro Padre Maacuterio Prigol da Paroacutequia de

Nossa Senhora da Salete localizada no bairro do Catumbi no Rio de Janeiro me

concedeu seu depoimento Esta entrevista foi possiacutevel por intermeacutedio de Alejandra

outra colega do curso de graduaccedilatildeo em histoacuteria da UNIRIO que o conhecia por jaacute tecirc-lo

entrevistado sobre a sua participaccedilatildeo nos movimentos da Juventude Operaacuteria Catoacutelica

(JOC) e Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) 16

Durante a entrevista que me concedeu Padre Maacuterio falou muito sobre as lutas

sociais que travou durante a ditadura militar descritas no livro que havia acabado de

publicar ndash Maacuterio Prigol educador da feacute entre trabalhadores e militantes populares

16

Para mais informaccedilotildees ver Estevez 2008

95

(2003) Entretanto sobre sua passagem pelo DOI-CODIRJ pouco fazia questatildeo de

narrar reconhecendo em certo momento que laacute tambeacutem havia sofrido com torturas o

que explica em parte o desconforto que as lembranccedilas prisionais lhe traziam

Provavelmente por sua prisatildeo ter lhe colocado na eacutepoca em uma posiccedilatildeo extremamente

conflitante e perturbadora para uma autoridade da Igreja Catoacutelica anos mais tarde essas

memoacuterias ainda eram difiacuteceis de serem narradas e lembrar a violecircncia sofrida dentro do

DOI-CODIRJ possivelmente trazia de volta alguns transtornos de ordem sentimental

indesejaacuteveis Afinal presume-se que na prisatildeo seus sentimentos oscilassem entre os

tipicamente humanos tais como dor e raiva e os cristatildeos como feacute e perdatildeo tais

memoacuterias remetiam a sentimentos humanos que ele em respeito a sua vocaccedilatildeo de

padre deveria renegar

Decidida a ampliar ainda mais o escopo de minha rede de entrevistados passei a

frequentar as reuniotildees abertas ao puacuteblico agraves segundas-feiras agrave noite na sede do Grupo

Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTMNRJ) no bairro de Botafogo O

GTNMRJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-prisioneiros poliacuteticos que viveram

situaccedilotildees de tortura durante o regime militar bem como por familiares de mortos e

desaparecidos poliacuteticos O Grupo tornou-se por meio das lutas em defesa dos direitos

humanos uma importante referecircncia no cenaacuterio nacional Ao longo dessas deacutecadas o

GTNMRJ vem lutando pelo esclarecimento das circunstacircncias da morte e do

desaparecimento de militantes poliacuteticos pelo resgate da memoacuteria da repressatildeo ditatorial

pelo afastamento imediato dos cargos puacuteblicos de pessoas envolvidas com a tortura e

pela formaccedilatildeo de uma consciecircncia eacutetica condiccedilatildeo que a entidade defende ser

indispensaacutevel na luta contra a impunidade e pela justiccedila Aleacutem disso o Grupo vem

denunciando antigos e novos casos de tortura exigindo puniccedilatildeo para seus perpetradores

96

atraveacutes de notas na miacutedia entrevistas atos puacuteblicos seminaacuterios e outras atividades 17

Minha ida agrave sede do Grupo resultou na incorporaccedilatildeo de duas novas entrevistadas a

minha rede A primeira delas foi Ana de Miranda Batista que em 17 de novembro de

2004 me recebeu em uma das salas do proacuteprio GNTMRJ Ana havia acabado de

escrever seu memorial ndash onde narrava todas as perseguiccedilotildees e prisotildees que havia sofrido

durante a ditadura militar ndash e o havia encaminhado agrave presidecircncia da Comissatildeo Especial

da Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro a fim de comprovar

que fazia jus ao valor maacuteximo da reparaccedilatildeo prevista no Art 5ordm da Lei Estadual nordm 3744

de 21 de dezembro de 2001 O ponto principal de seu argumento era que havia sofrido

todas as mazelas prisotildees torturas fiacutesicas e psicoloacutegicas submetida pelas forccedilas

opressoras da eacutepoca fato este que ateacute hoje tem consequecircncias em sua vida (Batista

2004 10) 18

Antes de comeccedilar a entrevista Ana me concedeu uma coacutepia deste memorial

juntamente com a monografia do entatildeo Coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira

fonte analisada no capiacutetulo anterior cujo teor havia lhe servido como evidecircncia dos

meacutetodos violentos que ocorriam nas dependecircncias do DOI-CODI

Diante disso conforme o esperado seu depoimento oral apresentou um tom

narrativo muito similar ao assumido no referido documento que havia recentemente

escrito Assim orquestrada com o objetivo que tinha de conseguir a reparaccedilatildeo do

Estado Ana buscou construir suas memoacuterias de forma a ressaltar as violecircncias sofridas

ou seja priorizou a condiccedilatildeo de ldquoperseguida poliacutetica e viacutetima da repressatildeo militarrdquo em

detrimento da de ldquolutadora revolucionaacuteriardquo em prol da democracia

No final desse mesmo mecircs de novembro entrevistei a entatildeo vice-presidente do

Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro Ceciacutelia Coimbra Professora do

17

Para mais informaccedilotildees acessar httpwwwtorturanuncamais-rjorgbr 18

Memorial de Ana de Miranda Batista parte do requerimento agrave indenizaccedilatildeo enviado ao Secretaacuterio de

Estado de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro pela proacutepria em outubro de 2004

97

Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Ceciacutelia me

recebeu em uma das salas do preacutedio dessa faculdade localizada no campus do

Gragoataacute na cidade de Niteroacutei Uma das fundadoras do GTNMRJ Ceciacutelia natildeo mostrou

nenhum pudor em lembrar as violaccedilotildees sofridas durante a prisatildeo Detalhou as torturas

recebidas sem demonstrar constrangimento Esta forma de lidar com o passado se

explica pela maneira pela qual Ceciacutelia se auto-identifica Afinal devido a sua profissatildeo

de psicoacuteloga e sua condiccedilatildeo de liacuteder de um grupo que luta por reparar os danos morais e

fiacutesicos deixados pela tortura entende a difusatildeo dos detalhes de sua proacutepria memoacuteria

como uma arma poderosa para que a justiccedila seja feita em prol da redenccedilatildeo dos

torturados e da penalizaccedilatildeo dos torturadores

11 Os sujeitos e suas trajetoacuterias

A partir da anaacutelise dos depoimentos traccedila-se aqui a trajetoacuteria de vida de cada um

dos entrevistados a fim de que sejam desvendados outros fatores que influenciaram a

construccedilatildeo de suas memoacuterias sobre o periacuteodo em que estiveram presos no DOI-

CODIRJ Este periacuteodo se concentra no segundo semestre do ano de 1970 uma vez que

foi nesse momento que todos os seis entrevistados por laacute passaram Este dado temporal

em muito aproxima suas memoacuterias pois significa que estas se referem a uma mesma

fase desse oacutergatildeo repressivo Isso permitiu ateacute mesmo que tais memoacuterias englobassem

momentos compartilhados jaacute que alguns desses ex-prisioneiros laacute se encontraram e ateacute

dividiram uma mesma cela

No entanto cabe aqui destacar que natildeo houve qualquer intenccedilatildeo de entrevistar ex-

prisioneiros que estivessem no DOI-CODIRJ durante esse periacuteodo Conforme exposto

anteriormente a rede de entrevistas foi se desenhando de acordo com as oportunidades

o que torna o fato de todos terem por laacute passado na segunda metade de 1970 natildeo uma

98

feliz coincidecircncia como uma primeira impressatildeo pode fazer crer mas mais uma

demonstraccedilatildeo da alta eficiecircncia dos DOI-CODI Essas prisotildees correspondem justamente

ao periacuteodo em que o DOI-CODIRJ passou a funcionar em meados de 1970

demonstrando na praacutetica o que foi dito no capiacutetulo anterior diante da grande demanda

de accedilotildees que natildeo eram eficientemente combatidas pelos oacutergatildeos de repressatildeo anteriores

a sofisticaccedilatildeo dos DOI ldquorevolucionourdquo de fato a organizaccedilatildeo da repressatildeo agindo jaacute

num primeiro momento de forma avassaladora

Antocircnio Leite de Carvalho19

Antocircnio Leite de Carvalho nasceu no Cearaacute em 13 de agosto de 1945 Quando era

estudante secundarista pertenceu ao movimento que se concentrava no Calabouccedilo

restaurante estudantil proacuteximo ao Aeroporto Santos Dumont do Rio de Janeiro

frequentado por estudantes que eram como ele secundaristas pobres e principalmente

procedentes de outros estados

Em 1967 o governo apresentou planos para a demoliccedilatildeo do Calabouccedilo sob a

justificativa de construir em seu local um trevo rodoviaacuterio para desafogar o tracircnsito do

Aterro do Flamengo A partir disso os estudantes comeccedilaram a protestar contra a sua

demoliccedilatildeo e criaram a Frente Unida dos Estudantes do Calabouccedilo (FUEC) O governo

em maio daquele ano conseguiu demolir o restaurante e entregou em setembro ldquoo novo

Calabouccedilordquo para os estudantes poreacutem em situaccedilotildees precaacuterias Assim a luta da FUEC

continuou em prol da melhoria de suas condiccedilotildees de funcionamento e foi justamente em

torno desses protestos que o primeiro grande conflito de rua do ano de 1968 ocorreu

sensibilizando a opiniatildeo puacuteblica e o movimento estudantil como um todo No dia 28 de

19

Entrevistas realizadas com Antocircnio Leite de Carvalho em 12 de setembro de 2002 e 8 de fevereiro de

2003

99

marccedilo policiais invadiram a tiros o restaurante do Calabouccedilo onde se preparava mais

uma manifestaccedilatildeo contra as peacutessimas condiccedilotildees do local e mataram o estudante

secundarista Edson Luiacutes de Lima Souto de dezoito anos Este assassinato representou o

estopim para o desencadeamento de amplas manifestaccedilotildees contraacuterias agrave ditadura ao

longo do ano de 1968 que seriam cada vez mais reprimidas ateacute se tornarem totalmente

proibidas pelo AI-5 20

A partir desse contexto de ilegalidades e proibiccedilotildees Antocircnio se posicionou entre

os estudantes que optaram por continuar a lutar contra a ditadura de forma radicalizada

Aproximou-se entatildeo do Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR) onde

logo em seguida comeccedilou a militar Antocircnio associa a sua adesatildeo ao PCBR ao

programa deste partido de esquerda que tinha a guerrilha urbana como meio de luta

para a derrubada da ditadura e implantaccedilatildeo do socialismo no paiacutes e principalmente agrave

admiraccedilatildeo que tinha por um dos seus fundadores e liacutederes Apolocircnio de Carvalho

Como Antocircnio teve participaccedilatildeo assiacutedua em muitas passeatas do movimento

estudantil de 1968 conheceu muitas lideranccedilas de organizaccedilotildees que vinham se

formando e buscavam adeptos em meio aos estudantes Assim foi apresentado e

comeccedilou a admirar Apolocircnio de Carvalho um dos grandes motivos que o levaram a

posteriormente militar no PCBR partido cuja formaccedilatildeo atuaccedilatildeo e ideais seratildeo

abordados mais adiante Apolocircnio de Carvalho era uma figura haacute muito atuante na

poliacutetica havia lutado em favor dos republicanos na Espanha durante a Guerra Civil

Espanhola na Resistecircncia Francesa contra o nazismo e participava do Partido

Comunista Brasileiro (PCB) quando em 1967 rompeu com este e foi um dos

fundadores do PCBR 21

20

Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009 108-132 21

Em 1967 Apolocircnio rompeu com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e se tornou um dos fundadores

do PCBR partido em situaccedilatildeo clandestina na eacutepoca motivo que o levou a ser preso Juntamente com

outros 39 presos poliacuteticos Apolocircnio foi trocado pelo embaixador alematildeo que em 11 de junho de 1970

100

O partido era o PCBR que possuiacutea uma grande figura que se chama

Apolocircnio de Carvalho que pertence hoje ao PT ele era uma grande

lideranccedila do partido havia participado da Revoluccedilatildeo Espanhola da

resistecircncia ao nazismo na Franccedila um homem respeitado mundialmente pela

sua coragem e pela luta a favor da democracia e contra os ditadores ele era a

minha grande lideranccedila (Carvalho 12 set 2002)

Em 1970 aos 25 anos Antocircnio Leite de Carvalho foi preso No momento de sua

prisatildeo estava agrave espera de outro militante do PCBR na rua em um ponto de encontro

que havia combinado com ele Relacionando o depoimento de Antocircnio com as

estrateacutegias de captura dos DOI analisadas no primeiro capiacutetulo percebe-se que como o

companheiro de Antocircnio havia sido capturado antes de ir ao seu encontro acabou

informando aos agentes de umas das turmas de interrogatoacuterio preliminar do DOI-

CODIRJ muito provavelmente sob tortura o horaacuterio em que Antocircnio estaria no lugar

marcado A partir disso a informaccedilatildeo foi repassada agrave Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo e

agentes de uma das turmas que a formavam se encaminharam ateacute o local com carros e

roupas descaracterizadas como de praxe e levaram Antocircnio algemado para o DOI-

CODIRJ onde ficou preso durante cerca de trecircs meses

Eu fui preso na rua Eu tinha um encontro com outro militante mas esse

militante foi preso e sob tortura no DOI-CODI aqui no 1deg BPE da Rua

Baratildeo de Mesquita ele abriu o ponto quer dizer o ponto era o local de

encontro que a gente chamava de ponto ldquoTenho um ponto com fulanardquo quer

dizer que vocecirc tinha um encontro Ele abriu o local de encontro que eu teria

com ele e aiacute eu fui preso pelo DOI-CODI (Carvalho 12 set 2002)

havia sido sequestrado por esquerdistas integrantes da Vanguarda Popular Revolucionaacuteria (VPR) e da

Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN) vivendo algum tempo exilado na Argeacutelia Apoacutes a implantaccedilatildeo da Lei

de Anistia no Brasil em 1979 ele e sua famiacutelia retornaram agrave terra natal onde participaram da fundaccedilatildeo

do Partido dos Trabalhadores (PT) em 1980 Apolocircnio faleceu em setembro de 2005 aos 93 anos

(Carvalho 1997 13-16)

101

Antocircnio ressalta que durante a sua prisatildeo no DOI-CODIRJ esteve junto a

Fernando Gabeira e Daniel Aaratildeo Reis Filho Ambos haviam participado do sequestro

do embaixador americano no dia 4 de setembro de 1969 e por terem conseguido trocar

o embaixador por quinze presos poliacuteticos que foram exilados no Meacutexico haviam se

destacado entre os militantes da esquerda armada Aleacutem disso como na eacutepoca em que

Antocircnio concedeu as entrevistas Gabeira e Daniel Aaratildeo eram pessoas publicamente

reconhecidas pela luta contra a ditadura e tambeacutem por suas atividades profissionais ndash

Gabeira como jornalista e entatildeo deputado federal e Daniel Aaratildeo como intelectual ndash

percebe-se que o fato de ter tido contato com eles na prisatildeo eacute importante para a leitura

que Antocircnio faz sobre suas memoacuterias injetando-lhes certo orgulho Afinal apesar de

natildeo ter participado do sequestro Antocircnio tambeacutem havia sido preso e torturado por

pegar em armas contra a ditadura logo o fato de ter convivido na cadeia com essas

figuras jaacute reconhecidas pelos feitos desse mesmo passado lhe trazia no presente uma

dimensatildeo positiva sobre suas memoacuterias

Fiquei preso com pessoas que ficaram famosas como o Fernando Gabeira

que depois se tornou parlamentar foi candidato ao governo do Estado foi

candidato a prefeito e hoje eacute deputado federal Tambeacutem o Daniel Aaratildeo

Reis renomado professor de Histoacuteria e uma seacuterie de outros que hoje estatildeo aiacute

pelo governo inclusive em diversos governos (Carvalho 12 set 2002)

Apoacutes o tempo em que esteve preso no DOI-CODIRJ Antocircnio foi transferido para

o Departamento de Ordem Poliacutetica e Social (DOPS) onde permaneceu por um periacuteodo

de dois ou trecircs meses sendo entatildeo libertado Na eacutepoca em que concedeu a entrevista

Antocircnio aleacutem de bancaacuterio aposentado trabalhava como dirigente sindical em um cargo

eletivo

102

Dulce Chaves Pandolfi22

Dulce Chaves Pandolfi nasceu em Recife no dia 14 de dezembro de 1948

Cursava Ciecircncias Sociais em Pernambuco quando em 1967 entrou para o Diretoacuterio

Acadecircmico se tornando pouco depois secretaacuteria geral do Diretoacuterio Central dos

Estudantes (DCE) A partir de dezembro de 1968 com o AI-5 extinguindo os grecircmios

estudantis e substituindo-os por centros ciacutevicos sem autonomia que natildeo podiam realizar

atividades de natureza poliacutetica a opccedilatildeo de fazer parte da ALN era para Dulce uma

forma de continuar lutando por uma ldquosociedade mais igualitaacuteriardquo Aleacutem disso era

sobretudo um meio de derrubar o regime militar em vigor como se pode conferir na

passagem abaixo

[] a gente queria transformar a sociedade a gente queria o socialismo uma

sociedade igualitaacuteria Mas tinha uma fase anterior que era exatamente a de

querer derrubar a ditadura essa era a meta principal de todos Sabiacuteamos

inclusive que o socialismo natildeo era uma meta imediata era uma luta em

longo prazo [] entatildeo a nossa luta inicialmente era para ser instalado o

regime democraacutetico era a luta contra a ditadura (Pandolfi 5 fev 2003)

Ressalta-se entretanto que a opccedilatildeo de Dulce assim como da maior parte dos

estudantes que a partir do AI-5 se juntaram agraves organizaccedilotildees esquerdistas de luta armada

estava inserida no contexto mundial de 1968 Este por sua vez influenciava-se pela

vitoacuteria da Revoluccedilatildeo Cubana em 1959 pela independecircncia da Argeacutelia em 1962 pela

Guerra Fria que acabou por deflagrar entre os anos de 1959 e 1975 a Guerra do Vietnatilde

e por meio desta o enfrentamento indireto de Estados Unidos e Uniatildeo Sovieacutetica e pela

rebeliatildeo estudantil mundial iniciada a partir do ldquomaio francecircs de 1968rdquo que comeccedilou

por meio de uma manifestaccedilatildeo estudantil pontual questionadora de atitudes culturais

22

Entrevista realizada com Dulce Chaves Pandolfi em 5 de fevereiro de 2003

103

tradicionais e conservadoras e rapidamente atingiu a proporccedilatildeo de uma ldquorevoluccedilatildeo

cultural mundialrdquo Percebe-se entatildeo que o horizonte nesse momento era revolucionaacuterio

e principalmente entre os jovens impulsionava a percepccedilatildeo de que os partidos

tradicionais de esquerda estavam desacreditados e que era hora de uma nova geraccedilatildeo

partir para a accedilatildeo direta rumo agrave revoluccedilatildeo

Assim diferente de como eacute narrado por muitos ex-prisioneiros poliacuteticos em

tempos jaacute democraacuteticos que tais como Dulce veem a democracia do presente como

uma conquista positiva e por isso inconscientemente permitem que essa visatildeo atual

influencie suas memoacuterias de luta percebe-se aqui que a democracia natildeo prevalecia entre

os ideais das organizaccedilotildees de luta armada da eacutepoca muito pelo contraacuterio Afinal

acredita-se que em meio ao contexto mundial do momento as esquerdas armadas

tinham uma perspectiva de fato revolucionaacuteria ou seja valorizavam a revoluccedilatildeo muito

mais que a democracia que inclusive nesse momento estava diretamente associada

aos Estados Unidos e consequentemente ao sistema capitalista Como aponta Daniel

Aaratildeo na obra a Ditadura militar esquerdas e sociedade (2000)

a perspectiva ofensiva revolucionaacuteria que havia moldado aquelas

esquerdas E o fato de que elas natildeo eram de modo nenhum apaixonadas pela

democracia (Aaratildeo Reis 2000 70)

A democracia soacute comeccedilou mesmo a ser valorizada a partir do final da deacutecada de

1970 jaacute em uma nova conjuntura onde jaacute existiam outros significados tais como os

direitos humanos e a luta pela anistia No entanto por outro lado nota-se que conforme

destacado por Dulce a luta contra ditadura era tambeacutem um dos objetivos principais da

esquerda armada no final dos anos 1960 Dessa forma apesar da luta contra ditadura na

eacutepoca estar totalmente vinculada agrave revoluccedilatildeo socialista eacute compreensiacutevel que a

democracia tenha em tempos recentes um papel destacado entre as memoacuterias dos ex-

104

guerrilheiros Tal como analisa Marcelo Ridenti em Resistecircncia e mistificaccedilatildeo da

resistecircncia armada contra a ditadura armadilha para pesquisadores (2004) nota-se

aqui que a face de resistecircncia agrave ditadura das experiecircncias guerrilheiras passou a importar

mais apoacutes a implantaccedilatildeo da democracia que a ofensiva revolucionaacuteria ao contraacuterio da

intenccedilatildeo original dos guerrilheiros Afinal foi esta face que teve o objetivo alcanccedilado

ou seja saiu-se vencedora

Apoacutes o AI-5 Dulce optou entatildeo por militar na Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN)

organizaccedilatildeo de esquerda armada que seraacute abordada ainda neste capiacutetulo Assim no ano

de 1970 sabendo que estava sendo procurada pela repressatildeo por conta de sua militacircncia

clandestina Dulce se mudou para a cidade do Rio de Janeiro Sete meses depois no dia

14 de agosto foi presa na casa do seu namorado e levada direto para o DOI-CODIRJ

onde permaneceu cerca de trecircs meses

[] fui presa na casa do meu namorado noacutes fomos presos agrave noite no dia 14

de agosto Fui levada direto para PE Fiquei na PE mais ou menos uns trecircs

meses fiquei ateacute novembro comecinho de dezembro eu acho Depois eu

fui transferida para o DOPS (Pandolfi 5 fev 2003)

Apoacutes permanecer presa no DOI-CODI Dulce foi levada para o DOPS e depois

de seu julgamento foi transferida para o presiacutedio Talavera Bruce prisatildeo feminina de

regime fechado com grau de seguranccedila maacutexima localizada no bairro de Bangu

Passado um ano foi levada de volta para Recife sua cidade natal onde finalmente foi

libertada Encontrou-se prisioneira por mais de um ano de agosto de 1970 ateacute dezembro

de 1971

[] depois de um tempo praticamente um ano que eu estava presa fui

levada para Recife porque eu tambeacutem tinha processo laacute e de laacute eu saiacute Fui

105

solta laacute em Recife depois de um ano Saiacute em dezembro de 1971 fui presa

em agosto de 70 e fui solta em dezembro de 71 (Pandolfi 5 fev 2003)

Dulce no momento de sua entrevista jaacute era professora e pesquisadora do Centro de

Pesquisa e Documentaccedilatildeo de Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil (CPDOC) da Fundaccedilatildeo

Getuacutelio Vargas (FGV) ofiacutecio que exerce ateacute os dias de hoje

Fernando Palha Freire23

Fernando Palha Freire nasceu em Beleacutem (PA) e se mudou para o Rio de Janeiro

no fim de 1964 Antes de vir para o Rio ainda adolescente aprendeu alguns

fundamentos marxistas com sua irmatilde mais velha jaacute universitaacuteria que lhe deu o que ele

chamou de uma ldquonoccedilatildeo de mundordquo Quando se mudou para o Rio de Janeiro Fernando

mesmo jovem jaacute havia se definido esquerdista

Agrave eacutepoca do AI-5 Fernando tinha muitos amigos que militavam em uma

Dissidecircncia do Partidatildeo de Niteroacutei a Dissidecircncia do Estado do Rio de Janeiro que em

meados de 1969 foi desmontada atraveacutes da prisatildeo de seus integrantes pelo oacutergatildeo de

repressatildeo da Marinha o Centro de Informaccedilotildees da Marinha o CENIMAR Como esta

organizaccedilatildeo natildeo tinha um nome especiacutefico para noticiar o seu desmonte na imprensa

com um efeito grandioso os militares daquele oacutergatildeo optaram por nomeaacute-la de

Movimento Revolucionaacuterio 8 de outubro (MR-8) fazendo alusatildeo agrave data em que Che

Guevara havia sido capturado na Boliacutevia morrendo no dia seguinte Foi inclusive a

partir disso que a Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-GB)24

para provocar o

governo ditatorial que haacute pouco havia noticiado o desmonte do perigoso ldquoMR-8rdquo

23

Entrevista realizada com Fernando Palha Freire em 28 de junho de 2004 24

Tais organizaccedilotildees de esquerda da eacutepoca ainda seratildeo abordadas neste capiacutetulo no item 12 A nova

esquerda brasileira

106

assinou em co-autoria com a ALN o sequestro do embaixador norte-americano

autointitulando-se MR-8 como passou desde entatildeo a ser conhecida 25

[] quando veio o golpe minha irmatilde jaacute era universitaacuteria eu era um garoto

eu tinha quinze anos [] ela que me deu mesmo uma noccedilatildeo de mundo de

marxismo Quando veio o golpe noacutes moraacutevamos em Beleacutem No final de 64

eu estava me mudando para o Rio de Janeiro jaacute com essas noccedilotildees de justiccedila

social que eu havia aprendido com ela Digamos assim eu jaacute era

definidamente um cara de esquerda Aiacute veio a luta armada [] a primeira

organizaccedilatildeo [desmontada pelos militares] era o MR-8 uma organizaccedilatildeo de

Niteroacutei uma dissidecircncia do Partidatildeo [PCB] de Niteroacutei onde muitos de seus

integrantes eram meus conhecidos meus amigos entatildeo quando esses caras

foram presos eu jaacute era digamos assim um simpatizante dessa organizaccedilatildeo

natildeo era militante mas era simpatizante [] (Freire 28 jun 2004)

A partir dessa ligaccedilatildeo com outros militantes Fernando optou pela luta armada e

passou a militar na ALN mesma organizaccedilatildeo de Dulce Sua militacircncia poreacutem

concentrava-se em Niteroacutei no estado do Rio de Janeiro onde morava e estudava

economia na Universidade Federal Fluminense (UFF) Assim em 1970 Fernando e

outros militantes da ALN proacuteximos a ele resolveram planejar uma accedilatildeo para que muitos

de seus companheiros inclusive os do antigo MR-8 fossem libertados

No dia 1deg de julho de 1970 aos 22 anos Fernando participou do sequestro de um

aviatildeo da Companhia Cruzeiro do Sul que ia do Brasil para a Argentina com o objetivo

de negociar a troca dos passageiros por quarenta presos poliacuteticos

[] a gente pensou em fazer uma accedilatildeo accedilatildeo no sentido de tentar libertar esse

pessoal Na eacutepoca jaacute tinham sequestrado o embaixador americano e

trocado por quinze presos poliacuteticos [] Entatildeo nesse sentido a gente

resolveu planejar o sequestro de um aviatildeo A gente sequestrou um aviatildeo com

o objetivo de trocar os passageiros por quarenta presos poliacuteticos Quer dizer

25

Para mais informaccedilotildees sobre a mudanccedila de nome da Dissidecircncia da Guanabara para MR-8 ver

Berquoacute 1997 72-73

107

a gente entrou num processo de radicalizaccedilatildeo mesmo A gente queria era a

libertaccedilatildeo [] soacute que essa accedilatildeo natildeo deu certo [] (Freire 28 jun 2004)

O sequestro parecia correr como o planejado Durante o vocirco Fernando e os outros

militantes conseguiram desviar a rota que saiacutea do Rio de Janeiro para Buenos Aires

com escala em Satildeo Paulo fazendo o aviatildeo retornar ao Rio Poreacutem no Aeroporto

Internacional do Rio de Janeiro o Galeatildeo oficiais da Aeronaacuteutica cercaram o aviatildeo e

conseguiram render os opositores poliacuteticos envolvidos na operaccedilatildeo antes que eles

conseguissem negociar a troca dos refeacutens pelos quarenta prisioneiros poliacuteticos Durante

o combate um dos sequestradores irmatildeo de Fernando levou um tiro vindo a falecer

horas depois

A gente chegou a desviar o aviatildeo um aviatildeo que ia pra Argentina com uma

parada em Satildeo Paulo a gente mandou o aviatildeo voltar e quando chegamos ao

Rio o aviatildeo foi cercado Os caras chegaram com gaacutes lacrimogecircneo lama

arma e nessa accedilatildeo o meu irmatildeo foi baleado e depois morreu Eles mataram

meu irmatildeo A gente foi preso pelo CISA que era a forccedila secreta da

Aeronaacuteutica [] Jaacute na descida do aviatildeo a gente apanhou natildeo se sabe de

quem e nem por onde Depois fomos torturados no aparelho de repressatildeo

deles laacute dentro e de laacute fomos transferidos pro DOI-CODI na PE (Freire 28

jun 2004)

Primeiramente aprisionado pelo Centro de Informaccedilotildees e Seguranccedila da

Aeronaacuteutica (CISA) Fernando foi pouco tempo depois transferido para o DOI-

CODIRJ onde permaneceu cerca de dezoito a vinte dias Posteriormente voltou para

as dependecircncias do CISA no aeroporto do Galeatildeo onde ficou cerca de oito meses ateacute

ser julgado Apoacutes seu julgamento foi conduzido para o Instituto Penal Cacircndido Mendes

(IPCM) presiacutedio de seguranccedila maacutexima localizado em Ilha Grande no estado do Rio de

Janeiro Para Fernando em meio agraves privaccedilotildees que vivia nos oacutergatildeos de repressatildeo ser

transferido para um presiacutedio de fato como o da Ilha Grande era na eacutepoca um desejo

108

Afinal aleacutem de saber que laacute estavam alguns de seus companheiros no IPCM existia

uma rotina de presiacutedio normal com direito a jogar futebol no paacutetio a ler jornais e livros

situaccedilatildeo bem diferente da dos DOI-CODI por exemplo que conforme destacado no

capiacutetulo anterior eram oacutergatildeos estritamente de repressatildeo e investigaccedilatildeo localizados em

quarteacuteis cuja prisatildeo era improvisada apenas para cumprir tais funccedilotildees

Oito meses foi o tempo que a gente ficou laacute na Aeronaacuteutica E aiacute o que eacute a

perspectiva de vida Os sonhos da gente Vocecirc quando estaacute preso o seu

sonho eacute fugir realmente mas se vocecirc natildeo tem perspectiva de fuga o seu

sonho eacute o quecirc Eacute ir pra uma coletividade onde estatildeo os outros presos Entatildeo

meu sonho passou a ser esse ir pra Ilha Grande [] laacute eu sabia que os

companheiros estavam laacute sabia que tinha uma lsquopeladinharsquo que a gente podia

bater uma bola campeonato de xadrez livros para ler coisa que esses caras

sacaneavam tanto a gente que nem livros Jornal Raacutedio Essas coisas Nem

pensar Entatildeo meu sonho era Ilha Grande Apesar de ser um lugar

horroroso Era na eacutepoca um presiacutedio de seguranccedila maacutexima isolado (Freire

28 jun 2004)

Fernando permaneceu mais de seis anos na prisatildeo sendo libertado no dia 29 de

setembro de 1976 Ele e os demais companheiros envolvidos no sequestro tiveram suas

condenaccedilotildees embasadas no artigo 28 do Decreto-lei 898 de 29 de setembro de 1969

que alterava a Lei de Seguranccedila Nacional A partir deste artigo ficava estipulada uma

pena de reclusatildeo que poderia variar de 12 a 30 anos para quem devastasse saqueasse

assaltasse sequestrasse incendiasse depredasse ou praticasse qualquer tipo de atentado

pessoal ato de massacre sabotagem ou terrorismo Aleacutem disso no mesmo artigo havia

um paraacutegrafo uacutenico decretando que se a accedilatildeo resultasse em morte a condenaccedilatildeo seria

no miacutenimo agrave prisatildeo perpeacutetua e no maacuteximo agrave morte

Art 28 Devastar saquear assaltar roubar sequestrar incendiar depredar

ou praticar atentado pessoal ato de massacre sabotagem ou terrorismo

109

Pena reclusatildeo de 12 a 30 anos

Paraacutegrafo uacutenico Se da praacutetica do ato resultar morte

Pena prisatildeo perpeacutetua em grau miacutenimo e morte em grau maacuteximo (Decreto-

lei nordm 898 29 set 1969)

A partir desse decreto durante o julgamento de Fernando tentaram condenaacute-lo agrave

prisatildeo perpeacutetua baseando a argumentaccedilatildeo no fato do sequestro do aviatildeo ter acarretado

uma morte no caso a de seu irmatildeo No entanto como esta morte foi ocasionada pela

repressatildeo militar a pena de Fernando ficou estipulada em doze anos de reclusatildeo e mais

adiante reduzida para seis anos

[] tinha uma lei de seguranccedila nova entrado em evidecircncia os caras queriam

dar o exemplo com pena de morte ou prisatildeo perpeacutetua etc e noacutes fomos os

primeiros casos de pena de morte que eles pediram O meu o de Colombo

Jessie Jane - Jane eacute a ex-diretora daqui [Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio

de Janeiro ndash APERJ] [] tinha um artigo vinte e oito que previa pena capital

ou prisatildeo perpeacutetua em caso de morte Soacute que quem morreu foi um dos

nossos o meu irmatildeo foi morto por eles e eles em cima disso tentando

aplicar essa pena soacute que natildeo colou E eu peguei doze anos Colombo pegou

trinta mas era menor aiacute caiu pra dezoito a Jane de vinte e quatro parece

que a Jane caiu pra dezoito E eu como tinha a questatildeo de ser primaacuterio natildeo

sei mais o quecirc enfim quer dizer eu estou resumindo Aiacute por conta disso

fui condenado e fiquei seis anos [] (Freire 28 jun 2004)

Na eacutepoca da entrevista Fernando trabalhava no Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio

de Janeiro (APERJ) onde possuiacutea um cargo de confianccedila conforme explicado

anteriormente Hoje Fernando Palha Freire eacute comerciante responsaacutevel pela cantina do

primeiro piso do preacutedio do Instituto de Filosofia e Ciecircncias Sociais (IFCS) da

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

110

Padre Maacuterio Prigol26

Padre Maacuterio Prigol nasceu em 12 de novembro de 1928 em Vila Gramado no

municiacutepio de Paulo Bento no Rio Grande do Sul Em 1970 quando foi preso era

assistente da Juventude Operaacuteria Catoacutelica (JOC) e da Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO)

grupos ligados agrave Igreja Catoacutelica criados para atender a problemas de jovens e adultos

trabalhadores 27

Apoacutes o golpe de 1964 organizaccedilotildees como a JOC e a ACO ganharam

forccedila entre muitos trabalhadores devido agraves dificuldades impostas pelo governo militar

para a organizaccedilatildeo em sindicatos

A sede nacional da JOC era aqui no morro de Satildeo Joseacute Operaacuterio atraacutes da

Penitenciaacuteria [antigo Complexo Penitenciaacuterio Frei Caneca] era na favela []

eu trabalhei com a JOC de Satildeo Paulo e depois vim para caacute trabalhava na

Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria que hoje se chama MTC Movimento dos

Trabalhadores Cristatildeos Esse movimento preparava os jovens e adultos dos

sindicatos dos partidos poliacuteticos de todos os setores da sociedade onde haacute

trabalhadores que procuram descobrir os acontecimentos a situaccedilatildeo operaacuteria

e sobretudo melhorar a sua condiccedilatildeo de trabalhador E vamos lembrar que

naquela eacutepoca havia a nova lei [lei 458964] que soacute podia ser diretor do

sindicato quem natildeo tinha nada que comprometesse entatildeo todos aqueles que

lutavam pela greve contra a puniccedilatildeo da greve ou de forma geral pelos

trabalhadores natildeo podiam ser nem diretores de associaccedilotildees nem diretores de

sindicatos [] soacute poderia ser diretor de sindicato quem fosse aprovado pela

Lei de Seguranccedila Nacional (Prigol 28 set 2004)

Padre Maacuterio se destaca entre os ex-prisioneiros entrevistados por aleacutem de ser uma

autoridade de uma instituiccedilatildeo de importacircncia mundial como a Igreja Catoacutelica sua

atuaccedilatildeo ser diferente da dos demais natildeo estando ligada agrave esquerda armada da eacutepoca e

ao meio estudantil Quando foi preso no DOI-CODIRJ em 1970 Padre Maacuterio jaacute natildeo

era mais tatildeo jovem para ser estudante e sua formaccedilatildeo poliacutetica natildeo era a mesma da

26

Entrevista realizada com Padre Maacuterio Prigol em 28 de setembro de 2004 27

A JOC e ACO seratildeo abordadas ainda neste capiacutetulo no item 12 A nova esquerda brasileira

111

geraccedilatildeo que pegava em armas jaacute que sua intenccedilatildeo enquanto assistente da JOC e da

ACO era ajudar os trabalhadores a garantirem os seus direitos e para tanto opunha-se

agraves leis impostas pela ditadura solidificando entre os integrantes dessas associaccedilotildees uma

consciecircncia de reivindicaccedilatildeo classista sem entretanto aspirar propriamente a uma

revoluccedilatildeo socialista

Percebe-se poreacutem que a concomitacircncia entre os periacuteodos prisionais de Padre

Maacuterio e os demais entrevistados natildeo eacute casual Afinal diante da ideia de revoluccedilatildeo

socialista que guiava as accedilotildees armadas que se multiplicavam e ganhavam forccedila apoacutes o

AI-5 a consciecircncia de reivindicaccedilatildeo de classe que a JOC e conforme seraacute abordado

adiante principalmente a ACO disseminavam aos seus trabalhadores eram

interpretadas como ameaccediladoras pela repressatildeo Uma vez que as organizaccedilotildees

guerrilheiras tinham por meta justamente conseguir apoio da classe trabalhadora para

concluiacuterem o plano de revoluccedilatildeo socialista e o trabalho da JOC e da ACO vinha unindo

e organizando uma percepccedilatildeo de classe justamente entre os trabalhadores havia uma

forte propensatildeo que futuramente tais trabalhadores se unissem agrave esquerda em prol da

revoluccedilatildeo socialista

Diante disso explica-se o fato de Padre Maacuterio ter sido preso em meados de 1970

pelos agentes de uma das turmas de busca e apreensatildeo do DOI-CODIRJ durante a

invasatildeo feita ao Instituto Brasileiro de Estudos Sociais (IBRAES) que funcionava na

Casa dos Jesuiacutetas localizada na Rua Bambina no bairro de Botafogo Ele outros

integrantes da JOC e os demais estudantes que assistiam ao curso de desenvolvimento

social foram levados ao DOI-CODIRJ Este curso tinha duraccedilatildeo de aproximadamente

oito meses ao longo dos quais os alunos adquiriam informaccedilotildees sobre o sistema

poliacutetico e econocircmico do Brasil

112

Dias antes dos agentes chegarem ateacute o curso toda a direccedilatildeo nacional da JOC

havia sido presa inclusive dois alunos do IBRAES que foram levados ao DOI-

CODIRJ onde possivelmente sob tortura passaram aos agentes da turma de

interrogatoacuterio preliminar de plantatildeo informaccedilotildees sobre o curso que estava ocorrendo na

Rua Bambina Assim quando os agentes do DOI-CODIRJ chegaram ao local

prenderam todos que estavam participando do curso levando primeiro os militantes e

depois os padres Entre eles estavam Padre Maacuterio e Padre Agostinho de Freitas na

eacutepoca assistente latino-americano da JOC

Noacutes fomos presos natildeo por causa do curso mas porque esses elementos do

DOI prenderam esse pessoal da JOC considerados subversivos e

procuravam um dos assistentes que jaacute tinha sido acusado em Belo Horizonte

de ser subversivo o Padre Manuel de Jesus Ele foi assistente nacional da

JOC mas na eacutepoca natildeo era mais assistente [] entatildeo para prender Manuel

de Jesus foram prendendo toda a direccedilatildeo nacional da JOC que foram

torturados barbaramente torturas como por exemplo os homens

sexualmente em todos os aspectos foram torturados Eram quatro jovens

homens e quatro jovens mulheres e entre esses jovens havia dois alunos do

IBRAES onde eu fazia curso onde vaacuterios desses militantes da JOC tambeacutem

participavam inclusive o Manuel de Jesus Entatildeo no IBRAES os militantes

da JOC foram levados presos primeiro e noacutes padres depois e mais ainda

foi preso o assistente latino-americano da JOC Padre Augustinho Freitas

que hoje trabalha em Nova Iguaccedilu Entatildeo todos noacutes fomos presos []

(Prigol 28 set 2004)

Ao ser preso Padre Maacuterio foi levado diretamente para o DOI-CODIRJ onde

juntamente com os outros padres permaneceu por 54 dias enquanto os jovens

militantes da JOC permaneceram por cerca de trecircs meses Por ser padre sua prisatildeo foi

interrompida pela intervenccedilatildeo de cardeais como explica no trecho a seguir destacado

de seu livro autobiograacutefico

113

D Trevisan D Waldir Dom Aloiacutesio e Padre Celso Pinto que estava ligado

ao Secretariado dos Leigos da CNBB [Conferecircncia Nacional de Bispos do

Brasil] informaram a nossa situaccedilatildeo aos cardeais Mais tarde com a

libertaccedilatildeo de alguns de noacutes realizamos um encontro para discutirmos as

humilhaccedilotildees que sofremos (Prigol 2003 117)

Na eacutepoca em que a entrevista foi concedida Padre Maacuterio aos 75 anos era

missionaacuterio saletino trabalhava na Paroacutequia de Nossa Senhora da Salette no Catumbi e

ainda ocupava o cargo de assistente do MTC (Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos)

antiga Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) Atualmente aos 83 anos Padre Maacuterio ainda

permanece ativamente nessas mesmas funccedilotildees

Ana de Miranda Batista28

Ana Bursztyn nome de solteira de Ana de Miranda Batista nasceu no Rio de

Janeiro em 30 de dezembro de 1948 Era militante estudantil enquanto cursava

Farmaacutecia na UFRJ Foi presa pela primeira perto do clube Botafogo de Futebol e

Regatas localizado na Avenida Venceslau Braacutes no bairro de Botafogo em junho de

1968 juntamente com trezentos estudantes Ela e os demais haviam participado de uma

assembleia estudantil na reitoria da UFRJ no campus da Praia Vermelha que

reivindicava mais verbas do governo federal para o ensino superior Os policiais a

levaram para o DOPS libertando-a no dia seguinte Eleita em outubro de 1968

representante dos estudantes de seu curso participou do Congresso da Uniatildeo Nacional

dos Estudantes (UNE) em Ibiuacutena quando foi novamente capturada pela poliacutecia com

mais de 800 estudantes permanecendo pouco mais de uma semana em reclusatildeo

Ateacute 1968 eu fazia parte do Movimento Estudantil do Diretoacuterio da Faculdade

tudo que tinha de movimento estudantil fazia parte da minha preocupaccedilatildeo

28

Entrevista realizada com Ana de Miranda Batista em 17 de novembro de 2004

114

Em junho a gente foi preso no campus de Botafogo [] Nesse dia em que eu

fui presa pela primeira vez foi um dia que cerca de trezentos estudantes

foram presos porque como a gente estava batalhando por mais verbas era

um dia em que o Conselho Universitaacuterio estava reunido na Praia Vermelha

jaacute que a reitoria era na Praia Vermelha [] laacute pelas tantas veio uma notiacutecia

de que tinham cercado a universidade [] e a gente natildeo estava esperando

isso a gente fazia umas passeatas na cidade mas a barra natildeo era pesada []

Aiacute o reitor decidiu sair na frente dos estudantes e atraacutes dele saiacuteram as

lideranccedilas das faculdades - eu era a lideranccedila da minha faculdade - e depois

uns trezentos estudantes Aiacute eles comeccedilaram a atirar para baixo para o chatildeo

[] e a gente saiu correndo sem enxergar nada e a poliacutecia dando porrada e a

gente sem enxergar nada (risos) Fomos entatildeo andando em direccedilatildeo ao tuacutenel

quando algueacutem disse ldquo- Vem por aqui por aquirdquo Sem saber que era uma

cilada fomos quase os trezentos para laacute Quando a gente entrou ldquo- Todo

mundo pro chatildeordquo Fomos presos no DOPS naquele dia e passamos a noite laacute

[] Daiacute eacute que a gente comeccedilou a fazer as grandes passeatas na cidade ateacute

que comeccedilou a ter passeata sempre mobilizaccedilotildees [] Em outubro de 68 a

gente foi para o Congresso de Ibiuacutena em Satildeo Paulo que foi um congresso

da UNE que estava clandestina na eacutepoca onde fomos todos presos Foi aiacute eacute

que ficou preso natildeo sei cerca de oitocentos estudantes Eles ateacute fizeram um

aacutelbum ficharam todo mundo Esse foi o aacutelbum que eles mostravam na

imprensa e nos cartazes depois porque evidentemente quando a barra

pesou metade das lideranccedilas do movimento estudantil foi para a luta armada

[] mas a gente ficou uma semana preso e depois de uma semana ou dez

dias a gente saiu Mas a barra comeccedilou a pesar mesmo a partir de 13 de

dezembro com o AI-5 [] (Batista 17 nov 2004)

Apoacutes o decreto do AI-5 Ana assim como Antocircnio se aproximou de alguns

integrantes do PCBR poreacutem diferentemente dele natildeo chegou a militar no partido

tornando-se tal como Dulce e Fernando militante da ALN Em Satildeo Paulo para onde

fugiu quando estava sendo perseguida Ana foi presa no dia 14 de julho de 1970 dentro

do magazine Mappin no centro da cidade Na situaccedilatildeo Ana portava uma arma e

115

carregava carteira de identidade falsa pela qual se chamava Naacutedia Zanzin conforme

descreve na passagem abaixo

Quando eu saiacute da casa que a gente estava o Bacuri [codinome de Eduardo

Collen Leite seu companheiro de organizaccedilatildeo] me deu uma arma e dezoito

caacutepsulas porque eu estava sendo procurada [] eu estava com uma carteira

de identidade falsa me chamava Naacutedia Zanzin [] fui presa entatildeo com

nome falso e foi um bafafaacute o cara quis me tirar a arma da matildeo e entatildeo eu

reagi teve um tiro [] Naquele dia eu tinha perdido o lsquopontorsquo [ponto de

encontro com outro militante] porque eu fiquei conversando com a minha

amiga e cheguei atrasada O ponto era perto do centro da cidade e como eu

tinha que esperar duas ou trecircs horas ateacute o proacuteximo encontro eu fiquei

rodando por laacute onde entrei numa loja grande como se fosse a antiga Mesbla

[] chamava-se Mappin Laacute eu fiquei comprando coisas para maquiagem

para mudar a minha cara [] Laacute dentro eles tinham vaacuterios seguranccedilas e um

ou dois deles ficaram em duacutevida se tinham reconhecido ou natildeo quem eu era

e se aproximaram de mim Eu estava na fila para pagar quando se eles se

aproximaram e disseram ldquo- Essas coisas a senhora paga em outro lugarrdquo Aiacute

eu ldquo- Mas eu estou na fila para pagarrdquo Aiacute eles ldquo- Vem com a gente que a

senhora vai pagar em outro lugarrdquo Entatildeo entrei no elevador e fui parar no

seacutetimo andar na parte de seguranccedila da loja Laacute eles queriam que eu me

explicasse Eu tirei tudo o que eu tinha da bolsa eu fui tirando e mostrei para

eles que estava com dinheiro na bolsa e estava na fila para pagar Aiacute eles ldquo-

Natildeo natildeo eacute isso natildeo mas a gente precisa revistarrdquo E eu fui tirando tudo da

bolsa para ver se eles natildeo me revistavam mas eles ldquo- Natildeo a gente vai

revistarrdquo Aiacute comeccedilaram a lutar comeccedilou um pega bolsa e tira bolsa que eu

natildeo queria porque a arma estava no fundo da bolsa Aiacute eu falava ldquo- Natildeo

mas natildeo precisa estaacute tudo aquirdquo Mas natildeo era isso natildeo era porque eles

achavam que eu estava roubando eles desconfiavam de alguma coisa e natildeo

sabiam bem o quecirc e resolveram me revistar Aiacute eu reagi Depois disso

chamaram o delegado e me botaram amarrada na cadeira laacute em cima no

andar da seguranccedila da loja (Batista 17 nov 2004)

116

Esse mesmo episoacutedio foi retratado dois dias depois em um trecho do Jornal da

Tarde de 16 de julho de 1970 conforme Elio Gaspari destaca em seu livro As Ilusotildees

Armadas a Ditadura Escancarada (2002)

[] Ana Bursztyn ex-estudante de farmaacutecia presa [] no magazine Mappin

Um vigilante desconfiara ao vecirc-la colocar cosmeacuteticos numa sacola (da loja)

e levou-a a uma sala onde estava o chefe de seguranccedila Ana meteu a matildeo na

bolsa puxou um Taurus 32 feriu-o com um tiro na perna mas natildeo

conseguiu fugir (Gaspari 2002 299-300)

De fato no momento de sua prisatildeo Ana resistiu e disparou um tiro atingindo no

peacute um dos seguranccedilas da loja que era policial militar Naquele dia Ana foi levada presa

sem saber o que de fato tinha ocorrido com aquele homem Assim em novembro de

1970 mecircs do aniversaacuterio da ldquoIntentona Comunistardquo de 1935 Ana ainda presa leu em

um jornal uma relaccedilatildeo de mortos pelos terroristas divulgada pelos oacutergatildeos de seguranccedila

do governo Laacute o homem em quem havia atirado estava listado como morto e ela como

sua assassina Ana passou a carregar a culpa de tecirc-lo matado ateacute que algum tempo

depois ao vecirc-lo assistindo a seu julgamento constatou que o seguranccedila havia

sobrevivido e que aquela notiacutecia era mais um dos boatos que o governo na eacutepoca

costumava veicular na imprensa a fim de manipular a opiniatildeo puacuteblica

Depois disso durante anos quando eu estava presa no dia da Intentona

Comunista que eu acho que eacute novembro de 1935 colocavam nos jornais em

todos os jornais uma relaccedilatildeo dos mortos pelos terroristas entre aspas que

eacuteramos noacutes [] eu li que o cara laacute Izidoro Zambaldi foi morto pela

terrorista Ana Bursztyn Ele na hora da briga eu briguei com ele ele recebeu

um tiro acho que no peacute esbarrou assim no peacute ele ficou uns dias internado e

saiu ele estava no meu julgamento na audiecircncia Quer dizer e durante

muito tempo eu achando que tinha o matado Era um dos que eles

117

contabilizavam como mortos por noacutes E provavelmente ele estaacute aiacute vivo ateacute

hoje [] (Batista 17 nov 2004)

Ana foi presa portanto por ter sido reconhecida por um policial que tambeacutem

trabalhava como seguranccedila para a loja Mappin Provavelmente isso ocorreu pelo fato

dos organismos de repressatildeo colarem pelos muros da cidade bem como distribuiacuterem

nos estabelecimentos privados muitos folhetos e cartazes com fotos dos ldquoterroristas

procuradosrdquo pela ditadura militar entre os quais Ana A divulgaccedilatildeo de tais fotos era

mais uma forma que os agentes da repressatildeo utilizavam para cercar os suspeitos Assim

qualquer pessoa poderia denunciar e qualquer policial poderia prender tais suspeitos No

entanto caso a prisatildeo natildeo fosse feita pelos agentes do DOI-CODI da respectiva Regiatildeo

Militar obrigatoriamente depois de preso o cidadatildeo considerado ldquosubversivordquo deveria

ser para laacute transferido conforme ocorreu com Ana Afinal como jaacute analisado no

primeiro capiacutetulo o DOI-CODI de cada Regiatildeo concentrava as informaccedilotildees sobre

seguranccedila interna de cada aacuterea portanto laacute existiam as condiccedilotildees necessaacuterias para que a

extraccedilatildeo e anaacutelise das informaccedilotildees que os prisioneiros detivessem fossem trabalhadas

de forma mais eficiente

Diante disso Ana nos primeiros dias de prisatildeo passou pelo DOPS-SP e em

seguida pelo DOI-CODISP sendo posteriormente transferida para o DOI-CODIRJ

Laacute permaneceu por um mecircs voltando para DOI-CODISP passando ainda pelo

DOPSSP Depois de julgada foi levada para o Recolhimento de Presos Tiradentes ndash

localizado na Rua Tiradentes na cidade de Satildeo Paulo ndash para o Presiacutedio de Mulheres ndash

localizado no antigo Complexo Penitenciaacuterio do Carandiru tambeacutem na cidade de Satildeo

Paulo ndash e ainda passou por delegacias das poliacutecias Federal do Rio de Janeiro e de Satildeo

Paulo pelo Presiacutedio do Forte de Copacabana no Rio de Janeiro e por fim pelo

Depoacutesito de Presas Satildeo Judas Tadeu localizado no preacutedio do DOPS-RJ Permaneceu

118

presa por cerca de quatro anos conseguindo liberdade condicional em fevereiro de

1974

Ana de Miranda Batista nome que adotou depois de casada eacute farmacecircutica

bioquiacutemica e na eacutepoca em que concedeu a entrevista era ativista do Grupo Tortura

Nunca MaisRJ (GTNMRJ)

Ceciacutelia Coimbra29

Ceciacutelia Maria Bouccedilas Coimbra nasceu no Rio de Janeiro em 16 de marccedilo de 1941

Ao ingressar no curso de Histoacuteria da Universidade do Brasil atual UFRJ Ceciacutelia que

era por descendecircncia familiar ldquoconservadora e catoacutelicardquo em suas proacuteprias palavras

comeccedilou a questionar-se poliacutetica e religiosamente Iniciou assim sua militacircncia no

Partido Comunista Brasileiro (PCB) clandestino na eacutepoca Entre 1962 e 1963

trabalhou em um programa de alfabetizaccedilatildeo de adultos pelo meacutetodo do educador Paulo

Freire fato que visivelmente a marcou muito Apoacutes o golpe de 64 Ceciacutelia continuou

militando no Partido Comunista poreacutem com muitas discordacircncias ateacute quando comeccedilou

a fazer parte de uma das dissidecircncias do referido partido a Dissidecircncia Comunista da

Guanabara a que ela se refere por ldquoPC da Guanabarardquo

[] eu vim de uma famiacutelia muito tradicional extremamente tradicional meu

pai era um conservador era um cara que era portuguecircs a favor do regime

ditatorial de Salazar A minha matildee era extremamente catoacutelica Tanto que

quando eu entrei para faculdade para fazer Histoacuteria eu era uma pessoa

extremamente conservadora Era lacerdista a favor do Carlos Lacerda

contra Joatildeo Goulart contra os comunistas A minha famiacutelia era muito

anticomunista E quando eu entrei para a faculdade eu ateacute falei isso na

entrevista para a lsquoCaros Amigosrsquo [sua entrevista havia sido capa da Revista

Caros Amigos naquele mesmo mecircs] comecei a ter contato com algumas

29

Entrevista realizada com Ceciacutelia Maria Bouccedilas Coimbra em 30 de novembro de 2004

119

pessoas que eram comunistas e eram pessoas muito interessantes muito

inteligentes e eram pessoas com as quais as duacutevidas que eu tinha com

relaccedilatildeo agrave religiatildeo eu comecei a tirar Porque eu comecei a ler marxismo aiacute

eu comecei a ler materialismo histoacuterico materialismo dialeacutetico e eu comecei

a ver que de repente a religiatildeo era uma coisa produzida pelo proacuteprio

homem [] Eu comecei entatildeo em 6263 a participar de reuniatildeo do Partido

Comunista que era clandestino na eacutepoca e acabei entrando para o Partido

Aiacute comecei a namorar um cara que depois se tornou meu marido e foi preso

comigo que haacute pouco tempo eu ateacute me separei [] Ele jaacute era do Partido

Comunista haacute muito tempo a famiacutelia dele era toda uma famiacutelia formada por

comunistas ao contraacuterio da minha (risos) Em 64 veio o golpe mas aiacute eu

antes disso eu acho que tem a ver porque isso para mim tambeacutem eacute

militacircncia eu fui trabalhar com um programa de alfabetizaccedilatildeo de adultos

pelo meacutetodo Paulo Freire eu trabalhei com o proacuteprio Paulo Freire em 63 um

pouco antes do golpe [] Entatildeo depois do golpe eu continuei militando no

Partido mas jaacute com muitas discordacircncias quer dizer discordava de muita

coisa e aiacute comecei a fazer parte do que se chamou de Dissidecircncia do PC da

Guanabara (Coimbra 30 nov 2004)

Entretanto Ceciacutelia comeccedilou a discordar tanto da luta armada que a Dissidecircncia

Comunista da Guanabara a partir de 1968 veio a adotar quanto do caminho paciacutefico e

institucional defendido pelo PCB se afastando de ambos Dessa forma em 1968

Ceciacutelia Coimbra natildeo militava em nenhuma organizaccedilatildeo mas continuou a manter

contato com muitos companheiros que se tornaram guerrilheiros Destaca-se portanto a

partir do caso especiacutefico de Ceciacutelia como a histoacuteria oral eacute importante para que a

complexidade da militacircncia poliacutetica da eacutepoca seja compreendida Afinal por meio dessa

metodologia torna-se possiacutevel perceber que nem todos os estudantes que estiveram

ligados ao movimento estudantil e agraves dissidecircncias do Partido Comunista em meio ao

arrocho da repressatildeo acompanharam a decisatildeo de partir para a luta armada tomada por

muitas dissidecircncias e nem mesmo resolveram retornar agrave luta paciacutefica travada pelo

Partido Comunista Logo a histoacuteria oral permite atraveacutes dos depoimentos dos

120

militantes daquele tempo observar que tal como Ceciacutelia muitos desses militantes

ficaram principalmente a partir do AI-5 agrave margem da atuaccedilatildeo poliacutetica apesar de natildeo

terem abandonado os ideais de esquerda

Quando foi presa em 1970 Ceciacutelia natildeo estava diretamente relacionada a nenhuma

organizaccedilatildeo esquerdista entretanto como ainda relacionava-se com muitos militantes

guerrilheiros e algumas vezes ateacute mesmo abrigando-os em sua casa tinha informaccedilotildees

consideradas relevantes para os agentes do DOI-CODIRJ o que veio a ocasionar sua

prisatildeo Como vivia de forma legalizada com famiacutelia e emprego Ceciacutelia tinha passado

juntamente com seu marido a ajudar seus companheiros clandestinos Sua casa na

eacutepoca localizada no bairro do Engenho de Dentro na zona norte do Rio de Janeiro

passou a servir como esconderijo para alguns amigos que diferentemente de Ceciacutelia e

Novaes haviam continuado militantes da Dissidecircncia Comunista da Guanabara mesmo

apoacutes sua opccedilatildeo pela luta armada Entre os amigos que receberam guarida em sua casa

estavam Franklin Martins e Fernando Gabeira ambos envolvidos no sequestro do

embaixador norte-americano

Gabeira inclusive esteve hospedado na casa do casal logo apoacutes a libertaccedilatildeo do

referido embaixador sequestrado em setembro de 1969 Por conta disso em agosto de

1970 Ceciacutelia Coimbra e seu marido Joseacute Novaes foram denunciados e presos

[] eu ajudava muito esses companheiros porque eu tinha vida legal eu jaacute

era professora tinha casa tinha filho e meu marido era professor de

Filosofia entatildeo a nossa casa era onde as pessoas se escondiam passavam

uma noite passavam dias escondidos Por exemplo o pessoal do Movimento

estudantil o Franklin Martins o Fernando Gabeira [] todos eles passaram

por laacute entatildeo a gente ajudava muito [] Em 1969 o pessoal do MR-8 que

eram companheiros nossos amigos e tal vieram nos procurar para perguntar

se noacutes poderiacuteamos dar um apoio a um ato a uma accedilatildeo como se dizia na

eacutepoca a uma accedilatildeo que ia acontecer Mas a gente natildeo sabia que era o

sequestro do embaixador E aiacute depois de um tempo a gente ficou com o

121

Fernando Gabeira [] Eacute oacutebvio que depois a gente soube porque foi depois

que eles entregaram o embaixador que eles se esconderam laacute em casa E aiacute a

televisatildeo dava e a gente sacou que o Gabeira estava ali com a gente porque

natildeo tinha como guardar seguranccedila porque jaacute estava na televisatildeo a cara de

todos eles E a gente guardou ele laacute A gente soube que ele tinha participado

do sequestro do embaixador e conversaacutevamos muito sobre isso Ele ficou

algum tempo laacute em casa e depois saiu Um tempo depois a gente foi

denunciado a casa estava sendo observada e a gente natildeo sabia []

(Coimbra 30 nov 2004)

Ceciacutelia e Joseacute Novaes apoacutes terem a casa onde moravam cercada por agentes do

DOPSRJ foram para laacute levados e laacute permaneceram por dois dias No DOPS Ceciacutelia

ficou sob interrogatoacuterio por um dia e meio para que esclarecesse a origem de um

documento encontrado no interior de sua casa No segundo dia de prisatildeo foi levada para

o presiacutedio feminino Satildeo Judas Tadeu localizado no proacuteprio preacutedio do DOPSRJ Apoacutes

permanecerem dois dias e meio no DOPS Ceciacutelia e Novaes foram transferidos para o

DOI-CODIRJ

Ceciacutelia Coimbra ficou cerca de trecircs meses presa no DOI-CODIRJ sendo

libertada em novembro de 1970 Natildeo foi transferida para nenhum outro presiacutedio sendo

libertada diretamente do DOI-CODIRJ por meio da menagem conforme analisado no

primeiro capiacutetulo Sendo assim uma vez que natildeo foi constatado nenhum envolvimento

direto de Ceciacutelia com alguma accedilatildeo ldquosubversivardquo ela estava impedida de sair da cidade

ateacute a data de seu julgamento e durante esse iacutenterim teve que comparecer ao DOI-

CODIRJ regularmente para se apresentar e responder ao Inqueacuterito Policial Militar

(IPM)

Na eacutepoca da entrevista Ceciacutelia aleacutem de vice-presidente do GTMNRJ lecionava

no curso de Psicologia da UFF Atualmente continua com essas mesmas atividades

poreacutem no GTNMRJ ocupa hoje o cargo de presidente

122

12 A nova esquerda brasileira

Para melhor entender as memoacuterias dos ex-prisioneiros poliacuteticos aqui entrevistados

eacute importante caracterizar as organizaccedilotildees de esquerda nas quais os seis militavam

quando foram presos no DOI-CODIRJ Afinal a opccedilatildeo de atuar atraveacutes de certas

organizaccedilotildees estaacute diretamente relacionada com a percepccedilatildeo de mundo que cada um

tinha e tambeacutem com a ousadia a coragem as frustraccedilotildees por que passaram e com tantos

outros sentimentos e sensaccedilotildees que certamente influiacuteram diretamente na construccedilatildeo da

memoacuteria de cada um desses indiviacuteduos sobre o periacuteodo militar

Como jaacute destacamos ao traccedilarmos o perfil dos entrevistados as organizaccedilotildees em

que os estudantes Antocircnio Leite Fernando Palha Dulce Pandolfi e Ana de Miranda

militavam ao serem presos eram o PCBR e a ALN grupos poliacuteticos de esquerda ligados

ao combate armado Jaacute Padre Maacuterio era assistente da ACO e da JOC ndash associaccedilotildees

criadas para atender demandas de jovens e adultos trabalhadores e catoacutelicos Ceciacutelia

Coimbra era a uacutenica que natildeo era diretamente ligada a alguma organizaccedilatildeo na eacutepoca de

sua prisatildeo mas sua participaccedilatildeo anterior na Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-

GB) influenciou de forma indireta em sua prisatildeo e por isso merece ser aqui

considerada A partir disso analisa-se nesta seccedilatildeo de trabalho o PCBR a ANL a JOC a

ACO e a Dissidecircncia Comunista da Guanabara que passou a chamar-se MR-8

Diferentemente da JOC e da ACO que eram associaccedilotildees ligadas ao trabalho

social feito pela Igreja Catoacutelica o PCBR a ANL a DI-GBMR-8 faziam parte do que

vinha sendo nomeado desde a deacutecada de 1960 de nova esquerda brasileira Essa nova

esquerda era formada pelas dissidecircncias do Partido Comunista surgindo como forma de

buscar caminhos alternativos para a transformaccedilatildeo social e segundo Maria Paula

Arauacutejo em A utopia fragmentada (2000) natildeo era um fenocircmeno tipicamente brasileiro

123

ocorrendo concomitantemente em outras partes do mundo como Alemanha Franccedila

Itaacutelia Estados Unidos e Meacutexico 30

As organizaccedilotildees desta nova esquerda brasileira aleacutem de serem marcadas pelo

signo da dissidecircncia e pela busca de caminhos alternativos possuiacuteam outras ideias em

comum Havia entre elas uma forte desconfianccedila em relaccedilatildeo agraves formas tradicionais de

atuaccedilatildeo e representaccedilatildeo poliacuteticas jaacute que os tradicionais partidos comunistas na

avaliaccedilatildeo desses militantes eram travados por complicados aparatos burocraacuteticos Em

oposiccedilatildeo a essa linha dita ldquoconservadorardquo valorizaram a accedilatildeo revolucionaacuteria imediata

Aleacutem disso a maioria recusava a alianccedila com ldquofraccedilotildees das classes dominantesrdquo forma

como viam o Movimento Democraacutetico Brasileiro (MDB) na eacutepoca uacutenico partido de

oposiccedilatildeo consentido pela ditadura militar Enquanto o PCB continuava mantendo o

programa de via paciacutefica para o socialismo a dita nova esquerda defendia a luta armada

como a principal forma de atuaccedilatildeo naquele momento apesar de divergirem entre si

sobre as estrateacutegias a seguir 31

As divergecircncias internas no PCB atingiram o aacutepice por ocasiatildeo dos preparativos

para o VI Congresso do partido convocado para dezembro de 1967 Os debates acerca

das Teses para Discussatildeo veiculadas na Voz Operaacuteria publicaccedilatildeo clandestina do

Comitecirc Central do PCB causaram muita polecircmica Essas Teses propunham que a

derrota da ditadura deveria ser alcanccedilada por meio da alianccedila com setores progressistas

incluindo a burguesia e da participaccedilatildeo do PCB na poliacutetica institucional reafirmando a

opccedilatildeo pelo caminho paciacutefico para a revoluccedilatildeo social Tais Teses geraram uma total

insatisfaccedilatildeo dos setores oposicionistas do PCB que se revoltaram contra o Comitecirc

Central do chamado Partidatildeo Assim sem a participaccedilatildeo dos dissidentes internos o

PCB realizou o seu VI Congresso e reafirmou a ideia trazida pelas Teses

30

Para mais informaccedilotildees ver Arauacutejo 2000 35-72 31

Para mais informaccedilotildees ver Aaratildeo Reis Saacute 2006 15

124

Pelos jornais da grande imprensa os dissidentes souberam do Congresso e de suas

resoluccedilotildees dentre as quais a que expulsava do partido grandes lideranccedilas da Corrente

Revolucionaacuteria Esta corrente do Partidatildeo divergia de seu Comitecirc Central liderado por

Luiacutes Carlos Prestes e havia se organizado nacionalmente sob a denominaccedilatildeo de

Corrente Revolucionaacuteria Entre suas grandes lideranccedilas expulsas a partir das resoluccedilotildees

do VI Congresso do PCB estavam Carlos Marighella liacuteder da Corrente em Satildeo Paulo

Maacuterio Alves liacuteder em Minas Gerais Jacob Gorender liacuteder no Rio Grande do Sul e

Apolocircnio de Carvalho lideranccedila no antigo Estado do Rio de Janeiro32

Dessa forma em 1968 os principais membros da Corrente Revolucionaacuteria

estavam definitivamente afastados do PCB e juntamente com os militantes que os

seguiram se organizaram e formaram outras organizaccedilotildees poliacuteticas o PCBR e a ALN

Os liacutederes Apolocircnio de Carvalho Jacob Gorender e Maacuterio Alves formaram o Partido

Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR) partido clandestino de esquerda em que

Antocircnio Leite militava ao ser preso e o liacuteder Carlos Marighella fundou a Accedilatildeo

Libertadora Nacional (ALN) organizaccedilatildeo clandestina de esquerda adotada por Dulce

Pandolfi Fernando Palha e Ana Batista

Por outro lado existia outra vertente de divergecircncias internas do PCB as

chamadas Dissidecircncias mais conhecidas pela sigla DI formadas basicamente por

setores estudantis Existiam dissidecircncias em vaacuterios estados brasileiros mas seria a da

Guanabara onde Ceciacutelia Coimbra militou anos antes de ser presa que alcanccedilaria maior

destaque no cenaacuterio poliacutetico e estudantil da deacutecada de 1960

32

Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009

125

Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-GB)

As Dissidecircncias Universitaacuterias surgiram no periacuteodo preacute-1964 em meio a diversas

divergecircncias que abalaram o PCB principalmente em suas bases universitaacuterias Em

1964 esses estudantes divergentes se agruparam e comeccedilaram a reunir militantes de

diferentes universidades a fim de articular posiccedilotildees poliacuteticas que natildeo se afinavam com o

que as direccedilotildees do partido haviam estabelecido ndash no jargatildeo comunista eram as

chamadas ldquofraccedilotildeesrdquo As ldquofraccedilotildeesrdquo eram de acordo com o estatuto proibidas dentro do

partido logo eram executadas secretamente A ldquofraccedilatildeordquo da Guanabara foi inicialmente

constituiacuteda por estudantes comunistas das faculdades de filosofia e de direito hoje

pertencentes agrave UFRJ

Em 1965 as divergecircncias entre os dissidentes e a direccedilatildeo do PCB na Guanabara

comeccedilaram a se mostrar evidentes A orientaccedilatildeo do partido era para que seus militantes

fizessem campanha para o candidato a governador da Guanabara Francisco Negratildeo de

Lima indicado pela alianccedila PTB-PSD considerada de oposiccedilatildeo ao regime militar Com

a crescente radicalizaccedilatildeo do movimento estudantil a Dissidecircncia foi ganhando forccedila

Nas eleiccedilotildees parlamentares de 1966 apesar da orientaccedilatildeo do Partidatildeo para que sua

militacircncia votasse em determinados candidatos os dissidentes da Guanabara resolveram

fazer campanha pelo voto nulo ocasionando o rompimento definitivo entre os dois A

antiga ldquofraccedilatildeordquo passaria a ser a Dissidecircncia Comunista da Guanabara uma nova

organizaccedilatildeo independente com orientaccedilatildeo para a luta armada e com ampla influecircncia

no movimento estudantil carioca 33

Entretanto em 1967 a Dissidecircncia Comunista da Guanabara enfrentaria uma

grave crise poliacutetica interna Naquele momento muitos militantes da organizaccedilatildeo

apresentavam posiccedilotildees divergentes sobre quais rumos ela deveria trilhar Alguns

33

Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009

126

achavam que a Dissidecircncia deveria se integrar agrave Corrente Revolucionaacuteria que ainda

estava lutando internamente para mudar o PCB outros almejavam consolidar a

Dissidecircncia Comunista da Guanabara de forma a tornaacute-la uma organizaccedilatildeo nacional

reunindo nela dissidecircncias que ainda deveriam se desvincular do Partidatildeo e um terceiro

grupo a se juntar ao Partido Comunista do Brasil (PC do B) 34

Afinal a partir do V Congresso do PCB realizado em setembro de 1960 sob

influecircncia da revisionismo aprovado no XX Congresso do Partido Comunista Sovieacutetico

tinha sido aprovada uma nova resoluccedilatildeo poliacutetica para o partido Esta apesar da

resistecircncia dos opositires internos que seguiam a linha de pensamento marxista-

leninista modificava o programa do PCB tornando a nova taacutetica do partido a conquista

de um governo nacionalista e democraacutetico por meio de um processo eleitoral e da

pressatildeo de massas excluindo assim a via armada de seu programa Dessa forma foram

afastados da direccedilatildeo do PCB a maioria de seus opositores e eleito um Comitecirc Central

composto em grande parte por destacados revisionistas como Luiacutes Carlos Prestes

Logo em 18 de fevereiro de 1962 a maior parte dos comunistas que se opunham agrave nova

linha do PCB se separaram do partido e atraveacutes de uma Conferecircncia Extraordinaacuteria

aprovaram um programa que defendia a estrateacutegia chinesa de guerra popular

prolongada se aproximando do maoiacutesmo e adotaram a sigla PC do B (Partido

Comunista do Brasil) Em 1969 o PC do B deflagrou na regiatildeo de Tocantins um foco

guerrilheiro que ficou conhecido como Guerrilha do Araguaia esta foi neutralizada

pelos militares no final de 1973 atraveacutes do extermiacutenio de grande parte dos militantes

envolvidos

Em 1967 um ano depois de se tornar independente a resoluccedilatildeo para a crise

interna da Dissidecircncia Comunista da Guanabara foi o seu desmembramento Apoacutes este

34

Para mais informaccedilotildees ver Aaratildeo Reis 1990 e Ridenti 1993

127

desmembramento e duas conferecircncias internas realizadas em 1968 a Dissidecircncia

Comunista da Guanabara consolidou-se novamente como organizaccedilatildeo autocircnoma tendo

suas lideranccedilas agrave frente das grandes manifestaccedilotildees estudantis ndash que chegavam ao auge

de mobilizaccedilatildeo ndash e conquistando espaccedilo no cenaacuterio nacional Com o seu crescimento

junto ao movimento estudantil a DI-GB se ampliou notavelmente Apoacutes a decretaccedilatildeo

do AI-5 que tornava ilegal o movimento poliacutetico-estudantil a DI-GB organizou em

1969 uma nova conferecircncia reafirmando o seu empenho revolucionaacuterio de caraacuteter

comunista assumindo oficialmente a partir de entatildeo sua opccedilatildeo pela luta armada

Nessa eacutepoca Ceciacutelia Coimbra jaacute havia saiacutedo da organizaccedilatildeo e natildeo participava de

nenhum outro grupo de esquerda apesar de manter contato com muitos companheiros

que continuaram na militacircncia Afinal como abordado durante a anaacutelise de sua

trajetoacuteria Ceciacutelia preferiu se desligar por natildeo concordar nem com a poliacutetica paciacutefica do

entatildeo Partidatildeo e nem com a luta armada das demais organizaccedilotildees inclusive da

Dissidecircncia Comunista da Guanabara pois segundo ela achava que estas estavam

muito desvinculadas da sociedade e por isso natildeo teriam ecircxito

[] eu achava que natildeo era por aiacute eu discordava muito da questatildeo da luta

armada mas eu tambeacutem discordava da posiccedilatildeo do Partido Comunista que

era a favor do caminho paciacutefico a favor do caminho institucional parece

muito o PT de hoje a questatildeo da luta institucional que natildeo era pegando em

armas que natildeo era pela luta armada Eu natildeo concordava nem com um nem

com outro porque o pessoal da luta armada estava totalmente desvinculado

da sociedade brasileira entatildeo eu me afastei mas eu continuei com muito

contato com vaacuterios companheiros e aiacute comeccedilou 67-68 [] (Coimbra 30

nov 2004)

Em setembro de 1969 a Dissidecircncia Comunista da Guanabara juntamente com a

ALN elaborou e promoveu o sequestro do embaixador norte-americano no Brasil

128

Charles Burke Elbrick A accedilatildeo teve ecircxito e os envolvidos conseguiram trocar o

embaixador por quinze prisioneiros poliacuteticos entre eles importantes liacutederes estudantis

da antiga DI-GB Durante esse sequestro conforme explicado anteriormente os

militantes da entatildeo Dissidecircncia resolveram mudar o nome da organizaccedilatildeo para

Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro (MR-8) assinando esse novo nome no

manifesto entregue agrave imprensa

A mudanccedila de Dissidecircncia Comunista da Guanabara para MR-8 era na realidade

uma provocaccedilatildeo agrave ditadura Alguns meses antes do sequestro do embaixador americano

a repressatildeo havia desarticulado uma organizaccedilatildeo poliacutetica e anunciado que tinha

destruiacutedo o grupo terrorista Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro Poreacutem de acordo

com Alberto Berquoacute em O sequumlestro dia-a-dia (1997) o oacutergatildeo repressor que havia

prendido aqueles militantes o CENIMAR inventou esse nome pois o grupo capturado

era na verdade a Dissidecircncia do Estado do Rio de janeiro que a rigor se

autodenominava apenas como Organizaccedilatildeo Os militares entatildeo para anunciar a notiacutecia

na imprensa causando um maior impacto atribuiacuteram agrave Organizaccedilatildeo o nome de MR-8

fazendo referecircncia agrave data em que o guerrilheiro socialista Ernesto ldquoCherdquo Guevara havia

sido preso pela Central Intelligence Agency (CIA) na Boliacutevia Dessa forma ao

utilizarem o nome de MR-8 os militantes da ateacute entatildeo Dissidecircncia Comunista da

Guanabara estariam anunciando pertencerem agrave mesma organizaccedilatildeo que os militares

divulgaram meses antes jaacute estar aniquilada desmoralizando-os publicamente 35

Algum tempo depois do sequestro do embaixador a maioria de seus envolvidos

ou foram presos ou mortos pela repressatildeo Fernando Gabeira um dos militantes do MR-

8 envolvidos nessa accedilatildeo era conhecido de Ceciacutelia Coimbra e de seu marido desde a

eacutepoca em que militavam na Dissidecircncia Comunista da Guanabara Assim apoacutes a troca

35

Para mais informaccedilotildees sobre a mudanccedila de nome da Dissidecircncia Comunista da Guanabara para MR-8

ver Berquoacute 1997 72-73

129

do embaixador pelos prisioneiros poliacuteticos Gabeira por estar sendo procurado acabou

se escondendo na casa do casal fato que veio a ocasionar posteriormente a prisatildeo tanto

de Ceciacutelia quanto de seu marido nas dependecircncias do DOI-CODIRJ

Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR)

O partido clandestino pelo qual Antocircnio Leite militava ao ser preso o PCBR

havia sido criado em abril de 1968 a partir da expulsatildeo de liacutederes da Corrente

Revolucionaacuteria do PCB conforme mencionado anteriormente Um dos liacutederes e

tambeacutem fundador do PCBR Jacob Gorender na obra Combate nas Trevas a esquerda

brasileira (1999 111-116) caracteriza-o como marxista tendo por estrateacutegia de accedilatildeo a

combinaccedilatildeo entre guerrilha rural e trabalho de massas nas cidades com vistas agrave

formaccedilatildeo de um Governo Popular Revolucionaacuterio que abriria caminho para a

revoluccedilatildeo socialista

A partir dessa ideia de trabalho com as massas nas cidades o PCBR buscou

integrar-se agraves lutas estudantis de 1968 por meio das quais Antocircnio Leite de Carvalho

conheceu melhor a ideologia e as lideranccedilas do partido e posteriormente resolveu

tornar-se seu militante Aleacutem disso desenvolveu ainda algum trabalho nas faacutebricas nas

aacutereas rurais e promoveu entre os anos de 1969 e 1970 algumas accedilotildees armadas como

assaltos a bancos e roubos de veiacuteculos a fim de financiar a atuaccedilatildeo do partido Contudo

o PCBR sofreu com sucessivas prisotildees de seus liacutederes e integrantes restringindo de tal

forma o seu poder de accedilatildeo que logo no iniacutecio da deacutecada de 1970 jaacute se encontrava quase

totalmente desarticulado

O precoce fracasso do PCBR segundo a avaliaccedilatildeo feita por Antocircnio ainda

durante sua primeira entrevista (12 set 2002) deve-se ao fato da estrateacutegia de revoluccedilatildeo

pregada pelo partido ser utoacutepica Afinal para Antocircnio os militantes e liacutederes do PCBR

130

inclusive ele proacuteprio acreditavam que com algumas poucas accedilotildees urbanas isoladas

conseguiriam o apoio da grande massa ao movimento revolucionaacuterio e tomariam o

poder Por conseguinte entende que foi justamente esse isolamento a causa da grande

derrota do PCBR como se pode conferir no trecho abaixo

Era uma grande utopia faziacuteamos duas accedilotildees urbanas na cidade e achaacutevamos

que essas accedilotildees seriam capazes de fazer as pessoas aderirem ao nosso

movimento e conseguiriacuteamos o apoio da grande massa [] Isso nunca iria

acontecer porque eram movimentos basicamente de conquistas quer dizer

que trabalhavam isolados e foi o isolamento a causa da nossa grande derrota

(Carvalho 12 Set 2002)

Entretanto eacute importante destacar que esta avaliaccedilatildeo soacute pocircde ser feita a partir do

presente quando jaacute se sabia que a luta armada havia sido derrotada muito antes da

ditadura terminar e que a democracia havia se tornado uma realidade Afinal logo apoacutes

o AI-5 a luta armada e a forma de atuar do PCBR representavam para seus militantes

uma forte possibilidade de derrubar a ditadura militar Eles natildeo se submeteriam a

arriscar suas vidas em prol de uma luta na qual natildeo tivessem total convicccedilatildeo Logo

percebe-se um anacronismo na avaliaccedilatildeo que Antocircnio faz sobre sua luta naquele

passado o que eacute muito comum entre as memoacuterias construiacutedas por ex-guerrilheiros da

eacutepoca conforme destacado pela revolta de um dos que concederam seus depoimentos a

Alzira Alves de Abreu em Os anos de chumbo memoacuteria da guerrilha (1998)

B [nome atribuiacutedo ao ex-guerrilheiro pela autora para preservar sua

identidade] comeccedilou chamando a atenccedilatildeo para o fato de que a mamoacuteria

daquela fase histoacuterica eacute muito precaacuteria ldquoNa verdade ela foi muito mal

construiacuteda acabou virando um folclore e acabou se contando a histoacuteria desse

periacuteodo de traacutes para frente ndash quer dizer sabendo que a luta armada natildeo deu

certo vamos contar por que ela natildeo deu certo Na eacutepoca em que ela ocorreu

ela era um campo de possibilidades natildeo era mais do que isso Mas hoje jaacute se

131

comeccedila a falar desse movimento para se mostrar o fim dessa histoacuteria[]

(Abreu 1998 31)

Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN)

A organizaccedilatildeo em que militavam Dulce Pandolfi Fernando Palha e Ana de

Miranda no momento de suas prisotildees a ALN foi fundada por Carlos Marighella em

fevereiro de 1968 depois de deixar o PCB Marighella havia sido expulso do Partidatildeo

sob a alegaccedilatildeo de ter viajado para Havana em Cuba sem a autorizaccedilatildeo do Comitecirc

Central do partido para participar da conferecircncia da Organizaccedilatildeo Latino-Americana de

Solidariedade (OLAS) ndash organizaccedilatildeo que tinha como objetivo estender a revoluccedilatildeo

armada por toda a Ameacuterica Latina nos moldes da Revoluccedilatildeo Cubana de 1959

Em apoio a Marighella apoacutes sua expulsatildeo do PCB as bases de Satildeo Paulo tambeacutem

se desligaram do partido e formaram o Agrupamento Comunista de Satildeo Paulo O

Pronunciamento desse grupo em fevereiro de 1968 fundou oficialmente a Accedilatildeo

Libertadora Nacional (ALN) muito embora o primeiro quadro de militantes da

organizaccedilatildeo tenha ido treinar em Cuba ainda em setembro de 1967 36

O nome Accedilatildeo Libertadora Nacional seria uma referecircncia agrave Alianccedila Nacional

Libertadora organizaccedilatildeo poliacutetica criada em 1935 composta por setores de diversas

correntes ideoloacutegicas basicamente a fim de lutar contra a influecircncia fascista no Brasil

Nesse mesmo sentido a ALN tambeacutem visava aleacutem da luta socialista a libertaccedilatildeo

nacional buscando adquirir igual ecircxito na congregaccedilatildeo de grande parte da esquerda

brasileira em torno de seus objetivos como ANL havia conseguido durante a deacutecada de

30 No entanto diferentemente da Alianccedila Nacional Libertadora a Accedilatildeo Libertadora

36

Para mais informaccedilotildees ver Lima 2007 31

132

Nacional natildeo era configurada por uma poliacutetica de alianccedilas mas pelo combate pela accedilatildeo

direta 37

Quanto ao programa da organizaccedilatildeo a ALN tinha por estrateacutegia maior a guerrilha

rural embora sua tarefa taacutetica estivesse concentrada nas cidades onde a maior parte de

suas accedilotildees ocorria Essas accedilotildees urbanas eram consideradas pela organizaccedilatildeo como um

meio de apoio para propaganda poliacutetica para obtenccedilatildeo de fundos (atraveacutes de

expropriaccedilotildees como assaltos a bancos) para recrutamento de quadros para a guerrilha e

para ataques estrateacutegicos ao inimigo Aleacutem disso a ALN permitia a existecircncia de

pequenos grupos com total independecircncia taacutetica desde que estivessem subordinados agrave

sua estrateacutegia geral Dessa forma sua estrutura pode ser entendida como horizontal sem

hierarquias jaacute que segundo Denise Rollemberg em Esquerdas revolucionaacuterias e luta

armada (2003) o militante da ALN que se considerasse capaz de fazer accedilotildees era

incentivado a agir e natildeo a ficar esperando a orientaccedilatildeo de um poder centralizado Afinal

uma das criacuteticas da antiga Corrente Revolucionaacuteria do PCB da qual o liacuteder da ALN

Marighella foi integrante era justamente sobre a centralizaccedilatildeo e como esta emperrava a

atuaccedilatildeo do partido Dessa forma a ALN atuava por meio de diversos grupos

multiplicando suas accedilotildees

A partir disso percebe-se como o sequestro do aviatildeo da Companhia Cruzeiro do

Sul efetuado pelo pequeno grupo que Fernando Palha integrava pocircde ser executado

dentro da ALN assim como os inuacutemeros assaltos a bancos e carros-fortes e os

sequestros a embaixadores em que outros pequenos grupos ligados agrave ALN estiveram

envolvidos Dessa forma nota-se tambeacutem como e por que a ALN se tornou a maior

organizaccedilatildeo de luta armada da eacutepoca e por conseguinte Marighella e seus demais

militantes os mais procurados pela ditadura militar 38

37

Para mais informaccedilotildees ver Lourenccedilo 2005 191 38

Para mais informaccedilotildees ver Gorender 1999

133

No trecho seguinte retirado da entrevista de Fernando Palha destaca-se como

muitos desses pequenos grupos da ALN tinham espaccedilo para planejar e administrar suas

proacuteprias accedilotildees sem se desligarem da Accedilatildeo

Eu era da ALN Accedilatildeo Libertadora Nacional era a maior organizaccedilatildeo de luta

armada que tinha na eacutepoca A Jane [Jessie Jane] por exemplo veio para caacute

para Niteroacutei jaacute fugida de Satildeo Paulo onde prenderam o pai prenderam a matildee

a famiacutelia dela toda sabe O pai natildeo era de nenhuma organizaccedilatildeo mas dava

guarida [] ele era um cara politizado e ela tambeacutem e quando ela veio para

caacute para Niteroacutei ela entrou para o nosso grupo de estudo Estudaacutevamos o

marxismo guerrilhas enfim aprendendo um pouco Aiacute a gente pensando

em como soltar eles [os pais de Jessie Jane] surgiu a ideacuteia de sequestrar o

aviatildeo O sequestro do aviatildeo foi tranquilo difiacutecil foi a negociaccedilatildeo da troca

dos passageiros pelos presos que a gente queria (Freire 28 jun 2004)

Essas variadas e espalhadas accedilotildees da ALN repercurtiram de forma negativa entre

os militares dos oacutergatildeos repressivos Afinal a atuaccedilatildeo descentralizada da ALN permitia

que uma grande quantidade de accedilotildees ldquoterroristasrdquo fossem atribuiacutedas ao movimento

tornando-o aos olhos dos agentes da repressatildeo mais ameaccedilador e perigoso agrave

manutenccedilatildeo do regime ditatorial Essa percepccedilatildeo dos militares pode ter causado reflexos

no cotidiano prisional de militantes ligados direta ou indiretamente agrave referida

organizaccedilatildeo como Dulce Fernando Ana e Ceciacutelia39

ndash considerada militante indireta

por ter escondido em sua casa um dos atores do sequestro do embaixador norte-

americano accedilatildeo conjunta entre MR-8 e ALN

39

No terceiro capiacutetulo a anaacutelise da memoacuteria dos seis entrevistados (Antocircnio Dulce Fernando Padre

Maacuterio Ana e Ceciacutelia) se concentra no cotidiano prisional vivido no DOI-CODI carioca

134

Juventude Operaacuteria Catoacutelica (JOC) amp Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO)

A Juventude Operaacuteria Catoacutelica a JOC uma das organizaccedilotildees de que Padre Maacuterio

era assistente no momento de sua prisatildeo surge no Brasil em iniacutecio dos anos 1930

ganhando forccedila apenas a partir de fins de 1940 A JOC objetivava melhorar a vida do

jovem trabalhador atraveacutes de uma accedilatildeo evangelizadora e formadora de uma consciecircncia

criacutetica Eacute a responsaacutevel pela criaccedilatildeo do meacutetodo pedagoacutegico ldquoVer-Julgar-Agirrdquo

ensinando seus jovens a ver o problema a julgaacute-lo agrave luz do Evangelho e a agir para

transformar sua condiccedilatildeo de classe trabalhadora explorada

A JOC que apresentava uma posiccedilatildeo mais conservadora ateacute meados da deacutecada de

1950 a partir do golpe de 1964 assume outra orientaccedilatildeo poliacutetica de caraacuteter mais

progressista realizando uma reflexatildeo mais profunda no que se refere agrave condiccedilatildeo da

classe trabalhadora do paiacutes e da Ameacuterica Latina o que ocasiona uma maior repressatildeo

por parte do governo ditatorial brasileiro Atraveacutes da JOC a criaccedilatildeo da Accedilatildeo Catoacutelica

Operaacuteria (ACO) ndash outra organizaccedilatildeo de que Padre Maacuterio tambeacutem participava no

momento de sua prisatildeo ndash foi incentivada comeccedilando a ser organizada em fins da

deacutecada de 1950 em funccedilatildeo do grande nuacutemero de militantes que haviam chegado agrave idade

adulta mas desejavam continuar a atuar por meio da organizaccedilatildeo

A ACO nasce entatildeo da Liga Operaacuteria Catoacutelica (LOC) que era um movimento

destinado aos adultos ligados agrave Igreja e inicialmente com forte preocupaccedilatildeo

assistencialista assumindo gradativamente um vieacutes poliacutetico e uma identidade de classe

Assim a partir da LOC a ACO brasileira surge de fato em 1962 apresentando-se como

uma continuidade da JOC para que os jovens trabalhadores pudessem quando adultos

permanecerem a atuar politicamente Muitos eram os pontos em comum dos dois

movimentos que vatildeo desde os mesmos participantes que migravam de um para o outro

ao atingirem a idade adulta como a aplicaccedilatildeo do mesmo meacutetodo de accedilatildeo ldquoVer-Julgar-

135

Agirrdquo Entretanto segundo Alejandra Luisa Magalhatildees Estevez em sua dissertaccedilatildeo de

mestrado (2008) O movimento dos trabalhadores catoacutelicos a Juventude Operaacuteria

Catoacutelica (JOC) e a Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) diferentemente da JOC que a

partir de 1969 com a prisatildeo de muitos de seus integrantes ndash como o proacuteprio Padre

Maacuterio Prigol ndash foi perdendo forccedilas e acabou desaparecendo a atuaccedilatildeo da ACO durante

o periacuteodo militar caracterizou-se pelo enfrentamento constante com a hierarquia

eclesiaacutestica e com os proacuteprios militares

Dessa forma Padre Maacuterio que antes de ser preso em 1970 era assistente tanto da

JOC quanto da ACO apoacutes sua prisatildeo deu continuidade ao seu trabalho junto agrave ACO o

que ainda faz atualmente Afinal a ACO permanece em atividade ateacute os dias de hoje

poreacutem sob o nome de Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos (MTC)

Logo mesmo com diferentes atuaccedilotildees no cenaacuterio poliacutetico da eacutepoca as

organizaccedilotildees acima tratadas nas quais os ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados

militavam direta ou indiretamente tinham por confluecircncia algum tipo de manifestaccedilatildeo

em oposiccedilatildeo agrave ditadura militar Entretanto apesar dessa face comum ser o motivo

principal de suas prisotildees as diferenccedilas na forma de agir de suas organizaccedilotildees pode ter

se refletido na intensidade das violecircncias a que foram submetidos no DOI-CODIRJ

Diante disso no capiacutetulo seguinte a partir da anaacutelise das memoacuterias dos seis

entrevistados essa relaccedilatildeo entre a organizaccedilatildeo de esquerda do militante e o seu

tratamento na prisatildeo seraacute abordada assim como os demais aspectos que caracterizavam

o cotidiano vivido no DOI-CODIRJ durante o ano de 1970

136

Capiacutetulo 3 ndash O espaccedilo e o cotidiano do DOI-CODI carioca

A lua

Tal qual a dona de um bordel

Pedia a cada estrela fria

Um brilho de aluguel

E nuvens

Laacute no mata-borratildeo do ceacuteu

Chupavam manchas torturadas

Que sufoco

Louco

O becircbado com chapeacuteu-coco

Fazia irreverecircncias mil

Praacute noite do Brasil

Meu Brasil

Aldir Blanc e Joatildeo Bosco

(O Becircbado e a Equilibrista 1979)

137

1 O que sofre e o que resiste

Os depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ fontes essenciais

para esta pesquisa encontram aqui um desfecho primordial Finalmente uma de suas

especificidades mais importantes eacute aqui trabalhada a possibilidade que trazem de

acessar desde os aspectos mais subjetivos do dia-a-dia do DOI-CODIRJ aos mais

triviais Diante disso neste capiacutetulo torna-se possiacutevel uma caracterizaccedilatildeo da rotina

institucional ali vivida pelos prisioneiros em 1970 trazendo agrave tona detalhes e

sentimentos que compunham esse cotidiano que haacute deacutecadas jaacute natildeo existe mais Essa

faccedilanha natildeo seria possiacutevel atraveacutes de qualquer outra fonte senatildeo a oral Somente as

memoacuterias trazidas nas narrativas orais quando devidamente trabalhadas satildeo capazes de

aproximar-se das sensaccedilotildees e sentimentos vivenciados naquele passado amenizando a

sua corrosatildeo pelo tempo e as lacunas encontradas na histoacuteria da ditadura militar

Diante disso a memoacuteria eacute aqui tratada como material para a histoacuteria conforme

elucidado por Paul Ricoeur em A memoacuteria a histoacuteria e o esquecimento (2008) Nessa

mesma direccedilatildeo vai Fernando Catroga em seu artigo A representaccedilatildeo do ausente

memoacuteria e historiografia (2010) pelo qual busca entender a escrita da histoacuteria como um

rito de memoacuteria anaacutelogo ao ldquogesto de sepulturardquo Afinal a escrita da histoacuteria tem uma

funccedilatildeo anaacuteloga agrave do tuacutemulo e agrave dos ritos de recordaccedilatildeo ajudando tal como no trabalho

do luto a pagar as diacutevidas do presente com o passado que jaacute natildeo existe mais Essa

analogia mostra que se o tuacutemulo eacute o primeiro monumento dos mortos deixado para os

vivos a escrita da histoacuteria tambeacutem atua no sentido de lutar contra o esquecimento e a

degradaccedilatildeo que marcam a passagem do tempo Logo tal como acontece quando se

visita o tuacutemulo de um cemiteacuterio a escrita da histoacuteria sobre o cotidiano do DOI-

CODIRJ pretende contribuir para que agindo sobre os vivos esse passado se

transforme de ldquolugar de sepulturardquo para o de ldquogesto de sepulturardquo (Ricoeur 2008) Essa

138

analogia do tuacutemulo com a escrita da histoacuteria tem como principal ponto em comum a

construccedilatildeo do passado a partir de traccedilos e de representaccedilotildees que almejam situar no

tempo algo que natildeo existe mais O cotidiano do DOI-CODIRJ passa aqui a ser escrito

por meio da anaacutelise de vestiacutegios e representaccedilotildees apresentados nas memoacuterias de seis

dos seus ex-prisioneiros poliacuteticos tal como ocorre com a representaccedilatildeo memorial de

uma sepultura

Evidencia-se que as memoacuterias aqui trabalhadas especialmente por evocarem

fatos vividos pelas proacuteprias testemunhas estatildeo permeadas de razotildees subjetivas

normativas e pragmaacuteticas que satildeo condicionantes e geram efeitos incontrolaacuteveis

resultando em uma construccedilatildeo qualitativa seletiva e apaixonada do passado Daiacute a

importacircncia do olhar criacutetico do historiador sobre essas memoacuterias uma vez que a funccedilatildeo

deste eacute justamente inserir os aspectos criacuteticos objetivos e analiacuteticos da histoacuteria na

fluidez emoccedilatildeo e submissatildeo aos influxos da conjuntura caracteriacutesticos da memoacuteria

(Nora 1993)

Portanto eacute imperativo analisar criticamente essas memoacuterias sobre o cotidiano do

DOI-CODIRJ mesmo sabendo das dificuldades que envolvem essa accedilatildeo como bem

aponta Beatriz Sarlo em Tempo passado Cultura da memoacuteria e guinada subjetiva

(2007) Afinal satildeo depoimentos de viacutetimas cuja confiabilidade sobre as torturas sofridas

na prisatildeo natildeo soacute foi elemento constituinte da instalaccedilatildeo do regime democraacutetico como

ainda eacute responsaacutevel pela solidificaccedilatildeo de um princiacutepio de reparaccedilatildeo e justiccedila Poreacutem

deve-se antes de tudo encaraacute-los como discursos testemunhais pois seguem o modo

persuasivo caracteriacutestico do discurso e por conseguinte natildeo podem ser cristalizados

Afinal esses seis testemunhos satildeo feitos por narradores que buscam firmar no passado a

verdade do presente jaacute que a narrativa no presente tem uma inevitaacutevel hegemonia sobre

o passado conforme bem enuncia Sarlo no trecho abaixo

139

O presente da enunciaccedilatildeo eacute o ldquotempo de base do discursordquo porque eacute

presente o momento de se comeccedilar a narrar e esse momento fica inscrito na

narraccedilatildeo Isso implica o narrador em sua histoacuteria e a inscreve numa retoacuterica

da persuasatildeo (o discurso pertence ao modo persuasivo diz Ricoeur) Os

relatos testemunhais satildeo ldquodiscursordquo nesse sentido porque tecircm como

condiccedilatildeo um narrador implicado nos fatos que natildeo persegue uma verdade

externa no momento em que ela eacute enunciada Eacute inevitaacutevel a marca do

presente no ato de narrar o passado justamente porque no discurso o

presente tem genuiacutena hegemonia reconhecida como inevitaacutevel e os tempos

verbais do passado natildeo ficam livres de uma ldquoexperiecircncia fenomenoloacutegicardquo

do tempo presente da enunciaccedilatildeo ldquoO presente dirige o passado assim como

um maestro seus muacutesicosrdquo escreveu Italo Severo (Sarlo 2007 49)

Daiacute destaca-se novamente a importacircncia de considerar o tempo presente como

base do discurso das memoacuterias sobre o cotidiano do DOI-CODIRJ trabalhadas neste

capiacutetulo evocando mais uma vez a elucidativa expressatildeo preacutesent du passeacute de Robert

Frank (1999) O presente a partir de onde falam os seis entrevistados como ex-

prisioneiros poliacuteticos corresponde a um momento em que a democracia brasileira para a

maioria deles dava passos largos em direccedilatildeo a sua total magnitude o presente vivido no

raiar dos anos 2000 vinha se distanciando poliacutetica e socialmente do passado ditatorial

militar Quem presidia o paiacutes eram antigos opositores poliacuteticos do governo militar os

ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva que vinham

construindo garantias de reparaccedilatildeo aos que sofreram violaccedilotildees aos direitos humanos

durante o passado ditatorial

Estava em curso o reconhecimento dos mortos e desaparecidos poliacuteticos pelo

Estado brasileiro bem como a indenizaccedilatildeo agraves famiacutelias por intermeacutedio da Lei nordm 9140

de 1995 e a reparaccedilatildeo financeira aos males sofridos por aqueles presos ou perseguidos

na eacutepoca da ditadura militar garantida pela Lei nordm 10559 de 2002 Eram esses fatos

140

que compunham o cenaacuterio do presente vivido durante as entrevistas e obviamente

influenciaram diretamente a construccedilatildeo das narrativas dos ex-presos poliacuteticos sobre o

cotidiano do DOI-CODI carioca

Essas influecircncias acabaram em alguns casos direcionando suas narrativas para

os detalhes dos horrores a que foram submetidos e para as sequelas deixadas pelas

torturas daquele tempo a fim de natildeo suscitar duacutevidas sobre o merecimento agrave reparaccedilatildeo

oferecida pelo Estado Afinal o DOI-CODIRJ correspondeu ao espaccedilo onde esses

presos poliacuteticos viveram um dos cotidianos mais violentos de todo o periacuteodo em que

estiveram na prisatildeo Ao enfatizarem em detalhes o lado duro dessa rotina prisional os

entrevistados ambicionavam fortalecer a interpretaccedilatildeo vigente sobre seu papel de viacutetima

e ao mesmo tempo de resistente a um Estado ditatorial Ao procurarem conquistar a

entrevistadora os entrevistados viam-se envolvidos no processo de enquadramento da

memoacuteria sobre a ditadura militar brasileira no sentido atribuiacutedo por Michael Pollak

(1992) O objetivo entre outros era o de fortalecer perante a sociedade e o governo

uma memoacuteria que a eles conferisse o duplo lugar de resistente e de viacutetima e endossasse

a necessidade de reparaccedilotildees financeiras e simboacutelicas aos atingidos

A reparaccedilatildeo financeira aos violentados pela ditadura militar jaacute vinha acontecendo

na eacutepoca em que as entrevistas foram concedidas por meio das leis que implantaram a

Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos e a Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio

da Justiccedila citadas anteriormente e abordadas no segundo capiacutetulo Jaacute a reparaccedilatildeo

simboacutelica soacute comeccedilaria a ser de fato implantada alguns anos depois das entrevistas

principalmente com as Caravanas da Anistia a partir de abril de 2008 e mediante a

aprovaccedilatildeo da Comissatildeo da Verdade pelo Congresso Nacional em outubro de 2011 As

Caravanas da Anistia satildeo sessotildees puacuteblicas itinerantes de apreciaccedilatildeo de requerimentos de

anistia poliacutetica a perseguidos poliacuteticos da ditadura militar acompanhadas por atividades

141

educativas e culturais promovidas pela Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio da Justiccedila

Jaacute a Comissatildeo da Verdade teraacute como finalidade examinar e esclarecer graves violaccedilotildees

de direitos humanos praticadas entre os anos de 1946 e 1988 a fim de promover a

reconciliaccedilatildeo nacional com o seu passado histoacuterico

Eacute faacutecil perceber que os entrevistados em seus testemunhos-discursos acabam

atribuindo um sentido uacutenico agrave histoacuteria e conforme salienta Beatriz Sarlo (2007) ao

acumularem detalhes em suas narrativas produzem um modo realista-romacircntico pelo

qual atribuem sentidos a todos os detalhes mencionados somente pelo fato de incluiacute-los

no relato sem se sentirem na obrigaccedilatildeo de atribuir sentidos ou explicar as ausecircncias ali

tambeacutem apresentadas Dessa forma a anaacutelise aqui traccedilada procura trabalhar de forma

criacutetica no sentido de reconhecer a face realista dos detalhes descritos pelos narradores

e ao mesmo tempo a face romacircntica construiacuteda por eles de forma a fortalecer a

credibilidade e a veracidade de sua narraccedilatildeo Uma vez que diferentemente do que datildeo a

entender os entrevistados ao narrarem suas proacuteprias vidas a anaacutelise histoacuterica do

presente trabalho firma-se longe da utopia de uma narraccedilatildeo total capaz de descrever

todo o passado estudado reconhecendo a necessidade de operar com elipses

No entanto se por um lado os detalhes mencionados nos depoimentos devem ser

submetidos ao pensamento criacutetico histoacuterico por outro lado satildeo exatamente eles que

enriquecem a anaacutelise de um cotidiano jaacute que os detalhes trazidos pelos depoimentos

conseguem muitas vezes tornar a rotina do dia-a-dia que jaacute natildeo mais existe palpaacutevel

ao entendimento Eacute o que ocorre por exemplo com a disposiccedilatildeo espacial interna do

preacutedio-sede do DOI-CODIRJ fator que estaacute intrinsecamente relacionado ao cotidiano

prisional e que torna-se passiacutevel de caracterizaccedilatildeo atraveacutes dos detalhes contidos nos

depoimentos Assim mesmo natildeo sendo possiacutevel visitar o interior do edifiacutecio e nem ter

acesso a alguns registros documentais como fotos ou outros documentos eacute possiacutevel

142

contrapor as descriccedilotildees contidas nos depoimentos com a fachada do preacutedio que ainda

existe e construir uma percepccedilatildeo aproximada sobre o espaccedilo em que de certa forma

essas memoacuterias estatildeo ancoradas

2 Uma cartografia possiacutevel do ldquoCastelo do Terrorrdquo

Constatada essa forte relaccedilatildeo entre as memoacuterias dos ex-prisioneiros que ali

ficaram presos em 1970 com o espaccedilo interno do 1ordm BPE resolvi tentar ver de perto

como este era distribuiacutedo No entanto muitas dificuldades foram encontradas e

inviabilizaram o meu projeto inicial de contrapor o que restava do interior do edifiacutecio

que sediou o DOI-CODIRJ com as memoacuterias de seus ex-prisioneiros

Em 2003 a minha primeira tentativa de visitar o interior do preacutedio do 1ordm BPE foi

interrompida no momento em que apresentei o propoacutesito de minha visita o interesse em

ver o preacutedio do DOI-CODIRJ Percebi imediatamente que o ldquoassunto DOI-CODIrdquo

gerava um grande desconforto para aquele Batalhatildeo Talvez porque apesar do referido

Batalhatildeo natildeo ter tido relaccedilatildeo direta com o DOI-CODIRJ pois eram instituiccedilotildees

distintas o fato desse oacutergatildeo repressivo ter sido instalado em seu interior evoca uma

forte relaccedilatildeo que atualmente imprime uma imagem negativa para seus militares

Percebe-se assim que o 1ordm BPE quer apagar da memoacuteria social sua associaccedilatildeo ao DOI-

CODIRJ o que explica o fato de seus militares natildeo permitirem que eu prosseguisse

com a visita

No ano seguinte em novembro tentei pela segunda vez visitar o interior do dito

edifiacutecio Prevendo dificuldades para a visita utilizei como pretexto uma suposta

pesquisa sobre patrimocircnios histoacutericos do bairro Um primeiro-sargento que se

apresentou como graduado em histoacuteria acompanhou-me pelo paacutetio interno do

complexo Durante o passeio por este espaccedilo ele apontava de longe para os preacutedios que

143

ficavam ao redor inclusive para o que sediava o DOI-CODIRJ agrave esquerda e ao fundo

daquele paacutetio a ceacuteu aberto Ao referir-se ao local o sargento apontou de longe e disse

ldquoLaacute funciona o DOI-CODIrdquo deixando transparecer que ateacute aquele momento natildeo

existia uma nova serventia para aquele local e que a estrutura do DOI-CODI havia sido

preservada Nada mais quis falar alegando que natildeo poderia dar explicaccedilotildees mais

amplas sobre o assunto e que aleacutem do mais eu natildeo poderia me aproximar das

instalaccedilotildees que me interessavam

Esta segunda visita corroborou a minha sensaccedilatildeo anterior de que os militares

daquele Batalhatildeo natildeo queriam que este ficasse historicamente associado ao DOI-CODI

percebendo a imagem negativa que essa associaccedilatildeo poderia conferir-lhes tentando

evitar a manutenccedilatildeo do viacutenculo daquele preacutedio com a memoacuteria das torturas e mortes ali

executadas nos chamados ldquoanos de chumbordquo

Aleacutem disso esta visita trouxe-me um dado novo ao apresentar aquele preacutedio

como sendo o ldquoDOI-CODIrdquo no presente do indicativo o sargento deixou perceptiacutevel

um interesse interno em preservaacute-lo Afinal por que ateacute aquele momento mesmo o

DOI-CODI natildeo estando mais em atividade o seu espaccedilo natildeo havia sido utilizado para

nenhuma outra funccedilatildeo permanente Este interesse reflete talvez um forte orgulho

interno de importantes setores do Exeacutercito pelos feitos do DOI-CODI no sentido de

para alguns mais radicais ter sido esta instituiccedilatildeo uma das principais defensoras da

soberania e da ordem nacional na eacutepoca ameaccediladas pela subversatildeo

Apesar de tais empecilhos os detalhes relatados pelos entrevistados viabilizariam

uma aproximada cartografia espacial do interior do DOI-CODIRJ de 1970 quando eles

laacute estiveram Essa cartografia fez-se aqui necessaacuteria por entender-se que essa disposiccedilatildeo

espacial eacute essencial para a anaacutelise das memoacuterias sobre o cotidiano ali vivido uma vez

que esse espaccedilo prisional estaacute presente a todo o tempo nos relatos de Antocircnio Dulce

144

Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia sendo um dos principais pontos de uniatildeo de suas

memoacuterias

Sendo assim defende-se aqui que o antigo preacutedio do DOI-CODI carioca eacute hoje

um lugar de memoacuteria jaacute que a ele se confere de forma simultacircnea e em graus diversos

os trecircs sentidos atribuiacutedos como necessaacuterios por Pierre Nora o material o simboacutelico e o

funcional (Nora 1993 21) O sentido material no caso eacute o proacuteprio espaccedilo fiacutesico o

preacutedio do 1ordm BPE ainda localizado agrave Rua Baratildeo de Mesquita nordm 425 no bairro da

Tijuca O simboacutelico eacute o que o edifiacutecio representa para parte da sociedade carioca que

partilha as memoacuterias dos ex-presos poliacuteticos e seus familiares sobre o violento

cotidiano as torturas e as mortes ali vivenciados atribuindo ao preacutedio o significado de

ldquoCastelo do terrorrdquo Por fim o sentido funcional eacute a atividade de preservaccedilatildeo da

memoacuteria da ditadura militar ali exercida jaacute que o preacutedio eacute um monumento tombado sob

a justificativa de guardar a memoacuteria ali vivida durante a ditadura militar brasileira e natildeo

deixar que ela venha a cair no esquecimento Este uacuteltimo sentido portanto embute ao

preacutedio o significado completo de um lugar de memoacuteria congregando ao espaccedilo uma

funccedilatildeo e uma representaccedilatildeo simboacutelica ou seja unindo os aspectos material simboacutelico e

funcional

145

Foto Nordm1 fachada entrada principal e paacutetio interno do quartel do 1ordm BPE (Bettamio dez 2004)

Este tombamento foi feito pela Prefeitura do Rio de Janeiro em 1993 e tem por

setor responsaacutevel a Subsecretaria municipal de Patrimocircnio Cultural lei nordm 1954 de

29039340

Seu processo teve iniacutecio atraveacutes da solicitaccedilatildeo de moradores da localidades

da Tijuca Grajauacute Andaraiacute e Praccedila Saens Pentildea que utilizaram para embasar o referido

ato o fato de parte do edifiacutecio do 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito ter abrigado o DOI-

CODI do Rio de Janeiro durante toda a deacutecada de 1970 e iniacutecio dos anos 1980

ressaltando a sua importacircncia para a memoacuteria da resistecircncia e luta pelo fim da ditadura

militar

Percebe-se ainda a grande importacircncia atribuiacuteda a essa memoacuteria quando se

destaca que mesmo o edifiacutecio tendo um valor histoacuterico anterior agrave fase em que cedeu

parte de seu espaccedilo ao DOI-CODIRJ o pedido de tombamento feito pela populaccedilatildeo

fundamentava-se no que ali havia ocorrido em tempos recentes durante a ditadura

militar Afinal esses requerentes propunham que o edifiacutecio fosse tirado do Exeacutercito e

desse lugar a um centro cultural com museu da memoacuteria da luta pela liberdade

40

Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro antigo Departamento Geral de

Patrimocircnio Cultural (DGPC) Nordm do processo 1200433692 1degdocumento de solicitaccedilatildeo de tombamento

26101992

146

O edifiacutecio foi construiacutedo em 1857 pela Imperial Coroa para servir de sede a um

Hospital Militar entretanto laacute se instalou o 1ordm Regimento de Cavalaria Ligeira e

posteriormente o Hospital Militar da Corte com funcionamento ateacute fevereiro de 1877

Desde entatildeo a construccedilatildeo foi utilizada pela Escola do Estado Maior pelo 2ordm Batalhatildeo

de Caccediladores pela Escola de Intendecircncia e a partir de 1946 pelo 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia

do Exeacutercito 41

Em ampla aacuterea estaacute situado na confluecircncia da Rua Baratildeo de Mesquita com a

Avenida Maracanatilde abrangendo tambeacutem a Praccedila Lamartine Babo Conforme pode ser

observado na paacutegina anterior Foto Nordm1 ao redor de todo o espaccedilo ocupado pelo preacutedio

estende-se uma mureta de alvenaria com grade assente na parte frontal do quartel O

complexo arquitetocircnico do 1ordm BPE apresenta nas extremidades alas perpendiculares

que formam no meio um largo paacutetio A uacuteltima dessas alas possui os fundos voltados

para a Avenida Maracanatilde em frente a um dos portotildees de entrada e saiacuteda de veiacuteculos do

quartel Era exatamente nesta parte localizada no final do paacutetio central do Batalhatildeo do

lado esquerdo ao lado da antiga faacutebrica de bebidas Brahma que as celas e a sala de

tortura do DOI-CODIRJ estavam localizadas A seguir na Foto Nordm2 visualiza-se o

fundo deste edifiacutecio na Avenida Maracanatilde

41

Para mais informaccedilotildees ver Gerson 2000 357

147

Foto Nordm2 preacutedio do DOI-CODIRJ nos fundos do quartel localizado na Avenida Maracanatilde (Bettamio dez 2004)

Como se pode ver na Foto Nordm2 em cima do muro do 1ordm BPE exclusivamente na

parte que cerca os fundos do antigo preacutedio do DOI-CODIRJ estaacute localizada uma cerca

de arame farpado Assim aleacutem da descriccedilatildeo dos entrevistados e da forma como o

primeiro-sargento nomeou o local ao apontaacute-lo durante a minha segunda visita ao

Batalhatildeo em 2004 entende-se esta cerca como mais um indiacutecio de que laacute ficavam as

celas do entatildeo DOI-CODIRJ Tais celas estavam distribuiacutedas pelos dois pavimentos do

edifiacutecio conforme pode-se auferir nos relatos e comprovar na Foto Nordm2 onde pela

distribuiccedilatildeo das janelas nota-se que o preacutedio eacute composto de fato por dois andares

O local da prisatildeo era mais nos fundos Quando vocecirc chega ali vocecirc tem duas

entradas uma pela pracinha [Foto Nordm3] onde entram os carros e outra pela

frente bem na Baratildeo de Mesquita [Foto Nordm1] Nesta entrada tem uma mesa

com um oficial do dia depois vem uma espeacutecie de paacutetio aberto como se

fosse uma quadra Jaacute nos fundos do quartel passa a Avenida Maracanatilde por

traacutes da Poliacutecia do Exeacutercito As celas tanto a da prisatildeo como a da tortura

eram mais perto da Avenida Maracanatilde Era laacute naquela parte mais para o

148

final mais isolada Vocecirc ficava mais proacuteximo da Avenida Maracanatilde e da

faacutebrica da Brahma [] (Carvalho 12 set 2002)

Foto Nordm3 uma das entradas do 1ordm BPE para veiacuteculos de frente para a Praccedila Lamartine Babo (Bettamio dez 2004)

Os prisioneiros poliacuteticos receacutem-capturados transferidos de outros oacutergatildeos de

repressatildeo ou mesmo do Hospital Central do Exeacutercito chegavam ao 1ordm BPE dentro de

uma das viaturas das turmas de busca e apreensatildeo do DOI que faziam parte da

estrutura abordada no primeiro capiacutetulo Os automoacuteveis que os traziam entravam no

Batalhatildeo atraveacutes do portatildeo para veiacuteculos que fica em frente agrave Praccedila Lamartine Babo

(Foto Nordm3) entre a Rua Baratildeo de Mesquita e a Avenida Maracanatilde Ao entrarem por

este portatildeo os carros seguiam em linha reta pelo paacutetio interno ateacute chegarem ao preacutedio

do DOI-CODI no fundo do quartel (Foto Nordm2) onde os presos eram deixados

Este trajeto de chegada descrito pelos entrevistados parece ser ateacute hoje um

procedimento formal para controlar a entrada de veiacuteculos no Batalhatildeo e atraveacutes dele

evidencia-se que o DOI-CODI mesmo natildeo sendo subordinado ao 1ordm BPE tinha como

dever respeitar algumas normas de seguranccedila ali vigentes Entre essas normas estava o

impedimento de utilizar o portatildeo para veiacuteculos localizado na Avenida Maracanatilde (Foto

149

Nordm2) para a entrada e a saiacuteda de seus presos mesmo sendo mais praacutetico e reservado

pois este portatildeo ficava ao lado do preacutedio do DOI-CODI Poreacutem como todo quartel

militar preza por um controle riacutegido de seguranccedila uma vez que satildeo responsaacuteveis por

guardar armas e outros equipamentos beacutelicos esses agentes eram obrigados a respeitar a

estrutura de seguranccedila tradicional do 1ordm BPE

[] a gente entrava pela pracinha aqui do lado [aponta para o desenho que

faz no papel] a gente entrava dentro dos carros aqui por esse portatildeo (o da

praccedila) A gente natildeo entrava pela porta principal natildeo E nem entrava ou saiacutea

pelo portatildeo do lado do preacutedio que a gente ficava [] (Coimbra 30 nov

2004)

No preacutedio do DOI-CODIRJ (Foto Nordm2) as celas ldquosolitaacuteriasrdquo se localizavam

somente no andar de baixo Nelas os prisioneiros receacutem-chegados permaneciam nos

primeiros dias de prisatildeo para ficarem no mesmo andar da sala de interrogatoacuterio ou ldquosala

de torturardquo ndash como os presos a chamavam ndash facilitando o deslocamento Era no

momento inicial da prisatildeo que as turmas de interrogatoacuterio preliminar executavam a

parte massiva dos interrogatoacuterios o que por conseguinte demandava a necessidade dos

presos ficarem em celas geograficamente proacuteximas agrave ldquosala de torturardquo

Nos primeiros dias de prisatildeo era quando os presos eram levados assiduamente

para a ldquosala de torturardquo visto que poderiam informar sobre os ldquopontos de encontrordquo e os

ldquoaparelhosrdquo ainda vaacutelidos informaccedilotildees que levariam os agentes dos DOI ateacute outros

ldquosubversivosrdquo Aleacutem da ldquosala de torturardquo a cela do tipo ldquosolitaacuteriardquo era mais um artifiacutecio

para torturar o preso receacutem-chegado a fim de degradaacute-lo e desestruturaacute-lo

psicologicamente de forma a impulsionaacute-lo a falar mais rapidamente o que sabia Para

isso essas celas ldquosolitaacuteriasrdquo aleacutem de deixarem o preso isolado dos demais se

diferenciavam estruturalmente das outras que existiam no mesmo preacutedio localizadas em

150

maior parte no pavimento superior para as quais os presos eram transferidos apoacutes o

momento inicial de sua prisatildeo

Nas celas do segundo andar existia banheiro com chuveiro e um colchatildeo para cada

preso Jaacute nas ldquosolitaacuteriasrdquo aleacutem do preso ficar sozinho natildeo havia cama colchatildeo

banheiro ou mesmo pia Durante o tempo em que laacute permaneciam os prisioneiros natildeo

tinham direito a tomar banho Eram celas pequenas com portotildees de grades vazadas

contendo apenas um buraco no chatildeo para que o preso ali pudesse evacuar Os presos

eram obrigados a conviver com o cheiro de sua proacutepria urina e fezes no provaacutevel intuito

de denegrir a sua condiccedilatildeo de ser humano

[] logo que eu cheguei fui para a lsquosolitaacuteriarsquo era torturada ia para a

lsquosolitaacuteriarsquo era torturada e ia para a lsquosolitaacuteriarsquo [] (Pandolfi 5 fev 2003)

[] primeiro que quando vocecirc eacute preso vocecirc passa alguns dias sem tomar

banho na verdade eu soacute fui tomar banho mesmo depois que eu fui para a

cela coletiva [] (Carvalho 8 fev 2003)

Aqui [aponta para as celas do andar teacuterreo do preacutedio que desenhou em um

papel] era soacute o pessoal que ficava de castigo era barra pesada [] vocecirc natildeo

tinha lugar para dormir natildeo tinha lugar para nada Tinha soacute um buraco para

vocecirc fazer as suas necessidades Na solitaacuteria natildeo tinha nem colchatildeo nem

banheiro nem privada era um buraco Nem tinha chuveiro Pelo menos

essas celas de cima tinham chuveiro [] (Coimbra 30 nov 2004)

151

Foto Nordm4 visatildeo panoracircmica do espaccedilo ocupada pelo 1ordm BPE com destaque aos fundos para o preacutedio do DOI-CODI

(Bettamio dez 2004)

A ldquosala de torturardquo localizada no primeiro pavimento do preacutedio eacute referida pelos

prisioneiros tambeacutem como ldquosala roxardquo pela cor de suas paredes Anexa a ela estava a

sala de observaccedilatildeo que era separada da ldquosala roxardquo por um vidro o chamado ldquoespelho

da verdaderdquo Este vidro composto por uma placa semi-espelhada possibilitava que da

sala de observaccedilatildeo se pudesse ver e reconhecer quem estava do outro lado sem ser

visto Assim presos e militares poderiam identificar pessoas e observar interrogatoacuterios

sem serem reconhecidos

[] a sala de tortura era pintada de uma cor horrorosa como se fosse um

roxo [] essa sala tinha um vidro que era o espelho da verdade porque dava

acesso agrave outra sala onde ficavam pessoas para te observar sem serem vistas

[] (Pandolfi 5 fev 2003)

A seta indica a localizaccedilatildeo do preacutedio do DOI-CODI dentro do espaccedilo do 1ordm BPE

152

[] aqui tinha a famosa sala roxa duas uma do lado da outra isso no

primeiro andar Porque ali estavam as pessoas que eles estavam inquirindo

direto [] (Freire 28 jun 2004)

Os dados informados acima satildeo exemplos tiacutepicos de detalhes apresentados pelos

entrevistados que muito podem contribuir para o entendimento desse passado Afinal

em uma primeira impressatildeo essas narrativas podem transmitir a ideia de que as paredes

roxas serviam apenas para imprimir um aspecto sombrio agrave ldquosala de torturardquo servindo

como mais um elemento produzido para intimidar o depoente durante o interrogatoacuterio

No entanto ao saber-se que uma das paredes dessa sala era composta pelo dito ldquoespelho

da verdaderdquo deduz-se que esta era bem iluminada O vidro que a dividia do local anexo

muito utilizado nas salas de reconhecimento em delegacias de poliacutecia age atraveacutes de um

mecanismo pelo qual quem estaacute do lado mais iluminado vecirc apenas o reflexo de sua

proacutepria imagem sem enxergar o que estaacute do lado mais escuro

A partir disso infere-se que as paredes roxas da ldquosala de torturardquo natildeo eram apenas

um aparato de tortura psicoloacutegica mas provavelmente uma forma de deixar os

integrantes das turmas de interrogatoacuterio preliminar mais agrave vontade para interrogar

ameaccedilar e torturar os seus prisioneiros Menos iluminada do que se suas paredes fossem

brancas contribuiacutea para que os prisioneiros natildeo pudessem ver os militares de forma tatildeo

clara e niacutetida fazendo com que os torturadores natildeo se sentissem acuados por atuar com

os seus rostos agrave mostra chegando mesmo a retirar o capuz dos prisioneiros

[] chegando nessa sala de tortura normalmente eles tiravam o capuz Quer

dizer o capuz na verdade era um mecanismo mais de intimidaccedilatildeo de deixar

a gente apavorada do que para eles se esconderem mesmo porque na tortura

a gente acabava vendo os torturadores [] (Pandolfi 5 fev 2003)

No DOI-CODI eu apanhei de cara limpa eu vi quem me bateu quem me

torturou [] (Freire 28 jun 2004)

153

No segundo andar do preacutedio do DOI-CODIRJ em meio agraves demais celas coletivas

e encostada em outra menor se encontrava uma cela feminina bem espaccedilosa onde

Dulce Ana e Ceciacutelia ficaram durante parte do tempo em que estiveram na instituiccedilatildeo

Essa cela mencionada pelas entrevistadas ora por ldquocoletivo das mulheresrdquo ora por

ldquoMaracanatilderdquo tinha no alto da parede de fundo um basculante que como bem se pode

observar na Foto Nordm2 provavelmente estava presente em todas as celas coletivas tanto

as do primeiro quanto as dos segundo andares Entretanto no caso do ldquocoletivo das

mulheresrdquo e da cela nele encostada esses basculantes eram virados para o paacutetio interno

do 1ordm BPE e por conseguinte os portotildees dessas celas ficavam na direccedilatildeo do muro da

Avenida Maracanatilde

[] eu fui para a cela do lado que era o coletivo das mulheres que era a cela

Maracanatilde como a gente chamava [] Eram duas celas Essa era enorme e

tinha a outra na outra ponta [] que era uma cela menor Eu fiquei nas duas

que eram as duas celas que ficavam na frente que davam para o paacutetio A

gente trepava [no basculante da cela] e soacute via o paacutetio (Coimbra 30 nov

2004)

Tinha ateacute uma cela ampla grande que chamavam de coletivo das mulheres

Entatildeo a maior parte do tempo eu fiquei nessa cela grande [] (Pandolfi 5

fev 2003)

No DOI-CODI natildeo havia uma grande separaccedilatildeo entre prisioneiros e prisioneiras

uma vez que as celas do primeiro e do segundo andares comportavam tanto homens

quanto mulheres No entanto natildeo havia celas mistas Apesar de que como somente

homens afirmaram ter permanecido em celas do piso teacuterreo pressupotildee-se que neste

pavimento com exceccedilatildeo das celas ldquosolitaacuteriasrdquo localizavam-se em grande parte caacuterceres

154

coletivos masculinos que tambeacutem existiam no segundo andar demonstrando que era

maior o nuacutemero de prisioneiros homens

[] eu sempre fiquei no teacuterreo nunca subi para aquela parte apesar de que

laacute onde ficavam as celas tinha uma escada Tinha uma parte teacuterrea onde

ficavam nossas celas e tinha tambeacutem umas celas em cima [] (Carvalho 12

set 2002)

No teacuterreo tinha duas celinhas aqui [rabisca em um pedaccedilo de papel] uma no

cantinho aqui e eu fiquei nessa segunda aqui aiacute ainda tinha a do meio e

mais duas para caacute eram cinco celas [] (Freire 28 jun 2004)

A partir dessa cartografia do espaccedilo fiacutesico do DOI-CODI viabilizou-se uma

aproximaccedilatildeo com a geografia do ambiente que mantinha uma iacutentima relaccedilatildeo com o

cotidiano dos entrevistados no periacuteodo em que laacute permaneceram como prisioneiros do

sistema de seguranccedila

3 Memoacuterias de um cotidiano

Falar sobre essa parte da histoacuteria implica muitas dificuldades pois suscita

lembranccedilas mal-vindas poreacutem necessaacuterias ao conhecimento de nossa

sociedade Trata-se aqui de uma viagem de volta ao inferno de uma face que

para muitos traduz supliacutecios fiacutesicos e psiacutequicos sentimentos de desamparo

solidatildeo medo pacircnico abandono e desespero (Coimbra 2004 45) 42

Como jaacute dito o momento da realizaccedilatildeo de uma entrevista eacute definidor da maneira

pela qual o(a) entrevistado(a) recupera o seu passado A construccedilatildeo da memoacuteria sobre o

cotidiano vivido no DOI-CODI em 1970 natildeo escapou desse passeacute do preacutesent e de

42

Artigo Gecircnero Militacircncia e Memoacuteria escrito pela entrevistada Ceciacutelia Coimbra e publicado em Strey

Marlene Neves (org) Violecircncia Gecircnero e Poliacuteticas Puacuteblicas Porto Alegre PUC-RS 2004

155

forma muito interessante ao mesmo tempo em que sofria influecircncias desse presente

tambeacutem agia politicamente sobre ele Beneficiados por uma legislaccedilatildeo que buscava

reparar os variados danos causados pelo Estado ditatorial os entrevistados visavam

sobretudo a obter reparaccedilotildees simboacutelicas comeccedilando pela consolidaccedilatildeo de suas

memoacuterias Por isso mesmo lutavam por accedilotildees governamentais tais como a construccedilatildeo

de museus sobre a ditadura militar em locais que haviam servido como prisatildeo poliacutetica

na eacutepoca e a instalaccedilatildeo da Comissatildeo da Verdade no paiacutes

Assim em 24 de janeiro de 2009 foi inaugurado no anexo do antigo preacutedio do

Departamento de Ordem e Poliacutetica Social de Satildeo Paulo (Deops) o Memorial da

Resistecircncia de Satildeo Paulo Eacute a primeira instituiccedilatildeo do paiacutes a ldquomusealizarrdquo parte de um

edifiacutecio que foi siacutembolo da poliacutecia poliacutetica em eacutepocas de ditadura a fim de salvaguardar

a memoacuteria da resistecircncia e da repressatildeo do Brasil republicano 43

E finalmente em 18

de novembro de 2011 a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei que criava a

Comissatildeo da Verdade (lei nordm 125282011) Esta seraacute composta por sete integrantes que

ainda seratildeo indicados e contaratildeo com ajuda de 14 auxiliares que teratildeo a missatildeo de ouvir

depoimentos em todo o paiacutes requisitar e analisar documentos que ajudem a esclarecer

os fatos da repressatildeo militar A Comissatildeo iraacute apurar as violaccedilotildees de direitos ocorridas

entre os anos de 1946 e 1988 e teraacute um prazo de dois anos para finalizar este trabalho de

investigaccedilatildeo

43

Para mais informaccedilotildees sobre o Memorial da Resistecircncia de Satildeo Paulo consultar

httpwwwmemorialdaresistenciasporgbr

156

31 O interrogatoacuterio e a tortura

Tendo em vista as novas funccedilotildees que se apresentavam para os agentes da

repressatildeo lotados nos DOI-CODI era necessaacuterio um treinamento que incluiacutea entre

outras mateacuterias o manuseio da dosagem de dor infringida durante os interrogatoacuterios

Depois de passarem por tal treinamento os militares poderiam atuar em uma das trecircs

turmas de interrogatoacuterio preliminar que compunham a Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio

responsaacutevel direta por torturar os presos ou em uma das turmas da Seccedilatildeo de busca e

apreensatildeo que capturavam os suspeitos e os direcionavam aos DOI

Esse processo de formaccedilatildeo de matildeo-de-obra para atuar no DOI-CODI surgiu em

1970 quando uma escola de repressatildeo foi criada a partir da mudanccedila de comando e da

reforma curricular do Centro de Estudos de Pessoal (CEP) no forte do Leme O novo

CEP passava a oferecer cursos de informaccedilotildees para oficiais programas de extensatildeo para

sargentos e estaacutegios para quadros das poliacutecias militares todos normalmente com

duraccedilatildeo de um semestre Nesses cursos os alunos assistiam aulas sobre teacutecnicas de

interrogatoacuterio ndash o que incluiacutea o manuseio de aparelhos de tortura ndash e vigilacircncia taacuteticas

de ldquoneutralizaccedilatildeo de aparelhosrdquo e de transporte de presos operaccedilotildees especiais

criptologia e produccedilatildeo de informaccedilotildees Ao fim do curso o aluno recebia uma

certificaccedilatildeo atraveacutes da qual poderia atestar sua aptidatildeo para desempenhar as funccedilotildees de

um oficial de informaccedilotildees

Parte dos meacutetodos aprendidos nessa escola eacute retratada em entrevista para a revista

Veja de 9 de dezembro de 1998 pelo tenente Marcelo Paixatildeo de Arauacutejo que de acordo

com Elio Gaspari (2002) teria atuado como torturador no 12ordm Regimento Interno de

Belo Horizonte entre 1968 e 1971

A primeira coisa era jogar o sujeito no meio de uma sala tirar a roupa dele e

comeccedilar a gritar para ele entregar o ponto [lugar marcado para encontros

157

com militantes do grupo] Era o primeiro estaacutegio Se ele resistisse tinha um

segundo estaacutegio que era vamos dizer assim mais porrada Um dava tapa na

cara Outro soco na boca do estocircmago Um terceiro soco no rim Tudo para

ver se ele falava Se natildeo falava tinha dois caminhos Dependia muito de

quem aplicava a tortura Eu gostava muito de aplicar a palmatoacuteria Eacute muito

doloroso mas faz o sujeito falar Eu era muito bom na palmatoacuteria [] Vocecirc

manda o sujeito abrir a matildeo O pior eacute que de tatildeo desmoralizado ele abre Aiacute

se aplicam dez quinze bolos na matildeo dele com forccedila A matildeo fica roxa Ele

fala A etapa seguinte era o famoso telefone das Forccedilas Armadas [] eacute uma

corrente de baixa amperagem e alta voltagem [] Natildeo tem perigo de fazer

mal Eu gostava muito de ligar as duas pontas dos dedos Pode ligar numa

matildeo e na orelha mas sempre do mesmo lado do corpo O sujeito fica

arrasado O que natildeo pode fazer eacute deixar a corrente passar pelo coraccedilatildeo Aiacute

mata [] o uacuteltimo estaacutegio em que cheguei foi o pau-de-arara com choque

Isso era para o queixo-duro o cara que natildeo abria nas etapas anteriores Mas

pau-de-arara eacute um negoacutecio meio complicado [] O pau-de-arara natildeo eacute

vantagem Primeiro porque deixa marca Depois porque eacute trabalhoso Tem

de montar a estrutura Em terceiro eacute necessaacuterio tomar conta do indiviacuteduo

porque ele pode passar mal (Gaspari 2002 182-183)

Antes de comeccedilar a atuar esses agentes passavam por treinamento no DOI-CODI

feito provavelmente com alguns prisioneiros que jaacute estavam laacute haacute algum tempo e que

haviam mostrado ter boa resistecircncia Conforme se pode evidenciar a partir da

declaraccedilatildeo feita por Dulce Pandolfi em 1970 registrada na auditoria militar 44

[]

que foi exposta perante 20 oficiais como numa demonstraccedilatildeo de aulas de torturas

pau-de-arara e choques [] (Arquidiocese de Satildeo Paulo tomo V 1985 758)

Essa denuacutencia feita na eacutepoca por Dulce na auditoria da Justiccedila Militar foi

publicada em A Tortura tomo V do ldquoProjeto Ardquo da pesquisa coordenada pela

Arquidiocese de Satildeo Paulo e intitulada Brasil Nunca Mais O ldquoProjeto Ardquo eacute constituiacutedo

por doze volumes que contecircm as conclusotildees da referida pesquisa feita a partir da

44

Assim satildeo chamadas as varas criminais com atribuiccedilatildeo especiacutefica de atuar em processos de crimes

militares da Justiccedila Militar brasileira

158

reuniatildeo de coacutepias da quase totalidade dos processos poliacuteticos que tramitaram na Justiccedila

Militar entre abril de 1964 e marccedilo de 1979 Esses volumes foram reproduzidos vinte e

cinco vezes pela Arquidiocese de Satildeo Paulo formando coleccedilotildees que foram doadas a

entidades de direitos humanos pesquisa e documentaccedilatildeo 45

As 6891 paacuteginas do

ldquoProjeto Ardquo estatildeo resumidas no ldquoProjeto Brdquo o livro Brasil Nunca Mais tambeacutem

datado de 1985 e publicado pela Editora Vozes

Os primeiros momentos no DOI-CODI

Desde o momento da detenccedilatildeo o preso era submetido a diversos tipos de maus

tratos Jaacute a caminho do caacutercere ainda dentro do automoacutevel comeccedilavam as agressotildees

como tapas pontapeacutes e empurrotildees a fim de acelerar a sua desestabilizaccedilatildeo para que

entregasse mais rapidamente informaccedilotildees que agilizassem a prisatildeo de outros militantes

procurados

As torturas que Ana Batista relata ter sofrido durante o percurso de transferecircncia

da OBANSP para o DOI-CODIRJ destacadas em seu memorial ndash escrito em outubro

de 2004 um mecircs antes de sua entrevista e encaminhado agrave Comissatildeo Especial da

Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro ndash trazem aspectos

proacuteximos agrave realidade vivida na eacutepoca pelos presos poliacuteticos do DOI-CODIRJ

[] dez dias apoacutes a prisatildeo fui levada de Satildeo Paulo [DOI-CODISP] para o

Rio [DOI-CODIRJ] de madrugada numa C-14 onde permaneci no banco de

traacutes entre dois agentes de grande porte No meio do caminho na Via Dutra

eles entraram por uma estradinha pararam o carro e me mandaram descer

aos berros Com fortes dores no corpo ndash especialmente nos rins ndash

queimaduras infectadas pelos choques eleacutetricos exausta dos interrogatoacuterios e

45

Os doze volumes do ldquoProjeto Ardquo estatildeo disponiacuteveis no Arquivo do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio

de Janeiro (GTMNRJ)

159

sem dormir haacute dias desembarquei meio trocircpega Gritaram impropeacuterios e

ordenaram que eu fugisse Como estava muito tonta sem saber o que pensar

ou fazer natildeo fiz nada Atiraram entatildeo repetidas vezes em volta de mim

que permaneci encostada em uma aacutervore gritaram vaacuterias vezes para que eu

fugisse Caiacute no chatildeo o que os fez parar de atirar e se jogarem em cima de

mim agraves gargalhadas Colocaram-me de volta no carro e continuamos a

viagem rumo ao DOI-CODI-RJ (Batista out 2004)

Assim quando chegavam ao DOI-CODIRJ apoacutes passarem pelo portatildeo de

entrada da Praccedila Lamartine Babo (Foto Nordm3) os presos preenchiam uma ficha de

identificaccedilatildeo e eram levados para a ldquosala roxardquo no andar teacuterreo do preacutedio dessa

instituiccedilatildeo (Foto Nordm2) Laacute em meio a interrogatoacuterio as ameaccedilas e torturas se

intensificavam perpetradas pelos integrantes de uma das trecircs turmas de interrogatoacuterio

preliminar de plantatildeo no momento

Cabe lembrar que tais turmas eram constituiacutedas por militares treinados para

conseguir extrair rapidamente dos presos o maior nuacutemero possiacutevel de informaccedilotildees

principalmente sobre a data hora e local de seu proacuteximo ldquopontordquo de encontro Afinal

caso esses agentes natildeo conseguissem tais dados logo nos primeiros dias natildeo chegariam

ao local a tempo de pegarem o outro militante clandestino que o preso encontraria A

partir do momento em que a ausecircncia desse militante fosse notada integrantes de sua

organizaccedilatildeo poliacutetica deduziriam o motivo e por proteccedilatildeo modificariam os locais dos

ldquoaparelhosrdquo e dos proacuteximos ldquopontosrdquo As informaccedilotildees do preso receacutem-capturado se

tornariam entatildeo desatualizadas o que dificultaria a investigaccedilatildeo dos agentes do DOI-

CODIRJ

As torturas infringidas aos presos eram mais intensas logo depois da prisatildeo

Lutando contra o tempo era comum deixar o preso em celas ldquosolitaacuteriasrdquo localizadas no

andar teacuterreo conforme jaacute indicado Dessa forma os presos receacutem-chegados ficavam

bem proacuteximos agrave sala de interrogatoacuterio a ldquosala roxardquo justamente por serem para laacute

160

levados com frequecircncia Como nas ldquosolitaacuteriasrdquo os presos ficavam sozinhos e natildeo

podiam contar com itens baacutesicos de higiene e proteccedilatildeo do corpo (tais como banheiro

chuveiro colchatildeo e cobertor) acabavam se sentindo ainda mais desestruturados e por

conseguinte desestabilizados Logo no momento inicial da prisatildeo quando os presos

natildeo eram submetidos agraves torturas fiacutesicas eram submetidos agraves torturas psicoloacutegicas das

ldquosolitaacuteriasrdquo as chamadas torturas brancas46

espeacutecie de degradaccedilatildeo fria sem violecircncia

humana expliacutecita

Por outro lado os presos receacutem-capturados tinham consciecircncia de que era naquele

momento inicial que mais poderiam prejudicar seus companheiros de organizaccedilatildeo

Diante disso normalmente tentavam dificultar o acesso dos militares agraves informaccedilotildees

lutando para resistir agraves torturas Apesar de muitas vezes fracassarem tentavam segurar

os dados que tinham ao menos ateacute passar o horaacuterio do proacuteximo ldquopontordquo que haviam

combinado com outro militante Portanto avalia-se que provavelmente o grau de

resistecircncia inicial do prisioneiro estava diretamente relacionado ao da intensidade da

tortura a ele perpetrada e vice-versa conforme analisa-se nos trechos da entrevista de

Ana de Miranda Batista abaixo destacados

[] o meu negoacutecio era ganhar tempo e o deles era conseguir informaccedilatildeo A

luta eacute essa nos primeiros dias eacute vocecirc dar o miacutenimo de informaccedilotildees e eles

querendo arrancar o maacuteximo de informaccedilatildeo Aiacute eles vecircm com a maacutexima de

que torturar eacute investigar [risos] E daiacute se precisar ateacute a morte O negoacutecio eacute

conseguir informaccedilatildeo

46

Em 1971 quando os ex-prisioneiros aqui entrevistados jaacute natildeo estavam mais no 1ordm BPE o projeto

ldquoTortura Limpardquo foi ali instalado Segundo Elio Gaspari o andar teacuterreo do DOI-CODIRJ sofreu obras

para que fossem construiacutedos quatro novos cubiacuteculos um foi forrado com isopor e amianto a fim de fazer

o prisioneiro sentir frio constantemente outro se tornou uma cacircmara de ruiacutedos pela qual o preso ouviria o

barulho por todo o tempo em que laacute estivesse o terceiro foi todo pintado de branco provocando dor na

vista do preso devido agrave claridade constante na cela o uacuteltimo transformou-se em um ambiente todo preto

natildeo fornecendo a quem estivesse em seu interior nenhuma claridade causando choque na vista quando

exposto a claridade normal (Gaspari 2002 189-190)

161

[] quando eu cheguei agrave OBAN [que na eacutepoca de sua prisatildeo jaacute havia se

transformado em DOI-CODISP] jaacute era noite eles estavam tomando cerveja

comemorando que eu tinha caiacutedo E aiacute eu passei o ponto da Ana Maria do

Carlos Eugecircnio com o Bacuri Porque laacute era um inferno [] laacute eu passei um

monte de ponto e todos eles eram procurados Entatildeo aiacute eacute que a barra pegou

mesmo (Batista 17 nov 2004)

Os trechos acima mesmo sendo baseados em uma experiecircncia vivida no DOI-

CODISP trazem muitas informaccedilotildees sobre o cotidiano prisional vivido de forma

geral em todos os DOI-CODI Afinal conforme ressaltado anteriormente esses oacutergatildeos

estavam espalhados por todas as jurisdiccedilotildees territoriais do Brasil e seguiam

basicamente a mesma organizaccedilatildeo Portanto pode-se concluir aqui que em ambos os

DOI-CODI no momento inicial da prisatildeo existia essa relaccedilatildeo entre a intensidade das

sessotildees de tortura adotadas pelos militares e o tamanho da vontade de resistir do preso

Tal relaccedilatildeo se torna ainda mais perceptiacutevel pela frustraccedilatildeo sentida na fala de Ana

ao afirmar ter passado muitos ldquopontosrdquo inclusive o de ldquoBacurirdquo codinome de Eduardo

Collen Leite seu companheiro de organizaccedilatildeo Ana no momento da entrevista sabia

que ldquoBacurirdquo havia sido preso em agosto de 1970 alguns dias depois de sua prisatildeo e

que havia morrido sob tortura Quando admite ter entregado aos agentes do DOISP o

ponto de encontro Ana se culpa O depoimento eacute o momento em que Ana aproveita

para se justificar ao demonstrar que acredita no quanto a resistecircncia agrave tortura era

importante no iniacutecio da prisatildeo mas como ela se tornava limitada sendo rapidamente

derrotada Resistir ao DOI-CODI era muito difiacutecil jaacute que os agentes haviam sido

fortemente preparados para a ldquoguerra internardquo e natildeo por acaso se tornariam os grandes

responsaacuteveis pela desarticulaccedilatildeo das organizaccedilotildees de luta armada

O silecircncio dos demais entrevistados sobre as informaccedilotildees que concederam ou natildeo

aos agentes das turmas de interrogatoacuterio preliminar serve aqui como mais um

argumento para a tese de que apesar da grande resistecircncia inicial dos presos poliacuteticos e

162

tambeacutem por causa dela a violecircncia vivida no DOI-CODIRJ nos primeiros dias de

prisatildeo era intensa e quase sempre prevalecia Afinal caso natildeo fosse desse modo os

entrevistados provavelmente orgulhar-se-iam de sua resistecircncia e por conseguinte natildeo

lhes faltariam motivos para lembraacute-la e narraacute-la Logo o silecircncio aqui tambeacutem se torna

revelador

Atraveacutes desse silecircncio destaca-se ainda que talvez pelos mesmos motivos que

Ana opta por lembrar e justificar-se os demais entrevistados optam por silenciar e tentar

esquecer Todos apesar de agirem de acordo com suas personalidades e experiecircncias de

vida provavelmente se sentem culpados ou envergonhados por natildeo terem aguentado

esconder o que sabiam ateacute o fim e poupado muitos de seus companheiros da prisatildeo e ateacute

mesmo da morte

A segunda fase

Passada esta primeira fase da prisatildeo no DOI-CODIRJ que durava em meacutedia uma

ou duas semanas os presos eram transferidos para celas maiores Estas continham

banheiro colchatildeo e em grande parte das vezes outros prisioneiros

Nessa segunda etapa os presos natildeo ficavam isentos das idas agrave ldquosala roxardquo poreacutem

estas natildeo eram tatildeo frequentes quanto anteriormente Afinal a busca desesperada por

ldquopontosrdquo codinomes ou ldquoaparelhosrdquo natildeo mais cabia pois esses prisioneiros jaacute estavam

distantes de suas organizaccedilotildees haacute tempo suficiente para que suas prisotildees fossem

notadas e por conseguinte para que as informaccedilotildees que tivessem jaacute natildeo fossem mais

ldquoquentesrdquo

Nessa fase as visitas agrave ldquosala roxardquo davam-se por outros motivos Normalmente

para ajudar em anaacutelises de novas suspeitas Os agentes das turmas de interrogatoacuterio

preliminar poderiam levar um preso mais antigo para a ldquosala roxardquo para ser acareado

163

com um receacutem-chegado com quem suspeitavam estar de alguma forma relacionado

Poderiam tambeacutem levaacute-lo ateacute laacute para ser interrogado a respeito de novas e possiacuteveis

accedilotildees da esquerda armada conforme indicassem as informaccedilotildees recebidas pelo CODI

conjugadas agraves anaacutelises feitas pelo Setor de anaacutelise e informaccedilotildees sobre algum material

apreendido pela Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo Eacute o que pode-se concluir a partir da

caracterizaccedilatildeo sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI quando colocadas em diaacutelogo

com as informaccedilotildees trazidas pelos trechos destacados abaixo

ldquoNome codinome e aparelhordquo isso eacute que eles querem saber de imediato

Depois que passa algum tempo isso natildeo interessa mais Aiacute eles tecircm um

trabalho mais analiacutetico que era para saber de outros que acabaram de cair o

que eles tecircm de quecirc jaacute participaram o que estaacute acontecendo [] (Batista 17

nov 2004)

[] de quem era preso eles queriam duas informaccedilotildees imediatas eles

comeccedilavam a te bater e soacute pediam o ponto o local de encontro que vocecirc

tivesse com algueacutem e o aparelho que era o apartamento alugado ou qualquer

coisa assim Era isso o que eles queriam basicamente [] (Freire 28 jun

2004)

Como o DOI-CODIRJ tinha poucas celas e muita rotatividade quando o preso

natildeo mais interessava agraves investigaccedilotildees era normalmente mandado para o DOPS onde

era aberto o processo de crime poliacutetico e ficava detido ateacute o primeiro julgamento ndash

como ocorreu com Antocircnio de Carvalho Dulce Pandolfi e Ana de Miranda Batista

Poreacutem quando o seu caso tivesse relaccedilatildeo com uma das outras Forccedilas Armadas o preso

era transferido para a instituiccedilatildeo repressiva diretamente ligada a esta ndash como aconteceu

com Fernando ao ser levado do DOI-CODIRJ para o CISA oacutergatildeo de repressatildeo ligado agrave

Aeronaacuteutica ndash onde permaneceria ateacute quando seus agentes julgassem necessaacuterio Aleacutem

disso caso os agentes do DOI-CODIRJ constatassem que o prisioneiro natildeo estava

164

envolvido diretamente em nenhum crime poliacutetico ele poderia ser posto em liberdade

provisoacuteria ndash como ocorreu com Padre Maacuterio e Ceciacutelia Coimbra

Vale lembrar que o DOI-CODIRJ natildeo era um presiacutedio comum Laacute os suspeitos de

crimes poliacuteticos natildeo estavam cumprindo pena baseada em um processo e sim na

menagem estipulada pelo Coacutedigo Processual Militar criado pelo decreto-lei Nordm1002

de outubro de 1969 Por meio da menagem os suspeitos de crimes poliacuteticos ndash que a

partir do AI-5 tinham passado a ser julgados pela Justiccedila Militar ndash poderiam ser

arbitrariamente detidos e levados ao quartel responsaacutevel pela Regiatildeo Militar onde

estivessem A menagem era justificada como uma forma de prisatildeo cautelar que visava

evitar o conviacutevio do acusado com pessoas que jaacute estivessem condenadas ateacute o seu

julgamento em primeira instacircncia Dessa forma os suspeitos de crimes poliacuteticos da

Regiatildeo Militar que englobava o Rio de Janeiro ficavam detidos no DOI-CODIRJ

localizado no quartel do 1ordm BPE e ali permaneciam presos sem direito a formalidades

convencionais de uma prisatildeo tais como as visitas de familiares e de um advogado por

um periacuteodo que chegava ateacute 30 dias podendo ser prorrogado por mais 60 dias

Poreacutem como ressaltado anteriormente quando novos grupos de suspeitos laacute

chegavam a saiacuteda dos presos mais antigos era impulsionada mesmo sem ainda terem

sido julgados No entanto como esses presos ainda estavam sob a menagem e por isso

natildeo poderiam ir para um presiacutedio comum a assessoria juriacutedica e policial do DOIRJ ou

os transferia ou os colocava em liberdade provisoacuteria controlando nesse uacuteltimo caso

para que natildeo saiacutessem da respectiva Regiatildeo Militar ateacute o seu julgamento em primeira

instacircncia

[] fiquei trecircs meses laacute na PE na Poliacutecia do Exeacutercito na Rua Baratildeo de

Mesquita Depois fui levada para o DOPS [] laacute na PE a gente ficava nessa

triagem sendo torturado ou ouvindo grito de tortura e esperando laacute o tempo

ateacute eles resolverem a nossa situaccedilatildeo e sermos transferidos Entatildeo laacute era um

165

esquema de uma circulaccedilatildeo muito grande de pessoas Daiacute o quartel estava

sempre cheio porque de repente quando caiacutea alguma organizaccedilatildeo

apareciam laacute 30 ou 40 pessoas presas naquela noite e aquilo ficava

abarrotado de gente Entatildeo tinha momentos que a coisa ficava mais

tranquila e tinha momentos que aquilo ali ficava realmente lotado [] a PE

era isso a PE natildeo tinha uma rotina desses presiacutedios da linha tradicional laacute

ningueacutem recebia visita porque era a fase completamente ilegal da sua prisatildeo

[] (Pandolfi 5 fev 2003)

Outro aspecto interessante da menagem que interferia no cotidiano prisional do

DOI-CODIRJ satildeo as regras para o tempo de inquiriccedilatildeo estipuladas pelo decreto-lei nordm

100269 Este impunha que exceto em casos de urgecircncia os presos que estivessem sob

menagem deveriam prestar depoimentos durante o dia das sete e agraves 18 horas Aleacutem

disso esses prisioneiros natildeo poderiam ser inquiridos por mais de quatro horas

consecutivas tendo direito apoacutes esse periacuteodo a um intervalo de meia hora antes de

voltarem a ser interrogados

Art 19 As testemunhas e o indiciado exceto caso de urgecircncia inadiaacutevel que

constaraacute da respectiva assentada devem ser ouvidos durante o dia em

periacuteodo que medeie entre as sete e as dezoito horas

[]

Inquiriccedilatildeo Limite de tempo

2ordm A testemunha natildeo seraacute inquirida por mais de quatro horas consecutivas

sendo-lhe facultado o descanso de meia hora sempre que tiver de prestar

declaraccedilotildees aleacutem daquele termo O depoimento que natildeo ficar concluiacutedo agraves

dezoito horas seraacute encerrado para prosseguir no dia seguinte em hora

determinada pelo encarregado do inqueacuterito (Decreto-lei nordm 1002 21 out

1969)

A partir disso faz mais sentido ainda as diferentes distacircncias existentes entre as

celas e a sala de tortura nas duas fases da prisatildeo Como o prazo maacuteximo estipulado para

um interrogatoacuterio era de quatro horas tendo o prisioneiro apoacutes este tempo direito a um

166

descanso de ao menos meia hora no primeiro momento da prisatildeo no DOI-CODIRJ

deixar o preso perto do local onde eram feitos os interrogatoacuterios era um facilitador Essa

proximidade entre a cela e a ldquosala roxardquo natildeo era necessaacuteria para o preso que estivesse na

segunda etapa da prisatildeo jaacute que ele natildeo seria transportado de um lugar para o outro com

tamanha frequecircncia e provavelmente os interrogatoacuterios que lhe seriam destinados nem

chegassem agraves quatro horas permitidas pelo referido Decreto-lei

Nas narrativas de todos os entrevistados estatildeo presentes as experiecircncias vividas

nas duas fases da prisatildeo Todos eles passaram os primeiros dias em solitaacuterias e

posteriormente ficaram em celas maiores Padre Maacuterio foi a uacutenica exceccedilatildeo Sua prisatildeo

no DOI-CODIRJ natildeo passou por essas duas etapas encaixando-se portanto em um

dos casos extraordinaacuterios dessa instituiccedilatildeo Afinal desde o momento em que foi levado

para o preacutedio do DOI-CODIRJ Padre Maacuterio afirma ter dividido uma cela no segundo

andar com outros padres e depois ter sido transferido para uma cela do primeiro andar

onde ficou sozinho e de frente para as celas de jovens militantes de sua Associaccedilatildeo

conforme pode-se conferir no trecho abaixo

[] foi exatamente em setembro logo nas primeiras duas semanas em que

noacutes estaacutevamos presos que eles me passaram para o primeiro andar porque

estaacutevamos todos no segundo andar [] entatildeo nos primeiros dias noacutes

padres passamos todos juntos [] e depois fomos separados Entatildeo me

colocaram sozinho nessa cela do andar de baixo bem em frente agraves celas dos

jovens que estavam presos no CENIMAR e que foram levados para laacute para

serem torturados [] (Prigol 28 set 2004)

Essa diferenccedila no cotidiano prisional encontra coerecircncia quando embasada por

alguns argumentos aqui levantados Como a fase em que os presos ficavam nas

ldquosolitaacuteriasrdquo tinha por finalidade desestruturaacute-los e principalmente deixaacute-los mais

proacuteximos da sala de tortura para onde seriam levados com frequecircncia essa fase natildeo

167

deveria ser destinada a um padre sem envolvimento em uma organizaccedilatildeo de luta

armada Os militares teriam que responder agrave Igreja caso algo de mais grave lhe

acontecesse dentro do DOI-CODIRJ Colocar sua vida em risco deveria ser uma opccedilatildeo

somente se ele tivesse informaccedilotildees preciosas para a neutralizaccedilatildeo da guerrilha urbana

principal objetivo do grupo de repressatildeo em 1970 conforme indicado na monografia do

coronel Pereira analisada no primeiro capiacutetulo

Entatildeo como a associaccedilatildeo da qual participava a ACO natildeo tinha envolvimento

com a luta armada a morte de Padre Maacuterio poderia causar desnecessariamente uma

tensatildeo ateacute entatildeo natildeo deflagrada entre o Exeacutercito e a Igreja Catoacutelica 47

Aleacutem disso

como se encontrava em uma faixa etaacuteria mais elevada com cerca de 40 anos ele tinha o

agravante de ter uma sauacutede mais fraacutegil que grande parte dos presos do DOI-CODIRJ

que eram majoritariamente jovens estudantes Assim o tratamento prisional

diferenciado ali recebido por Padre Maacuterio visava diminuir as chances que ele tinha de

desenvolver problemas decorrentes de torturas Essa interpretaccedilatildeo encontra fortes

indiacutecios em um dos trechos de sua entrevista

[] a mim eles soacute colocaram o fio eleacutetrico aqui [aponta para um dedo da

matildeo esquerda] e no peacute esquerdo eu fiquei sabendo que no mesmo lado do

corpo eu natildeo sentiria tatildeo forte mas mesmo assim eu resisti resisti Bom

entatildeo diante da prisatildeo da gente eu sofri tambeacutem torturas mas eu depois

que fingi estar sentindo o coraccedilatildeo eles deixaram de dar choques [risos]

Cada um tem que se defender de alguma forma (Prigol 28 set 2004)

Afinal por meio da descriccedilatildeo acima destacada nota-se que apesar de natildeo

excluiacuterem Padre Maacuterio das sessotildees de tortura uma vez que era esse o procedimento de

investigaccedilatildeo do DOI-CODIRJ existia de fato certo temor em causar-lhe graves

47

Para informaccedilotildees sobre as tensotildees que ocorreram entre a Igreja Catoacutelica e a ditadura militar ver

Serbin 2001 17-77

168

sequelas Dessa forma por mais que Padre Maacuterio relate que sua atitude de defesa

conseguiu inibir a accedilatildeo daqueles agentes conclui-se aqui que caso ele natildeo tivesse as

caracteriacutesticas profissionais morais etaacuterias e ideoloacutegicas aqui descritas certamente tal

inibiccedilatildeo natildeo ocorreria Ao menos natildeo na mesma proporccedilatildeo

Testando a resistecircncia

No ano de 1970 esta preocupaccedilatildeo em evitar sequelas evidentemente natildeo se

aplicava a jovens presos que tivessem algum tipo de ligaccedilatildeo com organizaccedilotildees

oposicionistas adeptas da luta armada Conforme pode-se conferir nos relatos sobre os

danos agrave sauacutede que Dulce Fernando e Ana destacam ter sofrido por conta das torturas

recebidas no DOI-CODIRJ

[] fiquei tomando medicaccedilatildeo especial porque eu estava muito mal estava

com uma paralisia tambeacutem por causa da tortura tinha ficado completamente

travada aquilo vocecirc vai contraindo contraindo e deixava vocecirc semiparaliacutetica

[] (Pandolfi 5 fev 2003)

Eu desmaiava acordava e o pau comia desmaiava acordava e o pau

comia Natildeo foi faacutecil natildeo Eu lembro que quando eu saiacute da PE um mecircs

depois eu fazia assim [passa a matildeo no ouvido] e vinha sangue vinha pus eu

estava bem abalado mesmo (Freire 28 jun 2004)

[] eu fiquei um mecircs no Rio no DOI-CODI Desse mecircs uma semana eu

fiquei no HCE [Hospital Central do Exeacutercito] eu tremia sem parar eu estava

cheia de ferida (Batista 17 nov 2004)

Em todas as fases da prisatildeo para cuidar dos estragos causados agrave sauacutede do preso

durante ou apoacutes a sessatildeo de tortura existiam enfermeiros e meacutedicos no DOI-CODIRJ

Os enfermeiros tratavam os prisioneiros nas celas conforme a recomendaccedilatildeo dos

169

meacutedicos Jaacute esses aleacutem de examinarem e receitarem cuidados especiais aos presos

machucados tambeacutem auxiliavam as turmas de interrogatoacuterio preliminar durante as

torturas averiguando os sinais vitais dos presos a fim de constatarem o quanto eles

ainda poderiam suportar No entanto quando a tortura saiacutea de controle de tal forma que

algum preso ficasse tatildeo mal que natildeo respondesse agrave medicaccedilatildeo e aos cuidados meacutedicos

feitos dentro do quartel esse poderia ser levado pelas turmas de busca e apreensatildeo

conforme demonstrado no primeiro capiacutetulo ateacute o Hospital Central do Exeacutercito48

onde

receberiam um tratamento mais especializado

A existecircncia de meacutedicos no DOI-CODIRJ pode ser averiguada por meio da

confissatildeo de Amilcar Lobo noticiada pela Revista Eacutepoca apresentada abaixo

(EacutePOCA 27 nov 2000 104)

Meacutedico de formaccedilatildeo psicanaliacutetica ele foi denunciado por muitos ex-prisioneiros

por exercer a profissatildeo prestando assessoria a torturas entre 1970 e 1974 no DOI-

CODIRJ Diante disso em 1988 teve o seu registro de meacutedico cassado pelo Conselho

Regional de Medicina do Rio de Janeiro A atuaccedilatildeo de Amilcar Lobo assim como a de 48

O Hospital Central do Exeacutercio (HCE) ainda estaacute localizado no mesmo local da eacutepoca na Rua Francisco

Manoel nordm 126 no bairro de Benfica na cidade do Rio de Janeiro Para mais informaccedilotildees acessar

httpwwwhceebmilbr

170

meacutedicos e enfermeiros em geral tambeacutem eacute encontrada nos depoimentos aqui

analisados conforme pode-se conferir nos trechos destacados a seguir

[] a primeira pessoa que me visitou antes de eu ser torturada foi um

meacutedico o Amilcar Lobo que depois eu denunciei o lsquofilho da putarsquo e a gente

conseguiu cassaacute-lo como meacutedico [] ele acompanhava as torturas antes

durante e depois era o assessor de tortura ele dizia ldquo- Daacute uma paradinha

agorardquo Isso para vocecirc aguumlentar neacute Entatildeo ele entrou na minha cela e me

perguntou se eu era cardiacuteaca tirou a minha pressatildeo e eu natildeo entendendo

nada Ele tinha um esparadrapo aqui [aponta para o lado esquerdo do peito]

para a gente natildeo ver o nome dele Eu fiquei sabendo o nome dele porque

meses depois eu jaacute estava na cela de Dulce [Pandolfi]49

quando ele

porque a Dulce ficou praticamente sem mexer as matildeos [] e ele entrou e

esqueceu o receituaacuterio com o nome dele noacutes olhamos e eu quando saiacute de laacute

o denunciei Anos depois a gente conseguiu que ele fosse cassado []

(Coimbra 30 nov 2004)

[] o meacutedico que vinha te ver vinha para ver as suas condiccedilotildees se tinha que

parar ou se podia continuar a te torturar Os caras batiam muito localizado

em partes que vocecirc resiste mais que satildeo nas naacutedegas nessa parte daqui

[aponta para as costas] Entatildeo satildeo lugares que o seu corpo suporta mais []

(Freire 28 jun 2004)

[] como eu fiquei muito mal eu tive cuidados meacutedicos o tempo quase todo

quer dizer claro que eram cuidados meacutedicos no sentido de me prepararem

para apanhar mais para ser mais torturada queriam evitar que eu morresse

porque politicamente natildeo interessava [] tinha laacute dois enfermeiros de rotina

e tinham tambeacutem dois meacutedicos o mais presente o que sempre visitava a

gente era o Amilcar Lobo Em alguns casos ele participou de algumas

sessotildees de tortura no meu eu me lembro dele dizendo ldquo- ela aguentardquo

tomando minha pressatildeo dizendo que eu aguentava apanhar mais ainda

(Pandolfi 5 fev 2003)

49

Dulce e Ana e Dulce e Ceciacutelia dividiram celas em parte do periacuteodo em que estiveram presas no DOI-

CODIRJ A convivecircncia que laacute tiveram seraacute analisada ainda neste capiacutetulo

171

De fato a tortura estava presente em grande parte do cotidiano do DOI-CODIRJ

e para que fosse eficiente e natildeo causasse maiores problemas tal como mortes

indesejadas ao redor dela havia todo um aparato Esse era formado tanto por

enfermeiros e meacutedicos como tambeacutem por outras especificidades tais como teacutecnicas

treinamentos e equipamentos que seratildeo tratados a seguir

Os meacutetodos da tortura

O meacutedico psicanalista Heacutelio Pelegrino traz uma oacutetima definiccedilatildeo sobre como

funciona a tortura poliacutetica

[] a tortura busca agrave custa do sofrimento corporal insuportaacutevel introduzir

uma cunha que leve agrave cisatildeo entre o corpo e a mente E mais do que isto ela

procura a todo preccedilo semear a discoacuterdia e a guerra entre o corpo e a mente

Atraveacutes da tortura o corpo torna-se nosso inimigo e nos persegue Eacute este o

modelo baacutesico no qual se apoacuteia a accedilatildeo de qualquer torturador [] na tortura

o corpo volta-se contra noacutes exigindo que falemos Da mais iacutentima espessura

de nossa proacutepria carne se levanta uma voz que nos nega na medida em que

pretende arrancar de noacutes um discurso do qual temos horror jaacute que eacute a

negaccedilatildeo de nossa liberdade A tortura nos impotildee a alienaccedilatildeo total de nosso

proacuteprio corpo tornando estrangeiro a noacutes e nosso inimigo de morte

(Pelegrino 5 jun 1982 3)

No interior do DOI-CODIRJ em nenhuma das fases da prisatildeo os presos poliacuteticos

eram poupados de torturas No iniacutecio as visitas agrave ldquosala roxardquo eram mais constantes mas

durante todo o periacuteodo em que permaneciam no DOI-CODIRJ os prisioneiros eram

levados para laacute e laacute eram torturados Nessa sala existiam equipamentos proacuteprios

tornando ainda maior a gama de possibilidades de tortura a serem perpetradas aos

prisioneiros Devido a essa diversidade as torturas recebiam nomes proacuteprios para serem

identificadas pelos oficiais das turmas de interrogatoacuterio preliminar do DOIRJ Tais

172

nomes na maior parte das vezes eram irocircnicos e serviam para demonstrar como ali a

praacutetica da tortura era usual e ao mesmo tempo encarada com naturalidade e frieza

pelos seus executores

Em A Tortura tomo V do ldquoProjeto Ardquo (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985)

encontram-se a caracterizaccedilatildeo e os nomes dessas torturas Comumente citadas pelos

presos poliacuteticos da ditadura militar do Brasil a identificaccedilatildeo dessas torturas foi baseada

sobretudo na anaacutelise da documentaccedilatildeo dos processos judiciais da eacutepoca Afinal muitas

vezes anexadas a esses processos encontram-se denuacutencias sobre torturas feitas por

prisioneiros poliacuteticos nas auditorias militares Essas denuacutencias vatildeo ao encontro de

muitas das descriccedilotildees encontradas nas narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos Antocircnio

Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia construiacutedas jaacute em tempos democraacuteticos

(2002-2004) Algumas delas satildeo destacadas a seguir

Capuz tortura psicoloacutegica Impedimento da visatildeo por meio de um capuz

ficando o indiviacuteduo incapacitado de se defender dos golpes a ele direcionados

Espancamento tapas socos e pontapeacutes aplicados em regiotildees como rins

estocircmago e diafragma

Telefone eletrochoque dado por um telefone de campainha do Exeacutercito

possuindo dois fios longos que satildeo ligados ao corpo molhado normalmente nas

partes genitais e nos mamilos aleacutem dos ouvidos dentes liacutengua e dedos

Pau-de-arara um dos meacutetodos mais antigos de tortura pelo qual se pendura a

viacutetima em posiccedilatildeo de ldquofrango assadordquo nua e de cabeccedila para baixo em um pau

preso no alto por duas barras de ferro causando dores terriacuteveis na cabeccedila e em

todo corpo

Choques eleacutetricos normalmente complemento do pau-de-arara Caracteriza-se

por enviar descargas eleacutetricas em contato com o corpo nu e molhado atraveacutes de

173

um magneto com dois terminais estando um geralmente nos oacutergatildeos genitais e

outro em alguma extremidade sensiacutevel do corpo como liacutengua mamilos e dedos

Palmatoacuteria raquete de madeira aplicada fortemente nas matildeos peacutes naacutedegas e

costas da viacutetima

Afogamento Complemento do pau-de-arara Pode ser aplicado ou por meio de

um pequeno tubo de borracha que lanccedila aacutegua na boca e nas narinas do

torturado ou atraveacutes de uma toalha molhada depositada tambeacutem na boca deste

ao mesmo tempo em que um jato drsquoaacutegua eacute lanccedilado em suas narinas

No referido tomo V do Projeto Brasil Nunca Mais encontram-se trechos das

denuacutencias feitas por Dulce Pandolfi nas auditorias militares em 1970 e tambeacutem por seu

advogado Dr Heleno Fragoso Comparando partes dessas denuacutencias de 1970 com

trechos da entrevista concedida por Dulce em 2003 nota-se que haacute muitos pontos em

comum No entanto percebe-se que em sua narrativa de 2003 as torturas satildeo relatadas

de forma mais impessoal e que talvez pelo tempo que separa este depoimento daquele

de 1970 alguns detalhes se perderam foram esquecidos ou mesmo silenciados Eacute o que

pode-se perceber nas transcriccedilotildees feitas a seguir

Nordm 433 Dulce Chaves Pandolfi Prof estudante Idade 23 Local Rio de

Janeiro (CODI) Ano 1970 Apelaccedilatildeo 39778 Vol 1 PAacuteG 328v LVI

PARTE auto de qualificaccedilatildeo e interrogatoacuterio ndash Auditoria

[] que no quartel da PE na Rua Baratildeo de Mesquita assinou sob torturas o

depoimento () que na sala de torturas da PE foi despida e aplicaram-lhe

choques eleacutetricos nas matildeos que foi levada para uma cela onde deram-lhe

um banho frio e sob o pretexto de ensaboaacute-la os torturadores alisavam o seu

corpo que ao retornar agrave sala de torturas foi colocada no chatildeo com um

jacareacute sobre seu corpo nu que depois foi pendurada num pau-de-arara que

levou choques na vagina no acircnus nos seios na cabeccedila e no restante do

corpo [] que ficou em estado de choque vomitando sangue que por 15

174

dias ficou totalmente paraliacutetica [] que foi exposta perante 20 oficiais

como numa demonstraccedilatildeo de aulas de torturas pau-de-arara e choques []

(Arquidiocese de Satildeo Paulo tomo V 1985 757)

Nordm 433 Dulce Chaves Pandolfi Prof estudante Idade 21 Local R de

Janeiro Ano 1970 Apelaccedilatildeo 39778 Vol 2ordm PAacuteG 712807 LVI

PARTE advogado

[] Com a palavra o Dr Heleno Fragoso defensor da acusada Dulce Chaves

Pandolfi este declarou que ela foi presa em agosto de 1970 tendo sido

submetida a uma seacuterie de torturas tendo inclusive o Delegado do DOPS

mandado submetecirc-la a exame de corpo de delito para salvaguardar a sua

responsabilidade [] Natildeo usaremos a palavra do co-reacuteu Paulo Henrique

Oliveira da Rocha Lins que foi ldquoforccedilado a presenciar a acusada DULCE

PANDOLFI sendo pisoteada nua no chatildeordquo (cf fls 325) Remeteremos o E

Conselho ao laudo fls 358 onde dois meacutedicos legistas do Instituto Meacutedico

Legal examinam a acusada e concluem pela verossimilhanccedila a

plausibilidade de suas alegaccedilotildees no sentido de que fora espancada

constatando os vestiacutegios das lesotildees Estaacute laacute a fls 358 a verdade do

inqueacuterito

Esse sofrimento deve ter sido tanto maior quanto era possiacutevel agrave acusada

fornecer as informaccedilotildees que seus torturadores exigiam [] (Arquidiocese de

Satildeo Paulo tomo V 1985 759)

[] vocecirc apanhava era super torturada ali em 1970 natildeo tinha escapatoacuteria

esse era o procedimento era a rotina e aiacute depois da tortura vocecirc jaacute toda

cheia de hematomas passando mal vocecirc era levada para uma cela muitas

vezes essas pessoas saiacuteam da sala de tortura e iam direto para essa cela onde

eu estava entatildeo eu tambeacutem presenciei muitas pessoas que chegavam laacute

completamente quebradas arrebentadas e essa era a nossa vida []

[] tinha o pau-de-arara que eu fui pendurada vaacuterias vezes nele com os

ferros verdes e as cordas tinha o tal telefone de choque que era para mim

um dos piores instrumentos era um aparelho de choque eleacutetrico tinha a

cadeira que eles tambeacutem te amarravam faziam mil sacanagens e tinha uns

enfim tinha uma espeacutecie de chicote que eles te batiam um porrete A tortura

tem vaacuterios procedimentos e tinha na PE nessa eacutepoca um jacareacute Ele natildeo

ficava na sala de tortura Esse jacareacute ficava do lado de fora Quando algumas

pessoas foram presas eles trouxeram o jacareacute para amedrontar Colocavam o

175

jacareacute sobre o seu corpo Era um filhote de jacareacute mas razoavelmente

grande quer dizer de um metro mais ou menos e era mais um dos

instrumentos que eles usavam [] fiquei tomando medicaccedilatildeo especial

porque eu estava muito mal estava com uma paralisia tambeacutem por causa da

tortura tinha ficado completamente travada eacute aquilo vocecirc vai contraindo

contraindo e deixava vocecirc semiparaliacutetica [] (Pandolfi 5 fev 2003)

A partir da comparaccedilatildeo dos trechos dos diferentes depoimentos acima destacados

dados sobre cenaacuterios e temporalidades distintas nota-se que a narrativa construiacuteda por

Dulce Pandolfi em 2003 eacute muito menos detalhada do que a por ela proferida em 1970

Percebe-se portanto no caso de Dulce que o presente vivido em 2003 de certa forma

agia sobre sua memoacuteria do passado ditatorial impulsionando o silecircncio sobre as

minuacutecias dos sofrimentos vividos no DOI-CODIRJ Logo nas memoacuterias de Dulce

nota-se uma inversatildeo da perspectiva de que o presente democraacutetico promovia uma

narrativa que enfatizasse os detalhes das torturas sofridas durante a ditadura militar a

fim de solidificar as conquistas ateacute entatildeo conseguidas e alcanccedilar outras tantas no futuro

Talvez em 2003 Dulce por jaacute ser uma mulher madura e uma profissional

reconhecida entendesse que o constrangimento trazido pela exposiccedilatildeo total de suas

memoacuterias sobre as torturas sofridas no passado superasse a vontade de denunciaacute-las no

presente Afinal naquele ano a democracia dava fortes sinais de consolidaccedilatildeo uma vez

que Lula ex-liacuteder sindical e perseguido poliacutetico pela ditadura acabava de assumir a

Presidecircncia do Brasil e o Estado brasileiro jaacute vinha reconhecendo sua responsabilidade

diante dos abusos da eacutepoca militar atraveacutes da concessatildeo de reparaccedilotildees financeiras agraves

famiacutelias dos militantes poliacuteticos desde entatildeo desaparecidos (lei nordm 914095) e agraves

viacutetimas de torturas em prisotildees poliacuteticas do periacuteodo (lei nordm 1055902)

Jaacute em 1970 os detalhes sobre as torturas sofridas por Dulce ainda eram

extremamente recentes e portanto muito presentes em sua memoacuteria Aleacutem disso tinha

consciecircncia de que no instante de seu depoimento muitos de seus companheiros

176

continuavam a sofrer dentro dos oacutergatildeos de repressatildeo com as mesmas torturas que havia

recebido E principalmente como estava defendendo-se perante um tribunal a

exposiccedilatildeo dos detalhes de suas torturas apresentava-se como uma arma importante na

luta em prol de sua liberdade

Diante disso enquanto Dulce relata em sua entrevista saber do uso de um filhote

de jacareacute como mais um instrumento de tortura utilizado no DOI-CODIRJ sem no

entanto afirmar ter passado por tal experiecircncia Ceciacutelia Coimbra em 2004 narra que

esse filhote de jacareacute havia sido colocado pelos militares sobre seu corpo nu

[] me botaram nua me amarraram numa cadeira e me puseram um filhote

de jacareacute que era um filhote de jacareacute que eles puxavam por uma corda no

pescoccedilo do pobre do jacareacute Era um filhote e aiacute eles puxavam o jacareacute

botavam o jacareacute em cima Olha era uma coisa horriacutevel Nessa hora eu

desmaiei neacute Natildeo aguentei [] (Coimbra 30 nov 2004)

Durante sua entrevista em 2004 Ceciacutelia descreve ter passado pela mesma

situaccedilatildeo de tortura que Dulce havia descrito em seu depoimento agrave Justiccedila Militar em

1970 mas que no presente em 2003 optou por relatar de forma impessoal Isso se

justifica pelo fato de para Ceciacutelia a descriccedilatildeo dos detalhes ainda ser essencial Afinal

Ceciacutelia eacute uma das fundadoras e ativistas assiacuteduas do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio

de Janeiro (GTNMRJ) onde ocupava entatildeo o cargo de vice-presidente

Eacute evidente portanto que na vida de Ceciacutelia a narrativa sobre os sofrimentos

acarretados pela repressatildeo militar ainda era arma na luta que travava para a

solidificaccedilatildeo das conquistas e para a concretizaccedilatildeo de outras tantas que julgava serem

igualmente importantes Para ela diferentemente de Dulce esse tipo de narrativa era

mais que sua memoacuteria pessoal dizia respeito tambeacutem a seu ofiacutecio Acreditava que o seu

sucesso pessoalprofissional dependia do detalhamento da memoacuteria sobre tais violaccedilotildees

177

o que colocava tais detalhes em um lugar de mais faacutecil aceitaccedilatildeo e por conseguinte

exteriorizaccedilatildeo

Mediante os depoimentos de Dulce e Ceciacutelia que chegaram a dividir cela no DOI-

CODIRJ como poderaacute ser visto paacuteginas agrave frente conclui-se que em meados de 1970

um filhote de jacareacute era utilizado para torturar os presos poliacuteticos do 1ordm BPE O uso

desse tipo de tortura eacute aqui entendido mais por seus efeitos psicoloacutegicos do que fiacutesicos e

como sendo destinado mais agraves presas do que aos presos poliacuteticos Afinal apesar de

tocar nos corpos das viacutetimas como acontece durante as torturas fiacutesicas aparentemente

o jacareacute que era dominado por um militar atraveacutes de uma corda amarrada em seu

pescoccedilo natildeo as atacava ou seja natildeo as causava lesotildees externas Era claramente

utilizado com o intuito de ameaccedilaacute-las Dessa forma mesmo sendo efetuado atraveacutes da

accedilatildeo direta do torturador e mediante o contato fiacutesico esse mecanismo de tortura tinha

por objetivo causar danos exclusivamente psicoloacutegicos Como normalmente as

mulheres possuem mais sensibilidades e fobias relacionadas ao contato com animais

provavelmente esse tipo de tortura atingisse maior eficiecircncia quando destinado agraves

presas

Conforme jaacute analisado e inclusive indicado pelo nome Destacamento de

Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) os presos do DOIRJ estavam ali para fornecer

informaccedilotildees que levassem agrave neutralizaccedilatildeo das organizaccedilotildees poliacuteticas de esquerda

Assim de acordo com a necessidade da raacutepida extraccedilatildeo de tais dados caracterizada

anteriormente natildeo eacute difiacutecil concluir que o clima de ameaccedila e tortura estivesse por toda

parte do preacutedio Portanto percebe-se que as torturas no DOI-CODIRJ de 1970 natildeo se

limitavam agraves fiacutesicas e nem agrave ldquosala roxardquo elas se apresentavam sob diversas faces em

vaacuterios momentos e lugares do edifiacutecio

178

As torturas psicoloacutegicas eram variadas Aleacutem da degradaccedilatildeo inicial que o

desconforto das celas ldquosolitaacuteriasrdquo trazia ao prisioneiro mesmo nas celas coletivas os

presos eram submetidos a muitos outros artifiacutecios desse tipo de tortura tais como luzes

das celas constantemente acesas a fim de que perdessem a noccedilatildeo da passagem do

tempo carcereiros durante a noite abrindo repetidamente a janelinha do portatildeo das

celas para vigiaacute-los acordando-os jaacute que o movimento emitia um som alto visitas

recorrentes de militares agraves celas e gritos vindos da ldquosala roxardquo ouvidos a todo tempo

[] essa porta da nossa cela ela tinha uma abertura era uma porta fechada

natildeo era grade natildeo era uma porta pesada e ela tinha um quadrado em cima

com uma abertura para o lado de fora e esses soldados que faziam a ronda

eles abriam essa portinha de cinco em cinco minutos Entatildeo eles passavam e

ldquopahrdquo e dependendo da maldade desses caras eles batiam com mais forccedila

ou menos forccedila isso era a noite toda Inclusive a luz ficava acesa

permanentemente e essa batidinha desse negoacutecio era uma coisa insuportaacutevel

De vez em quando a gente estava pegando no sono e tomava aquele susto

com aquela batida [] a gente tambeacutem ouvia muito grito de tortura o tempo

todo (Pandolfi 5 fev 2003)

[] nem na hora de dormir apagavam a luz dia e noite era a luz acesa vocecirc

sabia o horaacuterio pela hora do cafeacute da manhatilde Mas ateacute se tinha alguma noccedilatildeo

porque como a janela laacute no alto da parede era de vidro dava para vocecirc

perceber que estava agrave noite [] (Carvalho 8 fev 2003)

[] eles faziam o tal do confere de manhatilde e de noite vinham com catildees

policiais farejando a gente e a gente tinha que ficar em peacute igual a soldado

dizendo - ldquoCeciacutelia Coimbrardquo Tinha que falar o nome [] era o tal do

confere E era uma coisa de humilhaccedilatildeo eles de madrugada abriam

estrondosamente as celas entendeu [] era como se noacutes fossemos animais

animais de circo Animais raros eacuteramos os lsquoterroristasrsquo neacute [] era o tempo

todo as torturas fiacutesicas e a coisa da rotina para te degradar enquanto ser

humano [] (Coimbra 30 nov 2004)

179

Outro tipo de tortura psicoloacutegica aplicada no DOI-CODIRJ de 1970 fora da ldquosala

roxardquo jaacute aqui mencionada era o capuz Os agentes das turmas auxiliares encarregados

da carceragem colocavam uma espeacutecie de capuz no prisioneiro quando o levavam da

cela ateacute a ldquosala de torturardquo No entanto no momento em que o preso chegava nessa sala

tinha o capuz retirado pelos agentes das turmas de interrogatoacuterio preliminar Logo no

DOI-CODIRJ de 1970 o capuz ainda natildeo era um mecanismo para esconder os rostos

dos torturadores e sim mais um artifiacutecio de intimidaccedilatildeo do prisioneiro Aliaacutes foi

exatamente por isso que muitos ex-prisioneiros conseguiram anos depois denunciar

militares que na eacutepoca teriam sido seus algozes 50

Ana Batista ressalta ainda ter sido submetida no DOI-CODIRJ a outro tipo de

tortura psicoloacutegica O meacutedico Amilcar Lobo teria solicitado a um agente da turma

auxiliar de plantatildeo que a carregasse ateacute uma sala do 1ordm BPE fora do preacutedio do DOI-

CODIRJ jaacute que estava com ferimentos que natildeo permitiam que andasse Laacute Ana foi

supostamente examinada pelo referido meacutedico e dele escutou o diagnoacutestico de que natildeo

poderia ter filhos pois tinha o uacutetero infantil e retrovertido ou seja atrofiado e virado

para a parte posterior do corpo No entanto apoacutes ser posta em liberdade quatro anos

depois Ana descobriu que aquela afirmaccedilatildeo natildeo era verdadeira pois poderia

engravidar tendo tido posteriormente dois filhos

Eu sei que tem o paacutetio porque uma vez me carregaram para laacute um soldado

foi e me carregou Eu natildeo estava andando eu estava toda ferida entatildeo ele

me carregou pelo paacutetio ateacute uma espeacutecie de consultoacuterio do Amilcar Lobo []

eu estava toda ferida na vagina devido aos choques eleacutetricos e porque

tinham me enfiado o cassetete [] Aiacute ele me examinou e disse assim ldquo-

Vocecirc tem o uacutetero infantil e retrovertido vocecirc nunca vai poder ter filhosrdquo

Assim Eu tinha 21 anos e passei quase quatro anos achando que eu nunca ia

poder ter filhos O cara sabia o que estava fazendo (Miranda 17 nov 2004)

50

Em Os Funcionaacuterios tomo II do Projeto Brasil Nunca Mais se encontra a relaccedilatildeo alfabeacutetica das

pessoas envolvidas com torturas (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985 1-60)

180

Esse tipo de tortura psicoloacutegica destacada no trecho acima coincide com o tipo de

cotidiano vivido pelos presos do DOI-CODIRJ No entanto encaixa-se tambeacutem com o

estilo enfaacutetico que a narrativa de Ana atribuiacutea em 2004 aos danos que a prisatildeo poliacutetica

lhe causara A recente composiccedilatildeo de seu memorial sobre os sofrimentos vividos

durante a ditadura militar enviado agrave Comissatildeo Especial da Secretaria de Direitos

Humanos do Estado do Rio de Janeiro pautava-se no objetivo de receber o valor

maacuteximo da reparaccedilatildeo financeira oferecida pelo Estado No momento da entrevista era

esse o presente que Ana vivia e era atraveacutes dele que inconscientemente lia o passado

Logo sua narrativa apesar de aparentemente coerente sofria influecircncias que as

aspiraccedilotildees e interpretaccedilotildees do presente involuntariamente impuseram a suas memoacuterias

Poreacutem o fato do meacutedico Amilcar Lobo ter lhe dado um diagnoacutestico falso de

esterilidade encontra explicaccedilatildeo natildeo soacute em sua narrativa construiacuteda a partir da

interpretaccedilatildeo de que a notiacutecia teria sido motivada apenas pelo grande dano psicoloacutegico

que isso causaria a uma jovem de 21 anos mas tambeacutem no papel que o meacutedico

desempenhava dentro daquela instituiccedilatildeo Afinal aleacutem de funcionar como uma tortura

psicoloacutegica o diagnoacutestico dado por Amilcar Lobo foi provavelmente uma forma de

tentar resguardar o DOI-CODIRJ de possiacuteveis acusaccedilotildees posteriores de tecirc-la tornado

infeacutertil tantos eram os ferimentos que Ana havia sofrido em seus oacutergatildeos reprodutores

Afinal conforme constatado a principal funccedilatildeo do meacutedico ali era auxiliar as torturas e

cuidar dos ferimentos dos presos na tentativa de proteger a instituiccedilatildeo de acusaccedilotildees que

poderiam trazer preocupaccedilotildees futuras por exemplo a responsabilidade por graves

ferimentos e mortes

Isso no entanto natildeo quer dizer que as torturas do DOI-CODIRJ natildeo tenham

ocasionado mortes Sabe-se que muitos prisioneiros poliacuteticos depois de laacute entrarem

foram dados como desparecidos Quando esses presos eram mortos dentro de

181

instituiccedilotildees como o DOI-CODIRJ os militares envolvidos ou desapareciam com os

corpos pois assim natildeo se tinha como provar o que havia acontecido e por conseguinte

natildeo existiriam culpados ou quando a prisatildeo tivesse sido noticiada por algum meio de

comunicaccedilatildeo o corpo aparecia sob uma justificativa forjada que excluiacutesse a culpa da

instituiccedilatildeo prisional Na maior parte das vezes dizia-se que o prisioneiro havia

cometido suiciacutedio na prisatildeo ou sido baleado em tiroteio o que se supunha estar

relacionado a uma anterior tentativa sua de fuga

Nas entrevistas aqui trabalhadas alguns depoentes relataram ter tido contato

dentro do DOI-CODIRJ com pessoas que depois foram dadas como mortas sob tais

justificativas Dulce por exemplo afirma ter sido acareada durante uma sessatildeo de

tortura com Eduardo Collen Leite o Bacuri morto segundo a Comissatildeo Especial sobre

Mortos e Desaparecidos (2007 139) no Forte dos Andradas na cidade do Guarujaacute

(SP) trecircs dias apoacutes militares implantarem na imprensa a falsa notiacutecia de sua fuga

atribuindo sua morte a um suposto tiroteio na rua entre ele e militares

Quando eu estava laacute eu fui acareada com o Bacuri Eu jaacute encontrei com ele

assim muito mal ele estava respirando mal foi uma cena assim muito barra

pesada e eu sei que depois ele morreu eu natildeo sei se ele morreu laacute mas logo

depois que eu estive com ele ele morreu Ele eacute um desses mortos do

processo Ele morreu fruto de tortura ele foi brutalmente torturado ele jaacute

chegou na PE muito torturado muito quebrado e teve comentaacuterios de

torturadores que diziam ter feito um estrago muito grande nele e natildeo tinham

conseguido que ele falasse as coisas que eles queriam que ele falasse

(Pandolfi 5 fev 2003)

Fernando teve seu irmatildeo Eiraldo de Palha Freire baleado e junto com ele preso

pelos militares da Aeronaacuteutica no aeroporto do Galeatildeo no Rio de Janeiro Mesmo

gravemente ferido Eiraldo foi segundo Fernando e a Comissatildeo Especial sobre Mortos

e Desaparecidos (2007 131) transferido para o DOI-CODIRJ e laacute morto sob torturas

182

Poreacutem de acordo com Fernando seu corpo foi entregue agrave famiacutelia sob a versatildeo de

suiciacutedio

Meu irmatildeo veja bem ele foi metralhado no aviatildeo mas ele estava vivo e

ainda foi parar no DOI-CODI Ele estava ferido mas chegou a levar tortura

natildeo resistiu e morreu aiacute disseram que ele se suicidou (Freire 28 jun 2004)

Hoje no entanto grande parte dos mortos e desaparecidos foi reconhecida pelo

Estado brasileiro A Comissatildeo Especial sobre Mortos e Desaparecidos Poliacuteticos

implantada pela lei 914095 encerrou em 2006 a etapa de reconhecimento e reparaccedilatildeo

financeira agraves famiacutelias reconhecendo um total de 253 mortos e desaparecidos poliacuteticos

por autoridades do Estado brasileiro entre os anos de 1961 e 1988 A partir de 2007

essa Comissatildeo passou a concentrar-se na busca e no reconhecimento de ossadas para

que muitas famiacutelias descubram o que de fato aconteceu com seus entes desaparecidos e

possa enterraacute-los conforme indicado pelo seu livro-relatoacuterio Direito agrave verdade e agrave

memoacuteria (2007)

A partir da anaacutelise aqui feita a respeito das torturas a que os presos eram

submetidos no DOI-CODIRJ em 1970 nota-se que essas eram destinadas a todos que

laacute entravam No entanto percebe-se que a intensidade das torturas no DOI-CODIRJ de

1970 variava de acordo principalmente com o tempo de prisatildeo com o tipo de

organizaccedilatildeo que o preso integrasse (se era ou natildeo adepta da luta armada) e com a

resistecircncia que ele apresentasse para conceder as informaccedilotildees que os agentes das turmas

de interrogatoacuterio preliminar buscavam

Logo constata-se que quanto mais ativa fosse a organizaccedilatildeo de luta armada a que

o prisioneiro estivesse relacionado mais ele seria submetido a torturas e quanto mais

ele resistisse a essas mais intensas elas seriam podendo inclusive acarretar sua morte

183

Afinal os prisioneiros ligados a organizaccedilotildees armadas em ampla atividade tinham mais

informaccedilotildees sobre outros militantes procurados

Diante disso como a ALN e o MR-8 eram organizaccedilotildees envolvidas em grandes

accedilotildees armadas da eacutepoca ndash tais como os sequestros dos embaixadores americano e

alematildeo e do aviatildeo da Companhia Aeacuterea Cruzeiro do Sul ocorridos em 4 de setembro de

1969 11 de junho de 1970 e 1ordm de julho de 1970 respectivamente ndash os prisioneiros que

delas faziam parte ou tinham algum tipo de relaccedilatildeo com seus militantes foram

submetidos a intensas torturas no DOI-CODIRJ Como os perfis de Dulce Fernando

Ana e Ceciacutelia se encaixavam nessas caracteriacutesticas conforme analisado no segundo

capiacutetulo a eles foi imposto no DOI-CODIRJ um cotidiano ainda mais violento do que

por exemplo a Antocircnio

Afinal em meados de 1970 quando Antocircnio de Carvalho51

foi preso e levado

para o DOI-CODIRJ o PCBR sua organizaccedilatildeo na eacutepoca apesar de adepta da luta

armada jaacute se encontrava relativamente desestruturada uma vez que suas principais

lideranccedilas jaacute haviam ldquocaiacutedordquo Dessa forma o PCBR mesmo ainda em atividade natildeo

estava envolvido em accedilotildees tatildeo organizadas e com tamanha repercussatildeo como estavam a

ALN e o MR-8 por exemplo Entatildeo Antocircnio apesar de passar pelas duas fases da

prisatildeo e natildeo ser poupado de duras torturas como ocorreu com Padre Maacuterio

provavelmente natildeo sofreu o mesmo grau de violecircncia destinado a Dulce Fernando Ana

e Ceciacutelia As informaccedilotildees que ele tinha natildeo levariam o DOI-CODIRJ aos envolvidos

com as accedilotildees armadas em destaque na eacutepoca

51

Para mais informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria poliacutetica que acarretou a prisatildeo de Antocircnio Leite de Carvalho

voltar ao segundo capiacutetulo

184

32 O dia-a-dia no caacutercere

O dia-a-dia vivido pelos prisioneiros poliacuteticos no DOI-CODIRJ natildeo era o mesmo

que o vivido em um presiacutedio comum A ameaccedila de tortura o medo dela decorrente e o

sentimento de abandono que ela causava estavam presentes a todo momento Assim

natildeo poderia ser diferente que na memoacuteria construiacuteda pelos ex-prisioneiros poliacuteticos do

DOI-CODIRJ de 1970 a tortura ocupe a maior parte das narrativas sobre o cotidiano

ali vivido

No entanto a memoacuteria dos prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ de 1970

entrevistados entre os anos de 2002 e 2004 abarca tambeacutem outros aspectos daquele dia-

a-dia A partir de seus relatos aleacutem de se tornar viaacutevel a anaacutelise sobre as refeiccedilotildees os

banhos e os passatempos durante a prisatildeo no DOI-CODIRJ se torna possiacutevel tambeacutem

perceber como a convivecircncia a cumplicidade entre os presos e ateacute algumas

demonstraccedilotildees de solidariedade dos carcereiros foram elementos importantes para que

resistissem ao violento cotidiano ali vivido

Na primeira fase da prisatildeo os presos ficavam sozinhos em pequenas celas onde

natildeo havia colchatildeo banheiro e eram constantemente levados agrave sala de tortura Este

cotidiano inicial era muito degradante fiacutesica e mentalmente natildeo soacute pelo sofrimento

acarretado pelo grande nuacutemero de torturas sofridas e pelo desconforto das celas mas

tambeacutem pela solidatildeo nelas vivenciada Afinal natildeo foi por acaso que tais celas ficaram

conhecidas como ldquosolitaacuteriasrdquo

A solidatildeo era uma caracteriacutestica que contribuiacutea fortemente para a fragilidade do

prisioneiro do DOI-CODIRJ Isto torna-se mais evidente quando percebe-se a grande

importacircncia que um raacutepido contato com outro preso representava durante a primeira

fase da prisatildeo Eacute o que pode-se apurar no seguinte trecho narrado por Fernando

185

[] uma hora eu estava encostado aqui [aponta para onde ficava uma das

ldquosolitaacuteriasrdquo no desenho que fez em um papel] no primeiro dia aiacute botaram um

cara no corredor [] era um dirigente do Partido Comunista um velho da

minha idade atualmente Ele tremia muito [] Aiacute ele disse - ldquoEstaacute frio neacute

companheirordquo aiacute eu - ldquoMuitordquo e ele disse - ldquoMas eacute mais psicoloacutegicordquo Aiacute

eu senti uma vergonha sabe Porque eu estava me sentindo tatildeo mal tatildeo para

baixo e um homem daquela idade estava firme[] Ele me deu uma forccedila

muito maior do que ele imagina [] (Freire 28 jun 2004)

Evidencia-se atraveacutes dessa narrativa como em meio ao sofrimento e agrave solidatildeo que

Fernando lembra ter vivenciado no primeiro dia de sua prisatildeo no DOI-CODIRJ um

simples diaacutelogo foi capaz de revitalizar a sua resistecircncia Esse pequeno contato foi tatildeo

importante para Fernando a ponto de ficar marcado em sua memoacuteria ateacute o momento de

sua entrevista mais de trinta anos depois

A partir disso nota-se que aquele cotidiano criava independente das pequenas

diferenccedilas ideoloacutegicas que poderiam existir uma forte identidade entre os presos As

dores decorrentes das torturas e a sensaccedilatildeo de solidatildeo que sentiam no DOI-CODIRJ

faziam com que presos que nunca tivessem se visto antes criassem rapidamente uma

forte cumplicidade e amizade Assim nos momentos em que estavam juntos

principalmente durante a segunda fase da prisatildeo eles conversavam apoiavam-se e

cuidavam uns aos outros extraindo desse conviacutevio forccedila para encararem os proacuteximos

dias de prisatildeo

Essa experiecircncia coletiva dentro do DOI-CODIRJ era valiosa ateacute porque nem

mesmo quando os presos jaacute estavam na segunda fase da prisatildeo ela era garantida Afinal

apesar do prisioneiro poliacutetico do DOI-CODIRJ durante a segunda fase ficar em celas

com estrutura para mais de um preso ele nem sempre tinha companhia Conforme jaacute

analisado anteriormente no DOI-CODIRJ existia uma grande rotatividade e isso

186

implicava em que em determinados momentos as celas coletivas estivessem cheias e

em outros habitadas por dois ou ateacute mesmo um uacutenico prisioneiro

Logo por ser a primeira fase um periacuteodo de isolamento e a segunda devido agrave alta

rotatividade do DOI-CODIRJ uma fase em que ora se estava sozinho e ora tinha-se

companheiro(s) de cela a convivecircncia era entatildeo muito valorizada pelos presos como se

pode perceber na ecircnfase que ela recebe nas memoacuterias dos entrevistados

[] quando estaacutevamos juntas era bem melhor porque existia uma identidade

muito forte entre a gente Eram pessoas que nunca tinham se conhecido de

um modo geral mas aquele oacutedio contra a ditadura o fato de todas terem sido

torturadas aquilo dava margem a uma liga muito grande entre a gente

Entatildeo quando noacutes estaacutevamos juntas a gente cantava a gente conversava a

gente contava histoacuterias de vida o tempo passava e a gente tinha uma

intimidade Conseguimos construir uma coisa muito soacutelida mesmo com

poucas horas e poucos dias mesmo nesse esquema que eu estou te falando

quer dizer as pessoas natildeo ficavam laacute fixas Teve uma vez que uma moccedila

ficou laacute trecircs dias outra que ficou quatro outra que ficou cinco Mas era

uma coisa muito boa chegar algueacutem mesmo vocecirc vendo a pessoa chegar

toda esbagaccedilada porque os que entravam naquela cela jaacute tinham passado laacute

embaixo [] (Pandolfi 5 fev 2003)

[] a cela coletiva na verdade acabava se constituindo num foacuterum de

debates Sempre discutiacuteamos poliacutetica porque eram companheiros de

diversas organizaccedilotildees natildeo era uma uacutenica organizaccedilatildeo ou um uacutenico partido

que estava ali preso mas sim vaacuterios e havia aquela troca de experiecircncias

cada um contava a sua histoacuteria e assim ia passando o dia-a-dia sempre

havia novidades Assim a gente acabava quebrando um pouco o isolamento

[] (Carvalho 8 fev 2003)

Essa convivecircncia no caacutercere fomentou portanto a solidariedade e instituiu um

forte sentimento de coletividade entre os presos Afinal a luta pela sobrevivecircncia e o

pavor de voltar a ser torturado eram comuns a todos eles que procuravam na uniatildeo criar

forccedilas para suportar aquele pesado cotidiano A troca de apoio servia entatildeo como uma

187

espeacutecie de sustentaccedilatildeo como uma garantia de sobrevida Ao preocuparem-se e

ajudarem-se os presos injetavam-se um acircnimo importante para conseguirem resistir agrave

situaccedilatildeo de desespero e solidatildeo que ali era vivida e diante dessa realidade acabavam

formando um grupo coeso cuja principal caracteriacutestica era justamente esse apoio

Constituiacuteam portanto uma identidade conjunta atraveacutes da qual se viam sob os mesmos

temores e anseios aleacutem de perceberem essa parceria como uma extensatildeo da resistecircncia

agrave ditadura que vinham praticando desde antes de serem presos

Ana Dulce e Ceciacutelia memoacuterias relacionadas

Ana e Dulce e depois Dulce e Ceciacutelia foram companheiras de cela durante parte

da segunda fase de suas prisotildees no DOI-CODIRJ de 1970 Suas narrativas sobre a

convivecircncia que laacute tiveram servem aqui para analisar tanto as relaccedilotildees entre suas

memoacuterias quanto alguns aspectos do cotidiano dessa instituiccedilatildeo

Conforme analisado no segundo capiacutetulo Ana chegou ao DOI-CODIRJ no final

de julho de 1970 Logo depois em 14 de agosto do mesmo ano Dulce foi presa e para

laacute tambeacutem levada Como Ana afirma ter permanecido no DOI-CODIRJ por cerca de

um mecircs constata-se que no final de agosto quando ela jaacute estava em vias de ser

transferida colocaram Dulce em sua cela no segundo andar Dulce acabava de vir da

primeira fase de sua prisatildeo que por ter lhe causado graves consequecircncias fiacutesicas tinha

sido mais curta Nesse momento de extrema fragilidade em que Dulce se encontrava jaacute

que vinha de intensas sessotildees de tortura e de uma das ldquosolitaacuteriasrdquo do andar de baixo

Ana ajudou-a a cuidar de seus ferimentos e a tomar banho

Esse contato que teve com Ana apesar de curto jaacute que dias depois Ana foi

transferida para o DOI-CODISP parece ter sido muito importante para Dulce Afinal

apesar dela ter convivido com outras presas durante os quase trecircs meses em que ficou

188

no DOI-CODIRJ Ana foi a uacutenica companheira de cela que Dulce citou pelo nome

durante a entrevista

[] logo que eu cheguei fui para a solitaacuteria era torturada e ia para a solitaacuteria

era torturada e ia para a solitaacuteria quando eu comecei a passar muito mal

depois de um dia dois dias eles me levaram para outra cela maior onde

estava Ana Bursztyn que me deu banho Logo depois ela saiu da cela e eu

fiquei sozinha [] (Pandolfi 5 fev 2003)

A justificativa para a presenccedila de Ana ter ficado marcada na memoacuteria de Dulce

possivelmente eacute o fato de naquele momento aleacutem de estar extremamente machucada

Dulce natildeo ter ainda dividido cela com mais ningueacutem Estava ateacute entatildeo imersa em uma

rotina de solidatildeo e tortura que caracterizava a primeira fase da prisatildeo no DOI-

CODIRJ A ajuda e o conviacutevio com Ana portanto representaram para Dulce um

primeiro contato com algueacutem em quem podia confiar talvez uma primeira surpresa boa

no cotidiano que vinha vivendo no DOI-CODIRJ Jaacute para Ana que estava haacute mais

tempo presa Dulce provavelmente natildeo tinha sido a uacutenica a contar com sua ajuda logo

natildeo se destacava entre suas memoacuterias sobre o cotidiano ali vivido

Comparando as datas das prisotildees de Ana Dulce e Ceciacutelia percebe-se que apoacutes

Ana ter sido transferida Dulce ficou nessa cela grande chamada de ldquocoletivo das

mulheresrdquo enquanto Ceciacutelia entrava no DOI-CODIRJ Ceciacutelia passou pela fase das

ldquosolitaacuteriasrdquo e depois foi levada ateacute uma cela tambeacutem no segundo andar ao lado da de

Dulce onde esteve em companhia de uma moccedila Um tempo depois foi transferida para

o ldquocoletivo das mulheresrdquo onde estava Dulce com quem conviveu grande parte do

tempo

[] fiquei nessa cela [apontando para o desenho que havia feito mostra a

cela do segundo andar que ficava ao lado do ldquocoletivo das mulheresrdquo]

189

depois fui transferida para uma cela maior onde tinha vaacuterias presas poliacuteticas

inclusive uma pessoa que ficou grande parte do tempo comigo a Dulce

Grande parte do tempo eu fiquei com ela nessa cela era o lsquocoletivo das

mulheresrsquo [] (Coimbra 30 nov 2004)

Apesar de natildeo ser destacada entre as memoacuterias de Dulce Ceciacutelia durante sua

narrativa parece atribuir um papel importante ao conviacutevio que elas tiveram Afinal o

tempo que passou com Dulce no DOI-CODIRJ trouxe-lhe um dado a mais sobre as

aulas de tortura a novos oficiais que ali estavam ocorrendo jaacute que enquanto dividia cela

com Ceciacutelia Dulce serviu de cobaia para tais ensinamentos Assim como Ceciacutelia era

vice-presidente do GTNMRJ no momento de sua entrevista e por conseguinte tinha

como caracteriacutestica enfatizar em sua narrativa os detalhes sobre as torturas cometidas

pelos agentes do DOI-CODIRJ a fim de denunciaacute-las se justifica que Dulce tenha

papel marcante entre suas memoacuterias Esse destaque que a convivecircncia com Dulce

assumiu para Ceciacutelia pode ser conferido no trecho abaixo

[] a Dulce foi chamada para uma tortura de tarde [] a gente comeccedilou a

ouvir os gritos de Dulce e jaacute tinha passado todo o periacuteodo porque eles

torturam logo no iniacutecio para pegar informaccedilatildeo Aiacute eu digo ldquo- Soacute se

algueacutem caiu algueacutem foi preso e Dulce estaacute sendo acareadardquo Daqui a pouco

a Dulce volta para a cela com um soldado toda ferrada e aiacute ela ainda ia

voltar O cara disse ldquo- Oh eacute soacute para ela se lavarrdquo Entatildeo eu entrei no

chuveiro com ela e eu dizia ldquo- Dulce o que estaacute havendordquo E ela ldquo- Eu natildeo

estou entendendo o que estaacute acontecendo tem um bando de homem a minha

volta ningueacutem me faz pergunta nenhuma e estatildeo me torturando estatildeo me

botando no pau-de-arara estatildeo me fazendo afogamento estatildeo me dando

choque eleacutetrico eu natildeo estou entendendordquo E eu falei ldquo- Dulce isso eacute aula

para novos torturadoresrdquo Porque eu jaacute tinha lido num dos panfletos da UNE

sobre os meacutetodos de tortura que estavam sendo utilizados no DOI-CODI

aleacutem do jacareacute que a gente viu e que citavam tinha tambeacutem a aula a novos

torturadores ou seja eles pegavam um preso que tinha tido maior resistecircncia

e botavam laacute como cobaia para ensinar aos novos torturadores todas as

190

teacutecnicas E foi isso que fizeram com Dulce Aiacute eu falei ldquo- Dulce isso eacute aula

para novos torturadores eu li essa porrardquo [] (Coimbra 30 nov 2004)

A partir disso fica claro que para Ceciacutelia a constataccedilatildeo da existecircncia de aulas de

torturas no DOI-CODIRJ utilizando presos poliacuteticos teve uma destacada importacircncia

Logo o seu conviacutevio com Dulce durante o periacuteodo em que ela foi viacutetima desses

ensinamentos tambeacutem teve

Aleacutem disso Ceciacutelia durante sua entrevista perguntou quem eu jaacute havia

entrevistado Assim ao saber sobre a entrevista de Dulce sentiu-se motivada a falar

sobre as experiecircncias que com ela tinha compartilhado durante a prisatildeo no DOI-

CODIRJ Dessa forma alguns outros detalhes sobre essa convivecircncia contidos na

memoacuteria de Ceciacutelia foram naquele momento reconstruiacutedos e narrados

Um deles em especial contribui para a anaacutelise sobre o cotidiano do DOI-

CODIRJ Diz respeito agrave relaccedilatildeo travada com alguns carcereiros ou seja soldados do 1ordm

BPE que integravam as turmas auxiliares Afinal a partir do relato de Ceciacutelia Coimbra

percebe-se que ela e Dulce puderam ir ateacute as celas onde estavam os seus companheiros

que na eacutepoca tambeacutem se encontravam aprisionados no DOI-CODIRJ graccedilas agrave ajuda

de um dos responsaacuteveis pela vigia daquela noite

Teve uma noite tinha um soldadinho que a gente natildeo lembra o nome a

gente soacute se lembra dos lsquofilhos da putarsquo a gente devia lembrar dos caras que

foram legais com a gente Esse cara por exemplo ele soube que o marido de

Dulce estava preso o Alexandre e que o Novaes meu marido estava preso

Aiacute como ele ia ficar a noite toda de guarda ele mandou os soldadinhos

descerem e permitiu que Dulce fosse agrave cela de Alexandre e eu agrave de Novaes

Esse cara natildeo saiu da minha cabeccedila [] Esse cara a gente conversando com

ele ele soube que o Novaes estava na cela do lado e que o Alexandre estava

numa outra cela ali perto e ele deixou Dulce foi para a cela de Alexandre e

eu para a de Novaes Assim rapidinho neacute Demos a matildeo um beijo assim

[beija a proacutepria matildeo para demonstrar] O cara se expocircs mesmo neacute E tinha

191

outros que entregavam neacute Entregavam os bilhetes Era um vendaval de

bilhetes durante a madrugada Os caras se expunham mesmo entendeu

Tinha coisas bonitas ali apesar daquele clima de terror tinha pessoas assim

solidaacuterias E esses nomes a gente natildeo lembra neacute Devia lembrar []

(Coimbra 30 nov 2004)

Conforme analisado no primeiro capiacutetulo tais carcereiros que integravam as

turmas auxiliares do DOI-CODIRJ natildeo eram oficiais de informaccedilotildees treinados

especialmente para trabalhar junto agrave repressatildeo poliacutetica eram soldados que em 1970

serviam ao quartel do 1ordm BPE52

Logo eram passiacuteveis de sentir solidariedade jaacute que

muitos deles natildeo estavam servindo ao DOI-CODIRJ por algum tipo de vocaccedilatildeo

estavam ali somente para cumprir com o serviccedilo militar do quartel Afinal apesar de

haver entre eles alguns que se identificassem com a funccedilatildeo e ateacute almejassem tornar-se

agentes de informaccedilotildees os integrantes dessas turmas auxiliares natildeo trabalhavam nos

interrogatoacuterios dos presos e consequentemente natildeo estavam diretamente relacionados

com as torturas Portanto pode-se dizer que no DOI-COIRJ existia compaixatildeo entre

soldados e prisioneiros

A partir disso evidencia-se como o indiviacuteduo tem um papel primordial para essa

anaacutelise Afinal ao considerar sua memoacuteria como fonte para a histoacuteria torna-se possiacutevel

perceber aqui algumas de suas idiossincrasias ou seja peculiaridades comportamentais

capazes de interferir na percepccedilatildeo sobre o cotidiano vivido no DOI-CODIRJ de 1970

Afinal a ajuda que o soldado deu a Dulce e Ceciacutelia eacute um exemplo tiacutepico de como as

peculiaridades individuais satildeo capazes de atribuir contrastes e inconstacircncias agrave

interpretaccedilatildeo de uma realidade do passado Desse modo entende-se perfeitamente o

porquecirc de Marshall Sahlins afirmar em Histoacuteria e Cultura (2006) que os indiviacuteduos

52

Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar ver o Anexo II

192

representam um feixe uacutenico resultado de uma ligaccedilatildeo peculiar entre infinitos traccedilos

culturais e sociais que natildeo conseguem ser captados por anaacutelises generalizantes

Uma vez que a partir de accedilotildees como a desse soldado pode-se afirmar que o

cotidiano prisional do DOI-COIRJ de 1970 natildeo era formado unicamente pela repressatildeo

e pela violecircncia dos militares que ali representavam o Estado como uma generalizaccedilatildeo

ou uma reduccedilatildeo de varaacuteveis poderia fazer crer Havia tambeacutem compaixatildeo ateacute mesmo

entre lados aparentemente opostos

As formas de lidar com o tempo

Para sobreviver ao cotidiano do DOI-CODIRJ natildeo bastava ser resistente

fisicamente tambeacutem era necessaacuterio manter a mente em equiliacutebrio Essa preocupaccedilatildeo

acompanhava o prisioneiro em todas as fases da prisatildeo mas principalmente quando ele

estava sozinho Afinal a solidatildeo trazia a sensaccedilatildeo de que o tempo natildeo passava e em

meio ao violento cotidiano a que era submetido o preso do DOI-CODIRJ percebia

mais facilmente sinais que lhe causavam medo e desespero

Ceciacutelia Coimbra e Dulce Pandolfi ressaltam que mesmo quando estavam em

celas coletivas com a companhia de outras presas percebiam muitos desses sinais

Ficavam em pacircnico pois na maior parte das vezes significavam que seriam levadas

novamente agrave ldquosala roxardquo Quando sozinhas a sensaccedilatildeo de pavor por natildeo ser

compartilhada provavelmente era ainda mais intensa

[] a gente ficou tatildeo traumatizada com o barulho de chave que quando a

gente ouvia a gente dizia ldquo- Eles vecircm para caacute vecircm pegar alguma de noacutesrdquo

Era uma loucura era um clima de terror [] (Coimbra 30 nov 2004)

[] toda vez que um soldado abria a cela trazia o capuz Era ateacute uma cena

muito dramaacutetica porque todo mundo comeccedilava a tremer de medo porque se

193

sabia que se o capuz estava ali era porque algueacutem ia descer algueacutem ia

circular e descer normalmente significava ser torturada Entatildeo era assim

uma coisa bem dramaacutetica bem traumaacutetica tambeacutem porque quando abriam a

cela e retiravam o capuz a gente pensava ldquo- pronto algueacutem vai agora pro

caceterdquo (Pandolfi 5 fev 2003)

Para manterem suas mentes satildes os prisioneiros do DOI-CODIRJ quando

sozinhos utilizavam alguns artifiacutecios Dulce em sua narrativa relata ter ficado algum

tempo sozinha em uma cela coletiva onde se ocupava em frear a impressatildeo de

vagarosidade do tempo e os maus pensamentos de diversas maneiras tais como

[] eu lembro de duas coisas que eu fazia como exerciacutecio para passar o

tempo Os colchotildees que eram horriacuteveis eram colchotildees de crina eu tirava

aquelas palhas de dentro do colchatildeo e ficava fazendo tranccedilas fazia vaacuterias

tranccedilas e contava uma tranccedila duas tranccedilas e ia montando uma na outra

Fazia filas de tranccedilas depois eu desmanchava tudo eu lembro que eu ateacute

tinha medo ldquo- Se esses caras descobrirem isso vatildeo mandar costurar o

colchatildeordquo Depois eu tirava tudo e guardava de novo laacute dentro do colchatildeo No

dia seguinte eu comeccedilava outra vez Eu dizia ldquo- eu natildeo posso enlouquecer

entatildeo eu tenho que ocupar a minha cabeccedila com alguma coisardquo Porque eu

natildeo tinha nada nada nada para fazer Outra atividade que eu fazia tambeacutem

Como [] o chatildeo da cela era como se fosse de umas lajotas de uns azulejos

sei laacute o quecirc eu contava aqueles quadrados todos multiplicava fazia

milhares de contas Fazia um jogo no chatildeo do quarto contava para frente

para traacutes multiplicava e naquilo ali eu ficava horas naquelas contas

matemaacuteticas naquelas multiplicaccedilotildees naquelas somas naqueles ladrilhos

[] (Pandolfi 5 fev 2003)

A execuccedilatildeo de tais meacutetodos certamente contribuiacutea para aumentar a possibilidade

de sobrevivecircncia e sanidade do prisioneiro do DOI-CODIRJ Poreacutem o preso dependia

de sua capacidade e habilidade para usar recursos que o beneficiassem e que ajudassem

a se opor aos mecanismos desetruturadores e despersonalizadores sobre ele empregados

Nessa situaccedilatildeo assim como Elizabeth Ferreira na obra Mulheres Militacircncia e Memoacuteria

194

(1996 65) acredita-se que o sentimento de auto-estima gerado nos presos poliacuteticos pelo

seu ideal poliacutetico e social eacute um elemento crucial de resistecircncia Atraveacutes desse

sentimento normalmente tais presos costumam sustentar a esperanccedila na mudanccedila o

que lhes gera forccedila e ateacute mesmo uma criatividade para suportar o sofrimento maior que

a de presos comuns

As roupas e as refeiccedilotildees

Como o DOI-CODIRJ de 1970 natildeo era um presiacutedio havia acabado de ser

montado dentro de um preacutedio do quartel do 1ordm BPE para abrigar temporariamente os

presos poliacuteticos que pudessem contribuir com suas investigaccedilotildees laacute natildeo existiam

refeitoacuterios visitas banho de sol ou mesmo uniformes Aleacutem da falta de uma estrutura

que propiciasse uma rotina normal de presiacutedio esse diferencial era importante para o

procedimento investigativo do DOI-CODIRJ Afinal havia ali a necessidade do preso

ficar incomunicaacutevel jaacute que quanto maior seu isolamento maior seria sua fragilidade e

esta se relacionava diretamente com sua capacidade em conceder informaccedilotildees No mais

esse isolamento tambeacutem estava relacionado com a preocupaccedilatildeo em proteger a

instituiccedilatildeo de acusaccedilotildees de maus tratos uma vez que caso os ferimentos dos presos

fossem notados poderiam ser vinculados a torturas e consequentemente denunciados

Dessa forma os prisioneiros do DOI-CODIRJ natildeo podiam nem mesmo tomar sol pois

poderiam ser vistos por pessoas dos preacutedios vizinhos e funcionaacuterios da faacutebrica da

Brahma localizada atraacutes do paacutetio do 1ordm BPE

As refeiccedilotildees eram portanto servidas nas proacuteprias celas pelos soldados da turma

auxiliar de plantatildeo Para colocarem cada uma das quatro refeiccedilotildees a que cada preso

tinha direito esses abriam a cela de manhatilde cedo no iniacutecio e no fim da tarde e agrave noite

Segundo a narrativa dos presos no cafeacute da manhatilde costumavam trazer um patildeo com

195

pasta de amendoim e um cafeacute com leite na caneca para cada preso No almoccedilo uma

bandeja de alumiacutenio com um prato que normalmente continha repolho arroz angu e

algumas vezes um pedaccedilo de carne Durante a tarde deixavam um bule de mate com

um pedaccedilo de patildeo na cela e no fim do dia repetiam para o jantar a mesma comida do

almoccedilo

As comidas servidas em 1970 aos prisioneiros do DOI-CODIRJ satildeo mais alguns

exemplos de detalhes do cotidiano que soacute podem ser abordados por meio da memoacuteria de

quem viveu aquele passado Diante disso eacute interessante perceber aspectos que

justificam o fato dessas refeiccedilotildees terem marcado as memoacuterias dos prisioneiros a ponto

de nelas sobreviverem por cerca de trecircs deacutecadas

[] a gente ateacute brincava que eles deviam ter uma plantaccedilatildeo de repolho ali

porque era repolho todo dia repolho cru repolho assado mas na hora do

almoccedilo normalmente vinha nessa bandeja de alumiacutenio e era repolho um

pouco de arroz feijatildeo e agraves vezes um pedaccedilo de carne era uma comida bem

horrorosa [] (Pandolfi 5 fev 2003)

[] A comida era peacutessima era aquela comida do rancho parecia uma

lavagem de porco uma coisa horrorosa [] Eu fiquei com a pele toda

lsquofodidarsquo porque a uacutenica coisa que eu conseguia comer era o angu []

(Coimbra 30 nov 2004)

Portanto o conteuacutedo das refeiccedilotildees do DOI-CODIRJ aleacutem de ter ficado marcado

na memoacuteria dos prisioneiros pelo aspecto sensorial ou seja pelo gosto e apresentaccedilatildeo

ruins permaneceu tambeacutem pela relaccedilatildeo com a vaidade feminina e pelo fato de remeter a

momentos que foram compartilhados O angu marcou Ceciacutelia por ter feito mal a sua

pele jaacute que como eacute uma comida gordurosa lhe causou espinhas abalando ainda mais a

sua aparecircncia fiacutesica jaacute degrada por aquele cotidiano prisional O repolho por sua vez

deixou marcas na memoacuteria de Dulce por ser motivo de deboche entre as presas pois sua

196

presenccedila recorrente nos pratos ocasionava uma espeacutecie de piada entre elas e trazia um

pouco de descontraccedilatildeo

Outro aspecto do cotidiano do DOI-CODIRJ de 1970 tambeacutem alcanccedilado por

meio dos detalhes trazidos pelas memoacuterias de ex-prisioneiros satildeo as roupas Como natildeo

existiam uniformes institucionais na maior parte do tempo as roupas eram as mesmas

que eles vestiam no dia em que entraram no 1ordm BPE Dessa forma quando jaacute estavam

em celas coletivas os presos muitas vezes lavavam-nas e entatildeo voltavam a vestiacute-las

Depois de algum tempo afinal as famiacutelias acabavam descobrindo onde eles estavam

presos e algumas roupas eram deixadas no Palaacutecio Duque de Caxias antigo preacutedio do

Ministeacuterio do Exeacutercito no Centro da cidade do Rio de Janeiro para serem enviadas e

entregues no 1ordm BPE aos prisioneiros

No entanto ateacute isso chegar a acontecer demorava pois fazia parte da seguranccedila

institucional tentar manter num primeiro momento sigilo sobre seus presos Assim

Ceciacutelia presa em agosto de 1970 lembra que por ter sentido muito frio durante o seu

primeiro mecircs no DOI-CODIRJ ela e suas companheiras de cela costumavam

improvisar formas de protegerem os peacutes

[] a minha matildee ia ateacute o Ministeacuterio do Exeacutercito e ela dizia ldquo- Minha filha

estaacute laacute na PErdquo Aiacute quase um mecircs depois a minha matildee conseguiu mandar

roupa para mim Ateacute entatildeo minha filha era um loucura neacute A gente fedia

sabe A gente tomava banho de chuveiro e botava a mesma roupa a gente

lavava a roupa e era mecircs de agosto e ainda estava frio Era um frio que a

gente sentia que a gente enrolava jornal nos peacutes porque natildeo tinha nenhuma

coisa nada Era no colchatildeo puro que a gente dormia (Coimbra 30 nov

2004)

Quando as famiacutelias conseguiam descobrir onde estavam enviavam aleacutem de

roupas alguns mantimentos como frutas por exemplo Essas vinham muitas vezes

197

embrulhadas em jornais velhos que serviam para alguns como proteccedilatildeo para o corpo e

para outros como distraccedilatildeo conforme pode-se constatar na narrativa de Antocircnio ao

lembrar que ele e seus companheiros de cela passavam o tempo lendo as notiacutecias velhas

contidas em tais jornais

Eu me lembro tambeacutem que quando alguns presos recebiam frutas essas

coisas embrulhadas em papel jornal jornal velho a gente lia o jornal e

ficaacutevamos um bom tempo lendo aqueles jornais com datas de um mecircs trecircs

meses atraacutes mas era sempre bom para a cabeccedila da gente ficar lendo as

notiacutecias mesmo velhas [] (Carvalho 8 fev 2003)

Como jaacute aqui ressaltado a cumplicidade que existia entre os presos do DOI-

CODIRJ ajudava a construir mecanismos que os protegiam das mais diversas

dificuldades Segundo Dulce para amenizar a escassez de roupa a que eram submetidas

num primeiro momento dentro do DOI-CODIRJ as presas do ldquocoletivo das mulheresrdquo

estabeleceram uma espeacutecie de acordo Atraveacutes dele ficou determinado que quem de laacute

saiacutesse deixaria algumas peccedilas para quem ainda ficasse tinha uma espeacutecie de rotina

entre as mulheres que quem saiacutea deixava alguma roupa laacute (Pandolfi 5 fev 2003)

Assim atraveacutes desse tipo de cumplicidade elas ajudavam a diminuir o sofrimento

diaacuterio umas das outras uma vez que as peccedilas deixadas na cela possibilitavam que as

presas conseguissem manter a higiene e amenizar a sensaccedilatildeo do frio

Percebe-se portanto que de fato o dia-a-dia do DOI-CODIRJ de 1970 era

atiacutepico pois este natildeo era um presiacutedio e sim um oacutergatildeo de repressatildeo poliacutetica Assim uma

das poucas semelhanccedilas com a rotina de um presiacutedio comum era basicamente a privaccedilatildeo

da liberdade Poreacutem apesar de ofuscado pela tortura e pelo pavor ali existia um

cotidiano que abarcava outros aspectos muito interessantes Afinal estes satildeo capazes de

198

muito esclarecer sobre o funcionamento praacutetico desse importante oacutergatildeo de repressatildeo da

ditadura militar brasileira e tambeacutem sobre diversos tipos de reaccedilotildees e relaccedilotildees humanas

do passado e do presente

199

Conclusatildeo

Quando o muro separa uma ponte une

Se a vinganccedila encara o remorso pune

Vocecirc vem me agarra algueacutem vem me solta

Vocecirc vai na marra ela um dia volta

E se a forccedila eacute tua ela um dia eacute nossa

Olha o muro olha a ponte

Olha o dia de ontem chegando

Que medo vocecirc tem de noacutes

Olha aiacute

Vocecirc corta um verso eu escrevo outro

Vocecirc me prende vivo eu escapo morto

De repente olha eu de novo

Perturbando a paz exigindo o troco

Vamos por aiacute eu e meu cachorro

Olha um verso olha o outro

Olha o velho olha o moccedilo chegando

Que medo vocecirc tem de noacutes

Olha aiacute

O muro caiu olha a ponte

Da liberdade guardiatilde

O braccedilo do Cristo horizonte

Abraccedila o dia de amanhatilde

Olha aiacute

Mauriacutecio Tapajoacutes amp Paulo Ceacutesar Pinheiro

(Pesadelo 1972)

200

Diante do exposto ao longo desta dissertaccedilatildeo conclui-se que a formulaccedilatildeo da

Doutrina de Seguranccedila Nacional feita pela ESG em colaboraccedilatildeo com o IPES e o IBAD

cerca de vinte anos antes do surgimento dos DOI-CODI tinha por base uma teoria de

guerra que nortearia a atuaccedilatildeo repressora desses oacutergatildeos Essa teoria interpretava os

movimentos de oposiccedilatildeo que vinham crescendo desde o iniacutecio dos anos 1960 como uma

espeacutecie de guerra revolucionaacuteria Todos os cidadatildeos brasileiros passavam entatildeo a ser

encarados como suspeitos e foi esta percepccedilatildeo que estimulou o governo militar a

planejar a Seguranccedila Nacional e por conseguinte criar um centralizado e articulado

aparato de informaccedilotildees internas junto a um eficiente oacutergatildeo repressivo de controle

armado os DOI-CODI

Aleacutem disso constatou-se que a consolidaccedilatildeo dos DOI-CODI por todas as Regiotildees

Militares do paiacutes substanciou-se tambeacutem atraveacutes da alta legalidade autoritaacuteria e das

medidas tomadas pelo governo para conter as cizacircnias militares Afinal o governo

ditatorial brasileiro na medida em que arbitrou leis a fim de legalizar o seu poder

poliacutetico e suprimir direitos antes garantidos agrave populaccedilatildeo construiu uma sustentaccedilatildeo

juriacutedica necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um aparato de seguranccedila cada vez mais forte e

centralizado Grande parte dessas leis autoritaacuterias foi usada como artifiacutecio para acalmar

os acircnimos na caserna responsaacuteveis por importantes conflitos internos que ameaccedilavam a

uniatildeo militar as chamadas cizacircnias militares As leis arbitraacuterias serviam entatildeo tanto

para conter a oposiccedilatildeo poliacutetica quanto para ceder agraves reivindicaccedilotildees por poder vindas da

caserna Completava-se dessa forma um cenaacuterio legal capaz de suportar um organismo

de repressatildeo onde os militares de meacutedias e baixas patentes trabalhariam com autonomia

uma das bases para a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

Diante disso viu-se tambeacutem que natildeo foi agrave toa que a estrutura e o funcionamento

do SISSEGIN e dos seus oacutergatildeos foram instituiacutedos e regulamentados por meio de

201

decretos sigilosos o que incluiu a experiecircncia da Oban criada em Satildeo Paulo em

meados de 1969 e no ano seguinte a institucionalizaccedilatildeo dos DOI-CODI por todo o

paiacutes Afinal a justificativa para esse sigilo estava justamente na maior mobilidade e

autonomia de accedilatildeo que traria para a atuaccedilatildeo repressora desses organismos pois em

segredo podiam agir sem grandes limitaccedilotildees natildeo esbarrando em questotildees externas agraves

decisotildees militares tal como o respeito aos direitos humanos

Os DOI-CODI destacavam-se principalmente pela independecircncia financeira e pela

centralizaccedilatildeo hieraacuterquica que os constituiacuteam essenciais para a alta eficiecircncia de suas

investigaccedilotildees e accedilotildees Tais atributos evitavam que suas operaccedilotildees fossem suscetiacuteveis agrave

duplicidade de tarefas a competiccedilotildees e a conflitos de interesses maximizando os seus

resultados Eram entatildeo organismos de excelecircncia a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo

Entretanto essa sofisticaccedilatildeo tambeacutem vinha do distanciamento mantido entre os

militares do governo e os que agiam nesses oacutergatildeos jaacute que a ditadura ao mesmo tempo

em que sancionava a tortura nessa instituiccedilatildeo estrategicamente negava a sua existecircncia

perante a sociedade isentando governo do paiacutes de qualquer ligaccedilatildeo com ela Em

complemento a essa ideia o sistema funcional dos DOI responsaacuteveis por accedilotildees que

englobavam as prisotildees e os interrogatoacuterios dos presos poliacuteticos apresentava-se

complexo e informal Dessa forma as brechas para que a aparente falta de controle

fosse exercida eram amplas a fim de que meacutetodos violentos ilegais tivessem ali uma

legitimidade excepcional Justifica-se assim como a versatildeo oficial dos militares ainda

possa ser a de que a tortura jamais resultou de qualquer ordem ou orientaccedilatildeo superior

Evidenciou-se poreacutem a incoerecircncia desta versatildeo jaacute que ficou claro que em todos

os organismos militares nos DOI inclusive existiam uma forte hierarquia a ser

cumprida Mesmo com a estrutura complexa ali existente qualquer accedilatildeo deveria ser

remetida a um superior logo a questatildeo da responsabilidade sempre poderia ser

202

resgatada Percebeu-se que em geral apesar de velada a tortura era do conhecimento

de toda a hierarquia militar inclusive dos generais agrave frente do governo

Durante todo o trabalho a intervenccedilatildeo do presente (2002-2004) sobre as

memoacuterias do passado (1970) foi conferida nas narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos

entrevistados Percebeu-se que o contexto poliacutetico e social vivido no presente e o

momento da vida pessoal de cada um tiveram uma contribuiccedilatildeo importante na forma

como os ex-presos construiacuteram suas memoacuterias Aleacutem disso a forma como a rede de

entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que as entrevistas foram realizadas

tambeacutem concorreram para essa intervenccedilatildeo no relato que fizeram sobre o passado

Enfim um dos principais elementos para a anaacutelise criacutetica exercida aqui sobre essas

memoacuterias foi sem duacutevida o reconhecimento dessa influecircncia do presente sobre o

passado

A trajetoacuteria prisional dos entrevistados os grupos oposicionistas que integravam

as accedilotildees de que participaram o momento da prisatildeo o tempo que permaneceram presos

e as funccedilotildees que exerciam no presente foram aspectos aqui ressaltados por mostrarem

um pouco da histoacuteria de vida e por meio desta a personalidade ou seja as

idiossincrasias de cada um deles Dessa forma foi possiacutevel aproximar-se do aspecto

individual de suas memoacuterias uacutenico a cada ser entendendo um pouco mais as bases de

suas construccedilotildees

Tornou-se assim viaacutevel analisar essas memoacuterias e colocaacute-las em diaacutelogo com o

conteuacutedo levantado a partir da anaacutelise historiograacutefica e da monografia sobre o DOI

escrita pelo coronel Pereira em 1978 possibilitando uma caracterizaccedilatildeo do cotidiano

prisional vivido pelos presos do DOI-CODIRJ em 1970 O trabalho organizacional dos

DOI-CODIRJ foi visto portanto de forma praacutetica As funccedilotildees de cada setor e seccedilatildeo

teorizadas principalmente por meio da monografia do coronel foram analisadas a partir

203

do acircngulo dos prisioneiros o que viabilizou a percepccedilatildeo de detalhes que constituiacuteam a

rotina daquela instituiccedilatildeo

Ficou claro que a violecircncia era a principal forma de extraccedilatildeo de informaccedilotildees e o

elemento-chave para a eficiecircncia conferida pela instituiccedilatildeo com relaccedilatildeo ao combate aos

opositores poliacuteticos da eacutepoca A tortura e o medo dela ocupavam um espaccedilo

significativo no cotidiano ali impetrado aos prisioneiros uma vez que eles estavam no

DOI-CODIRJ para serem a ela submetidos de forma a fornecerem mais facilmente

informaccedilotildees que levassem os agentes dos DOI a outros suspeitos Poreacutem verificou-se

que a tortura natildeo era a uacutenica face do cotidiano do DOI-CODIRJ

Afinal este trabalho mostrou outros aspectos que constituiacuteam a rotina dos presos

dentro desse oacutergatildeo que ateacute entatildeo natildeo havia sido alcanccedilada pela historiografia Percebeu-

se aqui outros elementos que apesar de pouco destacados pelas memoacuterias dos

entrevistados muito tecircm a dizer sobre aquele cotidiano as fases prisionais as refeiccedilotildees

as roupas as formas de resistecircncia o conviacutevio ente prisioneiros e ateacute mesmo algumas

accedilotildees solidaacuterias efetuadas por soldados em benefiacutecio dos presos poliacuteticos

Constatou-se como a memoacuteria pode enriquecer a percepccedilatildeo que se tem sobre um

passado revelando faces natildeo evidenciadas em documentos oficiais e tambeacutem como eacute

importante para levar ateacute o presente um passado doloroso mas que deve ser encarado a

fim de ser perdoado e ultrapassado Uma movimentaccedilatildeo nesse sentido vem acontecendo

no Brasil com as Caravanas da Anistia e principalmente com a recente aprovaccedilatildeo da

Comissatildeo da Verdade conforme pontuado anteriormente

A atualidade dessas iniciativas inclusive estimulou esta pesquisa impulsionada

pela curiosidade sobre as memoacuterias do passado vivido nos ldquoporotildees da ditadurardquo Logo

o tema da presente dissertaccedilatildeo foi pautado pela crenccedila na necessidade de uma ampla

revelaccedilatildeo sobre o que ocorreu na eacutepoca de forma a contribuir para que a reconciliaccedilatildeo

204

do presente com o passado seja um dia alcanccedilada uma vez que defende-se aqui tal

como Paul Ricoeur (2008 507) que eacute no caminho da criacutetica histoacuterica que a memoacuteria

encontra o seu sentido de justiccedila Dessa forma tem-se o cidadatildeo como destinataacuterio do

texto histoacuterico cabendo a ele tornar a discussatildeo puacuteblica fazendo um balanccedilo entre

histoacuteria e memoacuteria a fim de que se perceba o sofrimento do outro e daqueles que

continuam a sofrer pelas matildeos do mesmo mal repressor do passado A partir disso a

reconciliaccedilatildeo entre o passado e presente se tornaraacute efetiva contribuindo para que no

futuro a democracia esteja plenamente consolidada

205

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Disponiacutevel em httpunesdocunescoorgimages0013001394139423porpdf

ESCOLA de Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) Rio de Janeiro Divisatildeo

de Tecnologia da Informaccedilatildeo 2011 [acesso em 29 jan 2012]

Disponiacutevel em httpwwwecemeensinoebbreceme

GRUPO Tortura Nunca Mais Rio de Janeiro GTNM 2008 [acesso em 07 ago 2009]

Disponiacutevel em httpwwwtorturanuncamais-rjorgbr

HOSPITAL Central do Exeacutercito Rio de Janeiro Seccedilatildeo de Informaacutetica do Hospital

Central do Exeacutercito sd [acesso em 28 jan 2012]

Disponiacutevel em httpwwwhceebmilbr

JOFFILY Mariana Luzes e sombras da memoacuteria nacional os 40 anos da Oban In

Caros Amigos [perioacutedico na internet] Satildeo Paulo 14 set 2009 [acesso em 04 maio

2011]

Disponiacutevel em httpcarosamigosterracombrindex_sitephppag=materiaampid=129

MEMORIAL da Resistecircncia de Satildeo Paulo Satildeo Paulo Secretaria da Cultura do Governo

do Estado de Satildeo Paulo sd [acesso em 27 jan 2012]

Disponiacutevel em httpwwwmemorialdaresistenciasporgbr

215

Anexo I - Glossaacuterio de Siglas

ACO ndash Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria

ADI ndash Aacutereas de Defesa Interna

ALN ndash Accedilatildeo Libertadora Nacional

APERJ ndash Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio de Janeiro

1degBPE ndash 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito

Condi ndash Conselho de Defesa Interna

CENIMAR ndash Centro de Informaccedilotildees da Marinha

CEP ndash Centro de Estudos de Pessoal

CGI ndash Comissatildeo Geral de Investigaccedilotildees

CIA ndash Central Intelligence Agency

CIE ndash Centro de Informaccedilotildees do Exeacutercito

CISA ndash Centro de Informaccedilotildees de Seguranccedila da Aeronaacuteutica

CNBB ndash Conferecircncia Nacional dos Bispos do Brasil

CONDI ndash Conselhos de Defesa Interna

CPDOC ndash Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil

CSN ndash Conselho de Seguranccedila Nacional

DCE ndash Diretoacuterio Central dos Estudantes

DEOPS ndash Departamento de Ordem e Poliacutetica Social de Satildeo Paulo

DGPC ndash Departamento Geral de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro

DI-GB ndash Dissidecircncia Comunista da Guanabara

DOI-CODI ndash Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees ndash Centro de Operaccedilotildees de

Defesa Interna

216

DOPS ndash Departamento de Ordem Poliacutetica e Social

DSN ndash Doutrina de Seguranccedila Nacional

ECEME ndash Escola de Comando e Estado Maior do Exeacutercito

ESG ndash Escola Superior de Guerra

EMFA ndash Estado Maior das Forccedilas Armadas

EsNI ndash Escola Nacional de Informaccedilotildees

Fafich ndash Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas de Belo Horizonte

FUEC ndash Frente Unida dos Estudantes do Calabouccedilo

FGV ndash Fundaccedilatildeo Getuacutelio Vargas

GTNMRJ ndash Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro

HCE ndash Hospital Central do Exeacutercito

IBRADES ndash Instituto Brasileiro de Estudos Sociais

IFCS ndash Instituto de Filosofia e Ciecircncias Sociais

IHTP ndash Instituto de Histoacuteria do Tempo Presente

IPCM ndash Instituto Penal Cacircndido Mendes

IPM ndash Inqueacuterito Policial Militar

JOC ndash Juventude Operaacuteria Catoacutelica

LOC ndash Liga Operaacuteria Catoacutelica

MDB ndash Movimento Democraacutetico Brasileiro

MR-8 ndash Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro

MTC ndash Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos

N-SISA ndash Nuacutecleo do Serviccedilo de Informaccedilotildees de Seguranccedila da Aeronaacuteutica

Oban ndash Operaccedilatildeo Bandeirantes

OLAS ndash Organizaccedilatildeo Latino-Americana de Solidariedade

217

PCB ndash Partido Comunista Brasileiro

PC do B ndash Partido Comunista do Brasil

PCBR ndash Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio

PT ndash Partido dos Trabalhadores

SADI - Sub-Aacutereas de Defesa Interna

SFICI ndash Serviccedilo Federal de Informaccedilotildees e Contra-Informaccedilotildees

SIM ndash Serviccedilo de Informaccedilotildees da Marinha

SNI ndash Serviccedilo Nacional de Informaccedilotildees

SISNI ndash Sistema Nacional de Informaccedilotildees

SISSEGIN ndash Sistema de Seguranccedila Interna

UFF ndash Universidade Federal Fluminense

UFRJ ndash Universidade Federal do Rio de Janeiro

UNE - Uniatildeo Nacional dos Estudantes

UNIRIO ndash Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

ZDI ndash Zona de Defesa Interna

218

Anexo II - A Hierarquia do Exeacutercito Brasileiro53

Ciacuterculos

Hieraacuterquicos54

Hierarquizaccedilatildeo Patentes do Exeacutercito

Ciacuterculo de oficiais

Ciacuterculo de oficiais-generais

Marechal

General de Exeacutercito

General de divisatildeo

General de brigada

Ciacuterculo de oficiais

superiores Coronel

Tenente-coronel

Major

Ciacuterculo de oficiais intermediaacuterios Capitatildeo

Ciacuterculo de oficiais

subalternos Primeiro- tenente

Segundo- tenente

Ciacuterculo de praccedilas

Ciacuterculo de suboficiais subtenentes e

sargentos

Subtenente

Primeiro-sargento

Segundo-sargento

Terceiro-sargento

Ciacuterculo de cabos e soldados

Cabo e taifeiro-mor

Soldado e taifeiro-de

primeira classe

Soldado-recruta e taifeiro-

de-segunda-classe

Ciacuterculo de praccedilas

especiais

Frequentam o ciacuterculo de oficiais

subalternos Aspirante-a-oficial

Excepcionalmente ou em reuniotildees sociais

tecircm acesso ao ciacuterculo de oficiais

Cadete (aluno da Academia

Militar)

Aluno da Escola

Preparatoacuteria de Cadetes do

Exeacutercito

Aluno de Oacutergatildeo de

Formaccedilatildeo da Reserva

Excepcionalmente ou em reuniotildees sociais

tecircm acesso ao ciacuterculo de suboficiais

subtenentes e sargentos

Aluno da Escola ou Centro

de Formaccedilatildeo de Sargentos

Frequentam o ciacuterculo de cabos e soldados Aluno de Oacutergatildeo de

Formaccedilatildeo de Praccedilas da

Reserva

53

LEIRNER 1997 74-75 54

Os ldquoCiacuterculos hieraacuterquicosrdquo satildeo o acircmbito de convivecircncia entre os militares da mesma categoria Esses

ldquociacuterculosrdquo satildeo incorporados a fundo na conduta militar de forma que a divisatildeo acima exposta eacute seguida

no ambiente de trabalho salas refeitoacuterios e banheiros da instituiccedilatildeo conforme demonstra Piero de

Camargo Leirner em estudo antropoloacutegico sobre a instituiccedilatildeo militar Meia Volta Volver (1997 74-76)

Page 3: O DOI-CODI carioca

3

Ficha catalograacutefica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique SimonsenFGV

Bettamio Rafaella Luacutecia de Azevedo Ferreira O DOI-CODI carioca memoacuteria e cotidiano no Castelo do Terror

Rafaella Luacutecia de Azevedo Ferreira Bettamio ndash 2012

218 f Dissertaccedilatildeo (mestrado) ndash Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de

Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais

Orientador Marly Silva da Motta Inclui bibliografia

1 Prisioneiros poliacuteticos 2 Brasil - Histoacuteria - 1964-1985 I Motta Marly Silva da II Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de

Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais III Tiacutetulo

CDD ndash 981063

4

5

Agradecimentos

Agradeccedilo primeiramente agrave minha orientadora Profordf Drordf Marly Silva da Motta

por sua orientaccedilatildeo zelosa pelo apoio e pelos inuacutemeros ensinamentos Com sua ajuda

consegui ultrapassar muitas dificuldades e penetrar com seguranccedila no universo dessa

pesquisa

Ao Professor Ameacuterico Freire de quem tive o prazer de ser aluna durante o

mestrado agradeccedilo pelas aulas pela bibliografia sobre o periacuteodo militar que muito me

ajudou na elaboraccedilatildeo dessa anaacutelise pelas criacuteticas construtivas elaboradas durante o

exame de qualificaccedilatildeo e pela participaccedilatildeo na banca examinadora dessa dissertaccedilatildeo

Ao Professor Luiacutes Reznik agradeccedilo por ter integrado a banca do exame de

qualificaccedilatildeo fazer parte da presente banca examinadora e tambeacutem pelas valiosas

sugestotildees indicaccedilotildees bibliograacuteficas e comentaacuterios incorporados ao estudo e agrave redaccedilatildeo

final desse trabalho

Agrave Professora Dulce Pandolfi agradeccedilo por sua generosidade em aceitar ser de

certa forma sujeito e objeto desta pesquisa desde seu nascimento durante a minha

graduaccedilatildeo em Histoacuteria pela UNIRIO quando permitiu que eu lhe entrevistasse e que

seu depoimento servisse de fonte para minha monografia de fim de curso cuja banca

examinadora contou com sua participaccedilatildeo Tambeacutem lhe agradeccedilo por durante o

mestrado continuar acompanhando de perto esta pesquisa participando da banca do

exame de qualificaccedilatildeo quando trouxe muitas consideraccedilotildees e sugestotildees produtivas a

este trabalho e da banca examinadora final desta dissertaccedilatildeo

Agrave Professora Icleacuteia Thiesen agradeccedilo pela credibilidade e incentivo que vem

injetando na minha face de pesquisadora desde o tempo em que fui sua aluna ainda

durante a graduaccedilatildeo

Aos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados Antocircnio Leite de Carvalho Dulce

Pandolfi Fernando Palha Freire Padre Maacuterio Prigol Ana Batista e Ceciacutelia Coimbra

agradeccedilo por me confiarem suas narrativas e me deixarem penetrar em parte de suas

memoacuterias

6

Agrave Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional onde muito me orgulho de trabalhar agradeccedilo

por incentivar a minha qualificaccedilatildeo enquanto pesquisadora permitindo que eu cursasse

o mestrado e me licenciasse nos uacuteltimos meses para me dedicar a esta dissertaccedilatildeo de

corpo e alma

Ao Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNMRJ) agradeccedilo por me

autorizar a consultar o arquivo da instituiccedilatildeo e por me receber afetuosamente durante

diversas reuniotildees onde pude conhecer alguns de seus integrantes tais como Ana Batista

e Ceciacutelia Coimbra a quem tive o prazer de entrevistar

Aos amigos Joatildeo Cerineu e Alejandra Estevez agradeccedilo a contribuiccedilatildeo

fundamental que efetuaram sobre este trabalho sendo os responsaacuteveis por me apresentar

aos ex-prisioneiros poliacuteticos Antocircnio e Padre Maacuterio

Agradeccedilo aos meus irmatildeos Rodrigo Renata e Melissa ao Rodrigo por despertar

em mim a vontade e a coragem de seguir a profissatildeo de historiadora agrave Renata por me

apoiar e ouvir sobre minha pesquisa atentamente mesmo quando eu repetia as mesmas

histoacuterias diversas vezes e principalmente agrave Melissa que muito me ajudou na

composiccedilatildeo do ldquoabstractrdquo desse trabalho com o seu inglecircs simplesmente perfeito

Aos amigos queridos que a Biblioteca Nacional me deu de presente

companheiros de jornada que me fazem melhorar a cada dia como profissional e que me

acompanharam durante todo o processo do mestrado me apoiando no que foi preciso e

me ajudando a superar os obstaacuteculos do dia-a-dia Agradeccedilo especialmente agrave Lia Jordatildeo

pelo companheirismo diaacuterio ao Francisco Madureira pelo auxiacutelio na ediccedilatildeo final dessa

dissertaccedilatildeo e agrave Regina Santiago pela amizade e disposiccedilatildeo sem igual em ler

minuciosamente este trabalho apontando sugestotildees que indiscutivelmente tornaram o

texto mais claro

Agraves amigas Manuela Joana e Letiacutecia agradeccedilo por estarem sempre comigo nas

alegrias e nas tristezas compartilhando conquistas e derrotas desde os tempos em que

juntas frequentaacutevamos as festas juninas da PE

7

Aos amigos do curso de Histoacuteria da UNIRIO agradeccedilo pelas trocas intelectuais

pelos incontaacuteveis momentos divertidos pela camaradagem e por essa amizade de dez

anos de histoacuteria

Aos meus pais sou e serei eternamente grata pelo carinho pelo apoio e por sempre

estarem ao meu lado durante todos esses anos

Aos meus sogros Eliana Lasmar e Luiz Fernando Arieira agradeccedilo por estarem

sempre por perto dispostos a estenderem a matildeo quando preciso

E por fim meus agradecimentos especiais a Raul Cordeiro meu companheiro de

todas as horas o engenheiro mais humano que eu jaacute conheci Agradeccedilo-lhe por tudo que

temos vivido juntos por nosso cantinho por nossas conversas por nosso conviacutevio de

todo dia por nosso amor pelo tanto e tatildeo pouco que enfeita cada momento da minha

vida me completa e me faz uma pessoa mais feliz

8

Tambeacutem neste lugar pode-se sobreviver e por isso eacute preciso

querer sobreviver para contar para testemunhar e que para

viver eacute importante esforccedilarmo-nos para salvar pelo menos o

esqueleto os pilares a forma da nossa civilizaccedilatildeo [hellip]

(Levi 2001 40)

9

Resumo

O objetivo dessa dissertaccedilatildeo eacute analisar a memoacuteria de seis ex-prisioneiros poliacuteticos

do Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees-Centro de Operaccedilotildees de Defesa Interna

do Rio de Janeiro (DOI-CODIRJ) entrevistados recentemente entre os anos de 2002 e

2004 sobre o cotidiano vivido nessa instituiccedilatildeo em 1970 Naquele ano dentro do

Sistema de Seguranccedila Interna (SISSEGIN) os DOI-CODI haviam sido criados e

distribuiacutedos por todas as Regiotildees Militares do paiacutes tornando-se a principal instituiccedilatildeo

de repressatildeo aos opositores poliacuteticos que optaram pela luta armada como forma de

derrotar a ditadura militar brasileira Assim as narrativas desses seis ex-prisioneiros

satildeo aleacutem de fontes essenciais o principal objeto de estudo deste trabalho Atraveacutes

delas torna-se possiacutevel acessar aspectos cruciais para a caracterizaccedilatildeo do cotidiano

vivido pelos presos em um desses oacutergatildeos ― o DOI-CODI do Rio de Janeiro ― uma

vez que esse passado se liga ao presente por meio de suas memoacuterias Diante disso a fim

de melhor entender tais memoacuterias a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI tambeacutem satildeo

aqui analisadas colocando as narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados em

diaacutelogo com uma bibliografia especialmente selecionada aleacutem de uma fonte a respeito

do DOI feita por um de seus agentes quando este oacutergatildeo ainda estava em atividade em

1978 Para que a essas memoacuterias seja aplicada uma criacutetica efetiva necessaacuteria a todo

trabalho histoacuterico o estudo se debruccedila ainda sobre as interferecircncias que o presente

exerce na construccedilatildeo que fazem com relaccedilatildeo ao passado vivido no DOI-CODIRJ com

o objetivo de esclarecer as bases sobre as quais satildeo construiacutedas cerca de trinta anos

depois

Palavras-chave Ex-prisioneiros poliacuteticos ndash Memoacuteria ndash DOI-CODI ndash Cotidiano ndash

Ditadura militar

10

Abstract

The objective of this thesis is to analyze the memory of six former political

prisoners of the Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees-Centro de Operaccedilotildees de

Defesa Interna do Rio de Janeiro or DOI-CODIRJ (Detachment of Information

Operations Center-Internal Defense Operations Center of Rio de Janeiro) recently

interviewed between 2002 and 2004 about their everyday living in that institution in

1970 At that year in the Sistema de Seguranccedila Interna or SISSEGIN (Internal Security

System) the DOI-CODI had been created and distributed by all the countryrsquos military

regions becoming the repression leading instituion of political opponents who oppted

for armed struggle as a way to defeat Brazilrsquos military dictatorship Thus these six

former prisioners narratives are not only essencial sources but the main study object of

this paper Through them it becomes possible to access crucial aspects for the

characterization of the daily lived by prisioners in one of these agencies - the DOI-

CODI in Rio de Janeiro - since this past connects to present through their memories

Therefore in order to understand such memories the training and the performance of

the DOI-CODI are also analyzed here placing the narratives of the interviewed former

political prisioners in dialogue with a specially selected bibliography and a source

about DOI made by one of its agents when that agency was still active in 1978 In

order to be applied to these memories an effective critique necessary to all historical

work the study still focuses on the interferences that the present exerts on the

construction that make in relation to the past lived in DOI-CODIRJ in order to clarify

the basis on which are built at about thirty years later

Key-Words Former political prisioners ndash Memory ndash DOICODI ndash daily Life ndash Military

dictatorship

11

Sumaacuterio

Agradecimentos 05

Resumo 09

Abstract 10

Introduccedilatildeo 13

Capiacutetulo 1 Os DOI-CODI formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo 28

1 Debate Histoacuterico 35

11 O papel da ESG para o Sistema de Seguranccedila Nacional 35

12 Os conceitos legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar 39

13 A montagem e o funcionamento do SISSEGIN 47

2 O DOI-CODI por ele mesmo 57

3 O DOI-CODI pelos prisioneiros 75

Capiacutetulo 2 Os presos poliacuteticos e suas organizaccedilotildees 85

1 A rede de entrevistas 91

11 Os sujeitos e suas trajetoacuterias 97

12 A nova esquerda brasileira 122

Capiacutetulo 3 O espaccedilo e o cotidiano do DOI-CODI carioca 136

1 O que sofre e o que resiste 137

2 Uma cartografia possiacutevel do ldquoCastelo do Terrorrdquo 142

12

3 Memoacuterias de um cotidiano 154

31 O interrogatoacuterio e a tortura 156

32 O dia-a-dia no caacutercere 184

Conclusatildeo 199

Fontes 205

1 ArquivoDocumentos Pessoais 205

2 Documentos Institucionais 205

3 Fonte Cinematograacutefica 205

4 Fontes Orais 205

5 Fontes Visuais 206

6 Perioacutedicos 206

Bibliografia 207

1 Bibliografia digital 213

Anexo I Glossaacuterio de Siglas 215

Anexo II A Hierarquia do Exeacutercito Brasileiro 218

13

Introduccedilatildeo

Tem dias que a gente se sente

Como quem partiu ou morreu

A gente estancou de repente

Ou foi o mundo entatildeo que cresceu

A gente quer ter voz ativa

No nosso destino mandar

Mas eis que chega a roda viva

E carrega o destino praacute laacute

Roda mundo roda gigante

Roda moinho roda piatildeo

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coraccedilatildeo

A gente vai contra a corrente

Ateacute natildeo poder resistir

Na volta do barco eacute que sente

O quanto deixou de cumprir

Faz tempo que a gente cultiva

A mais linda roseira que haacute

Mas eis que chega a roda viva

E carrega a roseira praacute laacute

Chico Buarque

(Roda Viva 1968)

14

Vivi bons momentos no 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito Era adolescente e os

momentos aos quais me refiro foram vividos durante o final de uma deacutecada

democraacutetica a de 1990 Mal sabia sobre a ditadura militar e muito menos que aquele

Batalhatildeo situado tatildeo proacuteximo agrave minha casa na Tijuca havia sediado um centro de

tortura O nome DOI-CODI nunca tinha ouvido falar Para mim e para todos os

adolescentes da Tijuca o 1ordm BPE era um Batalhatildeo convencional do Exeacutercito que tinha

um grande paacutetio utilizado todos os anos para a melhor festa junina da regiatildeo a ldquofesta

junina da PErdquo Logo para noacutes a principal caracteriacutestica da PE era o fato de durante os

meses de junho abrir as portas do seu paacutetio para tornaacute-lo ldquoponto de encontrordquo de muitos

jovens estudantes Quanta ironia

Jaacute no terceiro periacuteodo da faculdade de Histoacuteria da UNIRIO no primeiro semestre

de 2002 descobri o que aquele preacutedio havia sido durante a ditadura militar Soube

inclusive que ele era tombado pelo antigo Departamento Geral de Patrimocircnio Cultural

(DGPC) da Prefeitura justamente por representar a memoacuteria de muitos ex-prisioneiros

poliacuteticos que ali haviam sido torturados e mortos Fiquei perplexa Como nunca

ningueacutem havia me dito isso Como os professores de Histoacuteria da minha escola

localizada no mesmo bairro natildeo haviam destacado esse fato Por que essa parte da

Histoacuteria natildeo era amplamente divulgada Eu que sempre gostei de Histoacuteria natildeo agrave toa

escolhi fazer dela minha formaccedilatildeo e profissatildeo me senti instigada a revelar as memoacuterias

dos presos poliacuteticos que por laacute passaram A partir dessa descoberta mais do que uma

ldquonovardquo face do 1ordm BPE eu havia me deparado com outra revelaccedilatildeo o meu tema de

pesquisa

A partir de um amigo do curso de Histoacuteria no final de 2002 cheguei ao meu

primeiro entrevistado e daiacute em diante teci uma rede de entrevistas No final de 2004

havia reunido seis entrevistados trecircs homens e trecircs mulheres todos ex-prisioneiros

15

poliacuteticos que passaram pelo DOI-CODIRJ durante o mesmo ano de 1970 Essa

pesquisa resultou em minha monografia apresentada em 2005 como requisito para a

conclusatildeo do curso de Histoacuteria da UNIRIO O Castelo do terror memoacuteria e tortura no

espaccedilo prisional (1970-1974) 1

Natildeo abandonei o tema Ao contraacuterio resolvi aprofundaacute-lo no mestrado em

Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais do CPDOCFGV onde ingressei em marccedilo de 2010

Nessa dissertaccedilatildeo que representa a fase conclusiva do mestrado trabalho com os

depoimentos dos mesmos seis ex-prisioneiros do DOI-CODIRJ de 1970 colhidos entre

os anos de 2002 e 2004 Aqui o objetivo mais amplo eacute se inserir no conjunto de estudos

que reflete sobre a construccedilatildeo de uma determinada memoacuteria a respeito da ditadura

militar

Analisar a memoacuteria de ex-prisioneiros poliacuteticos a fim de entender como essas

foram construiacutedas jaacute em tempos democraacuteticos e o que trazem em benefiacutecio da

caracterizaccedilatildeo daquele passado eacute o objetivo principal desta dissertaccedilatildeo Assim sendo

alguns aspectos especiacuteficos merecem ser destacados

O primeiro deles eacute que as entrevistas foram concedidas entre os anos 2002 e 2004

ou seja o passado ditatorial foi recuperado jaacute em tempos democraacuteticos Ao mesmo

tempo considerou-se que esses depoimentos satildeo fontes essenciais para atingir o

objetivo aqui traccedilado jaacute que a metodologia de histoacuteria oral eacute a mais adequada para

analisar os aspectos subjetivos e repletos de detalhes que correspondem ao rigoroso dia-

a-dia de quem esteve preso em um organismo repressor Logo eacute faacutecil concluir que as

fontes que permitiram a elaboraccedilatildeo deste estudo natildeo poderiam ser encontradas em

documentaccedilatildeo oficial

1 O Castelo do terror memoacuteria e cotidiano de ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI carioca (1970-

1979) monografia de fim de curso de bacharelado e licenciatura plena em Histoacuteria da UNIRIO orientada

pela Profordf Drordf Icleacuteia Thiesen e apresentada em abril de 2005

16

Instituiacutedos por todo o territoacuterio brasileiro a partir de 1970 os DOI-CODI

tornaram-se referecircncia-chave na memoacuteria sobre a tortura e a repressatildeo praticada pela

ditadura militar A partir disso nota-se que o trabalho desenvolvido com as memoacuterias

de ex-prisioneiros de uma de suas sedes a do Rio de Janeiro eacute uma das escassas

possibilidades existentes de se acessar esse passado ainda tatildeo presente

Esse objeto de estudo representa um grande desafio Afinal estaacute inserido entre

duas temporalidades recentes ndash quando a experiecircncia prisional foi efetivamente vivida

em 1970 e quando ela foi narrada pelos entatildeo ex-prisioneiros poliacuteticos entre 2002 e

2004 Por isso mesmo lanccedilou-se matildeo do aparato teoacuterico do que se convencionou

chamar de histoacuteria do tempo presente A partir dos anos 1980 durante o processo de

renovaccedilatildeo da histoacuteria poliacutetica a valorizaccedilatildeo de uma histoacuteria das representaccedilotildees e a

compreensatildeo dos usos poliacuteticos do passado pelo presente acarretou uma reavaliaccedilatildeo das

relaccedilotildees estabelecidas entre histoacuteria e memoacuteria que permitiu agrave historiografia fazer novas

reflexotildees sobre as relaccedilotildees entre passado e presente 2 Diante dessa percepccedilatildeo nasceu

na Franccedila o Instituto de Histoacuteria do Tempo Presente (IHTP) fundado por Franccedilois

Beacutedarida consolidando a histoacuteria do tempo presente como portadora da especificidade

de conviver com testemunhos vivos colocando sob seu foco principal os depoimentos

orais 3

A histoacuteria oral eacute portanto a metodologia principal desta dissertaccedilatildeo e por

conseguinte os depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos dela decorrentes satildeo aqui

tratados com todo o rigor necessaacuterio agrave pesquisa histoacuterica Afinal apesar de ser

demasiadamente criticada por ser uma metodologia apoiada na memoacuteria o que a

tornaria capaz de produzir representaccedilotildees e natildeo reconstituiccedilotildees do real entende-se que

2 Para mais informaccedilotildees sobre o surgimento da histoacuteria do tempo presente na historiografia ver Remoacutend

1996 e Ferreira dez 2002 314-332 3 Para mais informaccedilotildees sobre os fundamentos da histoacuteria do tempo presente ver Beacutedarida 2006 219-

229

17

as narrativas orais devem ser submetidas ao crivo da criacutetica histoacuterica tal como deve

ocorrer com todas as outras fontes Os documentos orais ou escritos tecircm uma razatildeo de

ser pois foram feitos por algueacutem com determinada visatildeo estimulado por algum motivo

eou intenccedilatildeo e por isso nunca seratildeo capazes de representar a realidade pura e absoluta

dos fatos Portanto qualquer fonte caso natildeo seja bem contextualizada e analisada

possibilita que a pesquisa caia em armadilhas e reconstrua um passado que nunca

existiu conforme bem elucidado por Michael Pollak

[] se a memoacuteria eacute socialmente construiacuteda eacute oacutebvio que toda documentaccedilatildeo

tambeacutem o eacute Para mim natildeo haacute diferenccedila fundamental entre fonte escrita e

oral A criacutetica da fonte tal como todo historiador aprende a fazer deve a

meu ver ser aplicada a fontes de tudo quanto eacute tipo (Pollak 1992 207-208)

A histoacuteria oral eacute de grande valia agrave histoacuteria do tempo presente contribuindo para

que o estudo da histoacuteria recente ndash por natureza mais inacabada do que qualquer outra

histoacuteria (Beacutedarida 2006 229) ndash seja incentivado desafiando as dificuldades

relacionadas ao acesso a fontes documentais de periacuteodos pouco distantes Aleacutem disso a

histoacuteria oral traz outro diferencial aqui destacado atraveacutes da fala torna-se possiacutevel

evidenciar uma carga subjetiva tornando acessiacutevel um tipo de informaccedilatildeo capaz de

enriquecer a anaacutelise histoacuterica e que natildeo seria obtido por meio de fontes escritas oficiais

Assim mesmo que uma experiecircncia relatada natildeo seja em si mesma um fato de certa

forma pode vir a secirc-lo jaacute que traz agrave tona o verdadeiro sentimento de algueacutem perante

uma situaccedilatildeo e esse sentimento eacute um fato que soacute pode ser alcanccedilado mediante agraves

memoacuterias trazidas pelos relatos (Portelli 1996 59-72)

Os usos que os ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ fazem de seu passado

prisional eacute um dos principais aspectos aqui ressaltados Para tanto o conceito de

presente do passado de Robert Frank (1999) eacute utilizado ao longo deste trabalho como

18

ferramenta para destacar as influecircncias que o presente de suas narrativas exerce sobre a

maneira pela qual eacute revivido o passado vivenciado no DOI-CODIRJ

Desde que haviam passado pelo DOI-CODI carioca em 1970 em plena ditadura

militar a chamada ldquolei de anistiardquo jaacute havia sido instituiacuteda no paiacutes em 1979 que entre

outras providecircncias anistiava todos quantos no periacuteodo compreendido entre 02 de

setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 cometeram crimes poliacuteticos ou conexos com

estes (lei nordm 66831979) a ditadura militar havia terminado com a eleiccedilatildeo indireta de

um presidente civil em 1985 a Assembleia Nacional Constituinte havia sido instalada

em 1987 e a Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil a chamada ldquoconstituiccedilatildeo

cidadatilderdquo havia sido promulgada no ano seguinte e finalmente o primeiro presidente

civil eleito pelo voto direto apoacutes a ditadura militar havia tomado posse em 1990

completando a transiccedilatildeo poliacutetica do paiacutes ou seja tornando a ditadura uma memoacuteria do

passado e a democracia o momento presente Democracia esta que na eacutepoca em que os

depoimentos foram concedidos apresentava ainda mais sinais de seu fortalecimento e

consolidaccedilatildeo jaacute que o Brasil havia elegido para presidente o socioacutelogo e professor da

USP Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e o ex-operaacuterio e liacuteder sindical Luiacutes

Inaacutecio Lula da Silva (2003-2010) ambos perseguidos poliacuteticos durante o periacuteodo

ditatorial

Com relaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo dos que sofreram danos decorrentes da poliacutetica repressiva

promovida pela ditadura militar desde 1995 estava em curso o reconhecimento pelo

Estado brasileiro dos mortos e desaparecidos poliacuteticos durante a ditadura e a

indenizaccedilatildeo as suas famiacutelias (lei nordm 914095) Aleacutem disso a reparaccedilatildeo financeira aos

males sofridos por aqueles que ficaram presos ou foram perseguidos na eacutepoca tambeacutem

estava em voga desde 2002 (lei nordm 1055902) A demanda desta lei principalmente no

caso daqueles que passavam pelo processo de solicitaccedilatildeo eacute um elemento a ser levado

19

em conta na maneira pela qual os entrevistados construiacuteram suas narrativas Afinal o

procedimento necessaacuterio agrave concessatildeo da reparaccedilatildeo incluiacutea a construccedilatildeo de um memorial

sobre as mazelas a que os requerentes haviam sido submetidos pelo Estado durante a

ditadura militar

Dessa forma as narrativas significavam tambeacutem para os ex-prisioneiros poliacuteticos

um meio de conseguirem apoio da sociedade em favor da ampliaccedilatildeo desse

reconhecimento iniciado pelo Estado brasileiro Atraveacutes de suas narrativas poderiam

contribuir para que suas memoacuterias fossem encampadas pela histoacuteria Logo pode-se

dizer que no sentido atribuiacutedo por Michael Pollak (1992) esses depoimentos foram

concedidos sob o horizonte de contribuir com o trabalho de enquadramento da

memoacuteria nacional sobre a ditadura militar brasileira jaacute que esta ateacute hoje natildeo estaacute

consolidada

Finalmente verifica-se que ainda ocorre uma disputa pela memoacuteria da ditadura

militar onde de um lado estatildeo os que sofreram o peso da matildeo forte da ditadura e de

outro os militares que argumentam que os ldquoanos de chumbordquo devem ser relegados ao

passado Como exemplo a declaraccedilatildeo dada em outubro de 2004 ao jornal O Globo por

um representante do Exeacutercito em resposta agrave publicaccedilatildeo de supostas fotos pelas quais o

jornalista Vladimir Herzog4 aparece sendo humilhado na prisatildeo

As medidas tomadas pelas forccedilas legais foram uma legiacutetima resposta agrave

violecircncia dos que recusaram o diaacutelogo optaram pelo radicalismo e pela

ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e de desencadear accedilotildees

criminosas [] sentiu-se a necessidade da criaccedilatildeo de uma estrutura com

vistas a apoiar em operaccedilatildeo e inteligecircncia as atividades necessaacuterias para

desestruturar os movimentos radicais e ilegais [] Mesmo sem qualquer

mudanccedila de posicionamento e de convicccedilotildees em relaccedilatildeo ao que aconteceu

4 Vladimir Herzog era integrante do PCB e diretor da TV Cultura quando foi preso em outubro de 1975

no DOI-CODISP onde dias depois foi morto sob torturas Para mais informaccedilotildees sobre o caso Vladimir

Herzog e seus sucessivos encadeamentos ver Moraes 2006

20

naquele periacuteodo histoacuterico considera-se accedilatildeo pequena reavivar revanchismos

ou estimular discussotildees esteacutereis sobre conjunturas passadas que a nada

conduzem (Camarotti 19 out 2004 12)

Essa disputa travada entre a lembranccedila e o esquecimento pode ser notada atraveacutes

da batalha em torno do preacutedio que serviu de sede ao DOI-CODIRJ o 1ordm BPE Essa foi

iniciada nos primeiros anos da deacutecada de 1990 por meio de uma tentativa do Exeacutercito

de vender o edifiacutecio Sabendo da situaccedilatildeo um conjunto de moradores dos arredores

buscou impedir a venda solicitando o tombamento de todo o espaccedilo ocupado pelo

quartel agrave Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro alegando a sua importacircncia para a

memoacuteria poliacutetica do paiacutes Essa atitude eacute evidenciada em um manifesto contendo 236

assinaturas em defesa da preservaccedilatildeo do preacutedio que serviu como documento de

abertura para o processo de tombamento do edifiacutecio na Subsecretaria de Patrimocircnio

Cultural da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro

O Exeacutercito brasileiro alegando falta de recursos para seu programa de

construccedilatildeo de quarteacuteis em outros estados pretende vender o imoacutevel onde

estaacute o 1ordm BPE Trata-se de um imoacutevel altamente valorizado pela ampla infra-

estrutura urbana [] Acontece que o valor que o Exeacutercito quer faturar foi

criado a partir de obras e investimentos custeados com os impostos e taxas

que pagamos todos noacutes haacute mais de um seacuteculo O Exeacutercito natildeo contribuiu

em nada para isso e agora quer se apropriar desse valor para investir sabe-se

laacute aonde [] consideramos que o preacutedio do Batalhatildeo da PE estaacute

indissoluvelmente cravado na histoacuteria nas tradiccedilotildees na esteacutetica e na

paisagem local [] Sabemos que o Batalhatildeo da PE foi sede do DOI-CODI

na eacutepoca da ditadura militar e que ali estiveram presos e foram torturados

muitos companheiros nossos tendo inclusive alguns sido dados como

ldquodesaparecidosrdquo Tambeacutem por esta razatildeo o preacutedio estaacute ligado agrave memoacuteria

poliacutetica desse paiacutes [] Queremos na aacuterea um centro cultural com teatro e

museu agrave memoacuteria da luta pela liberdade com parque e jardins Esses satildeo os

21

anseios da comunidade e natildeo outrosrdquo (Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural

da Prefeitura do Rio de Janeiro 1992) 5

Aleacutem desse documento outras solicitaccedilotildees de preservaccedilatildeo do preacutedio foram

enviadas agrave Cacircmara Municipal por Associaccedilotildees de Moradores da Tijuca e bairros

vizinhos Enfim em 29 de marccedilo de 1993 no primeiro mandato do entatildeo prefeito Ceacutesar

Maia o processo de tombamento do 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito foi finalizado

No entanto a ideia de tiraacute-lo do Exeacutercito a fim de tornar o espaccedilo um centro cultural

que contivesse um museu da memoacuteria da luta pela liberdade natildeo se concretizou pois

apoacutes o tombamento o Exeacutercito natildeo deixou o local onde permanece ateacute os dias atuais

sinalizando que natildeo tem interesse em que o edifiacutecio se torne efetivamente um lugar de

memoacuteria tal como o conceito criado por Pierre Nora (1993)

No preacutedio do 1ordm BPE se encontram os trecircs sentidos atribuiacutedos por Nora como

caracteriacutesticos a um lugar de memoacuteria o material o simboacutelico e o funcional (Nora

1993 21) O sentido material no caso eacute o proacuteprio espaccedilo fiacutesico que ainda se conserva

no mesmo local sem grandes intervenccedilotildees o simboacutelico eacute o que o espaccedilo representa para

uma parte da sociedade carioca como marco memorial de um passado que natildeo se deve

esquecer e o funcional eacute a memoacuteria da ditadura militar ali preservada por meio do

tombamento do edifiacutecio Logo querendo ou natildeo o preacutedio do 1ordm BPE eacute um lugar de

memoacuteria jaacute que naquele espaccedilo fiacutesico ou seja material se encontram uma funccedilatildeo e

uma representaccedilatildeo simboacutelicas ligadas agrave memoacuteria da ditadura militar

A disputa em torno dessa memoacuteria parece aos poucos caminhar cada vez mais

para o lado dos ex-presos e perseguidos poliacuteticos Recentemente aleacutem das leis

5 Este documento que deu iniacutecio ao referido processo no ano de 1992 hoje se encontra arquivado na

Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro antigo Departamento Geral de

Patrimocircnio Cultural (DGPC) junto ao restante da documentaccedilatildeo que compocircs o processo Nordm

1200433692 e originou a lei municipal nordm 1954 de 290393

22

reparadoras citadas acima um grande obstaacuteculo foi ultrapassado para que os crimes

ocorridos durante a ditadura militar sejam apurados e desvendados Em outubro de

2011 a Comissatildeo da Verdade foi enfim aprovada pelo Congresso Nacional e em

novembro do mesmo ano a lei que a institui sancionada pela Presidente Dilma

Rousseff Nesse contexto esta dissertaccedilatildeo ao estudar as memoacuterias de seis ex-

prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ relaciona-se com essa atualidade cumprindo

um papel social relevante

O ofiacutecio do historiador que pressupotildee trilhar caminhos e fazer escolhas

significando por exemplo atribuir significado agraves palavras agraves fontes e agrave bibliografia

escolhidas norteou a seleccedilatildeo e os criteacuterios aqui estipulados Conforme apontado por

Reinhart Koselleck (2006 167) eacute impossiacutevel que o ponto de vista do historiador deixe

de influenciar na representaccedilatildeo que faz dos fatos Assim cabe deixar claro que este

trabalho foi movido pelo interesse que as memoacuterias dos ex-prisioneiros poliacuteticos do

DOI-CODIRJ despertaram em mim Vale dizer que essa dissertaccedilatildeo eacute avessa ao

postulado cientiacutefico da total imparcialidade no sentido de neutralidade apartidarismo

ou abstenccedilatildeo seguindo orientaccedilatildeo de Manoel Salgado Guimaratildees (2008)

Ao historiador de ofiacutecio seria exigido cada vez mais uma escrita submetida

aos ditames dos afetos sejam eles derivados de engajamentos poliacuteticos

especiacuteficos de crenccedilas particulares ou mesmo derivados de um convite agrave

individualidade do historiador Este seria instado a mostrar-se atraveacutes de seu

texto postura bastante diversa daquela que o obrigava a esconder-se por traacutes

da pesquisa cientiacutefica (Guimaratildees 2008 17)

O primeiro capiacutetulo tem por objetivo analisar a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-

CODI que a partir de 1970 passaram a integrar o Sistema de Seguranccedila Interna

(SISSEGIN) se espalharam por todas as Regiotildees Militares do Brasil e se tornaram a

principal instituiccedilatildeo de repressatildeo aos opositores poliacuteticos da ditadura militar Afinal a

23

partir do entendimento sobre a criaccedilatildeo e o funcionamento dessa instituiccedilatildeo se pretende

criar as condiccedilotildees necessaacuterias para analisar as memoacuterias dos seis ex-prisioneiros

poliacuteticos sobre uma de suas sedes o DOI-CODIRJ uma vez que a passagem por esse

espaccedilo prisional eacute aqui entendida como um elo fundamental entre essas memoacuterias

Assim optou-se por estruturar este capiacutetulo por meio de trecircs frentes 1) o debate

historiograacutefico 2) a monografia O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI)

do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e

perspectiva escrita em 1978 pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira

3) os depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de

Janeiro concedidos entre os anos de 2002 e 2004

A primeira frente de estudo se concentra em analisar a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos

DOI-CODI agrave luz da historiografia Nela apresentam-se autores e conceitos selecionados

a fim de elucidar algumas questotildees levantadas Qual o papel da Escola Superior de

Guerra (ESG) para a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional e dos DOI-CODI

Como a praxe ditatorial em respaldar atitudes arbitraacuterias por meio de leis

compulsoriamente promulgadas ou seja atraveacutes da legalidade autoritaacuteria conforme

nomenclatura utilizada por Anthony Pereira (2010) gerou as bases para a criaccedilatildeo do

SISSEGIN e dos DOI-CODI Como os conflitos internos gerados no seio da instituiccedilatildeo

militar que ocasionaram dissidecircncias as cizacircnias militares tal como conceituado por

Joatildeo Roberto Martins Filho (1993) influenciaram os rumos da ditadura e a construccedilatildeo

de seu aparato de seguranccedila interna De que maneira a montagem e o funcionamento do

SISSEGIN e dos DOI-CODI foram organizados e constituiacutedos

Jaacute a segunda e a terceira frentes de estudo deste capiacutetulo servem para analisar as

visotildees de atores que de uma forma ou de outra viveram os DOI-CODI Na segunda a

anaacutelise sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI debruccedila-se sobre a visatildeo de um de

24

seus agentes atraveacutes da fonte O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do

Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo escrita pelo coronel de

cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira apontado por ex-prisioneiros poliacuteticos com um dos

torturadores do DOI do Rio de Janeiro Trata-se de uma monografia que o referido

coronel apresentou agrave Escola de Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) em

1978 quando os DOI-CODI apesar de atuantes jaacute sofriam certa diminuiccedilatildeo de suas

atividades O trabalho em cima desse documento se direciona no sentido de analisar

dados representativos do poder coercitivo dos DOI-CODI do iniacutecio dos anos 1970 e de

descrever os afazeres de cada uma de suas seccedilotildees a fim de contribuir para o

entendimento sobre o funcionamento interno deste oacutergatildeo Por fim na terceira frente a

anaacutelise eacute efetuada por meio das memoacuterias dos seis ex-prisioneiros entrevistados entre os

anos de 2002 e 2004 objeto central dessa dissertaccedilatildeo Dessa forma procura-se aqui

responder como eles percebiam a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo do DOI-CODIRJ e ao

entrelaccedilar aspectos de suas memoacuterias com a historiografia e a visatildeo do coronel Pereira

se aproximar do que vinha a ser o aparato de seguranccedila interna de 1970 cujos DOI-

CODI eram parte essencial

O segundo capiacutetulo eacute construiacutedo com a proposta de analisar de que forma e sob

quais influecircncias foram construiacutedas e narradas as memoacuterias dos seis ex-prisioneiros

poliacuteticos entrevistados entre os anos de 2002 e 2004 Parte-se aqui do pressuposto de

que cada uma de suas memoacuterias foi formada e influenciada por idiossincrasias relativas

a vivecircncias pessoais personalidades e outros aspectos individuais que merecem ser

analisados de forma a viabilizar o entendimento loacutegico da construccedilatildeo dessas memoacuterias

Dessa forma busca-se relativizar uma memoacuteria coletiva que aparentemente eacute comum a

todos os ex-prisioneiros poliacuteticos que passaram por algum DOI-CODI O aspecto

coletivo dessas memoacuterias no entanto natildeo eacute abandonado As memoacuterias individuais aqui

25

trabalhadas natildeo estatildeo isoladas e constantemente tomam por referecircncia pontos externos

ao sujeito se apoiando em percepccedilotildees recebidas de determinada memoacuteria coletiva de

um grupo e tambeacutem pela memoacuteria histoacuterica de seu paiacutes (Halbwachs 2004 57-59)

Diante disso a capacidade de intervenccedilatildeo que o presente exerce sobre as

memoacuterias do passado (Frank 1999) toma um aspecto central nesse momento da anaacutelise

o que torna importante considerar aqui natildeo soacute o contexto histoacuterico que rodeava os

entrevistados no momento de suas narrativas (2002-2004) como tambeacutem a forma como

a rede de entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que essas foram realizadas

Assim este segundo capiacutetulo trata primeiramente dessas condiccedilotildees que viabilizaram e

de certa forma influiacuteram nas entrevistas para em seguida analisar as trajetoacuterias de vida

de cada um dos entrevistados e por fim baseando-se em algumas referecircncias sobre o

tema traccedilar um panorama sobre as organizaccedilotildees de esquerda das quais faziam parte ou

com que se relacionavam no momento de suas prisotildees

Finalmente o terceiro capiacutetulo visa analisar efetivamente a memoacuteria como

material para a histoacuteria Assim conforme elucidado por Fernando Catroga (2010) ao

buscar entender a escrita da histoacuteria como um rito de memoacuteria no sentido de lutar

contra o esquecimento e contra a corrosatildeo do tempo tal como ocorre em um ldquogesto de

sepulturardquo a histoacuteria eacute aqui escrita de forma a contribuir para que seja possiacutevel

caracterizar um passado que natildeo mais existe o do cotidiano do DOI-CODIRJ de 1970

Antes dessa caracterizaccedilatildeo a partir dos detalhes trazidos nos depoimentos sobre o

espaccedilo interno do preacutedio do 1ordm BPE conjugados agrave observaccedilatildeo minuciosa de sua fachada

que ateacute hoje ainda permanece preservada faz-se possiacutevel uma cartografia espacial do

local que sediou o DOI-CODIRJ Afinal esse entendimento da disposiccedilatildeo espacial do

referido edifiacutecio estaacute totalmente interligado com o cotidiano ali vivido por seus

prisioneiros logo eacute aqui entendido como essencial para a presente anaacutelise Feita esta

26

cartografia parte-se entatildeo para a caracterizaccedilatildeo do cotidiano vivido no DOI-CODIRJ

de 1970 Para tanto aleacutem da anaacutelise dos seis depoimentos a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos

DOI-CODI a constituiccedilatildeo da rede de entrevistas a trajetoacuteria dos entrevistados e suas

organizaccedilotildees de esquerda estudadas nos capiacutetulos anteriores satildeo incorporadas ao

estudo A partir disso vaacuterios aspectos do cotidiano prisional satildeo abordados tais como

o interrogatoacuterio e a tortura os primeiros momentos na prisatildeo as formas de resistecircncia

os encontros e as relaccedilotildees entre os presos nas celas as formas de lidar com o tempo as

roupas e as refeiccedilotildees

No decorrer dos trecircs capiacutetulos dessa dissertaccedilatildeo faz-se constante referecircncia a

siglas relativas ao tema em abordagem e agrave hierarquia das patentes do Exeacutercito Diante

disso ao final de todo o texto apresentado na parte dos anexos encontra-se o Glossaacuterio

de siglas (Anexo I) e a tabela A hierarquia do Exeacutercito Brasileiro (Anexo II)

A partir dessa configuraccedilatildeo geral pretende-se responder agraves questotildees acima

pontuadas a fim de corroborar algumas hipoacuteteses aqui levantadas

1) A formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo do aparato de seguranccedila interna que abrangia o DOI-

CODIRJ tiveram por base as teses sobre seguranccedila nacional montadas pela

ESG anos antes da ditadura militar a promulgaccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo

arbitraacuteria condescendente a abusos de poder gerada a partir dos primeiros anos

do governo militar bem como a tentativa de solucionar impasses ocasionados

por disputas que vinham ocorrendo no seio do Exeacutercito e por conseguinte

ameaccedilavam sua unidade institucional

2) O peso do presente (200204) teve um papel decisivo na maneira pela qual os

entrevistados construiacuteram a narrativa sobre o periacuteodo (1970) em que estiveram

presos no DOI-CODIRJ

3) As organizaccedilotildees de esquerda e as accedilotildees em que os ex-presos poliacuteticos

27

estiveram envolvidos antes de suas prisotildees influenciaram diretamente no grau

de violecircncia do cotidiano a que foram submetidos no DOI-CODIRJ

28

Capiacutetulo 1 ndash Os DOI-CODI formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo

Se no teu distrito

Tem farta sessatildeo

De afogamento chicote

Garrote e punccedilatildeo

A lei tem caprichos

O que hoje eacute banal

Um dia vai dar no jornal

Se manchas as praccedilas

Com teus esquadrotildees

Sangrando ativistas

Cambistas turistas peotildees

A lei abre os olhos

A lei tem pudor

E espeta o seu proacuteprio inspetor

Chico Buarque

(Hino da repressatildeo 1985)

29

A partir de 1970 os DOI-CODI (Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildeesndash

Centro de Operaccedilotildees de Defesa Interna) parte integrante do Sistema de Seguranccedila

Interna (SISSEGIN) passariam a ser a principal instituiccedilatildeo na repressatildeo aos opositores

da ditadura militar brasileira Seis desses opositores aprisionados no DOI-CODI do Rio

de Janeiro em meio ao primeiro ano de sua existecircncia tecircm na passagem por esse espaccedilo

prisional um elo fundamental entre suas memoacuterias Como essas memoacuterias satildeo o objeto

de estudo da presente dissertaccedilatildeo para melhor entendecirc-las primeiramente torna-se de

extrema importacircncia lanccedilar um olhar mais apurado sobre como foram construiacutedos e de

que forma atuavam os DOI-CODI Logo a anaacutelise sobre a criaccedilatildeo e o funcionamento

dessa instituiccedilatildeo eacute o objetivo desse primeiro capiacutetulo

Esta anaacutelise se estrutura a partir de trecircs frentes distintas 1) o debate

historiograacutefico 2) a monografia O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI)

do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e

perspectiva escrita em 1978 pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira

3) os depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de

Janeiro concedidos entre os anos de 2002 e 2004

Como dito a primeira frente de estudo analisa a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-

CODI agrave luz da historiografia Autores e conceitos foram selecionados tendo em vista

questotildees significativas para analisar a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI 1) o papel

da ESG para a criaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional 2) os conceitos de legalidade

autoritaacuteria e cizacircnia militar 3) a montagem e o funcionamento do SISSEGIN

Para abordar o papel da ESG na construccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional

parte-se da tese de Maria Helena Moreira Alves (2005) em que a autora defende a ideia

de que a institucionalizaccedilatildeo do Estado de Seguranccedila Nacional no Brasil se fez a partir

do papel determinante da Doutrina de Seguranccedila Nacional (DSN) construiacuteda pela

30

Escola Superior de Guerra (ESG) nos anos 1950 Entende-se que este destacado papel

da ideologia esguiana para a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional da ditadura

militar brasileira teve ligaccedilatildeo direta com a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI Afinal

com a DSN surge o conceito de seguranccedila interna que serve como base para a

montagem do aparelho repressivo ditatorial no qual os DOI-CODI duas deacutecadas

depois seriam inseridos

Os conceitos de legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar satildeo aqui utilizados como

ferramentas elucidativas por auxiliarem na anaacutelise de como durante os primeiros anos

de ditadura militar a imperativa forma de legislar o paiacutes e as crises que por disputas

poliacuteticas ameaccedilaram a unidade institucional militar foram essenciais para a formaccedilatildeo e

atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

Nesse sentido a legalidade autoritaacuteria assim designada por Anthony Pereira

(2010) eacute aqui utilizada para destacar de que forma a preocupaccedilatildeo da ditadura militar

brasileira em respaldar legalmente seus atos ainda que arbitrariamente propiciou um

respaldo legal agrave repressatildeo poliacutetica e por conseguinte aos DOI-CODI Logo este

conceito serve para iluminar o entendimento de que a formaccedilatildeo de um aparato de

seguranccedila interna forte centralizado e violento como os DOI-CODI foi possibilitado

respaldado e sustentado no Brasil por um significativo amparo legal A ditadura militar

atraveacutes dessa preocupaccedilatildeo legal atiacutepica a um regime de cunho totalitaacuterio reiterava sua

imagem de regime democraacutetico de exceccedilatildeo perante a sociedade e ao mesmo tempo

possibilitava a criaccedilatildeo de um dos maiores organismos repressores que uma ditadura da

Ameacuterica Latina jaacute havia criado os DOI-CODI

Outro conceito necessaacuterio para entender a construccedilatildeo do cenaacuterio legal que

propiciaria a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI eacute o de cizacircnia militar elaborado por

Martins Filho em sua tese de doutorado A dinacircmica militar das crises poliacuteticas na

31

ditadura (1964-1969) de 1993 em que o autor destaca os conflitos internos no seio

militar que acabariam resultando em dissidecircncias Ao analisar esses conflitos como fator

decisivo para a compreensatildeo dos rumos da ditadura Martins Filho apresenta uma

abordagem diferente da maioria dos estudiosos sobre o tema Ao inveacutes de partir de uma

suposta dicotomia entre dois grupos estanques divididos rigidamente entre a linha dura

e os castelistas apresenta uma visatildeo mais fluida de grupos militares que oscilavam na

forma de agir o palaacutecio representando os militares de altas patentes ocupantes de

cargos poliacuteticos e a caserna militares de patentes meacutedias que trabalhavam nas

instituiccedilotildees militares Esta abordagem eacute crucial para o presente trabalho uma vez que a

base da formaccedilatildeo e da atuaccedilatildeo dos DOI-CODI estava diretamente relacionada agraves

cizacircnias militares e seus decorrentes acontecimentos poliacuteticos Afinal apesar dos DOI-

CODI serem uma instituiccedilatildeo composta por militares das mais diversas posiccedilotildees

hieraacuterquicas a sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo foram estruturadas a partir principalmente de

reivindicaccedilotildees da caserna que com a implantaccedilatildeo dos DOI-CODI passou a ter poderes

poliacuteticos extraordinaacuterios jaacute que se tornava responsaacutevel pelas accedilotildees de prisotildees

apreensotildees e interrogatoacuterios dos perseguidos poliacuteticos

Finalmente para analisar a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Interna o

SISSEGIN composto entre outros pelos DOI-CODI partimos da anaacutelise feita por

Carlos Fico em sua obra Como eles agiam de 2001 Ao ter acesso a documentos

sigilosos sobre a formaccedilatildeo do SISSEGIN e a regulamentaccedilatildeo operacional dos DOI-

CODI Fico caracteriza de forma ineacutedita na historiografia a formaccedilatildeo e o

funcionamento de ambos os oacutergatildeos sendo portanto um referencial historiograacutefico

indispensaacutevel agrave minha pesquisa

Ainda no que toca agrave formaccedilatildeo do SISSEGIN e dos DOI-CODI tambeacutem eacute de

grande valia a tese exposta por Maria Celina DrsquoArauacutejo em Os anos de Chumbo a

32

memoacuteria militar sobre a repressatildeo (1994) de que assim como em qualquer instituiccedilatildeo

militar era alto o grau de hierarquia e coordenaccedilatildeo presente nos DOI-CODI o que natildeo

impedia no entanto que houvesse brechas para uma perda de controle institucional

Logo uma das peculiaridades da atuaccedilatildeo dos DOI-CODI entendido pela a autora como

uma espeacutecie de sofisticaccedilatildeo da repressatildeo era a convivecircncia da obediecircncia hieraacuterquica

militar com a falta de controle sobre algumas accedilotildees deixando que procedimentos natildeo

regulamentares tais como a tortura pudessem ser efetivados com recorrecircncia

A segunda e a terceira frentes de estudo do presente capiacutetulo analisam as visotildees de

atores que de uma forma ou de outra viveram em algum dos DOI-CODI Portanto

diferentes do debate historiograacutefico que tem particular distanciamento analiacutetico do

objeto e preza por se aproximar da imparcialidade e tambeacutem diferentes entre si essas

fontes satildeo influenciadas por seus atoresnarradores e pelas eacutepocas em que foram

construiacutedas

Na segunda frente pode-se dizer que a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI satildeo

analisadas a partir dos proacuteprios DOI-CODI jaacute que nessa etapa debruccedila-se sobre o

estudo O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do Exeacutercito Brasileiro

Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo de um de seus agentes diretos o coronel de

cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira Conhecido entre os presos poliacuteticos do DOI do Rio

de Janeiro do iniacutecio dos anos 1970 como o torturador de codinome ldquoNagibrdquo coronel

Pereira apresentou a referida monografia agrave Escola de Comando e Estado Maior do

Exeacutercito (ECEME) em 1978 quando os DOI-CODI apesar de atuantes jaacute estavam em

decadecircncia Tratava-se de uma eacutepoca em que o presidente Ernesto Geisel comandava a

abertura poliacutetica ldquolenta gradual e segurardquo do paiacutes e vinha diminuindo o poder delegado

aos DOI-CODI que passavam a ter o seu pessoal reduzido e suas accedilotildees apenas voltadas

agrave espionagem e natildeo mais ao combate direto de opositores poliacuteticos jaacute que devido agraves

33

inuacutemeras denuacutencias sobre violaccedilotildees aos Direitos Humanos no Brasil era forte o

desgaste que a ditadura sofria perante a comunidade internacional Em meio a esse

cenaacuterio o coronel em questatildeo construiu tal monografia motivado a por um lado provar

a importacircncia e a necessidade do trabalho de repressatildeo feito nos DOI-CODI e assim

tentar reverter a reduccedilatildeo de suas atividades e por outro conseguir uma promoccedilatildeo na

carreira militar visto que a ECEME eacute uma escola destinada agrave preparaccedilatildeo de oficiais

superiores para o exerciacutecio de funccedilotildees de Estado-Maior A partir disso essa monografia

apresenta dados representativos do poder coercitivo dos DOI do iniacutecio dos anos 1970

bem como a descriccedilatildeo dos afazeres de cada uma de suas seccedilotildees o que traz uma forte

contribuiccedilatildeo para a anaacutelise aqui traccedilada

Por fim na terceira e uacuteltima frente a anaacutelise da formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-

CODI eacute efetuada por meio de outro tipo de fonte que tem por base a memoacuteria os

depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de Janeiro a

mim fornecidos entre os anos de 2002 e 2004 Como essas entrevistas foram concedidas

durante a passagem dos governos dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso

(1995-2002) e Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva (2003-2010) ex-perseguidos poliacuteticos da

ditadura militar que entre seus feitos agrave frente da poliacutetica brasileira agiram no sentido

de reparar danos sofridos pelos perseguidos poliacuteticos daquele periacuteodo esse presente

nelas imprimiu fortes influecircncias Afinal trata-se de memoacuterias sobre o passado vivido

em uma das instituiccedilotildees de repressatildeo mais violentas da eacutepoca o DOI-CODIRJ

construiacutedas a partir de um presente em que jaacute vigorava a lei nordm 9140 de 1995 que

reconhecia mortos e desaparecidos pela ditadura militar e indenizava suas famiacutelias e

havia sido aprovada a lei nordm 10559 de 2002 que reparava financeiramente aqueles que

tivessem sofrido perseguiccedilatildeo ou maus tratos dentro de instituiccedilotildees do Estado durante o

periacuteodo de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988

34

Percebe-se claramente a ideia de presente do passado de Robert Frank (1999)

como um dos principais aspectos criacuteticos aqui aplicados a essas memoacuterias Afinal o

fato de durante o periacuteodo em que se deram as entrevistas conhecidos opositores agrave

ditadura militar estarem agrave frente do governo brasileiro e grande nuacutemero de ex-

prisioneiros poliacuteticos inclusive os entrevistados buscarem se beneficiar da lei nordm

1055902 faz com que o presente seja aqui considerado o elemento organizador dessas

memoacuterias

Essa perspectiva de presente do passado eacute portanto um dos elementos criacuteticos

aplicados a essas memoacuterias que sobre elas trabalham a fim de aqui tornaacute-las objeto da

histoacuteria Dessa forma percebe-se na presente anaacutelise a perspectiva elucidada por Pierre

Nora (1993) ao diferir o trabalho da memoacuteria do trabalho da histoacuteria Afinal o que os

diferencia satildeo justamente os aspectos fluidos da memoacuteria tais como as emoccedilotildees e as

influecircncias conjunturais a que estaacute a todo tempo submetida que aqui satildeo minimizados

pelos aspectos criacuteticos objetivos e analiacuteticos peculiares agrave histoacuteria

35

1 Debate Historiograacutefico

11 O papel da ESG para o Sistema de Seguranccedila Nacional

O golpe civil-militar ocorrido no Brasil em 31 de marccedilo de 1964 quando o

presidente Joatildeo Goulart foi deposto e se instalou um regime militar no paiacutes teria sido

precedido por uma elaborada desestabilizaccedilatildeo poliacutetica que de acordo com Maria Helena

Moreira Alves (2005) envolveu tanto corporaccedilotildees multinacionais o governo dos

Estados Unidos quanto o capital brasileiro associado-dependente e os militares

brasileiros destacando-se entre esses um grupo de oficiais da Escola Superior de Guerra

(ESG) Essa ldquoconspiraccedilatildeordquo foi efetivada anos antes ainda no iniacutecio dos anos 1950 por

instituiccedilotildees civis como o Instituto Brasileiro de Accedilatildeo Democraacutetica (IBAD) e o Instituto

de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) sob a coordenaccedilatildeo da ESG A Doutrina de

Seguranccedila Nacional e Desenvolvimento (DSN) ministrada pela mesma Escola era a

justificativa ideoloacutegica perfeita para a tomada do poder e para o autoritarismo como

uma forma de governo

Um dos criadores dessa doutrina Golbery do Couto e Silva era desde 1952

adjunto do Departamento de Estudos da ESG estabelecimento subordinado ao Estado

Maior das Forccedilas Armadas (EMFA) criado em 1948 com a assistecircncia de consultores

franceses e norte-americanos a fim de desenvolver e consolidar os conhecimentos

necessaacuterios para o exerciacutecio das funccedilotildees de direccedilatildeo e para o planejamento da Seguranccedila

Nacional Dentro da ESG Golbery encontrou condiccedilotildees favoraacuteveis para impulsionar

teses que defenderiam o ecircxito de um projeto global de desenvolvimento em cujas

tarefas o Estado deveria se associar agrave iniciativa privada atraveacutes do apoio intermediaacuterio

de uma elite tecnocraacutetica civil e militar ideologicamente comprometida com um

conjunto de ldquoobjetivos nacionais permanentesrdquo garantindo assim a Seguranccedila

Nacional Essas teses vieram posteriormente a constituir a base do programa da ESG

36

passando a ser conhecidas pela Doutrina de Seguranccedila Nacional (DSN) A DSN

sustentava ainda em meio agrave Guerra Fria o posicionamento do Brasil ao lado do

Ocidente logo em confronto com o bloco sovieacutetico considerando a preservaccedilatildeo da

seguranccedila o fator fundamental de promoccedilatildeo do desenvolvimento Previa dessa forma a

possiacutevel supressatildeo de alguns valores definidores da ordem democraacutetica devido agrave

necessidade de uma progressiva centralizaccedilatildeo de poderes

Para Moreira Alves o grande feito do ldquocomplexo ESGIPESIBADrdquo foi a criaccedilatildeo

antes do golpe de 1964 de uma rede de informaccedilotildees e de uma Doutrina de Seguranccedila

Nacional e Desenvolvimento ambas coordenadas por Golbery para nortear o que viria

a ser um Estado efetivamente centralizado Essa tese eacute sustentada ao se notar que o

general Castelo Branco como primeiro presidente do Estado ditatorial brasileiro

compocircs seus ministeacuterios quase totalmente com membros e colaboradores do complexo

ESGIPESIBAD A DSN passou entatildeo a ser utilizada para moldar as estruturas de

Estado impor formas especiacuteficas de controle para a sociedade civil e delinear um

projeto de governo para o Brasil Assim com destaque para a seguranccedila interna

ameaccedilada pelo comunismo a Doutrina de Seguranccedila Nacional passou a induzir ao

abuso de poder a prisotildees arbitraacuterias agrave tortura e agrave censura agrave imprensa e agraves artes de

forma geral

Eacute interessante perceber que a formulaccedilatildeo da DSN feita pela ESG em colaboraccedilatildeo

com o IPES e o IBAD ao longo de 25 anos tinha como base uma teoria de guerra que

nortearia a atuaccedilatildeo repressora do governo militar A partir do Manual Baacutesico da Escola

Superior de Guerra e dos escritos de Golbery do Couto e Silva em Conjuntura Poliacutetica

Nacional o poder executivo amp a geopoliacutetica do Brasil Moreira Alves destaca os tipos

de guerra apresentados pela Doutrina guerra total guerra limitada ou localizada

guerra revolucionaacuteria ou insurrecional guerra indireta ou ideoloacutegica

37

De acordo com estes paracircmetros a teoria da guerra total baseava-se na estrateacutegia

militar da Guerra Fria deixando de ser estritamente militar para ser tambeacutem econocircmica

financeira poliacutetica psicoloacutegica e cientiacutefica atingindo o mundo de forma global Logo

como as potecircncias envolvidas natildeo podiam travar uma guerra ativa pois existia a

possibilidade de uma destruiccedilatildeo completa e universal a guerra total passou a assumir

diversas formas Ela se destrinchava em guerras limitadas ou localizadas pelas quais as

duas superpotecircncias mediam suas respectivas capacidades de controlar territoacuterios Aleacutem

disso havia as guerras declaradas consideradas claacutessicas e as natildeo-declaradas que

correspondiam agraves formas de guerra revolucionaacuteria ou insurrecional

Essas guerras natildeo-declaradas ou natildeo-claacutessicas representavam uma guerra de

agressatildeo indireta A insurrecional eacute caracterizada como um conflito interno em que

parte da populaccedilatildeo armada busca a deposiccedilatildeo do governo Jaacute a guerra revolucionaacuteria

natildeo envolve necessariamente o emprego da forccedila armada mas significa um conflito

normalmente interno estimulado ou auxiliado do exterior inspirado normalmente em

uma ideologia e que visa agrave conquista do poder pelo controle progressivo da naccedilatildeo A

guerra revolucionaacuteria se referia portanto agrave infiltraccedilatildeo comunista internacional

associada ao bloco sovieacutetico Neste tipo de guerra a guerra ideoloacutegica substituiacutea a

convencional entendida como o enfrentamento direto entre Estados em suas fronteiras

geograacuteficas A caracteriacutestica principal da guerra revolucionaacuteria de acordo com o

Manual Baacutesico da ESG era o envolvimento da populaccedilatildeo do paiacutes-alvo por meio da

conquista ideoloacutegica

[] abrangendo desde a exploraccedilatildeo dos descontentamentos existentes com o

acirramento de acircnimos contra as autoridades constituiacutedas ateacute a organizaccedilatildeo

de zonas dominadas com o recurso agrave guerrilha ao terrorismo e outras taacuteticas

irregulares onde o proacuteprio nacional do paiacutes-alvo eacute utilizado como

combatente (Alves 2005 45)

38

Como a guerra revolucionaacuteria recrutava seus combatentes secretamente toda a

populaccedilatildeo tornava-se suspeita e portanto deveria ser cuidadosamente controlada para

que os ditos ldquoinimigos internosrdquo pudessem ser neutralizados A partir desse

entendimento de guerra revolucionaacuteria que segundo a ESG assombrava o paiacutes cria-se a

necessidade de um planejamento de Seguranccedila Nacional adaptado a essa conjuntura e

por conseguinte de um eficiente e centralizado aparato de informaccedilotildees internas

A partir disso a Constituiccedilatildeo de 1967 criou o Conselho de Seguranccedila Nacional

oacutergatildeo da Presidecircncia da Repuacuteblica responsaacutevel por supervisionar a defesa da seguranccedila

interna e principalmente modificou o significado de Seguranccedila Nacional que desde a

Constituiccedilatildeo de 1946 era associado agrave agressatildeo externa ou seja agrave defesa das fronteiras

territoriais A ameaccedila agrave Seguranccedila Nacional passava entatildeo a ser oficialmente definida

mais como uma ameaccedila agraves fronteiras ideoloacutegicas do que agraves territoriais Portanto ao criar

o Conselho de Seguranccedila Nacional e mudar o entendimento sobre a Seguranccedila

Nacional a Constituiccedilatildeo de 1967 abria o caminho necessaacuterio agrave adaptaccedilatildeo agrave teoria de

seguranccedila interna estipulada anos antes pela ESG

Esta teoria de seguranccedila interna dotou entatildeo o Estado de justificativa para

controlar e reprimir a populaccedilatildeo em geral O caraacuteter oculto da ameaccedila interna tornou

praticamente impossiacutevel se estabelecer limites para as accedilotildees repressivas do Estado e dos

militares e por isso mesmo fragilizou a defesa dos direitos humanos no paiacutes Afinal

todo cidadatildeo passava a ser culpado ateacute que fosse provada a sua inocecircncia Por meio

desse pensamento a raiz dos abusos de poder perpetrados pelo Estado se estruturou Por

isso defende-se aqui que a institucionalizaccedilatildeo dessa crenccedila no inimigo interno criada

pela ESG antes mesmo do golpe civil-militar estimulou a ditadura a nortear o

desenvolvimento das suas estruturas defensivas da sua articulada rede de informaccedilotildees

poliacuteticas e ainda do seu aparato repressivo de controle armado onde os DOI-CODI a

39

partir de 1970 tambeacutem estariam inseridos

12 Os conceitos legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar

Essa crenccedila no inimigo interno criada pela ESG norteou a Seguranccedila Nacional

durante a ditadura militar que se substanciou atraveacutes da alta legalidade autoritaacuteria e

das medidas criadas pelo governo como forma de conter as cizacircnias militares Esses trecircs

fatores juntos contribuiacuteram para consolidaccedilatildeo dos DOI-CODI por todo paiacutes

respaldando a atuaccedilatildeo altamente autoritaacuteria e violenta desses oacutergatildeos

A partir disso o conceito de legalidade autoritaacuteria construiacutedo pelo cientista

poliacutetico norte-americano Anthony Pereira (2010) ajuda a evidenciar como a existecircncia

de laccedilos entre o autoritarismo e o estado de direito do regime militar no Brasil ajudou na

configuraccedilatildeo de uma instituiccedilatildeo como o DOI-CODI Afinal a legalidade autoritaacuteria

identifica as coexistecircncias entre o autoritarismo ditatorial e a continuidade das

instituiccedilotildees juriacutedicas anteriores ao Golpe bem como entre o autoritarismo ditatorial e a

praacutetica de elaboraccedilatildeo de leis ainda que tambeacutem autoritaacuterias

Percebe-se assim que o Brasil obteve um alto grau de legalidade autoritaacuteria na

medida em que a legislaccedilatildeo foi amplamente arbitrada pelo Poder Executivo como forma

de legalizar arbitrariedades poliacuteticas e suprimir direitos da populaccedilatildeo Assim foi

construiacuteda uma sustentaccedilatildeo juriacutedica e poliacutetica necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um aparato de

seguranccedila cada vez mais forte e centralizado que garantiu a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos

DOI-CODI

Afinal a legalidade autoritaacuteria vivenciada no Brasil se baseava na confecccedilatildeo pelo

Poder Executivo de leis publicadas em meios de comunicaccedilatildeo oficiais a fim de

respaldar arbitrariedades A partir dessas leis instrumento associado ao sistema

democraacutetico o governo militar centralizava e reforccedilava o seu poder ditatorial tornando

40

nebuloso o sistema em vigor naquele momento no Brasil Ou seja apesar da existecircncia

de uma ditadura militar consolidada havia integraccedilatildeo entre as Forccedilas Armadas e o

Poder Judiciaacuterio ndash que norteava os seus julgamentos pelas novas leis arbitraacuterias

legitimando-as ndash bem como a manutenccedilatildeo do Congresso em funcionamento na maior

parte do tempo Dessa forma a legalidade autoritaacuteria era um elo entre o autoritarismo

ditatorial e o estado de direito conseguindo fazer parecer por algum tempo que o paiacutes

vivenciava um sistema democraacutetico excepcional A praacutetica da legalidade autoritaacuteria na

forma de atos institucionais da Constituiccedilatildeo de 1967 e de leis de Seguranccedila Nacional

por exemplo forneceu os suportes legais necessaacuterios agrave construccedilatildeo do SISSEGIN e agrave

formaccedilatildeo e agrave atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

Aleacutem disso essa praxe da ditadura de agir por meio de leis arbitraacuterias na maior

parte das vezes se relaciona com as cizacircnias militares provocadas no seio dessa

instituiccedilatildeo como reflexos de acontecimentos poliacuteticos Afinal grande parte das leis

autoritaacuterias foram artifiacutecios usados como forma de acalmar os acircnimos na caserna

formada por militares de meacutedias e baixas patentes que reivindicavam mais poder

poliacutetico Assim para conter a oposiccedilatildeo poliacutetica e tambeacutem as reivindicaccedilotildees de poder da

caserna desenharam-se leis arbitraacuterias capazes de suportar um organismo de repressatildeo

onde esses militares trabalhariam com certa autonomia tal como viriam a ser os DOI-

CODI Logo percebe-se aqui que juntamente com a legalidade autoritaacuteria a leitura

dos encaminhamentos poliacutetico-militares feita por Joatildeo Roberto Martins Filho (1993)

sob a luz de conceitos como o de cizacircnias militares baseadas em dissidecircncias militares

internas entre o palaacutecio e a caserna tambeacutem ilumina o entendimento sobre a formaccedilatildeo

e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

Tais encaminhamentos poliacuteticos militares tecircm iniacutecio no dia 9 de abril dez dias

apoacutes o golpe civil-militar de 1964 e ainda antes da posse de Castelo Branco em 15 de

41

abril quando o Comando Supremo da Revoluccedilatildeo baixou um ato institucional

posteriormente conhecido como AI-1 que conferia aos militares o poder de puniccedilatildeo a

crimes de cidadatildeos contra o Estado seu patrimocircnio e contra a ordem poliacutetica e social

No entanto o AI-1 previa tambeacutem a possibilidade de passar este poder para as matildeos do

novo presidente da Repuacuteblica dois meses apoacutes a sua posse colocando oficialmente o

Poder Executivo acima dos demais Assim Costa e Silva integrante do Comando e

futuro ministro da Guerra fez expedir um pouco antes da posse de Castelo Branco em

complemento ao AI-1 o Ato do Comando Supremo da Revoluccedilatildeo nordm 9 e a Portaria nordm1

que davam continuidade ao poder de puniccedilatildeo dos militares mesmo depois da posse de

Castelo Branco Com isso foram criadas as condiccedilotildees para que coroneacuteis tenentes-

coroneacuteis majores e capitatildees6 continuassem agindo na caccedila ao ldquoinimigo internordquo

O Ato do Comando Supremo da Revoluccedilatildeo nordm 9 estabelecia que os militares

encarregados de inqueacuteritos e processos (de suspensotildees de direitos poliacuteticos cassaccedilotildees

de mandatos etc) poderiam delegar atribuiccedilotildees referentes a investigaccedilotildees bem como

requisitar inqueacuteritos ou sindicacircncias instituiacutedas por outras esferas Jaacute a Portaria nordm1

determinava a abertura de Inqueacuterito Policial Militar (IPM) para apuraccedilatildeo de crimes

praticados contra o Estado e a ordem poliacutetica social

No entanto no dia 15 de junho de 1964 juntamente com o teacutermino da validade do

AI-1 acabaria tambeacutem o prazo dos militares cassarem mandatos e suspenderem direitos

poliacuteticos Tais militares requisitaram que o poder a eles concedido natildeo fosse cessado o

que foi negado pelo entatildeo presidente Castelo A partir disso a insatisfaccedilatildeo desses

militares acabou por causar o surgimento de uma primeira e consideraacutevel discoacuterdia

interna agrave instituiccedilatildeo militar uma primeira cizacircnia militar A partir dessa situaccedilatildeo de

conflito surge entatildeo a chamada linha dura que se formou atraveacutes do eco que um

6 Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II

42

conjunto de pressotildees da jovem oficialidade nessa fase inicial da ditadura encontrou em

meio a alguns ldquoherdeiros civisrdquo do regime e em setores da hierarquia militar Dessa

forma a linha dura foi formada por grupos heterogecircneos de composiccedilatildeo variaacutevel e

ideologia difusa

Logo assim como Martins Filho e diferentemente da interpretaccedilatildeo de grande

parte dos historiadores acredita-se que mesmo em termos ideoloacutegicos a linha dura

estava longe de ser um grupo homogecircneo tendo por denominador comum apenas duas

caracteriacutesticas

Em primeiro lugar as reivindicaccedilotildees de maior rigor na ldquodepuraccedilatildeordquo do

sistema poliacutetico em segundo lugar as expectativas de influenciar

diretamente o processo de tomadas de decisotildees do governo militar Tanto em

um como em outro aspecto suas accedilotildees provocariam problemas para o

governo de Castelo Branco (Martins Filho 1993 61)

Portanto o governo Castelo Branco logo teve que se deparar com a questatildeo da

participaccedilatildeo poliacutetica do conjunto da categoria militar no regime ditatorial Sem atribuir

ao presidente uma visatildeo mais liberal ndash diferentemente daqueles que interpretam as

medidas mais ldquodurasrdquo de Castelo como resultado das pressotildees da linha dura ndash pondera-

se aqui que por parte do governo o redirecionamento de objetivos iniciais era

recorrente sempre que a situaccedilatildeo exigia uma reavaliaccedilatildeo Dessa forma percebe-se que

os rumos poliacuteticos escolhidos pela ditadura tinham como finalidade a preservaccedilatildeo da

hierarquia e da aparente homogeneidade da instituiccedilatildeo castrense o que demandava a

contenccedilatildeo das instabilidades internas

A partir dessa perspectiva destaca-se o caraacuteter flutuante dos conflitos internos ao

regime decorrentes da incompatibilidade de interesses poliacuteticos entre os militares de

altas patentes que possuiacuteam cargos no governo ditatorial representados

43

metaforicamente pelo palaacutecio e militares de meacutedias e baixas patentes que eram

responsaacuteveis por serviccedilos internos a caserna Nesse sentido evidencia-se por exemplo

que apoacutes ser retirado da caserna o poder de cassaccedilatildeo de mandatos e de suspensatildeo de

direitos poliacuteticos as derrotas dos candidatos aliados ao regime ditatorial nas eleiccedilotildees

para governador nos estados da Guanabara e de Minas Gerais em outubro de 1965

ocasionou uma forte divergecircncia entre o palaacutecio e a caserna resultando uma

instabilidade castrense que desembocou em mais uma cizacircnia militar Diante disso na

tentativa de apaziguar a instabilidade militar e por conseguinte os acircnimos da caserna

no fim desse mesmo mecircs Castelo Branco decretaria o AI-27 com vigecircncia prevista ateacute

15 de marccedilo de 1967

Afinal atraveacutes desse Ato a caserna aleacutem de passar a influir no acircmbito da poliacutetica

comeccedilava a ganhar poderes extras Nele se estabelecia a possibilidade de suspensatildeo de

direitos poliacuteticos e de cassaccedilatildeo de mandatos de parlamentares imposiccedilatildeo da eleiccedilatildeo

indireta para a Presidecircncia da Repuacuteblica permissatildeo para o presidente da Repuacuteblica

decretar o recesso do Congresso Nacional e das demais casas legislativas extinccedilatildeo de

partidos poliacuteticos delegaccedilatildeo ao presidente da Repuacuteblica do poder de legislar por

decretos-leis estabelecimento de foro especial militar para civis acusados de crimes

contra a Seguranccedila Nacional ou as instituiccedilotildees militares suspensatildeo das garantias de

vitaliciedade inamovibilidade (dos juiacutezes) e de estabilidade (dos servidores puacuteblicos)

ampliaccedilatildeo de 11 para 16 ministros do Supremo Tribunal Federal (Ato Institucional Nordm2

27 out 1965)

Com a cassaccedilatildeo de mandatos suspensatildeo de direitos poliacuteticos e demissatildeo de

funcionaacuterios puacuteblicos a caserna conseguia alguma interferecircncia nos assuntos poliacuteticos

e com a decretaccedilatildeo de foro militar especial para civis acusados de crimes contra a

7 Para mais informaccedilotildees sobre o AI-2 ver BRASIL Ato Institucional Nordm2 de 27 de outubro de 1965

44

Seguranccedila Nacional ou instituiccedilotildees militares comeccedilava a ganhar um espaccedilo proacuteprio e

aos poucos formar um grupo disposto a agir por sua conta sem maiores consideraccedilotildees

pelas normas legais tendendo a fazer valer suas ideias pela forccedila A futura comunidade

de seguranccedila comeccedilava entatildeo a ser desenhada e a formar o caraacuteter e a atuaccedilatildeo dos

futuros membros de seus oacutergatildeos A montagem do sistema de seguranccedila interna em que

os DOI-CODI seriam inseridos iria a partir das primeiras leis das desavenccedilas internas

e da deflagraccedilatildeo dos primeiros Atos Institucionais se tornando viaacutevel

Entretanto mesmo apoacutes o AI-2 a crise no regime castrense continuava A

caserna ansiosa por mais espaccedilo poliacutetico comeccedilava a se organizar para a ascensatildeo de

outra forccedila ao governo se articulando em torno do entatildeo ministro da Guerra o general

Costa e Silva A desuniatildeo hieraacuterquica provocada pela disputa sucessoacuteria se configurava

naquele momento como um importante fator da crise do regime militar Em meio a este

clima de tensatildeo Castelo Branco e seus partidaacuterios os ditos castelistas se preocupavam

com a ldquoinstitucionalizaccedilatildeo da revoluccedilatildeordquo Diante dessa configuraccedilatildeo a ldquorevoluccedilatildeo

castelistardquo de fato acabou sendo implantada pelo presidente e os pilares de seu

processo foram a Lei de Seguranccedila Nacional e a Constituiccedilatildeo de 1967

A Carta de 1967 incorporou boa parte das medidas autoritaacuterias estabelecidas pelos

atos institucionais Entre essas as que instituiacuteam que toda pessoa natural ou juriacutedica

seria responsaacutevel pela Seguranccedila Nacional nos limites definidos em lei e que o foro

militar previsto no AI-2 por limitado periacuteodo de tempo ficaria definitivamente

estendido aos civis por tempo indeterminado nos casos de crimes contra a Seguranccedila

Nacional Jaacute a Lei de Seguranccedila Nacional reflexo tambeacutem do caraacuteter ldquodurordquo do final do

governo Castelo transformava em legislaccedilatildeo a Doutrina de Seguranccedila Nacional da

ESG legalizando a concepccedilatildeo de ldquoguerra internardquo e de ldquosubversatildeordquo dois dias antes da

chegada de Costa e Silva ao poder presidencial Essas uacuteltimas medidas do governo de

45

Castelo merecem aqui destaque por significarem um impulso agrave criaccedilatildeo de um setor

voltado para a repressatildeo poliacutetica seara em que os DOI-CODI atuariam anos agrave frente

Assim em meio a um clima anti-castelista em 15 de marccedilo de 1967 Costa e

Silva assume o governo militar prometendo inclusive uma maior humanizaccedilatildeo da

poliacutetica Entretanto com a eclosatildeo de protestos de rua contra a violecircncia ditatorial o

novo presidente logo retomaria o aspecto ldquorevolucionaacuteriordquo do regime militar e

decretaria o Ato Institucional Nordm5 (AI-5) 8

Afinal a partir dos discursos do deputado

Maacutercio Moreira Alves evocando os brasileiros a natildeo comparecerem ao tradicional

desfile do dia sete de setembro daquele ano de 1968 Costa e Silva e o palaacutecio passaram

a ser extremamente pressionados pela caserna a reagir A recusa da Cacircmara dos

Deputados em abrir um processo para cassaccedilatildeo do entatildeo deputado foi a justificativa

necessaacuteria para que o presidente convocasse a cuacutepula do aparelho militar e os juristas

palacianos para darem forma ao AI-5 vindo a decretaacute-lo na noite do dia 13 de dezembro

de 1968

Percebe-se que a conjuntura de 1968 iniciado com os protestos estudantis de

massa tornou pela primeira vez desde o golpe de 1964 momentaneamente unificado o

movimento de repuacutedio de expressivos setores sociais ao avanccedilo da repressatildeo militar

Este fato que a princiacutepio pode fazer crer ter estimulado uma desuniatildeo militar parece

ter sido um fator adicional de uniatildeo das Forccedilas Armadas As tensotildees internas agrave

instituiccedilatildeo portanto foram neste momento colocadas em suspenso e a situaccedilatildeo militar

diante da ofensiva da oposiccedilatildeo teria criado uma espeacutecie de unidade de crise Poreacutem

esta unidade de crise das Forccedilas Armadas rapidamente se fragmentou trazendo agrave tona

novamente em meados de 1968 um variado e complexo conjunto de tensotildees no campo

militar Esta unidade no entanto voltaria a existir em torno da decretaccedilatildeo do AI-5 apoacutes

8 Para mais informaccedilotildees sobre o AI-5 ver BRASIL Ato Institucional Nordm5 de 13 de dezembro de 1968

46

a derrota na votaccedilatildeo no Congresso e quando as pressotildees da caserna em prol da

militarizaccedilatildeo do governo se voltaram para o palaacutecio

Nesse momento os generais do governo se sentiram muito mais ameaccedilados do

que na jaacute mencionada instabilidade gerada pelas derrotas nas eleiccedilotildees para governador

de 1965 O fato da oficialidade rebelde de entatildeo natildeo ter um porta-voz em postos de

comando como era na eacutepoca Costa e Silva e por isso parecer mais difusa a tornava

mais ameaccediladora agrave integridade da instituiccedilatildeo militar Assim a explicaccedilatildeo para

juntamente com a caserna os generais cobrarem do Ministro do Exeacutercito uma imediata

tomada de decisatildeo em favor da ldquoRevoluccedilatildeordquo estava portanto na busca pela

permanecircncia de uma unidade das Forccedilas Armadas Dessa forma momentos antes do AI-

5 a unidade da crise novamente se formou soacute que dessa vez por motivos inerentes

unicamente agrave proacutepria instituiccedilatildeo militar (Martins Filho 1993 158-174)

O AI-5 foi ateacute entatildeo a maior expressatildeo legal do autoritarismo da ditadura militar

e construiu uma base essencial para que em 1970 surgissem os DOI-CODI Afinal

aleacutem de natildeo estabelecer um prazo final para sua vigecircncia inovando em relaccedilatildeo aos

demais Atos Institucionais o AI-5 tornou legal a suspensatildeo da garantia de ldquohabeas

corpusrdquo nos casos de crimes poliacuteticos contra a Seguranccedila Nacional Logo a partir

desse Ato foram estabelecidas as condiccedilotildees necessaacuterias para a institucionalizaccedilatildeo dos

sistemas de seguranccedila e de informaccedilotildees bem como o surgimento da Comissatildeo Geral de

Investigaccedilotildees (CGI) na tentativa de combate agrave corrupccedilatildeo O sistema de seguranccedila

esboccedilado naquele momento buscava o aperfeiccediloamento sob a eacutegide da ldquoguerra

revolucionaacuteriardquo mencionada no preacircmbulo do proacuteprio AI-5

Considerando que assim se torna imperiosa a adoccedilatildeo de medidas que

impeccedilam que sejam frustrados os ideais superiores da Revoluccedilatildeo

preservando a ordem a seguranccedila a tranquilidade o desenvolvimento

econocircmico e cultural e a harmonia poliacutetica e social do Paiacutes comprometidos

47

por processos subversivos e de guerra revolucionaacuteria (Ato Institucional nordm

5 13 dez 1968)

Logo as cizacircnias militares e a legislaccedilatildeo a elas relacionada contribuiacuteram para a

formaccedilatildeo do cenaacuterio propiacutecio agrave institucionalizaccedilatildeo do aparato de repressatildeo Aparato este

que a partir do AI-5 foi se estruturando em trecircs grandes sistemas o SISNI Sistema

Nacional de Informaccedilotildees a CGI Comissatildeo Geral de Investigaccedilotildees e o SISSEGIN

Sistema de Seguranccedila Interna Este ao ser criado abriria espaccedilo para a repressatildeo

poliacutetica centralizada e institucionalizada dos DOI-CODI

13 A montagem e o funcionamento do SISSEGIN

Ao longo dos anos 70 os DOI-CODI passariam a ser os principais oacutergatildeos de

atuaccedilatildeo do SISSEGIN e um dos pontos centrais do aparelho de repressatildeo brasileiro Ao

seu lado em outras esferas de competecircncia estavam os oacutergatildeos do Sistema Nacional de

Informaccedilotildees (SISNI) e os da Comissatildeo Geral de Investigaccedilatildeo (CGI) Cada um desses

sistemas possuiacutea uma competecircncia especiacutefica o SISNI era responsaacutevel por buscar as

informaccedilotildees necessaacuterias agrave manutenccedilatildeo do regime de Seguranccedila Nacional procurando

desvendar quem eram os opositores ao governo os chamados ldquoinimigos internosrdquo

enquanto a CGI buscava o combate agrave corrupccedilatildeo no serviccedilo puacuteblico Jaacute o SISSEGIN

operava de forma centralizada tanto na investigaccedilatildeo quanto na apreensatildeo dos mesmos

ldquoinimigos internosrdquo

Para a anaacutelise do SISSEGIN vale-se aqui do trabalho de Carlos Fico Como eles

agiam (2001) feito com base no acervo da extinta Divisatildeo de Seguranccedila e Informaccedilotildees

do Ministeacuterio da Justiccedila inclusive nos documentos sigilosos Afinal nesse estudo Fico

revela em detalhes o que nenhum outro historiador havia conseguido ateacute entatildeo a

48

formaccedilatildeo e o funcionamento das comunidades de informaccedilotildees e de seguranccedila da

ditadura militar brasileira

A partir disso destaca-se aqui que a estrutura e o funcionamento do SISSEGIN

foram instituiacutedos e regulamentados por meio de decretos sigilosos O mesmo padratildeo de

regulamentaccedilatildeo foi seguido pela Operaccedilatildeo Bandeirantes (Oban) instituiccedilatildeo informal

criada em Satildeo Paulo em julho de 1969 bem como pelos DOI-CODI instituiacutedos no

primeiro semestre de 1970 formalizando a experiecircncia da Oban e espalhando-a por

todas as Regiotildees Militares do Brasil Jaacute que eacute atraveacutes dessas Regiotildees que o Exeacutercito

divide geograficamente sua administraccedilatildeo sobre o territoacuterio brasileiro foi tambeacutem por

meio delas que partiu durante parte da ditadura militar as responsabilidades territoriais

dos DOI-CODI Logo o DOI-CODI do Rio de Janeiro ficava responsaacutevel pelos crimes

poliacuteticos ocorridos na Primeira Regiatildeo ou seja nos estados do Rio de Janeiro e do

Espiacuterito Santo

A justificativa para esse sigilo dos atos que regiam o SISSEGIN e os DOI-CODI

estava na maior mobilidade e autonomia de accedilatildeo que o segredo traria para a atuaccedilatildeo

repressora desses organismos Dessa forma a repressatildeo podia agir sem grandes

limitaccedilotildees natildeo esbarrando em questotildees externas agraves decisotildees militares tais como os

Direitos Humanos Universais de 1948

No entanto eacute tambeacutem evidente a importacircncia que alguns atos legais natildeo-sigilosos

tiveram para a construccedilatildeo do cenaacuterio que sustentaria a atuaccedilatildeo do SISSEGIN e dos

DOI-CODI Eacute o caso por exemplo da adoccedilatildeo do foro especial para crimes poliacuteticos

que a partir do AI-2 e da subsequente incorporaccedilatildeo dessa medida pela Constituiccedilatildeo de

1967 passaram a ser julgados pelos tribunais militares e a suspensatildeo de garantias

individuais tal como o habeas corpus feita pelo AI-5 de dezembro de 1968 Afinal

natildeo seria eficaz para a atuaccedilatildeo desses oacutergatildeos repressores que seus prisioneiros poliacuteticos

49

atraveacutes do habeas corpus pudessem ser imediatamente soltos pela Justiccedila ou que

pudessem ser julgados por tribunais civis correndo o risco do juiz responsaacutevel pela

causa natildeo estar totalmente articulado aos princiacutepios impostos pela Doutrina de

Seguranccedila Nacional

Dessa forma ateacute o AI-5 foram levantadas as bases legais para que um Sistema de

Seguranccedila Nacional centralizado combativo e violento fosse institucionalizado Por

outro lado a partir do AI-5 para ter a autonomia e a mobilidade que se julgavam

necessaacuterias a organizaccedilatildeo desse Sistema de Seguranccedila Nacional foi sigilosa Ou seja a

reestruturaccedilatildeo do sistema repressivo com os seus novos oacutergatildeos e o detalhamento de

suas funccedilotildees internas natildeo foi publicada oficialmente por nenhum tipo de legislaccedilatildeo A

operacionalidade da seguranccedila interna foi regida por diretrizes secretas e o SISSEGIN

instituiacutedo por decretos sigilosos do Conselho de Seguranccedila Nacional (CSN) aprovados

pelo Presidente da Repuacuteblica

Por isso mesmo uma das primeiras medidas para o estabelecimento do SISSEGIN

e posteriormente dos DOI-CODI foi o fortalecimento do Conselho de Seguranccedila

Nacional cujas competecircncias foram ampliadas por atualizaccedilatildeo na legislaccedilatildeo operada

em janeiro de 1968 No ano seguinte em julho a Diretriz para a Poliacutetica de Seguranccedila

Interna foi instituiacuteda secretamente a fim de consolidar o SISSEGIN e adotar

nacionalmente o padratildeo da Oban (Operaccedilatildeo Bandeirante) No entanto somente em

1970 durante a vigecircncia do governo Meacutedici o modelo da Oban foi adaptado

transformado em DOI-CODI e de fato instituiacutedo por todas as Regiotildees Militares do

paiacutes

A Oban foi secretamente instituiacuteda em 1ordm de julho de 1969 no quartel do II

Exeacutercito em Satildeo Paulo No intuito de combater de forma mais organizada e eficaz a

esquerda armada a Oban usava de sua ldquoilegalidade oficialrdquo para agir contra os

50

ldquoinimigos internosrdquo sem precisar adequar seus meacutetodos de trabalho aos Direitos

Humanos A Oban criava uma estrutura nova que coordenava e integrava os diversos

oacutergatildeos de repressatildeo poliacutetica ndash entre eles as 2ordf seccedilotildees da Poliacutecia Militar Exeacutercito e

Marinha de Satildeo Paulo responsaacuteveis pelas investigaccedilotildees de crimes poliacuteticos nessas

instituiccedilotildees ndash que operavam de forma desordenada e ineficaz contra a esquerda armada

em aparente ascensatildeo O funcionamento da Oban se dava por meio de um trabalho

coordenado de diversas instacircncias conforme apresenta Fico no seguinte trecho

O funcionamento da Oban supunha um trabalho coordenado de diversas

instacircncias Toda quarta-feira era feita uma reuniatildeo no quartel-general do II

Exeacutercito na qual eram discutidas e avaliadas as accedilotildees da guerrilha da

semana Participavam dessas reuniotildees o chefe da 2ordf Seccedilatildeo do II Exeacutercito o

comandante da Oban major Waldyr Coelho um representante da 2ordf Seccedilatildeo

do II Exeacutercito o oficial chefe da 2ordf Seccedilatildeo do Distrito Naval o chefe da 2ordf

Seccedilatildeo da Poliacutecia Militar do Estado de Satildeo Paulo um representante da Poliacutecia

Federal um representante da Divisatildeo da Ordem Social e outro da Ordem

Poliacutetica ambos do DOPS (Fico 2001 117)

Aleacutem dos meios militar e policial a Oban tambeacutem era sustentada pelo

empresarial financeiro e parte das autoridades civis paulistas da eacutepoca conforme indica

trecho do artigo da historiadora Mariana Joffily para a revista Caros Amigos

O ato que celebrou a criaccedilatildeo da Oban foi organizado com pompa coqueteacuteis

e salgadinhos e contou com a presenccedila das principais autoridades poliacuteticas

de Satildeo Paulo o governador Roberto de Abreu Sodreacute o prefeito Paulo Maluf

o comandante do II Exeacutercito (atual Regional Sudeste) general Joseacute

Canavarro Pereira entre outros Tambeacutem acorreram agrave cerimocircnia figuras

proeminentes da elite paulista oriundas dos meios empresarial e financeiro

Luiz Macedo Quentel Antonio Delfim Netto Gastatildeo Vidigal Paulo Sawaya

e Henning Albert Boilesen Parte do setor empresarial paulista e das

multinacionais ndash com representaccedilatildeo em Satildeo Paulo ndash acreditava que as accedilotildees

guerrilheiras colocavam em risco a boa conduta dos negoacutecios e concorreu

51

para o apoio financeiro e material As autoridades da cidade colaboraram

com infra-estrutura incluindo a cessatildeo de partes das dependecircncias da 36ordf

delegacia de poliacutecia situada na Rua Tutoacuteia (Vila Mariana) para a

acomodaccedilatildeo do novo oacutergatildeo repressivo (Joffily 14 set 2009)

Percebe-se portanto que muitos empresaacuterios de Satildeo Paulo ajudaram a financiar a

Oban Entre outros gastos esse financiamento era destinado agrave capacitaccedilatildeo de seus

agentes e agrave compra de equipamentos de tortura novos entre eles uma maacutequina de

choques eleacutetricos nomeada de ldquoPianola Boilesenrdquo em homenagem a Henning Albert

Boilesen entatildeo presidente da empresa Ultragaacutes e um dos empresaacuterios agrave frente desse tipo

de investimento na Oban Boilesen assim como os demais empresaacuterios envolvidos

financeiramente com a Oban por desacreditar nas instituiccedilotildees do Estado que ateacute entatildeo

eram responsaacuteveis pelo combate agrave esquerda armada e por ter interesses reais nesse

combate optou por capitalizar a Oban Afinal uma instituiccedilatildeo extra-oficial de accedilatildeo

coordenada e com grande investimento teria autonomia e capacidade para neutralizar os

grupos da esquerda armada que vinham causando prejuiacutezos a seus negoacutecios tais como

assaltos e atentados Justamente devido a essa relaccedilatildeo que tinha com a Oban Boilesen

foi assassinado posteriormente em 1971 por militantes da esquerda armada 9

Percebe-se portanto que a Oban tinha caraacuteter paramilitar e unia a iniciativa

privada ao Estado a fim de que o poder de poliacutecia deste fosse fortalecido Sua criaccedilatildeo

empregou portanto um novo tipo de atuaccedilatildeo militar em que o combate ao ldquoinimigo

internordquo contaria com uma forte autonomia de accedilatildeo respaldada pelo sigilo dos decretos

regulamentares e pelo financiamento do empresariado A Oban se consagrava como um

poderoso e promissor modelo de repressatildeo

No entanto o envolvimento de oficiais das Forccedilas Armadas policiais e

empresaacuterios com a repressatildeo poderia assumir proporccedilotildees que fugissem ao controle

9 Para mais informaccedilotildees sobre Henning Albert Boilesen e a relaccedilatildeo do empresariado com a Oban ver o

filme documentaacuterio Cidadatildeo Boilesen (Brasil 2009)

52

militar e configurassem algumas vezes conflitos de interesses Assim com o sucesso

das accedilotildees da Oban no combate aos opositores armados os militares optaram por

ampliar o seu modelo para todo o Brasil desde que incorporasse algumas reformulaccedilotildees

que assegurassem o total controle militar Surgiriam entatildeo os DOI-CODI

Os DOI-CODI eram portanto a institucionalizaccedilatildeo e a sofisticaccedilatildeo do modelo da

Oban Afinal eles coordenavam todas as demais Forccedilas e Poliacutecias sob o comando do

Exeacutercito e estavam espalhados por todas as Regiotildees Militares do paiacutes Eram a nova

estrutura do SISSEGIN implantada por diretrizes secretas que o Conselho de Seguranccedila

Nacional havia formulado Tais diretrizes estabeleceram que para cada um dos

comandos militares haveria um Conselho de Defesa Interna (CONDI) um Centro de

Operaccedilotildees de Defesa Interna (CODI) e um Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees

(DOI) todos sob responsabilidade do comandante do Exeacutercito respectivo denominado

comandante da ldquoZona de Defesa Internardquo (ZDI) O paiacutes ficou assim dividido em seis

ZDI Podiam ser criadas ainda Aacutereas de Defesa Interna (ADI) ou Sub-Aacutereas de Defesa

Interna (SADI) em regiotildees que merecessem cuidados especiais

Aos Conselhos de Defesa Interna (CONDI) cabia assessorar os comandantes das

ZDI e tambeacutem facilitar a esses comandantes a coordenaccedilatildeo de accedilotildees e a necessaacuteria

cooperaccedilatildeo por parte das mais altas autoridades civis e militares com sede nas

respectivas aacutereas de responsabilidade Logo os CONDI podiam ser integrados por

governadores ou seus representantes assim como comandantes das Forccedilas Navais e

Aeacutereas comandantes subordinados secretaacuterios de seguranccedila e comandantes das demais

Poliacutecias ou outras autoridades conforme o comandante da respectiva ZDI julgasse

necessaacuterio Tinham como aacuterea de jurisdiccedilatildeo territorial as Regiotildees Militares cujas sedes

se localizam em Satildeo Paulo Rio de Janeiro (1ordm BPE) Brasiacutelia Minas Gerais Rio Grande

do Sul Bahia Pernambuco e Cearaacute No entanto segundo Fico os CONDI natildeo tiveram

53

funcionamento significativo

Os Centros de Operaccedilotildees de Defesa Interna (CODI) eram oacutergatildeos de planejamento

e coordenaccedilatildeo das medidas de defesa interna dirigidos pelo chefe do Estado-Maior do

Exeacutercito da Regiatildeo e compostos por representantes de todas as Forccedilas bem como da

divisatildeo local de ordem poliacutetica e social das Poliacutecias Civil Militar Federal e da agecircncia

local do Serviccedilo Nacional de Informaccedilotildees (SNI) Entre suas funccedilotildees estavam o

planejamento o controle e a execuccedilatildeo das medidas de defesa interna a coordenaccedilatildeo dos

meios utilizados para esta execuccedilatildeo e a ligaccedilatildeo com todos os escalotildees envolvidos

devendo possibilitar a conjugaccedilatildeo de esforccedilos do Exeacutercito da Marinha da Aeronaacuteutica

do SNI do Poliacutecia Federal e das Secretarias de Seguranccedila Puacuteblica

Jaacute os Destacamentos de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) tinham uma

estruturaccedilatildeo interna tiacutepica composta por setores especializados em operaccedilotildees externas

informaccedilotildees contra-informaccedilotildees interrogatoacuterios e anaacutelises aleacutem de assessoria juriacutedica

e policial e setores administrativos O trabalho nesses destacamentos era ininterrupto

Utilizavam regularmente dois regimes de trabalho um de expediente regular (das 8 agraves

18 horas) e outro atraveacutes de plantotildees de 24 horas por 48 de folga Abaixo visualiza-se a

estrutura orgacircnica dos DOI que sintetiza suas funccedilotildees e sua hierarquia institucional

(FICO 2001 123-125)

54

DOI do Exeacutercito

No organograma acima nota-se que os DOI eram divididos por setores seccedilotildees e

subseccedilotildees Esses satildeo caracterizados por Fico de acordo com suas funccedilotildees e

composiccedilotildees e tambeacutem pelo coronel Freddie Perdigatildeo Pereira em sua monografia que eacute

analisada na segunda frente do estudo aqui traccedilado Percebe-se que essa caracterizaccedilatildeo

feita por Fico e por Pereira eacute muito proacutexima uma vez que eles utilizam os mesmos

termos e palavras para descrever o trabalho ou a formaccedilatildeo de determinado setor ou

seccedilatildeo Diante disso torna-se evidente que ambos os trabalhos se basearam no mesmo

documento que apesar de natildeo ser citado na monografia de Pereira eacute referenciado por

Fico como ldquoSistema de Seguranccedila Interna SISSEGIN Documento classificado como

lsquosecretorsquo [1974] Capiacutetulo 2rdquo Entretanto enquanto o Sistema de Seguranccedila Nacional

como um todo eacute o foco da pesquisa de Fico o DOI eacute o objeto de Pereira o que por

conseguinte o faz apresentar de forma mais detalhada a composiccedilatildeo de cada uma de

suas partes integrantes Logo optou-se aqui por tratar da estrutura interna dos DOI na

Comandante

Seccedilatildeo de contra-informaccedilotildees Turma de comando

Setor de operaccedilotildees de informaccedilotildees Setor de administraccedilatildeo

Turno auxiliar

Assistecircncia juriacutedica

e policial

Seccedilatildeo

administrativa

Seccedilatildeo de busca e

apreensatildeo

Setor de

investigaccedilotildees

Setor de anaacutelise e

informaccedilotildees

Subseccedilatildeo de

interrogatoacuterio Subseccedilatildeo de anaacutelise

55

proacutexima frente de estudo durante a anaacutelise da monografia de Pereira onde

trabalharemos com os DOI-CODI sob o ponto de vista de um de seus agentes ainda

durante a ditadura

Com relaccedilatildeo agrave atuaccedilatildeo dos DOI-CODI dentro do SISSEGIN Maria Celina

DrsquoArauacutejo em Os anos de Chumbo a memoacuteria militar sobre a repressatildeo (1994)

apresenta grandes contribuiccedilotildees para a presente pesquisa uma vez que em sua obra

analisa por meio de depoimentos ineacuteditos de militares a atuaccedilatildeo dos oacutergatildeos de

informaccedilatildeo e repressatildeo poliacutetica durante a ditadura militar

Partindo dessa abordagem de DrsquoArauacutejo destaca-se que diferentemente do que

acontecia na Oban cada um dos DOI-CODI tinha por comandante-geral o chefe do

Estado-Maior do Exeacutercito de sua respectiva Regiatildeo Militar e seu financiamento contava

com recursos orccedilamentaacuterios regulares do governo Logo os DOI-CODI natildeo

estabeleciam uma ligaccedilatildeo direta com o capital privado que entretanto ainda podia

investir de forma indireta na repressatildeo por meio de doaccedilotildees de maacutequinas e serviccedilos

Dessa forma os DOI-CODI tinham uma maior independecircncia financeira que junto com

a centralizaccedilatildeo hieraacuterquica que tambeacutem os caracterizava permitia que suas

investigaccedilotildees e accedilotildees procedessem de forma ainda mais eficiente Afinal esses atributos

evitavam que suas operaccedilotildees estivessem suscetiacuteveis agrave duplicidade de tarefas a

competiccedilotildees e a conflitos de interesses maximizando os seus resultados e tornando-os

uma espeacutecie de sofisticaccedilatildeo da repressatildeo

Aleacutem disso percebe-se que essa sofisticaccedilatildeo dos DOI-CODI tambeacutem era formada

pelo proposital distanciamento ali mantido entre os militares do governo e os agentes

desses oacutergatildeos de repressatildeo Afinal a ditadura ao mesmo tempo em que sancionava a

tortura nos seus ldquoporotildeesrdquo estrategicamente negava a sua existecircncia perante a sociedade

Assim esse cenaacuterio que isentava os governantes e os demais militares relacionados ao

56

poder poliacutetico do paiacutes de qualquer ligaccedilatildeo com a tortura se mantinha atraveacutes da

seguinte configuraccedilatildeo de um lado o torturador ndash que natildeo montou a maacutequina e jamais

efetuaria a tortura num salatildeo do quartel do Exeacutercito se temesse a reaccedilatildeo de seus

comandantes ndash e de outro o seu superior responsaacutevel pela ordem puacuteblica e

beneficiaacuterio direto do poder poliacutetico ndash que sancionava as maacutequinas mas natildeo tocava nos

presos

Dessa forma os DOI responsaacuteveis por accedilotildees que englobavam as prisotildees e os

interrogatoacuterios dos presos poliacuteticos eram instituiccedilotildees que prezavam por natildeo ser

externamente identificadas por seus meacutetodos violentos O sistema funcional dos DOI

era entatildeo complexo e informal de modo que por mais que neles existissem hierarquia e

coordenaccedilatildeo as brechas para que a falta de controle se propagasse eram amplas a fim

de que os meacutetodos natildeo regulamentares tais como as torturas pudessem ser

desempenhados com a eficiecircncia e a recorrecircncia necessaacuterias sem serem relacionados

diretamente a um comando

Diante disso justifica-se que conforme apurado por Maria Celina DrsquoArauacutejo a

versatildeo oficial dos militares ainda possa ser a de que a tortura jamais resultou de

qualquer ordem ou orientaccedilatildeo superior E mesmo quando chega a ser admitida apareccedila

como exceccedilatildeo como abuso ou excesso de poucos Entretanto torna-se aqui evidente a

incoerecircncia dessa versatildeo militar Afinal verifica-se que assim como em todos os

organismos militares nos DOI tambeacutem existiam uma forte hierarquia a ser cumprida

onde apesar de uma estrutura complexa qualquer accedilatildeo deveria ser remetida a um

superior o que sugere que a questatildeo da responsabilidade sempre poderia ser resgatada

Logo se militares reconhecem que existiram ldquoexcessosrdquo na eacutepoca e mesmo assim os

chefes imediatos de tais infratores natildeo tomaram as devidas providecircncias encontra-se

nos DOI entatildeo uma forte incongruecircncia com relaccedilatildeo ao princiacutepio militar de

57

responsabilizaccedilatildeo do chefe-superior Portanto diante dessa constataccedilatildeo de como eram

tratados os torturadores nos DOI percebe-se que apesar de velada em geral a tortura

era um procedimento ali consentido

2 O DOI-CODI por ele mesmo

A anaacutelise ateacute agora feita por meio da historiografia cede aqui lugar para se

concentrar sobre uma fonte especiacutefica pela qual a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

satildeo vistas por um acircngulo mais proacuteximo a partir do olhar de um de seus agentes

enquanto a instituiccedilatildeo ainda estava em atividade Trata-se do trabalho O Destacamento

de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de

combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e perspectivas apresentado em 1978 agrave Escola de

Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie

Perdigatildeo Pereira10

posteriormente apontado por ex-prisioneiros poliacuteticos como o

torturador ldquoNagibrdquo do DOI carioca do iniacutecio dos anos 1970

A referida fonte eacute uma espeacutecie de trabalho final da ECEME estabelecimento de

ensino tradicional do Exeacutercito brasileiro situado no bairro da Praia Vermelha no Rio de

Janeiro cuja missatildeo eacute a preparaccedilatildeo de oficiais superiores para o exerciacutecio de funccedilotildees

de Estado-Maior comando chefia direccedilatildeo e assessoramento dos mais elevados

escalotildees da Forccedila Terrestre 11

Logo eacute fruto de uma espeacutecie de preparaccedilatildeo que o

coronel Pereira estava se submetendo a fim de ocupar algum cargo de chefia dentro do

Exeacutercito

Escrita durante a ditadura militar enquanto os DOI-CODI ainda estavam em

funcionamento embora em menor atividade devido agrave propagaccedilatildeo de denuacutencias sobre

10

Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II 11

ESCOLA de Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) [acesso em 29 jan 2012] Disponiacutevel

em httpwwwecemeensinoebbreceme

58

torturas e mortes ocasionadas dentro do Destacamento a monografia permite trabalhar

diretamente com a visatildeo de um dos agentes do DOI-CODI ainda no ldquocalor da horardquo

como se costuma dizer O tema abordado eacute a atuaccedilatildeo dos DOI durante o seu periacuteodo de

maior efetividade de 1970 a 1973 provavelmente como uma tentativa de fortalecer a

instituiccedilatildeo e reforccedilar o seu poder trazendo agrave tona os ldquovelhos temposrdquo de grande

atividade

Em 1978 momento em que a monografia foi escrita o DOI-CODI havia

diminuiacutedo suas atividades de repressatildeo se restringindo apenas ao papel de investigaccedilatildeo

Como indica o referido coronel no seguinte trecho

Fruto principalmente do trabalho anocircnimo e incansaacutevel dos DOI o

terrorismo no Brasil foi praticamente aniquilado Em funccedilatildeo disso tais

oacutergatildeos foram e continuam sendo alvo de uma das mais virulentas campanhas

difamatoacuterias que a imprensa brasileira e internacional jaacute desencadearam

contra uma instituiccedilatildeo E os DOI que surgiram no fragor da luta e com

estrutura adaptada para enfrentar a accedilatildeo direta no combate aberto

reformulam a sua atuaccedilatildeo [] O efetivo elevado trabalhando atualmente na

Seccedilatildeo de Investigaccedilotildees pode dar ideia do tipo de trabalho que ora eacute

desenvolvido nos DOI com prioridade absoluta Trata-se do levantamento

total das organizaccedilotildees atuantes a partir da vigilacircncia permanente e cerrada

sobre os elementos jaacute identificados [] o trabalho nos DOI deixou de ter

aquele caraacuteter de combate de peito aberto tantas vezes levado a efeito por

seus pioneiros Transformou-se o DOI atual numa verdadeira agecircncia de

informaccedilotildees onde impera o trabalho frio e calculado do analista a teacutecnica

sofisticada de aparelhagem eletrocircnica substituindo a coragem pessoal de

seus elementos

Os DOICODI satildeo e sempre seratildeo as sentinelas atentas e vigilantes de nossa

liberdade (Pereira 1978 28-35)

Essa mudanccedila promovida nos DOI se relaciona diretamente com o momento

vivido pelo Brasil em 1978 Existia entatildeo uma incompatibilidade entre a distensatildeo

59

poliacutetica ldquolenta gradual e segurardquo comandada pelo Presidente Ernesto Geisel a fim de

abrir o paiacutes e instalar futuramente uma democracia e as denuacutencias sobre torturas e

mortes que continuavam a ocorrer dentro dos DOI-CODI e eram com frequecircncia

noticiadas pelos jornais do Brasil e do mundo Assim com o intuito de reverter este

cenaacuterio desfavoraacutevel Geisel optou por exonerar em 1976 o comandante do II Exeacutercito

o general Ednardo DAacutevila Melo afastar do governo no ano seguinte o entatildeo ministro

do Exeacutercito o general Siacutelvio Frota ndash visto por muitos agentes dos DOI como uma

lideranccedila contra a distensatildeo poliacutetica e o enfraquecimento das operaccedilotildees repressoras e

apoiado como eventual candidato agrave Presidecircncia da Repuacuteblica ndash e de forma geral

diminuir a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI no combate direto agrave ldquosubversatildeordquo concentrando suas

atividades apenas na investigaccedilatildeo

Esta atitude logicamente causou resistecircncia entre muitos integrantes dos DOI-

CODI que tentavam provar a necessidade da atuaccedilatildeo repressora da instituiccedilatildeo para a

proteccedilatildeo da Seguranccedila Nacional Essas tentativas incluiacuteam muitas accedilotildees forjadas pelos

proacuteprios agentes dos DOI como atentados a bomba em bancas de jornal instituiccedilotildees que

lutavam contra a ditadura ndash como a sede da OAB no Rio de Janeiro atacada em agosto

de 1980 quando morreu a secretaacuteria Lyda Monteiro ndash e shows populares ndash como a

tentativa frustrada de ataque a bomba de dois agentes do DOI do Rio de Janeiro em

maio de 1980 no show em homenagem ao dia do trabalhador no Riocentro

Outro aspecto dessa fonte que merece tambeacutem ser aqui destacado satildeo as

circunstacircncias pessoais que impulsionaram a sua confecccedilatildeo Afinal se a funccedilatildeo da

ECEME eacute preparar militares para ocupar cargos de chefia dentro do Exeacutercito

certamente a monografia foi um requisito necessaacuterio para que o coronel Pereira se

preparasse para uma promoccedilatildeo na carreira militar Partindo dessa informaccedilatildeo e

juntando-a ao dado que Elio Gaspari apresenta na obra A Ditadura Escancarada (2002

60

184) de que foi oferecido ao mesmo coronel no iniacutecio de 1980 o posto de general de

brigada percebe-se que de fato essa preparaccedilatildeo de Pereira lhe gerou frutos Poreacutem de

acordo com Gaspari para ser general de brigada ele teria que aceitar comandar uma

tropa em uma unidade militar de Satildeo Paulo o que natildeo lhe agradou Preferiu entatildeo a

opccedilatildeo de ir para a reserva e ao mesmo tempo permanecer como contratado em um

cargo na seccedilatildeo de operaccedilotildees do SNI do Rio de Janeiro recebendo no total uma receita

superior agrave de general de Exeacutercito Essa situaccedilatildeo tal como o tema escolhido para sua

monografia eacute mais uma evidecircncia do apreccedilo que coronel Pereira tinha pelo ofiacutecio

investigativo que outrora exerceu nos DOI Diante de sua progressatildeo profissional e do

esvaziamento que os DOI vinham sofrendo o SNI12

se tornava uma opccedilatildeo atraente

pois aleacutem de ser uma instituiccedilatildeo que investigava elementos que ameaccedilavam a

Seguranccedila Nacional estava diretamente ligada ao alto esquadratildeo do Exeacutercito ciacuterculo de

que Pereira fazia parte nesse momento

Com relaccedilatildeo agrave monografia desse coronel muitos pontos interessantes satildeo

destacados Entre eles o detalhamento estrutural dos DOI-CODI

Internamente os CODI eram subdivididos entre trecircs centrais 1- Central de

Informaccedilotildees 2- Central de Operaccedilotildees 3- Central de Assuntos Civis O comando

principal era da 1- Central de Informaccedilotildees que coordenava as investigaccedilotildees locais e

era chefiada pelo dirigente do CODI ou seja pelo chefe do Estado-Maior do Exeacutercito

da aacuterea que deveria ser um general do Exeacutercito Este reunia em sua equipe um

representante local do alto escalatildeo da Aeronaacuteutica da Marinha do SNI e do

Departamento de Poliacutecia Federal o diretor do DOPS e o Comandante do DOI daquela

jurisdiccedilatildeo aleacutem do chefe da 2ordf Seccedilatildeo da Poliacutecia Militar responsaacutevel pela parte de

informaccedilotildees relativas a crimes poliacuteticos Jaacute a 2- Central de Operaccedilotildees e a 3- de

12

Para mais informaccedilotildees sobre a formaccedilatildeo do SNI ver Antunes 2002

61

Assuntos Civis davam suporte agrave equipe da 1- de Informaccedilotildees e para tanto tambeacutem

congregavam em suas equipes representantes das trecircs Forccedilas sendo um representante

do Exeacutercito da Regiatildeo Militar correspondente responsaacutevel por ocupar o cargo de chefe

aleacutem de um representante credenciado da Poliacutecia Civil da Poliacutecia Militar local e de

outros oacutergatildeos quando fosse necessaacuterio para contribuir com alguma anaacutelise especiacutefica

O CODI de cada Regiatildeo Militar tinha por funccedilatildeo centralizar as informaccedilotildees de

caraacuteter ldquosubversivordquo e repassaacute-las ao DOI correspondente para que as operaccedilotildees de

informaccedilotildees fossem realizadas de forma concentrada atraveacutes desse uacutenico oacutergatildeo e por

conseguinte sob um uacutenico comando Assim evitava-se que vaacuterios oacutergatildeos de informaccedilatildeo

ligados a uma das trecircs Forccedilas ou agraves Poliacutecias realizassem suas operaccedilotildees

independentemente de qualquer coordenaccedilatildeo ou planejamento global o que poderia

acabar prejudicando as accedilotildees contra seus ldquoinimigos internosrdquo

Afinal de acordo com as informaccedilotildees levantadas por Pereira em sua monografia

antes dos DOI-CODI serem institucionalizados natildeo foram poucas as vezes que um

desses oacutergatildeos prejudicou a atuaccedilatildeo de outro Em diversos momentos enquanto um

estava realizando uma vigilacircncia sobre determinados elementos ldquosubversivosrdquo por

exemplo outro sem saber da accedilatildeo do primeiro prendia dois ou trecircs desses elementos

Dessa forma os demais membros da mesma organizaccedilatildeo ao saberem da prisatildeo de seus

companheiros natildeo retornavam agrave aacuterea sob vigiacutelia e evitavam ser presos Tambeacutem em

vaacuterias ocasiotildees a documentaccedilatildeo apreendida por determinado oacutergatildeo de seguranccedila ficava

em seu poder e natildeo era encaminhada para outros escalotildees para ser analisada Com essas

informaccedilotildees ldquoencostadasrdquo as accedilotildees armadas de organizaccedilotildees de esquerda que ali

estavam indicadas prosseguiam normalmente sem impedimentos

Percebe-se portanto como a centralizaccedilatildeo de informaccedilotildees e de accedilotildees de

seguranccedila interna implantada pelos DOI-CODI conduziu a resultados positivos para a

62

repressatildeo Natildeo eacute agrave toa que conforme analisado anteriormente a partir da tese de Maria

Celina DrsquoArauacutejo os DOI-CODI satildeo aqui entendidos como a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo

jaacute que os CODI passaram a concentrar e coordenar as informaccedilotildees e atraveacutes dos DOI a

executar de forma concentrada as operaccedilotildees de informaccedilotildees

Oacutergatildeos operacionais dos CODI os Destacamentos de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees

os DOI eram destinados ao trabalho de combate direto ao ldquoinimigo internordquo Para tanto

conforme analisado a partir da monografia de Pereira e da jaacute referida obra de Fico13

os

DOI dividiam-se basicamente entre 1- Setor de operaccedilotildees de informaccedilotildees e 2- Setor de

administraccedilatildeo Tais setores estavam diretamente subordinados ao comandante do

Destacamento daquela Regiatildeo Militar que normalmente deveria ser um tenente-coronel

com vivecircncia na aacuterea de informaccedilotildees Essa patente de tenente-coronel compunha o

ciacuterculo hieraacuterquico de oficiais e a hierarquia de oficiais superiores14

ou seja pertencia

ao acircmbito de convivecircncia desses oficiais e portanto era considerado um deles Isto

significa que os comandantes dos DOI estavam um degrau abaixo do uacuteltimo acircmbito

hieraacuterquico do Exeacutercito o dos oficiais-generais ciacuterculo referente aos chefes dos CODI

que deveriam possuir a patente de general de Exeacutercito

Chefiado pelo subcomandante do DOI o 1- Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees

tinha diretamente subordinado a ele 11- Setor de Investigaccedilatildeo 12- Setor de Anaacutelise e

Informaccedilotildees e 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo Jaacute o 2- Setor de administraccedilatildeo se

subdividia em 21- Assessoria Juriacutedica e Policial e 22- Seccedilatildeo administrativa

Ao 11- Setor de Investigaccedilatildeo cabia fundamentalmente a realizaccedilatildeo de

investigaccedilotildees com a finalidade de identificar e localizar ldquoelementos subversivosrdquo a fim

de repassar as informaccedilotildees para que os agentes da 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo

prendessem os suspeitos e localizassem os seus ldquoaparelhosrdquo (termo designado para

13

Para visualizar o organograma dos DOI voltar agrave paacutegina 54 14

Para mais informaccedilotildees sobre os ciacuterculos hieraacuterquicos e a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II

63

definir o local em que ficavam escondidos os integrantes dos grupos de esquerda que

viviam na clandestinidade) A chefia e a subchefia do 11- Setor de Investigaccedilatildeo era

privativa de oficiais do Exeacutercito e seus integrantes natildeo deveriam ser identificados pelos

elementos a serem presos a fim de que a eficiecircncia da accedilatildeo fosse garantida uma vez que

as suas identificaccedilotildees poderiam ocasionar a fuga dos suspeitos No entanto quando a

situaccedilatildeo exigia os integrantes desse setor poderiam efetuar prisotildees neutralizar

ldquoaparelhosrdquo e apreender material ldquosubversivordquo Esse 11- Setor de Investigaccedilatildeo agia por

meio de diversas turmas de investigaccedilatildeo compostas cada uma por um agente um

auxiliar e um carro normalmente da marca Volkswagen

O 12- Setor de Anaacutelise e Informaccedilotildees tinha por funccedilatildeo fornecer ao comandante

do DOI e aos demais setores seccedilotildees e subseccedilotildees informaccedilotildees estudos e conclusotildees

sobre as organizaccedilotildees ldquosubversivo-terroristasrdquo que atuavam na aacuterea Esse setor era

composto por um chefe sem patente ou ciacuterculo hieraacuterquico preacute-determinados pela

121- Subseccedilatildeo de anaacutelise e pela 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio

A 121- Subseccedilatildeo de anaacutelise tambeacutem natildeo exigia de forma predeterminada a

patente ou o ciacuterculo hieraacuterquico de quem a chefiasse Tinha por funccedilatildeo analisar os

depoimentos prestados pelos presos daquele DOI analisar o material das organizaccedilotildees

ldquoterroristasrdquo que havia sido recolhido pelas turmas da 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo

fornecer subsiacutedios ao chefe do 1- Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees e agrave equipe da

122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio manter para cada organizaccedilatildeo de esquerda uma pasta

com o seu histoacuterico relaccedilatildeo de nomes e codinomes relaccedilatildeo de accedilotildees e uma espeacutecie de

aacutelbum contendo as fichas de qualificaccedilatildeo fotografia atuaccedilatildeo e situaccedilatildeo de cada um de

seus elementos e por fim organizar atualizar e manter o arquivo geral contendo o

dossiecirc de cada elemento fichado

64

Jaacute a 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio era responsaacutevel pelo interrogatoacuterio e por

conseguinte pela aplicaccedilatildeo de torturas nos presos a fim de fazecirc-los falar o que sabiam

Seu chefe deveria ser um oficial do Exeacutercito de niacutevel de capitatildeo ou seja deveria

pertencer ao ciacuterculo hieraacuterquico de oficiais mas natildeo ao meio de oficiais superiores e

sim ao de oficiais intermediaacuterios No entanto a partir do ano de 1971 era preferiacutevel que

ele tivesse o curso B1 da Escola Nacional de Informaccedilotildees (EsNI) Este curso era uma

espeacutecie de especializaccedilatildeo em informaccedilotildees e seguranccedila interna ministrada pela EsNI

escola que havia sido criada pelo SNI durante o ano de 1971 e era a este subordinada

Como a 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio trabalhava ininterruptamente durante 24

horas ela se dividia em trecircs turmas de interrogatoacuterio preliminar cada uma chefiada

tambeacutem por um capitatildeo do Exeacutercito com o curso B1 da EsNI Essas turmas eram

compostas por seis agentes cada e aleacutem disso subordinada ao chefe de cada uma delas

existia uma turma auxiliar encarregada da carceragem e da datilografia de documentos

Jaacute a 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo tinha por ofiacutecio efetuar prisotildees ldquocobrir

pontosrdquo (preparar uma emboscada para prender os militantes esquerdistas no momento

em que se encontravam em algum ponto anteriormente combinado) neutralizar

ldquoaparelhosrdquo apreender material ldquosubversivordquo coletar dados que possibilitassem o

levantamento de elementos ldquosubversivosrdquo conduzir presos ao DOPS auditorias

hospitais etc O chefe deveria ser um oficial do Exeacutercito sem predeterminaccedilatildeo de

patente militar e sua equipe se dividia em trecircs grupamentos ldquoAB e Crdquo Cada um deles

era composto por quatro turmas de busca e apreensatildeo que tinham cerca de trecircs ou cinco

agentes e possuiacuteam cada uma um carro espaccediloso muitas vezes dos modelos C14 Opala

ou Kombi equipado com raacutedio Aleacutem disso a 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo

tambeacutem era composta por quatro turmas de coletas de dados que tinham por missatildeo

reunir informaccedilotildees sobre os ldquosubversivosrdquo em universidades coleacutegios etc Cada uma

65

dessas turmas era constituiacuteda por dois elementos um oficial da PM da regiatildeo ou um

delegado de poliacutecia e um motorista que normalmente dirigia um carro de marca

Volkswagen com raacutedio

Ligada ao 2- Setor de administraccedilatildeo a 22- Seccedilatildeo administrativa garantia o apoio

logiacutestico ao DOI ou seja organizava o pedido de gecircneros alimentiacutecios bem como

outros utensiacutelios e equipamentos necessaacuterios Esta seccedilatildeo natildeo tinha nenhum tipo de

exigecircncia de patente ou ciacuterculo hieraacuterquico para o cargo de chefe Jaacute a 21- Assessoria

Juriacutedica e Policial era chefiada por um delegado de poliacutecia e tinha por missatildeo

assessorar o Comandante do DOI em assuntos judiciais elaborar a documentaccedilatildeo

formal e legal referente ao material apreendido e agraves confissotildees dos prisioneiros e

controlar a menagem dos presos que fossem liberados

A menagem estipulada pelo Coacutedigo Processual Militar criado pelo decreto-lei

1002 de outubro de 1969 era uma espeacutecie de prisatildeo cautelar concedida ao militar ou

ao civil que tivesse praticado um crime de cunho militar com previsatildeo de pena privativa

de liberdade O local de cumprimento da menagem era a cidade onde residisse o

suspeito no momento do crime ou a sede do oacutergatildeo que tivesse investigando a sua accedilatildeo

Como a partir do AI-5 os suspeitos de crimes poliacuteticos passaram a ser julgados pela

Justiccedila Militar e o instituto do habeas corpus foi suprimido atraveacutes da menagem os

suspeitos detidos poderiam ser levados agrave sede do DOI-CODI da respectiva Regiatildeo

Militar Afinal era neste oacutergatildeo que as investigaccedilotildees sobre os crimes poliacuteticos de

determinada aacuterea se concentravam A menagem tinha por fundamento evitar o conviacutevio

do acusado ateacute o seu julgamento em primeira instacircncia com pessoas que jaacute estivessem

condenadas Dessa forma a validade da menagem terminava a partir da abertura de um

processo condenatoacuterio contra o suspeito quando entatildeo este seria transferido para uma

Delegacia de Poliacutecia tal como o DOPS por exemplo para ser enfim julgado e poder se

66

fosse o caso cumprir sua pena em um presiacutedio convencional Poreacutem ateacute isso acontecer

caso fosse enquadrado como um possiacutevel criminoso poliacutetico esse suspeito poderia ficar

detido no DOI correspondente por ateacute trinta dias podendo sua prisatildeo ainda ser

prorrogada por mais sessenta dias

A menagem era entatildeo um respaldo legal tanto para o isolamento do preso poliacutetico

nos quarteacuteis que sediavam os DOI quanto se fosse o caso para o acompanhamento de

sua vida em liberdade ateacute o dia de seu julgamento Caso fosse diagnosticado pelos

agentes do respectivo DOI que o suspeito jaacute tivesse concedido todas as informaccedilotildees que

tinha e natildeo representasse perigo agrave Seguranccedila Nacional a instituiccedilatildeo poderia solicitar ao

juiz a sua liberaccedilatildeo a fim de que a sua menagem fosse cumprida em liberdade Quando

isto ocorria o suspeito deveria ficar na mesma cidade que havia sido preso ateacute o seu

julgamento em primeira instacircncia

Diante dos organogramas dos CODI e dos DOI aqui traccedilados evidencia-se que

existiam diferenccedilas nas patentes hieraacuterquicas dos chefes de cada um desses oacutergatildeos

Enquanto o chefe dos CODI era o chefe de Estado-Maior do Exeacutercito de cada Regiatildeo

Militar ou seja um general de Exeacutercito que por conseguinte pertencia ao ciacuterculo

hieraacuterquico de oficiais-generais localizado no topo da hierarquia militar o chefe de

cada DOI era um tenente-coronel patente que se insere no ciacuterculo hieraacuterquico de

oficiais superiores ou seja imediatamente abaixo do de oficiais-generais Assim como

os DOI eram o braccedilo operacional dos CODI ou seja a eles subordinados o fato de seus

chefes estarem obrigatoriamente no ciacuterculo hieraacuterquico abaixo dos dirigentes dos CODI

leva a crer que dentro dos DOI-CODI havia de fato um respeito agrave hierarquia militar

Este respeito jaacute foi aqui destacado por meio da anaacutelise historiograacutefica baseada na

tese Maria Celina DrsquoArauacutejo (1994) que defende a ideia de que o princiacutepio da

obediecircncia hieraacuterquica apesar de velado existia nos DOI-CODI logo como a tortura

67

fazia parte de suas accedilotildees ela era consentida Afinal se laacute existiam chefias e nelas a

hierarquia militar era minimamente respeitada isso sinaliza que as accedilotildees eram

comandadas por chefes que tinham o consentimento de seus chefes diretos para darem

tal ordem Portanto a tortura impetrada pelas turmas de interrogatoacuterio preliminar era

consentida pelo capitatildeo que as chefiava pelo capitatildeo que comandava a respectiva

Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio a que elas estavam subordinadas pelo chefe do Setor de

Anaacutelise e Informaccedilotildees que chefiava o chefe dessa Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio pelo

subcomandante do DOI que era responsaacutevel pelo Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees a

que o Setor de Anaacutelise e Informaccedilotildees estava vinculado pelo tenente-coronel que

comandava o DOI e estava hierarquicamente acima do chefe do Setor de Anaacutelise e

Informaccedilotildees e pelo general do Exeacutercito que dirigia o CODI e tinha o comandante do

DOI a ele subordinado Logo o DOI-CODI foi construiacutedo de forma tatildeo centralizada que

a maioria das accedilotildees feitas por algum de seus integrantes passava por toda a cadeia

hieraacuterquica nele envolvida

Assim se torna mais uma vez evidente que a tortura como meacutetodo de

interrogatoacuterio quando utilizada pelos agentes do DOI era consentida por seus

superiores e natildeo um fenocircmeno isolado ou mesmo ldquoexcesso de poucosrdquo como muitos

militares costumam argumentar Esta argumentaccedilatildeo que aparentemente encontra

fundamento no alto grau de autonomia e independecircncia que os DOI possuiacuteam eacute

derrubada quando se evidencia que estes eram autocircnomos e independentes apenas em

relaccedilatildeo a batalhotildees e outras instituiccedilotildees militares Afinal os DOI foram programados

para atuar a par das subordinaccedilotildees preacute-existentes em outros oacutergatildeos podendo congregar

agentes de instacircncias militares poliacutecias e Forccedilas diferentes entre si mas sem deixar de

respeitar a hierarquia do Exeacutercito inserida em seu interior tendo por direccedilatildeo maacutexima o

Chefe de Estado-Maior do Exeacutercito

68

Outro ponto interessante que a caracterizaccedilatildeo do organograma dos DOI ajuda a

revelar eacute o fato do cargo de chefe da Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio ser privativo de um

oficial do Exeacutercito de niacutevel de capitatildeo ou seja que deveria pertencer ao ciacuterculo

hieraacuterquico de oficiais intermediaacuterios excluindo-se das atividades afeitas agrave posiccedilatildeo de

membros do ciacuterculo hieraacuterquico dos oficiais superiores e dos oficiais-generais onde se

encontravam os homens que governavam o paiacutes Logo por traacutes dessa condiccedilatildeo de

chefia havia a tentativa de manter a responsabilidade direta dos atos proferidos nessa

Subseccedilatildeo longe do ciacuterculo de oficiais superiores ou de oficiais-generais instacircncias

maacuteximas na hierarquia do Exeacutercito Dessa forma as torturas executadas durante os

interrogatoacuterios natildeo seriam relacionadas aos ocupantes das altas patentes do Exeacutercito

que durante a ditadura eram os que estavam agrave frente do governo brasileiro Essa

medida era portanto para dissociar a imagem dos governantes com o que ocorria nos

porotildees

No entanto eacute notaacutevel que indiretamente o governo ditatorial apoiasse as torturas

que as turmas de interrogatoacuterio preliminar executavam nos DOI-CODI uma vez que

obviamente os governantes tinham conhecimento sobre a determinaccedilatildeo de que os

agentes dessas turmas e os chefes da Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio deveriam ter

preferencialmente uma espeacutecie de especializaccedilatildeo em informaccedilotildees e seguranccedila

ministrada pela EsNI Nesta escola ndash ligada ao SNI que era composto pelas mais altas

patentes do Exeacutercito e diretamente ligado ao alto escalatildeo do governo ndash os alunos

provavelmente recebiam instruccedilotildees sobre os meacutetodos de tortura a serem aplicados

durante o serviccedilo

Aleacutem disso o fato do chefe e dos demais componentes da Subseccedilatildeo de

interrogatoacuterio serem ligados ao ciacuterculo de oficiais intermediaacuterios do Exeacutercito tambeacutem

vai ao encontro da anaacutelise historiograacutefica sobre a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

69

aqui apresentada a partir dos conceitos de Martins Filho de cizacircnia militar palaacutecio e

caserna Afinal a caserna era composta por militares de meacutedias e baixas patentes que

durante os primeiros anos da ditadura lutaram internamente por atuarem no combate ao

ldquoinimigo internordquo a fim de terem uma maior participaccedilatildeo na poliacutetica o que ocasionou

algumas cizacircnias militares Foi justamente por temer o resultado dessas cizacircnias que o

palaacutecio formado pelos militares de altas patentes que possuiacuteam cargos no governo aos

poucos cedeu esses poderes agrave caserna e assim o aparato de seguranccedila nacional foi

sendo instituiacutedo e dentro dele o SISSEGIN e os DOI-CODI Logo como eacute na

Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio e tambeacutem na Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo onde a atuaccedilatildeo

de interrogar torturar e prender traz os poderes poliacuteticos extras que a caserna

historicamente reivindicava percebe-se que a utilizaccedilatildeo de seus militares para compor

essas equipes era mais uma forma de manter a unidade militar contendo possiacuteveis

cizacircnias

Essa perspectiva torna-se completa quando se identifica que no momento em que

tais atribuiccedilotildees passaram a ser retiradas dos militares da caserna essas cizacircnias natildeo

mais puderam ser contidas Afinal conforme jaacute evidenciado anteriormente quando a

partir do governo de Geisel as atividades de busca apreensatildeo e interrogatoacuterio dos DOI

foram sendo abolidas a caserna passou a reagir posicionando-se contraacuteria agrave cuacutepula do

governo que defendia a abertura poliacutetica passando a apoiar a candidatura presidencial

de militares que defendessem a continuidade de tais atribuiccedilotildees aos DOI e ateacute mesmo

forjando situaccedilotildees terroristas tais como os diversos ataques a bomba que ocorreram na

eacutepoca como forma de endossar a necessidade das atuaccedilotildees repressivas desenvolvidas

pelos DOI

A monografia do coronel Pereira aqui analisada pode tambeacutem ser vista como

mais uma dessas reaccedilotildees da caserna Afinal durante toda a escrita de Pereira haacute uma

70

necessidade de comprovar a eficiecircncia dos DOI na atividade de proteger a seguranccedila

interna do paiacutes Percebe-se assim que Pereira apesar de ser coronel e por conseguinte

jaacute estar entre os oficiais superiores nesse momento ainda se via ligado de alguma forma

aos DOI Talvez porque a histoacuteria de sua carreira militar estivesse totalmente

relacionada com as atividades que ele laacute desempenhou e por isso acreditasse que

enquanto tais atividades continuassem sendo desenvolvidas o seu trabalho tambeacutem

continuaria a ser reconhecidamente importante

Os setores seccedilotildees e subseccedilotildees do DOI normalmente seguiam a configuraccedilatildeo aqui

exposta poreacutem nota-se que suas equipes natildeo eram fixas ou seja poderiam variar de

acordo com as necessidades das operaccedilotildees que surgissem Os DOI foram assim

concebidos como organismos instaacuteveis pois dependendo da gravidade e da quantidade

de accedilotildees armadas que deveriam ser reprimidas o nuacutemero de agentes poderia aumentar

ou diminuir Dessa forma os DOI se adaptavam a diversas circunstacircncias a fim de

combater com eficiecircncia o ldquoterrorismordquo e a ldquosubversatildeordquo

Grande parte dessa necessidade de adaptaccedilatildeo vinha da sobrevalorizaccedilatildeo da

guerrilha urbana entre os militares ligados a organismos de repressatildeo Uma vez que ao

verem a forma organizada e ousada com que a esquerda armada montava suas accedilotildees

sentiram que a estrutura repressiva da eacutepoca anterior agrave experiecircncia da Oban e ao

surgimento dos DOI natildeo estava preparada para combatecirc-las e diante disso

interpretaram tais accedilotildees esquerdistas como uma forte ameaccedila ao paiacutes Afinal as

instituiccedilotildees responsaacuteveis pela repressatildeo direta como por exemplo os DOPS estavam

engessadas por corporaccedilotildees fixas que combatiam as referidas accedilotildees de forma pouco

efetiva reprimindo-as sem a centralizaccedilatildeo e a grandiosidade necessaacuterias

A todos estes atos de banditismo [fazendo referecircncia a assaltos a banco a

sequestros de embaixadores e outras accedilotildees efetuadas pela esquerda armada

71

entre os anos de 1969 e 1970] a nossa Poliacutecia Civil e a Poliacutecia Militar

assistiam sem nada poder fazer Vaacuterias radiopatrulhas foram incendiadas e

os poucos soldados que ousavam enfrentar os terroristas eram

impiedosamente mortos Por que isso acontecia Porque as nossas poliacutecias

foram surpreendidas e natildeo estavam preparadas para um novo tipo de luta que

surgia a guerrilha urbana (Pereira 1978 10)

Entatildeo para conter a guerrilha urbana surgiu a necessidade de um oacutergatildeo de

repressatildeo centralizado e de estrutura maleaacutevel que tornasse possiacutevel e praacutetico reprimir

determinada accedilatildeo armada de acordo com a sua grandiosidade aumentando e diminuindo

o corpo funcional conforme o esforccedilo exigido Em meio a esta concepccedilatildeo de repressatildeo

a estrutura dos DOI foi criada tornando a repressatildeo poliacutetica mais combativa e

consequentemente aumentando a sua eficiecircncia

Com tamanha flexibilidade os DOI movimentavam pessoal e material variaacutevel

com grande mobilidade e agilidade Essa destacada autonomia dos DOI era travada

portanto em benefiacutecio de um aproveitamento maacuteximo de suas accedilotildees jaacute que eram

oacutergatildeos destinados ao combate direto agraves organizaccedilotildees subversivo-terroristas e sua

missatildeo era desmontar toda a estrutura de pessoal e de material destas organizaccedilotildees

bem como impedir a sua reorganizaccedilatildeo (Pereira 1978 22)

A utilizaccedilatildeo de codinomes pelos integrantes das turmas de interrogatoacuterio

preliminar era outra face dessa autonomia de trabalho dos DOI Esse costume era um

benefiacutecio de proteccedilatildeo para a instituiccedilatildeo e tambeacutem para tais militares Afinal como

muitos deles possivelmente aplicavam torturas nos presos durante os interrogatoacuterios o

sigilo com relaccedilatildeo aos seus nomes verdadeiros poderia inviabilizar posteriores

denuacutencias e por conseguinte fortes indiacutecios de que nos DOI a tortura era uma praacutetica

institucionalizada

Aleacutem disso essa mesma autonomia tambeacutem permitia que seus agentes para natildeo

serem reconhecidos pelos ldquoinimigosrdquo durante uma accedilatildeo de prisatildeo por exemplo natildeo

72

trabalhassem de farda e usassem trajes civis o que seria impensaacutevel em qualquer quartel

militar

Como norma de seguranccedila para o trabalho diaacuterio eacute obrigatoacuterio o uso de

traje civil (esporte ou social) de acordo com a missatildeo a desempenhar

Mesmo os oficiais e os comandantes de seccedilatildeo devem de preferecircncia usar

trajes esporte para se confundirem com a maioria dos integrantes do DOI

(Pereira 1978 25)

Os cabelos longos eram outra caracteriacutestica que apesar de improacutepria entre as

demais instituiccedilotildees militares a autonomia dos DOI imprimia a seus agentes conforme

evidenciado no seguinte trecho o cabelo deve ter o tamanho normalmente usado pela

maioria da populaccedilatildeo sendo proibido o cabelo com corte do ldquotipo militarrdquo (Pereira

1978 25) Percebe-se portanto que junto aos trajes civis os cabelos maiores

completavam o visual que os militares dos DOI precisavam ter para que evitassem ser

facilmente reconhecidos nas ruas Dessa forma tentavam minimizar os riscos de serem

percebidos durante uma operaccedilatildeo de investigaccedilatildeo ou minutos antes de efetuarem uma

accedilatildeo de prisatildeo Poreacutem apesar da utilizaccedilatildeo dessas caracteriacutesticas natildeo usuais ser em

benefiacutecio das funccedilotildees que exerciam nos DOI esses militares muitas vezes natildeo eram

compreendidos por aqueles que nas palavras de Pereira natildeo possuiacuteam uma

mentalidade de informaccedilotildees e por conta disso viam no uso do cabelo grande um ato de

indisciplina Essa incompatibilidade de interpretaccedilotildees portanto gerava alguns

transtornos para os agentes dos DOI que mesmo condecorados pela eficiecircncia de seus

serviccedilos de informaccedilotildees agraves vezes passavam por alguns constrangimentos

Jaacute aconteceu o fato de um oficial ou sargento de um DOI necessitar

comparecer a sua Unidade Militar a fim de tratar qualquer problema pessoal

ou mesmo de um assunto de serviccedilo Estes elementos eram barrados agrave

entrada de seus quarteacuteis e recebiam ordem dos comandantes para

73

regressarem cortarem o cabelo e a barba e se apresentarem fardados ou com

a posse de um documento de identidade assinado pelo Comandante do

Exeacutercito autorizando o uso do traje civil e o porte de arma Este

procedimento por parte de algumas autoridades militares daacute a entender que

os elementos do Serviccedilo de Informaccedilotildees satildeo indisciplinados

desenquadrados e sem espiacuterito militar Entretanto eacute necessaacuterio frisar que a

realidade eacute que por exemplo no DOI-CODI do II Exeacutercito [DOI-CODISP]

em trecircs anos 90 componentes foram condecorados com a medalha do

pacificador com palma (Pereira 1978 26)

A medalha do pacificador com palma eacute em tempo de paz a mais alta

condecoraccedilatildeo concedida pelo Comandante do Exeacutercito aos militares e civis brasileiros

que no exerciacutecio de sua funccedilatildeo ou no cumprimento de missotildees de caraacuteter militar

tenham se destacado por atos pessoais de abnegaccedilatildeo coragem e bravura com risco de

vida Portanto muitas vezes os agentes dos DOI que exerciam a funccedilatildeo de prender

integrantes de uma organizaccedilatildeo muito procurada de ldquodesmontar aparelhosrdquo de

destacada importacircncia investigativa ou mesmo de conseguir informaccedilotildees cruciais

durante interrogatoacuterios eram condecorados pelo Comandante do respectivo Exeacutercito

pelo serviccedilo prestado agrave paacutetria Logo percebe-se que mesmo existindo os

constrangimentos institucionais anteriormente citados os oficiais envolvidos nos DOI

eram prestigiados por seus serviccedilos e se sentiam valorizados e incentivados a designaacute-

los com rapidez e eficiecircncia

A partir disso evidencia-se mais uma vez que a tortura nos DOI era consentida

pelos militares superiores e ateacute mesmo incentivada pois atraveacutes do ldquoauxiacuteliordquo que

prestava aos interrogatoacuterios as informaccedilotildees poderiam ser mais faacutecil e rapidamente

conseguidas e grande quantidade de suspeitos presos ldquoaparelhos desmontadosrdquo e

materiais ldquosubversivosrdquo recolhidos Como a presteza desse serviccedilo era almejada tantos

pelos agentes dos DOI interessados no destaque e no reconhecimento militar quanto

74

por seus superiores que vislumbravam neutralizar o quanto antes a ameaccedila que o

ldquoinimigo internordquo representava para o governo ditatorial a tortura parecia ser nos DOI

um meio que se justificava pelos fins

Assim a centralizaccedilatildeo a flexibilidade a autonomia e o consentimentoincentivo agrave

tortura pautavam o ldquoeficienterdquo serviccedilo de repressatildeo dos DOI conforme se pode apurar a

partir dos dados do DOI-CODISP levantados ateacute 30 de junho de 1972 e apresentados

na monografia do coronel Pereira

Subversivos terroristas levantados no Brasil 4400

Quedas impostas pelos oacutergatildeos de seguranccedila no territoacuterio nacional 2800

Quedas impostas pelos oacutergatildeos de seguranccedila do II Exeacutercito (inclusive DOI-

CODI) 1600

Quedas impostas pelo DOI-CODI do II Exeacutercito 1400

Quedas impostas pelos outros oacutergatildeos de seguranccedila da aacuterea do II Exeacutercito

200

Periacuteodo de 23 de janeiro de 1969 a 30 de junho de 1972

Subversivo-terroristas que fizeram curso de guerrilha no exterior 340

Subversivo-terroristas que fizeram curso de guerrilha em Cuba 240

Situaccedilatildeo dos 4400 subversivo-terroristas levantados

Foragidos 1600

Liberados 900

Mortos em combate 100

Presos 1490

Banidos 140

Estes resultados vecircm demonstrar a eficiecircncia operacional do destacamento

neste tipo de guerra especial Natildeo eacute agrave toa que os inimigos assim reconhecem

ao destacamento esta assertiva encontrada na revista Times e no panfleto

Quinzenal (maio de 76) distribuiacutedos recentemente

ldquoSatildeo Paulo criou a mais eficiente e admiraacutevel maacutequina repressiva vista ateacute

hoje no mundo ndash a Operaccedilatildeo Bandeirantes que comeccedilou como uma alianccedila

temporaacuteria entre a poliacutecia local as vaacuterias seccedilotildees de inteligecircncia das trecircs

forccedilas armadas e o SNIrdquo (Pereira 1978 27)

75

Entretanto esse perigoso poder excepcional dos DOI-CODI tomou proporccedilotildees

grandiosas Em meados dos anos 1970 mais especificamente apoacutes o fim da guerrilha do

Araguaia no iniacutecio de 1974 as organizaccedilotildees clandestinas armadas estavam derrotadas

e em contrapartida os DOI-CODI se encontravam em pleno vapor com sua atuaccedilatildeo e

seu aparato institucional ampliado e especializado Tornou-se dessa forma

indispensaacutevel para a sobrevivecircncia do SISSEGIN encontrar novos ldquoinimigos internosrdquo

O foco de ameaccedila passou entatildeo a ser o envolvimento de elementos do Partido

Comunista Brasileiro (PCB) no Movimento Democraacutetico Brasileiro (MDB) partido de

oposiccedilatildeo consentida pelo governo e a atuaccedilatildeo repressiva dos DOI-CODI encontrou

argumentos para continuar em atividade Poreacutem como a declarada ldquoguerra internardquo

havia se esgotado e o paiacutes jaacute se preparava para dar lugar a um futuro democraacutetico o

poder de accedilatildeo dos DOI-CODI comeccedilou a parecer abusivo e negativo ao regime Diante

disso muitas foram as tentativas da caserna e dos demais militares a ela relacionados de

provar a importacircncia e a necessidade dos DOI-CODI para a defesa do paiacutes entre elas a

monografia aqui analisada No entanto tais tentativas natildeo conseguiram evitar que esses

oacutergatildeos sofressem num primeiro momento a reduccedilatildeo de suas atividades e no iniacutecio da

deacutecada de 1980 a extinccedilatildeo

3 O DOI-CODI pelos prisioneiros

Enfim na uacuteltima frente de estudo deste capiacutetulo a anaacutelise sobre a formaccedilatildeo e a

atuaccedilatildeo dos DOI-CODI recai sobre a memoacuteria de seis de seus ex-prisioneiros poliacuteticos

Vale lembrar que estes estiveram detidos no DOI-CODI do Rio de Janeiro durante o

segundo semestre do ano de 1970 e suas memoacuterias foram narradas recentemente entre

os anos de 2002 e 2004 quando foram por mim entrevistados Assim o trabalho sobre

esses depoimentos aqui se concentra na interpretaccedilatildeo que fazem a partir da construccedilatildeo

76

de suas memoacuterias sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI e em como suas

perspectivas dialogam com a frente historiograacutefica e com a monografia do coronel

Pereira abordadas anteriormente

Como o objetivo aqui traccedilado eacute analisar as diversas maneiras pelas quais a

historiografia o coronel Pereira e os presos veem a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-

CODI optou-se por apresentar as trajetoacuterias dos entrevistados no proacuteximo capiacutetulo

Essas junto com o conteuacutedo aqui levantado constroem as bases para a anaacutelise travada

na parte final da presente dissertaccedilatildeo onde se aborda a partir de um estudo mais

concentrado nas memoacuterias dos ex-prisioneiros entrevistados o cotidiano do DOI-

CODIRJ

Entretanto a fim de utilizar essas memoacuterias para a abordagem dialeacutetica aqui

desenhada natildeo pode ser dispensada a aplicaccedilatildeo de um olhar criacutetico tiacutepico a anaacutelises

histoacutericas problematizando-as de forma a perceber suas lacunas e modificaccedilotildees

decorrentes do tempo Tais memoacuterias satildeo inconscientemente fluidas pois estatildeo

diretamente ligadas a emoccedilotildees aleacutem de sofrerem muitas influecircncias do momento em

que satildeo narradas conforme bem elucida Pierre Nora (1993)

A memoacuteria eacute a vida sempre carregada por grupos vivos e nesse sentido ela

estaacute em permanente evoluccedilatildeo aberta agrave dialeacutetica da lembranccedila e do

esquecimento inconsciente de suas deformaccedilotildees sucessivas vulneraacutevel a

todos os usos e manipulaccedilotildees suscetiacutevel de longas latecircncias e de repentinas

revitalizaccedilotildees A histoacuteria eacute a reconstruccedilatildeo sempre problemaacutetica e incompleta

do que natildeo existe mais A memoacuteria eacute um fenocircmeno sempre atual um elo

vivido no eterno presente a histoacuteria uma representaccedilatildeo do passado (Nora

1993 9)

Eacute portanto imprescindiacutevel para este estudo perceber que por traacutes dessa fluidez

das memoacuterias dos depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ age um

77

elemento fundamental o presente Logo a feliz expressatildeo de Robert Frank (1999) o

presente do passado elucida a anaacutelise de forma a colocar em destaque a forte influecircncia

que a temporalidade vivida no momento em que as entrevistas foram concedidas tem

para a construccedilatildeo de suas narrativas

Trata-se de fontes que estatildeo marcadas pelo proacuteprio presente inerentes a ele

qualquer que seja a eacutepoca os depoimentos de testemunhas vivas as fontes

orais Aiacute haacute a contemporaneidade intriacutenseca entre o historiador e o ator

(Frank 1999 103)

Por isso eacute aqui crucial considerar o momento das entrevistas Afinal entre 2002 e

2004 o Brasil jaacute vivia uma democracia consolidada onde antigos oposicionistas agrave

ditadura militar se encontravam no poder Fernando Henrique Cardoso exilado no Chile

ateacute o ano de 1968 e na deacutecada de 1970 apoiador convicto do Movimento Democraacutetico

Brasileiro (MDB) havia sido presidente do Brasil entre os anos de 1995 e 2002 Jaacute

Lula ex-liacuteder sindical que havia comandado algumas das mais importantes greves na

virada das deacutecadas de 1970 para 1980 venceu a campanha presidencial em 2002 e se

tornou no ano seguinte o primeiro ex-operaacuterio a presidir o paiacutes Aleacutem disso as pastas

ministeriais de seu governo foram formadas por antigos opositores agrave ditadura tal como

o ex-liacuteder do movimento estudantil Joseacute Dirceu e a partir de 2005 por Dilma

Rousseff ex-militante de duas das organizaccedilotildees de esquerda que optaram na eacutepoca pela

luta armada o Comando de Libertaccedilatildeo Nacional (COLINA) e a Vanguarda Armada

Revolucionaacuteria Palmares (VAR-Palmares) Logo pode-se dizer que com relaccedilatildeo agrave

memoacuteria poliacutetica de vencidos nos anos de chumbo da ditadura os depoentes se

transformaram em vencedores nos tempos democraacuteticos e obviamente a leitura do

passado de prisatildeo e tortura foi iluminada por esse presente

78

Ressalte-se ainda que os depoimentos se vinculavam agrave implantaccedilatildeo da Comissatildeo

de Anistia por meio da Lei nordm 1055902 que atribuiacutea ao Estado a funccedilatildeo de anistiar e

reparar financeiramente todos os cidadatildeos que tivessem vivenciado quaisquer atos de

exceccedilatildeo incluindo torturas prisotildees arbitraacuterias demissotildees e transferecircncias por razotildees

poliacuteticas ocorridas durante o periacuteodo de 18 de setembro de 1946 ateacute 5 de outubro de

1988 Afinal a reparaccedilatildeo soacute poderia ser concedida pela Comissatildeo de Anistia apoacutes a

anaacutelise de um requerimento contendo as memoacuterias das viacutetimas sobre o periacuteodo em

questatildeo escritas individualmente Como na eacutepoca alguns dos depoentes jaacute haviam

construiacutedo suas memoacuterias prisionais para compor o referido requerimento este deve ser

considerado como um importante fator de influecircncia sobre as narrativas de suas

entrevistas

Em contraste com o que foi apresentado a partir da abordagem historiograacutefica e da

monografia do coronel Pereira Fernando Palha Freire um dos ex-prisioneiros do DOI-

CODIRJ destaca a importacircncia da contribuiccedilatildeo inicial dada pelos policiais civis do

DOPS para a utilizaccedilatildeo da violecircncia em favor da extraccedilatildeo de informaccedilotildees Afinal por

mais que os oacutergatildeos de repressatildeo anteriores agrave criaccedilatildeo dos DOI-CODI natildeo estivessem

devidamente preparados para combater as accedilotildees efetuadas pela esquerda armada seus

agentes de fato haviam acumulado uma experiecircncia em interrogatoacuterios Esta num

primeiro momento era importante uma vez que os militares ateacute entatildeo concentravam

sua formaccedilatildeo sobre a atuaccedilatildeo na guerra declarada natildeo possuindo as maliacutecias

necessaacuterias aos interrogatoacuterios

[] a Poliacutecia Civil tinha os caras mais preparados pra tortura mesmo

Porque jaacute vinham haacute muitos anos jaacute tinham a praacutetica da tortura O militar

batia de frente ele era capaz de te matar mas ele ainda natildeo tinha digamos o

seguinte a essecircncia da tortura Por exemplo um coronel virou pro cara e

disse assim - ldquoO senhor eacute um comunistardquo aiacute ele disse assim - ldquoE o senhor eacute

79

uma bestardquo Ele matou o cara quer dizer matou sem colher o que queria

Um policial civil poderia ateacute matar o cara mas antes colheria o que queria

eles tinham a praacutetica da tortura Depois os militares se aperfeiccediloaram []

(Freire 28 jun 2004)

No entanto indo ao encontro do que foi abordado pelas outras duas frentes de

estudo aqui traccediladas Ceciacutelia Coimbra tambeacutem ex-prisioneira do DOI-CODIRJ

evidencia a eficiecircncia desse oacutergatildeo com relaccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo A partir de uma situaccedilatildeo

especiacutefica de sua prisatildeo ela percebe como o niacutevel de organizaccedilatildeo do serviccedilo de

informaccedilotildees dos DOI era superior ao do DOPS

Fomos presos eu e meu marido e levados para o DOPS em agosto de 1970

[] quando deram vistoria laacute em casa encontraram um documento que por

ironia do destino era sobre seguranccedila [] Eu fiquei dois dias e meio no

DOPS sendo interrogada sobre o tal documento que nem eu nem o Novaes

falaacutevamos diziacuteamos que natildeo sabiacuteamos de onde era Dois dias e meio depois

quando noacutes fomos para o DOI-CODI logo eles identificaram de onde era o

documento Para vocecirc ver o niacutevel de competecircncia do serviccedilo de informaccedilotildees

do DOI-CODI comparado ao do DOPS O DOPS era ldquomerdinhardquo comparado

com a eficiecircncia do DOI-CODI (Coimbra 30 nov 2004)

Percebe-se assim tanto pela historiografia e pela monografia do coronel Pereira

quanto pela memoacuteria de ex-prisioneiros poliacuteticos que a centralizaccedilatildeo de informaccedilotildees

nos CODI e a relaccedilatildeo direta que esses travavam com os DOI traziam uma agilidade agraves

anaacutelises que natildeo havia nos demais oacutergatildeos Logo a forma centralizada e orquestrada

com que os DOI-CODI agiam significava uma profissionalizaccedilatildeo cada vez maior da

repressatildeo poliacutetica ou seja a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo

Assim apesar de serem instituiccedilotildees distintas a atuaccedilatildeo dos CODI e dos DOI

estavam totalmente interligadas Como apurado por meio do estudo historiograacutefico e

dos dados contemplados na monografia do coronel Pereira enquanto aos CODI cabia

80

concentrar e analisar as informaccedilotildees sobre a seguranccedila interna de suas Regiotildees

Militares aos DOI cabia a partir das informaccedilotildees passadas pelos CODI atuar

diretamente na repressatildeo aos ldquoinimigos internosrdquo e extrair de seus prisioneiros poliacuteticos

informaccedilotildees a serem repassadas aos CODI Diante dessa forte ligaccedilatildeo essas duas

instituiccedilotildees ficaram conhecidas como se fossem um uacutenico oacutergatildeo por meio da sigla

DOI-CODI Essa simbiose entre os CODI e os DOI ficou marcada sobretudo nas

memoacuterias de suas viacutetimas conforme se pode verificar no seguinte trecho

[] tenta entender o que eacute DOI-CODI o DOI-CODI eacute uma instituiccedilatildeo

montada por diversos oacutergatildeos de repressatildeo que funcionava [no Rio de

Janeiro] no quartel da PE [1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito] (Pandolfi 5

fev 2003)

De acordo com os seis entrevistados assim como indicado pela a anaacutelise das

demais frentes de estudo do presente capiacutetulo a praacutetica de tortura era corriqueira nos

interrogatoacuterios dos DOI Esse fato inclusive poderia ser associado agrave sua proacutepria

designaccedilatildeo que na forma abreviada se apresenta sob a sigla DOI correspondendo

sugestivamente agrave conjugaccedilatildeo do verbo doer na terceira pessoa do singular

Soube que ningueacutem entrava no DOI-CODI sem sofrer algum tipo de tortura

fiacutesica ou psicoloacutegica mas principalmente a fiacutesica e realmente natildeo creio

que algueacutem tenha passado por laacute imune agrave tortura [] Quando a gente chega

ao DOI-CODI chega logo tomando porrada Natildeo tinha essa histoacuteria de meu

senhor era tapa Tapa choque eleacutetrico pau de arara a isso tudo eu fui

submetido O primeiro interrogatoacuterio que natildeo eacute um interrogatoacuterio formal

judicial eacute feito sob essas condiccedilotildees Depois bem depois eacute que eu fui ser

interrogado no DOPS em outras condiccedilotildees [] Eu fui torturado mesmo na

Rua Baratildeo de Mesquita na PE laacute sim eu fui bastante torturado []

(Carvalho 12 set 2002)

81

[] laacute na PE vocecirc natildeo fazia nada a natildeo ser ficar esperando o tempo para ser

interrogada para ser torturada [] (Pandolfi 5 fev 2003)

Laacute no DOI-CODI comia tudo choque pau-de-arara afogamento pancada

Laacute que eu descobri esse termo que fulano virou presunto neacute Porque vocecirc

fica igual a um presunto mesmo porque eles te datildeo pancadas localizadas []

(Freire 28 jun 2004)

[] laacute no DOI-CODI tinha todo tipo de torturas desde choques eleacutetricos na

matildeo direita esquerda peacute esquerdo Eu sofri isso tambeacutem (Prigol 28 set

2004)

[] o meu negoacutecio era ganhar tempo e o deles era conseguir informaccedilatildeo A

luta eacute essa nos primeiros dias eacute vocecirc dar o miacutenimo de informaccedilotildees e eles

querendo arrancar o maacuteximo de informaccedilatildeo neacute Aiacute eles vecircm com a maacutexima

de que torturar eacute investigar (risos) E daiacute se precisar ateacute a morte o negoacutecio

eacute conseguir informaccedilatildeo (Batista 17 nov 2004)

[] onde eram os choques eleacutetricos que na PE eles davam eles me

molhavam toda para o choque ser mais intenso e botavam principalmente

nas partes onde eram mais sensiacuteveis como ouvido nariz boca bico do

peito vagina acircnus[] o choque eleacutetrico eacute indescritiacutevel porque vocecirc perde a

noccedilatildeo do tempo e todo e qualquer controle da bexiga e dos intestinos []

(Coimbra 30 nov 2004)

Portanto ali a incumbecircncia era operar a extraccedilatildeo de informaccedilotildees e para isso a

tortura como meacutetodo era utilizada pelos agentes das turmas de interrogatoacuterio

preliminar Afinal em uma ponta da sofisticaccedilatildeo repressiva apresentada pelos DOI-

CODI estava a concentraccedilatildeo de informaccedilotildees dos CODI e na outra a agilidade que a

extraccedilatildeo de informaccedilotildees possibilitada principalmente pelo uso das torturas durante os

interrogatoacuterios dos presos dava agraves operaccedilotildees de busca e apreensatildeo de mais ldquoelementos

subversivosrdquo

82

A partir dos depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados assim como

da anaacutelise da historiografia selecionada e dos dados trazidos pelo coronel Pereira em sua

monografia percebe-se que os DOI-CODI ocupavam somente uma parte dos quarteacuteis

do Exeacutercito onde se localizavam e na parte restante o funcionamento desses quarteacuteis

continuava normalmente Os DOI-CODI eram portanto prisotildees atiacutepicas diferentes das

convencionais construiacutedas desde o iniacutecio para acomodar prisioneiros Assim eacute coerente

que o serviccedilo de carceragem nos DOI-CODI fosse executado pelos soldados que

serviam ao proacuteprio quartel jaacute que esse era apenas um serviccedilo de apoio um auxiacutelio natildeo

agrave toa feito por agentes de turmas que eram intituladas auxiliares

Os soldados que serviam ao quartel a quem era atribuiacutedo o serviccedilo de

carceragem eram conhecidos no DOI-CODIRJ por ldquocatarinasrdquo devido a suas

caracteriacutesticas fiacutesicas e tambeacutem ao sotaque tiacutepico ao estado de Santa Catarina Os

ldquocatarinasrdquo eram identificados como soldados devido ao fato dos agentes propriamente

do DOI-CODIRJ normalmente andarem a paisana enquanto eles usavam farda ou seja

trajes tradicionais a militares que natildeo estivessem ligados a operaccedilotildees de informaccedilotildees

Os agentes dos DOI-CODI como elucidado por meio da segunda frente deste capiacutetulo

por precisarem ser confundidos com civis se diferenciavam dos demais soldados

Na PE os soldados eram sempre de Santa Catarina [] pessoas de portes

fiacutesicos avantajados e essa condiccedilatildeo fiacutesica era uma espeacutecie de exigecircncia para

servir ao quartel da Poliacutecia Militar Eram entatildeo os ldquocatarinasrdquo [] (Carvalho

8 fev 2003)

[] quem torturava a gente era o pessoal do DOI-CODI normalmente eles

andavam a paisana [] e quem fazia o trabalho burocraacutetico ou seja a

limpeza da PE quem dava o cafeacute da gente quem abria a cela e fechava a

cela eram os soldados uniformizados Eram ateacute os ldquocatarinasrdquo porque

tinham muitos que vinham de Santa Catarina eram soldados altos [] entatildeo

83

os soldados faziam a burocracia e os militares do DOI-CODI faziam essa

parte digamos da investigaccedilatildeo poliacutetica [] (Pandolfi 5 fev 2003)

[] os ldquocatarinasrdquo eram os guardinhas era o pessoal que estava servindo

eles tinham dezoito ou dezenove anos eles estavam servindo ao Exeacutercito e

alguns deles ateacute amenizavam a nossa situaccedilatildeo [hellip] (Batista 17 nov 2004)

Diferentemente do que se percebe na monografia feita pelo coronel Pereira em

1978 nas memoacuterias aqui analisadas a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI no ano de 1970

consagrou-se como um dos periacuteodos mais difiacuteceis de suas vidas Nota-se no entanto

que os nuacutemeros e percentuais que na eacutepoca eram interpretados por muitos militares

como forte indiacutecio de eficiecircncia da instituiccedilatildeo no combate ao ldquoinimigo internordquo estatildeo

em meio ao contexto democraacutetico em que as narrativas dos ex-presos foram construiacutedas

diretamente ligados agrave memoacuteria da tortura e da violaccedilatildeo aos direitos humanos Como se

pode analisar a partir da interpretaccedilatildeo de Ceciacutelia Coimbra uma das ex-prisioneiras

poliacuteticas fundadoras do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro 15

[] eu acho a fala para mim a minha militacircncia no Tortura Nunca Mais

fundamental Em 85 quando a gente fundou o Grupo foi fundamental no

sentido de tornar isso puacuteblico e natildeo soacute como se fosse uma coisa de lamento

da gente uma coisa da dor da gente dessa marca que natildeo vai sair nunca []

mas como instrumento de luta instrumento de denuacutencia [] (Coimbra 30

nov 2004)

Durante o periacuteodo das entrevistas aqueles que viveram a experiecircncia dos DOI-

CODI a partir do outro lado de suas grades muitas vezes veem as dolorosas lembranccedilas

daquele tempo como um meio de fazer justiccedila e ateacute mesmo contribuir para a

solidificaccedilatildeo da democracia enquanto que os militares que no passado se orgulhavam

15

O GTNMRJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-prisioneiros poliacuteticos que viveram situaccedilotildees de

tortura durante o regime militar e por familiares de mortos e desaparecidos poliacuteticos Para mais

informaccedilotildees ver o perfil de Ceciacutelia Coimbra no proacuteximo capiacutetulo

84

de seus feitos lutam no presente por natildeo serem a eles associados Diante disso nota-se

que apoacutes o teacutermino da ditadura em 1985 as memoacuterias dos entatildeo vencidos

movimentam-se de forma a se sobreporem agraves dos vencedores conseguindo aos poucos

garantir seu espaccedilo de viacutetimas da ditadura e ao mesmo tempo de heroacuteis da democracia

na poliacutetica na justiccedila e na histoacuteria

85

Capiacutetulo 2 ndash Os presos poliacuteticos e suas organizaccedilotildees

Nas escolas nas ruas

campos construccedilotildees

Somos todos soldados

Armados ou natildeo

Caminhando e cantando

E seguindo a canccedilatildeo

Somos todos iguais

Braccedilos dados ou natildeo

Os amores na mente

As flores no chatildeo

A certeza na frente

A histoacuteria na matildeo

Caminhando e cantando

E seguindo a canccedilatildeo

Aprendendo e ensinando

Uma nova liccedilatildeo

Geraldo Vandreacute

(Pra natildeo dizer que natildeo falei de flores 1968)

86

Antocircnio Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia satildeo alguns dos brasileiros

que lutaram contra a ditadura militar no paiacutes e que na eacutepoca foram presos pelo governo

nas dependecircncias do DOI-CODI do Rio de Janeiro Trecircs homens e trecircs mulheres que

apesar de suas trajetoacuterias pessoais e poliacuteticas distintas possuem ateacute hoje fortes elos

construiacutedos pela passagem pelo DOI-CODI carioca

Foi especificamente essa vivecircncia prisional comum que me despertou o interesse

pelas memoacuterias desses seis atores histoacutericos O objetivo era a partir da oacutetica dos ex-

prisioneiros entender como funcionava na praacutetica o DOI-CODIRJ Assim entre os

anos de 2002 e 2004 em meio aos governos dos ex-presidentes Fernando Henrique e

Lula ou seja jaacute em tempos democraacuteticos Antocircnio Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana

e Ceciacutelia me concederam entrevistas sobre suas prisotildees no DOI-CODIRJ bem como

sobre suas trajetoacuterias pessoais e poliacuteticas antes e depois de suas prisotildees

Esses depoimentos ndash principal objeto de pesquisa desta dissertaccedilatildeo ndash trazem aleacutem

das lembranccedilas sobre o cotidiano prisional de um DOI-CODI muito da personalidade e

da vivecircncia de cada um desses indiviacuteduos Atraveacutes dessas memoacuterias pode-se lidar com

as idiossincrasias de cada um deles relativizando a ideia de uma memoacuteria coletiva

comum a todos os ex-prisioneiros poliacuteticos que ficaram no quartel da Rua Baratildeo de

Mesquita Pode-se ainda conhecer um pouco mais de perto a loacutegica de construccedilatildeo de

suas memoacuterias individuais analisando como cada um desses indiviacuteduos se vecirc atraveacutes do

passado de militacircncia e prisatildeo como se identifica por meio desse passado imprime essa

identidade no mundo externo e como este mundo influencia na percepccedilatildeo que possui

sobre si mesmo

No entanto as memoacuterias individuais aqui trabalhadas natildeo estatildeo isoladas jaacute que

conforme bem evidenciado por Maurice Halbwachs em A memoacuteria coletiva (2004)

frequentemente tomam como referecircncia pontos externos ao sujeito se apoiando em

87

percepccedilotildees recebidas de determinada memoacuteria coletiva de um grupo e tambeacutem pela

memoacuteria histoacuterica de seu paiacutes (2004 57-59) Partindo dessa ideia percebe-se aqui que

nas memoacuterias narradas por indiviacuteduos que fizeram parte de uma mesma organizaccedilatildeo de

esquerda armada ou que ainda hoje integram um mesmo grupo como por exemplo o

Grupo Tortura Nunca MaisRJ satildeo encontrados mais pontos de contato Aleacutem disso

todos os depoentes mostram ter como base de suas lembranccedilas a memoacuteria histoacuterica

pois em algum momento as localizam no tempo por meio de datas e fatos que se

estabeleceram como histoacutericos tal como o golpe civil-militar de 31 de marccedilo de 1964

ou a decretaccedilatildeo do AI-5 em 13 de dezembro de 1968

Cabe aqui ressaltar que ex-prisioneiros do DOI-CODIRJ entrevistados eram em

sua grande maioria estudantes que se tornaram combatentes da esquerda armada a

partir da proibiccedilatildeo de atividades e manifestaccedilatildeo sobre o assunto de natureza poliacutetica

estipulada pelo inciso III do artigo 5ordm do AI-5 e que em suas memoacuterias a

promulgaccedilatildeo deste Ato representa um marco temporal muito mais forte do que o golpe

civil-militar de 1964 Afinal para suas trajetoacuterias de vida o AI-5 de 13 de dezembro de

1968 foi um divisor de aacuteguas pois tornava as manifestaccedilotildees estudantis proibidas

revoltando-os e estimulando-os ainda mais a lutar pela derrubada do regime ditatorial

Diante disso a maioria dos depoentes sustenta em suas memoacuterias o AI-5 como um

momento em que suas vidas foram postas em xeque A partir do dia de sua

promulgaccedilatildeo eles se viram diante da necessidade de decidir se continuavam ou natildeo a

agir contra a ditadura e em caso positivo se deveriam considerar a violecircncia armada

como uma via de luta uma vez que os movimentos paciacuteficos estavam totalmente

encurralados Como a opccedilatildeo da maior parte deles foi a de pegar em armas ndash decisatildeo que

acarretou natildeo soacute em suas prisotildees mas tambeacutem na mudanccedila da percepccedilatildeo que tinham

sobre a vida jaacute que ao andarem armados passavam a ter a consciecircncia de que viviam

88

sob a ameaccedila da morte ndash o AI-5 tem papel de destaque entre suas memoacuterias do periacuteodo

militar Essa importacircncia do AI-5 pode ser exemplificada no trecho abaixo destacado da

entrevista de Ana de Miranda Batista

O AI-5 foi determinante Porque vocecirc natildeo tinha mais formas de expressatildeo

vocecirc natildeo podia se reunir vocecirc natildeo podia mais fazer nada era impedido pela

poliacutecia A gente estava amordaccedilado a imprensa amordaccedilada os teatros os

cinemas tudo Era um terror muita poliacutecia na rua muita blitz blitz de

montatildeo sabe Quem quisesse ser como a gente -ldquoAbaixo a Ditadura

Abaixo a Repressatildeordquo As formas de expressatildeo se reduziram a quase zero Aiacute

eacute que houve um pontapeacute na decisatildeo de muitos de noacutes de quer dizer soacute

restou a luta armada soacute restou resistir de forma armada mesmo que pra

maioria de noacutes fosse uma decisatildeo extrema [] eu nem uma arma de perto

eu nunca tinha visto Quer dizer esse momento eacute um momento draacutestico

quer dizer um tempo depois eacute que eu conversando eacute que vi que natildeo foi

assim soacute para mim Porque para alguns dos rapazes que tinham servido ao

Exeacutercito e sei laacute o quecirc eles jaacute tinham alguma familiaridade com armas quer

dizer alguns deles Mas a gente menina classe meacutedia natildeo Eu nunca tinha

visto nunca tinha me interessado por arma na vida (risos) natildeo fazia parte do

meu universo E teve muita gente que nessa eacutepoca pirou Pirou que eu digo

de natildeo querer mais saber Muita gente E eu acho extremamente respeitaacutevel

essa decisatildeo porque eacute uma decisatildeo draacutestica [] porque no momento em que

vocecirc estaacute com uma arma vocecirc pode matar ou morrer Eacute muito grave essa

decisatildeo Vocecirc estaacute lidando com a possibilidade da morte e quando vocecirc

nunca teve familiaridade assim quando vocecirc nunca viu uma arma eacute muito

difiacutecil [] (Batista 17 nov 2004)

Vale aqui mais uma vez destacar que essas memoacuterias do passado satildeo lavadas nas

aacuteguas do presente ou seja satildeo o preacutesent du passeacute conforme a feliz expressatildeo de Robert

Frank (1999) As memoacuterias sobre as experiecircncias prisionais do DOI-CODIRJ

ocorridas durante os ldquoanos de chumbordquo da ditadura militar foram construiacutedas em

entrevistas concedidas entre o final do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-

2002) e o iniacutecio do governo de Lula (2003-10) ambos perseguidos poliacuteticos durante o

89

periacuteodo ditatorial Portanto a perspectiva de vencidos que no passado direcionava as

memoacuterias dos depoentes abre lugar para uma narrativa proacutexima agrave de vencedores pela

qual os ex-prisioneiros poliacuteticos se veem como responsaacuteveis pela construccedilatildeo da

democracia e de uma justiccedila de transiccedilatildeo ainda em curso no Brasil

Uma ideia de justiccedila de transiccedilatildeo iniciou-se principalmente a partir da

Constituiccedilatildeo de 1988 quando a reparaccedilatildeo aos perseguidos poliacuteticos do passado

ditatorial se transformou em garantia constitucional No entanto foi somente a partir de

1995 jaacute no governo FHC que ela comeccedilou a ser implantada por meio da primeira

comissatildeo de reparaccedilatildeo a Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos (lei nordm

914095) Aleacutem disso em 2002 sete anos depois a reparaccedilatildeo aos perseguidos pela

ditadura foi complementada por meio da Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio da Justiccedila

(lei nordm 1055902) Assim quando a primeira entrevista me foi concedida em setembro

de 2002 a Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos jaacute trabalhava no sentido de

reconhecer a responsabilidade do Estado brasileiro por mortes e desaparecimentos de

presos poliacuteticos ocorridas durante a ditadura enquanto a Comissatildeo de Anistia iniciava a

sua funccedilatildeo de

[] reparar os atos de exceccedilatildeo incluindo as torturas prisotildees arbitraacuterias

demissotildees e transferecircncias por razotildees poliacuteticas sequestros compelimento agrave

clandestinidade e ao exiacutelio banimentos expurgos estudantis e

monitoramentos iliacutecitos (Abratildeo 2010 4)

Conforme jaacute abordado no primeiro capiacutetulo os procedimentos impostos pela Lei

105592002 influenciaram como natildeo podia deixar de ser o processo de construccedilatildeo das

memoacuterias aqui trabalhadas Afinal o referido processo se iniciava com um relato da

viacutetima sobre as agressotildees e perseguiccedilotildees sofridas agrave eacutepoca ditatorial Este deveria

configurar uma espeacutecie de memorial no qual o requerente deveria destacar todas as

90

violaccedilotildees sofridas a ser apresentado agrave Comissatildeo cabendo a esta apoacutes a verificaccedilatildeo dos

fatos expostos conceder ou natildeo ao requisitante a condiccedilatildeo de anistiado poliacutetico e

dependendo do caso a correspondente reparaccedilatildeo econocircmica Como alguns dos

entrevistados passavam por este processo no mesmo periacuteodo em que concederam as

entrevistas eacute notaacutevel que tal experiecircncia seja mais uma forte influecircncia do presente na

construccedilatildeo das memoacuterias por eles narradas Esse momento de busca por reparaccedilatildeo por

que muitos passavam inconscientemente os conduzia a enfatizar durante as narrativas

suas condiccedilotildees de ldquoviacutetimasrdquo do passado em detrimento por exemplo de suas condiccedilotildees

de ldquosiacutembolos da resistecircnciardquo

Ainda diante da capacidade de intervenccedilatildeo que o presente exerce sobre as

memoacuterias do passado deve-se considerar tambeacutem a forma como essa rede de

entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que as entrevistas foram realizadas

Afinal o caminho trilhado ateacute o depoente e o momento especiacutefico de cada narrativa

composto pelo local e as condiccedilotildees gerais sob as quais ocorreu tambeacutem influenciam na

construccedilatildeo das memoacuterias do entrevistado tanto por parte do historiador na maneira

como aborda o narrador quanto por parte do proacuteprio narrador por meio da forma com

que narra suas memoacuterias Portanto acredita-se aqui que a busca por cada entrevistado

interfere na abordagem que o entrevistador imprime agrave entrevista e na forma como o

narrador se sente ao narrar suas memoacuterias naquele momento tornando o instante de

cada entrevista um fator tambeacutem de intervenccedilatildeo na narrativa das memoacuterias do passado

Dessa forma antes de tratar-se das trajetoacuterias de vida narradas por cada ex-prisioneiro

entrevistado optou-se aqui por considerar como o instante de cada entrevista foi

construiacutedo ou seja como a rede de entrevistas foi formada

91

1 A rede de entrevistas

A primeira entrevista foi feita com o ex-preso poliacutetico Antocircnio Leite de Carvalho

em 12 de setembro de 2002 na sala de sua casa situada bem proacutexima ao quartel do 1ordm

BPE onde se localizava o DOI-CODIRJ O espaccedilo ocupado por esta instituiccedilatildeo que eacute

intensamente abordado no proacuteximo capiacutetulo situava-se nos fundos do referido quartel

cujo edifiacutecio foi construiacutedo durante o Impeacuterio e ainda hoje se encontra entre a Avenida

Maracanatilde e a Rua Baratildeo de Mesquita no bairro da Tijuca na cidade do Rio de Janeiro

Cheguei ateacute Antocircnio atraveacutes de seu filho Joatildeo meu colega do curso de graduaccedilatildeo

em histoacuteria pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Sabedor

do meu interesse sobre o tema da repressatildeo poliacutetica Joatildeo procurou me ajudar e ao

mesmo tempo satisfazer a curiosidade que sentia sobre esta parte da vida de seu pai

Portanto durante a minha primeira visita agrave casa de Antocircnio enquanto ele narrava

suas memoacuterias sobre o periacuteodo em que esteve preso nas dependecircncias do quartel

vizinho Joatildeo atravessava constantemente a sala em direccedilatildeo agrave varanda ou agrave cozinha

Assim sem que Antocircnio aparentemente percebesse jaacute que estava concentrado em sua

narrativa Joatildeo tentava ouvir um pouco mais sobre um passado que seu pai nunca havia

revelado abertamente aos filhos

Percebe-se entatildeo como lidar com detalhes dessa memoacuteria era complicado para

Antocircnio e portanto o quanto aquele momento era importante para ele e para seu filho

Atraveacutes da entrevista enquanto Antocircnio passava a sentir um maior orgulho daquelas

memoacuterias pois por meio do meu interesse em entrevistaacute-lo comeccedilava a percebecirc-las

como fonte para a histoacuteria do paiacutes Joatildeo conhecia melhor o seu pai e passava a entender

algumas de suas atitudes que ateacute entatildeo questionava

Era o caso da reaccedilatildeo arredia que Antocircnio tinha ao ser acordado de forma

inesperada enquanto dormia no sofaacute da casa Assim apoacutes ouvir sobre o cotidiano e as

92

torturas a que seu pai afirma ter sido submetido no DOI-CODIRJ Joatildeo comeccedilou a

compreender que tal reaccedilatildeo tinha relaccedilatildeo com esse passado quando Antocircnio muitas

vezes pode ter sido despertado de desmaios ocasionados por choques eleacutetricos e outras

torturas a ele perpetradas ainda na sala de interrogatoacuterio Logo o fato de acordar

assustado tentando se proteger ou ateacute mesmo agredir quem o acordasse pode ser

compreendido quando relacionado agraves marcas que as violecircncias vividas no DOI-

CODIRJ deixaram na memoacuteria de Antocircnio

A partir dessa primeira entrevista o meu interesse pelo tema se aprofundou

impulsionando-me a buscar outros possiacuteveis entrevistados No dia 5 de fevereiro de

2003 consegui entrevistar Dulce Chaves Pandolfi Seu nome foi aventado por meio da

leitura sobre a passagem de Dulce pelo DOI-CODIRJ encontrada no livro Brasil

Nunca Mais publicado pela Editora Vozes em 1985

A estudante Dulce Chaves Pandolfi 24 anos foi obrigada tambeacutem a servir

de cobaia no quartel da rua Baratildeo de Mesquita no Rio [] Na Poliacutecia do

Exeacutercito foi submetida a espancamento inteiramente despida bem como a

choques eleacutetricos e outros supliacutecios como o ldquopau-de-ararardquo Depois de

conduzida agrave cela onde foi assistida por meacutedico foi apoacutes algum tempo

novamente seviciada com requintes de crueldade numa demonstraccedilatildeo de

como deveria ser feita a tortura [] (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985 32)

Depois de algumas tentativas frustradas de marcar esta entrevista por meio de

mensagens via correio eletrocircnico que encontrei atraveacutes do site do CPDOC centro de

pesquisa onde Dulce trabalha como pesquisadora e professora ela enfim me recebeu em

sua sala no interior deste mesmo centro de pesquisa Sua resistecircncia inicial pode ser

atribuiacuteda ao fato de na condiccedilatildeo de pesquisadora estar mais acostumada ao papel de

entrevistadora do que ao de entrevistada ou seja estar mais afinada com o trabalho de

analisar as fontes do que com o de ser a proacutepria fonte Diante disso durante sua

93

entrevista Dulce natildeo se sentiu agrave vontade em tratar dos detalhes das violecircncias sofridas

no DOI-CODIRJ o que pode ser explicado pela dor que ainda acompanha suas

memoacuterias e tambeacutem pelo desconforto que a situaccedilatildeo lhe trazia jaacute que ela possivelmente

natildeo se desvinculava do fato de ser uma professora universitaacuteria expondo sua intimidade

a uma aluna de graduaccedilatildeo No entanto justamente por lecionar histoacuteria e por

conseguinte jaacute estar convencida da importacircncia de seu depoimento Dulce apresentou

uma narrativa articulada e aparentemente coerente

Apoacutes a entrevista de Dulce ficou evidente a desarticulaccedilatildeo da memoacuteria de

Antocircnio uma vez que esta era silenciada haacute muito tempo e portanto natildeo possuiacutea uma

construccedilatildeo preacute-estabelecida por outros discursos Tal percepccedilatildeo me levou a voltar a

entrevistaacute-lo em 8 de fevereiro de 2003 trecircs dias depois da entrevista de Dulce quando

Antocircnio jaacute demonstrava uma memoacuteria mais articulada Afinal esse silecircncio que

caracterizava sua memoacuteria lhe atribuiacutea um aspecto negativo e um destacadamente

positivo O lado negativo era que conforme elucidado por Michael Pollak em Memoacuteria

esquecimento e silecircncio (1989) dificilmente sua memoacuteria foi transmitida de forma

intacta durante todo o tempo em que ficou guardada ateacute o dia em que a entrevista

significou uma oportunidade para que ela saiacutesse do ldquonatildeo-ditordquo Poreacutem o lado positivo a

meu ver merecedor de destaque era que a memoacuteria de Antocircnio sobre a prisatildeo no DOI-

CODIRJ possuiacutea poucas influecircncias por decorrecircncia do contato com as memoacuterias de

outros ex-prisioneiros pois natildeo estava a elas diretamente relacionada por meio de

nenhuma coletividade especiacutefica

No ano seguinte ao buscar mais informaccedilotildees sobre o DOI-CODIRJ no Arquivo

Puacuteblico do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) conheci Fernando Palha Freire que viria

a ser o meu terceiro entrevistado Na eacutepoca da entrevista em junho de 2004 Fernando

trabalhava neste Arquivo enviando ao governo estadual a documentaccedilatildeo de requerentes

94

agrave reparaccedilatildeo econocircmica conforme constava no decreto nordm 31995 de 10 de outubro de

2002 Este decreto regulamentava a lei estadual Nordm 3744 de 21 de dezembro de 2001

que antes mesmo da lei federal 105592002 entrar em vigor dispunha sobre a

reparaccedilatildeo a pessoas que haviam sido detidas sob acusaccedilatildeo de terem participado de

atividades poliacuteticas entre os dias 1ordm de abril de 1964 e 15 de agosto de 1979 e que

haviam sofrido tortura em oacutergatildeos puacuteblicos estaduais

Ao saber sobre o meu tema de pesquisa um arquivista do APERJ me apresentou a

Fernando que natildeo hesitou em me conceder seu depoimento A entrevista foi realizada laacute

mesmo dentro da sala em que Fernando trabalhava e por ter sido concedida durante o

horaacuterio de expediente fomos constantemente interrompidos por ligaccedilotildees telefocircnicas Ao

longo de sua entrevista Fernando confessou ter falado muitas vezes sobre suas

memoacuterias do periacuteodo militar e que justamente por entender a importacircncia desse

passado havia sido nomeado para instruir os requisitantes agrave reparaccedilatildeo estipulada pelo

Decreto estadual Nordm 319952002 Dessa forma justifica-se a apresentaccedilatildeo tranquila e

eloquente que conduz sua narrativa

Trecircs meses depois no final de setembro Padre Maacuterio Prigol da Paroacutequia de

Nossa Senhora da Salete localizada no bairro do Catumbi no Rio de Janeiro me

concedeu seu depoimento Esta entrevista foi possiacutevel por intermeacutedio de Alejandra

outra colega do curso de graduaccedilatildeo em histoacuteria da UNIRIO que o conhecia por jaacute tecirc-lo

entrevistado sobre a sua participaccedilatildeo nos movimentos da Juventude Operaacuteria Catoacutelica

(JOC) e Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) 16

Durante a entrevista que me concedeu Padre Maacuterio falou muito sobre as lutas

sociais que travou durante a ditadura militar descritas no livro que havia acabado de

publicar ndash Maacuterio Prigol educador da feacute entre trabalhadores e militantes populares

16

Para mais informaccedilotildees ver Estevez 2008

95

(2003) Entretanto sobre sua passagem pelo DOI-CODIRJ pouco fazia questatildeo de

narrar reconhecendo em certo momento que laacute tambeacutem havia sofrido com torturas o

que explica em parte o desconforto que as lembranccedilas prisionais lhe traziam

Provavelmente por sua prisatildeo ter lhe colocado na eacutepoca em uma posiccedilatildeo extremamente

conflitante e perturbadora para uma autoridade da Igreja Catoacutelica anos mais tarde essas

memoacuterias ainda eram difiacuteceis de serem narradas e lembrar a violecircncia sofrida dentro do

DOI-CODIRJ possivelmente trazia de volta alguns transtornos de ordem sentimental

indesejaacuteveis Afinal presume-se que na prisatildeo seus sentimentos oscilassem entre os

tipicamente humanos tais como dor e raiva e os cristatildeos como feacute e perdatildeo tais

memoacuterias remetiam a sentimentos humanos que ele em respeito a sua vocaccedilatildeo de

padre deveria renegar

Decidida a ampliar ainda mais o escopo de minha rede de entrevistados passei a

frequentar as reuniotildees abertas ao puacuteblico agraves segundas-feiras agrave noite na sede do Grupo

Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTMNRJ) no bairro de Botafogo O

GTNMRJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-prisioneiros poliacuteticos que viveram

situaccedilotildees de tortura durante o regime militar bem como por familiares de mortos e

desaparecidos poliacuteticos O Grupo tornou-se por meio das lutas em defesa dos direitos

humanos uma importante referecircncia no cenaacuterio nacional Ao longo dessas deacutecadas o

GTNMRJ vem lutando pelo esclarecimento das circunstacircncias da morte e do

desaparecimento de militantes poliacuteticos pelo resgate da memoacuteria da repressatildeo ditatorial

pelo afastamento imediato dos cargos puacuteblicos de pessoas envolvidas com a tortura e

pela formaccedilatildeo de uma consciecircncia eacutetica condiccedilatildeo que a entidade defende ser

indispensaacutevel na luta contra a impunidade e pela justiccedila Aleacutem disso o Grupo vem

denunciando antigos e novos casos de tortura exigindo puniccedilatildeo para seus perpetradores

96

atraveacutes de notas na miacutedia entrevistas atos puacuteblicos seminaacuterios e outras atividades 17

Minha ida agrave sede do Grupo resultou na incorporaccedilatildeo de duas novas entrevistadas a

minha rede A primeira delas foi Ana de Miranda Batista que em 17 de novembro de

2004 me recebeu em uma das salas do proacuteprio GNTMRJ Ana havia acabado de

escrever seu memorial ndash onde narrava todas as perseguiccedilotildees e prisotildees que havia sofrido

durante a ditadura militar ndash e o havia encaminhado agrave presidecircncia da Comissatildeo Especial

da Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro a fim de comprovar

que fazia jus ao valor maacuteximo da reparaccedilatildeo prevista no Art 5ordm da Lei Estadual nordm 3744

de 21 de dezembro de 2001 O ponto principal de seu argumento era que havia sofrido

todas as mazelas prisotildees torturas fiacutesicas e psicoloacutegicas submetida pelas forccedilas

opressoras da eacutepoca fato este que ateacute hoje tem consequecircncias em sua vida (Batista

2004 10) 18

Antes de comeccedilar a entrevista Ana me concedeu uma coacutepia deste memorial

juntamente com a monografia do entatildeo Coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira

fonte analisada no capiacutetulo anterior cujo teor havia lhe servido como evidecircncia dos

meacutetodos violentos que ocorriam nas dependecircncias do DOI-CODI

Diante disso conforme o esperado seu depoimento oral apresentou um tom

narrativo muito similar ao assumido no referido documento que havia recentemente

escrito Assim orquestrada com o objetivo que tinha de conseguir a reparaccedilatildeo do

Estado Ana buscou construir suas memoacuterias de forma a ressaltar as violecircncias sofridas

ou seja priorizou a condiccedilatildeo de ldquoperseguida poliacutetica e viacutetima da repressatildeo militarrdquo em

detrimento da de ldquolutadora revolucionaacuteriardquo em prol da democracia

No final desse mesmo mecircs de novembro entrevistei a entatildeo vice-presidente do

Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro Ceciacutelia Coimbra Professora do

17

Para mais informaccedilotildees acessar httpwwwtorturanuncamais-rjorgbr 18

Memorial de Ana de Miranda Batista parte do requerimento agrave indenizaccedilatildeo enviado ao Secretaacuterio de

Estado de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro pela proacutepria em outubro de 2004

97

Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Ceciacutelia me

recebeu em uma das salas do preacutedio dessa faculdade localizada no campus do

Gragoataacute na cidade de Niteroacutei Uma das fundadoras do GTNMRJ Ceciacutelia natildeo mostrou

nenhum pudor em lembrar as violaccedilotildees sofridas durante a prisatildeo Detalhou as torturas

recebidas sem demonstrar constrangimento Esta forma de lidar com o passado se

explica pela maneira pela qual Ceciacutelia se auto-identifica Afinal devido a sua profissatildeo

de psicoacuteloga e sua condiccedilatildeo de liacuteder de um grupo que luta por reparar os danos morais e

fiacutesicos deixados pela tortura entende a difusatildeo dos detalhes de sua proacutepria memoacuteria

como uma arma poderosa para que a justiccedila seja feita em prol da redenccedilatildeo dos

torturados e da penalizaccedilatildeo dos torturadores

11 Os sujeitos e suas trajetoacuterias

A partir da anaacutelise dos depoimentos traccedila-se aqui a trajetoacuteria de vida de cada um

dos entrevistados a fim de que sejam desvendados outros fatores que influenciaram a

construccedilatildeo de suas memoacuterias sobre o periacuteodo em que estiveram presos no DOI-

CODIRJ Este periacuteodo se concentra no segundo semestre do ano de 1970 uma vez que

foi nesse momento que todos os seis entrevistados por laacute passaram Este dado temporal

em muito aproxima suas memoacuterias pois significa que estas se referem a uma mesma

fase desse oacutergatildeo repressivo Isso permitiu ateacute mesmo que tais memoacuterias englobassem

momentos compartilhados jaacute que alguns desses ex-prisioneiros laacute se encontraram e ateacute

dividiram uma mesma cela

No entanto cabe aqui destacar que natildeo houve qualquer intenccedilatildeo de entrevistar ex-

prisioneiros que estivessem no DOI-CODIRJ durante esse periacuteodo Conforme exposto

anteriormente a rede de entrevistas foi se desenhando de acordo com as oportunidades

o que torna o fato de todos terem por laacute passado na segunda metade de 1970 natildeo uma

98

feliz coincidecircncia como uma primeira impressatildeo pode fazer crer mas mais uma

demonstraccedilatildeo da alta eficiecircncia dos DOI-CODI Essas prisotildees correspondem justamente

ao periacuteodo em que o DOI-CODIRJ passou a funcionar em meados de 1970

demonstrando na praacutetica o que foi dito no capiacutetulo anterior diante da grande demanda

de accedilotildees que natildeo eram eficientemente combatidas pelos oacutergatildeos de repressatildeo anteriores

a sofisticaccedilatildeo dos DOI ldquorevolucionourdquo de fato a organizaccedilatildeo da repressatildeo agindo jaacute

num primeiro momento de forma avassaladora

Antocircnio Leite de Carvalho19

Antocircnio Leite de Carvalho nasceu no Cearaacute em 13 de agosto de 1945 Quando era

estudante secundarista pertenceu ao movimento que se concentrava no Calabouccedilo

restaurante estudantil proacuteximo ao Aeroporto Santos Dumont do Rio de Janeiro

frequentado por estudantes que eram como ele secundaristas pobres e principalmente

procedentes de outros estados

Em 1967 o governo apresentou planos para a demoliccedilatildeo do Calabouccedilo sob a

justificativa de construir em seu local um trevo rodoviaacuterio para desafogar o tracircnsito do

Aterro do Flamengo A partir disso os estudantes comeccedilaram a protestar contra a sua

demoliccedilatildeo e criaram a Frente Unida dos Estudantes do Calabouccedilo (FUEC) O governo

em maio daquele ano conseguiu demolir o restaurante e entregou em setembro ldquoo novo

Calabouccedilordquo para os estudantes poreacutem em situaccedilotildees precaacuterias Assim a luta da FUEC

continuou em prol da melhoria de suas condiccedilotildees de funcionamento e foi justamente em

torno desses protestos que o primeiro grande conflito de rua do ano de 1968 ocorreu

sensibilizando a opiniatildeo puacuteblica e o movimento estudantil como um todo No dia 28 de

19

Entrevistas realizadas com Antocircnio Leite de Carvalho em 12 de setembro de 2002 e 8 de fevereiro de

2003

99

marccedilo policiais invadiram a tiros o restaurante do Calabouccedilo onde se preparava mais

uma manifestaccedilatildeo contra as peacutessimas condiccedilotildees do local e mataram o estudante

secundarista Edson Luiacutes de Lima Souto de dezoito anos Este assassinato representou o

estopim para o desencadeamento de amplas manifestaccedilotildees contraacuterias agrave ditadura ao

longo do ano de 1968 que seriam cada vez mais reprimidas ateacute se tornarem totalmente

proibidas pelo AI-5 20

A partir desse contexto de ilegalidades e proibiccedilotildees Antocircnio se posicionou entre

os estudantes que optaram por continuar a lutar contra a ditadura de forma radicalizada

Aproximou-se entatildeo do Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR) onde

logo em seguida comeccedilou a militar Antocircnio associa a sua adesatildeo ao PCBR ao

programa deste partido de esquerda que tinha a guerrilha urbana como meio de luta

para a derrubada da ditadura e implantaccedilatildeo do socialismo no paiacutes e principalmente agrave

admiraccedilatildeo que tinha por um dos seus fundadores e liacutederes Apolocircnio de Carvalho

Como Antocircnio teve participaccedilatildeo assiacutedua em muitas passeatas do movimento

estudantil de 1968 conheceu muitas lideranccedilas de organizaccedilotildees que vinham se

formando e buscavam adeptos em meio aos estudantes Assim foi apresentado e

comeccedilou a admirar Apolocircnio de Carvalho um dos grandes motivos que o levaram a

posteriormente militar no PCBR partido cuja formaccedilatildeo atuaccedilatildeo e ideais seratildeo

abordados mais adiante Apolocircnio de Carvalho era uma figura haacute muito atuante na

poliacutetica havia lutado em favor dos republicanos na Espanha durante a Guerra Civil

Espanhola na Resistecircncia Francesa contra o nazismo e participava do Partido

Comunista Brasileiro (PCB) quando em 1967 rompeu com este e foi um dos

fundadores do PCBR 21

20

Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009 108-132 21

Em 1967 Apolocircnio rompeu com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e se tornou um dos fundadores

do PCBR partido em situaccedilatildeo clandestina na eacutepoca motivo que o levou a ser preso Juntamente com

outros 39 presos poliacuteticos Apolocircnio foi trocado pelo embaixador alematildeo que em 11 de junho de 1970

100

O partido era o PCBR que possuiacutea uma grande figura que se chama

Apolocircnio de Carvalho que pertence hoje ao PT ele era uma grande

lideranccedila do partido havia participado da Revoluccedilatildeo Espanhola da

resistecircncia ao nazismo na Franccedila um homem respeitado mundialmente pela

sua coragem e pela luta a favor da democracia e contra os ditadores ele era a

minha grande lideranccedila (Carvalho 12 set 2002)

Em 1970 aos 25 anos Antocircnio Leite de Carvalho foi preso No momento de sua

prisatildeo estava agrave espera de outro militante do PCBR na rua em um ponto de encontro

que havia combinado com ele Relacionando o depoimento de Antocircnio com as

estrateacutegias de captura dos DOI analisadas no primeiro capiacutetulo percebe-se que como o

companheiro de Antocircnio havia sido capturado antes de ir ao seu encontro acabou

informando aos agentes de umas das turmas de interrogatoacuterio preliminar do DOI-

CODIRJ muito provavelmente sob tortura o horaacuterio em que Antocircnio estaria no lugar

marcado A partir disso a informaccedilatildeo foi repassada agrave Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo e

agentes de uma das turmas que a formavam se encaminharam ateacute o local com carros e

roupas descaracterizadas como de praxe e levaram Antocircnio algemado para o DOI-

CODIRJ onde ficou preso durante cerca de trecircs meses

Eu fui preso na rua Eu tinha um encontro com outro militante mas esse

militante foi preso e sob tortura no DOI-CODI aqui no 1deg BPE da Rua

Baratildeo de Mesquita ele abriu o ponto quer dizer o ponto era o local de

encontro que a gente chamava de ponto ldquoTenho um ponto com fulanardquo quer

dizer que vocecirc tinha um encontro Ele abriu o local de encontro que eu teria

com ele e aiacute eu fui preso pelo DOI-CODI (Carvalho 12 set 2002)

havia sido sequestrado por esquerdistas integrantes da Vanguarda Popular Revolucionaacuteria (VPR) e da

Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN) vivendo algum tempo exilado na Argeacutelia Apoacutes a implantaccedilatildeo da Lei

de Anistia no Brasil em 1979 ele e sua famiacutelia retornaram agrave terra natal onde participaram da fundaccedilatildeo

do Partido dos Trabalhadores (PT) em 1980 Apolocircnio faleceu em setembro de 2005 aos 93 anos

(Carvalho 1997 13-16)

101

Antocircnio ressalta que durante a sua prisatildeo no DOI-CODIRJ esteve junto a

Fernando Gabeira e Daniel Aaratildeo Reis Filho Ambos haviam participado do sequestro

do embaixador americano no dia 4 de setembro de 1969 e por terem conseguido trocar

o embaixador por quinze presos poliacuteticos que foram exilados no Meacutexico haviam se

destacado entre os militantes da esquerda armada Aleacutem disso como na eacutepoca em que

Antocircnio concedeu as entrevistas Gabeira e Daniel Aaratildeo eram pessoas publicamente

reconhecidas pela luta contra a ditadura e tambeacutem por suas atividades profissionais ndash

Gabeira como jornalista e entatildeo deputado federal e Daniel Aaratildeo como intelectual ndash

percebe-se que o fato de ter tido contato com eles na prisatildeo eacute importante para a leitura

que Antocircnio faz sobre suas memoacuterias injetando-lhes certo orgulho Afinal apesar de

natildeo ter participado do sequestro Antocircnio tambeacutem havia sido preso e torturado por

pegar em armas contra a ditadura logo o fato de ter convivido na cadeia com essas

figuras jaacute reconhecidas pelos feitos desse mesmo passado lhe trazia no presente uma

dimensatildeo positiva sobre suas memoacuterias

Fiquei preso com pessoas que ficaram famosas como o Fernando Gabeira

que depois se tornou parlamentar foi candidato ao governo do Estado foi

candidato a prefeito e hoje eacute deputado federal Tambeacutem o Daniel Aaratildeo

Reis renomado professor de Histoacuteria e uma seacuterie de outros que hoje estatildeo aiacute

pelo governo inclusive em diversos governos (Carvalho 12 set 2002)

Apoacutes o tempo em que esteve preso no DOI-CODIRJ Antocircnio foi transferido para

o Departamento de Ordem Poliacutetica e Social (DOPS) onde permaneceu por um periacuteodo

de dois ou trecircs meses sendo entatildeo libertado Na eacutepoca em que concedeu a entrevista

Antocircnio aleacutem de bancaacuterio aposentado trabalhava como dirigente sindical em um cargo

eletivo

102

Dulce Chaves Pandolfi22

Dulce Chaves Pandolfi nasceu em Recife no dia 14 de dezembro de 1948

Cursava Ciecircncias Sociais em Pernambuco quando em 1967 entrou para o Diretoacuterio

Acadecircmico se tornando pouco depois secretaacuteria geral do Diretoacuterio Central dos

Estudantes (DCE) A partir de dezembro de 1968 com o AI-5 extinguindo os grecircmios

estudantis e substituindo-os por centros ciacutevicos sem autonomia que natildeo podiam realizar

atividades de natureza poliacutetica a opccedilatildeo de fazer parte da ALN era para Dulce uma

forma de continuar lutando por uma ldquosociedade mais igualitaacuteriardquo Aleacutem disso era

sobretudo um meio de derrubar o regime militar em vigor como se pode conferir na

passagem abaixo

[] a gente queria transformar a sociedade a gente queria o socialismo uma

sociedade igualitaacuteria Mas tinha uma fase anterior que era exatamente a de

querer derrubar a ditadura essa era a meta principal de todos Sabiacuteamos

inclusive que o socialismo natildeo era uma meta imediata era uma luta em

longo prazo [] entatildeo a nossa luta inicialmente era para ser instalado o

regime democraacutetico era a luta contra a ditadura (Pandolfi 5 fev 2003)

Ressalta-se entretanto que a opccedilatildeo de Dulce assim como da maior parte dos

estudantes que a partir do AI-5 se juntaram agraves organizaccedilotildees esquerdistas de luta armada

estava inserida no contexto mundial de 1968 Este por sua vez influenciava-se pela

vitoacuteria da Revoluccedilatildeo Cubana em 1959 pela independecircncia da Argeacutelia em 1962 pela

Guerra Fria que acabou por deflagrar entre os anos de 1959 e 1975 a Guerra do Vietnatilde

e por meio desta o enfrentamento indireto de Estados Unidos e Uniatildeo Sovieacutetica e pela

rebeliatildeo estudantil mundial iniciada a partir do ldquomaio francecircs de 1968rdquo que comeccedilou

por meio de uma manifestaccedilatildeo estudantil pontual questionadora de atitudes culturais

22

Entrevista realizada com Dulce Chaves Pandolfi em 5 de fevereiro de 2003

103

tradicionais e conservadoras e rapidamente atingiu a proporccedilatildeo de uma ldquorevoluccedilatildeo

cultural mundialrdquo Percebe-se entatildeo que o horizonte nesse momento era revolucionaacuterio

e principalmente entre os jovens impulsionava a percepccedilatildeo de que os partidos

tradicionais de esquerda estavam desacreditados e que era hora de uma nova geraccedilatildeo

partir para a accedilatildeo direta rumo agrave revoluccedilatildeo

Assim diferente de como eacute narrado por muitos ex-prisioneiros poliacuteticos em

tempos jaacute democraacuteticos que tais como Dulce veem a democracia do presente como

uma conquista positiva e por isso inconscientemente permitem que essa visatildeo atual

influencie suas memoacuterias de luta percebe-se aqui que a democracia natildeo prevalecia entre

os ideais das organizaccedilotildees de luta armada da eacutepoca muito pelo contraacuterio Afinal

acredita-se que em meio ao contexto mundial do momento as esquerdas armadas

tinham uma perspectiva de fato revolucionaacuteria ou seja valorizavam a revoluccedilatildeo muito

mais que a democracia que inclusive nesse momento estava diretamente associada

aos Estados Unidos e consequentemente ao sistema capitalista Como aponta Daniel

Aaratildeo na obra a Ditadura militar esquerdas e sociedade (2000)

a perspectiva ofensiva revolucionaacuteria que havia moldado aquelas

esquerdas E o fato de que elas natildeo eram de modo nenhum apaixonadas pela

democracia (Aaratildeo Reis 2000 70)

A democracia soacute comeccedilou mesmo a ser valorizada a partir do final da deacutecada de

1970 jaacute em uma nova conjuntura onde jaacute existiam outros significados tais como os

direitos humanos e a luta pela anistia No entanto por outro lado nota-se que conforme

destacado por Dulce a luta contra ditadura era tambeacutem um dos objetivos principais da

esquerda armada no final dos anos 1960 Dessa forma apesar da luta contra ditadura na

eacutepoca estar totalmente vinculada agrave revoluccedilatildeo socialista eacute compreensiacutevel que a

democracia tenha em tempos recentes um papel destacado entre as memoacuterias dos ex-

104

guerrilheiros Tal como analisa Marcelo Ridenti em Resistecircncia e mistificaccedilatildeo da

resistecircncia armada contra a ditadura armadilha para pesquisadores (2004) nota-se

aqui que a face de resistecircncia agrave ditadura das experiecircncias guerrilheiras passou a importar

mais apoacutes a implantaccedilatildeo da democracia que a ofensiva revolucionaacuteria ao contraacuterio da

intenccedilatildeo original dos guerrilheiros Afinal foi esta face que teve o objetivo alcanccedilado

ou seja saiu-se vencedora

Apoacutes o AI-5 Dulce optou entatildeo por militar na Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN)

organizaccedilatildeo de esquerda armada que seraacute abordada ainda neste capiacutetulo Assim no ano

de 1970 sabendo que estava sendo procurada pela repressatildeo por conta de sua militacircncia

clandestina Dulce se mudou para a cidade do Rio de Janeiro Sete meses depois no dia

14 de agosto foi presa na casa do seu namorado e levada direto para o DOI-CODIRJ

onde permaneceu cerca de trecircs meses

[] fui presa na casa do meu namorado noacutes fomos presos agrave noite no dia 14

de agosto Fui levada direto para PE Fiquei na PE mais ou menos uns trecircs

meses fiquei ateacute novembro comecinho de dezembro eu acho Depois eu

fui transferida para o DOPS (Pandolfi 5 fev 2003)

Apoacutes permanecer presa no DOI-CODI Dulce foi levada para o DOPS e depois

de seu julgamento foi transferida para o presiacutedio Talavera Bruce prisatildeo feminina de

regime fechado com grau de seguranccedila maacutexima localizada no bairro de Bangu

Passado um ano foi levada de volta para Recife sua cidade natal onde finalmente foi

libertada Encontrou-se prisioneira por mais de um ano de agosto de 1970 ateacute dezembro

de 1971

[] depois de um tempo praticamente um ano que eu estava presa fui

levada para Recife porque eu tambeacutem tinha processo laacute e de laacute eu saiacute Fui

105

solta laacute em Recife depois de um ano Saiacute em dezembro de 1971 fui presa

em agosto de 70 e fui solta em dezembro de 71 (Pandolfi 5 fev 2003)

Dulce no momento de sua entrevista jaacute era professora e pesquisadora do Centro de

Pesquisa e Documentaccedilatildeo de Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil (CPDOC) da Fundaccedilatildeo

Getuacutelio Vargas (FGV) ofiacutecio que exerce ateacute os dias de hoje

Fernando Palha Freire23

Fernando Palha Freire nasceu em Beleacutem (PA) e se mudou para o Rio de Janeiro

no fim de 1964 Antes de vir para o Rio ainda adolescente aprendeu alguns

fundamentos marxistas com sua irmatilde mais velha jaacute universitaacuteria que lhe deu o que ele

chamou de uma ldquonoccedilatildeo de mundordquo Quando se mudou para o Rio de Janeiro Fernando

mesmo jovem jaacute havia se definido esquerdista

Agrave eacutepoca do AI-5 Fernando tinha muitos amigos que militavam em uma

Dissidecircncia do Partidatildeo de Niteroacutei a Dissidecircncia do Estado do Rio de Janeiro que em

meados de 1969 foi desmontada atraveacutes da prisatildeo de seus integrantes pelo oacutergatildeo de

repressatildeo da Marinha o Centro de Informaccedilotildees da Marinha o CENIMAR Como esta

organizaccedilatildeo natildeo tinha um nome especiacutefico para noticiar o seu desmonte na imprensa

com um efeito grandioso os militares daquele oacutergatildeo optaram por nomeaacute-la de

Movimento Revolucionaacuterio 8 de outubro (MR-8) fazendo alusatildeo agrave data em que Che

Guevara havia sido capturado na Boliacutevia morrendo no dia seguinte Foi inclusive a

partir disso que a Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-GB)24

para provocar o

governo ditatorial que haacute pouco havia noticiado o desmonte do perigoso ldquoMR-8rdquo

23

Entrevista realizada com Fernando Palha Freire em 28 de junho de 2004 24

Tais organizaccedilotildees de esquerda da eacutepoca ainda seratildeo abordadas neste capiacutetulo no item 12 A nova

esquerda brasileira

106

assinou em co-autoria com a ALN o sequestro do embaixador norte-americano

autointitulando-se MR-8 como passou desde entatildeo a ser conhecida 25

[] quando veio o golpe minha irmatilde jaacute era universitaacuteria eu era um garoto

eu tinha quinze anos [] ela que me deu mesmo uma noccedilatildeo de mundo de

marxismo Quando veio o golpe noacutes moraacutevamos em Beleacutem No final de 64

eu estava me mudando para o Rio de Janeiro jaacute com essas noccedilotildees de justiccedila

social que eu havia aprendido com ela Digamos assim eu jaacute era

definidamente um cara de esquerda Aiacute veio a luta armada [] a primeira

organizaccedilatildeo [desmontada pelos militares] era o MR-8 uma organizaccedilatildeo de

Niteroacutei uma dissidecircncia do Partidatildeo [PCB] de Niteroacutei onde muitos de seus

integrantes eram meus conhecidos meus amigos entatildeo quando esses caras

foram presos eu jaacute era digamos assim um simpatizante dessa organizaccedilatildeo

natildeo era militante mas era simpatizante [] (Freire 28 jun 2004)

A partir dessa ligaccedilatildeo com outros militantes Fernando optou pela luta armada e

passou a militar na ALN mesma organizaccedilatildeo de Dulce Sua militacircncia poreacutem

concentrava-se em Niteroacutei no estado do Rio de Janeiro onde morava e estudava

economia na Universidade Federal Fluminense (UFF) Assim em 1970 Fernando e

outros militantes da ALN proacuteximos a ele resolveram planejar uma accedilatildeo para que muitos

de seus companheiros inclusive os do antigo MR-8 fossem libertados

No dia 1deg de julho de 1970 aos 22 anos Fernando participou do sequestro de um

aviatildeo da Companhia Cruzeiro do Sul que ia do Brasil para a Argentina com o objetivo

de negociar a troca dos passageiros por quarenta presos poliacuteticos

[] a gente pensou em fazer uma accedilatildeo accedilatildeo no sentido de tentar libertar esse

pessoal Na eacutepoca jaacute tinham sequestrado o embaixador americano e

trocado por quinze presos poliacuteticos [] Entatildeo nesse sentido a gente

resolveu planejar o sequestro de um aviatildeo A gente sequestrou um aviatildeo com

o objetivo de trocar os passageiros por quarenta presos poliacuteticos Quer dizer

25

Para mais informaccedilotildees sobre a mudanccedila de nome da Dissidecircncia da Guanabara para MR-8 ver

Berquoacute 1997 72-73

107

a gente entrou num processo de radicalizaccedilatildeo mesmo A gente queria era a

libertaccedilatildeo [] soacute que essa accedilatildeo natildeo deu certo [] (Freire 28 jun 2004)

O sequestro parecia correr como o planejado Durante o vocirco Fernando e os outros

militantes conseguiram desviar a rota que saiacutea do Rio de Janeiro para Buenos Aires

com escala em Satildeo Paulo fazendo o aviatildeo retornar ao Rio Poreacutem no Aeroporto

Internacional do Rio de Janeiro o Galeatildeo oficiais da Aeronaacuteutica cercaram o aviatildeo e

conseguiram render os opositores poliacuteticos envolvidos na operaccedilatildeo antes que eles

conseguissem negociar a troca dos refeacutens pelos quarenta prisioneiros poliacuteticos Durante

o combate um dos sequestradores irmatildeo de Fernando levou um tiro vindo a falecer

horas depois

A gente chegou a desviar o aviatildeo um aviatildeo que ia pra Argentina com uma

parada em Satildeo Paulo a gente mandou o aviatildeo voltar e quando chegamos ao

Rio o aviatildeo foi cercado Os caras chegaram com gaacutes lacrimogecircneo lama

arma e nessa accedilatildeo o meu irmatildeo foi baleado e depois morreu Eles mataram

meu irmatildeo A gente foi preso pelo CISA que era a forccedila secreta da

Aeronaacuteutica [] Jaacute na descida do aviatildeo a gente apanhou natildeo se sabe de

quem e nem por onde Depois fomos torturados no aparelho de repressatildeo

deles laacute dentro e de laacute fomos transferidos pro DOI-CODI na PE (Freire 28

jun 2004)

Primeiramente aprisionado pelo Centro de Informaccedilotildees e Seguranccedila da

Aeronaacuteutica (CISA) Fernando foi pouco tempo depois transferido para o DOI-

CODIRJ onde permaneceu cerca de dezoito a vinte dias Posteriormente voltou para

as dependecircncias do CISA no aeroporto do Galeatildeo onde ficou cerca de oito meses ateacute

ser julgado Apoacutes seu julgamento foi conduzido para o Instituto Penal Cacircndido Mendes

(IPCM) presiacutedio de seguranccedila maacutexima localizado em Ilha Grande no estado do Rio de

Janeiro Para Fernando em meio agraves privaccedilotildees que vivia nos oacutergatildeos de repressatildeo ser

transferido para um presiacutedio de fato como o da Ilha Grande era na eacutepoca um desejo

108

Afinal aleacutem de saber que laacute estavam alguns de seus companheiros no IPCM existia

uma rotina de presiacutedio normal com direito a jogar futebol no paacutetio a ler jornais e livros

situaccedilatildeo bem diferente da dos DOI-CODI por exemplo que conforme destacado no

capiacutetulo anterior eram oacutergatildeos estritamente de repressatildeo e investigaccedilatildeo localizados em

quarteacuteis cuja prisatildeo era improvisada apenas para cumprir tais funccedilotildees

Oito meses foi o tempo que a gente ficou laacute na Aeronaacuteutica E aiacute o que eacute a

perspectiva de vida Os sonhos da gente Vocecirc quando estaacute preso o seu

sonho eacute fugir realmente mas se vocecirc natildeo tem perspectiva de fuga o seu

sonho eacute o quecirc Eacute ir pra uma coletividade onde estatildeo os outros presos Entatildeo

meu sonho passou a ser esse ir pra Ilha Grande [] laacute eu sabia que os

companheiros estavam laacute sabia que tinha uma lsquopeladinharsquo que a gente podia

bater uma bola campeonato de xadrez livros para ler coisa que esses caras

sacaneavam tanto a gente que nem livros Jornal Raacutedio Essas coisas Nem

pensar Entatildeo meu sonho era Ilha Grande Apesar de ser um lugar

horroroso Era na eacutepoca um presiacutedio de seguranccedila maacutexima isolado (Freire

28 jun 2004)

Fernando permaneceu mais de seis anos na prisatildeo sendo libertado no dia 29 de

setembro de 1976 Ele e os demais companheiros envolvidos no sequestro tiveram suas

condenaccedilotildees embasadas no artigo 28 do Decreto-lei 898 de 29 de setembro de 1969

que alterava a Lei de Seguranccedila Nacional A partir deste artigo ficava estipulada uma

pena de reclusatildeo que poderia variar de 12 a 30 anos para quem devastasse saqueasse

assaltasse sequestrasse incendiasse depredasse ou praticasse qualquer tipo de atentado

pessoal ato de massacre sabotagem ou terrorismo Aleacutem disso no mesmo artigo havia

um paraacutegrafo uacutenico decretando que se a accedilatildeo resultasse em morte a condenaccedilatildeo seria

no miacutenimo agrave prisatildeo perpeacutetua e no maacuteximo agrave morte

Art 28 Devastar saquear assaltar roubar sequestrar incendiar depredar

ou praticar atentado pessoal ato de massacre sabotagem ou terrorismo

109

Pena reclusatildeo de 12 a 30 anos

Paraacutegrafo uacutenico Se da praacutetica do ato resultar morte

Pena prisatildeo perpeacutetua em grau miacutenimo e morte em grau maacuteximo (Decreto-

lei nordm 898 29 set 1969)

A partir desse decreto durante o julgamento de Fernando tentaram condenaacute-lo agrave

prisatildeo perpeacutetua baseando a argumentaccedilatildeo no fato do sequestro do aviatildeo ter acarretado

uma morte no caso a de seu irmatildeo No entanto como esta morte foi ocasionada pela

repressatildeo militar a pena de Fernando ficou estipulada em doze anos de reclusatildeo e mais

adiante reduzida para seis anos

[] tinha uma lei de seguranccedila nova entrado em evidecircncia os caras queriam

dar o exemplo com pena de morte ou prisatildeo perpeacutetua etc e noacutes fomos os

primeiros casos de pena de morte que eles pediram O meu o de Colombo

Jessie Jane - Jane eacute a ex-diretora daqui [Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio

de Janeiro ndash APERJ] [] tinha um artigo vinte e oito que previa pena capital

ou prisatildeo perpeacutetua em caso de morte Soacute que quem morreu foi um dos

nossos o meu irmatildeo foi morto por eles e eles em cima disso tentando

aplicar essa pena soacute que natildeo colou E eu peguei doze anos Colombo pegou

trinta mas era menor aiacute caiu pra dezoito a Jane de vinte e quatro parece

que a Jane caiu pra dezoito E eu como tinha a questatildeo de ser primaacuterio natildeo

sei mais o quecirc enfim quer dizer eu estou resumindo Aiacute por conta disso

fui condenado e fiquei seis anos [] (Freire 28 jun 2004)

Na eacutepoca da entrevista Fernando trabalhava no Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio

de Janeiro (APERJ) onde possuiacutea um cargo de confianccedila conforme explicado

anteriormente Hoje Fernando Palha Freire eacute comerciante responsaacutevel pela cantina do

primeiro piso do preacutedio do Instituto de Filosofia e Ciecircncias Sociais (IFCS) da

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

110

Padre Maacuterio Prigol26

Padre Maacuterio Prigol nasceu em 12 de novembro de 1928 em Vila Gramado no

municiacutepio de Paulo Bento no Rio Grande do Sul Em 1970 quando foi preso era

assistente da Juventude Operaacuteria Catoacutelica (JOC) e da Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO)

grupos ligados agrave Igreja Catoacutelica criados para atender a problemas de jovens e adultos

trabalhadores 27

Apoacutes o golpe de 1964 organizaccedilotildees como a JOC e a ACO ganharam

forccedila entre muitos trabalhadores devido agraves dificuldades impostas pelo governo militar

para a organizaccedilatildeo em sindicatos

A sede nacional da JOC era aqui no morro de Satildeo Joseacute Operaacuterio atraacutes da

Penitenciaacuteria [antigo Complexo Penitenciaacuterio Frei Caneca] era na favela []

eu trabalhei com a JOC de Satildeo Paulo e depois vim para caacute trabalhava na

Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria que hoje se chama MTC Movimento dos

Trabalhadores Cristatildeos Esse movimento preparava os jovens e adultos dos

sindicatos dos partidos poliacuteticos de todos os setores da sociedade onde haacute

trabalhadores que procuram descobrir os acontecimentos a situaccedilatildeo operaacuteria

e sobretudo melhorar a sua condiccedilatildeo de trabalhador E vamos lembrar que

naquela eacutepoca havia a nova lei [lei 458964] que soacute podia ser diretor do

sindicato quem natildeo tinha nada que comprometesse entatildeo todos aqueles que

lutavam pela greve contra a puniccedilatildeo da greve ou de forma geral pelos

trabalhadores natildeo podiam ser nem diretores de associaccedilotildees nem diretores de

sindicatos [] soacute poderia ser diretor de sindicato quem fosse aprovado pela

Lei de Seguranccedila Nacional (Prigol 28 set 2004)

Padre Maacuterio se destaca entre os ex-prisioneiros entrevistados por aleacutem de ser uma

autoridade de uma instituiccedilatildeo de importacircncia mundial como a Igreja Catoacutelica sua

atuaccedilatildeo ser diferente da dos demais natildeo estando ligada agrave esquerda armada da eacutepoca e

ao meio estudantil Quando foi preso no DOI-CODIRJ em 1970 Padre Maacuterio jaacute natildeo

era mais tatildeo jovem para ser estudante e sua formaccedilatildeo poliacutetica natildeo era a mesma da

26

Entrevista realizada com Padre Maacuterio Prigol em 28 de setembro de 2004 27

A JOC e ACO seratildeo abordadas ainda neste capiacutetulo no item 12 A nova esquerda brasileira

111

geraccedilatildeo que pegava em armas jaacute que sua intenccedilatildeo enquanto assistente da JOC e da

ACO era ajudar os trabalhadores a garantirem os seus direitos e para tanto opunha-se

agraves leis impostas pela ditadura solidificando entre os integrantes dessas associaccedilotildees uma

consciecircncia de reivindicaccedilatildeo classista sem entretanto aspirar propriamente a uma

revoluccedilatildeo socialista

Percebe-se poreacutem que a concomitacircncia entre os periacuteodos prisionais de Padre

Maacuterio e os demais entrevistados natildeo eacute casual Afinal diante da ideia de revoluccedilatildeo

socialista que guiava as accedilotildees armadas que se multiplicavam e ganhavam forccedila apoacutes o

AI-5 a consciecircncia de reivindicaccedilatildeo de classe que a JOC e conforme seraacute abordado

adiante principalmente a ACO disseminavam aos seus trabalhadores eram

interpretadas como ameaccediladoras pela repressatildeo Uma vez que as organizaccedilotildees

guerrilheiras tinham por meta justamente conseguir apoio da classe trabalhadora para

concluiacuterem o plano de revoluccedilatildeo socialista e o trabalho da JOC e da ACO vinha unindo

e organizando uma percepccedilatildeo de classe justamente entre os trabalhadores havia uma

forte propensatildeo que futuramente tais trabalhadores se unissem agrave esquerda em prol da

revoluccedilatildeo socialista

Diante disso explica-se o fato de Padre Maacuterio ter sido preso em meados de 1970

pelos agentes de uma das turmas de busca e apreensatildeo do DOI-CODIRJ durante a

invasatildeo feita ao Instituto Brasileiro de Estudos Sociais (IBRAES) que funcionava na

Casa dos Jesuiacutetas localizada na Rua Bambina no bairro de Botafogo Ele outros

integrantes da JOC e os demais estudantes que assistiam ao curso de desenvolvimento

social foram levados ao DOI-CODIRJ Este curso tinha duraccedilatildeo de aproximadamente

oito meses ao longo dos quais os alunos adquiriam informaccedilotildees sobre o sistema

poliacutetico e econocircmico do Brasil

112

Dias antes dos agentes chegarem ateacute o curso toda a direccedilatildeo nacional da JOC

havia sido presa inclusive dois alunos do IBRAES que foram levados ao DOI-

CODIRJ onde possivelmente sob tortura passaram aos agentes da turma de

interrogatoacuterio preliminar de plantatildeo informaccedilotildees sobre o curso que estava ocorrendo na

Rua Bambina Assim quando os agentes do DOI-CODIRJ chegaram ao local

prenderam todos que estavam participando do curso levando primeiro os militantes e

depois os padres Entre eles estavam Padre Maacuterio e Padre Agostinho de Freitas na

eacutepoca assistente latino-americano da JOC

Noacutes fomos presos natildeo por causa do curso mas porque esses elementos do

DOI prenderam esse pessoal da JOC considerados subversivos e

procuravam um dos assistentes que jaacute tinha sido acusado em Belo Horizonte

de ser subversivo o Padre Manuel de Jesus Ele foi assistente nacional da

JOC mas na eacutepoca natildeo era mais assistente [] entatildeo para prender Manuel

de Jesus foram prendendo toda a direccedilatildeo nacional da JOC que foram

torturados barbaramente torturas como por exemplo os homens

sexualmente em todos os aspectos foram torturados Eram quatro jovens

homens e quatro jovens mulheres e entre esses jovens havia dois alunos do

IBRAES onde eu fazia curso onde vaacuterios desses militantes da JOC tambeacutem

participavam inclusive o Manuel de Jesus Entatildeo no IBRAES os militantes

da JOC foram levados presos primeiro e noacutes padres depois e mais ainda

foi preso o assistente latino-americano da JOC Padre Augustinho Freitas

que hoje trabalha em Nova Iguaccedilu Entatildeo todos noacutes fomos presos []

(Prigol 28 set 2004)

Ao ser preso Padre Maacuterio foi levado diretamente para o DOI-CODIRJ onde

juntamente com os outros padres permaneceu por 54 dias enquanto os jovens

militantes da JOC permaneceram por cerca de trecircs meses Por ser padre sua prisatildeo foi

interrompida pela intervenccedilatildeo de cardeais como explica no trecho a seguir destacado

de seu livro autobiograacutefico

113

D Trevisan D Waldir Dom Aloiacutesio e Padre Celso Pinto que estava ligado

ao Secretariado dos Leigos da CNBB [Conferecircncia Nacional de Bispos do

Brasil] informaram a nossa situaccedilatildeo aos cardeais Mais tarde com a

libertaccedilatildeo de alguns de noacutes realizamos um encontro para discutirmos as

humilhaccedilotildees que sofremos (Prigol 2003 117)

Na eacutepoca em que a entrevista foi concedida Padre Maacuterio aos 75 anos era

missionaacuterio saletino trabalhava na Paroacutequia de Nossa Senhora da Salette no Catumbi e

ainda ocupava o cargo de assistente do MTC (Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos)

antiga Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) Atualmente aos 83 anos Padre Maacuterio ainda

permanece ativamente nessas mesmas funccedilotildees

Ana de Miranda Batista28

Ana Bursztyn nome de solteira de Ana de Miranda Batista nasceu no Rio de

Janeiro em 30 de dezembro de 1948 Era militante estudantil enquanto cursava

Farmaacutecia na UFRJ Foi presa pela primeira perto do clube Botafogo de Futebol e

Regatas localizado na Avenida Venceslau Braacutes no bairro de Botafogo em junho de

1968 juntamente com trezentos estudantes Ela e os demais haviam participado de uma

assembleia estudantil na reitoria da UFRJ no campus da Praia Vermelha que

reivindicava mais verbas do governo federal para o ensino superior Os policiais a

levaram para o DOPS libertando-a no dia seguinte Eleita em outubro de 1968

representante dos estudantes de seu curso participou do Congresso da Uniatildeo Nacional

dos Estudantes (UNE) em Ibiuacutena quando foi novamente capturada pela poliacutecia com

mais de 800 estudantes permanecendo pouco mais de uma semana em reclusatildeo

Ateacute 1968 eu fazia parte do Movimento Estudantil do Diretoacuterio da Faculdade

tudo que tinha de movimento estudantil fazia parte da minha preocupaccedilatildeo

28

Entrevista realizada com Ana de Miranda Batista em 17 de novembro de 2004

114

Em junho a gente foi preso no campus de Botafogo [] Nesse dia em que eu

fui presa pela primeira vez foi um dia que cerca de trezentos estudantes

foram presos porque como a gente estava batalhando por mais verbas era

um dia em que o Conselho Universitaacuterio estava reunido na Praia Vermelha

jaacute que a reitoria era na Praia Vermelha [] laacute pelas tantas veio uma notiacutecia

de que tinham cercado a universidade [] e a gente natildeo estava esperando

isso a gente fazia umas passeatas na cidade mas a barra natildeo era pesada []

Aiacute o reitor decidiu sair na frente dos estudantes e atraacutes dele saiacuteram as

lideranccedilas das faculdades - eu era a lideranccedila da minha faculdade - e depois

uns trezentos estudantes Aiacute eles comeccedilaram a atirar para baixo para o chatildeo

[] e a gente saiu correndo sem enxergar nada e a poliacutecia dando porrada e a

gente sem enxergar nada (risos) Fomos entatildeo andando em direccedilatildeo ao tuacutenel

quando algueacutem disse ldquo- Vem por aqui por aquirdquo Sem saber que era uma

cilada fomos quase os trezentos para laacute Quando a gente entrou ldquo- Todo

mundo pro chatildeordquo Fomos presos no DOPS naquele dia e passamos a noite laacute

[] Daiacute eacute que a gente comeccedilou a fazer as grandes passeatas na cidade ateacute

que comeccedilou a ter passeata sempre mobilizaccedilotildees [] Em outubro de 68 a

gente foi para o Congresso de Ibiuacutena em Satildeo Paulo que foi um congresso

da UNE que estava clandestina na eacutepoca onde fomos todos presos Foi aiacute eacute

que ficou preso natildeo sei cerca de oitocentos estudantes Eles ateacute fizeram um

aacutelbum ficharam todo mundo Esse foi o aacutelbum que eles mostravam na

imprensa e nos cartazes depois porque evidentemente quando a barra

pesou metade das lideranccedilas do movimento estudantil foi para a luta armada

[] mas a gente ficou uma semana preso e depois de uma semana ou dez

dias a gente saiu Mas a barra comeccedilou a pesar mesmo a partir de 13 de

dezembro com o AI-5 [] (Batista 17 nov 2004)

Apoacutes o decreto do AI-5 Ana assim como Antocircnio se aproximou de alguns

integrantes do PCBR poreacutem diferentemente dele natildeo chegou a militar no partido

tornando-se tal como Dulce e Fernando militante da ALN Em Satildeo Paulo para onde

fugiu quando estava sendo perseguida Ana foi presa no dia 14 de julho de 1970 dentro

do magazine Mappin no centro da cidade Na situaccedilatildeo Ana portava uma arma e

115

carregava carteira de identidade falsa pela qual se chamava Naacutedia Zanzin conforme

descreve na passagem abaixo

Quando eu saiacute da casa que a gente estava o Bacuri [codinome de Eduardo

Collen Leite seu companheiro de organizaccedilatildeo] me deu uma arma e dezoito

caacutepsulas porque eu estava sendo procurada [] eu estava com uma carteira

de identidade falsa me chamava Naacutedia Zanzin [] fui presa entatildeo com

nome falso e foi um bafafaacute o cara quis me tirar a arma da matildeo e entatildeo eu

reagi teve um tiro [] Naquele dia eu tinha perdido o lsquopontorsquo [ponto de

encontro com outro militante] porque eu fiquei conversando com a minha

amiga e cheguei atrasada O ponto era perto do centro da cidade e como eu

tinha que esperar duas ou trecircs horas ateacute o proacuteximo encontro eu fiquei

rodando por laacute onde entrei numa loja grande como se fosse a antiga Mesbla

[] chamava-se Mappin Laacute eu fiquei comprando coisas para maquiagem

para mudar a minha cara [] Laacute dentro eles tinham vaacuterios seguranccedilas e um

ou dois deles ficaram em duacutevida se tinham reconhecido ou natildeo quem eu era

e se aproximaram de mim Eu estava na fila para pagar quando se eles se

aproximaram e disseram ldquo- Essas coisas a senhora paga em outro lugarrdquo Aiacute

eu ldquo- Mas eu estou na fila para pagarrdquo Aiacute eles ldquo- Vem com a gente que a

senhora vai pagar em outro lugarrdquo Entatildeo entrei no elevador e fui parar no

seacutetimo andar na parte de seguranccedila da loja Laacute eles queriam que eu me

explicasse Eu tirei tudo o que eu tinha da bolsa eu fui tirando e mostrei para

eles que estava com dinheiro na bolsa e estava na fila para pagar Aiacute eles ldquo-

Natildeo natildeo eacute isso natildeo mas a gente precisa revistarrdquo E eu fui tirando tudo da

bolsa para ver se eles natildeo me revistavam mas eles ldquo- Natildeo a gente vai

revistarrdquo Aiacute comeccedilaram a lutar comeccedilou um pega bolsa e tira bolsa que eu

natildeo queria porque a arma estava no fundo da bolsa Aiacute eu falava ldquo- Natildeo

mas natildeo precisa estaacute tudo aquirdquo Mas natildeo era isso natildeo era porque eles

achavam que eu estava roubando eles desconfiavam de alguma coisa e natildeo

sabiam bem o quecirc e resolveram me revistar Aiacute eu reagi Depois disso

chamaram o delegado e me botaram amarrada na cadeira laacute em cima no

andar da seguranccedila da loja (Batista 17 nov 2004)

116

Esse mesmo episoacutedio foi retratado dois dias depois em um trecho do Jornal da

Tarde de 16 de julho de 1970 conforme Elio Gaspari destaca em seu livro As Ilusotildees

Armadas a Ditadura Escancarada (2002)

[] Ana Bursztyn ex-estudante de farmaacutecia presa [] no magazine Mappin

Um vigilante desconfiara ao vecirc-la colocar cosmeacuteticos numa sacola (da loja)

e levou-a a uma sala onde estava o chefe de seguranccedila Ana meteu a matildeo na

bolsa puxou um Taurus 32 feriu-o com um tiro na perna mas natildeo

conseguiu fugir (Gaspari 2002 299-300)

De fato no momento de sua prisatildeo Ana resistiu e disparou um tiro atingindo no

peacute um dos seguranccedilas da loja que era policial militar Naquele dia Ana foi levada presa

sem saber o que de fato tinha ocorrido com aquele homem Assim em novembro de

1970 mecircs do aniversaacuterio da ldquoIntentona Comunistardquo de 1935 Ana ainda presa leu em

um jornal uma relaccedilatildeo de mortos pelos terroristas divulgada pelos oacutergatildeos de seguranccedila

do governo Laacute o homem em quem havia atirado estava listado como morto e ela como

sua assassina Ana passou a carregar a culpa de tecirc-lo matado ateacute que algum tempo

depois ao vecirc-lo assistindo a seu julgamento constatou que o seguranccedila havia

sobrevivido e que aquela notiacutecia era mais um dos boatos que o governo na eacutepoca

costumava veicular na imprensa a fim de manipular a opiniatildeo puacuteblica

Depois disso durante anos quando eu estava presa no dia da Intentona

Comunista que eu acho que eacute novembro de 1935 colocavam nos jornais em

todos os jornais uma relaccedilatildeo dos mortos pelos terroristas entre aspas que

eacuteramos noacutes [] eu li que o cara laacute Izidoro Zambaldi foi morto pela

terrorista Ana Bursztyn Ele na hora da briga eu briguei com ele ele recebeu

um tiro acho que no peacute esbarrou assim no peacute ele ficou uns dias internado e

saiu ele estava no meu julgamento na audiecircncia Quer dizer e durante

muito tempo eu achando que tinha o matado Era um dos que eles

117

contabilizavam como mortos por noacutes E provavelmente ele estaacute aiacute vivo ateacute

hoje [] (Batista 17 nov 2004)

Ana foi presa portanto por ter sido reconhecida por um policial que tambeacutem

trabalhava como seguranccedila para a loja Mappin Provavelmente isso ocorreu pelo fato

dos organismos de repressatildeo colarem pelos muros da cidade bem como distribuiacuterem

nos estabelecimentos privados muitos folhetos e cartazes com fotos dos ldquoterroristas

procuradosrdquo pela ditadura militar entre os quais Ana A divulgaccedilatildeo de tais fotos era

mais uma forma que os agentes da repressatildeo utilizavam para cercar os suspeitos Assim

qualquer pessoa poderia denunciar e qualquer policial poderia prender tais suspeitos No

entanto caso a prisatildeo natildeo fosse feita pelos agentes do DOI-CODI da respectiva Regiatildeo

Militar obrigatoriamente depois de preso o cidadatildeo considerado ldquosubversivordquo deveria

ser para laacute transferido conforme ocorreu com Ana Afinal como jaacute analisado no

primeiro capiacutetulo o DOI-CODI de cada Regiatildeo concentrava as informaccedilotildees sobre

seguranccedila interna de cada aacuterea portanto laacute existiam as condiccedilotildees necessaacuterias para que a

extraccedilatildeo e anaacutelise das informaccedilotildees que os prisioneiros detivessem fossem trabalhadas

de forma mais eficiente

Diante disso Ana nos primeiros dias de prisatildeo passou pelo DOPS-SP e em

seguida pelo DOI-CODISP sendo posteriormente transferida para o DOI-CODIRJ

Laacute permaneceu por um mecircs voltando para DOI-CODISP passando ainda pelo

DOPSSP Depois de julgada foi levada para o Recolhimento de Presos Tiradentes ndash

localizado na Rua Tiradentes na cidade de Satildeo Paulo ndash para o Presiacutedio de Mulheres ndash

localizado no antigo Complexo Penitenciaacuterio do Carandiru tambeacutem na cidade de Satildeo

Paulo ndash e ainda passou por delegacias das poliacutecias Federal do Rio de Janeiro e de Satildeo

Paulo pelo Presiacutedio do Forte de Copacabana no Rio de Janeiro e por fim pelo

Depoacutesito de Presas Satildeo Judas Tadeu localizado no preacutedio do DOPS-RJ Permaneceu

118

presa por cerca de quatro anos conseguindo liberdade condicional em fevereiro de

1974

Ana de Miranda Batista nome que adotou depois de casada eacute farmacecircutica

bioquiacutemica e na eacutepoca em que concedeu a entrevista era ativista do Grupo Tortura

Nunca MaisRJ (GTNMRJ)

Ceciacutelia Coimbra29

Ceciacutelia Maria Bouccedilas Coimbra nasceu no Rio de Janeiro em 16 de marccedilo de 1941

Ao ingressar no curso de Histoacuteria da Universidade do Brasil atual UFRJ Ceciacutelia que

era por descendecircncia familiar ldquoconservadora e catoacutelicardquo em suas proacuteprias palavras

comeccedilou a questionar-se poliacutetica e religiosamente Iniciou assim sua militacircncia no

Partido Comunista Brasileiro (PCB) clandestino na eacutepoca Entre 1962 e 1963

trabalhou em um programa de alfabetizaccedilatildeo de adultos pelo meacutetodo do educador Paulo

Freire fato que visivelmente a marcou muito Apoacutes o golpe de 64 Ceciacutelia continuou

militando no Partido Comunista poreacutem com muitas discordacircncias ateacute quando comeccedilou

a fazer parte de uma das dissidecircncias do referido partido a Dissidecircncia Comunista da

Guanabara a que ela se refere por ldquoPC da Guanabarardquo

[] eu vim de uma famiacutelia muito tradicional extremamente tradicional meu

pai era um conservador era um cara que era portuguecircs a favor do regime

ditatorial de Salazar A minha matildee era extremamente catoacutelica Tanto que

quando eu entrei para faculdade para fazer Histoacuteria eu era uma pessoa

extremamente conservadora Era lacerdista a favor do Carlos Lacerda

contra Joatildeo Goulart contra os comunistas A minha famiacutelia era muito

anticomunista E quando eu entrei para a faculdade eu ateacute falei isso na

entrevista para a lsquoCaros Amigosrsquo [sua entrevista havia sido capa da Revista

Caros Amigos naquele mesmo mecircs] comecei a ter contato com algumas

29

Entrevista realizada com Ceciacutelia Maria Bouccedilas Coimbra em 30 de novembro de 2004

119

pessoas que eram comunistas e eram pessoas muito interessantes muito

inteligentes e eram pessoas com as quais as duacutevidas que eu tinha com

relaccedilatildeo agrave religiatildeo eu comecei a tirar Porque eu comecei a ler marxismo aiacute

eu comecei a ler materialismo histoacuterico materialismo dialeacutetico e eu comecei

a ver que de repente a religiatildeo era uma coisa produzida pelo proacuteprio

homem [] Eu comecei entatildeo em 6263 a participar de reuniatildeo do Partido

Comunista que era clandestino na eacutepoca e acabei entrando para o Partido

Aiacute comecei a namorar um cara que depois se tornou meu marido e foi preso

comigo que haacute pouco tempo eu ateacute me separei [] Ele jaacute era do Partido

Comunista haacute muito tempo a famiacutelia dele era toda uma famiacutelia formada por

comunistas ao contraacuterio da minha (risos) Em 64 veio o golpe mas aiacute eu

antes disso eu acho que tem a ver porque isso para mim tambeacutem eacute

militacircncia eu fui trabalhar com um programa de alfabetizaccedilatildeo de adultos

pelo meacutetodo Paulo Freire eu trabalhei com o proacuteprio Paulo Freire em 63 um

pouco antes do golpe [] Entatildeo depois do golpe eu continuei militando no

Partido mas jaacute com muitas discordacircncias quer dizer discordava de muita

coisa e aiacute comecei a fazer parte do que se chamou de Dissidecircncia do PC da

Guanabara (Coimbra 30 nov 2004)

Entretanto Ceciacutelia comeccedilou a discordar tanto da luta armada que a Dissidecircncia

Comunista da Guanabara a partir de 1968 veio a adotar quanto do caminho paciacutefico e

institucional defendido pelo PCB se afastando de ambos Dessa forma em 1968

Ceciacutelia Coimbra natildeo militava em nenhuma organizaccedilatildeo mas continuou a manter

contato com muitos companheiros que se tornaram guerrilheiros Destaca-se portanto a

partir do caso especiacutefico de Ceciacutelia como a histoacuteria oral eacute importante para que a

complexidade da militacircncia poliacutetica da eacutepoca seja compreendida Afinal por meio dessa

metodologia torna-se possiacutevel perceber que nem todos os estudantes que estiveram

ligados ao movimento estudantil e agraves dissidecircncias do Partido Comunista em meio ao

arrocho da repressatildeo acompanharam a decisatildeo de partir para a luta armada tomada por

muitas dissidecircncias e nem mesmo resolveram retornar agrave luta paciacutefica travada pelo

Partido Comunista Logo a histoacuteria oral permite atraveacutes dos depoimentos dos

120

militantes daquele tempo observar que tal como Ceciacutelia muitos desses militantes

ficaram principalmente a partir do AI-5 agrave margem da atuaccedilatildeo poliacutetica apesar de natildeo

terem abandonado os ideais de esquerda

Quando foi presa em 1970 Ceciacutelia natildeo estava diretamente relacionada a nenhuma

organizaccedilatildeo esquerdista entretanto como ainda relacionava-se com muitos militantes

guerrilheiros e algumas vezes ateacute mesmo abrigando-os em sua casa tinha informaccedilotildees

consideradas relevantes para os agentes do DOI-CODIRJ o que veio a ocasionar sua

prisatildeo Como vivia de forma legalizada com famiacutelia e emprego Ceciacutelia tinha passado

juntamente com seu marido a ajudar seus companheiros clandestinos Sua casa na

eacutepoca localizada no bairro do Engenho de Dentro na zona norte do Rio de Janeiro

passou a servir como esconderijo para alguns amigos que diferentemente de Ceciacutelia e

Novaes haviam continuado militantes da Dissidecircncia Comunista da Guanabara mesmo

apoacutes sua opccedilatildeo pela luta armada Entre os amigos que receberam guarida em sua casa

estavam Franklin Martins e Fernando Gabeira ambos envolvidos no sequestro do

embaixador norte-americano

Gabeira inclusive esteve hospedado na casa do casal logo apoacutes a libertaccedilatildeo do

referido embaixador sequestrado em setembro de 1969 Por conta disso em agosto de

1970 Ceciacutelia Coimbra e seu marido Joseacute Novaes foram denunciados e presos

[] eu ajudava muito esses companheiros porque eu tinha vida legal eu jaacute

era professora tinha casa tinha filho e meu marido era professor de

Filosofia entatildeo a nossa casa era onde as pessoas se escondiam passavam

uma noite passavam dias escondidos Por exemplo o pessoal do Movimento

estudantil o Franklin Martins o Fernando Gabeira [] todos eles passaram

por laacute entatildeo a gente ajudava muito [] Em 1969 o pessoal do MR-8 que

eram companheiros nossos amigos e tal vieram nos procurar para perguntar

se noacutes poderiacuteamos dar um apoio a um ato a uma accedilatildeo como se dizia na

eacutepoca a uma accedilatildeo que ia acontecer Mas a gente natildeo sabia que era o

sequestro do embaixador E aiacute depois de um tempo a gente ficou com o

121

Fernando Gabeira [] Eacute oacutebvio que depois a gente soube porque foi depois

que eles entregaram o embaixador que eles se esconderam laacute em casa E aiacute a

televisatildeo dava e a gente sacou que o Gabeira estava ali com a gente porque

natildeo tinha como guardar seguranccedila porque jaacute estava na televisatildeo a cara de

todos eles E a gente guardou ele laacute A gente soube que ele tinha participado

do sequestro do embaixador e conversaacutevamos muito sobre isso Ele ficou

algum tempo laacute em casa e depois saiu Um tempo depois a gente foi

denunciado a casa estava sendo observada e a gente natildeo sabia []

(Coimbra 30 nov 2004)

Ceciacutelia e Joseacute Novaes apoacutes terem a casa onde moravam cercada por agentes do

DOPSRJ foram para laacute levados e laacute permaneceram por dois dias No DOPS Ceciacutelia

ficou sob interrogatoacuterio por um dia e meio para que esclarecesse a origem de um

documento encontrado no interior de sua casa No segundo dia de prisatildeo foi levada para

o presiacutedio feminino Satildeo Judas Tadeu localizado no proacuteprio preacutedio do DOPSRJ Apoacutes

permanecerem dois dias e meio no DOPS Ceciacutelia e Novaes foram transferidos para o

DOI-CODIRJ

Ceciacutelia Coimbra ficou cerca de trecircs meses presa no DOI-CODIRJ sendo

libertada em novembro de 1970 Natildeo foi transferida para nenhum outro presiacutedio sendo

libertada diretamente do DOI-CODIRJ por meio da menagem conforme analisado no

primeiro capiacutetulo Sendo assim uma vez que natildeo foi constatado nenhum envolvimento

direto de Ceciacutelia com alguma accedilatildeo ldquosubversivardquo ela estava impedida de sair da cidade

ateacute a data de seu julgamento e durante esse iacutenterim teve que comparecer ao DOI-

CODIRJ regularmente para se apresentar e responder ao Inqueacuterito Policial Militar

(IPM)

Na eacutepoca da entrevista Ceciacutelia aleacutem de vice-presidente do GTMNRJ lecionava

no curso de Psicologia da UFF Atualmente continua com essas mesmas atividades

poreacutem no GTNMRJ ocupa hoje o cargo de presidente

122

12 A nova esquerda brasileira

Para melhor entender as memoacuterias dos ex-prisioneiros poliacuteticos aqui entrevistados

eacute importante caracterizar as organizaccedilotildees de esquerda nas quais os seis militavam

quando foram presos no DOI-CODIRJ Afinal a opccedilatildeo de atuar atraveacutes de certas

organizaccedilotildees estaacute diretamente relacionada com a percepccedilatildeo de mundo que cada um

tinha e tambeacutem com a ousadia a coragem as frustraccedilotildees por que passaram e com tantos

outros sentimentos e sensaccedilotildees que certamente influiacuteram diretamente na construccedilatildeo da

memoacuteria de cada um desses indiviacuteduos sobre o periacuteodo militar

Como jaacute destacamos ao traccedilarmos o perfil dos entrevistados as organizaccedilotildees em

que os estudantes Antocircnio Leite Fernando Palha Dulce Pandolfi e Ana de Miranda

militavam ao serem presos eram o PCBR e a ALN grupos poliacuteticos de esquerda ligados

ao combate armado Jaacute Padre Maacuterio era assistente da ACO e da JOC ndash associaccedilotildees

criadas para atender demandas de jovens e adultos trabalhadores e catoacutelicos Ceciacutelia

Coimbra era a uacutenica que natildeo era diretamente ligada a alguma organizaccedilatildeo na eacutepoca de

sua prisatildeo mas sua participaccedilatildeo anterior na Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-

GB) influenciou de forma indireta em sua prisatildeo e por isso merece ser aqui

considerada A partir disso analisa-se nesta seccedilatildeo de trabalho o PCBR a ANL a JOC a

ACO e a Dissidecircncia Comunista da Guanabara que passou a chamar-se MR-8

Diferentemente da JOC e da ACO que eram associaccedilotildees ligadas ao trabalho

social feito pela Igreja Catoacutelica o PCBR a ANL a DI-GBMR-8 faziam parte do que

vinha sendo nomeado desde a deacutecada de 1960 de nova esquerda brasileira Essa nova

esquerda era formada pelas dissidecircncias do Partido Comunista surgindo como forma de

buscar caminhos alternativos para a transformaccedilatildeo social e segundo Maria Paula

Arauacutejo em A utopia fragmentada (2000) natildeo era um fenocircmeno tipicamente brasileiro

123

ocorrendo concomitantemente em outras partes do mundo como Alemanha Franccedila

Itaacutelia Estados Unidos e Meacutexico 30

As organizaccedilotildees desta nova esquerda brasileira aleacutem de serem marcadas pelo

signo da dissidecircncia e pela busca de caminhos alternativos possuiacuteam outras ideias em

comum Havia entre elas uma forte desconfianccedila em relaccedilatildeo agraves formas tradicionais de

atuaccedilatildeo e representaccedilatildeo poliacuteticas jaacute que os tradicionais partidos comunistas na

avaliaccedilatildeo desses militantes eram travados por complicados aparatos burocraacuteticos Em

oposiccedilatildeo a essa linha dita ldquoconservadorardquo valorizaram a accedilatildeo revolucionaacuteria imediata

Aleacutem disso a maioria recusava a alianccedila com ldquofraccedilotildees das classes dominantesrdquo forma

como viam o Movimento Democraacutetico Brasileiro (MDB) na eacutepoca uacutenico partido de

oposiccedilatildeo consentido pela ditadura militar Enquanto o PCB continuava mantendo o

programa de via paciacutefica para o socialismo a dita nova esquerda defendia a luta armada

como a principal forma de atuaccedilatildeo naquele momento apesar de divergirem entre si

sobre as estrateacutegias a seguir 31

As divergecircncias internas no PCB atingiram o aacutepice por ocasiatildeo dos preparativos

para o VI Congresso do partido convocado para dezembro de 1967 Os debates acerca

das Teses para Discussatildeo veiculadas na Voz Operaacuteria publicaccedilatildeo clandestina do

Comitecirc Central do PCB causaram muita polecircmica Essas Teses propunham que a

derrota da ditadura deveria ser alcanccedilada por meio da alianccedila com setores progressistas

incluindo a burguesia e da participaccedilatildeo do PCB na poliacutetica institucional reafirmando a

opccedilatildeo pelo caminho paciacutefico para a revoluccedilatildeo social Tais Teses geraram uma total

insatisfaccedilatildeo dos setores oposicionistas do PCB que se revoltaram contra o Comitecirc

Central do chamado Partidatildeo Assim sem a participaccedilatildeo dos dissidentes internos o

PCB realizou o seu VI Congresso e reafirmou a ideia trazida pelas Teses

30

Para mais informaccedilotildees ver Arauacutejo 2000 35-72 31

Para mais informaccedilotildees ver Aaratildeo Reis Saacute 2006 15

124

Pelos jornais da grande imprensa os dissidentes souberam do Congresso e de suas

resoluccedilotildees dentre as quais a que expulsava do partido grandes lideranccedilas da Corrente

Revolucionaacuteria Esta corrente do Partidatildeo divergia de seu Comitecirc Central liderado por

Luiacutes Carlos Prestes e havia se organizado nacionalmente sob a denominaccedilatildeo de

Corrente Revolucionaacuteria Entre suas grandes lideranccedilas expulsas a partir das resoluccedilotildees

do VI Congresso do PCB estavam Carlos Marighella liacuteder da Corrente em Satildeo Paulo

Maacuterio Alves liacuteder em Minas Gerais Jacob Gorender liacuteder no Rio Grande do Sul e

Apolocircnio de Carvalho lideranccedila no antigo Estado do Rio de Janeiro32

Dessa forma em 1968 os principais membros da Corrente Revolucionaacuteria

estavam definitivamente afastados do PCB e juntamente com os militantes que os

seguiram se organizaram e formaram outras organizaccedilotildees poliacuteticas o PCBR e a ALN

Os liacutederes Apolocircnio de Carvalho Jacob Gorender e Maacuterio Alves formaram o Partido

Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR) partido clandestino de esquerda em que

Antocircnio Leite militava ao ser preso e o liacuteder Carlos Marighella fundou a Accedilatildeo

Libertadora Nacional (ALN) organizaccedilatildeo clandestina de esquerda adotada por Dulce

Pandolfi Fernando Palha e Ana Batista

Por outro lado existia outra vertente de divergecircncias internas do PCB as

chamadas Dissidecircncias mais conhecidas pela sigla DI formadas basicamente por

setores estudantis Existiam dissidecircncias em vaacuterios estados brasileiros mas seria a da

Guanabara onde Ceciacutelia Coimbra militou anos antes de ser presa que alcanccedilaria maior

destaque no cenaacuterio poliacutetico e estudantil da deacutecada de 1960

32

Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009

125

Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-GB)

As Dissidecircncias Universitaacuterias surgiram no periacuteodo preacute-1964 em meio a diversas

divergecircncias que abalaram o PCB principalmente em suas bases universitaacuterias Em

1964 esses estudantes divergentes se agruparam e comeccedilaram a reunir militantes de

diferentes universidades a fim de articular posiccedilotildees poliacuteticas que natildeo se afinavam com o

que as direccedilotildees do partido haviam estabelecido ndash no jargatildeo comunista eram as

chamadas ldquofraccedilotildeesrdquo As ldquofraccedilotildeesrdquo eram de acordo com o estatuto proibidas dentro do

partido logo eram executadas secretamente A ldquofraccedilatildeordquo da Guanabara foi inicialmente

constituiacuteda por estudantes comunistas das faculdades de filosofia e de direito hoje

pertencentes agrave UFRJ

Em 1965 as divergecircncias entre os dissidentes e a direccedilatildeo do PCB na Guanabara

comeccedilaram a se mostrar evidentes A orientaccedilatildeo do partido era para que seus militantes

fizessem campanha para o candidato a governador da Guanabara Francisco Negratildeo de

Lima indicado pela alianccedila PTB-PSD considerada de oposiccedilatildeo ao regime militar Com

a crescente radicalizaccedilatildeo do movimento estudantil a Dissidecircncia foi ganhando forccedila

Nas eleiccedilotildees parlamentares de 1966 apesar da orientaccedilatildeo do Partidatildeo para que sua

militacircncia votasse em determinados candidatos os dissidentes da Guanabara resolveram

fazer campanha pelo voto nulo ocasionando o rompimento definitivo entre os dois A

antiga ldquofraccedilatildeordquo passaria a ser a Dissidecircncia Comunista da Guanabara uma nova

organizaccedilatildeo independente com orientaccedilatildeo para a luta armada e com ampla influecircncia

no movimento estudantil carioca 33

Entretanto em 1967 a Dissidecircncia Comunista da Guanabara enfrentaria uma

grave crise poliacutetica interna Naquele momento muitos militantes da organizaccedilatildeo

apresentavam posiccedilotildees divergentes sobre quais rumos ela deveria trilhar Alguns

33

Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009

126

achavam que a Dissidecircncia deveria se integrar agrave Corrente Revolucionaacuteria que ainda

estava lutando internamente para mudar o PCB outros almejavam consolidar a

Dissidecircncia Comunista da Guanabara de forma a tornaacute-la uma organizaccedilatildeo nacional

reunindo nela dissidecircncias que ainda deveriam se desvincular do Partidatildeo e um terceiro

grupo a se juntar ao Partido Comunista do Brasil (PC do B) 34

Afinal a partir do V Congresso do PCB realizado em setembro de 1960 sob

influecircncia da revisionismo aprovado no XX Congresso do Partido Comunista Sovieacutetico

tinha sido aprovada uma nova resoluccedilatildeo poliacutetica para o partido Esta apesar da

resistecircncia dos opositires internos que seguiam a linha de pensamento marxista-

leninista modificava o programa do PCB tornando a nova taacutetica do partido a conquista

de um governo nacionalista e democraacutetico por meio de um processo eleitoral e da

pressatildeo de massas excluindo assim a via armada de seu programa Dessa forma foram

afastados da direccedilatildeo do PCB a maioria de seus opositores e eleito um Comitecirc Central

composto em grande parte por destacados revisionistas como Luiacutes Carlos Prestes

Logo em 18 de fevereiro de 1962 a maior parte dos comunistas que se opunham agrave nova

linha do PCB se separaram do partido e atraveacutes de uma Conferecircncia Extraordinaacuteria

aprovaram um programa que defendia a estrateacutegia chinesa de guerra popular

prolongada se aproximando do maoiacutesmo e adotaram a sigla PC do B (Partido

Comunista do Brasil) Em 1969 o PC do B deflagrou na regiatildeo de Tocantins um foco

guerrilheiro que ficou conhecido como Guerrilha do Araguaia esta foi neutralizada

pelos militares no final de 1973 atraveacutes do extermiacutenio de grande parte dos militantes

envolvidos

Em 1967 um ano depois de se tornar independente a resoluccedilatildeo para a crise

interna da Dissidecircncia Comunista da Guanabara foi o seu desmembramento Apoacutes este

34

Para mais informaccedilotildees ver Aaratildeo Reis 1990 e Ridenti 1993

127

desmembramento e duas conferecircncias internas realizadas em 1968 a Dissidecircncia

Comunista da Guanabara consolidou-se novamente como organizaccedilatildeo autocircnoma tendo

suas lideranccedilas agrave frente das grandes manifestaccedilotildees estudantis ndash que chegavam ao auge

de mobilizaccedilatildeo ndash e conquistando espaccedilo no cenaacuterio nacional Com o seu crescimento

junto ao movimento estudantil a DI-GB se ampliou notavelmente Apoacutes a decretaccedilatildeo

do AI-5 que tornava ilegal o movimento poliacutetico-estudantil a DI-GB organizou em

1969 uma nova conferecircncia reafirmando o seu empenho revolucionaacuterio de caraacuteter

comunista assumindo oficialmente a partir de entatildeo sua opccedilatildeo pela luta armada

Nessa eacutepoca Ceciacutelia Coimbra jaacute havia saiacutedo da organizaccedilatildeo e natildeo participava de

nenhum outro grupo de esquerda apesar de manter contato com muitos companheiros

que continuaram na militacircncia Afinal como abordado durante a anaacutelise de sua

trajetoacuteria Ceciacutelia preferiu se desligar por natildeo concordar nem com a poliacutetica paciacutefica do

entatildeo Partidatildeo e nem com a luta armada das demais organizaccedilotildees inclusive da

Dissidecircncia Comunista da Guanabara pois segundo ela achava que estas estavam

muito desvinculadas da sociedade e por isso natildeo teriam ecircxito

[] eu achava que natildeo era por aiacute eu discordava muito da questatildeo da luta

armada mas eu tambeacutem discordava da posiccedilatildeo do Partido Comunista que

era a favor do caminho paciacutefico a favor do caminho institucional parece

muito o PT de hoje a questatildeo da luta institucional que natildeo era pegando em

armas que natildeo era pela luta armada Eu natildeo concordava nem com um nem

com outro porque o pessoal da luta armada estava totalmente desvinculado

da sociedade brasileira entatildeo eu me afastei mas eu continuei com muito

contato com vaacuterios companheiros e aiacute comeccedilou 67-68 [] (Coimbra 30

nov 2004)

Em setembro de 1969 a Dissidecircncia Comunista da Guanabara juntamente com a

ALN elaborou e promoveu o sequestro do embaixador norte-americano no Brasil

128

Charles Burke Elbrick A accedilatildeo teve ecircxito e os envolvidos conseguiram trocar o

embaixador por quinze prisioneiros poliacuteticos entre eles importantes liacutederes estudantis

da antiga DI-GB Durante esse sequestro conforme explicado anteriormente os

militantes da entatildeo Dissidecircncia resolveram mudar o nome da organizaccedilatildeo para

Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro (MR-8) assinando esse novo nome no

manifesto entregue agrave imprensa

A mudanccedila de Dissidecircncia Comunista da Guanabara para MR-8 era na realidade

uma provocaccedilatildeo agrave ditadura Alguns meses antes do sequestro do embaixador americano

a repressatildeo havia desarticulado uma organizaccedilatildeo poliacutetica e anunciado que tinha

destruiacutedo o grupo terrorista Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro Poreacutem de acordo

com Alberto Berquoacute em O sequumlestro dia-a-dia (1997) o oacutergatildeo repressor que havia

prendido aqueles militantes o CENIMAR inventou esse nome pois o grupo capturado

era na verdade a Dissidecircncia do Estado do Rio de janeiro que a rigor se

autodenominava apenas como Organizaccedilatildeo Os militares entatildeo para anunciar a notiacutecia

na imprensa causando um maior impacto atribuiacuteram agrave Organizaccedilatildeo o nome de MR-8

fazendo referecircncia agrave data em que o guerrilheiro socialista Ernesto ldquoCherdquo Guevara havia

sido preso pela Central Intelligence Agency (CIA) na Boliacutevia Dessa forma ao

utilizarem o nome de MR-8 os militantes da ateacute entatildeo Dissidecircncia Comunista da

Guanabara estariam anunciando pertencerem agrave mesma organizaccedilatildeo que os militares

divulgaram meses antes jaacute estar aniquilada desmoralizando-os publicamente 35

Algum tempo depois do sequestro do embaixador a maioria de seus envolvidos

ou foram presos ou mortos pela repressatildeo Fernando Gabeira um dos militantes do MR-

8 envolvidos nessa accedilatildeo era conhecido de Ceciacutelia Coimbra e de seu marido desde a

eacutepoca em que militavam na Dissidecircncia Comunista da Guanabara Assim apoacutes a troca

35

Para mais informaccedilotildees sobre a mudanccedila de nome da Dissidecircncia Comunista da Guanabara para MR-8

ver Berquoacute 1997 72-73

129

do embaixador pelos prisioneiros poliacuteticos Gabeira por estar sendo procurado acabou

se escondendo na casa do casal fato que veio a ocasionar posteriormente a prisatildeo tanto

de Ceciacutelia quanto de seu marido nas dependecircncias do DOI-CODIRJ

Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR)

O partido clandestino pelo qual Antocircnio Leite militava ao ser preso o PCBR

havia sido criado em abril de 1968 a partir da expulsatildeo de liacutederes da Corrente

Revolucionaacuteria do PCB conforme mencionado anteriormente Um dos liacutederes e

tambeacutem fundador do PCBR Jacob Gorender na obra Combate nas Trevas a esquerda

brasileira (1999 111-116) caracteriza-o como marxista tendo por estrateacutegia de accedilatildeo a

combinaccedilatildeo entre guerrilha rural e trabalho de massas nas cidades com vistas agrave

formaccedilatildeo de um Governo Popular Revolucionaacuterio que abriria caminho para a

revoluccedilatildeo socialista

A partir dessa ideia de trabalho com as massas nas cidades o PCBR buscou

integrar-se agraves lutas estudantis de 1968 por meio das quais Antocircnio Leite de Carvalho

conheceu melhor a ideologia e as lideranccedilas do partido e posteriormente resolveu

tornar-se seu militante Aleacutem disso desenvolveu ainda algum trabalho nas faacutebricas nas

aacutereas rurais e promoveu entre os anos de 1969 e 1970 algumas accedilotildees armadas como

assaltos a bancos e roubos de veiacuteculos a fim de financiar a atuaccedilatildeo do partido Contudo

o PCBR sofreu com sucessivas prisotildees de seus liacutederes e integrantes restringindo de tal

forma o seu poder de accedilatildeo que logo no iniacutecio da deacutecada de 1970 jaacute se encontrava quase

totalmente desarticulado

O precoce fracasso do PCBR segundo a avaliaccedilatildeo feita por Antocircnio ainda

durante sua primeira entrevista (12 set 2002) deve-se ao fato da estrateacutegia de revoluccedilatildeo

pregada pelo partido ser utoacutepica Afinal para Antocircnio os militantes e liacutederes do PCBR

130

inclusive ele proacuteprio acreditavam que com algumas poucas accedilotildees urbanas isoladas

conseguiriam o apoio da grande massa ao movimento revolucionaacuterio e tomariam o

poder Por conseguinte entende que foi justamente esse isolamento a causa da grande

derrota do PCBR como se pode conferir no trecho abaixo

Era uma grande utopia faziacuteamos duas accedilotildees urbanas na cidade e achaacutevamos

que essas accedilotildees seriam capazes de fazer as pessoas aderirem ao nosso

movimento e conseguiriacuteamos o apoio da grande massa [] Isso nunca iria

acontecer porque eram movimentos basicamente de conquistas quer dizer

que trabalhavam isolados e foi o isolamento a causa da nossa grande derrota

(Carvalho 12 Set 2002)

Entretanto eacute importante destacar que esta avaliaccedilatildeo soacute pocircde ser feita a partir do

presente quando jaacute se sabia que a luta armada havia sido derrotada muito antes da

ditadura terminar e que a democracia havia se tornado uma realidade Afinal logo apoacutes

o AI-5 a luta armada e a forma de atuar do PCBR representavam para seus militantes

uma forte possibilidade de derrubar a ditadura militar Eles natildeo se submeteriam a

arriscar suas vidas em prol de uma luta na qual natildeo tivessem total convicccedilatildeo Logo

percebe-se um anacronismo na avaliaccedilatildeo que Antocircnio faz sobre sua luta naquele

passado o que eacute muito comum entre as memoacuterias construiacutedas por ex-guerrilheiros da

eacutepoca conforme destacado pela revolta de um dos que concederam seus depoimentos a

Alzira Alves de Abreu em Os anos de chumbo memoacuteria da guerrilha (1998)

B [nome atribuiacutedo ao ex-guerrilheiro pela autora para preservar sua

identidade] comeccedilou chamando a atenccedilatildeo para o fato de que a mamoacuteria

daquela fase histoacuterica eacute muito precaacuteria ldquoNa verdade ela foi muito mal

construiacuteda acabou virando um folclore e acabou se contando a histoacuteria desse

periacuteodo de traacutes para frente ndash quer dizer sabendo que a luta armada natildeo deu

certo vamos contar por que ela natildeo deu certo Na eacutepoca em que ela ocorreu

ela era um campo de possibilidades natildeo era mais do que isso Mas hoje jaacute se

131

comeccedila a falar desse movimento para se mostrar o fim dessa histoacuteria[]

(Abreu 1998 31)

Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN)

A organizaccedilatildeo em que militavam Dulce Pandolfi Fernando Palha e Ana de

Miranda no momento de suas prisotildees a ALN foi fundada por Carlos Marighella em

fevereiro de 1968 depois de deixar o PCB Marighella havia sido expulso do Partidatildeo

sob a alegaccedilatildeo de ter viajado para Havana em Cuba sem a autorizaccedilatildeo do Comitecirc

Central do partido para participar da conferecircncia da Organizaccedilatildeo Latino-Americana de

Solidariedade (OLAS) ndash organizaccedilatildeo que tinha como objetivo estender a revoluccedilatildeo

armada por toda a Ameacuterica Latina nos moldes da Revoluccedilatildeo Cubana de 1959

Em apoio a Marighella apoacutes sua expulsatildeo do PCB as bases de Satildeo Paulo tambeacutem

se desligaram do partido e formaram o Agrupamento Comunista de Satildeo Paulo O

Pronunciamento desse grupo em fevereiro de 1968 fundou oficialmente a Accedilatildeo

Libertadora Nacional (ALN) muito embora o primeiro quadro de militantes da

organizaccedilatildeo tenha ido treinar em Cuba ainda em setembro de 1967 36

O nome Accedilatildeo Libertadora Nacional seria uma referecircncia agrave Alianccedila Nacional

Libertadora organizaccedilatildeo poliacutetica criada em 1935 composta por setores de diversas

correntes ideoloacutegicas basicamente a fim de lutar contra a influecircncia fascista no Brasil

Nesse mesmo sentido a ALN tambeacutem visava aleacutem da luta socialista a libertaccedilatildeo

nacional buscando adquirir igual ecircxito na congregaccedilatildeo de grande parte da esquerda

brasileira em torno de seus objetivos como ANL havia conseguido durante a deacutecada de

30 No entanto diferentemente da Alianccedila Nacional Libertadora a Accedilatildeo Libertadora

36

Para mais informaccedilotildees ver Lima 2007 31

132

Nacional natildeo era configurada por uma poliacutetica de alianccedilas mas pelo combate pela accedilatildeo

direta 37

Quanto ao programa da organizaccedilatildeo a ALN tinha por estrateacutegia maior a guerrilha

rural embora sua tarefa taacutetica estivesse concentrada nas cidades onde a maior parte de

suas accedilotildees ocorria Essas accedilotildees urbanas eram consideradas pela organizaccedilatildeo como um

meio de apoio para propaganda poliacutetica para obtenccedilatildeo de fundos (atraveacutes de

expropriaccedilotildees como assaltos a bancos) para recrutamento de quadros para a guerrilha e

para ataques estrateacutegicos ao inimigo Aleacutem disso a ALN permitia a existecircncia de

pequenos grupos com total independecircncia taacutetica desde que estivessem subordinados agrave

sua estrateacutegia geral Dessa forma sua estrutura pode ser entendida como horizontal sem

hierarquias jaacute que segundo Denise Rollemberg em Esquerdas revolucionaacuterias e luta

armada (2003) o militante da ALN que se considerasse capaz de fazer accedilotildees era

incentivado a agir e natildeo a ficar esperando a orientaccedilatildeo de um poder centralizado Afinal

uma das criacuteticas da antiga Corrente Revolucionaacuteria do PCB da qual o liacuteder da ALN

Marighella foi integrante era justamente sobre a centralizaccedilatildeo e como esta emperrava a

atuaccedilatildeo do partido Dessa forma a ALN atuava por meio de diversos grupos

multiplicando suas accedilotildees

A partir disso percebe-se como o sequestro do aviatildeo da Companhia Cruzeiro do

Sul efetuado pelo pequeno grupo que Fernando Palha integrava pocircde ser executado

dentro da ALN assim como os inuacutemeros assaltos a bancos e carros-fortes e os

sequestros a embaixadores em que outros pequenos grupos ligados agrave ALN estiveram

envolvidos Dessa forma nota-se tambeacutem como e por que a ALN se tornou a maior

organizaccedilatildeo de luta armada da eacutepoca e por conseguinte Marighella e seus demais

militantes os mais procurados pela ditadura militar 38

37

Para mais informaccedilotildees ver Lourenccedilo 2005 191 38

Para mais informaccedilotildees ver Gorender 1999

133

No trecho seguinte retirado da entrevista de Fernando Palha destaca-se como

muitos desses pequenos grupos da ALN tinham espaccedilo para planejar e administrar suas

proacuteprias accedilotildees sem se desligarem da Accedilatildeo

Eu era da ALN Accedilatildeo Libertadora Nacional era a maior organizaccedilatildeo de luta

armada que tinha na eacutepoca A Jane [Jessie Jane] por exemplo veio para caacute

para Niteroacutei jaacute fugida de Satildeo Paulo onde prenderam o pai prenderam a matildee

a famiacutelia dela toda sabe O pai natildeo era de nenhuma organizaccedilatildeo mas dava

guarida [] ele era um cara politizado e ela tambeacutem e quando ela veio para

caacute para Niteroacutei ela entrou para o nosso grupo de estudo Estudaacutevamos o

marxismo guerrilhas enfim aprendendo um pouco Aiacute a gente pensando

em como soltar eles [os pais de Jessie Jane] surgiu a ideacuteia de sequestrar o

aviatildeo O sequestro do aviatildeo foi tranquilo difiacutecil foi a negociaccedilatildeo da troca

dos passageiros pelos presos que a gente queria (Freire 28 jun 2004)

Essas variadas e espalhadas accedilotildees da ALN repercurtiram de forma negativa entre

os militares dos oacutergatildeos repressivos Afinal a atuaccedilatildeo descentralizada da ALN permitia

que uma grande quantidade de accedilotildees ldquoterroristasrdquo fossem atribuiacutedas ao movimento

tornando-o aos olhos dos agentes da repressatildeo mais ameaccedilador e perigoso agrave

manutenccedilatildeo do regime ditatorial Essa percepccedilatildeo dos militares pode ter causado reflexos

no cotidiano prisional de militantes ligados direta ou indiretamente agrave referida

organizaccedilatildeo como Dulce Fernando Ana e Ceciacutelia39

ndash considerada militante indireta

por ter escondido em sua casa um dos atores do sequestro do embaixador norte-

americano accedilatildeo conjunta entre MR-8 e ALN

39

No terceiro capiacutetulo a anaacutelise da memoacuteria dos seis entrevistados (Antocircnio Dulce Fernando Padre

Maacuterio Ana e Ceciacutelia) se concentra no cotidiano prisional vivido no DOI-CODI carioca

134

Juventude Operaacuteria Catoacutelica (JOC) amp Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO)

A Juventude Operaacuteria Catoacutelica a JOC uma das organizaccedilotildees de que Padre Maacuterio

era assistente no momento de sua prisatildeo surge no Brasil em iniacutecio dos anos 1930

ganhando forccedila apenas a partir de fins de 1940 A JOC objetivava melhorar a vida do

jovem trabalhador atraveacutes de uma accedilatildeo evangelizadora e formadora de uma consciecircncia

criacutetica Eacute a responsaacutevel pela criaccedilatildeo do meacutetodo pedagoacutegico ldquoVer-Julgar-Agirrdquo

ensinando seus jovens a ver o problema a julgaacute-lo agrave luz do Evangelho e a agir para

transformar sua condiccedilatildeo de classe trabalhadora explorada

A JOC que apresentava uma posiccedilatildeo mais conservadora ateacute meados da deacutecada de

1950 a partir do golpe de 1964 assume outra orientaccedilatildeo poliacutetica de caraacuteter mais

progressista realizando uma reflexatildeo mais profunda no que se refere agrave condiccedilatildeo da

classe trabalhadora do paiacutes e da Ameacuterica Latina o que ocasiona uma maior repressatildeo

por parte do governo ditatorial brasileiro Atraveacutes da JOC a criaccedilatildeo da Accedilatildeo Catoacutelica

Operaacuteria (ACO) ndash outra organizaccedilatildeo de que Padre Maacuterio tambeacutem participava no

momento de sua prisatildeo ndash foi incentivada comeccedilando a ser organizada em fins da

deacutecada de 1950 em funccedilatildeo do grande nuacutemero de militantes que haviam chegado agrave idade

adulta mas desejavam continuar a atuar por meio da organizaccedilatildeo

A ACO nasce entatildeo da Liga Operaacuteria Catoacutelica (LOC) que era um movimento

destinado aos adultos ligados agrave Igreja e inicialmente com forte preocupaccedilatildeo

assistencialista assumindo gradativamente um vieacutes poliacutetico e uma identidade de classe

Assim a partir da LOC a ACO brasileira surge de fato em 1962 apresentando-se como

uma continuidade da JOC para que os jovens trabalhadores pudessem quando adultos

permanecerem a atuar politicamente Muitos eram os pontos em comum dos dois

movimentos que vatildeo desde os mesmos participantes que migravam de um para o outro

ao atingirem a idade adulta como a aplicaccedilatildeo do mesmo meacutetodo de accedilatildeo ldquoVer-Julgar-

135

Agirrdquo Entretanto segundo Alejandra Luisa Magalhatildees Estevez em sua dissertaccedilatildeo de

mestrado (2008) O movimento dos trabalhadores catoacutelicos a Juventude Operaacuteria

Catoacutelica (JOC) e a Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) diferentemente da JOC que a

partir de 1969 com a prisatildeo de muitos de seus integrantes ndash como o proacuteprio Padre

Maacuterio Prigol ndash foi perdendo forccedilas e acabou desaparecendo a atuaccedilatildeo da ACO durante

o periacuteodo militar caracterizou-se pelo enfrentamento constante com a hierarquia

eclesiaacutestica e com os proacuteprios militares

Dessa forma Padre Maacuterio que antes de ser preso em 1970 era assistente tanto da

JOC quanto da ACO apoacutes sua prisatildeo deu continuidade ao seu trabalho junto agrave ACO o

que ainda faz atualmente Afinal a ACO permanece em atividade ateacute os dias de hoje

poreacutem sob o nome de Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos (MTC)

Logo mesmo com diferentes atuaccedilotildees no cenaacuterio poliacutetico da eacutepoca as

organizaccedilotildees acima tratadas nas quais os ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados

militavam direta ou indiretamente tinham por confluecircncia algum tipo de manifestaccedilatildeo

em oposiccedilatildeo agrave ditadura militar Entretanto apesar dessa face comum ser o motivo

principal de suas prisotildees as diferenccedilas na forma de agir de suas organizaccedilotildees pode ter

se refletido na intensidade das violecircncias a que foram submetidos no DOI-CODIRJ

Diante disso no capiacutetulo seguinte a partir da anaacutelise das memoacuterias dos seis

entrevistados essa relaccedilatildeo entre a organizaccedilatildeo de esquerda do militante e o seu

tratamento na prisatildeo seraacute abordada assim como os demais aspectos que caracterizavam

o cotidiano vivido no DOI-CODIRJ durante o ano de 1970

136

Capiacutetulo 3 ndash O espaccedilo e o cotidiano do DOI-CODI carioca

A lua

Tal qual a dona de um bordel

Pedia a cada estrela fria

Um brilho de aluguel

E nuvens

Laacute no mata-borratildeo do ceacuteu

Chupavam manchas torturadas

Que sufoco

Louco

O becircbado com chapeacuteu-coco

Fazia irreverecircncias mil

Praacute noite do Brasil

Meu Brasil

Aldir Blanc e Joatildeo Bosco

(O Becircbado e a Equilibrista 1979)

137

1 O que sofre e o que resiste

Os depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ fontes essenciais

para esta pesquisa encontram aqui um desfecho primordial Finalmente uma de suas

especificidades mais importantes eacute aqui trabalhada a possibilidade que trazem de

acessar desde os aspectos mais subjetivos do dia-a-dia do DOI-CODIRJ aos mais

triviais Diante disso neste capiacutetulo torna-se possiacutevel uma caracterizaccedilatildeo da rotina

institucional ali vivida pelos prisioneiros em 1970 trazendo agrave tona detalhes e

sentimentos que compunham esse cotidiano que haacute deacutecadas jaacute natildeo existe mais Essa

faccedilanha natildeo seria possiacutevel atraveacutes de qualquer outra fonte senatildeo a oral Somente as

memoacuterias trazidas nas narrativas orais quando devidamente trabalhadas satildeo capazes de

aproximar-se das sensaccedilotildees e sentimentos vivenciados naquele passado amenizando a

sua corrosatildeo pelo tempo e as lacunas encontradas na histoacuteria da ditadura militar

Diante disso a memoacuteria eacute aqui tratada como material para a histoacuteria conforme

elucidado por Paul Ricoeur em A memoacuteria a histoacuteria e o esquecimento (2008) Nessa

mesma direccedilatildeo vai Fernando Catroga em seu artigo A representaccedilatildeo do ausente

memoacuteria e historiografia (2010) pelo qual busca entender a escrita da histoacuteria como um

rito de memoacuteria anaacutelogo ao ldquogesto de sepulturardquo Afinal a escrita da histoacuteria tem uma

funccedilatildeo anaacuteloga agrave do tuacutemulo e agrave dos ritos de recordaccedilatildeo ajudando tal como no trabalho

do luto a pagar as diacutevidas do presente com o passado que jaacute natildeo existe mais Essa

analogia mostra que se o tuacutemulo eacute o primeiro monumento dos mortos deixado para os

vivos a escrita da histoacuteria tambeacutem atua no sentido de lutar contra o esquecimento e a

degradaccedilatildeo que marcam a passagem do tempo Logo tal como acontece quando se

visita o tuacutemulo de um cemiteacuterio a escrita da histoacuteria sobre o cotidiano do DOI-

CODIRJ pretende contribuir para que agindo sobre os vivos esse passado se

transforme de ldquolugar de sepulturardquo para o de ldquogesto de sepulturardquo (Ricoeur 2008) Essa

138

analogia do tuacutemulo com a escrita da histoacuteria tem como principal ponto em comum a

construccedilatildeo do passado a partir de traccedilos e de representaccedilotildees que almejam situar no

tempo algo que natildeo existe mais O cotidiano do DOI-CODIRJ passa aqui a ser escrito

por meio da anaacutelise de vestiacutegios e representaccedilotildees apresentados nas memoacuterias de seis

dos seus ex-prisioneiros poliacuteticos tal como ocorre com a representaccedilatildeo memorial de

uma sepultura

Evidencia-se que as memoacuterias aqui trabalhadas especialmente por evocarem

fatos vividos pelas proacuteprias testemunhas estatildeo permeadas de razotildees subjetivas

normativas e pragmaacuteticas que satildeo condicionantes e geram efeitos incontrolaacuteveis

resultando em uma construccedilatildeo qualitativa seletiva e apaixonada do passado Daiacute a

importacircncia do olhar criacutetico do historiador sobre essas memoacuterias uma vez que a funccedilatildeo

deste eacute justamente inserir os aspectos criacuteticos objetivos e analiacuteticos da histoacuteria na

fluidez emoccedilatildeo e submissatildeo aos influxos da conjuntura caracteriacutesticos da memoacuteria

(Nora 1993)

Portanto eacute imperativo analisar criticamente essas memoacuterias sobre o cotidiano do

DOI-CODIRJ mesmo sabendo das dificuldades que envolvem essa accedilatildeo como bem

aponta Beatriz Sarlo em Tempo passado Cultura da memoacuteria e guinada subjetiva

(2007) Afinal satildeo depoimentos de viacutetimas cuja confiabilidade sobre as torturas sofridas

na prisatildeo natildeo soacute foi elemento constituinte da instalaccedilatildeo do regime democraacutetico como

ainda eacute responsaacutevel pela solidificaccedilatildeo de um princiacutepio de reparaccedilatildeo e justiccedila Poreacutem

deve-se antes de tudo encaraacute-los como discursos testemunhais pois seguem o modo

persuasivo caracteriacutestico do discurso e por conseguinte natildeo podem ser cristalizados

Afinal esses seis testemunhos satildeo feitos por narradores que buscam firmar no passado a

verdade do presente jaacute que a narrativa no presente tem uma inevitaacutevel hegemonia sobre

o passado conforme bem enuncia Sarlo no trecho abaixo

139

O presente da enunciaccedilatildeo eacute o ldquotempo de base do discursordquo porque eacute

presente o momento de se comeccedilar a narrar e esse momento fica inscrito na

narraccedilatildeo Isso implica o narrador em sua histoacuteria e a inscreve numa retoacuterica

da persuasatildeo (o discurso pertence ao modo persuasivo diz Ricoeur) Os

relatos testemunhais satildeo ldquodiscursordquo nesse sentido porque tecircm como

condiccedilatildeo um narrador implicado nos fatos que natildeo persegue uma verdade

externa no momento em que ela eacute enunciada Eacute inevitaacutevel a marca do

presente no ato de narrar o passado justamente porque no discurso o

presente tem genuiacutena hegemonia reconhecida como inevitaacutevel e os tempos

verbais do passado natildeo ficam livres de uma ldquoexperiecircncia fenomenoloacutegicardquo

do tempo presente da enunciaccedilatildeo ldquoO presente dirige o passado assim como

um maestro seus muacutesicosrdquo escreveu Italo Severo (Sarlo 2007 49)

Daiacute destaca-se novamente a importacircncia de considerar o tempo presente como

base do discurso das memoacuterias sobre o cotidiano do DOI-CODIRJ trabalhadas neste

capiacutetulo evocando mais uma vez a elucidativa expressatildeo preacutesent du passeacute de Robert

Frank (1999) O presente a partir de onde falam os seis entrevistados como ex-

prisioneiros poliacuteticos corresponde a um momento em que a democracia brasileira para a

maioria deles dava passos largos em direccedilatildeo a sua total magnitude o presente vivido no

raiar dos anos 2000 vinha se distanciando poliacutetica e socialmente do passado ditatorial

militar Quem presidia o paiacutes eram antigos opositores poliacuteticos do governo militar os

ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva que vinham

construindo garantias de reparaccedilatildeo aos que sofreram violaccedilotildees aos direitos humanos

durante o passado ditatorial

Estava em curso o reconhecimento dos mortos e desaparecidos poliacuteticos pelo

Estado brasileiro bem como a indenizaccedilatildeo agraves famiacutelias por intermeacutedio da Lei nordm 9140

de 1995 e a reparaccedilatildeo financeira aos males sofridos por aqueles presos ou perseguidos

na eacutepoca da ditadura militar garantida pela Lei nordm 10559 de 2002 Eram esses fatos

140

que compunham o cenaacuterio do presente vivido durante as entrevistas e obviamente

influenciaram diretamente a construccedilatildeo das narrativas dos ex-presos poliacuteticos sobre o

cotidiano do DOI-CODI carioca

Essas influecircncias acabaram em alguns casos direcionando suas narrativas para

os detalhes dos horrores a que foram submetidos e para as sequelas deixadas pelas

torturas daquele tempo a fim de natildeo suscitar duacutevidas sobre o merecimento agrave reparaccedilatildeo

oferecida pelo Estado Afinal o DOI-CODIRJ correspondeu ao espaccedilo onde esses

presos poliacuteticos viveram um dos cotidianos mais violentos de todo o periacuteodo em que

estiveram na prisatildeo Ao enfatizarem em detalhes o lado duro dessa rotina prisional os

entrevistados ambicionavam fortalecer a interpretaccedilatildeo vigente sobre seu papel de viacutetima

e ao mesmo tempo de resistente a um Estado ditatorial Ao procurarem conquistar a

entrevistadora os entrevistados viam-se envolvidos no processo de enquadramento da

memoacuteria sobre a ditadura militar brasileira no sentido atribuiacutedo por Michael Pollak

(1992) O objetivo entre outros era o de fortalecer perante a sociedade e o governo

uma memoacuteria que a eles conferisse o duplo lugar de resistente e de viacutetima e endossasse

a necessidade de reparaccedilotildees financeiras e simboacutelicas aos atingidos

A reparaccedilatildeo financeira aos violentados pela ditadura militar jaacute vinha acontecendo

na eacutepoca em que as entrevistas foram concedidas por meio das leis que implantaram a

Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos e a Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio

da Justiccedila citadas anteriormente e abordadas no segundo capiacutetulo Jaacute a reparaccedilatildeo

simboacutelica soacute comeccedilaria a ser de fato implantada alguns anos depois das entrevistas

principalmente com as Caravanas da Anistia a partir de abril de 2008 e mediante a

aprovaccedilatildeo da Comissatildeo da Verdade pelo Congresso Nacional em outubro de 2011 As

Caravanas da Anistia satildeo sessotildees puacuteblicas itinerantes de apreciaccedilatildeo de requerimentos de

anistia poliacutetica a perseguidos poliacuteticos da ditadura militar acompanhadas por atividades

141

educativas e culturais promovidas pela Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio da Justiccedila

Jaacute a Comissatildeo da Verdade teraacute como finalidade examinar e esclarecer graves violaccedilotildees

de direitos humanos praticadas entre os anos de 1946 e 1988 a fim de promover a

reconciliaccedilatildeo nacional com o seu passado histoacuterico

Eacute faacutecil perceber que os entrevistados em seus testemunhos-discursos acabam

atribuindo um sentido uacutenico agrave histoacuteria e conforme salienta Beatriz Sarlo (2007) ao

acumularem detalhes em suas narrativas produzem um modo realista-romacircntico pelo

qual atribuem sentidos a todos os detalhes mencionados somente pelo fato de incluiacute-los

no relato sem se sentirem na obrigaccedilatildeo de atribuir sentidos ou explicar as ausecircncias ali

tambeacutem apresentadas Dessa forma a anaacutelise aqui traccedilada procura trabalhar de forma

criacutetica no sentido de reconhecer a face realista dos detalhes descritos pelos narradores

e ao mesmo tempo a face romacircntica construiacuteda por eles de forma a fortalecer a

credibilidade e a veracidade de sua narraccedilatildeo Uma vez que diferentemente do que datildeo a

entender os entrevistados ao narrarem suas proacuteprias vidas a anaacutelise histoacuterica do

presente trabalho firma-se longe da utopia de uma narraccedilatildeo total capaz de descrever

todo o passado estudado reconhecendo a necessidade de operar com elipses

No entanto se por um lado os detalhes mencionados nos depoimentos devem ser

submetidos ao pensamento criacutetico histoacuterico por outro lado satildeo exatamente eles que

enriquecem a anaacutelise de um cotidiano jaacute que os detalhes trazidos pelos depoimentos

conseguem muitas vezes tornar a rotina do dia-a-dia que jaacute natildeo mais existe palpaacutevel

ao entendimento Eacute o que ocorre por exemplo com a disposiccedilatildeo espacial interna do

preacutedio-sede do DOI-CODIRJ fator que estaacute intrinsecamente relacionado ao cotidiano

prisional e que torna-se passiacutevel de caracterizaccedilatildeo atraveacutes dos detalhes contidos nos

depoimentos Assim mesmo natildeo sendo possiacutevel visitar o interior do edifiacutecio e nem ter

acesso a alguns registros documentais como fotos ou outros documentos eacute possiacutevel

142

contrapor as descriccedilotildees contidas nos depoimentos com a fachada do preacutedio que ainda

existe e construir uma percepccedilatildeo aproximada sobre o espaccedilo em que de certa forma

essas memoacuterias estatildeo ancoradas

2 Uma cartografia possiacutevel do ldquoCastelo do Terrorrdquo

Constatada essa forte relaccedilatildeo entre as memoacuterias dos ex-prisioneiros que ali

ficaram presos em 1970 com o espaccedilo interno do 1ordm BPE resolvi tentar ver de perto

como este era distribuiacutedo No entanto muitas dificuldades foram encontradas e

inviabilizaram o meu projeto inicial de contrapor o que restava do interior do edifiacutecio

que sediou o DOI-CODIRJ com as memoacuterias de seus ex-prisioneiros

Em 2003 a minha primeira tentativa de visitar o interior do preacutedio do 1ordm BPE foi

interrompida no momento em que apresentei o propoacutesito de minha visita o interesse em

ver o preacutedio do DOI-CODIRJ Percebi imediatamente que o ldquoassunto DOI-CODIrdquo

gerava um grande desconforto para aquele Batalhatildeo Talvez porque apesar do referido

Batalhatildeo natildeo ter tido relaccedilatildeo direta com o DOI-CODIRJ pois eram instituiccedilotildees

distintas o fato desse oacutergatildeo repressivo ter sido instalado em seu interior evoca uma

forte relaccedilatildeo que atualmente imprime uma imagem negativa para seus militares

Percebe-se assim que o 1ordm BPE quer apagar da memoacuteria social sua associaccedilatildeo ao DOI-

CODIRJ o que explica o fato de seus militares natildeo permitirem que eu prosseguisse

com a visita

No ano seguinte em novembro tentei pela segunda vez visitar o interior do dito

edifiacutecio Prevendo dificuldades para a visita utilizei como pretexto uma suposta

pesquisa sobre patrimocircnios histoacutericos do bairro Um primeiro-sargento que se

apresentou como graduado em histoacuteria acompanhou-me pelo paacutetio interno do

complexo Durante o passeio por este espaccedilo ele apontava de longe para os preacutedios que

143

ficavam ao redor inclusive para o que sediava o DOI-CODIRJ agrave esquerda e ao fundo

daquele paacutetio a ceacuteu aberto Ao referir-se ao local o sargento apontou de longe e disse

ldquoLaacute funciona o DOI-CODIrdquo deixando transparecer que ateacute aquele momento natildeo

existia uma nova serventia para aquele local e que a estrutura do DOI-CODI havia sido

preservada Nada mais quis falar alegando que natildeo poderia dar explicaccedilotildees mais

amplas sobre o assunto e que aleacutem do mais eu natildeo poderia me aproximar das

instalaccedilotildees que me interessavam

Esta segunda visita corroborou a minha sensaccedilatildeo anterior de que os militares

daquele Batalhatildeo natildeo queriam que este ficasse historicamente associado ao DOI-CODI

percebendo a imagem negativa que essa associaccedilatildeo poderia conferir-lhes tentando

evitar a manutenccedilatildeo do viacutenculo daquele preacutedio com a memoacuteria das torturas e mortes ali

executadas nos chamados ldquoanos de chumbordquo

Aleacutem disso esta visita trouxe-me um dado novo ao apresentar aquele preacutedio

como sendo o ldquoDOI-CODIrdquo no presente do indicativo o sargento deixou perceptiacutevel

um interesse interno em preservaacute-lo Afinal por que ateacute aquele momento mesmo o

DOI-CODI natildeo estando mais em atividade o seu espaccedilo natildeo havia sido utilizado para

nenhuma outra funccedilatildeo permanente Este interesse reflete talvez um forte orgulho

interno de importantes setores do Exeacutercito pelos feitos do DOI-CODI no sentido de

para alguns mais radicais ter sido esta instituiccedilatildeo uma das principais defensoras da

soberania e da ordem nacional na eacutepoca ameaccediladas pela subversatildeo

Apesar de tais empecilhos os detalhes relatados pelos entrevistados viabilizariam

uma aproximada cartografia espacial do interior do DOI-CODIRJ de 1970 quando eles

laacute estiveram Essa cartografia fez-se aqui necessaacuteria por entender-se que essa disposiccedilatildeo

espacial eacute essencial para a anaacutelise das memoacuterias sobre o cotidiano ali vivido uma vez

que esse espaccedilo prisional estaacute presente a todo o tempo nos relatos de Antocircnio Dulce

144

Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia sendo um dos principais pontos de uniatildeo de suas

memoacuterias

Sendo assim defende-se aqui que o antigo preacutedio do DOI-CODI carioca eacute hoje

um lugar de memoacuteria jaacute que a ele se confere de forma simultacircnea e em graus diversos

os trecircs sentidos atribuiacutedos como necessaacuterios por Pierre Nora o material o simboacutelico e o

funcional (Nora 1993 21) O sentido material no caso eacute o proacuteprio espaccedilo fiacutesico o

preacutedio do 1ordm BPE ainda localizado agrave Rua Baratildeo de Mesquita nordm 425 no bairro da

Tijuca O simboacutelico eacute o que o edifiacutecio representa para parte da sociedade carioca que

partilha as memoacuterias dos ex-presos poliacuteticos e seus familiares sobre o violento

cotidiano as torturas e as mortes ali vivenciados atribuindo ao preacutedio o significado de

ldquoCastelo do terrorrdquo Por fim o sentido funcional eacute a atividade de preservaccedilatildeo da

memoacuteria da ditadura militar ali exercida jaacute que o preacutedio eacute um monumento tombado sob

a justificativa de guardar a memoacuteria ali vivida durante a ditadura militar brasileira e natildeo

deixar que ela venha a cair no esquecimento Este uacuteltimo sentido portanto embute ao

preacutedio o significado completo de um lugar de memoacuteria congregando ao espaccedilo uma

funccedilatildeo e uma representaccedilatildeo simboacutelica ou seja unindo os aspectos material simboacutelico e

funcional

145

Foto Nordm1 fachada entrada principal e paacutetio interno do quartel do 1ordm BPE (Bettamio dez 2004)

Este tombamento foi feito pela Prefeitura do Rio de Janeiro em 1993 e tem por

setor responsaacutevel a Subsecretaria municipal de Patrimocircnio Cultural lei nordm 1954 de

29039340

Seu processo teve iniacutecio atraveacutes da solicitaccedilatildeo de moradores da localidades

da Tijuca Grajauacute Andaraiacute e Praccedila Saens Pentildea que utilizaram para embasar o referido

ato o fato de parte do edifiacutecio do 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito ter abrigado o DOI-

CODI do Rio de Janeiro durante toda a deacutecada de 1970 e iniacutecio dos anos 1980

ressaltando a sua importacircncia para a memoacuteria da resistecircncia e luta pelo fim da ditadura

militar

Percebe-se ainda a grande importacircncia atribuiacuteda a essa memoacuteria quando se

destaca que mesmo o edifiacutecio tendo um valor histoacuterico anterior agrave fase em que cedeu

parte de seu espaccedilo ao DOI-CODIRJ o pedido de tombamento feito pela populaccedilatildeo

fundamentava-se no que ali havia ocorrido em tempos recentes durante a ditadura

militar Afinal esses requerentes propunham que o edifiacutecio fosse tirado do Exeacutercito e

desse lugar a um centro cultural com museu da memoacuteria da luta pela liberdade

40

Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro antigo Departamento Geral de

Patrimocircnio Cultural (DGPC) Nordm do processo 1200433692 1degdocumento de solicitaccedilatildeo de tombamento

26101992

146

O edifiacutecio foi construiacutedo em 1857 pela Imperial Coroa para servir de sede a um

Hospital Militar entretanto laacute se instalou o 1ordm Regimento de Cavalaria Ligeira e

posteriormente o Hospital Militar da Corte com funcionamento ateacute fevereiro de 1877

Desde entatildeo a construccedilatildeo foi utilizada pela Escola do Estado Maior pelo 2ordm Batalhatildeo

de Caccediladores pela Escola de Intendecircncia e a partir de 1946 pelo 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia

do Exeacutercito 41

Em ampla aacuterea estaacute situado na confluecircncia da Rua Baratildeo de Mesquita com a

Avenida Maracanatilde abrangendo tambeacutem a Praccedila Lamartine Babo Conforme pode ser

observado na paacutegina anterior Foto Nordm1 ao redor de todo o espaccedilo ocupado pelo preacutedio

estende-se uma mureta de alvenaria com grade assente na parte frontal do quartel O

complexo arquitetocircnico do 1ordm BPE apresenta nas extremidades alas perpendiculares

que formam no meio um largo paacutetio A uacuteltima dessas alas possui os fundos voltados

para a Avenida Maracanatilde em frente a um dos portotildees de entrada e saiacuteda de veiacuteculos do

quartel Era exatamente nesta parte localizada no final do paacutetio central do Batalhatildeo do

lado esquerdo ao lado da antiga faacutebrica de bebidas Brahma que as celas e a sala de

tortura do DOI-CODIRJ estavam localizadas A seguir na Foto Nordm2 visualiza-se o

fundo deste edifiacutecio na Avenida Maracanatilde

41

Para mais informaccedilotildees ver Gerson 2000 357

147

Foto Nordm2 preacutedio do DOI-CODIRJ nos fundos do quartel localizado na Avenida Maracanatilde (Bettamio dez 2004)

Como se pode ver na Foto Nordm2 em cima do muro do 1ordm BPE exclusivamente na

parte que cerca os fundos do antigo preacutedio do DOI-CODIRJ estaacute localizada uma cerca

de arame farpado Assim aleacutem da descriccedilatildeo dos entrevistados e da forma como o

primeiro-sargento nomeou o local ao apontaacute-lo durante a minha segunda visita ao

Batalhatildeo em 2004 entende-se esta cerca como mais um indiacutecio de que laacute ficavam as

celas do entatildeo DOI-CODIRJ Tais celas estavam distribuiacutedas pelos dois pavimentos do

edifiacutecio conforme pode-se auferir nos relatos e comprovar na Foto Nordm2 onde pela

distribuiccedilatildeo das janelas nota-se que o preacutedio eacute composto de fato por dois andares

O local da prisatildeo era mais nos fundos Quando vocecirc chega ali vocecirc tem duas

entradas uma pela pracinha [Foto Nordm3] onde entram os carros e outra pela

frente bem na Baratildeo de Mesquita [Foto Nordm1] Nesta entrada tem uma mesa

com um oficial do dia depois vem uma espeacutecie de paacutetio aberto como se

fosse uma quadra Jaacute nos fundos do quartel passa a Avenida Maracanatilde por

traacutes da Poliacutecia do Exeacutercito As celas tanto a da prisatildeo como a da tortura

eram mais perto da Avenida Maracanatilde Era laacute naquela parte mais para o

148

final mais isolada Vocecirc ficava mais proacuteximo da Avenida Maracanatilde e da

faacutebrica da Brahma [] (Carvalho 12 set 2002)

Foto Nordm3 uma das entradas do 1ordm BPE para veiacuteculos de frente para a Praccedila Lamartine Babo (Bettamio dez 2004)

Os prisioneiros poliacuteticos receacutem-capturados transferidos de outros oacutergatildeos de

repressatildeo ou mesmo do Hospital Central do Exeacutercito chegavam ao 1ordm BPE dentro de

uma das viaturas das turmas de busca e apreensatildeo do DOI que faziam parte da

estrutura abordada no primeiro capiacutetulo Os automoacuteveis que os traziam entravam no

Batalhatildeo atraveacutes do portatildeo para veiacuteculos que fica em frente agrave Praccedila Lamartine Babo

(Foto Nordm3) entre a Rua Baratildeo de Mesquita e a Avenida Maracanatilde Ao entrarem por

este portatildeo os carros seguiam em linha reta pelo paacutetio interno ateacute chegarem ao preacutedio

do DOI-CODI no fundo do quartel (Foto Nordm2) onde os presos eram deixados

Este trajeto de chegada descrito pelos entrevistados parece ser ateacute hoje um

procedimento formal para controlar a entrada de veiacuteculos no Batalhatildeo e atraveacutes dele

evidencia-se que o DOI-CODI mesmo natildeo sendo subordinado ao 1ordm BPE tinha como

dever respeitar algumas normas de seguranccedila ali vigentes Entre essas normas estava o

impedimento de utilizar o portatildeo para veiacuteculos localizado na Avenida Maracanatilde (Foto

149

Nordm2) para a entrada e a saiacuteda de seus presos mesmo sendo mais praacutetico e reservado

pois este portatildeo ficava ao lado do preacutedio do DOI-CODI Poreacutem como todo quartel

militar preza por um controle riacutegido de seguranccedila uma vez que satildeo responsaacuteveis por

guardar armas e outros equipamentos beacutelicos esses agentes eram obrigados a respeitar a

estrutura de seguranccedila tradicional do 1ordm BPE

[] a gente entrava pela pracinha aqui do lado [aponta para o desenho que

faz no papel] a gente entrava dentro dos carros aqui por esse portatildeo (o da

praccedila) A gente natildeo entrava pela porta principal natildeo E nem entrava ou saiacutea

pelo portatildeo do lado do preacutedio que a gente ficava [] (Coimbra 30 nov

2004)

No preacutedio do DOI-CODIRJ (Foto Nordm2) as celas ldquosolitaacuteriasrdquo se localizavam

somente no andar de baixo Nelas os prisioneiros receacutem-chegados permaneciam nos

primeiros dias de prisatildeo para ficarem no mesmo andar da sala de interrogatoacuterio ou ldquosala

de torturardquo ndash como os presos a chamavam ndash facilitando o deslocamento Era no

momento inicial da prisatildeo que as turmas de interrogatoacuterio preliminar executavam a

parte massiva dos interrogatoacuterios o que por conseguinte demandava a necessidade dos

presos ficarem em celas geograficamente proacuteximas agrave ldquosala de torturardquo

Nos primeiros dias de prisatildeo era quando os presos eram levados assiduamente

para a ldquosala de torturardquo visto que poderiam informar sobre os ldquopontos de encontrordquo e os

ldquoaparelhosrdquo ainda vaacutelidos informaccedilotildees que levariam os agentes dos DOI ateacute outros

ldquosubversivosrdquo Aleacutem da ldquosala de torturardquo a cela do tipo ldquosolitaacuteriardquo era mais um artifiacutecio

para torturar o preso receacutem-chegado a fim de degradaacute-lo e desestruturaacute-lo

psicologicamente de forma a impulsionaacute-lo a falar mais rapidamente o que sabia Para

isso essas celas ldquosolitaacuteriasrdquo aleacutem de deixarem o preso isolado dos demais se

diferenciavam estruturalmente das outras que existiam no mesmo preacutedio localizadas em

150

maior parte no pavimento superior para as quais os presos eram transferidos apoacutes o

momento inicial de sua prisatildeo

Nas celas do segundo andar existia banheiro com chuveiro e um colchatildeo para cada

preso Jaacute nas ldquosolitaacuteriasrdquo aleacutem do preso ficar sozinho natildeo havia cama colchatildeo

banheiro ou mesmo pia Durante o tempo em que laacute permaneciam os prisioneiros natildeo

tinham direito a tomar banho Eram celas pequenas com portotildees de grades vazadas

contendo apenas um buraco no chatildeo para que o preso ali pudesse evacuar Os presos

eram obrigados a conviver com o cheiro de sua proacutepria urina e fezes no provaacutevel intuito

de denegrir a sua condiccedilatildeo de ser humano

[] logo que eu cheguei fui para a lsquosolitaacuteriarsquo era torturada ia para a

lsquosolitaacuteriarsquo era torturada e ia para a lsquosolitaacuteriarsquo [] (Pandolfi 5 fev 2003)

[] primeiro que quando vocecirc eacute preso vocecirc passa alguns dias sem tomar

banho na verdade eu soacute fui tomar banho mesmo depois que eu fui para a

cela coletiva [] (Carvalho 8 fev 2003)

Aqui [aponta para as celas do andar teacuterreo do preacutedio que desenhou em um

papel] era soacute o pessoal que ficava de castigo era barra pesada [] vocecirc natildeo

tinha lugar para dormir natildeo tinha lugar para nada Tinha soacute um buraco para

vocecirc fazer as suas necessidades Na solitaacuteria natildeo tinha nem colchatildeo nem

banheiro nem privada era um buraco Nem tinha chuveiro Pelo menos

essas celas de cima tinham chuveiro [] (Coimbra 30 nov 2004)

151

Foto Nordm4 visatildeo panoracircmica do espaccedilo ocupada pelo 1ordm BPE com destaque aos fundos para o preacutedio do DOI-CODI

(Bettamio dez 2004)

A ldquosala de torturardquo localizada no primeiro pavimento do preacutedio eacute referida pelos

prisioneiros tambeacutem como ldquosala roxardquo pela cor de suas paredes Anexa a ela estava a

sala de observaccedilatildeo que era separada da ldquosala roxardquo por um vidro o chamado ldquoespelho

da verdaderdquo Este vidro composto por uma placa semi-espelhada possibilitava que da

sala de observaccedilatildeo se pudesse ver e reconhecer quem estava do outro lado sem ser

visto Assim presos e militares poderiam identificar pessoas e observar interrogatoacuterios

sem serem reconhecidos

[] a sala de tortura era pintada de uma cor horrorosa como se fosse um

roxo [] essa sala tinha um vidro que era o espelho da verdade porque dava

acesso agrave outra sala onde ficavam pessoas para te observar sem serem vistas

[] (Pandolfi 5 fev 2003)

A seta indica a localizaccedilatildeo do preacutedio do DOI-CODI dentro do espaccedilo do 1ordm BPE

152

[] aqui tinha a famosa sala roxa duas uma do lado da outra isso no

primeiro andar Porque ali estavam as pessoas que eles estavam inquirindo

direto [] (Freire 28 jun 2004)

Os dados informados acima satildeo exemplos tiacutepicos de detalhes apresentados pelos

entrevistados que muito podem contribuir para o entendimento desse passado Afinal

em uma primeira impressatildeo essas narrativas podem transmitir a ideia de que as paredes

roxas serviam apenas para imprimir um aspecto sombrio agrave ldquosala de torturardquo servindo

como mais um elemento produzido para intimidar o depoente durante o interrogatoacuterio

No entanto ao saber-se que uma das paredes dessa sala era composta pelo dito ldquoespelho

da verdaderdquo deduz-se que esta era bem iluminada O vidro que a dividia do local anexo

muito utilizado nas salas de reconhecimento em delegacias de poliacutecia age atraveacutes de um

mecanismo pelo qual quem estaacute do lado mais iluminado vecirc apenas o reflexo de sua

proacutepria imagem sem enxergar o que estaacute do lado mais escuro

A partir disso infere-se que as paredes roxas da ldquosala de torturardquo natildeo eram apenas

um aparato de tortura psicoloacutegica mas provavelmente uma forma de deixar os

integrantes das turmas de interrogatoacuterio preliminar mais agrave vontade para interrogar

ameaccedilar e torturar os seus prisioneiros Menos iluminada do que se suas paredes fossem

brancas contribuiacutea para que os prisioneiros natildeo pudessem ver os militares de forma tatildeo

clara e niacutetida fazendo com que os torturadores natildeo se sentissem acuados por atuar com

os seus rostos agrave mostra chegando mesmo a retirar o capuz dos prisioneiros

[] chegando nessa sala de tortura normalmente eles tiravam o capuz Quer

dizer o capuz na verdade era um mecanismo mais de intimidaccedilatildeo de deixar

a gente apavorada do que para eles se esconderem mesmo porque na tortura

a gente acabava vendo os torturadores [] (Pandolfi 5 fev 2003)

No DOI-CODI eu apanhei de cara limpa eu vi quem me bateu quem me

torturou [] (Freire 28 jun 2004)

153

No segundo andar do preacutedio do DOI-CODIRJ em meio agraves demais celas coletivas

e encostada em outra menor se encontrava uma cela feminina bem espaccedilosa onde

Dulce Ana e Ceciacutelia ficaram durante parte do tempo em que estiveram na instituiccedilatildeo

Essa cela mencionada pelas entrevistadas ora por ldquocoletivo das mulheresrdquo ora por

ldquoMaracanatilderdquo tinha no alto da parede de fundo um basculante que como bem se pode

observar na Foto Nordm2 provavelmente estava presente em todas as celas coletivas tanto

as do primeiro quanto as dos segundo andares Entretanto no caso do ldquocoletivo das

mulheresrdquo e da cela nele encostada esses basculantes eram virados para o paacutetio interno

do 1ordm BPE e por conseguinte os portotildees dessas celas ficavam na direccedilatildeo do muro da

Avenida Maracanatilde

[] eu fui para a cela do lado que era o coletivo das mulheres que era a cela

Maracanatilde como a gente chamava [] Eram duas celas Essa era enorme e

tinha a outra na outra ponta [] que era uma cela menor Eu fiquei nas duas

que eram as duas celas que ficavam na frente que davam para o paacutetio A

gente trepava [no basculante da cela] e soacute via o paacutetio (Coimbra 30 nov

2004)

Tinha ateacute uma cela ampla grande que chamavam de coletivo das mulheres

Entatildeo a maior parte do tempo eu fiquei nessa cela grande [] (Pandolfi 5

fev 2003)

No DOI-CODI natildeo havia uma grande separaccedilatildeo entre prisioneiros e prisioneiras

uma vez que as celas do primeiro e do segundo andares comportavam tanto homens

quanto mulheres No entanto natildeo havia celas mistas Apesar de que como somente

homens afirmaram ter permanecido em celas do piso teacuterreo pressupotildee-se que neste

pavimento com exceccedilatildeo das celas ldquosolitaacuteriasrdquo localizavam-se em grande parte caacuterceres

154

coletivos masculinos que tambeacutem existiam no segundo andar demonstrando que era

maior o nuacutemero de prisioneiros homens

[] eu sempre fiquei no teacuterreo nunca subi para aquela parte apesar de que

laacute onde ficavam as celas tinha uma escada Tinha uma parte teacuterrea onde

ficavam nossas celas e tinha tambeacutem umas celas em cima [] (Carvalho 12

set 2002)

No teacuterreo tinha duas celinhas aqui [rabisca em um pedaccedilo de papel] uma no

cantinho aqui e eu fiquei nessa segunda aqui aiacute ainda tinha a do meio e

mais duas para caacute eram cinco celas [] (Freire 28 jun 2004)

A partir dessa cartografia do espaccedilo fiacutesico do DOI-CODI viabilizou-se uma

aproximaccedilatildeo com a geografia do ambiente que mantinha uma iacutentima relaccedilatildeo com o

cotidiano dos entrevistados no periacuteodo em que laacute permaneceram como prisioneiros do

sistema de seguranccedila

3 Memoacuterias de um cotidiano

Falar sobre essa parte da histoacuteria implica muitas dificuldades pois suscita

lembranccedilas mal-vindas poreacutem necessaacuterias ao conhecimento de nossa

sociedade Trata-se aqui de uma viagem de volta ao inferno de uma face que

para muitos traduz supliacutecios fiacutesicos e psiacutequicos sentimentos de desamparo

solidatildeo medo pacircnico abandono e desespero (Coimbra 2004 45) 42

Como jaacute dito o momento da realizaccedilatildeo de uma entrevista eacute definidor da maneira

pela qual o(a) entrevistado(a) recupera o seu passado A construccedilatildeo da memoacuteria sobre o

cotidiano vivido no DOI-CODI em 1970 natildeo escapou desse passeacute do preacutesent e de

42

Artigo Gecircnero Militacircncia e Memoacuteria escrito pela entrevistada Ceciacutelia Coimbra e publicado em Strey

Marlene Neves (org) Violecircncia Gecircnero e Poliacuteticas Puacuteblicas Porto Alegre PUC-RS 2004

155

forma muito interessante ao mesmo tempo em que sofria influecircncias desse presente

tambeacutem agia politicamente sobre ele Beneficiados por uma legislaccedilatildeo que buscava

reparar os variados danos causados pelo Estado ditatorial os entrevistados visavam

sobretudo a obter reparaccedilotildees simboacutelicas comeccedilando pela consolidaccedilatildeo de suas

memoacuterias Por isso mesmo lutavam por accedilotildees governamentais tais como a construccedilatildeo

de museus sobre a ditadura militar em locais que haviam servido como prisatildeo poliacutetica

na eacutepoca e a instalaccedilatildeo da Comissatildeo da Verdade no paiacutes

Assim em 24 de janeiro de 2009 foi inaugurado no anexo do antigo preacutedio do

Departamento de Ordem e Poliacutetica Social de Satildeo Paulo (Deops) o Memorial da

Resistecircncia de Satildeo Paulo Eacute a primeira instituiccedilatildeo do paiacutes a ldquomusealizarrdquo parte de um

edifiacutecio que foi siacutembolo da poliacutecia poliacutetica em eacutepocas de ditadura a fim de salvaguardar

a memoacuteria da resistecircncia e da repressatildeo do Brasil republicano 43

E finalmente em 18

de novembro de 2011 a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei que criava a

Comissatildeo da Verdade (lei nordm 125282011) Esta seraacute composta por sete integrantes que

ainda seratildeo indicados e contaratildeo com ajuda de 14 auxiliares que teratildeo a missatildeo de ouvir

depoimentos em todo o paiacutes requisitar e analisar documentos que ajudem a esclarecer

os fatos da repressatildeo militar A Comissatildeo iraacute apurar as violaccedilotildees de direitos ocorridas

entre os anos de 1946 e 1988 e teraacute um prazo de dois anos para finalizar este trabalho de

investigaccedilatildeo

43

Para mais informaccedilotildees sobre o Memorial da Resistecircncia de Satildeo Paulo consultar

httpwwwmemorialdaresistenciasporgbr

156

31 O interrogatoacuterio e a tortura

Tendo em vista as novas funccedilotildees que se apresentavam para os agentes da

repressatildeo lotados nos DOI-CODI era necessaacuterio um treinamento que incluiacutea entre

outras mateacuterias o manuseio da dosagem de dor infringida durante os interrogatoacuterios

Depois de passarem por tal treinamento os militares poderiam atuar em uma das trecircs

turmas de interrogatoacuterio preliminar que compunham a Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio

responsaacutevel direta por torturar os presos ou em uma das turmas da Seccedilatildeo de busca e

apreensatildeo que capturavam os suspeitos e os direcionavam aos DOI

Esse processo de formaccedilatildeo de matildeo-de-obra para atuar no DOI-CODI surgiu em

1970 quando uma escola de repressatildeo foi criada a partir da mudanccedila de comando e da

reforma curricular do Centro de Estudos de Pessoal (CEP) no forte do Leme O novo

CEP passava a oferecer cursos de informaccedilotildees para oficiais programas de extensatildeo para

sargentos e estaacutegios para quadros das poliacutecias militares todos normalmente com

duraccedilatildeo de um semestre Nesses cursos os alunos assistiam aulas sobre teacutecnicas de

interrogatoacuterio ndash o que incluiacutea o manuseio de aparelhos de tortura ndash e vigilacircncia taacuteticas

de ldquoneutralizaccedilatildeo de aparelhosrdquo e de transporte de presos operaccedilotildees especiais

criptologia e produccedilatildeo de informaccedilotildees Ao fim do curso o aluno recebia uma

certificaccedilatildeo atraveacutes da qual poderia atestar sua aptidatildeo para desempenhar as funccedilotildees de

um oficial de informaccedilotildees

Parte dos meacutetodos aprendidos nessa escola eacute retratada em entrevista para a revista

Veja de 9 de dezembro de 1998 pelo tenente Marcelo Paixatildeo de Arauacutejo que de acordo

com Elio Gaspari (2002) teria atuado como torturador no 12ordm Regimento Interno de

Belo Horizonte entre 1968 e 1971

A primeira coisa era jogar o sujeito no meio de uma sala tirar a roupa dele e

comeccedilar a gritar para ele entregar o ponto [lugar marcado para encontros

157

com militantes do grupo] Era o primeiro estaacutegio Se ele resistisse tinha um

segundo estaacutegio que era vamos dizer assim mais porrada Um dava tapa na

cara Outro soco na boca do estocircmago Um terceiro soco no rim Tudo para

ver se ele falava Se natildeo falava tinha dois caminhos Dependia muito de

quem aplicava a tortura Eu gostava muito de aplicar a palmatoacuteria Eacute muito

doloroso mas faz o sujeito falar Eu era muito bom na palmatoacuteria [] Vocecirc

manda o sujeito abrir a matildeo O pior eacute que de tatildeo desmoralizado ele abre Aiacute

se aplicam dez quinze bolos na matildeo dele com forccedila A matildeo fica roxa Ele

fala A etapa seguinte era o famoso telefone das Forccedilas Armadas [] eacute uma

corrente de baixa amperagem e alta voltagem [] Natildeo tem perigo de fazer

mal Eu gostava muito de ligar as duas pontas dos dedos Pode ligar numa

matildeo e na orelha mas sempre do mesmo lado do corpo O sujeito fica

arrasado O que natildeo pode fazer eacute deixar a corrente passar pelo coraccedilatildeo Aiacute

mata [] o uacuteltimo estaacutegio em que cheguei foi o pau-de-arara com choque

Isso era para o queixo-duro o cara que natildeo abria nas etapas anteriores Mas

pau-de-arara eacute um negoacutecio meio complicado [] O pau-de-arara natildeo eacute

vantagem Primeiro porque deixa marca Depois porque eacute trabalhoso Tem

de montar a estrutura Em terceiro eacute necessaacuterio tomar conta do indiviacuteduo

porque ele pode passar mal (Gaspari 2002 182-183)

Antes de comeccedilar a atuar esses agentes passavam por treinamento no DOI-CODI

feito provavelmente com alguns prisioneiros que jaacute estavam laacute haacute algum tempo e que

haviam mostrado ter boa resistecircncia Conforme se pode evidenciar a partir da

declaraccedilatildeo feita por Dulce Pandolfi em 1970 registrada na auditoria militar 44

[]

que foi exposta perante 20 oficiais como numa demonstraccedilatildeo de aulas de torturas

pau-de-arara e choques [] (Arquidiocese de Satildeo Paulo tomo V 1985 758)

Essa denuacutencia feita na eacutepoca por Dulce na auditoria da Justiccedila Militar foi

publicada em A Tortura tomo V do ldquoProjeto Ardquo da pesquisa coordenada pela

Arquidiocese de Satildeo Paulo e intitulada Brasil Nunca Mais O ldquoProjeto Ardquo eacute constituiacutedo

por doze volumes que contecircm as conclusotildees da referida pesquisa feita a partir da

44

Assim satildeo chamadas as varas criminais com atribuiccedilatildeo especiacutefica de atuar em processos de crimes

militares da Justiccedila Militar brasileira

158

reuniatildeo de coacutepias da quase totalidade dos processos poliacuteticos que tramitaram na Justiccedila

Militar entre abril de 1964 e marccedilo de 1979 Esses volumes foram reproduzidos vinte e

cinco vezes pela Arquidiocese de Satildeo Paulo formando coleccedilotildees que foram doadas a

entidades de direitos humanos pesquisa e documentaccedilatildeo 45

As 6891 paacuteginas do

ldquoProjeto Ardquo estatildeo resumidas no ldquoProjeto Brdquo o livro Brasil Nunca Mais tambeacutem

datado de 1985 e publicado pela Editora Vozes

Os primeiros momentos no DOI-CODI

Desde o momento da detenccedilatildeo o preso era submetido a diversos tipos de maus

tratos Jaacute a caminho do caacutercere ainda dentro do automoacutevel comeccedilavam as agressotildees

como tapas pontapeacutes e empurrotildees a fim de acelerar a sua desestabilizaccedilatildeo para que

entregasse mais rapidamente informaccedilotildees que agilizassem a prisatildeo de outros militantes

procurados

As torturas que Ana Batista relata ter sofrido durante o percurso de transferecircncia

da OBANSP para o DOI-CODIRJ destacadas em seu memorial ndash escrito em outubro

de 2004 um mecircs antes de sua entrevista e encaminhado agrave Comissatildeo Especial da

Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro ndash trazem aspectos

proacuteximos agrave realidade vivida na eacutepoca pelos presos poliacuteticos do DOI-CODIRJ

[] dez dias apoacutes a prisatildeo fui levada de Satildeo Paulo [DOI-CODISP] para o

Rio [DOI-CODIRJ] de madrugada numa C-14 onde permaneci no banco de

traacutes entre dois agentes de grande porte No meio do caminho na Via Dutra

eles entraram por uma estradinha pararam o carro e me mandaram descer

aos berros Com fortes dores no corpo ndash especialmente nos rins ndash

queimaduras infectadas pelos choques eleacutetricos exausta dos interrogatoacuterios e

45

Os doze volumes do ldquoProjeto Ardquo estatildeo disponiacuteveis no Arquivo do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio

de Janeiro (GTMNRJ)

159

sem dormir haacute dias desembarquei meio trocircpega Gritaram impropeacuterios e

ordenaram que eu fugisse Como estava muito tonta sem saber o que pensar

ou fazer natildeo fiz nada Atiraram entatildeo repetidas vezes em volta de mim

que permaneci encostada em uma aacutervore gritaram vaacuterias vezes para que eu

fugisse Caiacute no chatildeo o que os fez parar de atirar e se jogarem em cima de

mim agraves gargalhadas Colocaram-me de volta no carro e continuamos a

viagem rumo ao DOI-CODI-RJ (Batista out 2004)

Assim quando chegavam ao DOI-CODIRJ apoacutes passarem pelo portatildeo de

entrada da Praccedila Lamartine Babo (Foto Nordm3) os presos preenchiam uma ficha de

identificaccedilatildeo e eram levados para a ldquosala roxardquo no andar teacuterreo do preacutedio dessa

instituiccedilatildeo (Foto Nordm2) Laacute em meio a interrogatoacuterio as ameaccedilas e torturas se

intensificavam perpetradas pelos integrantes de uma das trecircs turmas de interrogatoacuterio

preliminar de plantatildeo no momento

Cabe lembrar que tais turmas eram constituiacutedas por militares treinados para

conseguir extrair rapidamente dos presos o maior nuacutemero possiacutevel de informaccedilotildees

principalmente sobre a data hora e local de seu proacuteximo ldquopontordquo de encontro Afinal

caso esses agentes natildeo conseguissem tais dados logo nos primeiros dias natildeo chegariam

ao local a tempo de pegarem o outro militante clandestino que o preso encontraria A

partir do momento em que a ausecircncia desse militante fosse notada integrantes de sua

organizaccedilatildeo poliacutetica deduziriam o motivo e por proteccedilatildeo modificariam os locais dos

ldquoaparelhosrdquo e dos proacuteximos ldquopontosrdquo As informaccedilotildees do preso receacutem-capturado se

tornariam entatildeo desatualizadas o que dificultaria a investigaccedilatildeo dos agentes do DOI-

CODIRJ

As torturas infringidas aos presos eram mais intensas logo depois da prisatildeo

Lutando contra o tempo era comum deixar o preso em celas ldquosolitaacuteriasrdquo localizadas no

andar teacuterreo conforme jaacute indicado Dessa forma os presos receacutem-chegados ficavam

bem proacuteximos agrave sala de interrogatoacuterio a ldquosala roxardquo justamente por serem para laacute

160

levados com frequecircncia Como nas ldquosolitaacuteriasrdquo os presos ficavam sozinhos e natildeo

podiam contar com itens baacutesicos de higiene e proteccedilatildeo do corpo (tais como banheiro

chuveiro colchatildeo e cobertor) acabavam se sentindo ainda mais desestruturados e por

conseguinte desestabilizados Logo no momento inicial da prisatildeo quando os presos

natildeo eram submetidos agraves torturas fiacutesicas eram submetidos agraves torturas psicoloacutegicas das

ldquosolitaacuteriasrdquo as chamadas torturas brancas46

espeacutecie de degradaccedilatildeo fria sem violecircncia

humana expliacutecita

Por outro lado os presos receacutem-capturados tinham consciecircncia de que era naquele

momento inicial que mais poderiam prejudicar seus companheiros de organizaccedilatildeo

Diante disso normalmente tentavam dificultar o acesso dos militares agraves informaccedilotildees

lutando para resistir agraves torturas Apesar de muitas vezes fracassarem tentavam segurar

os dados que tinham ao menos ateacute passar o horaacuterio do proacuteximo ldquopontordquo que haviam

combinado com outro militante Portanto avalia-se que provavelmente o grau de

resistecircncia inicial do prisioneiro estava diretamente relacionado ao da intensidade da

tortura a ele perpetrada e vice-versa conforme analisa-se nos trechos da entrevista de

Ana de Miranda Batista abaixo destacados

[] o meu negoacutecio era ganhar tempo e o deles era conseguir informaccedilatildeo A

luta eacute essa nos primeiros dias eacute vocecirc dar o miacutenimo de informaccedilotildees e eles

querendo arrancar o maacuteximo de informaccedilatildeo Aiacute eles vecircm com a maacutexima de

que torturar eacute investigar [risos] E daiacute se precisar ateacute a morte O negoacutecio eacute

conseguir informaccedilatildeo

46

Em 1971 quando os ex-prisioneiros aqui entrevistados jaacute natildeo estavam mais no 1ordm BPE o projeto

ldquoTortura Limpardquo foi ali instalado Segundo Elio Gaspari o andar teacuterreo do DOI-CODIRJ sofreu obras

para que fossem construiacutedos quatro novos cubiacuteculos um foi forrado com isopor e amianto a fim de fazer

o prisioneiro sentir frio constantemente outro se tornou uma cacircmara de ruiacutedos pela qual o preso ouviria o

barulho por todo o tempo em que laacute estivesse o terceiro foi todo pintado de branco provocando dor na

vista do preso devido agrave claridade constante na cela o uacuteltimo transformou-se em um ambiente todo preto

natildeo fornecendo a quem estivesse em seu interior nenhuma claridade causando choque na vista quando

exposto a claridade normal (Gaspari 2002 189-190)

161

[] quando eu cheguei agrave OBAN [que na eacutepoca de sua prisatildeo jaacute havia se

transformado em DOI-CODISP] jaacute era noite eles estavam tomando cerveja

comemorando que eu tinha caiacutedo E aiacute eu passei o ponto da Ana Maria do

Carlos Eugecircnio com o Bacuri Porque laacute era um inferno [] laacute eu passei um

monte de ponto e todos eles eram procurados Entatildeo aiacute eacute que a barra pegou

mesmo (Batista 17 nov 2004)

Os trechos acima mesmo sendo baseados em uma experiecircncia vivida no DOI-

CODISP trazem muitas informaccedilotildees sobre o cotidiano prisional vivido de forma

geral em todos os DOI-CODI Afinal conforme ressaltado anteriormente esses oacutergatildeos

estavam espalhados por todas as jurisdiccedilotildees territoriais do Brasil e seguiam

basicamente a mesma organizaccedilatildeo Portanto pode-se concluir aqui que em ambos os

DOI-CODI no momento inicial da prisatildeo existia essa relaccedilatildeo entre a intensidade das

sessotildees de tortura adotadas pelos militares e o tamanho da vontade de resistir do preso

Tal relaccedilatildeo se torna ainda mais perceptiacutevel pela frustraccedilatildeo sentida na fala de Ana

ao afirmar ter passado muitos ldquopontosrdquo inclusive o de ldquoBacurirdquo codinome de Eduardo

Collen Leite seu companheiro de organizaccedilatildeo Ana no momento da entrevista sabia

que ldquoBacurirdquo havia sido preso em agosto de 1970 alguns dias depois de sua prisatildeo e

que havia morrido sob tortura Quando admite ter entregado aos agentes do DOISP o

ponto de encontro Ana se culpa O depoimento eacute o momento em que Ana aproveita

para se justificar ao demonstrar que acredita no quanto a resistecircncia agrave tortura era

importante no iniacutecio da prisatildeo mas como ela se tornava limitada sendo rapidamente

derrotada Resistir ao DOI-CODI era muito difiacutecil jaacute que os agentes haviam sido

fortemente preparados para a ldquoguerra internardquo e natildeo por acaso se tornariam os grandes

responsaacuteveis pela desarticulaccedilatildeo das organizaccedilotildees de luta armada

O silecircncio dos demais entrevistados sobre as informaccedilotildees que concederam ou natildeo

aos agentes das turmas de interrogatoacuterio preliminar serve aqui como mais um

argumento para a tese de que apesar da grande resistecircncia inicial dos presos poliacuteticos e

162

tambeacutem por causa dela a violecircncia vivida no DOI-CODIRJ nos primeiros dias de

prisatildeo era intensa e quase sempre prevalecia Afinal caso natildeo fosse desse modo os

entrevistados provavelmente orgulhar-se-iam de sua resistecircncia e por conseguinte natildeo

lhes faltariam motivos para lembraacute-la e narraacute-la Logo o silecircncio aqui tambeacutem se torna

revelador

Atraveacutes desse silecircncio destaca-se ainda que talvez pelos mesmos motivos que

Ana opta por lembrar e justificar-se os demais entrevistados optam por silenciar e tentar

esquecer Todos apesar de agirem de acordo com suas personalidades e experiecircncias de

vida provavelmente se sentem culpados ou envergonhados por natildeo terem aguentado

esconder o que sabiam ateacute o fim e poupado muitos de seus companheiros da prisatildeo e ateacute

mesmo da morte

A segunda fase

Passada esta primeira fase da prisatildeo no DOI-CODIRJ que durava em meacutedia uma

ou duas semanas os presos eram transferidos para celas maiores Estas continham

banheiro colchatildeo e em grande parte das vezes outros prisioneiros

Nessa segunda etapa os presos natildeo ficavam isentos das idas agrave ldquosala roxardquo poreacutem

estas natildeo eram tatildeo frequentes quanto anteriormente Afinal a busca desesperada por

ldquopontosrdquo codinomes ou ldquoaparelhosrdquo natildeo mais cabia pois esses prisioneiros jaacute estavam

distantes de suas organizaccedilotildees haacute tempo suficiente para que suas prisotildees fossem

notadas e por conseguinte para que as informaccedilotildees que tivessem jaacute natildeo fossem mais

ldquoquentesrdquo

Nessa fase as visitas agrave ldquosala roxardquo davam-se por outros motivos Normalmente

para ajudar em anaacutelises de novas suspeitas Os agentes das turmas de interrogatoacuterio

preliminar poderiam levar um preso mais antigo para a ldquosala roxardquo para ser acareado

163

com um receacutem-chegado com quem suspeitavam estar de alguma forma relacionado

Poderiam tambeacutem levaacute-lo ateacute laacute para ser interrogado a respeito de novas e possiacuteveis

accedilotildees da esquerda armada conforme indicassem as informaccedilotildees recebidas pelo CODI

conjugadas agraves anaacutelises feitas pelo Setor de anaacutelise e informaccedilotildees sobre algum material

apreendido pela Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo Eacute o que pode-se concluir a partir da

caracterizaccedilatildeo sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI quando colocadas em diaacutelogo

com as informaccedilotildees trazidas pelos trechos destacados abaixo

ldquoNome codinome e aparelhordquo isso eacute que eles querem saber de imediato

Depois que passa algum tempo isso natildeo interessa mais Aiacute eles tecircm um

trabalho mais analiacutetico que era para saber de outros que acabaram de cair o

que eles tecircm de quecirc jaacute participaram o que estaacute acontecendo [] (Batista 17

nov 2004)

[] de quem era preso eles queriam duas informaccedilotildees imediatas eles

comeccedilavam a te bater e soacute pediam o ponto o local de encontro que vocecirc

tivesse com algueacutem e o aparelho que era o apartamento alugado ou qualquer

coisa assim Era isso o que eles queriam basicamente [] (Freire 28 jun

2004)

Como o DOI-CODIRJ tinha poucas celas e muita rotatividade quando o preso

natildeo mais interessava agraves investigaccedilotildees era normalmente mandado para o DOPS onde

era aberto o processo de crime poliacutetico e ficava detido ateacute o primeiro julgamento ndash

como ocorreu com Antocircnio de Carvalho Dulce Pandolfi e Ana de Miranda Batista

Poreacutem quando o seu caso tivesse relaccedilatildeo com uma das outras Forccedilas Armadas o preso

era transferido para a instituiccedilatildeo repressiva diretamente ligada a esta ndash como aconteceu

com Fernando ao ser levado do DOI-CODIRJ para o CISA oacutergatildeo de repressatildeo ligado agrave

Aeronaacuteutica ndash onde permaneceria ateacute quando seus agentes julgassem necessaacuterio Aleacutem

disso caso os agentes do DOI-CODIRJ constatassem que o prisioneiro natildeo estava

164

envolvido diretamente em nenhum crime poliacutetico ele poderia ser posto em liberdade

provisoacuteria ndash como ocorreu com Padre Maacuterio e Ceciacutelia Coimbra

Vale lembrar que o DOI-CODIRJ natildeo era um presiacutedio comum Laacute os suspeitos de

crimes poliacuteticos natildeo estavam cumprindo pena baseada em um processo e sim na

menagem estipulada pelo Coacutedigo Processual Militar criado pelo decreto-lei Nordm1002

de outubro de 1969 Por meio da menagem os suspeitos de crimes poliacuteticos ndash que a

partir do AI-5 tinham passado a ser julgados pela Justiccedila Militar ndash poderiam ser

arbitrariamente detidos e levados ao quartel responsaacutevel pela Regiatildeo Militar onde

estivessem A menagem era justificada como uma forma de prisatildeo cautelar que visava

evitar o conviacutevio do acusado com pessoas que jaacute estivessem condenadas ateacute o seu

julgamento em primeira instacircncia Dessa forma os suspeitos de crimes poliacuteticos da

Regiatildeo Militar que englobava o Rio de Janeiro ficavam detidos no DOI-CODIRJ

localizado no quartel do 1ordm BPE e ali permaneciam presos sem direito a formalidades

convencionais de uma prisatildeo tais como as visitas de familiares e de um advogado por

um periacuteodo que chegava ateacute 30 dias podendo ser prorrogado por mais 60 dias

Poreacutem como ressaltado anteriormente quando novos grupos de suspeitos laacute

chegavam a saiacuteda dos presos mais antigos era impulsionada mesmo sem ainda terem

sido julgados No entanto como esses presos ainda estavam sob a menagem e por isso

natildeo poderiam ir para um presiacutedio comum a assessoria juriacutedica e policial do DOIRJ ou

os transferia ou os colocava em liberdade provisoacuteria controlando nesse uacuteltimo caso

para que natildeo saiacutessem da respectiva Regiatildeo Militar ateacute o seu julgamento em primeira

instacircncia

[] fiquei trecircs meses laacute na PE na Poliacutecia do Exeacutercito na Rua Baratildeo de

Mesquita Depois fui levada para o DOPS [] laacute na PE a gente ficava nessa

triagem sendo torturado ou ouvindo grito de tortura e esperando laacute o tempo

ateacute eles resolverem a nossa situaccedilatildeo e sermos transferidos Entatildeo laacute era um

165

esquema de uma circulaccedilatildeo muito grande de pessoas Daiacute o quartel estava

sempre cheio porque de repente quando caiacutea alguma organizaccedilatildeo

apareciam laacute 30 ou 40 pessoas presas naquela noite e aquilo ficava

abarrotado de gente Entatildeo tinha momentos que a coisa ficava mais

tranquila e tinha momentos que aquilo ali ficava realmente lotado [] a PE

era isso a PE natildeo tinha uma rotina desses presiacutedios da linha tradicional laacute

ningueacutem recebia visita porque era a fase completamente ilegal da sua prisatildeo

[] (Pandolfi 5 fev 2003)

Outro aspecto interessante da menagem que interferia no cotidiano prisional do

DOI-CODIRJ satildeo as regras para o tempo de inquiriccedilatildeo estipuladas pelo decreto-lei nordm

100269 Este impunha que exceto em casos de urgecircncia os presos que estivessem sob

menagem deveriam prestar depoimentos durante o dia das sete e agraves 18 horas Aleacutem

disso esses prisioneiros natildeo poderiam ser inquiridos por mais de quatro horas

consecutivas tendo direito apoacutes esse periacuteodo a um intervalo de meia hora antes de

voltarem a ser interrogados

Art 19 As testemunhas e o indiciado exceto caso de urgecircncia inadiaacutevel que

constaraacute da respectiva assentada devem ser ouvidos durante o dia em

periacuteodo que medeie entre as sete e as dezoito horas

[]

Inquiriccedilatildeo Limite de tempo

2ordm A testemunha natildeo seraacute inquirida por mais de quatro horas consecutivas

sendo-lhe facultado o descanso de meia hora sempre que tiver de prestar

declaraccedilotildees aleacutem daquele termo O depoimento que natildeo ficar concluiacutedo agraves

dezoito horas seraacute encerrado para prosseguir no dia seguinte em hora

determinada pelo encarregado do inqueacuterito (Decreto-lei nordm 1002 21 out

1969)

A partir disso faz mais sentido ainda as diferentes distacircncias existentes entre as

celas e a sala de tortura nas duas fases da prisatildeo Como o prazo maacuteximo estipulado para

um interrogatoacuterio era de quatro horas tendo o prisioneiro apoacutes este tempo direito a um

166

descanso de ao menos meia hora no primeiro momento da prisatildeo no DOI-CODIRJ

deixar o preso perto do local onde eram feitos os interrogatoacuterios era um facilitador Essa

proximidade entre a cela e a ldquosala roxardquo natildeo era necessaacuteria para o preso que estivesse na

segunda etapa da prisatildeo jaacute que ele natildeo seria transportado de um lugar para o outro com

tamanha frequecircncia e provavelmente os interrogatoacuterios que lhe seriam destinados nem

chegassem agraves quatro horas permitidas pelo referido Decreto-lei

Nas narrativas de todos os entrevistados estatildeo presentes as experiecircncias vividas

nas duas fases da prisatildeo Todos eles passaram os primeiros dias em solitaacuterias e

posteriormente ficaram em celas maiores Padre Maacuterio foi a uacutenica exceccedilatildeo Sua prisatildeo

no DOI-CODIRJ natildeo passou por essas duas etapas encaixando-se portanto em um

dos casos extraordinaacuterios dessa instituiccedilatildeo Afinal desde o momento em que foi levado

para o preacutedio do DOI-CODIRJ Padre Maacuterio afirma ter dividido uma cela no segundo

andar com outros padres e depois ter sido transferido para uma cela do primeiro andar

onde ficou sozinho e de frente para as celas de jovens militantes de sua Associaccedilatildeo

conforme pode-se conferir no trecho abaixo

[] foi exatamente em setembro logo nas primeiras duas semanas em que

noacutes estaacutevamos presos que eles me passaram para o primeiro andar porque

estaacutevamos todos no segundo andar [] entatildeo nos primeiros dias noacutes

padres passamos todos juntos [] e depois fomos separados Entatildeo me

colocaram sozinho nessa cela do andar de baixo bem em frente agraves celas dos

jovens que estavam presos no CENIMAR e que foram levados para laacute para

serem torturados [] (Prigol 28 set 2004)

Essa diferenccedila no cotidiano prisional encontra coerecircncia quando embasada por

alguns argumentos aqui levantados Como a fase em que os presos ficavam nas

ldquosolitaacuteriasrdquo tinha por finalidade desestruturaacute-los e principalmente deixaacute-los mais

proacuteximos da sala de tortura para onde seriam levados com frequecircncia essa fase natildeo

167

deveria ser destinada a um padre sem envolvimento em uma organizaccedilatildeo de luta

armada Os militares teriam que responder agrave Igreja caso algo de mais grave lhe

acontecesse dentro do DOI-CODIRJ Colocar sua vida em risco deveria ser uma opccedilatildeo

somente se ele tivesse informaccedilotildees preciosas para a neutralizaccedilatildeo da guerrilha urbana

principal objetivo do grupo de repressatildeo em 1970 conforme indicado na monografia do

coronel Pereira analisada no primeiro capiacutetulo

Entatildeo como a associaccedilatildeo da qual participava a ACO natildeo tinha envolvimento

com a luta armada a morte de Padre Maacuterio poderia causar desnecessariamente uma

tensatildeo ateacute entatildeo natildeo deflagrada entre o Exeacutercito e a Igreja Catoacutelica 47

Aleacutem disso

como se encontrava em uma faixa etaacuteria mais elevada com cerca de 40 anos ele tinha o

agravante de ter uma sauacutede mais fraacutegil que grande parte dos presos do DOI-CODIRJ

que eram majoritariamente jovens estudantes Assim o tratamento prisional

diferenciado ali recebido por Padre Maacuterio visava diminuir as chances que ele tinha de

desenvolver problemas decorrentes de torturas Essa interpretaccedilatildeo encontra fortes

indiacutecios em um dos trechos de sua entrevista

[] a mim eles soacute colocaram o fio eleacutetrico aqui [aponta para um dedo da

matildeo esquerda] e no peacute esquerdo eu fiquei sabendo que no mesmo lado do

corpo eu natildeo sentiria tatildeo forte mas mesmo assim eu resisti resisti Bom

entatildeo diante da prisatildeo da gente eu sofri tambeacutem torturas mas eu depois

que fingi estar sentindo o coraccedilatildeo eles deixaram de dar choques [risos]

Cada um tem que se defender de alguma forma (Prigol 28 set 2004)

Afinal por meio da descriccedilatildeo acima destacada nota-se que apesar de natildeo

excluiacuterem Padre Maacuterio das sessotildees de tortura uma vez que era esse o procedimento de

investigaccedilatildeo do DOI-CODIRJ existia de fato certo temor em causar-lhe graves

47

Para informaccedilotildees sobre as tensotildees que ocorreram entre a Igreja Catoacutelica e a ditadura militar ver

Serbin 2001 17-77

168

sequelas Dessa forma por mais que Padre Maacuterio relate que sua atitude de defesa

conseguiu inibir a accedilatildeo daqueles agentes conclui-se aqui que caso ele natildeo tivesse as

caracteriacutesticas profissionais morais etaacuterias e ideoloacutegicas aqui descritas certamente tal

inibiccedilatildeo natildeo ocorreria Ao menos natildeo na mesma proporccedilatildeo

Testando a resistecircncia

No ano de 1970 esta preocupaccedilatildeo em evitar sequelas evidentemente natildeo se

aplicava a jovens presos que tivessem algum tipo de ligaccedilatildeo com organizaccedilotildees

oposicionistas adeptas da luta armada Conforme pode-se conferir nos relatos sobre os

danos agrave sauacutede que Dulce Fernando e Ana destacam ter sofrido por conta das torturas

recebidas no DOI-CODIRJ

[] fiquei tomando medicaccedilatildeo especial porque eu estava muito mal estava

com uma paralisia tambeacutem por causa da tortura tinha ficado completamente

travada aquilo vocecirc vai contraindo contraindo e deixava vocecirc semiparaliacutetica

[] (Pandolfi 5 fev 2003)

Eu desmaiava acordava e o pau comia desmaiava acordava e o pau

comia Natildeo foi faacutecil natildeo Eu lembro que quando eu saiacute da PE um mecircs

depois eu fazia assim [passa a matildeo no ouvido] e vinha sangue vinha pus eu

estava bem abalado mesmo (Freire 28 jun 2004)

[] eu fiquei um mecircs no Rio no DOI-CODI Desse mecircs uma semana eu

fiquei no HCE [Hospital Central do Exeacutercito] eu tremia sem parar eu estava

cheia de ferida (Batista 17 nov 2004)

Em todas as fases da prisatildeo para cuidar dos estragos causados agrave sauacutede do preso

durante ou apoacutes a sessatildeo de tortura existiam enfermeiros e meacutedicos no DOI-CODIRJ

Os enfermeiros tratavam os prisioneiros nas celas conforme a recomendaccedilatildeo dos

169

meacutedicos Jaacute esses aleacutem de examinarem e receitarem cuidados especiais aos presos

machucados tambeacutem auxiliavam as turmas de interrogatoacuterio preliminar durante as

torturas averiguando os sinais vitais dos presos a fim de constatarem o quanto eles

ainda poderiam suportar No entanto quando a tortura saiacutea de controle de tal forma que

algum preso ficasse tatildeo mal que natildeo respondesse agrave medicaccedilatildeo e aos cuidados meacutedicos

feitos dentro do quartel esse poderia ser levado pelas turmas de busca e apreensatildeo

conforme demonstrado no primeiro capiacutetulo ateacute o Hospital Central do Exeacutercito48

onde

receberiam um tratamento mais especializado

A existecircncia de meacutedicos no DOI-CODIRJ pode ser averiguada por meio da

confissatildeo de Amilcar Lobo noticiada pela Revista Eacutepoca apresentada abaixo

(EacutePOCA 27 nov 2000 104)

Meacutedico de formaccedilatildeo psicanaliacutetica ele foi denunciado por muitos ex-prisioneiros

por exercer a profissatildeo prestando assessoria a torturas entre 1970 e 1974 no DOI-

CODIRJ Diante disso em 1988 teve o seu registro de meacutedico cassado pelo Conselho

Regional de Medicina do Rio de Janeiro A atuaccedilatildeo de Amilcar Lobo assim como a de 48

O Hospital Central do Exeacutercio (HCE) ainda estaacute localizado no mesmo local da eacutepoca na Rua Francisco

Manoel nordm 126 no bairro de Benfica na cidade do Rio de Janeiro Para mais informaccedilotildees acessar

httpwwwhceebmilbr

170

meacutedicos e enfermeiros em geral tambeacutem eacute encontrada nos depoimentos aqui

analisados conforme pode-se conferir nos trechos destacados a seguir

[] a primeira pessoa que me visitou antes de eu ser torturada foi um

meacutedico o Amilcar Lobo que depois eu denunciei o lsquofilho da putarsquo e a gente

conseguiu cassaacute-lo como meacutedico [] ele acompanhava as torturas antes

durante e depois era o assessor de tortura ele dizia ldquo- Daacute uma paradinha

agorardquo Isso para vocecirc aguumlentar neacute Entatildeo ele entrou na minha cela e me

perguntou se eu era cardiacuteaca tirou a minha pressatildeo e eu natildeo entendendo

nada Ele tinha um esparadrapo aqui [aponta para o lado esquerdo do peito]

para a gente natildeo ver o nome dele Eu fiquei sabendo o nome dele porque

meses depois eu jaacute estava na cela de Dulce [Pandolfi]49

quando ele

porque a Dulce ficou praticamente sem mexer as matildeos [] e ele entrou e

esqueceu o receituaacuterio com o nome dele noacutes olhamos e eu quando saiacute de laacute

o denunciei Anos depois a gente conseguiu que ele fosse cassado []

(Coimbra 30 nov 2004)

[] o meacutedico que vinha te ver vinha para ver as suas condiccedilotildees se tinha que

parar ou se podia continuar a te torturar Os caras batiam muito localizado

em partes que vocecirc resiste mais que satildeo nas naacutedegas nessa parte daqui

[aponta para as costas] Entatildeo satildeo lugares que o seu corpo suporta mais []

(Freire 28 jun 2004)

[] como eu fiquei muito mal eu tive cuidados meacutedicos o tempo quase todo

quer dizer claro que eram cuidados meacutedicos no sentido de me prepararem

para apanhar mais para ser mais torturada queriam evitar que eu morresse

porque politicamente natildeo interessava [] tinha laacute dois enfermeiros de rotina

e tinham tambeacutem dois meacutedicos o mais presente o que sempre visitava a

gente era o Amilcar Lobo Em alguns casos ele participou de algumas

sessotildees de tortura no meu eu me lembro dele dizendo ldquo- ela aguentardquo

tomando minha pressatildeo dizendo que eu aguentava apanhar mais ainda

(Pandolfi 5 fev 2003)

49

Dulce e Ana e Dulce e Ceciacutelia dividiram celas em parte do periacuteodo em que estiveram presas no DOI-

CODIRJ A convivecircncia que laacute tiveram seraacute analisada ainda neste capiacutetulo

171

De fato a tortura estava presente em grande parte do cotidiano do DOI-CODIRJ

e para que fosse eficiente e natildeo causasse maiores problemas tal como mortes

indesejadas ao redor dela havia todo um aparato Esse era formado tanto por

enfermeiros e meacutedicos como tambeacutem por outras especificidades tais como teacutecnicas

treinamentos e equipamentos que seratildeo tratados a seguir

Os meacutetodos da tortura

O meacutedico psicanalista Heacutelio Pelegrino traz uma oacutetima definiccedilatildeo sobre como

funciona a tortura poliacutetica

[] a tortura busca agrave custa do sofrimento corporal insuportaacutevel introduzir

uma cunha que leve agrave cisatildeo entre o corpo e a mente E mais do que isto ela

procura a todo preccedilo semear a discoacuterdia e a guerra entre o corpo e a mente

Atraveacutes da tortura o corpo torna-se nosso inimigo e nos persegue Eacute este o

modelo baacutesico no qual se apoacuteia a accedilatildeo de qualquer torturador [] na tortura

o corpo volta-se contra noacutes exigindo que falemos Da mais iacutentima espessura

de nossa proacutepria carne se levanta uma voz que nos nega na medida em que

pretende arrancar de noacutes um discurso do qual temos horror jaacute que eacute a

negaccedilatildeo de nossa liberdade A tortura nos impotildee a alienaccedilatildeo total de nosso

proacuteprio corpo tornando estrangeiro a noacutes e nosso inimigo de morte

(Pelegrino 5 jun 1982 3)

No interior do DOI-CODIRJ em nenhuma das fases da prisatildeo os presos poliacuteticos

eram poupados de torturas No iniacutecio as visitas agrave ldquosala roxardquo eram mais constantes mas

durante todo o periacuteodo em que permaneciam no DOI-CODIRJ os prisioneiros eram

levados para laacute e laacute eram torturados Nessa sala existiam equipamentos proacuteprios

tornando ainda maior a gama de possibilidades de tortura a serem perpetradas aos

prisioneiros Devido a essa diversidade as torturas recebiam nomes proacuteprios para serem

identificadas pelos oficiais das turmas de interrogatoacuterio preliminar do DOIRJ Tais

172

nomes na maior parte das vezes eram irocircnicos e serviam para demonstrar como ali a

praacutetica da tortura era usual e ao mesmo tempo encarada com naturalidade e frieza

pelos seus executores

Em A Tortura tomo V do ldquoProjeto Ardquo (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985)

encontram-se a caracterizaccedilatildeo e os nomes dessas torturas Comumente citadas pelos

presos poliacuteticos da ditadura militar do Brasil a identificaccedilatildeo dessas torturas foi baseada

sobretudo na anaacutelise da documentaccedilatildeo dos processos judiciais da eacutepoca Afinal muitas

vezes anexadas a esses processos encontram-se denuacutencias sobre torturas feitas por

prisioneiros poliacuteticos nas auditorias militares Essas denuacutencias vatildeo ao encontro de

muitas das descriccedilotildees encontradas nas narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos Antocircnio

Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia construiacutedas jaacute em tempos democraacuteticos

(2002-2004) Algumas delas satildeo destacadas a seguir

Capuz tortura psicoloacutegica Impedimento da visatildeo por meio de um capuz

ficando o indiviacuteduo incapacitado de se defender dos golpes a ele direcionados

Espancamento tapas socos e pontapeacutes aplicados em regiotildees como rins

estocircmago e diafragma

Telefone eletrochoque dado por um telefone de campainha do Exeacutercito

possuindo dois fios longos que satildeo ligados ao corpo molhado normalmente nas

partes genitais e nos mamilos aleacutem dos ouvidos dentes liacutengua e dedos

Pau-de-arara um dos meacutetodos mais antigos de tortura pelo qual se pendura a

viacutetima em posiccedilatildeo de ldquofrango assadordquo nua e de cabeccedila para baixo em um pau

preso no alto por duas barras de ferro causando dores terriacuteveis na cabeccedila e em

todo corpo

Choques eleacutetricos normalmente complemento do pau-de-arara Caracteriza-se

por enviar descargas eleacutetricas em contato com o corpo nu e molhado atraveacutes de

173

um magneto com dois terminais estando um geralmente nos oacutergatildeos genitais e

outro em alguma extremidade sensiacutevel do corpo como liacutengua mamilos e dedos

Palmatoacuteria raquete de madeira aplicada fortemente nas matildeos peacutes naacutedegas e

costas da viacutetima

Afogamento Complemento do pau-de-arara Pode ser aplicado ou por meio de

um pequeno tubo de borracha que lanccedila aacutegua na boca e nas narinas do

torturado ou atraveacutes de uma toalha molhada depositada tambeacutem na boca deste

ao mesmo tempo em que um jato drsquoaacutegua eacute lanccedilado em suas narinas

No referido tomo V do Projeto Brasil Nunca Mais encontram-se trechos das

denuacutencias feitas por Dulce Pandolfi nas auditorias militares em 1970 e tambeacutem por seu

advogado Dr Heleno Fragoso Comparando partes dessas denuacutencias de 1970 com

trechos da entrevista concedida por Dulce em 2003 nota-se que haacute muitos pontos em

comum No entanto percebe-se que em sua narrativa de 2003 as torturas satildeo relatadas

de forma mais impessoal e que talvez pelo tempo que separa este depoimento daquele

de 1970 alguns detalhes se perderam foram esquecidos ou mesmo silenciados Eacute o que

pode-se perceber nas transcriccedilotildees feitas a seguir

Nordm 433 Dulce Chaves Pandolfi Prof estudante Idade 23 Local Rio de

Janeiro (CODI) Ano 1970 Apelaccedilatildeo 39778 Vol 1 PAacuteG 328v LVI

PARTE auto de qualificaccedilatildeo e interrogatoacuterio ndash Auditoria

[] que no quartel da PE na Rua Baratildeo de Mesquita assinou sob torturas o

depoimento () que na sala de torturas da PE foi despida e aplicaram-lhe

choques eleacutetricos nas matildeos que foi levada para uma cela onde deram-lhe

um banho frio e sob o pretexto de ensaboaacute-la os torturadores alisavam o seu

corpo que ao retornar agrave sala de torturas foi colocada no chatildeo com um

jacareacute sobre seu corpo nu que depois foi pendurada num pau-de-arara que

levou choques na vagina no acircnus nos seios na cabeccedila e no restante do

corpo [] que ficou em estado de choque vomitando sangue que por 15

174

dias ficou totalmente paraliacutetica [] que foi exposta perante 20 oficiais

como numa demonstraccedilatildeo de aulas de torturas pau-de-arara e choques []

(Arquidiocese de Satildeo Paulo tomo V 1985 757)

Nordm 433 Dulce Chaves Pandolfi Prof estudante Idade 21 Local R de

Janeiro Ano 1970 Apelaccedilatildeo 39778 Vol 2ordm PAacuteG 712807 LVI

PARTE advogado

[] Com a palavra o Dr Heleno Fragoso defensor da acusada Dulce Chaves

Pandolfi este declarou que ela foi presa em agosto de 1970 tendo sido

submetida a uma seacuterie de torturas tendo inclusive o Delegado do DOPS

mandado submetecirc-la a exame de corpo de delito para salvaguardar a sua

responsabilidade [] Natildeo usaremos a palavra do co-reacuteu Paulo Henrique

Oliveira da Rocha Lins que foi ldquoforccedilado a presenciar a acusada DULCE

PANDOLFI sendo pisoteada nua no chatildeordquo (cf fls 325) Remeteremos o E

Conselho ao laudo fls 358 onde dois meacutedicos legistas do Instituto Meacutedico

Legal examinam a acusada e concluem pela verossimilhanccedila a

plausibilidade de suas alegaccedilotildees no sentido de que fora espancada

constatando os vestiacutegios das lesotildees Estaacute laacute a fls 358 a verdade do

inqueacuterito

Esse sofrimento deve ter sido tanto maior quanto era possiacutevel agrave acusada

fornecer as informaccedilotildees que seus torturadores exigiam [] (Arquidiocese de

Satildeo Paulo tomo V 1985 759)

[] vocecirc apanhava era super torturada ali em 1970 natildeo tinha escapatoacuteria

esse era o procedimento era a rotina e aiacute depois da tortura vocecirc jaacute toda

cheia de hematomas passando mal vocecirc era levada para uma cela muitas

vezes essas pessoas saiacuteam da sala de tortura e iam direto para essa cela onde

eu estava entatildeo eu tambeacutem presenciei muitas pessoas que chegavam laacute

completamente quebradas arrebentadas e essa era a nossa vida []

[] tinha o pau-de-arara que eu fui pendurada vaacuterias vezes nele com os

ferros verdes e as cordas tinha o tal telefone de choque que era para mim

um dos piores instrumentos era um aparelho de choque eleacutetrico tinha a

cadeira que eles tambeacutem te amarravam faziam mil sacanagens e tinha uns

enfim tinha uma espeacutecie de chicote que eles te batiam um porrete A tortura

tem vaacuterios procedimentos e tinha na PE nessa eacutepoca um jacareacute Ele natildeo

ficava na sala de tortura Esse jacareacute ficava do lado de fora Quando algumas

pessoas foram presas eles trouxeram o jacareacute para amedrontar Colocavam o

175

jacareacute sobre o seu corpo Era um filhote de jacareacute mas razoavelmente

grande quer dizer de um metro mais ou menos e era mais um dos

instrumentos que eles usavam [] fiquei tomando medicaccedilatildeo especial

porque eu estava muito mal estava com uma paralisia tambeacutem por causa da

tortura tinha ficado completamente travada eacute aquilo vocecirc vai contraindo

contraindo e deixava vocecirc semiparaliacutetica [] (Pandolfi 5 fev 2003)

A partir da comparaccedilatildeo dos trechos dos diferentes depoimentos acima destacados

dados sobre cenaacuterios e temporalidades distintas nota-se que a narrativa construiacuteda por

Dulce Pandolfi em 2003 eacute muito menos detalhada do que a por ela proferida em 1970

Percebe-se portanto no caso de Dulce que o presente vivido em 2003 de certa forma

agia sobre sua memoacuteria do passado ditatorial impulsionando o silecircncio sobre as

minuacutecias dos sofrimentos vividos no DOI-CODIRJ Logo nas memoacuterias de Dulce

nota-se uma inversatildeo da perspectiva de que o presente democraacutetico promovia uma

narrativa que enfatizasse os detalhes das torturas sofridas durante a ditadura militar a

fim de solidificar as conquistas ateacute entatildeo conseguidas e alcanccedilar outras tantas no futuro

Talvez em 2003 Dulce por jaacute ser uma mulher madura e uma profissional

reconhecida entendesse que o constrangimento trazido pela exposiccedilatildeo total de suas

memoacuterias sobre as torturas sofridas no passado superasse a vontade de denunciaacute-las no

presente Afinal naquele ano a democracia dava fortes sinais de consolidaccedilatildeo uma vez

que Lula ex-liacuteder sindical e perseguido poliacutetico pela ditadura acabava de assumir a

Presidecircncia do Brasil e o Estado brasileiro jaacute vinha reconhecendo sua responsabilidade

diante dos abusos da eacutepoca militar atraveacutes da concessatildeo de reparaccedilotildees financeiras agraves

famiacutelias dos militantes poliacuteticos desde entatildeo desaparecidos (lei nordm 914095) e agraves

viacutetimas de torturas em prisotildees poliacuteticas do periacuteodo (lei nordm 1055902)

Jaacute em 1970 os detalhes sobre as torturas sofridas por Dulce ainda eram

extremamente recentes e portanto muito presentes em sua memoacuteria Aleacutem disso tinha

consciecircncia de que no instante de seu depoimento muitos de seus companheiros

176

continuavam a sofrer dentro dos oacutergatildeos de repressatildeo com as mesmas torturas que havia

recebido E principalmente como estava defendendo-se perante um tribunal a

exposiccedilatildeo dos detalhes de suas torturas apresentava-se como uma arma importante na

luta em prol de sua liberdade

Diante disso enquanto Dulce relata em sua entrevista saber do uso de um filhote

de jacareacute como mais um instrumento de tortura utilizado no DOI-CODIRJ sem no

entanto afirmar ter passado por tal experiecircncia Ceciacutelia Coimbra em 2004 narra que

esse filhote de jacareacute havia sido colocado pelos militares sobre seu corpo nu

[] me botaram nua me amarraram numa cadeira e me puseram um filhote

de jacareacute que era um filhote de jacareacute que eles puxavam por uma corda no

pescoccedilo do pobre do jacareacute Era um filhote e aiacute eles puxavam o jacareacute

botavam o jacareacute em cima Olha era uma coisa horriacutevel Nessa hora eu

desmaiei neacute Natildeo aguentei [] (Coimbra 30 nov 2004)

Durante sua entrevista em 2004 Ceciacutelia descreve ter passado pela mesma

situaccedilatildeo de tortura que Dulce havia descrito em seu depoimento agrave Justiccedila Militar em

1970 mas que no presente em 2003 optou por relatar de forma impessoal Isso se

justifica pelo fato de para Ceciacutelia a descriccedilatildeo dos detalhes ainda ser essencial Afinal

Ceciacutelia eacute uma das fundadoras e ativistas assiacuteduas do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio

de Janeiro (GTNMRJ) onde ocupava entatildeo o cargo de vice-presidente

Eacute evidente portanto que na vida de Ceciacutelia a narrativa sobre os sofrimentos

acarretados pela repressatildeo militar ainda era arma na luta que travava para a

solidificaccedilatildeo das conquistas e para a concretizaccedilatildeo de outras tantas que julgava serem

igualmente importantes Para ela diferentemente de Dulce esse tipo de narrativa era

mais que sua memoacuteria pessoal dizia respeito tambeacutem a seu ofiacutecio Acreditava que o seu

sucesso pessoalprofissional dependia do detalhamento da memoacuteria sobre tais violaccedilotildees

177

o que colocava tais detalhes em um lugar de mais faacutecil aceitaccedilatildeo e por conseguinte

exteriorizaccedilatildeo

Mediante os depoimentos de Dulce e Ceciacutelia que chegaram a dividir cela no DOI-

CODIRJ como poderaacute ser visto paacuteginas agrave frente conclui-se que em meados de 1970

um filhote de jacareacute era utilizado para torturar os presos poliacuteticos do 1ordm BPE O uso

desse tipo de tortura eacute aqui entendido mais por seus efeitos psicoloacutegicos do que fiacutesicos e

como sendo destinado mais agraves presas do que aos presos poliacuteticos Afinal apesar de

tocar nos corpos das viacutetimas como acontece durante as torturas fiacutesicas aparentemente

o jacareacute que era dominado por um militar atraveacutes de uma corda amarrada em seu

pescoccedilo natildeo as atacava ou seja natildeo as causava lesotildees externas Era claramente

utilizado com o intuito de ameaccedilaacute-las Dessa forma mesmo sendo efetuado atraveacutes da

accedilatildeo direta do torturador e mediante o contato fiacutesico esse mecanismo de tortura tinha

por objetivo causar danos exclusivamente psicoloacutegicos Como normalmente as

mulheres possuem mais sensibilidades e fobias relacionadas ao contato com animais

provavelmente esse tipo de tortura atingisse maior eficiecircncia quando destinado agraves

presas

Conforme jaacute analisado e inclusive indicado pelo nome Destacamento de

Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) os presos do DOIRJ estavam ali para fornecer

informaccedilotildees que levassem agrave neutralizaccedilatildeo das organizaccedilotildees poliacuteticas de esquerda

Assim de acordo com a necessidade da raacutepida extraccedilatildeo de tais dados caracterizada

anteriormente natildeo eacute difiacutecil concluir que o clima de ameaccedila e tortura estivesse por toda

parte do preacutedio Portanto percebe-se que as torturas no DOI-CODIRJ de 1970 natildeo se

limitavam agraves fiacutesicas e nem agrave ldquosala roxardquo elas se apresentavam sob diversas faces em

vaacuterios momentos e lugares do edifiacutecio

178

As torturas psicoloacutegicas eram variadas Aleacutem da degradaccedilatildeo inicial que o

desconforto das celas ldquosolitaacuteriasrdquo trazia ao prisioneiro mesmo nas celas coletivas os

presos eram submetidos a muitos outros artifiacutecios desse tipo de tortura tais como luzes

das celas constantemente acesas a fim de que perdessem a noccedilatildeo da passagem do

tempo carcereiros durante a noite abrindo repetidamente a janelinha do portatildeo das

celas para vigiaacute-los acordando-os jaacute que o movimento emitia um som alto visitas

recorrentes de militares agraves celas e gritos vindos da ldquosala roxardquo ouvidos a todo tempo

[] essa porta da nossa cela ela tinha uma abertura era uma porta fechada

natildeo era grade natildeo era uma porta pesada e ela tinha um quadrado em cima

com uma abertura para o lado de fora e esses soldados que faziam a ronda

eles abriam essa portinha de cinco em cinco minutos Entatildeo eles passavam e

ldquopahrdquo e dependendo da maldade desses caras eles batiam com mais forccedila

ou menos forccedila isso era a noite toda Inclusive a luz ficava acesa

permanentemente e essa batidinha desse negoacutecio era uma coisa insuportaacutevel

De vez em quando a gente estava pegando no sono e tomava aquele susto

com aquela batida [] a gente tambeacutem ouvia muito grito de tortura o tempo

todo (Pandolfi 5 fev 2003)

[] nem na hora de dormir apagavam a luz dia e noite era a luz acesa vocecirc

sabia o horaacuterio pela hora do cafeacute da manhatilde Mas ateacute se tinha alguma noccedilatildeo

porque como a janela laacute no alto da parede era de vidro dava para vocecirc

perceber que estava agrave noite [] (Carvalho 8 fev 2003)

[] eles faziam o tal do confere de manhatilde e de noite vinham com catildees

policiais farejando a gente e a gente tinha que ficar em peacute igual a soldado

dizendo - ldquoCeciacutelia Coimbrardquo Tinha que falar o nome [] era o tal do

confere E era uma coisa de humilhaccedilatildeo eles de madrugada abriam

estrondosamente as celas entendeu [] era como se noacutes fossemos animais

animais de circo Animais raros eacuteramos os lsquoterroristasrsquo neacute [] era o tempo

todo as torturas fiacutesicas e a coisa da rotina para te degradar enquanto ser

humano [] (Coimbra 30 nov 2004)

179

Outro tipo de tortura psicoloacutegica aplicada no DOI-CODIRJ de 1970 fora da ldquosala

roxardquo jaacute aqui mencionada era o capuz Os agentes das turmas auxiliares encarregados

da carceragem colocavam uma espeacutecie de capuz no prisioneiro quando o levavam da

cela ateacute a ldquosala de torturardquo No entanto no momento em que o preso chegava nessa sala

tinha o capuz retirado pelos agentes das turmas de interrogatoacuterio preliminar Logo no

DOI-CODIRJ de 1970 o capuz ainda natildeo era um mecanismo para esconder os rostos

dos torturadores e sim mais um artifiacutecio de intimidaccedilatildeo do prisioneiro Aliaacutes foi

exatamente por isso que muitos ex-prisioneiros conseguiram anos depois denunciar

militares que na eacutepoca teriam sido seus algozes 50

Ana Batista ressalta ainda ter sido submetida no DOI-CODIRJ a outro tipo de

tortura psicoloacutegica O meacutedico Amilcar Lobo teria solicitado a um agente da turma

auxiliar de plantatildeo que a carregasse ateacute uma sala do 1ordm BPE fora do preacutedio do DOI-

CODIRJ jaacute que estava com ferimentos que natildeo permitiam que andasse Laacute Ana foi

supostamente examinada pelo referido meacutedico e dele escutou o diagnoacutestico de que natildeo

poderia ter filhos pois tinha o uacutetero infantil e retrovertido ou seja atrofiado e virado

para a parte posterior do corpo No entanto apoacutes ser posta em liberdade quatro anos

depois Ana descobriu que aquela afirmaccedilatildeo natildeo era verdadeira pois poderia

engravidar tendo tido posteriormente dois filhos

Eu sei que tem o paacutetio porque uma vez me carregaram para laacute um soldado

foi e me carregou Eu natildeo estava andando eu estava toda ferida entatildeo ele

me carregou pelo paacutetio ateacute uma espeacutecie de consultoacuterio do Amilcar Lobo []

eu estava toda ferida na vagina devido aos choques eleacutetricos e porque

tinham me enfiado o cassetete [] Aiacute ele me examinou e disse assim ldquo-

Vocecirc tem o uacutetero infantil e retrovertido vocecirc nunca vai poder ter filhosrdquo

Assim Eu tinha 21 anos e passei quase quatro anos achando que eu nunca ia

poder ter filhos O cara sabia o que estava fazendo (Miranda 17 nov 2004)

50

Em Os Funcionaacuterios tomo II do Projeto Brasil Nunca Mais se encontra a relaccedilatildeo alfabeacutetica das

pessoas envolvidas com torturas (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985 1-60)

180

Esse tipo de tortura psicoloacutegica destacada no trecho acima coincide com o tipo de

cotidiano vivido pelos presos do DOI-CODIRJ No entanto encaixa-se tambeacutem com o

estilo enfaacutetico que a narrativa de Ana atribuiacutea em 2004 aos danos que a prisatildeo poliacutetica

lhe causara A recente composiccedilatildeo de seu memorial sobre os sofrimentos vividos

durante a ditadura militar enviado agrave Comissatildeo Especial da Secretaria de Direitos

Humanos do Estado do Rio de Janeiro pautava-se no objetivo de receber o valor

maacuteximo da reparaccedilatildeo financeira oferecida pelo Estado No momento da entrevista era

esse o presente que Ana vivia e era atraveacutes dele que inconscientemente lia o passado

Logo sua narrativa apesar de aparentemente coerente sofria influecircncias que as

aspiraccedilotildees e interpretaccedilotildees do presente involuntariamente impuseram a suas memoacuterias

Poreacutem o fato do meacutedico Amilcar Lobo ter lhe dado um diagnoacutestico falso de

esterilidade encontra explicaccedilatildeo natildeo soacute em sua narrativa construiacuteda a partir da

interpretaccedilatildeo de que a notiacutecia teria sido motivada apenas pelo grande dano psicoloacutegico

que isso causaria a uma jovem de 21 anos mas tambeacutem no papel que o meacutedico

desempenhava dentro daquela instituiccedilatildeo Afinal aleacutem de funcionar como uma tortura

psicoloacutegica o diagnoacutestico dado por Amilcar Lobo foi provavelmente uma forma de

tentar resguardar o DOI-CODIRJ de possiacuteveis acusaccedilotildees posteriores de tecirc-la tornado

infeacutertil tantos eram os ferimentos que Ana havia sofrido em seus oacutergatildeos reprodutores

Afinal conforme constatado a principal funccedilatildeo do meacutedico ali era auxiliar as torturas e

cuidar dos ferimentos dos presos na tentativa de proteger a instituiccedilatildeo de acusaccedilotildees que

poderiam trazer preocupaccedilotildees futuras por exemplo a responsabilidade por graves

ferimentos e mortes

Isso no entanto natildeo quer dizer que as torturas do DOI-CODIRJ natildeo tenham

ocasionado mortes Sabe-se que muitos prisioneiros poliacuteticos depois de laacute entrarem

foram dados como desparecidos Quando esses presos eram mortos dentro de

181

instituiccedilotildees como o DOI-CODIRJ os militares envolvidos ou desapareciam com os

corpos pois assim natildeo se tinha como provar o que havia acontecido e por conseguinte

natildeo existiriam culpados ou quando a prisatildeo tivesse sido noticiada por algum meio de

comunicaccedilatildeo o corpo aparecia sob uma justificativa forjada que excluiacutesse a culpa da

instituiccedilatildeo prisional Na maior parte das vezes dizia-se que o prisioneiro havia

cometido suiciacutedio na prisatildeo ou sido baleado em tiroteio o que se supunha estar

relacionado a uma anterior tentativa sua de fuga

Nas entrevistas aqui trabalhadas alguns depoentes relataram ter tido contato

dentro do DOI-CODIRJ com pessoas que depois foram dadas como mortas sob tais

justificativas Dulce por exemplo afirma ter sido acareada durante uma sessatildeo de

tortura com Eduardo Collen Leite o Bacuri morto segundo a Comissatildeo Especial sobre

Mortos e Desaparecidos (2007 139) no Forte dos Andradas na cidade do Guarujaacute

(SP) trecircs dias apoacutes militares implantarem na imprensa a falsa notiacutecia de sua fuga

atribuindo sua morte a um suposto tiroteio na rua entre ele e militares

Quando eu estava laacute eu fui acareada com o Bacuri Eu jaacute encontrei com ele

assim muito mal ele estava respirando mal foi uma cena assim muito barra

pesada e eu sei que depois ele morreu eu natildeo sei se ele morreu laacute mas logo

depois que eu estive com ele ele morreu Ele eacute um desses mortos do

processo Ele morreu fruto de tortura ele foi brutalmente torturado ele jaacute

chegou na PE muito torturado muito quebrado e teve comentaacuterios de

torturadores que diziam ter feito um estrago muito grande nele e natildeo tinham

conseguido que ele falasse as coisas que eles queriam que ele falasse

(Pandolfi 5 fev 2003)

Fernando teve seu irmatildeo Eiraldo de Palha Freire baleado e junto com ele preso

pelos militares da Aeronaacuteutica no aeroporto do Galeatildeo no Rio de Janeiro Mesmo

gravemente ferido Eiraldo foi segundo Fernando e a Comissatildeo Especial sobre Mortos

e Desaparecidos (2007 131) transferido para o DOI-CODIRJ e laacute morto sob torturas

182

Poreacutem de acordo com Fernando seu corpo foi entregue agrave famiacutelia sob a versatildeo de

suiciacutedio

Meu irmatildeo veja bem ele foi metralhado no aviatildeo mas ele estava vivo e

ainda foi parar no DOI-CODI Ele estava ferido mas chegou a levar tortura

natildeo resistiu e morreu aiacute disseram que ele se suicidou (Freire 28 jun 2004)

Hoje no entanto grande parte dos mortos e desaparecidos foi reconhecida pelo

Estado brasileiro A Comissatildeo Especial sobre Mortos e Desaparecidos Poliacuteticos

implantada pela lei 914095 encerrou em 2006 a etapa de reconhecimento e reparaccedilatildeo

financeira agraves famiacutelias reconhecendo um total de 253 mortos e desaparecidos poliacuteticos

por autoridades do Estado brasileiro entre os anos de 1961 e 1988 A partir de 2007

essa Comissatildeo passou a concentrar-se na busca e no reconhecimento de ossadas para

que muitas famiacutelias descubram o que de fato aconteceu com seus entes desaparecidos e

possa enterraacute-los conforme indicado pelo seu livro-relatoacuterio Direito agrave verdade e agrave

memoacuteria (2007)

A partir da anaacutelise aqui feita a respeito das torturas a que os presos eram

submetidos no DOI-CODIRJ em 1970 nota-se que essas eram destinadas a todos que

laacute entravam No entanto percebe-se que a intensidade das torturas no DOI-CODIRJ de

1970 variava de acordo principalmente com o tempo de prisatildeo com o tipo de

organizaccedilatildeo que o preso integrasse (se era ou natildeo adepta da luta armada) e com a

resistecircncia que ele apresentasse para conceder as informaccedilotildees que os agentes das turmas

de interrogatoacuterio preliminar buscavam

Logo constata-se que quanto mais ativa fosse a organizaccedilatildeo de luta armada a que

o prisioneiro estivesse relacionado mais ele seria submetido a torturas e quanto mais

ele resistisse a essas mais intensas elas seriam podendo inclusive acarretar sua morte

183

Afinal os prisioneiros ligados a organizaccedilotildees armadas em ampla atividade tinham mais

informaccedilotildees sobre outros militantes procurados

Diante disso como a ALN e o MR-8 eram organizaccedilotildees envolvidas em grandes

accedilotildees armadas da eacutepoca ndash tais como os sequestros dos embaixadores americano e

alematildeo e do aviatildeo da Companhia Aeacuterea Cruzeiro do Sul ocorridos em 4 de setembro de

1969 11 de junho de 1970 e 1ordm de julho de 1970 respectivamente ndash os prisioneiros que

delas faziam parte ou tinham algum tipo de relaccedilatildeo com seus militantes foram

submetidos a intensas torturas no DOI-CODIRJ Como os perfis de Dulce Fernando

Ana e Ceciacutelia se encaixavam nessas caracteriacutesticas conforme analisado no segundo

capiacutetulo a eles foi imposto no DOI-CODIRJ um cotidiano ainda mais violento do que

por exemplo a Antocircnio

Afinal em meados de 1970 quando Antocircnio de Carvalho51

foi preso e levado

para o DOI-CODIRJ o PCBR sua organizaccedilatildeo na eacutepoca apesar de adepta da luta

armada jaacute se encontrava relativamente desestruturada uma vez que suas principais

lideranccedilas jaacute haviam ldquocaiacutedordquo Dessa forma o PCBR mesmo ainda em atividade natildeo

estava envolvido em accedilotildees tatildeo organizadas e com tamanha repercussatildeo como estavam a

ALN e o MR-8 por exemplo Entatildeo Antocircnio apesar de passar pelas duas fases da

prisatildeo e natildeo ser poupado de duras torturas como ocorreu com Padre Maacuterio

provavelmente natildeo sofreu o mesmo grau de violecircncia destinado a Dulce Fernando Ana

e Ceciacutelia As informaccedilotildees que ele tinha natildeo levariam o DOI-CODIRJ aos envolvidos

com as accedilotildees armadas em destaque na eacutepoca

51

Para mais informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria poliacutetica que acarretou a prisatildeo de Antocircnio Leite de Carvalho

voltar ao segundo capiacutetulo

184

32 O dia-a-dia no caacutercere

O dia-a-dia vivido pelos prisioneiros poliacuteticos no DOI-CODIRJ natildeo era o mesmo

que o vivido em um presiacutedio comum A ameaccedila de tortura o medo dela decorrente e o

sentimento de abandono que ela causava estavam presentes a todo momento Assim

natildeo poderia ser diferente que na memoacuteria construiacuteda pelos ex-prisioneiros poliacuteticos do

DOI-CODIRJ de 1970 a tortura ocupe a maior parte das narrativas sobre o cotidiano

ali vivido

No entanto a memoacuteria dos prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ de 1970

entrevistados entre os anos de 2002 e 2004 abarca tambeacutem outros aspectos daquele dia-

a-dia A partir de seus relatos aleacutem de se tornar viaacutevel a anaacutelise sobre as refeiccedilotildees os

banhos e os passatempos durante a prisatildeo no DOI-CODIRJ se torna possiacutevel tambeacutem

perceber como a convivecircncia a cumplicidade entre os presos e ateacute algumas

demonstraccedilotildees de solidariedade dos carcereiros foram elementos importantes para que

resistissem ao violento cotidiano ali vivido

Na primeira fase da prisatildeo os presos ficavam sozinhos em pequenas celas onde

natildeo havia colchatildeo banheiro e eram constantemente levados agrave sala de tortura Este

cotidiano inicial era muito degradante fiacutesica e mentalmente natildeo soacute pelo sofrimento

acarretado pelo grande nuacutemero de torturas sofridas e pelo desconforto das celas mas

tambeacutem pela solidatildeo nelas vivenciada Afinal natildeo foi por acaso que tais celas ficaram

conhecidas como ldquosolitaacuteriasrdquo

A solidatildeo era uma caracteriacutestica que contribuiacutea fortemente para a fragilidade do

prisioneiro do DOI-CODIRJ Isto torna-se mais evidente quando percebe-se a grande

importacircncia que um raacutepido contato com outro preso representava durante a primeira

fase da prisatildeo Eacute o que pode-se apurar no seguinte trecho narrado por Fernando

185

[] uma hora eu estava encostado aqui [aponta para onde ficava uma das

ldquosolitaacuteriasrdquo no desenho que fez em um papel] no primeiro dia aiacute botaram um

cara no corredor [] era um dirigente do Partido Comunista um velho da

minha idade atualmente Ele tremia muito [] Aiacute ele disse - ldquoEstaacute frio neacute

companheirordquo aiacute eu - ldquoMuitordquo e ele disse - ldquoMas eacute mais psicoloacutegicordquo Aiacute

eu senti uma vergonha sabe Porque eu estava me sentindo tatildeo mal tatildeo para

baixo e um homem daquela idade estava firme[] Ele me deu uma forccedila

muito maior do que ele imagina [] (Freire 28 jun 2004)

Evidencia-se atraveacutes dessa narrativa como em meio ao sofrimento e agrave solidatildeo que

Fernando lembra ter vivenciado no primeiro dia de sua prisatildeo no DOI-CODIRJ um

simples diaacutelogo foi capaz de revitalizar a sua resistecircncia Esse pequeno contato foi tatildeo

importante para Fernando a ponto de ficar marcado em sua memoacuteria ateacute o momento de

sua entrevista mais de trinta anos depois

A partir disso nota-se que aquele cotidiano criava independente das pequenas

diferenccedilas ideoloacutegicas que poderiam existir uma forte identidade entre os presos As

dores decorrentes das torturas e a sensaccedilatildeo de solidatildeo que sentiam no DOI-CODIRJ

faziam com que presos que nunca tivessem se visto antes criassem rapidamente uma

forte cumplicidade e amizade Assim nos momentos em que estavam juntos

principalmente durante a segunda fase da prisatildeo eles conversavam apoiavam-se e

cuidavam uns aos outros extraindo desse conviacutevio forccedila para encararem os proacuteximos

dias de prisatildeo

Essa experiecircncia coletiva dentro do DOI-CODIRJ era valiosa ateacute porque nem

mesmo quando os presos jaacute estavam na segunda fase da prisatildeo ela era garantida Afinal

apesar do prisioneiro poliacutetico do DOI-CODIRJ durante a segunda fase ficar em celas

com estrutura para mais de um preso ele nem sempre tinha companhia Conforme jaacute

analisado anteriormente no DOI-CODIRJ existia uma grande rotatividade e isso

186

implicava em que em determinados momentos as celas coletivas estivessem cheias e

em outros habitadas por dois ou ateacute mesmo um uacutenico prisioneiro

Logo por ser a primeira fase um periacuteodo de isolamento e a segunda devido agrave alta

rotatividade do DOI-CODIRJ uma fase em que ora se estava sozinho e ora tinha-se

companheiro(s) de cela a convivecircncia era entatildeo muito valorizada pelos presos como se

pode perceber na ecircnfase que ela recebe nas memoacuterias dos entrevistados

[] quando estaacutevamos juntas era bem melhor porque existia uma identidade

muito forte entre a gente Eram pessoas que nunca tinham se conhecido de

um modo geral mas aquele oacutedio contra a ditadura o fato de todas terem sido

torturadas aquilo dava margem a uma liga muito grande entre a gente

Entatildeo quando noacutes estaacutevamos juntas a gente cantava a gente conversava a

gente contava histoacuterias de vida o tempo passava e a gente tinha uma

intimidade Conseguimos construir uma coisa muito soacutelida mesmo com

poucas horas e poucos dias mesmo nesse esquema que eu estou te falando

quer dizer as pessoas natildeo ficavam laacute fixas Teve uma vez que uma moccedila

ficou laacute trecircs dias outra que ficou quatro outra que ficou cinco Mas era

uma coisa muito boa chegar algueacutem mesmo vocecirc vendo a pessoa chegar

toda esbagaccedilada porque os que entravam naquela cela jaacute tinham passado laacute

embaixo [] (Pandolfi 5 fev 2003)

[] a cela coletiva na verdade acabava se constituindo num foacuterum de

debates Sempre discutiacuteamos poliacutetica porque eram companheiros de

diversas organizaccedilotildees natildeo era uma uacutenica organizaccedilatildeo ou um uacutenico partido

que estava ali preso mas sim vaacuterios e havia aquela troca de experiecircncias

cada um contava a sua histoacuteria e assim ia passando o dia-a-dia sempre

havia novidades Assim a gente acabava quebrando um pouco o isolamento

[] (Carvalho 8 fev 2003)

Essa convivecircncia no caacutercere fomentou portanto a solidariedade e instituiu um

forte sentimento de coletividade entre os presos Afinal a luta pela sobrevivecircncia e o

pavor de voltar a ser torturado eram comuns a todos eles que procuravam na uniatildeo criar

forccedilas para suportar aquele pesado cotidiano A troca de apoio servia entatildeo como uma

187

espeacutecie de sustentaccedilatildeo como uma garantia de sobrevida Ao preocuparem-se e

ajudarem-se os presos injetavam-se um acircnimo importante para conseguirem resistir agrave

situaccedilatildeo de desespero e solidatildeo que ali era vivida e diante dessa realidade acabavam

formando um grupo coeso cuja principal caracteriacutestica era justamente esse apoio

Constituiacuteam portanto uma identidade conjunta atraveacutes da qual se viam sob os mesmos

temores e anseios aleacutem de perceberem essa parceria como uma extensatildeo da resistecircncia

agrave ditadura que vinham praticando desde antes de serem presos

Ana Dulce e Ceciacutelia memoacuterias relacionadas

Ana e Dulce e depois Dulce e Ceciacutelia foram companheiras de cela durante parte

da segunda fase de suas prisotildees no DOI-CODIRJ de 1970 Suas narrativas sobre a

convivecircncia que laacute tiveram servem aqui para analisar tanto as relaccedilotildees entre suas

memoacuterias quanto alguns aspectos do cotidiano dessa instituiccedilatildeo

Conforme analisado no segundo capiacutetulo Ana chegou ao DOI-CODIRJ no final

de julho de 1970 Logo depois em 14 de agosto do mesmo ano Dulce foi presa e para

laacute tambeacutem levada Como Ana afirma ter permanecido no DOI-CODIRJ por cerca de

um mecircs constata-se que no final de agosto quando ela jaacute estava em vias de ser

transferida colocaram Dulce em sua cela no segundo andar Dulce acabava de vir da

primeira fase de sua prisatildeo que por ter lhe causado graves consequecircncias fiacutesicas tinha

sido mais curta Nesse momento de extrema fragilidade em que Dulce se encontrava jaacute

que vinha de intensas sessotildees de tortura e de uma das ldquosolitaacuteriasrdquo do andar de baixo

Ana ajudou-a a cuidar de seus ferimentos e a tomar banho

Esse contato que teve com Ana apesar de curto jaacute que dias depois Ana foi

transferida para o DOI-CODISP parece ter sido muito importante para Dulce Afinal

apesar dela ter convivido com outras presas durante os quase trecircs meses em que ficou

188

no DOI-CODIRJ Ana foi a uacutenica companheira de cela que Dulce citou pelo nome

durante a entrevista

[] logo que eu cheguei fui para a solitaacuteria era torturada e ia para a solitaacuteria

era torturada e ia para a solitaacuteria quando eu comecei a passar muito mal

depois de um dia dois dias eles me levaram para outra cela maior onde

estava Ana Bursztyn que me deu banho Logo depois ela saiu da cela e eu

fiquei sozinha [] (Pandolfi 5 fev 2003)

A justificativa para a presenccedila de Ana ter ficado marcada na memoacuteria de Dulce

possivelmente eacute o fato de naquele momento aleacutem de estar extremamente machucada

Dulce natildeo ter ainda dividido cela com mais ningueacutem Estava ateacute entatildeo imersa em uma

rotina de solidatildeo e tortura que caracterizava a primeira fase da prisatildeo no DOI-

CODIRJ A ajuda e o conviacutevio com Ana portanto representaram para Dulce um

primeiro contato com algueacutem em quem podia confiar talvez uma primeira surpresa boa

no cotidiano que vinha vivendo no DOI-CODIRJ Jaacute para Ana que estava haacute mais

tempo presa Dulce provavelmente natildeo tinha sido a uacutenica a contar com sua ajuda logo

natildeo se destacava entre suas memoacuterias sobre o cotidiano ali vivido

Comparando as datas das prisotildees de Ana Dulce e Ceciacutelia percebe-se que apoacutes

Ana ter sido transferida Dulce ficou nessa cela grande chamada de ldquocoletivo das

mulheresrdquo enquanto Ceciacutelia entrava no DOI-CODIRJ Ceciacutelia passou pela fase das

ldquosolitaacuteriasrdquo e depois foi levada ateacute uma cela tambeacutem no segundo andar ao lado da de

Dulce onde esteve em companhia de uma moccedila Um tempo depois foi transferida para

o ldquocoletivo das mulheresrdquo onde estava Dulce com quem conviveu grande parte do

tempo

[] fiquei nessa cela [apontando para o desenho que havia feito mostra a

cela do segundo andar que ficava ao lado do ldquocoletivo das mulheresrdquo]

189

depois fui transferida para uma cela maior onde tinha vaacuterias presas poliacuteticas

inclusive uma pessoa que ficou grande parte do tempo comigo a Dulce

Grande parte do tempo eu fiquei com ela nessa cela era o lsquocoletivo das

mulheresrsquo [] (Coimbra 30 nov 2004)

Apesar de natildeo ser destacada entre as memoacuterias de Dulce Ceciacutelia durante sua

narrativa parece atribuir um papel importante ao conviacutevio que elas tiveram Afinal o

tempo que passou com Dulce no DOI-CODIRJ trouxe-lhe um dado a mais sobre as

aulas de tortura a novos oficiais que ali estavam ocorrendo jaacute que enquanto dividia cela

com Ceciacutelia Dulce serviu de cobaia para tais ensinamentos Assim como Ceciacutelia era

vice-presidente do GTNMRJ no momento de sua entrevista e por conseguinte tinha

como caracteriacutestica enfatizar em sua narrativa os detalhes sobre as torturas cometidas

pelos agentes do DOI-CODIRJ a fim de denunciaacute-las se justifica que Dulce tenha

papel marcante entre suas memoacuterias Esse destaque que a convivecircncia com Dulce

assumiu para Ceciacutelia pode ser conferido no trecho abaixo

[] a Dulce foi chamada para uma tortura de tarde [] a gente comeccedilou a

ouvir os gritos de Dulce e jaacute tinha passado todo o periacuteodo porque eles

torturam logo no iniacutecio para pegar informaccedilatildeo Aiacute eu digo ldquo- Soacute se

algueacutem caiu algueacutem foi preso e Dulce estaacute sendo acareadardquo Daqui a pouco

a Dulce volta para a cela com um soldado toda ferrada e aiacute ela ainda ia

voltar O cara disse ldquo- Oh eacute soacute para ela se lavarrdquo Entatildeo eu entrei no

chuveiro com ela e eu dizia ldquo- Dulce o que estaacute havendordquo E ela ldquo- Eu natildeo

estou entendendo o que estaacute acontecendo tem um bando de homem a minha

volta ningueacutem me faz pergunta nenhuma e estatildeo me torturando estatildeo me

botando no pau-de-arara estatildeo me fazendo afogamento estatildeo me dando

choque eleacutetrico eu natildeo estou entendendordquo E eu falei ldquo- Dulce isso eacute aula

para novos torturadoresrdquo Porque eu jaacute tinha lido num dos panfletos da UNE

sobre os meacutetodos de tortura que estavam sendo utilizados no DOI-CODI

aleacutem do jacareacute que a gente viu e que citavam tinha tambeacutem a aula a novos

torturadores ou seja eles pegavam um preso que tinha tido maior resistecircncia

e botavam laacute como cobaia para ensinar aos novos torturadores todas as

190

teacutecnicas E foi isso que fizeram com Dulce Aiacute eu falei ldquo- Dulce isso eacute aula

para novos torturadores eu li essa porrardquo [] (Coimbra 30 nov 2004)

A partir disso fica claro que para Ceciacutelia a constataccedilatildeo da existecircncia de aulas de

torturas no DOI-CODIRJ utilizando presos poliacuteticos teve uma destacada importacircncia

Logo o seu conviacutevio com Dulce durante o periacuteodo em que ela foi viacutetima desses

ensinamentos tambeacutem teve

Aleacutem disso Ceciacutelia durante sua entrevista perguntou quem eu jaacute havia

entrevistado Assim ao saber sobre a entrevista de Dulce sentiu-se motivada a falar

sobre as experiecircncias que com ela tinha compartilhado durante a prisatildeo no DOI-

CODIRJ Dessa forma alguns outros detalhes sobre essa convivecircncia contidos na

memoacuteria de Ceciacutelia foram naquele momento reconstruiacutedos e narrados

Um deles em especial contribui para a anaacutelise sobre o cotidiano do DOI-

CODIRJ Diz respeito agrave relaccedilatildeo travada com alguns carcereiros ou seja soldados do 1ordm

BPE que integravam as turmas auxiliares Afinal a partir do relato de Ceciacutelia Coimbra

percebe-se que ela e Dulce puderam ir ateacute as celas onde estavam os seus companheiros

que na eacutepoca tambeacutem se encontravam aprisionados no DOI-CODIRJ graccedilas agrave ajuda

de um dos responsaacuteveis pela vigia daquela noite

Teve uma noite tinha um soldadinho que a gente natildeo lembra o nome a

gente soacute se lembra dos lsquofilhos da putarsquo a gente devia lembrar dos caras que

foram legais com a gente Esse cara por exemplo ele soube que o marido de

Dulce estava preso o Alexandre e que o Novaes meu marido estava preso

Aiacute como ele ia ficar a noite toda de guarda ele mandou os soldadinhos

descerem e permitiu que Dulce fosse agrave cela de Alexandre e eu agrave de Novaes

Esse cara natildeo saiu da minha cabeccedila [] Esse cara a gente conversando com

ele ele soube que o Novaes estava na cela do lado e que o Alexandre estava

numa outra cela ali perto e ele deixou Dulce foi para a cela de Alexandre e

eu para a de Novaes Assim rapidinho neacute Demos a matildeo um beijo assim

[beija a proacutepria matildeo para demonstrar] O cara se expocircs mesmo neacute E tinha

191

outros que entregavam neacute Entregavam os bilhetes Era um vendaval de

bilhetes durante a madrugada Os caras se expunham mesmo entendeu

Tinha coisas bonitas ali apesar daquele clima de terror tinha pessoas assim

solidaacuterias E esses nomes a gente natildeo lembra neacute Devia lembrar []

(Coimbra 30 nov 2004)

Conforme analisado no primeiro capiacutetulo tais carcereiros que integravam as

turmas auxiliares do DOI-CODIRJ natildeo eram oficiais de informaccedilotildees treinados

especialmente para trabalhar junto agrave repressatildeo poliacutetica eram soldados que em 1970

serviam ao quartel do 1ordm BPE52

Logo eram passiacuteveis de sentir solidariedade jaacute que

muitos deles natildeo estavam servindo ao DOI-CODIRJ por algum tipo de vocaccedilatildeo

estavam ali somente para cumprir com o serviccedilo militar do quartel Afinal apesar de

haver entre eles alguns que se identificassem com a funccedilatildeo e ateacute almejassem tornar-se

agentes de informaccedilotildees os integrantes dessas turmas auxiliares natildeo trabalhavam nos

interrogatoacuterios dos presos e consequentemente natildeo estavam diretamente relacionados

com as torturas Portanto pode-se dizer que no DOI-COIRJ existia compaixatildeo entre

soldados e prisioneiros

A partir disso evidencia-se como o indiviacuteduo tem um papel primordial para essa

anaacutelise Afinal ao considerar sua memoacuteria como fonte para a histoacuteria torna-se possiacutevel

perceber aqui algumas de suas idiossincrasias ou seja peculiaridades comportamentais

capazes de interferir na percepccedilatildeo sobre o cotidiano vivido no DOI-CODIRJ de 1970

Afinal a ajuda que o soldado deu a Dulce e Ceciacutelia eacute um exemplo tiacutepico de como as

peculiaridades individuais satildeo capazes de atribuir contrastes e inconstacircncias agrave

interpretaccedilatildeo de uma realidade do passado Desse modo entende-se perfeitamente o

porquecirc de Marshall Sahlins afirmar em Histoacuteria e Cultura (2006) que os indiviacuteduos

52

Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar ver o Anexo II

192

representam um feixe uacutenico resultado de uma ligaccedilatildeo peculiar entre infinitos traccedilos

culturais e sociais que natildeo conseguem ser captados por anaacutelises generalizantes

Uma vez que a partir de accedilotildees como a desse soldado pode-se afirmar que o

cotidiano prisional do DOI-COIRJ de 1970 natildeo era formado unicamente pela repressatildeo

e pela violecircncia dos militares que ali representavam o Estado como uma generalizaccedilatildeo

ou uma reduccedilatildeo de varaacuteveis poderia fazer crer Havia tambeacutem compaixatildeo ateacute mesmo

entre lados aparentemente opostos

As formas de lidar com o tempo

Para sobreviver ao cotidiano do DOI-CODIRJ natildeo bastava ser resistente

fisicamente tambeacutem era necessaacuterio manter a mente em equiliacutebrio Essa preocupaccedilatildeo

acompanhava o prisioneiro em todas as fases da prisatildeo mas principalmente quando ele

estava sozinho Afinal a solidatildeo trazia a sensaccedilatildeo de que o tempo natildeo passava e em

meio ao violento cotidiano a que era submetido o preso do DOI-CODIRJ percebia

mais facilmente sinais que lhe causavam medo e desespero

Ceciacutelia Coimbra e Dulce Pandolfi ressaltam que mesmo quando estavam em

celas coletivas com a companhia de outras presas percebiam muitos desses sinais

Ficavam em pacircnico pois na maior parte das vezes significavam que seriam levadas

novamente agrave ldquosala roxardquo Quando sozinhas a sensaccedilatildeo de pavor por natildeo ser

compartilhada provavelmente era ainda mais intensa

[] a gente ficou tatildeo traumatizada com o barulho de chave que quando a

gente ouvia a gente dizia ldquo- Eles vecircm para caacute vecircm pegar alguma de noacutesrdquo

Era uma loucura era um clima de terror [] (Coimbra 30 nov 2004)

[] toda vez que um soldado abria a cela trazia o capuz Era ateacute uma cena

muito dramaacutetica porque todo mundo comeccedilava a tremer de medo porque se

193

sabia que se o capuz estava ali era porque algueacutem ia descer algueacutem ia

circular e descer normalmente significava ser torturada Entatildeo era assim

uma coisa bem dramaacutetica bem traumaacutetica tambeacutem porque quando abriam a

cela e retiravam o capuz a gente pensava ldquo- pronto algueacutem vai agora pro

caceterdquo (Pandolfi 5 fev 2003)

Para manterem suas mentes satildes os prisioneiros do DOI-CODIRJ quando

sozinhos utilizavam alguns artifiacutecios Dulce em sua narrativa relata ter ficado algum

tempo sozinha em uma cela coletiva onde se ocupava em frear a impressatildeo de

vagarosidade do tempo e os maus pensamentos de diversas maneiras tais como

[] eu lembro de duas coisas que eu fazia como exerciacutecio para passar o

tempo Os colchotildees que eram horriacuteveis eram colchotildees de crina eu tirava

aquelas palhas de dentro do colchatildeo e ficava fazendo tranccedilas fazia vaacuterias

tranccedilas e contava uma tranccedila duas tranccedilas e ia montando uma na outra

Fazia filas de tranccedilas depois eu desmanchava tudo eu lembro que eu ateacute

tinha medo ldquo- Se esses caras descobrirem isso vatildeo mandar costurar o

colchatildeordquo Depois eu tirava tudo e guardava de novo laacute dentro do colchatildeo No

dia seguinte eu comeccedilava outra vez Eu dizia ldquo- eu natildeo posso enlouquecer

entatildeo eu tenho que ocupar a minha cabeccedila com alguma coisardquo Porque eu

natildeo tinha nada nada nada para fazer Outra atividade que eu fazia tambeacutem

Como [] o chatildeo da cela era como se fosse de umas lajotas de uns azulejos

sei laacute o quecirc eu contava aqueles quadrados todos multiplicava fazia

milhares de contas Fazia um jogo no chatildeo do quarto contava para frente

para traacutes multiplicava e naquilo ali eu ficava horas naquelas contas

matemaacuteticas naquelas multiplicaccedilotildees naquelas somas naqueles ladrilhos

[] (Pandolfi 5 fev 2003)

A execuccedilatildeo de tais meacutetodos certamente contribuiacutea para aumentar a possibilidade

de sobrevivecircncia e sanidade do prisioneiro do DOI-CODIRJ Poreacutem o preso dependia

de sua capacidade e habilidade para usar recursos que o beneficiassem e que ajudassem

a se opor aos mecanismos desetruturadores e despersonalizadores sobre ele empregados

Nessa situaccedilatildeo assim como Elizabeth Ferreira na obra Mulheres Militacircncia e Memoacuteria

194

(1996 65) acredita-se que o sentimento de auto-estima gerado nos presos poliacuteticos pelo

seu ideal poliacutetico e social eacute um elemento crucial de resistecircncia Atraveacutes desse

sentimento normalmente tais presos costumam sustentar a esperanccedila na mudanccedila o

que lhes gera forccedila e ateacute mesmo uma criatividade para suportar o sofrimento maior que

a de presos comuns

As roupas e as refeiccedilotildees

Como o DOI-CODIRJ de 1970 natildeo era um presiacutedio havia acabado de ser

montado dentro de um preacutedio do quartel do 1ordm BPE para abrigar temporariamente os

presos poliacuteticos que pudessem contribuir com suas investigaccedilotildees laacute natildeo existiam

refeitoacuterios visitas banho de sol ou mesmo uniformes Aleacutem da falta de uma estrutura

que propiciasse uma rotina normal de presiacutedio esse diferencial era importante para o

procedimento investigativo do DOI-CODIRJ Afinal havia ali a necessidade do preso

ficar incomunicaacutevel jaacute que quanto maior seu isolamento maior seria sua fragilidade e

esta se relacionava diretamente com sua capacidade em conceder informaccedilotildees No mais

esse isolamento tambeacutem estava relacionado com a preocupaccedilatildeo em proteger a

instituiccedilatildeo de acusaccedilotildees de maus tratos uma vez que caso os ferimentos dos presos

fossem notados poderiam ser vinculados a torturas e consequentemente denunciados

Dessa forma os prisioneiros do DOI-CODIRJ natildeo podiam nem mesmo tomar sol pois

poderiam ser vistos por pessoas dos preacutedios vizinhos e funcionaacuterios da faacutebrica da

Brahma localizada atraacutes do paacutetio do 1ordm BPE

As refeiccedilotildees eram portanto servidas nas proacuteprias celas pelos soldados da turma

auxiliar de plantatildeo Para colocarem cada uma das quatro refeiccedilotildees a que cada preso

tinha direito esses abriam a cela de manhatilde cedo no iniacutecio e no fim da tarde e agrave noite

Segundo a narrativa dos presos no cafeacute da manhatilde costumavam trazer um patildeo com

195

pasta de amendoim e um cafeacute com leite na caneca para cada preso No almoccedilo uma

bandeja de alumiacutenio com um prato que normalmente continha repolho arroz angu e

algumas vezes um pedaccedilo de carne Durante a tarde deixavam um bule de mate com

um pedaccedilo de patildeo na cela e no fim do dia repetiam para o jantar a mesma comida do

almoccedilo

As comidas servidas em 1970 aos prisioneiros do DOI-CODIRJ satildeo mais alguns

exemplos de detalhes do cotidiano que soacute podem ser abordados por meio da memoacuteria de

quem viveu aquele passado Diante disso eacute interessante perceber aspectos que

justificam o fato dessas refeiccedilotildees terem marcado as memoacuterias dos prisioneiros a ponto

de nelas sobreviverem por cerca de trecircs deacutecadas

[] a gente ateacute brincava que eles deviam ter uma plantaccedilatildeo de repolho ali

porque era repolho todo dia repolho cru repolho assado mas na hora do

almoccedilo normalmente vinha nessa bandeja de alumiacutenio e era repolho um

pouco de arroz feijatildeo e agraves vezes um pedaccedilo de carne era uma comida bem

horrorosa [] (Pandolfi 5 fev 2003)

[] A comida era peacutessima era aquela comida do rancho parecia uma

lavagem de porco uma coisa horrorosa [] Eu fiquei com a pele toda

lsquofodidarsquo porque a uacutenica coisa que eu conseguia comer era o angu []

(Coimbra 30 nov 2004)

Portanto o conteuacutedo das refeiccedilotildees do DOI-CODIRJ aleacutem de ter ficado marcado

na memoacuteria dos prisioneiros pelo aspecto sensorial ou seja pelo gosto e apresentaccedilatildeo

ruins permaneceu tambeacutem pela relaccedilatildeo com a vaidade feminina e pelo fato de remeter a

momentos que foram compartilhados O angu marcou Ceciacutelia por ter feito mal a sua

pele jaacute que como eacute uma comida gordurosa lhe causou espinhas abalando ainda mais a

sua aparecircncia fiacutesica jaacute degrada por aquele cotidiano prisional O repolho por sua vez

deixou marcas na memoacuteria de Dulce por ser motivo de deboche entre as presas pois sua

196

presenccedila recorrente nos pratos ocasionava uma espeacutecie de piada entre elas e trazia um

pouco de descontraccedilatildeo

Outro aspecto do cotidiano do DOI-CODIRJ de 1970 tambeacutem alcanccedilado por

meio dos detalhes trazidos pelas memoacuterias de ex-prisioneiros satildeo as roupas Como natildeo

existiam uniformes institucionais na maior parte do tempo as roupas eram as mesmas

que eles vestiam no dia em que entraram no 1ordm BPE Dessa forma quando jaacute estavam

em celas coletivas os presos muitas vezes lavavam-nas e entatildeo voltavam a vestiacute-las

Depois de algum tempo afinal as famiacutelias acabavam descobrindo onde eles estavam

presos e algumas roupas eram deixadas no Palaacutecio Duque de Caxias antigo preacutedio do

Ministeacuterio do Exeacutercito no Centro da cidade do Rio de Janeiro para serem enviadas e

entregues no 1ordm BPE aos prisioneiros

No entanto ateacute isso chegar a acontecer demorava pois fazia parte da seguranccedila

institucional tentar manter num primeiro momento sigilo sobre seus presos Assim

Ceciacutelia presa em agosto de 1970 lembra que por ter sentido muito frio durante o seu

primeiro mecircs no DOI-CODIRJ ela e suas companheiras de cela costumavam

improvisar formas de protegerem os peacutes

[] a minha matildee ia ateacute o Ministeacuterio do Exeacutercito e ela dizia ldquo- Minha filha

estaacute laacute na PErdquo Aiacute quase um mecircs depois a minha matildee conseguiu mandar

roupa para mim Ateacute entatildeo minha filha era um loucura neacute A gente fedia

sabe A gente tomava banho de chuveiro e botava a mesma roupa a gente

lavava a roupa e era mecircs de agosto e ainda estava frio Era um frio que a

gente sentia que a gente enrolava jornal nos peacutes porque natildeo tinha nenhuma

coisa nada Era no colchatildeo puro que a gente dormia (Coimbra 30 nov

2004)

Quando as famiacutelias conseguiam descobrir onde estavam enviavam aleacutem de

roupas alguns mantimentos como frutas por exemplo Essas vinham muitas vezes

197

embrulhadas em jornais velhos que serviam para alguns como proteccedilatildeo para o corpo e

para outros como distraccedilatildeo conforme pode-se constatar na narrativa de Antocircnio ao

lembrar que ele e seus companheiros de cela passavam o tempo lendo as notiacutecias velhas

contidas em tais jornais

Eu me lembro tambeacutem que quando alguns presos recebiam frutas essas

coisas embrulhadas em papel jornal jornal velho a gente lia o jornal e

ficaacutevamos um bom tempo lendo aqueles jornais com datas de um mecircs trecircs

meses atraacutes mas era sempre bom para a cabeccedila da gente ficar lendo as

notiacutecias mesmo velhas [] (Carvalho 8 fev 2003)

Como jaacute aqui ressaltado a cumplicidade que existia entre os presos do DOI-

CODIRJ ajudava a construir mecanismos que os protegiam das mais diversas

dificuldades Segundo Dulce para amenizar a escassez de roupa a que eram submetidas

num primeiro momento dentro do DOI-CODIRJ as presas do ldquocoletivo das mulheresrdquo

estabeleceram uma espeacutecie de acordo Atraveacutes dele ficou determinado que quem de laacute

saiacutesse deixaria algumas peccedilas para quem ainda ficasse tinha uma espeacutecie de rotina

entre as mulheres que quem saiacutea deixava alguma roupa laacute (Pandolfi 5 fev 2003)

Assim atraveacutes desse tipo de cumplicidade elas ajudavam a diminuir o sofrimento

diaacuterio umas das outras uma vez que as peccedilas deixadas na cela possibilitavam que as

presas conseguissem manter a higiene e amenizar a sensaccedilatildeo do frio

Percebe-se portanto que de fato o dia-a-dia do DOI-CODIRJ de 1970 era

atiacutepico pois este natildeo era um presiacutedio e sim um oacutergatildeo de repressatildeo poliacutetica Assim uma

das poucas semelhanccedilas com a rotina de um presiacutedio comum era basicamente a privaccedilatildeo

da liberdade Poreacutem apesar de ofuscado pela tortura e pelo pavor ali existia um

cotidiano que abarcava outros aspectos muito interessantes Afinal estes satildeo capazes de

198

muito esclarecer sobre o funcionamento praacutetico desse importante oacutergatildeo de repressatildeo da

ditadura militar brasileira e tambeacutem sobre diversos tipos de reaccedilotildees e relaccedilotildees humanas

do passado e do presente

199

Conclusatildeo

Quando o muro separa uma ponte une

Se a vinganccedila encara o remorso pune

Vocecirc vem me agarra algueacutem vem me solta

Vocecirc vai na marra ela um dia volta

E se a forccedila eacute tua ela um dia eacute nossa

Olha o muro olha a ponte

Olha o dia de ontem chegando

Que medo vocecirc tem de noacutes

Olha aiacute

Vocecirc corta um verso eu escrevo outro

Vocecirc me prende vivo eu escapo morto

De repente olha eu de novo

Perturbando a paz exigindo o troco

Vamos por aiacute eu e meu cachorro

Olha um verso olha o outro

Olha o velho olha o moccedilo chegando

Que medo vocecirc tem de noacutes

Olha aiacute

O muro caiu olha a ponte

Da liberdade guardiatilde

O braccedilo do Cristo horizonte

Abraccedila o dia de amanhatilde

Olha aiacute

Mauriacutecio Tapajoacutes amp Paulo Ceacutesar Pinheiro

(Pesadelo 1972)

200

Diante do exposto ao longo desta dissertaccedilatildeo conclui-se que a formulaccedilatildeo da

Doutrina de Seguranccedila Nacional feita pela ESG em colaboraccedilatildeo com o IPES e o IBAD

cerca de vinte anos antes do surgimento dos DOI-CODI tinha por base uma teoria de

guerra que nortearia a atuaccedilatildeo repressora desses oacutergatildeos Essa teoria interpretava os

movimentos de oposiccedilatildeo que vinham crescendo desde o iniacutecio dos anos 1960 como uma

espeacutecie de guerra revolucionaacuteria Todos os cidadatildeos brasileiros passavam entatildeo a ser

encarados como suspeitos e foi esta percepccedilatildeo que estimulou o governo militar a

planejar a Seguranccedila Nacional e por conseguinte criar um centralizado e articulado

aparato de informaccedilotildees internas junto a um eficiente oacutergatildeo repressivo de controle

armado os DOI-CODI

Aleacutem disso constatou-se que a consolidaccedilatildeo dos DOI-CODI por todas as Regiotildees

Militares do paiacutes substanciou-se tambeacutem atraveacutes da alta legalidade autoritaacuteria e das

medidas tomadas pelo governo para conter as cizacircnias militares Afinal o governo

ditatorial brasileiro na medida em que arbitrou leis a fim de legalizar o seu poder

poliacutetico e suprimir direitos antes garantidos agrave populaccedilatildeo construiu uma sustentaccedilatildeo

juriacutedica necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um aparato de seguranccedila cada vez mais forte e

centralizado Grande parte dessas leis autoritaacuterias foi usada como artifiacutecio para acalmar

os acircnimos na caserna responsaacuteveis por importantes conflitos internos que ameaccedilavam a

uniatildeo militar as chamadas cizacircnias militares As leis arbitraacuterias serviam entatildeo tanto

para conter a oposiccedilatildeo poliacutetica quanto para ceder agraves reivindicaccedilotildees por poder vindas da

caserna Completava-se dessa forma um cenaacuterio legal capaz de suportar um organismo

de repressatildeo onde os militares de meacutedias e baixas patentes trabalhariam com autonomia

uma das bases para a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

Diante disso viu-se tambeacutem que natildeo foi agrave toa que a estrutura e o funcionamento

do SISSEGIN e dos seus oacutergatildeos foram instituiacutedos e regulamentados por meio de

201

decretos sigilosos o que incluiu a experiecircncia da Oban criada em Satildeo Paulo em

meados de 1969 e no ano seguinte a institucionalizaccedilatildeo dos DOI-CODI por todo o

paiacutes Afinal a justificativa para esse sigilo estava justamente na maior mobilidade e

autonomia de accedilatildeo que traria para a atuaccedilatildeo repressora desses organismos pois em

segredo podiam agir sem grandes limitaccedilotildees natildeo esbarrando em questotildees externas agraves

decisotildees militares tal como o respeito aos direitos humanos

Os DOI-CODI destacavam-se principalmente pela independecircncia financeira e pela

centralizaccedilatildeo hieraacuterquica que os constituiacuteam essenciais para a alta eficiecircncia de suas

investigaccedilotildees e accedilotildees Tais atributos evitavam que suas operaccedilotildees fossem suscetiacuteveis agrave

duplicidade de tarefas a competiccedilotildees e a conflitos de interesses maximizando os seus

resultados Eram entatildeo organismos de excelecircncia a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo

Entretanto essa sofisticaccedilatildeo tambeacutem vinha do distanciamento mantido entre os

militares do governo e os que agiam nesses oacutergatildeos jaacute que a ditadura ao mesmo tempo

em que sancionava a tortura nessa instituiccedilatildeo estrategicamente negava a sua existecircncia

perante a sociedade isentando governo do paiacutes de qualquer ligaccedilatildeo com ela Em

complemento a essa ideia o sistema funcional dos DOI responsaacuteveis por accedilotildees que

englobavam as prisotildees e os interrogatoacuterios dos presos poliacuteticos apresentava-se

complexo e informal Dessa forma as brechas para que a aparente falta de controle

fosse exercida eram amplas a fim de que meacutetodos violentos ilegais tivessem ali uma

legitimidade excepcional Justifica-se assim como a versatildeo oficial dos militares ainda

possa ser a de que a tortura jamais resultou de qualquer ordem ou orientaccedilatildeo superior

Evidenciou-se poreacutem a incoerecircncia desta versatildeo jaacute que ficou claro que em todos

os organismos militares nos DOI inclusive existiam uma forte hierarquia a ser

cumprida Mesmo com a estrutura complexa ali existente qualquer accedilatildeo deveria ser

remetida a um superior logo a questatildeo da responsabilidade sempre poderia ser

202

resgatada Percebeu-se que em geral apesar de velada a tortura era do conhecimento

de toda a hierarquia militar inclusive dos generais agrave frente do governo

Durante todo o trabalho a intervenccedilatildeo do presente (2002-2004) sobre as

memoacuterias do passado (1970) foi conferida nas narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos

entrevistados Percebeu-se que o contexto poliacutetico e social vivido no presente e o

momento da vida pessoal de cada um tiveram uma contribuiccedilatildeo importante na forma

como os ex-presos construiacuteram suas memoacuterias Aleacutem disso a forma como a rede de

entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que as entrevistas foram realizadas

tambeacutem concorreram para essa intervenccedilatildeo no relato que fizeram sobre o passado

Enfim um dos principais elementos para a anaacutelise criacutetica exercida aqui sobre essas

memoacuterias foi sem duacutevida o reconhecimento dessa influecircncia do presente sobre o

passado

A trajetoacuteria prisional dos entrevistados os grupos oposicionistas que integravam

as accedilotildees de que participaram o momento da prisatildeo o tempo que permaneceram presos

e as funccedilotildees que exerciam no presente foram aspectos aqui ressaltados por mostrarem

um pouco da histoacuteria de vida e por meio desta a personalidade ou seja as

idiossincrasias de cada um deles Dessa forma foi possiacutevel aproximar-se do aspecto

individual de suas memoacuterias uacutenico a cada ser entendendo um pouco mais as bases de

suas construccedilotildees

Tornou-se assim viaacutevel analisar essas memoacuterias e colocaacute-las em diaacutelogo com o

conteuacutedo levantado a partir da anaacutelise historiograacutefica e da monografia sobre o DOI

escrita pelo coronel Pereira em 1978 possibilitando uma caracterizaccedilatildeo do cotidiano

prisional vivido pelos presos do DOI-CODIRJ em 1970 O trabalho organizacional dos

DOI-CODIRJ foi visto portanto de forma praacutetica As funccedilotildees de cada setor e seccedilatildeo

teorizadas principalmente por meio da monografia do coronel foram analisadas a partir

203

do acircngulo dos prisioneiros o que viabilizou a percepccedilatildeo de detalhes que constituiacuteam a

rotina daquela instituiccedilatildeo

Ficou claro que a violecircncia era a principal forma de extraccedilatildeo de informaccedilotildees e o

elemento-chave para a eficiecircncia conferida pela instituiccedilatildeo com relaccedilatildeo ao combate aos

opositores poliacuteticos da eacutepoca A tortura e o medo dela ocupavam um espaccedilo

significativo no cotidiano ali impetrado aos prisioneiros uma vez que eles estavam no

DOI-CODIRJ para serem a ela submetidos de forma a fornecerem mais facilmente

informaccedilotildees que levassem os agentes dos DOI a outros suspeitos Poreacutem verificou-se

que a tortura natildeo era a uacutenica face do cotidiano do DOI-CODIRJ

Afinal este trabalho mostrou outros aspectos que constituiacuteam a rotina dos presos

dentro desse oacutergatildeo que ateacute entatildeo natildeo havia sido alcanccedilada pela historiografia Percebeu-

se aqui outros elementos que apesar de pouco destacados pelas memoacuterias dos

entrevistados muito tecircm a dizer sobre aquele cotidiano as fases prisionais as refeiccedilotildees

as roupas as formas de resistecircncia o conviacutevio ente prisioneiros e ateacute mesmo algumas

accedilotildees solidaacuterias efetuadas por soldados em benefiacutecio dos presos poliacuteticos

Constatou-se como a memoacuteria pode enriquecer a percepccedilatildeo que se tem sobre um

passado revelando faces natildeo evidenciadas em documentos oficiais e tambeacutem como eacute

importante para levar ateacute o presente um passado doloroso mas que deve ser encarado a

fim de ser perdoado e ultrapassado Uma movimentaccedilatildeo nesse sentido vem acontecendo

no Brasil com as Caravanas da Anistia e principalmente com a recente aprovaccedilatildeo da

Comissatildeo da Verdade conforme pontuado anteriormente

A atualidade dessas iniciativas inclusive estimulou esta pesquisa impulsionada

pela curiosidade sobre as memoacuterias do passado vivido nos ldquoporotildees da ditadurardquo Logo

o tema da presente dissertaccedilatildeo foi pautado pela crenccedila na necessidade de uma ampla

revelaccedilatildeo sobre o que ocorreu na eacutepoca de forma a contribuir para que a reconciliaccedilatildeo

204

do presente com o passado seja um dia alcanccedilada uma vez que defende-se aqui tal

como Paul Ricoeur (2008 507) que eacute no caminho da criacutetica histoacuterica que a memoacuteria

encontra o seu sentido de justiccedila Dessa forma tem-se o cidadatildeo como destinataacuterio do

texto histoacuterico cabendo a ele tornar a discussatildeo puacuteblica fazendo um balanccedilo entre

histoacuteria e memoacuteria a fim de que se perceba o sofrimento do outro e daqueles que

continuam a sofrer pelas matildeos do mesmo mal repressor do passado A partir disso a

reconciliaccedilatildeo entre o passado e presente se tornaraacute efetiva contribuindo para que no

futuro a democracia esteja plenamente consolidada

205

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Documentos do DOPS relativos a Padre Maacuterio Prigol

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Tombamento municipal lei nordm 1954 de 29 de marccedilo de 1993 Nordm do processo

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setembro de 2002

CARVALHO Antocircnio Leite de Entrevista concedida agrave autora em 8 de fevereiro

206

de 2003

COIMBRA Ceciacutelia Maria Bouccedilas Entrevista concedida agrave autora em 30 de

novembro de 2004

FREIRE Fernando Palha Entrevista concedida agrave autora em 28 de junho de

2004

PANDOLFI Dulce Chaves Entrevista concedida agrave autora em 5 de fevereiro de

2003

PRIGOL Maacuterio [Padre] Entrevista concedida agrave autora em 28 de setembro de

2004

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BETTAMIO Rafaella Foto Nordm1 Dez 2004 1 aacutelbum (4 fotos) color

10X15cm

BETTAMIO Rafaella Foto Nordm2 Dez 2004 1 aacutelbum (4 fotos) color

10X15cm

BETTAMIO Rafaella Foto Nordm3 Dez 2004 1 aacutelbum (4 fotos) color

10X15cm

BETTAMIO Rafaella Foto Nordm4 Dez 2004 1 aacutelbum (4 fotos) color

10X15cm

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setembro de 2004

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GLOBO Rio de Janeiro 23 de novembro de 2002

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05 fev 2012] Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL6683htm

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desaparecidas em razatildeo de participaccedilatildeo ou acusaccedilatildeo de participaccedilatildeo em atividades

poliacuteticas no periacuteodo de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 e daacute outras

providecircncias Brasiacutelia Ministeacuterio da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em

13 nov 2011] Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9140htm

BRASIL Lei Nordm10559 de 13 de novembro de 2002 Regulamenta o art 8 ordm do Ato das

Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias e daacute outras providecircncias Brasiacutelia Ministeacuterio

da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em 13 nov 2011]

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215

Anexo I - Glossaacuterio de Siglas

ACO ndash Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria

ADI ndash Aacutereas de Defesa Interna

ALN ndash Accedilatildeo Libertadora Nacional

APERJ ndash Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio de Janeiro

1degBPE ndash 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito

Condi ndash Conselho de Defesa Interna

CENIMAR ndash Centro de Informaccedilotildees da Marinha

CEP ndash Centro de Estudos de Pessoal

CGI ndash Comissatildeo Geral de Investigaccedilotildees

CIA ndash Central Intelligence Agency

CIE ndash Centro de Informaccedilotildees do Exeacutercito

CISA ndash Centro de Informaccedilotildees de Seguranccedila da Aeronaacuteutica

CNBB ndash Conferecircncia Nacional dos Bispos do Brasil

CONDI ndash Conselhos de Defesa Interna

CPDOC ndash Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil

CSN ndash Conselho de Seguranccedila Nacional

DCE ndash Diretoacuterio Central dos Estudantes

DEOPS ndash Departamento de Ordem e Poliacutetica Social de Satildeo Paulo

DGPC ndash Departamento Geral de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro

DI-GB ndash Dissidecircncia Comunista da Guanabara

DOI-CODI ndash Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees ndash Centro de Operaccedilotildees de

Defesa Interna

216

DOPS ndash Departamento de Ordem Poliacutetica e Social

DSN ndash Doutrina de Seguranccedila Nacional

ECEME ndash Escola de Comando e Estado Maior do Exeacutercito

ESG ndash Escola Superior de Guerra

EMFA ndash Estado Maior das Forccedilas Armadas

EsNI ndash Escola Nacional de Informaccedilotildees

Fafich ndash Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas de Belo Horizonte

FUEC ndash Frente Unida dos Estudantes do Calabouccedilo

FGV ndash Fundaccedilatildeo Getuacutelio Vargas

GTNMRJ ndash Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro

HCE ndash Hospital Central do Exeacutercito

IBRADES ndash Instituto Brasileiro de Estudos Sociais

IFCS ndash Instituto de Filosofia e Ciecircncias Sociais

IHTP ndash Instituto de Histoacuteria do Tempo Presente

IPCM ndash Instituto Penal Cacircndido Mendes

IPM ndash Inqueacuterito Policial Militar

JOC ndash Juventude Operaacuteria Catoacutelica

LOC ndash Liga Operaacuteria Catoacutelica

MDB ndash Movimento Democraacutetico Brasileiro

MR-8 ndash Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro

MTC ndash Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos

N-SISA ndash Nuacutecleo do Serviccedilo de Informaccedilotildees de Seguranccedila da Aeronaacuteutica

Oban ndash Operaccedilatildeo Bandeirantes

OLAS ndash Organizaccedilatildeo Latino-Americana de Solidariedade

217

PCB ndash Partido Comunista Brasileiro

PC do B ndash Partido Comunista do Brasil

PCBR ndash Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio

PT ndash Partido dos Trabalhadores

SADI - Sub-Aacutereas de Defesa Interna

SFICI ndash Serviccedilo Federal de Informaccedilotildees e Contra-Informaccedilotildees

SIM ndash Serviccedilo de Informaccedilotildees da Marinha

SNI ndash Serviccedilo Nacional de Informaccedilotildees

SISNI ndash Sistema Nacional de Informaccedilotildees

SISSEGIN ndash Sistema de Seguranccedila Interna

UFF ndash Universidade Federal Fluminense

UFRJ ndash Universidade Federal do Rio de Janeiro

UNE - Uniatildeo Nacional dos Estudantes

UNIRIO ndash Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

ZDI ndash Zona de Defesa Interna

218

Anexo II - A Hierarquia do Exeacutercito Brasileiro53

Ciacuterculos

Hieraacuterquicos54

Hierarquizaccedilatildeo Patentes do Exeacutercito

Ciacuterculo de oficiais

Ciacuterculo de oficiais-generais

Marechal

General de Exeacutercito

General de divisatildeo

General de brigada

Ciacuterculo de oficiais

superiores Coronel

Tenente-coronel

Major

Ciacuterculo de oficiais intermediaacuterios Capitatildeo

Ciacuterculo de oficiais

subalternos Primeiro- tenente

Segundo- tenente

Ciacuterculo de praccedilas

Ciacuterculo de suboficiais subtenentes e

sargentos

Subtenente

Primeiro-sargento

Segundo-sargento

Terceiro-sargento

Ciacuterculo de cabos e soldados

Cabo e taifeiro-mor

Soldado e taifeiro-de

primeira classe

Soldado-recruta e taifeiro-

de-segunda-classe

Ciacuterculo de praccedilas

especiais

Frequentam o ciacuterculo de oficiais

subalternos Aspirante-a-oficial

Excepcionalmente ou em reuniotildees sociais

tecircm acesso ao ciacuterculo de oficiais

Cadete (aluno da Academia

Militar)

Aluno da Escola

Preparatoacuteria de Cadetes do

Exeacutercito

Aluno de Oacutergatildeo de

Formaccedilatildeo da Reserva

Excepcionalmente ou em reuniotildees sociais

tecircm acesso ao ciacuterculo de suboficiais

subtenentes e sargentos

Aluno da Escola ou Centro

de Formaccedilatildeo de Sargentos

Frequentam o ciacuterculo de cabos e soldados Aluno de Oacutergatildeo de

Formaccedilatildeo de Praccedilas da

Reserva

53

LEIRNER 1997 74-75 54

Os ldquoCiacuterculos hieraacuterquicosrdquo satildeo o acircmbito de convivecircncia entre os militares da mesma categoria Esses

ldquociacuterculosrdquo satildeo incorporados a fundo na conduta militar de forma que a divisatildeo acima exposta eacute seguida

no ambiente de trabalho salas refeitoacuterios e banheiros da instituiccedilatildeo conforme demonstra Piero de

Camargo Leirner em estudo antropoloacutegico sobre a instituiccedilatildeo militar Meia Volta Volver (1997 74-76)

Page 4: O DOI-CODI carioca

4

5

Agradecimentos

Agradeccedilo primeiramente agrave minha orientadora Profordf Drordf Marly Silva da Motta

por sua orientaccedilatildeo zelosa pelo apoio e pelos inuacutemeros ensinamentos Com sua ajuda

consegui ultrapassar muitas dificuldades e penetrar com seguranccedila no universo dessa

pesquisa

Ao Professor Ameacuterico Freire de quem tive o prazer de ser aluna durante o

mestrado agradeccedilo pelas aulas pela bibliografia sobre o periacuteodo militar que muito me

ajudou na elaboraccedilatildeo dessa anaacutelise pelas criacuteticas construtivas elaboradas durante o

exame de qualificaccedilatildeo e pela participaccedilatildeo na banca examinadora dessa dissertaccedilatildeo

Ao Professor Luiacutes Reznik agradeccedilo por ter integrado a banca do exame de

qualificaccedilatildeo fazer parte da presente banca examinadora e tambeacutem pelas valiosas

sugestotildees indicaccedilotildees bibliograacuteficas e comentaacuterios incorporados ao estudo e agrave redaccedilatildeo

final desse trabalho

Agrave Professora Dulce Pandolfi agradeccedilo por sua generosidade em aceitar ser de

certa forma sujeito e objeto desta pesquisa desde seu nascimento durante a minha

graduaccedilatildeo em Histoacuteria pela UNIRIO quando permitiu que eu lhe entrevistasse e que

seu depoimento servisse de fonte para minha monografia de fim de curso cuja banca

examinadora contou com sua participaccedilatildeo Tambeacutem lhe agradeccedilo por durante o

mestrado continuar acompanhando de perto esta pesquisa participando da banca do

exame de qualificaccedilatildeo quando trouxe muitas consideraccedilotildees e sugestotildees produtivas a

este trabalho e da banca examinadora final desta dissertaccedilatildeo

Agrave Professora Icleacuteia Thiesen agradeccedilo pela credibilidade e incentivo que vem

injetando na minha face de pesquisadora desde o tempo em que fui sua aluna ainda

durante a graduaccedilatildeo

Aos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados Antocircnio Leite de Carvalho Dulce

Pandolfi Fernando Palha Freire Padre Maacuterio Prigol Ana Batista e Ceciacutelia Coimbra

agradeccedilo por me confiarem suas narrativas e me deixarem penetrar em parte de suas

memoacuterias

6

Agrave Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional onde muito me orgulho de trabalhar agradeccedilo

por incentivar a minha qualificaccedilatildeo enquanto pesquisadora permitindo que eu cursasse

o mestrado e me licenciasse nos uacuteltimos meses para me dedicar a esta dissertaccedilatildeo de

corpo e alma

Ao Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNMRJ) agradeccedilo por me

autorizar a consultar o arquivo da instituiccedilatildeo e por me receber afetuosamente durante

diversas reuniotildees onde pude conhecer alguns de seus integrantes tais como Ana Batista

e Ceciacutelia Coimbra a quem tive o prazer de entrevistar

Aos amigos Joatildeo Cerineu e Alejandra Estevez agradeccedilo a contribuiccedilatildeo

fundamental que efetuaram sobre este trabalho sendo os responsaacuteveis por me apresentar

aos ex-prisioneiros poliacuteticos Antocircnio e Padre Maacuterio

Agradeccedilo aos meus irmatildeos Rodrigo Renata e Melissa ao Rodrigo por despertar

em mim a vontade e a coragem de seguir a profissatildeo de historiadora agrave Renata por me

apoiar e ouvir sobre minha pesquisa atentamente mesmo quando eu repetia as mesmas

histoacuterias diversas vezes e principalmente agrave Melissa que muito me ajudou na

composiccedilatildeo do ldquoabstractrdquo desse trabalho com o seu inglecircs simplesmente perfeito

Aos amigos queridos que a Biblioteca Nacional me deu de presente

companheiros de jornada que me fazem melhorar a cada dia como profissional e que me

acompanharam durante todo o processo do mestrado me apoiando no que foi preciso e

me ajudando a superar os obstaacuteculos do dia-a-dia Agradeccedilo especialmente agrave Lia Jordatildeo

pelo companheirismo diaacuterio ao Francisco Madureira pelo auxiacutelio na ediccedilatildeo final dessa

dissertaccedilatildeo e agrave Regina Santiago pela amizade e disposiccedilatildeo sem igual em ler

minuciosamente este trabalho apontando sugestotildees que indiscutivelmente tornaram o

texto mais claro

Agraves amigas Manuela Joana e Letiacutecia agradeccedilo por estarem sempre comigo nas

alegrias e nas tristezas compartilhando conquistas e derrotas desde os tempos em que

juntas frequentaacutevamos as festas juninas da PE

7

Aos amigos do curso de Histoacuteria da UNIRIO agradeccedilo pelas trocas intelectuais

pelos incontaacuteveis momentos divertidos pela camaradagem e por essa amizade de dez

anos de histoacuteria

Aos meus pais sou e serei eternamente grata pelo carinho pelo apoio e por sempre

estarem ao meu lado durante todos esses anos

Aos meus sogros Eliana Lasmar e Luiz Fernando Arieira agradeccedilo por estarem

sempre por perto dispostos a estenderem a matildeo quando preciso

E por fim meus agradecimentos especiais a Raul Cordeiro meu companheiro de

todas as horas o engenheiro mais humano que eu jaacute conheci Agradeccedilo-lhe por tudo que

temos vivido juntos por nosso cantinho por nossas conversas por nosso conviacutevio de

todo dia por nosso amor pelo tanto e tatildeo pouco que enfeita cada momento da minha

vida me completa e me faz uma pessoa mais feliz

8

Tambeacutem neste lugar pode-se sobreviver e por isso eacute preciso

querer sobreviver para contar para testemunhar e que para

viver eacute importante esforccedilarmo-nos para salvar pelo menos o

esqueleto os pilares a forma da nossa civilizaccedilatildeo [hellip]

(Levi 2001 40)

9

Resumo

O objetivo dessa dissertaccedilatildeo eacute analisar a memoacuteria de seis ex-prisioneiros poliacuteticos

do Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees-Centro de Operaccedilotildees de Defesa Interna

do Rio de Janeiro (DOI-CODIRJ) entrevistados recentemente entre os anos de 2002 e

2004 sobre o cotidiano vivido nessa instituiccedilatildeo em 1970 Naquele ano dentro do

Sistema de Seguranccedila Interna (SISSEGIN) os DOI-CODI haviam sido criados e

distribuiacutedos por todas as Regiotildees Militares do paiacutes tornando-se a principal instituiccedilatildeo

de repressatildeo aos opositores poliacuteticos que optaram pela luta armada como forma de

derrotar a ditadura militar brasileira Assim as narrativas desses seis ex-prisioneiros

satildeo aleacutem de fontes essenciais o principal objeto de estudo deste trabalho Atraveacutes

delas torna-se possiacutevel acessar aspectos cruciais para a caracterizaccedilatildeo do cotidiano

vivido pelos presos em um desses oacutergatildeos ― o DOI-CODI do Rio de Janeiro ― uma

vez que esse passado se liga ao presente por meio de suas memoacuterias Diante disso a fim

de melhor entender tais memoacuterias a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI tambeacutem satildeo

aqui analisadas colocando as narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados em

diaacutelogo com uma bibliografia especialmente selecionada aleacutem de uma fonte a respeito

do DOI feita por um de seus agentes quando este oacutergatildeo ainda estava em atividade em

1978 Para que a essas memoacuterias seja aplicada uma criacutetica efetiva necessaacuteria a todo

trabalho histoacuterico o estudo se debruccedila ainda sobre as interferecircncias que o presente

exerce na construccedilatildeo que fazem com relaccedilatildeo ao passado vivido no DOI-CODIRJ com

o objetivo de esclarecer as bases sobre as quais satildeo construiacutedas cerca de trinta anos

depois

Palavras-chave Ex-prisioneiros poliacuteticos ndash Memoacuteria ndash DOI-CODI ndash Cotidiano ndash

Ditadura militar

10

Abstract

The objective of this thesis is to analyze the memory of six former political

prisoners of the Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees-Centro de Operaccedilotildees de

Defesa Interna do Rio de Janeiro or DOI-CODIRJ (Detachment of Information

Operations Center-Internal Defense Operations Center of Rio de Janeiro) recently

interviewed between 2002 and 2004 about their everyday living in that institution in

1970 At that year in the Sistema de Seguranccedila Interna or SISSEGIN (Internal Security

System) the DOI-CODI had been created and distributed by all the countryrsquos military

regions becoming the repression leading instituion of political opponents who oppted

for armed struggle as a way to defeat Brazilrsquos military dictatorship Thus these six

former prisioners narratives are not only essencial sources but the main study object of

this paper Through them it becomes possible to access crucial aspects for the

characterization of the daily lived by prisioners in one of these agencies - the DOI-

CODI in Rio de Janeiro - since this past connects to present through their memories

Therefore in order to understand such memories the training and the performance of

the DOI-CODI are also analyzed here placing the narratives of the interviewed former

political prisioners in dialogue with a specially selected bibliography and a source

about DOI made by one of its agents when that agency was still active in 1978 In

order to be applied to these memories an effective critique necessary to all historical

work the study still focuses on the interferences that the present exerts on the

construction that make in relation to the past lived in DOI-CODIRJ in order to clarify

the basis on which are built at about thirty years later

Key-Words Former political prisioners ndash Memory ndash DOICODI ndash daily Life ndash Military

dictatorship

11

Sumaacuterio

Agradecimentos 05

Resumo 09

Abstract 10

Introduccedilatildeo 13

Capiacutetulo 1 Os DOI-CODI formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo 28

1 Debate Histoacuterico 35

11 O papel da ESG para o Sistema de Seguranccedila Nacional 35

12 Os conceitos legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar 39

13 A montagem e o funcionamento do SISSEGIN 47

2 O DOI-CODI por ele mesmo 57

3 O DOI-CODI pelos prisioneiros 75

Capiacutetulo 2 Os presos poliacuteticos e suas organizaccedilotildees 85

1 A rede de entrevistas 91

11 Os sujeitos e suas trajetoacuterias 97

12 A nova esquerda brasileira 122

Capiacutetulo 3 O espaccedilo e o cotidiano do DOI-CODI carioca 136

1 O que sofre e o que resiste 137

2 Uma cartografia possiacutevel do ldquoCastelo do Terrorrdquo 142

12

3 Memoacuterias de um cotidiano 154

31 O interrogatoacuterio e a tortura 156

32 O dia-a-dia no caacutercere 184

Conclusatildeo 199

Fontes 205

1 ArquivoDocumentos Pessoais 205

2 Documentos Institucionais 205

3 Fonte Cinematograacutefica 205

4 Fontes Orais 205

5 Fontes Visuais 206

6 Perioacutedicos 206

Bibliografia 207

1 Bibliografia digital 213

Anexo I Glossaacuterio de Siglas 215

Anexo II A Hierarquia do Exeacutercito Brasileiro 218

13

Introduccedilatildeo

Tem dias que a gente se sente

Como quem partiu ou morreu

A gente estancou de repente

Ou foi o mundo entatildeo que cresceu

A gente quer ter voz ativa

No nosso destino mandar

Mas eis que chega a roda viva

E carrega o destino praacute laacute

Roda mundo roda gigante

Roda moinho roda piatildeo

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coraccedilatildeo

A gente vai contra a corrente

Ateacute natildeo poder resistir

Na volta do barco eacute que sente

O quanto deixou de cumprir

Faz tempo que a gente cultiva

A mais linda roseira que haacute

Mas eis que chega a roda viva

E carrega a roseira praacute laacute

Chico Buarque

(Roda Viva 1968)

14

Vivi bons momentos no 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito Era adolescente e os

momentos aos quais me refiro foram vividos durante o final de uma deacutecada

democraacutetica a de 1990 Mal sabia sobre a ditadura militar e muito menos que aquele

Batalhatildeo situado tatildeo proacuteximo agrave minha casa na Tijuca havia sediado um centro de

tortura O nome DOI-CODI nunca tinha ouvido falar Para mim e para todos os

adolescentes da Tijuca o 1ordm BPE era um Batalhatildeo convencional do Exeacutercito que tinha

um grande paacutetio utilizado todos os anos para a melhor festa junina da regiatildeo a ldquofesta

junina da PErdquo Logo para noacutes a principal caracteriacutestica da PE era o fato de durante os

meses de junho abrir as portas do seu paacutetio para tornaacute-lo ldquoponto de encontrordquo de muitos

jovens estudantes Quanta ironia

Jaacute no terceiro periacuteodo da faculdade de Histoacuteria da UNIRIO no primeiro semestre

de 2002 descobri o que aquele preacutedio havia sido durante a ditadura militar Soube

inclusive que ele era tombado pelo antigo Departamento Geral de Patrimocircnio Cultural

(DGPC) da Prefeitura justamente por representar a memoacuteria de muitos ex-prisioneiros

poliacuteticos que ali haviam sido torturados e mortos Fiquei perplexa Como nunca

ningueacutem havia me dito isso Como os professores de Histoacuteria da minha escola

localizada no mesmo bairro natildeo haviam destacado esse fato Por que essa parte da

Histoacuteria natildeo era amplamente divulgada Eu que sempre gostei de Histoacuteria natildeo agrave toa

escolhi fazer dela minha formaccedilatildeo e profissatildeo me senti instigada a revelar as memoacuterias

dos presos poliacuteticos que por laacute passaram A partir dessa descoberta mais do que uma

ldquonovardquo face do 1ordm BPE eu havia me deparado com outra revelaccedilatildeo o meu tema de

pesquisa

A partir de um amigo do curso de Histoacuteria no final de 2002 cheguei ao meu

primeiro entrevistado e daiacute em diante teci uma rede de entrevistas No final de 2004

havia reunido seis entrevistados trecircs homens e trecircs mulheres todos ex-prisioneiros

15

poliacuteticos que passaram pelo DOI-CODIRJ durante o mesmo ano de 1970 Essa

pesquisa resultou em minha monografia apresentada em 2005 como requisito para a

conclusatildeo do curso de Histoacuteria da UNIRIO O Castelo do terror memoacuteria e tortura no

espaccedilo prisional (1970-1974) 1

Natildeo abandonei o tema Ao contraacuterio resolvi aprofundaacute-lo no mestrado em

Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais do CPDOCFGV onde ingressei em marccedilo de 2010

Nessa dissertaccedilatildeo que representa a fase conclusiva do mestrado trabalho com os

depoimentos dos mesmos seis ex-prisioneiros do DOI-CODIRJ de 1970 colhidos entre

os anos de 2002 e 2004 Aqui o objetivo mais amplo eacute se inserir no conjunto de estudos

que reflete sobre a construccedilatildeo de uma determinada memoacuteria a respeito da ditadura

militar

Analisar a memoacuteria de ex-prisioneiros poliacuteticos a fim de entender como essas

foram construiacutedas jaacute em tempos democraacuteticos e o que trazem em benefiacutecio da

caracterizaccedilatildeo daquele passado eacute o objetivo principal desta dissertaccedilatildeo Assim sendo

alguns aspectos especiacuteficos merecem ser destacados

O primeiro deles eacute que as entrevistas foram concedidas entre os anos 2002 e 2004

ou seja o passado ditatorial foi recuperado jaacute em tempos democraacuteticos Ao mesmo

tempo considerou-se que esses depoimentos satildeo fontes essenciais para atingir o

objetivo aqui traccedilado jaacute que a metodologia de histoacuteria oral eacute a mais adequada para

analisar os aspectos subjetivos e repletos de detalhes que correspondem ao rigoroso dia-

a-dia de quem esteve preso em um organismo repressor Logo eacute faacutecil concluir que as

fontes que permitiram a elaboraccedilatildeo deste estudo natildeo poderiam ser encontradas em

documentaccedilatildeo oficial

1 O Castelo do terror memoacuteria e cotidiano de ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI carioca (1970-

1979) monografia de fim de curso de bacharelado e licenciatura plena em Histoacuteria da UNIRIO orientada

pela Profordf Drordf Icleacuteia Thiesen e apresentada em abril de 2005

16

Instituiacutedos por todo o territoacuterio brasileiro a partir de 1970 os DOI-CODI

tornaram-se referecircncia-chave na memoacuteria sobre a tortura e a repressatildeo praticada pela

ditadura militar A partir disso nota-se que o trabalho desenvolvido com as memoacuterias

de ex-prisioneiros de uma de suas sedes a do Rio de Janeiro eacute uma das escassas

possibilidades existentes de se acessar esse passado ainda tatildeo presente

Esse objeto de estudo representa um grande desafio Afinal estaacute inserido entre

duas temporalidades recentes ndash quando a experiecircncia prisional foi efetivamente vivida

em 1970 e quando ela foi narrada pelos entatildeo ex-prisioneiros poliacuteticos entre 2002 e

2004 Por isso mesmo lanccedilou-se matildeo do aparato teoacuterico do que se convencionou

chamar de histoacuteria do tempo presente A partir dos anos 1980 durante o processo de

renovaccedilatildeo da histoacuteria poliacutetica a valorizaccedilatildeo de uma histoacuteria das representaccedilotildees e a

compreensatildeo dos usos poliacuteticos do passado pelo presente acarretou uma reavaliaccedilatildeo das

relaccedilotildees estabelecidas entre histoacuteria e memoacuteria que permitiu agrave historiografia fazer novas

reflexotildees sobre as relaccedilotildees entre passado e presente 2 Diante dessa percepccedilatildeo nasceu

na Franccedila o Instituto de Histoacuteria do Tempo Presente (IHTP) fundado por Franccedilois

Beacutedarida consolidando a histoacuteria do tempo presente como portadora da especificidade

de conviver com testemunhos vivos colocando sob seu foco principal os depoimentos

orais 3

A histoacuteria oral eacute portanto a metodologia principal desta dissertaccedilatildeo e por

conseguinte os depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos dela decorrentes satildeo aqui

tratados com todo o rigor necessaacuterio agrave pesquisa histoacuterica Afinal apesar de ser

demasiadamente criticada por ser uma metodologia apoiada na memoacuteria o que a

tornaria capaz de produzir representaccedilotildees e natildeo reconstituiccedilotildees do real entende-se que

2 Para mais informaccedilotildees sobre o surgimento da histoacuteria do tempo presente na historiografia ver Remoacutend

1996 e Ferreira dez 2002 314-332 3 Para mais informaccedilotildees sobre os fundamentos da histoacuteria do tempo presente ver Beacutedarida 2006 219-

229

17

as narrativas orais devem ser submetidas ao crivo da criacutetica histoacuterica tal como deve

ocorrer com todas as outras fontes Os documentos orais ou escritos tecircm uma razatildeo de

ser pois foram feitos por algueacutem com determinada visatildeo estimulado por algum motivo

eou intenccedilatildeo e por isso nunca seratildeo capazes de representar a realidade pura e absoluta

dos fatos Portanto qualquer fonte caso natildeo seja bem contextualizada e analisada

possibilita que a pesquisa caia em armadilhas e reconstrua um passado que nunca

existiu conforme bem elucidado por Michael Pollak

[] se a memoacuteria eacute socialmente construiacuteda eacute oacutebvio que toda documentaccedilatildeo

tambeacutem o eacute Para mim natildeo haacute diferenccedila fundamental entre fonte escrita e

oral A criacutetica da fonte tal como todo historiador aprende a fazer deve a

meu ver ser aplicada a fontes de tudo quanto eacute tipo (Pollak 1992 207-208)

A histoacuteria oral eacute de grande valia agrave histoacuteria do tempo presente contribuindo para

que o estudo da histoacuteria recente ndash por natureza mais inacabada do que qualquer outra

histoacuteria (Beacutedarida 2006 229) ndash seja incentivado desafiando as dificuldades

relacionadas ao acesso a fontes documentais de periacuteodos pouco distantes Aleacutem disso a

histoacuteria oral traz outro diferencial aqui destacado atraveacutes da fala torna-se possiacutevel

evidenciar uma carga subjetiva tornando acessiacutevel um tipo de informaccedilatildeo capaz de

enriquecer a anaacutelise histoacuterica e que natildeo seria obtido por meio de fontes escritas oficiais

Assim mesmo que uma experiecircncia relatada natildeo seja em si mesma um fato de certa

forma pode vir a secirc-lo jaacute que traz agrave tona o verdadeiro sentimento de algueacutem perante

uma situaccedilatildeo e esse sentimento eacute um fato que soacute pode ser alcanccedilado mediante agraves

memoacuterias trazidas pelos relatos (Portelli 1996 59-72)

Os usos que os ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ fazem de seu passado

prisional eacute um dos principais aspectos aqui ressaltados Para tanto o conceito de

presente do passado de Robert Frank (1999) eacute utilizado ao longo deste trabalho como

18

ferramenta para destacar as influecircncias que o presente de suas narrativas exerce sobre a

maneira pela qual eacute revivido o passado vivenciado no DOI-CODIRJ

Desde que haviam passado pelo DOI-CODI carioca em 1970 em plena ditadura

militar a chamada ldquolei de anistiardquo jaacute havia sido instituiacuteda no paiacutes em 1979 que entre

outras providecircncias anistiava todos quantos no periacuteodo compreendido entre 02 de

setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 cometeram crimes poliacuteticos ou conexos com

estes (lei nordm 66831979) a ditadura militar havia terminado com a eleiccedilatildeo indireta de

um presidente civil em 1985 a Assembleia Nacional Constituinte havia sido instalada

em 1987 e a Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil a chamada ldquoconstituiccedilatildeo

cidadatilderdquo havia sido promulgada no ano seguinte e finalmente o primeiro presidente

civil eleito pelo voto direto apoacutes a ditadura militar havia tomado posse em 1990

completando a transiccedilatildeo poliacutetica do paiacutes ou seja tornando a ditadura uma memoacuteria do

passado e a democracia o momento presente Democracia esta que na eacutepoca em que os

depoimentos foram concedidos apresentava ainda mais sinais de seu fortalecimento e

consolidaccedilatildeo jaacute que o Brasil havia elegido para presidente o socioacutelogo e professor da

USP Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e o ex-operaacuterio e liacuteder sindical Luiacutes

Inaacutecio Lula da Silva (2003-2010) ambos perseguidos poliacuteticos durante o periacuteodo

ditatorial

Com relaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo dos que sofreram danos decorrentes da poliacutetica repressiva

promovida pela ditadura militar desde 1995 estava em curso o reconhecimento pelo

Estado brasileiro dos mortos e desaparecidos poliacuteticos durante a ditadura e a

indenizaccedilatildeo as suas famiacutelias (lei nordm 914095) Aleacutem disso a reparaccedilatildeo financeira aos

males sofridos por aqueles que ficaram presos ou foram perseguidos na eacutepoca tambeacutem

estava em voga desde 2002 (lei nordm 1055902) A demanda desta lei principalmente no

caso daqueles que passavam pelo processo de solicitaccedilatildeo eacute um elemento a ser levado

19

em conta na maneira pela qual os entrevistados construiacuteram suas narrativas Afinal o

procedimento necessaacuterio agrave concessatildeo da reparaccedilatildeo incluiacutea a construccedilatildeo de um memorial

sobre as mazelas a que os requerentes haviam sido submetidos pelo Estado durante a

ditadura militar

Dessa forma as narrativas significavam tambeacutem para os ex-prisioneiros poliacuteticos

um meio de conseguirem apoio da sociedade em favor da ampliaccedilatildeo desse

reconhecimento iniciado pelo Estado brasileiro Atraveacutes de suas narrativas poderiam

contribuir para que suas memoacuterias fossem encampadas pela histoacuteria Logo pode-se

dizer que no sentido atribuiacutedo por Michael Pollak (1992) esses depoimentos foram

concedidos sob o horizonte de contribuir com o trabalho de enquadramento da

memoacuteria nacional sobre a ditadura militar brasileira jaacute que esta ateacute hoje natildeo estaacute

consolidada

Finalmente verifica-se que ainda ocorre uma disputa pela memoacuteria da ditadura

militar onde de um lado estatildeo os que sofreram o peso da matildeo forte da ditadura e de

outro os militares que argumentam que os ldquoanos de chumbordquo devem ser relegados ao

passado Como exemplo a declaraccedilatildeo dada em outubro de 2004 ao jornal O Globo por

um representante do Exeacutercito em resposta agrave publicaccedilatildeo de supostas fotos pelas quais o

jornalista Vladimir Herzog4 aparece sendo humilhado na prisatildeo

As medidas tomadas pelas forccedilas legais foram uma legiacutetima resposta agrave

violecircncia dos que recusaram o diaacutelogo optaram pelo radicalismo e pela

ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e de desencadear accedilotildees

criminosas [] sentiu-se a necessidade da criaccedilatildeo de uma estrutura com

vistas a apoiar em operaccedilatildeo e inteligecircncia as atividades necessaacuterias para

desestruturar os movimentos radicais e ilegais [] Mesmo sem qualquer

mudanccedila de posicionamento e de convicccedilotildees em relaccedilatildeo ao que aconteceu

4 Vladimir Herzog era integrante do PCB e diretor da TV Cultura quando foi preso em outubro de 1975

no DOI-CODISP onde dias depois foi morto sob torturas Para mais informaccedilotildees sobre o caso Vladimir

Herzog e seus sucessivos encadeamentos ver Moraes 2006

20

naquele periacuteodo histoacuterico considera-se accedilatildeo pequena reavivar revanchismos

ou estimular discussotildees esteacutereis sobre conjunturas passadas que a nada

conduzem (Camarotti 19 out 2004 12)

Essa disputa travada entre a lembranccedila e o esquecimento pode ser notada atraveacutes

da batalha em torno do preacutedio que serviu de sede ao DOI-CODIRJ o 1ordm BPE Essa foi

iniciada nos primeiros anos da deacutecada de 1990 por meio de uma tentativa do Exeacutercito

de vender o edifiacutecio Sabendo da situaccedilatildeo um conjunto de moradores dos arredores

buscou impedir a venda solicitando o tombamento de todo o espaccedilo ocupado pelo

quartel agrave Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro alegando a sua importacircncia para a

memoacuteria poliacutetica do paiacutes Essa atitude eacute evidenciada em um manifesto contendo 236

assinaturas em defesa da preservaccedilatildeo do preacutedio que serviu como documento de

abertura para o processo de tombamento do edifiacutecio na Subsecretaria de Patrimocircnio

Cultural da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro

O Exeacutercito brasileiro alegando falta de recursos para seu programa de

construccedilatildeo de quarteacuteis em outros estados pretende vender o imoacutevel onde

estaacute o 1ordm BPE Trata-se de um imoacutevel altamente valorizado pela ampla infra-

estrutura urbana [] Acontece que o valor que o Exeacutercito quer faturar foi

criado a partir de obras e investimentos custeados com os impostos e taxas

que pagamos todos noacutes haacute mais de um seacuteculo O Exeacutercito natildeo contribuiu

em nada para isso e agora quer se apropriar desse valor para investir sabe-se

laacute aonde [] consideramos que o preacutedio do Batalhatildeo da PE estaacute

indissoluvelmente cravado na histoacuteria nas tradiccedilotildees na esteacutetica e na

paisagem local [] Sabemos que o Batalhatildeo da PE foi sede do DOI-CODI

na eacutepoca da ditadura militar e que ali estiveram presos e foram torturados

muitos companheiros nossos tendo inclusive alguns sido dados como

ldquodesaparecidosrdquo Tambeacutem por esta razatildeo o preacutedio estaacute ligado agrave memoacuteria

poliacutetica desse paiacutes [] Queremos na aacuterea um centro cultural com teatro e

museu agrave memoacuteria da luta pela liberdade com parque e jardins Esses satildeo os

21

anseios da comunidade e natildeo outrosrdquo (Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural

da Prefeitura do Rio de Janeiro 1992) 5

Aleacutem desse documento outras solicitaccedilotildees de preservaccedilatildeo do preacutedio foram

enviadas agrave Cacircmara Municipal por Associaccedilotildees de Moradores da Tijuca e bairros

vizinhos Enfim em 29 de marccedilo de 1993 no primeiro mandato do entatildeo prefeito Ceacutesar

Maia o processo de tombamento do 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito foi finalizado

No entanto a ideia de tiraacute-lo do Exeacutercito a fim de tornar o espaccedilo um centro cultural

que contivesse um museu da memoacuteria da luta pela liberdade natildeo se concretizou pois

apoacutes o tombamento o Exeacutercito natildeo deixou o local onde permanece ateacute os dias atuais

sinalizando que natildeo tem interesse em que o edifiacutecio se torne efetivamente um lugar de

memoacuteria tal como o conceito criado por Pierre Nora (1993)

No preacutedio do 1ordm BPE se encontram os trecircs sentidos atribuiacutedos por Nora como

caracteriacutesticos a um lugar de memoacuteria o material o simboacutelico e o funcional (Nora

1993 21) O sentido material no caso eacute o proacuteprio espaccedilo fiacutesico que ainda se conserva

no mesmo local sem grandes intervenccedilotildees o simboacutelico eacute o que o espaccedilo representa para

uma parte da sociedade carioca como marco memorial de um passado que natildeo se deve

esquecer e o funcional eacute a memoacuteria da ditadura militar ali preservada por meio do

tombamento do edifiacutecio Logo querendo ou natildeo o preacutedio do 1ordm BPE eacute um lugar de

memoacuteria jaacute que naquele espaccedilo fiacutesico ou seja material se encontram uma funccedilatildeo e

uma representaccedilatildeo simboacutelicas ligadas agrave memoacuteria da ditadura militar

A disputa em torno dessa memoacuteria parece aos poucos caminhar cada vez mais

para o lado dos ex-presos e perseguidos poliacuteticos Recentemente aleacutem das leis

5 Este documento que deu iniacutecio ao referido processo no ano de 1992 hoje se encontra arquivado na

Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro antigo Departamento Geral de

Patrimocircnio Cultural (DGPC) junto ao restante da documentaccedilatildeo que compocircs o processo Nordm

1200433692 e originou a lei municipal nordm 1954 de 290393

22

reparadoras citadas acima um grande obstaacuteculo foi ultrapassado para que os crimes

ocorridos durante a ditadura militar sejam apurados e desvendados Em outubro de

2011 a Comissatildeo da Verdade foi enfim aprovada pelo Congresso Nacional e em

novembro do mesmo ano a lei que a institui sancionada pela Presidente Dilma

Rousseff Nesse contexto esta dissertaccedilatildeo ao estudar as memoacuterias de seis ex-

prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ relaciona-se com essa atualidade cumprindo

um papel social relevante

O ofiacutecio do historiador que pressupotildee trilhar caminhos e fazer escolhas

significando por exemplo atribuir significado agraves palavras agraves fontes e agrave bibliografia

escolhidas norteou a seleccedilatildeo e os criteacuterios aqui estipulados Conforme apontado por

Reinhart Koselleck (2006 167) eacute impossiacutevel que o ponto de vista do historiador deixe

de influenciar na representaccedilatildeo que faz dos fatos Assim cabe deixar claro que este

trabalho foi movido pelo interesse que as memoacuterias dos ex-prisioneiros poliacuteticos do

DOI-CODIRJ despertaram em mim Vale dizer que essa dissertaccedilatildeo eacute avessa ao

postulado cientiacutefico da total imparcialidade no sentido de neutralidade apartidarismo

ou abstenccedilatildeo seguindo orientaccedilatildeo de Manoel Salgado Guimaratildees (2008)

Ao historiador de ofiacutecio seria exigido cada vez mais uma escrita submetida

aos ditames dos afetos sejam eles derivados de engajamentos poliacuteticos

especiacuteficos de crenccedilas particulares ou mesmo derivados de um convite agrave

individualidade do historiador Este seria instado a mostrar-se atraveacutes de seu

texto postura bastante diversa daquela que o obrigava a esconder-se por traacutes

da pesquisa cientiacutefica (Guimaratildees 2008 17)

O primeiro capiacutetulo tem por objetivo analisar a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-

CODI que a partir de 1970 passaram a integrar o Sistema de Seguranccedila Interna

(SISSEGIN) se espalharam por todas as Regiotildees Militares do Brasil e se tornaram a

principal instituiccedilatildeo de repressatildeo aos opositores poliacuteticos da ditadura militar Afinal a

23

partir do entendimento sobre a criaccedilatildeo e o funcionamento dessa instituiccedilatildeo se pretende

criar as condiccedilotildees necessaacuterias para analisar as memoacuterias dos seis ex-prisioneiros

poliacuteticos sobre uma de suas sedes o DOI-CODIRJ uma vez que a passagem por esse

espaccedilo prisional eacute aqui entendida como um elo fundamental entre essas memoacuterias

Assim optou-se por estruturar este capiacutetulo por meio de trecircs frentes 1) o debate

historiograacutefico 2) a monografia O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI)

do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e

perspectiva escrita em 1978 pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira

3) os depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de

Janeiro concedidos entre os anos de 2002 e 2004

A primeira frente de estudo se concentra em analisar a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos

DOI-CODI agrave luz da historiografia Nela apresentam-se autores e conceitos selecionados

a fim de elucidar algumas questotildees levantadas Qual o papel da Escola Superior de

Guerra (ESG) para a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional e dos DOI-CODI

Como a praxe ditatorial em respaldar atitudes arbitraacuterias por meio de leis

compulsoriamente promulgadas ou seja atraveacutes da legalidade autoritaacuteria conforme

nomenclatura utilizada por Anthony Pereira (2010) gerou as bases para a criaccedilatildeo do

SISSEGIN e dos DOI-CODI Como os conflitos internos gerados no seio da instituiccedilatildeo

militar que ocasionaram dissidecircncias as cizacircnias militares tal como conceituado por

Joatildeo Roberto Martins Filho (1993) influenciaram os rumos da ditadura e a construccedilatildeo

de seu aparato de seguranccedila interna De que maneira a montagem e o funcionamento do

SISSEGIN e dos DOI-CODI foram organizados e constituiacutedos

Jaacute a segunda e a terceira frentes de estudo deste capiacutetulo servem para analisar as

visotildees de atores que de uma forma ou de outra viveram os DOI-CODI Na segunda a

anaacutelise sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI debruccedila-se sobre a visatildeo de um de

24

seus agentes atraveacutes da fonte O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do

Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo escrita pelo coronel de

cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira apontado por ex-prisioneiros poliacuteticos com um dos

torturadores do DOI do Rio de Janeiro Trata-se de uma monografia que o referido

coronel apresentou agrave Escola de Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) em

1978 quando os DOI-CODI apesar de atuantes jaacute sofriam certa diminuiccedilatildeo de suas

atividades O trabalho em cima desse documento se direciona no sentido de analisar

dados representativos do poder coercitivo dos DOI-CODI do iniacutecio dos anos 1970 e de

descrever os afazeres de cada uma de suas seccedilotildees a fim de contribuir para o

entendimento sobre o funcionamento interno deste oacutergatildeo Por fim na terceira frente a

anaacutelise eacute efetuada por meio das memoacuterias dos seis ex-prisioneiros entrevistados entre os

anos de 2002 e 2004 objeto central dessa dissertaccedilatildeo Dessa forma procura-se aqui

responder como eles percebiam a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo do DOI-CODIRJ e ao

entrelaccedilar aspectos de suas memoacuterias com a historiografia e a visatildeo do coronel Pereira

se aproximar do que vinha a ser o aparato de seguranccedila interna de 1970 cujos DOI-

CODI eram parte essencial

O segundo capiacutetulo eacute construiacutedo com a proposta de analisar de que forma e sob

quais influecircncias foram construiacutedas e narradas as memoacuterias dos seis ex-prisioneiros

poliacuteticos entrevistados entre os anos de 2002 e 2004 Parte-se aqui do pressuposto de

que cada uma de suas memoacuterias foi formada e influenciada por idiossincrasias relativas

a vivecircncias pessoais personalidades e outros aspectos individuais que merecem ser

analisados de forma a viabilizar o entendimento loacutegico da construccedilatildeo dessas memoacuterias

Dessa forma busca-se relativizar uma memoacuteria coletiva que aparentemente eacute comum a

todos os ex-prisioneiros poliacuteticos que passaram por algum DOI-CODI O aspecto

coletivo dessas memoacuterias no entanto natildeo eacute abandonado As memoacuterias individuais aqui

25

trabalhadas natildeo estatildeo isoladas e constantemente tomam por referecircncia pontos externos

ao sujeito se apoiando em percepccedilotildees recebidas de determinada memoacuteria coletiva de

um grupo e tambeacutem pela memoacuteria histoacuterica de seu paiacutes (Halbwachs 2004 57-59)

Diante disso a capacidade de intervenccedilatildeo que o presente exerce sobre as

memoacuterias do passado (Frank 1999) toma um aspecto central nesse momento da anaacutelise

o que torna importante considerar aqui natildeo soacute o contexto histoacuterico que rodeava os

entrevistados no momento de suas narrativas (2002-2004) como tambeacutem a forma como

a rede de entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que essas foram realizadas

Assim este segundo capiacutetulo trata primeiramente dessas condiccedilotildees que viabilizaram e

de certa forma influiacuteram nas entrevistas para em seguida analisar as trajetoacuterias de vida

de cada um dos entrevistados e por fim baseando-se em algumas referecircncias sobre o

tema traccedilar um panorama sobre as organizaccedilotildees de esquerda das quais faziam parte ou

com que se relacionavam no momento de suas prisotildees

Finalmente o terceiro capiacutetulo visa analisar efetivamente a memoacuteria como

material para a histoacuteria Assim conforme elucidado por Fernando Catroga (2010) ao

buscar entender a escrita da histoacuteria como um rito de memoacuteria no sentido de lutar

contra o esquecimento e contra a corrosatildeo do tempo tal como ocorre em um ldquogesto de

sepulturardquo a histoacuteria eacute aqui escrita de forma a contribuir para que seja possiacutevel

caracterizar um passado que natildeo mais existe o do cotidiano do DOI-CODIRJ de 1970

Antes dessa caracterizaccedilatildeo a partir dos detalhes trazidos nos depoimentos sobre o

espaccedilo interno do preacutedio do 1ordm BPE conjugados agrave observaccedilatildeo minuciosa de sua fachada

que ateacute hoje ainda permanece preservada faz-se possiacutevel uma cartografia espacial do

local que sediou o DOI-CODIRJ Afinal esse entendimento da disposiccedilatildeo espacial do

referido edifiacutecio estaacute totalmente interligado com o cotidiano ali vivido por seus

prisioneiros logo eacute aqui entendido como essencial para a presente anaacutelise Feita esta

26

cartografia parte-se entatildeo para a caracterizaccedilatildeo do cotidiano vivido no DOI-CODIRJ

de 1970 Para tanto aleacutem da anaacutelise dos seis depoimentos a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos

DOI-CODI a constituiccedilatildeo da rede de entrevistas a trajetoacuteria dos entrevistados e suas

organizaccedilotildees de esquerda estudadas nos capiacutetulos anteriores satildeo incorporadas ao

estudo A partir disso vaacuterios aspectos do cotidiano prisional satildeo abordados tais como

o interrogatoacuterio e a tortura os primeiros momentos na prisatildeo as formas de resistecircncia

os encontros e as relaccedilotildees entre os presos nas celas as formas de lidar com o tempo as

roupas e as refeiccedilotildees

No decorrer dos trecircs capiacutetulos dessa dissertaccedilatildeo faz-se constante referecircncia a

siglas relativas ao tema em abordagem e agrave hierarquia das patentes do Exeacutercito Diante

disso ao final de todo o texto apresentado na parte dos anexos encontra-se o Glossaacuterio

de siglas (Anexo I) e a tabela A hierarquia do Exeacutercito Brasileiro (Anexo II)

A partir dessa configuraccedilatildeo geral pretende-se responder agraves questotildees acima

pontuadas a fim de corroborar algumas hipoacuteteses aqui levantadas

1) A formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo do aparato de seguranccedila interna que abrangia o DOI-

CODIRJ tiveram por base as teses sobre seguranccedila nacional montadas pela

ESG anos antes da ditadura militar a promulgaccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo

arbitraacuteria condescendente a abusos de poder gerada a partir dos primeiros anos

do governo militar bem como a tentativa de solucionar impasses ocasionados

por disputas que vinham ocorrendo no seio do Exeacutercito e por conseguinte

ameaccedilavam sua unidade institucional

2) O peso do presente (200204) teve um papel decisivo na maneira pela qual os

entrevistados construiacuteram a narrativa sobre o periacuteodo (1970) em que estiveram

presos no DOI-CODIRJ

3) As organizaccedilotildees de esquerda e as accedilotildees em que os ex-presos poliacuteticos

27

estiveram envolvidos antes de suas prisotildees influenciaram diretamente no grau

de violecircncia do cotidiano a que foram submetidos no DOI-CODIRJ

28

Capiacutetulo 1 ndash Os DOI-CODI formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo

Se no teu distrito

Tem farta sessatildeo

De afogamento chicote

Garrote e punccedilatildeo

A lei tem caprichos

O que hoje eacute banal

Um dia vai dar no jornal

Se manchas as praccedilas

Com teus esquadrotildees

Sangrando ativistas

Cambistas turistas peotildees

A lei abre os olhos

A lei tem pudor

E espeta o seu proacuteprio inspetor

Chico Buarque

(Hino da repressatildeo 1985)

29

A partir de 1970 os DOI-CODI (Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildeesndash

Centro de Operaccedilotildees de Defesa Interna) parte integrante do Sistema de Seguranccedila

Interna (SISSEGIN) passariam a ser a principal instituiccedilatildeo na repressatildeo aos opositores

da ditadura militar brasileira Seis desses opositores aprisionados no DOI-CODI do Rio

de Janeiro em meio ao primeiro ano de sua existecircncia tecircm na passagem por esse espaccedilo

prisional um elo fundamental entre suas memoacuterias Como essas memoacuterias satildeo o objeto

de estudo da presente dissertaccedilatildeo para melhor entendecirc-las primeiramente torna-se de

extrema importacircncia lanccedilar um olhar mais apurado sobre como foram construiacutedos e de

que forma atuavam os DOI-CODI Logo a anaacutelise sobre a criaccedilatildeo e o funcionamento

dessa instituiccedilatildeo eacute o objetivo desse primeiro capiacutetulo

Esta anaacutelise se estrutura a partir de trecircs frentes distintas 1) o debate

historiograacutefico 2) a monografia O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI)

do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e

perspectiva escrita em 1978 pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira

3) os depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de

Janeiro concedidos entre os anos de 2002 e 2004

Como dito a primeira frente de estudo analisa a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-

CODI agrave luz da historiografia Autores e conceitos foram selecionados tendo em vista

questotildees significativas para analisar a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI 1) o papel

da ESG para a criaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional 2) os conceitos de legalidade

autoritaacuteria e cizacircnia militar 3) a montagem e o funcionamento do SISSEGIN

Para abordar o papel da ESG na construccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional

parte-se da tese de Maria Helena Moreira Alves (2005) em que a autora defende a ideia

de que a institucionalizaccedilatildeo do Estado de Seguranccedila Nacional no Brasil se fez a partir

do papel determinante da Doutrina de Seguranccedila Nacional (DSN) construiacuteda pela

30

Escola Superior de Guerra (ESG) nos anos 1950 Entende-se que este destacado papel

da ideologia esguiana para a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional da ditadura

militar brasileira teve ligaccedilatildeo direta com a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI Afinal

com a DSN surge o conceito de seguranccedila interna que serve como base para a

montagem do aparelho repressivo ditatorial no qual os DOI-CODI duas deacutecadas

depois seriam inseridos

Os conceitos de legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar satildeo aqui utilizados como

ferramentas elucidativas por auxiliarem na anaacutelise de como durante os primeiros anos

de ditadura militar a imperativa forma de legislar o paiacutes e as crises que por disputas

poliacuteticas ameaccedilaram a unidade institucional militar foram essenciais para a formaccedilatildeo e

atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

Nesse sentido a legalidade autoritaacuteria assim designada por Anthony Pereira

(2010) eacute aqui utilizada para destacar de que forma a preocupaccedilatildeo da ditadura militar

brasileira em respaldar legalmente seus atos ainda que arbitrariamente propiciou um

respaldo legal agrave repressatildeo poliacutetica e por conseguinte aos DOI-CODI Logo este

conceito serve para iluminar o entendimento de que a formaccedilatildeo de um aparato de

seguranccedila interna forte centralizado e violento como os DOI-CODI foi possibilitado

respaldado e sustentado no Brasil por um significativo amparo legal A ditadura militar

atraveacutes dessa preocupaccedilatildeo legal atiacutepica a um regime de cunho totalitaacuterio reiterava sua

imagem de regime democraacutetico de exceccedilatildeo perante a sociedade e ao mesmo tempo

possibilitava a criaccedilatildeo de um dos maiores organismos repressores que uma ditadura da

Ameacuterica Latina jaacute havia criado os DOI-CODI

Outro conceito necessaacuterio para entender a construccedilatildeo do cenaacuterio legal que

propiciaria a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI eacute o de cizacircnia militar elaborado por

Martins Filho em sua tese de doutorado A dinacircmica militar das crises poliacuteticas na

31

ditadura (1964-1969) de 1993 em que o autor destaca os conflitos internos no seio

militar que acabariam resultando em dissidecircncias Ao analisar esses conflitos como fator

decisivo para a compreensatildeo dos rumos da ditadura Martins Filho apresenta uma

abordagem diferente da maioria dos estudiosos sobre o tema Ao inveacutes de partir de uma

suposta dicotomia entre dois grupos estanques divididos rigidamente entre a linha dura

e os castelistas apresenta uma visatildeo mais fluida de grupos militares que oscilavam na

forma de agir o palaacutecio representando os militares de altas patentes ocupantes de

cargos poliacuteticos e a caserna militares de patentes meacutedias que trabalhavam nas

instituiccedilotildees militares Esta abordagem eacute crucial para o presente trabalho uma vez que a

base da formaccedilatildeo e da atuaccedilatildeo dos DOI-CODI estava diretamente relacionada agraves

cizacircnias militares e seus decorrentes acontecimentos poliacuteticos Afinal apesar dos DOI-

CODI serem uma instituiccedilatildeo composta por militares das mais diversas posiccedilotildees

hieraacuterquicas a sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo foram estruturadas a partir principalmente de

reivindicaccedilotildees da caserna que com a implantaccedilatildeo dos DOI-CODI passou a ter poderes

poliacuteticos extraordinaacuterios jaacute que se tornava responsaacutevel pelas accedilotildees de prisotildees

apreensotildees e interrogatoacuterios dos perseguidos poliacuteticos

Finalmente para analisar a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Interna o

SISSEGIN composto entre outros pelos DOI-CODI partimos da anaacutelise feita por

Carlos Fico em sua obra Como eles agiam de 2001 Ao ter acesso a documentos

sigilosos sobre a formaccedilatildeo do SISSEGIN e a regulamentaccedilatildeo operacional dos DOI-

CODI Fico caracteriza de forma ineacutedita na historiografia a formaccedilatildeo e o

funcionamento de ambos os oacutergatildeos sendo portanto um referencial historiograacutefico

indispensaacutevel agrave minha pesquisa

Ainda no que toca agrave formaccedilatildeo do SISSEGIN e dos DOI-CODI tambeacutem eacute de

grande valia a tese exposta por Maria Celina DrsquoArauacutejo em Os anos de Chumbo a

32

memoacuteria militar sobre a repressatildeo (1994) de que assim como em qualquer instituiccedilatildeo

militar era alto o grau de hierarquia e coordenaccedilatildeo presente nos DOI-CODI o que natildeo

impedia no entanto que houvesse brechas para uma perda de controle institucional

Logo uma das peculiaridades da atuaccedilatildeo dos DOI-CODI entendido pela a autora como

uma espeacutecie de sofisticaccedilatildeo da repressatildeo era a convivecircncia da obediecircncia hieraacuterquica

militar com a falta de controle sobre algumas accedilotildees deixando que procedimentos natildeo

regulamentares tais como a tortura pudessem ser efetivados com recorrecircncia

A segunda e a terceira frentes de estudo do presente capiacutetulo analisam as visotildees de

atores que de uma forma ou de outra viveram em algum dos DOI-CODI Portanto

diferentes do debate historiograacutefico que tem particular distanciamento analiacutetico do

objeto e preza por se aproximar da imparcialidade e tambeacutem diferentes entre si essas

fontes satildeo influenciadas por seus atoresnarradores e pelas eacutepocas em que foram

construiacutedas

Na segunda frente pode-se dizer que a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI satildeo

analisadas a partir dos proacuteprios DOI-CODI jaacute que nessa etapa debruccedila-se sobre o

estudo O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do Exeacutercito Brasileiro

Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo de um de seus agentes diretos o coronel de

cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira Conhecido entre os presos poliacuteticos do DOI do Rio

de Janeiro do iniacutecio dos anos 1970 como o torturador de codinome ldquoNagibrdquo coronel

Pereira apresentou a referida monografia agrave Escola de Comando e Estado Maior do

Exeacutercito (ECEME) em 1978 quando os DOI-CODI apesar de atuantes jaacute estavam em

decadecircncia Tratava-se de uma eacutepoca em que o presidente Ernesto Geisel comandava a

abertura poliacutetica ldquolenta gradual e segurardquo do paiacutes e vinha diminuindo o poder delegado

aos DOI-CODI que passavam a ter o seu pessoal reduzido e suas accedilotildees apenas voltadas

agrave espionagem e natildeo mais ao combate direto de opositores poliacuteticos jaacute que devido agraves

33

inuacutemeras denuacutencias sobre violaccedilotildees aos Direitos Humanos no Brasil era forte o

desgaste que a ditadura sofria perante a comunidade internacional Em meio a esse

cenaacuterio o coronel em questatildeo construiu tal monografia motivado a por um lado provar

a importacircncia e a necessidade do trabalho de repressatildeo feito nos DOI-CODI e assim

tentar reverter a reduccedilatildeo de suas atividades e por outro conseguir uma promoccedilatildeo na

carreira militar visto que a ECEME eacute uma escola destinada agrave preparaccedilatildeo de oficiais

superiores para o exerciacutecio de funccedilotildees de Estado-Maior A partir disso essa monografia

apresenta dados representativos do poder coercitivo dos DOI do iniacutecio dos anos 1970

bem como a descriccedilatildeo dos afazeres de cada uma de suas seccedilotildees o que traz uma forte

contribuiccedilatildeo para a anaacutelise aqui traccedilada

Por fim na terceira e uacuteltima frente a anaacutelise da formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-

CODI eacute efetuada por meio de outro tipo de fonte que tem por base a memoacuteria os

depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de Janeiro a

mim fornecidos entre os anos de 2002 e 2004 Como essas entrevistas foram concedidas

durante a passagem dos governos dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso

(1995-2002) e Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva (2003-2010) ex-perseguidos poliacuteticos da

ditadura militar que entre seus feitos agrave frente da poliacutetica brasileira agiram no sentido

de reparar danos sofridos pelos perseguidos poliacuteticos daquele periacuteodo esse presente

nelas imprimiu fortes influecircncias Afinal trata-se de memoacuterias sobre o passado vivido

em uma das instituiccedilotildees de repressatildeo mais violentas da eacutepoca o DOI-CODIRJ

construiacutedas a partir de um presente em que jaacute vigorava a lei nordm 9140 de 1995 que

reconhecia mortos e desaparecidos pela ditadura militar e indenizava suas famiacutelias e

havia sido aprovada a lei nordm 10559 de 2002 que reparava financeiramente aqueles que

tivessem sofrido perseguiccedilatildeo ou maus tratos dentro de instituiccedilotildees do Estado durante o

periacuteodo de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988

34

Percebe-se claramente a ideia de presente do passado de Robert Frank (1999)

como um dos principais aspectos criacuteticos aqui aplicados a essas memoacuterias Afinal o

fato de durante o periacuteodo em que se deram as entrevistas conhecidos opositores agrave

ditadura militar estarem agrave frente do governo brasileiro e grande nuacutemero de ex-

prisioneiros poliacuteticos inclusive os entrevistados buscarem se beneficiar da lei nordm

1055902 faz com que o presente seja aqui considerado o elemento organizador dessas

memoacuterias

Essa perspectiva de presente do passado eacute portanto um dos elementos criacuteticos

aplicados a essas memoacuterias que sobre elas trabalham a fim de aqui tornaacute-las objeto da

histoacuteria Dessa forma percebe-se na presente anaacutelise a perspectiva elucidada por Pierre

Nora (1993) ao diferir o trabalho da memoacuteria do trabalho da histoacuteria Afinal o que os

diferencia satildeo justamente os aspectos fluidos da memoacuteria tais como as emoccedilotildees e as

influecircncias conjunturais a que estaacute a todo tempo submetida que aqui satildeo minimizados

pelos aspectos criacuteticos objetivos e analiacuteticos peculiares agrave histoacuteria

35

1 Debate Historiograacutefico

11 O papel da ESG para o Sistema de Seguranccedila Nacional

O golpe civil-militar ocorrido no Brasil em 31 de marccedilo de 1964 quando o

presidente Joatildeo Goulart foi deposto e se instalou um regime militar no paiacutes teria sido

precedido por uma elaborada desestabilizaccedilatildeo poliacutetica que de acordo com Maria Helena

Moreira Alves (2005) envolveu tanto corporaccedilotildees multinacionais o governo dos

Estados Unidos quanto o capital brasileiro associado-dependente e os militares

brasileiros destacando-se entre esses um grupo de oficiais da Escola Superior de Guerra

(ESG) Essa ldquoconspiraccedilatildeordquo foi efetivada anos antes ainda no iniacutecio dos anos 1950 por

instituiccedilotildees civis como o Instituto Brasileiro de Accedilatildeo Democraacutetica (IBAD) e o Instituto

de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) sob a coordenaccedilatildeo da ESG A Doutrina de

Seguranccedila Nacional e Desenvolvimento (DSN) ministrada pela mesma Escola era a

justificativa ideoloacutegica perfeita para a tomada do poder e para o autoritarismo como

uma forma de governo

Um dos criadores dessa doutrina Golbery do Couto e Silva era desde 1952

adjunto do Departamento de Estudos da ESG estabelecimento subordinado ao Estado

Maior das Forccedilas Armadas (EMFA) criado em 1948 com a assistecircncia de consultores

franceses e norte-americanos a fim de desenvolver e consolidar os conhecimentos

necessaacuterios para o exerciacutecio das funccedilotildees de direccedilatildeo e para o planejamento da Seguranccedila

Nacional Dentro da ESG Golbery encontrou condiccedilotildees favoraacuteveis para impulsionar

teses que defenderiam o ecircxito de um projeto global de desenvolvimento em cujas

tarefas o Estado deveria se associar agrave iniciativa privada atraveacutes do apoio intermediaacuterio

de uma elite tecnocraacutetica civil e militar ideologicamente comprometida com um

conjunto de ldquoobjetivos nacionais permanentesrdquo garantindo assim a Seguranccedila

Nacional Essas teses vieram posteriormente a constituir a base do programa da ESG

36

passando a ser conhecidas pela Doutrina de Seguranccedila Nacional (DSN) A DSN

sustentava ainda em meio agrave Guerra Fria o posicionamento do Brasil ao lado do

Ocidente logo em confronto com o bloco sovieacutetico considerando a preservaccedilatildeo da

seguranccedila o fator fundamental de promoccedilatildeo do desenvolvimento Previa dessa forma a

possiacutevel supressatildeo de alguns valores definidores da ordem democraacutetica devido agrave

necessidade de uma progressiva centralizaccedilatildeo de poderes

Para Moreira Alves o grande feito do ldquocomplexo ESGIPESIBADrdquo foi a criaccedilatildeo

antes do golpe de 1964 de uma rede de informaccedilotildees e de uma Doutrina de Seguranccedila

Nacional e Desenvolvimento ambas coordenadas por Golbery para nortear o que viria

a ser um Estado efetivamente centralizado Essa tese eacute sustentada ao se notar que o

general Castelo Branco como primeiro presidente do Estado ditatorial brasileiro

compocircs seus ministeacuterios quase totalmente com membros e colaboradores do complexo

ESGIPESIBAD A DSN passou entatildeo a ser utilizada para moldar as estruturas de

Estado impor formas especiacuteficas de controle para a sociedade civil e delinear um

projeto de governo para o Brasil Assim com destaque para a seguranccedila interna

ameaccedilada pelo comunismo a Doutrina de Seguranccedila Nacional passou a induzir ao

abuso de poder a prisotildees arbitraacuterias agrave tortura e agrave censura agrave imprensa e agraves artes de

forma geral

Eacute interessante perceber que a formulaccedilatildeo da DSN feita pela ESG em colaboraccedilatildeo

com o IPES e o IBAD ao longo de 25 anos tinha como base uma teoria de guerra que

nortearia a atuaccedilatildeo repressora do governo militar A partir do Manual Baacutesico da Escola

Superior de Guerra e dos escritos de Golbery do Couto e Silva em Conjuntura Poliacutetica

Nacional o poder executivo amp a geopoliacutetica do Brasil Moreira Alves destaca os tipos

de guerra apresentados pela Doutrina guerra total guerra limitada ou localizada

guerra revolucionaacuteria ou insurrecional guerra indireta ou ideoloacutegica

37

De acordo com estes paracircmetros a teoria da guerra total baseava-se na estrateacutegia

militar da Guerra Fria deixando de ser estritamente militar para ser tambeacutem econocircmica

financeira poliacutetica psicoloacutegica e cientiacutefica atingindo o mundo de forma global Logo

como as potecircncias envolvidas natildeo podiam travar uma guerra ativa pois existia a

possibilidade de uma destruiccedilatildeo completa e universal a guerra total passou a assumir

diversas formas Ela se destrinchava em guerras limitadas ou localizadas pelas quais as

duas superpotecircncias mediam suas respectivas capacidades de controlar territoacuterios Aleacutem

disso havia as guerras declaradas consideradas claacutessicas e as natildeo-declaradas que

correspondiam agraves formas de guerra revolucionaacuteria ou insurrecional

Essas guerras natildeo-declaradas ou natildeo-claacutessicas representavam uma guerra de

agressatildeo indireta A insurrecional eacute caracterizada como um conflito interno em que

parte da populaccedilatildeo armada busca a deposiccedilatildeo do governo Jaacute a guerra revolucionaacuteria

natildeo envolve necessariamente o emprego da forccedila armada mas significa um conflito

normalmente interno estimulado ou auxiliado do exterior inspirado normalmente em

uma ideologia e que visa agrave conquista do poder pelo controle progressivo da naccedilatildeo A

guerra revolucionaacuteria se referia portanto agrave infiltraccedilatildeo comunista internacional

associada ao bloco sovieacutetico Neste tipo de guerra a guerra ideoloacutegica substituiacutea a

convencional entendida como o enfrentamento direto entre Estados em suas fronteiras

geograacuteficas A caracteriacutestica principal da guerra revolucionaacuteria de acordo com o

Manual Baacutesico da ESG era o envolvimento da populaccedilatildeo do paiacutes-alvo por meio da

conquista ideoloacutegica

[] abrangendo desde a exploraccedilatildeo dos descontentamentos existentes com o

acirramento de acircnimos contra as autoridades constituiacutedas ateacute a organizaccedilatildeo

de zonas dominadas com o recurso agrave guerrilha ao terrorismo e outras taacuteticas

irregulares onde o proacuteprio nacional do paiacutes-alvo eacute utilizado como

combatente (Alves 2005 45)

38

Como a guerra revolucionaacuteria recrutava seus combatentes secretamente toda a

populaccedilatildeo tornava-se suspeita e portanto deveria ser cuidadosamente controlada para

que os ditos ldquoinimigos internosrdquo pudessem ser neutralizados A partir desse

entendimento de guerra revolucionaacuteria que segundo a ESG assombrava o paiacutes cria-se a

necessidade de um planejamento de Seguranccedila Nacional adaptado a essa conjuntura e

por conseguinte de um eficiente e centralizado aparato de informaccedilotildees internas

A partir disso a Constituiccedilatildeo de 1967 criou o Conselho de Seguranccedila Nacional

oacutergatildeo da Presidecircncia da Repuacuteblica responsaacutevel por supervisionar a defesa da seguranccedila

interna e principalmente modificou o significado de Seguranccedila Nacional que desde a

Constituiccedilatildeo de 1946 era associado agrave agressatildeo externa ou seja agrave defesa das fronteiras

territoriais A ameaccedila agrave Seguranccedila Nacional passava entatildeo a ser oficialmente definida

mais como uma ameaccedila agraves fronteiras ideoloacutegicas do que agraves territoriais Portanto ao criar

o Conselho de Seguranccedila Nacional e mudar o entendimento sobre a Seguranccedila

Nacional a Constituiccedilatildeo de 1967 abria o caminho necessaacuterio agrave adaptaccedilatildeo agrave teoria de

seguranccedila interna estipulada anos antes pela ESG

Esta teoria de seguranccedila interna dotou entatildeo o Estado de justificativa para

controlar e reprimir a populaccedilatildeo em geral O caraacuteter oculto da ameaccedila interna tornou

praticamente impossiacutevel se estabelecer limites para as accedilotildees repressivas do Estado e dos

militares e por isso mesmo fragilizou a defesa dos direitos humanos no paiacutes Afinal

todo cidadatildeo passava a ser culpado ateacute que fosse provada a sua inocecircncia Por meio

desse pensamento a raiz dos abusos de poder perpetrados pelo Estado se estruturou Por

isso defende-se aqui que a institucionalizaccedilatildeo dessa crenccedila no inimigo interno criada

pela ESG antes mesmo do golpe civil-militar estimulou a ditadura a nortear o

desenvolvimento das suas estruturas defensivas da sua articulada rede de informaccedilotildees

poliacuteticas e ainda do seu aparato repressivo de controle armado onde os DOI-CODI a

39

partir de 1970 tambeacutem estariam inseridos

12 Os conceitos legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar

Essa crenccedila no inimigo interno criada pela ESG norteou a Seguranccedila Nacional

durante a ditadura militar que se substanciou atraveacutes da alta legalidade autoritaacuteria e

das medidas criadas pelo governo como forma de conter as cizacircnias militares Esses trecircs

fatores juntos contribuiacuteram para consolidaccedilatildeo dos DOI-CODI por todo paiacutes

respaldando a atuaccedilatildeo altamente autoritaacuteria e violenta desses oacutergatildeos

A partir disso o conceito de legalidade autoritaacuteria construiacutedo pelo cientista

poliacutetico norte-americano Anthony Pereira (2010) ajuda a evidenciar como a existecircncia

de laccedilos entre o autoritarismo e o estado de direito do regime militar no Brasil ajudou na

configuraccedilatildeo de uma instituiccedilatildeo como o DOI-CODI Afinal a legalidade autoritaacuteria

identifica as coexistecircncias entre o autoritarismo ditatorial e a continuidade das

instituiccedilotildees juriacutedicas anteriores ao Golpe bem como entre o autoritarismo ditatorial e a

praacutetica de elaboraccedilatildeo de leis ainda que tambeacutem autoritaacuterias

Percebe-se assim que o Brasil obteve um alto grau de legalidade autoritaacuteria na

medida em que a legislaccedilatildeo foi amplamente arbitrada pelo Poder Executivo como forma

de legalizar arbitrariedades poliacuteticas e suprimir direitos da populaccedilatildeo Assim foi

construiacuteda uma sustentaccedilatildeo juriacutedica e poliacutetica necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um aparato de

seguranccedila cada vez mais forte e centralizado que garantiu a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos

DOI-CODI

Afinal a legalidade autoritaacuteria vivenciada no Brasil se baseava na confecccedilatildeo pelo

Poder Executivo de leis publicadas em meios de comunicaccedilatildeo oficiais a fim de

respaldar arbitrariedades A partir dessas leis instrumento associado ao sistema

democraacutetico o governo militar centralizava e reforccedilava o seu poder ditatorial tornando

40

nebuloso o sistema em vigor naquele momento no Brasil Ou seja apesar da existecircncia

de uma ditadura militar consolidada havia integraccedilatildeo entre as Forccedilas Armadas e o

Poder Judiciaacuterio ndash que norteava os seus julgamentos pelas novas leis arbitraacuterias

legitimando-as ndash bem como a manutenccedilatildeo do Congresso em funcionamento na maior

parte do tempo Dessa forma a legalidade autoritaacuteria era um elo entre o autoritarismo

ditatorial e o estado de direito conseguindo fazer parecer por algum tempo que o paiacutes

vivenciava um sistema democraacutetico excepcional A praacutetica da legalidade autoritaacuteria na

forma de atos institucionais da Constituiccedilatildeo de 1967 e de leis de Seguranccedila Nacional

por exemplo forneceu os suportes legais necessaacuterios agrave construccedilatildeo do SISSEGIN e agrave

formaccedilatildeo e agrave atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

Aleacutem disso essa praxe da ditadura de agir por meio de leis arbitraacuterias na maior

parte das vezes se relaciona com as cizacircnias militares provocadas no seio dessa

instituiccedilatildeo como reflexos de acontecimentos poliacuteticos Afinal grande parte das leis

autoritaacuterias foram artifiacutecios usados como forma de acalmar os acircnimos na caserna

formada por militares de meacutedias e baixas patentes que reivindicavam mais poder

poliacutetico Assim para conter a oposiccedilatildeo poliacutetica e tambeacutem as reivindicaccedilotildees de poder da

caserna desenharam-se leis arbitraacuterias capazes de suportar um organismo de repressatildeo

onde esses militares trabalhariam com certa autonomia tal como viriam a ser os DOI-

CODI Logo percebe-se aqui que juntamente com a legalidade autoritaacuteria a leitura

dos encaminhamentos poliacutetico-militares feita por Joatildeo Roberto Martins Filho (1993)

sob a luz de conceitos como o de cizacircnias militares baseadas em dissidecircncias militares

internas entre o palaacutecio e a caserna tambeacutem ilumina o entendimento sobre a formaccedilatildeo

e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

Tais encaminhamentos poliacuteticos militares tecircm iniacutecio no dia 9 de abril dez dias

apoacutes o golpe civil-militar de 1964 e ainda antes da posse de Castelo Branco em 15 de

41

abril quando o Comando Supremo da Revoluccedilatildeo baixou um ato institucional

posteriormente conhecido como AI-1 que conferia aos militares o poder de puniccedilatildeo a

crimes de cidadatildeos contra o Estado seu patrimocircnio e contra a ordem poliacutetica e social

No entanto o AI-1 previa tambeacutem a possibilidade de passar este poder para as matildeos do

novo presidente da Repuacuteblica dois meses apoacutes a sua posse colocando oficialmente o

Poder Executivo acima dos demais Assim Costa e Silva integrante do Comando e

futuro ministro da Guerra fez expedir um pouco antes da posse de Castelo Branco em

complemento ao AI-1 o Ato do Comando Supremo da Revoluccedilatildeo nordm 9 e a Portaria nordm1

que davam continuidade ao poder de puniccedilatildeo dos militares mesmo depois da posse de

Castelo Branco Com isso foram criadas as condiccedilotildees para que coroneacuteis tenentes-

coroneacuteis majores e capitatildees6 continuassem agindo na caccedila ao ldquoinimigo internordquo

O Ato do Comando Supremo da Revoluccedilatildeo nordm 9 estabelecia que os militares

encarregados de inqueacuteritos e processos (de suspensotildees de direitos poliacuteticos cassaccedilotildees

de mandatos etc) poderiam delegar atribuiccedilotildees referentes a investigaccedilotildees bem como

requisitar inqueacuteritos ou sindicacircncias instituiacutedas por outras esferas Jaacute a Portaria nordm1

determinava a abertura de Inqueacuterito Policial Militar (IPM) para apuraccedilatildeo de crimes

praticados contra o Estado e a ordem poliacutetica social

No entanto no dia 15 de junho de 1964 juntamente com o teacutermino da validade do

AI-1 acabaria tambeacutem o prazo dos militares cassarem mandatos e suspenderem direitos

poliacuteticos Tais militares requisitaram que o poder a eles concedido natildeo fosse cessado o

que foi negado pelo entatildeo presidente Castelo A partir disso a insatisfaccedilatildeo desses

militares acabou por causar o surgimento de uma primeira e consideraacutevel discoacuterdia

interna agrave instituiccedilatildeo militar uma primeira cizacircnia militar A partir dessa situaccedilatildeo de

conflito surge entatildeo a chamada linha dura que se formou atraveacutes do eco que um

6 Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II

42

conjunto de pressotildees da jovem oficialidade nessa fase inicial da ditadura encontrou em

meio a alguns ldquoherdeiros civisrdquo do regime e em setores da hierarquia militar Dessa

forma a linha dura foi formada por grupos heterogecircneos de composiccedilatildeo variaacutevel e

ideologia difusa

Logo assim como Martins Filho e diferentemente da interpretaccedilatildeo de grande

parte dos historiadores acredita-se que mesmo em termos ideoloacutegicos a linha dura

estava longe de ser um grupo homogecircneo tendo por denominador comum apenas duas

caracteriacutesticas

Em primeiro lugar as reivindicaccedilotildees de maior rigor na ldquodepuraccedilatildeordquo do

sistema poliacutetico em segundo lugar as expectativas de influenciar

diretamente o processo de tomadas de decisotildees do governo militar Tanto em

um como em outro aspecto suas accedilotildees provocariam problemas para o

governo de Castelo Branco (Martins Filho 1993 61)

Portanto o governo Castelo Branco logo teve que se deparar com a questatildeo da

participaccedilatildeo poliacutetica do conjunto da categoria militar no regime ditatorial Sem atribuir

ao presidente uma visatildeo mais liberal ndash diferentemente daqueles que interpretam as

medidas mais ldquodurasrdquo de Castelo como resultado das pressotildees da linha dura ndash pondera-

se aqui que por parte do governo o redirecionamento de objetivos iniciais era

recorrente sempre que a situaccedilatildeo exigia uma reavaliaccedilatildeo Dessa forma percebe-se que

os rumos poliacuteticos escolhidos pela ditadura tinham como finalidade a preservaccedilatildeo da

hierarquia e da aparente homogeneidade da instituiccedilatildeo castrense o que demandava a

contenccedilatildeo das instabilidades internas

A partir dessa perspectiva destaca-se o caraacuteter flutuante dos conflitos internos ao

regime decorrentes da incompatibilidade de interesses poliacuteticos entre os militares de

altas patentes que possuiacuteam cargos no governo ditatorial representados

43

metaforicamente pelo palaacutecio e militares de meacutedias e baixas patentes que eram

responsaacuteveis por serviccedilos internos a caserna Nesse sentido evidencia-se por exemplo

que apoacutes ser retirado da caserna o poder de cassaccedilatildeo de mandatos e de suspensatildeo de

direitos poliacuteticos as derrotas dos candidatos aliados ao regime ditatorial nas eleiccedilotildees

para governador nos estados da Guanabara e de Minas Gerais em outubro de 1965

ocasionou uma forte divergecircncia entre o palaacutecio e a caserna resultando uma

instabilidade castrense que desembocou em mais uma cizacircnia militar Diante disso na

tentativa de apaziguar a instabilidade militar e por conseguinte os acircnimos da caserna

no fim desse mesmo mecircs Castelo Branco decretaria o AI-27 com vigecircncia prevista ateacute

15 de marccedilo de 1967

Afinal atraveacutes desse Ato a caserna aleacutem de passar a influir no acircmbito da poliacutetica

comeccedilava a ganhar poderes extras Nele se estabelecia a possibilidade de suspensatildeo de

direitos poliacuteticos e de cassaccedilatildeo de mandatos de parlamentares imposiccedilatildeo da eleiccedilatildeo

indireta para a Presidecircncia da Repuacuteblica permissatildeo para o presidente da Repuacuteblica

decretar o recesso do Congresso Nacional e das demais casas legislativas extinccedilatildeo de

partidos poliacuteticos delegaccedilatildeo ao presidente da Repuacuteblica do poder de legislar por

decretos-leis estabelecimento de foro especial militar para civis acusados de crimes

contra a Seguranccedila Nacional ou as instituiccedilotildees militares suspensatildeo das garantias de

vitaliciedade inamovibilidade (dos juiacutezes) e de estabilidade (dos servidores puacuteblicos)

ampliaccedilatildeo de 11 para 16 ministros do Supremo Tribunal Federal (Ato Institucional Nordm2

27 out 1965)

Com a cassaccedilatildeo de mandatos suspensatildeo de direitos poliacuteticos e demissatildeo de

funcionaacuterios puacuteblicos a caserna conseguia alguma interferecircncia nos assuntos poliacuteticos

e com a decretaccedilatildeo de foro militar especial para civis acusados de crimes contra a

7 Para mais informaccedilotildees sobre o AI-2 ver BRASIL Ato Institucional Nordm2 de 27 de outubro de 1965

44

Seguranccedila Nacional ou instituiccedilotildees militares comeccedilava a ganhar um espaccedilo proacuteprio e

aos poucos formar um grupo disposto a agir por sua conta sem maiores consideraccedilotildees

pelas normas legais tendendo a fazer valer suas ideias pela forccedila A futura comunidade

de seguranccedila comeccedilava entatildeo a ser desenhada e a formar o caraacuteter e a atuaccedilatildeo dos

futuros membros de seus oacutergatildeos A montagem do sistema de seguranccedila interna em que

os DOI-CODI seriam inseridos iria a partir das primeiras leis das desavenccedilas internas

e da deflagraccedilatildeo dos primeiros Atos Institucionais se tornando viaacutevel

Entretanto mesmo apoacutes o AI-2 a crise no regime castrense continuava A

caserna ansiosa por mais espaccedilo poliacutetico comeccedilava a se organizar para a ascensatildeo de

outra forccedila ao governo se articulando em torno do entatildeo ministro da Guerra o general

Costa e Silva A desuniatildeo hieraacuterquica provocada pela disputa sucessoacuteria se configurava

naquele momento como um importante fator da crise do regime militar Em meio a este

clima de tensatildeo Castelo Branco e seus partidaacuterios os ditos castelistas se preocupavam

com a ldquoinstitucionalizaccedilatildeo da revoluccedilatildeordquo Diante dessa configuraccedilatildeo a ldquorevoluccedilatildeo

castelistardquo de fato acabou sendo implantada pelo presidente e os pilares de seu

processo foram a Lei de Seguranccedila Nacional e a Constituiccedilatildeo de 1967

A Carta de 1967 incorporou boa parte das medidas autoritaacuterias estabelecidas pelos

atos institucionais Entre essas as que instituiacuteam que toda pessoa natural ou juriacutedica

seria responsaacutevel pela Seguranccedila Nacional nos limites definidos em lei e que o foro

militar previsto no AI-2 por limitado periacuteodo de tempo ficaria definitivamente

estendido aos civis por tempo indeterminado nos casos de crimes contra a Seguranccedila

Nacional Jaacute a Lei de Seguranccedila Nacional reflexo tambeacutem do caraacuteter ldquodurordquo do final do

governo Castelo transformava em legislaccedilatildeo a Doutrina de Seguranccedila Nacional da

ESG legalizando a concepccedilatildeo de ldquoguerra internardquo e de ldquosubversatildeordquo dois dias antes da

chegada de Costa e Silva ao poder presidencial Essas uacuteltimas medidas do governo de

45

Castelo merecem aqui destaque por significarem um impulso agrave criaccedilatildeo de um setor

voltado para a repressatildeo poliacutetica seara em que os DOI-CODI atuariam anos agrave frente

Assim em meio a um clima anti-castelista em 15 de marccedilo de 1967 Costa e

Silva assume o governo militar prometendo inclusive uma maior humanizaccedilatildeo da

poliacutetica Entretanto com a eclosatildeo de protestos de rua contra a violecircncia ditatorial o

novo presidente logo retomaria o aspecto ldquorevolucionaacuteriordquo do regime militar e

decretaria o Ato Institucional Nordm5 (AI-5) 8

Afinal a partir dos discursos do deputado

Maacutercio Moreira Alves evocando os brasileiros a natildeo comparecerem ao tradicional

desfile do dia sete de setembro daquele ano de 1968 Costa e Silva e o palaacutecio passaram

a ser extremamente pressionados pela caserna a reagir A recusa da Cacircmara dos

Deputados em abrir um processo para cassaccedilatildeo do entatildeo deputado foi a justificativa

necessaacuteria para que o presidente convocasse a cuacutepula do aparelho militar e os juristas

palacianos para darem forma ao AI-5 vindo a decretaacute-lo na noite do dia 13 de dezembro

de 1968

Percebe-se que a conjuntura de 1968 iniciado com os protestos estudantis de

massa tornou pela primeira vez desde o golpe de 1964 momentaneamente unificado o

movimento de repuacutedio de expressivos setores sociais ao avanccedilo da repressatildeo militar

Este fato que a princiacutepio pode fazer crer ter estimulado uma desuniatildeo militar parece

ter sido um fator adicional de uniatildeo das Forccedilas Armadas As tensotildees internas agrave

instituiccedilatildeo portanto foram neste momento colocadas em suspenso e a situaccedilatildeo militar

diante da ofensiva da oposiccedilatildeo teria criado uma espeacutecie de unidade de crise Poreacutem

esta unidade de crise das Forccedilas Armadas rapidamente se fragmentou trazendo agrave tona

novamente em meados de 1968 um variado e complexo conjunto de tensotildees no campo

militar Esta unidade no entanto voltaria a existir em torno da decretaccedilatildeo do AI-5 apoacutes

8 Para mais informaccedilotildees sobre o AI-5 ver BRASIL Ato Institucional Nordm5 de 13 de dezembro de 1968

46

a derrota na votaccedilatildeo no Congresso e quando as pressotildees da caserna em prol da

militarizaccedilatildeo do governo se voltaram para o palaacutecio

Nesse momento os generais do governo se sentiram muito mais ameaccedilados do

que na jaacute mencionada instabilidade gerada pelas derrotas nas eleiccedilotildees para governador

de 1965 O fato da oficialidade rebelde de entatildeo natildeo ter um porta-voz em postos de

comando como era na eacutepoca Costa e Silva e por isso parecer mais difusa a tornava

mais ameaccediladora agrave integridade da instituiccedilatildeo militar Assim a explicaccedilatildeo para

juntamente com a caserna os generais cobrarem do Ministro do Exeacutercito uma imediata

tomada de decisatildeo em favor da ldquoRevoluccedilatildeordquo estava portanto na busca pela

permanecircncia de uma unidade das Forccedilas Armadas Dessa forma momentos antes do AI-

5 a unidade da crise novamente se formou soacute que dessa vez por motivos inerentes

unicamente agrave proacutepria instituiccedilatildeo militar (Martins Filho 1993 158-174)

O AI-5 foi ateacute entatildeo a maior expressatildeo legal do autoritarismo da ditadura militar

e construiu uma base essencial para que em 1970 surgissem os DOI-CODI Afinal

aleacutem de natildeo estabelecer um prazo final para sua vigecircncia inovando em relaccedilatildeo aos

demais Atos Institucionais o AI-5 tornou legal a suspensatildeo da garantia de ldquohabeas

corpusrdquo nos casos de crimes poliacuteticos contra a Seguranccedila Nacional Logo a partir

desse Ato foram estabelecidas as condiccedilotildees necessaacuterias para a institucionalizaccedilatildeo dos

sistemas de seguranccedila e de informaccedilotildees bem como o surgimento da Comissatildeo Geral de

Investigaccedilotildees (CGI) na tentativa de combate agrave corrupccedilatildeo O sistema de seguranccedila

esboccedilado naquele momento buscava o aperfeiccediloamento sob a eacutegide da ldquoguerra

revolucionaacuteriardquo mencionada no preacircmbulo do proacuteprio AI-5

Considerando que assim se torna imperiosa a adoccedilatildeo de medidas que

impeccedilam que sejam frustrados os ideais superiores da Revoluccedilatildeo

preservando a ordem a seguranccedila a tranquilidade o desenvolvimento

econocircmico e cultural e a harmonia poliacutetica e social do Paiacutes comprometidos

47

por processos subversivos e de guerra revolucionaacuteria (Ato Institucional nordm

5 13 dez 1968)

Logo as cizacircnias militares e a legislaccedilatildeo a elas relacionada contribuiacuteram para a

formaccedilatildeo do cenaacuterio propiacutecio agrave institucionalizaccedilatildeo do aparato de repressatildeo Aparato este

que a partir do AI-5 foi se estruturando em trecircs grandes sistemas o SISNI Sistema

Nacional de Informaccedilotildees a CGI Comissatildeo Geral de Investigaccedilotildees e o SISSEGIN

Sistema de Seguranccedila Interna Este ao ser criado abriria espaccedilo para a repressatildeo

poliacutetica centralizada e institucionalizada dos DOI-CODI

13 A montagem e o funcionamento do SISSEGIN

Ao longo dos anos 70 os DOI-CODI passariam a ser os principais oacutergatildeos de

atuaccedilatildeo do SISSEGIN e um dos pontos centrais do aparelho de repressatildeo brasileiro Ao

seu lado em outras esferas de competecircncia estavam os oacutergatildeos do Sistema Nacional de

Informaccedilotildees (SISNI) e os da Comissatildeo Geral de Investigaccedilatildeo (CGI) Cada um desses

sistemas possuiacutea uma competecircncia especiacutefica o SISNI era responsaacutevel por buscar as

informaccedilotildees necessaacuterias agrave manutenccedilatildeo do regime de Seguranccedila Nacional procurando

desvendar quem eram os opositores ao governo os chamados ldquoinimigos internosrdquo

enquanto a CGI buscava o combate agrave corrupccedilatildeo no serviccedilo puacuteblico Jaacute o SISSEGIN

operava de forma centralizada tanto na investigaccedilatildeo quanto na apreensatildeo dos mesmos

ldquoinimigos internosrdquo

Para a anaacutelise do SISSEGIN vale-se aqui do trabalho de Carlos Fico Como eles

agiam (2001) feito com base no acervo da extinta Divisatildeo de Seguranccedila e Informaccedilotildees

do Ministeacuterio da Justiccedila inclusive nos documentos sigilosos Afinal nesse estudo Fico

revela em detalhes o que nenhum outro historiador havia conseguido ateacute entatildeo a

48

formaccedilatildeo e o funcionamento das comunidades de informaccedilotildees e de seguranccedila da

ditadura militar brasileira

A partir disso destaca-se aqui que a estrutura e o funcionamento do SISSEGIN

foram instituiacutedos e regulamentados por meio de decretos sigilosos O mesmo padratildeo de

regulamentaccedilatildeo foi seguido pela Operaccedilatildeo Bandeirantes (Oban) instituiccedilatildeo informal

criada em Satildeo Paulo em julho de 1969 bem como pelos DOI-CODI instituiacutedos no

primeiro semestre de 1970 formalizando a experiecircncia da Oban e espalhando-a por

todas as Regiotildees Militares do Brasil Jaacute que eacute atraveacutes dessas Regiotildees que o Exeacutercito

divide geograficamente sua administraccedilatildeo sobre o territoacuterio brasileiro foi tambeacutem por

meio delas que partiu durante parte da ditadura militar as responsabilidades territoriais

dos DOI-CODI Logo o DOI-CODI do Rio de Janeiro ficava responsaacutevel pelos crimes

poliacuteticos ocorridos na Primeira Regiatildeo ou seja nos estados do Rio de Janeiro e do

Espiacuterito Santo

A justificativa para esse sigilo dos atos que regiam o SISSEGIN e os DOI-CODI

estava na maior mobilidade e autonomia de accedilatildeo que o segredo traria para a atuaccedilatildeo

repressora desses organismos Dessa forma a repressatildeo podia agir sem grandes

limitaccedilotildees natildeo esbarrando em questotildees externas agraves decisotildees militares tais como os

Direitos Humanos Universais de 1948

No entanto eacute tambeacutem evidente a importacircncia que alguns atos legais natildeo-sigilosos

tiveram para a construccedilatildeo do cenaacuterio que sustentaria a atuaccedilatildeo do SISSEGIN e dos

DOI-CODI Eacute o caso por exemplo da adoccedilatildeo do foro especial para crimes poliacuteticos

que a partir do AI-2 e da subsequente incorporaccedilatildeo dessa medida pela Constituiccedilatildeo de

1967 passaram a ser julgados pelos tribunais militares e a suspensatildeo de garantias

individuais tal como o habeas corpus feita pelo AI-5 de dezembro de 1968 Afinal

natildeo seria eficaz para a atuaccedilatildeo desses oacutergatildeos repressores que seus prisioneiros poliacuteticos

49

atraveacutes do habeas corpus pudessem ser imediatamente soltos pela Justiccedila ou que

pudessem ser julgados por tribunais civis correndo o risco do juiz responsaacutevel pela

causa natildeo estar totalmente articulado aos princiacutepios impostos pela Doutrina de

Seguranccedila Nacional

Dessa forma ateacute o AI-5 foram levantadas as bases legais para que um Sistema de

Seguranccedila Nacional centralizado combativo e violento fosse institucionalizado Por

outro lado a partir do AI-5 para ter a autonomia e a mobilidade que se julgavam

necessaacuterias a organizaccedilatildeo desse Sistema de Seguranccedila Nacional foi sigilosa Ou seja a

reestruturaccedilatildeo do sistema repressivo com os seus novos oacutergatildeos e o detalhamento de

suas funccedilotildees internas natildeo foi publicada oficialmente por nenhum tipo de legislaccedilatildeo A

operacionalidade da seguranccedila interna foi regida por diretrizes secretas e o SISSEGIN

instituiacutedo por decretos sigilosos do Conselho de Seguranccedila Nacional (CSN) aprovados

pelo Presidente da Repuacuteblica

Por isso mesmo uma das primeiras medidas para o estabelecimento do SISSEGIN

e posteriormente dos DOI-CODI foi o fortalecimento do Conselho de Seguranccedila

Nacional cujas competecircncias foram ampliadas por atualizaccedilatildeo na legislaccedilatildeo operada

em janeiro de 1968 No ano seguinte em julho a Diretriz para a Poliacutetica de Seguranccedila

Interna foi instituiacuteda secretamente a fim de consolidar o SISSEGIN e adotar

nacionalmente o padratildeo da Oban (Operaccedilatildeo Bandeirante) No entanto somente em

1970 durante a vigecircncia do governo Meacutedici o modelo da Oban foi adaptado

transformado em DOI-CODI e de fato instituiacutedo por todas as Regiotildees Militares do

paiacutes

A Oban foi secretamente instituiacuteda em 1ordm de julho de 1969 no quartel do II

Exeacutercito em Satildeo Paulo No intuito de combater de forma mais organizada e eficaz a

esquerda armada a Oban usava de sua ldquoilegalidade oficialrdquo para agir contra os

50

ldquoinimigos internosrdquo sem precisar adequar seus meacutetodos de trabalho aos Direitos

Humanos A Oban criava uma estrutura nova que coordenava e integrava os diversos

oacutergatildeos de repressatildeo poliacutetica ndash entre eles as 2ordf seccedilotildees da Poliacutecia Militar Exeacutercito e

Marinha de Satildeo Paulo responsaacuteveis pelas investigaccedilotildees de crimes poliacuteticos nessas

instituiccedilotildees ndash que operavam de forma desordenada e ineficaz contra a esquerda armada

em aparente ascensatildeo O funcionamento da Oban se dava por meio de um trabalho

coordenado de diversas instacircncias conforme apresenta Fico no seguinte trecho

O funcionamento da Oban supunha um trabalho coordenado de diversas

instacircncias Toda quarta-feira era feita uma reuniatildeo no quartel-general do II

Exeacutercito na qual eram discutidas e avaliadas as accedilotildees da guerrilha da

semana Participavam dessas reuniotildees o chefe da 2ordf Seccedilatildeo do II Exeacutercito o

comandante da Oban major Waldyr Coelho um representante da 2ordf Seccedilatildeo

do II Exeacutercito o oficial chefe da 2ordf Seccedilatildeo do Distrito Naval o chefe da 2ordf

Seccedilatildeo da Poliacutecia Militar do Estado de Satildeo Paulo um representante da Poliacutecia

Federal um representante da Divisatildeo da Ordem Social e outro da Ordem

Poliacutetica ambos do DOPS (Fico 2001 117)

Aleacutem dos meios militar e policial a Oban tambeacutem era sustentada pelo

empresarial financeiro e parte das autoridades civis paulistas da eacutepoca conforme indica

trecho do artigo da historiadora Mariana Joffily para a revista Caros Amigos

O ato que celebrou a criaccedilatildeo da Oban foi organizado com pompa coqueteacuteis

e salgadinhos e contou com a presenccedila das principais autoridades poliacuteticas

de Satildeo Paulo o governador Roberto de Abreu Sodreacute o prefeito Paulo Maluf

o comandante do II Exeacutercito (atual Regional Sudeste) general Joseacute

Canavarro Pereira entre outros Tambeacutem acorreram agrave cerimocircnia figuras

proeminentes da elite paulista oriundas dos meios empresarial e financeiro

Luiz Macedo Quentel Antonio Delfim Netto Gastatildeo Vidigal Paulo Sawaya

e Henning Albert Boilesen Parte do setor empresarial paulista e das

multinacionais ndash com representaccedilatildeo em Satildeo Paulo ndash acreditava que as accedilotildees

guerrilheiras colocavam em risco a boa conduta dos negoacutecios e concorreu

51

para o apoio financeiro e material As autoridades da cidade colaboraram

com infra-estrutura incluindo a cessatildeo de partes das dependecircncias da 36ordf

delegacia de poliacutecia situada na Rua Tutoacuteia (Vila Mariana) para a

acomodaccedilatildeo do novo oacutergatildeo repressivo (Joffily 14 set 2009)

Percebe-se portanto que muitos empresaacuterios de Satildeo Paulo ajudaram a financiar a

Oban Entre outros gastos esse financiamento era destinado agrave capacitaccedilatildeo de seus

agentes e agrave compra de equipamentos de tortura novos entre eles uma maacutequina de

choques eleacutetricos nomeada de ldquoPianola Boilesenrdquo em homenagem a Henning Albert

Boilesen entatildeo presidente da empresa Ultragaacutes e um dos empresaacuterios agrave frente desse tipo

de investimento na Oban Boilesen assim como os demais empresaacuterios envolvidos

financeiramente com a Oban por desacreditar nas instituiccedilotildees do Estado que ateacute entatildeo

eram responsaacuteveis pelo combate agrave esquerda armada e por ter interesses reais nesse

combate optou por capitalizar a Oban Afinal uma instituiccedilatildeo extra-oficial de accedilatildeo

coordenada e com grande investimento teria autonomia e capacidade para neutralizar os

grupos da esquerda armada que vinham causando prejuiacutezos a seus negoacutecios tais como

assaltos e atentados Justamente devido a essa relaccedilatildeo que tinha com a Oban Boilesen

foi assassinado posteriormente em 1971 por militantes da esquerda armada 9

Percebe-se portanto que a Oban tinha caraacuteter paramilitar e unia a iniciativa

privada ao Estado a fim de que o poder de poliacutecia deste fosse fortalecido Sua criaccedilatildeo

empregou portanto um novo tipo de atuaccedilatildeo militar em que o combate ao ldquoinimigo

internordquo contaria com uma forte autonomia de accedilatildeo respaldada pelo sigilo dos decretos

regulamentares e pelo financiamento do empresariado A Oban se consagrava como um

poderoso e promissor modelo de repressatildeo

No entanto o envolvimento de oficiais das Forccedilas Armadas policiais e

empresaacuterios com a repressatildeo poderia assumir proporccedilotildees que fugissem ao controle

9 Para mais informaccedilotildees sobre Henning Albert Boilesen e a relaccedilatildeo do empresariado com a Oban ver o

filme documentaacuterio Cidadatildeo Boilesen (Brasil 2009)

52

militar e configurassem algumas vezes conflitos de interesses Assim com o sucesso

das accedilotildees da Oban no combate aos opositores armados os militares optaram por

ampliar o seu modelo para todo o Brasil desde que incorporasse algumas reformulaccedilotildees

que assegurassem o total controle militar Surgiriam entatildeo os DOI-CODI

Os DOI-CODI eram portanto a institucionalizaccedilatildeo e a sofisticaccedilatildeo do modelo da

Oban Afinal eles coordenavam todas as demais Forccedilas e Poliacutecias sob o comando do

Exeacutercito e estavam espalhados por todas as Regiotildees Militares do paiacutes Eram a nova

estrutura do SISSEGIN implantada por diretrizes secretas que o Conselho de Seguranccedila

Nacional havia formulado Tais diretrizes estabeleceram que para cada um dos

comandos militares haveria um Conselho de Defesa Interna (CONDI) um Centro de

Operaccedilotildees de Defesa Interna (CODI) e um Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees

(DOI) todos sob responsabilidade do comandante do Exeacutercito respectivo denominado

comandante da ldquoZona de Defesa Internardquo (ZDI) O paiacutes ficou assim dividido em seis

ZDI Podiam ser criadas ainda Aacutereas de Defesa Interna (ADI) ou Sub-Aacutereas de Defesa

Interna (SADI) em regiotildees que merecessem cuidados especiais

Aos Conselhos de Defesa Interna (CONDI) cabia assessorar os comandantes das

ZDI e tambeacutem facilitar a esses comandantes a coordenaccedilatildeo de accedilotildees e a necessaacuteria

cooperaccedilatildeo por parte das mais altas autoridades civis e militares com sede nas

respectivas aacutereas de responsabilidade Logo os CONDI podiam ser integrados por

governadores ou seus representantes assim como comandantes das Forccedilas Navais e

Aeacutereas comandantes subordinados secretaacuterios de seguranccedila e comandantes das demais

Poliacutecias ou outras autoridades conforme o comandante da respectiva ZDI julgasse

necessaacuterio Tinham como aacuterea de jurisdiccedilatildeo territorial as Regiotildees Militares cujas sedes

se localizam em Satildeo Paulo Rio de Janeiro (1ordm BPE) Brasiacutelia Minas Gerais Rio Grande

do Sul Bahia Pernambuco e Cearaacute No entanto segundo Fico os CONDI natildeo tiveram

53

funcionamento significativo

Os Centros de Operaccedilotildees de Defesa Interna (CODI) eram oacutergatildeos de planejamento

e coordenaccedilatildeo das medidas de defesa interna dirigidos pelo chefe do Estado-Maior do

Exeacutercito da Regiatildeo e compostos por representantes de todas as Forccedilas bem como da

divisatildeo local de ordem poliacutetica e social das Poliacutecias Civil Militar Federal e da agecircncia

local do Serviccedilo Nacional de Informaccedilotildees (SNI) Entre suas funccedilotildees estavam o

planejamento o controle e a execuccedilatildeo das medidas de defesa interna a coordenaccedilatildeo dos

meios utilizados para esta execuccedilatildeo e a ligaccedilatildeo com todos os escalotildees envolvidos

devendo possibilitar a conjugaccedilatildeo de esforccedilos do Exeacutercito da Marinha da Aeronaacuteutica

do SNI do Poliacutecia Federal e das Secretarias de Seguranccedila Puacuteblica

Jaacute os Destacamentos de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) tinham uma

estruturaccedilatildeo interna tiacutepica composta por setores especializados em operaccedilotildees externas

informaccedilotildees contra-informaccedilotildees interrogatoacuterios e anaacutelises aleacutem de assessoria juriacutedica

e policial e setores administrativos O trabalho nesses destacamentos era ininterrupto

Utilizavam regularmente dois regimes de trabalho um de expediente regular (das 8 agraves

18 horas) e outro atraveacutes de plantotildees de 24 horas por 48 de folga Abaixo visualiza-se a

estrutura orgacircnica dos DOI que sintetiza suas funccedilotildees e sua hierarquia institucional

(FICO 2001 123-125)

54

DOI do Exeacutercito

No organograma acima nota-se que os DOI eram divididos por setores seccedilotildees e

subseccedilotildees Esses satildeo caracterizados por Fico de acordo com suas funccedilotildees e

composiccedilotildees e tambeacutem pelo coronel Freddie Perdigatildeo Pereira em sua monografia que eacute

analisada na segunda frente do estudo aqui traccedilado Percebe-se que essa caracterizaccedilatildeo

feita por Fico e por Pereira eacute muito proacutexima uma vez que eles utilizam os mesmos

termos e palavras para descrever o trabalho ou a formaccedilatildeo de determinado setor ou

seccedilatildeo Diante disso torna-se evidente que ambos os trabalhos se basearam no mesmo

documento que apesar de natildeo ser citado na monografia de Pereira eacute referenciado por

Fico como ldquoSistema de Seguranccedila Interna SISSEGIN Documento classificado como

lsquosecretorsquo [1974] Capiacutetulo 2rdquo Entretanto enquanto o Sistema de Seguranccedila Nacional

como um todo eacute o foco da pesquisa de Fico o DOI eacute o objeto de Pereira o que por

conseguinte o faz apresentar de forma mais detalhada a composiccedilatildeo de cada uma de

suas partes integrantes Logo optou-se aqui por tratar da estrutura interna dos DOI na

Comandante

Seccedilatildeo de contra-informaccedilotildees Turma de comando

Setor de operaccedilotildees de informaccedilotildees Setor de administraccedilatildeo

Turno auxiliar

Assistecircncia juriacutedica

e policial

Seccedilatildeo

administrativa

Seccedilatildeo de busca e

apreensatildeo

Setor de

investigaccedilotildees

Setor de anaacutelise e

informaccedilotildees

Subseccedilatildeo de

interrogatoacuterio Subseccedilatildeo de anaacutelise

55

proacutexima frente de estudo durante a anaacutelise da monografia de Pereira onde

trabalharemos com os DOI-CODI sob o ponto de vista de um de seus agentes ainda

durante a ditadura

Com relaccedilatildeo agrave atuaccedilatildeo dos DOI-CODI dentro do SISSEGIN Maria Celina

DrsquoArauacutejo em Os anos de Chumbo a memoacuteria militar sobre a repressatildeo (1994)

apresenta grandes contribuiccedilotildees para a presente pesquisa uma vez que em sua obra

analisa por meio de depoimentos ineacuteditos de militares a atuaccedilatildeo dos oacutergatildeos de

informaccedilatildeo e repressatildeo poliacutetica durante a ditadura militar

Partindo dessa abordagem de DrsquoArauacutejo destaca-se que diferentemente do que

acontecia na Oban cada um dos DOI-CODI tinha por comandante-geral o chefe do

Estado-Maior do Exeacutercito de sua respectiva Regiatildeo Militar e seu financiamento contava

com recursos orccedilamentaacuterios regulares do governo Logo os DOI-CODI natildeo

estabeleciam uma ligaccedilatildeo direta com o capital privado que entretanto ainda podia

investir de forma indireta na repressatildeo por meio de doaccedilotildees de maacutequinas e serviccedilos

Dessa forma os DOI-CODI tinham uma maior independecircncia financeira que junto com

a centralizaccedilatildeo hieraacuterquica que tambeacutem os caracterizava permitia que suas

investigaccedilotildees e accedilotildees procedessem de forma ainda mais eficiente Afinal esses atributos

evitavam que suas operaccedilotildees estivessem suscetiacuteveis agrave duplicidade de tarefas a

competiccedilotildees e a conflitos de interesses maximizando os seus resultados e tornando-os

uma espeacutecie de sofisticaccedilatildeo da repressatildeo

Aleacutem disso percebe-se que essa sofisticaccedilatildeo dos DOI-CODI tambeacutem era formada

pelo proposital distanciamento ali mantido entre os militares do governo e os agentes

desses oacutergatildeos de repressatildeo Afinal a ditadura ao mesmo tempo em que sancionava a

tortura nos seus ldquoporotildeesrdquo estrategicamente negava a sua existecircncia perante a sociedade

Assim esse cenaacuterio que isentava os governantes e os demais militares relacionados ao

56

poder poliacutetico do paiacutes de qualquer ligaccedilatildeo com a tortura se mantinha atraveacutes da

seguinte configuraccedilatildeo de um lado o torturador ndash que natildeo montou a maacutequina e jamais

efetuaria a tortura num salatildeo do quartel do Exeacutercito se temesse a reaccedilatildeo de seus

comandantes ndash e de outro o seu superior responsaacutevel pela ordem puacuteblica e

beneficiaacuterio direto do poder poliacutetico ndash que sancionava as maacutequinas mas natildeo tocava nos

presos

Dessa forma os DOI responsaacuteveis por accedilotildees que englobavam as prisotildees e os

interrogatoacuterios dos presos poliacuteticos eram instituiccedilotildees que prezavam por natildeo ser

externamente identificadas por seus meacutetodos violentos O sistema funcional dos DOI

era entatildeo complexo e informal de modo que por mais que neles existissem hierarquia e

coordenaccedilatildeo as brechas para que a falta de controle se propagasse eram amplas a fim

de que os meacutetodos natildeo regulamentares tais como as torturas pudessem ser

desempenhados com a eficiecircncia e a recorrecircncia necessaacuterias sem serem relacionados

diretamente a um comando

Diante disso justifica-se que conforme apurado por Maria Celina DrsquoArauacutejo a

versatildeo oficial dos militares ainda possa ser a de que a tortura jamais resultou de

qualquer ordem ou orientaccedilatildeo superior E mesmo quando chega a ser admitida apareccedila

como exceccedilatildeo como abuso ou excesso de poucos Entretanto torna-se aqui evidente a

incoerecircncia dessa versatildeo militar Afinal verifica-se que assim como em todos os

organismos militares nos DOI tambeacutem existiam uma forte hierarquia a ser cumprida

onde apesar de uma estrutura complexa qualquer accedilatildeo deveria ser remetida a um

superior o que sugere que a questatildeo da responsabilidade sempre poderia ser resgatada

Logo se militares reconhecem que existiram ldquoexcessosrdquo na eacutepoca e mesmo assim os

chefes imediatos de tais infratores natildeo tomaram as devidas providecircncias encontra-se

nos DOI entatildeo uma forte incongruecircncia com relaccedilatildeo ao princiacutepio militar de

57

responsabilizaccedilatildeo do chefe-superior Portanto diante dessa constataccedilatildeo de como eram

tratados os torturadores nos DOI percebe-se que apesar de velada em geral a tortura

era um procedimento ali consentido

2 O DOI-CODI por ele mesmo

A anaacutelise ateacute agora feita por meio da historiografia cede aqui lugar para se

concentrar sobre uma fonte especiacutefica pela qual a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

satildeo vistas por um acircngulo mais proacuteximo a partir do olhar de um de seus agentes

enquanto a instituiccedilatildeo ainda estava em atividade Trata-se do trabalho O Destacamento

de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de

combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e perspectivas apresentado em 1978 agrave Escola de

Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie

Perdigatildeo Pereira10

posteriormente apontado por ex-prisioneiros poliacuteticos como o

torturador ldquoNagibrdquo do DOI carioca do iniacutecio dos anos 1970

A referida fonte eacute uma espeacutecie de trabalho final da ECEME estabelecimento de

ensino tradicional do Exeacutercito brasileiro situado no bairro da Praia Vermelha no Rio de

Janeiro cuja missatildeo eacute a preparaccedilatildeo de oficiais superiores para o exerciacutecio de funccedilotildees

de Estado-Maior comando chefia direccedilatildeo e assessoramento dos mais elevados

escalotildees da Forccedila Terrestre 11

Logo eacute fruto de uma espeacutecie de preparaccedilatildeo que o

coronel Pereira estava se submetendo a fim de ocupar algum cargo de chefia dentro do

Exeacutercito

Escrita durante a ditadura militar enquanto os DOI-CODI ainda estavam em

funcionamento embora em menor atividade devido agrave propagaccedilatildeo de denuacutencias sobre

10

Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II 11

ESCOLA de Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) [acesso em 29 jan 2012] Disponiacutevel

em httpwwwecemeensinoebbreceme

58

torturas e mortes ocasionadas dentro do Destacamento a monografia permite trabalhar

diretamente com a visatildeo de um dos agentes do DOI-CODI ainda no ldquocalor da horardquo

como se costuma dizer O tema abordado eacute a atuaccedilatildeo dos DOI durante o seu periacuteodo de

maior efetividade de 1970 a 1973 provavelmente como uma tentativa de fortalecer a

instituiccedilatildeo e reforccedilar o seu poder trazendo agrave tona os ldquovelhos temposrdquo de grande

atividade

Em 1978 momento em que a monografia foi escrita o DOI-CODI havia

diminuiacutedo suas atividades de repressatildeo se restringindo apenas ao papel de investigaccedilatildeo

Como indica o referido coronel no seguinte trecho

Fruto principalmente do trabalho anocircnimo e incansaacutevel dos DOI o

terrorismo no Brasil foi praticamente aniquilado Em funccedilatildeo disso tais

oacutergatildeos foram e continuam sendo alvo de uma das mais virulentas campanhas

difamatoacuterias que a imprensa brasileira e internacional jaacute desencadearam

contra uma instituiccedilatildeo E os DOI que surgiram no fragor da luta e com

estrutura adaptada para enfrentar a accedilatildeo direta no combate aberto

reformulam a sua atuaccedilatildeo [] O efetivo elevado trabalhando atualmente na

Seccedilatildeo de Investigaccedilotildees pode dar ideia do tipo de trabalho que ora eacute

desenvolvido nos DOI com prioridade absoluta Trata-se do levantamento

total das organizaccedilotildees atuantes a partir da vigilacircncia permanente e cerrada

sobre os elementos jaacute identificados [] o trabalho nos DOI deixou de ter

aquele caraacuteter de combate de peito aberto tantas vezes levado a efeito por

seus pioneiros Transformou-se o DOI atual numa verdadeira agecircncia de

informaccedilotildees onde impera o trabalho frio e calculado do analista a teacutecnica

sofisticada de aparelhagem eletrocircnica substituindo a coragem pessoal de

seus elementos

Os DOICODI satildeo e sempre seratildeo as sentinelas atentas e vigilantes de nossa

liberdade (Pereira 1978 28-35)

Essa mudanccedila promovida nos DOI se relaciona diretamente com o momento

vivido pelo Brasil em 1978 Existia entatildeo uma incompatibilidade entre a distensatildeo

59

poliacutetica ldquolenta gradual e segurardquo comandada pelo Presidente Ernesto Geisel a fim de

abrir o paiacutes e instalar futuramente uma democracia e as denuacutencias sobre torturas e

mortes que continuavam a ocorrer dentro dos DOI-CODI e eram com frequecircncia

noticiadas pelos jornais do Brasil e do mundo Assim com o intuito de reverter este

cenaacuterio desfavoraacutevel Geisel optou por exonerar em 1976 o comandante do II Exeacutercito

o general Ednardo DAacutevila Melo afastar do governo no ano seguinte o entatildeo ministro

do Exeacutercito o general Siacutelvio Frota ndash visto por muitos agentes dos DOI como uma

lideranccedila contra a distensatildeo poliacutetica e o enfraquecimento das operaccedilotildees repressoras e

apoiado como eventual candidato agrave Presidecircncia da Repuacuteblica ndash e de forma geral

diminuir a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI no combate direto agrave ldquosubversatildeordquo concentrando suas

atividades apenas na investigaccedilatildeo

Esta atitude logicamente causou resistecircncia entre muitos integrantes dos DOI-

CODI que tentavam provar a necessidade da atuaccedilatildeo repressora da instituiccedilatildeo para a

proteccedilatildeo da Seguranccedila Nacional Essas tentativas incluiacuteam muitas accedilotildees forjadas pelos

proacuteprios agentes dos DOI como atentados a bomba em bancas de jornal instituiccedilotildees que

lutavam contra a ditadura ndash como a sede da OAB no Rio de Janeiro atacada em agosto

de 1980 quando morreu a secretaacuteria Lyda Monteiro ndash e shows populares ndash como a

tentativa frustrada de ataque a bomba de dois agentes do DOI do Rio de Janeiro em

maio de 1980 no show em homenagem ao dia do trabalhador no Riocentro

Outro aspecto dessa fonte que merece tambeacutem ser aqui destacado satildeo as

circunstacircncias pessoais que impulsionaram a sua confecccedilatildeo Afinal se a funccedilatildeo da

ECEME eacute preparar militares para ocupar cargos de chefia dentro do Exeacutercito

certamente a monografia foi um requisito necessaacuterio para que o coronel Pereira se

preparasse para uma promoccedilatildeo na carreira militar Partindo dessa informaccedilatildeo e

juntando-a ao dado que Elio Gaspari apresenta na obra A Ditadura Escancarada (2002

60

184) de que foi oferecido ao mesmo coronel no iniacutecio de 1980 o posto de general de

brigada percebe-se que de fato essa preparaccedilatildeo de Pereira lhe gerou frutos Poreacutem de

acordo com Gaspari para ser general de brigada ele teria que aceitar comandar uma

tropa em uma unidade militar de Satildeo Paulo o que natildeo lhe agradou Preferiu entatildeo a

opccedilatildeo de ir para a reserva e ao mesmo tempo permanecer como contratado em um

cargo na seccedilatildeo de operaccedilotildees do SNI do Rio de Janeiro recebendo no total uma receita

superior agrave de general de Exeacutercito Essa situaccedilatildeo tal como o tema escolhido para sua

monografia eacute mais uma evidecircncia do apreccedilo que coronel Pereira tinha pelo ofiacutecio

investigativo que outrora exerceu nos DOI Diante de sua progressatildeo profissional e do

esvaziamento que os DOI vinham sofrendo o SNI12

se tornava uma opccedilatildeo atraente

pois aleacutem de ser uma instituiccedilatildeo que investigava elementos que ameaccedilavam a

Seguranccedila Nacional estava diretamente ligada ao alto esquadratildeo do Exeacutercito ciacuterculo de

que Pereira fazia parte nesse momento

Com relaccedilatildeo agrave monografia desse coronel muitos pontos interessantes satildeo

destacados Entre eles o detalhamento estrutural dos DOI-CODI

Internamente os CODI eram subdivididos entre trecircs centrais 1- Central de

Informaccedilotildees 2- Central de Operaccedilotildees 3- Central de Assuntos Civis O comando

principal era da 1- Central de Informaccedilotildees que coordenava as investigaccedilotildees locais e

era chefiada pelo dirigente do CODI ou seja pelo chefe do Estado-Maior do Exeacutercito

da aacuterea que deveria ser um general do Exeacutercito Este reunia em sua equipe um

representante local do alto escalatildeo da Aeronaacuteutica da Marinha do SNI e do

Departamento de Poliacutecia Federal o diretor do DOPS e o Comandante do DOI daquela

jurisdiccedilatildeo aleacutem do chefe da 2ordf Seccedilatildeo da Poliacutecia Militar responsaacutevel pela parte de

informaccedilotildees relativas a crimes poliacuteticos Jaacute a 2- Central de Operaccedilotildees e a 3- de

12

Para mais informaccedilotildees sobre a formaccedilatildeo do SNI ver Antunes 2002

61

Assuntos Civis davam suporte agrave equipe da 1- de Informaccedilotildees e para tanto tambeacutem

congregavam em suas equipes representantes das trecircs Forccedilas sendo um representante

do Exeacutercito da Regiatildeo Militar correspondente responsaacutevel por ocupar o cargo de chefe

aleacutem de um representante credenciado da Poliacutecia Civil da Poliacutecia Militar local e de

outros oacutergatildeos quando fosse necessaacuterio para contribuir com alguma anaacutelise especiacutefica

O CODI de cada Regiatildeo Militar tinha por funccedilatildeo centralizar as informaccedilotildees de

caraacuteter ldquosubversivordquo e repassaacute-las ao DOI correspondente para que as operaccedilotildees de

informaccedilotildees fossem realizadas de forma concentrada atraveacutes desse uacutenico oacutergatildeo e por

conseguinte sob um uacutenico comando Assim evitava-se que vaacuterios oacutergatildeos de informaccedilatildeo

ligados a uma das trecircs Forccedilas ou agraves Poliacutecias realizassem suas operaccedilotildees

independentemente de qualquer coordenaccedilatildeo ou planejamento global o que poderia

acabar prejudicando as accedilotildees contra seus ldquoinimigos internosrdquo

Afinal de acordo com as informaccedilotildees levantadas por Pereira em sua monografia

antes dos DOI-CODI serem institucionalizados natildeo foram poucas as vezes que um

desses oacutergatildeos prejudicou a atuaccedilatildeo de outro Em diversos momentos enquanto um

estava realizando uma vigilacircncia sobre determinados elementos ldquosubversivosrdquo por

exemplo outro sem saber da accedilatildeo do primeiro prendia dois ou trecircs desses elementos

Dessa forma os demais membros da mesma organizaccedilatildeo ao saberem da prisatildeo de seus

companheiros natildeo retornavam agrave aacuterea sob vigiacutelia e evitavam ser presos Tambeacutem em

vaacuterias ocasiotildees a documentaccedilatildeo apreendida por determinado oacutergatildeo de seguranccedila ficava

em seu poder e natildeo era encaminhada para outros escalotildees para ser analisada Com essas

informaccedilotildees ldquoencostadasrdquo as accedilotildees armadas de organizaccedilotildees de esquerda que ali

estavam indicadas prosseguiam normalmente sem impedimentos

Percebe-se portanto como a centralizaccedilatildeo de informaccedilotildees e de accedilotildees de

seguranccedila interna implantada pelos DOI-CODI conduziu a resultados positivos para a

62

repressatildeo Natildeo eacute agrave toa que conforme analisado anteriormente a partir da tese de Maria

Celina DrsquoArauacutejo os DOI-CODI satildeo aqui entendidos como a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo

jaacute que os CODI passaram a concentrar e coordenar as informaccedilotildees e atraveacutes dos DOI a

executar de forma concentrada as operaccedilotildees de informaccedilotildees

Oacutergatildeos operacionais dos CODI os Destacamentos de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees

os DOI eram destinados ao trabalho de combate direto ao ldquoinimigo internordquo Para tanto

conforme analisado a partir da monografia de Pereira e da jaacute referida obra de Fico13

os

DOI dividiam-se basicamente entre 1- Setor de operaccedilotildees de informaccedilotildees e 2- Setor de

administraccedilatildeo Tais setores estavam diretamente subordinados ao comandante do

Destacamento daquela Regiatildeo Militar que normalmente deveria ser um tenente-coronel

com vivecircncia na aacuterea de informaccedilotildees Essa patente de tenente-coronel compunha o

ciacuterculo hieraacuterquico de oficiais e a hierarquia de oficiais superiores14

ou seja pertencia

ao acircmbito de convivecircncia desses oficiais e portanto era considerado um deles Isto

significa que os comandantes dos DOI estavam um degrau abaixo do uacuteltimo acircmbito

hieraacuterquico do Exeacutercito o dos oficiais-generais ciacuterculo referente aos chefes dos CODI

que deveriam possuir a patente de general de Exeacutercito

Chefiado pelo subcomandante do DOI o 1- Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees

tinha diretamente subordinado a ele 11- Setor de Investigaccedilatildeo 12- Setor de Anaacutelise e

Informaccedilotildees e 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo Jaacute o 2- Setor de administraccedilatildeo se

subdividia em 21- Assessoria Juriacutedica e Policial e 22- Seccedilatildeo administrativa

Ao 11- Setor de Investigaccedilatildeo cabia fundamentalmente a realizaccedilatildeo de

investigaccedilotildees com a finalidade de identificar e localizar ldquoelementos subversivosrdquo a fim

de repassar as informaccedilotildees para que os agentes da 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo

prendessem os suspeitos e localizassem os seus ldquoaparelhosrdquo (termo designado para

13

Para visualizar o organograma dos DOI voltar agrave paacutegina 54 14

Para mais informaccedilotildees sobre os ciacuterculos hieraacuterquicos e a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II

63

definir o local em que ficavam escondidos os integrantes dos grupos de esquerda que

viviam na clandestinidade) A chefia e a subchefia do 11- Setor de Investigaccedilatildeo era

privativa de oficiais do Exeacutercito e seus integrantes natildeo deveriam ser identificados pelos

elementos a serem presos a fim de que a eficiecircncia da accedilatildeo fosse garantida uma vez que

as suas identificaccedilotildees poderiam ocasionar a fuga dos suspeitos No entanto quando a

situaccedilatildeo exigia os integrantes desse setor poderiam efetuar prisotildees neutralizar

ldquoaparelhosrdquo e apreender material ldquosubversivordquo Esse 11- Setor de Investigaccedilatildeo agia por

meio de diversas turmas de investigaccedilatildeo compostas cada uma por um agente um

auxiliar e um carro normalmente da marca Volkswagen

O 12- Setor de Anaacutelise e Informaccedilotildees tinha por funccedilatildeo fornecer ao comandante

do DOI e aos demais setores seccedilotildees e subseccedilotildees informaccedilotildees estudos e conclusotildees

sobre as organizaccedilotildees ldquosubversivo-terroristasrdquo que atuavam na aacuterea Esse setor era

composto por um chefe sem patente ou ciacuterculo hieraacuterquico preacute-determinados pela

121- Subseccedilatildeo de anaacutelise e pela 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio

A 121- Subseccedilatildeo de anaacutelise tambeacutem natildeo exigia de forma predeterminada a

patente ou o ciacuterculo hieraacuterquico de quem a chefiasse Tinha por funccedilatildeo analisar os

depoimentos prestados pelos presos daquele DOI analisar o material das organizaccedilotildees

ldquoterroristasrdquo que havia sido recolhido pelas turmas da 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo

fornecer subsiacutedios ao chefe do 1- Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees e agrave equipe da

122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio manter para cada organizaccedilatildeo de esquerda uma pasta

com o seu histoacuterico relaccedilatildeo de nomes e codinomes relaccedilatildeo de accedilotildees e uma espeacutecie de

aacutelbum contendo as fichas de qualificaccedilatildeo fotografia atuaccedilatildeo e situaccedilatildeo de cada um de

seus elementos e por fim organizar atualizar e manter o arquivo geral contendo o

dossiecirc de cada elemento fichado

64

Jaacute a 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio era responsaacutevel pelo interrogatoacuterio e por

conseguinte pela aplicaccedilatildeo de torturas nos presos a fim de fazecirc-los falar o que sabiam

Seu chefe deveria ser um oficial do Exeacutercito de niacutevel de capitatildeo ou seja deveria

pertencer ao ciacuterculo hieraacuterquico de oficiais mas natildeo ao meio de oficiais superiores e

sim ao de oficiais intermediaacuterios No entanto a partir do ano de 1971 era preferiacutevel que

ele tivesse o curso B1 da Escola Nacional de Informaccedilotildees (EsNI) Este curso era uma

espeacutecie de especializaccedilatildeo em informaccedilotildees e seguranccedila interna ministrada pela EsNI

escola que havia sido criada pelo SNI durante o ano de 1971 e era a este subordinada

Como a 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio trabalhava ininterruptamente durante 24

horas ela se dividia em trecircs turmas de interrogatoacuterio preliminar cada uma chefiada

tambeacutem por um capitatildeo do Exeacutercito com o curso B1 da EsNI Essas turmas eram

compostas por seis agentes cada e aleacutem disso subordinada ao chefe de cada uma delas

existia uma turma auxiliar encarregada da carceragem e da datilografia de documentos

Jaacute a 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo tinha por ofiacutecio efetuar prisotildees ldquocobrir

pontosrdquo (preparar uma emboscada para prender os militantes esquerdistas no momento

em que se encontravam em algum ponto anteriormente combinado) neutralizar

ldquoaparelhosrdquo apreender material ldquosubversivordquo coletar dados que possibilitassem o

levantamento de elementos ldquosubversivosrdquo conduzir presos ao DOPS auditorias

hospitais etc O chefe deveria ser um oficial do Exeacutercito sem predeterminaccedilatildeo de

patente militar e sua equipe se dividia em trecircs grupamentos ldquoAB e Crdquo Cada um deles

era composto por quatro turmas de busca e apreensatildeo que tinham cerca de trecircs ou cinco

agentes e possuiacuteam cada uma um carro espaccediloso muitas vezes dos modelos C14 Opala

ou Kombi equipado com raacutedio Aleacutem disso a 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo

tambeacutem era composta por quatro turmas de coletas de dados que tinham por missatildeo

reunir informaccedilotildees sobre os ldquosubversivosrdquo em universidades coleacutegios etc Cada uma

65

dessas turmas era constituiacuteda por dois elementos um oficial da PM da regiatildeo ou um

delegado de poliacutecia e um motorista que normalmente dirigia um carro de marca

Volkswagen com raacutedio

Ligada ao 2- Setor de administraccedilatildeo a 22- Seccedilatildeo administrativa garantia o apoio

logiacutestico ao DOI ou seja organizava o pedido de gecircneros alimentiacutecios bem como

outros utensiacutelios e equipamentos necessaacuterios Esta seccedilatildeo natildeo tinha nenhum tipo de

exigecircncia de patente ou ciacuterculo hieraacuterquico para o cargo de chefe Jaacute a 21- Assessoria

Juriacutedica e Policial era chefiada por um delegado de poliacutecia e tinha por missatildeo

assessorar o Comandante do DOI em assuntos judiciais elaborar a documentaccedilatildeo

formal e legal referente ao material apreendido e agraves confissotildees dos prisioneiros e

controlar a menagem dos presos que fossem liberados

A menagem estipulada pelo Coacutedigo Processual Militar criado pelo decreto-lei

1002 de outubro de 1969 era uma espeacutecie de prisatildeo cautelar concedida ao militar ou

ao civil que tivesse praticado um crime de cunho militar com previsatildeo de pena privativa

de liberdade O local de cumprimento da menagem era a cidade onde residisse o

suspeito no momento do crime ou a sede do oacutergatildeo que tivesse investigando a sua accedilatildeo

Como a partir do AI-5 os suspeitos de crimes poliacuteticos passaram a ser julgados pela

Justiccedila Militar e o instituto do habeas corpus foi suprimido atraveacutes da menagem os

suspeitos detidos poderiam ser levados agrave sede do DOI-CODI da respectiva Regiatildeo

Militar Afinal era neste oacutergatildeo que as investigaccedilotildees sobre os crimes poliacuteticos de

determinada aacuterea se concentravam A menagem tinha por fundamento evitar o conviacutevio

do acusado ateacute o seu julgamento em primeira instacircncia com pessoas que jaacute estivessem

condenadas Dessa forma a validade da menagem terminava a partir da abertura de um

processo condenatoacuterio contra o suspeito quando entatildeo este seria transferido para uma

Delegacia de Poliacutecia tal como o DOPS por exemplo para ser enfim julgado e poder se

66

fosse o caso cumprir sua pena em um presiacutedio convencional Poreacutem ateacute isso acontecer

caso fosse enquadrado como um possiacutevel criminoso poliacutetico esse suspeito poderia ficar

detido no DOI correspondente por ateacute trinta dias podendo sua prisatildeo ainda ser

prorrogada por mais sessenta dias

A menagem era entatildeo um respaldo legal tanto para o isolamento do preso poliacutetico

nos quarteacuteis que sediavam os DOI quanto se fosse o caso para o acompanhamento de

sua vida em liberdade ateacute o dia de seu julgamento Caso fosse diagnosticado pelos

agentes do respectivo DOI que o suspeito jaacute tivesse concedido todas as informaccedilotildees que

tinha e natildeo representasse perigo agrave Seguranccedila Nacional a instituiccedilatildeo poderia solicitar ao

juiz a sua liberaccedilatildeo a fim de que a sua menagem fosse cumprida em liberdade Quando

isto ocorria o suspeito deveria ficar na mesma cidade que havia sido preso ateacute o seu

julgamento em primeira instacircncia

Diante dos organogramas dos CODI e dos DOI aqui traccedilados evidencia-se que

existiam diferenccedilas nas patentes hieraacuterquicas dos chefes de cada um desses oacutergatildeos

Enquanto o chefe dos CODI era o chefe de Estado-Maior do Exeacutercito de cada Regiatildeo

Militar ou seja um general de Exeacutercito que por conseguinte pertencia ao ciacuterculo

hieraacuterquico de oficiais-generais localizado no topo da hierarquia militar o chefe de

cada DOI era um tenente-coronel patente que se insere no ciacuterculo hieraacuterquico de

oficiais superiores ou seja imediatamente abaixo do de oficiais-generais Assim como

os DOI eram o braccedilo operacional dos CODI ou seja a eles subordinados o fato de seus

chefes estarem obrigatoriamente no ciacuterculo hieraacuterquico abaixo dos dirigentes dos CODI

leva a crer que dentro dos DOI-CODI havia de fato um respeito agrave hierarquia militar

Este respeito jaacute foi aqui destacado por meio da anaacutelise historiograacutefica baseada na

tese Maria Celina DrsquoArauacutejo (1994) que defende a ideia de que o princiacutepio da

obediecircncia hieraacuterquica apesar de velado existia nos DOI-CODI logo como a tortura

67

fazia parte de suas accedilotildees ela era consentida Afinal se laacute existiam chefias e nelas a

hierarquia militar era minimamente respeitada isso sinaliza que as accedilotildees eram

comandadas por chefes que tinham o consentimento de seus chefes diretos para darem

tal ordem Portanto a tortura impetrada pelas turmas de interrogatoacuterio preliminar era

consentida pelo capitatildeo que as chefiava pelo capitatildeo que comandava a respectiva

Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio a que elas estavam subordinadas pelo chefe do Setor de

Anaacutelise e Informaccedilotildees que chefiava o chefe dessa Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio pelo

subcomandante do DOI que era responsaacutevel pelo Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees a

que o Setor de Anaacutelise e Informaccedilotildees estava vinculado pelo tenente-coronel que

comandava o DOI e estava hierarquicamente acima do chefe do Setor de Anaacutelise e

Informaccedilotildees e pelo general do Exeacutercito que dirigia o CODI e tinha o comandante do

DOI a ele subordinado Logo o DOI-CODI foi construiacutedo de forma tatildeo centralizada que

a maioria das accedilotildees feitas por algum de seus integrantes passava por toda a cadeia

hieraacuterquica nele envolvida

Assim se torna mais uma vez evidente que a tortura como meacutetodo de

interrogatoacuterio quando utilizada pelos agentes do DOI era consentida por seus

superiores e natildeo um fenocircmeno isolado ou mesmo ldquoexcesso de poucosrdquo como muitos

militares costumam argumentar Esta argumentaccedilatildeo que aparentemente encontra

fundamento no alto grau de autonomia e independecircncia que os DOI possuiacuteam eacute

derrubada quando se evidencia que estes eram autocircnomos e independentes apenas em

relaccedilatildeo a batalhotildees e outras instituiccedilotildees militares Afinal os DOI foram programados

para atuar a par das subordinaccedilotildees preacute-existentes em outros oacutergatildeos podendo congregar

agentes de instacircncias militares poliacutecias e Forccedilas diferentes entre si mas sem deixar de

respeitar a hierarquia do Exeacutercito inserida em seu interior tendo por direccedilatildeo maacutexima o

Chefe de Estado-Maior do Exeacutercito

68

Outro ponto interessante que a caracterizaccedilatildeo do organograma dos DOI ajuda a

revelar eacute o fato do cargo de chefe da Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio ser privativo de um

oficial do Exeacutercito de niacutevel de capitatildeo ou seja que deveria pertencer ao ciacuterculo

hieraacuterquico de oficiais intermediaacuterios excluindo-se das atividades afeitas agrave posiccedilatildeo de

membros do ciacuterculo hieraacuterquico dos oficiais superiores e dos oficiais-generais onde se

encontravam os homens que governavam o paiacutes Logo por traacutes dessa condiccedilatildeo de

chefia havia a tentativa de manter a responsabilidade direta dos atos proferidos nessa

Subseccedilatildeo longe do ciacuterculo de oficiais superiores ou de oficiais-generais instacircncias

maacuteximas na hierarquia do Exeacutercito Dessa forma as torturas executadas durante os

interrogatoacuterios natildeo seriam relacionadas aos ocupantes das altas patentes do Exeacutercito

que durante a ditadura eram os que estavam agrave frente do governo brasileiro Essa

medida era portanto para dissociar a imagem dos governantes com o que ocorria nos

porotildees

No entanto eacute notaacutevel que indiretamente o governo ditatorial apoiasse as torturas

que as turmas de interrogatoacuterio preliminar executavam nos DOI-CODI uma vez que

obviamente os governantes tinham conhecimento sobre a determinaccedilatildeo de que os

agentes dessas turmas e os chefes da Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio deveriam ter

preferencialmente uma espeacutecie de especializaccedilatildeo em informaccedilotildees e seguranccedila

ministrada pela EsNI Nesta escola ndash ligada ao SNI que era composto pelas mais altas

patentes do Exeacutercito e diretamente ligado ao alto escalatildeo do governo ndash os alunos

provavelmente recebiam instruccedilotildees sobre os meacutetodos de tortura a serem aplicados

durante o serviccedilo

Aleacutem disso o fato do chefe e dos demais componentes da Subseccedilatildeo de

interrogatoacuterio serem ligados ao ciacuterculo de oficiais intermediaacuterios do Exeacutercito tambeacutem

vai ao encontro da anaacutelise historiograacutefica sobre a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

69

aqui apresentada a partir dos conceitos de Martins Filho de cizacircnia militar palaacutecio e

caserna Afinal a caserna era composta por militares de meacutedias e baixas patentes que

durante os primeiros anos da ditadura lutaram internamente por atuarem no combate ao

ldquoinimigo internordquo a fim de terem uma maior participaccedilatildeo na poliacutetica o que ocasionou

algumas cizacircnias militares Foi justamente por temer o resultado dessas cizacircnias que o

palaacutecio formado pelos militares de altas patentes que possuiacuteam cargos no governo aos

poucos cedeu esses poderes agrave caserna e assim o aparato de seguranccedila nacional foi

sendo instituiacutedo e dentro dele o SISSEGIN e os DOI-CODI Logo como eacute na

Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio e tambeacutem na Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo onde a atuaccedilatildeo

de interrogar torturar e prender traz os poderes poliacuteticos extras que a caserna

historicamente reivindicava percebe-se que a utilizaccedilatildeo de seus militares para compor

essas equipes era mais uma forma de manter a unidade militar contendo possiacuteveis

cizacircnias

Essa perspectiva torna-se completa quando se identifica que no momento em que

tais atribuiccedilotildees passaram a ser retiradas dos militares da caserna essas cizacircnias natildeo

mais puderam ser contidas Afinal conforme jaacute evidenciado anteriormente quando a

partir do governo de Geisel as atividades de busca apreensatildeo e interrogatoacuterio dos DOI

foram sendo abolidas a caserna passou a reagir posicionando-se contraacuteria agrave cuacutepula do

governo que defendia a abertura poliacutetica passando a apoiar a candidatura presidencial

de militares que defendessem a continuidade de tais atribuiccedilotildees aos DOI e ateacute mesmo

forjando situaccedilotildees terroristas tais como os diversos ataques a bomba que ocorreram na

eacutepoca como forma de endossar a necessidade das atuaccedilotildees repressivas desenvolvidas

pelos DOI

A monografia do coronel Pereira aqui analisada pode tambeacutem ser vista como

mais uma dessas reaccedilotildees da caserna Afinal durante toda a escrita de Pereira haacute uma

70

necessidade de comprovar a eficiecircncia dos DOI na atividade de proteger a seguranccedila

interna do paiacutes Percebe-se assim que Pereira apesar de ser coronel e por conseguinte

jaacute estar entre os oficiais superiores nesse momento ainda se via ligado de alguma forma

aos DOI Talvez porque a histoacuteria de sua carreira militar estivesse totalmente

relacionada com as atividades que ele laacute desempenhou e por isso acreditasse que

enquanto tais atividades continuassem sendo desenvolvidas o seu trabalho tambeacutem

continuaria a ser reconhecidamente importante

Os setores seccedilotildees e subseccedilotildees do DOI normalmente seguiam a configuraccedilatildeo aqui

exposta poreacutem nota-se que suas equipes natildeo eram fixas ou seja poderiam variar de

acordo com as necessidades das operaccedilotildees que surgissem Os DOI foram assim

concebidos como organismos instaacuteveis pois dependendo da gravidade e da quantidade

de accedilotildees armadas que deveriam ser reprimidas o nuacutemero de agentes poderia aumentar

ou diminuir Dessa forma os DOI se adaptavam a diversas circunstacircncias a fim de

combater com eficiecircncia o ldquoterrorismordquo e a ldquosubversatildeordquo

Grande parte dessa necessidade de adaptaccedilatildeo vinha da sobrevalorizaccedilatildeo da

guerrilha urbana entre os militares ligados a organismos de repressatildeo Uma vez que ao

verem a forma organizada e ousada com que a esquerda armada montava suas accedilotildees

sentiram que a estrutura repressiva da eacutepoca anterior agrave experiecircncia da Oban e ao

surgimento dos DOI natildeo estava preparada para combatecirc-las e diante disso

interpretaram tais accedilotildees esquerdistas como uma forte ameaccedila ao paiacutes Afinal as

instituiccedilotildees responsaacuteveis pela repressatildeo direta como por exemplo os DOPS estavam

engessadas por corporaccedilotildees fixas que combatiam as referidas accedilotildees de forma pouco

efetiva reprimindo-as sem a centralizaccedilatildeo e a grandiosidade necessaacuterias

A todos estes atos de banditismo [fazendo referecircncia a assaltos a banco a

sequestros de embaixadores e outras accedilotildees efetuadas pela esquerda armada

71

entre os anos de 1969 e 1970] a nossa Poliacutecia Civil e a Poliacutecia Militar

assistiam sem nada poder fazer Vaacuterias radiopatrulhas foram incendiadas e

os poucos soldados que ousavam enfrentar os terroristas eram

impiedosamente mortos Por que isso acontecia Porque as nossas poliacutecias

foram surpreendidas e natildeo estavam preparadas para um novo tipo de luta que

surgia a guerrilha urbana (Pereira 1978 10)

Entatildeo para conter a guerrilha urbana surgiu a necessidade de um oacutergatildeo de

repressatildeo centralizado e de estrutura maleaacutevel que tornasse possiacutevel e praacutetico reprimir

determinada accedilatildeo armada de acordo com a sua grandiosidade aumentando e diminuindo

o corpo funcional conforme o esforccedilo exigido Em meio a esta concepccedilatildeo de repressatildeo

a estrutura dos DOI foi criada tornando a repressatildeo poliacutetica mais combativa e

consequentemente aumentando a sua eficiecircncia

Com tamanha flexibilidade os DOI movimentavam pessoal e material variaacutevel

com grande mobilidade e agilidade Essa destacada autonomia dos DOI era travada

portanto em benefiacutecio de um aproveitamento maacuteximo de suas accedilotildees jaacute que eram

oacutergatildeos destinados ao combate direto agraves organizaccedilotildees subversivo-terroristas e sua

missatildeo era desmontar toda a estrutura de pessoal e de material destas organizaccedilotildees

bem como impedir a sua reorganizaccedilatildeo (Pereira 1978 22)

A utilizaccedilatildeo de codinomes pelos integrantes das turmas de interrogatoacuterio

preliminar era outra face dessa autonomia de trabalho dos DOI Esse costume era um

benefiacutecio de proteccedilatildeo para a instituiccedilatildeo e tambeacutem para tais militares Afinal como

muitos deles possivelmente aplicavam torturas nos presos durante os interrogatoacuterios o

sigilo com relaccedilatildeo aos seus nomes verdadeiros poderia inviabilizar posteriores

denuacutencias e por conseguinte fortes indiacutecios de que nos DOI a tortura era uma praacutetica

institucionalizada

Aleacutem disso essa mesma autonomia tambeacutem permitia que seus agentes para natildeo

serem reconhecidos pelos ldquoinimigosrdquo durante uma accedilatildeo de prisatildeo por exemplo natildeo

72

trabalhassem de farda e usassem trajes civis o que seria impensaacutevel em qualquer quartel

militar

Como norma de seguranccedila para o trabalho diaacuterio eacute obrigatoacuterio o uso de

traje civil (esporte ou social) de acordo com a missatildeo a desempenhar

Mesmo os oficiais e os comandantes de seccedilatildeo devem de preferecircncia usar

trajes esporte para se confundirem com a maioria dos integrantes do DOI

(Pereira 1978 25)

Os cabelos longos eram outra caracteriacutestica que apesar de improacutepria entre as

demais instituiccedilotildees militares a autonomia dos DOI imprimia a seus agentes conforme

evidenciado no seguinte trecho o cabelo deve ter o tamanho normalmente usado pela

maioria da populaccedilatildeo sendo proibido o cabelo com corte do ldquotipo militarrdquo (Pereira

1978 25) Percebe-se portanto que junto aos trajes civis os cabelos maiores

completavam o visual que os militares dos DOI precisavam ter para que evitassem ser

facilmente reconhecidos nas ruas Dessa forma tentavam minimizar os riscos de serem

percebidos durante uma operaccedilatildeo de investigaccedilatildeo ou minutos antes de efetuarem uma

accedilatildeo de prisatildeo Poreacutem apesar da utilizaccedilatildeo dessas caracteriacutesticas natildeo usuais ser em

benefiacutecio das funccedilotildees que exerciam nos DOI esses militares muitas vezes natildeo eram

compreendidos por aqueles que nas palavras de Pereira natildeo possuiacuteam uma

mentalidade de informaccedilotildees e por conta disso viam no uso do cabelo grande um ato de

indisciplina Essa incompatibilidade de interpretaccedilotildees portanto gerava alguns

transtornos para os agentes dos DOI que mesmo condecorados pela eficiecircncia de seus

serviccedilos de informaccedilotildees agraves vezes passavam por alguns constrangimentos

Jaacute aconteceu o fato de um oficial ou sargento de um DOI necessitar

comparecer a sua Unidade Militar a fim de tratar qualquer problema pessoal

ou mesmo de um assunto de serviccedilo Estes elementos eram barrados agrave

entrada de seus quarteacuteis e recebiam ordem dos comandantes para

73

regressarem cortarem o cabelo e a barba e se apresentarem fardados ou com

a posse de um documento de identidade assinado pelo Comandante do

Exeacutercito autorizando o uso do traje civil e o porte de arma Este

procedimento por parte de algumas autoridades militares daacute a entender que

os elementos do Serviccedilo de Informaccedilotildees satildeo indisciplinados

desenquadrados e sem espiacuterito militar Entretanto eacute necessaacuterio frisar que a

realidade eacute que por exemplo no DOI-CODI do II Exeacutercito [DOI-CODISP]

em trecircs anos 90 componentes foram condecorados com a medalha do

pacificador com palma (Pereira 1978 26)

A medalha do pacificador com palma eacute em tempo de paz a mais alta

condecoraccedilatildeo concedida pelo Comandante do Exeacutercito aos militares e civis brasileiros

que no exerciacutecio de sua funccedilatildeo ou no cumprimento de missotildees de caraacuteter militar

tenham se destacado por atos pessoais de abnegaccedilatildeo coragem e bravura com risco de

vida Portanto muitas vezes os agentes dos DOI que exerciam a funccedilatildeo de prender

integrantes de uma organizaccedilatildeo muito procurada de ldquodesmontar aparelhosrdquo de

destacada importacircncia investigativa ou mesmo de conseguir informaccedilotildees cruciais

durante interrogatoacuterios eram condecorados pelo Comandante do respectivo Exeacutercito

pelo serviccedilo prestado agrave paacutetria Logo percebe-se que mesmo existindo os

constrangimentos institucionais anteriormente citados os oficiais envolvidos nos DOI

eram prestigiados por seus serviccedilos e se sentiam valorizados e incentivados a designaacute-

los com rapidez e eficiecircncia

A partir disso evidencia-se mais uma vez que a tortura nos DOI era consentida

pelos militares superiores e ateacute mesmo incentivada pois atraveacutes do ldquoauxiacuteliordquo que

prestava aos interrogatoacuterios as informaccedilotildees poderiam ser mais faacutecil e rapidamente

conseguidas e grande quantidade de suspeitos presos ldquoaparelhos desmontadosrdquo e

materiais ldquosubversivosrdquo recolhidos Como a presteza desse serviccedilo era almejada tantos

pelos agentes dos DOI interessados no destaque e no reconhecimento militar quanto

74

por seus superiores que vislumbravam neutralizar o quanto antes a ameaccedila que o

ldquoinimigo internordquo representava para o governo ditatorial a tortura parecia ser nos DOI

um meio que se justificava pelos fins

Assim a centralizaccedilatildeo a flexibilidade a autonomia e o consentimentoincentivo agrave

tortura pautavam o ldquoeficienterdquo serviccedilo de repressatildeo dos DOI conforme se pode apurar a

partir dos dados do DOI-CODISP levantados ateacute 30 de junho de 1972 e apresentados

na monografia do coronel Pereira

Subversivos terroristas levantados no Brasil 4400

Quedas impostas pelos oacutergatildeos de seguranccedila no territoacuterio nacional 2800

Quedas impostas pelos oacutergatildeos de seguranccedila do II Exeacutercito (inclusive DOI-

CODI) 1600

Quedas impostas pelo DOI-CODI do II Exeacutercito 1400

Quedas impostas pelos outros oacutergatildeos de seguranccedila da aacuterea do II Exeacutercito

200

Periacuteodo de 23 de janeiro de 1969 a 30 de junho de 1972

Subversivo-terroristas que fizeram curso de guerrilha no exterior 340

Subversivo-terroristas que fizeram curso de guerrilha em Cuba 240

Situaccedilatildeo dos 4400 subversivo-terroristas levantados

Foragidos 1600

Liberados 900

Mortos em combate 100

Presos 1490

Banidos 140

Estes resultados vecircm demonstrar a eficiecircncia operacional do destacamento

neste tipo de guerra especial Natildeo eacute agrave toa que os inimigos assim reconhecem

ao destacamento esta assertiva encontrada na revista Times e no panfleto

Quinzenal (maio de 76) distribuiacutedos recentemente

ldquoSatildeo Paulo criou a mais eficiente e admiraacutevel maacutequina repressiva vista ateacute

hoje no mundo ndash a Operaccedilatildeo Bandeirantes que comeccedilou como uma alianccedila

temporaacuteria entre a poliacutecia local as vaacuterias seccedilotildees de inteligecircncia das trecircs

forccedilas armadas e o SNIrdquo (Pereira 1978 27)

75

Entretanto esse perigoso poder excepcional dos DOI-CODI tomou proporccedilotildees

grandiosas Em meados dos anos 1970 mais especificamente apoacutes o fim da guerrilha do

Araguaia no iniacutecio de 1974 as organizaccedilotildees clandestinas armadas estavam derrotadas

e em contrapartida os DOI-CODI se encontravam em pleno vapor com sua atuaccedilatildeo e

seu aparato institucional ampliado e especializado Tornou-se dessa forma

indispensaacutevel para a sobrevivecircncia do SISSEGIN encontrar novos ldquoinimigos internosrdquo

O foco de ameaccedila passou entatildeo a ser o envolvimento de elementos do Partido

Comunista Brasileiro (PCB) no Movimento Democraacutetico Brasileiro (MDB) partido de

oposiccedilatildeo consentida pelo governo e a atuaccedilatildeo repressiva dos DOI-CODI encontrou

argumentos para continuar em atividade Poreacutem como a declarada ldquoguerra internardquo

havia se esgotado e o paiacutes jaacute se preparava para dar lugar a um futuro democraacutetico o

poder de accedilatildeo dos DOI-CODI comeccedilou a parecer abusivo e negativo ao regime Diante

disso muitas foram as tentativas da caserna e dos demais militares a ela relacionados de

provar a importacircncia e a necessidade dos DOI-CODI para a defesa do paiacutes entre elas a

monografia aqui analisada No entanto tais tentativas natildeo conseguiram evitar que esses

oacutergatildeos sofressem num primeiro momento a reduccedilatildeo de suas atividades e no iniacutecio da

deacutecada de 1980 a extinccedilatildeo

3 O DOI-CODI pelos prisioneiros

Enfim na uacuteltima frente de estudo deste capiacutetulo a anaacutelise sobre a formaccedilatildeo e a

atuaccedilatildeo dos DOI-CODI recai sobre a memoacuteria de seis de seus ex-prisioneiros poliacuteticos

Vale lembrar que estes estiveram detidos no DOI-CODI do Rio de Janeiro durante o

segundo semestre do ano de 1970 e suas memoacuterias foram narradas recentemente entre

os anos de 2002 e 2004 quando foram por mim entrevistados Assim o trabalho sobre

esses depoimentos aqui se concentra na interpretaccedilatildeo que fazem a partir da construccedilatildeo

76

de suas memoacuterias sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI e em como suas

perspectivas dialogam com a frente historiograacutefica e com a monografia do coronel

Pereira abordadas anteriormente

Como o objetivo aqui traccedilado eacute analisar as diversas maneiras pelas quais a

historiografia o coronel Pereira e os presos veem a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-

CODI optou-se por apresentar as trajetoacuterias dos entrevistados no proacuteximo capiacutetulo

Essas junto com o conteuacutedo aqui levantado constroem as bases para a anaacutelise travada

na parte final da presente dissertaccedilatildeo onde se aborda a partir de um estudo mais

concentrado nas memoacuterias dos ex-prisioneiros entrevistados o cotidiano do DOI-

CODIRJ

Entretanto a fim de utilizar essas memoacuterias para a abordagem dialeacutetica aqui

desenhada natildeo pode ser dispensada a aplicaccedilatildeo de um olhar criacutetico tiacutepico a anaacutelises

histoacutericas problematizando-as de forma a perceber suas lacunas e modificaccedilotildees

decorrentes do tempo Tais memoacuterias satildeo inconscientemente fluidas pois estatildeo

diretamente ligadas a emoccedilotildees aleacutem de sofrerem muitas influecircncias do momento em

que satildeo narradas conforme bem elucida Pierre Nora (1993)

A memoacuteria eacute a vida sempre carregada por grupos vivos e nesse sentido ela

estaacute em permanente evoluccedilatildeo aberta agrave dialeacutetica da lembranccedila e do

esquecimento inconsciente de suas deformaccedilotildees sucessivas vulneraacutevel a

todos os usos e manipulaccedilotildees suscetiacutevel de longas latecircncias e de repentinas

revitalizaccedilotildees A histoacuteria eacute a reconstruccedilatildeo sempre problemaacutetica e incompleta

do que natildeo existe mais A memoacuteria eacute um fenocircmeno sempre atual um elo

vivido no eterno presente a histoacuteria uma representaccedilatildeo do passado (Nora

1993 9)

Eacute portanto imprescindiacutevel para este estudo perceber que por traacutes dessa fluidez

das memoacuterias dos depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ age um

77

elemento fundamental o presente Logo a feliz expressatildeo de Robert Frank (1999) o

presente do passado elucida a anaacutelise de forma a colocar em destaque a forte influecircncia

que a temporalidade vivida no momento em que as entrevistas foram concedidas tem

para a construccedilatildeo de suas narrativas

Trata-se de fontes que estatildeo marcadas pelo proacuteprio presente inerentes a ele

qualquer que seja a eacutepoca os depoimentos de testemunhas vivas as fontes

orais Aiacute haacute a contemporaneidade intriacutenseca entre o historiador e o ator

(Frank 1999 103)

Por isso eacute aqui crucial considerar o momento das entrevistas Afinal entre 2002 e

2004 o Brasil jaacute vivia uma democracia consolidada onde antigos oposicionistas agrave

ditadura militar se encontravam no poder Fernando Henrique Cardoso exilado no Chile

ateacute o ano de 1968 e na deacutecada de 1970 apoiador convicto do Movimento Democraacutetico

Brasileiro (MDB) havia sido presidente do Brasil entre os anos de 1995 e 2002 Jaacute

Lula ex-liacuteder sindical que havia comandado algumas das mais importantes greves na

virada das deacutecadas de 1970 para 1980 venceu a campanha presidencial em 2002 e se

tornou no ano seguinte o primeiro ex-operaacuterio a presidir o paiacutes Aleacutem disso as pastas

ministeriais de seu governo foram formadas por antigos opositores agrave ditadura tal como

o ex-liacuteder do movimento estudantil Joseacute Dirceu e a partir de 2005 por Dilma

Rousseff ex-militante de duas das organizaccedilotildees de esquerda que optaram na eacutepoca pela

luta armada o Comando de Libertaccedilatildeo Nacional (COLINA) e a Vanguarda Armada

Revolucionaacuteria Palmares (VAR-Palmares) Logo pode-se dizer que com relaccedilatildeo agrave

memoacuteria poliacutetica de vencidos nos anos de chumbo da ditadura os depoentes se

transformaram em vencedores nos tempos democraacuteticos e obviamente a leitura do

passado de prisatildeo e tortura foi iluminada por esse presente

78

Ressalte-se ainda que os depoimentos se vinculavam agrave implantaccedilatildeo da Comissatildeo

de Anistia por meio da Lei nordm 1055902 que atribuiacutea ao Estado a funccedilatildeo de anistiar e

reparar financeiramente todos os cidadatildeos que tivessem vivenciado quaisquer atos de

exceccedilatildeo incluindo torturas prisotildees arbitraacuterias demissotildees e transferecircncias por razotildees

poliacuteticas ocorridas durante o periacuteodo de 18 de setembro de 1946 ateacute 5 de outubro de

1988 Afinal a reparaccedilatildeo soacute poderia ser concedida pela Comissatildeo de Anistia apoacutes a

anaacutelise de um requerimento contendo as memoacuterias das viacutetimas sobre o periacuteodo em

questatildeo escritas individualmente Como na eacutepoca alguns dos depoentes jaacute haviam

construiacutedo suas memoacuterias prisionais para compor o referido requerimento este deve ser

considerado como um importante fator de influecircncia sobre as narrativas de suas

entrevistas

Em contraste com o que foi apresentado a partir da abordagem historiograacutefica e da

monografia do coronel Pereira Fernando Palha Freire um dos ex-prisioneiros do DOI-

CODIRJ destaca a importacircncia da contribuiccedilatildeo inicial dada pelos policiais civis do

DOPS para a utilizaccedilatildeo da violecircncia em favor da extraccedilatildeo de informaccedilotildees Afinal por

mais que os oacutergatildeos de repressatildeo anteriores agrave criaccedilatildeo dos DOI-CODI natildeo estivessem

devidamente preparados para combater as accedilotildees efetuadas pela esquerda armada seus

agentes de fato haviam acumulado uma experiecircncia em interrogatoacuterios Esta num

primeiro momento era importante uma vez que os militares ateacute entatildeo concentravam

sua formaccedilatildeo sobre a atuaccedilatildeo na guerra declarada natildeo possuindo as maliacutecias

necessaacuterias aos interrogatoacuterios

[] a Poliacutecia Civil tinha os caras mais preparados pra tortura mesmo

Porque jaacute vinham haacute muitos anos jaacute tinham a praacutetica da tortura O militar

batia de frente ele era capaz de te matar mas ele ainda natildeo tinha digamos o

seguinte a essecircncia da tortura Por exemplo um coronel virou pro cara e

disse assim - ldquoO senhor eacute um comunistardquo aiacute ele disse assim - ldquoE o senhor eacute

79

uma bestardquo Ele matou o cara quer dizer matou sem colher o que queria

Um policial civil poderia ateacute matar o cara mas antes colheria o que queria

eles tinham a praacutetica da tortura Depois os militares se aperfeiccediloaram []

(Freire 28 jun 2004)

No entanto indo ao encontro do que foi abordado pelas outras duas frentes de

estudo aqui traccediladas Ceciacutelia Coimbra tambeacutem ex-prisioneira do DOI-CODIRJ

evidencia a eficiecircncia desse oacutergatildeo com relaccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo A partir de uma situaccedilatildeo

especiacutefica de sua prisatildeo ela percebe como o niacutevel de organizaccedilatildeo do serviccedilo de

informaccedilotildees dos DOI era superior ao do DOPS

Fomos presos eu e meu marido e levados para o DOPS em agosto de 1970

[] quando deram vistoria laacute em casa encontraram um documento que por

ironia do destino era sobre seguranccedila [] Eu fiquei dois dias e meio no

DOPS sendo interrogada sobre o tal documento que nem eu nem o Novaes

falaacutevamos diziacuteamos que natildeo sabiacuteamos de onde era Dois dias e meio depois

quando noacutes fomos para o DOI-CODI logo eles identificaram de onde era o

documento Para vocecirc ver o niacutevel de competecircncia do serviccedilo de informaccedilotildees

do DOI-CODI comparado ao do DOPS O DOPS era ldquomerdinhardquo comparado

com a eficiecircncia do DOI-CODI (Coimbra 30 nov 2004)

Percebe-se assim tanto pela historiografia e pela monografia do coronel Pereira

quanto pela memoacuteria de ex-prisioneiros poliacuteticos que a centralizaccedilatildeo de informaccedilotildees

nos CODI e a relaccedilatildeo direta que esses travavam com os DOI traziam uma agilidade agraves

anaacutelises que natildeo havia nos demais oacutergatildeos Logo a forma centralizada e orquestrada

com que os DOI-CODI agiam significava uma profissionalizaccedilatildeo cada vez maior da

repressatildeo poliacutetica ou seja a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo

Assim apesar de serem instituiccedilotildees distintas a atuaccedilatildeo dos CODI e dos DOI

estavam totalmente interligadas Como apurado por meio do estudo historiograacutefico e

dos dados contemplados na monografia do coronel Pereira enquanto aos CODI cabia

80

concentrar e analisar as informaccedilotildees sobre a seguranccedila interna de suas Regiotildees

Militares aos DOI cabia a partir das informaccedilotildees passadas pelos CODI atuar

diretamente na repressatildeo aos ldquoinimigos internosrdquo e extrair de seus prisioneiros poliacuteticos

informaccedilotildees a serem repassadas aos CODI Diante dessa forte ligaccedilatildeo essas duas

instituiccedilotildees ficaram conhecidas como se fossem um uacutenico oacutergatildeo por meio da sigla

DOI-CODI Essa simbiose entre os CODI e os DOI ficou marcada sobretudo nas

memoacuterias de suas viacutetimas conforme se pode verificar no seguinte trecho

[] tenta entender o que eacute DOI-CODI o DOI-CODI eacute uma instituiccedilatildeo

montada por diversos oacutergatildeos de repressatildeo que funcionava [no Rio de

Janeiro] no quartel da PE [1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito] (Pandolfi 5

fev 2003)

De acordo com os seis entrevistados assim como indicado pela a anaacutelise das

demais frentes de estudo do presente capiacutetulo a praacutetica de tortura era corriqueira nos

interrogatoacuterios dos DOI Esse fato inclusive poderia ser associado agrave sua proacutepria

designaccedilatildeo que na forma abreviada se apresenta sob a sigla DOI correspondendo

sugestivamente agrave conjugaccedilatildeo do verbo doer na terceira pessoa do singular

Soube que ningueacutem entrava no DOI-CODI sem sofrer algum tipo de tortura

fiacutesica ou psicoloacutegica mas principalmente a fiacutesica e realmente natildeo creio

que algueacutem tenha passado por laacute imune agrave tortura [] Quando a gente chega

ao DOI-CODI chega logo tomando porrada Natildeo tinha essa histoacuteria de meu

senhor era tapa Tapa choque eleacutetrico pau de arara a isso tudo eu fui

submetido O primeiro interrogatoacuterio que natildeo eacute um interrogatoacuterio formal

judicial eacute feito sob essas condiccedilotildees Depois bem depois eacute que eu fui ser

interrogado no DOPS em outras condiccedilotildees [] Eu fui torturado mesmo na

Rua Baratildeo de Mesquita na PE laacute sim eu fui bastante torturado []

(Carvalho 12 set 2002)

81

[] laacute na PE vocecirc natildeo fazia nada a natildeo ser ficar esperando o tempo para ser

interrogada para ser torturada [] (Pandolfi 5 fev 2003)

Laacute no DOI-CODI comia tudo choque pau-de-arara afogamento pancada

Laacute que eu descobri esse termo que fulano virou presunto neacute Porque vocecirc

fica igual a um presunto mesmo porque eles te datildeo pancadas localizadas []

(Freire 28 jun 2004)

[] laacute no DOI-CODI tinha todo tipo de torturas desde choques eleacutetricos na

matildeo direita esquerda peacute esquerdo Eu sofri isso tambeacutem (Prigol 28 set

2004)

[] o meu negoacutecio era ganhar tempo e o deles era conseguir informaccedilatildeo A

luta eacute essa nos primeiros dias eacute vocecirc dar o miacutenimo de informaccedilotildees e eles

querendo arrancar o maacuteximo de informaccedilatildeo neacute Aiacute eles vecircm com a maacutexima

de que torturar eacute investigar (risos) E daiacute se precisar ateacute a morte o negoacutecio

eacute conseguir informaccedilatildeo (Batista 17 nov 2004)

[] onde eram os choques eleacutetricos que na PE eles davam eles me

molhavam toda para o choque ser mais intenso e botavam principalmente

nas partes onde eram mais sensiacuteveis como ouvido nariz boca bico do

peito vagina acircnus[] o choque eleacutetrico eacute indescritiacutevel porque vocecirc perde a

noccedilatildeo do tempo e todo e qualquer controle da bexiga e dos intestinos []

(Coimbra 30 nov 2004)

Portanto ali a incumbecircncia era operar a extraccedilatildeo de informaccedilotildees e para isso a

tortura como meacutetodo era utilizada pelos agentes das turmas de interrogatoacuterio

preliminar Afinal em uma ponta da sofisticaccedilatildeo repressiva apresentada pelos DOI-

CODI estava a concentraccedilatildeo de informaccedilotildees dos CODI e na outra a agilidade que a

extraccedilatildeo de informaccedilotildees possibilitada principalmente pelo uso das torturas durante os

interrogatoacuterios dos presos dava agraves operaccedilotildees de busca e apreensatildeo de mais ldquoelementos

subversivosrdquo

82

A partir dos depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados assim como

da anaacutelise da historiografia selecionada e dos dados trazidos pelo coronel Pereira em sua

monografia percebe-se que os DOI-CODI ocupavam somente uma parte dos quarteacuteis

do Exeacutercito onde se localizavam e na parte restante o funcionamento desses quarteacuteis

continuava normalmente Os DOI-CODI eram portanto prisotildees atiacutepicas diferentes das

convencionais construiacutedas desde o iniacutecio para acomodar prisioneiros Assim eacute coerente

que o serviccedilo de carceragem nos DOI-CODI fosse executado pelos soldados que

serviam ao proacuteprio quartel jaacute que esse era apenas um serviccedilo de apoio um auxiacutelio natildeo

agrave toa feito por agentes de turmas que eram intituladas auxiliares

Os soldados que serviam ao quartel a quem era atribuiacutedo o serviccedilo de

carceragem eram conhecidos no DOI-CODIRJ por ldquocatarinasrdquo devido a suas

caracteriacutesticas fiacutesicas e tambeacutem ao sotaque tiacutepico ao estado de Santa Catarina Os

ldquocatarinasrdquo eram identificados como soldados devido ao fato dos agentes propriamente

do DOI-CODIRJ normalmente andarem a paisana enquanto eles usavam farda ou seja

trajes tradicionais a militares que natildeo estivessem ligados a operaccedilotildees de informaccedilotildees

Os agentes dos DOI-CODI como elucidado por meio da segunda frente deste capiacutetulo

por precisarem ser confundidos com civis se diferenciavam dos demais soldados

Na PE os soldados eram sempre de Santa Catarina [] pessoas de portes

fiacutesicos avantajados e essa condiccedilatildeo fiacutesica era uma espeacutecie de exigecircncia para

servir ao quartel da Poliacutecia Militar Eram entatildeo os ldquocatarinasrdquo [] (Carvalho

8 fev 2003)

[] quem torturava a gente era o pessoal do DOI-CODI normalmente eles

andavam a paisana [] e quem fazia o trabalho burocraacutetico ou seja a

limpeza da PE quem dava o cafeacute da gente quem abria a cela e fechava a

cela eram os soldados uniformizados Eram ateacute os ldquocatarinasrdquo porque

tinham muitos que vinham de Santa Catarina eram soldados altos [] entatildeo

83

os soldados faziam a burocracia e os militares do DOI-CODI faziam essa

parte digamos da investigaccedilatildeo poliacutetica [] (Pandolfi 5 fev 2003)

[] os ldquocatarinasrdquo eram os guardinhas era o pessoal que estava servindo

eles tinham dezoito ou dezenove anos eles estavam servindo ao Exeacutercito e

alguns deles ateacute amenizavam a nossa situaccedilatildeo [hellip] (Batista 17 nov 2004)

Diferentemente do que se percebe na monografia feita pelo coronel Pereira em

1978 nas memoacuterias aqui analisadas a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI no ano de 1970

consagrou-se como um dos periacuteodos mais difiacuteceis de suas vidas Nota-se no entanto

que os nuacutemeros e percentuais que na eacutepoca eram interpretados por muitos militares

como forte indiacutecio de eficiecircncia da instituiccedilatildeo no combate ao ldquoinimigo internordquo estatildeo

em meio ao contexto democraacutetico em que as narrativas dos ex-presos foram construiacutedas

diretamente ligados agrave memoacuteria da tortura e da violaccedilatildeo aos direitos humanos Como se

pode analisar a partir da interpretaccedilatildeo de Ceciacutelia Coimbra uma das ex-prisioneiras

poliacuteticas fundadoras do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro 15

[] eu acho a fala para mim a minha militacircncia no Tortura Nunca Mais

fundamental Em 85 quando a gente fundou o Grupo foi fundamental no

sentido de tornar isso puacuteblico e natildeo soacute como se fosse uma coisa de lamento

da gente uma coisa da dor da gente dessa marca que natildeo vai sair nunca []

mas como instrumento de luta instrumento de denuacutencia [] (Coimbra 30

nov 2004)

Durante o periacuteodo das entrevistas aqueles que viveram a experiecircncia dos DOI-

CODI a partir do outro lado de suas grades muitas vezes veem as dolorosas lembranccedilas

daquele tempo como um meio de fazer justiccedila e ateacute mesmo contribuir para a

solidificaccedilatildeo da democracia enquanto que os militares que no passado se orgulhavam

15

O GTNMRJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-prisioneiros poliacuteticos que viveram situaccedilotildees de

tortura durante o regime militar e por familiares de mortos e desaparecidos poliacuteticos Para mais

informaccedilotildees ver o perfil de Ceciacutelia Coimbra no proacuteximo capiacutetulo

84

de seus feitos lutam no presente por natildeo serem a eles associados Diante disso nota-se

que apoacutes o teacutermino da ditadura em 1985 as memoacuterias dos entatildeo vencidos

movimentam-se de forma a se sobreporem agraves dos vencedores conseguindo aos poucos

garantir seu espaccedilo de viacutetimas da ditadura e ao mesmo tempo de heroacuteis da democracia

na poliacutetica na justiccedila e na histoacuteria

85

Capiacutetulo 2 ndash Os presos poliacuteticos e suas organizaccedilotildees

Nas escolas nas ruas

campos construccedilotildees

Somos todos soldados

Armados ou natildeo

Caminhando e cantando

E seguindo a canccedilatildeo

Somos todos iguais

Braccedilos dados ou natildeo

Os amores na mente

As flores no chatildeo

A certeza na frente

A histoacuteria na matildeo

Caminhando e cantando

E seguindo a canccedilatildeo

Aprendendo e ensinando

Uma nova liccedilatildeo

Geraldo Vandreacute

(Pra natildeo dizer que natildeo falei de flores 1968)

86

Antocircnio Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia satildeo alguns dos brasileiros

que lutaram contra a ditadura militar no paiacutes e que na eacutepoca foram presos pelo governo

nas dependecircncias do DOI-CODI do Rio de Janeiro Trecircs homens e trecircs mulheres que

apesar de suas trajetoacuterias pessoais e poliacuteticas distintas possuem ateacute hoje fortes elos

construiacutedos pela passagem pelo DOI-CODI carioca

Foi especificamente essa vivecircncia prisional comum que me despertou o interesse

pelas memoacuterias desses seis atores histoacutericos O objetivo era a partir da oacutetica dos ex-

prisioneiros entender como funcionava na praacutetica o DOI-CODIRJ Assim entre os

anos de 2002 e 2004 em meio aos governos dos ex-presidentes Fernando Henrique e

Lula ou seja jaacute em tempos democraacuteticos Antocircnio Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana

e Ceciacutelia me concederam entrevistas sobre suas prisotildees no DOI-CODIRJ bem como

sobre suas trajetoacuterias pessoais e poliacuteticas antes e depois de suas prisotildees

Esses depoimentos ndash principal objeto de pesquisa desta dissertaccedilatildeo ndash trazem aleacutem

das lembranccedilas sobre o cotidiano prisional de um DOI-CODI muito da personalidade e

da vivecircncia de cada um desses indiviacuteduos Atraveacutes dessas memoacuterias pode-se lidar com

as idiossincrasias de cada um deles relativizando a ideia de uma memoacuteria coletiva

comum a todos os ex-prisioneiros poliacuteticos que ficaram no quartel da Rua Baratildeo de

Mesquita Pode-se ainda conhecer um pouco mais de perto a loacutegica de construccedilatildeo de

suas memoacuterias individuais analisando como cada um desses indiviacuteduos se vecirc atraveacutes do

passado de militacircncia e prisatildeo como se identifica por meio desse passado imprime essa

identidade no mundo externo e como este mundo influencia na percepccedilatildeo que possui

sobre si mesmo

No entanto as memoacuterias individuais aqui trabalhadas natildeo estatildeo isoladas jaacute que

conforme bem evidenciado por Maurice Halbwachs em A memoacuteria coletiva (2004)

frequentemente tomam como referecircncia pontos externos ao sujeito se apoiando em

87

percepccedilotildees recebidas de determinada memoacuteria coletiva de um grupo e tambeacutem pela

memoacuteria histoacuterica de seu paiacutes (2004 57-59) Partindo dessa ideia percebe-se aqui que

nas memoacuterias narradas por indiviacuteduos que fizeram parte de uma mesma organizaccedilatildeo de

esquerda armada ou que ainda hoje integram um mesmo grupo como por exemplo o

Grupo Tortura Nunca MaisRJ satildeo encontrados mais pontos de contato Aleacutem disso

todos os depoentes mostram ter como base de suas lembranccedilas a memoacuteria histoacuterica

pois em algum momento as localizam no tempo por meio de datas e fatos que se

estabeleceram como histoacutericos tal como o golpe civil-militar de 31 de marccedilo de 1964

ou a decretaccedilatildeo do AI-5 em 13 de dezembro de 1968

Cabe aqui ressaltar que ex-prisioneiros do DOI-CODIRJ entrevistados eram em

sua grande maioria estudantes que se tornaram combatentes da esquerda armada a

partir da proibiccedilatildeo de atividades e manifestaccedilatildeo sobre o assunto de natureza poliacutetica

estipulada pelo inciso III do artigo 5ordm do AI-5 e que em suas memoacuterias a

promulgaccedilatildeo deste Ato representa um marco temporal muito mais forte do que o golpe

civil-militar de 1964 Afinal para suas trajetoacuterias de vida o AI-5 de 13 de dezembro de

1968 foi um divisor de aacuteguas pois tornava as manifestaccedilotildees estudantis proibidas

revoltando-os e estimulando-os ainda mais a lutar pela derrubada do regime ditatorial

Diante disso a maioria dos depoentes sustenta em suas memoacuterias o AI-5 como um

momento em que suas vidas foram postas em xeque A partir do dia de sua

promulgaccedilatildeo eles se viram diante da necessidade de decidir se continuavam ou natildeo a

agir contra a ditadura e em caso positivo se deveriam considerar a violecircncia armada

como uma via de luta uma vez que os movimentos paciacuteficos estavam totalmente

encurralados Como a opccedilatildeo da maior parte deles foi a de pegar em armas ndash decisatildeo que

acarretou natildeo soacute em suas prisotildees mas tambeacutem na mudanccedila da percepccedilatildeo que tinham

sobre a vida jaacute que ao andarem armados passavam a ter a consciecircncia de que viviam

88

sob a ameaccedila da morte ndash o AI-5 tem papel de destaque entre suas memoacuterias do periacuteodo

militar Essa importacircncia do AI-5 pode ser exemplificada no trecho abaixo destacado da

entrevista de Ana de Miranda Batista

O AI-5 foi determinante Porque vocecirc natildeo tinha mais formas de expressatildeo

vocecirc natildeo podia se reunir vocecirc natildeo podia mais fazer nada era impedido pela

poliacutecia A gente estava amordaccedilado a imprensa amordaccedilada os teatros os

cinemas tudo Era um terror muita poliacutecia na rua muita blitz blitz de

montatildeo sabe Quem quisesse ser como a gente -ldquoAbaixo a Ditadura

Abaixo a Repressatildeordquo As formas de expressatildeo se reduziram a quase zero Aiacute

eacute que houve um pontapeacute na decisatildeo de muitos de noacutes de quer dizer soacute

restou a luta armada soacute restou resistir de forma armada mesmo que pra

maioria de noacutes fosse uma decisatildeo extrema [] eu nem uma arma de perto

eu nunca tinha visto Quer dizer esse momento eacute um momento draacutestico

quer dizer um tempo depois eacute que eu conversando eacute que vi que natildeo foi

assim soacute para mim Porque para alguns dos rapazes que tinham servido ao

Exeacutercito e sei laacute o quecirc eles jaacute tinham alguma familiaridade com armas quer

dizer alguns deles Mas a gente menina classe meacutedia natildeo Eu nunca tinha

visto nunca tinha me interessado por arma na vida (risos) natildeo fazia parte do

meu universo E teve muita gente que nessa eacutepoca pirou Pirou que eu digo

de natildeo querer mais saber Muita gente E eu acho extremamente respeitaacutevel

essa decisatildeo porque eacute uma decisatildeo draacutestica [] porque no momento em que

vocecirc estaacute com uma arma vocecirc pode matar ou morrer Eacute muito grave essa

decisatildeo Vocecirc estaacute lidando com a possibilidade da morte e quando vocecirc

nunca teve familiaridade assim quando vocecirc nunca viu uma arma eacute muito

difiacutecil [] (Batista 17 nov 2004)

Vale aqui mais uma vez destacar que essas memoacuterias do passado satildeo lavadas nas

aacuteguas do presente ou seja satildeo o preacutesent du passeacute conforme a feliz expressatildeo de Robert

Frank (1999) As memoacuterias sobre as experiecircncias prisionais do DOI-CODIRJ

ocorridas durante os ldquoanos de chumbordquo da ditadura militar foram construiacutedas em

entrevistas concedidas entre o final do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-

2002) e o iniacutecio do governo de Lula (2003-10) ambos perseguidos poliacuteticos durante o

89

periacuteodo ditatorial Portanto a perspectiva de vencidos que no passado direcionava as

memoacuterias dos depoentes abre lugar para uma narrativa proacutexima agrave de vencedores pela

qual os ex-prisioneiros poliacuteticos se veem como responsaacuteveis pela construccedilatildeo da

democracia e de uma justiccedila de transiccedilatildeo ainda em curso no Brasil

Uma ideia de justiccedila de transiccedilatildeo iniciou-se principalmente a partir da

Constituiccedilatildeo de 1988 quando a reparaccedilatildeo aos perseguidos poliacuteticos do passado

ditatorial se transformou em garantia constitucional No entanto foi somente a partir de

1995 jaacute no governo FHC que ela comeccedilou a ser implantada por meio da primeira

comissatildeo de reparaccedilatildeo a Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos (lei nordm

914095) Aleacutem disso em 2002 sete anos depois a reparaccedilatildeo aos perseguidos pela

ditadura foi complementada por meio da Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio da Justiccedila

(lei nordm 1055902) Assim quando a primeira entrevista me foi concedida em setembro

de 2002 a Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos jaacute trabalhava no sentido de

reconhecer a responsabilidade do Estado brasileiro por mortes e desaparecimentos de

presos poliacuteticos ocorridas durante a ditadura enquanto a Comissatildeo de Anistia iniciava a

sua funccedilatildeo de

[] reparar os atos de exceccedilatildeo incluindo as torturas prisotildees arbitraacuterias

demissotildees e transferecircncias por razotildees poliacuteticas sequestros compelimento agrave

clandestinidade e ao exiacutelio banimentos expurgos estudantis e

monitoramentos iliacutecitos (Abratildeo 2010 4)

Conforme jaacute abordado no primeiro capiacutetulo os procedimentos impostos pela Lei

105592002 influenciaram como natildeo podia deixar de ser o processo de construccedilatildeo das

memoacuterias aqui trabalhadas Afinal o referido processo se iniciava com um relato da

viacutetima sobre as agressotildees e perseguiccedilotildees sofridas agrave eacutepoca ditatorial Este deveria

configurar uma espeacutecie de memorial no qual o requerente deveria destacar todas as

90

violaccedilotildees sofridas a ser apresentado agrave Comissatildeo cabendo a esta apoacutes a verificaccedilatildeo dos

fatos expostos conceder ou natildeo ao requisitante a condiccedilatildeo de anistiado poliacutetico e

dependendo do caso a correspondente reparaccedilatildeo econocircmica Como alguns dos

entrevistados passavam por este processo no mesmo periacuteodo em que concederam as

entrevistas eacute notaacutevel que tal experiecircncia seja mais uma forte influecircncia do presente na

construccedilatildeo das memoacuterias por eles narradas Esse momento de busca por reparaccedilatildeo por

que muitos passavam inconscientemente os conduzia a enfatizar durante as narrativas

suas condiccedilotildees de ldquoviacutetimasrdquo do passado em detrimento por exemplo de suas condiccedilotildees

de ldquosiacutembolos da resistecircnciardquo

Ainda diante da capacidade de intervenccedilatildeo que o presente exerce sobre as

memoacuterias do passado deve-se considerar tambeacutem a forma como essa rede de

entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que as entrevistas foram realizadas

Afinal o caminho trilhado ateacute o depoente e o momento especiacutefico de cada narrativa

composto pelo local e as condiccedilotildees gerais sob as quais ocorreu tambeacutem influenciam na

construccedilatildeo das memoacuterias do entrevistado tanto por parte do historiador na maneira

como aborda o narrador quanto por parte do proacuteprio narrador por meio da forma com

que narra suas memoacuterias Portanto acredita-se aqui que a busca por cada entrevistado

interfere na abordagem que o entrevistador imprime agrave entrevista e na forma como o

narrador se sente ao narrar suas memoacuterias naquele momento tornando o instante de

cada entrevista um fator tambeacutem de intervenccedilatildeo na narrativa das memoacuterias do passado

Dessa forma antes de tratar-se das trajetoacuterias de vida narradas por cada ex-prisioneiro

entrevistado optou-se aqui por considerar como o instante de cada entrevista foi

construiacutedo ou seja como a rede de entrevistas foi formada

91

1 A rede de entrevistas

A primeira entrevista foi feita com o ex-preso poliacutetico Antocircnio Leite de Carvalho

em 12 de setembro de 2002 na sala de sua casa situada bem proacutexima ao quartel do 1ordm

BPE onde se localizava o DOI-CODIRJ O espaccedilo ocupado por esta instituiccedilatildeo que eacute

intensamente abordado no proacuteximo capiacutetulo situava-se nos fundos do referido quartel

cujo edifiacutecio foi construiacutedo durante o Impeacuterio e ainda hoje se encontra entre a Avenida

Maracanatilde e a Rua Baratildeo de Mesquita no bairro da Tijuca na cidade do Rio de Janeiro

Cheguei ateacute Antocircnio atraveacutes de seu filho Joatildeo meu colega do curso de graduaccedilatildeo

em histoacuteria pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Sabedor

do meu interesse sobre o tema da repressatildeo poliacutetica Joatildeo procurou me ajudar e ao

mesmo tempo satisfazer a curiosidade que sentia sobre esta parte da vida de seu pai

Portanto durante a minha primeira visita agrave casa de Antocircnio enquanto ele narrava

suas memoacuterias sobre o periacuteodo em que esteve preso nas dependecircncias do quartel

vizinho Joatildeo atravessava constantemente a sala em direccedilatildeo agrave varanda ou agrave cozinha

Assim sem que Antocircnio aparentemente percebesse jaacute que estava concentrado em sua

narrativa Joatildeo tentava ouvir um pouco mais sobre um passado que seu pai nunca havia

revelado abertamente aos filhos

Percebe-se entatildeo como lidar com detalhes dessa memoacuteria era complicado para

Antocircnio e portanto o quanto aquele momento era importante para ele e para seu filho

Atraveacutes da entrevista enquanto Antocircnio passava a sentir um maior orgulho daquelas

memoacuterias pois por meio do meu interesse em entrevistaacute-lo comeccedilava a percebecirc-las

como fonte para a histoacuteria do paiacutes Joatildeo conhecia melhor o seu pai e passava a entender

algumas de suas atitudes que ateacute entatildeo questionava

Era o caso da reaccedilatildeo arredia que Antocircnio tinha ao ser acordado de forma

inesperada enquanto dormia no sofaacute da casa Assim apoacutes ouvir sobre o cotidiano e as

92

torturas a que seu pai afirma ter sido submetido no DOI-CODIRJ Joatildeo comeccedilou a

compreender que tal reaccedilatildeo tinha relaccedilatildeo com esse passado quando Antocircnio muitas

vezes pode ter sido despertado de desmaios ocasionados por choques eleacutetricos e outras

torturas a ele perpetradas ainda na sala de interrogatoacuterio Logo o fato de acordar

assustado tentando se proteger ou ateacute mesmo agredir quem o acordasse pode ser

compreendido quando relacionado agraves marcas que as violecircncias vividas no DOI-

CODIRJ deixaram na memoacuteria de Antocircnio

A partir dessa primeira entrevista o meu interesse pelo tema se aprofundou

impulsionando-me a buscar outros possiacuteveis entrevistados No dia 5 de fevereiro de

2003 consegui entrevistar Dulce Chaves Pandolfi Seu nome foi aventado por meio da

leitura sobre a passagem de Dulce pelo DOI-CODIRJ encontrada no livro Brasil

Nunca Mais publicado pela Editora Vozes em 1985

A estudante Dulce Chaves Pandolfi 24 anos foi obrigada tambeacutem a servir

de cobaia no quartel da rua Baratildeo de Mesquita no Rio [] Na Poliacutecia do

Exeacutercito foi submetida a espancamento inteiramente despida bem como a

choques eleacutetricos e outros supliacutecios como o ldquopau-de-ararardquo Depois de

conduzida agrave cela onde foi assistida por meacutedico foi apoacutes algum tempo

novamente seviciada com requintes de crueldade numa demonstraccedilatildeo de

como deveria ser feita a tortura [] (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985 32)

Depois de algumas tentativas frustradas de marcar esta entrevista por meio de

mensagens via correio eletrocircnico que encontrei atraveacutes do site do CPDOC centro de

pesquisa onde Dulce trabalha como pesquisadora e professora ela enfim me recebeu em

sua sala no interior deste mesmo centro de pesquisa Sua resistecircncia inicial pode ser

atribuiacuteda ao fato de na condiccedilatildeo de pesquisadora estar mais acostumada ao papel de

entrevistadora do que ao de entrevistada ou seja estar mais afinada com o trabalho de

analisar as fontes do que com o de ser a proacutepria fonte Diante disso durante sua

93

entrevista Dulce natildeo se sentiu agrave vontade em tratar dos detalhes das violecircncias sofridas

no DOI-CODIRJ o que pode ser explicado pela dor que ainda acompanha suas

memoacuterias e tambeacutem pelo desconforto que a situaccedilatildeo lhe trazia jaacute que ela possivelmente

natildeo se desvinculava do fato de ser uma professora universitaacuteria expondo sua intimidade

a uma aluna de graduaccedilatildeo No entanto justamente por lecionar histoacuteria e por

conseguinte jaacute estar convencida da importacircncia de seu depoimento Dulce apresentou

uma narrativa articulada e aparentemente coerente

Apoacutes a entrevista de Dulce ficou evidente a desarticulaccedilatildeo da memoacuteria de

Antocircnio uma vez que esta era silenciada haacute muito tempo e portanto natildeo possuiacutea uma

construccedilatildeo preacute-estabelecida por outros discursos Tal percepccedilatildeo me levou a voltar a

entrevistaacute-lo em 8 de fevereiro de 2003 trecircs dias depois da entrevista de Dulce quando

Antocircnio jaacute demonstrava uma memoacuteria mais articulada Afinal esse silecircncio que

caracterizava sua memoacuteria lhe atribuiacutea um aspecto negativo e um destacadamente

positivo O lado negativo era que conforme elucidado por Michael Pollak em Memoacuteria

esquecimento e silecircncio (1989) dificilmente sua memoacuteria foi transmitida de forma

intacta durante todo o tempo em que ficou guardada ateacute o dia em que a entrevista

significou uma oportunidade para que ela saiacutesse do ldquonatildeo-ditordquo Poreacutem o lado positivo a

meu ver merecedor de destaque era que a memoacuteria de Antocircnio sobre a prisatildeo no DOI-

CODIRJ possuiacutea poucas influecircncias por decorrecircncia do contato com as memoacuterias de

outros ex-prisioneiros pois natildeo estava a elas diretamente relacionada por meio de

nenhuma coletividade especiacutefica

No ano seguinte ao buscar mais informaccedilotildees sobre o DOI-CODIRJ no Arquivo

Puacuteblico do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) conheci Fernando Palha Freire que viria

a ser o meu terceiro entrevistado Na eacutepoca da entrevista em junho de 2004 Fernando

trabalhava neste Arquivo enviando ao governo estadual a documentaccedilatildeo de requerentes

94

agrave reparaccedilatildeo econocircmica conforme constava no decreto nordm 31995 de 10 de outubro de

2002 Este decreto regulamentava a lei estadual Nordm 3744 de 21 de dezembro de 2001

que antes mesmo da lei federal 105592002 entrar em vigor dispunha sobre a

reparaccedilatildeo a pessoas que haviam sido detidas sob acusaccedilatildeo de terem participado de

atividades poliacuteticas entre os dias 1ordm de abril de 1964 e 15 de agosto de 1979 e que

haviam sofrido tortura em oacutergatildeos puacuteblicos estaduais

Ao saber sobre o meu tema de pesquisa um arquivista do APERJ me apresentou a

Fernando que natildeo hesitou em me conceder seu depoimento A entrevista foi realizada laacute

mesmo dentro da sala em que Fernando trabalhava e por ter sido concedida durante o

horaacuterio de expediente fomos constantemente interrompidos por ligaccedilotildees telefocircnicas Ao

longo de sua entrevista Fernando confessou ter falado muitas vezes sobre suas

memoacuterias do periacuteodo militar e que justamente por entender a importacircncia desse

passado havia sido nomeado para instruir os requisitantes agrave reparaccedilatildeo estipulada pelo

Decreto estadual Nordm 319952002 Dessa forma justifica-se a apresentaccedilatildeo tranquila e

eloquente que conduz sua narrativa

Trecircs meses depois no final de setembro Padre Maacuterio Prigol da Paroacutequia de

Nossa Senhora da Salete localizada no bairro do Catumbi no Rio de Janeiro me

concedeu seu depoimento Esta entrevista foi possiacutevel por intermeacutedio de Alejandra

outra colega do curso de graduaccedilatildeo em histoacuteria da UNIRIO que o conhecia por jaacute tecirc-lo

entrevistado sobre a sua participaccedilatildeo nos movimentos da Juventude Operaacuteria Catoacutelica

(JOC) e Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) 16

Durante a entrevista que me concedeu Padre Maacuterio falou muito sobre as lutas

sociais que travou durante a ditadura militar descritas no livro que havia acabado de

publicar ndash Maacuterio Prigol educador da feacute entre trabalhadores e militantes populares

16

Para mais informaccedilotildees ver Estevez 2008

95

(2003) Entretanto sobre sua passagem pelo DOI-CODIRJ pouco fazia questatildeo de

narrar reconhecendo em certo momento que laacute tambeacutem havia sofrido com torturas o

que explica em parte o desconforto que as lembranccedilas prisionais lhe traziam

Provavelmente por sua prisatildeo ter lhe colocado na eacutepoca em uma posiccedilatildeo extremamente

conflitante e perturbadora para uma autoridade da Igreja Catoacutelica anos mais tarde essas

memoacuterias ainda eram difiacuteceis de serem narradas e lembrar a violecircncia sofrida dentro do

DOI-CODIRJ possivelmente trazia de volta alguns transtornos de ordem sentimental

indesejaacuteveis Afinal presume-se que na prisatildeo seus sentimentos oscilassem entre os

tipicamente humanos tais como dor e raiva e os cristatildeos como feacute e perdatildeo tais

memoacuterias remetiam a sentimentos humanos que ele em respeito a sua vocaccedilatildeo de

padre deveria renegar

Decidida a ampliar ainda mais o escopo de minha rede de entrevistados passei a

frequentar as reuniotildees abertas ao puacuteblico agraves segundas-feiras agrave noite na sede do Grupo

Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTMNRJ) no bairro de Botafogo O

GTNMRJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-prisioneiros poliacuteticos que viveram

situaccedilotildees de tortura durante o regime militar bem como por familiares de mortos e

desaparecidos poliacuteticos O Grupo tornou-se por meio das lutas em defesa dos direitos

humanos uma importante referecircncia no cenaacuterio nacional Ao longo dessas deacutecadas o

GTNMRJ vem lutando pelo esclarecimento das circunstacircncias da morte e do

desaparecimento de militantes poliacuteticos pelo resgate da memoacuteria da repressatildeo ditatorial

pelo afastamento imediato dos cargos puacuteblicos de pessoas envolvidas com a tortura e

pela formaccedilatildeo de uma consciecircncia eacutetica condiccedilatildeo que a entidade defende ser

indispensaacutevel na luta contra a impunidade e pela justiccedila Aleacutem disso o Grupo vem

denunciando antigos e novos casos de tortura exigindo puniccedilatildeo para seus perpetradores

96

atraveacutes de notas na miacutedia entrevistas atos puacuteblicos seminaacuterios e outras atividades 17

Minha ida agrave sede do Grupo resultou na incorporaccedilatildeo de duas novas entrevistadas a

minha rede A primeira delas foi Ana de Miranda Batista que em 17 de novembro de

2004 me recebeu em uma das salas do proacuteprio GNTMRJ Ana havia acabado de

escrever seu memorial ndash onde narrava todas as perseguiccedilotildees e prisotildees que havia sofrido

durante a ditadura militar ndash e o havia encaminhado agrave presidecircncia da Comissatildeo Especial

da Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro a fim de comprovar

que fazia jus ao valor maacuteximo da reparaccedilatildeo prevista no Art 5ordm da Lei Estadual nordm 3744

de 21 de dezembro de 2001 O ponto principal de seu argumento era que havia sofrido

todas as mazelas prisotildees torturas fiacutesicas e psicoloacutegicas submetida pelas forccedilas

opressoras da eacutepoca fato este que ateacute hoje tem consequecircncias em sua vida (Batista

2004 10) 18

Antes de comeccedilar a entrevista Ana me concedeu uma coacutepia deste memorial

juntamente com a monografia do entatildeo Coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira

fonte analisada no capiacutetulo anterior cujo teor havia lhe servido como evidecircncia dos

meacutetodos violentos que ocorriam nas dependecircncias do DOI-CODI

Diante disso conforme o esperado seu depoimento oral apresentou um tom

narrativo muito similar ao assumido no referido documento que havia recentemente

escrito Assim orquestrada com o objetivo que tinha de conseguir a reparaccedilatildeo do

Estado Ana buscou construir suas memoacuterias de forma a ressaltar as violecircncias sofridas

ou seja priorizou a condiccedilatildeo de ldquoperseguida poliacutetica e viacutetima da repressatildeo militarrdquo em

detrimento da de ldquolutadora revolucionaacuteriardquo em prol da democracia

No final desse mesmo mecircs de novembro entrevistei a entatildeo vice-presidente do

Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro Ceciacutelia Coimbra Professora do

17

Para mais informaccedilotildees acessar httpwwwtorturanuncamais-rjorgbr 18

Memorial de Ana de Miranda Batista parte do requerimento agrave indenizaccedilatildeo enviado ao Secretaacuterio de

Estado de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro pela proacutepria em outubro de 2004

97

Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Ceciacutelia me

recebeu em uma das salas do preacutedio dessa faculdade localizada no campus do

Gragoataacute na cidade de Niteroacutei Uma das fundadoras do GTNMRJ Ceciacutelia natildeo mostrou

nenhum pudor em lembrar as violaccedilotildees sofridas durante a prisatildeo Detalhou as torturas

recebidas sem demonstrar constrangimento Esta forma de lidar com o passado se

explica pela maneira pela qual Ceciacutelia se auto-identifica Afinal devido a sua profissatildeo

de psicoacuteloga e sua condiccedilatildeo de liacuteder de um grupo que luta por reparar os danos morais e

fiacutesicos deixados pela tortura entende a difusatildeo dos detalhes de sua proacutepria memoacuteria

como uma arma poderosa para que a justiccedila seja feita em prol da redenccedilatildeo dos

torturados e da penalizaccedilatildeo dos torturadores

11 Os sujeitos e suas trajetoacuterias

A partir da anaacutelise dos depoimentos traccedila-se aqui a trajetoacuteria de vida de cada um

dos entrevistados a fim de que sejam desvendados outros fatores que influenciaram a

construccedilatildeo de suas memoacuterias sobre o periacuteodo em que estiveram presos no DOI-

CODIRJ Este periacuteodo se concentra no segundo semestre do ano de 1970 uma vez que

foi nesse momento que todos os seis entrevistados por laacute passaram Este dado temporal

em muito aproxima suas memoacuterias pois significa que estas se referem a uma mesma

fase desse oacutergatildeo repressivo Isso permitiu ateacute mesmo que tais memoacuterias englobassem

momentos compartilhados jaacute que alguns desses ex-prisioneiros laacute se encontraram e ateacute

dividiram uma mesma cela

No entanto cabe aqui destacar que natildeo houve qualquer intenccedilatildeo de entrevistar ex-

prisioneiros que estivessem no DOI-CODIRJ durante esse periacuteodo Conforme exposto

anteriormente a rede de entrevistas foi se desenhando de acordo com as oportunidades

o que torna o fato de todos terem por laacute passado na segunda metade de 1970 natildeo uma

98

feliz coincidecircncia como uma primeira impressatildeo pode fazer crer mas mais uma

demonstraccedilatildeo da alta eficiecircncia dos DOI-CODI Essas prisotildees correspondem justamente

ao periacuteodo em que o DOI-CODIRJ passou a funcionar em meados de 1970

demonstrando na praacutetica o que foi dito no capiacutetulo anterior diante da grande demanda

de accedilotildees que natildeo eram eficientemente combatidas pelos oacutergatildeos de repressatildeo anteriores

a sofisticaccedilatildeo dos DOI ldquorevolucionourdquo de fato a organizaccedilatildeo da repressatildeo agindo jaacute

num primeiro momento de forma avassaladora

Antocircnio Leite de Carvalho19

Antocircnio Leite de Carvalho nasceu no Cearaacute em 13 de agosto de 1945 Quando era

estudante secundarista pertenceu ao movimento que se concentrava no Calabouccedilo

restaurante estudantil proacuteximo ao Aeroporto Santos Dumont do Rio de Janeiro

frequentado por estudantes que eram como ele secundaristas pobres e principalmente

procedentes de outros estados

Em 1967 o governo apresentou planos para a demoliccedilatildeo do Calabouccedilo sob a

justificativa de construir em seu local um trevo rodoviaacuterio para desafogar o tracircnsito do

Aterro do Flamengo A partir disso os estudantes comeccedilaram a protestar contra a sua

demoliccedilatildeo e criaram a Frente Unida dos Estudantes do Calabouccedilo (FUEC) O governo

em maio daquele ano conseguiu demolir o restaurante e entregou em setembro ldquoo novo

Calabouccedilordquo para os estudantes poreacutem em situaccedilotildees precaacuterias Assim a luta da FUEC

continuou em prol da melhoria de suas condiccedilotildees de funcionamento e foi justamente em

torno desses protestos que o primeiro grande conflito de rua do ano de 1968 ocorreu

sensibilizando a opiniatildeo puacuteblica e o movimento estudantil como um todo No dia 28 de

19

Entrevistas realizadas com Antocircnio Leite de Carvalho em 12 de setembro de 2002 e 8 de fevereiro de

2003

99

marccedilo policiais invadiram a tiros o restaurante do Calabouccedilo onde se preparava mais

uma manifestaccedilatildeo contra as peacutessimas condiccedilotildees do local e mataram o estudante

secundarista Edson Luiacutes de Lima Souto de dezoito anos Este assassinato representou o

estopim para o desencadeamento de amplas manifestaccedilotildees contraacuterias agrave ditadura ao

longo do ano de 1968 que seriam cada vez mais reprimidas ateacute se tornarem totalmente

proibidas pelo AI-5 20

A partir desse contexto de ilegalidades e proibiccedilotildees Antocircnio se posicionou entre

os estudantes que optaram por continuar a lutar contra a ditadura de forma radicalizada

Aproximou-se entatildeo do Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR) onde

logo em seguida comeccedilou a militar Antocircnio associa a sua adesatildeo ao PCBR ao

programa deste partido de esquerda que tinha a guerrilha urbana como meio de luta

para a derrubada da ditadura e implantaccedilatildeo do socialismo no paiacutes e principalmente agrave

admiraccedilatildeo que tinha por um dos seus fundadores e liacutederes Apolocircnio de Carvalho

Como Antocircnio teve participaccedilatildeo assiacutedua em muitas passeatas do movimento

estudantil de 1968 conheceu muitas lideranccedilas de organizaccedilotildees que vinham se

formando e buscavam adeptos em meio aos estudantes Assim foi apresentado e

comeccedilou a admirar Apolocircnio de Carvalho um dos grandes motivos que o levaram a

posteriormente militar no PCBR partido cuja formaccedilatildeo atuaccedilatildeo e ideais seratildeo

abordados mais adiante Apolocircnio de Carvalho era uma figura haacute muito atuante na

poliacutetica havia lutado em favor dos republicanos na Espanha durante a Guerra Civil

Espanhola na Resistecircncia Francesa contra o nazismo e participava do Partido

Comunista Brasileiro (PCB) quando em 1967 rompeu com este e foi um dos

fundadores do PCBR 21

20

Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009 108-132 21

Em 1967 Apolocircnio rompeu com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e se tornou um dos fundadores

do PCBR partido em situaccedilatildeo clandestina na eacutepoca motivo que o levou a ser preso Juntamente com

outros 39 presos poliacuteticos Apolocircnio foi trocado pelo embaixador alematildeo que em 11 de junho de 1970

100

O partido era o PCBR que possuiacutea uma grande figura que se chama

Apolocircnio de Carvalho que pertence hoje ao PT ele era uma grande

lideranccedila do partido havia participado da Revoluccedilatildeo Espanhola da

resistecircncia ao nazismo na Franccedila um homem respeitado mundialmente pela

sua coragem e pela luta a favor da democracia e contra os ditadores ele era a

minha grande lideranccedila (Carvalho 12 set 2002)

Em 1970 aos 25 anos Antocircnio Leite de Carvalho foi preso No momento de sua

prisatildeo estava agrave espera de outro militante do PCBR na rua em um ponto de encontro

que havia combinado com ele Relacionando o depoimento de Antocircnio com as

estrateacutegias de captura dos DOI analisadas no primeiro capiacutetulo percebe-se que como o

companheiro de Antocircnio havia sido capturado antes de ir ao seu encontro acabou

informando aos agentes de umas das turmas de interrogatoacuterio preliminar do DOI-

CODIRJ muito provavelmente sob tortura o horaacuterio em que Antocircnio estaria no lugar

marcado A partir disso a informaccedilatildeo foi repassada agrave Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo e

agentes de uma das turmas que a formavam se encaminharam ateacute o local com carros e

roupas descaracterizadas como de praxe e levaram Antocircnio algemado para o DOI-

CODIRJ onde ficou preso durante cerca de trecircs meses

Eu fui preso na rua Eu tinha um encontro com outro militante mas esse

militante foi preso e sob tortura no DOI-CODI aqui no 1deg BPE da Rua

Baratildeo de Mesquita ele abriu o ponto quer dizer o ponto era o local de

encontro que a gente chamava de ponto ldquoTenho um ponto com fulanardquo quer

dizer que vocecirc tinha um encontro Ele abriu o local de encontro que eu teria

com ele e aiacute eu fui preso pelo DOI-CODI (Carvalho 12 set 2002)

havia sido sequestrado por esquerdistas integrantes da Vanguarda Popular Revolucionaacuteria (VPR) e da

Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN) vivendo algum tempo exilado na Argeacutelia Apoacutes a implantaccedilatildeo da Lei

de Anistia no Brasil em 1979 ele e sua famiacutelia retornaram agrave terra natal onde participaram da fundaccedilatildeo

do Partido dos Trabalhadores (PT) em 1980 Apolocircnio faleceu em setembro de 2005 aos 93 anos

(Carvalho 1997 13-16)

101

Antocircnio ressalta que durante a sua prisatildeo no DOI-CODIRJ esteve junto a

Fernando Gabeira e Daniel Aaratildeo Reis Filho Ambos haviam participado do sequestro

do embaixador americano no dia 4 de setembro de 1969 e por terem conseguido trocar

o embaixador por quinze presos poliacuteticos que foram exilados no Meacutexico haviam se

destacado entre os militantes da esquerda armada Aleacutem disso como na eacutepoca em que

Antocircnio concedeu as entrevistas Gabeira e Daniel Aaratildeo eram pessoas publicamente

reconhecidas pela luta contra a ditadura e tambeacutem por suas atividades profissionais ndash

Gabeira como jornalista e entatildeo deputado federal e Daniel Aaratildeo como intelectual ndash

percebe-se que o fato de ter tido contato com eles na prisatildeo eacute importante para a leitura

que Antocircnio faz sobre suas memoacuterias injetando-lhes certo orgulho Afinal apesar de

natildeo ter participado do sequestro Antocircnio tambeacutem havia sido preso e torturado por

pegar em armas contra a ditadura logo o fato de ter convivido na cadeia com essas

figuras jaacute reconhecidas pelos feitos desse mesmo passado lhe trazia no presente uma

dimensatildeo positiva sobre suas memoacuterias

Fiquei preso com pessoas que ficaram famosas como o Fernando Gabeira

que depois se tornou parlamentar foi candidato ao governo do Estado foi

candidato a prefeito e hoje eacute deputado federal Tambeacutem o Daniel Aaratildeo

Reis renomado professor de Histoacuteria e uma seacuterie de outros que hoje estatildeo aiacute

pelo governo inclusive em diversos governos (Carvalho 12 set 2002)

Apoacutes o tempo em que esteve preso no DOI-CODIRJ Antocircnio foi transferido para

o Departamento de Ordem Poliacutetica e Social (DOPS) onde permaneceu por um periacuteodo

de dois ou trecircs meses sendo entatildeo libertado Na eacutepoca em que concedeu a entrevista

Antocircnio aleacutem de bancaacuterio aposentado trabalhava como dirigente sindical em um cargo

eletivo

102

Dulce Chaves Pandolfi22

Dulce Chaves Pandolfi nasceu em Recife no dia 14 de dezembro de 1948

Cursava Ciecircncias Sociais em Pernambuco quando em 1967 entrou para o Diretoacuterio

Acadecircmico se tornando pouco depois secretaacuteria geral do Diretoacuterio Central dos

Estudantes (DCE) A partir de dezembro de 1968 com o AI-5 extinguindo os grecircmios

estudantis e substituindo-os por centros ciacutevicos sem autonomia que natildeo podiam realizar

atividades de natureza poliacutetica a opccedilatildeo de fazer parte da ALN era para Dulce uma

forma de continuar lutando por uma ldquosociedade mais igualitaacuteriardquo Aleacutem disso era

sobretudo um meio de derrubar o regime militar em vigor como se pode conferir na

passagem abaixo

[] a gente queria transformar a sociedade a gente queria o socialismo uma

sociedade igualitaacuteria Mas tinha uma fase anterior que era exatamente a de

querer derrubar a ditadura essa era a meta principal de todos Sabiacuteamos

inclusive que o socialismo natildeo era uma meta imediata era uma luta em

longo prazo [] entatildeo a nossa luta inicialmente era para ser instalado o

regime democraacutetico era a luta contra a ditadura (Pandolfi 5 fev 2003)

Ressalta-se entretanto que a opccedilatildeo de Dulce assim como da maior parte dos

estudantes que a partir do AI-5 se juntaram agraves organizaccedilotildees esquerdistas de luta armada

estava inserida no contexto mundial de 1968 Este por sua vez influenciava-se pela

vitoacuteria da Revoluccedilatildeo Cubana em 1959 pela independecircncia da Argeacutelia em 1962 pela

Guerra Fria que acabou por deflagrar entre os anos de 1959 e 1975 a Guerra do Vietnatilde

e por meio desta o enfrentamento indireto de Estados Unidos e Uniatildeo Sovieacutetica e pela

rebeliatildeo estudantil mundial iniciada a partir do ldquomaio francecircs de 1968rdquo que comeccedilou

por meio de uma manifestaccedilatildeo estudantil pontual questionadora de atitudes culturais

22

Entrevista realizada com Dulce Chaves Pandolfi em 5 de fevereiro de 2003

103

tradicionais e conservadoras e rapidamente atingiu a proporccedilatildeo de uma ldquorevoluccedilatildeo

cultural mundialrdquo Percebe-se entatildeo que o horizonte nesse momento era revolucionaacuterio

e principalmente entre os jovens impulsionava a percepccedilatildeo de que os partidos

tradicionais de esquerda estavam desacreditados e que era hora de uma nova geraccedilatildeo

partir para a accedilatildeo direta rumo agrave revoluccedilatildeo

Assim diferente de como eacute narrado por muitos ex-prisioneiros poliacuteticos em

tempos jaacute democraacuteticos que tais como Dulce veem a democracia do presente como

uma conquista positiva e por isso inconscientemente permitem que essa visatildeo atual

influencie suas memoacuterias de luta percebe-se aqui que a democracia natildeo prevalecia entre

os ideais das organizaccedilotildees de luta armada da eacutepoca muito pelo contraacuterio Afinal

acredita-se que em meio ao contexto mundial do momento as esquerdas armadas

tinham uma perspectiva de fato revolucionaacuteria ou seja valorizavam a revoluccedilatildeo muito

mais que a democracia que inclusive nesse momento estava diretamente associada

aos Estados Unidos e consequentemente ao sistema capitalista Como aponta Daniel

Aaratildeo na obra a Ditadura militar esquerdas e sociedade (2000)

a perspectiva ofensiva revolucionaacuteria que havia moldado aquelas

esquerdas E o fato de que elas natildeo eram de modo nenhum apaixonadas pela

democracia (Aaratildeo Reis 2000 70)

A democracia soacute comeccedilou mesmo a ser valorizada a partir do final da deacutecada de

1970 jaacute em uma nova conjuntura onde jaacute existiam outros significados tais como os

direitos humanos e a luta pela anistia No entanto por outro lado nota-se que conforme

destacado por Dulce a luta contra ditadura era tambeacutem um dos objetivos principais da

esquerda armada no final dos anos 1960 Dessa forma apesar da luta contra ditadura na

eacutepoca estar totalmente vinculada agrave revoluccedilatildeo socialista eacute compreensiacutevel que a

democracia tenha em tempos recentes um papel destacado entre as memoacuterias dos ex-

104

guerrilheiros Tal como analisa Marcelo Ridenti em Resistecircncia e mistificaccedilatildeo da

resistecircncia armada contra a ditadura armadilha para pesquisadores (2004) nota-se

aqui que a face de resistecircncia agrave ditadura das experiecircncias guerrilheiras passou a importar

mais apoacutes a implantaccedilatildeo da democracia que a ofensiva revolucionaacuteria ao contraacuterio da

intenccedilatildeo original dos guerrilheiros Afinal foi esta face que teve o objetivo alcanccedilado

ou seja saiu-se vencedora

Apoacutes o AI-5 Dulce optou entatildeo por militar na Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN)

organizaccedilatildeo de esquerda armada que seraacute abordada ainda neste capiacutetulo Assim no ano

de 1970 sabendo que estava sendo procurada pela repressatildeo por conta de sua militacircncia

clandestina Dulce se mudou para a cidade do Rio de Janeiro Sete meses depois no dia

14 de agosto foi presa na casa do seu namorado e levada direto para o DOI-CODIRJ

onde permaneceu cerca de trecircs meses

[] fui presa na casa do meu namorado noacutes fomos presos agrave noite no dia 14

de agosto Fui levada direto para PE Fiquei na PE mais ou menos uns trecircs

meses fiquei ateacute novembro comecinho de dezembro eu acho Depois eu

fui transferida para o DOPS (Pandolfi 5 fev 2003)

Apoacutes permanecer presa no DOI-CODI Dulce foi levada para o DOPS e depois

de seu julgamento foi transferida para o presiacutedio Talavera Bruce prisatildeo feminina de

regime fechado com grau de seguranccedila maacutexima localizada no bairro de Bangu

Passado um ano foi levada de volta para Recife sua cidade natal onde finalmente foi

libertada Encontrou-se prisioneira por mais de um ano de agosto de 1970 ateacute dezembro

de 1971

[] depois de um tempo praticamente um ano que eu estava presa fui

levada para Recife porque eu tambeacutem tinha processo laacute e de laacute eu saiacute Fui

105

solta laacute em Recife depois de um ano Saiacute em dezembro de 1971 fui presa

em agosto de 70 e fui solta em dezembro de 71 (Pandolfi 5 fev 2003)

Dulce no momento de sua entrevista jaacute era professora e pesquisadora do Centro de

Pesquisa e Documentaccedilatildeo de Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil (CPDOC) da Fundaccedilatildeo

Getuacutelio Vargas (FGV) ofiacutecio que exerce ateacute os dias de hoje

Fernando Palha Freire23

Fernando Palha Freire nasceu em Beleacutem (PA) e se mudou para o Rio de Janeiro

no fim de 1964 Antes de vir para o Rio ainda adolescente aprendeu alguns

fundamentos marxistas com sua irmatilde mais velha jaacute universitaacuteria que lhe deu o que ele

chamou de uma ldquonoccedilatildeo de mundordquo Quando se mudou para o Rio de Janeiro Fernando

mesmo jovem jaacute havia se definido esquerdista

Agrave eacutepoca do AI-5 Fernando tinha muitos amigos que militavam em uma

Dissidecircncia do Partidatildeo de Niteroacutei a Dissidecircncia do Estado do Rio de Janeiro que em

meados de 1969 foi desmontada atraveacutes da prisatildeo de seus integrantes pelo oacutergatildeo de

repressatildeo da Marinha o Centro de Informaccedilotildees da Marinha o CENIMAR Como esta

organizaccedilatildeo natildeo tinha um nome especiacutefico para noticiar o seu desmonte na imprensa

com um efeito grandioso os militares daquele oacutergatildeo optaram por nomeaacute-la de

Movimento Revolucionaacuterio 8 de outubro (MR-8) fazendo alusatildeo agrave data em que Che

Guevara havia sido capturado na Boliacutevia morrendo no dia seguinte Foi inclusive a

partir disso que a Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-GB)24

para provocar o

governo ditatorial que haacute pouco havia noticiado o desmonte do perigoso ldquoMR-8rdquo

23

Entrevista realizada com Fernando Palha Freire em 28 de junho de 2004 24

Tais organizaccedilotildees de esquerda da eacutepoca ainda seratildeo abordadas neste capiacutetulo no item 12 A nova

esquerda brasileira

106

assinou em co-autoria com a ALN o sequestro do embaixador norte-americano

autointitulando-se MR-8 como passou desde entatildeo a ser conhecida 25

[] quando veio o golpe minha irmatilde jaacute era universitaacuteria eu era um garoto

eu tinha quinze anos [] ela que me deu mesmo uma noccedilatildeo de mundo de

marxismo Quando veio o golpe noacutes moraacutevamos em Beleacutem No final de 64

eu estava me mudando para o Rio de Janeiro jaacute com essas noccedilotildees de justiccedila

social que eu havia aprendido com ela Digamos assim eu jaacute era

definidamente um cara de esquerda Aiacute veio a luta armada [] a primeira

organizaccedilatildeo [desmontada pelos militares] era o MR-8 uma organizaccedilatildeo de

Niteroacutei uma dissidecircncia do Partidatildeo [PCB] de Niteroacutei onde muitos de seus

integrantes eram meus conhecidos meus amigos entatildeo quando esses caras

foram presos eu jaacute era digamos assim um simpatizante dessa organizaccedilatildeo

natildeo era militante mas era simpatizante [] (Freire 28 jun 2004)

A partir dessa ligaccedilatildeo com outros militantes Fernando optou pela luta armada e

passou a militar na ALN mesma organizaccedilatildeo de Dulce Sua militacircncia poreacutem

concentrava-se em Niteroacutei no estado do Rio de Janeiro onde morava e estudava

economia na Universidade Federal Fluminense (UFF) Assim em 1970 Fernando e

outros militantes da ALN proacuteximos a ele resolveram planejar uma accedilatildeo para que muitos

de seus companheiros inclusive os do antigo MR-8 fossem libertados

No dia 1deg de julho de 1970 aos 22 anos Fernando participou do sequestro de um

aviatildeo da Companhia Cruzeiro do Sul que ia do Brasil para a Argentina com o objetivo

de negociar a troca dos passageiros por quarenta presos poliacuteticos

[] a gente pensou em fazer uma accedilatildeo accedilatildeo no sentido de tentar libertar esse

pessoal Na eacutepoca jaacute tinham sequestrado o embaixador americano e

trocado por quinze presos poliacuteticos [] Entatildeo nesse sentido a gente

resolveu planejar o sequestro de um aviatildeo A gente sequestrou um aviatildeo com

o objetivo de trocar os passageiros por quarenta presos poliacuteticos Quer dizer

25

Para mais informaccedilotildees sobre a mudanccedila de nome da Dissidecircncia da Guanabara para MR-8 ver

Berquoacute 1997 72-73

107

a gente entrou num processo de radicalizaccedilatildeo mesmo A gente queria era a

libertaccedilatildeo [] soacute que essa accedilatildeo natildeo deu certo [] (Freire 28 jun 2004)

O sequestro parecia correr como o planejado Durante o vocirco Fernando e os outros

militantes conseguiram desviar a rota que saiacutea do Rio de Janeiro para Buenos Aires

com escala em Satildeo Paulo fazendo o aviatildeo retornar ao Rio Poreacutem no Aeroporto

Internacional do Rio de Janeiro o Galeatildeo oficiais da Aeronaacuteutica cercaram o aviatildeo e

conseguiram render os opositores poliacuteticos envolvidos na operaccedilatildeo antes que eles

conseguissem negociar a troca dos refeacutens pelos quarenta prisioneiros poliacuteticos Durante

o combate um dos sequestradores irmatildeo de Fernando levou um tiro vindo a falecer

horas depois

A gente chegou a desviar o aviatildeo um aviatildeo que ia pra Argentina com uma

parada em Satildeo Paulo a gente mandou o aviatildeo voltar e quando chegamos ao

Rio o aviatildeo foi cercado Os caras chegaram com gaacutes lacrimogecircneo lama

arma e nessa accedilatildeo o meu irmatildeo foi baleado e depois morreu Eles mataram

meu irmatildeo A gente foi preso pelo CISA que era a forccedila secreta da

Aeronaacuteutica [] Jaacute na descida do aviatildeo a gente apanhou natildeo se sabe de

quem e nem por onde Depois fomos torturados no aparelho de repressatildeo

deles laacute dentro e de laacute fomos transferidos pro DOI-CODI na PE (Freire 28

jun 2004)

Primeiramente aprisionado pelo Centro de Informaccedilotildees e Seguranccedila da

Aeronaacuteutica (CISA) Fernando foi pouco tempo depois transferido para o DOI-

CODIRJ onde permaneceu cerca de dezoito a vinte dias Posteriormente voltou para

as dependecircncias do CISA no aeroporto do Galeatildeo onde ficou cerca de oito meses ateacute

ser julgado Apoacutes seu julgamento foi conduzido para o Instituto Penal Cacircndido Mendes

(IPCM) presiacutedio de seguranccedila maacutexima localizado em Ilha Grande no estado do Rio de

Janeiro Para Fernando em meio agraves privaccedilotildees que vivia nos oacutergatildeos de repressatildeo ser

transferido para um presiacutedio de fato como o da Ilha Grande era na eacutepoca um desejo

108

Afinal aleacutem de saber que laacute estavam alguns de seus companheiros no IPCM existia

uma rotina de presiacutedio normal com direito a jogar futebol no paacutetio a ler jornais e livros

situaccedilatildeo bem diferente da dos DOI-CODI por exemplo que conforme destacado no

capiacutetulo anterior eram oacutergatildeos estritamente de repressatildeo e investigaccedilatildeo localizados em

quarteacuteis cuja prisatildeo era improvisada apenas para cumprir tais funccedilotildees

Oito meses foi o tempo que a gente ficou laacute na Aeronaacuteutica E aiacute o que eacute a

perspectiva de vida Os sonhos da gente Vocecirc quando estaacute preso o seu

sonho eacute fugir realmente mas se vocecirc natildeo tem perspectiva de fuga o seu

sonho eacute o quecirc Eacute ir pra uma coletividade onde estatildeo os outros presos Entatildeo

meu sonho passou a ser esse ir pra Ilha Grande [] laacute eu sabia que os

companheiros estavam laacute sabia que tinha uma lsquopeladinharsquo que a gente podia

bater uma bola campeonato de xadrez livros para ler coisa que esses caras

sacaneavam tanto a gente que nem livros Jornal Raacutedio Essas coisas Nem

pensar Entatildeo meu sonho era Ilha Grande Apesar de ser um lugar

horroroso Era na eacutepoca um presiacutedio de seguranccedila maacutexima isolado (Freire

28 jun 2004)

Fernando permaneceu mais de seis anos na prisatildeo sendo libertado no dia 29 de

setembro de 1976 Ele e os demais companheiros envolvidos no sequestro tiveram suas

condenaccedilotildees embasadas no artigo 28 do Decreto-lei 898 de 29 de setembro de 1969

que alterava a Lei de Seguranccedila Nacional A partir deste artigo ficava estipulada uma

pena de reclusatildeo que poderia variar de 12 a 30 anos para quem devastasse saqueasse

assaltasse sequestrasse incendiasse depredasse ou praticasse qualquer tipo de atentado

pessoal ato de massacre sabotagem ou terrorismo Aleacutem disso no mesmo artigo havia

um paraacutegrafo uacutenico decretando que se a accedilatildeo resultasse em morte a condenaccedilatildeo seria

no miacutenimo agrave prisatildeo perpeacutetua e no maacuteximo agrave morte

Art 28 Devastar saquear assaltar roubar sequestrar incendiar depredar

ou praticar atentado pessoal ato de massacre sabotagem ou terrorismo

109

Pena reclusatildeo de 12 a 30 anos

Paraacutegrafo uacutenico Se da praacutetica do ato resultar morte

Pena prisatildeo perpeacutetua em grau miacutenimo e morte em grau maacuteximo (Decreto-

lei nordm 898 29 set 1969)

A partir desse decreto durante o julgamento de Fernando tentaram condenaacute-lo agrave

prisatildeo perpeacutetua baseando a argumentaccedilatildeo no fato do sequestro do aviatildeo ter acarretado

uma morte no caso a de seu irmatildeo No entanto como esta morte foi ocasionada pela

repressatildeo militar a pena de Fernando ficou estipulada em doze anos de reclusatildeo e mais

adiante reduzida para seis anos

[] tinha uma lei de seguranccedila nova entrado em evidecircncia os caras queriam

dar o exemplo com pena de morte ou prisatildeo perpeacutetua etc e noacutes fomos os

primeiros casos de pena de morte que eles pediram O meu o de Colombo

Jessie Jane - Jane eacute a ex-diretora daqui [Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio

de Janeiro ndash APERJ] [] tinha um artigo vinte e oito que previa pena capital

ou prisatildeo perpeacutetua em caso de morte Soacute que quem morreu foi um dos

nossos o meu irmatildeo foi morto por eles e eles em cima disso tentando

aplicar essa pena soacute que natildeo colou E eu peguei doze anos Colombo pegou

trinta mas era menor aiacute caiu pra dezoito a Jane de vinte e quatro parece

que a Jane caiu pra dezoito E eu como tinha a questatildeo de ser primaacuterio natildeo

sei mais o quecirc enfim quer dizer eu estou resumindo Aiacute por conta disso

fui condenado e fiquei seis anos [] (Freire 28 jun 2004)

Na eacutepoca da entrevista Fernando trabalhava no Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio

de Janeiro (APERJ) onde possuiacutea um cargo de confianccedila conforme explicado

anteriormente Hoje Fernando Palha Freire eacute comerciante responsaacutevel pela cantina do

primeiro piso do preacutedio do Instituto de Filosofia e Ciecircncias Sociais (IFCS) da

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

110

Padre Maacuterio Prigol26

Padre Maacuterio Prigol nasceu em 12 de novembro de 1928 em Vila Gramado no

municiacutepio de Paulo Bento no Rio Grande do Sul Em 1970 quando foi preso era

assistente da Juventude Operaacuteria Catoacutelica (JOC) e da Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO)

grupos ligados agrave Igreja Catoacutelica criados para atender a problemas de jovens e adultos

trabalhadores 27

Apoacutes o golpe de 1964 organizaccedilotildees como a JOC e a ACO ganharam

forccedila entre muitos trabalhadores devido agraves dificuldades impostas pelo governo militar

para a organizaccedilatildeo em sindicatos

A sede nacional da JOC era aqui no morro de Satildeo Joseacute Operaacuterio atraacutes da

Penitenciaacuteria [antigo Complexo Penitenciaacuterio Frei Caneca] era na favela []

eu trabalhei com a JOC de Satildeo Paulo e depois vim para caacute trabalhava na

Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria que hoje se chama MTC Movimento dos

Trabalhadores Cristatildeos Esse movimento preparava os jovens e adultos dos

sindicatos dos partidos poliacuteticos de todos os setores da sociedade onde haacute

trabalhadores que procuram descobrir os acontecimentos a situaccedilatildeo operaacuteria

e sobretudo melhorar a sua condiccedilatildeo de trabalhador E vamos lembrar que

naquela eacutepoca havia a nova lei [lei 458964] que soacute podia ser diretor do

sindicato quem natildeo tinha nada que comprometesse entatildeo todos aqueles que

lutavam pela greve contra a puniccedilatildeo da greve ou de forma geral pelos

trabalhadores natildeo podiam ser nem diretores de associaccedilotildees nem diretores de

sindicatos [] soacute poderia ser diretor de sindicato quem fosse aprovado pela

Lei de Seguranccedila Nacional (Prigol 28 set 2004)

Padre Maacuterio se destaca entre os ex-prisioneiros entrevistados por aleacutem de ser uma

autoridade de uma instituiccedilatildeo de importacircncia mundial como a Igreja Catoacutelica sua

atuaccedilatildeo ser diferente da dos demais natildeo estando ligada agrave esquerda armada da eacutepoca e

ao meio estudantil Quando foi preso no DOI-CODIRJ em 1970 Padre Maacuterio jaacute natildeo

era mais tatildeo jovem para ser estudante e sua formaccedilatildeo poliacutetica natildeo era a mesma da

26

Entrevista realizada com Padre Maacuterio Prigol em 28 de setembro de 2004 27

A JOC e ACO seratildeo abordadas ainda neste capiacutetulo no item 12 A nova esquerda brasileira

111

geraccedilatildeo que pegava em armas jaacute que sua intenccedilatildeo enquanto assistente da JOC e da

ACO era ajudar os trabalhadores a garantirem os seus direitos e para tanto opunha-se

agraves leis impostas pela ditadura solidificando entre os integrantes dessas associaccedilotildees uma

consciecircncia de reivindicaccedilatildeo classista sem entretanto aspirar propriamente a uma

revoluccedilatildeo socialista

Percebe-se poreacutem que a concomitacircncia entre os periacuteodos prisionais de Padre

Maacuterio e os demais entrevistados natildeo eacute casual Afinal diante da ideia de revoluccedilatildeo

socialista que guiava as accedilotildees armadas que se multiplicavam e ganhavam forccedila apoacutes o

AI-5 a consciecircncia de reivindicaccedilatildeo de classe que a JOC e conforme seraacute abordado

adiante principalmente a ACO disseminavam aos seus trabalhadores eram

interpretadas como ameaccediladoras pela repressatildeo Uma vez que as organizaccedilotildees

guerrilheiras tinham por meta justamente conseguir apoio da classe trabalhadora para

concluiacuterem o plano de revoluccedilatildeo socialista e o trabalho da JOC e da ACO vinha unindo

e organizando uma percepccedilatildeo de classe justamente entre os trabalhadores havia uma

forte propensatildeo que futuramente tais trabalhadores se unissem agrave esquerda em prol da

revoluccedilatildeo socialista

Diante disso explica-se o fato de Padre Maacuterio ter sido preso em meados de 1970

pelos agentes de uma das turmas de busca e apreensatildeo do DOI-CODIRJ durante a

invasatildeo feita ao Instituto Brasileiro de Estudos Sociais (IBRAES) que funcionava na

Casa dos Jesuiacutetas localizada na Rua Bambina no bairro de Botafogo Ele outros

integrantes da JOC e os demais estudantes que assistiam ao curso de desenvolvimento

social foram levados ao DOI-CODIRJ Este curso tinha duraccedilatildeo de aproximadamente

oito meses ao longo dos quais os alunos adquiriam informaccedilotildees sobre o sistema

poliacutetico e econocircmico do Brasil

112

Dias antes dos agentes chegarem ateacute o curso toda a direccedilatildeo nacional da JOC

havia sido presa inclusive dois alunos do IBRAES que foram levados ao DOI-

CODIRJ onde possivelmente sob tortura passaram aos agentes da turma de

interrogatoacuterio preliminar de plantatildeo informaccedilotildees sobre o curso que estava ocorrendo na

Rua Bambina Assim quando os agentes do DOI-CODIRJ chegaram ao local

prenderam todos que estavam participando do curso levando primeiro os militantes e

depois os padres Entre eles estavam Padre Maacuterio e Padre Agostinho de Freitas na

eacutepoca assistente latino-americano da JOC

Noacutes fomos presos natildeo por causa do curso mas porque esses elementos do

DOI prenderam esse pessoal da JOC considerados subversivos e

procuravam um dos assistentes que jaacute tinha sido acusado em Belo Horizonte

de ser subversivo o Padre Manuel de Jesus Ele foi assistente nacional da

JOC mas na eacutepoca natildeo era mais assistente [] entatildeo para prender Manuel

de Jesus foram prendendo toda a direccedilatildeo nacional da JOC que foram

torturados barbaramente torturas como por exemplo os homens

sexualmente em todos os aspectos foram torturados Eram quatro jovens

homens e quatro jovens mulheres e entre esses jovens havia dois alunos do

IBRAES onde eu fazia curso onde vaacuterios desses militantes da JOC tambeacutem

participavam inclusive o Manuel de Jesus Entatildeo no IBRAES os militantes

da JOC foram levados presos primeiro e noacutes padres depois e mais ainda

foi preso o assistente latino-americano da JOC Padre Augustinho Freitas

que hoje trabalha em Nova Iguaccedilu Entatildeo todos noacutes fomos presos []

(Prigol 28 set 2004)

Ao ser preso Padre Maacuterio foi levado diretamente para o DOI-CODIRJ onde

juntamente com os outros padres permaneceu por 54 dias enquanto os jovens

militantes da JOC permaneceram por cerca de trecircs meses Por ser padre sua prisatildeo foi

interrompida pela intervenccedilatildeo de cardeais como explica no trecho a seguir destacado

de seu livro autobiograacutefico

113

D Trevisan D Waldir Dom Aloiacutesio e Padre Celso Pinto que estava ligado

ao Secretariado dos Leigos da CNBB [Conferecircncia Nacional de Bispos do

Brasil] informaram a nossa situaccedilatildeo aos cardeais Mais tarde com a

libertaccedilatildeo de alguns de noacutes realizamos um encontro para discutirmos as

humilhaccedilotildees que sofremos (Prigol 2003 117)

Na eacutepoca em que a entrevista foi concedida Padre Maacuterio aos 75 anos era

missionaacuterio saletino trabalhava na Paroacutequia de Nossa Senhora da Salette no Catumbi e

ainda ocupava o cargo de assistente do MTC (Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos)

antiga Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) Atualmente aos 83 anos Padre Maacuterio ainda

permanece ativamente nessas mesmas funccedilotildees

Ana de Miranda Batista28

Ana Bursztyn nome de solteira de Ana de Miranda Batista nasceu no Rio de

Janeiro em 30 de dezembro de 1948 Era militante estudantil enquanto cursava

Farmaacutecia na UFRJ Foi presa pela primeira perto do clube Botafogo de Futebol e

Regatas localizado na Avenida Venceslau Braacutes no bairro de Botafogo em junho de

1968 juntamente com trezentos estudantes Ela e os demais haviam participado de uma

assembleia estudantil na reitoria da UFRJ no campus da Praia Vermelha que

reivindicava mais verbas do governo federal para o ensino superior Os policiais a

levaram para o DOPS libertando-a no dia seguinte Eleita em outubro de 1968

representante dos estudantes de seu curso participou do Congresso da Uniatildeo Nacional

dos Estudantes (UNE) em Ibiuacutena quando foi novamente capturada pela poliacutecia com

mais de 800 estudantes permanecendo pouco mais de uma semana em reclusatildeo

Ateacute 1968 eu fazia parte do Movimento Estudantil do Diretoacuterio da Faculdade

tudo que tinha de movimento estudantil fazia parte da minha preocupaccedilatildeo

28

Entrevista realizada com Ana de Miranda Batista em 17 de novembro de 2004

114

Em junho a gente foi preso no campus de Botafogo [] Nesse dia em que eu

fui presa pela primeira vez foi um dia que cerca de trezentos estudantes

foram presos porque como a gente estava batalhando por mais verbas era

um dia em que o Conselho Universitaacuterio estava reunido na Praia Vermelha

jaacute que a reitoria era na Praia Vermelha [] laacute pelas tantas veio uma notiacutecia

de que tinham cercado a universidade [] e a gente natildeo estava esperando

isso a gente fazia umas passeatas na cidade mas a barra natildeo era pesada []

Aiacute o reitor decidiu sair na frente dos estudantes e atraacutes dele saiacuteram as

lideranccedilas das faculdades - eu era a lideranccedila da minha faculdade - e depois

uns trezentos estudantes Aiacute eles comeccedilaram a atirar para baixo para o chatildeo

[] e a gente saiu correndo sem enxergar nada e a poliacutecia dando porrada e a

gente sem enxergar nada (risos) Fomos entatildeo andando em direccedilatildeo ao tuacutenel

quando algueacutem disse ldquo- Vem por aqui por aquirdquo Sem saber que era uma

cilada fomos quase os trezentos para laacute Quando a gente entrou ldquo- Todo

mundo pro chatildeordquo Fomos presos no DOPS naquele dia e passamos a noite laacute

[] Daiacute eacute que a gente comeccedilou a fazer as grandes passeatas na cidade ateacute

que comeccedilou a ter passeata sempre mobilizaccedilotildees [] Em outubro de 68 a

gente foi para o Congresso de Ibiuacutena em Satildeo Paulo que foi um congresso

da UNE que estava clandestina na eacutepoca onde fomos todos presos Foi aiacute eacute

que ficou preso natildeo sei cerca de oitocentos estudantes Eles ateacute fizeram um

aacutelbum ficharam todo mundo Esse foi o aacutelbum que eles mostravam na

imprensa e nos cartazes depois porque evidentemente quando a barra

pesou metade das lideranccedilas do movimento estudantil foi para a luta armada

[] mas a gente ficou uma semana preso e depois de uma semana ou dez

dias a gente saiu Mas a barra comeccedilou a pesar mesmo a partir de 13 de

dezembro com o AI-5 [] (Batista 17 nov 2004)

Apoacutes o decreto do AI-5 Ana assim como Antocircnio se aproximou de alguns

integrantes do PCBR poreacutem diferentemente dele natildeo chegou a militar no partido

tornando-se tal como Dulce e Fernando militante da ALN Em Satildeo Paulo para onde

fugiu quando estava sendo perseguida Ana foi presa no dia 14 de julho de 1970 dentro

do magazine Mappin no centro da cidade Na situaccedilatildeo Ana portava uma arma e

115

carregava carteira de identidade falsa pela qual se chamava Naacutedia Zanzin conforme

descreve na passagem abaixo

Quando eu saiacute da casa que a gente estava o Bacuri [codinome de Eduardo

Collen Leite seu companheiro de organizaccedilatildeo] me deu uma arma e dezoito

caacutepsulas porque eu estava sendo procurada [] eu estava com uma carteira

de identidade falsa me chamava Naacutedia Zanzin [] fui presa entatildeo com

nome falso e foi um bafafaacute o cara quis me tirar a arma da matildeo e entatildeo eu

reagi teve um tiro [] Naquele dia eu tinha perdido o lsquopontorsquo [ponto de

encontro com outro militante] porque eu fiquei conversando com a minha

amiga e cheguei atrasada O ponto era perto do centro da cidade e como eu

tinha que esperar duas ou trecircs horas ateacute o proacuteximo encontro eu fiquei

rodando por laacute onde entrei numa loja grande como se fosse a antiga Mesbla

[] chamava-se Mappin Laacute eu fiquei comprando coisas para maquiagem

para mudar a minha cara [] Laacute dentro eles tinham vaacuterios seguranccedilas e um

ou dois deles ficaram em duacutevida se tinham reconhecido ou natildeo quem eu era

e se aproximaram de mim Eu estava na fila para pagar quando se eles se

aproximaram e disseram ldquo- Essas coisas a senhora paga em outro lugarrdquo Aiacute

eu ldquo- Mas eu estou na fila para pagarrdquo Aiacute eles ldquo- Vem com a gente que a

senhora vai pagar em outro lugarrdquo Entatildeo entrei no elevador e fui parar no

seacutetimo andar na parte de seguranccedila da loja Laacute eles queriam que eu me

explicasse Eu tirei tudo o que eu tinha da bolsa eu fui tirando e mostrei para

eles que estava com dinheiro na bolsa e estava na fila para pagar Aiacute eles ldquo-

Natildeo natildeo eacute isso natildeo mas a gente precisa revistarrdquo E eu fui tirando tudo da

bolsa para ver se eles natildeo me revistavam mas eles ldquo- Natildeo a gente vai

revistarrdquo Aiacute comeccedilaram a lutar comeccedilou um pega bolsa e tira bolsa que eu

natildeo queria porque a arma estava no fundo da bolsa Aiacute eu falava ldquo- Natildeo

mas natildeo precisa estaacute tudo aquirdquo Mas natildeo era isso natildeo era porque eles

achavam que eu estava roubando eles desconfiavam de alguma coisa e natildeo

sabiam bem o quecirc e resolveram me revistar Aiacute eu reagi Depois disso

chamaram o delegado e me botaram amarrada na cadeira laacute em cima no

andar da seguranccedila da loja (Batista 17 nov 2004)

116

Esse mesmo episoacutedio foi retratado dois dias depois em um trecho do Jornal da

Tarde de 16 de julho de 1970 conforme Elio Gaspari destaca em seu livro As Ilusotildees

Armadas a Ditadura Escancarada (2002)

[] Ana Bursztyn ex-estudante de farmaacutecia presa [] no magazine Mappin

Um vigilante desconfiara ao vecirc-la colocar cosmeacuteticos numa sacola (da loja)

e levou-a a uma sala onde estava o chefe de seguranccedila Ana meteu a matildeo na

bolsa puxou um Taurus 32 feriu-o com um tiro na perna mas natildeo

conseguiu fugir (Gaspari 2002 299-300)

De fato no momento de sua prisatildeo Ana resistiu e disparou um tiro atingindo no

peacute um dos seguranccedilas da loja que era policial militar Naquele dia Ana foi levada presa

sem saber o que de fato tinha ocorrido com aquele homem Assim em novembro de

1970 mecircs do aniversaacuterio da ldquoIntentona Comunistardquo de 1935 Ana ainda presa leu em

um jornal uma relaccedilatildeo de mortos pelos terroristas divulgada pelos oacutergatildeos de seguranccedila

do governo Laacute o homem em quem havia atirado estava listado como morto e ela como

sua assassina Ana passou a carregar a culpa de tecirc-lo matado ateacute que algum tempo

depois ao vecirc-lo assistindo a seu julgamento constatou que o seguranccedila havia

sobrevivido e que aquela notiacutecia era mais um dos boatos que o governo na eacutepoca

costumava veicular na imprensa a fim de manipular a opiniatildeo puacuteblica

Depois disso durante anos quando eu estava presa no dia da Intentona

Comunista que eu acho que eacute novembro de 1935 colocavam nos jornais em

todos os jornais uma relaccedilatildeo dos mortos pelos terroristas entre aspas que

eacuteramos noacutes [] eu li que o cara laacute Izidoro Zambaldi foi morto pela

terrorista Ana Bursztyn Ele na hora da briga eu briguei com ele ele recebeu

um tiro acho que no peacute esbarrou assim no peacute ele ficou uns dias internado e

saiu ele estava no meu julgamento na audiecircncia Quer dizer e durante

muito tempo eu achando que tinha o matado Era um dos que eles

117

contabilizavam como mortos por noacutes E provavelmente ele estaacute aiacute vivo ateacute

hoje [] (Batista 17 nov 2004)

Ana foi presa portanto por ter sido reconhecida por um policial que tambeacutem

trabalhava como seguranccedila para a loja Mappin Provavelmente isso ocorreu pelo fato

dos organismos de repressatildeo colarem pelos muros da cidade bem como distribuiacuterem

nos estabelecimentos privados muitos folhetos e cartazes com fotos dos ldquoterroristas

procuradosrdquo pela ditadura militar entre os quais Ana A divulgaccedilatildeo de tais fotos era

mais uma forma que os agentes da repressatildeo utilizavam para cercar os suspeitos Assim

qualquer pessoa poderia denunciar e qualquer policial poderia prender tais suspeitos No

entanto caso a prisatildeo natildeo fosse feita pelos agentes do DOI-CODI da respectiva Regiatildeo

Militar obrigatoriamente depois de preso o cidadatildeo considerado ldquosubversivordquo deveria

ser para laacute transferido conforme ocorreu com Ana Afinal como jaacute analisado no

primeiro capiacutetulo o DOI-CODI de cada Regiatildeo concentrava as informaccedilotildees sobre

seguranccedila interna de cada aacuterea portanto laacute existiam as condiccedilotildees necessaacuterias para que a

extraccedilatildeo e anaacutelise das informaccedilotildees que os prisioneiros detivessem fossem trabalhadas

de forma mais eficiente

Diante disso Ana nos primeiros dias de prisatildeo passou pelo DOPS-SP e em

seguida pelo DOI-CODISP sendo posteriormente transferida para o DOI-CODIRJ

Laacute permaneceu por um mecircs voltando para DOI-CODISP passando ainda pelo

DOPSSP Depois de julgada foi levada para o Recolhimento de Presos Tiradentes ndash

localizado na Rua Tiradentes na cidade de Satildeo Paulo ndash para o Presiacutedio de Mulheres ndash

localizado no antigo Complexo Penitenciaacuterio do Carandiru tambeacutem na cidade de Satildeo

Paulo ndash e ainda passou por delegacias das poliacutecias Federal do Rio de Janeiro e de Satildeo

Paulo pelo Presiacutedio do Forte de Copacabana no Rio de Janeiro e por fim pelo

Depoacutesito de Presas Satildeo Judas Tadeu localizado no preacutedio do DOPS-RJ Permaneceu

118

presa por cerca de quatro anos conseguindo liberdade condicional em fevereiro de

1974

Ana de Miranda Batista nome que adotou depois de casada eacute farmacecircutica

bioquiacutemica e na eacutepoca em que concedeu a entrevista era ativista do Grupo Tortura

Nunca MaisRJ (GTNMRJ)

Ceciacutelia Coimbra29

Ceciacutelia Maria Bouccedilas Coimbra nasceu no Rio de Janeiro em 16 de marccedilo de 1941

Ao ingressar no curso de Histoacuteria da Universidade do Brasil atual UFRJ Ceciacutelia que

era por descendecircncia familiar ldquoconservadora e catoacutelicardquo em suas proacuteprias palavras

comeccedilou a questionar-se poliacutetica e religiosamente Iniciou assim sua militacircncia no

Partido Comunista Brasileiro (PCB) clandestino na eacutepoca Entre 1962 e 1963

trabalhou em um programa de alfabetizaccedilatildeo de adultos pelo meacutetodo do educador Paulo

Freire fato que visivelmente a marcou muito Apoacutes o golpe de 64 Ceciacutelia continuou

militando no Partido Comunista poreacutem com muitas discordacircncias ateacute quando comeccedilou

a fazer parte de uma das dissidecircncias do referido partido a Dissidecircncia Comunista da

Guanabara a que ela se refere por ldquoPC da Guanabarardquo

[] eu vim de uma famiacutelia muito tradicional extremamente tradicional meu

pai era um conservador era um cara que era portuguecircs a favor do regime

ditatorial de Salazar A minha matildee era extremamente catoacutelica Tanto que

quando eu entrei para faculdade para fazer Histoacuteria eu era uma pessoa

extremamente conservadora Era lacerdista a favor do Carlos Lacerda

contra Joatildeo Goulart contra os comunistas A minha famiacutelia era muito

anticomunista E quando eu entrei para a faculdade eu ateacute falei isso na

entrevista para a lsquoCaros Amigosrsquo [sua entrevista havia sido capa da Revista

Caros Amigos naquele mesmo mecircs] comecei a ter contato com algumas

29

Entrevista realizada com Ceciacutelia Maria Bouccedilas Coimbra em 30 de novembro de 2004

119

pessoas que eram comunistas e eram pessoas muito interessantes muito

inteligentes e eram pessoas com as quais as duacutevidas que eu tinha com

relaccedilatildeo agrave religiatildeo eu comecei a tirar Porque eu comecei a ler marxismo aiacute

eu comecei a ler materialismo histoacuterico materialismo dialeacutetico e eu comecei

a ver que de repente a religiatildeo era uma coisa produzida pelo proacuteprio

homem [] Eu comecei entatildeo em 6263 a participar de reuniatildeo do Partido

Comunista que era clandestino na eacutepoca e acabei entrando para o Partido

Aiacute comecei a namorar um cara que depois se tornou meu marido e foi preso

comigo que haacute pouco tempo eu ateacute me separei [] Ele jaacute era do Partido

Comunista haacute muito tempo a famiacutelia dele era toda uma famiacutelia formada por

comunistas ao contraacuterio da minha (risos) Em 64 veio o golpe mas aiacute eu

antes disso eu acho que tem a ver porque isso para mim tambeacutem eacute

militacircncia eu fui trabalhar com um programa de alfabetizaccedilatildeo de adultos

pelo meacutetodo Paulo Freire eu trabalhei com o proacuteprio Paulo Freire em 63 um

pouco antes do golpe [] Entatildeo depois do golpe eu continuei militando no

Partido mas jaacute com muitas discordacircncias quer dizer discordava de muita

coisa e aiacute comecei a fazer parte do que se chamou de Dissidecircncia do PC da

Guanabara (Coimbra 30 nov 2004)

Entretanto Ceciacutelia comeccedilou a discordar tanto da luta armada que a Dissidecircncia

Comunista da Guanabara a partir de 1968 veio a adotar quanto do caminho paciacutefico e

institucional defendido pelo PCB se afastando de ambos Dessa forma em 1968

Ceciacutelia Coimbra natildeo militava em nenhuma organizaccedilatildeo mas continuou a manter

contato com muitos companheiros que se tornaram guerrilheiros Destaca-se portanto a

partir do caso especiacutefico de Ceciacutelia como a histoacuteria oral eacute importante para que a

complexidade da militacircncia poliacutetica da eacutepoca seja compreendida Afinal por meio dessa

metodologia torna-se possiacutevel perceber que nem todos os estudantes que estiveram

ligados ao movimento estudantil e agraves dissidecircncias do Partido Comunista em meio ao

arrocho da repressatildeo acompanharam a decisatildeo de partir para a luta armada tomada por

muitas dissidecircncias e nem mesmo resolveram retornar agrave luta paciacutefica travada pelo

Partido Comunista Logo a histoacuteria oral permite atraveacutes dos depoimentos dos

120

militantes daquele tempo observar que tal como Ceciacutelia muitos desses militantes

ficaram principalmente a partir do AI-5 agrave margem da atuaccedilatildeo poliacutetica apesar de natildeo

terem abandonado os ideais de esquerda

Quando foi presa em 1970 Ceciacutelia natildeo estava diretamente relacionada a nenhuma

organizaccedilatildeo esquerdista entretanto como ainda relacionava-se com muitos militantes

guerrilheiros e algumas vezes ateacute mesmo abrigando-os em sua casa tinha informaccedilotildees

consideradas relevantes para os agentes do DOI-CODIRJ o que veio a ocasionar sua

prisatildeo Como vivia de forma legalizada com famiacutelia e emprego Ceciacutelia tinha passado

juntamente com seu marido a ajudar seus companheiros clandestinos Sua casa na

eacutepoca localizada no bairro do Engenho de Dentro na zona norte do Rio de Janeiro

passou a servir como esconderijo para alguns amigos que diferentemente de Ceciacutelia e

Novaes haviam continuado militantes da Dissidecircncia Comunista da Guanabara mesmo

apoacutes sua opccedilatildeo pela luta armada Entre os amigos que receberam guarida em sua casa

estavam Franklin Martins e Fernando Gabeira ambos envolvidos no sequestro do

embaixador norte-americano

Gabeira inclusive esteve hospedado na casa do casal logo apoacutes a libertaccedilatildeo do

referido embaixador sequestrado em setembro de 1969 Por conta disso em agosto de

1970 Ceciacutelia Coimbra e seu marido Joseacute Novaes foram denunciados e presos

[] eu ajudava muito esses companheiros porque eu tinha vida legal eu jaacute

era professora tinha casa tinha filho e meu marido era professor de

Filosofia entatildeo a nossa casa era onde as pessoas se escondiam passavam

uma noite passavam dias escondidos Por exemplo o pessoal do Movimento

estudantil o Franklin Martins o Fernando Gabeira [] todos eles passaram

por laacute entatildeo a gente ajudava muito [] Em 1969 o pessoal do MR-8 que

eram companheiros nossos amigos e tal vieram nos procurar para perguntar

se noacutes poderiacuteamos dar um apoio a um ato a uma accedilatildeo como se dizia na

eacutepoca a uma accedilatildeo que ia acontecer Mas a gente natildeo sabia que era o

sequestro do embaixador E aiacute depois de um tempo a gente ficou com o

121

Fernando Gabeira [] Eacute oacutebvio que depois a gente soube porque foi depois

que eles entregaram o embaixador que eles se esconderam laacute em casa E aiacute a

televisatildeo dava e a gente sacou que o Gabeira estava ali com a gente porque

natildeo tinha como guardar seguranccedila porque jaacute estava na televisatildeo a cara de

todos eles E a gente guardou ele laacute A gente soube que ele tinha participado

do sequestro do embaixador e conversaacutevamos muito sobre isso Ele ficou

algum tempo laacute em casa e depois saiu Um tempo depois a gente foi

denunciado a casa estava sendo observada e a gente natildeo sabia []

(Coimbra 30 nov 2004)

Ceciacutelia e Joseacute Novaes apoacutes terem a casa onde moravam cercada por agentes do

DOPSRJ foram para laacute levados e laacute permaneceram por dois dias No DOPS Ceciacutelia

ficou sob interrogatoacuterio por um dia e meio para que esclarecesse a origem de um

documento encontrado no interior de sua casa No segundo dia de prisatildeo foi levada para

o presiacutedio feminino Satildeo Judas Tadeu localizado no proacuteprio preacutedio do DOPSRJ Apoacutes

permanecerem dois dias e meio no DOPS Ceciacutelia e Novaes foram transferidos para o

DOI-CODIRJ

Ceciacutelia Coimbra ficou cerca de trecircs meses presa no DOI-CODIRJ sendo

libertada em novembro de 1970 Natildeo foi transferida para nenhum outro presiacutedio sendo

libertada diretamente do DOI-CODIRJ por meio da menagem conforme analisado no

primeiro capiacutetulo Sendo assim uma vez que natildeo foi constatado nenhum envolvimento

direto de Ceciacutelia com alguma accedilatildeo ldquosubversivardquo ela estava impedida de sair da cidade

ateacute a data de seu julgamento e durante esse iacutenterim teve que comparecer ao DOI-

CODIRJ regularmente para se apresentar e responder ao Inqueacuterito Policial Militar

(IPM)

Na eacutepoca da entrevista Ceciacutelia aleacutem de vice-presidente do GTMNRJ lecionava

no curso de Psicologia da UFF Atualmente continua com essas mesmas atividades

poreacutem no GTNMRJ ocupa hoje o cargo de presidente

122

12 A nova esquerda brasileira

Para melhor entender as memoacuterias dos ex-prisioneiros poliacuteticos aqui entrevistados

eacute importante caracterizar as organizaccedilotildees de esquerda nas quais os seis militavam

quando foram presos no DOI-CODIRJ Afinal a opccedilatildeo de atuar atraveacutes de certas

organizaccedilotildees estaacute diretamente relacionada com a percepccedilatildeo de mundo que cada um

tinha e tambeacutem com a ousadia a coragem as frustraccedilotildees por que passaram e com tantos

outros sentimentos e sensaccedilotildees que certamente influiacuteram diretamente na construccedilatildeo da

memoacuteria de cada um desses indiviacuteduos sobre o periacuteodo militar

Como jaacute destacamos ao traccedilarmos o perfil dos entrevistados as organizaccedilotildees em

que os estudantes Antocircnio Leite Fernando Palha Dulce Pandolfi e Ana de Miranda

militavam ao serem presos eram o PCBR e a ALN grupos poliacuteticos de esquerda ligados

ao combate armado Jaacute Padre Maacuterio era assistente da ACO e da JOC ndash associaccedilotildees

criadas para atender demandas de jovens e adultos trabalhadores e catoacutelicos Ceciacutelia

Coimbra era a uacutenica que natildeo era diretamente ligada a alguma organizaccedilatildeo na eacutepoca de

sua prisatildeo mas sua participaccedilatildeo anterior na Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-

GB) influenciou de forma indireta em sua prisatildeo e por isso merece ser aqui

considerada A partir disso analisa-se nesta seccedilatildeo de trabalho o PCBR a ANL a JOC a

ACO e a Dissidecircncia Comunista da Guanabara que passou a chamar-se MR-8

Diferentemente da JOC e da ACO que eram associaccedilotildees ligadas ao trabalho

social feito pela Igreja Catoacutelica o PCBR a ANL a DI-GBMR-8 faziam parte do que

vinha sendo nomeado desde a deacutecada de 1960 de nova esquerda brasileira Essa nova

esquerda era formada pelas dissidecircncias do Partido Comunista surgindo como forma de

buscar caminhos alternativos para a transformaccedilatildeo social e segundo Maria Paula

Arauacutejo em A utopia fragmentada (2000) natildeo era um fenocircmeno tipicamente brasileiro

123

ocorrendo concomitantemente em outras partes do mundo como Alemanha Franccedila

Itaacutelia Estados Unidos e Meacutexico 30

As organizaccedilotildees desta nova esquerda brasileira aleacutem de serem marcadas pelo

signo da dissidecircncia e pela busca de caminhos alternativos possuiacuteam outras ideias em

comum Havia entre elas uma forte desconfianccedila em relaccedilatildeo agraves formas tradicionais de

atuaccedilatildeo e representaccedilatildeo poliacuteticas jaacute que os tradicionais partidos comunistas na

avaliaccedilatildeo desses militantes eram travados por complicados aparatos burocraacuteticos Em

oposiccedilatildeo a essa linha dita ldquoconservadorardquo valorizaram a accedilatildeo revolucionaacuteria imediata

Aleacutem disso a maioria recusava a alianccedila com ldquofraccedilotildees das classes dominantesrdquo forma

como viam o Movimento Democraacutetico Brasileiro (MDB) na eacutepoca uacutenico partido de

oposiccedilatildeo consentido pela ditadura militar Enquanto o PCB continuava mantendo o

programa de via paciacutefica para o socialismo a dita nova esquerda defendia a luta armada

como a principal forma de atuaccedilatildeo naquele momento apesar de divergirem entre si

sobre as estrateacutegias a seguir 31

As divergecircncias internas no PCB atingiram o aacutepice por ocasiatildeo dos preparativos

para o VI Congresso do partido convocado para dezembro de 1967 Os debates acerca

das Teses para Discussatildeo veiculadas na Voz Operaacuteria publicaccedilatildeo clandestina do

Comitecirc Central do PCB causaram muita polecircmica Essas Teses propunham que a

derrota da ditadura deveria ser alcanccedilada por meio da alianccedila com setores progressistas

incluindo a burguesia e da participaccedilatildeo do PCB na poliacutetica institucional reafirmando a

opccedilatildeo pelo caminho paciacutefico para a revoluccedilatildeo social Tais Teses geraram uma total

insatisfaccedilatildeo dos setores oposicionistas do PCB que se revoltaram contra o Comitecirc

Central do chamado Partidatildeo Assim sem a participaccedilatildeo dos dissidentes internos o

PCB realizou o seu VI Congresso e reafirmou a ideia trazida pelas Teses

30

Para mais informaccedilotildees ver Arauacutejo 2000 35-72 31

Para mais informaccedilotildees ver Aaratildeo Reis Saacute 2006 15

124

Pelos jornais da grande imprensa os dissidentes souberam do Congresso e de suas

resoluccedilotildees dentre as quais a que expulsava do partido grandes lideranccedilas da Corrente

Revolucionaacuteria Esta corrente do Partidatildeo divergia de seu Comitecirc Central liderado por

Luiacutes Carlos Prestes e havia se organizado nacionalmente sob a denominaccedilatildeo de

Corrente Revolucionaacuteria Entre suas grandes lideranccedilas expulsas a partir das resoluccedilotildees

do VI Congresso do PCB estavam Carlos Marighella liacuteder da Corrente em Satildeo Paulo

Maacuterio Alves liacuteder em Minas Gerais Jacob Gorender liacuteder no Rio Grande do Sul e

Apolocircnio de Carvalho lideranccedila no antigo Estado do Rio de Janeiro32

Dessa forma em 1968 os principais membros da Corrente Revolucionaacuteria

estavam definitivamente afastados do PCB e juntamente com os militantes que os

seguiram se organizaram e formaram outras organizaccedilotildees poliacuteticas o PCBR e a ALN

Os liacutederes Apolocircnio de Carvalho Jacob Gorender e Maacuterio Alves formaram o Partido

Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR) partido clandestino de esquerda em que

Antocircnio Leite militava ao ser preso e o liacuteder Carlos Marighella fundou a Accedilatildeo

Libertadora Nacional (ALN) organizaccedilatildeo clandestina de esquerda adotada por Dulce

Pandolfi Fernando Palha e Ana Batista

Por outro lado existia outra vertente de divergecircncias internas do PCB as

chamadas Dissidecircncias mais conhecidas pela sigla DI formadas basicamente por

setores estudantis Existiam dissidecircncias em vaacuterios estados brasileiros mas seria a da

Guanabara onde Ceciacutelia Coimbra militou anos antes de ser presa que alcanccedilaria maior

destaque no cenaacuterio poliacutetico e estudantil da deacutecada de 1960

32

Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009

125

Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-GB)

As Dissidecircncias Universitaacuterias surgiram no periacuteodo preacute-1964 em meio a diversas

divergecircncias que abalaram o PCB principalmente em suas bases universitaacuterias Em

1964 esses estudantes divergentes se agruparam e comeccedilaram a reunir militantes de

diferentes universidades a fim de articular posiccedilotildees poliacuteticas que natildeo se afinavam com o

que as direccedilotildees do partido haviam estabelecido ndash no jargatildeo comunista eram as

chamadas ldquofraccedilotildeesrdquo As ldquofraccedilotildeesrdquo eram de acordo com o estatuto proibidas dentro do

partido logo eram executadas secretamente A ldquofraccedilatildeordquo da Guanabara foi inicialmente

constituiacuteda por estudantes comunistas das faculdades de filosofia e de direito hoje

pertencentes agrave UFRJ

Em 1965 as divergecircncias entre os dissidentes e a direccedilatildeo do PCB na Guanabara

comeccedilaram a se mostrar evidentes A orientaccedilatildeo do partido era para que seus militantes

fizessem campanha para o candidato a governador da Guanabara Francisco Negratildeo de

Lima indicado pela alianccedila PTB-PSD considerada de oposiccedilatildeo ao regime militar Com

a crescente radicalizaccedilatildeo do movimento estudantil a Dissidecircncia foi ganhando forccedila

Nas eleiccedilotildees parlamentares de 1966 apesar da orientaccedilatildeo do Partidatildeo para que sua

militacircncia votasse em determinados candidatos os dissidentes da Guanabara resolveram

fazer campanha pelo voto nulo ocasionando o rompimento definitivo entre os dois A

antiga ldquofraccedilatildeordquo passaria a ser a Dissidecircncia Comunista da Guanabara uma nova

organizaccedilatildeo independente com orientaccedilatildeo para a luta armada e com ampla influecircncia

no movimento estudantil carioca 33

Entretanto em 1967 a Dissidecircncia Comunista da Guanabara enfrentaria uma

grave crise poliacutetica interna Naquele momento muitos militantes da organizaccedilatildeo

apresentavam posiccedilotildees divergentes sobre quais rumos ela deveria trilhar Alguns

33

Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009

126

achavam que a Dissidecircncia deveria se integrar agrave Corrente Revolucionaacuteria que ainda

estava lutando internamente para mudar o PCB outros almejavam consolidar a

Dissidecircncia Comunista da Guanabara de forma a tornaacute-la uma organizaccedilatildeo nacional

reunindo nela dissidecircncias que ainda deveriam se desvincular do Partidatildeo e um terceiro

grupo a se juntar ao Partido Comunista do Brasil (PC do B) 34

Afinal a partir do V Congresso do PCB realizado em setembro de 1960 sob

influecircncia da revisionismo aprovado no XX Congresso do Partido Comunista Sovieacutetico

tinha sido aprovada uma nova resoluccedilatildeo poliacutetica para o partido Esta apesar da

resistecircncia dos opositires internos que seguiam a linha de pensamento marxista-

leninista modificava o programa do PCB tornando a nova taacutetica do partido a conquista

de um governo nacionalista e democraacutetico por meio de um processo eleitoral e da

pressatildeo de massas excluindo assim a via armada de seu programa Dessa forma foram

afastados da direccedilatildeo do PCB a maioria de seus opositores e eleito um Comitecirc Central

composto em grande parte por destacados revisionistas como Luiacutes Carlos Prestes

Logo em 18 de fevereiro de 1962 a maior parte dos comunistas que se opunham agrave nova

linha do PCB se separaram do partido e atraveacutes de uma Conferecircncia Extraordinaacuteria

aprovaram um programa que defendia a estrateacutegia chinesa de guerra popular

prolongada se aproximando do maoiacutesmo e adotaram a sigla PC do B (Partido

Comunista do Brasil) Em 1969 o PC do B deflagrou na regiatildeo de Tocantins um foco

guerrilheiro que ficou conhecido como Guerrilha do Araguaia esta foi neutralizada

pelos militares no final de 1973 atraveacutes do extermiacutenio de grande parte dos militantes

envolvidos

Em 1967 um ano depois de se tornar independente a resoluccedilatildeo para a crise

interna da Dissidecircncia Comunista da Guanabara foi o seu desmembramento Apoacutes este

34

Para mais informaccedilotildees ver Aaratildeo Reis 1990 e Ridenti 1993

127

desmembramento e duas conferecircncias internas realizadas em 1968 a Dissidecircncia

Comunista da Guanabara consolidou-se novamente como organizaccedilatildeo autocircnoma tendo

suas lideranccedilas agrave frente das grandes manifestaccedilotildees estudantis ndash que chegavam ao auge

de mobilizaccedilatildeo ndash e conquistando espaccedilo no cenaacuterio nacional Com o seu crescimento

junto ao movimento estudantil a DI-GB se ampliou notavelmente Apoacutes a decretaccedilatildeo

do AI-5 que tornava ilegal o movimento poliacutetico-estudantil a DI-GB organizou em

1969 uma nova conferecircncia reafirmando o seu empenho revolucionaacuterio de caraacuteter

comunista assumindo oficialmente a partir de entatildeo sua opccedilatildeo pela luta armada

Nessa eacutepoca Ceciacutelia Coimbra jaacute havia saiacutedo da organizaccedilatildeo e natildeo participava de

nenhum outro grupo de esquerda apesar de manter contato com muitos companheiros

que continuaram na militacircncia Afinal como abordado durante a anaacutelise de sua

trajetoacuteria Ceciacutelia preferiu se desligar por natildeo concordar nem com a poliacutetica paciacutefica do

entatildeo Partidatildeo e nem com a luta armada das demais organizaccedilotildees inclusive da

Dissidecircncia Comunista da Guanabara pois segundo ela achava que estas estavam

muito desvinculadas da sociedade e por isso natildeo teriam ecircxito

[] eu achava que natildeo era por aiacute eu discordava muito da questatildeo da luta

armada mas eu tambeacutem discordava da posiccedilatildeo do Partido Comunista que

era a favor do caminho paciacutefico a favor do caminho institucional parece

muito o PT de hoje a questatildeo da luta institucional que natildeo era pegando em

armas que natildeo era pela luta armada Eu natildeo concordava nem com um nem

com outro porque o pessoal da luta armada estava totalmente desvinculado

da sociedade brasileira entatildeo eu me afastei mas eu continuei com muito

contato com vaacuterios companheiros e aiacute comeccedilou 67-68 [] (Coimbra 30

nov 2004)

Em setembro de 1969 a Dissidecircncia Comunista da Guanabara juntamente com a

ALN elaborou e promoveu o sequestro do embaixador norte-americano no Brasil

128

Charles Burke Elbrick A accedilatildeo teve ecircxito e os envolvidos conseguiram trocar o

embaixador por quinze prisioneiros poliacuteticos entre eles importantes liacutederes estudantis

da antiga DI-GB Durante esse sequestro conforme explicado anteriormente os

militantes da entatildeo Dissidecircncia resolveram mudar o nome da organizaccedilatildeo para

Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro (MR-8) assinando esse novo nome no

manifesto entregue agrave imprensa

A mudanccedila de Dissidecircncia Comunista da Guanabara para MR-8 era na realidade

uma provocaccedilatildeo agrave ditadura Alguns meses antes do sequestro do embaixador americano

a repressatildeo havia desarticulado uma organizaccedilatildeo poliacutetica e anunciado que tinha

destruiacutedo o grupo terrorista Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro Poreacutem de acordo

com Alberto Berquoacute em O sequumlestro dia-a-dia (1997) o oacutergatildeo repressor que havia

prendido aqueles militantes o CENIMAR inventou esse nome pois o grupo capturado

era na verdade a Dissidecircncia do Estado do Rio de janeiro que a rigor se

autodenominava apenas como Organizaccedilatildeo Os militares entatildeo para anunciar a notiacutecia

na imprensa causando um maior impacto atribuiacuteram agrave Organizaccedilatildeo o nome de MR-8

fazendo referecircncia agrave data em que o guerrilheiro socialista Ernesto ldquoCherdquo Guevara havia

sido preso pela Central Intelligence Agency (CIA) na Boliacutevia Dessa forma ao

utilizarem o nome de MR-8 os militantes da ateacute entatildeo Dissidecircncia Comunista da

Guanabara estariam anunciando pertencerem agrave mesma organizaccedilatildeo que os militares

divulgaram meses antes jaacute estar aniquilada desmoralizando-os publicamente 35

Algum tempo depois do sequestro do embaixador a maioria de seus envolvidos

ou foram presos ou mortos pela repressatildeo Fernando Gabeira um dos militantes do MR-

8 envolvidos nessa accedilatildeo era conhecido de Ceciacutelia Coimbra e de seu marido desde a

eacutepoca em que militavam na Dissidecircncia Comunista da Guanabara Assim apoacutes a troca

35

Para mais informaccedilotildees sobre a mudanccedila de nome da Dissidecircncia Comunista da Guanabara para MR-8

ver Berquoacute 1997 72-73

129

do embaixador pelos prisioneiros poliacuteticos Gabeira por estar sendo procurado acabou

se escondendo na casa do casal fato que veio a ocasionar posteriormente a prisatildeo tanto

de Ceciacutelia quanto de seu marido nas dependecircncias do DOI-CODIRJ

Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR)

O partido clandestino pelo qual Antocircnio Leite militava ao ser preso o PCBR

havia sido criado em abril de 1968 a partir da expulsatildeo de liacutederes da Corrente

Revolucionaacuteria do PCB conforme mencionado anteriormente Um dos liacutederes e

tambeacutem fundador do PCBR Jacob Gorender na obra Combate nas Trevas a esquerda

brasileira (1999 111-116) caracteriza-o como marxista tendo por estrateacutegia de accedilatildeo a

combinaccedilatildeo entre guerrilha rural e trabalho de massas nas cidades com vistas agrave

formaccedilatildeo de um Governo Popular Revolucionaacuterio que abriria caminho para a

revoluccedilatildeo socialista

A partir dessa ideia de trabalho com as massas nas cidades o PCBR buscou

integrar-se agraves lutas estudantis de 1968 por meio das quais Antocircnio Leite de Carvalho

conheceu melhor a ideologia e as lideranccedilas do partido e posteriormente resolveu

tornar-se seu militante Aleacutem disso desenvolveu ainda algum trabalho nas faacutebricas nas

aacutereas rurais e promoveu entre os anos de 1969 e 1970 algumas accedilotildees armadas como

assaltos a bancos e roubos de veiacuteculos a fim de financiar a atuaccedilatildeo do partido Contudo

o PCBR sofreu com sucessivas prisotildees de seus liacutederes e integrantes restringindo de tal

forma o seu poder de accedilatildeo que logo no iniacutecio da deacutecada de 1970 jaacute se encontrava quase

totalmente desarticulado

O precoce fracasso do PCBR segundo a avaliaccedilatildeo feita por Antocircnio ainda

durante sua primeira entrevista (12 set 2002) deve-se ao fato da estrateacutegia de revoluccedilatildeo

pregada pelo partido ser utoacutepica Afinal para Antocircnio os militantes e liacutederes do PCBR

130

inclusive ele proacuteprio acreditavam que com algumas poucas accedilotildees urbanas isoladas

conseguiriam o apoio da grande massa ao movimento revolucionaacuterio e tomariam o

poder Por conseguinte entende que foi justamente esse isolamento a causa da grande

derrota do PCBR como se pode conferir no trecho abaixo

Era uma grande utopia faziacuteamos duas accedilotildees urbanas na cidade e achaacutevamos

que essas accedilotildees seriam capazes de fazer as pessoas aderirem ao nosso

movimento e conseguiriacuteamos o apoio da grande massa [] Isso nunca iria

acontecer porque eram movimentos basicamente de conquistas quer dizer

que trabalhavam isolados e foi o isolamento a causa da nossa grande derrota

(Carvalho 12 Set 2002)

Entretanto eacute importante destacar que esta avaliaccedilatildeo soacute pocircde ser feita a partir do

presente quando jaacute se sabia que a luta armada havia sido derrotada muito antes da

ditadura terminar e que a democracia havia se tornado uma realidade Afinal logo apoacutes

o AI-5 a luta armada e a forma de atuar do PCBR representavam para seus militantes

uma forte possibilidade de derrubar a ditadura militar Eles natildeo se submeteriam a

arriscar suas vidas em prol de uma luta na qual natildeo tivessem total convicccedilatildeo Logo

percebe-se um anacronismo na avaliaccedilatildeo que Antocircnio faz sobre sua luta naquele

passado o que eacute muito comum entre as memoacuterias construiacutedas por ex-guerrilheiros da

eacutepoca conforme destacado pela revolta de um dos que concederam seus depoimentos a

Alzira Alves de Abreu em Os anos de chumbo memoacuteria da guerrilha (1998)

B [nome atribuiacutedo ao ex-guerrilheiro pela autora para preservar sua

identidade] comeccedilou chamando a atenccedilatildeo para o fato de que a mamoacuteria

daquela fase histoacuterica eacute muito precaacuteria ldquoNa verdade ela foi muito mal

construiacuteda acabou virando um folclore e acabou se contando a histoacuteria desse

periacuteodo de traacutes para frente ndash quer dizer sabendo que a luta armada natildeo deu

certo vamos contar por que ela natildeo deu certo Na eacutepoca em que ela ocorreu

ela era um campo de possibilidades natildeo era mais do que isso Mas hoje jaacute se

131

comeccedila a falar desse movimento para se mostrar o fim dessa histoacuteria[]

(Abreu 1998 31)

Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN)

A organizaccedilatildeo em que militavam Dulce Pandolfi Fernando Palha e Ana de

Miranda no momento de suas prisotildees a ALN foi fundada por Carlos Marighella em

fevereiro de 1968 depois de deixar o PCB Marighella havia sido expulso do Partidatildeo

sob a alegaccedilatildeo de ter viajado para Havana em Cuba sem a autorizaccedilatildeo do Comitecirc

Central do partido para participar da conferecircncia da Organizaccedilatildeo Latino-Americana de

Solidariedade (OLAS) ndash organizaccedilatildeo que tinha como objetivo estender a revoluccedilatildeo

armada por toda a Ameacuterica Latina nos moldes da Revoluccedilatildeo Cubana de 1959

Em apoio a Marighella apoacutes sua expulsatildeo do PCB as bases de Satildeo Paulo tambeacutem

se desligaram do partido e formaram o Agrupamento Comunista de Satildeo Paulo O

Pronunciamento desse grupo em fevereiro de 1968 fundou oficialmente a Accedilatildeo

Libertadora Nacional (ALN) muito embora o primeiro quadro de militantes da

organizaccedilatildeo tenha ido treinar em Cuba ainda em setembro de 1967 36

O nome Accedilatildeo Libertadora Nacional seria uma referecircncia agrave Alianccedila Nacional

Libertadora organizaccedilatildeo poliacutetica criada em 1935 composta por setores de diversas

correntes ideoloacutegicas basicamente a fim de lutar contra a influecircncia fascista no Brasil

Nesse mesmo sentido a ALN tambeacutem visava aleacutem da luta socialista a libertaccedilatildeo

nacional buscando adquirir igual ecircxito na congregaccedilatildeo de grande parte da esquerda

brasileira em torno de seus objetivos como ANL havia conseguido durante a deacutecada de

30 No entanto diferentemente da Alianccedila Nacional Libertadora a Accedilatildeo Libertadora

36

Para mais informaccedilotildees ver Lima 2007 31

132

Nacional natildeo era configurada por uma poliacutetica de alianccedilas mas pelo combate pela accedilatildeo

direta 37

Quanto ao programa da organizaccedilatildeo a ALN tinha por estrateacutegia maior a guerrilha

rural embora sua tarefa taacutetica estivesse concentrada nas cidades onde a maior parte de

suas accedilotildees ocorria Essas accedilotildees urbanas eram consideradas pela organizaccedilatildeo como um

meio de apoio para propaganda poliacutetica para obtenccedilatildeo de fundos (atraveacutes de

expropriaccedilotildees como assaltos a bancos) para recrutamento de quadros para a guerrilha e

para ataques estrateacutegicos ao inimigo Aleacutem disso a ALN permitia a existecircncia de

pequenos grupos com total independecircncia taacutetica desde que estivessem subordinados agrave

sua estrateacutegia geral Dessa forma sua estrutura pode ser entendida como horizontal sem

hierarquias jaacute que segundo Denise Rollemberg em Esquerdas revolucionaacuterias e luta

armada (2003) o militante da ALN que se considerasse capaz de fazer accedilotildees era

incentivado a agir e natildeo a ficar esperando a orientaccedilatildeo de um poder centralizado Afinal

uma das criacuteticas da antiga Corrente Revolucionaacuteria do PCB da qual o liacuteder da ALN

Marighella foi integrante era justamente sobre a centralizaccedilatildeo e como esta emperrava a

atuaccedilatildeo do partido Dessa forma a ALN atuava por meio de diversos grupos

multiplicando suas accedilotildees

A partir disso percebe-se como o sequestro do aviatildeo da Companhia Cruzeiro do

Sul efetuado pelo pequeno grupo que Fernando Palha integrava pocircde ser executado

dentro da ALN assim como os inuacutemeros assaltos a bancos e carros-fortes e os

sequestros a embaixadores em que outros pequenos grupos ligados agrave ALN estiveram

envolvidos Dessa forma nota-se tambeacutem como e por que a ALN se tornou a maior

organizaccedilatildeo de luta armada da eacutepoca e por conseguinte Marighella e seus demais

militantes os mais procurados pela ditadura militar 38

37

Para mais informaccedilotildees ver Lourenccedilo 2005 191 38

Para mais informaccedilotildees ver Gorender 1999

133

No trecho seguinte retirado da entrevista de Fernando Palha destaca-se como

muitos desses pequenos grupos da ALN tinham espaccedilo para planejar e administrar suas

proacuteprias accedilotildees sem se desligarem da Accedilatildeo

Eu era da ALN Accedilatildeo Libertadora Nacional era a maior organizaccedilatildeo de luta

armada que tinha na eacutepoca A Jane [Jessie Jane] por exemplo veio para caacute

para Niteroacutei jaacute fugida de Satildeo Paulo onde prenderam o pai prenderam a matildee

a famiacutelia dela toda sabe O pai natildeo era de nenhuma organizaccedilatildeo mas dava

guarida [] ele era um cara politizado e ela tambeacutem e quando ela veio para

caacute para Niteroacutei ela entrou para o nosso grupo de estudo Estudaacutevamos o

marxismo guerrilhas enfim aprendendo um pouco Aiacute a gente pensando

em como soltar eles [os pais de Jessie Jane] surgiu a ideacuteia de sequestrar o

aviatildeo O sequestro do aviatildeo foi tranquilo difiacutecil foi a negociaccedilatildeo da troca

dos passageiros pelos presos que a gente queria (Freire 28 jun 2004)

Essas variadas e espalhadas accedilotildees da ALN repercurtiram de forma negativa entre

os militares dos oacutergatildeos repressivos Afinal a atuaccedilatildeo descentralizada da ALN permitia

que uma grande quantidade de accedilotildees ldquoterroristasrdquo fossem atribuiacutedas ao movimento

tornando-o aos olhos dos agentes da repressatildeo mais ameaccedilador e perigoso agrave

manutenccedilatildeo do regime ditatorial Essa percepccedilatildeo dos militares pode ter causado reflexos

no cotidiano prisional de militantes ligados direta ou indiretamente agrave referida

organizaccedilatildeo como Dulce Fernando Ana e Ceciacutelia39

ndash considerada militante indireta

por ter escondido em sua casa um dos atores do sequestro do embaixador norte-

americano accedilatildeo conjunta entre MR-8 e ALN

39

No terceiro capiacutetulo a anaacutelise da memoacuteria dos seis entrevistados (Antocircnio Dulce Fernando Padre

Maacuterio Ana e Ceciacutelia) se concentra no cotidiano prisional vivido no DOI-CODI carioca

134

Juventude Operaacuteria Catoacutelica (JOC) amp Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO)

A Juventude Operaacuteria Catoacutelica a JOC uma das organizaccedilotildees de que Padre Maacuterio

era assistente no momento de sua prisatildeo surge no Brasil em iniacutecio dos anos 1930

ganhando forccedila apenas a partir de fins de 1940 A JOC objetivava melhorar a vida do

jovem trabalhador atraveacutes de uma accedilatildeo evangelizadora e formadora de uma consciecircncia

criacutetica Eacute a responsaacutevel pela criaccedilatildeo do meacutetodo pedagoacutegico ldquoVer-Julgar-Agirrdquo

ensinando seus jovens a ver o problema a julgaacute-lo agrave luz do Evangelho e a agir para

transformar sua condiccedilatildeo de classe trabalhadora explorada

A JOC que apresentava uma posiccedilatildeo mais conservadora ateacute meados da deacutecada de

1950 a partir do golpe de 1964 assume outra orientaccedilatildeo poliacutetica de caraacuteter mais

progressista realizando uma reflexatildeo mais profunda no que se refere agrave condiccedilatildeo da

classe trabalhadora do paiacutes e da Ameacuterica Latina o que ocasiona uma maior repressatildeo

por parte do governo ditatorial brasileiro Atraveacutes da JOC a criaccedilatildeo da Accedilatildeo Catoacutelica

Operaacuteria (ACO) ndash outra organizaccedilatildeo de que Padre Maacuterio tambeacutem participava no

momento de sua prisatildeo ndash foi incentivada comeccedilando a ser organizada em fins da

deacutecada de 1950 em funccedilatildeo do grande nuacutemero de militantes que haviam chegado agrave idade

adulta mas desejavam continuar a atuar por meio da organizaccedilatildeo

A ACO nasce entatildeo da Liga Operaacuteria Catoacutelica (LOC) que era um movimento

destinado aos adultos ligados agrave Igreja e inicialmente com forte preocupaccedilatildeo

assistencialista assumindo gradativamente um vieacutes poliacutetico e uma identidade de classe

Assim a partir da LOC a ACO brasileira surge de fato em 1962 apresentando-se como

uma continuidade da JOC para que os jovens trabalhadores pudessem quando adultos

permanecerem a atuar politicamente Muitos eram os pontos em comum dos dois

movimentos que vatildeo desde os mesmos participantes que migravam de um para o outro

ao atingirem a idade adulta como a aplicaccedilatildeo do mesmo meacutetodo de accedilatildeo ldquoVer-Julgar-

135

Agirrdquo Entretanto segundo Alejandra Luisa Magalhatildees Estevez em sua dissertaccedilatildeo de

mestrado (2008) O movimento dos trabalhadores catoacutelicos a Juventude Operaacuteria

Catoacutelica (JOC) e a Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) diferentemente da JOC que a

partir de 1969 com a prisatildeo de muitos de seus integrantes ndash como o proacuteprio Padre

Maacuterio Prigol ndash foi perdendo forccedilas e acabou desaparecendo a atuaccedilatildeo da ACO durante

o periacuteodo militar caracterizou-se pelo enfrentamento constante com a hierarquia

eclesiaacutestica e com os proacuteprios militares

Dessa forma Padre Maacuterio que antes de ser preso em 1970 era assistente tanto da

JOC quanto da ACO apoacutes sua prisatildeo deu continuidade ao seu trabalho junto agrave ACO o

que ainda faz atualmente Afinal a ACO permanece em atividade ateacute os dias de hoje

poreacutem sob o nome de Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos (MTC)

Logo mesmo com diferentes atuaccedilotildees no cenaacuterio poliacutetico da eacutepoca as

organizaccedilotildees acima tratadas nas quais os ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados

militavam direta ou indiretamente tinham por confluecircncia algum tipo de manifestaccedilatildeo

em oposiccedilatildeo agrave ditadura militar Entretanto apesar dessa face comum ser o motivo

principal de suas prisotildees as diferenccedilas na forma de agir de suas organizaccedilotildees pode ter

se refletido na intensidade das violecircncias a que foram submetidos no DOI-CODIRJ

Diante disso no capiacutetulo seguinte a partir da anaacutelise das memoacuterias dos seis

entrevistados essa relaccedilatildeo entre a organizaccedilatildeo de esquerda do militante e o seu

tratamento na prisatildeo seraacute abordada assim como os demais aspectos que caracterizavam

o cotidiano vivido no DOI-CODIRJ durante o ano de 1970

136

Capiacutetulo 3 ndash O espaccedilo e o cotidiano do DOI-CODI carioca

A lua

Tal qual a dona de um bordel

Pedia a cada estrela fria

Um brilho de aluguel

E nuvens

Laacute no mata-borratildeo do ceacuteu

Chupavam manchas torturadas

Que sufoco

Louco

O becircbado com chapeacuteu-coco

Fazia irreverecircncias mil

Praacute noite do Brasil

Meu Brasil

Aldir Blanc e Joatildeo Bosco

(O Becircbado e a Equilibrista 1979)

137

1 O que sofre e o que resiste

Os depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ fontes essenciais

para esta pesquisa encontram aqui um desfecho primordial Finalmente uma de suas

especificidades mais importantes eacute aqui trabalhada a possibilidade que trazem de

acessar desde os aspectos mais subjetivos do dia-a-dia do DOI-CODIRJ aos mais

triviais Diante disso neste capiacutetulo torna-se possiacutevel uma caracterizaccedilatildeo da rotina

institucional ali vivida pelos prisioneiros em 1970 trazendo agrave tona detalhes e

sentimentos que compunham esse cotidiano que haacute deacutecadas jaacute natildeo existe mais Essa

faccedilanha natildeo seria possiacutevel atraveacutes de qualquer outra fonte senatildeo a oral Somente as

memoacuterias trazidas nas narrativas orais quando devidamente trabalhadas satildeo capazes de

aproximar-se das sensaccedilotildees e sentimentos vivenciados naquele passado amenizando a

sua corrosatildeo pelo tempo e as lacunas encontradas na histoacuteria da ditadura militar

Diante disso a memoacuteria eacute aqui tratada como material para a histoacuteria conforme

elucidado por Paul Ricoeur em A memoacuteria a histoacuteria e o esquecimento (2008) Nessa

mesma direccedilatildeo vai Fernando Catroga em seu artigo A representaccedilatildeo do ausente

memoacuteria e historiografia (2010) pelo qual busca entender a escrita da histoacuteria como um

rito de memoacuteria anaacutelogo ao ldquogesto de sepulturardquo Afinal a escrita da histoacuteria tem uma

funccedilatildeo anaacuteloga agrave do tuacutemulo e agrave dos ritos de recordaccedilatildeo ajudando tal como no trabalho

do luto a pagar as diacutevidas do presente com o passado que jaacute natildeo existe mais Essa

analogia mostra que se o tuacutemulo eacute o primeiro monumento dos mortos deixado para os

vivos a escrita da histoacuteria tambeacutem atua no sentido de lutar contra o esquecimento e a

degradaccedilatildeo que marcam a passagem do tempo Logo tal como acontece quando se

visita o tuacutemulo de um cemiteacuterio a escrita da histoacuteria sobre o cotidiano do DOI-

CODIRJ pretende contribuir para que agindo sobre os vivos esse passado se

transforme de ldquolugar de sepulturardquo para o de ldquogesto de sepulturardquo (Ricoeur 2008) Essa

138

analogia do tuacutemulo com a escrita da histoacuteria tem como principal ponto em comum a

construccedilatildeo do passado a partir de traccedilos e de representaccedilotildees que almejam situar no

tempo algo que natildeo existe mais O cotidiano do DOI-CODIRJ passa aqui a ser escrito

por meio da anaacutelise de vestiacutegios e representaccedilotildees apresentados nas memoacuterias de seis

dos seus ex-prisioneiros poliacuteticos tal como ocorre com a representaccedilatildeo memorial de

uma sepultura

Evidencia-se que as memoacuterias aqui trabalhadas especialmente por evocarem

fatos vividos pelas proacuteprias testemunhas estatildeo permeadas de razotildees subjetivas

normativas e pragmaacuteticas que satildeo condicionantes e geram efeitos incontrolaacuteveis

resultando em uma construccedilatildeo qualitativa seletiva e apaixonada do passado Daiacute a

importacircncia do olhar criacutetico do historiador sobre essas memoacuterias uma vez que a funccedilatildeo

deste eacute justamente inserir os aspectos criacuteticos objetivos e analiacuteticos da histoacuteria na

fluidez emoccedilatildeo e submissatildeo aos influxos da conjuntura caracteriacutesticos da memoacuteria

(Nora 1993)

Portanto eacute imperativo analisar criticamente essas memoacuterias sobre o cotidiano do

DOI-CODIRJ mesmo sabendo das dificuldades que envolvem essa accedilatildeo como bem

aponta Beatriz Sarlo em Tempo passado Cultura da memoacuteria e guinada subjetiva

(2007) Afinal satildeo depoimentos de viacutetimas cuja confiabilidade sobre as torturas sofridas

na prisatildeo natildeo soacute foi elemento constituinte da instalaccedilatildeo do regime democraacutetico como

ainda eacute responsaacutevel pela solidificaccedilatildeo de um princiacutepio de reparaccedilatildeo e justiccedila Poreacutem

deve-se antes de tudo encaraacute-los como discursos testemunhais pois seguem o modo

persuasivo caracteriacutestico do discurso e por conseguinte natildeo podem ser cristalizados

Afinal esses seis testemunhos satildeo feitos por narradores que buscam firmar no passado a

verdade do presente jaacute que a narrativa no presente tem uma inevitaacutevel hegemonia sobre

o passado conforme bem enuncia Sarlo no trecho abaixo

139

O presente da enunciaccedilatildeo eacute o ldquotempo de base do discursordquo porque eacute

presente o momento de se comeccedilar a narrar e esse momento fica inscrito na

narraccedilatildeo Isso implica o narrador em sua histoacuteria e a inscreve numa retoacuterica

da persuasatildeo (o discurso pertence ao modo persuasivo diz Ricoeur) Os

relatos testemunhais satildeo ldquodiscursordquo nesse sentido porque tecircm como

condiccedilatildeo um narrador implicado nos fatos que natildeo persegue uma verdade

externa no momento em que ela eacute enunciada Eacute inevitaacutevel a marca do

presente no ato de narrar o passado justamente porque no discurso o

presente tem genuiacutena hegemonia reconhecida como inevitaacutevel e os tempos

verbais do passado natildeo ficam livres de uma ldquoexperiecircncia fenomenoloacutegicardquo

do tempo presente da enunciaccedilatildeo ldquoO presente dirige o passado assim como

um maestro seus muacutesicosrdquo escreveu Italo Severo (Sarlo 2007 49)

Daiacute destaca-se novamente a importacircncia de considerar o tempo presente como

base do discurso das memoacuterias sobre o cotidiano do DOI-CODIRJ trabalhadas neste

capiacutetulo evocando mais uma vez a elucidativa expressatildeo preacutesent du passeacute de Robert

Frank (1999) O presente a partir de onde falam os seis entrevistados como ex-

prisioneiros poliacuteticos corresponde a um momento em que a democracia brasileira para a

maioria deles dava passos largos em direccedilatildeo a sua total magnitude o presente vivido no

raiar dos anos 2000 vinha se distanciando poliacutetica e socialmente do passado ditatorial

militar Quem presidia o paiacutes eram antigos opositores poliacuteticos do governo militar os

ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva que vinham

construindo garantias de reparaccedilatildeo aos que sofreram violaccedilotildees aos direitos humanos

durante o passado ditatorial

Estava em curso o reconhecimento dos mortos e desaparecidos poliacuteticos pelo

Estado brasileiro bem como a indenizaccedilatildeo agraves famiacutelias por intermeacutedio da Lei nordm 9140

de 1995 e a reparaccedilatildeo financeira aos males sofridos por aqueles presos ou perseguidos

na eacutepoca da ditadura militar garantida pela Lei nordm 10559 de 2002 Eram esses fatos

140

que compunham o cenaacuterio do presente vivido durante as entrevistas e obviamente

influenciaram diretamente a construccedilatildeo das narrativas dos ex-presos poliacuteticos sobre o

cotidiano do DOI-CODI carioca

Essas influecircncias acabaram em alguns casos direcionando suas narrativas para

os detalhes dos horrores a que foram submetidos e para as sequelas deixadas pelas

torturas daquele tempo a fim de natildeo suscitar duacutevidas sobre o merecimento agrave reparaccedilatildeo

oferecida pelo Estado Afinal o DOI-CODIRJ correspondeu ao espaccedilo onde esses

presos poliacuteticos viveram um dos cotidianos mais violentos de todo o periacuteodo em que

estiveram na prisatildeo Ao enfatizarem em detalhes o lado duro dessa rotina prisional os

entrevistados ambicionavam fortalecer a interpretaccedilatildeo vigente sobre seu papel de viacutetima

e ao mesmo tempo de resistente a um Estado ditatorial Ao procurarem conquistar a

entrevistadora os entrevistados viam-se envolvidos no processo de enquadramento da

memoacuteria sobre a ditadura militar brasileira no sentido atribuiacutedo por Michael Pollak

(1992) O objetivo entre outros era o de fortalecer perante a sociedade e o governo

uma memoacuteria que a eles conferisse o duplo lugar de resistente e de viacutetima e endossasse

a necessidade de reparaccedilotildees financeiras e simboacutelicas aos atingidos

A reparaccedilatildeo financeira aos violentados pela ditadura militar jaacute vinha acontecendo

na eacutepoca em que as entrevistas foram concedidas por meio das leis que implantaram a

Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos e a Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio

da Justiccedila citadas anteriormente e abordadas no segundo capiacutetulo Jaacute a reparaccedilatildeo

simboacutelica soacute comeccedilaria a ser de fato implantada alguns anos depois das entrevistas

principalmente com as Caravanas da Anistia a partir de abril de 2008 e mediante a

aprovaccedilatildeo da Comissatildeo da Verdade pelo Congresso Nacional em outubro de 2011 As

Caravanas da Anistia satildeo sessotildees puacuteblicas itinerantes de apreciaccedilatildeo de requerimentos de

anistia poliacutetica a perseguidos poliacuteticos da ditadura militar acompanhadas por atividades

141

educativas e culturais promovidas pela Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio da Justiccedila

Jaacute a Comissatildeo da Verdade teraacute como finalidade examinar e esclarecer graves violaccedilotildees

de direitos humanos praticadas entre os anos de 1946 e 1988 a fim de promover a

reconciliaccedilatildeo nacional com o seu passado histoacuterico

Eacute faacutecil perceber que os entrevistados em seus testemunhos-discursos acabam

atribuindo um sentido uacutenico agrave histoacuteria e conforme salienta Beatriz Sarlo (2007) ao

acumularem detalhes em suas narrativas produzem um modo realista-romacircntico pelo

qual atribuem sentidos a todos os detalhes mencionados somente pelo fato de incluiacute-los

no relato sem se sentirem na obrigaccedilatildeo de atribuir sentidos ou explicar as ausecircncias ali

tambeacutem apresentadas Dessa forma a anaacutelise aqui traccedilada procura trabalhar de forma

criacutetica no sentido de reconhecer a face realista dos detalhes descritos pelos narradores

e ao mesmo tempo a face romacircntica construiacuteda por eles de forma a fortalecer a

credibilidade e a veracidade de sua narraccedilatildeo Uma vez que diferentemente do que datildeo a

entender os entrevistados ao narrarem suas proacuteprias vidas a anaacutelise histoacuterica do

presente trabalho firma-se longe da utopia de uma narraccedilatildeo total capaz de descrever

todo o passado estudado reconhecendo a necessidade de operar com elipses

No entanto se por um lado os detalhes mencionados nos depoimentos devem ser

submetidos ao pensamento criacutetico histoacuterico por outro lado satildeo exatamente eles que

enriquecem a anaacutelise de um cotidiano jaacute que os detalhes trazidos pelos depoimentos

conseguem muitas vezes tornar a rotina do dia-a-dia que jaacute natildeo mais existe palpaacutevel

ao entendimento Eacute o que ocorre por exemplo com a disposiccedilatildeo espacial interna do

preacutedio-sede do DOI-CODIRJ fator que estaacute intrinsecamente relacionado ao cotidiano

prisional e que torna-se passiacutevel de caracterizaccedilatildeo atraveacutes dos detalhes contidos nos

depoimentos Assim mesmo natildeo sendo possiacutevel visitar o interior do edifiacutecio e nem ter

acesso a alguns registros documentais como fotos ou outros documentos eacute possiacutevel

142

contrapor as descriccedilotildees contidas nos depoimentos com a fachada do preacutedio que ainda

existe e construir uma percepccedilatildeo aproximada sobre o espaccedilo em que de certa forma

essas memoacuterias estatildeo ancoradas

2 Uma cartografia possiacutevel do ldquoCastelo do Terrorrdquo

Constatada essa forte relaccedilatildeo entre as memoacuterias dos ex-prisioneiros que ali

ficaram presos em 1970 com o espaccedilo interno do 1ordm BPE resolvi tentar ver de perto

como este era distribuiacutedo No entanto muitas dificuldades foram encontradas e

inviabilizaram o meu projeto inicial de contrapor o que restava do interior do edifiacutecio

que sediou o DOI-CODIRJ com as memoacuterias de seus ex-prisioneiros

Em 2003 a minha primeira tentativa de visitar o interior do preacutedio do 1ordm BPE foi

interrompida no momento em que apresentei o propoacutesito de minha visita o interesse em

ver o preacutedio do DOI-CODIRJ Percebi imediatamente que o ldquoassunto DOI-CODIrdquo

gerava um grande desconforto para aquele Batalhatildeo Talvez porque apesar do referido

Batalhatildeo natildeo ter tido relaccedilatildeo direta com o DOI-CODIRJ pois eram instituiccedilotildees

distintas o fato desse oacutergatildeo repressivo ter sido instalado em seu interior evoca uma

forte relaccedilatildeo que atualmente imprime uma imagem negativa para seus militares

Percebe-se assim que o 1ordm BPE quer apagar da memoacuteria social sua associaccedilatildeo ao DOI-

CODIRJ o que explica o fato de seus militares natildeo permitirem que eu prosseguisse

com a visita

No ano seguinte em novembro tentei pela segunda vez visitar o interior do dito

edifiacutecio Prevendo dificuldades para a visita utilizei como pretexto uma suposta

pesquisa sobre patrimocircnios histoacutericos do bairro Um primeiro-sargento que se

apresentou como graduado em histoacuteria acompanhou-me pelo paacutetio interno do

complexo Durante o passeio por este espaccedilo ele apontava de longe para os preacutedios que

143

ficavam ao redor inclusive para o que sediava o DOI-CODIRJ agrave esquerda e ao fundo

daquele paacutetio a ceacuteu aberto Ao referir-se ao local o sargento apontou de longe e disse

ldquoLaacute funciona o DOI-CODIrdquo deixando transparecer que ateacute aquele momento natildeo

existia uma nova serventia para aquele local e que a estrutura do DOI-CODI havia sido

preservada Nada mais quis falar alegando que natildeo poderia dar explicaccedilotildees mais

amplas sobre o assunto e que aleacutem do mais eu natildeo poderia me aproximar das

instalaccedilotildees que me interessavam

Esta segunda visita corroborou a minha sensaccedilatildeo anterior de que os militares

daquele Batalhatildeo natildeo queriam que este ficasse historicamente associado ao DOI-CODI

percebendo a imagem negativa que essa associaccedilatildeo poderia conferir-lhes tentando

evitar a manutenccedilatildeo do viacutenculo daquele preacutedio com a memoacuteria das torturas e mortes ali

executadas nos chamados ldquoanos de chumbordquo

Aleacutem disso esta visita trouxe-me um dado novo ao apresentar aquele preacutedio

como sendo o ldquoDOI-CODIrdquo no presente do indicativo o sargento deixou perceptiacutevel

um interesse interno em preservaacute-lo Afinal por que ateacute aquele momento mesmo o

DOI-CODI natildeo estando mais em atividade o seu espaccedilo natildeo havia sido utilizado para

nenhuma outra funccedilatildeo permanente Este interesse reflete talvez um forte orgulho

interno de importantes setores do Exeacutercito pelos feitos do DOI-CODI no sentido de

para alguns mais radicais ter sido esta instituiccedilatildeo uma das principais defensoras da

soberania e da ordem nacional na eacutepoca ameaccediladas pela subversatildeo

Apesar de tais empecilhos os detalhes relatados pelos entrevistados viabilizariam

uma aproximada cartografia espacial do interior do DOI-CODIRJ de 1970 quando eles

laacute estiveram Essa cartografia fez-se aqui necessaacuteria por entender-se que essa disposiccedilatildeo

espacial eacute essencial para a anaacutelise das memoacuterias sobre o cotidiano ali vivido uma vez

que esse espaccedilo prisional estaacute presente a todo o tempo nos relatos de Antocircnio Dulce

144

Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia sendo um dos principais pontos de uniatildeo de suas

memoacuterias

Sendo assim defende-se aqui que o antigo preacutedio do DOI-CODI carioca eacute hoje

um lugar de memoacuteria jaacute que a ele se confere de forma simultacircnea e em graus diversos

os trecircs sentidos atribuiacutedos como necessaacuterios por Pierre Nora o material o simboacutelico e o

funcional (Nora 1993 21) O sentido material no caso eacute o proacuteprio espaccedilo fiacutesico o

preacutedio do 1ordm BPE ainda localizado agrave Rua Baratildeo de Mesquita nordm 425 no bairro da

Tijuca O simboacutelico eacute o que o edifiacutecio representa para parte da sociedade carioca que

partilha as memoacuterias dos ex-presos poliacuteticos e seus familiares sobre o violento

cotidiano as torturas e as mortes ali vivenciados atribuindo ao preacutedio o significado de

ldquoCastelo do terrorrdquo Por fim o sentido funcional eacute a atividade de preservaccedilatildeo da

memoacuteria da ditadura militar ali exercida jaacute que o preacutedio eacute um monumento tombado sob

a justificativa de guardar a memoacuteria ali vivida durante a ditadura militar brasileira e natildeo

deixar que ela venha a cair no esquecimento Este uacuteltimo sentido portanto embute ao

preacutedio o significado completo de um lugar de memoacuteria congregando ao espaccedilo uma

funccedilatildeo e uma representaccedilatildeo simboacutelica ou seja unindo os aspectos material simboacutelico e

funcional

145

Foto Nordm1 fachada entrada principal e paacutetio interno do quartel do 1ordm BPE (Bettamio dez 2004)

Este tombamento foi feito pela Prefeitura do Rio de Janeiro em 1993 e tem por

setor responsaacutevel a Subsecretaria municipal de Patrimocircnio Cultural lei nordm 1954 de

29039340

Seu processo teve iniacutecio atraveacutes da solicitaccedilatildeo de moradores da localidades

da Tijuca Grajauacute Andaraiacute e Praccedila Saens Pentildea que utilizaram para embasar o referido

ato o fato de parte do edifiacutecio do 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito ter abrigado o DOI-

CODI do Rio de Janeiro durante toda a deacutecada de 1970 e iniacutecio dos anos 1980

ressaltando a sua importacircncia para a memoacuteria da resistecircncia e luta pelo fim da ditadura

militar

Percebe-se ainda a grande importacircncia atribuiacuteda a essa memoacuteria quando se

destaca que mesmo o edifiacutecio tendo um valor histoacuterico anterior agrave fase em que cedeu

parte de seu espaccedilo ao DOI-CODIRJ o pedido de tombamento feito pela populaccedilatildeo

fundamentava-se no que ali havia ocorrido em tempos recentes durante a ditadura

militar Afinal esses requerentes propunham que o edifiacutecio fosse tirado do Exeacutercito e

desse lugar a um centro cultural com museu da memoacuteria da luta pela liberdade

40

Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro antigo Departamento Geral de

Patrimocircnio Cultural (DGPC) Nordm do processo 1200433692 1degdocumento de solicitaccedilatildeo de tombamento

26101992

146

O edifiacutecio foi construiacutedo em 1857 pela Imperial Coroa para servir de sede a um

Hospital Militar entretanto laacute se instalou o 1ordm Regimento de Cavalaria Ligeira e

posteriormente o Hospital Militar da Corte com funcionamento ateacute fevereiro de 1877

Desde entatildeo a construccedilatildeo foi utilizada pela Escola do Estado Maior pelo 2ordm Batalhatildeo

de Caccediladores pela Escola de Intendecircncia e a partir de 1946 pelo 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia

do Exeacutercito 41

Em ampla aacuterea estaacute situado na confluecircncia da Rua Baratildeo de Mesquita com a

Avenida Maracanatilde abrangendo tambeacutem a Praccedila Lamartine Babo Conforme pode ser

observado na paacutegina anterior Foto Nordm1 ao redor de todo o espaccedilo ocupado pelo preacutedio

estende-se uma mureta de alvenaria com grade assente na parte frontal do quartel O

complexo arquitetocircnico do 1ordm BPE apresenta nas extremidades alas perpendiculares

que formam no meio um largo paacutetio A uacuteltima dessas alas possui os fundos voltados

para a Avenida Maracanatilde em frente a um dos portotildees de entrada e saiacuteda de veiacuteculos do

quartel Era exatamente nesta parte localizada no final do paacutetio central do Batalhatildeo do

lado esquerdo ao lado da antiga faacutebrica de bebidas Brahma que as celas e a sala de

tortura do DOI-CODIRJ estavam localizadas A seguir na Foto Nordm2 visualiza-se o

fundo deste edifiacutecio na Avenida Maracanatilde

41

Para mais informaccedilotildees ver Gerson 2000 357

147

Foto Nordm2 preacutedio do DOI-CODIRJ nos fundos do quartel localizado na Avenida Maracanatilde (Bettamio dez 2004)

Como se pode ver na Foto Nordm2 em cima do muro do 1ordm BPE exclusivamente na

parte que cerca os fundos do antigo preacutedio do DOI-CODIRJ estaacute localizada uma cerca

de arame farpado Assim aleacutem da descriccedilatildeo dos entrevistados e da forma como o

primeiro-sargento nomeou o local ao apontaacute-lo durante a minha segunda visita ao

Batalhatildeo em 2004 entende-se esta cerca como mais um indiacutecio de que laacute ficavam as

celas do entatildeo DOI-CODIRJ Tais celas estavam distribuiacutedas pelos dois pavimentos do

edifiacutecio conforme pode-se auferir nos relatos e comprovar na Foto Nordm2 onde pela

distribuiccedilatildeo das janelas nota-se que o preacutedio eacute composto de fato por dois andares

O local da prisatildeo era mais nos fundos Quando vocecirc chega ali vocecirc tem duas

entradas uma pela pracinha [Foto Nordm3] onde entram os carros e outra pela

frente bem na Baratildeo de Mesquita [Foto Nordm1] Nesta entrada tem uma mesa

com um oficial do dia depois vem uma espeacutecie de paacutetio aberto como se

fosse uma quadra Jaacute nos fundos do quartel passa a Avenida Maracanatilde por

traacutes da Poliacutecia do Exeacutercito As celas tanto a da prisatildeo como a da tortura

eram mais perto da Avenida Maracanatilde Era laacute naquela parte mais para o

148

final mais isolada Vocecirc ficava mais proacuteximo da Avenida Maracanatilde e da

faacutebrica da Brahma [] (Carvalho 12 set 2002)

Foto Nordm3 uma das entradas do 1ordm BPE para veiacuteculos de frente para a Praccedila Lamartine Babo (Bettamio dez 2004)

Os prisioneiros poliacuteticos receacutem-capturados transferidos de outros oacutergatildeos de

repressatildeo ou mesmo do Hospital Central do Exeacutercito chegavam ao 1ordm BPE dentro de

uma das viaturas das turmas de busca e apreensatildeo do DOI que faziam parte da

estrutura abordada no primeiro capiacutetulo Os automoacuteveis que os traziam entravam no

Batalhatildeo atraveacutes do portatildeo para veiacuteculos que fica em frente agrave Praccedila Lamartine Babo

(Foto Nordm3) entre a Rua Baratildeo de Mesquita e a Avenida Maracanatilde Ao entrarem por

este portatildeo os carros seguiam em linha reta pelo paacutetio interno ateacute chegarem ao preacutedio

do DOI-CODI no fundo do quartel (Foto Nordm2) onde os presos eram deixados

Este trajeto de chegada descrito pelos entrevistados parece ser ateacute hoje um

procedimento formal para controlar a entrada de veiacuteculos no Batalhatildeo e atraveacutes dele

evidencia-se que o DOI-CODI mesmo natildeo sendo subordinado ao 1ordm BPE tinha como

dever respeitar algumas normas de seguranccedila ali vigentes Entre essas normas estava o

impedimento de utilizar o portatildeo para veiacuteculos localizado na Avenida Maracanatilde (Foto

149

Nordm2) para a entrada e a saiacuteda de seus presos mesmo sendo mais praacutetico e reservado

pois este portatildeo ficava ao lado do preacutedio do DOI-CODI Poreacutem como todo quartel

militar preza por um controle riacutegido de seguranccedila uma vez que satildeo responsaacuteveis por

guardar armas e outros equipamentos beacutelicos esses agentes eram obrigados a respeitar a

estrutura de seguranccedila tradicional do 1ordm BPE

[] a gente entrava pela pracinha aqui do lado [aponta para o desenho que

faz no papel] a gente entrava dentro dos carros aqui por esse portatildeo (o da

praccedila) A gente natildeo entrava pela porta principal natildeo E nem entrava ou saiacutea

pelo portatildeo do lado do preacutedio que a gente ficava [] (Coimbra 30 nov

2004)

No preacutedio do DOI-CODIRJ (Foto Nordm2) as celas ldquosolitaacuteriasrdquo se localizavam

somente no andar de baixo Nelas os prisioneiros receacutem-chegados permaneciam nos

primeiros dias de prisatildeo para ficarem no mesmo andar da sala de interrogatoacuterio ou ldquosala

de torturardquo ndash como os presos a chamavam ndash facilitando o deslocamento Era no

momento inicial da prisatildeo que as turmas de interrogatoacuterio preliminar executavam a

parte massiva dos interrogatoacuterios o que por conseguinte demandava a necessidade dos

presos ficarem em celas geograficamente proacuteximas agrave ldquosala de torturardquo

Nos primeiros dias de prisatildeo era quando os presos eram levados assiduamente

para a ldquosala de torturardquo visto que poderiam informar sobre os ldquopontos de encontrordquo e os

ldquoaparelhosrdquo ainda vaacutelidos informaccedilotildees que levariam os agentes dos DOI ateacute outros

ldquosubversivosrdquo Aleacutem da ldquosala de torturardquo a cela do tipo ldquosolitaacuteriardquo era mais um artifiacutecio

para torturar o preso receacutem-chegado a fim de degradaacute-lo e desestruturaacute-lo

psicologicamente de forma a impulsionaacute-lo a falar mais rapidamente o que sabia Para

isso essas celas ldquosolitaacuteriasrdquo aleacutem de deixarem o preso isolado dos demais se

diferenciavam estruturalmente das outras que existiam no mesmo preacutedio localizadas em

150

maior parte no pavimento superior para as quais os presos eram transferidos apoacutes o

momento inicial de sua prisatildeo

Nas celas do segundo andar existia banheiro com chuveiro e um colchatildeo para cada

preso Jaacute nas ldquosolitaacuteriasrdquo aleacutem do preso ficar sozinho natildeo havia cama colchatildeo

banheiro ou mesmo pia Durante o tempo em que laacute permaneciam os prisioneiros natildeo

tinham direito a tomar banho Eram celas pequenas com portotildees de grades vazadas

contendo apenas um buraco no chatildeo para que o preso ali pudesse evacuar Os presos

eram obrigados a conviver com o cheiro de sua proacutepria urina e fezes no provaacutevel intuito

de denegrir a sua condiccedilatildeo de ser humano

[] logo que eu cheguei fui para a lsquosolitaacuteriarsquo era torturada ia para a

lsquosolitaacuteriarsquo era torturada e ia para a lsquosolitaacuteriarsquo [] (Pandolfi 5 fev 2003)

[] primeiro que quando vocecirc eacute preso vocecirc passa alguns dias sem tomar

banho na verdade eu soacute fui tomar banho mesmo depois que eu fui para a

cela coletiva [] (Carvalho 8 fev 2003)

Aqui [aponta para as celas do andar teacuterreo do preacutedio que desenhou em um

papel] era soacute o pessoal que ficava de castigo era barra pesada [] vocecirc natildeo

tinha lugar para dormir natildeo tinha lugar para nada Tinha soacute um buraco para

vocecirc fazer as suas necessidades Na solitaacuteria natildeo tinha nem colchatildeo nem

banheiro nem privada era um buraco Nem tinha chuveiro Pelo menos

essas celas de cima tinham chuveiro [] (Coimbra 30 nov 2004)

151

Foto Nordm4 visatildeo panoracircmica do espaccedilo ocupada pelo 1ordm BPE com destaque aos fundos para o preacutedio do DOI-CODI

(Bettamio dez 2004)

A ldquosala de torturardquo localizada no primeiro pavimento do preacutedio eacute referida pelos

prisioneiros tambeacutem como ldquosala roxardquo pela cor de suas paredes Anexa a ela estava a

sala de observaccedilatildeo que era separada da ldquosala roxardquo por um vidro o chamado ldquoespelho

da verdaderdquo Este vidro composto por uma placa semi-espelhada possibilitava que da

sala de observaccedilatildeo se pudesse ver e reconhecer quem estava do outro lado sem ser

visto Assim presos e militares poderiam identificar pessoas e observar interrogatoacuterios

sem serem reconhecidos

[] a sala de tortura era pintada de uma cor horrorosa como se fosse um

roxo [] essa sala tinha um vidro que era o espelho da verdade porque dava

acesso agrave outra sala onde ficavam pessoas para te observar sem serem vistas

[] (Pandolfi 5 fev 2003)

A seta indica a localizaccedilatildeo do preacutedio do DOI-CODI dentro do espaccedilo do 1ordm BPE

152

[] aqui tinha a famosa sala roxa duas uma do lado da outra isso no

primeiro andar Porque ali estavam as pessoas que eles estavam inquirindo

direto [] (Freire 28 jun 2004)

Os dados informados acima satildeo exemplos tiacutepicos de detalhes apresentados pelos

entrevistados que muito podem contribuir para o entendimento desse passado Afinal

em uma primeira impressatildeo essas narrativas podem transmitir a ideia de que as paredes

roxas serviam apenas para imprimir um aspecto sombrio agrave ldquosala de torturardquo servindo

como mais um elemento produzido para intimidar o depoente durante o interrogatoacuterio

No entanto ao saber-se que uma das paredes dessa sala era composta pelo dito ldquoespelho

da verdaderdquo deduz-se que esta era bem iluminada O vidro que a dividia do local anexo

muito utilizado nas salas de reconhecimento em delegacias de poliacutecia age atraveacutes de um

mecanismo pelo qual quem estaacute do lado mais iluminado vecirc apenas o reflexo de sua

proacutepria imagem sem enxergar o que estaacute do lado mais escuro

A partir disso infere-se que as paredes roxas da ldquosala de torturardquo natildeo eram apenas

um aparato de tortura psicoloacutegica mas provavelmente uma forma de deixar os

integrantes das turmas de interrogatoacuterio preliminar mais agrave vontade para interrogar

ameaccedilar e torturar os seus prisioneiros Menos iluminada do que se suas paredes fossem

brancas contribuiacutea para que os prisioneiros natildeo pudessem ver os militares de forma tatildeo

clara e niacutetida fazendo com que os torturadores natildeo se sentissem acuados por atuar com

os seus rostos agrave mostra chegando mesmo a retirar o capuz dos prisioneiros

[] chegando nessa sala de tortura normalmente eles tiravam o capuz Quer

dizer o capuz na verdade era um mecanismo mais de intimidaccedilatildeo de deixar

a gente apavorada do que para eles se esconderem mesmo porque na tortura

a gente acabava vendo os torturadores [] (Pandolfi 5 fev 2003)

No DOI-CODI eu apanhei de cara limpa eu vi quem me bateu quem me

torturou [] (Freire 28 jun 2004)

153

No segundo andar do preacutedio do DOI-CODIRJ em meio agraves demais celas coletivas

e encostada em outra menor se encontrava uma cela feminina bem espaccedilosa onde

Dulce Ana e Ceciacutelia ficaram durante parte do tempo em que estiveram na instituiccedilatildeo

Essa cela mencionada pelas entrevistadas ora por ldquocoletivo das mulheresrdquo ora por

ldquoMaracanatilderdquo tinha no alto da parede de fundo um basculante que como bem se pode

observar na Foto Nordm2 provavelmente estava presente em todas as celas coletivas tanto

as do primeiro quanto as dos segundo andares Entretanto no caso do ldquocoletivo das

mulheresrdquo e da cela nele encostada esses basculantes eram virados para o paacutetio interno

do 1ordm BPE e por conseguinte os portotildees dessas celas ficavam na direccedilatildeo do muro da

Avenida Maracanatilde

[] eu fui para a cela do lado que era o coletivo das mulheres que era a cela

Maracanatilde como a gente chamava [] Eram duas celas Essa era enorme e

tinha a outra na outra ponta [] que era uma cela menor Eu fiquei nas duas

que eram as duas celas que ficavam na frente que davam para o paacutetio A

gente trepava [no basculante da cela] e soacute via o paacutetio (Coimbra 30 nov

2004)

Tinha ateacute uma cela ampla grande que chamavam de coletivo das mulheres

Entatildeo a maior parte do tempo eu fiquei nessa cela grande [] (Pandolfi 5

fev 2003)

No DOI-CODI natildeo havia uma grande separaccedilatildeo entre prisioneiros e prisioneiras

uma vez que as celas do primeiro e do segundo andares comportavam tanto homens

quanto mulheres No entanto natildeo havia celas mistas Apesar de que como somente

homens afirmaram ter permanecido em celas do piso teacuterreo pressupotildee-se que neste

pavimento com exceccedilatildeo das celas ldquosolitaacuteriasrdquo localizavam-se em grande parte caacuterceres

154

coletivos masculinos que tambeacutem existiam no segundo andar demonstrando que era

maior o nuacutemero de prisioneiros homens

[] eu sempre fiquei no teacuterreo nunca subi para aquela parte apesar de que

laacute onde ficavam as celas tinha uma escada Tinha uma parte teacuterrea onde

ficavam nossas celas e tinha tambeacutem umas celas em cima [] (Carvalho 12

set 2002)

No teacuterreo tinha duas celinhas aqui [rabisca em um pedaccedilo de papel] uma no

cantinho aqui e eu fiquei nessa segunda aqui aiacute ainda tinha a do meio e

mais duas para caacute eram cinco celas [] (Freire 28 jun 2004)

A partir dessa cartografia do espaccedilo fiacutesico do DOI-CODI viabilizou-se uma

aproximaccedilatildeo com a geografia do ambiente que mantinha uma iacutentima relaccedilatildeo com o

cotidiano dos entrevistados no periacuteodo em que laacute permaneceram como prisioneiros do

sistema de seguranccedila

3 Memoacuterias de um cotidiano

Falar sobre essa parte da histoacuteria implica muitas dificuldades pois suscita

lembranccedilas mal-vindas poreacutem necessaacuterias ao conhecimento de nossa

sociedade Trata-se aqui de uma viagem de volta ao inferno de uma face que

para muitos traduz supliacutecios fiacutesicos e psiacutequicos sentimentos de desamparo

solidatildeo medo pacircnico abandono e desespero (Coimbra 2004 45) 42

Como jaacute dito o momento da realizaccedilatildeo de uma entrevista eacute definidor da maneira

pela qual o(a) entrevistado(a) recupera o seu passado A construccedilatildeo da memoacuteria sobre o

cotidiano vivido no DOI-CODI em 1970 natildeo escapou desse passeacute do preacutesent e de

42

Artigo Gecircnero Militacircncia e Memoacuteria escrito pela entrevistada Ceciacutelia Coimbra e publicado em Strey

Marlene Neves (org) Violecircncia Gecircnero e Poliacuteticas Puacuteblicas Porto Alegre PUC-RS 2004

155

forma muito interessante ao mesmo tempo em que sofria influecircncias desse presente

tambeacutem agia politicamente sobre ele Beneficiados por uma legislaccedilatildeo que buscava

reparar os variados danos causados pelo Estado ditatorial os entrevistados visavam

sobretudo a obter reparaccedilotildees simboacutelicas comeccedilando pela consolidaccedilatildeo de suas

memoacuterias Por isso mesmo lutavam por accedilotildees governamentais tais como a construccedilatildeo

de museus sobre a ditadura militar em locais que haviam servido como prisatildeo poliacutetica

na eacutepoca e a instalaccedilatildeo da Comissatildeo da Verdade no paiacutes

Assim em 24 de janeiro de 2009 foi inaugurado no anexo do antigo preacutedio do

Departamento de Ordem e Poliacutetica Social de Satildeo Paulo (Deops) o Memorial da

Resistecircncia de Satildeo Paulo Eacute a primeira instituiccedilatildeo do paiacutes a ldquomusealizarrdquo parte de um

edifiacutecio que foi siacutembolo da poliacutecia poliacutetica em eacutepocas de ditadura a fim de salvaguardar

a memoacuteria da resistecircncia e da repressatildeo do Brasil republicano 43

E finalmente em 18

de novembro de 2011 a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei que criava a

Comissatildeo da Verdade (lei nordm 125282011) Esta seraacute composta por sete integrantes que

ainda seratildeo indicados e contaratildeo com ajuda de 14 auxiliares que teratildeo a missatildeo de ouvir

depoimentos em todo o paiacutes requisitar e analisar documentos que ajudem a esclarecer

os fatos da repressatildeo militar A Comissatildeo iraacute apurar as violaccedilotildees de direitos ocorridas

entre os anos de 1946 e 1988 e teraacute um prazo de dois anos para finalizar este trabalho de

investigaccedilatildeo

43

Para mais informaccedilotildees sobre o Memorial da Resistecircncia de Satildeo Paulo consultar

httpwwwmemorialdaresistenciasporgbr

156

31 O interrogatoacuterio e a tortura

Tendo em vista as novas funccedilotildees que se apresentavam para os agentes da

repressatildeo lotados nos DOI-CODI era necessaacuterio um treinamento que incluiacutea entre

outras mateacuterias o manuseio da dosagem de dor infringida durante os interrogatoacuterios

Depois de passarem por tal treinamento os militares poderiam atuar em uma das trecircs

turmas de interrogatoacuterio preliminar que compunham a Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio

responsaacutevel direta por torturar os presos ou em uma das turmas da Seccedilatildeo de busca e

apreensatildeo que capturavam os suspeitos e os direcionavam aos DOI

Esse processo de formaccedilatildeo de matildeo-de-obra para atuar no DOI-CODI surgiu em

1970 quando uma escola de repressatildeo foi criada a partir da mudanccedila de comando e da

reforma curricular do Centro de Estudos de Pessoal (CEP) no forte do Leme O novo

CEP passava a oferecer cursos de informaccedilotildees para oficiais programas de extensatildeo para

sargentos e estaacutegios para quadros das poliacutecias militares todos normalmente com

duraccedilatildeo de um semestre Nesses cursos os alunos assistiam aulas sobre teacutecnicas de

interrogatoacuterio ndash o que incluiacutea o manuseio de aparelhos de tortura ndash e vigilacircncia taacuteticas

de ldquoneutralizaccedilatildeo de aparelhosrdquo e de transporte de presos operaccedilotildees especiais

criptologia e produccedilatildeo de informaccedilotildees Ao fim do curso o aluno recebia uma

certificaccedilatildeo atraveacutes da qual poderia atestar sua aptidatildeo para desempenhar as funccedilotildees de

um oficial de informaccedilotildees

Parte dos meacutetodos aprendidos nessa escola eacute retratada em entrevista para a revista

Veja de 9 de dezembro de 1998 pelo tenente Marcelo Paixatildeo de Arauacutejo que de acordo

com Elio Gaspari (2002) teria atuado como torturador no 12ordm Regimento Interno de

Belo Horizonte entre 1968 e 1971

A primeira coisa era jogar o sujeito no meio de uma sala tirar a roupa dele e

comeccedilar a gritar para ele entregar o ponto [lugar marcado para encontros

157

com militantes do grupo] Era o primeiro estaacutegio Se ele resistisse tinha um

segundo estaacutegio que era vamos dizer assim mais porrada Um dava tapa na

cara Outro soco na boca do estocircmago Um terceiro soco no rim Tudo para

ver se ele falava Se natildeo falava tinha dois caminhos Dependia muito de

quem aplicava a tortura Eu gostava muito de aplicar a palmatoacuteria Eacute muito

doloroso mas faz o sujeito falar Eu era muito bom na palmatoacuteria [] Vocecirc

manda o sujeito abrir a matildeo O pior eacute que de tatildeo desmoralizado ele abre Aiacute

se aplicam dez quinze bolos na matildeo dele com forccedila A matildeo fica roxa Ele

fala A etapa seguinte era o famoso telefone das Forccedilas Armadas [] eacute uma

corrente de baixa amperagem e alta voltagem [] Natildeo tem perigo de fazer

mal Eu gostava muito de ligar as duas pontas dos dedos Pode ligar numa

matildeo e na orelha mas sempre do mesmo lado do corpo O sujeito fica

arrasado O que natildeo pode fazer eacute deixar a corrente passar pelo coraccedilatildeo Aiacute

mata [] o uacuteltimo estaacutegio em que cheguei foi o pau-de-arara com choque

Isso era para o queixo-duro o cara que natildeo abria nas etapas anteriores Mas

pau-de-arara eacute um negoacutecio meio complicado [] O pau-de-arara natildeo eacute

vantagem Primeiro porque deixa marca Depois porque eacute trabalhoso Tem

de montar a estrutura Em terceiro eacute necessaacuterio tomar conta do indiviacuteduo

porque ele pode passar mal (Gaspari 2002 182-183)

Antes de comeccedilar a atuar esses agentes passavam por treinamento no DOI-CODI

feito provavelmente com alguns prisioneiros que jaacute estavam laacute haacute algum tempo e que

haviam mostrado ter boa resistecircncia Conforme se pode evidenciar a partir da

declaraccedilatildeo feita por Dulce Pandolfi em 1970 registrada na auditoria militar 44

[]

que foi exposta perante 20 oficiais como numa demonstraccedilatildeo de aulas de torturas

pau-de-arara e choques [] (Arquidiocese de Satildeo Paulo tomo V 1985 758)

Essa denuacutencia feita na eacutepoca por Dulce na auditoria da Justiccedila Militar foi

publicada em A Tortura tomo V do ldquoProjeto Ardquo da pesquisa coordenada pela

Arquidiocese de Satildeo Paulo e intitulada Brasil Nunca Mais O ldquoProjeto Ardquo eacute constituiacutedo

por doze volumes que contecircm as conclusotildees da referida pesquisa feita a partir da

44

Assim satildeo chamadas as varas criminais com atribuiccedilatildeo especiacutefica de atuar em processos de crimes

militares da Justiccedila Militar brasileira

158

reuniatildeo de coacutepias da quase totalidade dos processos poliacuteticos que tramitaram na Justiccedila

Militar entre abril de 1964 e marccedilo de 1979 Esses volumes foram reproduzidos vinte e

cinco vezes pela Arquidiocese de Satildeo Paulo formando coleccedilotildees que foram doadas a

entidades de direitos humanos pesquisa e documentaccedilatildeo 45

As 6891 paacuteginas do

ldquoProjeto Ardquo estatildeo resumidas no ldquoProjeto Brdquo o livro Brasil Nunca Mais tambeacutem

datado de 1985 e publicado pela Editora Vozes

Os primeiros momentos no DOI-CODI

Desde o momento da detenccedilatildeo o preso era submetido a diversos tipos de maus

tratos Jaacute a caminho do caacutercere ainda dentro do automoacutevel comeccedilavam as agressotildees

como tapas pontapeacutes e empurrotildees a fim de acelerar a sua desestabilizaccedilatildeo para que

entregasse mais rapidamente informaccedilotildees que agilizassem a prisatildeo de outros militantes

procurados

As torturas que Ana Batista relata ter sofrido durante o percurso de transferecircncia

da OBANSP para o DOI-CODIRJ destacadas em seu memorial ndash escrito em outubro

de 2004 um mecircs antes de sua entrevista e encaminhado agrave Comissatildeo Especial da

Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro ndash trazem aspectos

proacuteximos agrave realidade vivida na eacutepoca pelos presos poliacuteticos do DOI-CODIRJ

[] dez dias apoacutes a prisatildeo fui levada de Satildeo Paulo [DOI-CODISP] para o

Rio [DOI-CODIRJ] de madrugada numa C-14 onde permaneci no banco de

traacutes entre dois agentes de grande porte No meio do caminho na Via Dutra

eles entraram por uma estradinha pararam o carro e me mandaram descer

aos berros Com fortes dores no corpo ndash especialmente nos rins ndash

queimaduras infectadas pelos choques eleacutetricos exausta dos interrogatoacuterios e

45

Os doze volumes do ldquoProjeto Ardquo estatildeo disponiacuteveis no Arquivo do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio

de Janeiro (GTMNRJ)

159

sem dormir haacute dias desembarquei meio trocircpega Gritaram impropeacuterios e

ordenaram que eu fugisse Como estava muito tonta sem saber o que pensar

ou fazer natildeo fiz nada Atiraram entatildeo repetidas vezes em volta de mim

que permaneci encostada em uma aacutervore gritaram vaacuterias vezes para que eu

fugisse Caiacute no chatildeo o que os fez parar de atirar e se jogarem em cima de

mim agraves gargalhadas Colocaram-me de volta no carro e continuamos a

viagem rumo ao DOI-CODI-RJ (Batista out 2004)

Assim quando chegavam ao DOI-CODIRJ apoacutes passarem pelo portatildeo de

entrada da Praccedila Lamartine Babo (Foto Nordm3) os presos preenchiam uma ficha de

identificaccedilatildeo e eram levados para a ldquosala roxardquo no andar teacuterreo do preacutedio dessa

instituiccedilatildeo (Foto Nordm2) Laacute em meio a interrogatoacuterio as ameaccedilas e torturas se

intensificavam perpetradas pelos integrantes de uma das trecircs turmas de interrogatoacuterio

preliminar de plantatildeo no momento

Cabe lembrar que tais turmas eram constituiacutedas por militares treinados para

conseguir extrair rapidamente dos presos o maior nuacutemero possiacutevel de informaccedilotildees

principalmente sobre a data hora e local de seu proacuteximo ldquopontordquo de encontro Afinal

caso esses agentes natildeo conseguissem tais dados logo nos primeiros dias natildeo chegariam

ao local a tempo de pegarem o outro militante clandestino que o preso encontraria A

partir do momento em que a ausecircncia desse militante fosse notada integrantes de sua

organizaccedilatildeo poliacutetica deduziriam o motivo e por proteccedilatildeo modificariam os locais dos

ldquoaparelhosrdquo e dos proacuteximos ldquopontosrdquo As informaccedilotildees do preso receacutem-capturado se

tornariam entatildeo desatualizadas o que dificultaria a investigaccedilatildeo dos agentes do DOI-

CODIRJ

As torturas infringidas aos presos eram mais intensas logo depois da prisatildeo

Lutando contra o tempo era comum deixar o preso em celas ldquosolitaacuteriasrdquo localizadas no

andar teacuterreo conforme jaacute indicado Dessa forma os presos receacutem-chegados ficavam

bem proacuteximos agrave sala de interrogatoacuterio a ldquosala roxardquo justamente por serem para laacute

160

levados com frequecircncia Como nas ldquosolitaacuteriasrdquo os presos ficavam sozinhos e natildeo

podiam contar com itens baacutesicos de higiene e proteccedilatildeo do corpo (tais como banheiro

chuveiro colchatildeo e cobertor) acabavam se sentindo ainda mais desestruturados e por

conseguinte desestabilizados Logo no momento inicial da prisatildeo quando os presos

natildeo eram submetidos agraves torturas fiacutesicas eram submetidos agraves torturas psicoloacutegicas das

ldquosolitaacuteriasrdquo as chamadas torturas brancas46

espeacutecie de degradaccedilatildeo fria sem violecircncia

humana expliacutecita

Por outro lado os presos receacutem-capturados tinham consciecircncia de que era naquele

momento inicial que mais poderiam prejudicar seus companheiros de organizaccedilatildeo

Diante disso normalmente tentavam dificultar o acesso dos militares agraves informaccedilotildees

lutando para resistir agraves torturas Apesar de muitas vezes fracassarem tentavam segurar

os dados que tinham ao menos ateacute passar o horaacuterio do proacuteximo ldquopontordquo que haviam

combinado com outro militante Portanto avalia-se que provavelmente o grau de

resistecircncia inicial do prisioneiro estava diretamente relacionado ao da intensidade da

tortura a ele perpetrada e vice-versa conforme analisa-se nos trechos da entrevista de

Ana de Miranda Batista abaixo destacados

[] o meu negoacutecio era ganhar tempo e o deles era conseguir informaccedilatildeo A

luta eacute essa nos primeiros dias eacute vocecirc dar o miacutenimo de informaccedilotildees e eles

querendo arrancar o maacuteximo de informaccedilatildeo Aiacute eles vecircm com a maacutexima de

que torturar eacute investigar [risos] E daiacute se precisar ateacute a morte O negoacutecio eacute

conseguir informaccedilatildeo

46

Em 1971 quando os ex-prisioneiros aqui entrevistados jaacute natildeo estavam mais no 1ordm BPE o projeto

ldquoTortura Limpardquo foi ali instalado Segundo Elio Gaspari o andar teacuterreo do DOI-CODIRJ sofreu obras

para que fossem construiacutedos quatro novos cubiacuteculos um foi forrado com isopor e amianto a fim de fazer

o prisioneiro sentir frio constantemente outro se tornou uma cacircmara de ruiacutedos pela qual o preso ouviria o

barulho por todo o tempo em que laacute estivesse o terceiro foi todo pintado de branco provocando dor na

vista do preso devido agrave claridade constante na cela o uacuteltimo transformou-se em um ambiente todo preto

natildeo fornecendo a quem estivesse em seu interior nenhuma claridade causando choque na vista quando

exposto a claridade normal (Gaspari 2002 189-190)

161

[] quando eu cheguei agrave OBAN [que na eacutepoca de sua prisatildeo jaacute havia se

transformado em DOI-CODISP] jaacute era noite eles estavam tomando cerveja

comemorando que eu tinha caiacutedo E aiacute eu passei o ponto da Ana Maria do

Carlos Eugecircnio com o Bacuri Porque laacute era um inferno [] laacute eu passei um

monte de ponto e todos eles eram procurados Entatildeo aiacute eacute que a barra pegou

mesmo (Batista 17 nov 2004)

Os trechos acima mesmo sendo baseados em uma experiecircncia vivida no DOI-

CODISP trazem muitas informaccedilotildees sobre o cotidiano prisional vivido de forma

geral em todos os DOI-CODI Afinal conforme ressaltado anteriormente esses oacutergatildeos

estavam espalhados por todas as jurisdiccedilotildees territoriais do Brasil e seguiam

basicamente a mesma organizaccedilatildeo Portanto pode-se concluir aqui que em ambos os

DOI-CODI no momento inicial da prisatildeo existia essa relaccedilatildeo entre a intensidade das

sessotildees de tortura adotadas pelos militares e o tamanho da vontade de resistir do preso

Tal relaccedilatildeo se torna ainda mais perceptiacutevel pela frustraccedilatildeo sentida na fala de Ana

ao afirmar ter passado muitos ldquopontosrdquo inclusive o de ldquoBacurirdquo codinome de Eduardo

Collen Leite seu companheiro de organizaccedilatildeo Ana no momento da entrevista sabia

que ldquoBacurirdquo havia sido preso em agosto de 1970 alguns dias depois de sua prisatildeo e

que havia morrido sob tortura Quando admite ter entregado aos agentes do DOISP o

ponto de encontro Ana se culpa O depoimento eacute o momento em que Ana aproveita

para se justificar ao demonstrar que acredita no quanto a resistecircncia agrave tortura era

importante no iniacutecio da prisatildeo mas como ela se tornava limitada sendo rapidamente

derrotada Resistir ao DOI-CODI era muito difiacutecil jaacute que os agentes haviam sido

fortemente preparados para a ldquoguerra internardquo e natildeo por acaso se tornariam os grandes

responsaacuteveis pela desarticulaccedilatildeo das organizaccedilotildees de luta armada

O silecircncio dos demais entrevistados sobre as informaccedilotildees que concederam ou natildeo

aos agentes das turmas de interrogatoacuterio preliminar serve aqui como mais um

argumento para a tese de que apesar da grande resistecircncia inicial dos presos poliacuteticos e

162

tambeacutem por causa dela a violecircncia vivida no DOI-CODIRJ nos primeiros dias de

prisatildeo era intensa e quase sempre prevalecia Afinal caso natildeo fosse desse modo os

entrevistados provavelmente orgulhar-se-iam de sua resistecircncia e por conseguinte natildeo

lhes faltariam motivos para lembraacute-la e narraacute-la Logo o silecircncio aqui tambeacutem se torna

revelador

Atraveacutes desse silecircncio destaca-se ainda que talvez pelos mesmos motivos que

Ana opta por lembrar e justificar-se os demais entrevistados optam por silenciar e tentar

esquecer Todos apesar de agirem de acordo com suas personalidades e experiecircncias de

vida provavelmente se sentem culpados ou envergonhados por natildeo terem aguentado

esconder o que sabiam ateacute o fim e poupado muitos de seus companheiros da prisatildeo e ateacute

mesmo da morte

A segunda fase

Passada esta primeira fase da prisatildeo no DOI-CODIRJ que durava em meacutedia uma

ou duas semanas os presos eram transferidos para celas maiores Estas continham

banheiro colchatildeo e em grande parte das vezes outros prisioneiros

Nessa segunda etapa os presos natildeo ficavam isentos das idas agrave ldquosala roxardquo poreacutem

estas natildeo eram tatildeo frequentes quanto anteriormente Afinal a busca desesperada por

ldquopontosrdquo codinomes ou ldquoaparelhosrdquo natildeo mais cabia pois esses prisioneiros jaacute estavam

distantes de suas organizaccedilotildees haacute tempo suficiente para que suas prisotildees fossem

notadas e por conseguinte para que as informaccedilotildees que tivessem jaacute natildeo fossem mais

ldquoquentesrdquo

Nessa fase as visitas agrave ldquosala roxardquo davam-se por outros motivos Normalmente

para ajudar em anaacutelises de novas suspeitas Os agentes das turmas de interrogatoacuterio

preliminar poderiam levar um preso mais antigo para a ldquosala roxardquo para ser acareado

163

com um receacutem-chegado com quem suspeitavam estar de alguma forma relacionado

Poderiam tambeacutem levaacute-lo ateacute laacute para ser interrogado a respeito de novas e possiacuteveis

accedilotildees da esquerda armada conforme indicassem as informaccedilotildees recebidas pelo CODI

conjugadas agraves anaacutelises feitas pelo Setor de anaacutelise e informaccedilotildees sobre algum material

apreendido pela Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo Eacute o que pode-se concluir a partir da

caracterizaccedilatildeo sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI quando colocadas em diaacutelogo

com as informaccedilotildees trazidas pelos trechos destacados abaixo

ldquoNome codinome e aparelhordquo isso eacute que eles querem saber de imediato

Depois que passa algum tempo isso natildeo interessa mais Aiacute eles tecircm um

trabalho mais analiacutetico que era para saber de outros que acabaram de cair o

que eles tecircm de quecirc jaacute participaram o que estaacute acontecendo [] (Batista 17

nov 2004)

[] de quem era preso eles queriam duas informaccedilotildees imediatas eles

comeccedilavam a te bater e soacute pediam o ponto o local de encontro que vocecirc

tivesse com algueacutem e o aparelho que era o apartamento alugado ou qualquer

coisa assim Era isso o que eles queriam basicamente [] (Freire 28 jun

2004)

Como o DOI-CODIRJ tinha poucas celas e muita rotatividade quando o preso

natildeo mais interessava agraves investigaccedilotildees era normalmente mandado para o DOPS onde

era aberto o processo de crime poliacutetico e ficava detido ateacute o primeiro julgamento ndash

como ocorreu com Antocircnio de Carvalho Dulce Pandolfi e Ana de Miranda Batista

Poreacutem quando o seu caso tivesse relaccedilatildeo com uma das outras Forccedilas Armadas o preso

era transferido para a instituiccedilatildeo repressiva diretamente ligada a esta ndash como aconteceu

com Fernando ao ser levado do DOI-CODIRJ para o CISA oacutergatildeo de repressatildeo ligado agrave

Aeronaacuteutica ndash onde permaneceria ateacute quando seus agentes julgassem necessaacuterio Aleacutem

disso caso os agentes do DOI-CODIRJ constatassem que o prisioneiro natildeo estava

164

envolvido diretamente em nenhum crime poliacutetico ele poderia ser posto em liberdade

provisoacuteria ndash como ocorreu com Padre Maacuterio e Ceciacutelia Coimbra

Vale lembrar que o DOI-CODIRJ natildeo era um presiacutedio comum Laacute os suspeitos de

crimes poliacuteticos natildeo estavam cumprindo pena baseada em um processo e sim na

menagem estipulada pelo Coacutedigo Processual Militar criado pelo decreto-lei Nordm1002

de outubro de 1969 Por meio da menagem os suspeitos de crimes poliacuteticos ndash que a

partir do AI-5 tinham passado a ser julgados pela Justiccedila Militar ndash poderiam ser

arbitrariamente detidos e levados ao quartel responsaacutevel pela Regiatildeo Militar onde

estivessem A menagem era justificada como uma forma de prisatildeo cautelar que visava

evitar o conviacutevio do acusado com pessoas que jaacute estivessem condenadas ateacute o seu

julgamento em primeira instacircncia Dessa forma os suspeitos de crimes poliacuteticos da

Regiatildeo Militar que englobava o Rio de Janeiro ficavam detidos no DOI-CODIRJ

localizado no quartel do 1ordm BPE e ali permaneciam presos sem direito a formalidades

convencionais de uma prisatildeo tais como as visitas de familiares e de um advogado por

um periacuteodo que chegava ateacute 30 dias podendo ser prorrogado por mais 60 dias

Poreacutem como ressaltado anteriormente quando novos grupos de suspeitos laacute

chegavam a saiacuteda dos presos mais antigos era impulsionada mesmo sem ainda terem

sido julgados No entanto como esses presos ainda estavam sob a menagem e por isso

natildeo poderiam ir para um presiacutedio comum a assessoria juriacutedica e policial do DOIRJ ou

os transferia ou os colocava em liberdade provisoacuteria controlando nesse uacuteltimo caso

para que natildeo saiacutessem da respectiva Regiatildeo Militar ateacute o seu julgamento em primeira

instacircncia

[] fiquei trecircs meses laacute na PE na Poliacutecia do Exeacutercito na Rua Baratildeo de

Mesquita Depois fui levada para o DOPS [] laacute na PE a gente ficava nessa

triagem sendo torturado ou ouvindo grito de tortura e esperando laacute o tempo

ateacute eles resolverem a nossa situaccedilatildeo e sermos transferidos Entatildeo laacute era um

165

esquema de uma circulaccedilatildeo muito grande de pessoas Daiacute o quartel estava

sempre cheio porque de repente quando caiacutea alguma organizaccedilatildeo

apareciam laacute 30 ou 40 pessoas presas naquela noite e aquilo ficava

abarrotado de gente Entatildeo tinha momentos que a coisa ficava mais

tranquila e tinha momentos que aquilo ali ficava realmente lotado [] a PE

era isso a PE natildeo tinha uma rotina desses presiacutedios da linha tradicional laacute

ningueacutem recebia visita porque era a fase completamente ilegal da sua prisatildeo

[] (Pandolfi 5 fev 2003)

Outro aspecto interessante da menagem que interferia no cotidiano prisional do

DOI-CODIRJ satildeo as regras para o tempo de inquiriccedilatildeo estipuladas pelo decreto-lei nordm

100269 Este impunha que exceto em casos de urgecircncia os presos que estivessem sob

menagem deveriam prestar depoimentos durante o dia das sete e agraves 18 horas Aleacutem

disso esses prisioneiros natildeo poderiam ser inquiridos por mais de quatro horas

consecutivas tendo direito apoacutes esse periacuteodo a um intervalo de meia hora antes de

voltarem a ser interrogados

Art 19 As testemunhas e o indiciado exceto caso de urgecircncia inadiaacutevel que

constaraacute da respectiva assentada devem ser ouvidos durante o dia em

periacuteodo que medeie entre as sete e as dezoito horas

[]

Inquiriccedilatildeo Limite de tempo

2ordm A testemunha natildeo seraacute inquirida por mais de quatro horas consecutivas

sendo-lhe facultado o descanso de meia hora sempre que tiver de prestar

declaraccedilotildees aleacutem daquele termo O depoimento que natildeo ficar concluiacutedo agraves

dezoito horas seraacute encerrado para prosseguir no dia seguinte em hora

determinada pelo encarregado do inqueacuterito (Decreto-lei nordm 1002 21 out

1969)

A partir disso faz mais sentido ainda as diferentes distacircncias existentes entre as

celas e a sala de tortura nas duas fases da prisatildeo Como o prazo maacuteximo estipulado para

um interrogatoacuterio era de quatro horas tendo o prisioneiro apoacutes este tempo direito a um

166

descanso de ao menos meia hora no primeiro momento da prisatildeo no DOI-CODIRJ

deixar o preso perto do local onde eram feitos os interrogatoacuterios era um facilitador Essa

proximidade entre a cela e a ldquosala roxardquo natildeo era necessaacuteria para o preso que estivesse na

segunda etapa da prisatildeo jaacute que ele natildeo seria transportado de um lugar para o outro com

tamanha frequecircncia e provavelmente os interrogatoacuterios que lhe seriam destinados nem

chegassem agraves quatro horas permitidas pelo referido Decreto-lei

Nas narrativas de todos os entrevistados estatildeo presentes as experiecircncias vividas

nas duas fases da prisatildeo Todos eles passaram os primeiros dias em solitaacuterias e

posteriormente ficaram em celas maiores Padre Maacuterio foi a uacutenica exceccedilatildeo Sua prisatildeo

no DOI-CODIRJ natildeo passou por essas duas etapas encaixando-se portanto em um

dos casos extraordinaacuterios dessa instituiccedilatildeo Afinal desde o momento em que foi levado

para o preacutedio do DOI-CODIRJ Padre Maacuterio afirma ter dividido uma cela no segundo

andar com outros padres e depois ter sido transferido para uma cela do primeiro andar

onde ficou sozinho e de frente para as celas de jovens militantes de sua Associaccedilatildeo

conforme pode-se conferir no trecho abaixo

[] foi exatamente em setembro logo nas primeiras duas semanas em que

noacutes estaacutevamos presos que eles me passaram para o primeiro andar porque

estaacutevamos todos no segundo andar [] entatildeo nos primeiros dias noacutes

padres passamos todos juntos [] e depois fomos separados Entatildeo me

colocaram sozinho nessa cela do andar de baixo bem em frente agraves celas dos

jovens que estavam presos no CENIMAR e que foram levados para laacute para

serem torturados [] (Prigol 28 set 2004)

Essa diferenccedila no cotidiano prisional encontra coerecircncia quando embasada por

alguns argumentos aqui levantados Como a fase em que os presos ficavam nas

ldquosolitaacuteriasrdquo tinha por finalidade desestruturaacute-los e principalmente deixaacute-los mais

proacuteximos da sala de tortura para onde seriam levados com frequecircncia essa fase natildeo

167

deveria ser destinada a um padre sem envolvimento em uma organizaccedilatildeo de luta

armada Os militares teriam que responder agrave Igreja caso algo de mais grave lhe

acontecesse dentro do DOI-CODIRJ Colocar sua vida em risco deveria ser uma opccedilatildeo

somente se ele tivesse informaccedilotildees preciosas para a neutralizaccedilatildeo da guerrilha urbana

principal objetivo do grupo de repressatildeo em 1970 conforme indicado na monografia do

coronel Pereira analisada no primeiro capiacutetulo

Entatildeo como a associaccedilatildeo da qual participava a ACO natildeo tinha envolvimento

com a luta armada a morte de Padre Maacuterio poderia causar desnecessariamente uma

tensatildeo ateacute entatildeo natildeo deflagrada entre o Exeacutercito e a Igreja Catoacutelica 47

Aleacutem disso

como se encontrava em uma faixa etaacuteria mais elevada com cerca de 40 anos ele tinha o

agravante de ter uma sauacutede mais fraacutegil que grande parte dos presos do DOI-CODIRJ

que eram majoritariamente jovens estudantes Assim o tratamento prisional

diferenciado ali recebido por Padre Maacuterio visava diminuir as chances que ele tinha de

desenvolver problemas decorrentes de torturas Essa interpretaccedilatildeo encontra fortes

indiacutecios em um dos trechos de sua entrevista

[] a mim eles soacute colocaram o fio eleacutetrico aqui [aponta para um dedo da

matildeo esquerda] e no peacute esquerdo eu fiquei sabendo que no mesmo lado do

corpo eu natildeo sentiria tatildeo forte mas mesmo assim eu resisti resisti Bom

entatildeo diante da prisatildeo da gente eu sofri tambeacutem torturas mas eu depois

que fingi estar sentindo o coraccedilatildeo eles deixaram de dar choques [risos]

Cada um tem que se defender de alguma forma (Prigol 28 set 2004)

Afinal por meio da descriccedilatildeo acima destacada nota-se que apesar de natildeo

excluiacuterem Padre Maacuterio das sessotildees de tortura uma vez que era esse o procedimento de

investigaccedilatildeo do DOI-CODIRJ existia de fato certo temor em causar-lhe graves

47

Para informaccedilotildees sobre as tensotildees que ocorreram entre a Igreja Catoacutelica e a ditadura militar ver

Serbin 2001 17-77

168

sequelas Dessa forma por mais que Padre Maacuterio relate que sua atitude de defesa

conseguiu inibir a accedilatildeo daqueles agentes conclui-se aqui que caso ele natildeo tivesse as

caracteriacutesticas profissionais morais etaacuterias e ideoloacutegicas aqui descritas certamente tal

inibiccedilatildeo natildeo ocorreria Ao menos natildeo na mesma proporccedilatildeo

Testando a resistecircncia

No ano de 1970 esta preocupaccedilatildeo em evitar sequelas evidentemente natildeo se

aplicava a jovens presos que tivessem algum tipo de ligaccedilatildeo com organizaccedilotildees

oposicionistas adeptas da luta armada Conforme pode-se conferir nos relatos sobre os

danos agrave sauacutede que Dulce Fernando e Ana destacam ter sofrido por conta das torturas

recebidas no DOI-CODIRJ

[] fiquei tomando medicaccedilatildeo especial porque eu estava muito mal estava

com uma paralisia tambeacutem por causa da tortura tinha ficado completamente

travada aquilo vocecirc vai contraindo contraindo e deixava vocecirc semiparaliacutetica

[] (Pandolfi 5 fev 2003)

Eu desmaiava acordava e o pau comia desmaiava acordava e o pau

comia Natildeo foi faacutecil natildeo Eu lembro que quando eu saiacute da PE um mecircs

depois eu fazia assim [passa a matildeo no ouvido] e vinha sangue vinha pus eu

estava bem abalado mesmo (Freire 28 jun 2004)

[] eu fiquei um mecircs no Rio no DOI-CODI Desse mecircs uma semana eu

fiquei no HCE [Hospital Central do Exeacutercito] eu tremia sem parar eu estava

cheia de ferida (Batista 17 nov 2004)

Em todas as fases da prisatildeo para cuidar dos estragos causados agrave sauacutede do preso

durante ou apoacutes a sessatildeo de tortura existiam enfermeiros e meacutedicos no DOI-CODIRJ

Os enfermeiros tratavam os prisioneiros nas celas conforme a recomendaccedilatildeo dos

169

meacutedicos Jaacute esses aleacutem de examinarem e receitarem cuidados especiais aos presos

machucados tambeacutem auxiliavam as turmas de interrogatoacuterio preliminar durante as

torturas averiguando os sinais vitais dos presos a fim de constatarem o quanto eles

ainda poderiam suportar No entanto quando a tortura saiacutea de controle de tal forma que

algum preso ficasse tatildeo mal que natildeo respondesse agrave medicaccedilatildeo e aos cuidados meacutedicos

feitos dentro do quartel esse poderia ser levado pelas turmas de busca e apreensatildeo

conforme demonstrado no primeiro capiacutetulo ateacute o Hospital Central do Exeacutercito48

onde

receberiam um tratamento mais especializado

A existecircncia de meacutedicos no DOI-CODIRJ pode ser averiguada por meio da

confissatildeo de Amilcar Lobo noticiada pela Revista Eacutepoca apresentada abaixo

(EacutePOCA 27 nov 2000 104)

Meacutedico de formaccedilatildeo psicanaliacutetica ele foi denunciado por muitos ex-prisioneiros

por exercer a profissatildeo prestando assessoria a torturas entre 1970 e 1974 no DOI-

CODIRJ Diante disso em 1988 teve o seu registro de meacutedico cassado pelo Conselho

Regional de Medicina do Rio de Janeiro A atuaccedilatildeo de Amilcar Lobo assim como a de 48

O Hospital Central do Exeacutercio (HCE) ainda estaacute localizado no mesmo local da eacutepoca na Rua Francisco

Manoel nordm 126 no bairro de Benfica na cidade do Rio de Janeiro Para mais informaccedilotildees acessar

httpwwwhceebmilbr

170

meacutedicos e enfermeiros em geral tambeacutem eacute encontrada nos depoimentos aqui

analisados conforme pode-se conferir nos trechos destacados a seguir

[] a primeira pessoa que me visitou antes de eu ser torturada foi um

meacutedico o Amilcar Lobo que depois eu denunciei o lsquofilho da putarsquo e a gente

conseguiu cassaacute-lo como meacutedico [] ele acompanhava as torturas antes

durante e depois era o assessor de tortura ele dizia ldquo- Daacute uma paradinha

agorardquo Isso para vocecirc aguumlentar neacute Entatildeo ele entrou na minha cela e me

perguntou se eu era cardiacuteaca tirou a minha pressatildeo e eu natildeo entendendo

nada Ele tinha um esparadrapo aqui [aponta para o lado esquerdo do peito]

para a gente natildeo ver o nome dele Eu fiquei sabendo o nome dele porque

meses depois eu jaacute estava na cela de Dulce [Pandolfi]49

quando ele

porque a Dulce ficou praticamente sem mexer as matildeos [] e ele entrou e

esqueceu o receituaacuterio com o nome dele noacutes olhamos e eu quando saiacute de laacute

o denunciei Anos depois a gente conseguiu que ele fosse cassado []

(Coimbra 30 nov 2004)

[] o meacutedico que vinha te ver vinha para ver as suas condiccedilotildees se tinha que

parar ou se podia continuar a te torturar Os caras batiam muito localizado

em partes que vocecirc resiste mais que satildeo nas naacutedegas nessa parte daqui

[aponta para as costas] Entatildeo satildeo lugares que o seu corpo suporta mais []

(Freire 28 jun 2004)

[] como eu fiquei muito mal eu tive cuidados meacutedicos o tempo quase todo

quer dizer claro que eram cuidados meacutedicos no sentido de me prepararem

para apanhar mais para ser mais torturada queriam evitar que eu morresse

porque politicamente natildeo interessava [] tinha laacute dois enfermeiros de rotina

e tinham tambeacutem dois meacutedicos o mais presente o que sempre visitava a

gente era o Amilcar Lobo Em alguns casos ele participou de algumas

sessotildees de tortura no meu eu me lembro dele dizendo ldquo- ela aguentardquo

tomando minha pressatildeo dizendo que eu aguentava apanhar mais ainda

(Pandolfi 5 fev 2003)

49

Dulce e Ana e Dulce e Ceciacutelia dividiram celas em parte do periacuteodo em que estiveram presas no DOI-

CODIRJ A convivecircncia que laacute tiveram seraacute analisada ainda neste capiacutetulo

171

De fato a tortura estava presente em grande parte do cotidiano do DOI-CODIRJ

e para que fosse eficiente e natildeo causasse maiores problemas tal como mortes

indesejadas ao redor dela havia todo um aparato Esse era formado tanto por

enfermeiros e meacutedicos como tambeacutem por outras especificidades tais como teacutecnicas

treinamentos e equipamentos que seratildeo tratados a seguir

Os meacutetodos da tortura

O meacutedico psicanalista Heacutelio Pelegrino traz uma oacutetima definiccedilatildeo sobre como

funciona a tortura poliacutetica

[] a tortura busca agrave custa do sofrimento corporal insuportaacutevel introduzir

uma cunha que leve agrave cisatildeo entre o corpo e a mente E mais do que isto ela

procura a todo preccedilo semear a discoacuterdia e a guerra entre o corpo e a mente

Atraveacutes da tortura o corpo torna-se nosso inimigo e nos persegue Eacute este o

modelo baacutesico no qual se apoacuteia a accedilatildeo de qualquer torturador [] na tortura

o corpo volta-se contra noacutes exigindo que falemos Da mais iacutentima espessura

de nossa proacutepria carne se levanta uma voz que nos nega na medida em que

pretende arrancar de noacutes um discurso do qual temos horror jaacute que eacute a

negaccedilatildeo de nossa liberdade A tortura nos impotildee a alienaccedilatildeo total de nosso

proacuteprio corpo tornando estrangeiro a noacutes e nosso inimigo de morte

(Pelegrino 5 jun 1982 3)

No interior do DOI-CODIRJ em nenhuma das fases da prisatildeo os presos poliacuteticos

eram poupados de torturas No iniacutecio as visitas agrave ldquosala roxardquo eram mais constantes mas

durante todo o periacuteodo em que permaneciam no DOI-CODIRJ os prisioneiros eram

levados para laacute e laacute eram torturados Nessa sala existiam equipamentos proacuteprios

tornando ainda maior a gama de possibilidades de tortura a serem perpetradas aos

prisioneiros Devido a essa diversidade as torturas recebiam nomes proacuteprios para serem

identificadas pelos oficiais das turmas de interrogatoacuterio preliminar do DOIRJ Tais

172

nomes na maior parte das vezes eram irocircnicos e serviam para demonstrar como ali a

praacutetica da tortura era usual e ao mesmo tempo encarada com naturalidade e frieza

pelos seus executores

Em A Tortura tomo V do ldquoProjeto Ardquo (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985)

encontram-se a caracterizaccedilatildeo e os nomes dessas torturas Comumente citadas pelos

presos poliacuteticos da ditadura militar do Brasil a identificaccedilatildeo dessas torturas foi baseada

sobretudo na anaacutelise da documentaccedilatildeo dos processos judiciais da eacutepoca Afinal muitas

vezes anexadas a esses processos encontram-se denuacutencias sobre torturas feitas por

prisioneiros poliacuteticos nas auditorias militares Essas denuacutencias vatildeo ao encontro de

muitas das descriccedilotildees encontradas nas narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos Antocircnio

Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia construiacutedas jaacute em tempos democraacuteticos

(2002-2004) Algumas delas satildeo destacadas a seguir

Capuz tortura psicoloacutegica Impedimento da visatildeo por meio de um capuz

ficando o indiviacuteduo incapacitado de se defender dos golpes a ele direcionados

Espancamento tapas socos e pontapeacutes aplicados em regiotildees como rins

estocircmago e diafragma

Telefone eletrochoque dado por um telefone de campainha do Exeacutercito

possuindo dois fios longos que satildeo ligados ao corpo molhado normalmente nas

partes genitais e nos mamilos aleacutem dos ouvidos dentes liacutengua e dedos

Pau-de-arara um dos meacutetodos mais antigos de tortura pelo qual se pendura a

viacutetima em posiccedilatildeo de ldquofrango assadordquo nua e de cabeccedila para baixo em um pau

preso no alto por duas barras de ferro causando dores terriacuteveis na cabeccedila e em

todo corpo

Choques eleacutetricos normalmente complemento do pau-de-arara Caracteriza-se

por enviar descargas eleacutetricas em contato com o corpo nu e molhado atraveacutes de

173

um magneto com dois terminais estando um geralmente nos oacutergatildeos genitais e

outro em alguma extremidade sensiacutevel do corpo como liacutengua mamilos e dedos

Palmatoacuteria raquete de madeira aplicada fortemente nas matildeos peacutes naacutedegas e

costas da viacutetima

Afogamento Complemento do pau-de-arara Pode ser aplicado ou por meio de

um pequeno tubo de borracha que lanccedila aacutegua na boca e nas narinas do

torturado ou atraveacutes de uma toalha molhada depositada tambeacutem na boca deste

ao mesmo tempo em que um jato drsquoaacutegua eacute lanccedilado em suas narinas

No referido tomo V do Projeto Brasil Nunca Mais encontram-se trechos das

denuacutencias feitas por Dulce Pandolfi nas auditorias militares em 1970 e tambeacutem por seu

advogado Dr Heleno Fragoso Comparando partes dessas denuacutencias de 1970 com

trechos da entrevista concedida por Dulce em 2003 nota-se que haacute muitos pontos em

comum No entanto percebe-se que em sua narrativa de 2003 as torturas satildeo relatadas

de forma mais impessoal e que talvez pelo tempo que separa este depoimento daquele

de 1970 alguns detalhes se perderam foram esquecidos ou mesmo silenciados Eacute o que

pode-se perceber nas transcriccedilotildees feitas a seguir

Nordm 433 Dulce Chaves Pandolfi Prof estudante Idade 23 Local Rio de

Janeiro (CODI) Ano 1970 Apelaccedilatildeo 39778 Vol 1 PAacuteG 328v LVI

PARTE auto de qualificaccedilatildeo e interrogatoacuterio ndash Auditoria

[] que no quartel da PE na Rua Baratildeo de Mesquita assinou sob torturas o

depoimento () que na sala de torturas da PE foi despida e aplicaram-lhe

choques eleacutetricos nas matildeos que foi levada para uma cela onde deram-lhe

um banho frio e sob o pretexto de ensaboaacute-la os torturadores alisavam o seu

corpo que ao retornar agrave sala de torturas foi colocada no chatildeo com um

jacareacute sobre seu corpo nu que depois foi pendurada num pau-de-arara que

levou choques na vagina no acircnus nos seios na cabeccedila e no restante do

corpo [] que ficou em estado de choque vomitando sangue que por 15

174

dias ficou totalmente paraliacutetica [] que foi exposta perante 20 oficiais

como numa demonstraccedilatildeo de aulas de torturas pau-de-arara e choques []

(Arquidiocese de Satildeo Paulo tomo V 1985 757)

Nordm 433 Dulce Chaves Pandolfi Prof estudante Idade 21 Local R de

Janeiro Ano 1970 Apelaccedilatildeo 39778 Vol 2ordm PAacuteG 712807 LVI

PARTE advogado

[] Com a palavra o Dr Heleno Fragoso defensor da acusada Dulce Chaves

Pandolfi este declarou que ela foi presa em agosto de 1970 tendo sido

submetida a uma seacuterie de torturas tendo inclusive o Delegado do DOPS

mandado submetecirc-la a exame de corpo de delito para salvaguardar a sua

responsabilidade [] Natildeo usaremos a palavra do co-reacuteu Paulo Henrique

Oliveira da Rocha Lins que foi ldquoforccedilado a presenciar a acusada DULCE

PANDOLFI sendo pisoteada nua no chatildeordquo (cf fls 325) Remeteremos o E

Conselho ao laudo fls 358 onde dois meacutedicos legistas do Instituto Meacutedico

Legal examinam a acusada e concluem pela verossimilhanccedila a

plausibilidade de suas alegaccedilotildees no sentido de que fora espancada

constatando os vestiacutegios das lesotildees Estaacute laacute a fls 358 a verdade do

inqueacuterito

Esse sofrimento deve ter sido tanto maior quanto era possiacutevel agrave acusada

fornecer as informaccedilotildees que seus torturadores exigiam [] (Arquidiocese de

Satildeo Paulo tomo V 1985 759)

[] vocecirc apanhava era super torturada ali em 1970 natildeo tinha escapatoacuteria

esse era o procedimento era a rotina e aiacute depois da tortura vocecirc jaacute toda

cheia de hematomas passando mal vocecirc era levada para uma cela muitas

vezes essas pessoas saiacuteam da sala de tortura e iam direto para essa cela onde

eu estava entatildeo eu tambeacutem presenciei muitas pessoas que chegavam laacute

completamente quebradas arrebentadas e essa era a nossa vida []

[] tinha o pau-de-arara que eu fui pendurada vaacuterias vezes nele com os

ferros verdes e as cordas tinha o tal telefone de choque que era para mim

um dos piores instrumentos era um aparelho de choque eleacutetrico tinha a

cadeira que eles tambeacutem te amarravam faziam mil sacanagens e tinha uns

enfim tinha uma espeacutecie de chicote que eles te batiam um porrete A tortura

tem vaacuterios procedimentos e tinha na PE nessa eacutepoca um jacareacute Ele natildeo

ficava na sala de tortura Esse jacareacute ficava do lado de fora Quando algumas

pessoas foram presas eles trouxeram o jacareacute para amedrontar Colocavam o

175

jacareacute sobre o seu corpo Era um filhote de jacareacute mas razoavelmente

grande quer dizer de um metro mais ou menos e era mais um dos

instrumentos que eles usavam [] fiquei tomando medicaccedilatildeo especial

porque eu estava muito mal estava com uma paralisia tambeacutem por causa da

tortura tinha ficado completamente travada eacute aquilo vocecirc vai contraindo

contraindo e deixava vocecirc semiparaliacutetica [] (Pandolfi 5 fev 2003)

A partir da comparaccedilatildeo dos trechos dos diferentes depoimentos acima destacados

dados sobre cenaacuterios e temporalidades distintas nota-se que a narrativa construiacuteda por

Dulce Pandolfi em 2003 eacute muito menos detalhada do que a por ela proferida em 1970

Percebe-se portanto no caso de Dulce que o presente vivido em 2003 de certa forma

agia sobre sua memoacuteria do passado ditatorial impulsionando o silecircncio sobre as

minuacutecias dos sofrimentos vividos no DOI-CODIRJ Logo nas memoacuterias de Dulce

nota-se uma inversatildeo da perspectiva de que o presente democraacutetico promovia uma

narrativa que enfatizasse os detalhes das torturas sofridas durante a ditadura militar a

fim de solidificar as conquistas ateacute entatildeo conseguidas e alcanccedilar outras tantas no futuro

Talvez em 2003 Dulce por jaacute ser uma mulher madura e uma profissional

reconhecida entendesse que o constrangimento trazido pela exposiccedilatildeo total de suas

memoacuterias sobre as torturas sofridas no passado superasse a vontade de denunciaacute-las no

presente Afinal naquele ano a democracia dava fortes sinais de consolidaccedilatildeo uma vez

que Lula ex-liacuteder sindical e perseguido poliacutetico pela ditadura acabava de assumir a

Presidecircncia do Brasil e o Estado brasileiro jaacute vinha reconhecendo sua responsabilidade

diante dos abusos da eacutepoca militar atraveacutes da concessatildeo de reparaccedilotildees financeiras agraves

famiacutelias dos militantes poliacuteticos desde entatildeo desaparecidos (lei nordm 914095) e agraves

viacutetimas de torturas em prisotildees poliacuteticas do periacuteodo (lei nordm 1055902)

Jaacute em 1970 os detalhes sobre as torturas sofridas por Dulce ainda eram

extremamente recentes e portanto muito presentes em sua memoacuteria Aleacutem disso tinha

consciecircncia de que no instante de seu depoimento muitos de seus companheiros

176

continuavam a sofrer dentro dos oacutergatildeos de repressatildeo com as mesmas torturas que havia

recebido E principalmente como estava defendendo-se perante um tribunal a

exposiccedilatildeo dos detalhes de suas torturas apresentava-se como uma arma importante na

luta em prol de sua liberdade

Diante disso enquanto Dulce relata em sua entrevista saber do uso de um filhote

de jacareacute como mais um instrumento de tortura utilizado no DOI-CODIRJ sem no

entanto afirmar ter passado por tal experiecircncia Ceciacutelia Coimbra em 2004 narra que

esse filhote de jacareacute havia sido colocado pelos militares sobre seu corpo nu

[] me botaram nua me amarraram numa cadeira e me puseram um filhote

de jacareacute que era um filhote de jacareacute que eles puxavam por uma corda no

pescoccedilo do pobre do jacareacute Era um filhote e aiacute eles puxavam o jacareacute

botavam o jacareacute em cima Olha era uma coisa horriacutevel Nessa hora eu

desmaiei neacute Natildeo aguentei [] (Coimbra 30 nov 2004)

Durante sua entrevista em 2004 Ceciacutelia descreve ter passado pela mesma

situaccedilatildeo de tortura que Dulce havia descrito em seu depoimento agrave Justiccedila Militar em

1970 mas que no presente em 2003 optou por relatar de forma impessoal Isso se

justifica pelo fato de para Ceciacutelia a descriccedilatildeo dos detalhes ainda ser essencial Afinal

Ceciacutelia eacute uma das fundadoras e ativistas assiacuteduas do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio

de Janeiro (GTNMRJ) onde ocupava entatildeo o cargo de vice-presidente

Eacute evidente portanto que na vida de Ceciacutelia a narrativa sobre os sofrimentos

acarretados pela repressatildeo militar ainda era arma na luta que travava para a

solidificaccedilatildeo das conquistas e para a concretizaccedilatildeo de outras tantas que julgava serem

igualmente importantes Para ela diferentemente de Dulce esse tipo de narrativa era

mais que sua memoacuteria pessoal dizia respeito tambeacutem a seu ofiacutecio Acreditava que o seu

sucesso pessoalprofissional dependia do detalhamento da memoacuteria sobre tais violaccedilotildees

177

o que colocava tais detalhes em um lugar de mais faacutecil aceitaccedilatildeo e por conseguinte

exteriorizaccedilatildeo

Mediante os depoimentos de Dulce e Ceciacutelia que chegaram a dividir cela no DOI-

CODIRJ como poderaacute ser visto paacuteginas agrave frente conclui-se que em meados de 1970

um filhote de jacareacute era utilizado para torturar os presos poliacuteticos do 1ordm BPE O uso

desse tipo de tortura eacute aqui entendido mais por seus efeitos psicoloacutegicos do que fiacutesicos e

como sendo destinado mais agraves presas do que aos presos poliacuteticos Afinal apesar de

tocar nos corpos das viacutetimas como acontece durante as torturas fiacutesicas aparentemente

o jacareacute que era dominado por um militar atraveacutes de uma corda amarrada em seu

pescoccedilo natildeo as atacava ou seja natildeo as causava lesotildees externas Era claramente

utilizado com o intuito de ameaccedilaacute-las Dessa forma mesmo sendo efetuado atraveacutes da

accedilatildeo direta do torturador e mediante o contato fiacutesico esse mecanismo de tortura tinha

por objetivo causar danos exclusivamente psicoloacutegicos Como normalmente as

mulheres possuem mais sensibilidades e fobias relacionadas ao contato com animais

provavelmente esse tipo de tortura atingisse maior eficiecircncia quando destinado agraves

presas

Conforme jaacute analisado e inclusive indicado pelo nome Destacamento de

Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) os presos do DOIRJ estavam ali para fornecer

informaccedilotildees que levassem agrave neutralizaccedilatildeo das organizaccedilotildees poliacuteticas de esquerda

Assim de acordo com a necessidade da raacutepida extraccedilatildeo de tais dados caracterizada

anteriormente natildeo eacute difiacutecil concluir que o clima de ameaccedila e tortura estivesse por toda

parte do preacutedio Portanto percebe-se que as torturas no DOI-CODIRJ de 1970 natildeo se

limitavam agraves fiacutesicas e nem agrave ldquosala roxardquo elas se apresentavam sob diversas faces em

vaacuterios momentos e lugares do edifiacutecio

178

As torturas psicoloacutegicas eram variadas Aleacutem da degradaccedilatildeo inicial que o

desconforto das celas ldquosolitaacuteriasrdquo trazia ao prisioneiro mesmo nas celas coletivas os

presos eram submetidos a muitos outros artifiacutecios desse tipo de tortura tais como luzes

das celas constantemente acesas a fim de que perdessem a noccedilatildeo da passagem do

tempo carcereiros durante a noite abrindo repetidamente a janelinha do portatildeo das

celas para vigiaacute-los acordando-os jaacute que o movimento emitia um som alto visitas

recorrentes de militares agraves celas e gritos vindos da ldquosala roxardquo ouvidos a todo tempo

[] essa porta da nossa cela ela tinha uma abertura era uma porta fechada

natildeo era grade natildeo era uma porta pesada e ela tinha um quadrado em cima

com uma abertura para o lado de fora e esses soldados que faziam a ronda

eles abriam essa portinha de cinco em cinco minutos Entatildeo eles passavam e

ldquopahrdquo e dependendo da maldade desses caras eles batiam com mais forccedila

ou menos forccedila isso era a noite toda Inclusive a luz ficava acesa

permanentemente e essa batidinha desse negoacutecio era uma coisa insuportaacutevel

De vez em quando a gente estava pegando no sono e tomava aquele susto

com aquela batida [] a gente tambeacutem ouvia muito grito de tortura o tempo

todo (Pandolfi 5 fev 2003)

[] nem na hora de dormir apagavam a luz dia e noite era a luz acesa vocecirc

sabia o horaacuterio pela hora do cafeacute da manhatilde Mas ateacute se tinha alguma noccedilatildeo

porque como a janela laacute no alto da parede era de vidro dava para vocecirc

perceber que estava agrave noite [] (Carvalho 8 fev 2003)

[] eles faziam o tal do confere de manhatilde e de noite vinham com catildees

policiais farejando a gente e a gente tinha que ficar em peacute igual a soldado

dizendo - ldquoCeciacutelia Coimbrardquo Tinha que falar o nome [] era o tal do

confere E era uma coisa de humilhaccedilatildeo eles de madrugada abriam

estrondosamente as celas entendeu [] era como se noacutes fossemos animais

animais de circo Animais raros eacuteramos os lsquoterroristasrsquo neacute [] era o tempo

todo as torturas fiacutesicas e a coisa da rotina para te degradar enquanto ser

humano [] (Coimbra 30 nov 2004)

179

Outro tipo de tortura psicoloacutegica aplicada no DOI-CODIRJ de 1970 fora da ldquosala

roxardquo jaacute aqui mencionada era o capuz Os agentes das turmas auxiliares encarregados

da carceragem colocavam uma espeacutecie de capuz no prisioneiro quando o levavam da

cela ateacute a ldquosala de torturardquo No entanto no momento em que o preso chegava nessa sala

tinha o capuz retirado pelos agentes das turmas de interrogatoacuterio preliminar Logo no

DOI-CODIRJ de 1970 o capuz ainda natildeo era um mecanismo para esconder os rostos

dos torturadores e sim mais um artifiacutecio de intimidaccedilatildeo do prisioneiro Aliaacutes foi

exatamente por isso que muitos ex-prisioneiros conseguiram anos depois denunciar

militares que na eacutepoca teriam sido seus algozes 50

Ana Batista ressalta ainda ter sido submetida no DOI-CODIRJ a outro tipo de

tortura psicoloacutegica O meacutedico Amilcar Lobo teria solicitado a um agente da turma

auxiliar de plantatildeo que a carregasse ateacute uma sala do 1ordm BPE fora do preacutedio do DOI-

CODIRJ jaacute que estava com ferimentos que natildeo permitiam que andasse Laacute Ana foi

supostamente examinada pelo referido meacutedico e dele escutou o diagnoacutestico de que natildeo

poderia ter filhos pois tinha o uacutetero infantil e retrovertido ou seja atrofiado e virado

para a parte posterior do corpo No entanto apoacutes ser posta em liberdade quatro anos

depois Ana descobriu que aquela afirmaccedilatildeo natildeo era verdadeira pois poderia

engravidar tendo tido posteriormente dois filhos

Eu sei que tem o paacutetio porque uma vez me carregaram para laacute um soldado

foi e me carregou Eu natildeo estava andando eu estava toda ferida entatildeo ele

me carregou pelo paacutetio ateacute uma espeacutecie de consultoacuterio do Amilcar Lobo []

eu estava toda ferida na vagina devido aos choques eleacutetricos e porque

tinham me enfiado o cassetete [] Aiacute ele me examinou e disse assim ldquo-

Vocecirc tem o uacutetero infantil e retrovertido vocecirc nunca vai poder ter filhosrdquo

Assim Eu tinha 21 anos e passei quase quatro anos achando que eu nunca ia

poder ter filhos O cara sabia o que estava fazendo (Miranda 17 nov 2004)

50

Em Os Funcionaacuterios tomo II do Projeto Brasil Nunca Mais se encontra a relaccedilatildeo alfabeacutetica das

pessoas envolvidas com torturas (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985 1-60)

180

Esse tipo de tortura psicoloacutegica destacada no trecho acima coincide com o tipo de

cotidiano vivido pelos presos do DOI-CODIRJ No entanto encaixa-se tambeacutem com o

estilo enfaacutetico que a narrativa de Ana atribuiacutea em 2004 aos danos que a prisatildeo poliacutetica

lhe causara A recente composiccedilatildeo de seu memorial sobre os sofrimentos vividos

durante a ditadura militar enviado agrave Comissatildeo Especial da Secretaria de Direitos

Humanos do Estado do Rio de Janeiro pautava-se no objetivo de receber o valor

maacuteximo da reparaccedilatildeo financeira oferecida pelo Estado No momento da entrevista era

esse o presente que Ana vivia e era atraveacutes dele que inconscientemente lia o passado

Logo sua narrativa apesar de aparentemente coerente sofria influecircncias que as

aspiraccedilotildees e interpretaccedilotildees do presente involuntariamente impuseram a suas memoacuterias

Poreacutem o fato do meacutedico Amilcar Lobo ter lhe dado um diagnoacutestico falso de

esterilidade encontra explicaccedilatildeo natildeo soacute em sua narrativa construiacuteda a partir da

interpretaccedilatildeo de que a notiacutecia teria sido motivada apenas pelo grande dano psicoloacutegico

que isso causaria a uma jovem de 21 anos mas tambeacutem no papel que o meacutedico

desempenhava dentro daquela instituiccedilatildeo Afinal aleacutem de funcionar como uma tortura

psicoloacutegica o diagnoacutestico dado por Amilcar Lobo foi provavelmente uma forma de

tentar resguardar o DOI-CODIRJ de possiacuteveis acusaccedilotildees posteriores de tecirc-la tornado

infeacutertil tantos eram os ferimentos que Ana havia sofrido em seus oacutergatildeos reprodutores

Afinal conforme constatado a principal funccedilatildeo do meacutedico ali era auxiliar as torturas e

cuidar dos ferimentos dos presos na tentativa de proteger a instituiccedilatildeo de acusaccedilotildees que

poderiam trazer preocupaccedilotildees futuras por exemplo a responsabilidade por graves

ferimentos e mortes

Isso no entanto natildeo quer dizer que as torturas do DOI-CODIRJ natildeo tenham

ocasionado mortes Sabe-se que muitos prisioneiros poliacuteticos depois de laacute entrarem

foram dados como desparecidos Quando esses presos eram mortos dentro de

181

instituiccedilotildees como o DOI-CODIRJ os militares envolvidos ou desapareciam com os

corpos pois assim natildeo se tinha como provar o que havia acontecido e por conseguinte

natildeo existiriam culpados ou quando a prisatildeo tivesse sido noticiada por algum meio de

comunicaccedilatildeo o corpo aparecia sob uma justificativa forjada que excluiacutesse a culpa da

instituiccedilatildeo prisional Na maior parte das vezes dizia-se que o prisioneiro havia

cometido suiciacutedio na prisatildeo ou sido baleado em tiroteio o que se supunha estar

relacionado a uma anterior tentativa sua de fuga

Nas entrevistas aqui trabalhadas alguns depoentes relataram ter tido contato

dentro do DOI-CODIRJ com pessoas que depois foram dadas como mortas sob tais

justificativas Dulce por exemplo afirma ter sido acareada durante uma sessatildeo de

tortura com Eduardo Collen Leite o Bacuri morto segundo a Comissatildeo Especial sobre

Mortos e Desaparecidos (2007 139) no Forte dos Andradas na cidade do Guarujaacute

(SP) trecircs dias apoacutes militares implantarem na imprensa a falsa notiacutecia de sua fuga

atribuindo sua morte a um suposto tiroteio na rua entre ele e militares

Quando eu estava laacute eu fui acareada com o Bacuri Eu jaacute encontrei com ele

assim muito mal ele estava respirando mal foi uma cena assim muito barra

pesada e eu sei que depois ele morreu eu natildeo sei se ele morreu laacute mas logo

depois que eu estive com ele ele morreu Ele eacute um desses mortos do

processo Ele morreu fruto de tortura ele foi brutalmente torturado ele jaacute

chegou na PE muito torturado muito quebrado e teve comentaacuterios de

torturadores que diziam ter feito um estrago muito grande nele e natildeo tinham

conseguido que ele falasse as coisas que eles queriam que ele falasse

(Pandolfi 5 fev 2003)

Fernando teve seu irmatildeo Eiraldo de Palha Freire baleado e junto com ele preso

pelos militares da Aeronaacuteutica no aeroporto do Galeatildeo no Rio de Janeiro Mesmo

gravemente ferido Eiraldo foi segundo Fernando e a Comissatildeo Especial sobre Mortos

e Desaparecidos (2007 131) transferido para o DOI-CODIRJ e laacute morto sob torturas

182

Poreacutem de acordo com Fernando seu corpo foi entregue agrave famiacutelia sob a versatildeo de

suiciacutedio

Meu irmatildeo veja bem ele foi metralhado no aviatildeo mas ele estava vivo e

ainda foi parar no DOI-CODI Ele estava ferido mas chegou a levar tortura

natildeo resistiu e morreu aiacute disseram que ele se suicidou (Freire 28 jun 2004)

Hoje no entanto grande parte dos mortos e desaparecidos foi reconhecida pelo

Estado brasileiro A Comissatildeo Especial sobre Mortos e Desaparecidos Poliacuteticos

implantada pela lei 914095 encerrou em 2006 a etapa de reconhecimento e reparaccedilatildeo

financeira agraves famiacutelias reconhecendo um total de 253 mortos e desaparecidos poliacuteticos

por autoridades do Estado brasileiro entre os anos de 1961 e 1988 A partir de 2007

essa Comissatildeo passou a concentrar-se na busca e no reconhecimento de ossadas para

que muitas famiacutelias descubram o que de fato aconteceu com seus entes desaparecidos e

possa enterraacute-los conforme indicado pelo seu livro-relatoacuterio Direito agrave verdade e agrave

memoacuteria (2007)

A partir da anaacutelise aqui feita a respeito das torturas a que os presos eram

submetidos no DOI-CODIRJ em 1970 nota-se que essas eram destinadas a todos que

laacute entravam No entanto percebe-se que a intensidade das torturas no DOI-CODIRJ de

1970 variava de acordo principalmente com o tempo de prisatildeo com o tipo de

organizaccedilatildeo que o preso integrasse (se era ou natildeo adepta da luta armada) e com a

resistecircncia que ele apresentasse para conceder as informaccedilotildees que os agentes das turmas

de interrogatoacuterio preliminar buscavam

Logo constata-se que quanto mais ativa fosse a organizaccedilatildeo de luta armada a que

o prisioneiro estivesse relacionado mais ele seria submetido a torturas e quanto mais

ele resistisse a essas mais intensas elas seriam podendo inclusive acarretar sua morte

183

Afinal os prisioneiros ligados a organizaccedilotildees armadas em ampla atividade tinham mais

informaccedilotildees sobre outros militantes procurados

Diante disso como a ALN e o MR-8 eram organizaccedilotildees envolvidas em grandes

accedilotildees armadas da eacutepoca ndash tais como os sequestros dos embaixadores americano e

alematildeo e do aviatildeo da Companhia Aeacuterea Cruzeiro do Sul ocorridos em 4 de setembro de

1969 11 de junho de 1970 e 1ordm de julho de 1970 respectivamente ndash os prisioneiros que

delas faziam parte ou tinham algum tipo de relaccedilatildeo com seus militantes foram

submetidos a intensas torturas no DOI-CODIRJ Como os perfis de Dulce Fernando

Ana e Ceciacutelia se encaixavam nessas caracteriacutesticas conforme analisado no segundo

capiacutetulo a eles foi imposto no DOI-CODIRJ um cotidiano ainda mais violento do que

por exemplo a Antocircnio

Afinal em meados de 1970 quando Antocircnio de Carvalho51

foi preso e levado

para o DOI-CODIRJ o PCBR sua organizaccedilatildeo na eacutepoca apesar de adepta da luta

armada jaacute se encontrava relativamente desestruturada uma vez que suas principais

lideranccedilas jaacute haviam ldquocaiacutedordquo Dessa forma o PCBR mesmo ainda em atividade natildeo

estava envolvido em accedilotildees tatildeo organizadas e com tamanha repercussatildeo como estavam a

ALN e o MR-8 por exemplo Entatildeo Antocircnio apesar de passar pelas duas fases da

prisatildeo e natildeo ser poupado de duras torturas como ocorreu com Padre Maacuterio

provavelmente natildeo sofreu o mesmo grau de violecircncia destinado a Dulce Fernando Ana

e Ceciacutelia As informaccedilotildees que ele tinha natildeo levariam o DOI-CODIRJ aos envolvidos

com as accedilotildees armadas em destaque na eacutepoca

51

Para mais informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria poliacutetica que acarretou a prisatildeo de Antocircnio Leite de Carvalho

voltar ao segundo capiacutetulo

184

32 O dia-a-dia no caacutercere

O dia-a-dia vivido pelos prisioneiros poliacuteticos no DOI-CODIRJ natildeo era o mesmo

que o vivido em um presiacutedio comum A ameaccedila de tortura o medo dela decorrente e o

sentimento de abandono que ela causava estavam presentes a todo momento Assim

natildeo poderia ser diferente que na memoacuteria construiacuteda pelos ex-prisioneiros poliacuteticos do

DOI-CODIRJ de 1970 a tortura ocupe a maior parte das narrativas sobre o cotidiano

ali vivido

No entanto a memoacuteria dos prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ de 1970

entrevistados entre os anos de 2002 e 2004 abarca tambeacutem outros aspectos daquele dia-

a-dia A partir de seus relatos aleacutem de se tornar viaacutevel a anaacutelise sobre as refeiccedilotildees os

banhos e os passatempos durante a prisatildeo no DOI-CODIRJ se torna possiacutevel tambeacutem

perceber como a convivecircncia a cumplicidade entre os presos e ateacute algumas

demonstraccedilotildees de solidariedade dos carcereiros foram elementos importantes para que

resistissem ao violento cotidiano ali vivido

Na primeira fase da prisatildeo os presos ficavam sozinhos em pequenas celas onde

natildeo havia colchatildeo banheiro e eram constantemente levados agrave sala de tortura Este

cotidiano inicial era muito degradante fiacutesica e mentalmente natildeo soacute pelo sofrimento

acarretado pelo grande nuacutemero de torturas sofridas e pelo desconforto das celas mas

tambeacutem pela solidatildeo nelas vivenciada Afinal natildeo foi por acaso que tais celas ficaram

conhecidas como ldquosolitaacuteriasrdquo

A solidatildeo era uma caracteriacutestica que contribuiacutea fortemente para a fragilidade do

prisioneiro do DOI-CODIRJ Isto torna-se mais evidente quando percebe-se a grande

importacircncia que um raacutepido contato com outro preso representava durante a primeira

fase da prisatildeo Eacute o que pode-se apurar no seguinte trecho narrado por Fernando

185

[] uma hora eu estava encostado aqui [aponta para onde ficava uma das

ldquosolitaacuteriasrdquo no desenho que fez em um papel] no primeiro dia aiacute botaram um

cara no corredor [] era um dirigente do Partido Comunista um velho da

minha idade atualmente Ele tremia muito [] Aiacute ele disse - ldquoEstaacute frio neacute

companheirordquo aiacute eu - ldquoMuitordquo e ele disse - ldquoMas eacute mais psicoloacutegicordquo Aiacute

eu senti uma vergonha sabe Porque eu estava me sentindo tatildeo mal tatildeo para

baixo e um homem daquela idade estava firme[] Ele me deu uma forccedila

muito maior do que ele imagina [] (Freire 28 jun 2004)

Evidencia-se atraveacutes dessa narrativa como em meio ao sofrimento e agrave solidatildeo que

Fernando lembra ter vivenciado no primeiro dia de sua prisatildeo no DOI-CODIRJ um

simples diaacutelogo foi capaz de revitalizar a sua resistecircncia Esse pequeno contato foi tatildeo

importante para Fernando a ponto de ficar marcado em sua memoacuteria ateacute o momento de

sua entrevista mais de trinta anos depois

A partir disso nota-se que aquele cotidiano criava independente das pequenas

diferenccedilas ideoloacutegicas que poderiam existir uma forte identidade entre os presos As

dores decorrentes das torturas e a sensaccedilatildeo de solidatildeo que sentiam no DOI-CODIRJ

faziam com que presos que nunca tivessem se visto antes criassem rapidamente uma

forte cumplicidade e amizade Assim nos momentos em que estavam juntos

principalmente durante a segunda fase da prisatildeo eles conversavam apoiavam-se e

cuidavam uns aos outros extraindo desse conviacutevio forccedila para encararem os proacuteximos

dias de prisatildeo

Essa experiecircncia coletiva dentro do DOI-CODIRJ era valiosa ateacute porque nem

mesmo quando os presos jaacute estavam na segunda fase da prisatildeo ela era garantida Afinal

apesar do prisioneiro poliacutetico do DOI-CODIRJ durante a segunda fase ficar em celas

com estrutura para mais de um preso ele nem sempre tinha companhia Conforme jaacute

analisado anteriormente no DOI-CODIRJ existia uma grande rotatividade e isso

186

implicava em que em determinados momentos as celas coletivas estivessem cheias e

em outros habitadas por dois ou ateacute mesmo um uacutenico prisioneiro

Logo por ser a primeira fase um periacuteodo de isolamento e a segunda devido agrave alta

rotatividade do DOI-CODIRJ uma fase em que ora se estava sozinho e ora tinha-se

companheiro(s) de cela a convivecircncia era entatildeo muito valorizada pelos presos como se

pode perceber na ecircnfase que ela recebe nas memoacuterias dos entrevistados

[] quando estaacutevamos juntas era bem melhor porque existia uma identidade

muito forte entre a gente Eram pessoas que nunca tinham se conhecido de

um modo geral mas aquele oacutedio contra a ditadura o fato de todas terem sido

torturadas aquilo dava margem a uma liga muito grande entre a gente

Entatildeo quando noacutes estaacutevamos juntas a gente cantava a gente conversava a

gente contava histoacuterias de vida o tempo passava e a gente tinha uma

intimidade Conseguimos construir uma coisa muito soacutelida mesmo com

poucas horas e poucos dias mesmo nesse esquema que eu estou te falando

quer dizer as pessoas natildeo ficavam laacute fixas Teve uma vez que uma moccedila

ficou laacute trecircs dias outra que ficou quatro outra que ficou cinco Mas era

uma coisa muito boa chegar algueacutem mesmo vocecirc vendo a pessoa chegar

toda esbagaccedilada porque os que entravam naquela cela jaacute tinham passado laacute

embaixo [] (Pandolfi 5 fev 2003)

[] a cela coletiva na verdade acabava se constituindo num foacuterum de

debates Sempre discutiacuteamos poliacutetica porque eram companheiros de

diversas organizaccedilotildees natildeo era uma uacutenica organizaccedilatildeo ou um uacutenico partido

que estava ali preso mas sim vaacuterios e havia aquela troca de experiecircncias

cada um contava a sua histoacuteria e assim ia passando o dia-a-dia sempre

havia novidades Assim a gente acabava quebrando um pouco o isolamento

[] (Carvalho 8 fev 2003)

Essa convivecircncia no caacutercere fomentou portanto a solidariedade e instituiu um

forte sentimento de coletividade entre os presos Afinal a luta pela sobrevivecircncia e o

pavor de voltar a ser torturado eram comuns a todos eles que procuravam na uniatildeo criar

forccedilas para suportar aquele pesado cotidiano A troca de apoio servia entatildeo como uma

187

espeacutecie de sustentaccedilatildeo como uma garantia de sobrevida Ao preocuparem-se e

ajudarem-se os presos injetavam-se um acircnimo importante para conseguirem resistir agrave

situaccedilatildeo de desespero e solidatildeo que ali era vivida e diante dessa realidade acabavam

formando um grupo coeso cuja principal caracteriacutestica era justamente esse apoio

Constituiacuteam portanto uma identidade conjunta atraveacutes da qual se viam sob os mesmos

temores e anseios aleacutem de perceberem essa parceria como uma extensatildeo da resistecircncia

agrave ditadura que vinham praticando desde antes de serem presos

Ana Dulce e Ceciacutelia memoacuterias relacionadas

Ana e Dulce e depois Dulce e Ceciacutelia foram companheiras de cela durante parte

da segunda fase de suas prisotildees no DOI-CODIRJ de 1970 Suas narrativas sobre a

convivecircncia que laacute tiveram servem aqui para analisar tanto as relaccedilotildees entre suas

memoacuterias quanto alguns aspectos do cotidiano dessa instituiccedilatildeo

Conforme analisado no segundo capiacutetulo Ana chegou ao DOI-CODIRJ no final

de julho de 1970 Logo depois em 14 de agosto do mesmo ano Dulce foi presa e para

laacute tambeacutem levada Como Ana afirma ter permanecido no DOI-CODIRJ por cerca de

um mecircs constata-se que no final de agosto quando ela jaacute estava em vias de ser

transferida colocaram Dulce em sua cela no segundo andar Dulce acabava de vir da

primeira fase de sua prisatildeo que por ter lhe causado graves consequecircncias fiacutesicas tinha

sido mais curta Nesse momento de extrema fragilidade em que Dulce se encontrava jaacute

que vinha de intensas sessotildees de tortura e de uma das ldquosolitaacuteriasrdquo do andar de baixo

Ana ajudou-a a cuidar de seus ferimentos e a tomar banho

Esse contato que teve com Ana apesar de curto jaacute que dias depois Ana foi

transferida para o DOI-CODISP parece ter sido muito importante para Dulce Afinal

apesar dela ter convivido com outras presas durante os quase trecircs meses em que ficou

188

no DOI-CODIRJ Ana foi a uacutenica companheira de cela que Dulce citou pelo nome

durante a entrevista

[] logo que eu cheguei fui para a solitaacuteria era torturada e ia para a solitaacuteria

era torturada e ia para a solitaacuteria quando eu comecei a passar muito mal

depois de um dia dois dias eles me levaram para outra cela maior onde

estava Ana Bursztyn que me deu banho Logo depois ela saiu da cela e eu

fiquei sozinha [] (Pandolfi 5 fev 2003)

A justificativa para a presenccedila de Ana ter ficado marcada na memoacuteria de Dulce

possivelmente eacute o fato de naquele momento aleacutem de estar extremamente machucada

Dulce natildeo ter ainda dividido cela com mais ningueacutem Estava ateacute entatildeo imersa em uma

rotina de solidatildeo e tortura que caracterizava a primeira fase da prisatildeo no DOI-

CODIRJ A ajuda e o conviacutevio com Ana portanto representaram para Dulce um

primeiro contato com algueacutem em quem podia confiar talvez uma primeira surpresa boa

no cotidiano que vinha vivendo no DOI-CODIRJ Jaacute para Ana que estava haacute mais

tempo presa Dulce provavelmente natildeo tinha sido a uacutenica a contar com sua ajuda logo

natildeo se destacava entre suas memoacuterias sobre o cotidiano ali vivido

Comparando as datas das prisotildees de Ana Dulce e Ceciacutelia percebe-se que apoacutes

Ana ter sido transferida Dulce ficou nessa cela grande chamada de ldquocoletivo das

mulheresrdquo enquanto Ceciacutelia entrava no DOI-CODIRJ Ceciacutelia passou pela fase das

ldquosolitaacuteriasrdquo e depois foi levada ateacute uma cela tambeacutem no segundo andar ao lado da de

Dulce onde esteve em companhia de uma moccedila Um tempo depois foi transferida para

o ldquocoletivo das mulheresrdquo onde estava Dulce com quem conviveu grande parte do

tempo

[] fiquei nessa cela [apontando para o desenho que havia feito mostra a

cela do segundo andar que ficava ao lado do ldquocoletivo das mulheresrdquo]

189

depois fui transferida para uma cela maior onde tinha vaacuterias presas poliacuteticas

inclusive uma pessoa que ficou grande parte do tempo comigo a Dulce

Grande parte do tempo eu fiquei com ela nessa cela era o lsquocoletivo das

mulheresrsquo [] (Coimbra 30 nov 2004)

Apesar de natildeo ser destacada entre as memoacuterias de Dulce Ceciacutelia durante sua

narrativa parece atribuir um papel importante ao conviacutevio que elas tiveram Afinal o

tempo que passou com Dulce no DOI-CODIRJ trouxe-lhe um dado a mais sobre as

aulas de tortura a novos oficiais que ali estavam ocorrendo jaacute que enquanto dividia cela

com Ceciacutelia Dulce serviu de cobaia para tais ensinamentos Assim como Ceciacutelia era

vice-presidente do GTNMRJ no momento de sua entrevista e por conseguinte tinha

como caracteriacutestica enfatizar em sua narrativa os detalhes sobre as torturas cometidas

pelos agentes do DOI-CODIRJ a fim de denunciaacute-las se justifica que Dulce tenha

papel marcante entre suas memoacuterias Esse destaque que a convivecircncia com Dulce

assumiu para Ceciacutelia pode ser conferido no trecho abaixo

[] a Dulce foi chamada para uma tortura de tarde [] a gente comeccedilou a

ouvir os gritos de Dulce e jaacute tinha passado todo o periacuteodo porque eles

torturam logo no iniacutecio para pegar informaccedilatildeo Aiacute eu digo ldquo- Soacute se

algueacutem caiu algueacutem foi preso e Dulce estaacute sendo acareadardquo Daqui a pouco

a Dulce volta para a cela com um soldado toda ferrada e aiacute ela ainda ia

voltar O cara disse ldquo- Oh eacute soacute para ela se lavarrdquo Entatildeo eu entrei no

chuveiro com ela e eu dizia ldquo- Dulce o que estaacute havendordquo E ela ldquo- Eu natildeo

estou entendendo o que estaacute acontecendo tem um bando de homem a minha

volta ningueacutem me faz pergunta nenhuma e estatildeo me torturando estatildeo me

botando no pau-de-arara estatildeo me fazendo afogamento estatildeo me dando

choque eleacutetrico eu natildeo estou entendendordquo E eu falei ldquo- Dulce isso eacute aula

para novos torturadoresrdquo Porque eu jaacute tinha lido num dos panfletos da UNE

sobre os meacutetodos de tortura que estavam sendo utilizados no DOI-CODI

aleacutem do jacareacute que a gente viu e que citavam tinha tambeacutem a aula a novos

torturadores ou seja eles pegavam um preso que tinha tido maior resistecircncia

e botavam laacute como cobaia para ensinar aos novos torturadores todas as

190

teacutecnicas E foi isso que fizeram com Dulce Aiacute eu falei ldquo- Dulce isso eacute aula

para novos torturadores eu li essa porrardquo [] (Coimbra 30 nov 2004)

A partir disso fica claro que para Ceciacutelia a constataccedilatildeo da existecircncia de aulas de

torturas no DOI-CODIRJ utilizando presos poliacuteticos teve uma destacada importacircncia

Logo o seu conviacutevio com Dulce durante o periacuteodo em que ela foi viacutetima desses

ensinamentos tambeacutem teve

Aleacutem disso Ceciacutelia durante sua entrevista perguntou quem eu jaacute havia

entrevistado Assim ao saber sobre a entrevista de Dulce sentiu-se motivada a falar

sobre as experiecircncias que com ela tinha compartilhado durante a prisatildeo no DOI-

CODIRJ Dessa forma alguns outros detalhes sobre essa convivecircncia contidos na

memoacuteria de Ceciacutelia foram naquele momento reconstruiacutedos e narrados

Um deles em especial contribui para a anaacutelise sobre o cotidiano do DOI-

CODIRJ Diz respeito agrave relaccedilatildeo travada com alguns carcereiros ou seja soldados do 1ordm

BPE que integravam as turmas auxiliares Afinal a partir do relato de Ceciacutelia Coimbra

percebe-se que ela e Dulce puderam ir ateacute as celas onde estavam os seus companheiros

que na eacutepoca tambeacutem se encontravam aprisionados no DOI-CODIRJ graccedilas agrave ajuda

de um dos responsaacuteveis pela vigia daquela noite

Teve uma noite tinha um soldadinho que a gente natildeo lembra o nome a

gente soacute se lembra dos lsquofilhos da putarsquo a gente devia lembrar dos caras que

foram legais com a gente Esse cara por exemplo ele soube que o marido de

Dulce estava preso o Alexandre e que o Novaes meu marido estava preso

Aiacute como ele ia ficar a noite toda de guarda ele mandou os soldadinhos

descerem e permitiu que Dulce fosse agrave cela de Alexandre e eu agrave de Novaes

Esse cara natildeo saiu da minha cabeccedila [] Esse cara a gente conversando com

ele ele soube que o Novaes estava na cela do lado e que o Alexandre estava

numa outra cela ali perto e ele deixou Dulce foi para a cela de Alexandre e

eu para a de Novaes Assim rapidinho neacute Demos a matildeo um beijo assim

[beija a proacutepria matildeo para demonstrar] O cara se expocircs mesmo neacute E tinha

191

outros que entregavam neacute Entregavam os bilhetes Era um vendaval de

bilhetes durante a madrugada Os caras se expunham mesmo entendeu

Tinha coisas bonitas ali apesar daquele clima de terror tinha pessoas assim

solidaacuterias E esses nomes a gente natildeo lembra neacute Devia lembrar []

(Coimbra 30 nov 2004)

Conforme analisado no primeiro capiacutetulo tais carcereiros que integravam as

turmas auxiliares do DOI-CODIRJ natildeo eram oficiais de informaccedilotildees treinados

especialmente para trabalhar junto agrave repressatildeo poliacutetica eram soldados que em 1970

serviam ao quartel do 1ordm BPE52

Logo eram passiacuteveis de sentir solidariedade jaacute que

muitos deles natildeo estavam servindo ao DOI-CODIRJ por algum tipo de vocaccedilatildeo

estavam ali somente para cumprir com o serviccedilo militar do quartel Afinal apesar de

haver entre eles alguns que se identificassem com a funccedilatildeo e ateacute almejassem tornar-se

agentes de informaccedilotildees os integrantes dessas turmas auxiliares natildeo trabalhavam nos

interrogatoacuterios dos presos e consequentemente natildeo estavam diretamente relacionados

com as torturas Portanto pode-se dizer que no DOI-COIRJ existia compaixatildeo entre

soldados e prisioneiros

A partir disso evidencia-se como o indiviacuteduo tem um papel primordial para essa

anaacutelise Afinal ao considerar sua memoacuteria como fonte para a histoacuteria torna-se possiacutevel

perceber aqui algumas de suas idiossincrasias ou seja peculiaridades comportamentais

capazes de interferir na percepccedilatildeo sobre o cotidiano vivido no DOI-CODIRJ de 1970

Afinal a ajuda que o soldado deu a Dulce e Ceciacutelia eacute um exemplo tiacutepico de como as

peculiaridades individuais satildeo capazes de atribuir contrastes e inconstacircncias agrave

interpretaccedilatildeo de uma realidade do passado Desse modo entende-se perfeitamente o

porquecirc de Marshall Sahlins afirmar em Histoacuteria e Cultura (2006) que os indiviacuteduos

52

Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar ver o Anexo II

192

representam um feixe uacutenico resultado de uma ligaccedilatildeo peculiar entre infinitos traccedilos

culturais e sociais que natildeo conseguem ser captados por anaacutelises generalizantes

Uma vez que a partir de accedilotildees como a desse soldado pode-se afirmar que o

cotidiano prisional do DOI-COIRJ de 1970 natildeo era formado unicamente pela repressatildeo

e pela violecircncia dos militares que ali representavam o Estado como uma generalizaccedilatildeo

ou uma reduccedilatildeo de varaacuteveis poderia fazer crer Havia tambeacutem compaixatildeo ateacute mesmo

entre lados aparentemente opostos

As formas de lidar com o tempo

Para sobreviver ao cotidiano do DOI-CODIRJ natildeo bastava ser resistente

fisicamente tambeacutem era necessaacuterio manter a mente em equiliacutebrio Essa preocupaccedilatildeo

acompanhava o prisioneiro em todas as fases da prisatildeo mas principalmente quando ele

estava sozinho Afinal a solidatildeo trazia a sensaccedilatildeo de que o tempo natildeo passava e em

meio ao violento cotidiano a que era submetido o preso do DOI-CODIRJ percebia

mais facilmente sinais que lhe causavam medo e desespero

Ceciacutelia Coimbra e Dulce Pandolfi ressaltam que mesmo quando estavam em

celas coletivas com a companhia de outras presas percebiam muitos desses sinais

Ficavam em pacircnico pois na maior parte das vezes significavam que seriam levadas

novamente agrave ldquosala roxardquo Quando sozinhas a sensaccedilatildeo de pavor por natildeo ser

compartilhada provavelmente era ainda mais intensa

[] a gente ficou tatildeo traumatizada com o barulho de chave que quando a

gente ouvia a gente dizia ldquo- Eles vecircm para caacute vecircm pegar alguma de noacutesrdquo

Era uma loucura era um clima de terror [] (Coimbra 30 nov 2004)

[] toda vez que um soldado abria a cela trazia o capuz Era ateacute uma cena

muito dramaacutetica porque todo mundo comeccedilava a tremer de medo porque se

193

sabia que se o capuz estava ali era porque algueacutem ia descer algueacutem ia

circular e descer normalmente significava ser torturada Entatildeo era assim

uma coisa bem dramaacutetica bem traumaacutetica tambeacutem porque quando abriam a

cela e retiravam o capuz a gente pensava ldquo- pronto algueacutem vai agora pro

caceterdquo (Pandolfi 5 fev 2003)

Para manterem suas mentes satildes os prisioneiros do DOI-CODIRJ quando

sozinhos utilizavam alguns artifiacutecios Dulce em sua narrativa relata ter ficado algum

tempo sozinha em uma cela coletiva onde se ocupava em frear a impressatildeo de

vagarosidade do tempo e os maus pensamentos de diversas maneiras tais como

[] eu lembro de duas coisas que eu fazia como exerciacutecio para passar o

tempo Os colchotildees que eram horriacuteveis eram colchotildees de crina eu tirava

aquelas palhas de dentro do colchatildeo e ficava fazendo tranccedilas fazia vaacuterias

tranccedilas e contava uma tranccedila duas tranccedilas e ia montando uma na outra

Fazia filas de tranccedilas depois eu desmanchava tudo eu lembro que eu ateacute

tinha medo ldquo- Se esses caras descobrirem isso vatildeo mandar costurar o

colchatildeordquo Depois eu tirava tudo e guardava de novo laacute dentro do colchatildeo No

dia seguinte eu comeccedilava outra vez Eu dizia ldquo- eu natildeo posso enlouquecer

entatildeo eu tenho que ocupar a minha cabeccedila com alguma coisardquo Porque eu

natildeo tinha nada nada nada para fazer Outra atividade que eu fazia tambeacutem

Como [] o chatildeo da cela era como se fosse de umas lajotas de uns azulejos

sei laacute o quecirc eu contava aqueles quadrados todos multiplicava fazia

milhares de contas Fazia um jogo no chatildeo do quarto contava para frente

para traacutes multiplicava e naquilo ali eu ficava horas naquelas contas

matemaacuteticas naquelas multiplicaccedilotildees naquelas somas naqueles ladrilhos

[] (Pandolfi 5 fev 2003)

A execuccedilatildeo de tais meacutetodos certamente contribuiacutea para aumentar a possibilidade

de sobrevivecircncia e sanidade do prisioneiro do DOI-CODIRJ Poreacutem o preso dependia

de sua capacidade e habilidade para usar recursos que o beneficiassem e que ajudassem

a se opor aos mecanismos desetruturadores e despersonalizadores sobre ele empregados

Nessa situaccedilatildeo assim como Elizabeth Ferreira na obra Mulheres Militacircncia e Memoacuteria

194

(1996 65) acredita-se que o sentimento de auto-estima gerado nos presos poliacuteticos pelo

seu ideal poliacutetico e social eacute um elemento crucial de resistecircncia Atraveacutes desse

sentimento normalmente tais presos costumam sustentar a esperanccedila na mudanccedila o

que lhes gera forccedila e ateacute mesmo uma criatividade para suportar o sofrimento maior que

a de presos comuns

As roupas e as refeiccedilotildees

Como o DOI-CODIRJ de 1970 natildeo era um presiacutedio havia acabado de ser

montado dentro de um preacutedio do quartel do 1ordm BPE para abrigar temporariamente os

presos poliacuteticos que pudessem contribuir com suas investigaccedilotildees laacute natildeo existiam

refeitoacuterios visitas banho de sol ou mesmo uniformes Aleacutem da falta de uma estrutura

que propiciasse uma rotina normal de presiacutedio esse diferencial era importante para o

procedimento investigativo do DOI-CODIRJ Afinal havia ali a necessidade do preso

ficar incomunicaacutevel jaacute que quanto maior seu isolamento maior seria sua fragilidade e

esta se relacionava diretamente com sua capacidade em conceder informaccedilotildees No mais

esse isolamento tambeacutem estava relacionado com a preocupaccedilatildeo em proteger a

instituiccedilatildeo de acusaccedilotildees de maus tratos uma vez que caso os ferimentos dos presos

fossem notados poderiam ser vinculados a torturas e consequentemente denunciados

Dessa forma os prisioneiros do DOI-CODIRJ natildeo podiam nem mesmo tomar sol pois

poderiam ser vistos por pessoas dos preacutedios vizinhos e funcionaacuterios da faacutebrica da

Brahma localizada atraacutes do paacutetio do 1ordm BPE

As refeiccedilotildees eram portanto servidas nas proacuteprias celas pelos soldados da turma

auxiliar de plantatildeo Para colocarem cada uma das quatro refeiccedilotildees a que cada preso

tinha direito esses abriam a cela de manhatilde cedo no iniacutecio e no fim da tarde e agrave noite

Segundo a narrativa dos presos no cafeacute da manhatilde costumavam trazer um patildeo com

195

pasta de amendoim e um cafeacute com leite na caneca para cada preso No almoccedilo uma

bandeja de alumiacutenio com um prato que normalmente continha repolho arroz angu e

algumas vezes um pedaccedilo de carne Durante a tarde deixavam um bule de mate com

um pedaccedilo de patildeo na cela e no fim do dia repetiam para o jantar a mesma comida do

almoccedilo

As comidas servidas em 1970 aos prisioneiros do DOI-CODIRJ satildeo mais alguns

exemplos de detalhes do cotidiano que soacute podem ser abordados por meio da memoacuteria de

quem viveu aquele passado Diante disso eacute interessante perceber aspectos que

justificam o fato dessas refeiccedilotildees terem marcado as memoacuterias dos prisioneiros a ponto

de nelas sobreviverem por cerca de trecircs deacutecadas

[] a gente ateacute brincava que eles deviam ter uma plantaccedilatildeo de repolho ali

porque era repolho todo dia repolho cru repolho assado mas na hora do

almoccedilo normalmente vinha nessa bandeja de alumiacutenio e era repolho um

pouco de arroz feijatildeo e agraves vezes um pedaccedilo de carne era uma comida bem

horrorosa [] (Pandolfi 5 fev 2003)

[] A comida era peacutessima era aquela comida do rancho parecia uma

lavagem de porco uma coisa horrorosa [] Eu fiquei com a pele toda

lsquofodidarsquo porque a uacutenica coisa que eu conseguia comer era o angu []

(Coimbra 30 nov 2004)

Portanto o conteuacutedo das refeiccedilotildees do DOI-CODIRJ aleacutem de ter ficado marcado

na memoacuteria dos prisioneiros pelo aspecto sensorial ou seja pelo gosto e apresentaccedilatildeo

ruins permaneceu tambeacutem pela relaccedilatildeo com a vaidade feminina e pelo fato de remeter a

momentos que foram compartilhados O angu marcou Ceciacutelia por ter feito mal a sua

pele jaacute que como eacute uma comida gordurosa lhe causou espinhas abalando ainda mais a

sua aparecircncia fiacutesica jaacute degrada por aquele cotidiano prisional O repolho por sua vez

deixou marcas na memoacuteria de Dulce por ser motivo de deboche entre as presas pois sua

196

presenccedila recorrente nos pratos ocasionava uma espeacutecie de piada entre elas e trazia um

pouco de descontraccedilatildeo

Outro aspecto do cotidiano do DOI-CODIRJ de 1970 tambeacutem alcanccedilado por

meio dos detalhes trazidos pelas memoacuterias de ex-prisioneiros satildeo as roupas Como natildeo

existiam uniformes institucionais na maior parte do tempo as roupas eram as mesmas

que eles vestiam no dia em que entraram no 1ordm BPE Dessa forma quando jaacute estavam

em celas coletivas os presos muitas vezes lavavam-nas e entatildeo voltavam a vestiacute-las

Depois de algum tempo afinal as famiacutelias acabavam descobrindo onde eles estavam

presos e algumas roupas eram deixadas no Palaacutecio Duque de Caxias antigo preacutedio do

Ministeacuterio do Exeacutercito no Centro da cidade do Rio de Janeiro para serem enviadas e

entregues no 1ordm BPE aos prisioneiros

No entanto ateacute isso chegar a acontecer demorava pois fazia parte da seguranccedila

institucional tentar manter num primeiro momento sigilo sobre seus presos Assim

Ceciacutelia presa em agosto de 1970 lembra que por ter sentido muito frio durante o seu

primeiro mecircs no DOI-CODIRJ ela e suas companheiras de cela costumavam

improvisar formas de protegerem os peacutes

[] a minha matildee ia ateacute o Ministeacuterio do Exeacutercito e ela dizia ldquo- Minha filha

estaacute laacute na PErdquo Aiacute quase um mecircs depois a minha matildee conseguiu mandar

roupa para mim Ateacute entatildeo minha filha era um loucura neacute A gente fedia

sabe A gente tomava banho de chuveiro e botava a mesma roupa a gente

lavava a roupa e era mecircs de agosto e ainda estava frio Era um frio que a

gente sentia que a gente enrolava jornal nos peacutes porque natildeo tinha nenhuma

coisa nada Era no colchatildeo puro que a gente dormia (Coimbra 30 nov

2004)

Quando as famiacutelias conseguiam descobrir onde estavam enviavam aleacutem de

roupas alguns mantimentos como frutas por exemplo Essas vinham muitas vezes

197

embrulhadas em jornais velhos que serviam para alguns como proteccedilatildeo para o corpo e

para outros como distraccedilatildeo conforme pode-se constatar na narrativa de Antocircnio ao

lembrar que ele e seus companheiros de cela passavam o tempo lendo as notiacutecias velhas

contidas em tais jornais

Eu me lembro tambeacutem que quando alguns presos recebiam frutas essas

coisas embrulhadas em papel jornal jornal velho a gente lia o jornal e

ficaacutevamos um bom tempo lendo aqueles jornais com datas de um mecircs trecircs

meses atraacutes mas era sempre bom para a cabeccedila da gente ficar lendo as

notiacutecias mesmo velhas [] (Carvalho 8 fev 2003)

Como jaacute aqui ressaltado a cumplicidade que existia entre os presos do DOI-

CODIRJ ajudava a construir mecanismos que os protegiam das mais diversas

dificuldades Segundo Dulce para amenizar a escassez de roupa a que eram submetidas

num primeiro momento dentro do DOI-CODIRJ as presas do ldquocoletivo das mulheresrdquo

estabeleceram uma espeacutecie de acordo Atraveacutes dele ficou determinado que quem de laacute

saiacutesse deixaria algumas peccedilas para quem ainda ficasse tinha uma espeacutecie de rotina

entre as mulheres que quem saiacutea deixava alguma roupa laacute (Pandolfi 5 fev 2003)

Assim atraveacutes desse tipo de cumplicidade elas ajudavam a diminuir o sofrimento

diaacuterio umas das outras uma vez que as peccedilas deixadas na cela possibilitavam que as

presas conseguissem manter a higiene e amenizar a sensaccedilatildeo do frio

Percebe-se portanto que de fato o dia-a-dia do DOI-CODIRJ de 1970 era

atiacutepico pois este natildeo era um presiacutedio e sim um oacutergatildeo de repressatildeo poliacutetica Assim uma

das poucas semelhanccedilas com a rotina de um presiacutedio comum era basicamente a privaccedilatildeo

da liberdade Poreacutem apesar de ofuscado pela tortura e pelo pavor ali existia um

cotidiano que abarcava outros aspectos muito interessantes Afinal estes satildeo capazes de

198

muito esclarecer sobre o funcionamento praacutetico desse importante oacutergatildeo de repressatildeo da

ditadura militar brasileira e tambeacutem sobre diversos tipos de reaccedilotildees e relaccedilotildees humanas

do passado e do presente

199

Conclusatildeo

Quando o muro separa uma ponte une

Se a vinganccedila encara o remorso pune

Vocecirc vem me agarra algueacutem vem me solta

Vocecirc vai na marra ela um dia volta

E se a forccedila eacute tua ela um dia eacute nossa

Olha o muro olha a ponte

Olha o dia de ontem chegando

Que medo vocecirc tem de noacutes

Olha aiacute

Vocecirc corta um verso eu escrevo outro

Vocecirc me prende vivo eu escapo morto

De repente olha eu de novo

Perturbando a paz exigindo o troco

Vamos por aiacute eu e meu cachorro

Olha um verso olha o outro

Olha o velho olha o moccedilo chegando

Que medo vocecirc tem de noacutes

Olha aiacute

O muro caiu olha a ponte

Da liberdade guardiatilde

O braccedilo do Cristo horizonte

Abraccedila o dia de amanhatilde

Olha aiacute

Mauriacutecio Tapajoacutes amp Paulo Ceacutesar Pinheiro

(Pesadelo 1972)

200

Diante do exposto ao longo desta dissertaccedilatildeo conclui-se que a formulaccedilatildeo da

Doutrina de Seguranccedila Nacional feita pela ESG em colaboraccedilatildeo com o IPES e o IBAD

cerca de vinte anos antes do surgimento dos DOI-CODI tinha por base uma teoria de

guerra que nortearia a atuaccedilatildeo repressora desses oacutergatildeos Essa teoria interpretava os

movimentos de oposiccedilatildeo que vinham crescendo desde o iniacutecio dos anos 1960 como uma

espeacutecie de guerra revolucionaacuteria Todos os cidadatildeos brasileiros passavam entatildeo a ser

encarados como suspeitos e foi esta percepccedilatildeo que estimulou o governo militar a

planejar a Seguranccedila Nacional e por conseguinte criar um centralizado e articulado

aparato de informaccedilotildees internas junto a um eficiente oacutergatildeo repressivo de controle

armado os DOI-CODI

Aleacutem disso constatou-se que a consolidaccedilatildeo dos DOI-CODI por todas as Regiotildees

Militares do paiacutes substanciou-se tambeacutem atraveacutes da alta legalidade autoritaacuteria e das

medidas tomadas pelo governo para conter as cizacircnias militares Afinal o governo

ditatorial brasileiro na medida em que arbitrou leis a fim de legalizar o seu poder

poliacutetico e suprimir direitos antes garantidos agrave populaccedilatildeo construiu uma sustentaccedilatildeo

juriacutedica necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um aparato de seguranccedila cada vez mais forte e

centralizado Grande parte dessas leis autoritaacuterias foi usada como artifiacutecio para acalmar

os acircnimos na caserna responsaacuteveis por importantes conflitos internos que ameaccedilavam a

uniatildeo militar as chamadas cizacircnias militares As leis arbitraacuterias serviam entatildeo tanto

para conter a oposiccedilatildeo poliacutetica quanto para ceder agraves reivindicaccedilotildees por poder vindas da

caserna Completava-se dessa forma um cenaacuterio legal capaz de suportar um organismo

de repressatildeo onde os militares de meacutedias e baixas patentes trabalhariam com autonomia

uma das bases para a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

Diante disso viu-se tambeacutem que natildeo foi agrave toa que a estrutura e o funcionamento

do SISSEGIN e dos seus oacutergatildeos foram instituiacutedos e regulamentados por meio de

201

decretos sigilosos o que incluiu a experiecircncia da Oban criada em Satildeo Paulo em

meados de 1969 e no ano seguinte a institucionalizaccedilatildeo dos DOI-CODI por todo o

paiacutes Afinal a justificativa para esse sigilo estava justamente na maior mobilidade e

autonomia de accedilatildeo que traria para a atuaccedilatildeo repressora desses organismos pois em

segredo podiam agir sem grandes limitaccedilotildees natildeo esbarrando em questotildees externas agraves

decisotildees militares tal como o respeito aos direitos humanos

Os DOI-CODI destacavam-se principalmente pela independecircncia financeira e pela

centralizaccedilatildeo hieraacuterquica que os constituiacuteam essenciais para a alta eficiecircncia de suas

investigaccedilotildees e accedilotildees Tais atributos evitavam que suas operaccedilotildees fossem suscetiacuteveis agrave

duplicidade de tarefas a competiccedilotildees e a conflitos de interesses maximizando os seus

resultados Eram entatildeo organismos de excelecircncia a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo

Entretanto essa sofisticaccedilatildeo tambeacutem vinha do distanciamento mantido entre os

militares do governo e os que agiam nesses oacutergatildeos jaacute que a ditadura ao mesmo tempo

em que sancionava a tortura nessa instituiccedilatildeo estrategicamente negava a sua existecircncia

perante a sociedade isentando governo do paiacutes de qualquer ligaccedilatildeo com ela Em

complemento a essa ideia o sistema funcional dos DOI responsaacuteveis por accedilotildees que

englobavam as prisotildees e os interrogatoacuterios dos presos poliacuteticos apresentava-se

complexo e informal Dessa forma as brechas para que a aparente falta de controle

fosse exercida eram amplas a fim de que meacutetodos violentos ilegais tivessem ali uma

legitimidade excepcional Justifica-se assim como a versatildeo oficial dos militares ainda

possa ser a de que a tortura jamais resultou de qualquer ordem ou orientaccedilatildeo superior

Evidenciou-se poreacutem a incoerecircncia desta versatildeo jaacute que ficou claro que em todos

os organismos militares nos DOI inclusive existiam uma forte hierarquia a ser

cumprida Mesmo com a estrutura complexa ali existente qualquer accedilatildeo deveria ser

remetida a um superior logo a questatildeo da responsabilidade sempre poderia ser

202

resgatada Percebeu-se que em geral apesar de velada a tortura era do conhecimento

de toda a hierarquia militar inclusive dos generais agrave frente do governo

Durante todo o trabalho a intervenccedilatildeo do presente (2002-2004) sobre as

memoacuterias do passado (1970) foi conferida nas narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos

entrevistados Percebeu-se que o contexto poliacutetico e social vivido no presente e o

momento da vida pessoal de cada um tiveram uma contribuiccedilatildeo importante na forma

como os ex-presos construiacuteram suas memoacuterias Aleacutem disso a forma como a rede de

entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que as entrevistas foram realizadas

tambeacutem concorreram para essa intervenccedilatildeo no relato que fizeram sobre o passado

Enfim um dos principais elementos para a anaacutelise criacutetica exercida aqui sobre essas

memoacuterias foi sem duacutevida o reconhecimento dessa influecircncia do presente sobre o

passado

A trajetoacuteria prisional dos entrevistados os grupos oposicionistas que integravam

as accedilotildees de que participaram o momento da prisatildeo o tempo que permaneceram presos

e as funccedilotildees que exerciam no presente foram aspectos aqui ressaltados por mostrarem

um pouco da histoacuteria de vida e por meio desta a personalidade ou seja as

idiossincrasias de cada um deles Dessa forma foi possiacutevel aproximar-se do aspecto

individual de suas memoacuterias uacutenico a cada ser entendendo um pouco mais as bases de

suas construccedilotildees

Tornou-se assim viaacutevel analisar essas memoacuterias e colocaacute-las em diaacutelogo com o

conteuacutedo levantado a partir da anaacutelise historiograacutefica e da monografia sobre o DOI

escrita pelo coronel Pereira em 1978 possibilitando uma caracterizaccedilatildeo do cotidiano

prisional vivido pelos presos do DOI-CODIRJ em 1970 O trabalho organizacional dos

DOI-CODIRJ foi visto portanto de forma praacutetica As funccedilotildees de cada setor e seccedilatildeo

teorizadas principalmente por meio da monografia do coronel foram analisadas a partir

203

do acircngulo dos prisioneiros o que viabilizou a percepccedilatildeo de detalhes que constituiacuteam a

rotina daquela instituiccedilatildeo

Ficou claro que a violecircncia era a principal forma de extraccedilatildeo de informaccedilotildees e o

elemento-chave para a eficiecircncia conferida pela instituiccedilatildeo com relaccedilatildeo ao combate aos

opositores poliacuteticos da eacutepoca A tortura e o medo dela ocupavam um espaccedilo

significativo no cotidiano ali impetrado aos prisioneiros uma vez que eles estavam no

DOI-CODIRJ para serem a ela submetidos de forma a fornecerem mais facilmente

informaccedilotildees que levassem os agentes dos DOI a outros suspeitos Poreacutem verificou-se

que a tortura natildeo era a uacutenica face do cotidiano do DOI-CODIRJ

Afinal este trabalho mostrou outros aspectos que constituiacuteam a rotina dos presos

dentro desse oacutergatildeo que ateacute entatildeo natildeo havia sido alcanccedilada pela historiografia Percebeu-

se aqui outros elementos que apesar de pouco destacados pelas memoacuterias dos

entrevistados muito tecircm a dizer sobre aquele cotidiano as fases prisionais as refeiccedilotildees

as roupas as formas de resistecircncia o conviacutevio ente prisioneiros e ateacute mesmo algumas

accedilotildees solidaacuterias efetuadas por soldados em benefiacutecio dos presos poliacuteticos

Constatou-se como a memoacuteria pode enriquecer a percepccedilatildeo que se tem sobre um

passado revelando faces natildeo evidenciadas em documentos oficiais e tambeacutem como eacute

importante para levar ateacute o presente um passado doloroso mas que deve ser encarado a

fim de ser perdoado e ultrapassado Uma movimentaccedilatildeo nesse sentido vem acontecendo

no Brasil com as Caravanas da Anistia e principalmente com a recente aprovaccedilatildeo da

Comissatildeo da Verdade conforme pontuado anteriormente

A atualidade dessas iniciativas inclusive estimulou esta pesquisa impulsionada

pela curiosidade sobre as memoacuterias do passado vivido nos ldquoporotildees da ditadurardquo Logo

o tema da presente dissertaccedilatildeo foi pautado pela crenccedila na necessidade de uma ampla

revelaccedilatildeo sobre o que ocorreu na eacutepoca de forma a contribuir para que a reconciliaccedilatildeo

204

do presente com o passado seja um dia alcanccedilada uma vez que defende-se aqui tal

como Paul Ricoeur (2008 507) que eacute no caminho da criacutetica histoacuterica que a memoacuteria

encontra o seu sentido de justiccedila Dessa forma tem-se o cidadatildeo como destinataacuterio do

texto histoacuterico cabendo a ele tornar a discussatildeo puacuteblica fazendo um balanccedilo entre

histoacuteria e memoacuteria a fim de que se perceba o sofrimento do outro e daqueles que

continuam a sofrer pelas matildeos do mesmo mal repressor do passado A partir disso a

reconciliaccedilatildeo entre o passado e presente se tornaraacute efetiva contribuindo para que no

futuro a democracia esteja plenamente consolidada

205

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httpalerjln1alerjrjgovbrdecestnsfca382ee09e6ab7f803256a11007e6769c3754bb8

c1b9e42b03256c52005d3d1bOpenDocument

BRASIL Decreto-lei Nordm898 de 29 de setembro de 1969 Define os crimes contra a

seguranccedila nacional a ordem poliacutetica e social estabelece seu processo e julgamento e daacute

outras providecircncias Brasiacutelia Ministeacuterio da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica

[acesso em 12 jan 2012] Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03decreto-

lei1965-1988Del0898htm

BRASIL Decreto-lei Nordm1002 de 21 de outubro de 1969 Coacutedigo de Processo Penal

Militar Brasiacutelia Ministeacuterio da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em 18

dez 2011]

Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03decreto-leiDel1002htm

BRASIL Lei Nordm6683 de 28 de agosto de 1979 Concede anistia e daacute outras

providecircncias Brasiacutelia Ministeacuterio da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em

05 fev 2012] Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL6683htm

214

BRASIL Lei Nordm9140 de 04 de novembro de 1995 Reconhece como mortas pessoas

desaparecidas em razatildeo de participaccedilatildeo ou acusaccedilatildeo de participaccedilatildeo em atividades

poliacuteticas no periacuteodo de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 e daacute outras

providecircncias Brasiacutelia Ministeacuterio da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em

13 nov 2011] Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9140htm

BRASIL Lei Nordm10559 de 13 de novembro de 2002 Regulamenta o art 8 ordm do Ato das

Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias e daacute outras providecircncias Brasiacutelia Ministeacuterio

da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em 13 nov 2011]

Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leis2002L10559htm

BRASIL Lei Nordm12528 de 18 de novembro de 2011 Cria a Comissatildeo Nacional da

Verdade no acircmbito da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica Brasiacutelia Ministeacuterio da

Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em 27 jan 2012] Disponiacutevel em

httpwwwplanaltogovbrccivil_03_Ato2011-20142011LeiL12528htm

DECLARACcedilAtildeO Universal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948

Brasiacutelia Representaccedilatildeo da UNESCO no Brasil 1998 [acesso em 15 jun 2011]

Disponiacutevel em httpunesdocunescoorgimages0013001394139423porpdf

ESCOLA de Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) Rio de Janeiro Divisatildeo

de Tecnologia da Informaccedilatildeo 2011 [acesso em 29 jan 2012]

Disponiacutevel em httpwwwecemeensinoebbreceme

GRUPO Tortura Nunca Mais Rio de Janeiro GTNM 2008 [acesso em 07 ago 2009]

Disponiacutevel em httpwwwtorturanuncamais-rjorgbr

HOSPITAL Central do Exeacutercito Rio de Janeiro Seccedilatildeo de Informaacutetica do Hospital

Central do Exeacutercito sd [acesso em 28 jan 2012]

Disponiacutevel em httpwwwhceebmilbr

JOFFILY Mariana Luzes e sombras da memoacuteria nacional os 40 anos da Oban In

Caros Amigos [perioacutedico na internet] Satildeo Paulo 14 set 2009 [acesso em 04 maio

2011]

Disponiacutevel em httpcarosamigosterracombrindex_sitephppag=materiaampid=129

MEMORIAL da Resistecircncia de Satildeo Paulo Satildeo Paulo Secretaria da Cultura do Governo

do Estado de Satildeo Paulo sd [acesso em 27 jan 2012]

Disponiacutevel em httpwwwmemorialdaresistenciasporgbr

215

Anexo I - Glossaacuterio de Siglas

ACO ndash Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria

ADI ndash Aacutereas de Defesa Interna

ALN ndash Accedilatildeo Libertadora Nacional

APERJ ndash Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio de Janeiro

1degBPE ndash 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito

Condi ndash Conselho de Defesa Interna

CENIMAR ndash Centro de Informaccedilotildees da Marinha

CEP ndash Centro de Estudos de Pessoal

CGI ndash Comissatildeo Geral de Investigaccedilotildees

CIA ndash Central Intelligence Agency

CIE ndash Centro de Informaccedilotildees do Exeacutercito

CISA ndash Centro de Informaccedilotildees de Seguranccedila da Aeronaacuteutica

CNBB ndash Conferecircncia Nacional dos Bispos do Brasil

CONDI ndash Conselhos de Defesa Interna

CPDOC ndash Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil

CSN ndash Conselho de Seguranccedila Nacional

DCE ndash Diretoacuterio Central dos Estudantes

DEOPS ndash Departamento de Ordem e Poliacutetica Social de Satildeo Paulo

DGPC ndash Departamento Geral de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro

DI-GB ndash Dissidecircncia Comunista da Guanabara

DOI-CODI ndash Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees ndash Centro de Operaccedilotildees de

Defesa Interna

216

DOPS ndash Departamento de Ordem Poliacutetica e Social

DSN ndash Doutrina de Seguranccedila Nacional

ECEME ndash Escola de Comando e Estado Maior do Exeacutercito

ESG ndash Escola Superior de Guerra

EMFA ndash Estado Maior das Forccedilas Armadas

EsNI ndash Escola Nacional de Informaccedilotildees

Fafich ndash Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas de Belo Horizonte

FUEC ndash Frente Unida dos Estudantes do Calabouccedilo

FGV ndash Fundaccedilatildeo Getuacutelio Vargas

GTNMRJ ndash Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro

HCE ndash Hospital Central do Exeacutercito

IBRADES ndash Instituto Brasileiro de Estudos Sociais

IFCS ndash Instituto de Filosofia e Ciecircncias Sociais

IHTP ndash Instituto de Histoacuteria do Tempo Presente

IPCM ndash Instituto Penal Cacircndido Mendes

IPM ndash Inqueacuterito Policial Militar

JOC ndash Juventude Operaacuteria Catoacutelica

LOC ndash Liga Operaacuteria Catoacutelica

MDB ndash Movimento Democraacutetico Brasileiro

MR-8 ndash Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro

MTC ndash Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos

N-SISA ndash Nuacutecleo do Serviccedilo de Informaccedilotildees de Seguranccedila da Aeronaacuteutica

Oban ndash Operaccedilatildeo Bandeirantes

OLAS ndash Organizaccedilatildeo Latino-Americana de Solidariedade

217

PCB ndash Partido Comunista Brasileiro

PC do B ndash Partido Comunista do Brasil

PCBR ndash Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio

PT ndash Partido dos Trabalhadores

SADI - Sub-Aacutereas de Defesa Interna

SFICI ndash Serviccedilo Federal de Informaccedilotildees e Contra-Informaccedilotildees

SIM ndash Serviccedilo de Informaccedilotildees da Marinha

SNI ndash Serviccedilo Nacional de Informaccedilotildees

SISNI ndash Sistema Nacional de Informaccedilotildees

SISSEGIN ndash Sistema de Seguranccedila Interna

UFF ndash Universidade Federal Fluminense

UFRJ ndash Universidade Federal do Rio de Janeiro

UNE - Uniatildeo Nacional dos Estudantes

UNIRIO ndash Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

ZDI ndash Zona de Defesa Interna

218

Anexo II - A Hierarquia do Exeacutercito Brasileiro53

Ciacuterculos

Hieraacuterquicos54

Hierarquizaccedilatildeo Patentes do Exeacutercito

Ciacuterculo de oficiais

Ciacuterculo de oficiais-generais

Marechal

General de Exeacutercito

General de divisatildeo

General de brigada

Ciacuterculo de oficiais

superiores Coronel

Tenente-coronel

Major

Ciacuterculo de oficiais intermediaacuterios Capitatildeo

Ciacuterculo de oficiais

subalternos Primeiro- tenente

Segundo- tenente

Ciacuterculo de praccedilas

Ciacuterculo de suboficiais subtenentes e

sargentos

Subtenente

Primeiro-sargento

Segundo-sargento

Terceiro-sargento

Ciacuterculo de cabos e soldados

Cabo e taifeiro-mor

Soldado e taifeiro-de

primeira classe

Soldado-recruta e taifeiro-

de-segunda-classe

Ciacuterculo de praccedilas

especiais

Frequentam o ciacuterculo de oficiais

subalternos Aspirante-a-oficial

Excepcionalmente ou em reuniotildees sociais

tecircm acesso ao ciacuterculo de oficiais

Cadete (aluno da Academia

Militar)

Aluno da Escola

Preparatoacuteria de Cadetes do

Exeacutercito

Aluno de Oacutergatildeo de

Formaccedilatildeo da Reserva

Excepcionalmente ou em reuniotildees sociais

tecircm acesso ao ciacuterculo de suboficiais

subtenentes e sargentos

Aluno da Escola ou Centro

de Formaccedilatildeo de Sargentos

Frequentam o ciacuterculo de cabos e soldados Aluno de Oacutergatildeo de

Formaccedilatildeo de Praccedilas da

Reserva

53

LEIRNER 1997 74-75 54

Os ldquoCiacuterculos hieraacuterquicosrdquo satildeo o acircmbito de convivecircncia entre os militares da mesma categoria Esses

ldquociacuterculosrdquo satildeo incorporados a fundo na conduta militar de forma que a divisatildeo acima exposta eacute seguida

no ambiente de trabalho salas refeitoacuterios e banheiros da instituiccedilatildeo conforme demonstra Piero de

Camargo Leirner em estudo antropoloacutegico sobre a instituiccedilatildeo militar Meia Volta Volver (1997 74-76)

Page 5: O DOI-CODI carioca

5

Agradecimentos

Agradeccedilo primeiramente agrave minha orientadora Profordf Drordf Marly Silva da Motta

por sua orientaccedilatildeo zelosa pelo apoio e pelos inuacutemeros ensinamentos Com sua ajuda

consegui ultrapassar muitas dificuldades e penetrar com seguranccedila no universo dessa

pesquisa

Ao Professor Ameacuterico Freire de quem tive o prazer de ser aluna durante o

mestrado agradeccedilo pelas aulas pela bibliografia sobre o periacuteodo militar que muito me

ajudou na elaboraccedilatildeo dessa anaacutelise pelas criacuteticas construtivas elaboradas durante o

exame de qualificaccedilatildeo e pela participaccedilatildeo na banca examinadora dessa dissertaccedilatildeo

Ao Professor Luiacutes Reznik agradeccedilo por ter integrado a banca do exame de

qualificaccedilatildeo fazer parte da presente banca examinadora e tambeacutem pelas valiosas

sugestotildees indicaccedilotildees bibliograacuteficas e comentaacuterios incorporados ao estudo e agrave redaccedilatildeo

final desse trabalho

Agrave Professora Dulce Pandolfi agradeccedilo por sua generosidade em aceitar ser de

certa forma sujeito e objeto desta pesquisa desde seu nascimento durante a minha

graduaccedilatildeo em Histoacuteria pela UNIRIO quando permitiu que eu lhe entrevistasse e que

seu depoimento servisse de fonte para minha monografia de fim de curso cuja banca

examinadora contou com sua participaccedilatildeo Tambeacutem lhe agradeccedilo por durante o

mestrado continuar acompanhando de perto esta pesquisa participando da banca do

exame de qualificaccedilatildeo quando trouxe muitas consideraccedilotildees e sugestotildees produtivas a

este trabalho e da banca examinadora final desta dissertaccedilatildeo

Agrave Professora Icleacuteia Thiesen agradeccedilo pela credibilidade e incentivo que vem

injetando na minha face de pesquisadora desde o tempo em que fui sua aluna ainda

durante a graduaccedilatildeo

Aos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados Antocircnio Leite de Carvalho Dulce

Pandolfi Fernando Palha Freire Padre Maacuterio Prigol Ana Batista e Ceciacutelia Coimbra

agradeccedilo por me confiarem suas narrativas e me deixarem penetrar em parte de suas

memoacuterias

6

Agrave Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional onde muito me orgulho de trabalhar agradeccedilo

por incentivar a minha qualificaccedilatildeo enquanto pesquisadora permitindo que eu cursasse

o mestrado e me licenciasse nos uacuteltimos meses para me dedicar a esta dissertaccedilatildeo de

corpo e alma

Ao Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNMRJ) agradeccedilo por me

autorizar a consultar o arquivo da instituiccedilatildeo e por me receber afetuosamente durante

diversas reuniotildees onde pude conhecer alguns de seus integrantes tais como Ana Batista

e Ceciacutelia Coimbra a quem tive o prazer de entrevistar

Aos amigos Joatildeo Cerineu e Alejandra Estevez agradeccedilo a contribuiccedilatildeo

fundamental que efetuaram sobre este trabalho sendo os responsaacuteveis por me apresentar

aos ex-prisioneiros poliacuteticos Antocircnio e Padre Maacuterio

Agradeccedilo aos meus irmatildeos Rodrigo Renata e Melissa ao Rodrigo por despertar

em mim a vontade e a coragem de seguir a profissatildeo de historiadora agrave Renata por me

apoiar e ouvir sobre minha pesquisa atentamente mesmo quando eu repetia as mesmas

histoacuterias diversas vezes e principalmente agrave Melissa que muito me ajudou na

composiccedilatildeo do ldquoabstractrdquo desse trabalho com o seu inglecircs simplesmente perfeito

Aos amigos queridos que a Biblioteca Nacional me deu de presente

companheiros de jornada que me fazem melhorar a cada dia como profissional e que me

acompanharam durante todo o processo do mestrado me apoiando no que foi preciso e

me ajudando a superar os obstaacuteculos do dia-a-dia Agradeccedilo especialmente agrave Lia Jordatildeo

pelo companheirismo diaacuterio ao Francisco Madureira pelo auxiacutelio na ediccedilatildeo final dessa

dissertaccedilatildeo e agrave Regina Santiago pela amizade e disposiccedilatildeo sem igual em ler

minuciosamente este trabalho apontando sugestotildees que indiscutivelmente tornaram o

texto mais claro

Agraves amigas Manuela Joana e Letiacutecia agradeccedilo por estarem sempre comigo nas

alegrias e nas tristezas compartilhando conquistas e derrotas desde os tempos em que

juntas frequentaacutevamos as festas juninas da PE

7

Aos amigos do curso de Histoacuteria da UNIRIO agradeccedilo pelas trocas intelectuais

pelos incontaacuteveis momentos divertidos pela camaradagem e por essa amizade de dez

anos de histoacuteria

Aos meus pais sou e serei eternamente grata pelo carinho pelo apoio e por sempre

estarem ao meu lado durante todos esses anos

Aos meus sogros Eliana Lasmar e Luiz Fernando Arieira agradeccedilo por estarem

sempre por perto dispostos a estenderem a matildeo quando preciso

E por fim meus agradecimentos especiais a Raul Cordeiro meu companheiro de

todas as horas o engenheiro mais humano que eu jaacute conheci Agradeccedilo-lhe por tudo que

temos vivido juntos por nosso cantinho por nossas conversas por nosso conviacutevio de

todo dia por nosso amor pelo tanto e tatildeo pouco que enfeita cada momento da minha

vida me completa e me faz uma pessoa mais feliz

8

Tambeacutem neste lugar pode-se sobreviver e por isso eacute preciso

querer sobreviver para contar para testemunhar e que para

viver eacute importante esforccedilarmo-nos para salvar pelo menos o

esqueleto os pilares a forma da nossa civilizaccedilatildeo [hellip]

(Levi 2001 40)

9

Resumo

O objetivo dessa dissertaccedilatildeo eacute analisar a memoacuteria de seis ex-prisioneiros poliacuteticos

do Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees-Centro de Operaccedilotildees de Defesa Interna

do Rio de Janeiro (DOI-CODIRJ) entrevistados recentemente entre os anos de 2002 e

2004 sobre o cotidiano vivido nessa instituiccedilatildeo em 1970 Naquele ano dentro do

Sistema de Seguranccedila Interna (SISSEGIN) os DOI-CODI haviam sido criados e

distribuiacutedos por todas as Regiotildees Militares do paiacutes tornando-se a principal instituiccedilatildeo

de repressatildeo aos opositores poliacuteticos que optaram pela luta armada como forma de

derrotar a ditadura militar brasileira Assim as narrativas desses seis ex-prisioneiros

satildeo aleacutem de fontes essenciais o principal objeto de estudo deste trabalho Atraveacutes

delas torna-se possiacutevel acessar aspectos cruciais para a caracterizaccedilatildeo do cotidiano

vivido pelos presos em um desses oacutergatildeos ― o DOI-CODI do Rio de Janeiro ― uma

vez que esse passado se liga ao presente por meio de suas memoacuterias Diante disso a fim

de melhor entender tais memoacuterias a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI tambeacutem satildeo

aqui analisadas colocando as narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados em

diaacutelogo com uma bibliografia especialmente selecionada aleacutem de uma fonte a respeito

do DOI feita por um de seus agentes quando este oacutergatildeo ainda estava em atividade em

1978 Para que a essas memoacuterias seja aplicada uma criacutetica efetiva necessaacuteria a todo

trabalho histoacuterico o estudo se debruccedila ainda sobre as interferecircncias que o presente

exerce na construccedilatildeo que fazem com relaccedilatildeo ao passado vivido no DOI-CODIRJ com

o objetivo de esclarecer as bases sobre as quais satildeo construiacutedas cerca de trinta anos

depois

Palavras-chave Ex-prisioneiros poliacuteticos ndash Memoacuteria ndash DOI-CODI ndash Cotidiano ndash

Ditadura militar

10

Abstract

The objective of this thesis is to analyze the memory of six former political

prisoners of the Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees-Centro de Operaccedilotildees de

Defesa Interna do Rio de Janeiro or DOI-CODIRJ (Detachment of Information

Operations Center-Internal Defense Operations Center of Rio de Janeiro) recently

interviewed between 2002 and 2004 about their everyday living in that institution in

1970 At that year in the Sistema de Seguranccedila Interna or SISSEGIN (Internal Security

System) the DOI-CODI had been created and distributed by all the countryrsquos military

regions becoming the repression leading instituion of political opponents who oppted

for armed struggle as a way to defeat Brazilrsquos military dictatorship Thus these six

former prisioners narratives are not only essencial sources but the main study object of

this paper Through them it becomes possible to access crucial aspects for the

characterization of the daily lived by prisioners in one of these agencies - the DOI-

CODI in Rio de Janeiro - since this past connects to present through their memories

Therefore in order to understand such memories the training and the performance of

the DOI-CODI are also analyzed here placing the narratives of the interviewed former

political prisioners in dialogue with a specially selected bibliography and a source

about DOI made by one of its agents when that agency was still active in 1978 In

order to be applied to these memories an effective critique necessary to all historical

work the study still focuses on the interferences that the present exerts on the

construction that make in relation to the past lived in DOI-CODIRJ in order to clarify

the basis on which are built at about thirty years later

Key-Words Former political prisioners ndash Memory ndash DOICODI ndash daily Life ndash Military

dictatorship

11

Sumaacuterio

Agradecimentos 05

Resumo 09

Abstract 10

Introduccedilatildeo 13

Capiacutetulo 1 Os DOI-CODI formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo 28

1 Debate Histoacuterico 35

11 O papel da ESG para o Sistema de Seguranccedila Nacional 35

12 Os conceitos legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar 39

13 A montagem e o funcionamento do SISSEGIN 47

2 O DOI-CODI por ele mesmo 57

3 O DOI-CODI pelos prisioneiros 75

Capiacutetulo 2 Os presos poliacuteticos e suas organizaccedilotildees 85

1 A rede de entrevistas 91

11 Os sujeitos e suas trajetoacuterias 97

12 A nova esquerda brasileira 122

Capiacutetulo 3 O espaccedilo e o cotidiano do DOI-CODI carioca 136

1 O que sofre e o que resiste 137

2 Uma cartografia possiacutevel do ldquoCastelo do Terrorrdquo 142

12

3 Memoacuterias de um cotidiano 154

31 O interrogatoacuterio e a tortura 156

32 O dia-a-dia no caacutercere 184

Conclusatildeo 199

Fontes 205

1 ArquivoDocumentos Pessoais 205

2 Documentos Institucionais 205

3 Fonte Cinematograacutefica 205

4 Fontes Orais 205

5 Fontes Visuais 206

6 Perioacutedicos 206

Bibliografia 207

1 Bibliografia digital 213

Anexo I Glossaacuterio de Siglas 215

Anexo II A Hierarquia do Exeacutercito Brasileiro 218

13

Introduccedilatildeo

Tem dias que a gente se sente

Como quem partiu ou morreu

A gente estancou de repente

Ou foi o mundo entatildeo que cresceu

A gente quer ter voz ativa

No nosso destino mandar

Mas eis que chega a roda viva

E carrega o destino praacute laacute

Roda mundo roda gigante

Roda moinho roda piatildeo

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coraccedilatildeo

A gente vai contra a corrente

Ateacute natildeo poder resistir

Na volta do barco eacute que sente

O quanto deixou de cumprir

Faz tempo que a gente cultiva

A mais linda roseira que haacute

Mas eis que chega a roda viva

E carrega a roseira praacute laacute

Chico Buarque

(Roda Viva 1968)

14

Vivi bons momentos no 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito Era adolescente e os

momentos aos quais me refiro foram vividos durante o final de uma deacutecada

democraacutetica a de 1990 Mal sabia sobre a ditadura militar e muito menos que aquele

Batalhatildeo situado tatildeo proacuteximo agrave minha casa na Tijuca havia sediado um centro de

tortura O nome DOI-CODI nunca tinha ouvido falar Para mim e para todos os

adolescentes da Tijuca o 1ordm BPE era um Batalhatildeo convencional do Exeacutercito que tinha

um grande paacutetio utilizado todos os anos para a melhor festa junina da regiatildeo a ldquofesta

junina da PErdquo Logo para noacutes a principal caracteriacutestica da PE era o fato de durante os

meses de junho abrir as portas do seu paacutetio para tornaacute-lo ldquoponto de encontrordquo de muitos

jovens estudantes Quanta ironia

Jaacute no terceiro periacuteodo da faculdade de Histoacuteria da UNIRIO no primeiro semestre

de 2002 descobri o que aquele preacutedio havia sido durante a ditadura militar Soube

inclusive que ele era tombado pelo antigo Departamento Geral de Patrimocircnio Cultural

(DGPC) da Prefeitura justamente por representar a memoacuteria de muitos ex-prisioneiros

poliacuteticos que ali haviam sido torturados e mortos Fiquei perplexa Como nunca

ningueacutem havia me dito isso Como os professores de Histoacuteria da minha escola

localizada no mesmo bairro natildeo haviam destacado esse fato Por que essa parte da

Histoacuteria natildeo era amplamente divulgada Eu que sempre gostei de Histoacuteria natildeo agrave toa

escolhi fazer dela minha formaccedilatildeo e profissatildeo me senti instigada a revelar as memoacuterias

dos presos poliacuteticos que por laacute passaram A partir dessa descoberta mais do que uma

ldquonovardquo face do 1ordm BPE eu havia me deparado com outra revelaccedilatildeo o meu tema de

pesquisa

A partir de um amigo do curso de Histoacuteria no final de 2002 cheguei ao meu

primeiro entrevistado e daiacute em diante teci uma rede de entrevistas No final de 2004

havia reunido seis entrevistados trecircs homens e trecircs mulheres todos ex-prisioneiros

15

poliacuteticos que passaram pelo DOI-CODIRJ durante o mesmo ano de 1970 Essa

pesquisa resultou em minha monografia apresentada em 2005 como requisito para a

conclusatildeo do curso de Histoacuteria da UNIRIO O Castelo do terror memoacuteria e tortura no

espaccedilo prisional (1970-1974) 1

Natildeo abandonei o tema Ao contraacuterio resolvi aprofundaacute-lo no mestrado em

Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais do CPDOCFGV onde ingressei em marccedilo de 2010

Nessa dissertaccedilatildeo que representa a fase conclusiva do mestrado trabalho com os

depoimentos dos mesmos seis ex-prisioneiros do DOI-CODIRJ de 1970 colhidos entre

os anos de 2002 e 2004 Aqui o objetivo mais amplo eacute se inserir no conjunto de estudos

que reflete sobre a construccedilatildeo de uma determinada memoacuteria a respeito da ditadura

militar

Analisar a memoacuteria de ex-prisioneiros poliacuteticos a fim de entender como essas

foram construiacutedas jaacute em tempos democraacuteticos e o que trazem em benefiacutecio da

caracterizaccedilatildeo daquele passado eacute o objetivo principal desta dissertaccedilatildeo Assim sendo

alguns aspectos especiacuteficos merecem ser destacados

O primeiro deles eacute que as entrevistas foram concedidas entre os anos 2002 e 2004

ou seja o passado ditatorial foi recuperado jaacute em tempos democraacuteticos Ao mesmo

tempo considerou-se que esses depoimentos satildeo fontes essenciais para atingir o

objetivo aqui traccedilado jaacute que a metodologia de histoacuteria oral eacute a mais adequada para

analisar os aspectos subjetivos e repletos de detalhes que correspondem ao rigoroso dia-

a-dia de quem esteve preso em um organismo repressor Logo eacute faacutecil concluir que as

fontes que permitiram a elaboraccedilatildeo deste estudo natildeo poderiam ser encontradas em

documentaccedilatildeo oficial

1 O Castelo do terror memoacuteria e cotidiano de ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI carioca (1970-

1979) monografia de fim de curso de bacharelado e licenciatura plena em Histoacuteria da UNIRIO orientada

pela Profordf Drordf Icleacuteia Thiesen e apresentada em abril de 2005

16

Instituiacutedos por todo o territoacuterio brasileiro a partir de 1970 os DOI-CODI

tornaram-se referecircncia-chave na memoacuteria sobre a tortura e a repressatildeo praticada pela

ditadura militar A partir disso nota-se que o trabalho desenvolvido com as memoacuterias

de ex-prisioneiros de uma de suas sedes a do Rio de Janeiro eacute uma das escassas

possibilidades existentes de se acessar esse passado ainda tatildeo presente

Esse objeto de estudo representa um grande desafio Afinal estaacute inserido entre

duas temporalidades recentes ndash quando a experiecircncia prisional foi efetivamente vivida

em 1970 e quando ela foi narrada pelos entatildeo ex-prisioneiros poliacuteticos entre 2002 e

2004 Por isso mesmo lanccedilou-se matildeo do aparato teoacuterico do que se convencionou

chamar de histoacuteria do tempo presente A partir dos anos 1980 durante o processo de

renovaccedilatildeo da histoacuteria poliacutetica a valorizaccedilatildeo de uma histoacuteria das representaccedilotildees e a

compreensatildeo dos usos poliacuteticos do passado pelo presente acarretou uma reavaliaccedilatildeo das

relaccedilotildees estabelecidas entre histoacuteria e memoacuteria que permitiu agrave historiografia fazer novas

reflexotildees sobre as relaccedilotildees entre passado e presente 2 Diante dessa percepccedilatildeo nasceu

na Franccedila o Instituto de Histoacuteria do Tempo Presente (IHTP) fundado por Franccedilois

Beacutedarida consolidando a histoacuteria do tempo presente como portadora da especificidade

de conviver com testemunhos vivos colocando sob seu foco principal os depoimentos

orais 3

A histoacuteria oral eacute portanto a metodologia principal desta dissertaccedilatildeo e por

conseguinte os depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos dela decorrentes satildeo aqui

tratados com todo o rigor necessaacuterio agrave pesquisa histoacuterica Afinal apesar de ser

demasiadamente criticada por ser uma metodologia apoiada na memoacuteria o que a

tornaria capaz de produzir representaccedilotildees e natildeo reconstituiccedilotildees do real entende-se que

2 Para mais informaccedilotildees sobre o surgimento da histoacuteria do tempo presente na historiografia ver Remoacutend

1996 e Ferreira dez 2002 314-332 3 Para mais informaccedilotildees sobre os fundamentos da histoacuteria do tempo presente ver Beacutedarida 2006 219-

229

17

as narrativas orais devem ser submetidas ao crivo da criacutetica histoacuterica tal como deve

ocorrer com todas as outras fontes Os documentos orais ou escritos tecircm uma razatildeo de

ser pois foram feitos por algueacutem com determinada visatildeo estimulado por algum motivo

eou intenccedilatildeo e por isso nunca seratildeo capazes de representar a realidade pura e absoluta

dos fatos Portanto qualquer fonte caso natildeo seja bem contextualizada e analisada

possibilita que a pesquisa caia em armadilhas e reconstrua um passado que nunca

existiu conforme bem elucidado por Michael Pollak

[] se a memoacuteria eacute socialmente construiacuteda eacute oacutebvio que toda documentaccedilatildeo

tambeacutem o eacute Para mim natildeo haacute diferenccedila fundamental entre fonte escrita e

oral A criacutetica da fonte tal como todo historiador aprende a fazer deve a

meu ver ser aplicada a fontes de tudo quanto eacute tipo (Pollak 1992 207-208)

A histoacuteria oral eacute de grande valia agrave histoacuteria do tempo presente contribuindo para

que o estudo da histoacuteria recente ndash por natureza mais inacabada do que qualquer outra

histoacuteria (Beacutedarida 2006 229) ndash seja incentivado desafiando as dificuldades

relacionadas ao acesso a fontes documentais de periacuteodos pouco distantes Aleacutem disso a

histoacuteria oral traz outro diferencial aqui destacado atraveacutes da fala torna-se possiacutevel

evidenciar uma carga subjetiva tornando acessiacutevel um tipo de informaccedilatildeo capaz de

enriquecer a anaacutelise histoacuterica e que natildeo seria obtido por meio de fontes escritas oficiais

Assim mesmo que uma experiecircncia relatada natildeo seja em si mesma um fato de certa

forma pode vir a secirc-lo jaacute que traz agrave tona o verdadeiro sentimento de algueacutem perante

uma situaccedilatildeo e esse sentimento eacute um fato que soacute pode ser alcanccedilado mediante agraves

memoacuterias trazidas pelos relatos (Portelli 1996 59-72)

Os usos que os ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ fazem de seu passado

prisional eacute um dos principais aspectos aqui ressaltados Para tanto o conceito de

presente do passado de Robert Frank (1999) eacute utilizado ao longo deste trabalho como

18

ferramenta para destacar as influecircncias que o presente de suas narrativas exerce sobre a

maneira pela qual eacute revivido o passado vivenciado no DOI-CODIRJ

Desde que haviam passado pelo DOI-CODI carioca em 1970 em plena ditadura

militar a chamada ldquolei de anistiardquo jaacute havia sido instituiacuteda no paiacutes em 1979 que entre

outras providecircncias anistiava todos quantos no periacuteodo compreendido entre 02 de

setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 cometeram crimes poliacuteticos ou conexos com

estes (lei nordm 66831979) a ditadura militar havia terminado com a eleiccedilatildeo indireta de

um presidente civil em 1985 a Assembleia Nacional Constituinte havia sido instalada

em 1987 e a Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil a chamada ldquoconstituiccedilatildeo

cidadatilderdquo havia sido promulgada no ano seguinte e finalmente o primeiro presidente

civil eleito pelo voto direto apoacutes a ditadura militar havia tomado posse em 1990

completando a transiccedilatildeo poliacutetica do paiacutes ou seja tornando a ditadura uma memoacuteria do

passado e a democracia o momento presente Democracia esta que na eacutepoca em que os

depoimentos foram concedidos apresentava ainda mais sinais de seu fortalecimento e

consolidaccedilatildeo jaacute que o Brasil havia elegido para presidente o socioacutelogo e professor da

USP Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e o ex-operaacuterio e liacuteder sindical Luiacutes

Inaacutecio Lula da Silva (2003-2010) ambos perseguidos poliacuteticos durante o periacuteodo

ditatorial

Com relaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo dos que sofreram danos decorrentes da poliacutetica repressiva

promovida pela ditadura militar desde 1995 estava em curso o reconhecimento pelo

Estado brasileiro dos mortos e desaparecidos poliacuteticos durante a ditadura e a

indenizaccedilatildeo as suas famiacutelias (lei nordm 914095) Aleacutem disso a reparaccedilatildeo financeira aos

males sofridos por aqueles que ficaram presos ou foram perseguidos na eacutepoca tambeacutem

estava em voga desde 2002 (lei nordm 1055902) A demanda desta lei principalmente no

caso daqueles que passavam pelo processo de solicitaccedilatildeo eacute um elemento a ser levado

19

em conta na maneira pela qual os entrevistados construiacuteram suas narrativas Afinal o

procedimento necessaacuterio agrave concessatildeo da reparaccedilatildeo incluiacutea a construccedilatildeo de um memorial

sobre as mazelas a que os requerentes haviam sido submetidos pelo Estado durante a

ditadura militar

Dessa forma as narrativas significavam tambeacutem para os ex-prisioneiros poliacuteticos

um meio de conseguirem apoio da sociedade em favor da ampliaccedilatildeo desse

reconhecimento iniciado pelo Estado brasileiro Atraveacutes de suas narrativas poderiam

contribuir para que suas memoacuterias fossem encampadas pela histoacuteria Logo pode-se

dizer que no sentido atribuiacutedo por Michael Pollak (1992) esses depoimentos foram

concedidos sob o horizonte de contribuir com o trabalho de enquadramento da

memoacuteria nacional sobre a ditadura militar brasileira jaacute que esta ateacute hoje natildeo estaacute

consolidada

Finalmente verifica-se que ainda ocorre uma disputa pela memoacuteria da ditadura

militar onde de um lado estatildeo os que sofreram o peso da matildeo forte da ditadura e de

outro os militares que argumentam que os ldquoanos de chumbordquo devem ser relegados ao

passado Como exemplo a declaraccedilatildeo dada em outubro de 2004 ao jornal O Globo por

um representante do Exeacutercito em resposta agrave publicaccedilatildeo de supostas fotos pelas quais o

jornalista Vladimir Herzog4 aparece sendo humilhado na prisatildeo

As medidas tomadas pelas forccedilas legais foram uma legiacutetima resposta agrave

violecircncia dos que recusaram o diaacutelogo optaram pelo radicalismo e pela

ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e de desencadear accedilotildees

criminosas [] sentiu-se a necessidade da criaccedilatildeo de uma estrutura com

vistas a apoiar em operaccedilatildeo e inteligecircncia as atividades necessaacuterias para

desestruturar os movimentos radicais e ilegais [] Mesmo sem qualquer

mudanccedila de posicionamento e de convicccedilotildees em relaccedilatildeo ao que aconteceu

4 Vladimir Herzog era integrante do PCB e diretor da TV Cultura quando foi preso em outubro de 1975

no DOI-CODISP onde dias depois foi morto sob torturas Para mais informaccedilotildees sobre o caso Vladimir

Herzog e seus sucessivos encadeamentos ver Moraes 2006

20

naquele periacuteodo histoacuterico considera-se accedilatildeo pequena reavivar revanchismos

ou estimular discussotildees esteacutereis sobre conjunturas passadas que a nada

conduzem (Camarotti 19 out 2004 12)

Essa disputa travada entre a lembranccedila e o esquecimento pode ser notada atraveacutes

da batalha em torno do preacutedio que serviu de sede ao DOI-CODIRJ o 1ordm BPE Essa foi

iniciada nos primeiros anos da deacutecada de 1990 por meio de uma tentativa do Exeacutercito

de vender o edifiacutecio Sabendo da situaccedilatildeo um conjunto de moradores dos arredores

buscou impedir a venda solicitando o tombamento de todo o espaccedilo ocupado pelo

quartel agrave Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro alegando a sua importacircncia para a

memoacuteria poliacutetica do paiacutes Essa atitude eacute evidenciada em um manifesto contendo 236

assinaturas em defesa da preservaccedilatildeo do preacutedio que serviu como documento de

abertura para o processo de tombamento do edifiacutecio na Subsecretaria de Patrimocircnio

Cultural da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro

O Exeacutercito brasileiro alegando falta de recursos para seu programa de

construccedilatildeo de quarteacuteis em outros estados pretende vender o imoacutevel onde

estaacute o 1ordm BPE Trata-se de um imoacutevel altamente valorizado pela ampla infra-

estrutura urbana [] Acontece que o valor que o Exeacutercito quer faturar foi

criado a partir de obras e investimentos custeados com os impostos e taxas

que pagamos todos noacutes haacute mais de um seacuteculo O Exeacutercito natildeo contribuiu

em nada para isso e agora quer se apropriar desse valor para investir sabe-se

laacute aonde [] consideramos que o preacutedio do Batalhatildeo da PE estaacute

indissoluvelmente cravado na histoacuteria nas tradiccedilotildees na esteacutetica e na

paisagem local [] Sabemos que o Batalhatildeo da PE foi sede do DOI-CODI

na eacutepoca da ditadura militar e que ali estiveram presos e foram torturados

muitos companheiros nossos tendo inclusive alguns sido dados como

ldquodesaparecidosrdquo Tambeacutem por esta razatildeo o preacutedio estaacute ligado agrave memoacuteria

poliacutetica desse paiacutes [] Queremos na aacuterea um centro cultural com teatro e

museu agrave memoacuteria da luta pela liberdade com parque e jardins Esses satildeo os

21

anseios da comunidade e natildeo outrosrdquo (Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural

da Prefeitura do Rio de Janeiro 1992) 5

Aleacutem desse documento outras solicitaccedilotildees de preservaccedilatildeo do preacutedio foram

enviadas agrave Cacircmara Municipal por Associaccedilotildees de Moradores da Tijuca e bairros

vizinhos Enfim em 29 de marccedilo de 1993 no primeiro mandato do entatildeo prefeito Ceacutesar

Maia o processo de tombamento do 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito foi finalizado

No entanto a ideia de tiraacute-lo do Exeacutercito a fim de tornar o espaccedilo um centro cultural

que contivesse um museu da memoacuteria da luta pela liberdade natildeo se concretizou pois

apoacutes o tombamento o Exeacutercito natildeo deixou o local onde permanece ateacute os dias atuais

sinalizando que natildeo tem interesse em que o edifiacutecio se torne efetivamente um lugar de

memoacuteria tal como o conceito criado por Pierre Nora (1993)

No preacutedio do 1ordm BPE se encontram os trecircs sentidos atribuiacutedos por Nora como

caracteriacutesticos a um lugar de memoacuteria o material o simboacutelico e o funcional (Nora

1993 21) O sentido material no caso eacute o proacuteprio espaccedilo fiacutesico que ainda se conserva

no mesmo local sem grandes intervenccedilotildees o simboacutelico eacute o que o espaccedilo representa para

uma parte da sociedade carioca como marco memorial de um passado que natildeo se deve

esquecer e o funcional eacute a memoacuteria da ditadura militar ali preservada por meio do

tombamento do edifiacutecio Logo querendo ou natildeo o preacutedio do 1ordm BPE eacute um lugar de

memoacuteria jaacute que naquele espaccedilo fiacutesico ou seja material se encontram uma funccedilatildeo e

uma representaccedilatildeo simboacutelicas ligadas agrave memoacuteria da ditadura militar

A disputa em torno dessa memoacuteria parece aos poucos caminhar cada vez mais

para o lado dos ex-presos e perseguidos poliacuteticos Recentemente aleacutem das leis

5 Este documento que deu iniacutecio ao referido processo no ano de 1992 hoje se encontra arquivado na

Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro antigo Departamento Geral de

Patrimocircnio Cultural (DGPC) junto ao restante da documentaccedilatildeo que compocircs o processo Nordm

1200433692 e originou a lei municipal nordm 1954 de 290393

22

reparadoras citadas acima um grande obstaacuteculo foi ultrapassado para que os crimes

ocorridos durante a ditadura militar sejam apurados e desvendados Em outubro de

2011 a Comissatildeo da Verdade foi enfim aprovada pelo Congresso Nacional e em

novembro do mesmo ano a lei que a institui sancionada pela Presidente Dilma

Rousseff Nesse contexto esta dissertaccedilatildeo ao estudar as memoacuterias de seis ex-

prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ relaciona-se com essa atualidade cumprindo

um papel social relevante

O ofiacutecio do historiador que pressupotildee trilhar caminhos e fazer escolhas

significando por exemplo atribuir significado agraves palavras agraves fontes e agrave bibliografia

escolhidas norteou a seleccedilatildeo e os criteacuterios aqui estipulados Conforme apontado por

Reinhart Koselleck (2006 167) eacute impossiacutevel que o ponto de vista do historiador deixe

de influenciar na representaccedilatildeo que faz dos fatos Assim cabe deixar claro que este

trabalho foi movido pelo interesse que as memoacuterias dos ex-prisioneiros poliacuteticos do

DOI-CODIRJ despertaram em mim Vale dizer que essa dissertaccedilatildeo eacute avessa ao

postulado cientiacutefico da total imparcialidade no sentido de neutralidade apartidarismo

ou abstenccedilatildeo seguindo orientaccedilatildeo de Manoel Salgado Guimaratildees (2008)

Ao historiador de ofiacutecio seria exigido cada vez mais uma escrita submetida

aos ditames dos afetos sejam eles derivados de engajamentos poliacuteticos

especiacuteficos de crenccedilas particulares ou mesmo derivados de um convite agrave

individualidade do historiador Este seria instado a mostrar-se atraveacutes de seu

texto postura bastante diversa daquela que o obrigava a esconder-se por traacutes

da pesquisa cientiacutefica (Guimaratildees 2008 17)

O primeiro capiacutetulo tem por objetivo analisar a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-

CODI que a partir de 1970 passaram a integrar o Sistema de Seguranccedila Interna

(SISSEGIN) se espalharam por todas as Regiotildees Militares do Brasil e se tornaram a

principal instituiccedilatildeo de repressatildeo aos opositores poliacuteticos da ditadura militar Afinal a

23

partir do entendimento sobre a criaccedilatildeo e o funcionamento dessa instituiccedilatildeo se pretende

criar as condiccedilotildees necessaacuterias para analisar as memoacuterias dos seis ex-prisioneiros

poliacuteticos sobre uma de suas sedes o DOI-CODIRJ uma vez que a passagem por esse

espaccedilo prisional eacute aqui entendida como um elo fundamental entre essas memoacuterias

Assim optou-se por estruturar este capiacutetulo por meio de trecircs frentes 1) o debate

historiograacutefico 2) a monografia O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI)

do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e

perspectiva escrita em 1978 pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira

3) os depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de

Janeiro concedidos entre os anos de 2002 e 2004

A primeira frente de estudo se concentra em analisar a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos

DOI-CODI agrave luz da historiografia Nela apresentam-se autores e conceitos selecionados

a fim de elucidar algumas questotildees levantadas Qual o papel da Escola Superior de

Guerra (ESG) para a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional e dos DOI-CODI

Como a praxe ditatorial em respaldar atitudes arbitraacuterias por meio de leis

compulsoriamente promulgadas ou seja atraveacutes da legalidade autoritaacuteria conforme

nomenclatura utilizada por Anthony Pereira (2010) gerou as bases para a criaccedilatildeo do

SISSEGIN e dos DOI-CODI Como os conflitos internos gerados no seio da instituiccedilatildeo

militar que ocasionaram dissidecircncias as cizacircnias militares tal como conceituado por

Joatildeo Roberto Martins Filho (1993) influenciaram os rumos da ditadura e a construccedilatildeo

de seu aparato de seguranccedila interna De que maneira a montagem e o funcionamento do

SISSEGIN e dos DOI-CODI foram organizados e constituiacutedos

Jaacute a segunda e a terceira frentes de estudo deste capiacutetulo servem para analisar as

visotildees de atores que de uma forma ou de outra viveram os DOI-CODI Na segunda a

anaacutelise sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI debruccedila-se sobre a visatildeo de um de

24

seus agentes atraveacutes da fonte O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do

Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo escrita pelo coronel de

cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira apontado por ex-prisioneiros poliacuteticos com um dos

torturadores do DOI do Rio de Janeiro Trata-se de uma monografia que o referido

coronel apresentou agrave Escola de Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) em

1978 quando os DOI-CODI apesar de atuantes jaacute sofriam certa diminuiccedilatildeo de suas

atividades O trabalho em cima desse documento se direciona no sentido de analisar

dados representativos do poder coercitivo dos DOI-CODI do iniacutecio dos anos 1970 e de

descrever os afazeres de cada uma de suas seccedilotildees a fim de contribuir para o

entendimento sobre o funcionamento interno deste oacutergatildeo Por fim na terceira frente a

anaacutelise eacute efetuada por meio das memoacuterias dos seis ex-prisioneiros entrevistados entre os

anos de 2002 e 2004 objeto central dessa dissertaccedilatildeo Dessa forma procura-se aqui

responder como eles percebiam a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo do DOI-CODIRJ e ao

entrelaccedilar aspectos de suas memoacuterias com a historiografia e a visatildeo do coronel Pereira

se aproximar do que vinha a ser o aparato de seguranccedila interna de 1970 cujos DOI-

CODI eram parte essencial

O segundo capiacutetulo eacute construiacutedo com a proposta de analisar de que forma e sob

quais influecircncias foram construiacutedas e narradas as memoacuterias dos seis ex-prisioneiros

poliacuteticos entrevistados entre os anos de 2002 e 2004 Parte-se aqui do pressuposto de

que cada uma de suas memoacuterias foi formada e influenciada por idiossincrasias relativas

a vivecircncias pessoais personalidades e outros aspectos individuais que merecem ser

analisados de forma a viabilizar o entendimento loacutegico da construccedilatildeo dessas memoacuterias

Dessa forma busca-se relativizar uma memoacuteria coletiva que aparentemente eacute comum a

todos os ex-prisioneiros poliacuteticos que passaram por algum DOI-CODI O aspecto

coletivo dessas memoacuterias no entanto natildeo eacute abandonado As memoacuterias individuais aqui

25

trabalhadas natildeo estatildeo isoladas e constantemente tomam por referecircncia pontos externos

ao sujeito se apoiando em percepccedilotildees recebidas de determinada memoacuteria coletiva de

um grupo e tambeacutem pela memoacuteria histoacuterica de seu paiacutes (Halbwachs 2004 57-59)

Diante disso a capacidade de intervenccedilatildeo que o presente exerce sobre as

memoacuterias do passado (Frank 1999) toma um aspecto central nesse momento da anaacutelise

o que torna importante considerar aqui natildeo soacute o contexto histoacuterico que rodeava os

entrevistados no momento de suas narrativas (2002-2004) como tambeacutem a forma como

a rede de entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que essas foram realizadas

Assim este segundo capiacutetulo trata primeiramente dessas condiccedilotildees que viabilizaram e

de certa forma influiacuteram nas entrevistas para em seguida analisar as trajetoacuterias de vida

de cada um dos entrevistados e por fim baseando-se em algumas referecircncias sobre o

tema traccedilar um panorama sobre as organizaccedilotildees de esquerda das quais faziam parte ou

com que se relacionavam no momento de suas prisotildees

Finalmente o terceiro capiacutetulo visa analisar efetivamente a memoacuteria como

material para a histoacuteria Assim conforme elucidado por Fernando Catroga (2010) ao

buscar entender a escrita da histoacuteria como um rito de memoacuteria no sentido de lutar

contra o esquecimento e contra a corrosatildeo do tempo tal como ocorre em um ldquogesto de

sepulturardquo a histoacuteria eacute aqui escrita de forma a contribuir para que seja possiacutevel

caracterizar um passado que natildeo mais existe o do cotidiano do DOI-CODIRJ de 1970

Antes dessa caracterizaccedilatildeo a partir dos detalhes trazidos nos depoimentos sobre o

espaccedilo interno do preacutedio do 1ordm BPE conjugados agrave observaccedilatildeo minuciosa de sua fachada

que ateacute hoje ainda permanece preservada faz-se possiacutevel uma cartografia espacial do

local que sediou o DOI-CODIRJ Afinal esse entendimento da disposiccedilatildeo espacial do

referido edifiacutecio estaacute totalmente interligado com o cotidiano ali vivido por seus

prisioneiros logo eacute aqui entendido como essencial para a presente anaacutelise Feita esta

26

cartografia parte-se entatildeo para a caracterizaccedilatildeo do cotidiano vivido no DOI-CODIRJ

de 1970 Para tanto aleacutem da anaacutelise dos seis depoimentos a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos

DOI-CODI a constituiccedilatildeo da rede de entrevistas a trajetoacuteria dos entrevistados e suas

organizaccedilotildees de esquerda estudadas nos capiacutetulos anteriores satildeo incorporadas ao

estudo A partir disso vaacuterios aspectos do cotidiano prisional satildeo abordados tais como

o interrogatoacuterio e a tortura os primeiros momentos na prisatildeo as formas de resistecircncia

os encontros e as relaccedilotildees entre os presos nas celas as formas de lidar com o tempo as

roupas e as refeiccedilotildees

No decorrer dos trecircs capiacutetulos dessa dissertaccedilatildeo faz-se constante referecircncia a

siglas relativas ao tema em abordagem e agrave hierarquia das patentes do Exeacutercito Diante

disso ao final de todo o texto apresentado na parte dos anexos encontra-se o Glossaacuterio

de siglas (Anexo I) e a tabela A hierarquia do Exeacutercito Brasileiro (Anexo II)

A partir dessa configuraccedilatildeo geral pretende-se responder agraves questotildees acima

pontuadas a fim de corroborar algumas hipoacuteteses aqui levantadas

1) A formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo do aparato de seguranccedila interna que abrangia o DOI-

CODIRJ tiveram por base as teses sobre seguranccedila nacional montadas pela

ESG anos antes da ditadura militar a promulgaccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo

arbitraacuteria condescendente a abusos de poder gerada a partir dos primeiros anos

do governo militar bem como a tentativa de solucionar impasses ocasionados

por disputas que vinham ocorrendo no seio do Exeacutercito e por conseguinte

ameaccedilavam sua unidade institucional

2) O peso do presente (200204) teve um papel decisivo na maneira pela qual os

entrevistados construiacuteram a narrativa sobre o periacuteodo (1970) em que estiveram

presos no DOI-CODIRJ

3) As organizaccedilotildees de esquerda e as accedilotildees em que os ex-presos poliacuteticos

27

estiveram envolvidos antes de suas prisotildees influenciaram diretamente no grau

de violecircncia do cotidiano a que foram submetidos no DOI-CODIRJ

28

Capiacutetulo 1 ndash Os DOI-CODI formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo

Se no teu distrito

Tem farta sessatildeo

De afogamento chicote

Garrote e punccedilatildeo

A lei tem caprichos

O que hoje eacute banal

Um dia vai dar no jornal

Se manchas as praccedilas

Com teus esquadrotildees

Sangrando ativistas

Cambistas turistas peotildees

A lei abre os olhos

A lei tem pudor

E espeta o seu proacuteprio inspetor

Chico Buarque

(Hino da repressatildeo 1985)

29

A partir de 1970 os DOI-CODI (Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildeesndash

Centro de Operaccedilotildees de Defesa Interna) parte integrante do Sistema de Seguranccedila

Interna (SISSEGIN) passariam a ser a principal instituiccedilatildeo na repressatildeo aos opositores

da ditadura militar brasileira Seis desses opositores aprisionados no DOI-CODI do Rio

de Janeiro em meio ao primeiro ano de sua existecircncia tecircm na passagem por esse espaccedilo

prisional um elo fundamental entre suas memoacuterias Como essas memoacuterias satildeo o objeto

de estudo da presente dissertaccedilatildeo para melhor entendecirc-las primeiramente torna-se de

extrema importacircncia lanccedilar um olhar mais apurado sobre como foram construiacutedos e de

que forma atuavam os DOI-CODI Logo a anaacutelise sobre a criaccedilatildeo e o funcionamento

dessa instituiccedilatildeo eacute o objetivo desse primeiro capiacutetulo

Esta anaacutelise se estrutura a partir de trecircs frentes distintas 1) o debate

historiograacutefico 2) a monografia O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI)

do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e

perspectiva escrita em 1978 pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira

3) os depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de

Janeiro concedidos entre os anos de 2002 e 2004

Como dito a primeira frente de estudo analisa a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-

CODI agrave luz da historiografia Autores e conceitos foram selecionados tendo em vista

questotildees significativas para analisar a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI 1) o papel

da ESG para a criaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional 2) os conceitos de legalidade

autoritaacuteria e cizacircnia militar 3) a montagem e o funcionamento do SISSEGIN

Para abordar o papel da ESG na construccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional

parte-se da tese de Maria Helena Moreira Alves (2005) em que a autora defende a ideia

de que a institucionalizaccedilatildeo do Estado de Seguranccedila Nacional no Brasil se fez a partir

do papel determinante da Doutrina de Seguranccedila Nacional (DSN) construiacuteda pela

30

Escola Superior de Guerra (ESG) nos anos 1950 Entende-se que este destacado papel

da ideologia esguiana para a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional da ditadura

militar brasileira teve ligaccedilatildeo direta com a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI Afinal

com a DSN surge o conceito de seguranccedila interna que serve como base para a

montagem do aparelho repressivo ditatorial no qual os DOI-CODI duas deacutecadas

depois seriam inseridos

Os conceitos de legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar satildeo aqui utilizados como

ferramentas elucidativas por auxiliarem na anaacutelise de como durante os primeiros anos

de ditadura militar a imperativa forma de legislar o paiacutes e as crises que por disputas

poliacuteticas ameaccedilaram a unidade institucional militar foram essenciais para a formaccedilatildeo e

atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

Nesse sentido a legalidade autoritaacuteria assim designada por Anthony Pereira

(2010) eacute aqui utilizada para destacar de que forma a preocupaccedilatildeo da ditadura militar

brasileira em respaldar legalmente seus atos ainda que arbitrariamente propiciou um

respaldo legal agrave repressatildeo poliacutetica e por conseguinte aos DOI-CODI Logo este

conceito serve para iluminar o entendimento de que a formaccedilatildeo de um aparato de

seguranccedila interna forte centralizado e violento como os DOI-CODI foi possibilitado

respaldado e sustentado no Brasil por um significativo amparo legal A ditadura militar

atraveacutes dessa preocupaccedilatildeo legal atiacutepica a um regime de cunho totalitaacuterio reiterava sua

imagem de regime democraacutetico de exceccedilatildeo perante a sociedade e ao mesmo tempo

possibilitava a criaccedilatildeo de um dos maiores organismos repressores que uma ditadura da

Ameacuterica Latina jaacute havia criado os DOI-CODI

Outro conceito necessaacuterio para entender a construccedilatildeo do cenaacuterio legal que

propiciaria a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI eacute o de cizacircnia militar elaborado por

Martins Filho em sua tese de doutorado A dinacircmica militar das crises poliacuteticas na

31

ditadura (1964-1969) de 1993 em que o autor destaca os conflitos internos no seio

militar que acabariam resultando em dissidecircncias Ao analisar esses conflitos como fator

decisivo para a compreensatildeo dos rumos da ditadura Martins Filho apresenta uma

abordagem diferente da maioria dos estudiosos sobre o tema Ao inveacutes de partir de uma

suposta dicotomia entre dois grupos estanques divididos rigidamente entre a linha dura

e os castelistas apresenta uma visatildeo mais fluida de grupos militares que oscilavam na

forma de agir o palaacutecio representando os militares de altas patentes ocupantes de

cargos poliacuteticos e a caserna militares de patentes meacutedias que trabalhavam nas

instituiccedilotildees militares Esta abordagem eacute crucial para o presente trabalho uma vez que a

base da formaccedilatildeo e da atuaccedilatildeo dos DOI-CODI estava diretamente relacionada agraves

cizacircnias militares e seus decorrentes acontecimentos poliacuteticos Afinal apesar dos DOI-

CODI serem uma instituiccedilatildeo composta por militares das mais diversas posiccedilotildees

hieraacuterquicas a sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo foram estruturadas a partir principalmente de

reivindicaccedilotildees da caserna que com a implantaccedilatildeo dos DOI-CODI passou a ter poderes

poliacuteticos extraordinaacuterios jaacute que se tornava responsaacutevel pelas accedilotildees de prisotildees

apreensotildees e interrogatoacuterios dos perseguidos poliacuteticos

Finalmente para analisar a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Interna o

SISSEGIN composto entre outros pelos DOI-CODI partimos da anaacutelise feita por

Carlos Fico em sua obra Como eles agiam de 2001 Ao ter acesso a documentos

sigilosos sobre a formaccedilatildeo do SISSEGIN e a regulamentaccedilatildeo operacional dos DOI-

CODI Fico caracteriza de forma ineacutedita na historiografia a formaccedilatildeo e o

funcionamento de ambos os oacutergatildeos sendo portanto um referencial historiograacutefico

indispensaacutevel agrave minha pesquisa

Ainda no que toca agrave formaccedilatildeo do SISSEGIN e dos DOI-CODI tambeacutem eacute de

grande valia a tese exposta por Maria Celina DrsquoArauacutejo em Os anos de Chumbo a

32

memoacuteria militar sobre a repressatildeo (1994) de que assim como em qualquer instituiccedilatildeo

militar era alto o grau de hierarquia e coordenaccedilatildeo presente nos DOI-CODI o que natildeo

impedia no entanto que houvesse brechas para uma perda de controle institucional

Logo uma das peculiaridades da atuaccedilatildeo dos DOI-CODI entendido pela a autora como

uma espeacutecie de sofisticaccedilatildeo da repressatildeo era a convivecircncia da obediecircncia hieraacuterquica

militar com a falta de controle sobre algumas accedilotildees deixando que procedimentos natildeo

regulamentares tais como a tortura pudessem ser efetivados com recorrecircncia

A segunda e a terceira frentes de estudo do presente capiacutetulo analisam as visotildees de

atores que de uma forma ou de outra viveram em algum dos DOI-CODI Portanto

diferentes do debate historiograacutefico que tem particular distanciamento analiacutetico do

objeto e preza por se aproximar da imparcialidade e tambeacutem diferentes entre si essas

fontes satildeo influenciadas por seus atoresnarradores e pelas eacutepocas em que foram

construiacutedas

Na segunda frente pode-se dizer que a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI satildeo

analisadas a partir dos proacuteprios DOI-CODI jaacute que nessa etapa debruccedila-se sobre o

estudo O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do Exeacutercito Brasileiro

Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo de um de seus agentes diretos o coronel de

cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira Conhecido entre os presos poliacuteticos do DOI do Rio

de Janeiro do iniacutecio dos anos 1970 como o torturador de codinome ldquoNagibrdquo coronel

Pereira apresentou a referida monografia agrave Escola de Comando e Estado Maior do

Exeacutercito (ECEME) em 1978 quando os DOI-CODI apesar de atuantes jaacute estavam em

decadecircncia Tratava-se de uma eacutepoca em que o presidente Ernesto Geisel comandava a

abertura poliacutetica ldquolenta gradual e segurardquo do paiacutes e vinha diminuindo o poder delegado

aos DOI-CODI que passavam a ter o seu pessoal reduzido e suas accedilotildees apenas voltadas

agrave espionagem e natildeo mais ao combate direto de opositores poliacuteticos jaacute que devido agraves

33

inuacutemeras denuacutencias sobre violaccedilotildees aos Direitos Humanos no Brasil era forte o

desgaste que a ditadura sofria perante a comunidade internacional Em meio a esse

cenaacuterio o coronel em questatildeo construiu tal monografia motivado a por um lado provar

a importacircncia e a necessidade do trabalho de repressatildeo feito nos DOI-CODI e assim

tentar reverter a reduccedilatildeo de suas atividades e por outro conseguir uma promoccedilatildeo na

carreira militar visto que a ECEME eacute uma escola destinada agrave preparaccedilatildeo de oficiais

superiores para o exerciacutecio de funccedilotildees de Estado-Maior A partir disso essa monografia

apresenta dados representativos do poder coercitivo dos DOI do iniacutecio dos anos 1970

bem como a descriccedilatildeo dos afazeres de cada uma de suas seccedilotildees o que traz uma forte

contribuiccedilatildeo para a anaacutelise aqui traccedilada

Por fim na terceira e uacuteltima frente a anaacutelise da formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-

CODI eacute efetuada por meio de outro tipo de fonte que tem por base a memoacuteria os

depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de Janeiro a

mim fornecidos entre os anos de 2002 e 2004 Como essas entrevistas foram concedidas

durante a passagem dos governos dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso

(1995-2002) e Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva (2003-2010) ex-perseguidos poliacuteticos da

ditadura militar que entre seus feitos agrave frente da poliacutetica brasileira agiram no sentido

de reparar danos sofridos pelos perseguidos poliacuteticos daquele periacuteodo esse presente

nelas imprimiu fortes influecircncias Afinal trata-se de memoacuterias sobre o passado vivido

em uma das instituiccedilotildees de repressatildeo mais violentas da eacutepoca o DOI-CODIRJ

construiacutedas a partir de um presente em que jaacute vigorava a lei nordm 9140 de 1995 que

reconhecia mortos e desaparecidos pela ditadura militar e indenizava suas famiacutelias e

havia sido aprovada a lei nordm 10559 de 2002 que reparava financeiramente aqueles que

tivessem sofrido perseguiccedilatildeo ou maus tratos dentro de instituiccedilotildees do Estado durante o

periacuteodo de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988

34

Percebe-se claramente a ideia de presente do passado de Robert Frank (1999)

como um dos principais aspectos criacuteticos aqui aplicados a essas memoacuterias Afinal o

fato de durante o periacuteodo em que se deram as entrevistas conhecidos opositores agrave

ditadura militar estarem agrave frente do governo brasileiro e grande nuacutemero de ex-

prisioneiros poliacuteticos inclusive os entrevistados buscarem se beneficiar da lei nordm

1055902 faz com que o presente seja aqui considerado o elemento organizador dessas

memoacuterias

Essa perspectiva de presente do passado eacute portanto um dos elementos criacuteticos

aplicados a essas memoacuterias que sobre elas trabalham a fim de aqui tornaacute-las objeto da

histoacuteria Dessa forma percebe-se na presente anaacutelise a perspectiva elucidada por Pierre

Nora (1993) ao diferir o trabalho da memoacuteria do trabalho da histoacuteria Afinal o que os

diferencia satildeo justamente os aspectos fluidos da memoacuteria tais como as emoccedilotildees e as

influecircncias conjunturais a que estaacute a todo tempo submetida que aqui satildeo minimizados

pelos aspectos criacuteticos objetivos e analiacuteticos peculiares agrave histoacuteria

35

1 Debate Historiograacutefico

11 O papel da ESG para o Sistema de Seguranccedila Nacional

O golpe civil-militar ocorrido no Brasil em 31 de marccedilo de 1964 quando o

presidente Joatildeo Goulart foi deposto e se instalou um regime militar no paiacutes teria sido

precedido por uma elaborada desestabilizaccedilatildeo poliacutetica que de acordo com Maria Helena

Moreira Alves (2005) envolveu tanto corporaccedilotildees multinacionais o governo dos

Estados Unidos quanto o capital brasileiro associado-dependente e os militares

brasileiros destacando-se entre esses um grupo de oficiais da Escola Superior de Guerra

(ESG) Essa ldquoconspiraccedilatildeordquo foi efetivada anos antes ainda no iniacutecio dos anos 1950 por

instituiccedilotildees civis como o Instituto Brasileiro de Accedilatildeo Democraacutetica (IBAD) e o Instituto

de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) sob a coordenaccedilatildeo da ESG A Doutrina de

Seguranccedila Nacional e Desenvolvimento (DSN) ministrada pela mesma Escola era a

justificativa ideoloacutegica perfeita para a tomada do poder e para o autoritarismo como

uma forma de governo

Um dos criadores dessa doutrina Golbery do Couto e Silva era desde 1952

adjunto do Departamento de Estudos da ESG estabelecimento subordinado ao Estado

Maior das Forccedilas Armadas (EMFA) criado em 1948 com a assistecircncia de consultores

franceses e norte-americanos a fim de desenvolver e consolidar os conhecimentos

necessaacuterios para o exerciacutecio das funccedilotildees de direccedilatildeo e para o planejamento da Seguranccedila

Nacional Dentro da ESG Golbery encontrou condiccedilotildees favoraacuteveis para impulsionar

teses que defenderiam o ecircxito de um projeto global de desenvolvimento em cujas

tarefas o Estado deveria se associar agrave iniciativa privada atraveacutes do apoio intermediaacuterio

de uma elite tecnocraacutetica civil e militar ideologicamente comprometida com um

conjunto de ldquoobjetivos nacionais permanentesrdquo garantindo assim a Seguranccedila

Nacional Essas teses vieram posteriormente a constituir a base do programa da ESG

36

passando a ser conhecidas pela Doutrina de Seguranccedila Nacional (DSN) A DSN

sustentava ainda em meio agrave Guerra Fria o posicionamento do Brasil ao lado do

Ocidente logo em confronto com o bloco sovieacutetico considerando a preservaccedilatildeo da

seguranccedila o fator fundamental de promoccedilatildeo do desenvolvimento Previa dessa forma a

possiacutevel supressatildeo de alguns valores definidores da ordem democraacutetica devido agrave

necessidade de uma progressiva centralizaccedilatildeo de poderes

Para Moreira Alves o grande feito do ldquocomplexo ESGIPESIBADrdquo foi a criaccedilatildeo

antes do golpe de 1964 de uma rede de informaccedilotildees e de uma Doutrina de Seguranccedila

Nacional e Desenvolvimento ambas coordenadas por Golbery para nortear o que viria

a ser um Estado efetivamente centralizado Essa tese eacute sustentada ao se notar que o

general Castelo Branco como primeiro presidente do Estado ditatorial brasileiro

compocircs seus ministeacuterios quase totalmente com membros e colaboradores do complexo

ESGIPESIBAD A DSN passou entatildeo a ser utilizada para moldar as estruturas de

Estado impor formas especiacuteficas de controle para a sociedade civil e delinear um

projeto de governo para o Brasil Assim com destaque para a seguranccedila interna

ameaccedilada pelo comunismo a Doutrina de Seguranccedila Nacional passou a induzir ao

abuso de poder a prisotildees arbitraacuterias agrave tortura e agrave censura agrave imprensa e agraves artes de

forma geral

Eacute interessante perceber que a formulaccedilatildeo da DSN feita pela ESG em colaboraccedilatildeo

com o IPES e o IBAD ao longo de 25 anos tinha como base uma teoria de guerra que

nortearia a atuaccedilatildeo repressora do governo militar A partir do Manual Baacutesico da Escola

Superior de Guerra e dos escritos de Golbery do Couto e Silva em Conjuntura Poliacutetica

Nacional o poder executivo amp a geopoliacutetica do Brasil Moreira Alves destaca os tipos

de guerra apresentados pela Doutrina guerra total guerra limitada ou localizada

guerra revolucionaacuteria ou insurrecional guerra indireta ou ideoloacutegica

37

De acordo com estes paracircmetros a teoria da guerra total baseava-se na estrateacutegia

militar da Guerra Fria deixando de ser estritamente militar para ser tambeacutem econocircmica

financeira poliacutetica psicoloacutegica e cientiacutefica atingindo o mundo de forma global Logo

como as potecircncias envolvidas natildeo podiam travar uma guerra ativa pois existia a

possibilidade de uma destruiccedilatildeo completa e universal a guerra total passou a assumir

diversas formas Ela se destrinchava em guerras limitadas ou localizadas pelas quais as

duas superpotecircncias mediam suas respectivas capacidades de controlar territoacuterios Aleacutem

disso havia as guerras declaradas consideradas claacutessicas e as natildeo-declaradas que

correspondiam agraves formas de guerra revolucionaacuteria ou insurrecional

Essas guerras natildeo-declaradas ou natildeo-claacutessicas representavam uma guerra de

agressatildeo indireta A insurrecional eacute caracterizada como um conflito interno em que

parte da populaccedilatildeo armada busca a deposiccedilatildeo do governo Jaacute a guerra revolucionaacuteria

natildeo envolve necessariamente o emprego da forccedila armada mas significa um conflito

normalmente interno estimulado ou auxiliado do exterior inspirado normalmente em

uma ideologia e que visa agrave conquista do poder pelo controle progressivo da naccedilatildeo A

guerra revolucionaacuteria se referia portanto agrave infiltraccedilatildeo comunista internacional

associada ao bloco sovieacutetico Neste tipo de guerra a guerra ideoloacutegica substituiacutea a

convencional entendida como o enfrentamento direto entre Estados em suas fronteiras

geograacuteficas A caracteriacutestica principal da guerra revolucionaacuteria de acordo com o

Manual Baacutesico da ESG era o envolvimento da populaccedilatildeo do paiacutes-alvo por meio da

conquista ideoloacutegica

[] abrangendo desde a exploraccedilatildeo dos descontentamentos existentes com o

acirramento de acircnimos contra as autoridades constituiacutedas ateacute a organizaccedilatildeo

de zonas dominadas com o recurso agrave guerrilha ao terrorismo e outras taacuteticas

irregulares onde o proacuteprio nacional do paiacutes-alvo eacute utilizado como

combatente (Alves 2005 45)

38

Como a guerra revolucionaacuteria recrutava seus combatentes secretamente toda a

populaccedilatildeo tornava-se suspeita e portanto deveria ser cuidadosamente controlada para

que os ditos ldquoinimigos internosrdquo pudessem ser neutralizados A partir desse

entendimento de guerra revolucionaacuteria que segundo a ESG assombrava o paiacutes cria-se a

necessidade de um planejamento de Seguranccedila Nacional adaptado a essa conjuntura e

por conseguinte de um eficiente e centralizado aparato de informaccedilotildees internas

A partir disso a Constituiccedilatildeo de 1967 criou o Conselho de Seguranccedila Nacional

oacutergatildeo da Presidecircncia da Repuacuteblica responsaacutevel por supervisionar a defesa da seguranccedila

interna e principalmente modificou o significado de Seguranccedila Nacional que desde a

Constituiccedilatildeo de 1946 era associado agrave agressatildeo externa ou seja agrave defesa das fronteiras

territoriais A ameaccedila agrave Seguranccedila Nacional passava entatildeo a ser oficialmente definida

mais como uma ameaccedila agraves fronteiras ideoloacutegicas do que agraves territoriais Portanto ao criar

o Conselho de Seguranccedila Nacional e mudar o entendimento sobre a Seguranccedila

Nacional a Constituiccedilatildeo de 1967 abria o caminho necessaacuterio agrave adaptaccedilatildeo agrave teoria de

seguranccedila interna estipulada anos antes pela ESG

Esta teoria de seguranccedila interna dotou entatildeo o Estado de justificativa para

controlar e reprimir a populaccedilatildeo em geral O caraacuteter oculto da ameaccedila interna tornou

praticamente impossiacutevel se estabelecer limites para as accedilotildees repressivas do Estado e dos

militares e por isso mesmo fragilizou a defesa dos direitos humanos no paiacutes Afinal

todo cidadatildeo passava a ser culpado ateacute que fosse provada a sua inocecircncia Por meio

desse pensamento a raiz dos abusos de poder perpetrados pelo Estado se estruturou Por

isso defende-se aqui que a institucionalizaccedilatildeo dessa crenccedila no inimigo interno criada

pela ESG antes mesmo do golpe civil-militar estimulou a ditadura a nortear o

desenvolvimento das suas estruturas defensivas da sua articulada rede de informaccedilotildees

poliacuteticas e ainda do seu aparato repressivo de controle armado onde os DOI-CODI a

39

partir de 1970 tambeacutem estariam inseridos

12 Os conceitos legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar

Essa crenccedila no inimigo interno criada pela ESG norteou a Seguranccedila Nacional

durante a ditadura militar que se substanciou atraveacutes da alta legalidade autoritaacuteria e

das medidas criadas pelo governo como forma de conter as cizacircnias militares Esses trecircs

fatores juntos contribuiacuteram para consolidaccedilatildeo dos DOI-CODI por todo paiacutes

respaldando a atuaccedilatildeo altamente autoritaacuteria e violenta desses oacutergatildeos

A partir disso o conceito de legalidade autoritaacuteria construiacutedo pelo cientista

poliacutetico norte-americano Anthony Pereira (2010) ajuda a evidenciar como a existecircncia

de laccedilos entre o autoritarismo e o estado de direito do regime militar no Brasil ajudou na

configuraccedilatildeo de uma instituiccedilatildeo como o DOI-CODI Afinal a legalidade autoritaacuteria

identifica as coexistecircncias entre o autoritarismo ditatorial e a continuidade das

instituiccedilotildees juriacutedicas anteriores ao Golpe bem como entre o autoritarismo ditatorial e a

praacutetica de elaboraccedilatildeo de leis ainda que tambeacutem autoritaacuterias

Percebe-se assim que o Brasil obteve um alto grau de legalidade autoritaacuteria na

medida em que a legislaccedilatildeo foi amplamente arbitrada pelo Poder Executivo como forma

de legalizar arbitrariedades poliacuteticas e suprimir direitos da populaccedilatildeo Assim foi

construiacuteda uma sustentaccedilatildeo juriacutedica e poliacutetica necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um aparato de

seguranccedila cada vez mais forte e centralizado que garantiu a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos

DOI-CODI

Afinal a legalidade autoritaacuteria vivenciada no Brasil se baseava na confecccedilatildeo pelo

Poder Executivo de leis publicadas em meios de comunicaccedilatildeo oficiais a fim de

respaldar arbitrariedades A partir dessas leis instrumento associado ao sistema

democraacutetico o governo militar centralizava e reforccedilava o seu poder ditatorial tornando

40

nebuloso o sistema em vigor naquele momento no Brasil Ou seja apesar da existecircncia

de uma ditadura militar consolidada havia integraccedilatildeo entre as Forccedilas Armadas e o

Poder Judiciaacuterio ndash que norteava os seus julgamentos pelas novas leis arbitraacuterias

legitimando-as ndash bem como a manutenccedilatildeo do Congresso em funcionamento na maior

parte do tempo Dessa forma a legalidade autoritaacuteria era um elo entre o autoritarismo

ditatorial e o estado de direito conseguindo fazer parecer por algum tempo que o paiacutes

vivenciava um sistema democraacutetico excepcional A praacutetica da legalidade autoritaacuteria na

forma de atos institucionais da Constituiccedilatildeo de 1967 e de leis de Seguranccedila Nacional

por exemplo forneceu os suportes legais necessaacuterios agrave construccedilatildeo do SISSEGIN e agrave

formaccedilatildeo e agrave atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

Aleacutem disso essa praxe da ditadura de agir por meio de leis arbitraacuterias na maior

parte das vezes se relaciona com as cizacircnias militares provocadas no seio dessa

instituiccedilatildeo como reflexos de acontecimentos poliacuteticos Afinal grande parte das leis

autoritaacuterias foram artifiacutecios usados como forma de acalmar os acircnimos na caserna

formada por militares de meacutedias e baixas patentes que reivindicavam mais poder

poliacutetico Assim para conter a oposiccedilatildeo poliacutetica e tambeacutem as reivindicaccedilotildees de poder da

caserna desenharam-se leis arbitraacuterias capazes de suportar um organismo de repressatildeo

onde esses militares trabalhariam com certa autonomia tal como viriam a ser os DOI-

CODI Logo percebe-se aqui que juntamente com a legalidade autoritaacuteria a leitura

dos encaminhamentos poliacutetico-militares feita por Joatildeo Roberto Martins Filho (1993)

sob a luz de conceitos como o de cizacircnias militares baseadas em dissidecircncias militares

internas entre o palaacutecio e a caserna tambeacutem ilumina o entendimento sobre a formaccedilatildeo

e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

Tais encaminhamentos poliacuteticos militares tecircm iniacutecio no dia 9 de abril dez dias

apoacutes o golpe civil-militar de 1964 e ainda antes da posse de Castelo Branco em 15 de

41

abril quando o Comando Supremo da Revoluccedilatildeo baixou um ato institucional

posteriormente conhecido como AI-1 que conferia aos militares o poder de puniccedilatildeo a

crimes de cidadatildeos contra o Estado seu patrimocircnio e contra a ordem poliacutetica e social

No entanto o AI-1 previa tambeacutem a possibilidade de passar este poder para as matildeos do

novo presidente da Repuacuteblica dois meses apoacutes a sua posse colocando oficialmente o

Poder Executivo acima dos demais Assim Costa e Silva integrante do Comando e

futuro ministro da Guerra fez expedir um pouco antes da posse de Castelo Branco em

complemento ao AI-1 o Ato do Comando Supremo da Revoluccedilatildeo nordm 9 e a Portaria nordm1

que davam continuidade ao poder de puniccedilatildeo dos militares mesmo depois da posse de

Castelo Branco Com isso foram criadas as condiccedilotildees para que coroneacuteis tenentes-

coroneacuteis majores e capitatildees6 continuassem agindo na caccedila ao ldquoinimigo internordquo

O Ato do Comando Supremo da Revoluccedilatildeo nordm 9 estabelecia que os militares

encarregados de inqueacuteritos e processos (de suspensotildees de direitos poliacuteticos cassaccedilotildees

de mandatos etc) poderiam delegar atribuiccedilotildees referentes a investigaccedilotildees bem como

requisitar inqueacuteritos ou sindicacircncias instituiacutedas por outras esferas Jaacute a Portaria nordm1

determinava a abertura de Inqueacuterito Policial Militar (IPM) para apuraccedilatildeo de crimes

praticados contra o Estado e a ordem poliacutetica social

No entanto no dia 15 de junho de 1964 juntamente com o teacutermino da validade do

AI-1 acabaria tambeacutem o prazo dos militares cassarem mandatos e suspenderem direitos

poliacuteticos Tais militares requisitaram que o poder a eles concedido natildeo fosse cessado o

que foi negado pelo entatildeo presidente Castelo A partir disso a insatisfaccedilatildeo desses

militares acabou por causar o surgimento de uma primeira e consideraacutevel discoacuterdia

interna agrave instituiccedilatildeo militar uma primeira cizacircnia militar A partir dessa situaccedilatildeo de

conflito surge entatildeo a chamada linha dura que se formou atraveacutes do eco que um

6 Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II

42

conjunto de pressotildees da jovem oficialidade nessa fase inicial da ditadura encontrou em

meio a alguns ldquoherdeiros civisrdquo do regime e em setores da hierarquia militar Dessa

forma a linha dura foi formada por grupos heterogecircneos de composiccedilatildeo variaacutevel e

ideologia difusa

Logo assim como Martins Filho e diferentemente da interpretaccedilatildeo de grande

parte dos historiadores acredita-se que mesmo em termos ideoloacutegicos a linha dura

estava longe de ser um grupo homogecircneo tendo por denominador comum apenas duas

caracteriacutesticas

Em primeiro lugar as reivindicaccedilotildees de maior rigor na ldquodepuraccedilatildeordquo do

sistema poliacutetico em segundo lugar as expectativas de influenciar

diretamente o processo de tomadas de decisotildees do governo militar Tanto em

um como em outro aspecto suas accedilotildees provocariam problemas para o

governo de Castelo Branco (Martins Filho 1993 61)

Portanto o governo Castelo Branco logo teve que se deparar com a questatildeo da

participaccedilatildeo poliacutetica do conjunto da categoria militar no regime ditatorial Sem atribuir

ao presidente uma visatildeo mais liberal ndash diferentemente daqueles que interpretam as

medidas mais ldquodurasrdquo de Castelo como resultado das pressotildees da linha dura ndash pondera-

se aqui que por parte do governo o redirecionamento de objetivos iniciais era

recorrente sempre que a situaccedilatildeo exigia uma reavaliaccedilatildeo Dessa forma percebe-se que

os rumos poliacuteticos escolhidos pela ditadura tinham como finalidade a preservaccedilatildeo da

hierarquia e da aparente homogeneidade da instituiccedilatildeo castrense o que demandava a

contenccedilatildeo das instabilidades internas

A partir dessa perspectiva destaca-se o caraacuteter flutuante dos conflitos internos ao

regime decorrentes da incompatibilidade de interesses poliacuteticos entre os militares de

altas patentes que possuiacuteam cargos no governo ditatorial representados

43

metaforicamente pelo palaacutecio e militares de meacutedias e baixas patentes que eram

responsaacuteveis por serviccedilos internos a caserna Nesse sentido evidencia-se por exemplo

que apoacutes ser retirado da caserna o poder de cassaccedilatildeo de mandatos e de suspensatildeo de

direitos poliacuteticos as derrotas dos candidatos aliados ao regime ditatorial nas eleiccedilotildees

para governador nos estados da Guanabara e de Minas Gerais em outubro de 1965

ocasionou uma forte divergecircncia entre o palaacutecio e a caserna resultando uma

instabilidade castrense que desembocou em mais uma cizacircnia militar Diante disso na

tentativa de apaziguar a instabilidade militar e por conseguinte os acircnimos da caserna

no fim desse mesmo mecircs Castelo Branco decretaria o AI-27 com vigecircncia prevista ateacute

15 de marccedilo de 1967

Afinal atraveacutes desse Ato a caserna aleacutem de passar a influir no acircmbito da poliacutetica

comeccedilava a ganhar poderes extras Nele se estabelecia a possibilidade de suspensatildeo de

direitos poliacuteticos e de cassaccedilatildeo de mandatos de parlamentares imposiccedilatildeo da eleiccedilatildeo

indireta para a Presidecircncia da Repuacuteblica permissatildeo para o presidente da Repuacuteblica

decretar o recesso do Congresso Nacional e das demais casas legislativas extinccedilatildeo de

partidos poliacuteticos delegaccedilatildeo ao presidente da Repuacuteblica do poder de legislar por

decretos-leis estabelecimento de foro especial militar para civis acusados de crimes

contra a Seguranccedila Nacional ou as instituiccedilotildees militares suspensatildeo das garantias de

vitaliciedade inamovibilidade (dos juiacutezes) e de estabilidade (dos servidores puacuteblicos)

ampliaccedilatildeo de 11 para 16 ministros do Supremo Tribunal Federal (Ato Institucional Nordm2

27 out 1965)

Com a cassaccedilatildeo de mandatos suspensatildeo de direitos poliacuteticos e demissatildeo de

funcionaacuterios puacuteblicos a caserna conseguia alguma interferecircncia nos assuntos poliacuteticos

e com a decretaccedilatildeo de foro militar especial para civis acusados de crimes contra a

7 Para mais informaccedilotildees sobre o AI-2 ver BRASIL Ato Institucional Nordm2 de 27 de outubro de 1965

44

Seguranccedila Nacional ou instituiccedilotildees militares comeccedilava a ganhar um espaccedilo proacuteprio e

aos poucos formar um grupo disposto a agir por sua conta sem maiores consideraccedilotildees

pelas normas legais tendendo a fazer valer suas ideias pela forccedila A futura comunidade

de seguranccedila comeccedilava entatildeo a ser desenhada e a formar o caraacuteter e a atuaccedilatildeo dos

futuros membros de seus oacutergatildeos A montagem do sistema de seguranccedila interna em que

os DOI-CODI seriam inseridos iria a partir das primeiras leis das desavenccedilas internas

e da deflagraccedilatildeo dos primeiros Atos Institucionais se tornando viaacutevel

Entretanto mesmo apoacutes o AI-2 a crise no regime castrense continuava A

caserna ansiosa por mais espaccedilo poliacutetico comeccedilava a se organizar para a ascensatildeo de

outra forccedila ao governo se articulando em torno do entatildeo ministro da Guerra o general

Costa e Silva A desuniatildeo hieraacuterquica provocada pela disputa sucessoacuteria se configurava

naquele momento como um importante fator da crise do regime militar Em meio a este

clima de tensatildeo Castelo Branco e seus partidaacuterios os ditos castelistas se preocupavam

com a ldquoinstitucionalizaccedilatildeo da revoluccedilatildeordquo Diante dessa configuraccedilatildeo a ldquorevoluccedilatildeo

castelistardquo de fato acabou sendo implantada pelo presidente e os pilares de seu

processo foram a Lei de Seguranccedila Nacional e a Constituiccedilatildeo de 1967

A Carta de 1967 incorporou boa parte das medidas autoritaacuterias estabelecidas pelos

atos institucionais Entre essas as que instituiacuteam que toda pessoa natural ou juriacutedica

seria responsaacutevel pela Seguranccedila Nacional nos limites definidos em lei e que o foro

militar previsto no AI-2 por limitado periacuteodo de tempo ficaria definitivamente

estendido aos civis por tempo indeterminado nos casos de crimes contra a Seguranccedila

Nacional Jaacute a Lei de Seguranccedila Nacional reflexo tambeacutem do caraacuteter ldquodurordquo do final do

governo Castelo transformava em legislaccedilatildeo a Doutrina de Seguranccedila Nacional da

ESG legalizando a concepccedilatildeo de ldquoguerra internardquo e de ldquosubversatildeordquo dois dias antes da

chegada de Costa e Silva ao poder presidencial Essas uacuteltimas medidas do governo de

45

Castelo merecem aqui destaque por significarem um impulso agrave criaccedilatildeo de um setor

voltado para a repressatildeo poliacutetica seara em que os DOI-CODI atuariam anos agrave frente

Assim em meio a um clima anti-castelista em 15 de marccedilo de 1967 Costa e

Silva assume o governo militar prometendo inclusive uma maior humanizaccedilatildeo da

poliacutetica Entretanto com a eclosatildeo de protestos de rua contra a violecircncia ditatorial o

novo presidente logo retomaria o aspecto ldquorevolucionaacuteriordquo do regime militar e

decretaria o Ato Institucional Nordm5 (AI-5) 8

Afinal a partir dos discursos do deputado

Maacutercio Moreira Alves evocando os brasileiros a natildeo comparecerem ao tradicional

desfile do dia sete de setembro daquele ano de 1968 Costa e Silva e o palaacutecio passaram

a ser extremamente pressionados pela caserna a reagir A recusa da Cacircmara dos

Deputados em abrir um processo para cassaccedilatildeo do entatildeo deputado foi a justificativa

necessaacuteria para que o presidente convocasse a cuacutepula do aparelho militar e os juristas

palacianos para darem forma ao AI-5 vindo a decretaacute-lo na noite do dia 13 de dezembro

de 1968

Percebe-se que a conjuntura de 1968 iniciado com os protestos estudantis de

massa tornou pela primeira vez desde o golpe de 1964 momentaneamente unificado o

movimento de repuacutedio de expressivos setores sociais ao avanccedilo da repressatildeo militar

Este fato que a princiacutepio pode fazer crer ter estimulado uma desuniatildeo militar parece

ter sido um fator adicional de uniatildeo das Forccedilas Armadas As tensotildees internas agrave

instituiccedilatildeo portanto foram neste momento colocadas em suspenso e a situaccedilatildeo militar

diante da ofensiva da oposiccedilatildeo teria criado uma espeacutecie de unidade de crise Poreacutem

esta unidade de crise das Forccedilas Armadas rapidamente se fragmentou trazendo agrave tona

novamente em meados de 1968 um variado e complexo conjunto de tensotildees no campo

militar Esta unidade no entanto voltaria a existir em torno da decretaccedilatildeo do AI-5 apoacutes

8 Para mais informaccedilotildees sobre o AI-5 ver BRASIL Ato Institucional Nordm5 de 13 de dezembro de 1968

46

a derrota na votaccedilatildeo no Congresso e quando as pressotildees da caserna em prol da

militarizaccedilatildeo do governo se voltaram para o palaacutecio

Nesse momento os generais do governo se sentiram muito mais ameaccedilados do

que na jaacute mencionada instabilidade gerada pelas derrotas nas eleiccedilotildees para governador

de 1965 O fato da oficialidade rebelde de entatildeo natildeo ter um porta-voz em postos de

comando como era na eacutepoca Costa e Silva e por isso parecer mais difusa a tornava

mais ameaccediladora agrave integridade da instituiccedilatildeo militar Assim a explicaccedilatildeo para

juntamente com a caserna os generais cobrarem do Ministro do Exeacutercito uma imediata

tomada de decisatildeo em favor da ldquoRevoluccedilatildeordquo estava portanto na busca pela

permanecircncia de uma unidade das Forccedilas Armadas Dessa forma momentos antes do AI-

5 a unidade da crise novamente se formou soacute que dessa vez por motivos inerentes

unicamente agrave proacutepria instituiccedilatildeo militar (Martins Filho 1993 158-174)

O AI-5 foi ateacute entatildeo a maior expressatildeo legal do autoritarismo da ditadura militar

e construiu uma base essencial para que em 1970 surgissem os DOI-CODI Afinal

aleacutem de natildeo estabelecer um prazo final para sua vigecircncia inovando em relaccedilatildeo aos

demais Atos Institucionais o AI-5 tornou legal a suspensatildeo da garantia de ldquohabeas

corpusrdquo nos casos de crimes poliacuteticos contra a Seguranccedila Nacional Logo a partir

desse Ato foram estabelecidas as condiccedilotildees necessaacuterias para a institucionalizaccedilatildeo dos

sistemas de seguranccedila e de informaccedilotildees bem como o surgimento da Comissatildeo Geral de

Investigaccedilotildees (CGI) na tentativa de combate agrave corrupccedilatildeo O sistema de seguranccedila

esboccedilado naquele momento buscava o aperfeiccediloamento sob a eacutegide da ldquoguerra

revolucionaacuteriardquo mencionada no preacircmbulo do proacuteprio AI-5

Considerando que assim se torna imperiosa a adoccedilatildeo de medidas que

impeccedilam que sejam frustrados os ideais superiores da Revoluccedilatildeo

preservando a ordem a seguranccedila a tranquilidade o desenvolvimento

econocircmico e cultural e a harmonia poliacutetica e social do Paiacutes comprometidos

47

por processos subversivos e de guerra revolucionaacuteria (Ato Institucional nordm

5 13 dez 1968)

Logo as cizacircnias militares e a legislaccedilatildeo a elas relacionada contribuiacuteram para a

formaccedilatildeo do cenaacuterio propiacutecio agrave institucionalizaccedilatildeo do aparato de repressatildeo Aparato este

que a partir do AI-5 foi se estruturando em trecircs grandes sistemas o SISNI Sistema

Nacional de Informaccedilotildees a CGI Comissatildeo Geral de Investigaccedilotildees e o SISSEGIN

Sistema de Seguranccedila Interna Este ao ser criado abriria espaccedilo para a repressatildeo

poliacutetica centralizada e institucionalizada dos DOI-CODI

13 A montagem e o funcionamento do SISSEGIN

Ao longo dos anos 70 os DOI-CODI passariam a ser os principais oacutergatildeos de

atuaccedilatildeo do SISSEGIN e um dos pontos centrais do aparelho de repressatildeo brasileiro Ao

seu lado em outras esferas de competecircncia estavam os oacutergatildeos do Sistema Nacional de

Informaccedilotildees (SISNI) e os da Comissatildeo Geral de Investigaccedilatildeo (CGI) Cada um desses

sistemas possuiacutea uma competecircncia especiacutefica o SISNI era responsaacutevel por buscar as

informaccedilotildees necessaacuterias agrave manutenccedilatildeo do regime de Seguranccedila Nacional procurando

desvendar quem eram os opositores ao governo os chamados ldquoinimigos internosrdquo

enquanto a CGI buscava o combate agrave corrupccedilatildeo no serviccedilo puacuteblico Jaacute o SISSEGIN

operava de forma centralizada tanto na investigaccedilatildeo quanto na apreensatildeo dos mesmos

ldquoinimigos internosrdquo

Para a anaacutelise do SISSEGIN vale-se aqui do trabalho de Carlos Fico Como eles

agiam (2001) feito com base no acervo da extinta Divisatildeo de Seguranccedila e Informaccedilotildees

do Ministeacuterio da Justiccedila inclusive nos documentos sigilosos Afinal nesse estudo Fico

revela em detalhes o que nenhum outro historiador havia conseguido ateacute entatildeo a

48

formaccedilatildeo e o funcionamento das comunidades de informaccedilotildees e de seguranccedila da

ditadura militar brasileira

A partir disso destaca-se aqui que a estrutura e o funcionamento do SISSEGIN

foram instituiacutedos e regulamentados por meio de decretos sigilosos O mesmo padratildeo de

regulamentaccedilatildeo foi seguido pela Operaccedilatildeo Bandeirantes (Oban) instituiccedilatildeo informal

criada em Satildeo Paulo em julho de 1969 bem como pelos DOI-CODI instituiacutedos no

primeiro semestre de 1970 formalizando a experiecircncia da Oban e espalhando-a por

todas as Regiotildees Militares do Brasil Jaacute que eacute atraveacutes dessas Regiotildees que o Exeacutercito

divide geograficamente sua administraccedilatildeo sobre o territoacuterio brasileiro foi tambeacutem por

meio delas que partiu durante parte da ditadura militar as responsabilidades territoriais

dos DOI-CODI Logo o DOI-CODI do Rio de Janeiro ficava responsaacutevel pelos crimes

poliacuteticos ocorridos na Primeira Regiatildeo ou seja nos estados do Rio de Janeiro e do

Espiacuterito Santo

A justificativa para esse sigilo dos atos que regiam o SISSEGIN e os DOI-CODI

estava na maior mobilidade e autonomia de accedilatildeo que o segredo traria para a atuaccedilatildeo

repressora desses organismos Dessa forma a repressatildeo podia agir sem grandes

limitaccedilotildees natildeo esbarrando em questotildees externas agraves decisotildees militares tais como os

Direitos Humanos Universais de 1948

No entanto eacute tambeacutem evidente a importacircncia que alguns atos legais natildeo-sigilosos

tiveram para a construccedilatildeo do cenaacuterio que sustentaria a atuaccedilatildeo do SISSEGIN e dos

DOI-CODI Eacute o caso por exemplo da adoccedilatildeo do foro especial para crimes poliacuteticos

que a partir do AI-2 e da subsequente incorporaccedilatildeo dessa medida pela Constituiccedilatildeo de

1967 passaram a ser julgados pelos tribunais militares e a suspensatildeo de garantias

individuais tal como o habeas corpus feita pelo AI-5 de dezembro de 1968 Afinal

natildeo seria eficaz para a atuaccedilatildeo desses oacutergatildeos repressores que seus prisioneiros poliacuteticos

49

atraveacutes do habeas corpus pudessem ser imediatamente soltos pela Justiccedila ou que

pudessem ser julgados por tribunais civis correndo o risco do juiz responsaacutevel pela

causa natildeo estar totalmente articulado aos princiacutepios impostos pela Doutrina de

Seguranccedila Nacional

Dessa forma ateacute o AI-5 foram levantadas as bases legais para que um Sistema de

Seguranccedila Nacional centralizado combativo e violento fosse institucionalizado Por

outro lado a partir do AI-5 para ter a autonomia e a mobilidade que se julgavam

necessaacuterias a organizaccedilatildeo desse Sistema de Seguranccedila Nacional foi sigilosa Ou seja a

reestruturaccedilatildeo do sistema repressivo com os seus novos oacutergatildeos e o detalhamento de

suas funccedilotildees internas natildeo foi publicada oficialmente por nenhum tipo de legislaccedilatildeo A

operacionalidade da seguranccedila interna foi regida por diretrizes secretas e o SISSEGIN

instituiacutedo por decretos sigilosos do Conselho de Seguranccedila Nacional (CSN) aprovados

pelo Presidente da Repuacuteblica

Por isso mesmo uma das primeiras medidas para o estabelecimento do SISSEGIN

e posteriormente dos DOI-CODI foi o fortalecimento do Conselho de Seguranccedila

Nacional cujas competecircncias foram ampliadas por atualizaccedilatildeo na legislaccedilatildeo operada

em janeiro de 1968 No ano seguinte em julho a Diretriz para a Poliacutetica de Seguranccedila

Interna foi instituiacuteda secretamente a fim de consolidar o SISSEGIN e adotar

nacionalmente o padratildeo da Oban (Operaccedilatildeo Bandeirante) No entanto somente em

1970 durante a vigecircncia do governo Meacutedici o modelo da Oban foi adaptado

transformado em DOI-CODI e de fato instituiacutedo por todas as Regiotildees Militares do

paiacutes

A Oban foi secretamente instituiacuteda em 1ordm de julho de 1969 no quartel do II

Exeacutercito em Satildeo Paulo No intuito de combater de forma mais organizada e eficaz a

esquerda armada a Oban usava de sua ldquoilegalidade oficialrdquo para agir contra os

50

ldquoinimigos internosrdquo sem precisar adequar seus meacutetodos de trabalho aos Direitos

Humanos A Oban criava uma estrutura nova que coordenava e integrava os diversos

oacutergatildeos de repressatildeo poliacutetica ndash entre eles as 2ordf seccedilotildees da Poliacutecia Militar Exeacutercito e

Marinha de Satildeo Paulo responsaacuteveis pelas investigaccedilotildees de crimes poliacuteticos nessas

instituiccedilotildees ndash que operavam de forma desordenada e ineficaz contra a esquerda armada

em aparente ascensatildeo O funcionamento da Oban se dava por meio de um trabalho

coordenado de diversas instacircncias conforme apresenta Fico no seguinte trecho

O funcionamento da Oban supunha um trabalho coordenado de diversas

instacircncias Toda quarta-feira era feita uma reuniatildeo no quartel-general do II

Exeacutercito na qual eram discutidas e avaliadas as accedilotildees da guerrilha da

semana Participavam dessas reuniotildees o chefe da 2ordf Seccedilatildeo do II Exeacutercito o

comandante da Oban major Waldyr Coelho um representante da 2ordf Seccedilatildeo

do II Exeacutercito o oficial chefe da 2ordf Seccedilatildeo do Distrito Naval o chefe da 2ordf

Seccedilatildeo da Poliacutecia Militar do Estado de Satildeo Paulo um representante da Poliacutecia

Federal um representante da Divisatildeo da Ordem Social e outro da Ordem

Poliacutetica ambos do DOPS (Fico 2001 117)

Aleacutem dos meios militar e policial a Oban tambeacutem era sustentada pelo

empresarial financeiro e parte das autoridades civis paulistas da eacutepoca conforme indica

trecho do artigo da historiadora Mariana Joffily para a revista Caros Amigos

O ato que celebrou a criaccedilatildeo da Oban foi organizado com pompa coqueteacuteis

e salgadinhos e contou com a presenccedila das principais autoridades poliacuteticas

de Satildeo Paulo o governador Roberto de Abreu Sodreacute o prefeito Paulo Maluf

o comandante do II Exeacutercito (atual Regional Sudeste) general Joseacute

Canavarro Pereira entre outros Tambeacutem acorreram agrave cerimocircnia figuras

proeminentes da elite paulista oriundas dos meios empresarial e financeiro

Luiz Macedo Quentel Antonio Delfim Netto Gastatildeo Vidigal Paulo Sawaya

e Henning Albert Boilesen Parte do setor empresarial paulista e das

multinacionais ndash com representaccedilatildeo em Satildeo Paulo ndash acreditava que as accedilotildees

guerrilheiras colocavam em risco a boa conduta dos negoacutecios e concorreu

51

para o apoio financeiro e material As autoridades da cidade colaboraram

com infra-estrutura incluindo a cessatildeo de partes das dependecircncias da 36ordf

delegacia de poliacutecia situada na Rua Tutoacuteia (Vila Mariana) para a

acomodaccedilatildeo do novo oacutergatildeo repressivo (Joffily 14 set 2009)

Percebe-se portanto que muitos empresaacuterios de Satildeo Paulo ajudaram a financiar a

Oban Entre outros gastos esse financiamento era destinado agrave capacitaccedilatildeo de seus

agentes e agrave compra de equipamentos de tortura novos entre eles uma maacutequina de

choques eleacutetricos nomeada de ldquoPianola Boilesenrdquo em homenagem a Henning Albert

Boilesen entatildeo presidente da empresa Ultragaacutes e um dos empresaacuterios agrave frente desse tipo

de investimento na Oban Boilesen assim como os demais empresaacuterios envolvidos

financeiramente com a Oban por desacreditar nas instituiccedilotildees do Estado que ateacute entatildeo

eram responsaacuteveis pelo combate agrave esquerda armada e por ter interesses reais nesse

combate optou por capitalizar a Oban Afinal uma instituiccedilatildeo extra-oficial de accedilatildeo

coordenada e com grande investimento teria autonomia e capacidade para neutralizar os

grupos da esquerda armada que vinham causando prejuiacutezos a seus negoacutecios tais como

assaltos e atentados Justamente devido a essa relaccedilatildeo que tinha com a Oban Boilesen

foi assassinado posteriormente em 1971 por militantes da esquerda armada 9

Percebe-se portanto que a Oban tinha caraacuteter paramilitar e unia a iniciativa

privada ao Estado a fim de que o poder de poliacutecia deste fosse fortalecido Sua criaccedilatildeo

empregou portanto um novo tipo de atuaccedilatildeo militar em que o combate ao ldquoinimigo

internordquo contaria com uma forte autonomia de accedilatildeo respaldada pelo sigilo dos decretos

regulamentares e pelo financiamento do empresariado A Oban se consagrava como um

poderoso e promissor modelo de repressatildeo

No entanto o envolvimento de oficiais das Forccedilas Armadas policiais e

empresaacuterios com a repressatildeo poderia assumir proporccedilotildees que fugissem ao controle

9 Para mais informaccedilotildees sobre Henning Albert Boilesen e a relaccedilatildeo do empresariado com a Oban ver o

filme documentaacuterio Cidadatildeo Boilesen (Brasil 2009)

52

militar e configurassem algumas vezes conflitos de interesses Assim com o sucesso

das accedilotildees da Oban no combate aos opositores armados os militares optaram por

ampliar o seu modelo para todo o Brasil desde que incorporasse algumas reformulaccedilotildees

que assegurassem o total controle militar Surgiriam entatildeo os DOI-CODI

Os DOI-CODI eram portanto a institucionalizaccedilatildeo e a sofisticaccedilatildeo do modelo da

Oban Afinal eles coordenavam todas as demais Forccedilas e Poliacutecias sob o comando do

Exeacutercito e estavam espalhados por todas as Regiotildees Militares do paiacutes Eram a nova

estrutura do SISSEGIN implantada por diretrizes secretas que o Conselho de Seguranccedila

Nacional havia formulado Tais diretrizes estabeleceram que para cada um dos

comandos militares haveria um Conselho de Defesa Interna (CONDI) um Centro de

Operaccedilotildees de Defesa Interna (CODI) e um Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees

(DOI) todos sob responsabilidade do comandante do Exeacutercito respectivo denominado

comandante da ldquoZona de Defesa Internardquo (ZDI) O paiacutes ficou assim dividido em seis

ZDI Podiam ser criadas ainda Aacutereas de Defesa Interna (ADI) ou Sub-Aacutereas de Defesa

Interna (SADI) em regiotildees que merecessem cuidados especiais

Aos Conselhos de Defesa Interna (CONDI) cabia assessorar os comandantes das

ZDI e tambeacutem facilitar a esses comandantes a coordenaccedilatildeo de accedilotildees e a necessaacuteria

cooperaccedilatildeo por parte das mais altas autoridades civis e militares com sede nas

respectivas aacutereas de responsabilidade Logo os CONDI podiam ser integrados por

governadores ou seus representantes assim como comandantes das Forccedilas Navais e

Aeacutereas comandantes subordinados secretaacuterios de seguranccedila e comandantes das demais

Poliacutecias ou outras autoridades conforme o comandante da respectiva ZDI julgasse

necessaacuterio Tinham como aacuterea de jurisdiccedilatildeo territorial as Regiotildees Militares cujas sedes

se localizam em Satildeo Paulo Rio de Janeiro (1ordm BPE) Brasiacutelia Minas Gerais Rio Grande

do Sul Bahia Pernambuco e Cearaacute No entanto segundo Fico os CONDI natildeo tiveram

53

funcionamento significativo

Os Centros de Operaccedilotildees de Defesa Interna (CODI) eram oacutergatildeos de planejamento

e coordenaccedilatildeo das medidas de defesa interna dirigidos pelo chefe do Estado-Maior do

Exeacutercito da Regiatildeo e compostos por representantes de todas as Forccedilas bem como da

divisatildeo local de ordem poliacutetica e social das Poliacutecias Civil Militar Federal e da agecircncia

local do Serviccedilo Nacional de Informaccedilotildees (SNI) Entre suas funccedilotildees estavam o

planejamento o controle e a execuccedilatildeo das medidas de defesa interna a coordenaccedilatildeo dos

meios utilizados para esta execuccedilatildeo e a ligaccedilatildeo com todos os escalotildees envolvidos

devendo possibilitar a conjugaccedilatildeo de esforccedilos do Exeacutercito da Marinha da Aeronaacuteutica

do SNI do Poliacutecia Federal e das Secretarias de Seguranccedila Puacuteblica

Jaacute os Destacamentos de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) tinham uma

estruturaccedilatildeo interna tiacutepica composta por setores especializados em operaccedilotildees externas

informaccedilotildees contra-informaccedilotildees interrogatoacuterios e anaacutelises aleacutem de assessoria juriacutedica

e policial e setores administrativos O trabalho nesses destacamentos era ininterrupto

Utilizavam regularmente dois regimes de trabalho um de expediente regular (das 8 agraves

18 horas) e outro atraveacutes de plantotildees de 24 horas por 48 de folga Abaixo visualiza-se a

estrutura orgacircnica dos DOI que sintetiza suas funccedilotildees e sua hierarquia institucional

(FICO 2001 123-125)

54

DOI do Exeacutercito

No organograma acima nota-se que os DOI eram divididos por setores seccedilotildees e

subseccedilotildees Esses satildeo caracterizados por Fico de acordo com suas funccedilotildees e

composiccedilotildees e tambeacutem pelo coronel Freddie Perdigatildeo Pereira em sua monografia que eacute

analisada na segunda frente do estudo aqui traccedilado Percebe-se que essa caracterizaccedilatildeo

feita por Fico e por Pereira eacute muito proacutexima uma vez que eles utilizam os mesmos

termos e palavras para descrever o trabalho ou a formaccedilatildeo de determinado setor ou

seccedilatildeo Diante disso torna-se evidente que ambos os trabalhos se basearam no mesmo

documento que apesar de natildeo ser citado na monografia de Pereira eacute referenciado por

Fico como ldquoSistema de Seguranccedila Interna SISSEGIN Documento classificado como

lsquosecretorsquo [1974] Capiacutetulo 2rdquo Entretanto enquanto o Sistema de Seguranccedila Nacional

como um todo eacute o foco da pesquisa de Fico o DOI eacute o objeto de Pereira o que por

conseguinte o faz apresentar de forma mais detalhada a composiccedilatildeo de cada uma de

suas partes integrantes Logo optou-se aqui por tratar da estrutura interna dos DOI na

Comandante

Seccedilatildeo de contra-informaccedilotildees Turma de comando

Setor de operaccedilotildees de informaccedilotildees Setor de administraccedilatildeo

Turno auxiliar

Assistecircncia juriacutedica

e policial

Seccedilatildeo

administrativa

Seccedilatildeo de busca e

apreensatildeo

Setor de

investigaccedilotildees

Setor de anaacutelise e

informaccedilotildees

Subseccedilatildeo de

interrogatoacuterio Subseccedilatildeo de anaacutelise

55

proacutexima frente de estudo durante a anaacutelise da monografia de Pereira onde

trabalharemos com os DOI-CODI sob o ponto de vista de um de seus agentes ainda

durante a ditadura

Com relaccedilatildeo agrave atuaccedilatildeo dos DOI-CODI dentro do SISSEGIN Maria Celina

DrsquoArauacutejo em Os anos de Chumbo a memoacuteria militar sobre a repressatildeo (1994)

apresenta grandes contribuiccedilotildees para a presente pesquisa uma vez que em sua obra

analisa por meio de depoimentos ineacuteditos de militares a atuaccedilatildeo dos oacutergatildeos de

informaccedilatildeo e repressatildeo poliacutetica durante a ditadura militar

Partindo dessa abordagem de DrsquoArauacutejo destaca-se que diferentemente do que

acontecia na Oban cada um dos DOI-CODI tinha por comandante-geral o chefe do

Estado-Maior do Exeacutercito de sua respectiva Regiatildeo Militar e seu financiamento contava

com recursos orccedilamentaacuterios regulares do governo Logo os DOI-CODI natildeo

estabeleciam uma ligaccedilatildeo direta com o capital privado que entretanto ainda podia

investir de forma indireta na repressatildeo por meio de doaccedilotildees de maacutequinas e serviccedilos

Dessa forma os DOI-CODI tinham uma maior independecircncia financeira que junto com

a centralizaccedilatildeo hieraacuterquica que tambeacutem os caracterizava permitia que suas

investigaccedilotildees e accedilotildees procedessem de forma ainda mais eficiente Afinal esses atributos

evitavam que suas operaccedilotildees estivessem suscetiacuteveis agrave duplicidade de tarefas a

competiccedilotildees e a conflitos de interesses maximizando os seus resultados e tornando-os

uma espeacutecie de sofisticaccedilatildeo da repressatildeo

Aleacutem disso percebe-se que essa sofisticaccedilatildeo dos DOI-CODI tambeacutem era formada

pelo proposital distanciamento ali mantido entre os militares do governo e os agentes

desses oacutergatildeos de repressatildeo Afinal a ditadura ao mesmo tempo em que sancionava a

tortura nos seus ldquoporotildeesrdquo estrategicamente negava a sua existecircncia perante a sociedade

Assim esse cenaacuterio que isentava os governantes e os demais militares relacionados ao

56

poder poliacutetico do paiacutes de qualquer ligaccedilatildeo com a tortura se mantinha atraveacutes da

seguinte configuraccedilatildeo de um lado o torturador ndash que natildeo montou a maacutequina e jamais

efetuaria a tortura num salatildeo do quartel do Exeacutercito se temesse a reaccedilatildeo de seus

comandantes ndash e de outro o seu superior responsaacutevel pela ordem puacuteblica e

beneficiaacuterio direto do poder poliacutetico ndash que sancionava as maacutequinas mas natildeo tocava nos

presos

Dessa forma os DOI responsaacuteveis por accedilotildees que englobavam as prisotildees e os

interrogatoacuterios dos presos poliacuteticos eram instituiccedilotildees que prezavam por natildeo ser

externamente identificadas por seus meacutetodos violentos O sistema funcional dos DOI

era entatildeo complexo e informal de modo que por mais que neles existissem hierarquia e

coordenaccedilatildeo as brechas para que a falta de controle se propagasse eram amplas a fim

de que os meacutetodos natildeo regulamentares tais como as torturas pudessem ser

desempenhados com a eficiecircncia e a recorrecircncia necessaacuterias sem serem relacionados

diretamente a um comando

Diante disso justifica-se que conforme apurado por Maria Celina DrsquoArauacutejo a

versatildeo oficial dos militares ainda possa ser a de que a tortura jamais resultou de

qualquer ordem ou orientaccedilatildeo superior E mesmo quando chega a ser admitida apareccedila

como exceccedilatildeo como abuso ou excesso de poucos Entretanto torna-se aqui evidente a

incoerecircncia dessa versatildeo militar Afinal verifica-se que assim como em todos os

organismos militares nos DOI tambeacutem existiam uma forte hierarquia a ser cumprida

onde apesar de uma estrutura complexa qualquer accedilatildeo deveria ser remetida a um

superior o que sugere que a questatildeo da responsabilidade sempre poderia ser resgatada

Logo se militares reconhecem que existiram ldquoexcessosrdquo na eacutepoca e mesmo assim os

chefes imediatos de tais infratores natildeo tomaram as devidas providecircncias encontra-se

nos DOI entatildeo uma forte incongruecircncia com relaccedilatildeo ao princiacutepio militar de

57

responsabilizaccedilatildeo do chefe-superior Portanto diante dessa constataccedilatildeo de como eram

tratados os torturadores nos DOI percebe-se que apesar de velada em geral a tortura

era um procedimento ali consentido

2 O DOI-CODI por ele mesmo

A anaacutelise ateacute agora feita por meio da historiografia cede aqui lugar para se

concentrar sobre uma fonte especiacutefica pela qual a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

satildeo vistas por um acircngulo mais proacuteximo a partir do olhar de um de seus agentes

enquanto a instituiccedilatildeo ainda estava em atividade Trata-se do trabalho O Destacamento

de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de

combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e perspectivas apresentado em 1978 agrave Escola de

Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie

Perdigatildeo Pereira10

posteriormente apontado por ex-prisioneiros poliacuteticos como o

torturador ldquoNagibrdquo do DOI carioca do iniacutecio dos anos 1970

A referida fonte eacute uma espeacutecie de trabalho final da ECEME estabelecimento de

ensino tradicional do Exeacutercito brasileiro situado no bairro da Praia Vermelha no Rio de

Janeiro cuja missatildeo eacute a preparaccedilatildeo de oficiais superiores para o exerciacutecio de funccedilotildees

de Estado-Maior comando chefia direccedilatildeo e assessoramento dos mais elevados

escalotildees da Forccedila Terrestre 11

Logo eacute fruto de uma espeacutecie de preparaccedilatildeo que o

coronel Pereira estava se submetendo a fim de ocupar algum cargo de chefia dentro do

Exeacutercito

Escrita durante a ditadura militar enquanto os DOI-CODI ainda estavam em

funcionamento embora em menor atividade devido agrave propagaccedilatildeo de denuacutencias sobre

10

Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II 11

ESCOLA de Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) [acesso em 29 jan 2012] Disponiacutevel

em httpwwwecemeensinoebbreceme

58

torturas e mortes ocasionadas dentro do Destacamento a monografia permite trabalhar

diretamente com a visatildeo de um dos agentes do DOI-CODI ainda no ldquocalor da horardquo

como se costuma dizer O tema abordado eacute a atuaccedilatildeo dos DOI durante o seu periacuteodo de

maior efetividade de 1970 a 1973 provavelmente como uma tentativa de fortalecer a

instituiccedilatildeo e reforccedilar o seu poder trazendo agrave tona os ldquovelhos temposrdquo de grande

atividade

Em 1978 momento em que a monografia foi escrita o DOI-CODI havia

diminuiacutedo suas atividades de repressatildeo se restringindo apenas ao papel de investigaccedilatildeo

Como indica o referido coronel no seguinte trecho

Fruto principalmente do trabalho anocircnimo e incansaacutevel dos DOI o

terrorismo no Brasil foi praticamente aniquilado Em funccedilatildeo disso tais

oacutergatildeos foram e continuam sendo alvo de uma das mais virulentas campanhas

difamatoacuterias que a imprensa brasileira e internacional jaacute desencadearam

contra uma instituiccedilatildeo E os DOI que surgiram no fragor da luta e com

estrutura adaptada para enfrentar a accedilatildeo direta no combate aberto

reformulam a sua atuaccedilatildeo [] O efetivo elevado trabalhando atualmente na

Seccedilatildeo de Investigaccedilotildees pode dar ideia do tipo de trabalho que ora eacute

desenvolvido nos DOI com prioridade absoluta Trata-se do levantamento

total das organizaccedilotildees atuantes a partir da vigilacircncia permanente e cerrada

sobre os elementos jaacute identificados [] o trabalho nos DOI deixou de ter

aquele caraacuteter de combate de peito aberto tantas vezes levado a efeito por

seus pioneiros Transformou-se o DOI atual numa verdadeira agecircncia de

informaccedilotildees onde impera o trabalho frio e calculado do analista a teacutecnica

sofisticada de aparelhagem eletrocircnica substituindo a coragem pessoal de

seus elementos

Os DOICODI satildeo e sempre seratildeo as sentinelas atentas e vigilantes de nossa

liberdade (Pereira 1978 28-35)

Essa mudanccedila promovida nos DOI se relaciona diretamente com o momento

vivido pelo Brasil em 1978 Existia entatildeo uma incompatibilidade entre a distensatildeo

59

poliacutetica ldquolenta gradual e segurardquo comandada pelo Presidente Ernesto Geisel a fim de

abrir o paiacutes e instalar futuramente uma democracia e as denuacutencias sobre torturas e

mortes que continuavam a ocorrer dentro dos DOI-CODI e eram com frequecircncia

noticiadas pelos jornais do Brasil e do mundo Assim com o intuito de reverter este

cenaacuterio desfavoraacutevel Geisel optou por exonerar em 1976 o comandante do II Exeacutercito

o general Ednardo DAacutevila Melo afastar do governo no ano seguinte o entatildeo ministro

do Exeacutercito o general Siacutelvio Frota ndash visto por muitos agentes dos DOI como uma

lideranccedila contra a distensatildeo poliacutetica e o enfraquecimento das operaccedilotildees repressoras e

apoiado como eventual candidato agrave Presidecircncia da Repuacuteblica ndash e de forma geral

diminuir a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI no combate direto agrave ldquosubversatildeordquo concentrando suas

atividades apenas na investigaccedilatildeo

Esta atitude logicamente causou resistecircncia entre muitos integrantes dos DOI-

CODI que tentavam provar a necessidade da atuaccedilatildeo repressora da instituiccedilatildeo para a

proteccedilatildeo da Seguranccedila Nacional Essas tentativas incluiacuteam muitas accedilotildees forjadas pelos

proacuteprios agentes dos DOI como atentados a bomba em bancas de jornal instituiccedilotildees que

lutavam contra a ditadura ndash como a sede da OAB no Rio de Janeiro atacada em agosto

de 1980 quando morreu a secretaacuteria Lyda Monteiro ndash e shows populares ndash como a

tentativa frustrada de ataque a bomba de dois agentes do DOI do Rio de Janeiro em

maio de 1980 no show em homenagem ao dia do trabalhador no Riocentro

Outro aspecto dessa fonte que merece tambeacutem ser aqui destacado satildeo as

circunstacircncias pessoais que impulsionaram a sua confecccedilatildeo Afinal se a funccedilatildeo da

ECEME eacute preparar militares para ocupar cargos de chefia dentro do Exeacutercito

certamente a monografia foi um requisito necessaacuterio para que o coronel Pereira se

preparasse para uma promoccedilatildeo na carreira militar Partindo dessa informaccedilatildeo e

juntando-a ao dado que Elio Gaspari apresenta na obra A Ditadura Escancarada (2002

60

184) de que foi oferecido ao mesmo coronel no iniacutecio de 1980 o posto de general de

brigada percebe-se que de fato essa preparaccedilatildeo de Pereira lhe gerou frutos Poreacutem de

acordo com Gaspari para ser general de brigada ele teria que aceitar comandar uma

tropa em uma unidade militar de Satildeo Paulo o que natildeo lhe agradou Preferiu entatildeo a

opccedilatildeo de ir para a reserva e ao mesmo tempo permanecer como contratado em um

cargo na seccedilatildeo de operaccedilotildees do SNI do Rio de Janeiro recebendo no total uma receita

superior agrave de general de Exeacutercito Essa situaccedilatildeo tal como o tema escolhido para sua

monografia eacute mais uma evidecircncia do apreccedilo que coronel Pereira tinha pelo ofiacutecio

investigativo que outrora exerceu nos DOI Diante de sua progressatildeo profissional e do

esvaziamento que os DOI vinham sofrendo o SNI12

se tornava uma opccedilatildeo atraente

pois aleacutem de ser uma instituiccedilatildeo que investigava elementos que ameaccedilavam a

Seguranccedila Nacional estava diretamente ligada ao alto esquadratildeo do Exeacutercito ciacuterculo de

que Pereira fazia parte nesse momento

Com relaccedilatildeo agrave monografia desse coronel muitos pontos interessantes satildeo

destacados Entre eles o detalhamento estrutural dos DOI-CODI

Internamente os CODI eram subdivididos entre trecircs centrais 1- Central de

Informaccedilotildees 2- Central de Operaccedilotildees 3- Central de Assuntos Civis O comando

principal era da 1- Central de Informaccedilotildees que coordenava as investigaccedilotildees locais e

era chefiada pelo dirigente do CODI ou seja pelo chefe do Estado-Maior do Exeacutercito

da aacuterea que deveria ser um general do Exeacutercito Este reunia em sua equipe um

representante local do alto escalatildeo da Aeronaacuteutica da Marinha do SNI e do

Departamento de Poliacutecia Federal o diretor do DOPS e o Comandante do DOI daquela

jurisdiccedilatildeo aleacutem do chefe da 2ordf Seccedilatildeo da Poliacutecia Militar responsaacutevel pela parte de

informaccedilotildees relativas a crimes poliacuteticos Jaacute a 2- Central de Operaccedilotildees e a 3- de

12

Para mais informaccedilotildees sobre a formaccedilatildeo do SNI ver Antunes 2002

61

Assuntos Civis davam suporte agrave equipe da 1- de Informaccedilotildees e para tanto tambeacutem

congregavam em suas equipes representantes das trecircs Forccedilas sendo um representante

do Exeacutercito da Regiatildeo Militar correspondente responsaacutevel por ocupar o cargo de chefe

aleacutem de um representante credenciado da Poliacutecia Civil da Poliacutecia Militar local e de

outros oacutergatildeos quando fosse necessaacuterio para contribuir com alguma anaacutelise especiacutefica

O CODI de cada Regiatildeo Militar tinha por funccedilatildeo centralizar as informaccedilotildees de

caraacuteter ldquosubversivordquo e repassaacute-las ao DOI correspondente para que as operaccedilotildees de

informaccedilotildees fossem realizadas de forma concentrada atraveacutes desse uacutenico oacutergatildeo e por

conseguinte sob um uacutenico comando Assim evitava-se que vaacuterios oacutergatildeos de informaccedilatildeo

ligados a uma das trecircs Forccedilas ou agraves Poliacutecias realizassem suas operaccedilotildees

independentemente de qualquer coordenaccedilatildeo ou planejamento global o que poderia

acabar prejudicando as accedilotildees contra seus ldquoinimigos internosrdquo

Afinal de acordo com as informaccedilotildees levantadas por Pereira em sua monografia

antes dos DOI-CODI serem institucionalizados natildeo foram poucas as vezes que um

desses oacutergatildeos prejudicou a atuaccedilatildeo de outro Em diversos momentos enquanto um

estava realizando uma vigilacircncia sobre determinados elementos ldquosubversivosrdquo por

exemplo outro sem saber da accedilatildeo do primeiro prendia dois ou trecircs desses elementos

Dessa forma os demais membros da mesma organizaccedilatildeo ao saberem da prisatildeo de seus

companheiros natildeo retornavam agrave aacuterea sob vigiacutelia e evitavam ser presos Tambeacutem em

vaacuterias ocasiotildees a documentaccedilatildeo apreendida por determinado oacutergatildeo de seguranccedila ficava

em seu poder e natildeo era encaminhada para outros escalotildees para ser analisada Com essas

informaccedilotildees ldquoencostadasrdquo as accedilotildees armadas de organizaccedilotildees de esquerda que ali

estavam indicadas prosseguiam normalmente sem impedimentos

Percebe-se portanto como a centralizaccedilatildeo de informaccedilotildees e de accedilotildees de

seguranccedila interna implantada pelos DOI-CODI conduziu a resultados positivos para a

62

repressatildeo Natildeo eacute agrave toa que conforme analisado anteriormente a partir da tese de Maria

Celina DrsquoArauacutejo os DOI-CODI satildeo aqui entendidos como a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo

jaacute que os CODI passaram a concentrar e coordenar as informaccedilotildees e atraveacutes dos DOI a

executar de forma concentrada as operaccedilotildees de informaccedilotildees

Oacutergatildeos operacionais dos CODI os Destacamentos de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees

os DOI eram destinados ao trabalho de combate direto ao ldquoinimigo internordquo Para tanto

conforme analisado a partir da monografia de Pereira e da jaacute referida obra de Fico13

os

DOI dividiam-se basicamente entre 1- Setor de operaccedilotildees de informaccedilotildees e 2- Setor de

administraccedilatildeo Tais setores estavam diretamente subordinados ao comandante do

Destacamento daquela Regiatildeo Militar que normalmente deveria ser um tenente-coronel

com vivecircncia na aacuterea de informaccedilotildees Essa patente de tenente-coronel compunha o

ciacuterculo hieraacuterquico de oficiais e a hierarquia de oficiais superiores14

ou seja pertencia

ao acircmbito de convivecircncia desses oficiais e portanto era considerado um deles Isto

significa que os comandantes dos DOI estavam um degrau abaixo do uacuteltimo acircmbito

hieraacuterquico do Exeacutercito o dos oficiais-generais ciacuterculo referente aos chefes dos CODI

que deveriam possuir a patente de general de Exeacutercito

Chefiado pelo subcomandante do DOI o 1- Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees

tinha diretamente subordinado a ele 11- Setor de Investigaccedilatildeo 12- Setor de Anaacutelise e

Informaccedilotildees e 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo Jaacute o 2- Setor de administraccedilatildeo se

subdividia em 21- Assessoria Juriacutedica e Policial e 22- Seccedilatildeo administrativa

Ao 11- Setor de Investigaccedilatildeo cabia fundamentalmente a realizaccedilatildeo de

investigaccedilotildees com a finalidade de identificar e localizar ldquoelementos subversivosrdquo a fim

de repassar as informaccedilotildees para que os agentes da 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo

prendessem os suspeitos e localizassem os seus ldquoaparelhosrdquo (termo designado para

13

Para visualizar o organograma dos DOI voltar agrave paacutegina 54 14

Para mais informaccedilotildees sobre os ciacuterculos hieraacuterquicos e a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II

63

definir o local em que ficavam escondidos os integrantes dos grupos de esquerda que

viviam na clandestinidade) A chefia e a subchefia do 11- Setor de Investigaccedilatildeo era

privativa de oficiais do Exeacutercito e seus integrantes natildeo deveriam ser identificados pelos

elementos a serem presos a fim de que a eficiecircncia da accedilatildeo fosse garantida uma vez que

as suas identificaccedilotildees poderiam ocasionar a fuga dos suspeitos No entanto quando a

situaccedilatildeo exigia os integrantes desse setor poderiam efetuar prisotildees neutralizar

ldquoaparelhosrdquo e apreender material ldquosubversivordquo Esse 11- Setor de Investigaccedilatildeo agia por

meio de diversas turmas de investigaccedilatildeo compostas cada uma por um agente um

auxiliar e um carro normalmente da marca Volkswagen

O 12- Setor de Anaacutelise e Informaccedilotildees tinha por funccedilatildeo fornecer ao comandante

do DOI e aos demais setores seccedilotildees e subseccedilotildees informaccedilotildees estudos e conclusotildees

sobre as organizaccedilotildees ldquosubversivo-terroristasrdquo que atuavam na aacuterea Esse setor era

composto por um chefe sem patente ou ciacuterculo hieraacuterquico preacute-determinados pela

121- Subseccedilatildeo de anaacutelise e pela 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio

A 121- Subseccedilatildeo de anaacutelise tambeacutem natildeo exigia de forma predeterminada a

patente ou o ciacuterculo hieraacuterquico de quem a chefiasse Tinha por funccedilatildeo analisar os

depoimentos prestados pelos presos daquele DOI analisar o material das organizaccedilotildees

ldquoterroristasrdquo que havia sido recolhido pelas turmas da 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo

fornecer subsiacutedios ao chefe do 1- Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees e agrave equipe da

122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio manter para cada organizaccedilatildeo de esquerda uma pasta

com o seu histoacuterico relaccedilatildeo de nomes e codinomes relaccedilatildeo de accedilotildees e uma espeacutecie de

aacutelbum contendo as fichas de qualificaccedilatildeo fotografia atuaccedilatildeo e situaccedilatildeo de cada um de

seus elementos e por fim organizar atualizar e manter o arquivo geral contendo o

dossiecirc de cada elemento fichado

64

Jaacute a 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio era responsaacutevel pelo interrogatoacuterio e por

conseguinte pela aplicaccedilatildeo de torturas nos presos a fim de fazecirc-los falar o que sabiam

Seu chefe deveria ser um oficial do Exeacutercito de niacutevel de capitatildeo ou seja deveria

pertencer ao ciacuterculo hieraacuterquico de oficiais mas natildeo ao meio de oficiais superiores e

sim ao de oficiais intermediaacuterios No entanto a partir do ano de 1971 era preferiacutevel que

ele tivesse o curso B1 da Escola Nacional de Informaccedilotildees (EsNI) Este curso era uma

espeacutecie de especializaccedilatildeo em informaccedilotildees e seguranccedila interna ministrada pela EsNI

escola que havia sido criada pelo SNI durante o ano de 1971 e era a este subordinada

Como a 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio trabalhava ininterruptamente durante 24

horas ela se dividia em trecircs turmas de interrogatoacuterio preliminar cada uma chefiada

tambeacutem por um capitatildeo do Exeacutercito com o curso B1 da EsNI Essas turmas eram

compostas por seis agentes cada e aleacutem disso subordinada ao chefe de cada uma delas

existia uma turma auxiliar encarregada da carceragem e da datilografia de documentos

Jaacute a 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo tinha por ofiacutecio efetuar prisotildees ldquocobrir

pontosrdquo (preparar uma emboscada para prender os militantes esquerdistas no momento

em que se encontravam em algum ponto anteriormente combinado) neutralizar

ldquoaparelhosrdquo apreender material ldquosubversivordquo coletar dados que possibilitassem o

levantamento de elementos ldquosubversivosrdquo conduzir presos ao DOPS auditorias

hospitais etc O chefe deveria ser um oficial do Exeacutercito sem predeterminaccedilatildeo de

patente militar e sua equipe se dividia em trecircs grupamentos ldquoAB e Crdquo Cada um deles

era composto por quatro turmas de busca e apreensatildeo que tinham cerca de trecircs ou cinco

agentes e possuiacuteam cada uma um carro espaccediloso muitas vezes dos modelos C14 Opala

ou Kombi equipado com raacutedio Aleacutem disso a 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo

tambeacutem era composta por quatro turmas de coletas de dados que tinham por missatildeo

reunir informaccedilotildees sobre os ldquosubversivosrdquo em universidades coleacutegios etc Cada uma

65

dessas turmas era constituiacuteda por dois elementos um oficial da PM da regiatildeo ou um

delegado de poliacutecia e um motorista que normalmente dirigia um carro de marca

Volkswagen com raacutedio

Ligada ao 2- Setor de administraccedilatildeo a 22- Seccedilatildeo administrativa garantia o apoio

logiacutestico ao DOI ou seja organizava o pedido de gecircneros alimentiacutecios bem como

outros utensiacutelios e equipamentos necessaacuterios Esta seccedilatildeo natildeo tinha nenhum tipo de

exigecircncia de patente ou ciacuterculo hieraacuterquico para o cargo de chefe Jaacute a 21- Assessoria

Juriacutedica e Policial era chefiada por um delegado de poliacutecia e tinha por missatildeo

assessorar o Comandante do DOI em assuntos judiciais elaborar a documentaccedilatildeo

formal e legal referente ao material apreendido e agraves confissotildees dos prisioneiros e

controlar a menagem dos presos que fossem liberados

A menagem estipulada pelo Coacutedigo Processual Militar criado pelo decreto-lei

1002 de outubro de 1969 era uma espeacutecie de prisatildeo cautelar concedida ao militar ou

ao civil que tivesse praticado um crime de cunho militar com previsatildeo de pena privativa

de liberdade O local de cumprimento da menagem era a cidade onde residisse o

suspeito no momento do crime ou a sede do oacutergatildeo que tivesse investigando a sua accedilatildeo

Como a partir do AI-5 os suspeitos de crimes poliacuteticos passaram a ser julgados pela

Justiccedila Militar e o instituto do habeas corpus foi suprimido atraveacutes da menagem os

suspeitos detidos poderiam ser levados agrave sede do DOI-CODI da respectiva Regiatildeo

Militar Afinal era neste oacutergatildeo que as investigaccedilotildees sobre os crimes poliacuteticos de

determinada aacuterea se concentravam A menagem tinha por fundamento evitar o conviacutevio

do acusado ateacute o seu julgamento em primeira instacircncia com pessoas que jaacute estivessem

condenadas Dessa forma a validade da menagem terminava a partir da abertura de um

processo condenatoacuterio contra o suspeito quando entatildeo este seria transferido para uma

Delegacia de Poliacutecia tal como o DOPS por exemplo para ser enfim julgado e poder se

66

fosse o caso cumprir sua pena em um presiacutedio convencional Poreacutem ateacute isso acontecer

caso fosse enquadrado como um possiacutevel criminoso poliacutetico esse suspeito poderia ficar

detido no DOI correspondente por ateacute trinta dias podendo sua prisatildeo ainda ser

prorrogada por mais sessenta dias

A menagem era entatildeo um respaldo legal tanto para o isolamento do preso poliacutetico

nos quarteacuteis que sediavam os DOI quanto se fosse o caso para o acompanhamento de

sua vida em liberdade ateacute o dia de seu julgamento Caso fosse diagnosticado pelos

agentes do respectivo DOI que o suspeito jaacute tivesse concedido todas as informaccedilotildees que

tinha e natildeo representasse perigo agrave Seguranccedila Nacional a instituiccedilatildeo poderia solicitar ao

juiz a sua liberaccedilatildeo a fim de que a sua menagem fosse cumprida em liberdade Quando

isto ocorria o suspeito deveria ficar na mesma cidade que havia sido preso ateacute o seu

julgamento em primeira instacircncia

Diante dos organogramas dos CODI e dos DOI aqui traccedilados evidencia-se que

existiam diferenccedilas nas patentes hieraacuterquicas dos chefes de cada um desses oacutergatildeos

Enquanto o chefe dos CODI era o chefe de Estado-Maior do Exeacutercito de cada Regiatildeo

Militar ou seja um general de Exeacutercito que por conseguinte pertencia ao ciacuterculo

hieraacuterquico de oficiais-generais localizado no topo da hierarquia militar o chefe de

cada DOI era um tenente-coronel patente que se insere no ciacuterculo hieraacuterquico de

oficiais superiores ou seja imediatamente abaixo do de oficiais-generais Assim como

os DOI eram o braccedilo operacional dos CODI ou seja a eles subordinados o fato de seus

chefes estarem obrigatoriamente no ciacuterculo hieraacuterquico abaixo dos dirigentes dos CODI

leva a crer que dentro dos DOI-CODI havia de fato um respeito agrave hierarquia militar

Este respeito jaacute foi aqui destacado por meio da anaacutelise historiograacutefica baseada na

tese Maria Celina DrsquoArauacutejo (1994) que defende a ideia de que o princiacutepio da

obediecircncia hieraacuterquica apesar de velado existia nos DOI-CODI logo como a tortura

67

fazia parte de suas accedilotildees ela era consentida Afinal se laacute existiam chefias e nelas a

hierarquia militar era minimamente respeitada isso sinaliza que as accedilotildees eram

comandadas por chefes que tinham o consentimento de seus chefes diretos para darem

tal ordem Portanto a tortura impetrada pelas turmas de interrogatoacuterio preliminar era

consentida pelo capitatildeo que as chefiava pelo capitatildeo que comandava a respectiva

Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio a que elas estavam subordinadas pelo chefe do Setor de

Anaacutelise e Informaccedilotildees que chefiava o chefe dessa Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio pelo

subcomandante do DOI que era responsaacutevel pelo Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees a

que o Setor de Anaacutelise e Informaccedilotildees estava vinculado pelo tenente-coronel que

comandava o DOI e estava hierarquicamente acima do chefe do Setor de Anaacutelise e

Informaccedilotildees e pelo general do Exeacutercito que dirigia o CODI e tinha o comandante do

DOI a ele subordinado Logo o DOI-CODI foi construiacutedo de forma tatildeo centralizada que

a maioria das accedilotildees feitas por algum de seus integrantes passava por toda a cadeia

hieraacuterquica nele envolvida

Assim se torna mais uma vez evidente que a tortura como meacutetodo de

interrogatoacuterio quando utilizada pelos agentes do DOI era consentida por seus

superiores e natildeo um fenocircmeno isolado ou mesmo ldquoexcesso de poucosrdquo como muitos

militares costumam argumentar Esta argumentaccedilatildeo que aparentemente encontra

fundamento no alto grau de autonomia e independecircncia que os DOI possuiacuteam eacute

derrubada quando se evidencia que estes eram autocircnomos e independentes apenas em

relaccedilatildeo a batalhotildees e outras instituiccedilotildees militares Afinal os DOI foram programados

para atuar a par das subordinaccedilotildees preacute-existentes em outros oacutergatildeos podendo congregar

agentes de instacircncias militares poliacutecias e Forccedilas diferentes entre si mas sem deixar de

respeitar a hierarquia do Exeacutercito inserida em seu interior tendo por direccedilatildeo maacutexima o

Chefe de Estado-Maior do Exeacutercito

68

Outro ponto interessante que a caracterizaccedilatildeo do organograma dos DOI ajuda a

revelar eacute o fato do cargo de chefe da Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio ser privativo de um

oficial do Exeacutercito de niacutevel de capitatildeo ou seja que deveria pertencer ao ciacuterculo

hieraacuterquico de oficiais intermediaacuterios excluindo-se das atividades afeitas agrave posiccedilatildeo de

membros do ciacuterculo hieraacuterquico dos oficiais superiores e dos oficiais-generais onde se

encontravam os homens que governavam o paiacutes Logo por traacutes dessa condiccedilatildeo de

chefia havia a tentativa de manter a responsabilidade direta dos atos proferidos nessa

Subseccedilatildeo longe do ciacuterculo de oficiais superiores ou de oficiais-generais instacircncias

maacuteximas na hierarquia do Exeacutercito Dessa forma as torturas executadas durante os

interrogatoacuterios natildeo seriam relacionadas aos ocupantes das altas patentes do Exeacutercito

que durante a ditadura eram os que estavam agrave frente do governo brasileiro Essa

medida era portanto para dissociar a imagem dos governantes com o que ocorria nos

porotildees

No entanto eacute notaacutevel que indiretamente o governo ditatorial apoiasse as torturas

que as turmas de interrogatoacuterio preliminar executavam nos DOI-CODI uma vez que

obviamente os governantes tinham conhecimento sobre a determinaccedilatildeo de que os

agentes dessas turmas e os chefes da Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio deveriam ter

preferencialmente uma espeacutecie de especializaccedilatildeo em informaccedilotildees e seguranccedila

ministrada pela EsNI Nesta escola ndash ligada ao SNI que era composto pelas mais altas

patentes do Exeacutercito e diretamente ligado ao alto escalatildeo do governo ndash os alunos

provavelmente recebiam instruccedilotildees sobre os meacutetodos de tortura a serem aplicados

durante o serviccedilo

Aleacutem disso o fato do chefe e dos demais componentes da Subseccedilatildeo de

interrogatoacuterio serem ligados ao ciacuterculo de oficiais intermediaacuterios do Exeacutercito tambeacutem

vai ao encontro da anaacutelise historiograacutefica sobre a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

69

aqui apresentada a partir dos conceitos de Martins Filho de cizacircnia militar palaacutecio e

caserna Afinal a caserna era composta por militares de meacutedias e baixas patentes que

durante os primeiros anos da ditadura lutaram internamente por atuarem no combate ao

ldquoinimigo internordquo a fim de terem uma maior participaccedilatildeo na poliacutetica o que ocasionou

algumas cizacircnias militares Foi justamente por temer o resultado dessas cizacircnias que o

palaacutecio formado pelos militares de altas patentes que possuiacuteam cargos no governo aos

poucos cedeu esses poderes agrave caserna e assim o aparato de seguranccedila nacional foi

sendo instituiacutedo e dentro dele o SISSEGIN e os DOI-CODI Logo como eacute na

Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio e tambeacutem na Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo onde a atuaccedilatildeo

de interrogar torturar e prender traz os poderes poliacuteticos extras que a caserna

historicamente reivindicava percebe-se que a utilizaccedilatildeo de seus militares para compor

essas equipes era mais uma forma de manter a unidade militar contendo possiacuteveis

cizacircnias

Essa perspectiva torna-se completa quando se identifica que no momento em que

tais atribuiccedilotildees passaram a ser retiradas dos militares da caserna essas cizacircnias natildeo

mais puderam ser contidas Afinal conforme jaacute evidenciado anteriormente quando a

partir do governo de Geisel as atividades de busca apreensatildeo e interrogatoacuterio dos DOI

foram sendo abolidas a caserna passou a reagir posicionando-se contraacuteria agrave cuacutepula do

governo que defendia a abertura poliacutetica passando a apoiar a candidatura presidencial

de militares que defendessem a continuidade de tais atribuiccedilotildees aos DOI e ateacute mesmo

forjando situaccedilotildees terroristas tais como os diversos ataques a bomba que ocorreram na

eacutepoca como forma de endossar a necessidade das atuaccedilotildees repressivas desenvolvidas

pelos DOI

A monografia do coronel Pereira aqui analisada pode tambeacutem ser vista como

mais uma dessas reaccedilotildees da caserna Afinal durante toda a escrita de Pereira haacute uma

70

necessidade de comprovar a eficiecircncia dos DOI na atividade de proteger a seguranccedila

interna do paiacutes Percebe-se assim que Pereira apesar de ser coronel e por conseguinte

jaacute estar entre os oficiais superiores nesse momento ainda se via ligado de alguma forma

aos DOI Talvez porque a histoacuteria de sua carreira militar estivesse totalmente

relacionada com as atividades que ele laacute desempenhou e por isso acreditasse que

enquanto tais atividades continuassem sendo desenvolvidas o seu trabalho tambeacutem

continuaria a ser reconhecidamente importante

Os setores seccedilotildees e subseccedilotildees do DOI normalmente seguiam a configuraccedilatildeo aqui

exposta poreacutem nota-se que suas equipes natildeo eram fixas ou seja poderiam variar de

acordo com as necessidades das operaccedilotildees que surgissem Os DOI foram assim

concebidos como organismos instaacuteveis pois dependendo da gravidade e da quantidade

de accedilotildees armadas que deveriam ser reprimidas o nuacutemero de agentes poderia aumentar

ou diminuir Dessa forma os DOI se adaptavam a diversas circunstacircncias a fim de

combater com eficiecircncia o ldquoterrorismordquo e a ldquosubversatildeordquo

Grande parte dessa necessidade de adaptaccedilatildeo vinha da sobrevalorizaccedilatildeo da

guerrilha urbana entre os militares ligados a organismos de repressatildeo Uma vez que ao

verem a forma organizada e ousada com que a esquerda armada montava suas accedilotildees

sentiram que a estrutura repressiva da eacutepoca anterior agrave experiecircncia da Oban e ao

surgimento dos DOI natildeo estava preparada para combatecirc-las e diante disso

interpretaram tais accedilotildees esquerdistas como uma forte ameaccedila ao paiacutes Afinal as

instituiccedilotildees responsaacuteveis pela repressatildeo direta como por exemplo os DOPS estavam

engessadas por corporaccedilotildees fixas que combatiam as referidas accedilotildees de forma pouco

efetiva reprimindo-as sem a centralizaccedilatildeo e a grandiosidade necessaacuterias

A todos estes atos de banditismo [fazendo referecircncia a assaltos a banco a

sequestros de embaixadores e outras accedilotildees efetuadas pela esquerda armada

71

entre os anos de 1969 e 1970] a nossa Poliacutecia Civil e a Poliacutecia Militar

assistiam sem nada poder fazer Vaacuterias radiopatrulhas foram incendiadas e

os poucos soldados que ousavam enfrentar os terroristas eram

impiedosamente mortos Por que isso acontecia Porque as nossas poliacutecias

foram surpreendidas e natildeo estavam preparadas para um novo tipo de luta que

surgia a guerrilha urbana (Pereira 1978 10)

Entatildeo para conter a guerrilha urbana surgiu a necessidade de um oacutergatildeo de

repressatildeo centralizado e de estrutura maleaacutevel que tornasse possiacutevel e praacutetico reprimir

determinada accedilatildeo armada de acordo com a sua grandiosidade aumentando e diminuindo

o corpo funcional conforme o esforccedilo exigido Em meio a esta concepccedilatildeo de repressatildeo

a estrutura dos DOI foi criada tornando a repressatildeo poliacutetica mais combativa e

consequentemente aumentando a sua eficiecircncia

Com tamanha flexibilidade os DOI movimentavam pessoal e material variaacutevel

com grande mobilidade e agilidade Essa destacada autonomia dos DOI era travada

portanto em benefiacutecio de um aproveitamento maacuteximo de suas accedilotildees jaacute que eram

oacutergatildeos destinados ao combate direto agraves organizaccedilotildees subversivo-terroristas e sua

missatildeo era desmontar toda a estrutura de pessoal e de material destas organizaccedilotildees

bem como impedir a sua reorganizaccedilatildeo (Pereira 1978 22)

A utilizaccedilatildeo de codinomes pelos integrantes das turmas de interrogatoacuterio

preliminar era outra face dessa autonomia de trabalho dos DOI Esse costume era um

benefiacutecio de proteccedilatildeo para a instituiccedilatildeo e tambeacutem para tais militares Afinal como

muitos deles possivelmente aplicavam torturas nos presos durante os interrogatoacuterios o

sigilo com relaccedilatildeo aos seus nomes verdadeiros poderia inviabilizar posteriores

denuacutencias e por conseguinte fortes indiacutecios de que nos DOI a tortura era uma praacutetica

institucionalizada

Aleacutem disso essa mesma autonomia tambeacutem permitia que seus agentes para natildeo

serem reconhecidos pelos ldquoinimigosrdquo durante uma accedilatildeo de prisatildeo por exemplo natildeo

72

trabalhassem de farda e usassem trajes civis o que seria impensaacutevel em qualquer quartel

militar

Como norma de seguranccedila para o trabalho diaacuterio eacute obrigatoacuterio o uso de

traje civil (esporte ou social) de acordo com a missatildeo a desempenhar

Mesmo os oficiais e os comandantes de seccedilatildeo devem de preferecircncia usar

trajes esporte para se confundirem com a maioria dos integrantes do DOI

(Pereira 1978 25)

Os cabelos longos eram outra caracteriacutestica que apesar de improacutepria entre as

demais instituiccedilotildees militares a autonomia dos DOI imprimia a seus agentes conforme

evidenciado no seguinte trecho o cabelo deve ter o tamanho normalmente usado pela

maioria da populaccedilatildeo sendo proibido o cabelo com corte do ldquotipo militarrdquo (Pereira

1978 25) Percebe-se portanto que junto aos trajes civis os cabelos maiores

completavam o visual que os militares dos DOI precisavam ter para que evitassem ser

facilmente reconhecidos nas ruas Dessa forma tentavam minimizar os riscos de serem

percebidos durante uma operaccedilatildeo de investigaccedilatildeo ou minutos antes de efetuarem uma

accedilatildeo de prisatildeo Poreacutem apesar da utilizaccedilatildeo dessas caracteriacutesticas natildeo usuais ser em

benefiacutecio das funccedilotildees que exerciam nos DOI esses militares muitas vezes natildeo eram

compreendidos por aqueles que nas palavras de Pereira natildeo possuiacuteam uma

mentalidade de informaccedilotildees e por conta disso viam no uso do cabelo grande um ato de

indisciplina Essa incompatibilidade de interpretaccedilotildees portanto gerava alguns

transtornos para os agentes dos DOI que mesmo condecorados pela eficiecircncia de seus

serviccedilos de informaccedilotildees agraves vezes passavam por alguns constrangimentos

Jaacute aconteceu o fato de um oficial ou sargento de um DOI necessitar

comparecer a sua Unidade Militar a fim de tratar qualquer problema pessoal

ou mesmo de um assunto de serviccedilo Estes elementos eram barrados agrave

entrada de seus quarteacuteis e recebiam ordem dos comandantes para

73

regressarem cortarem o cabelo e a barba e se apresentarem fardados ou com

a posse de um documento de identidade assinado pelo Comandante do

Exeacutercito autorizando o uso do traje civil e o porte de arma Este

procedimento por parte de algumas autoridades militares daacute a entender que

os elementos do Serviccedilo de Informaccedilotildees satildeo indisciplinados

desenquadrados e sem espiacuterito militar Entretanto eacute necessaacuterio frisar que a

realidade eacute que por exemplo no DOI-CODI do II Exeacutercito [DOI-CODISP]

em trecircs anos 90 componentes foram condecorados com a medalha do

pacificador com palma (Pereira 1978 26)

A medalha do pacificador com palma eacute em tempo de paz a mais alta

condecoraccedilatildeo concedida pelo Comandante do Exeacutercito aos militares e civis brasileiros

que no exerciacutecio de sua funccedilatildeo ou no cumprimento de missotildees de caraacuteter militar

tenham se destacado por atos pessoais de abnegaccedilatildeo coragem e bravura com risco de

vida Portanto muitas vezes os agentes dos DOI que exerciam a funccedilatildeo de prender

integrantes de uma organizaccedilatildeo muito procurada de ldquodesmontar aparelhosrdquo de

destacada importacircncia investigativa ou mesmo de conseguir informaccedilotildees cruciais

durante interrogatoacuterios eram condecorados pelo Comandante do respectivo Exeacutercito

pelo serviccedilo prestado agrave paacutetria Logo percebe-se que mesmo existindo os

constrangimentos institucionais anteriormente citados os oficiais envolvidos nos DOI

eram prestigiados por seus serviccedilos e se sentiam valorizados e incentivados a designaacute-

los com rapidez e eficiecircncia

A partir disso evidencia-se mais uma vez que a tortura nos DOI era consentida

pelos militares superiores e ateacute mesmo incentivada pois atraveacutes do ldquoauxiacuteliordquo que

prestava aos interrogatoacuterios as informaccedilotildees poderiam ser mais faacutecil e rapidamente

conseguidas e grande quantidade de suspeitos presos ldquoaparelhos desmontadosrdquo e

materiais ldquosubversivosrdquo recolhidos Como a presteza desse serviccedilo era almejada tantos

pelos agentes dos DOI interessados no destaque e no reconhecimento militar quanto

74

por seus superiores que vislumbravam neutralizar o quanto antes a ameaccedila que o

ldquoinimigo internordquo representava para o governo ditatorial a tortura parecia ser nos DOI

um meio que se justificava pelos fins

Assim a centralizaccedilatildeo a flexibilidade a autonomia e o consentimentoincentivo agrave

tortura pautavam o ldquoeficienterdquo serviccedilo de repressatildeo dos DOI conforme se pode apurar a

partir dos dados do DOI-CODISP levantados ateacute 30 de junho de 1972 e apresentados

na monografia do coronel Pereira

Subversivos terroristas levantados no Brasil 4400

Quedas impostas pelos oacutergatildeos de seguranccedila no territoacuterio nacional 2800

Quedas impostas pelos oacutergatildeos de seguranccedila do II Exeacutercito (inclusive DOI-

CODI) 1600

Quedas impostas pelo DOI-CODI do II Exeacutercito 1400

Quedas impostas pelos outros oacutergatildeos de seguranccedila da aacuterea do II Exeacutercito

200

Periacuteodo de 23 de janeiro de 1969 a 30 de junho de 1972

Subversivo-terroristas que fizeram curso de guerrilha no exterior 340

Subversivo-terroristas que fizeram curso de guerrilha em Cuba 240

Situaccedilatildeo dos 4400 subversivo-terroristas levantados

Foragidos 1600

Liberados 900

Mortos em combate 100

Presos 1490

Banidos 140

Estes resultados vecircm demonstrar a eficiecircncia operacional do destacamento

neste tipo de guerra especial Natildeo eacute agrave toa que os inimigos assim reconhecem

ao destacamento esta assertiva encontrada na revista Times e no panfleto

Quinzenal (maio de 76) distribuiacutedos recentemente

ldquoSatildeo Paulo criou a mais eficiente e admiraacutevel maacutequina repressiva vista ateacute

hoje no mundo ndash a Operaccedilatildeo Bandeirantes que comeccedilou como uma alianccedila

temporaacuteria entre a poliacutecia local as vaacuterias seccedilotildees de inteligecircncia das trecircs

forccedilas armadas e o SNIrdquo (Pereira 1978 27)

75

Entretanto esse perigoso poder excepcional dos DOI-CODI tomou proporccedilotildees

grandiosas Em meados dos anos 1970 mais especificamente apoacutes o fim da guerrilha do

Araguaia no iniacutecio de 1974 as organizaccedilotildees clandestinas armadas estavam derrotadas

e em contrapartida os DOI-CODI se encontravam em pleno vapor com sua atuaccedilatildeo e

seu aparato institucional ampliado e especializado Tornou-se dessa forma

indispensaacutevel para a sobrevivecircncia do SISSEGIN encontrar novos ldquoinimigos internosrdquo

O foco de ameaccedila passou entatildeo a ser o envolvimento de elementos do Partido

Comunista Brasileiro (PCB) no Movimento Democraacutetico Brasileiro (MDB) partido de

oposiccedilatildeo consentida pelo governo e a atuaccedilatildeo repressiva dos DOI-CODI encontrou

argumentos para continuar em atividade Poreacutem como a declarada ldquoguerra internardquo

havia se esgotado e o paiacutes jaacute se preparava para dar lugar a um futuro democraacutetico o

poder de accedilatildeo dos DOI-CODI comeccedilou a parecer abusivo e negativo ao regime Diante

disso muitas foram as tentativas da caserna e dos demais militares a ela relacionados de

provar a importacircncia e a necessidade dos DOI-CODI para a defesa do paiacutes entre elas a

monografia aqui analisada No entanto tais tentativas natildeo conseguiram evitar que esses

oacutergatildeos sofressem num primeiro momento a reduccedilatildeo de suas atividades e no iniacutecio da

deacutecada de 1980 a extinccedilatildeo

3 O DOI-CODI pelos prisioneiros

Enfim na uacuteltima frente de estudo deste capiacutetulo a anaacutelise sobre a formaccedilatildeo e a

atuaccedilatildeo dos DOI-CODI recai sobre a memoacuteria de seis de seus ex-prisioneiros poliacuteticos

Vale lembrar que estes estiveram detidos no DOI-CODI do Rio de Janeiro durante o

segundo semestre do ano de 1970 e suas memoacuterias foram narradas recentemente entre

os anos de 2002 e 2004 quando foram por mim entrevistados Assim o trabalho sobre

esses depoimentos aqui se concentra na interpretaccedilatildeo que fazem a partir da construccedilatildeo

76

de suas memoacuterias sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI e em como suas

perspectivas dialogam com a frente historiograacutefica e com a monografia do coronel

Pereira abordadas anteriormente

Como o objetivo aqui traccedilado eacute analisar as diversas maneiras pelas quais a

historiografia o coronel Pereira e os presos veem a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-

CODI optou-se por apresentar as trajetoacuterias dos entrevistados no proacuteximo capiacutetulo

Essas junto com o conteuacutedo aqui levantado constroem as bases para a anaacutelise travada

na parte final da presente dissertaccedilatildeo onde se aborda a partir de um estudo mais

concentrado nas memoacuterias dos ex-prisioneiros entrevistados o cotidiano do DOI-

CODIRJ

Entretanto a fim de utilizar essas memoacuterias para a abordagem dialeacutetica aqui

desenhada natildeo pode ser dispensada a aplicaccedilatildeo de um olhar criacutetico tiacutepico a anaacutelises

histoacutericas problematizando-as de forma a perceber suas lacunas e modificaccedilotildees

decorrentes do tempo Tais memoacuterias satildeo inconscientemente fluidas pois estatildeo

diretamente ligadas a emoccedilotildees aleacutem de sofrerem muitas influecircncias do momento em

que satildeo narradas conforme bem elucida Pierre Nora (1993)

A memoacuteria eacute a vida sempre carregada por grupos vivos e nesse sentido ela

estaacute em permanente evoluccedilatildeo aberta agrave dialeacutetica da lembranccedila e do

esquecimento inconsciente de suas deformaccedilotildees sucessivas vulneraacutevel a

todos os usos e manipulaccedilotildees suscetiacutevel de longas latecircncias e de repentinas

revitalizaccedilotildees A histoacuteria eacute a reconstruccedilatildeo sempre problemaacutetica e incompleta

do que natildeo existe mais A memoacuteria eacute um fenocircmeno sempre atual um elo

vivido no eterno presente a histoacuteria uma representaccedilatildeo do passado (Nora

1993 9)

Eacute portanto imprescindiacutevel para este estudo perceber que por traacutes dessa fluidez

das memoacuterias dos depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ age um

77

elemento fundamental o presente Logo a feliz expressatildeo de Robert Frank (1999) o

presente do passado elucida a anaacutelise de forma a colocar em destaque a forte influecircncia

que a temporalidade vivida no momento em que as entrevistas foram concedidas tem

para a construccedilatildeo de suas narrativas

Trata-se de fontes que estatildeo marcadas pelo proacuteprio presente inerentes a ele

qualquer que seja a eacutepoca os depoimentos de testemunhas vivas as fontes

orais Aiacute haacute a contemporaneidade intriacutenseca entre o historiador e o ator

(Frank 1999 103)

Por isso eacute aqui crucial considerar o momento das entrevistas Afinal entre 2002 e

2004 o Brasil jaacute vivia uma democracia consolidada onde antigos oposicionistas agrave

ditadura militar se encontravam no poder Fernando Henrique Cardoso exilado no Chile

ateacute o ano de 1968 e na deacutecada de 1970 apoiador convicto do Movimento Democraacutetico

Brasileiro (MDB) havia sido presidente do Brasil entre os anos de 1995 e 2002 Jaacute

Lula ex-liacuteder sindical que havia comandado algumas das mais importantes greves na

virada das deacutecadas de 1970 para 1980 venceu a campanha presidencial em 2002 e se

tornou no ano seguinte o primeiro ex-operaacuterio a presidir o paiacutes Aleacutem disso as pastas

ministeriais de seu governo foram formadas por antigos opositores agrave ditadura tal como

o ex-liacuteder do movimento estudantil Joseacute Dirceu e a partir de 2005 por Dilma

Rousseff ex-militante de duas das organizaccedilotildees de esquerda que optaram na eacutepoca pela

luta armada o Comando de Libertaccedilatildeo Nacional (COLINA) e a Vanguarda Armada

Revolucionaacuteria Palmares (VAR-Palmares) Logo pode-se dizer que com relaccedilatildeo agrave

memoacuteria poliacutetica de vencidos nos anos de chumbo da ditadura os depoentes se

transformaram em vencedores nos tempos democraacuteticos e obviamente a leitura do

passado de prisatildeo e tortura foi iluminada por esse presente

78

Ressalte-se ainda que os depoimentos se vinculavam agrave implantaccedilatildeo da Comissatildeo

de Anistia por meio da Lei nordm 1055902 que atribuiacutea ao Estado a funccedilatildeo de anistiar e

reparar financeiramente todos os cidadatildeos que tivessem vivenciado quaisquer atos de

exceccedilatildeo incluindo torturas prisotildees arbitraacuterias demissotildees e transferecircncias por razotildees

poliacuteticas ocorridas durante o periacuteodo de 18 de setembro de 1946 ateacute 5 de outubro de

1988 Afinal a reparaccedilatildeo soacute poderia ser concedida pela Comissatildeo de Anistia apoacutes a

anaacutelise de um requerimento contendo as memoacuterias das viacutetimas sobre o periacuteodo em

questatildeo escritas individualmente Como na eacutepoca alguns dos depoentes jaacute haviam

construiacutedo suas memoacuterias prisionais para compor o referido requerimento este deve ser

considerado como um importante fator de influecircncia sobre as narrativas de suas

entrevistas

Em contraste com o que foi apresentado a partir da abordagem historiograacutefica e da

monografia do coronel Pereira Fernando Palha Freire um dos ex-prisioneiros do DOI-

CODIRJ destaca a importacircncia da contribuiccedilatildeo inicial dada pelos policiais civis do

DOPS para a utilizaccedilatildeo da violecircncia em favor da extraccedilatildeo de informaccedilotildees Afinal por

mais que os oacutergatildeos de repressatildeo anteriores agrave criaccedilatildeo dos DOI-CODI natildeo estivessem

devidamente preparados para combater as accedilotildees efetuadas pela esquerda armada seus

agentes de fato haviam acumulado uma experiecircncia em interrogatoacuterios Esta num

primeiro momento era importante uma vez que os militares ateacute entatildeo concentravam

sua formaccedilatildeo sobre a atuaccedilatildeo na guerra declarada natildeo possuindo as maliacutecias

necessaacuterias aos interrogatoacuterios

[] a Poliacutecia Civil tinha os caras mais preparados pra tortura mesmo

Porque jaacute vinham haacute muitos anos jaacute tinham a praacutetica da tortura O militar

batia de frente ele era capaz de te matar mas ele ainda natildeo tinha digamos o

seguinte a essecircncia da tortura Por exemplo um coronel virou pro cara e

disse assim - ldquoO senhor eacute um comunistardquo aiacute ele disse assim - ldquoE o senhor eacute

79

uma bestardquo Ele matou o cara quer dizer matou sem colher o que queria

Um policial civil poderia ateacute matar o cara mas antes colheria o que queria

eles tinham a praacutetica da tortura Depois os militares se aperfeiccediloaram []

(Freire 28 jun 2004)

No entanto indo ao encontro do que foi abordado pelas outras duas frentes de

estudo aqui traccediladas Ceciacutelia Coimbra tambeacutem ex-prisioneira do DOI-CODIRJ

evidencia a eficiecircncia desse oacutergatildeo com relaccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo A partir de uma situaccedilatildeo

especiacutefica de sua prisatildeo ela percebe como o niacutevel de organizaccedilatildeo do serviccedilo de

informaccedilotildees dos DOI era superior ao do DOPS

Fomos presos eu e meu marido e levados para o DOPS em agosto de 1970

[] quando deram vistoria laacute em casa encontraram um documento que por

ironia do destino era sobre seguranccedila [] Eu fiquei dois dias e meio no

DOPS sendo interrogada sobre o tal documento que nem eu nem o Novaes

falaacutevamos diziacuteamos que natildeo sabiacuteamos de onde era Dois dias e meio depois

quando noacutes fomos para o DOI-CODI logo eles identificaram de onde era o

documento Para vocecirc ver o niacutevel de competecircncia do serviccedilo de informaccedilotildees

do DOI-CODI comparado ao do DOPS O DOPS era ldquomerdinhardquo comparado

com a eficiecircncia do DOI-CODI (Coimbra 30 nov 2004)

Percebe-se assim tanto pela historiografia e pela monografia do coronel Pereira

quanto pela memoacuteria de ex-prisioneiros poliacuteticos que a centralizaccedilatildeo de informaccedilotildees

nos CODI e a relaccedilatildeo direta que esses travavam com os DOI traziam uma agilidade agraves

anaacutelises que natildeo havia nos demais oacutergatildeos Logo a forma centralizada e orquestrada

com que os DOI-CODI agiam significava uma profissionalizaccedilatildeo cada vez maior da

repressatildeo poliacutetica ou seja a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo

Assim apesar de serem instituiccedilotildees distintas a atuaccedilatildeo dos CODI e dos DOI

estavam totalmente interligadas Como apurado por meio do estudo historiograacutefico e

dos dados contemplados na monografia do coronel Pereira enquanto aos CODI cabia

80

concentrar e analisar as informaccedilotildees sobre a seguranccedila interna de suas Regiotildees

Militares aos DOI cabia a partir das informaccedilotildees passadas pelos CODI atuar

diretamente na repressatildeo aos ldquoinimigos internosrdquo e extrair de seus prisioneiros poliacuteticos

informaccedilotildees a serem repassadas aos CODI Diante dessa forte ligaccedilatildeo essas duas

instituiccedilotildees ficaram conhecidas como se fossem um uacutenico oacutergatildeo por meio da sigla

DOI-CODI Essa simbiose entre os CODI e os DOI ficou marcada sobretudo nas

memoacuterias de suas viacutetimas conforme se pode verificar no seguinte trecho

[] tenta entender o que eacute DOI-CODI o DOI-CODI eacute uma instituiccedilatildeo

montada por diversos oacutergatildeos de repressatildeo que funcionava [no Rio de

Janeiro] no quartel da PE [1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito] (Pandolfi 5

fev 2003)

De acordo com os seis entrevistados assim como indicado pela a anaacutelise das

demais frentes de estudo do presente capiacutetulo a praacutetica de tortura era corriqueira nos

interrogatoacuterios dos DOI Esse fato inclusive poderia ser associado agrave sua proacutepria

designaccedilatildeo que na forma abreviada se apresenta sob a sigla DOI correspondendo

sugestivamente agrave conjugaccedilatildeo do verbo doer na terceira pessoa do singular

Soube que ningueacutem entrava no DOI-CODI sem sofrer algum tipo de tortura

fiacutesica ou psicoloacutegica mas principalmente a fiacutesica e realmente natildeo creio

que algueacutem tenha passado por laacute imune agrave tortura [] Quando a gente chega

ao DOI-CODI chega logo tomando porrada Natildeo tinha essa histoacuteria de meu

senhor era tapa Tapa choque eleacutetrico pau de arara a isso tudo eu fui

submetido O primeiro interrogatoacuterio que natildeo eacute um interrogatoacuterio formal

judicial eacute feito sob essas condiccedilotildees Depois bem depois eacute que eu fui ser

interrogado no DOPS em outras condiccedilotildees [] Eu fui torturado mesmo na

Rua Baratildeo de Mesquita na PE laacute sim eu fui bastante torturado []

(Carvalho 12 set 2002)

81

[] laacute na PE vocecirc natildeo fazia nada a natildeo ser ficar esperando o tempo para ser

interrogada para ser torturada [] (Pandolfi 5 fev 2003)

Laacute no DOI-CODI comia tudo choque pau-de-arara afogamento pancada

Laacute que eu descobri esse termo que fulano virou presunto neacute Porque vocecirc

fica igual a um presunto mesmo porque eles te datildeo pancadas localizadas []

(Freire 28 jun 2004)

[] laacute no DOI-CODI tinha todo tipo de torturas desde choques eleacutetricos na

matildeo direita esquerda peacute esquerdo Eu sofri isso tambeacutem (Prigol 28 set

2004)

[] o meu negoacutecio era ganhar tempo e o deles era conseguir informaccedilatildeo A

luta eacute essa nos primeiros dias eacute vocecirc dar o miacutenimo de informaccedilotildees e eles

querendo arrancar o maacuteximo de informaccedilatildeo neacute Aiacute eles vecircm com a maacutexima

de que torturar eacute investigar (risos) E daiacute se precisar ateacute a morte o negoacutecio

eacute conseguir informaccedilatildeo (Batista 17 nov 2004)

[] onde eram os choques eleacutetricos que na PE eles davam eles me

molhavam toda para o choque ser mais intenso e botavam principalmente

nas partes onde eram mais sensiacuteveis como ouvido nariz boca bico do

peito vagina acircnus[] o choque eleacutetrico eacute indescritiacutevel porque vocecirc perde a

noccedilatildeo do tempo e todo e qualquer controle da bexiga e dos intestinos []

(Coimbra 30 nov 2004)

Portanto ali a incumbecircncia era operar a extraccedilatildeo de informaccedilotildees e para isso a

tortura como meacutetodo era utilizada pelos agentes das turmas de interrogatoacuterio

preliminar Afinal em uma ponta da sofisticaccedilatildeo repressiva apresentada pelos DOI-

CODI estava a concentraccedilatildeo de informaccedilotildees dos CODI e na outra a agilidade que a

extraccedilatildeo de informaccedilotildees possibilitada principalmente pelo uso das torturas durante os

interrogatoacuterios dos presos dava agraves operaccedilotildees de busca e apreensatildeo de mais ldquoelementos

subversivosrdquo

82

A partir dos depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados assim como

da anaacutelise da historiografia selecionada e dos dados trazidos pelo coronel Pereira em sua

monografia percebe-se que os DOI-CODI ocupavam somente uma parte dos quarteacuteis

do Exeacutercito onde se localizavam e na parte restante o funcionamento desses quarteacuteis

continuava normalmente Os DOI-CODI eram portanto prisotildees atiacutepicas diferentes das

convencionais construiacutedas desde o iniacutecio para acomodar prisioneiros Assim eacute coerente

que o serviccedilo de carceragem nos DOI-CODI fosse executado pelos soldados que

serviam ao proacuteprio quartel jaacute que esse era apenas um serviccedilo de apoio um auxiacutelio natildeo

agrave toa feito por agentes de turmas que eram intituladas auxiliares

Os soldados que serviam ao quartel a quem era atribuiacutedo o serviccedilo de

carceragem eram conhecidos no DOI-CODIRJ por ldquocatarinasrdquo devido a suas

caracteriacutesticas fiacutesicas e tambeacutem ao sotaque tiacutepico ao estado de Santa Catarina Os

ldquocatarinasrdquo eram identificados como soldados devido ao fato dos agentes propriamente

do DOI-CODIRJ normalmente andarem a paisana enquanto eles usavam farda ou seja

trajes tradicionais a militares que natildeo estivessem ligados a operaccedilotildees de informaccedilotildees

Os agentes dos DOI-CODI como elucidado por meio da segunda frente deste capiacutetulo

por precisarem ser confundidos com civis se diferenciavam dos demais soldados

Na PE os soldados eram sempre de Santa Catarina [] pessoas de portes

fiacutesicos avantajados e essa condiccedilatildeo fiacutesica era uma espeacutecie de exigecircncia para

servir ao quartel da Poliacutecia Militar Eram entatildeo os ldquocatarinasrdquo [] (Carvalho

8 fev 2003)

[] quem torturava a gente era o pessoal do DOI-CODI normalmente eles

andavam a paisana [] e quem fazia o trabalho burocraacutetico ou seja a

limpeza da PE quem dava o cafeacute da gente quem abria a cela e fechava a

cela eram os soldados uniformizados Eram ateacute os ldquocatarinasrdquo porque

tinham muitos que vinham de Santa Catarina eram soldados altos [] entatildeo

83

os soldados faziam a burocracia e os militares do DOI-CODI faziam essa

parte digamos da investigaccedilatildeo poliacutetica [] (Pandolfi 5 fev 2003)

[] os ldquocatarinasrdquo eram os guardinhas era o pessoal que estava servindo

eles tinham dezoito ou dezenove anos eles estavam servindo ao Exeacutercito e

alguns deles ateacute amenizavam a nossa situaccedilatildeo [hellip] (Batista 17 nov 2004)

Diferentemente do que se percebe na monografia feita pelo coronel Pereira em

1978 nas memoacuterias aqui analisadas a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI no ano de 1970

consagrou-se como um dos periacuteodos mais difiacuteceis de suas vidas Nota-se no entanto

que os nuacutemeros e percentuais que na eacutepoca eram interpretados por muitos militares

como forte indiacutecio de eficiecircncia da instituiccedilatildeo no combate ao ldquoinimigo internordquo estatildeo

em meio ao contexto democraacutetico em que as narrativas dos ex-presos foram construiacutedas

diretamente ligados agrave memoacuteria da tortura e da violaccedilatildeo aos direitos humanos Como se

pode analisar a partir da interpretaccedilatildeo de Ceciacutelia Coimbra uma das ex-prisioneiras

poliacuteticas fundadoras do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro 15

[] eu acho a fala para mim a minha militacircncia no Tortura Nunca Mais

fundamental Em 85 quando a gente fundou o Grupo foi fundamental no

sentido de tornar isso puacuteblico e natildeo soacute como se fosse uma coisa de lamento

da gente uma coisa da dor da gente dessa marca que natildeo vai sair nunca []

mas como instrumento de luta instrumento de denuacutencia [] (Coimbra 30

nov 2004)

Durante o periacuteodo das entrevistas aqueles que viveram a experiecircncia dos DOI-

CODI a partir do outro lado de suas grades muitas vezes veem as dolorosas lembranccedilas

daquele tempo como um meio de fazer justiccedila e ateacute mesmo contribuir para a

solidificaccedilatildeo da democracia enquanto que os militares que no passado se orgulhavam

15

O GTNMRJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-prisioneiros poliacuteticos que viveram situaccedilotildees de

tortura durante o regime militar e por familiares de mortos e desaparecidos poliacuteticos Para mais

informaccedilotildees ver o perfil de Ceciacutelia Coimbra no proacuteximo capiacutetulo

84

de seus feitos lutam no presente por natildeo serem a eles associados Diante disso nota-se

que apoacutes o teacutermino da ditadura em 1985 as memoacuterias dos entatildeo vencidos

movimentam-se de forma a se sobreporem agraves dos vencedores conseguindo aos poucos

garantir seu espaccedilo de viacutetimas da ditadura e ao mesmo tempo de heroacuteis da democracia

na poliacutetica na justiccedila e na histoacuteria

85

Capiacutetulo 2 ndash Os presos poliacuteticos e suas organizaccedilotildees

Nas escolas nas ruas

campos construccedilotildees

Somos todos soldados

Armados ou natildeo

Caminhando e cantando

E seguindo a canccedilatildeo

Somos todos iguais

Braccedilos dados ou natildeo

Os amores na mente

As flores no chatildeo

A certeza na frente

A histoacuteria na matildeo

Caminhando e cantando

E seguindo a canccedilatildeo

Aprendendo e ensinando

Uma nova liccedilatildeo

Geraldo Vandreacute

(Pra natildeo dizer que natildeo falei de flores 1968)

86

Antocircnio Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia satildeo alguns dos brasileiros

que lutaram contra a ditadura militar no paiacutes e que na eacutepoca foram presos pelo governo

nas dependecircncias do DOI-CODI do Rio de Janeiro Trecircs homens e trecircs mulheres que

apesar de suas trajetoacuterias pessoais e poliacuteticas distintas possuem ateacute hoje fortes elos

construiacutedos pela passagem pelo DOI-CODI carioca

Foi especificamente essa vivecircncia prisional comum que me despertou o interesse

pelas memoacuterias desses seis atores histoacutericos O objetivo era a partir da oacutetica dos ex-

prisioneiros entender como funcionava na praacutetica o DOI-CODIRJ Assim entre os

anos de 2002 e 2004 em meio aos governos dos ex-presidentes Fernando Henrique e

Lula ou seja jaacute em tempos democraacuteticos Antocircnio Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana

e Ceciacutelia me concederam entrevistas sobre suas prisotildees no DOI-CODIRJ bem como

sobre suas trajetoacuterias pessoais e poliacuteticas antes e depois de suas prisotildees

Esses depoimentos ndash principal objeto de pesquisa desta dissertaccedilatildeo ndash trazem aleacutem

das lembranccedilas sobre o cotidiano prisional de um DOI-CODI muito da personalidade e

da vivecircncia de cada um desses indiviacuteduos Atraveacutes dessas memoacuterias pode-se lidar com

as idiossincrasias de cada um deles relativizando a ideia de uma memoacuteria coletiva

comum a todos os ex-prisioneiros poliacuteticos que ficaram no quartel da Rua Baratildeo de

Mesquita Pode-se ainda conhecer um pouco mais de perto a loacutegica de construccedilatildeo de

suas memoacuterias individuais analisando como cada um desses indiviacuteduos se vecirc atraveacutes do

passado de militacircncia e prisatildeo como se identifica por meio desse passado imprime essa

identidade no mundo externo e como este mundo influencia na percepccedilatildeo que possui

sobre si mesmo

No entanto as memoacuterias individuais aqui trabalhadas natildeo estatildeo isoladas jaacute que

conforme bem evidenciado por Maurice Halbwachs em A memoacuteria coletiva (2004)

frequentemente tomam como referecircncia pontos externos ao sujeito se apoiando em

87

percepccedilotildees recebidas de determinada memoacuteria coletiva de um grupo e tambeacutem pela

memoacuteria histoacuterica de seu paiacutes (2004 57-59) Partindo dessa ideia percebe-se aqui que

nas memoacuterias narradas por indiviacuteduos que fizeram parte de uma mesma organizaccedilatildeo de

esquerda armada ou que ainda hoje integram um mesmo grupo como por exemplo o

Grupo Tortura Nunca MaisRJ satildeo encontrados mais pontos de contato Aleacutem disso

todos os depoentes mostram ter como base de suas lembranccedilas a memoacuteria histoacuterica

pois em algum momento as localizam no tempo por meio de datas e fatos que se

estabeleceram como histoacutericos tal como o golpe civil-militar de 31 de marccedilo de 1964

ou a decretaccedilatildeo do AI-5 em 13 de dezembro de 1968

Cabe aqui ressaltar que ex-prisioneiros do DOI-CODIRJ entrevistados eram em

sua grande maioria estudantes que se tornaram combatentes da esquerda armada a

partir da proibiccedilatildeo de atividades e manifestaccedilatildeo sobre o assunto de natureza poliacutetica

estipulada pelo inciso III do artigo 5ordm do AI-5 e que em suas memoacuterias a

promulgaccedilatildeo deste Ato representa um marco temporal muito mais forte do que o golpe

civil-militar de 1964 Afinal para suas trajetoacuterias de vida o AI-5 de 13 de dezembro de

1968 foi um divisor de aacuteguas pois tornava as manifestaccedilotildees estudantis proibidas

revoltando-os e estimulando-os ainda mais a lutar pela derrubada do regime ditatorial

Diante disso a maioria dos depoentes sustenta em suas memoacuterias o AI-5 como um

momento em que suas vidas foram postas em xeque A partir do dia de sua

promulgaccedilatildeo eles se viram diante da necessidade de decidir se continuavam ou natildeo a

agir contra a ditadura e em caso positivo se deveriam considerar a violecircncia armada

como uma via de luta uma vez que os movimentos paciacuteficos estavam totalmente

encurralados Como a opccedilatildeo da maior parte deles foi a de pegar em armas ndash decisatildeo que

acarretou natildeo soacute em suas prisotildees mas tambeacutem na mudanccedila da percepccedilatildeo que tinham

sobre a vida jaacute que ao andarem armados passavam a ter a consciecircncia de que viviam

88

sob a ameaccedila da morte ndash o AI-5 tem papel de destaque entre suas memoacuterias do periacuteodo

militar Essa importacircncia do AI-5 pode ser exemplificada no trecho abaixo destacado da

entrevista de Ana de Miranda Batista

O AI-5 foi determinante Porque vocecirc natildeo tinha mais formas de expressatildeo

vocecirc natildeo podia se reunir vocecirc natildeo podia mais fazer nada era impedido pela

poliacutecia A gente estava amordaccedilado a imprensa amordaccedilada os teatros os

cinemas tudo Era um terror muita poliacutecia na rua muita blitz blitz de

montatildeo sabe Quem quisesse ser como a gente -ldquoAbaixo a Ditadura

Abaixo a Repressatildeordquo As formas de expressatildeo se reduziram a quase zero Aiacute

eacute que houve um pontapeacute na decisatildeo de muitos de noacutes de quer dizer soacute

restou a luta armada soacute restou resistir de forma armada mesmo que pra

maioria de noacutes fosse uma decisatildeo extrema [] eu nem uma arma de perto

eu nunca tinha visto Quer dizer esse momento eacute um momento draacutestico

quer dizer um tempo depois eacute que eu conversando eacute que vi que natildeo foi

assim soacute para mim Porque para alguns dos rapazes que tinham servido ao

Exeacutercito e sei laacute o quecirc eles jaacute tinham alguma familiaridade com armas quer

dizer alguns deles Mas a gente menina classe meacutedia natildeo Eu nunca tinha

visto nunca tinha me interessado por arma na vida (risos) natildeo fazia parte do

meu universo E teve muita gente que nessa eacutepoca pirou Pirou que eu digo

de natildeo querer mais saber Muita gente E eu acho extremamente respeitaacutevel

essa decisatildeo porque eacute uma decisatildeo draacutestica [] porque no momento em que

vocecirc estaacute com uma arma vocecirc pode matar ou morrer Eacute muito grave essa

decisatildeo Vocecirc estaacute lidando com a possibilidade da morte e quando vocecirc

nunca teve familiaridade assim quando vocecirc nunca viu uma arma eacute muito

difiacutecil [] (Batista 17 nov 2004)

Vale aqui mais uma vez destacar que essas memoacuterias do passado satildeo lavadas nas

aacuteguas do presente ou seja satildeo o preacutesent du passeacute conforme a feliz expressatildeo de Robert

Frank (1999) As memoacuterias sobre as experiecircncias prisionais do DOI-CODIRJ

ocorridas durante os ldquoanos de chumbordquo da ditadura militar foram construiacutedas em

entrevistas concedidas entre o final do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-

2002) e o iniacutecio do governo de Lula (2003-10) ambos perseguidos poliacuteticos durante o

89

periacuteodo ditatorial Portanto a perspectiva de vencidos que no passado direcionava as

memoacuterias dos depoentes abre lugar para uma narrativa proacutexima agrave de vencedores pela

qual os ex-prisioneiros poliacuteticos se veem como responsaacuteveis pela construccedilatildeo da

democracia e de uma justiccedila de transiccedilatildeo ainda em curso no Brasil

Uma ideia de justiccedila de transiccedilatildeo iniciou-se principalmente a partir da

Constituiccedilatildeo de 1988 quando a reparaccedilatildeo aos perseguidos poliacuteticos do passado

ditatorial se transformou em garantia constitucional No entanto foi somente a partir de

1995 jaacute no governo FHC que ela comeccedilou a ser implantada por meio da primeira

comissatildeo de reparaccedilatildeo a Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos (lei nordm

914095) Aleacutem disso em 2002 sete anos depois a reparaccedilatildeo aos perseguidos pela

ditadura foi complementada por meio da Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio da Justiccedila

(lei nordm 1055902) Assim quando a primeira entrevista me foi concedida em setembro

de 2002 a Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos jaacute trabalhava no sentido de

reconhecer a responsabilidade do Estado brasileiro por mortes e desaparecimentos de

presos poliacuteticos ocorridas durante a ditadura enquanto a Comissatildeo de Anistia iniciava a

sua funccedilatildeo de

[] reparar os atos de exceccedilatildeo incluindo as torturas prisotildees arbitraacuterias

demissotildees e transferecircncias por razotildees poliacuteticas sequestros compelimento agrave

clandestinidade e ao exiacutelio banimentos expurgos estudantis e

monitoramentos iliacutecitos (Abratildeo 2010 4)

Conforme jaacute abordado no primeiro capiacutetulo os procedimentos impostos pela Lei

105592002 influenciaram como natildeo podia deixar de ser o processo de construccedilatildeo das

memoacuterias aqui trabalhadas Afinal o referido processo se iniciava com um relato da

viacutetima sobre as agressotildees e perseguiccedilotildees sofridas agrave eacutepoca ditatorial Este deveria

configurar uma espeacutecie de memorial no qual o requerente deveria destacar todas as

90

violaccedilotildees sofridas a ser apresentado agrave Comissatildeo cabendo a esta apoacutes a verificaccedilatildeo dos

fatos expostos conceder ou natildeo ao requisitante a condiccedilatildeo de anistiado poliacutetico e

dependendo do caso a correspondente reparaccedilatildeo econocircmica Como alguns dos

entrevistados passavam por este processo no mesmo periacuteodo em que concederam as

entrevistas eacute notaacutevel que tal experiecircncia seja mais uma forte influecircncia do presente na

construccedilatildeo das memoacuterias por eles narradas Esse momento de busca por reparaccedilatildeo por

que muitos passavam inconscientemente os conduzia a enfatizar durante as narrativas

suas condiccedilotildees de ldquoviacutetimasrdquo do passado em detrimento por exemplo de suas condiccedilotildees

de ldquosiacutembolos da resistecircnciardquo

Ainda diante da capacidade de intervenccedilatildeo que o presente exerce sobre as

memoacuterias do passado deve-se considerar tambeacutem a forma como essa rede de

entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que as entrevistas foram realizadas

Afinal o caminho trilhado ateacute o depoente e o momento especiacutefico de cada narrativa

composto pelo local e as condiccedilotildees gerais sob as quais ocorreu tambeacutem influenciam na

construccedilatildeo das memoacuterias do entrevistado tanto por parte do historiador na maneira

como aborda o narrador quanto por parte do proacuteprio narrador por meio da forma com

que narra suas memoacuterias Portanto acredita-se aqui que a busca por cada entrevistado

interfere na abordagem que o entrevistador imprime agrave entrevista e na forma como o

narrador se sente ao narrar suas memoacuterias naquele momento tornando o instante de

cada entrevista um fator tambeacutem de intervenccedilatildeo na narrativa das memoacuterias do passado

Dessa forma antes de tratar-se das trajetoacuterias de vida narradas por cada ex-prisioneiro

entrevistado optou-se aqui por considerar como o instante de cada entrevista foi

construiacutedo ou seja como a rede de entrevistas foi formada

91

1 A rede de entrevistas

A primeira entrevista foi feita com o ex-preso poliacutetico Antocircnio Leite de Carvalho

em 12 de setembro de 2002 na sala de sua casa situada bem proacutexima ao quartel do 1ordm

BPE onde se localizava o DOI-CODIRJ O espaccedilo ocupado por esta instituiccedilatildeo que eacute

intensamente abordado no proacuteximo capiacutetulo situava-se nos fundos do referido quartel

cujo edifiacutecio foi construiacutedo durante o Impeacuterio e ainda hoje se encontra entre a Avenida

Maracanatilde e a Rua Baratildeo de Mesquita no bairro da Tijuca na cidade do Rio de Janeiro

Cheguei ateacute Antocircnio atraveacutes de seu filho Joatildeo meu colega do curso de graduaccedilatildeo

em histoacuteria pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Sabedor

do meu interesse sobre o tema da repressatildeo poliacutetica Joatildeo procurou me ajudar e ao

mesmo tempo satisfazer a curiosidade que sentia sobre esta parte da vida de seu pai

Portanto durante a minha primeira visita agrave casa de Antocircnio enquanto ele narrava

suas memoacuterias sobre o periacuteodo em que esteve preso nas dependecircncias do quartel

vizinho Joatildeo atravessava constantemente a sala em direccedilatildeo agrave varanda ou agrave cozinha

Assim sem que Antocircnio aparentemente percebesse jaacute que estava concentrado em sua

narrativa Joatildeo tentava ouvir um pouco mais sobre um passado que seu pai nunca havia

revelado abertamente aos filhos

Percebe-se entatildeo como lidar com detalhes dessa memoacuteria era complicado para

Antocircnio e portanto o quanto aquele momento era importante para ele e para seu filho

Atraveacutes da entrevista enquanto Antocircnio passava a sentir um maior orgulho daquelas

memoacuterias pois por meio do meu interesse em entrevistaacute-lo comeccedilava a percebecirc-las

como fonte para a histoacuteria do paiacutes Joatildeo conhecia melhor o seu pai e passava a entender

algumas de suas atitudes que ateacute entatildeo questionava

Era o caso da reaccedilatildeo arredia que Antocircnio tinha ao ser acordado de forma

inesperada enquanto dormia no sofaacute da casa Assim apoacutes ouvir sobre o cotidiano e as

92

torturas a que seu pai afirma ter sido submetido no DOI-CODIRJ Joatildeo comeccedilou a

compreender que tal reaccedilatildeo tinha relaccedilatildeo com esse passado quando Antocircnio muitas

vezes pode ter sido despertado de desmaios ocasionados por choques eleacutetricos e outras

torturas a ele perpetradas ainda na sala de interrogatoacuterio Logo o fato de acordar

assustado tentando se proteger ou ateacute mesmo agredir quem o acordasse pode ser

compreendido quando relacionado agraves marcas que as violecircncias vividas no DOI-

CODIRJ deixaram na memoacuteria de Antocircnio

A partir dessa primeira entrevista o meu interesse pelo tema se aprofundou

impulsionando-me a buscar outros possiacuteveis entrevistados No dia 5 de fevereiro de

2003 consegui entrevistar Dulce Chaves Pandolfi Seu nome foi aventado por meio da

leitura sobre a passagem de Dulce pelo DOI-CODIRJ encontrada no livro Brasil

Nunca Mais publicado pela Editora Vozes em 1985

A estudante Dulce Chaves Pandolfi 24 anos foi obrigada tambeacutem a servir

de cobaia no quartel da rua Baratildeo de Mesquita no Rio [] Na Poliacutecia do

Exeacutercito foi submetida a espancamento inteiramente despida bem como a

choques eleacutetricos e outros supliacutecios como o ldquopau-de-ararardquo Depois de

conduzida agrave cela onde foi assistida por meacutedico foi apoacutes algum tempo

novamente seviciada com requintes de crueldade numa demonstraccedilatildeo de

como deveria ser feita a tortura [] (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985 32)

Depois de algumas tentativas frustradas de marcar esta entrevista por meio de

mensagens via correio eletrocircnico que encontrei atraveacutes do site do CPDOC centro de

pesquisa onde Dulce trabalha como pesquisadora e professora ela enfim me recebeu em

sua sala no interior deste mesmo centro de pesquisa Sua resistecircncia inicial pode ser

atribuiacuteda ao fato de na condiccedilatildeo de pesquisadora estar mais acostumada ao papel de

entrevistadora do que ao de entrevistada ou seja estar mais afinada com o trabalho de

analisar as fontes do que com o de ser a proacutepria fonte Diante disso durante sua

93

entrevista Dulce natildeo se sentiu agrave vontade em tratar dos detalhes das violecircncias sofridas

no DOI-CODIRJ o que pode ser explicado pela dor que ainda acompanha suas

memoacuterias e tambeacutem pelo desconforto que a situaccedilatildeo lhe trazia jaacute que ela possivelmente

natildeo se desvinculava do fato de ser uma professora universitaacuteria expondo sua intimidade

a uma aluna de graduaccedilatildeo No entanto justamente por lecionar histoacuteria e por

conseguinte jaacute estar convencida da importacircncia de seu depoimento Dulce apresentou

uma narrativa articulada e aparentemente coerente

Apoacutes a entrevista de Dulce ficou evidente a desarticulaccedilatildeo da memoacuteria de

Antocircnio uma vez que esta era silenciada haacute muito tempo e portanto natildeo possuiacutea uma

construccedilatildeo preacute-estabelecida por outros discursos Tal percepccedilatildeo me levou a voltar a

entrevistaacute-lo em 8 de fevereiro de 2003 trecircs dias depois da entrevista de Dulce quando

Antocircnio jaacute demonstrava uma memoacuteria mais articulada Afinal esse silecircncio que

caracterizava sua memoacuteria lhe atribuiacutea um aspecto negativo e um destacadamente

positivo O lado negativo era que conforme elucidado por Michael Pollak em Memoacuteria

esquecimento e silecircncio (1989) dificilmente sua memoacuteria foi transmitida de forma

intacta durante todo o tempo em que ficou guardada ateacute o dia em que a entrevista

significou uma oportunidade para que ela saiacutesse do ldquonatildeo-ditordquo Poreacutem o lado positivo a

meu ver merecedor de destaque era que a memoacuteria de Antocircnio sobre a prisatildeo no DOI-

CODIRJ possuiacutea poucas influecircncias por decorrecircncia do contato com as memoacuterias de

outros ex-prisioneiros pois natildeo estava a elas diretamente relacionada por meio de

nenhuma coletividade especiacutefica

No ano seguinte ao buscar mais informaccedilotildees sobre o DOI-CODIRJ no Arquivo

Puacuteblico do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) conheci Fernando Palha Freire que viria

a ser o meu terceiro entrevistado Na eacutepoca da entrevista em junho de 2004 Fernando

trabalhava neste Arquivo enviando ao governo estadual a documentaccedilatildeo de requerentes

94

agrave reparaccedilatildeo econocircmica conforme constava no decreto nordm 31995 de 10 de outubro de

2002 Este decreto regulamentava a lei estadual Nordm 3744 de 21 de dezembro de 2001

que antes mesmo da lei federal 105592002 entrar em vigor dispunha sobre a

reparaccedilatildeo a pessoas que haviam sido detidas sob acusaccedilatildeo de terem participado de

atividades poliacuteticas entre os dias 1ordm de abril de 1964 e 15 de agosto de 1979 e que

haviam sofrido tortura em oacutergatildeos puacuteblicos estaduais

Ao saber sobre o meu tema de pesquisa um arquivista do APERJ me apresentou a

Fernando que natildeo hesitou em me conceder seu depoimento A entrevista foi realizada laacute

mesmo dentro da sala em que Fernando trabalhava e por ter sido concedida durante o

horaacuterio de expediente fomos constantemente interrompidos por ligaccedilotildees telefocircnicas Ao

longo de sua entrevista Fernando confessou ter falado muitas vezes sobre suas

memoacuterias do periacuteodo militar e que justamente por entender a importacircncia desse

passado havia sido nomeado para instruir os requisitantes agrave reparaccedilatildeo estipulada pelo

Decreto estadual Nordm 319952002 Dessa forma justifica-se a apresentaccedilatildeo tranquila e

eloquente que conduz sua narrativa

Trecircs meses depois no final de setembro Padre Maacuterio Prigol da Paroacutequia de

Nossa Senhora da Salete localizada no bairro do Catumbi no Rio de Janeiro me

concedeu seu depoimento Esta entrevista foi possiacutevel por intermeacutedio de Alejandra

outra colega do curso de graduaccedilatildeo em histoacuteria da UNIRIO que o conhecia por jaacute tecirc-lo

entrevistado sobre a sua participaccedilatildeo nos movimentos da Juventude Operaacuteria Catoacutelica

(JOC) e Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) 16

Durante a entrevista que me concedeu Padre Maacuterio falou muito sobre as lutas

sociais que travou durante a ditadura militar descritas no livro que havia acabado de

publicar ndash Maacuterio Prigol educador da feacute entre trabalhadores e militantes populares

16

Para mais informaccedilotildees ver Estevez 2008

95

(2003) Entretanto sobre sua passagem pelo DOI-CODIRJ pouco fazia questatildeo de

narrar reconhecendo em certo momento que laacute tambeacutem havia sofrido com torturas o

que explica em parte o desconforto que as lembranccedilas prisionais lhe traziam

Provavelmente por sua prisatildeo ter lhe colocado na eacutepoca em uma posiccedilatildeo extremamente

conflitante e perturbadora para uma autoridade da Igreja Catoacutelica anos mais tarde essas

memoacuterias ainda eram difiacuteceis de serem narradas e lembrar a violecircncia sofrida dentro do

DOI-CODIRJ possivelmente trazia de volta alguns transtornos de ordem sentimental

indesejaacuteveis Afinal presume-se que na prisatildeo seus sentimentos oscilassem entre os

tipicamente humanos tais como dor e raiva e os cristatildeos como feacute e perdatildeo tais

memoacuterias remetiam a sentimentos humanos que ele em respeito a sua vocaccedilatildeo de

padre deveria renegar

Decidida a ampliar ainda mais o escopo de minha rede de entrevistados passei a

frequentar as reuniotildees abertas ao puacuteblico agraves segundas-feiras agrave noite na sede do Grupo

Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTMNRJ) no bairro de Botafogo O

GTNMRJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-prisioneiros poliacuteticos que viveram

situaccedilotildees de tortura durante o regime militar bem como por familiares de mortos e

desaparecidos poliacuteticos O Grupo tornou-se por meio das lutas em defesa dos direitos

humanos uma importante referecircncia no cenaacuterio nacional Ao longo dessas deacutecadas o

GTNMRJ vem lutando pelo esclarecimento das circunstacircncias da morte e do

desaparecimento de militantes poliacuteticos pelo resgate da memoacuteria da repressatildeo ditatorial

pelo afastamento imediato dos cargos puacuteblicos de pessoas envolvidas com a tortura e

pela formaccedilatildeo de uma consciecircncia eacutetica condiccedilatildeo que a entidade defende ser

indispensaacutevel na luta contra a impunidade e pela justiccedila Aleacutem disso o Grupo vem

denunciando antigos e novos casos de tortura exigindo puniccedilatildeo para seus perpetradores

96

atraveacutes de notas na miacutedia entrevistas atos puacuteblicos seminaacuterios e outras atividades 17

Minha ida agrave sede do Grupo resultou na incorporaccedilatildeo de duas novas entrevistadas a

minha rede A primeira delas foi Ana de Miranda Batista que em 17 de novembro de

2004 me recebeu em uma das salas do proacuteprio GNTMRJ Ana havia acabado de

escrever seu memorial ndash onde narrava todas as perseguiccedilotildees e prisotildees que havia sofrido

durante a ditadura militar ndash e o havia encaminhado agrave presidecircncia da Comissatildeo Especial

da Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro a fim de comprovar

que fazia jus ao valor maacuteximo da reparaccedilatildeo prevista no Art 5ordm da Lei Estadual nordm 3744

de 21 de dezembro de 2001 O ponto principal de seu argumento era que havia sofrido

todas as mazelas prisotildees torturas fiacutesicas e psicoloacutegicas submetida pelas forccedilas

opressoras da eacutepoca fato este que ateacute hoje tem consequecircncias em sua vida (Batista

2004 10) 18

Antes de comeccedilar a entrevista Ana me concedeu uma coacutepia deste memorial

juntamente com a monografia do entatildeo Coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira

fonte analisada no capiacutetulo anterior cujo teor havia lhe servido como evidecircncia dos

meacutetodos violentos que ocorriam nas dependecircncias do DOI-CODI

Diante disso conforme o esperado seu depoimento oral apresentou um tom

narrativo muito similar ao assumido no referido documento que havia recentemente

escrito Assim orquestrada com o objetivo que tinha de conseguir a reparaccedilatildeo do

Estado Ana buscou construir suas memoacuterias de forma a ressaltar as violecircncias sofridas

ou seja priorizou a condiccedilatildeo de ldquoperseguida poliacutetica e viacutetima da repressatildeo militarrdquo em

detrimento da de ldquolutadora revolucionaacuteriardquo em prol da democracia

No final desse mesmo mecircs de novembro entrevistei a entatildeo vice-presidente do

Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro Ceciacutelia Coimbra Professora do

17

Para mais informaccedilotildees acessar httpwwwtorturanuncamais-rjorgbr 18

Memorial de Ana de Miranda Batista parte do requerimento agrave indenizaccedilatildeo enviado ao Secretaacuterio de

Estado de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro pela proacutepria em outubro de 2004

97

Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Ceciacutelia me

recebeu em uma das salas do preacutedio dessa faculdade localizada no campus do

Gragoataacute na cidade de Niteroacutei Uma das fundadoras do GTNMRJ Ceciacutelia natildeo mostrou

nenhum pudor em lembrar as violaccedilotildees sofridas durante a prisatildeo Detalhou as torturas

recebidas sem demonstrar constrangimento Esta forma de lidar com o passado se

explica pela maneira pela qual Ceciacutelia se auto-identifica Afinal devido a sua profissatildeo

de psicoacuteloga e sua condiccedilatildeo de liacuteder de um grupo que luta por reparar os danos morais e

fiacutesicos deixados pela tortura entende a difusatildeo dos detalhes de sua proacutepria memoacuteria

como uma arma poderosa para que a justiccedila seja feita em prol da redenccedilatildeo dos

torturados e da penalizaccedilatildeo dos torturadores

11 Os sujeitos e suas trajetoacuterias

A partir da anaacutelise dos depoimentos traccedila-se aqui a trajetoacuteria de vida de cada um

dos entrevistados a fim de que sejam desvendados outros fatores que influenciaram a

construccedilatildeo de suas memoacuterias sobre o periacuteodo em que estiveram presos no DOI-

CODIRJ Este periacuteodo se concentra no segundo semestre do ano de 1970 uma vez que

foi nesse momento que todos os seis entrevistados por laacute passaram Este dado temporal

em muito aproxima suas memoacuterias pois significa que estas se referem a uma mesma

fase desse oacutergatildeo repressivo Isso permitiu ateacute mesmo que tais memoacuterias englobassem

momentos compartilhados jaacute que alguns desses ex-prisioneiros laacute se encontraram e ateacute

dividiram uma mesma cela

No entanto cabe aqui destacar que natildeo houve qualquer intenccedilatildeo de entrevistar ex-

prisioneiros que estivessem no DOI-CODIRJ durante esse periacuteodo Conforme exposto

anteriormente a rede de entrevistas foi se desenhando de acordo com as oportunidades

o que torna o fato de todos terem por laacute passado na segunda metade de 1970 natildeo uma

98

feliz coincidecircncia como uma primeira impressatildeo pode fazer crer mas mais uma

demonstraccedilatildeo da alta eficiecircncia dos DOI-CODI Essas prisotildees correspondem justamente

ao periacuteodo em que o DOI-CODIRJ passou a funcionar em meados de 1970

demonstrando na praacutetica o que foi dito no capiacutetulo anterior diante da grande demanda

de accedilotildees que natildeo eram eficientemente combatidas pelos oacutergatildeos de repressatildeo anteriores

a sofisticaccedilatildeo dos DOI ldquorevolucionourdquo de fato a organizaccedilatildeo da repressatildeo agindo jaacute

num primeiro momento de forma avassaladora

Antocircnio Leite de Carvalho19

Antocircnio Leite de Carvalho nasceu no Cearaacute em 13 de agosto de 1945 Quando era

estudante secundarista pertenceu ao movimento que se concentrava no Calabouccedilo

restaurante estudantil proacuteximo ao Aeroporto Santos Dumont do Rio de Janeiro

frequentado por estudantes que eram como ele secundaristas pobres e principalmente

procedentes de outros estados

Em 1967 o governo apresentou planos para a demoliccedilatildeo do Calabouccedilo sob a

justificativa de construir em seu local um trevo rodoviaacuterio para desafogar o tracircnsito do

Aterro do Flamengo A partir disso os estudantes comeccedilaram a protestar contra a sua

demoliccedilatildeo e criaram a Frente Unida dos Estudantes do Calabouccedilo (FUEC) O governo

em maio daquele ano conseguiu demolir o restaurante e entregou em setembro ldquoo novo

Calabouccedilordquo para os estudantes poreacutem em situaccedilotildees precaacuterias Assim a luta da FUEC

continuou em prol da melhoria de suas condiccedilotildees de funcionamento e foi justamente em

torno desses protestos que o primeiro grande conflito de rua do ano de 1968 ocorreu

sensibilizando a opiniatildeo puacuteblica e o movimento estudantil como um todo No dia 28 de

19

Entrevistas realizadas com Antocircnio Leite de Carvalho em 12 de setembro de 2002 e 8 de fevereiro de

2003

99

marccedilo policiais invadiram a tiros o restaurante do Calabouccedilo onde se preparava mais

uma manifestaccedilatildeo contra as peacutessimas condiccedilotildees do local e mataram o estudante

secundarista Edson Luiacutes de Lima Souto de dezoito anos Este assassinato representou o

estopim para o desencadeamento de amplas manifestaccedilotildees contraacuterias agrave ditadura ao

longo do ano de 1968 que seriam cada vez mais reprimidas ateacute se tornarem totalmente

proibidas pelo AI-5 20

A partir desse contexto de ilegalidades e proibiccedilotildees Antocircnio se posicionou entre

os estudantes que optaram por continuar a lutar contra a ditadura de forma radicalizada

Aproximou-se entatildeo do Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR) onde

logo em seguida comeccedilou a militar Antocircnio associa a sua adesatildeo ao PCBR ao

programa deste partido de esquerda que tinha a guerrilha urbana como meio de luta

para a derrubada da ditadura e implantaccedilatildeo do socialismo no paiacutes e principalmente agrave

admiraccedilatildeo que tinha por um dos seus fundadores e liacutederes Apolocircnio de Carvalho

Como Antocircnio teve participaccedilatildeo assiacutedua em muitas passeatas do movimento

estudantil de 1968 conheceu muitas lideranccedilas de organizaccedilotildees que vinham se

formando e buscavam adeptos em meio aos estudantes Assim foi apresentado e

comeccedilou a admirar Apolocircnio de Carvalho um dos grandes motivos que o levaram a

posteriormente militar no PCBR partido cuja formaccedilatildeo atuaccedilatildeo e ideais seratildeo

abordados mais adiante Apolocircnio de Carvalho era uma figura haacute muito atuante na

poliacutetica havia lutado em favor dos republicanos na Espanha durante a Guerra Civil

Espanhola na Resistecircncia Francesa contra o nazismo e participava do Partido

Comunista Brasileiro (PCB) quando em 1967 rompeu com este e foi um dos

fundadores do PCBR 21

20

Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009 108-132 21

Em 1967 Apolocircnio rompeu com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e se tornou um dos fundadores

do PCBR partido em situaccedilatildeo clandestina na eacutepoca motivo que o levou a ser preso Juntamente com

outros 39 presos poliacuteticos Apolocircnio foi trocado pelo embaixador alematildeo que em 11 de junho de 1970

100

O partido era o PCBR que possuiacutea uma grande figura que se chama

Apolocircnio de Carvalho que pertence hoje ao PT ele era uma grande

lideranccedila do partido havia participado da Revoluccedilatildeo Espanhola da

resistecircncia ao nazismo na Franccedila um homem respeitado mundialmente pela

sua coragem e pela luta a favor da democracia e contra os ditadores ele era a

minha grande lideranccedila (Carvalho 12 set 2002)

Em 1970 aos 25 anos Antocircnio Leite de Carvalho foi preso No momento de sua

prisatildeo estava agrave espera de outro militante do PCBR na rua em um ponto de encontro

que havia combinado com ele Relacionando o depoimento de Antocircnio com as

estrateacutegias de captura dos DOI analisadas no primeiro capiacutetulo percebe-se que como o

companheiro de Antocircnio havia sido capturado antes de ir ao seu encontro acabou

informando aos agentes de umas das turmas de interrogatoacuterio preliminar do DOI-

CODIRJ muito provavelmente sob tortura o horaacuterio em que Antocircnio estaria no lugar

marcado A partir disso a informaccedilatildeo foi repassada agrave Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo e

agentes de uma das turmas que a formavam se encaminharam ateacute o local com carros e

roupas descaracterizadas como de praxe e levaram Antocircnio algemado para o DOI-

CODIRJ onde ficou preso durante cerca de trecircs meses

Eu fui preso na rua Eu tinha um encontro com outro militante mas esse

militante foi preso e sob tortura no DOI-CODI aqui no 1deg BPE da Rua

Baratildeo de Mesquita ele abriu o ponto quer dizer o ponto era o local de

encontro que a gente chamava de ponto ldquoTenho um ponto com fulanardquo quer

dizer que vocecirc tinha um encontro Ele abriu o local de encontro que eu teria

com ele e aiacute eu fui preso pelo DOI-CODI (Carvalho 12 set 2002)

havia sido sequestrado por esquerdistas integrantes da Vanguarda Popular Revolucionaacuteria (VPR) e da

Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN) vivendo algum tempo exilado na Argeacutelia Apoacutes a implantaccedilatildeo da Lei

de Anistia no Brasil em 1979 ele e sua famiacutelia retornaram agrave terra natal onde participaram da fundaccedilatildeo

do Partido dos Trabalhadores (PT) em 1980 Apolocircnio faleceu em setembro de 2005 aos 93 anos

(Carvalho 1997 13-16)

101

Antocircnio ressalta que durante a sua prisatildeo no DOI-CODIRJ esteve junto a

Fernando Gabeira e Daniel Aaratildeo Reis Filho Ambos haviam participado do sequestro

do embaixador americano no dia 4 de setembro de 1969 e por terem conseguido trocar

o embaixador por quinze presos poliacuteticos que foram exilados no Meacutexico haviam se

destacado entre os militantes da esquerda armada Aleacutem disso como na eacutepoca em que

Antocircnio concedeu as entrevistas Gabeira e Daniel Aaratildeo eram pessoas publicamente

reconhecidas pela luta contra a ditadura e tambeacutem por suas atividades profissionais ndash

Gabeira como jornalista e entatildeo deputado federal e Daniel Aaratildeo como intelectual ndash

percebe-se que o fato de ter tido contato com eles na prisatildeo eacute importante para a leitura

que Antocircnio faz sobre suas memoacuterias injetando-lhes certo orgulho Afinal apesar de

natildeo ter participado do sequestro Antocircnio tambeacutem havia sido preso e torturado por

pegar em armas contra a ditadura logo o fato de ter convivido na cadeia com essas

figuras jaacute reconhecidas pelos feitos desse mesmo passado lhe trazia no presente uma

dimensatildeo positiva sobre suas memoacuterias

Fiquei preso com pessoas que ficaram famosas como o Fernando Gabeira

que depois se tornou parlamentar foi candidato ao governo do Estado foi

candidato a prefeito e hoje eacute deputado federal Tambeacutem o Daniel Aaratildeo

Reis renomado professor de Histoacuteria e uma seacuterie de outros que hoje estatildeo aiacute

pelo governo inclusive em diversos governos (Carvalho 12 set 2002)

Apoacutes o tempo em que esteve preso no DOI-CODIRJ Antocircnio foi transferido para

o Departamento de Ordem Poliacutetica e Social (DOPS) onde permaneceu por um periacuteodo

de dois ou trecircs meses sendo entatildeo libertado Na eacutepoca em que concedeu a entrevista

Antocircnio aleacutem de bancaacuterio aposentado trabalhava como dirigente sindical em um cargo

eletivo

102

Dulce Chaves Pandolfi22

Dulce Chaves Pandolfi nasceu em Recife no dia 14 de dezembro de 1948

Cursava Ciecircncias Sociais em Pernambuco quando em 1967 entrou para o Diretoacuterio

Acadecircmico se tornando pouco depois secretaacuteria geral do Diretoacuterio Central dos

Estudantes (DCE) A partir de dezembro de 1968 com o AI-5 extinguindo os grecircmios

estudantis e substituindo-os por centros ciacutevicos sem autonomia que natildeo podiam realizar

atividades de natureza poliacutetica a opccedilatildeo de fazer parte da ALN era para Dulce uma

forma de continuar lutando por uma ldquosociedade mais igualitaacuteriardquo Aleacutem disso era

sobretudo um meio de derrubar o regime militar em vigor como se pode conferir na

passagem abaixo

[] a gente queria transformar a sociedade a gente queria o socialismo uma

sociedade igualitaacuteria Mas tinha uma fase anterior que era exatamente a de

querer derrubar a ditadura essa era a meta principal de todos Sabiacuteamos

inclusive que o socialismo natildeo era uma meta imediata era uma luta em

longo prazo [] entatildeo a nossa luta inicialmente era para ser instalado o

regime democraacutetico era a luta contra a ditadura (Pandolfi 5 fev 2003)

Ressalta-se entretanto que a opccedilatildeo de Dulce assim como da maior parte dos

estudantes que a partir do AI-5 se juntaram agraves organizaccedilotildees esquerdistas de luta armada

estava inserida no contexto mundial de 1968 Este por sua vez influenciava-se pela

vitoacuteria da Revoluccedilatildeo Cubana em 1959 pela independecircncia da Argeacutelia em 1962 pela

Guerra Fria que acabou por deflagrar entre os anos de 1959 e 1975 a Guerra do Vietnatilde

e por meio desta o enfrentamento indireto de Estados Unidos e Uniatildeo Sovieacutetica e pela

rebeliatildeo estudantil mundial iniciada a partir do ldquomaio francecircs de 1968rdquo que comeccedilou

por meio de uma manifestaccedilatildeo estudantil pontual questionadora de atitudes culturais

22

Entrevista realizada com Dulce Chaves Pandolfi em 5 de fevereiro de 2003

103

tradicionais e conservadoras e rapidamente atingiu a proporccedilatildeo de uma ldquorevoluccedilatildeo

cultural mundialrdquo Percebe-se entatildeo que o horizonte nesse momento era revolucionaacuterio

e principalmente entre os jovens impulsionava a percepccedilatildeo de que os partidos

tradicionais de esquerda estavam desacreditados e que era hora de uma nova geraccedilatildeo

partir para a accedilatildeo direta rumo agrave revoluccedilatildeo

Assim diferente de como eacute narrado por muitos ex-prisioneiros poliacuteticos em

tempos jaacute democraacuteticos que tais como Dulce veem a democracia do presente como

uma conquista positiva e por isso inconscientemente permitem que essa visatildeo atual

influencie suas memoacuterias de luta percebe-se aqui que a democracia natildeo prevalecia entre

os ideais das organizaccedilotildees de luta armada da eacutepoca muito pelo contraacuterio Afinal

acredita-se que em meio ao contexto mundial do momento as esquerdas armadas

tinham uma perspectiva de fato revolucionaacuteria ou seja valorizavam a revoluccedilatildeo muito

mais que a democracia que inclusive nesse momento estava diretamente associada

aos Estados Unidos e consequentemente ao sistema capitalista Como aponta Daniel

Aaratildeo na obra a Ditadura militar esquerdas e sociedade (2000)

a perspectiva ofensiva revolucionaacuteria que havia moldado aquelas

esquerdas E o fato de que elas natildeo eram de modo nenhum apaixonadas pela

democracia (Aaratildeo Reis 2000 70)

A democracia soacute comeccedilou mesmo a ser valorizada a partir do final da deacutecada de

1970 jaacute em uma nova conjuntura onde jaacute existiam outros significados tais como os

direitos humanos e a luta pela anistia No entanto por outro lado nota-se que conforme

destacado por Dulce a luta contra ditadura era tambeacutem um dos objetivos principais da

esquerda armada no final dos anos 1960 Dessa forma apesar da luta contra ditadura na

eacutepoca estar totalmente vinculada agrave revoluccedilatildeo socialista eacute compreensiacutevel que a

democracia tenha em tempos recentes um papel destacado entre as memoacuterias dos ex-

104

guerrilheiros Tal como analisa Marcelo Ridenti em Resistecircncia e mistificaccedilatildeo da

resistecircncia armada contra a ditadura armadilha para pesquisadores (2004) nota-se

aqui que a face de resistecircncia agrave ditadura das experiecircncias guerrilheiras passou a importar

mais apoacutes a implantaccedilatildeo da democracia que a ofensiva revolucionaacuteria ao contraacuterio da

intenccedilatildeo original dos guerrilheiros Afinal foi esta face que teve o objetivo alcanccedilado

ou seja saiu-se vencedora

Apoacutes o AI-5 Dulce optou entatildeo por militar na Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN)

organizaccedilatildeo de esquerda armada que seraacute abordada ainda neste capiacutetulo Assim no ano

de 1970 sabendo que estava sendo procurada pela repressatildeo por conta de sua militacircncia

clandestina Dulce se mudou para a cidade do Rio de Janeiro Sete meses depois no dia

14 de agosto foi presa na casa do seu namorado e levada direto para o DOI-CODIRJ

onde permaneceu cerca de trecircs meses

[] fui presa na casa do meu namorado noacutes fomos presos agrave noite no dia 14

de agosto Fui levada direto para PE Fiquei na PE mais ou menos uns trecircs

meses fiquei ateacute novembro comecinho de dezembro eu acho Depois eu

fui transferida para o DOPS (Pandolfi 5 fev 2003)

Apoacutes permanecer presa no DOI-CODI Dulce foi levada para o DOPS e depois

de seu julgamento foi transferida para o presiacutedio Talavera Bruce prisatildeo feminina de

regime fechado com grau de seguranccedila maacutexima localizada no bairro de Bangu

Passado um ano foi levada de volta para Recife sua cidade natal onde finalmente foi

libertada Encontrou-se prisioneira por mais de um ano de agosto de 1970 ateacute dezembro

de 1971

[] depois de um tempo praticamente um ano que eu estava presa fui

levada para Recife porque eu tambeacutem tinha processo laacute e de laacute eu saiacute Fui

105

solta laacute em Recife depois de um ano Saiacute em dezembro de 1971 fui presa

em agosto de 70 e fui solta em dezembro de 71 (Pandolfi 5 fev 2003)

Dulce no momento de sua entrevista jaacute era professora e pesquisadora do Centro de

Pesquisa e Documentaccedilatildeo de Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil (CPDOC) da Fundaccedilatildeo

Getuacutelio Vargas (FGV) ofiacutecio que exerce ateacute os dias de hoje

Fernando Palha Freire23

Fernando Palha Freire nasceu em Beleacutem (PA) e se mudou para o Rio de Janeiro

no fim de 1964 Antes de vir para o Rio ainda adolescente aprendeu alguns

fundamentos marxistas com sua irmatilde mais velha jaacute universitaacuteria que lhe deu o que ele

chamou de uma ldquonoccedilatildeo de mundordquo Quando se mudou para o Rio de Janeiro Fernando

mesmo jovem jaacute havia se definido esquerdista

Agrave eacutepoca do AI-5 Fernando tinha muitos amigos que militavam em uma

Dissidecircncia do Partidatildeo de Niteroacutei a Dissidecircncia do Estado do Rio de Janeiro que em

meados de 1969 foi desmontada atraveacutes da prisatildeo de seus integrantes pelo oacutergatildeo de

repressatildeo da Marinha o Centro de Informaccedilotildees da Marinha o CENIMAR Como esta

organizaccedilatildeo natildeo tinha um nome especiacutefico para noticiar o seu desmonte na imprensa

com um efeito grandioso os militares daquele oacutergatildeo optaram por nomeaacute-la de

Movimento Revolucionaacuterio 8 de outubro (MR-8) fazendo alusatildeo agrave data em que Che

Guevara havia sido capturado na Boliacutevia morrendo no dia seguinte Foi inclusive a

partir disso que a Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-GB)24

para provocar o

governo ditatorial que haacute pouco havia noticiado o desmonte do perigoso ldquoMR-8rdquo

23

Entrevista realizada com Fernando Palha Freire em 28 de junho de 2004 24

Tais organizaccedilotildees de esquerda da eacutepoca ainda seratildeo abordadas neste capiacutetulo no item 12 A nova

esquerda brasileira

106

assinou em co-autoria com a ALN o sequestro do embaixador norte-americano

autointitulando-se MR-8 como passou desde entatildeo a ser conhecida 25

[] quando veio o golpe minha irmatilde jaacute era universitaacuteria eu era um garoto

eu tinha quinze anos [] ela que me deu mesmo uma noccedilatildeo de mundo de

marxismo Quando veio o golpe noacutes moraacutevamos em Beleacutem No final de 64

eu estava me mudando para o Rio de Janeiro jaacute com essas noccedilotildees de justiccedila

social que eu havia aprendido com ela Digamos assim eu jaacute era

definidamente um cara de esquerda Aiacute veio a luta armada [] a primeira

organizaccedilatildeo [desmontada pelos militares] era o MR-8 uma organizaccedilatildeo de

Niteroacutei uma dissidecircncia do Partidatildeo [PCB] de Niteroacutei onde muitos de seus

integrantes eram meus conhecidos meus amigos entatildeo quando esses caras

foram presos eu jaacute era digamos assim um simpatizante dessa organizaccedilatildeo

natildeo era militante mas era simpatizante [] (Freire 28 jun 2004)

A partir dessa ligaccedilatildeo com outros militantes Fernando optou pela luta armada e

passou a militar na ALN mesma organizaccedilatildeo de Dulce Sua militacircncia poreacutem

concentrava-se em Niteroacutei no estado do Rio de Janeiro onde morava e estudava

economia na Universidade Federal Fluminense (UFF) Assim em 1970 Fernando e

outros militantes da ALN proacuteximos a ele resolveram planejar uma accedilatildeo para que muitos

de seus companheiros inclusive os do antigo MR-8 fossem libertados

No dia 1deg de julho de 1970 aos 22 anos Fernando participou do sequestro de um

aviatildeo da Companhia Cruzeiro do Sul que ia do Brasil para a Argentina com o objetivo

de negociar a troca dos passageiros por quarenta presos poliacuteticos

[] a gente pensou em fazer uma accedilatildeo accedilatildeo no sentido de tentar libertar esse

pessoal Na eacutepoca jaacute tinham sequestrado o embaixador americano e

trocado por quinze presos poliacuteticos [] Entatildeo nesse sentido a gente

resolveu planejar o sequestro de um aviatildeo A gente sequestrou um aviatildeo com

o objetivo de trocar os passageiros por quarenta presos poliacuteticos Quer dizer

25

Para mais informaccedilotildees sobre a mudanccedila de nome da Dissidecircncia da Guanabara para MR-8 ver

Berquoacute 1997 72-73

107

a gente entrou num processo de radicalizaccedilatildeo mesmo A gente queria era a

libertaccedilatildeo [] soacute que essa accedilatildeo natildeo deu certo [] (Freire 28 jun 2004)

O sequestro parecia correr como o planejado Durante o vocirco Fernando e os outros

militantes conseguiram desviar a rota que saiacutea do Rio de Janeiro para Buenos Aires

com escala em Satildeo Paulo fazendo o aviatildeo retornar ao Rio Poreacutem no Aeroporto

Internacional do Rio de Janeiro o Galeatildeo oficiais da Aeronaacuteutica cercaram o aviatildeo e

conseguiram render os opositores poliacuteticos envolvidos na operaccedilatildeo antes que eles

conseguissem negociar a troca dos refeacutens pelos quarenta prisioneiros poliacuteticos Durante

o combate um dos sequestradores irmatildeo de Fernando levou um tiro vindo a falecer

horas depois

A gente chegou a desviar o aviatildeo um aviatildeo que ia pra Argentina com uma

parada em Satildeo Paulo a gente mandou o aviatildeo voltar e quando chegamos ao

Rio o aviatildeo foi cercado Os caras chegaram com gaacutes lacrimogecircneo lama

arma e nessa accedilatildeo o meu irmatildeo foi baleado e depois morreu Eles mataram

meu irmatildeo A gente foi preso pelo CISA que era a forccedila secreta da

Aeronaacuteutica [] Jaacute na descida do aviatildeo a gente apanhou natildeo se sabe de

quem e nem por onde Depois fomos torturados no aparelho de repressatildeo

deles laacute dentro e de laacute fomos transferidos pro DOI-CODI na PE (Freire 28

jun 2004)

Primeiramente aprisionado pelo Centro de Informaccedilotildees e Seguranccedila da

Aeronaacuteutica (CISA) Fernando foi pouco tempo depois transferido para o DOI-

CODIRJ onde permaneceu cerca de dezoito a vinte dias Posteriormente voltou para

as dependecircncias do CISA no aeroporto do Galeatildeo onde ficou cerca de oito meses ateacute

ser julgado Apoacutes seu julgamento foi conduzido para o Instituto Penal Cacircndido Mendes

(IPCM) presiacutedio de seguranccedila maacutexima localizado em Ilha Grande no estado do Rio de

Janeiro Para Fernando em meio agraves privaccedilotildees que vivia nos oacutergatildeos de repressatildeo ser

transferido para um presiacutedio de fato como o da Ilha Grande era na eacutepoca um desejo

108

Afinal aleacutem de saber que laacute estavam alguns de seus companheiros no IPCM existia

uma rotina de presiacutedio normal com direito a jogar futebol no paacutetio a ler jornais e livros

situaccedilatildeo bem diferente da dos DOI-CODI por exemplo que conforme destacado no

capiacutetulo anterior eram oacutergatildeos estritamente de repressatildeo e investigaccedilatildeo localizados em

quarteacuteis cuja prisatildeo era improvisada apenas para cumprir tais funccedilotildees

Oito meses foi o tempo que a gente ficou laacute na Aeronaacuteutica E aiacute o que eacute a

perspectiva de vida Os sonhos da gente Vocecirc quando estaacute preso o seu

sonho eacute fugir realmente mas se vocecirc natildeo tem perspectiva de fuga o seu

sonho eacute o quecirc Eacute ir pra uma coletividade onde estatildeo os outros presos Entatildeo

meu sonho passou a ser esse ir pra Ilha Grande [] laacute eu sabia que os

companheiros estavam laacute sabia que tinha uma lsquopeladinharsquo que a gente podia

bater uma bola campeonato de xadrez livros para ler coisa que esses caras

sacaneavam tanto a gente que nem livros Jornal Raacutedio Essas coisas Nem

pensar Entatildeo meu sonho era Ilha Grande Apesar de ser um lugar

horroroso Era na eacutepoca um presiacutedio de seguranccedila maacutexima isolado (Freire

28 jun 2004)

Fernando permaneceu mais de seis anos na prisatildeo sendo libertado no dia 29 de

setembro de 1976 Ele e os demais companheiros envolvidos no sequestro tiveram suas

condenaccedilotildees embasadas no artigo 28 do Decreto-lei 898 de 29 de setembro de 1969

que alterava a Lei de Seguranccedila Nacional A partir deste artigo ficava estipulada uma

pena de reclusatildeo que poderia variar de 12 a 30 anos para quem devastasse saqueasse

assaltasse sequestrasse incendiasse depredasse ou praticasse qualquer tipo de atentado

pessoal ato de massacre sabotagem ou terrorismo Aleacutem disso no mesmo artigo havia

um paraacutegrafo uacutenico decretando que se a accedilatildeo resultasse em morte a condenaccedilatildeo seria

no miacutenimo agrave prisatildeo perpeacutetua e no maacuteximo agrave morte

Art 28 Devastar saquear assaltar roubar sequestrar incendiar depredar

ou praticar atentado pessoal ato de massacre sabotagem ou terrorismo

109

Pena reclusatildeo de 12 a 30 anos

Paraacutegrafo uacutenico Se da praacutetica do ato resultar morte

Pena prisatildeo perpeacutetua em grau miacutenimo e morte em grau maacuteximo (Decreto-

lei nordm 898 29 set 1969)

A partir desse decreto durante o julgamento de Fernando tentaram condenaacute-lo agrave

prisatildeo perpeacutetua baseando a argumentaccedilatildeo no fato do sequestro do aviatildeo ter acarretado

uma morte no caso a de seu irmatildeo No entanto como esta morte foi ocasionada pela

repressatildeo militar a pena de Fernando ficou estipulada em doze anos de reclusatildeo e mais

adiante reduzida para seis anos

[] tinha uma lei de seguranccedila nova entrado em evidecircncia os caras queriam

dar o exemplo com pena de morte ou prisatildeo perpeacutetua etc e noacutes fomos os

primeiros casos de pena de morte que eles pediram O meu o de Colombo

Jessie Jane - Jane eacute a ex-diretora daqui [Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio

de Janeiro ndash APERJ] [] tinha um artigo vinte e oito que previa pena capital

ou prisatildeo perpeacutetua em caso de morte Soacute que quem morreu foi um dos

nossos o meu irmatildeo foi morto por eles e eles em cima disso tentando

aplicar essa pena soacute que natildeo colou E eu peguei doze anos Colombo pegou

trinta mas era menor aiacute caiu pra dezoito a Jane de vinte e quatro parece

que a Jane caiu pra dezoito E eu como tinha a questatildeo de ser primaacuterio natildeo

sei mais o quecirc enfim quer dizer eu estou resumindo Aiacute por conta disso

fui condenado e fiquei seis anos [] (Freire 28 jun 2004)

Na eacutepoca da entrevista Fernando trabalhava no Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio

de Janeiro (APERJ) onde possuiacutea um cargo de confianccedila conforme explicado

anteriormente Hoje Fernando Palha Freire eacute comerciante responsaacutevel pela cantina do

primeiro piso do preacutedio do Instituto de Filosofia e Ciecircncias Sociais (IFCS) da

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

110

Padre Maacuterio Prigol26

Padre Maacuterio Prigol nasceu em 12 de novembro de 1928 em Vila Gramado no

municiacutepio de Paulo Bento no Rio Grande do Sul Em 1970 quando foi preso era

assistente da Juventude Operaacuteria Catoacutelica (JOC) e da Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO)

grupos ligados agrave Igreja Catoacutelica criados para atender a problemas de jovens e adultos

trabalhadores 27

Apoacutes o golpe de 1964 organizaccedilotildees como a JOC e a ACO ganharam

forccedila entre muitos trabalhadores devido agraves dificuldades impostas pelo governo militar

para a organizaccedilatildeo em sindicatos

A sede nacional da JOC era aqui no morro de Satildeo Joseacute Operaacuterio atraacutes da

Penitenciaacuteria [antigo Complexo Penitenciaacuterio Frei Caneca] era na favela []

eu trabalhei com a JOC de Satildeo Paulo e depois vim para caacute trabalhava na

Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria que hoje se chama MTC Movimento dos

Trabalhadores Cristatildeos Esse movimento preparava os jovens e adultos dos

sindicatos dos partidos poliacuteticos de todos os setores da sociedade onde haacute

trabalhadores que procuram descobrir os acontecimentos a situaccedilatildeo operaacuteria

e sobretudo melhorar a sua condiccedilatildeo de trabalhador E vamos lembrar que

naquela eacutepoca havia a nova lei [lei 458964] que soacute podia ser diretor do

sindicato quem natildeo tinha nada que comprometesse entatildeo todos aqueles que

lutavam pela greve contra a puniccedilatildeo da greve ou de forma geral pelos

trabalhadores natildeo podiam ser nem diretores de associaccedilotildees nem diretores de

sindicatos [] soacute poderia ser diretor de sindicato quem fosse aprovado pela

Lei de Seguranccedila Nacional (Prigol 28 set 2004)

Padre Maacuterio se destaca entre os ex-prisioneiros entrevistados por aleacutem de ser uma

autoridade de uma instituiccedilatildeo de importacircncia mundial como a Igreja Catoacutelica sua

atuaccedilatildeo ser diferente da dos demais natildeo estando ligada agrave esquerda armada da eacutepoca e

ao meio estudantil Quando foi preso no DOI-CODIRJ em 1970 Padre Maacuterio jaacute natildeo

era mais tatildeo jovem para ser estudante e sua formaccedilatildeo poliacutetica natildeo era a mesma da

26

Entrevista realizada com Padre Maacuterio Prigol em 28 de setembro de 2004 27

A JOC e ACO seratildeo abordadas ainda neste capiacutetulo no item 12 A nova esquerda brasileira

111

geraccedilatildeo que pegava em armas jaacute que sua intenccedilatildeo enquanto assistente da JOC e da

ACO era ajudar os trabalhadores a garantirem os seus direitos e para tanto opunha-se

agraves leis impostas pela ditadura solidificando entre os integrantes dessas associaccedilotildees uma

consciecircncia de reivindicaccedilatildeo classista sem entretanto aspirar propriamente a uma

revoluccedilatildeo socialista

Percebe-se poreacutem que a concomitacircncia entre os periacuteodos prisionais de Padre

Maacuterio e os demais entrevistados natildeo eacute casual Afinal diante da ideia de revoluccedilatildeo

socialista que guiava as accedilotildees armadas que se multiplicavam e ganhavam forccedila apoacutes o

AI-5 a consciecircncia de reivindicaccedilatildeo de classe que a JOC e conforme seraacute abordado

adiante principalmente a ACO disseminavam aos seus trabalhadores eram

interpretadas como ameaccediladoras pela repressatildeo Uma vez que as organizaccedilotildees

guerrilheiras tinham por meta justamente conseguir apoio da classe trabalhadora para

concluiacuterem o plano de revoluccedilatildeo socialista e o trabalho da JOC e da ACO vinha unindo

e organizando uma percepccedilatildeo de classe justamente entre os trabalhadores havia uma

forte propensatildeo que futuramente tais trabalhadores se unissem agrave esquerda em prol da

revoluccedilatildeo socialista

Diante disso explica-se o fato de Padre Maacuterio ter sido preso em meados de 1970

pelos agentes de uma das turmas de busca e apreensatildeo do DOI-CODIRJ durante a

invasatildeo feita ao Instituto Brasileiro de Estudos Sociais (IBRAES) que funcionava na

Casa dos Jesuiacutetas localizada na Rua Bambina no bairro de Botafogo Ele outros

integrantes da JOC e os demais estudantes que assistiam ao curso de desenvolvimento

social foram levados ao DOI-CODIRJ Este curso tinha duraccedilatildeo de aproximadamente

oito meses ao longo dos quais os alunos adquiriam informaccedilotildees sobre o sistema

poliacutetico e econocircmico do Brasil

112

Dias antes dos agentes chegarem ateacute o curso toda a direccedilatildeo nacional da JOC

havia sido presa inclusive dois alunos do IBRAES que foram levados ao DOI-

CODIRJ onde possivelmente sob tortura passaram aos agentes da turma de

interrogatoacuterio preliminar de plantatildeo informaccedilotildees sobre o curso que estava ocorrendo na

Rua Bambina Assim quando os agentes do DOI-CODIRJ chegaram ao local

prenderam todos que estavam participando do curso levando primeiro os militantes e

depois os padres Entre eles estavam Padre Maacuterio e Padre Agostinho de Freitas na

eacutepoca assistente latino-americano da JOC

Noacutes fomos presos natildeo por causa do curso mas porque esses elementos do

DOI prenderam esse pessoal da JOC considerados subversivos e

procuravam um dos assistentes que jaacute tinha sido acusado em Belo Horizonte

de ser subversivo o Padre Manuel de Jesus Ele foi assistente nacional da

JOC mas na eacutepoca natildeo era mais assistente [] entatildeo para prender Manuel

de Jesus foram prendendo toda a direccedilatildeo nacional da JOC que foram

torturados barbaramente torturas como por exemplo os homens

sexualmente em todos os aspectos foram torturados Eram quatro jovens

homens e quatro jovens mulheres e entre esses jovens havia dois alunos do

IBRAES onde eu fazia curso onde vaacuterios desses militantes da JOC tambeacutem

participavam inclusive o Manuel de Jesus Entatildeo no IBRAES os militantes

da JOC foram levados presos primeiro e noacutes padres depois e mais ainda

foi preso o assistente latino-americano da JOC Padre Augustinho Freitas

que hoje trabalha em Nova Iguaccedilu Entatildeo todos noacutes fomos presos []

(Prigol 28 set 2004)

Ao ser preso Padre Maacuterio foi levado diretamente para o DOI-CODIRJ onde

juntamente com os outros padres permaneceu por 54 dias enquanto os jovens

militantes da JOC permaneceram por cerca de trecircs meses Por ser padre sua prisatildeo foi

interrompida pela intervenccedilatildeo de cardeais como explica no trecho a seguir destacado

de seu livro autobiograacutefico

113

D Trevisan D Waldir Dom Aloiacutesio e Padre Celso Pinto que estava ligado

ao Secretariado dos Leigos da CNBB [Conferecircncia Nacional de Bispos do

Brasil] informaram a nossa situaccedilatildeo aos cardeais Mais tarde com a

libertaccedilatildeo de alguns de noacutes realizamos um encontro para discutirmos as

humilhaccedilotildees que sofremos (Prigol 2003 117)

Na eacutepoca em que a entrevista foi concedida Padre Maacuterio aos 75 anos era

missionaacuterio saletino trabalhava na Paroacutequia de Nossa Senhora da Salette no Catumbi e

ainda ocupava o cargo de assistente do MTC (Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos)

antiga Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) Atualmente aos 83 anos Padre Maacuterio ainda

permanece ativamente nessas mesmas funccedilotildees

Ana de Miranda Batista28

Ana Bursztyn nome de solteira de Ana de Miranda Batista nasceu no Rio de

Janeiro em 30 de dezembro de 1948 Era militante estudantil enquanto cursava

Farmaacutecia na UFRJ Foi presa pela primeira perto do clube Botafogo de Futebol e

Regatas localizado na Avenida Venceslau Braacutes no bairro de Botafogo em junho de

1968 juntamente com trezentos estudantes Ela e os demais haviam participado de uma

assembleia estudantil na reitoria da UFRJ no campus da Praia Vermelha que

reivindicava mais verbas do governo federal para o ensino superior Os policiais a

levaram para o DOPS libertando-a no dia seguinte Eleita em outubro de 1968

representante dos estudantes de seu curso participou do Congresso da Uniatildeo Nacional

dos Estudantes (UNE) em Ibiuacutena quando foi novamente capturada pela poliacutecia com

mais de 800 estudantes permanecendo pouco mais de uma semana em reclusatildeo

Ateacute 1968 eu fazia parte do Movimento Estudantil do Diretoacuterio da Faculdade

tudo que tinha de movimento estudantil fazia parte da minha preocupaccedilatildeo

28

Entrevista realizada com Ana de Miranda Batista em 17 de novembro de 2004

114

Em junho a gente foi preso no campus de Botafogo [] Nesse dia em que eu

fui presa pela primeira vez foi um dia que cerca de trezentos estudantes

foram presos porque como a gente estava batalhando por mais verbas era

um dia em que o Conselho Universitaacuterio estava reunido na Praia Vermelha

jaacute que a reitoria era na Praia Vermelha [] laacute pelas tantas veio uma notiacutecia

de que tinham cercado a universidade [] e a gente natildeo estava esperando

isso a gente fazia umas passeatas na cidade mas a barra natildeo era pesada []

Aiacute o reitor decidiu sair na frente dos estudantes e atraacutes dele saiacuteram as

lideranccedilas das faculdades - eu era a lideranccedila da minha faculdade - e depois

uns trezentos estudantes Aiacute eles comeccedilaram a atirar para baixo para o chatildeo

[] e a gente saiu correndo sem enxergar nada e a poliacutecia dando porrada e a

gente sem enxergar nada (risos) Fomos entatildeo andando em direccedilatildeo ao tuacutenel

quando algueacutem disse ldquo- Vem por aqui por aquirdquo Sem saber que era uma

cilada fomos quase os trezentos para laacute Quando a gente entrou ldquo- Todo

mundo pro chatildeordquo Fomos presos no DOPS naquele dia e passamos a noite laacute

[] Daiacute eacute que a gente comeccedilou a fazer as grandes passeatas na cidade ateacute

que comeccedilou a ter passeata sempre mobilizaccedilotildees [] Em outubro de 68 a

gente foi para o Congresso de Ibiuacutena em Satildeo Paulo que foi um congresso

da UNE que estava clandestina na eacutepoca onde fomos todos presos Foi aiacute eacute

que ficou preso natildeo sei cerca de oitocentos estudantes Eles ateacute fizeram um

aacutelbum ficharam todo mundo Esse foi o aacutelbum que eles mostravam na

imprensa e nos cartazes depois porque evidentemente quando a barra

pesou metade das lideranccedilas do movimento estudantil foi para a luta armada

[] mas a gente ficou uma semana preso e depois de uma semana ou dez

dias a gente saiu Mas a barra comeccedilou a pesar mesmo a partir de 13 de

dezembro com o AI-5 [] (Batista 17 nov 2004)

Apoacutes o decreto do AI-5 Ana assim como Antocircnio se aproximou de alguns

integrantes do PCBR poreacutem diferentemente dele natildeo chegou a militar no partido

tornando-se tal como Dulce e Fernando militante da ALN Em Satildeo Paulo para onde

fugiu quando estava sendo perseguida Ana foi presa no dia 14 de julho de 1970 dentro

do magazine Mappin no centro da cidade Na situaccedilatildeo Ana portava uma arma e

115

carregava carteira de identidade falsa pela qual se chamava Naacutedia Zanzin conforme

descreve na passagem abaixo

Quando eu saiacute da casa que a gente estava o Bacuri [codinome de Eduardo

Collen Leite seu companheiro de organizaccedilatildeo] me deu uma arma e dezoito

caacutepsulas porque eu estava sendo procurada [] eu estava com uma carteira

de identidade falsa me chamava Naacutedia Zanzin [] fui presa entatildeo com

nome falso e foi um bafafaacute o cara quis me tirar a arma da matildeo e entatildeo eu

reagi teve um tiro [] Naquele dia eu tinha perdido o lsquopontorsquo [ponto de

encontro com outro militante] porque eu fiquei conversando com a minha

amiga e cheguei atrasada O ponto era perto do centro da cidade e como eu

tinha que esperar duas ou trecircs horas ateacute o proacuteximo encontro eu fiquei

rodando por laacute onde entrei numa loja grande como se fosse a antiga Mesbla

[] chamava-se Mappin Laacute eu fiquei comprando coisas para maquiagem

para mudar a minha cara [] Laacute dentro eles tinham vaacuterios seguranccedilas e um

ou dois deles ficaram em duacutevida se tinham reconhecido ou natildeo quem eu era

e se aproximaram de mim Eu estava na fila para pagar quando se eles se

aproximaram e disseram ldquo- Essas coisas a senhora paga em outro lugarrdquo Aiacute

eu ldquo- Mas eu estou na fila para pagarrdquo Aiacute eles ldquo- Vem com a gente que a

senhora vai pagar em outro lugarrdquo Entatildeo entrei no elevador e fui parar no

seacutetimo andar na parte de seguranccedila da loja Laacute eles queriam que eu me

explicasse Eu tirei tudo o que eu tinha da bolsa eu fui tirando e mostrei para

eles que estava com dinheiro na bolsa e estava na fila para pagar Aiacute eles ldquo-

Natildeo natildeo eacute isso natildeo mas a gente precisa revistarrdquo E eu fui tirando tudo da

bolsa para ver se eles natildeo me revistavam mas eles ldquo- Natildeo a gente vai

revistarrdquo Aiacute comeccedilaram a lutar comeccedilou um pega bolsa e tira bolsa que eu

natildeo queria porque a arma estava no fundo da bolsa Aiacute eu falava ldquo- Natildeo

mas natildeo precisa estaacute tudo aquirdquo Mas natildeo era isso natildeo era porque eles

achavam que eu estava roubando eles desconfiavam de alguma coisa e natildeo

sabiam bem o quecirc e resolveram me revistar Aiacute eu reagi Depois disso

chamaram o delegado e me botaram amarrada na cadeira laacute em cima no

andar da seguranccedila da loja (Batista 17 nov 2004)

116

Esse mesmo episoacutedio foi retratado dois dias depois em um trecho do Jornal da

Tarde de 16 de julho de 1970 conforme Elio Gaspari destaca em seu livro As Ilusotildees

Armadas a Ditadura Escancarada (2002)

[] Ana Bursztyn ex-estudante de farmaacutecia presa [] no magazine Mappin

Um vigilante desconfiara ao vecirc-la colocar cosmeacuteticos numa sacola (da loja)

e levou-a a uma sala onde estava o chefe de seguranccedila Ana meteu a matildeo na

bolsa puxou um Taurus 32 feriu-o com um tiro na perna mas natildeo

conseguiu fugir (Gaspari 2002 299-300)

De fato no momento de sua prisatildeo Ana resistiu e disparou um tiro atingindo no

peacute um dos seguranccedilas da loja que era policial militar Naquele dia Ana foi levada presa

sem saber o que de fato tinha ocorrido com aquele homem Assim em novembro de

1970 mecircs do aniversaacuterio da ldquoIntentona Comunistardquo de 1935 Ana ainda presa leu em

um jornal uma relaccedilatildeo de mortos pelos terroristas divulgada pelos oacutergatildeos de seguranccedila

do governo Laacute o homem em quem havia atirado estava listado como morto e ela como

sua assassina Ana passou a carregar a culpa de tecirc-lo matado ateacute que algum tempo

depois ao vecirc-lo assistindo a seu julgamento constatou que o seguranccedila havia

sobrevivido e que aquela notiacutecia era mais um dos boatos que o governo na eacutepoca

costumava veicular na imprensa a fim de manipular a opiniatildeo puacuteblica

Depois disso durante anos quando eu estava presa no dia da Intentona

Comunista que eu acho que eacute novembro de 1935 colocavam nos jornais em

todos os jornais uma relaccedilatildeo dos mortos pelos terroristas entre aspas que

eacuteramos noacutes [] eu li que o cara laacute Izidoro Zambaldi foi morto pela

terrorista Ana Bursztyn Ele na hora da briga eu briguei com ele ele recebeu

um tiro acho que no peacute esbarrou assim no peacute ele ficou uns dias internado e

saiu ele estava no meu julgamento na audiecircncia Quer dizer e durante

muito tempo eu achando que tinha o matado Era um dos que eles

117

contabilizavam como mortos por noacutes E provavelmente ele estaacute aiacute vivo ateacute

hoje [] (Batista 17 nov 2004)

Ana foi presa portanto por ter sido reconhecida por um policial que tambeacutem

trabalhava como seguranccedila para a loja Mappin Provavelmente isso ocorreu pelo fato

dos organismos de repressatildeo colarem pelos muros da cidade bem como distribuiacuterem

nos estabelecimentos privados muitos folhetos e cartazes com fotos dos ldquoterroristas

procuradosrdquo pela ditadura militar entre os quais Ana A divulgaccedilatildeo de tais fotos era

mais uma forma que os agentes da repressatildeo utilizavam para cercar os suspeitos Assim

qualquer pessoa poderia denunciar e qualquer policial poderia prender tais suspeitos No

entanto caso a prisatildeo natildeo fosse feita pelos agentes do DOI-CODI da respectiva Regiatildeo

Militar obrigatoriamente depois de preso o cidadatildeo considerado ldquosubversivordquo deveria

ser para laacute transferido conforme ocorreu com Ana Afinal como jaacute analisado no

primeiro capiacutetulo o DOI-CODI de cada Regiatildeo concentrava as informaccedilotildees sobre

seguranccedila interna de cada aacuterea portanto laacute existiam as condiccedilotildees necessaacuterias para que a

extraccedilatildeo e anaacutelise das informaccedilotildees que os prisioneiros detivessem fossem trabalhadas

de forma mais eficiente

Diante disso Ana nos primeiros dias de prisatildeo passou pelo DOPS-SP e em

seguida pelo DOI-CODISP sendo posteriormente transferida para o DOI-CODIRJ

Laacute permaneceu por um mecircs voltando para DOI-CODISP passando ainda pelo

DOPSSP Depois de julgada foi levada para o Recolhimento de Presos Tiradentes ndash

localizado na Rua Tiradentes na cidade de Satildeo Paulo ndash para o Presiacutedio de Mulheres ndash

localizado no antigo Complexo Penitenciaacuterio do Carandiru tambeacutem na cidade de Satildeo

Paulo ndash e ainda passou por delegacias das poliacutecias Federal do Rio de Janeiro e de Satildeo

Paulo pelo Presiacutedio do Forte de Copacabana no Rio de Janeiro e por fim pelo

Depoacutesito de Presas Satildeo Judas Tadeu localizado no preacutedio do DOPS-RJ Permaneceu

118

presa por cerca de quatro anos conseguindo liberdade condicional em fevereiro de

1974

Ana de Miranda Batista nome que adotou depois de casada eacute farmacecircutica

bioquiacutemica e na eacutepoca em que concedeu a entrevista era ativista do Grupo Tortura

Nunca MaisRJ (GTNMRJ)

Ceciacutelia Coimbra29

Ceciacutelia Maria Bouccedilas Coimbra nasceu no Rio de Janeiro em 16 de marccedilo de 1941

Ao ingressar no curso de Histoacuteria da Universidade do Brasil atual UFRJ Ceciacutelia que

era por descendecircncia familiar ldquoconservadora e catoacutelicardquo em suas proacuteprias palavras

comeccedilou a questionar-se poliacutetica e religiosamente Iniciou assim sua militacircncia no

Partido Comunista Brasileiro (PCB) clandestino na eacutepoca Entre 1962 e 1963

trabalhou em um programa de alfabetizaccedilatildeo de adultos pelo meacutetodo do educador Paulo

Freire fato que visivelmente a marcou muito Apoacutes o golpe de 64 Ceciacutelia continuou

militando no Partido Comunista poreacutem com muitas discordacircncias ateacute quando comeccedilou

a fazer parte de uma das dissidecircncias do referido partido a Dissidecircncia Comunista da

Guanabara a que ela se refere por ldquoPC da Guanabarardquo

[] eu vim de uma famiacutelia muito tradicional extremamente tradicional meu

pai era um conservador era um cara que era portuguecircs a favor do regime

ditatorial de Salazar A minha matildee era extremamente catoacutelica Tanto que

quando eu entrei para faculdade para fazer Histoacuteria eu era uma pessoa

extremamente conservadora Era lacerdista a favor do Carlos Lacerda

contra Joatildeo Goulart contra os comunistas A minha famiacutelia era muito

anticomunista E quando eu entrei para a faculdade eu ateacute falei isso na

entrevista para a lsquoCaros Amigosrsquo [sua entrevista havia sido capa da Revista

Caros Amigos naquele mesmo mecircs] comecei a ter contato com algumas

29

Entrevista realizada com Ceciacutelia Maria Bouccedilas Coimbra em 30 de novembro de 2004

119

pessoas que eram comunistas e eram pessoas muito interessantes muito

inteligentes e eram pessoas com as quais as duacutevidas que eu tinha com

relaccedilatildeo agrave religiatildeo eu comecei a tirar Porque eu comecei a ler marxismo aiacute

eu comecei a ler materialismo histoacuterico materialismo dialeacutetico e eu comecei

a ver que de repente a religiatildeo era uma coisa produzida pelo proacuteprio

homem [] Eu comecei entatildeo em 6263 a participar de reuniatildeo do Partido

Comunista que era clandestino na eacutepoca e acabei entrando para o Partido

Aiacute comecei a namorar um cara que depois se tornou meu marido e foi preso

comigo que haacute pouco tempo eu ateacute me separei [] Ele jaacute era do Partido

Comunista haacute muito tempo a famiacutelia dele era toda uma famiacutelia formada por

comunistas ao contraacuterio da minha (risos) Em 64 veio o golpe mas aiacute eu

antes disso eu acho que tem a ver porque isso para mim tambeacutem eacute

militacircncia eu fui trabalhar com um programa de alfabetizaccedilatildeo de adultos

pelo meacutetodo Paulo Freire eu trabalhei com o proacuteprio Paulo Freire em 63 um

pouco antes do golpe [] Entatildeo depois do golpe eu continuei militando no

Partido mas jaacute com muitas discordacircncias quer dizer discordava de muita

coisa e aiacute comecei a fazer parte do que se chamou de Dissidecircncia do PC da

Guanabara (Coimbra 30 nov 2004)

Entretanto Ceciacutelia comeccedilou a discordar tanto da luta armada que a Dissidecircncia

Comunista da Guanabara a partir de 1968 veio a adotar quanto do caminho paciacutefico e

institucional defendido pelo PCB se afastando de ambos Dessa forma em 1968

Ceciacutelia Coimbra natildeo militava em nenhuma organizaccedilatildeo mas continuou a manter

contato com muitos companheiros que se tornaram guerrilheiros Destaca-se portanto a

partir do caso especiacutefico de Ceciacutelia como a histoacuteria oral eacute importante para que a

complexidade da militacircncia poliacutetica da eacutepoca seja compreendida Afinal por meio dessa

metodologia torna-se possiacutevel perceber que nem todos os estudantes que estiveram

ligados ao movimento estudantil e agraves dissidecircncias do Partido Comunista em meio ao

arrocho da repressatildeo acompanharam a decisatildeo de partir para a luta armada tomada por

muitas dissidecircncias e nem mesmo resolveram retornar agrave luta paciacutefica travada pelo

Partido Comunista Logo a histoacuteria oral permite atraveacutes dos depoimentos dos

120

militantes daquele tempo observar que tal como Ceciacutelia muitos desses militantes

ficaram principalmente a partir do AI-5 agrave margem da atuaccedilatildeo poliacutetica apesar de natildeo

terem abandonado os ideais de esquerda

Quando foi presa em 1970 Ceciacutelia natildeo estava diretamente relacionada a nenhuma

organizaccedilatildeo esquerdista entretanto como ainda relacionava-se com muitos militantes

guerrilheiros e algumas vezes ateacute mesmo abrigando-os em sua casa tinha informaccedilotildees

consideradas relevantes para os agentes do DOI-CODIRJ o que veio a ocasionar sua

prisatildeo Como vivia de forma legalizada com famiacutelia e emprego Ceciacutelia tinha passado

juntamente com seu marido a ajudar seus companheiros clandestinos Sua casa na

eacutepoca localizada no bairro do Engenho de Dentro na zona norte do Rio de Janeiro

passou a servir como esconderijo para alguns amigos que diferentemente de Ceciacutelia e

Novaes haviam continuado militantes da Dissidecircncia Comunista da Guanabara mesmo

apoacutes sua opccedilatildeo pela luta armada Entre os amigos que receberam guarida em sua casa

estavam Franklin Martins e Fernando Gabeira ambos envolvidos no sequestro do

embaixador norte-americano

Gabeira inclusive esteve hospedado na casa do casal logo apoacutes a libertaccedilatildeo do

referido embaixador sequestrado em setembro de 1969 Por conta disso em agosto de

1970 Ceciacutelia Coimbra e seu marido Joseacute Novaes foram denunciados e presos

[] eu ajudava muito esses companheiros porque eu tinha vida legal eu jaacute

era professora tinha casa tinha filho e meu marido era professor de

Filosofia entatildeo a nossa casa era onde as pessoas se escondiam passavam

uma noite passavam dias escondidos Por exemplo o pessoal do Movimento

estudantil o Franklin Martins o Fernando Gabeira [] todos eles passaram

por laacute entatildeo a gente ajudava muito [] Em 1969 o pessoal do MR-8 que

eram companheiros nossos amigos e tal vieram nos procurar para perguntar

se noacutes poderiacuteamos dar um apoio a um ato a uma accedilatildeo como se dizia na

eacutepoca a uma accedilatildeo que ia acontecer Mas a gente natildeo sabia que era o

sequestro do embaixador E aiacute depois de um tempo a gente ficou com o

121

Fernando Gabeira [] Eacute oacutebvio que depois a gente soube porque foi depois

que eles entregaram o embaixador que eles se esconderam laacute em casa E aiacute a

televisatildeo dava e a gente sacou que o Gabeira estava ali com a gente porque

natildeo tinha como guardar seguranccedila porque jaacute estava na televisatildeo a cara de

todos eles E a gente guardou ele laacute A gente soube que ele tinha participado

do sequestro do embaixador e conversaacutevamos muito sobre isso Ele ficou

algum tempo laacute em casa e depois saiu Um tempo depois a gente foi

denunciado a casa estava sendo observada e a gente natildeo sabia []

(Coimbra 30 nov 2004)

Ceciacutelia e Joseacute Novaes apoacutes terem a casa onde moravam cercada por agentes do

DOPSRJ foram para laacute levados e laacute permaneceram por dois dias No DOPS Ceciacutelia

ficou sob interrogatoacuterio por um dia e meio para que esclarecesse a origem de um

documento encontrado no interior de sua casa No segundo dia de prisatildeo foi levada para

o presiacutedio feminino Satildeo Judas Tadeu localizado no proacuteprio preacutedio do DOPSRJ Apoacutes

permanecerem dois dias e meio no DOPS Ceciacutelia e Novaes foram transferidos para o

DOI-CODIRJ

Ceciacutelia Coimbra ficou cerca de trecircs meses presa no DOI-CODIRJ sendo

libertada em novembro de 1970 Natildeo foi transferida para nenhum outro presiacutedio sendo

libertada diretamente do DOI-CODIRJ por meio da menagem conforme analisado no

primeiro capiacutetulo Sendo assim uma vez que natildeo foi constatado nenhum envolvimento

direto de Ceciacutelia com alguma accedilatildeo ldquosubversivardquo ela estava impedida de sair da cidade

ateacute a data de seu julgamento e durante esse iacutenterim teve que comparecer ao DOI-

CODIRJ regularmente para se apresentar e responder ao Inqueacuterito Policial Militar

(IPM)

Na eacutepoca da entrevista Ceciacutelia aleacutem de vice-presidente do GTMNRJ lecionava

no curso de Psicologia da UFF Atualmente continua com essas mesmas atividades

poreacutem no GTNMRJ ocupa hoje o cargo de presidente

122

12 A nova esquerda brasileira

Para melhor entender as memoacuterias dos ex-prisioneiros poliacuteticos aqui entrevistados

eacute importante caracterizar as organizaccedilotildees de esquerda nas quais os seis militavam

quando foram presos no DOI-CODIRJ Afinal a opccedilatildeo de atuar atraveacutes de certas

organizaccedilotildees estaacute diretamente relacionada com a percepccedilatildeo de mundo que cada um

tinha e tambeacutem com a ousadia a coragem as frustraccedilotildees por que passaram e com tantos

outros sentimentos e sensaccedilotildees que certamente influiacuteram diretamente na construccedilatildeo da

memoacuteria de cada um desses indiviacuteduos sobre o periacuteodo militar

Como jaacute destacamos ao traccedilarmos o perfil dos entrevistados as organizaccedilotildees em

que os estudantes Antocircnio Leite Fernando Palha Dulce Pandolfi e Ana de Miranda

militavam ao serem presos eram o PCBR e a ALN grupos poliacuteticos de esquerda ligados

ao combate armado Jaacute Padre Maacuterio era assistente da ACO e da JOC ndash associaccedilotildees

criadas para atender demandas de jovens e adultos trabalhadores e catoacutelicos Ceciacutelia

Coimbra era a uacutenica que natildeo era diretamente ligada a alguma organizaccedilatildeo na eacutepoca de

sua prisatildeo mas sua participaccedilatildeo anterior na Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-

GB) influenciou de forma indireta em sua prisatildeo e por isso merece ser aqui

considerada A partir disso analisa-se nesta seccedilatildeo de trabalho o PCBR a ANL a JOC a

ACO e a Dissidecircncia Comunista da Guanabara que passou a chamar-se MR-8

Diferentemente da JOC e da ACO que eram associaccedilotildees ligadas ao trabalho

social feito pela Igreja Catoacutelica o PCBR a ANL a DI-GBMR-8 faziam parte do que

vinha sendo nomeado desde a deacutecada de 1960 de nova esquerda brasileira Essa nova

esquerda era formada pelas dissidecircncias do Partido Comunista surgindo como forma de

buscar caminhos alternativos para a transformaccedilatildeo social e segundo Maria Paula

Arauacutejo em A utopia fragmentada (2000) natildeo era um fenocircmeno tipicamente brasileiro

123

ocorrendo concomitantemente em outras partes do mundo como Alemanha Franccedila

Itaacutelia Estados Unidos e Meacutexico 30

As organizaccedilotildees desta nova esquerda brasileira aleacutem de serem marcadas pelo

signo da dissidecircncia e pela busca de caminhos alternativos possuiacuteam outras ideias em

comum Havia entre elas uma forte desconfianccedila em relaccedilatildeo agraves formas tradicionais de

atuaccedilatildeo e representaccedilatildeo poliacuteticas jaacute que os tradicionais partidos comunistas na

avaliaccedilatildeo desses militantes eram travados por complicados aparatos burocraacuteticos Em

oposiccedilatildeo a essa linha dita ldquoconservadorardquo valorizaram a accedilatildeo revolucionaacuteria imediata

Aleacutem disso a maioria recusava a alianccedila com ldquofraccedilotildees das classes dominantesrdquo forma

como viam o Movimento Democraacutetico Brasileiro (MDB) na eacutepoca uacutenico partido de

oposiccedilatildeo consentido pela ditadura militar Enquanto o PCB continuava mantendo o

programa de via paciacutefica para o socialismo a dita nova esquerda defendia a luta armada

como a principal forma de atuaccedilatildeo naquele momento apesar de divergirem entre si

sobre as estrateacutegias a seguir 31

As divergecircncias internas no PCB atingiram o aacutepice por ocasiatildeo dos preparativos

para o VI Congresso do partido convocado para dezembro de 1967 Os debates acerca

das Teses para Discussatildeo veiculadas na Voz Operaacuteria publicaccedilatildeo clandestina do

Comitecirc Central do PCB causaram muita polecircmica Essas Teses propunham que a

derrota da ditadura deveria ser alcanccedilada por meio da alianccedila com setores progressistas

incluindo a burguesia e da participaccedilatildeo do PCB na poliacutetica institucional reafirmando a

opccedilatildeo pelo caminho paciacutefico para a revoluccedilatildeo social Tais Teses geraram uma total

insatisfaccedilatildeo dos setores oposicionistas do PCB que se revoltaram contra o Comitecirc

Central do chamado Partidatildeo Assim sem a participaccedilatildeo dos dissidentes internos o

PCB realizou o seu VI Congresso e reafirmou a ideia trazida pelas Teses

30

Para mais informaccedilotildees ver Arauacutejo 2000 35-72 31

Para mais informaccedilotildees ver Aaratildeo Reis Saacute 2006 15

124

Pelos jornais da grande imprensa os dissidentes souberam do Congresso e de suas

resoluccedilotildees dentre as quais a que expulsava do partido grandes lideranccedilas da Corrente

Revolucionaacuteria Esta corrente do Partidatildeo divergia de seu Comitecirc Central liderado por

Luiacutes Carlos Prestes e havia se organizado nacionalmente sob a denominaccedilatildeo de

Corrente Revolucionaacuteria Entre suas grandes lideranccedilas expulsas a partir das resoluccedilotildees

do VI Congresso do PCB estavam Carlos Marighella liacuteder da Corrente em Satildeo Paulo

Maacuterio Alves liacuteder em Minas Gerais Jacob Gorender liacuteder no Rio Grande do Sul e

Apolocircnio de Carvalho lideranccedila no antigo Estado do Rio de Janeiro32

Dessa forma em 1968 os principais membros da Corrente Revolucionaacuteria

estavam definitivamente afastados do PCB e juntamente com os militantes que os

seguiram se organizaram e formaram outras organizaccedilotildees poliacuteticas o PCBR e a ALN

Os liacutederes Apolocircnio de Carvalho Jacob Gorender e Maacuterio Alves formaram o Partido

Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR) partido clandestino de esquerda em que

Antocircnio Leite militava ao ser preso e o liacuteder Carlos Marighella fundou a Accedilatildeo

Libertadora Nacional (ALN) organizaccedilatildeo clandestina de esquerda adotada por Dulce

Pandolfi Fernando Palha e Ana Batista

Por outro lado existia outra vertente de divergecircncias internas do PCB as

chamadas Dissidecircncias mais conhecidas pela sigla DI formadas basicamente por

setores estudantis Existiam dissidecircncias em vaacuterios estados brasileiros mas seria a da

Guanabara onde Ceciacutelia Coimbra militou anos antes de ser presa que alcanccedilaria maior

destaque no cenaacuterio poliacutetico e estudantil da deacutecada de 1960

32

Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009

125

Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-GB)

As Dissidecircncias Universitaacuterias surgiram no periacuteodo preacute-1964 em meio a diversas

divergecircncias que abalaram o PCB principalmente em suas bases universitaacuterias Em

1964 esses estudantes divergentes se agruparam e comeccedilaram a reunir militantes de

diferentes universidades a fim de articular posiccedilotildees poliacuteticas que natildeo se afinavam com o

que as direccedilotildees do partido haviam estabelecido ndash no jargatildeo comunista eram as

chamadas ldquofraccedilotildeesrdquo As ldquofraccedilotildeesrdquo eram de acordo com o estatuto proibidas dentro do

partido logo eram executadas secretamente A ldquofraccedilatildeordquo da Guanabara foi inicialmente

constituiacuteda por estudantes comunistas das faculdades de filosofia e de direito hoje

pertencentes agrave UFRJ

Em 1965 as divergecircncias entre os dissidentes e a direccedilatildeo do PCB na Guanabara

comeccedilaram a se mostrar evidentes A orientaccedilatildeo do partido era para que seus militantes

fizessem campanha para o candidato a governador da Guanabara Francisco Negratildeo de

Lima indicado pela alianccedila PTB-PSD considerada de oposiccedilatildeo ao regime militar Com

a crescente radicalizaccedilatildeo do movimento estudantil a Dissidecircncia foi ganhando forccedila

Nas eleiccedilotildees parlamentares de 1966 apesar da orientaccedilatildeo do Partidatildeo para que sua

militacircncia votasse em determinados candidatos os dissidentes da Guanabara resolveram

fazer campanha pelo voto nulo ocasionando o rompimento definitivo entre os dois A

antiga ldquofraccedilatildeordquo passaria a ser a Dissidecircncia Comunista da Guanabara uma nova

organizaccedilatildeo independente com orientaccedilatildeo para a luta armada e com ampla influecircncia

no movimento estudantil carioca 33

Entretanto em 1967 a Dissidecircncia Comunista da Guanabara enfrentaria uma

grave crise poliacutetica interna Naquele momento muitos militantes da organizaccedilatildeo

apresentavam posiccedilotildees divergentes sobre quais rumos ela deveria trilhar Alguns

33

Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009

126

achavam que a Dissidecircncia deveria se integrar agrave Corrente Revolucionaacuteria que ainda

estava lutando internamente para mudar o PCB outros almejavam consolidar a

Dissidecircncia Comunista da Guanabara de forma a tornaacute-la uma organizaccedilatildeo nacional

reunindo nela dissidecircncias que ainda deveriam se desvincular do Partidatildeo e um terceiro

grupo a se juntar ao Partido Comunista do Brasil (PC do B) 34

Afinal a partir do V Congresso do PCB realizado em setembro de 1960 sob

influecircncia da revisionismo aprovado no XX Congresso do Partido Comunista Sovieacutetico

tinha sido aprovada uma nova resoluccedilatildeo poliacutetica para o partido Esta apesar da

resistecircncia dos opositires internos que seguiam a linha de pensamento marxista-

leninista modificava o programa do PCB tornando a nova taacutetica do partido a conquista

de um governo nacionalista e democraacutetico por meio de um processo eleitoral e da

pressatildeo de massas excluindo assim a via armada de seu programa Dessa forma foram

afastados da direccedilatildeo do PCB a maioria de seus opositores e eleito um Comitecirc Central

composto em grande parte por destacados revisionistas como Luiacutes Carlos Prestes

Logo em 18 de fevereiro de 1962 a maior parte dos comunistas que se opunham agrave nova

linha do PCB se separaram do partido e atraveacutes de uma Conferecircncia Extraordinaacuteria

aprovaram um programa que defendia a estrateacutegia chinesa de guerra popular

prolongada se aproximando do maoiacutesmo e adotaram a sigla PC do B (Partido

Comunista do Brasil) Em 1969 o PC do B deflagrou na regiatildeo de Tocantins um foco

guerrilheiro que ficou conhecido como Guerrilha do Araguaia esta foi neutralizada

pelos militares no final de 1973 atraveacutes do extermiacutenio de grande parte dos militantes

envolvidos

Em 1967 um ano depois de se tornar independente a resoluccedilatildeo para a crise

interna da Dissidecircncia Comunista da Guanabara foi o seu desmembramento Apoacutes este

34

Para mais informaccedilotildees ver Aaratildeo Reis 1990 e Ridenti 1993

127

desmembramento e duas conferecircncias internas realizadas em 1968 a Dissidecircncia

Comunista da Guanabara consolidou-se novamente como organizaccedilatildeo autocircnoma tendo

suas lideranccedilas agrave frente das grandes manifestaccedilotildees estudantis ndash que chegavam ao auge

de mobilizaccedilatildeo ndash e conquistando espaccedilo no cenaacuterio nacional Com o seu crescimento

junto ao movimento estudantil a DI-GB se ampliou notavelmente Apoacutes a decretaccedilatildeo

do AI-5 que tornava ilegal o movimento poliacutetico-estudantil a DI-GB organizou em

1969 uma nova conferecircncia reafirmando o seu empenho revolucionaacuterio de caraacuteter

comunista assumindo oficialmente a partir de entatildeo sua opccedilatildeo pela luta armada

Nessa eacutepoca Ceciacutelia Coimbra jaacute havia saiacutedo da organizaccedilatildeo e natildeo participava de

nenhum outro grupo de esquerda apesar de manter contato com muitos companheiros

que continuaram na militacircncia Afinal como abordado durante a anaacutelise de sua

trajetoacuteria Ceciacutelia preferiu se desligar por natildeo concordar nem com a poliacutetica paciacutefica do

entatildeo Partidatildeo e nem com a luta armada das demais organizaccedilotildees inclusive da

Dissidecircncia Comunista da Guanabara pois segundo ela achava que estas estavam

muito desvinculadas da sociedade e por isso natildeo teriam ecircxito

[] eu achava que natildeo era por aiacute eu discordava muito da questatildeo da luta

armada mas eu tambeacutem discordava da posiccedilatildeo do Partido Comunista que

era a favor do caminho paciacutefico a favor do caminho institucional parece

muito o PT de hoje a questatildeo da luta institucional que natildeo era pegando em

armas que natildeo era pela luta armada Eu natildeo concordava nem com um nem

com outro porque o pessoal da luta armada estava totalmente desvinculado

da sociedade brasileira entatildeo eu me afastei mas eu continuei com muito

contato com vaacuterios companheiros e aiacute comeccedilou 67-68 [] (Coimbra 30

nov 2004)

Em setembro de 1969 a Dissidecircncia Comunista da Guanabara juntamente com a

ALN elaborou e promoveu o sequestro do embaixador norte-americano no Brasil

128

Charles Burke Elbrick A accedilatildeo teve ecircxito e os envolvidos conseguiram trocar o

embaixador por quinze prisioneiros poliacuteticos entre eles importantes liacutederes estudantis

da antiga DI-GB Durante esse sequestro conforme explicado anteriormente os

militantes da entatildeo Dissidecircncia resolveram mudar o nome da organizaccedilatildeo para

Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro (MR-8) assinando esse novo nome no

manifesto entregue agrave imprensa

A mudanccedila de Dissidecircncia Comunista da Guanabara para MR-8 era na realidade

uma provocaccedilatildeo agrave ditadura Alguns meses antes do sequestro do embaixador americano

a repressatildeo havia desarticulado uma organizaccedilatildeo poliacutetica e anunciado que tinha

destruiacutedo o grupo terrorista Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro Poreacutem de acordo

com Alberto Berquoacute em O sequumlestro dia-a-dia (1997) o oacutergatildeo repressor que havia

prendido aqueles militantes o CENIMAR inventou esse nome pois o grupo capturado

era na verdade a Dissidecircncia do Estado do Rio de janeiro que a rigor se

autodenominava apenas como Organizaccedilatildeo Os militares entatildeo para anunciar a notiacutecia

na imprensa causando um maior impacto atribuiacuteram agrave Organizaccedilatildeo o nome de MR-8

fazendo referecircncia agrave data em que o guerrilheiro socialista Ernesto ldquoCherdquo Guevara havia

sido preso pela Central Intelligence Agency (CIA) na Boliacutevia Dessa forma ao

utilizarem o nome de MR-8 os militantes da ateacute entatildeo Dissidecircncia Comunista da

Guanabara estariam anunciando pertencerem agrave mesma organizaccedilatildeo que os militares

divulgaram meses antes jaacute estar aniquilada desmoralizando-os publicamente 35

Algum tempo depois do sequestro do embaixador a maioria de seus envolvidos

ou foram presos ou mortos pela repressatildeo Fernando Gabeira um dos militantes do MR-

8 envolvidos nessa accedilatildeo era conhecido de Ceciacutelia Coimbra e de seu marido desde a

eacutepoca em que militavam na Dissidecircncia Comunista da Guanabara Assim apoacutes a troca

35

Para mais informaccedilotildees sobre a mudanccedila de nome da Dissidecircncia Comunista da Guanabara para MR-8

ver Berquoacute 1997 72-73

129

do embaixador pelos prisioneiros poliacuteticos Gabeira por estar sendo procurado acabou

se escondendo na casa do casal fato que veio a ocasionar posteriormente a prisatildeo tanto

de Ceciacutelia quanto de seu marido nas dependecircncias do DOI-CODIRJ

Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR)

O partido clandestino pelo qual Antocircnio Leite militava ao ser preso o PCBR

havia sido criado em abril de 1968 a partir da expulsatildeo de liacutederes da Corrente

Revolucionaacuteria do PCB conforme mencionado anteriormente Um dos liacutederes e

tambeacutem fundador do PCBR Jacob Gorender na obra Combate nas Trevas a esquerda

brasileira (1999 111-116) caracteriza-o como marxista tendo por estrateacutegia de accedilatildeo a

combinaccedilatildeo entre guerrilha rural e trabalho de massas nas cidades com vistas agrave

formaccedilatildeo de um Governo Popular Revolucionaacuterio que abriria caminho para a

revoluccedilatildeo socialista

A partir dessa ideia de trabalho com as massas nas cidades o PCBR buscou

integrar-se agraves lutas estudantis de 1968 por meio das quais Antocircnio Leite de Carvalho

conheceu melhor a ideologia e as lideranccedilas do partido e posteriormente resolveu

tornar-se seu militante Aleacutem disso desenvolveu ainda algum trabalho nas faacutebricas nas

aacutereas rurais e promoveu entre os anos de 1969 e 1970 algumas accedilotildees armadas como

assaltos a bancos e roubos de veiacuteculos a fim de financiar a atuaccedilatildeo do partido Contudo

o PCBR sofreu com sucessivas prisotildees de seus liacutederes e integrantes restringindo de tal

forma o seu poder de accedilatildeo que logo no iniacutecio da deacutecada de 1970 jaacute se encontrava quase

totalmente desarticulado

O precoce fracasso do PCBR segundo a avaliaccedilatildeo feita por Antocircnio ainda

durante sua primeira entrevista (12 set 2002) deve-se ao fato da estrateacutegia de revoluccedilatildeo

pregada pelo partido ser utoacutepica Afinal para Antocircnio os militantes e liacutederes do PCBR

130

inclusive ele proacuteprio acreditavam que com algumas poucas accedilotildees urbanas isoladas

conseguiriam o apoio da grande massa ao movimento revolucionaacuterio e tomariam o

poder Por conseguinte entende que foi justamente esse isolamento a causa da grande

derrota do PCBR como se pode conferir no trecho abaixo

Era uma grande utopia faziacuteamos duas accedilotildees urbanas na cidade e achaacutevamos

que essas accedilotildees seriam capazes de fazer as pessoas aderirem ao nosso

movimento e conseguiriacuteamos o apoio da grande massa [] Isso nunca iria

acontecer porque eram movimentos basicamente de conquistas quer dizer

que trabalhavam isolados e foi o isolamento a causa da nossa grande derrota

(Carvalho 12 Set 2002)

Entretanto eacute importante destacar que esta avaliaccedilatildeo soacute pocircde ser feita a partir do

presente quando jaacute se sabia que a luta armada havia sido derrotada muito antes da

ditadura terminar e que a democracia havia se tornado uma realidade Afinal logo apoacutes

o AI-5 a luta armada e a forma de atuar do PCBR representavam para seus militantes

uma forte possibilidade de derrubar a ditadura militar Eles natildeo se submeteriam a

arriscar suas vidas em prol de uma luta na qual natildeo tivessem total convicccedilatildeo Logo

percebe-se um anacronismo na avaliaccedilatildeo que Antocircnio faz sobre sua luta naquele

passado o que eacute muito comum entre as memoacuterias construiacutedas por ex-guerrilheiros da

eacutepoca conforme destacado pela revolta de um dos que concederam seus depoimentos a

Alzira Alves de Abreu em Os anos de chumbo memoacuteria da guerrilha (1998)

B [nome atribuiacutedo ao ex-guerrilheiro pela autora para preservar sua

identidade] comeccedilou chamando a atenccedilatildeo para o fato de que a mamoacuteria

daquela fase histoacuterica eacute muito precaacuteria ldquoNa verdade ela foi muito mal

construiacuteda acabou virando um folclore e acabou se contando a histoacuteria desse

periacuteodo de traacutes para frente ndash quer dizer sabendo que a luta armada natildeo deu

certo vamos contar por que ela natildeo deu certo Na eacutepoca em que ela ocorreu

ela era um campo de possibilidades natildeo era mais do que isso Mas hoje jaacute se

131

comeccedila a falar desse movimento para se mostrar o fim dessa histoacuteria[]

(Abreu 1998 31)

Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN)

A organizaccedilatildeo em que militavam Dulce Pandolfi Fernando Palha e Ana de

Miranda no momento de suas prisotildees a ALN foi fundada por Carlos Marighella em

fevereiro de 1968 depois de deixar o PCB Marighella havia sido expulso do Partidatildeo

sob a alegaccedilatildeo de ter viajado para Havana em Cuba sem a autorizaccedilatildeo do Comitecirc

Central do partido para participar da conferecircncia da Organizaccedilatildeo Latino-Americana de

Solidariedade (OLAS) ndash organizaccedilatildeo que tinha como objetivo estender a revoluccedilatildeo

armada por toda a Ameacuterica Latina nos moldes da Revoluccedilatildeo Cubana de 1959

Em apoio a Marighella apoacutes sua expulsatildeo do PCB as bases de Satildeo Paulo tambeacutem

se desligaram do partido e formaram o Agrupamento Comunista de Satildeo Paulo O

Pronunciamento desse grupo em fevereiro de 1968 fundou oficialmente a Accedilatildeo

Libertadora Nacional (ALN) muito embora o primeiro quadro de militantes da

organizaccedilatildeo tenha ido treinar em Cuba ainda em setembro de 1967 36

O nome Accedilatildeo Libertadora Nacional seria uma referecircncia agrave Alianccedila Nacional

Libertadora organizaccedilatildeo poliacutetica criada em 1935 composta por setores de diversas

correntes ideoloacutegicas basicamente a fim de lutar contra a influecircncia fascista no Brasil

Nesse mesmo sentido a ALN tambeacutem visava aleacutem da luta socialista a libertaccedilatildeo

nacional buscando adquirir igual ecircxito na congregaccedilatildeo de grande parte da esquerda

brasileira em torno de seus objetivos como ANL havia conseguido durante a deacutecada de

30 No entanto diferentemente da Alianccedila Nacional Libertadora a Accedilatildeo Libertadora

36

Para mais informaccedilotildees ver Lima 2007 31

132

Nacional natildeo era configurada por uma poliacutetica de alianccedilas mas pelo combate pela accedilatildeo

direta 37

Quanto ao programa da organizaccedilatildeo a ALN tinha por estrateacutegia maior a guerrilha

rural embora sua tarefa taacutetica estivesse concentrada nas cidades onde a maior parte de

suas accedilotildees ocorria Essas accedilotildees urbanas eram consideradas pela organizaccedilatildeo como um

meio de apoio para propaganda poliacutetica para obtenccedilatildeo de fundos (atraveacutes de

expropriaccedilotildees como assaltos a bancos) para recrutamento de quadros para a guerrilha e

para ataques estrateacutegicos ao inimigo Aleacutem disso a ALN permitia a existecircncia de

pequenos grupos com total independecircncia taacutetica desde que estivessem subordinados agrave

sua estrateacutegia geral Dessa forma sua estrutura pode ser entendida como horizontal sem

hierarquias jaacute que segundo Denise Rollemberg em Esquerdas revolucionaacuterias e luta

armada (2003) o militante da ALN que se considerasse capaz de fazer accedilotildees era

incentivado a agir e natildeo a ficar esperando a orientaccedilatildeo de um poder centralizado Afinal

uma das criacuteticas da antiga Corrente Revolucionaacuteria do PCB da qual o liacuteder da ALN

Marighella foi integrante era justamente sobre a centralizaccedilatildeo e como esta emperrava a

atuaccedilatildeo do partido Dessa forma a ALN atuava por meio de diversos grupos

multiplicando suas accedilotildees

A partir disso percebe-se como o sequestro do aviatildeo da Companhia Cruzeiro do

Sul efetuado pelo pequeno grupo que Fernando Palha integrava pocircde ser executado

dentro da ALN assim como os inuacutemeros assaltos a bancos e carros-fortes e os

sequestros a embaixadores em que outros pequenos grupos ligados agrave ALN estiveram

envolvidos Dessa forma nota-se tambeacutem como e por que a ALN se tornou a maior

organizaccedilatildeo de luta armada da eacutepoca e por conseguinte Marighella e seus demais

militantes os mais procurados pela ditadura militar 38

37

Para mais informaccedilotildees ver Lourenccedilo 2005 191 38

Para mais informaccedilotildees ver Gorender 1999

133

No trecho seguinte retirado da entrevista de Fernando Palha destaca-se como

muitos desses pequenos grupos da ALN tinham espaccedilo para planejar e administrar suas

proacuteprias accedilotildees sem se desligarem da Accedilatildeo

Eu era da ALN Accedilatildeo Libertadora Nacional era a maior organizaccedilatildeo de luta

armada que tinha na eacutepoca A Jane [Jessie Jane] por exemplo veio para caacute

para Niteroacutei jaacute fugida de Satildeo Paulo onde prenderam o pai prenderam a matildee

a famiacutelia dela toda sabe O pai natildeo era de nenhuma organizaccedilatildeo mas dava

guarida [] ele era um cara politizado e ela tambeacutem e quando ela veio para

caacute para Niteroacutei ela entrou para o nosso grupo de estudo Estudaacutevamos o

marxismo guerrilhas enfim aprendendo um pouco Aiacute a gente pensando

em como soltar eles [os pais de Jessie Jane] surgiu a ideacuteia de sequestrar o

aviatildeo O sequestro do aviatildeo foi tranquilo difiacutecil foi a negociaccedilatildeo da troca

dos passageiros pelos presos que a gente queria (Freire 28 jun 2004)

Essas variadas e espalhadas accedilotildees da ALN repercurtiram de forma negativa entre

os militares dos oacutergatildeos repressivos Afinal a atuaccedilatildeo descentralizada da ALN permitia

que uma grande quantidade de accedilotildees ldquoterroristasrdquo fossem atribuiacutedas ao movimento

tornando-o aos olhos dos agentes da repressatildeo mais ameaccedilador e perigoso agrave

manutenccedilatildeo do regime ditatorial Essa percepccedilatildeo dos militares pode ter causado reflexos

no cotidiano prisional de militantes ligados direta ou indiretamente agrave referida

organizaccedilatildeo como Dulce Fernando Ana e Ceciacutelia39

ndash considerada militante indireta

por ter escondido em sua casa um dos atores do sequestro do embaixador norte-

americano accedilatildeo conjunta entre MR-8 e ALN

39

No terceiro capiacutetulo a anaacutelise da memoacuteria dos seis entrevistados (Antocircnio Dulce Fernando Padre

Maacuterio Ana e Ceciacutelia) se concentra no cotidiano prisional vivido no DOI-CODI carioca

134

Juventude Operaacuteria Catoacutelica (JOC) amp Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO)

A Juventude Operaacuteria Catoacutelica a JOC uma das organizaccedilotildees de que Padre Maacuterio

era assistente no momento de sua prisatildeo surge no Brasil em iniacutecio dos anos 1930

ganhando forccedila apenas a partir de fins de 1940 A JOC objetivava melhorar a vida do

jovem trabalhador atraveacutes de uma accedilatildeo evangelizadora e formadora de uma consciecircncia

criacutetica Eacute a responsaacutevel pela criaccedilatildeo do meacutetodo pedagoacutegico ldquoVer-Julgar-Agirrdquo

ensinando seus jovens a ver o problema a julgaacute-lo agrave luz do Evangelho e a agir para

transformar sua condiccedilatildeo de classe trabalhadora explorada

A JOC que apresentava uma posiccedilatildeo mais conservadora ateacute meados da deacutecada de

1950 a partir do golpe de 1964 assume outra orientaccedilatildeo poliacutetica de caraacuteter mais

progressista realizando uma reflexatildeo mais profunda no que se refere agrave condiccedilatildeo da

classe trabalhadora do paiacutes e da Ameacuterica Latina o que ocasiona uma maior repressatildeo

por parte do governo ditatorial brasileiro Atraveacutes da JOC a criaccedilatildeo da Accedilatildeo Catoacutelica

Operaacuteria (ACO) ndash outra organizaccedilatildeo de que Padre Maacuterio tambeacutem participava no

momento de sua prisatildeo ndash foi incentivada comeccedilando a ser organizada em fins da

deacutecada de 1950 em funccedilatildeo do grande nuacutemero de militantes que haviam chegado agrave idade

adulta mas desejavam continuar a atuar por meio da organizaccedilatildeo

A ACO nasce entatildeo da Liga Operaacuteria Catoacutelica (LOC) que era um movimento

destinado aos adultos ligados agrave Igreja e inicialmente com forte preocupaccedilatildeo

assistencialista assumindo gradativamente um vieacutes poliacutetico e uma identidade de classe

Assim a partir da LOC a ACO brasileira surge de fato em 1962 apresentando-se como

uma continuidade da JOC para que os jovens trabalhadores pudessem quando adultos

permanecerem a atuar politicamente Muitos eram os pontos em comum dos dois

movimentos que vatildeo desde os mesmos participantes que migravam de um para o outro

ao atingirem a idade adulta como a aplicaccedilatildeo do mesmo meacutetodo de accedilatildeo ldquoVer-Julgar-

135

Agirrdquo Entretanto segundo Alejandra Luisa Magalhatildees Estevez em sua dissertaccedilatildeo de

mestrado (2008) O movimento dos trabalhadores catoacutelicos a Juventude Operaacuteria

Catoacutelica (JOC) e a Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) diferentemente da JOC que a

partir de 1969 com a prisatildeo de muitos de seus integrantes ndash como o proacuteprio Padre

Maacuterio Prigol ndash foi perdendo forccedilas e acabou desaparecendo a atuaccedilatildeo da ACO durante

o periacuteodo militar caracterizou-se pelo enfrentamento constante com a hierarquia

eclesiaacutestica e com os proacuteprios militares

Dessa forma Padre Maacuterio que antes de ser preso em 1970 era assistente tanto da

JOC quanto da ACO apoacutes sua prisatildeo deu continuidade ao seu trabalho junto agrave ACO o

que ainda faz atualmente Afinal a ACO permanece em atividade ateacute os dias de hoje

poreacutem sob o nome de Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos (MTC)

Logo mesmo com diferentes atuaccedilotildees no cenaacuterio poliacutetico da eacutepoca as

organizaccedilotildees acima tratadas nas quais os ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados

militavam direta ou indiretamente tinham por confluecircncia algum tipo de manifestaccedilatildeo

em oposiccedilatildeo agrave ditadura militar Entretanto apesar dessa face comum ser o motivo

principal de suas prisotildees as diferenccedilas na forma de agir de suas organizaccedilotildees pode ter

se refletido na intensidade das violecircncias a que foram submetidos no DOI-CODIRJ

Diante disso no capiacutetulo seguinte a partir da anaacutelise das memoacuterias dos seis

entrevistados essa relaccedilatildeo entre a organizaccedilatildeo de esquerda do militante e o seu

tratamento na prisatildeo seraacute abordada assim como os demais aspectos que caracterizavam

o cotidiano vivido no DOI-CODIRJ durante o ano de 1970

136

Capiacutetulo 3 ndash O espaccedilo e o cotidiano do DOI-CODI carioca

A lua

Tal qual a dona de um bordel

Pedia a cada estrela fria

Um brilho de aluguel

E nuvens

Laacute no mata-borratildeo do ceacuteu

Chupavam manchas torturadas

Que sufoco

Louco

O becircbado com chapeacuteu-coco

Fazia irreverecircncias mil

Praacute noite do Brasil

Meu Brasil

Aldir Blanc e Joatildeo Bosco

(O Becircbado e a Equilibrista 1979)

137

1 O que sofre e o que resiste

Os depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ fontes essenciais

para esta pesquisa encontram aqui um desfecho primordial Finalmente uma de suas

especificidades mais importantes eacute aqui trabalhada a possibilidade que trazem de

acessar desde os aspectos mais subjetivos do dia-a-dia do DOI-CODIRJ aos mais

triviais Diante disso neste capiacutetulo torna-se possiacutevel uma caracterizaccedilatildeo da rotina

institucional ali vivida pelos prisioneiros em 1970 trazendo agrave tona detalhes e

sentimentos que compunham esse cotidiano que haacute deacutecadas jaacute natildeo existe mais Essa

faccedilanha natildeo seria possiacutevel atraveacutes de qualquer outra fonte senatildeo a oral Somente as

memoacuterias trazidas nas narrativas orais quando devidamente trabalhadas satildeo capazes de

aproximar-se das sensaccedilotildees e sentimentos vivenciados naquele passado amenizando a

sua corrosatildeo pelo tempo e as lacunas encontradas na histoacuteria da ditadura militar

Diante disso a memoacuteria eacute aqui tratada como material para a histoacuteria conforme

elucidado por Paul Ricoeur em A memoacuteria a histoacuteria e o esquecimento (2008) Nessa

mesma direccedilatildeo vai Fernando Catroga em seu artigo A representaccedilatildeo do ausente

memoacuteria e historiografia (2010) pelo qual busca entender a escrita da histoacuteria como um

rito de memoacuteria anaacutelogo ao ldquogesto de sepulturardquo Afinal a escrita da histoacuteria tem uma

funccedilatildeo anaacuteloga agrave do tuacutemulo e agrave dos ritos de recordaccedilatildeo ajudando tal como no trabalho

do luto a pagar as diacutevidas do presente com o passado que jaacute natildeo existe mais Essa

analogia mostra que se o tuacutemulo eacute o primeiro monumento dos mortos deixado para os

vivos a escrita da histoacuteria tambeacutem atua no sentido de lutar contra o esquecimento e a

degradaccedilatildeo que marcam a passagem do tempo Logo tal como acontece quando se

visita o tuacutemulo de um cemiteacuterio a escrita da histoacuteria sobre o cotidiano do DOI-

CODIRJ pretende contribuir para que agindo sobre os vivos esse passado se

transforme de ldquolugar de sepulturardquo para o de ldquogesto de sepulturardquo (Ricoeur 2008) Essa

138

analogia do tuacutemulo com a escrita da histoacuteria tem como principal ponto em comum a

construccedilatildeo do passado a partir de traccedilos e de representaccedilotildees que almejam situar no

tempo algo que natildeo existe mais O cotidiano do DOI-CODIRJ passa aqui a ser escrito

por meio da anaacutelise de vestiacutegios e representaccedilotildees apresentados nas memoacuterias de seis

dos seus ex-prisioneiros poliacuteticos tal como ocorre com a representaccedilatildeo memorial de

uma sepultura

Evidencia-se que as memoacuterias aqui trabalhadas especialmente por evocarem

fatos vividos pelas proacuteprias testemunhas estatildeo permeadas de razotildees subjetivas

normativas e pragmaacuteticas que satildeo condicionantes e geram efeitos incontrolaacuteveis

resultando em uma construccedilatildeo qualitativa seletiva e apaixonada do passado Daiacute a

importacircncia do olhar criacutetico do historiador sobre essas memoacuterias uma vez que a funccedilatildeo

deste eacute justamente inserir os aspectos criacuteticos objetivos e analiacuteticos da histoacuteria na

fluidez emoccedilatildeo e submissatildeo aos influxos da conjuntura caracteriacutesticos da memoacuteria

(Nora 1993)

Portanto eacute imperativo analisar criticamente essas memoacuterias sobre o cotidiano do

DOI-CODIRJ mesmo sabendo das dificuldades que envolvem essa accedilatildeo como bem

aponta Beatriz Sarlo em Tempo passado Cultura da memoacuteria e guinada subjetiva

(2007) Afinal satildeo depoimentos de viacutetimas cuja confiabilidade sobre as torturas sofridas

na prisatildeo natildeo soacute foi elemento constituinte da instalaccedilatildeo do regime democraacutetico como

ainda eacute responsaacutevel pela solidificaccedilatildeo de um princiacutepio de reparaccedilatildeo e justiccedila Poreacutem

deve-se antes de tudo encaraacute-los como discursos testemunhais pois seguem o modo

persuasivo caracteriacutestico do discurso e por conseguinte natildeo podem ser cristalizados

Afinal esses seis testemunhos satildeo feitos por narradores que buscam firmar no passado a

verdade do presente jaacute que a narrativa no presente tem uma inevitaacutevel hegemonia sobre

o passado conforme bem enuncia Sarlo no trecho abaixo

139

O presente da enunciaccedilatildeo eacute o ldquotempo de base do discursordquo porque eacute

presente o momento de se comeccedilar a narrar e esse momento fica inscrito na

narraccedilatildeo Isso implica o narrador em sua histoacuteria e a inscreve numa retoacuterica

da persuasatildeo (o discurso pertence ao modo persuasivo diz Ricoeur) Os

relatos testemunhais satildeo ldquodiscursordquo nesse sentido porque tecircm como

condiccedilatildeo um narrador implicado nos fatos que natildeo persegue uma verdade

externa no momento em que ela eacute enunciada Eacute inevitaacutevel a marca do

presente no ato de narrar o passado justamente porque no discurso o

presente tem genuiacutena hegemonia reconhecida como inevitaacutevel e os tempos

verbais do passado natildeo ficam livres de uma ldquoexperiecircncia fenomenoloacutegicardquo

do tempo presente da enunciaccedilatildeo ldquoO presente dirige o passado assim como

um maestro seus muacutesicosrdquo escreveu Italo Severo (Sarlo 2007 49)

Daiacute destaca-se novamente a importacircncia de considerar o tempo presente como

base do discurso das memoacuterias sobre o cotidiano do DOI-CODIRJ trabalhadas neste

capiacutetulo evocando mais uma vez a elucidativa expressatildeo preacutesent du passeacute de Robert

Frank (1999) O presente a partir de onde falam os seis entrevistados como ex-

prisioneiros poliacuteticos corresponde a um momento em que a democracia brasileira para a

maioria deles dava passos largos em direccedilatildeo a sua total magnitude o presente vivido no

raiar dos anos 2000 vinha se distanciando poliacutetica e socialmente do passado ditatorial

militar Quem presidia o paiacutes eram antigos opositores poliacuteticos do governo militar os

ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva que vinham

construindo garantias de reparaccedilatildeo aos que sofreram violaccedilotildees aos direitos humanos

durante o passado ditatorial

Estava em curso o reconhecimento dos mortos e desaparecidos poliacuteticos pelo

Estado brasileiro bem como a indenizaccedilatildeo agraves famiacutelias por intermeacutedio da Lei nordm 9140

de 1995 e a reparaccedilatildeo financeira aos males sofridos por aqueles presos ou perseguidos

na eacutepoca da ditadura militar garantida pela Lei nordm 10559 de 2002 Eram esses fatos

140

que compunham o cenaacuterio do presente vivido durante as entrevistas e obviamente

influenciaram diretamente a construccedilatildeo das narrativas dos ex-presos poliacuteticos sobre o

cotidiano do DOI-CODI carioca

Essas influecircncias acabaram em alguns casos direcionando suas narrativas para

os detalhes dos horrores a que foram submetidos e para as sequelas deixadas pelas

torturas daquele tempo a fim de natildeo suscitar duacutevidas sobre o merecimento agrave reparaccedilatildeo

oferecida pelo Estado Afinal o DOI-CODIRJ correspondeu ao espaccedilo onde esses

presos poliacuteticos viveram um dos cotidianos mais violentos de todo o periacuteodo em que

estiveram na prisatildeo Ao enfatizarem em detalhes o lado duro dessa rotina prisional os

entrevistados ambicionavam fortalecer a interpretaccedilatildeo vigente sobre seu papel de viacutetima

e ao mesmo tempo de resistente a um Estado ditatorial Ao procurarem conquistar a

entrevistadora os entrevistados viam-se envolvidos no processo de enquadramento da

memoacuteria sobre a ditadura militar brasileira no sentido atribuiacutedo por Michael Pollak

(1992) O objetivo entre outros era o de fortalecer perante a sociedade e o governo

uma memoacuteria que a eles conferisse o duplo lugar de resistente e de viacutetima e endossasse

a necessidade de reparaccedilotildees financeiras e simboacutelicas aos atingidos

A reparaccedilatildeo financeira aos violentados pela ditadura militar jaacute vinha acontecendo

na eacutepoca em que as entrevistas foram concedidas por meio das leis que implantaram a

Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos e a Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio

da Justiccedila citadas anteriormente e abordadas no segundo capiacutetulo Jaacute a reparaccedilatildeo

simboacutelica soacute comeccedilaria a ser de fato implantada alguns anos depois das entrevistas

principalmente com as Caravanas da Anistia a partir de abril de 2008 e mediante a

aprovaccedilatildeo da Comissatildeo da Verdade pelo Congresso Nacional em outubro de 2011 As

Caravanas da Anistia satildeo sessotildees puacuteblicas itinerantes de apreciaccedilatildeo de requerimentos de

anistia poliacutetica a perseguidos poliacuteticos da ditadura militar acompanhadas por atividades

141

educativas e culturais promovidas pela Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio da Justiccedila

Jaacute a Comissatildeo da Verdade teraacute como finalidade examinar e esclarecer graves violaccedilotildees

de direitos humanos praticadas entre os anos de 1946 e 1988 a fim de promover a

reconciliaccedilatildeo nacional com o seu passado histoacuterico

Eacute faacutecil perceber que os entrevistados em seus testemunhos-discursos acabam

atribuindo um sentido uacutenico agrave histoacuteria e conforme salienta Beatriz Sarlo (2007) ao

acumularem detalhes em suas narrativas produzem um modo realista-romacircntico pelo

qual atribuem sentidos a todos os detalhes mencionados somente pelo fato de incluiacute-los

no relato sem se sentirem na obrigaccedilatildeo de atribuir sentidos ou explicar as ausecircncias ali

tambeacutem apresentadas Dessa forma a anaacutelise aqui traccedilada procura trabalhar de forma

criacutetica no sentido de reconhecer a face realista dos detalhes descritos pelos narradores

e ao mesmo tempo a face romacircntica construiacuteda por eles de forma a fortalecer a

credibilidade e a veracidade de sua narraccedilatildeo Uma vez que diferentemente do que datildeo a

entender os entrevistados ao narrarem suas proacuteprias vidas a anaacutelise histoacuterica do

presente trabalho firma-se longe da utopia de uma narraccedilatildeo total capaz de descrever

todo o passado estudado reconhecendo a necessidade de operar com elipses

No entanto se por um lado os detalhes mencionados nos depoimentos devem ser

submetidos ao pensamento criacutetico histoacuterico por outro lado satildeo exatamente eles que

enriquecem a anaacutelise de um cotidiano jaacute que os detalhes trazidos pelos depoimentos

conseguem muitas vezes tornar a rotina do dia-a-dia que jaacute natildeo mais existe palpaacutevel

ao entendimento Eacute o que ocorre por exemplo com a disposiccedilatildeo espacial interna do

preacutedio-sede do DOI-CODIRJ fator que estaacute intrinsecamente relacionado ao cotidiano

prisional e que torna-se passiacutevel de caracterizaccedilatildeo atraveacutes dos detalhes contidos nos

depoimentos Assim mesmo natildeo sendo possiacutevel visitar o interior do edifiacutecio e nem ter

acesso a alguns registros documentais como fotos ou outros documentos eacute possiacutevel

142

contrapor as descriccedilotildees contidas nos depoimentos com a fachada do preacutedio que ainda

existe e construir uma percepccedilatildeo aproximada sobre o espaccedilo em que de certa forma

essas memoacuterias estatildeo ancoradas

2 Uma cartografia possiacutevel do ldquoCastelo do Terrorrdquo

Constatada essa forte relaccedilatildeo entre as memoacuterias dos ex-prisioneiros que ali

ficaram presos em 1970 com o espaccedilo interno do 1ordm BPE resolvi tentar ver de perto

como este era distribuiacutedo No entanto muitas dificuldades foram encontradas e

inviabilizaram o meu projeto inicial de contrapor o que restava do interior do edifiacutecio

que sediou o DOI-CODIRJ com as memoacuterias de seus ex-prisioneiros

Em 2003 a minha primeira tentativa de visitar o interior do preacutedio do 1ordm BPE foi

interrompida no momento em que apresentei o propoacutesito de minha visita o interesse em

ver o preacutedio do DOI-CODIRJ Percebi imediatamente que o ldquoassunto DOI-CODIrdquo

gerava um grande desconforto para aquele Batalhatildeo Talvez porque apesar do referido

Batalhatildeo natildeo ter tido relaccedilatildeo direta com o DOI-CODIRJ pois eram instituiccedilotildees

distintas o fato desse oacutergatildeo repressivo ter sido instalado em seu interior evoca uma

forte relaccedilatildeo que atualmente imprime uma imagem negativa para seus militares

Percebe-se assim que o 1ordm BPE quer apagar da memoacuteria social sua associaccedilatildeo ao DOI-

CODIRJ o que explica o fato de seus militares natildeo permitirem que eu prosseguisse

com a visita

No ano seguinte em novembro tentei pela segunda vez visitar o interior do dito

edifiacutecio Prevendo dificuldades para a visita utilizei como pretexto uma suposta

pesquisa sobre patrimocircnios histoacutericos do bairro Um primeiro-sargento que se

apresentou como graduado em histoacuteria acompanhou-me pelo paacutetio interno do

complexo Durante o passeio por este espaccedilo ele apontava de longe para os preacutedios que

143

ficavam ao redor inclusive para o que sediava o DOI-CODIRJ agrave esquerda e ao fundo

daquele paacutetio a ceacuteu aberto Ao referir-se ao local o sargento apontou de longe e disse

ldquoLaacute funciona o DOI-CODIrdquo deixando transparecer que ateacute aquele momento natildeo

existia uma nova serventia para aquele local e que a estrutura do DOI-CODI havia sido

preservada Nada mais quis falar alegando que natildeo poderia dar explicaccedilotildees mais

amplas sobre o assunto e que aleacutem do mais eu natildeo poderia me aproximar das

instalaccedilotildees que me interessavam

Esta segunda visita corroborou a minha sensaccedilatildeo anterior de que os militares

daquele Batalhatildeo natildeo queriam que este ficasse historicamente associado ao DOI-CODI

percebendo a imagem negativa que essa associaccedilatildeo poderia conferir-lhes tentando

evitar a manutenccedilatildeo do viacutenculo daquele preacutedio com a memoacuteria das torturas e mortes ali

executadas nos chamados ldquoanos de chumbordquo

Aleacutem disso esta visita trouxe-me um dado novo ao apresentar aquele preacutedio

como sendo o ldquoDOI-CODIrdquo no presente do indicativo o sargento deixou perceptiacutevel

um interesse interno em preservaacute-lo Afinal por que ateacute aquele momento mesmo o

DOI-CODI natildeo estando mais em atividade o seu espaccedilo natildeo havia sido utilizado para

nenhuma outra funccedilatildeo permanente Este interesse reflete talvez um forte orgulho

interno de importantes setores do Exeacutercito pelos feitos do DOI-CODI no sentido de

para alguns mais radicais ter sido esta instituiccedilatildeo uma das principais defensoras da

soberania e da ordem nacional na eacutepoca ameaccediladas pela subversatildeo

Apesar de tais empecilhos os detalhes relatados pelos entrevistados viabilizariam

uma aproximada cartografia espacial do interior do DOI-CODIRJ de 1970 quando eles

laacute estiveram Essa cartografia fez-se aqui necessaacuteria por entender-se que essa disposiccedilatildeo

espacial eacute essencial para a anaacutelise das memoacuterias sobre o cotidiano ali vivido uma vez

que esse espaccedilo prisional estaacute presente a todo o tempo nos relatos de Antocircnio Dulce

144

Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia sendo um dos principais pontos de uniatildeo de suas

memoacuterias

Sendo assim defende-se aqui que o antigo preacutedio do DOI-CODI carioca eacute hoje

um lugar de memoacuteria jaacute que a ele se confere de forma simultacircnea e em graus diversos

os trecircs sentidos atribuiacutedos como necessaacuterios por Pierre Nora o material o simboacutelico e o

funcional (Nora 1993 21) O sentido material no caso eacute o proacuteprio espaccedilo fiacutesico o

preacutedio do 1ordm BPE ainda localizado agrave Rua Baratildeo de Mesquita nordm 425 no bairro da

Tijuca O simboacutelico eacute o que o edifiacutecio representa para parte da sociedade carioca que

partilha as memoacuterias dos ex-presos poliacuteticos e seus familiares sobre o violento

cotidiano as torturas e as mortes ali vivenciados atribuindo ao preacutedio o significado de

ldquoCastelo do terrorrdquo Por fim o sentido funcional eacute a atividade de preservaccedilatildeo da

memoacuteria da ditadura militar ali exercida jaacute que o preacutedio eacute um monumento tombado sob

a justificativa de guardar a memoacuteria ali vivida durante a ditadura militar brasileira e natildeo

deixar que ela venha a cair no esquecimento Este uacuteltimo sentido portanto embute ao

preacutedio o significado completo de um lugar de memoacuteria congregando ao espaccedilo uma

funccedilatildeo e uma representaccedilatildeo simboacutelica ou seja unindo os aspectos material simboacutelico e

funcional

145

Foto Nordm1 fachada entrada principal e paacutetio interno do quartel do 1ordm BPE (Bettamio dez 2004)

Este tombamento foi feito pela Prefeitura do Rio de Janeiro em 1993 e tem por

setor responsaacutevel a Subsecretaria municipal de Patrimocircnio Cultural lei nordm 1954 de

29039340

Seu processo teve iniacutecio atraveacutes da solicitaccedilatildeo de moradores da localidades

da Tijuca Grajauacute Andaraiacute e Praccedila Saens Pentildea que utilizaram para embasar o referido

ato o fato de parte do edifiacutecio do 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito ter abrigado o DOI-

CODI do Rio de Janeiro durante toda a deacutecada de 1970 e iniacutecio dos anos 1980

ressaltando a sua importacircncia para a memoacuteria da resistecircncia e luta pelo fim da ditadura

militar

Percebe-se ainda a grande importacircncia atribuiacuteda a essa memoacuteria quando se

destaca que mesmo o edifiacutecio tendo um valor histoacuterico anterior agrave fase em que cedeu

parte de seu espaccedilo ao DOI-CODIRJ o pedido de tombamento feito pela populaccedilatildeo

fundamentava-se no que ali havia ocorrido em tempos recentes durante a ditadura

militar Afinal esses requerentes propunham que o edifiacutecio fosse tirado do Exeacutercito e

desse lugar a um centro cultural com museu da memoacuteria da luta pela liberdade

40

Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro antigo Departamento Geral de

Patrimocircnio Cultural (DGPC) Nordm do processo 1200433692 1degdocumento de solicitaccedilatildeo de tombamento

26101992

146

O edifiacutecio foi construiacutedo em 1857 pela Imperial Coroa para servir de sede a um

Hospital Militar entretanto laacute se instalou o 1ordm Regimento de Cavalaria Ligeira e

posteriormente o Hospital Militar da Corte com funcionamento ateacute fevereiro de 1877

Desde entatildeo a construccedilatildeo foi utilizada pela Escola do Estado Maior pelo 2ordm Batalhatildeo

de Caccediladores pela Escola de Intendecircncia e a partir de 1946 pelo 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia

do Exeacutercito 41

Em ampla aacuterea estaacute situado na confluecircncia da Rua Baratildeo de Mesquita com a

Avenida Maracanatilde abrangendo tambeacutem a Praccedila Lamartine Babo Conforme pode ser

observado na paacutegina anterior Foto Nordm1 ao redor de todo o espaccedilo ocupado pelo preacutedio

estende-se uma mureta de alvenaria com grade assente na parte frontal do quartel O

complexo arquitetocircnico do 1ordm BPE apresenta nas extremidades alas perpendiculares

que formam no meio um largo paacutetio A uacuteltima dessas alas possui os fundos voltados

para a Avenida Maracanatilde em frente a um dos portotildees de entrada e saiacuteda de veiacuteculos do

quartel Era exatamente nesta parte localizada no final do paacutetio central do Batalhatildeo do

lado esquerdo ao lado da antiga faacutebrica de bebidas Brahma que as celas e a sala de

tortura do DOI-CODIRJ estavam localizadas A seguir na Foto Nordm2 visualiza-se o

fundo deste edifiacutecio na Avenida Maracanatilde

41

Para mais informaccedilotildees ver Gerson 2000 357

147

Foto Nordm2 preacutedio do DOI-CODIRJ nos fundos do quartel localizado na Avenida Maracanatilde (Bettamio dez 2004)

Como se pode ver na Foto Nordm2 em cima do muro do 1ordm BPE exclusivamente na

parte que cerca os fundos do antigo preacutedio do DOI-CODIRJ estaacute localizada uma cerca

de arame farpado Assim aleacutem da descriccedilatildeo dos entrevistados e da forma como o

primeiro-sargento nomeou o local ao apontaacute-lo durante a minha segunda visita ao

Batalhatildeo em 2004 entende-se esta cerca como mais um indiacutecio de que laacute ficavam as

celas do entatildeo DOI-CODIRJ Tais celas estavam distribuiacutedas pelos dois pavimentos do

edifiacutecio conforme pode-se auferir nos relatos e comprovar na Foto Nordm2 onde pela

distribuiccedilatildeo das janelas nota-se que o preacutedio eacute composto de fato por dois andares

O local da prisatildeo era mais nos fundos Quando vocecirc chega ali vocecirc tem duas

entradas uma pela pracinha [Foto Nordm3] onde entram os carros e outra pela

frente bem na Baratildeo de Mesquita [Foto Nordm1] Nesta entrada tem uma mesa

com um oficial do dia depois vem uma espeacutecie de paacutetio aberto como se

fosse uma quadra Jaacute nos fundos do quartel passa a Avenida Maracanatilde por

traacutes da Poliacutecia do Exeacutercito As celas tanto a da prisatildeo como a da tortura

eram mais perto da Avenida Maracanatilde Era laacute naquela parte mais para o

148

final mais isolada Vocecirc ficava mais proacuteximo da Avenida Maracanatilde e da

faacutebrica da Brahma [] (Carvalho 12 set 2002)

Foto Nordm3 uma das entradas do 1ordm BPE para veiacuteculos de frente para a Praccedila Lamartine Babo (Bettamio dez 2004)

Os prisioneiros poliacuteticos receacutem-capturados transferidos de outros oacutergatildeos de

repressatildeo ou mesmo do Hospital Central do Exeacutercito chegavam ao 1ordm BPE dentro de

uma das viaturas das turmas de busca e apreensatildeo do DOI que faziam parte da

estrutura abordada no primeiro capiacutetulo Os automoacuteveis que os traziam entravam no

Batalhatildeo atraveacutes do portatildeo para veiacuteculos que fica em frente agrave Praccedila Lamartine Babo

(Foto Nordm3) entre a Rua Baratildeo de Mesquita e a Avenida Maracanatilde Ao entrarem por

este portatildeo os carros seguiam em linha reta pelo paacutetio interno ateacute chegarem ao preacutedio

do DOI-CODI no fundo do quartel (Foto Nordm2) onde os presos eram deixados

Este trajeto de chegada descrito pelos entrevistados parece ser ateacute hoje um

procedimento formal para controlar a entrada de veiacuteculos no Batalhatildeo e atraveacutes dele

evidencia-se que o DOI-CODI mesmo natildeo sendo subordinado ao 1ordm BPE tinha como

dever respeitar algumas normas de seguranccedila ali vigentes Entre essas normas estava o

impedimento de utilizar o portatildeo para veiacuteculos localizado na Avenida Maracanatilde (Foto

149

Nordm2) para a entrada e a saiacuteda de seus presos mesmo sendo mais praacutetico e reservado

pois este portatildeo ficava ao lado do preacutedio do DOI-CODI Poreacutem como todo quartel

militar preza por um controle riacutegido de seguranccedila uma vez que satildeo responsaacuteveis por

guardar armas e outros equipamentos beacutelicos esses agentes eram obrigados a respeitar a

estrutura de seguranccedila tradicional do 1ordm BPE

[] a gente entrava pela pracinha aqui do lado [aponta para o desenho que

faz no papel] a gente entrava dentro dos carros aqui por esse portatildeo (o da

praccedila) A gente natildeo entrava pela porta principal natildeo E nem entrava ou saiacutea

pelo portatildeo do lado do preacutedio que a gente ficava [] (Coimbra 30 nov

2004)

No preacutedio do DOI-CODIRJ (Foto Nordm2) as celas ldquosolitaacuteriasrdquo se localizavam

somente no andar de baixo Nelas os prisioneiros receacutem-chegados permaneciam nos

primeiros dias de prisatildeo para ficarem no mesmo andar da sala de interrogatoacuterio ou ldquosala

de torturardquo ndash como os presos a chamavam ndash facilitando o deslocamento Era no

momento inicial da prisatildeo que as turmas de interrogatoacuterio preliminar executavam a

parte massiva dos interrogatoacuterios o que por conseguinte demandava a necessidade dos

presos ficarem em celas geograficamente proacuteximas agrave ldquosala de torturardquo

Nos primeiros dias de prisatildeo era quando os presos eram levados assiduamente

para a ldquosala de torturardquo visto que poderiam informar sobre os ldquopontos de encontrordquo e os

ldquoaparelhosrdquo ainda vaacutelidos informaccedilotildees que levariam os agentes dos DOI ateacute outros

ldquosubversivosrdquo Aleacutem da ldquosala de torturardquo a cela do tipo ldquosolitaacuteriardquo era mais um artifiacutecio

para torturar o preso receacutem-chegado a fim de degradaacute-lo e desestruturaacute-lo

psicologicamente de forma a impulsionaacute-lo a falar mais rapidamente o que sabia Para

isso essas celas ldquosolitaacuteriasrdquo aleacutem de deixarem o preso isolado dos demais se

diferenciavam estruturalmente das outras que existiam no mesmo preacutedio localizadas em

150

maior parte no pavimento superior para as quais os presos eram transferidos apoacutes o

momento inicial de sua prisatildeo

Nas celas do segundo andar existia banheiro com chuveiro e um colchatildeo para cada

preso Jaacute nas ldquosolitaacuteriasrdquo aleacutem do preso ficar sozinho natildeo havia cama colchatildeo

banheiro ou mesmo pia Durante o tempo em que laacute permaneciam os prisioneiros natildeo

tinham direito a tomar banho Eram celas pequenas com portotildees de grades vazadas

contendo apenas um buraco no chatildeo para que o preso ali pudesse evacuar Os presos

eram obrigados a conviver com o cheiro de sua proacutepria urina e fezes no provaacutevel intuito

de denegrir a sua condiccedilatildeo de ser humano

[] logo que eu cheguei fui para a lsquosolitaacuteriarsquo era torturada ia para a

lsquosolitaacuteriarsquo era torturada e ia para a lsquosolitaacuteriarsquo [] (Pandolfi 5 fev 2003)

[] primeiro que quando vocecirc eacute preso vocecirc passa alguns dias sem tomar

banho na verdade eu soacute fui tomar banho mesmo depois que eu fui para a

cela coletiva [] (Carvalho 8 fev 2003)

Aqui [aponta para as celas do andar teacuterreo do preacutedio que desenhou em um

papel] era soacute o pessoal que ficava de castigo era barra pesada [] vocecirc natildeo

tinha lugar para dormir natildeo tinha lugar para nada Tinha soacute um buraco para

vocecirc fazer as suas necessidades Na solitaacuteria natildeo tinha nem colchatildeo nem

banheiro nem privada era um buraco Nem tinha chuveiro Pelo menos

essas celas de cima tinham chuveiro [] (Coimbra 30 nov 2004)

151

Foto Nordm4 visatildeo panoracircmica do espaccedilo ocupada pelo 1ordm BPE com destaque aos fundos para o preacutedio do DOI-CODI

(Bettamio dez 2004)

A ldquosala de torturardquo localizada no primeiro pavimento do preacutedio eacute referida pelos

prisioneiros tambeacutem como ldquosala roxardquo pela cor de suas paredes Anexa a ela estava a

sala de observaccedilatildeo que era separada da ldquosala roxardquo por um vidro o chamado ldquoespelho

da verdaderdquo Este vidro composto por uma placa semi-espelhada possibilitava que da

sala de observaccedilatildeo se pudesse ver e reconhecer quem estava do outro lado sem ser

visto Assim presos e militares poderiam identificar pessoas e observar interrogatoacuterios

sem serem reconhecidos

[] a sala de tortura era pintada de uma cor horrorosa como se fosse um

roxo [] essa sala tinha um vidro que era o espelho da verdade porque dava

acesso agrave outra sala onde ficavam pessoas para te observar sem serem vistas

[] (Pandolfi 5 fev 2003)

A seta indica a localizaccedilatildeo do preacutedio do DOI-CODI dentro do espaccedilo do 1ordm BPE

152

[] aqui tinha a famosa sala roxa duas uma do lado da outra isso no

primeiro andar Porque ali estavam as pessoas que eles estavam inquirindo

direto [] (Freire 28 jun 2004)

Os dados informados acima satildeo exemplos tiacutepicos de detalhes apresentados pelos

entrevistados que muito podem contribuir para o entendimento desse passado Afinal

em uma primeira impressatildeo essas narrativas podem transmitir a ideia de que as paredes

roxas serviam apenas para imprimir um aspecto sombrio agrave ldquosala de torturardquo servindo

como mais um elemento produzido para intimidar o depoente durante o interrogatoacuterio

No entanto ao saber-se que uma das paredes dessa sala era composta pelo dito ldquoespelho

da verdaderdquo deduz-se que esta era bem iluminada O vidro que a dividia do local anexo

muito utilizado nas salas de reconhecimento em delegacias de poliacutecia age atraveacutes de um

mecanismo pelo qual quem estaacute do lado mais iluminado vecirc apenas o reflexo de sua

proacutepria imagem sem enxergar o que estaacute do lado mais escuro

A partir disso infere-se que as paredes roxas da ldquosala de torturardquo natildeo eram apenas

um aparato de tortura psicoloacutegica mas provavelmente uma forma de deixar os

integrantes das turmas de interrogatoacuterio preliminar mais agrave vontade para interrogar

ameaccedilar e torturar os seus prisioneiros Menos iluminada do que se suas paredes fossem

brancas contribuiacutea para que os prisioneiros natildeo pudessem ver os militares de forma tatildeo

clara e niacutetida fazendo com que os torturadores natildeo se sentissem acuados por atuar com

os seus rostos agrave mostra chegando mesmo a retirar o capuz dos prisioneiros

[] chegando nessa sala de tortura normalmente eles tiravam o capuz Quer

dizer o capuz na verdade era um mecanismo mais de intimidaccedilatildeo de deixar

a gente apavorada do que para eles se esconderem mesmo porque na tortura

a gente acabava vendo os torturadores [] (Pandolfi 5 fev 2003)

No DOI-CODI eu apanhei de cara limpa eu vi quem me bateu quem me

torturou [] (Freire 28 jun 2004)

153

No segundo andar do preacutedio do DOI-CODIRJ em meio agraves demais celas coletivas

e encostada em outra menor se encontrava uma cela feminina bem espaccedilosa onde

Dulce Ana e Ceciacutelia ficaram durante parte do tempo em que estiveram na instituiccedilatildeo

Essa cela mencionada pelas entrevistadas ora por ldquocoletivo das mulheresrdquo ora por

ldquoMaracanatilderdquo tinha no alto da parede de fundo um basculante que como bem se pode

observar na Foto Nordm2 provavelmente estava presente em todas as celas coletivas tanto

as do primeiro quanto as dos segundo andares Entretanto no caso do ldquocoletivo das

mulheresrdquo e da cela nele encostada esses basculantes eram virados para o paacutetio interno

do 1ordm BPE e por conseguinte os portotildees dessas celas ficavam na direccedilatildeo do muro da

Avenida Maracanatilde

[] eu fui para a cela do lado que era o coletivo das mulheres que era a cela

Maracanatilde como a gente chamava [] Eram duas celas Essa era enorme e

tinha a outra na outra ponta [] que era uma cela menor Eu fiquei nas duas

que eram as duas celas que ficavam na frente que davam para o paacutetio A

gente trepava [no basculante da cela] e soacute via o paacutetio (Coimbra 30 nov

2004)

Tinha ateacute uma cela ampla grande que chamavam de coletivo das mulheres

Entatildeo a maior parte do tempo eu fiquei nessa cela grande [] (Pandolfi 5

fev 2003)

No DOI-CODI natildeo havia uma grande separaccedilatildeo entre prisioneiros e prisioneiras

uma vez que as celas do primeiro e do segundo andares comportavam tanto homens

quanto mulheres No entanto natildeo havia celas mistas Apesar de que como somente

homens afirmaram ter permanecido em celas do piso teacuterreo pressupotildee-se que neste

pavimento com exceccedilatildeo das celas ldquosolitaacuteriasrdquo localizavam-se em grande parte caacuterceres

154

coletivos masculinos que tambeacutem existiam no segundo andar demonstrando que era

maior o nuacutemero de prisioneiros homens

[] eu sempre fiquei no teacuterreo nunca subi para aquela parte apesar de que

laacute onde ficavam as celas tinha uma escada Tinha uma parte teacuterrea onde

ficavam nossas celas e tinha tambeacutem umas celas em cima [] (Carvalho 12

set 2002)

No teacuterreo tinha duas celinhas aqui [rabisca em um pedaccedilo de papel] uma no

cantinho aqui e eu fiquei nessa segunda aqui aiacute ainda tinha a do meio e

mais duas para caacute eram cinco celas [] (Freire 28 jun 2004)

A partir dessa cartografia do espaccedilo fiacutesico do DOI-CODI viabilizou-se uma

aproximaccedilatildeo com a geografia do ambiente que mantinha uma iacutentima relaccedilatildeo com o

cotidiano dos entrevistados no periacuteodo em que laacute permaneceram como prisioneiros do

sistema de seguranccedila

3 Memoacuterias de um cotidiano

Falar sobre essa parte da histoacuteria implica muitas dificuldades pois suscita

lembranccedilas mal-vindas poreacutem necessaacuterias ao conhecimento de nossa

sociedade Trata-se aqui de uma viagem de volta ao inferno de uma face que

para muitos traduz supliacutecios fiacutesicos e psiacutequicos sentimentos de desamparo

solidatildeo medo pacircnico abandono e desespero (Coimbra 2004 45) 42

Como jaacute dito o momento da realizaccedilatildeo de uma entrevista eacute definidor da maneira

pela qual o(a) entrevistado(a) recupera o seu passado A construccedilatildeo da memoacuteria sobre o

cotidiano vivido no DOI-CODI em 1970 natildeo escapou desse passeacute do preacutesent e de

42

Artigo Gecircnero Militacircncia e Memoacuteria escrito pela entrevistada Ceciacutelia Coimbra e publicado em Strey

Marlene Neves (org) Violecircncia Gecircnero e Poliacuteticas Puacuteblicas Porto Alegre PUC-RS 2004

155

forma muito interessante ao mesmo tempo em que sofria influecircncias desse presente

tambeacutem agia politicamente sobre ele Beneficiados por uma legislaccedilatildeo que buscava

reparar os variados danos causados pelo Estado ditatorial os entrevistados visavam

sobretudo a obter reparaccedilotildees simboacutelicas comeccedilando pela consolidaccedilatildeo de suas

memoacuterias Por isso mesmo lutavam por accedilotildees governamentais tais como a construccedilatildeo

de museus sobre a ditadura militar em locais que haviam servido como prisatildeo poliacutetica

na eacutepoca e a instalaccedilatildeo da Comissatildeo da Verdade no paiacutes

Assim em 24 de janeiro de 2009 foi inaugurado no anexo do antigo preacutedio do

Departamento de Ordem e Poliacutetica Social de Satildeo Paulo (Deops) o Memorial da

Resistecircncia de Satildeo Paulo Eacute a primeira instituiccedilatildeo do paiacutes a ldquomusealizarrdquo parte de um

edifiacutecio que foi siacutembolo da poliacutecia poliacutetica em eacutepocas de ditadura a fim de salvaguardar

a memoacuteria da resistecircncia e da repressatildeo do Brasil republicano 43

E finalmente em 18

de novembro de 2011 a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei que criava a

Comissatildeo da Verdade (lei nordm 125282011) Esta seraacute composta por sete integrantes que

ainda seratildeo indicados e contaratildeo com ajuda de 14 auxiliares que teratildeo a missatildeo de ouvir

depoimentos em todo o paiacutes requisitar e analisar documentos que ajudem a esclarecer

os fatos da repressatildeo militar A Comissatildeo iraacute apurar as violaccedilotildees de direitos ocorridas

entre os anos de 1946 e 1988 e teraacute um prazo de dois anos para finalizar este trabalho de

investigaccedilatildeo

43

Para mais informaccedilotildees sobre o Memorial da Resistecircncia de Satildeo Paulo consultar

httpwwwmemorialdaresistenciasporgbr

156

31 O interrogatoacuterio e a tortura

Tendo em vista as novas funccedilotildees que se apresentavam para os agentes da

repressatildeo lotados nos DOI-CODI era necessaacuterio um treinamento que incluiacutea entre

outras mateacuterias o manuseio da dosagem de dor infringida durante os interrogatoacuterios

Depois de passarem por tal treinamento os militares poderiam atuar em uma das trecircs

turmas de interrogatoacuterio preliminar que compunham a Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio

responsaacutevel direta por torturar os presos ou em uma das turmas da Seccedilatildeo de busca e

apreensatildeo que capturavam os suspeitos e os direcionavam aos DOI

Esse processo de formaccedilatildeo de matildeo-de-obra para atuar no DOI-CODI surgiu em

1970 quando uma escola de repressatildeo foi criada a partir da mudanccedila de comando e da

reforma curricular do Centro de Estudos de Pessoal (CEP) no forte do Leme O novo

CEP passava a oferecer cursos de informaccedilotildees para oficiais programas de extensatildeo para

sargentos e estaacutegios para quadros das poliacutecias militares todos normalmente com

duraccedilatildeo de um semestre Nesses cursos os alunos assistiam aulas sobre teacutecnicas de

interrogatoacuterio ndash o que incluiacutea o manuseio de aparelhos de tortura ndash e vigilacircncia taacuteticas

de ldquoneutralizaccedilatildeo de aparelhosrdquo e de transporte de presos operaccedilotildees especiais

criptologia e produccedilatildeo de informaccedilotildees Ao fim do curso o aluno recebia uma

certificaccedilatildeo atraveacutes da qual poderia atestar sua aptidatildeo para desempenhar as funccedilotildees de

um oficial de informaccedilotildees

Parte dos meacutetodos aprendidos nessa escola eacute retratada em entrevista para a revista

Veja de 9 de dezembro de 1998 pelo tenente Marcelo Paixatildeo de Arauacutejo que de acordo

com Elio Gaspari (2002) teria atuado como torturador no 12ordm Regimento Interno de

Belo Horizonte entre 1968 e 1971

A primeira coisa era jogar o sujeito no meio de uma sala tirar a roupa dele e

comeccedilar a gritar para ele entregar o ponto [lugar marcado para encontros

157

com militantes do grupo] Era o primeiro estaacutegio Se ele resistisse tinha um

segundo estaacutegio que era vamos dizer assim mais porrada Um dava tapa na

cara Outro soco na boca do estocircmago Um terceiro soco no rim Tudo para

ver se ele falava Se natildeo falava tinha dois caminhos Dependia muito de

quem aplicava a tortura Eu gostava muito de aplicar a palmatoacuteria Eacute muito

doloroso mas faz o sujeito falar Eu era muito bom na palmatoacuteria [] Vocecirc

manda o sujeito abrir a matildeo O pior eacute que de tatildeo desmoralizado ele abre Aiacute

se aplicam dez quinze bolos na matildeo dele com forccedila A matildeo fica roxa Ele

fala A etapa seguinte era o famoso telefone das Forccedilas Armadas [] eacute uma

corrente de baixa amperagem e alta voltagem [] Natildeo tem perigo de fazer

mal Eu gostava muito de ligar as duas pontas dos dedos Pode ligar numa

matildeo e na orelha mas sempre do mesmo lado do corpo O sujeito fica

arrasado O que natildeo pode fazer eacute deixar a corrente passar pelo coraccedilatildeo Aiacute

mata [] o uacuteltimo estaacutegio em que cheguei foi o pau-de-arara com choque

Isso era para o queixo-duro o cara que natildeo abria nas etapas anteriores Mas

pau-de-arara eacute um negoacutecio meio complicado [] O pau-de-arara natildeo eacute

vantagem Primeiro porque deixa marca Depois porque eacute trabalhoso Tem

de montar a estrutura Em terceiro eacute necessaacuterio tomar conta do indiviacuteduo

porque ele pode passar mal (Gaspari 2002 182-183)

Antes de comeccedilar a atuar esses agentes passavam por treinamento no DOI-CODI

feito provavelmente com alguns prisioneiros que jaacute estavam laacute haacute algum tempo e que

haviam mostrado ter boa resistecircncia Conforme se pode evidenciar a partir da

declaraccedilatildeo feita por Dulce Pandolfi em 1970 registrada na auditoria militar 44

[]

que foi exposta perante 20 oficiais como numa demonstraccedilatildeo de aulas de torturas

pau-de-arara e choques [] (Arquidiocese de Satildeo Paulo tomo V 1985 758)

Essa denuacutencia feita na eacutepoca por Dulce na auditoria da Justiccedila Militar foi

publicada em A Tortura tomo V do ldquoProjeto Ardquo da pesquisa coordenada pela

Arquidiocese de Satildeo Paulo e intitulada Brasil Nunca Mais O ldquoProjeto Ardquo eacute constituiacutedo

por doze volumes que contecircm as conclusotildees da referida pesquisa feita a partir da

44

Assim satildeo chamadas as varas criminais com atribuiccedilatildeo especiacutefica de atuar em processos de crimes

militares da Justiccedila Militar brasileira

158

reuniatildeo de coacutepias da quase totalidade dos processos poliacuteticos que tramitaram na Justiccedila

Militar entre abril de 1964 e marccedilo de 1979 Esses volumes foram reproduzidos vinte e

cinco vezes pela Arquidiocese de Satildeo Paulo formando coleccedilotildees que foram doadas a

entidades de direitos humanos pesquisa e documentaccedilatildeo 45

As 6891 paacuteginas do

ldquoProjeto Ardquo estatildeo resumidas no ldquoProjeto Brdquo o livro Brasil Nunca Mais tambeacutem

datado de 1985 e publicado pela Editora Vozes

Os primeiros momentos no DOI-CODI

Desde o momento da detenccedilatildeo o preso era submetido a diversos tipos de maus

tratos Jaacute a caminho do caacutercere ainda dentro do automoacutevel comeccedilavam as agressotildees

como tapas pontapeacutes e empurrotildees a fim de acelerar a sua desestabilizaccedilatildeo para que

entregasse mais rapidamente informaccedilotildees que agilizassem a prisatildeo de outros militantes

procurados

As torturas que Ana Batista relata ter sofrido durante o percurso de transferecircncia

da OBANSP para o DOI-CODIRJ destacadas em seu memorial ndash escrito em outubro

de 2004 um mecircs antes de sua entrevista e encaminhado agrave Comissatildeo Especial da

Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro ndash trazem aspectos

proacuteximos agrave realidade vivida na eacutepoca pelos presos poliacuteticos do DOI-CODIRJ

[] dez dias apoacutes a prisatildeo fui levada de Satildeo Paulo [DOI-CODISP] para o

Rio [DOI-CODIRJ] de madrugada numa C-14 onde permaneci no banco de

traacutes entre dois agentes de grande porte No meio do caminho na Via Dutra

eles entraram por uma estradinha pararam o carro e me mandaram descer

aos berros Com fortes dores no corpo ndash especialmente nos rins ndash

queimaduras infectadas pelos choques eleacutetricos exausta dos interrogatoacuterios e

45

Os doze volumes do ldquoProjeto Ardquo estatildeo disponiacuteveis no Arquivo do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio

de Janeiro (GTMNRJ)

159

sem dormir haacute dias desembarquei meio trocircpega Gritaram impropeacuterios e

ordenaram que eu fugisse Como estava muito tonta sem saber o que pensar

ou fazer natildeo fiz nada Atiraram entatildeo repetidas vezes em volta de mim

que permaneci encostada em uma aacutervore gritaram vaacuterias vezes para que eu

fugisse Caiacute no chatildeo o que os fez parar de atirar e se jogarem em cima de

mim agraves gargalhadas Colocaram-me de volta no carro e continuamos a

viagem rumo ao DOI-CODI-RJ (Batista out 2004)

Assim quando chegavam ao DOI-CODIRJ apoacutes passarem pelo portatildeo de

entrada da Praccedila Lamartine Babo (Foto Nordm3) os presos preenchiam uma ficha de

identificaccedilatildeo e eram levados para a ldquosala roxardquo no andar teacuterreo do preacutedio dessa

instituiccedilatildeo (Foto Nordm2) Laacute em meio a interrogatoacuterio as ameaccedilas e torturas se

intensificavam perpetradas pelos integrantes de uma das trecircs turmas de interrogatoacuterio

preliminar de plantatildeo no momento

Cabe lembrar que tais turmas eram constituiacutedas por militares treinados para

conseguir extrair rapidamente dos presos o maior nuacutemero possiacutevel de informaccedilotildees

principalmente sobre a data hora e local de seu proacuteximo ldquopontordquo de encontro Afinal

caso esses agentes natildeo conseguissem tais dados logo nos primeiros dias natildeo chegariam

ao local a tempo de pegarem o outro militante clandestino que o preso encontraria A

partir do momento em que a ausecircncia desse militante fosse notada integrantes de sua

organizaccedilatildeo poliacutetica deduziriam o motivo e por proteccedilatildeo modificariam os locais dos

ldquoaparelhosrdquo e dos proacuteximos ldquopontosrdquo As informaccedilotildees do preso receacutem-capturado se

tornariam entatildeo desatualizadas o que dificultaria a investigaccedilatildeo dos agentes do DOI-

CODIRJ

As torturas infringidas aos presos eram mais intensas logo depois da prisatildeo

Lutando contra o tempo era comum deixar o preso em celas ldquosolitaacuteriasrdquo localizadas no

andar teacuterreo conforme jaacute indicado Dessa forma os presos receacutem-chegados ficavam

bem proacuteximos agrave sala de interrogatoacuterio a ldquosala roxardquo justamente por serem para laacute

160

levados com frequecircncia Como nas ldquosolitaacuteriasrdquo os presos ficavam sozinhos e natildeo

podiam contar com itens baacutesicos de higiene e proteccedilatildeo do corpo (tais como banheiro

chuveiro colchatildeo e cobertor) acabavam se sentindo ainda mais desestruturados e por

conseguinte desestabilizados Logo no momento inicial da prisatildeo quando os presos

natildeo eram submetidos agraves torturas fiacutesicas eram submetidos agraves torturas psicoloacutegicas das

ldquosolitaacuteriasrdquo as chamadas torturas brancas46

espeacutecie de degradaccedilatildeo fria sem violecircncia

humana expliacutecita

Por outro lado os presos receacutem-capturados tinham consciecircncia de que era naquele

momento inicial que mais poderiam prejudicar seus companheiros de organizaccedilatildeo

Diante disso normalmente tentavam dificultar o acesso dos militares agraves informaccedilotildees

lutando para resistir agraves torturas Apesar de muitas vezes fracassarem tentavam segurar

os dados que tinham ao menos ateacute passar o horaacuterio do proacuteximo ldquopontordquo que haviam

combinado com outro militante Portanto avalia-se que provavelmente o grau de

resistecircncia inicial do prisioneiro estava diretamente relacionado ao da intensidade da

tortura a ele perpetrada e vice-versa conforme analisa-se nos trechos da entrevista de

Ana de Miranda Batista abaixo destacados

[] o meu negoacutecio era ganhar tempo e o deles era conseguir informaccedilatildeo A

luta eacute essa nos primeiros dias eacute vocecirc dar o miacutenimo de informaccedilotildees e eles

querendo arrancar o maacuteximo de informaccedilatildeo Aiacute eles vecircm com a maacutexima de

que torturar eacute investigar [risos] E daiacute se precisar ateacute a morte O negoacutecio eacute

conseguir informaccedilatildeo

46

Em 1971 quando os ex-prisioneiros aqui entrevistados jaacute natildeo estavam mais no 1ordm BPE o projeto

ldquoTortura Limpardquo foi ali instalado Segundo Elio Gaspari o andar teacuterreo do DOI-CODIRJ sofreu obras

para que fossem construiacutedos quatro novos cubiacuteculos um foi forrado com isopor e amianto a fim de fazer

o prisioneiro sentir frio constantemente outro se tornou uma cacircmara de ruiacutedos pela qual o preso ouviria o

barulho por todo o tempo em que laacute estivesse o terceiro foi todo pintado de branco provocando dor na

vista do preso devido agrave claridade constante na cela o uacuteltimo transformou-se em um ambiente todo preto

natildeo fornecendo a quem estivesse em seu interior nenhuma claridade causando choque na vista quando

exposto a claridade normal (Gaspari 2002 189-190)

161

[] quando eu cheguei agrave OBAN [que na eacutepoca de sua prisatildeo jaacute havia se

transformado em DOI-CODISP] jaacute era noite eles estavam tomando cerveja

comemorando que eu tinha caiacutedo E aiacute eu passei o ponto da Ana Maria do

Carlos Eugecircnio com o Bacuri Porque laacute era um inferno [] laacute eu passei um

monte de ponto e todos eles eram procurados Entatildeo aiacute eacute que a barra pegou

mesmo (Batista 17 nov 2004)

Os trechos acima mesmo sendo baseados em uma experiecircncia vivida no DOI-

CODISP trazem muitas informaccedilotildees sobre o cotidiano prisional vivido de forma

geral em todos os DOI-CODI Afinal conforme ressaltado anteriormente esses oacutergatildeos

estavam espalhados por todas as jurisdiccedilotildees territoriais do Brasil e seguiam

basicamente a mesma organizaccedilatildeo Portanto pode-se concluir aqui que em ambos os

DOI-CODI no momento inicial da prisatildeo existia essa relaccedilatildeo entre a intensidade das

sessotildees de tortura adotadas pelos militares e o tamanho da vontade de resistir do preso

Tal relaccedilatildeo se torna ainda mais perceptiacutevel pela frustraccedilatildeo sentida na fala de Ana

ao afirmar ter passado muitos ldquopontosrdquo inclusive o de ldquoBacurirdquo codinome de Eduardo

Collen Leite seu companheiro de organizaccedilatildeo Ana no momento da entrevista sabia

que ldquoBacurirdquo havia sido preso em agosto de 1970 alguns dias depois de sua prisatildeo e

que havia morrido sob tortura Quando admite ter entregado aos agentes do DOISP o

ponto de encontro Ana se culpa O depoimento eacute o momento em que Ana aproveita

para se justificar ao demonstrar que acredita no quanto a resistecircncia agrave tortura era

importante no iniacutecio da prisatildeo mas como ela se tornava limitada sendo rapidamente

derrotada Resistir ao DOI-CODI era muito difiacutecil jaacute que os agentes haviam sido

fortemente preparados para a ldquoguerra internardquo e natildeo por acaso se tornariam os grandes

responsaacuteveis pela desarticulaccedilatildeo das organizaccedilotildees de luta armada

O silecircncio dos demais entrevistados sobre as informaccedilotildees que concederam ou natildeo

aos agentes das turmas de interrogatoacuterio preliminar serve aqui como mais um

argumento para a tese de que apesar da grande resistecircncia inicial dos presos poliacuteticos e

162

tambeacutem por causa dela a violecircncia vivida no DOI-CODIRJ nos primeiros dias de

prisatildeo era intensa e quase sempre prevalecia Afinal caso natildeo fosse desse modo os

entrevistados provavelmente orgulhar-se-iam de sua resistecircncia e por conseguinte natildeo

lhes faltariam motivos para lembraacute-la e narraacute-la Logo o silecircncio aqui tambeacutem se torna

revelador

Atraveacutes desse silecircncio destaca-se ainda que talvez pelos mesmos motivos que

Ana opta por lembrar e justificar-se os demais entrevistados optam por silenciar e tentar

esquecer Todos apesar de agirem de acordo com suas personalidades e experiecircncias de

vida provavelmente se sentem culpados ou envergonhados por natildeo terem aguentado

esconder o que sabiam ateacute o fim e poupado muitos de seus companheiros da prisatildeo e ateacute

mesmo da morte

A segunda fase

Passada esta primeira fase da prisatildeo no DOI-CODIRJ que durava em meacutedia uma

ou duas semanas os presos eram transferidos para celas maiores Estas continham

banheiro colchatildeo e em grande parte das vezes outros prisioneiros

Nessa segunda etapa os presos natildeo ficavam isentos das idas agrave ldquosala roxardquo poreacutem

estas natildeo eram tatildeo frequentes quanto anteriormente Afinal a busca desesperada por

ldquopontosrdquo codinomes ou ldquoaparelhosrdquo natildeo mais cabia pois esses prisioneiros jaacute estavam

distantes de suas organizaccedilotildees haacute tempo suficiente para que suas prisotildees fossem

notadas e por conseguinte para que as informaccedilotildees que tivessem jaacute natildeo fossem mais

ldquoquentesrdquo

Nessa fase as visitas agrave ldquosala roxardquo davam-se por outros motivos Normalmente

para ajudar em anaacutelises de novas suspeitas Os agentes das turmas de interrogatoacuterio

preliminar poderiam levar um preso mais antigo para a ldquosala roxardquo para ser acareado

163

com um receacutem-chegado com quem suspeitavam estar de alguma forma relacionado

Poderiam tambeacutem levaacute-lo ateacute laacute para ser interrogado a respeito de novas e possiacuteveis

accedilotildees da esquerda armada conforme indicassem as informaccedilotildees recebidas pelo CODI

conjugadas agraves anaacutelises feitas pelo Setor de anaacutelise e informaccedilotildees sobre algum material

apreendido pela Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo Eacute o que pode-se concluir a partir da

caracterizaccedilatildeo sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI quando colocadas em diaacutelogo

com as informaccedilotildees trazidas pelos trechos destacados abaixo

ldquoNome codinome e aparelhordquo isso eacute que eles querem saber de imediato

Depois que passa algum tempo isso natildeo interessa mais Aiacute eles tecircm um

trabalho mais analiacutetico que era para saber de outros que acabaram de cair o

que eles tecircm de quecirc jaacute participaram o que estaacute acontecendo [] (Batista 17

nov 2004)

[] de quem era preso eles queriam duas informaccedilotildees imediatas eles

comeccedilavam a te bater e soacute pediam o ponto o local de encontro que vocecirc

tivesse com algueacutem e o aparelho que era o apartamento alugado ou qualquer

coisa assim Era isso o que eles queriam basicamente [] (Freire 28 jun

2004)

Como o DOI-CODIRJ tinha poucas celas e muita rotatividade quando o preso

natildeo mais interessava agraves investigaccedilotildees era normalmente mandado para o DOPS onde

era aberto o processo de crime poliacutetico e ficava detido ateacute o primeiro julgamento ndash

como ocorreu com Antocircnio de Carvalho Dulce Pandolfi e Ana de Miranda Batista

Poreacutem quando o seu caso tivesse relaccedilatildeo com uma das outras Forccedilas Armadas o preso

era transferido para a instituiccedilatildeo repressiva diretamente ligada a esta ndash como aconteceu

com Fernando ao ser levado do DOI-CODIRJ para o CISA oacutergatildeo de repressatildeo ligado agrave

Aeronaacuteutica ndash onde permaneceria ateacute quando seus agentes julgassem necessaacuterio Aleacutem

disso caso os agentes do DOI-CODIRJ constatassem que o prisioneiro natildeo estava

164

envolvido diretamente em nenhum crime poliacutetico ele poderia ser posto em liberdade

provisoacuteria ndash como ocorreu com Padre Maacuterio e Ceciacutelia Coimbra

Vale lembrar que o DOI-CODIRJ natildeo era um presiacutedio comum Laacute os suspeitos de

crimes poliacuteticos natildeo estavam cumprindo pena baseada em um processo e sim na

menagem estipulada pelo Coacutedigo Processual Militar criado pelo decreto-lei Nordm1002

de outubro de 1969 Por meio da menagem os suspeitos de crimes poliacuteticos ndash que a

partir do AI-5 tinham passado a ser julgados pela Justiccedila Militar ndash poderiam ser

arbitrariamente detidos e levados ao quartel responsaacutevel pela Regiatildeo Militar onde

estivessem A menagem era justificada como uma forma de prisatildeo cautelar que visava

evitar o conviacutevio do acusado com pessoas que jaacute estivessem condenadas ateacute o seu

julgamento em primeira instacircncia Dessa forma os suspeitos de crimes poliacuteticos da

Regiatildeo Militar que englobava o Rio de Janeiro ficavam detidos no DOI-CODIRJ

localizado no quartel do 1ordm BPE e ali permaneciam presos sem direito a formalidades

convencionais de uma prisatildeo tais como as visitas de familiares e de um advogado por

um periacuteodo que chegava ateacute 30 dias podendo ser prorrogado por mais 60 dias

Poreacutem como ressaltado anteriormente quando novos grupos de suspeitos laacute

chegavam a saiacuteda dos presos mais antigos era impulsionada mesmo sem ainda terem

sido julgados No entanto como esses presos ainda estavam sob a menagem e por isso

natildeo poderiam ir para um presiacutedio comum a assessoria juriacutedica e policial do DOIRJ ou

os transferia ou os colocava em liberdade provisoacuteria controlando nesse uacuteltimo caso

para que natildeo saiacutessem da respectiva Regiatildeo Militar ateacute o seu julgamento em primeira

instacircncia

[] fiquei trecircs meses laacute na PE na Poliacutecia do Exeacutercito na Rua Baratildeo de

Mesquita Depois fui levada para o DOPS [] laacute na PE a gente ficava nessa

triagem sendo torturado ou ouvindo grito de tortura e esperando laacute o tempo

ateacute eles resolverem a nossa situaccedilatildeo e sermos transferidos Entatildeo laacute era um

165

esquema de uma circulaccedilatildeo muito grande de pessoas Daiacute o quartel estava

sempre cheio porque de repente quando caiacutea alguma organizaccedilatildeo

apareciam laacute 30 ou 40 pessoas presas naquela noite e aquilo ficava

abarrotado de gente Entatildeo tinha momentos que a coisa ficava mais

tranquila e tinha momentos que aquilo ali ficava realmente lotado [] a PE

era isso a PE natildeo tinha uma rotina desses presiacutedios da linha tradicional laacute

ningueacutem recebia visita porque era a fase completamente ilegal da sua prisatildeo

[] (Pandolfi 5 fev 2003)

Outro aspecto interessante da menagem que interferia no cotidiano prisional do

DOI-CODIRJ satildeo as regras para o tempo de inquiriccedilatildeo estipuladas pelo decreto-lei nordm

100269 Este impunha que exceto em casos de urgecircncia os presos que estivessem sob

menagem deveriam prestar depoimentos durante o dia das sete e agraves 18 horas Aleacutem

disso esses prisioneiros natildeo poderiam ser inquiridos por mais de quatro horas

consecutivas tendo direito apoacutes esse periacuteodo a um intervalo de meia hora antes de

voltarem a ser interrogados

Art 19 As testemunhas e o indiciado exceto caso de urgecircncia inadiaacutevel que

constaraacute da respectiva assentada devem ser ouvidos durante o dia em

periacuteodo que medeie entre as sete e as dezoito horas

[]

Inquiriccedilatildeo Limite de tempo

2ordm A testemunha natildeo seraacute inquirida por mais de quatro horas consecutivas

sendo-lhe facultado o descanso de meia hora sempre que tiver de prestar

declaraccedilotildees aleacutem daquele termo O depoimento que natildeo ficar concluiacutedo agraves

dezoito horas seraacute encerrado para prosseguir no dia seguinte em hora

determinada pelo encarregado do inqueacuterito (Decreto-lei nordm 1002 21 out

1969)

A partir disso faz mais sentido ainda as diferentes distacircncias existentes entre as

celas e a sala de tortura nas duas fases da prisatildeo Como o prazo maacuteximo estipulado para

um interrogatoacuterio era de quatro horas tendo o prisioneiro apoacutes este tempo direito a um

166

descanso de ao menos meia hora no primeiro momento da prisatildeo no DOI-CODIRJ

deixar o preso perto do local onde eram feitos os interrogatoacuterios era um facilitador Essa

proximidade entre a cela e a ldquosala roxardquo natildeo era necessaacuteria para o preso que estivesse na

segunda etapa da prisatildeo jaacute que ele natildeo seria transportado de um lugar para o outro com

tamanha frequecircncia e provavelmente os interrogatoacuterios que lhe seriam destinados nem

chegassem agraves quatro horas permitidas pelo referido Decreto-lei

Nas narrativas de todos os entrevistados estatildeo presentes as experiecircncias vividas

nas duas fases da prisatildeo Todos eles passaram os primeiros dias em solitaacuterias e

posteriormente ficaram em celas maiores Padre Maacuterio foi a uacutenica exceccedilatildeo Sua prisatildeo

no DOI-CODIRJ natildeo passou por essas duas etapas encaixando-se portanto em um

dos casos extraordinaacuterios dessa instituiccedilatildeo Afinal desde o momento em que foi levado

para o preacutedio do DOI-CODIRJ Padre Maacuterio afirma ter dividido uma cela no segundo

andar com outros padres e depois ter sido transferido para uma cela do primeiro andar

onde ficou sozinho e de frente para as celas de jovens militantes de sua Associaccedilatildeo

conforme pode-se conferir no trecho abaixo

[] foi exatamente em setembro logo nas primeiras duas semanas em que

noacutes estaacutevamos presos que eles me passaram para o primeiro andar porque

estaacutevamos todos no segundo andar [] entatildeo nos primeiros dias noacutes

padres passamos todos juntos [] e depois fomos separados Entatildeo me

colocaram sozinho nessa cela do andar de baixo bem em frente agraves celas dos

jovens que estavam presos no CENIMAR e que foram levados para laacute para

serem torturados [] (Prigol 28 set 2004)

Essa diferenccedila no cotidiano prisional encontra coerecircncia quando embasada por

alguns argumentos aqui levantados Como a fase em que os presos ficavam nas

ldquosolitaacuteriasrdquo tinha por finalidade desestruturaacute-los e principalmente deixaacute-los mais

proacuteximos da sala de tortura para onde seriam levados com frequecircncia essa fase natildeo

167

deveria ser destinada a um padre sem envolvimento em uma organizaccedilatildeo de luta

armada Os militares teriam que responder agrave Igreja caso algo de mais grave lhe

acontecesse dentro do DOI-CODIRJ Colocar sua vida em risco deveria ser uma opccedilatildeo

somente se ele tivesse informaccedilotildees preciosas para a neutralizaccedilatildeo da guerrilha urbana

principal objetivo do grupo de repressatildeo em 1970 conforme indicado na monografia do

coronel Pereira analisada no primeiro capiacutetulo

Entatildeo como a associaccedilatildeo da qual participava a ACO natildeo tinha envolvimento

com a luta armada a morte de Padre Maacuterio poderia causar desnecessariamente uma

tensatildeo ateacute entatildeo natildeo deflagrada entre o Exeacutercito e a Igreja Catoacutelica 47

Aleacutem disso

como se encontrava em uma faixa etaacuteria mais elevada com cerca de 40 anos ele tinha o

agravante de ter uma sauacutede mais fraacutegil que grande parte dos presos do DOI-CODIRJ

que eram majoritariamente jovens estudantes Assim o tratamento prisional

diferenciado ali recebido por Padre Maacuterio visava diminuir as chances que ele tinha de

desenvolver problemas decorrentes de torturas Essa interpretaccedilatildeo encontra fortes

indiacutecios em um dos trechos de sua entrevista

[] a mim eles soacute colocaram o fio eleacutetrico aqui [aponta para um dedo da

matildeo esquerda] e no peacute esquerdo eu fiquei sabendo que no mesmo lado do

corpo eu natildeo sentiria tatildeo forte mas mesmo assim eu resisti resisti Bom

entatildeo diante da prisatildeo da gente eu sofri tambeacutem torturas mas eu depois

que fingi estar sentindo o coraccedilatildeo eles deixaram de dar choques [risos]

Cada um tem que se defender de alguma forma (Prigol 28 set 2004)

Afinal por meio da descriccedilatildeo acima destacada nota-se que apesar de natildeo

excluiacuterem Padre Maacuterio das sessotildees de tortura uma vez que era esse o procedimento de

investigaccedilatildeo do DOI-CODIRJ existia de fato certo temor em causar-lhe graves

47

Para informaccedilotildees sobre as tensotildees que ocorreram entre a Igreja Catoacutelica e a ditadura militar ver

Serbin 2001 17-77

168

sequelas Dessa forma por mais que Padre Maacuterio relate que sua atitude de defesa

conseguiu inibir a accedilatildeo daqueles agentes conclui-se aqui que caso ele natildeo tivesse as

caracteriacutesticas profissionais morais etaacuterias e ideoloacutegicas aqui descritas certamente tal

inibiccedilatildeo natildeo ocorreria Ao menos natildeo na mesma proporccedilatildeo

Testando a resistecircncia

No ano de 1970 esta preocupaccedilatildeo em evitar sequelas evidentemente natildeo se

aplicava a jovens presos que tivessem algum tipo de ligaccedilatildeo com organizaccedilotildees

oposicionistas adeptas da luta armada Conforme pode-se conferir nos relatos sobre os

danos agrave sauacutede que Dulce Fernando e Ana destacam ter sofrido por conta das torturas

recebidas no DOI-CODIRJ

[] fiquei tomando medicaccedilatildeo especial porque eu estava muito mal estava

com uma paralisia tambeacutem por causa da tortura tinha ficado completamente

travada aquilo vocecirc vai contraindo contraindo e deixava vocecirc semiparaliacutetica

[] (Pandolfi 5 fev 2003)

Eu desmaiava acordava e o pau comia desmaiava acordava e o pau

comia Natildeo foi faacutecil natildeo Eu lembro que quando eu saiacute da PE um mecircs

depois eu fazia assim [passa a matildeo no ouvido] e vinha sangue vinha pus eu

estava bem abalado mesmo (Freire 28 jun 2004)

[] eu fiquei um mecircs no Rio no DOI-CODI Desse mecircs uma semana eu

fiquei no HCE [Hospital Central do Exeacutercito] eu tremia sem parar eu estava

cheia de ferida (Batista 17 nov 2004)

Em todas as fases da prisatildeo para cuidar dos estragos causados agrave sauacutede do preso

durante ou apoacutes a sessatildeo de tortura existiam enfermeiros e meacutedicos no DOI-CODIRJ

Os enfermeiros tratavam os prisioneiros nas celas conforme a recomendaccedilatildeo dos

169

meacutedicos Jaacute esses aleacutem de examinarem e receitarem cuidados especiais aos presos

machucados tambeacutem auxiliavam as turmas de interrogatoacuterio preliminar durante as

torturas averiguando os sinais vitais dos presos a fim de constatarem o quanto eles

ainda poderiam suportar No entanto quando a tortura saiacutea de controle de tal forma que

algum preso ficasse tatildeo mal que natildeo respondesse agrave medicaccedilatildeo e aos cuidados meacutedicos

feitos dentro do quartel esse poderia ser levado pelas turmas de busca e apreensatildeo

conforme demonstrado no primeiro capiacutetulo ateacute o Hospital Central do Exeacutercito48

onde

receberiam um tratamento mais especializado

A existecircncia de meacutedicos no DOI-CODIRJ pode ser averiguada por meio da

confissatildeo de Amilcar Lobo noticiada pela Revista Eacutepoca apresentada abaixo

(EacutePOCA 27 nov 2000 104)

Meacutedico de formaccedilatildeo psicanaliacutetica ele foi denunciado por muitos ex-prisioneiros

por exercer a profissatildeo prestando assessoria a torturas entre 1970 e 1974 no DOI-

CODIRJ Diante disso em 1988 teve o seu registro de meacutedico cassado pelo Conselho

Regional de Medicina do Rio de Janeiro A atuaccedilatildeo de Amilcar Lobo assim como a de 48

O Hospital Central do Exeacutercio (HCE) ainda estaacute localizado no mesmo local da eacutepoca na Rua Francisco

Manoel nordm 126 no bairro de Benfica na cidade do Rio de Janeiro Para mais informaccedilotildees acessar

httpwwwhceebmilbr

170

meacutedicos e enfermeiros em geral tambeacutem eacute encontrada nos depoimentos aqui

analisados conforme pode-se conferir nos trechos destacados a seguir

[] a primeira pessoa que me visitou antes de eu ser torturada foi um

meacutedico o Amilcar Lobo que depois eu denunciei o lsquofilho da putarsquo e a gente

conseguiu cassaacute-lo como meacutedico [] ele acompanhava as torturas antes

durante e depois era o assessor de tortura ele dizia ldquo- Daacute uma paradinha

agorardquo Isso para vocecirc aguumlentar neacute Entatildeo ele entrou na minha cela e me

perguntou se eu era cardiacuteaca tirou a minha pressatildeo e eu natildeo entendendo

nada Ele tinha um esparadrapo aqui [aponta para o lado esquerdo do peito]

para a gente natildeo ver o nome dele Eu fiquei sabendo o nome dele porque

meses depois eu jaacute estava na cela de Dulce [Pandolfi]49

quando ele

porque a Dulce ficou praticamente sem mexer as matildeos [] e ele entrou e

esqueceu o receituaacuterio com o nome dele noacutes olhamos e eu quando saiacute de laacute

o denunciei Anos depois a gente conseguiu que ele fosse cassado []

(Coimbra 30 nov 2004)

[] o meacutedico que vinha te ver vinha para ver as suas condiccedilotildees se tinha que

parar ou se podia continuar a te torturar Os caras batiam muito localizado

em partes que vocecirc resiste mais que satildeo nas naacutedegas nessa parte daqui

[aponta para as costas] Entatildeo satildeo lugares que o seu corpo suporta mais []

(Freire 28 jun 2004)

[] como eu fiquei muito mal eu tive cuidados meacutedicos o tempo quase todo

quer dizer claro que eram cuidados meacutedicos no sentido de me prepararem

para apanhar mais para ser mais torturada queriam evitar que eu morresse

porque politicamente natildeo interessava [] tinha laacute dois enfermeiros de rotina

e tinham tambeacutem dois meacutedicos o mais presente o que sempre visitava a

gente era o Amilcar Lobo Em alguns casos ele participou de algumas

sessotildees de tortura no meu eu me lembro dele dizendo ldquo- ela aguentardquo

tomando minha pressatildeo dizendo que eu aguentava apanhar mais ainda

(Pandolfi 5 fev 2003)

49

Dulce e Ana e Dulce e Ceciacutelia dividiram celas em parte do periacuteodo em que estiveram presas no DOI-

CODIRJ A convivecircncia que laacute tiveram seraacute analisada ainda neste capiacutetulo

171

De fato a tortura estava presente em grande parte do cotidiano do DOI-CODIRJ

e para que fosse eficiente e natildeo causasse maiores problemas tal como mortes

indesejadas ao redor dela havia todo um aparato Esse era formado tanto por

enfermeiros e meacutedicos como tambeacutem por outras especificidades tais como teacutecnicas

treinamentos e equipamentos que seratildeo tratados a seguir

Os meacutetodos da tortura

O meacutedico psicanalista Heacutelio Pelegrino traz uma oacutetima definiccedilatildeo sobre como

funciona a tortura poliacutetica

[] a tortura busca agrave custa do sofrimento corporal insuportaacutevel introduzir

uma cunha que leve agrave cisatildeo entre o corpo e a mente E mais do que isto ela

procura a todo preccedilo semear a discoacuterdia e a guerra entre o corpo e a mente

Atraveacutes da tortura o corpo torna-se nosso inimigo e nos persegue Eacute este o

modelo baacutesico no qual se apoacuteia a accedilatildeo de qualquer torturador [] na tortura

o corpo volta-se contra noacutes exigindo que falemos Da mais iacutentima espessura

de nossa proacutepria carne se levanta uma voz que nos nega na medida em que

pretende arrancar de noacutes um discurso do qual temos horror jaacute que eacute a

negaccedilatildeo de nossa liberdade A tortura nos impotildee a alienaccedilatildeo total de nosso

proacuteprio corpo tornando estrangeiro a noacutes e nosso inimigo de morte

(Pelegrino 5 jun 1982 3)

No interior do DOI-CODIRJ em nenhuma das fases da prisatildeo os presos poliacuteticos

eram poupados de torturas No iniacutecio as visitas agrave ldquosala roxardquo eram mais constantes mas

durante todo o periacuteodo em que permaneciam no DOI-CODIRJ os prisioneiros eram

levados para laacute e laacute eram torturados Nessa sala existiam equipamentos proacuteprios

tornando ainda maior a gama de possibilidades de tortura a serem perpetradas aos

prisioneiros Devido a essa diversidade as torturas recebiam nomes proacuteprios para serem

identificadas pelos oficiais das turmas de interrogatoacuterio preliminar do DOIRJ Tais

172

nomes na maior parte das vezes eram irocircnicos e serviam para demonstrar como ali a

praacutetica da tortura era usual e ao mesmo tempo encarada com naturalidade e frieza

pelos seus executores

Em A Tortura tomo V do ldquoProjeto Ardquo (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985)

encontram-se a caracterizaccedilatildeo e os nomes dessas torturas Comumente citadas pelos

presos poliacuteticos da ditadura militar do Brasil a identificaccedilatildeo dessas torturas foi baseada

sobretudo na anaacutelise da documentaccedilatildeo dos processos judiciais da eacutepoca Afinal muitas

vezes anexadas a esses processos encontram-se denuacutencias sobre torturas feitas por

prisioneiros poliacuteticos nas auditorias militares Essas denuacutencias vatildeo ao encontro de

muitas das descriccedilotildees encontradas nas narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos Antocircnio

Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia construiacutedas jaacute em tempos democraacuteticos

(2002-2004) Algumas delas satildeo destacadas a seguir

Capuz tortura psicoloacutegica Impedimento da visatildeo por meio de um capuz

ficando o indiviacuteduo incapacitado de se defender dos golpes a ele direcionados

Espancamento tapas socos e pontapeacutes aplicados em regiotildees como rins

estocircmago e diafragma

Telefone eletrochoque dado por um telefone de campainha do Exeacutercito

possuindo dois fios longos que satildeo ligados ao corpo molhado normalmente nas

partes genitais e nos mamilos aleacutem dos ouvidos dentes liacutengua e dedos

Pau-de-arara um dos meacutetodos mais antigos de tortura pelo qual se pendura a

viacutetima em posiccedilatildeo de ldquofrango assadordquo nua e de cabeccedila para baixo em um pau

preso no alto por duas barras de ferro causando dores terriacuteveis na cabeccedila e em

todo corpo

Choques eleacutetricos normalmente complemento do pau-de-arara Caracteriza-se

por enviar descargas eleacutetricas em contato com o corpo nu e molhado atraveacutes de

173

um magneto com dois terminais estando um geralmente nos oacutergatildeos genitais e

outro em alguma extremidade sensiacutevel do corpo como liacutengua mamilos e dedos

Palmatoacuteria raquete de madeira aplicada fortemente nas matildeos peacutes naacutedegas e

costas da viacutetima

Afogamento Complemento do pau-de-arara Pode ser aplicado ou por meio de

um pequeno tubo de borracha que lanccedila aacutegua na boca e nas narinas do

torturado ou atraveacutes de uma toalha molhada depositada tambeacutem na boca deste

ao mesmo tempo em que um jato drsquoaacutegua eacute lanccedilado em suas narinas

No referido tomo V do Projeto Brasil Nunca Mais encontram-se trechos das

denuacutencias feitas por Dulce Pandolfi nas auditorias militares em 1970 e tambeacutem por seu

advogado Dr Heleno Fragoso Comparando partes dessas denuacutencias de 1970 com

trechos da entrevista concedida por Dulce em 2003 nota-se que haacute muitos pontos em

comum No entanto percebe-se que em sua narrativa de 2003 as torturas satildeo relatadas

de forma mais impessoal e que talvez pelo tempo que separa este depoimento daquele

de 1970 alguns detalhes se perderam foram esquecidos ou mesmo silenciados Eacute o que

pode-se perceber nas transcriccedilotildees feitas a seguir

Nordm 433 Dulce Chaves Pandolfi Prof estudante Idade 23 Local Rio de

Janeiro (CODI) Ano 1970 Apelaccedilatildeo 39778 Vol 1 PAacuteG 328v LVI

PARTE auto de qualificaccedilatildeo e interrogatoacuterio ndash Auditoria

[] que no quartel da PE na Rua Baratildeo de Mesquita assinou sob torturas o

depoimento () que na sala de torturas da PE foi despida e aplicaram-lhe

choques eleacutetricos nas matildeos que foi levada para uma cela onde deram-lhe

um banho frio e sob o pretexto de ensaboaacute-la os torturadores alisavam o seu

corpo que ao retornar agrave sala de torturas foi colocada no chatildeo com um

jacareacute sobre seu corpo nu que depois foi pendurada num pau-de-arara que

levou choques na vagina no acircnus nos seios na cabeccedila e no restante do

corpo [] que ficou em estado de choque vomitando sangue que por 15

174

dias ficou totalmente paraliacutetica [] que foi exposta perante 20 oficiais

como numa demonstraccedilatildeo de aulas de torturas pau-de-arara e choques []

(Arquidiocese de Satildeo Paulo tomo V 1985 757)

Nordm 433 Dulce Chaves Pandolfi Prof estudante Idade 21 Local R de

Janeiro Ano 1970 Apelaccedilatildeo 39778 Vol 2ordm PAacuteG 712807 LVI

PARTE advogado

[] Com a palavra o Dr Heleno Fragoso defensor da acusada Dulce Chaves

Pandolfi este declarou que ela foi presa em agosto de 1970 tendo sido

submetida a uma seacuterie de torturas tendo inclusive o Delegado do DOPS

mandado submetecirc-la a exame de corpo de delito para salvaguardar a sua

responsabilidade [] Natildeo usaremos a palavra do co-reacuteu Paulo Henrique

Oliveira da Rocha Lins que foi ldquoforccedilado a presenciar a acusada DULCE

PANDOLFI sendo pisoteada nua no chatildeordquo (cf fls 325) Remeteremos o E

Conselho ao laudo fls 358 onde dois meacutedicos legistas do Instituto Meacutedico

Legal examinam a acusada e concluem pela verossimilhanccedila a

plausibilidade de suas alegaccedilotildees no sentido de que fora espancada

constatando os vestiacutegios das lesotildees Estaacute laacute a fls 358 a verdade do

inqueacuterito

Esse sofrimento deve ter sido tanto maior quanto era possiacutevel agrave acusada

fornecer as informaccedilotildees que seus torturadores exigiam [] (Arquidiocese de

Satildeo Paulo tomo V 1985 759)

[] vocecirc apanhava era super torturada ali em 1970 natildeo tinha escapatoacuteria

esse era o procedimento era a rotina e aiacute depois da tortura vocecirc jaacute toda

cheia de hematomas passando mal vocecirc era levada para uma cela muitas

vezes essas pessoas saiacuteam da sala de tortura e iam direto para essa cela onde

eu estava entatildeo eu tambeacutem presenciei muitas pessoas que chegavam laacute

completamente quebradas arrebentadas e essa era a nossa vida []

[] tinha o pau-de-arara que eu fui pendurada vaacuterias vezes nele com os

ferros verdes e as cordas tinha o tal telefone de choque que era para mim

um dos piores instrumentos era um aparelho de choque eleacutetrico tinha a

cadeira que eles tambeacutem te amarravam faziam mil sacanagens e tinha uns

enfim tinha uma espeacutecie de chicote que eles te batiam um porrete A tortura

tem vaacuterios procedimentos e tinha na PE nessa eacutepoca um jacareacute Ele natildeo

ficava na sala de tortura Esse jacareacute ficava do lado de fora Quando algumas

pessoas foram presas eles trouxeram o jacareacute para amedrontar Colocavam o

175

jacareacute sobre o seu corpo Era um filhote de jacareacute mas razoavelmente

grande quer dizer de um metro mais ou menos e era mais um dos

instrumentos que eles usavam [] fiquei tomando medicaccedilatildeo especial

porque eu estava muito mal estava com uma paralisia tambeacutem por causa da

tortura tinha ficado completamente travada eacute aquilo vocecirc vai contraindo

contraindo e deixava vocecirc semiparaliacutetica [] (Pandolfi 5 fev 2003)

A partir da comparaccedilatildeo dos trechos dos diferentes depoimentos acima destacados

dados sobre cenaacuterios e temporalidades distintas nota-se que a narrativa construiacuteda por

Dulce Pandolfi em 2003 eacute muito menos detalhada do que a por ela proferida em 1970

Percebe-se portanto no caso de Dulce que o presente vivido em 2003 de certa forma

agia sobre sua memoacuteria do passado ditatorial impulsionando o silecircncio sobre as

minuacutecias dos sofrimentos vividos no DOI-CODIRJ Logo nas memoacuterias de Dulce

nota-se uma inversatildeo da perspectiva de que o presente democraacutetico promovia uma

narrativa que enfatizasse os detalhes das torturas sofridas durante a ditadura militar a

fim de solidificar as conquistas ateacute entatildeo conseguidas e alcanccedilar outras tantas no futuro

Talvez em 2003 Dulce por jaacute ser uma mulher madura e uma profissional

reconhecida entendesse que o constrangimento trazido pela exposiccedilatildeo total de suas

memoacuterias sobre as torturas sofridas no passado superasse a vontade de denunciaacute-las no

presente Afinal naquele ano a democracia dava fortes sinais de consolidaccedilatildeo uma vez

que Lula ex-liacuteder sindical e perseguido poliacutetico pela ditadura acabava de assumir a

Presidecircncia do Brasil e o Estado brasileiro jaacute vinha reconhecendo sua responsabilidade

diante dos abusos da eacutepoca militar atraveacutes da concessatildeo de reparaccedilotildees financeiras agraves

famiacutelias dos militantes poliacuteticos desde entatildeo desaparecidos (lei nordm 914095) e agraves

viacutetimas de torturas em prisotildees poliacuteticas do periacuteodo (lei nordm 1055902)

Jaacute em 1970 os detalhes sobre as torturas sofridas por Dulce ainda eram

extremamente recentes e portanto muito presentes em sua memoacuteria Aleacutem disso tinha

consciecircncia de que no instante de seu depoimento muitos de seus companheiros

176

continuavam a sofrer dentro dos oacutergatildeos de repressatildeo com as mesmas torturas que havia

recebido E principalmente como estava defendendo-se perante um tribunal a

exposiccedilatildeo dos detalhes de suas torturas apresentava-se como uma arma importante na

luta em prol de sua liberdade

Diante disso enquanto Dulce relata em sua entrevista saber do uso de um filhote

de jacareacute como mais um instrumento de tortura utilizado no DOI-CODIRJ sem no

entanto afirmar ter passado por tal experiecircncia Ceciacutelia Coimbra em 2004 narra que

esse filhote de jacareacute havia sido colocado pelos militares sobre seu corpo nu

[] me botaram nua me amarraram numa cadeira e me puseram um filhote

de jacareacute que era um filhote de jacareacute que eles puxavam por uma corda no

pescoccedilo do pobre do jacareacute Era um filhote e aiacute eles puxavam o jacareacute

botavam o jacareacute em cima Olha era uma coisa horriacutevel Nessa hora eu

desmaiei neacute Natildeo aguentei [] (Coimbra 30 nov 2004)

Durante sua entrevista em 2004 Ceciacutelia descreve ter passado pela mesma

situaccedilatildeo de tortura que Dulce havia descrito em seu depoimento agrave Justiccedila Militar em

1970 mas que no presente em 2003 optou por relatar de forma impessoal Isso se

justifica pelo fato de para Ceciacutelia a descriccedilatildeo dos detalhes ainda ser essencial Afinal

Ceciacutelia eacute uma das fundadoras e ativistas assiacuteduas do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio

de Janeiro (GTNMRJ) onde ocupava entatildeo o cargo de vice-presidente

Eacute evidente portanto que na vida de Ceciacutelia a narrativa sobre os sofrimentos

acarretados pela repressatildeo militar ainda era arma na luta que travava para a

solidificaccedilatildeo das conquistas e para a concretizaccedilatildeo de outras tantas que julgava serem

igualmente importantes Para ela diferentemente de Dulce esse tipo de narrativa era

mais que sua memoacuteria pessoal dizia respeito tambeacutem a seu ofiacutecio Acreditava que o seu

sucesso pessoalprofissional dependia do detalhamento da memoacuteria sobre tais violaccedilotildees

177

o que colocava tais detalhes em um lugar de mais faacutecil aceitaccedilatildeo e por conseguinte

exteriorizaccedilatildeo

Mediante os depoimentos de Dulce e Ceciacutelia que chegaram a dividir cela no DOI-

CODIRJ como poderaacute ser visto paacuteginas agrave frente conclui-se que em meados de 1970

um filhote de jacareacute era utilizado para torturar os presos poliacuteticos do 1ordm BPE O uso

desse tipo de tortura eacute aqui entendido mais por seus efeitos psicoloacutegicos do que fiacutesicos e

como sendo destinado mais agraves presas do que aos presos poliacuteticos Afinal apesar de

tocar nos corpos das viacutetimas como acontece durante as torturas fiacutesicas aparentemente

o jacareacute que era dominado por um militar atraveacutes de uma corda amarrada em seu

pescoccedilo natildeo as atacava ou seja natildeo as causava lesotildees externas Era claramente

utilizado com o intuito de ameaccedilaacute-las Dessa forma mesmo sendo efetuado atraveacutes da

accedilatildeo direta do torturador e mediante o contato fiacutesico esse mecanismo de tortura tinha

por objetivo causar danos exclusivamente psicoloacutegicos Como normalmente as

mulheres possuem mais sensibilidades e fobias relacionadas ao contato com animais

provavelmente esse tipo de tortura atingisse maior eficiecircncia quando destinado agraves

presas

Conforme jaacute analisado e inclusive indicado pelo nome Destacamento de

Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) os presos do DOIRJ estavam ali para fornecer

informaccedilotildees que levassem agrave neutralizaccedilatildeo das organizaccedilotildees poliacuteticas de esquerda

Assim de acordo com a necessidade da raacutepida extraccedilatildeo de tais dados caracterizada

anteriormente natildeo eacute difiacutecil concluir que o clima de ameaccedila e tortura estivesse por toda

parte do preacutedio Portanto percebe-se que as torturas no DOI-CODIRJ de 1970 natildeo se

limitavam agraves fiacutesicas e nem agrave ldquosala roxardquo elas se apresentavam sob diversas faces em

vaacuterios momentos e lugares do edifiacutecio

178

As torturas psicoloacutegicas eram variadas Aleacutem da degradaccedilatildeo inicial que o

desconforto das celas ldquosolitaacuteriasrdquo trazia ao prisioneiro mesmo nas celas coletivas os

presos eram submetidos a muitos outros artifiacutecios desse tipo de tortura tais como luzes

das celas constantemente acesas a fim de que perdessem a noccedilatildeo da passagem do

tempo carcereiros durante a noite abrindo repetidamente a janelinha do portatildeo das

celas para vigiaacute-los acordando-os jaacute que o movimento emitia um som alto visitas

recorrentes de militares agraves celas e gritos vindos da ldquosala roxardquo ouvidos a todo tempo

[] essa porta da nossa cela ela tinha uma abertura era uma porta fechada

natildeo era grade natildeo era uma porta pesada e ela tinha um quadrado em cima

com uma abertura para o lado de fora e esses soldados que faziam a ronda

eles abriam essa portinha de cinco em cinco minutos Entatildeo eles passavam e

ldquopahrdquo e dependendo da maldade desses caras eles batiam com mais forccedila

ou menos forccedila isso era a noite toda Inclusive a luz ficava acesa

permanentemente e essa batidinha desse negoacutecio era uma coisa insuportaacutevel

De vez em quando a gente estava pegando no sono e tomava aquele susto

com aquela batida [] a gente tambeacutem ouvia muito grito de tortura o tempo

todo (Pandolfi 5 fev 2003)

[] nem na hora de dormir apagavam a luz dia e noite era a luz acesa vocecirc

sabia o horaacuterio pela hora do cafeacute da manhatilde Mas ateacute se tinha alguma noccedilatildeo

porque como a janela laacute no alto da parede era de vidro dava para vocecirc

perceber que estava agrave noite [] (Carvalho 8 fev 2003)

[] eles faziam o tal do confere de manhatilde e de noite vinham com catildees

policiais farejando a gente e a gente tinha que ficar em peacute igual a soldado

dizendo - ldquoCeciacutelia Coimbrardquo Tinha que falar o nome [] era o tal do

confere E era uma coisa de humilhaccedilatildeo eles de madrugada abriam

estrondosamente as celas entendeu [] era como se noacutes fossemos animais

animais de circo Animais raros eacuteramos os lsquoterroristasrsquo neacute [] era o tempo

todo as torturas fiacutesicas e a coisa da rotina para te degradar enquanto ser

humano [] (Coimbra 30 nov 2004)

179

Outro tipo de tortura psicoloacutegica aplicada no DOI-CODIRJ de 1970 fora da ldquosala

roxardquo jaacute aqui mencionada era o capuz Os agentes das turmas auxiliares encarregados

da carceragem colocavam uma espeacutecie de capuz no prisioneiro quando o levavam da

cela ateacute a ldquosala de torturardquo No entanto no momento em que o preso chegava nessa sala

tinha o capuz retirado pelos agentes das turmas de interrogatoacuterio preliminar Logo no

DOI-CODIRJ de 1970 o capuz ainda natildeo era um mecanismo para esconder os rostos

dos torturadores e sim mais um artifiacutecio de intimidaccedilatildeo do prisioneiro Aliaacutes foi

exatamente por isso que muitos ex-prisioneiros conseguiram anos depois denunciar

militares que na eacutepoca teriam sido seus algozes 50

Ana Batista ressalta ainda ter sido submetida no DOI-CODIRJ a outro tipo de

tortura psicoloacutegica O meacutedico Amilcar Lobo teria solicitado a um agente da turma

auxiliar de plantatildeo que a carregasse ateacute uma sala do 1ordm BPE fora do preacutedio do DOI-

CODIRJ jaacute que estava com ferimentos que natildeo permitiam que andasse Laacute Ana foi

supostamente examinada pelo referido meacutedico e dele escutou o diagnoacutestico de que natildeo

poderia ter filhos pois tinha o uacutetero infantil e retrovertido ou seja atrofiado e virado

para a parte posterior do corpo No entanto apoacutes ser posta em liberdade quatro anos

depois Ana descobriu que aquela afirmaccedilatildeo natildeo era verdadeira pois poderia

engravidar tendo tido posteriormente dois filhos

Eu sei que tem o paacutetio porque uma vez me carregaram para laacute um soldado

foi e me carregou Eu natildeo estava andando eu estava toda ferida entatildeo ele

me carregou pelo paacutetio ateacute uma espeacutecie de consultoacuterio do Amilcar Lobo []

eu estava toda ferida na vagina devido aos choques eleacutetricos e porque

tinham me enfiado o cassetete [] Aiacute ele me examinou e disse assim ldquo-

Vocecirc tem o uacutetero infantil e retrovertido vocecirc nunca vai poder ter filhosrdquo

Assim Eu tinha 21 anos e passei quase quatro anos achando que eu nunca ia

poder ter filhos O cara sabia o que estava fazendo (Miranda 17 nov 2004)

50

Em Os Funcionaacuterios tomo II do Projeto Brasil Nunca Mais se encontra a relaccedilatildeo alfabeacutetica das

pessoas envolvidas com torturas (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985 1-60)

180

Esse tipo de tortura psicoloacutegica destacada no trecho acima coincide com o tipo de

cotidiano vivido pelos presos do DOI-CODIRJ No entanto encaixa-se tambeacutem com o

estilo enfaacutetico que a narrativa de Ana atribuiacutea em 2004 aos danos que a prisatildeo poliacutetica

lhe causara A recente composiccedilatildeo de seu memorial sobre os sofrimentos vividos

durante a ditadura militar enviado agrave Comissatildeo Especial da Secretaria de Direitos

Humanos do Estado do Rio de Janeiro pautava-se no objetivo de receber o valor

maacuteximo da reparaccedilatildeo financeira oferecida pelo Estado No momento da entrevista era

esse o presente que Ana vivia e era atraveacutes dele que inconscientemente lia o passado

Logo sua narrativa apesar de aparentemente coerente sofria influecircncias que as

aspiraccedilotildees e interpretaccedilotildees do presente involuntariamente impuseram a suas memoacuterias

Poreacutem o fato do meacutedico Amilcar Lobo ter lhe dado um diagnoacutestico falso de

esterilidade encontra explicaccedilatildeo natildeo soacute em sua narrativa construiacuteda a partir da

interpretaccedilatildeo de que a notiacutecia teria sido motivada apenas pelo grande dano psicoloacutegico

que isso causaria a uma jovem de 21 anos mas tambeacutem no papel que o meacutedico

desempenhava dentro daquela instituiccedilatildeo Afinal aleacutem de funcionar como uma tortura

psicoloacutegica o diagnoacutestico dado por Amilcar Lobo foi provavelmente uma forma de

tentar resguardar o DOI-CODIRJ de possiacuteveis acusaccedilotildees posteriores de tecirc-la tornado

infeacutertil tantos eram os ferimentos que Ana havia sofrido em seus oacutergatildeos reprodutores

Afinal conforme constatado a principal funccedilatildeo do meacutedico ali era auxiliar as torturas e

cuidar dos ferimentos dos presos na tentativa de proteger a instituiccedilatildeo de acusaccedilotildees que

poderiam trazer preocupaccedilotildees futuras por exemplo a responsabilidade por graves

ferimentos e mortes

Isso no entanto natildeo quer dizer que as torturas do DOI-CODIRJ natildeo tenham

ocasionado mortes Sabe-se que muitos prisioneiros poliacuteticos depois de laacute entrarem

foram dados como desparecidos Quando esses presos eram mortos dentro de

181

instituiccedilotildees como o DOI-CODIRJ os militares envolvidos ou desapareciam com os

corpos pois assim natildeo se tinha como provar o que havia acontecido e por conseguinte

natildeo existiriam culpados ou quando a prisatildeo tivesse sido noticiada por algum meio de

comunicaccedilatildeo o corpo aparecia sob uma justificativa forjada que excluiacutesse a culpa da

instituiccedilatildeo prisional Na maior parte das vezes dizia-se que o prisioneiro havia

cometido suiciacutedio na prisatildeo ou sido baleado em tiroteio o que se supunha estar

relacionado a uma anterior tentativa sua de fuga

Nas entrevistas aqui trabalhadas alguns depoentes relataram ter tido contato

dentro do DOI-CODIRJ com pessoas que depois foram dadas como mortas sob tais

justificativas Dulce por exemplo afirma ter sido acareada durante uma sessatildeo de

tortura com Eduardo Collen Leite o Bacuri morto segundo a Comissatildeo Especial sobre

Mortos e Desaparecidos (2007 139) no Forte dos Andradas na cidade do Guarujaacute

(SP) trecircs dias apoacutes militares implantarem na imprensa a falsa notiacutecia de sua fuga

atribuindo sua morte a um suposto tiroteio na rua entre ele e militares

Quando eu estava laacute eu fui acareada com o Bacuri Eu jaacute encontrei com ele

assim muito mal ele estava respirando mal foi uma cena assim muito barra

pesada e eu sei que depois ele morreu eu natildeo sei se ele morreu laacute mas logo

depois que eu estive com ele ele morreu Ele eacute um desses mortos do

processo Ele morreu fruto de tortura ele foi brutalmente torturado ele jaacute

chegou na PE muito torturado muito quebrado e teve comentaacuterios de

torturadores que diziam ter feito um estrago muito grande nele e natildeo tinham

conseguido que ele falasse as coisas que eles queriam que ele falasse

(Pandolfi 5 fev 2003)

Fernando teve seu irmatildeo Eiraldo de Palha Freire baleado e junto com ele preso

pelos militares da Aeronaacuteutica no aeroporto do Galeatildeo no Rio de Janeiro Mesmo

gravemente ferido Eiraldo foi segundo Fernando e a Comissatildeo Especial sobre Mortos

e Desaparecidos (2007 131) transferido para o DOI-CODIRJ e laacute morto sob torturas

182

Poreacutem de acordo com Fernando seu corpo foi entregue agrave famiacutelia sob a versatildeo de

suiciacutedio

Meu irmatildeo veja bem ele foi metralhado no aviatildeo mas ele estava vivo e

ainda foi parar no DOI-CODI Ele estava ferido mas chegou a levar tortura

natildeo resistiu e morreu aiacute disseram que ele se suicidou (Freire 28 jun 2004)

Hoje no entanto grande parte dos mortos e desaparecidos foi reconhecida pelo

Estado brasileiro A Comissatildeo Especial sobre Mortos e Desaparecidos Poliacuteticos

implantada pela lei 914095 encerrou em 2006 a etapa de reconhecimento e reparaccedilatildeo

financeira agraves famiacutelias reconhecendo um total de 253 mortos e desaparecidos poliacuteticos

por autoridades do Estado brasileiro entre os anos de 1961 e 1988 A partir de 2007

essa Comissatildeo passou a concentrar-se na busca e no reconhecimento de ossadas para

que muitas famiacutelias descubram o que de fato aconteceu com seus entes desaparecidos e

possa enterraacute-los conforme indicado pelo seu livro-relatoacuterio Direito agrave verdade e agrave

memoacuteria (2007)

A partir da anaacutelise aqui feita a respeito das torturas a que os presos eram

submetidos no DOI-CODIRJ em 1970 nota-se que essas eram destinadas a todos que

laacute entravam No entanto percebe-se que a intensidade das torturas no DOI-CODIRJ de

1970 variava de acordo principalmente com o tempo de prisatildeo com o tipo de

organizaccedilatildeo que o preso integrasse (se era ou natildeo adepta da luta armada) e com a

resistecircncia que ele apresentasse para conceder as informaccedilotildees que os agentes das turmas

de interrogatoacuterio preliminar buscavam

Logo constata-se que quanto mais ativa fosse a organizaccedilatildeo de luta armada a que

o prisioneiro estivesse relacionado mais ele seria submetido a torturas e quanto mais

ele resistisse a essas mais intensas elas seriam podendo inclusive acarretar sua morte

183

Afinal os prisioneiros ligados a organizaccedilotildees armadas em ampla atividade tinham mais

informaccedilotildees sobre outros militantes procurados

Diante disso como a ALN e o MR-8 eram organizaccedilotildees envolvidas em grandes

accedilotildees armadas da eacutepoca ndash tais como os sequestros dos embaixadores americano e

alematildeo e do aviatildeo da Companhia Aeacuterea Cruzeiro do Sul ocorridos em 4 de setembro de

1969 11 de junho de 1970 e 1ordm de julho de 1970 respectivamente ndash os prisioneiros que

delas faziam parte ou tinham algum tipo de relaccedilatildeo com seus militantes foram

submetidos a intensas torturas no DOI-CODIRJ Como os perfis de Dulce Fernando

Ana e Ceciacutelia se encaixavam nessas caracteriacutesticas conforme analisado no segundo

capiacutetulo a eles foi imposto no DOI-CODIRJ um cotidiano ainda mais violento do que

por exemplo a Antocircnio

Afinal em meados de 1970 quando Antocircnio de Carvalho51

foi preso e levado

para o DOI-CODIRJ o PCBR sua organizaccedilatildeo na eacutepoca apesar de adepta da luta

armada jaacute se encontrava relativamente desestruturada uma vez que suas principais

lideranccedilas jaacute haviam ldquocaiacutedordquo Dessa forma o PCBR mesmo ainda em atividade natildeo

estava envolvido em accedilotildees tatildeo organizadas e com tamanha repercussatildeo como estavam a

ALN e o MR-8 por exemplo Entatildeo Antocircnio apesar de passar pelas duas fases da

prisatildeo e natildeo ser poupado de duras torturas como ocorreu com Padre Maacuterio

provavelmente natildeo sofreu o mesmo grau de violecircncia destinado a Dulce Fernando Ana

e Ceciacutelia As informaccedilotildees que ele tinha natildeo levariam o DOI-CODIRJ aos envolvidos

com as accedilotildees armadas em destaque na eacutepoca

51

Para mais informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria poliacutetica que acarretou a prisatildeo de Antocircnio Leite de Carvalho

voltar ao segundo capiacutetulo

184

32 O dia-a-dia no caacutercere

O dia-a-dia vivido pelos prisioneiros poliacuteticos no DOI-CODIRJ natildeo era o mesmo

que o vivido em um presiacutedio comum A ameaccedila de tortura o medo dela decorrente e o

sentimento de abandono que ela causava estavam presentes a todo momento Assim

natildeo poderia ser diferente que na memoacuteria construiacuteda pelos ex-prisioneiros poliacuteticos do

DOI-CODIRJ de 1970 a tortura ocupe a maior parte das narrativas sobre o cotidiano

ali vivido

No entanto a memoacuteria dos prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ de 1970

entrevistados entre os anos de 2002 e 2004 abarca tambeacutem outros aspectos daquele dia-

a-dia A partir de seus relatos aleacutem de se tornar viaacutevel a anaacutelise sobre as refeiccedilotildees os

banhos e os passatempos durante a prisatildeo no DOI-CODIRJ se torna possiacutevel tambeacutem

perceber como a convivecircncia a cumplicidade entre os presos e ateacute algumas

demonstraccedilotildees de solidariedade dos carcereiros foram elementos importantes para que

resistissem ao violento cotidiano ali vivido

Na primeira fase da prisatildeo os presos ficavam sozinhos em pequenas celas onde

natildeo havia colchatildeo banheiro e eram constantemente levados agrave sala de tortura Este

cotidiano inicial era muito degradante fiacutesica e mentalmente natildeo soacute pelo sofrimento

acarretado pelo grande nuacutemero de torturas sofridas e pelo desconforto das celas mas

tambeacutem pela solidatildeo nelas vivenciada Afinal natildeo foi por acaso que tais celas ficaram

conhecidas como ldquosolitaacuteriasrdquo

A solidatildeo era uma caracteriacutestica que contribuiacutea fortemente para a fragilidade do

prisioneiro do DOI-CODIRJ Isto torna-se mais evidente quando percebe-se a grande

importacircncia que um raacutepido contato com outro preso representava durante a primeira

fase da prisatildeo Eacute o que pode-se apurar no seguinte trecho narrado por Fernando

185

[] uma hora eu estava encostado aqui [aponta para onde ficava uma das

ldquosolitaacuteriasrdquo no desenho que fez em um papel] no primeiro dia aiacute botaram um

cara no corredor [] era um dirigente do Partido Comunista um velho da

minha idade atualmente Ele tremia muito [] Aiacute ele disse - ldquoEstaacute frio neacute

companheirordquo aiacute eu - ldquoMuitordquo e ele disse - ldquoMas eacute mais psicoloacutegicordquo Aiacute

eu senti uma vergonha sabe Porque eu estava me sentindo tatildeo mal tatildeo para

baixo e um homem daquela idade estava firme[] Ele me deu uma forccedila

muito maior do que ele imagina [] (Freire 28 jun 2004)

Evidencia-se atraveacutes dessa narrativa como em meio ao sofrimento e agrave solidatildeo que

Fernando lembra ter vivenciado no primeiro dia de sua prisatildeo no DOI-CODIRJ um

simples diaacutelogo foi capaz de revitalizar a sua resistecircncia Esse pequeno contato foi tatildeo

importante para Fernando a ponto de ficar marcado em sua memoacuteria ateacute o momento de

sua entrevista mais de trinta anos depois

A partir disso nota-se que aquele cotidiano criava independente das pequenas

diferenccedilas ideoloacutegicas que poderiam existir uma forte identidade entre os presos As

dores decorrentes das torturas e a sensaccedilatildeo de solidatildeo que sentiam no DOI-CODIRJ

faziam com que presos que nunca tivessem se visto antes criassem rapidamente uma

forte cumplicidade e amizade Assim nos momentos em que estavam juntos

principalmente durante a segunda fase da prisatildeo eles conversavam apoiavam-se e

cuidavam uns aos outros extraindo desse conviacutevio forccedila para encararem os proacuteximos

dias de prisatildeo

Essa experiecircncia coletiva dentro do DOI-CODIRJ era valiosa ateacute porque nem

mesmo quando os presos jaacute estavam na segunda fase da prisatildeo ela era garantida Afinal

apesar do prisioneiro poliacutetico do DOI-CODIRJ durante a segunda fase ficar em celas

com estrutura para mais de um preso ele nem sempre tinha companhia Conforme jaacute

analisado anteriormente no DOI-CODIRJ existia uma grande rotatividade e isso

186

implicava em que em determinados momentos as celas coletivas estivessem cheias e

em outros habitadas por dois ou ateacute mesmo um uacutenico prisioneiro

Logo por ser a primeira fase um periacuteodo de isolamento e a segunda devido agrave alta

rotatividade do DOI-CODIRJ uma fase em que ora se estava sozinho e ora tinha-se

companheiro(s) de cela a convivecircncia era entatildeo muito valorizada pelos presos como se

pode perceber na ecircnfase que ela recebe nas memoacuterias dos entrevistados

[] quando estaacutevamos juntas era bem melhor porque existia uma identidade

muito forte entre a gente Eram pessoas que nunca tinham se conhecido de

um modo geral mas aquele oacutedio contra a ditadura o fato de todas terem sido

torturadas aquilo dava margem a uma liga muito grande entre a gente

Entatildeo quando noacutes estaacutevamos juntas a gente cantava a gente conversava a

gente contava histoacuterias de vida o tempo passava e a gente tinha uma

intimidade Conseguimos construir uma coisa muito soacutelida mesmo com

poucas horas e poucos dias mesmo nesse esquema que eu estou te falando

quer dizer as pessoas natildeo ficavam laacute fixas Teve uma vez que uma moccedila

ficou laacute trecircs dias outra que ficou quatro outra que ficou cinco Mas era

uma coisa muito boa chegar algueacutem mesmo vocecirc vendo a pessoa chegar

toda esbagaccedilada porque os que entravam naquela cela jaacute tinham passado laacute

embaixo [] (Pandolfi 5 fev 2003)

[] a cela coletiva na verdade acabava se constituindo num foacuterum de

debates Sempre discutiacuteamos poliacutetica porque eram companheiros de

diversas organizaccedilotildees natildeo era uma uacutenica organizaccedilatildeo ou um uacutenico partido

que estava ali preso mas sim vaacuterios e havia aquela troca de experiecircncias

cada um contava a sua histoacuteria e assim ia passando o dia-a-dia sempre

havia novidades Assim a gente acabava quebrando um pouco o isolamento

[] (Carvalho 8 fev 2003)

Essa convivecircncia no caacutercere fomentou portanto a solidariedade e instituiu um

forte sentimento de coletividade entre os presos Afinal a luta pela sobrevivecircncia e o

pavor de voltar a ser torturado eram comuns a todos eles que procuravam na uniatildeo criar

forccedilas para suportar aquele pesado cotidiano A troca de apoio servia entatildeo como uma

187

espeacutecie de sustentaccedilatildeo como uma garantia de sobrevida Ao preocuparem-se e

ajudarem-se os presos injetavam-se um acircnimo importante para conseguirem resistir agrave

situaccedilatildeo de desespero e solidatildeo que ali era vivida e diante dessa realidade acabavam

formando um grupo coeso cuja principal caracteriacutestica era justamente esse apoio

Constituiacuteam portanto uma identidade conjunta atraveacutes da qual se viam sob os mesmos

temores e anseios aleacutem de perceberem essa parceria como uma extensatildeo da resistecircncia

agrave ditadura que vinham praticando desde antes de serem presos

Ana Dulce e Ceciacutelia memoacuterias relacionadas

Ana e Dulce e depois Dulce e Ceciacutelia foram companheiras de cela durante parte

da segunda fase de suas prisotildees no DOI-CODIRJ de 1970 Suas narrativas sobre a

convivecircncia que laacute tiveram servem aqui para analisar tanto as relaccedilotildees entre suas

memoacuterias quanto alguns aspectos do cotidiano dessa instituiccedilatildeo

Conforme analisado no segundo capiacutetulo Ana chegou ao DOI-CODIRJ no final

de julho de 1970 Logo depois em 14 de agosto do mesmo ano Dulce foi presa e para

laacute tambeacutem levada Como Ana afirma ter permanecido no DOI-CODIRJ por cerca de

um mecircs constata-se que no final de agosto quando ela jaacute estava em vias de ser

transferida colocaram Dulce em sua cela no segundo andar Dulce acabava de vir da

primeira fase de sua prisatildeo que por ter lhe causado graves consequecircncias fiacutesicas tinha

sido mais curta Nesse momento de extrema fragilidade em que Dulce se encontrava jaacute

que vinha de intensas sessotildees de tortura e de uma das ldquosolitaacuteriasrdquo do andar de baixo

Ana ajudou-a a cuidar de seus ferimentos e a tomar banho

Esse contato que teve com Ana apesar de curto jaacute que dias depois Ana foi

transferida para o DOI-CODISP parece ter sido muito importante para Dulce Afinal

apesar dela ter convivido com outras presas durante os quase trecircs meses em que ficou

188

no DOI-CODIRJ Ana foi a uacutenica companheira de cela que Dulce citou pelo nome

durante a entrevista

[] logo que eu cheguei fui para a solitaacuteria era torturada e ia para a solitaacuteria

era torturada e ia para a solitaacuteria quando eu comecei a passar muito mal

depois de um dia dois dias eles me levaram para outra cela maior onde

estava Ana Bursztyn que me deu banho Logo depois ela saiu da cela e eu

fiquei sozinha [] (Pandolfi 5 fev 2003)

A justificativa para a presenccedila de Ana ter ficado marcada na memoacuteria de Dulce

possivelmente eacute o fato de naquele momento aleacutem de estar extremamente machucada

Dulce natildeo ter ainda dividido cela com mais ningueacutem Estava ateacute entatildeo imersa em uma

rotina de solidatildeo e tortura que caracterizava a primeira fase da prisatildeo no DOI-

CODIRJ A ajuda e o conviacutevio com Ana portanto representaram para Dulce um

primeiro contato com algueacutem em quem podia confiar talvez uma primeira surpresa boa

no cotidiano que vinha vivendo no DOI-CODIRJ Jaacute para Ana que estava haacute mais

tempo presa Dulce provavelmente natildeo tinha sido a uacutenica a contar com sua ajuda logo

natildeo se destacava entre suas memoacuterias sobre o cotidiano ali vivido

Comparando as datas das prisotildees de Ana Dulce e Ceciacutelia percebe-se que apoacutes

Ana ter sido transferida Dulce ficou nessa cela grande chamada de ldquocoletivo das

mulheresrdquo enquanto Ceciacutelia entrava no DOI-CODIRJ Ceciacutelia passou pela fase das

ldquosolitaacuteriasrdquo e depois foi levada ateacute uma cela tambeacutem no segundo andar ao lado da de

Dulce onde esteve em companhia de uma moccedila Um tempo depois foi transferida para

o ldquocoletivo das mulheresrdquo onde estava Dulce com quem conviveu grande parte do

tempo

[] fiquei nessa cela [apontando para o desenho que havia feito mostra a

cela do segundo andar que ficava ao lado do ldquocoletivo das mulheresrdquo]

189

depois fui transferida para uma cela maior onde tinha vaacuterias presas poliacuteticas

inclusive uma pessoa que ficou grande parte do tempo comigo a Dulce

Grande parte do tempo eu fiquei com ela nessa cela era o lsquocoletivo das

mulheresrsquo [] (Coimbra 30 nov 2004)

Apesar de natildeo ser destacada entre as memoacuterias de Dulce Ceciacutelia durante sua

narrativa parece atribuir um papel importante ao conviacutevio que elas tiveram Afinal o

tempo que passou com Dulce no DOI-CODIRJ trouxe-lhe um dado a mais sobre as

aulas de tortura a novos oficiais que ali estavam ocorrendo jaacute que enquanto dividia cela

com Ceciacutelia Dulce serviu de cobaia para tais ensinamentos Assim como Ceciacutelia era

vice-presidente do GTNMRJ no momento de sua entrevista e por conseguinte tinha

como caracteriacutestica enfatizar em sua narrativa os detalhes sobre as torturas cometidas

pelos agentes do DOI-CODIRJ a fim de denunciaacute-las se justifica que Dulce tenha

papel marcante entre suas memoacuterias Esse destaque que a convivecircncia com Dulce

assumiu para Ceciacutelia pode ser conferido no trecho abaixo

[] a Dulce foi chamada para uma tortura de tarde [] a gente comeccedilou a

ouvir os gritos de Dulce e jaacute tinha passado todo o periacuteodo porque eles

torturam logo no iniacutecio para pegar informaccedilatildeo Aiacute eu digo ldquo- Soacute se

algueacutem caiu algueacutem foi preso e Dulce estaacute sendo acareadardquo Daqui a pouco

a Dulce volta para a cela com um soldado toda ferrada e aiacute ela ainda ia

voltar O cara disse ldquo- Oh eacute soacute para ela se lavarrdquo Entatildeo eu entrei no

chuveiro com ela e eu dizia ldquo- Dulce o que estaacute havendordquo E ela ldquo- Eu natildeo

estou entendendo o que estaacute acontecendo tem um bando de homem a minha

volta ningueacutem me faz pergunta nenhuma e estatildeo me torturando estatildeo me

botando no pau-de-arara estatildeo me fazendo afogamento estatildeo me dando

choque eleacutetrico eu natildeo estou entendendordquo E eu falei ldquo- Dulce isso eacute aula

para novos torturadoresrdquo Porque eu jaacute tinha lido num dos panfletos da UNE

sobre os meacutetodos de tortura que estavam sendo utilizados no DOI-CODI

aleacutem do jacareacute que a gente viu e que citavam tinha tambeacutem a aula a novos

torturadores ou seja eles pegavam um preso que tinha tido maior resistecircncia

e botavam laacute como cobaia para ensinar aos novos torturadores todas as

190

teacutecnicas E foi isso que fizeram com Dulce Aiacute eu falei ldquo- Dulce isso eacute aula

para novos torturadores eu li essa porrardquo [] (Coimbra 30 nov 2004)

A partir disso fica claro que para Ceciacutelia a constataccedilatildeo da existecircncia de aulas de

torturas no DOI-CODIRJ utilizando presos poliacuteticos teve uma destacada importacircncia

Logo o seu conviacutevio com Dulce durante o periacuteodo em que ela foi viacutetima desses

ensinamentos tambeacutem teve

Aleacutem disso Ceciacutelia durante sua entrevista perguntou quem eu jaacute havia

entrevistado Assim ao saber sobre a entrevista de Dulce sentiu-se motivada a falar

sobre as experiecircncias que com ela tinha compartilhado durante a prisatildeo no DOI-

CODIRJ Dessa forma alguns outros detalhes sobre essa convivecircncia contidos na

memoacuteria de Ceciacutelia foram naquele momento reconstruiacutedos e narrados

Um deles em especial contribui para a anaacutelise sobre o cotidiano do DOI-

CODIRJ Diz respeito agrave relaccedilatildeo travada com alguns carcereiros ou seja soldados do 1ordm

BPE que integravam as turmas auxiliares Afinal a partir do relato de Ceciacutelia Coimbra

percebe-se que ela e Dulce puderam ir ateacute as celas onde estavam os seus companheiros

que na eacutepoca tambeacutem se encontravam aprisionados no DOI-CODIRJ graccedilas agrave ajuda

de um dos responsaacuteveis pela vigia daquela noite

Teve uma noite tinha um soldadinho que a gente natildeo lembra o nome a

gente soacute se lembra dos lsquofilhos da putarsquo a gente devia lembrar dos caras que

foram legais com a gente Esse cara por exemplo ele soube que o marido de

Dulce estava preso o Alexandre e que o Novaes meu marido estava preso

Aiacute como ele ia ficar a noite toda de guarda ele mandou os soldadinhos

descerem e permitiu que Dulce fosse agrave cela de Alexandre e eu agrave de Novaes

Esse cara natildeo saiu da minha cabeccedila [] Esse cara a gente conversando com

ele ele soube que o Novaes estava na cela do lado e que o Alexandre estava

numa outra cela ali perto e ele deixou Dulce foi para a cela de Alexandre e

eu para a de Novaes Assim rapidinho neacute Demos a matildeo um beijo assim

[beija a proacutepria matildeo para demonstrar] O cara se expocircs mesmo neacute E tinha

191

outros que entregavam neacute Entregavam os bilhetes Era um vendaval de

bilhetes durante a madrugada Os caras se expunham mesmo entendeu

Tinha coisas bonitas ali apesar daquele clima de terror tinha pessoas assim

solidaacuterias E esses nomes a gente natildeo lembra neacute Devia lembrar []

(Coimbra 30 nov 2004)

Conforme analisado no primeiro capiacutetulo tais carcereiros que integravam as

turmas auxiliares do DOI-CODIRJ natildeo eram oficiais de informaccedilotildees treinados

especialmente para trabalhar junto agrave repressatildeo poliacutetica eram soldados que em 1970

serviam ao quartel do 1ordm BPE52

Logo eram passiacuteveis de sentir solidariedade jaacute que

muitos deles natildeo estavam servindo ao DOI-CODIRJ por algum tipo de vocaccedilatildeo

estavam ali somente para cumprir com o serviccedilo militar do quartel Afinal apesar de

haver entre eles alguns que se identificassem com a funccedilatildeo e ateacute almejassem tornar-se

agentes de informaccedilotildees os integrantes dessas turmas auxiliares natildeo trabalhavam nos

interrogatoacuterios dos presos e consequentemente natildeo estavam diretamente relacionados

com as torturas Portanto pode-se dizer que no DOI-COIRJ existia compaixatildeo entre

soldados e prisioneiros

A partir disso evidencia-se como o indiviacuteduo tem um papel primordial para essa

anaacutelise Afinal ao considerar sua memoacuteria como fonte para a histoacuteria torna-se possiacutevel

perceber aqui algumas de suas idiossincrasias ou seja peculiaridades comportamentais

capazes de interferir na percepccedilatildeo sobre o cotidiano vivido no DOI-CODIRJ de 1970

Afinal a ajuda que o soldado deu a Dulce e Ceciacutelia eacute um exemplo tiacutepico de como as

peculiaridades individuais satildeo capazes de atribuir contrastes e inconstacircncias agrave

interpretaccedilatildeo de uma realidade do passado Desse modo entende-se perfeitamente o

porquecirc de Marshall Sahlins afirmar em Histoacuteria e Cultura (2006) que os indiviacuteduos

52

Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar ver o Anexo II

192

representam um feixe uacutenico resultado de uma ligaccedilatildeo peculiar entre infinitos traccedilos

culturais e sociais que natildeo conseguem ser captados por anaacutelises generalizantes

Uma vez que a partir de accedilotildees como a desse soldado pode-se afirmar que o

cotidiano prisional do DOI-COIRJ de 1970 natildeo era formado unicamente pela repressatildeo

e pela violecircncia dos militares que ali representavam o Estado como uma generalizaccedilatildeo

ou uma reduccedilatildeo de varaacuteveis poderia fazer crer Havia tambeacutem compaixatildeo ateacute mesmo

entre lados aparentemente opostos

As formas de lidar com o tempo

Para sobreviver ao cotidiano do DOI-CODIRJ natildeo bastava ser resistente

fisicamente tambeacutem era necessaacuterio manter a mente em equiliacutebrio Essa preocupaccedilatildeo

acompanhava o prisioneiro em todas as fases da prisatildeo mas principalmente quando ele

estava sozinho Afinal a solidatildeo trazia a sensaccedilatildeo de que o tempo natildeo passava e em

meio ao violento cotidiano a que era submetido o preso do DOI-CODIRJ percebia

mais facilmente sinais que lhe causavam medo e desespero

Ceciacutelia Coimbra e Dulce Pandolfi ressaltam que mesmo quando estavam em

celas coletivas com a companhia de outras presas percebiam muitos desses sinais

Ficavam em pacircnico pois na maior parte das vezes significavam que seriam levadas

novamente agrave ldquosala roxardquo Quando sozinhas a sensaccedilatildeo de pavor por natildeo ser

compartilhada provavelmente era ainda mais intensa

[] a gente ficou tatildeo traumatizada com o barulho de chave que quando a

gente ouvia a gente dizia ldquo- Eles vecircm para caacute vecircm pegar alguma de noacutesrdquo

Era uma loucura era um clima de terror [] (Coimbra 30 nov 2004)

[] toda vez que um soldado abria a cela trazia o capuz Era ateacute uma cena

muito dramaacutetica porque todo mundo comeccedilava a tremer de medo porque se

193

sabia que se o capuz estava ali era porque algueacutem ia descer algueacutem ia

circular e descer normalmente significava ser torturada Entatildeo era assim

uma coisa bem dramaacutetica bem traumaacutetica tambeacutem porque quando abriam a

cela e retiravam o capuz a gente pensava ldquo- pronto algueacutem vai agora pro

caceterdquo (Pandolfi 5 fev 2003)

Para manterem suas mentes satildes os prisioneiros do DOI-CODIRJ quando

sozinhos utilizavam alguns artifiacutecios Dulce em sua narrativa relata ter ficado algum

tempo sozinha em uma cela coletiva onde se ocupava em frear a impressatildeo de

vagarosidade do tempo e os maus pensamentos de diversas maneiras tais como

[] eu lembro de duas coisas que eu fazia como exerciacutecio para passar o

tempo Os colchotildees que eram horriacuteveis eram colchotildees de crina eu tirava

aquelas palhas de dentro do colchatildeo e ficava fazendo tranccedilas fazia vaacuterias

tranccedilas e contava uma tranccedila duas tranccedilas e ia montando uma na outra

Fazia filas de tranccedilas depois eu desmanchava tudo eu lembro que eu ateacute

tinha medo ldquo- Se esses caras descobrirem isso vatildeo mandar costurar o

colchatildeordquo Depois eu tirava tudo e guardava de novo laacute dentro do colchatildeo No

dia seguinte eu comeccedilava outra vez Eu dizia ldquo- eu natildeo posso enlouquecer

entatildeo eu tenho que ocupar a minha cabeccedila com alguma coisardquo Porque eu

natildeo tinha nada nada nada para fazer Outra atividade que eu fazia tambeacutem

Como [] o chatildeo da cela era como se fosse de umas lajotas de uns azulejos

sei laacute o quecirc eu contava aqueles quadrados todos multiplicava fazia

milhares de contas Fazia um jogo no chatildeo do quarto contava para frente

para traacutes multiplicava e naquilo ali eu ficava horas naquelas contas

matemaacuteticas naquelas multiplicaccedilotildees naquelas somas naqueles ladrilhos

[] (Pandolfi 5 fev 2003)

A execuccedilatildeo de tais meacutetodos certamente contribuiacutea para aumentar a possibilidade

de sobrevivecircncia e sanidade do prisioneiro do DOI-CODIRJ Poreacutem o preso dependia

de sua capacidade e habilidade para usar recursos que o beneficiassem e que ajudassem

a se opor aos mecanismos desetruturadores e despersonalizadores sobre ele empregados

Nessa situaccedilatildeo assim como Elizabeth Ferreira na obra Mulheres Militacircncia e Memoacuteria

194

(1996 65) acredita-se que o sentimento de auto-estima gerado nos presos poliacuteticos pelo

seu ideal poliacutetico e social eacute um elemento crucial de resistecircncia Atraveacutes desse

sentimento normalmente tais presos costumam sustentar a esperanccedila na mudanccedila o

que lhes gera forccedila e ateacute mesmo uma criatividade para suportar o sofrimento maior que

a de presos comuns

As roupas e as refeiccedilotildees

Como o DOI-CODIRJ de 1970 natildeo era um presiacutedio havia acabado de ser

montado dentro de um preacutedio do quartel do 1ordm BPE para abrigar temporariamente os

presos poliacuteticos que pudessem contribuir com suas investigaccedilotildees laacute natildeo existiam

refeitoacuterios visitas banho de sol ou mesmo uniformes Aleacutem da falta de uma estrutura

que propiciasse uma rotina normal de presiacutedio esse diferencial era importante para o

procedimento investigativo do DOI-CODIRJ Afinal havia ali a necessidade do preso

ficar incomunicaacutevel jaacute que quanto maior seu isolamento maior seria sua fragilidade e

esta se relacionava diretamente com sua capacidade em conceder informaccedilotildees No mais

esse isolamento tambeacutem estava relacionado com a preocupaccedilatildeo em proteger a

instituiccedilatildeo de acusaccedilotildees de maus tratos uma vez que caso os ferimentos dos presos

fossem notados poderiam ser vinculados a torturas e consequentemente denunciados

Dessa forma os prisioneiros do DOI-CODIRJ natildeo podiam nem mesmo tomar sol pois

poderiam ser vistos por pessoas dos preacutedios vizinhos e funcionaacuterios da faacutebrica da

Brahma localizada atraacutes do paacutetio do 1ordm BPE

As refeiccedilotildees eram portanto servidas nas proacuteprias celas pelos soldados da turma

auxiliar de plantatildeo Para colocarem cada uma das quatro refeiccedilotildees a que cada preso

tinha direito esses abriam a cela de manhatilde cedo no iniacutecio e no fim da tarde e agrave noite

Segundo a narrativa dos presos no cafeacute da manhatilde costumavam trazer um patildeo com

195

pasta de amendoim e um cafeacute com leite na caneca para cada preso No almoccedilo uma

bandeja de alumiacutenio com um prato que normalmente continha repolho arroz angu e

algumas vezes um pedaccedilo de carne Durante a tarde deixavam um bule de mate com

um pedaccedilo de patildeo na cela e no fim do dia repetiam para o jantar a mesma comida do

almoccedilo

As comidas servidas em 1970 aos prisioneiros do DOI-CODIRJ satildeo mais alguns

exemplos de detalhes do cotidiano que soacute podem ser abordados por meio da memoacuteria de

quem viveu aquele passado Diante disso eacute interessante perceber aspectos que

justificam o fato dessas refeiccedilotildees terem marcado as memoacuterias dos prisioneiros a ponto

de nelas sobreviverem por cerca de trecircs deacutecadas

[] a gente ateacute brincava que eles deviam ter uma plantaccedilatildeo de repolho ali

porque era repolho todo dia repolho cru repolho assado mas na hora do

almoccedilo normalmente vinha nessa bandeja de alumiacutenio e era repolho um

pouco de arroz feijatildeo e agraves vezes um pedaccedilo de carne era uma comida bem

horrorosa [] (Pandolfi 5 fev 2003)

[] A comida era peacutessima era aquela comida do rancho parecia uma

lavagem de porco uma coisa horrorosa [] Eu fiquei com a pele toda

lsquofodidarsquo porque a uacutenica coisa que eu conseguia comer era o angu []

(Coimbra 30 nov 2004)

Portanto o conteuacutedo das refeiccedilotildees do DOI-CODIRJ aleacutem de ter ficado marcado

na memoacuteria dos prisioneiros pelo aspecto sensorial ou seja pelo gosto e apresentaccedilatildeo

ruins permaneceu tambeacutem pela relaccedilatildeo com a vaidade feminina e pelo fato de remeter a

momentos que foram compartilhados O angu marcou Ceciacutelia por ter feito mal a sua

pele jaacute que como eacute uma comida gordurosa lhe causou espinhas abalando ainda mais a

sua aparecircncia fiacutesica jaacute degrada por aquele cotidiano prisional O repolho por sua vez

deixou marcas na memoacuteria de Dulce por ser motivo de deboche entre as presas pois sua

196

presenccedila recorrente nos pratos ocasionava uma espeacutecie de piada entre elas e trazia um

pouco de descontraccedilatildeo

Outro aspecto do cotidiano do DOI-CODIRJ de 1970 tambeacutem alcanccedilado por

meio dos detalhes trazidos pelas memoacuterias de ex-prisioneiros satildeo as roupas Como natildeo

existiam uniformes institucionais na maior parte do tempo as roupas eram as mesmas

que eles vestiam no dia em que entraram no 1ordm BPE Dessa forma quando jaacute estavam

em celas coletivas os presos muitas vezes lavavam-nas e entatildeo voltavam a vestiacute-las

Depois de algum tempo afinal as famiacutelias acabavam descobrindo onde eles estavam

presos e algumas roupas eram deixadas no Palaacutecio Duque de Caxias antigo preacutedio do

Ministeacuterio do Exeacutercito no Centro da cidade do Rio de Janeiro para serem enviadas e

entregues no 1ordm BPE aos prisioneiros

No entanto ateacute isso chegar a acontecer demorava pois fazia parte da seguranccedila

institucional tentar manter num primeiro momento sigilo sobre seus presos Assim

Ceciacutelia presa em agosto de 1970 lembra que por ter sentido muito frio durante o seu

primeiro mecircs no DOI-CODIRJ ela e suas companheiras de cela costumavam

improvisar formas de protegerem os peacutes

[] a minha matildee ia ateacute o Ministeacuterio do Exeacutercito e ela dizia ldquo- Minha filha

estaacute laacute na PErdquo Aiacute quase um mecircs depois a minha matildee conseguiu mandar

roupa para mim Ateacute entatildeo minha filha era um loucura neacute A gente fedia

sabe A gente tomava banho de chuveiro e botava a mesma roupa a gente

lavava a roupa e era mecircs de agosto e ainda estava frio Era um frio que a

gente sentia que a gente enrolava jornal nos peacutes porque natildeo tinha nenhuma

coisa nada Era no colchatildeo puro que a gente dormia (Coimbra 30 nov

2004)

Quando as famiacutelias conseguiam descobrir onde estavam enviavam aleacutem de

roupas alguns mantimentos como frutas por exemplo Essas vinham muitas vezes

197

embrulhadas em jornais velhos que serviam para alguns como proteccedilatildeo para o corpo e

para outros como distraccedilatildeo conforme pode-se constatar na narrativa de Antocircnio ao

lembrar que ele e seus companheiros de cela passavam o tempo lendo as notiacutecias velhas

contidas em tais jornais

Eu me lembro tambeacutem que quando alguns presos recebiam frutas essas

coisas embrulhadas em papel jornal jornal velho a gente lia o jornal e

ficaacutevamos um bom tempo lendo aqueles jornais com datas de um mecircs trecircs

meses atraacutes mas era sempre bom para a cabeccedila da gente ficar lendo as

notiacutecias mesmo velhas [] (Carvalho 8 fev 2003)

Como jaacute aqui ressaltado a cumplicidade que existia entre os presos do DOI-

CODIRJ ajudava a construir mecanismos que os protegiam das mais diversas

dificuldades Segundo Dulce para amenizar a escassez de roupa a que eram submetidas

num primeiro momento dentro do DOI-CODIRJ as presas do ldquocoletivo das mulheresrdquo

estabeleceram uma espeacutecie de acordo Atraveacutes dele ficou determinado que quem de laacute

saiacutesse deixaria algumas peccedilas para quem ainda ficasse tinha uma espeacutecie de rotina

entre as mulheres que quem saiacutea deixava alguma roupa laacute (Pandolfi 5 fev 2003)

Assim atraveacutes desse tipo de cumplicidade elas ajudavam a diminuir o sofrimento

diaacuterio umas das outras uma vez que as peccedilas deixadas na cela possibilitavam que as

presas conseguissem manter a higiene e amenizar a sensaccedilatildeo do frio

Percebe-se portanto que de fato o dia-a-dia do DOI-CODIRJ de 1970 era

atiacutepico pois este natildeo era um presiacutedio e sim um oacutergatildeo de repressatildeo poliacutetica Assim uma

das poucas semelhanccedilas com a rotina de um presiacutedio comum era basicamente a privaccedilatildeo

da liberdade Poreacutem apesar de ofuscado pela tortura e pelo pavor ali existia um

cotidiano que abarcava outros aspectos muito interessantes Afinal estes satildeo capazes de

198

muito esclarecer sobre o funcionamento praacutetico desse importante oacutergatildeo de repressatildeo da

ditadura militar brasileira e tambeacutem sobre diversos tipos de reaccedilotildees e relaccedilotildees humanas

do passado e do presente

199

Conclusatildeo

Quando o muro separa uma ponte une

Se a vinganccedila encara o remorso pune

Vocecirc vem me agarra algueacutem vem me solta

Vocecirc vai na marra ela um dia volta

E se a forccedila eacute tua ela um dia eacute nossa

Olha o muro olha a ponte

Olha o dia de ontem chegando

Que medo vocecirc tem de noacutes

Olha aiacute

Vocecirc corta um verso eu escrevo outro

Vocecirc me prende vivo eu escapo morto

De repente olha eu de novo

Perturbando a paz exigindo o troco

Vamos por aiacute eu e meu cachorro

Olha um verso olha o outro

Olha o velho olha o moccedilo chegando

Que medo vocecirc tem de noacutes

Olha aiacute

O muro caiu olha a ponte

Da liberdade guardiatilde

O braccedilo do Cristo horizonte

Abraccedila o dia de amanhatilde

Olha aiacute

Mauriacutecio Tapajoacutes amp Paulo Ceacutesar Pinheiro

(Pesadelo 1972)

200

Diante do exposto ao longo desta dissertaccedilatildeo conclui-se que a formulaccedilatildeo da

Doutrina de Seguranccedila Nacional feita pela ESG em colaboraccedilatildeo com o IPES e o IBAD

cerca de vinte anos antes do surgimento dos DOI-CODI tinha por base uma teoria de

guerra que nortearia a atuaccedilatildeo repressora desses oacutergatildeos Essa teoria interpretava os

movimentos de oposiccedilatildeo que vinham crescendo desde o iniacutecio dos anos 1960 como uma

espeacutecie de guerra revolucionaacuteria Todos os cidadatildeos brasileiros passavam entatildeo a ser

encarados como suspeitos e foi esta percepccedilatildeo que estimulou o governo militar a

planejar a Seguranccedila Nacional e por conseguinte criar um centralizado e articulado

aparato de informaccedilotildees internas junto a um eficiente oacutergatildeo repressivo de controle

armado os DOI-CODI

Aleacutem disso constatou-se que a consolidaccedilatildeo dos DOI-CODI por todas as Regiotildees

Militares do paiacutes substanciou-se tambeacutem atraveacutes da alta legalidade autoritaacuteria e das

medidas tomadas pelo governo para conter as cizacircnias militares Afinal o governo

ditatorial brasileiro na medida em que arbitrou leis a fim de legalizar o seu poder

poliacutetico e suprimir direitos antes garantidos agrave populaccedilatildeo construiu uma sustentaccedilatildeo

juriacutedica necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um aparato de seguranccedila cada vez mais forte e

centralizado Grande parte dessas leis autoritaacuterias foi usada como artifiacutecio para acalmar

os acircnimos na caserna responsaacuteveis por importantes conflitos internos que ameaccedilavam a

uniatildeo militar as chamadas cizacircnias militares As leis arbitraacuterias serviam entatildeo tanto

para conter a oposiccedilatildeo poliacutetica quanto para ceder agraves reivindicaccedilotildees por poder vindas da

caserna Completava-se dessa forma um cenaacuterio legal capaz de suportar um organismo

de repressatildeo onde os militares de meacutedias e baixas patentes trabalhariam com autonomia

uma das bases para a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI

Diante disso viu-se tambeacutem que natildeo foi agrave toa que a estrutura e o funcionamento

do SISSEGIN e dos seus oacutergatildeos foram instituiacutedos e regulamentados por meio de

201

decretos sigilosos o que incluiu a experiecircncia da Oban criada em Satildeo Paulo em

meados de 1969 e no ano seguinte a institucionalizaccedilatildeo dos DOI-CODI por todo o

paiacutes Afinal a justificativa para esse sigilo estava justamente na maior mobilidade e

autonomia de accedilatildeo que traria para a atuaccedilatildeo repressora desses organismos pois em

segredo podiam agir sem grandes limitaccedilotildees natildeo esbarrando em questotildees externas agraves

decisotildees militares tal como o respeito aos direitos humanos

Os DOI-CODI destacavam-se principalmente pela independecircncia financeira e pela

centralizaccedilatildeo hieraacuterquica que os constituiacuteam essenciais para a alta eficiecircncia de suas

investigaccedilotildees e accedilotildees Tais atributos evitavam que suas operaccedilotildees fossem suscetiacuteveis agrave

duplicidade de tarefas a competiccedilotildees e a conflitos de interesses maximizando os seus

resultados Eram entatildeo organismos de excelecircncia a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo

Entretanto essa sofisticaccedilatildeo tambeacutem vinha do distanciamento mantido entre os

militares do governo e os que agiam nesses oacutergatildeos jaacute que a ditadura ao mesmo tempo

em que sancionava a tortura nessa instituiccedilatildeo estrategicamente negava a sua existecircncia

perante a sociedade isentando governo do paiacutes de qualquer ligaccedilatildeo com ela Em

complemento a essa ideia o sistema funcional dos DOI responsaacuteveis por accedilotildees que

englobavam as prisotildees e os interrogatoacuterios dos presos poliacuteticos apresentava-se

complexo e informal Dessa forma as brechas para que a aparente falta de controle

fosse exercida eram amplas a fim de que meacutetodos violentos ilegais tivessem ali uma

legitimidade excepcional Justifica-se assim como a versatildeo oficial dos militares ainda

possa ser a de que a tortura jamais resultou de qualquer ordem ou orientaccedilatildeo superior

Evidenciou-se poreacutem a incoerecircncia desta versatildeo jaacute que ficou claro que em todos

os organismos militares nos DOI inclusive existiam uma forte hierarquia a ser

cumprida Mesmo com a estrutura complexa ali existente qualquer accedilatildeo deveria ser

remetida a um superior logo a questatildeo da responsabilidade sempre poderia ser

202

resgatada Percebeu-se que em geral apesar de velada a tortura era do conhecimento

de toda a hierarquia militar inclusive dos generais agrave frente do governo

Durante todo o trabalho a intervenccedilatildeo do presente (2002-2004) sobre as

memoacuterias do passado (1970) foi conferida nas narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos

entrevistados Percebeu-se que o contexto poliacutetico e social vivido no presente e o

momento da vida pessoal de cada um tiveram uma contribuiccedilatildeo importante na forma

como os ex-presos construiacuteram suas memoacuterias Aleacutem disso a forma como a rede de

entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que as entrevistas foram realizadas

tambeacutem concorreram para essa intervenccedilatildeo no relato que fizeram sobre o passado

Enfim um dos principais elementos para a anaacutelise criacutetica exercida aqui sobre essas

memoacuterias foi sem duacutevida o reconhecimento dessa influecircncia do presente sobre o

passado

A trajetoacuteria prisional dos entrevistados os grupos oposicionistas que integravam

as accedilotildees de que participaram o momento da prisatildeo o tempo que permaneceram presos

e as funccedilotildees que exerciam no presente foram aspectos aqui ressaltados por mostrarem

um pouco da histoacuteria de vida e por meio desta a personalidade ou seja as

idiossincrasias de cada um deles Dessa forma foi possiacutevel aproximar-se do aspecto

individual de suas memoacuterias uacutenico a cada ser entendendo um pouco mais as bases de

suas construccedilotildees

Tornou-se assim viaacutevel analisar essas memoacuterias e colocaacute-las em diaacutelogo com o

conteuacutedo levantado a partir da anaacutelise historiograacutefica e da monografia sobre o DOI

escrita pelo coronel Pereira em 1978 possibilitando uma caracterizaccedilatildeo do cotidiano

prisional vivido pelos presos do DOI-CODIRJ em 1970 O trabalho organizacional dos

DOI-CODIRJ foi visto portanto de forma praacutetica As funccedilotildees de cada setor e seccedilatildeo

teorizadas principalmente por meio da monografia do coronel foram analisadas a partir

203

do acircngulo dos prisioneiros o que viabilizou a percepccedilatildeo de detalhes que constituiacuteam a

rotina daquela instituiccedilatildeo

Ficou claro que a violecircncia era a principal forma de extraccedilatildeo de informaccedilotildees e o

elemento-chave para a eficiecircncia conferida pela instituiccedilatildeo com relaccedilatildeo ao combate aos

opositores poliacuteticos da eacutepoca A tortura e o medo dela ocupavam um espaccedilo

significativo no cotidiano ali impetrado aos prisioneiros uma vez que eles estavam no

DOI-CODIRJ para serem a ela submetidos de forma a fornecerem mais facilmente

informaccedilotildees que levassem os agentes dos DOI a outros suspeitos Poreacutem verificou-se

que a tortura natildeo era a uacutenica face do cotidiano do DOI-CODIRJ

Afinal este trabalho mostrou outros aspectos que constituiacuteam a rotina dos presos

dentro desse oacutergatildeo que ateacute entatildeo natildeo havia sido alcanccedilada pela historiografia Percebeu-

se aqui outros elementos que apesar de pouco destacados pelas memoacuterias dos

entrevistados muito tecircm a dizer sobre aquele cotidiano as fases prisionais as refeiccedilotildees

as roupas as formas de resistecircncia o conviacutevio ente prisioneiros e ateacute mesmo algumas

accedilotildees solidaacuterias efetuadas por soldados em benefiacutecio dos presos poliacuteticos

Constatou-se como a memoacuteria pode enriquecer a percepccedilatildeo que se tem sobre um

passado revelando faces natildeo evidenciadas em documentos oficiais e tambeacutem como eacute

importante para levar ateacute o presente um passado doloroso mas que deve ser encarado a

fim de ser perdoado e ultrapassado Uma movimentaccedilatildeo nesse sentido vem acontecendo

no Brasil com as Caravanas da Anistia e principalmente com a recente aprovaccedilatildeo da

Comissatildeo da Verdade conforme pontuado anteriormente

A atualidade dessas iniciativas inclusive estimulou esta pesquisa impulsionada

pela curiosidade sobre as memoacuterias do passado vivido nos ldquoporotildees da ditadurardquo Logo

o tema da presente dissertaccedilatildeo foi pautado pela crenccedila na necessidade de uma ampla

revelaccedilatildeo sobre o que ocorreu na eacutepoca de forma a contribuir para que a reconciliaccedilatildeo

204

do presente com o passado seja um dia alcanccedilada uma vez que defende-se aqui tal

como Paul Ricoeur (2008 507) que eacute no caminho da criacutetica histoacuterica que a memoacuteria

encontra o seu sentido de justiccedila Dessa forma tem-se o cidadatildeo como destinataacuterio do

texto histoacuterico cabendo a ele tornar a discussatildeo puacuteblica fazendo um balanccedilo entre

histoacuteria e memoacuteria a fim de que se perceba o sofrimento do outro e daqueles que

continuam a sofrer pelas matildeos do mesmo mal repressor do passado A partir disso a

reconciliaccedilatildeo entre o passado e presente se tornaraacute efetiva contribuindo para que no

futuro a democracia esteja plenamente consolidada

205

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CARVALHO Antocircnio Leite de Entrevista concedida agrave autora em 8 de fevereiro

206

de 2003

COIMBRA Ceciacutelia Maria Bouccedilas Entrevista concedida agrave autora em 30 de

novembro de 2004

FREIRE Fernando Palha Entrevista concedida agrave autora em 28 de junho de

2004

PANDOLFI Dulce Chaves Entrevista concedida agrave autora em 5 de fevereiro de

2003

PRIGOL Maacuterio [Padre] Entrevista concedida agrave autora em 28 de setembro de

2004

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BETTAMIO Rafaella Foto Nordm1 Dez 2004 1 aacutelbum (4 fotos) color

10X15cm

BETTAMIO Rafaella Foto Nordm2 Dez 2004 1 aacutelbum (4 fotos) color

10X15cm

BETTAMIO Rafaella Foto Nordm3 Dez 2004 1 aacutelbum (4 fotos) color

10X15cm

BETTAMIO Rafaella Foto Nordm4 Dez 2004 1 aacutelbum (4 fotos) color

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crise O GLOBO Rio de Janeiro 19 de outubro de 2004

CHICARINO Carlos Mergulhos na Histoacuteria EacutePOCA Rio de Janeiro 27 de

novembro de 2000 104

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setembro de 2004

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GLOBO Rio de Janeiro 23 de novembro de 2002

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poliacuteticas no periacuteodo de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 e daacute outras

providecircncias Brasiacutelia Ministeacuterio da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em

13 nov 2011] Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9140htm

BRASIL Lei Nordm10559 de 13 de novembro de 2002 Regulamenta o art 8 ordm do Ato das

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215

Anexo I - Glossaacuterio de Siglas

ACO ndash Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria

ADI ndash Aacutereas de Defesa Interna

ALN ndash Accedilatildeo Libertadora Nacional

APERJ ndash Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio de Janeiro

1degBPE ndash 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito

Condi ndash Conselho de Defesa Interna

CENIMAR ndash Centro de Informaccedilotildees da Marinha

CEP ndash Centro de Estudos de Pessoal

CGI ndash Comissatildeo Geral de Investigaccedilotildees

CIA ndash Central Intelligence Agency

CIE ndash Centro de Informaccedilotildees do Exeacutercito

CISA ndash Centro de Informaccedilotildees de Seguranccedila da Aeronaacuteutica

CNBB ndash Conferecircncia Nacional dos Bispos do Brasil

CONDI ndash Conselhos de Defesa Interna

CPDOC ndash Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil

CSN ndash Conselho de Seguranccedila Nacional

DCE ndash Diretoacuterio Central dos Estudantes

DEOPS ndash Departamento de Ordem e Poliacutetica Social de Satildeo Paulo

DGPC ndash Departamento Geral de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro

DI-GB ndash Dissidecircncia Comunista da Guanabara

DOI-CODI ndash Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees ndash Centro de Operaccedilotildees de

Defesa Interna

216

DOPS ndash Departamento de Ordem Poliacutetica e Social

DSN ndash Doutrina de Seguranccedila Nacional

ECEME ndash Escola de Comando e Estado Maior do Exeacutercito

ESG ndash Escola Superior de Guerra

EMFA ndash Estado Maior das Forccedilas Armadas

EsNI ndash Escola Nacional de Informaccedilotildees

Fafich ndash Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas de Belo Horizonte

FUEC ndash Frente Unida dos Estudantes do Calabouccedilo

FGV ndash Fundaccedilatildeo Getuacutelio Vargas

GTNMRJ ndash Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro

HCE ndash Hospital Central do Exeacutercito

IBRADES ndash Instituto Brasileiro de Estudos Sociais

IFCS ndash Instituto de Filosofia e Ciecircncias Sociais

IHTP ndash Instituto de Histoacuteria do Tempo Presente

IPCM ndash Instituto Penal Cacircndido Mendes

IPM ndash Inqueacuterito Policial Militar

JOC ndash Juventude Operaacuteria Catoacutelica

LOC ndash Liga Operaacuteria Catoacutelica

MDB ndash Movimento Democraacutetico Brasileiro

MR-8 ndash Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro

MTC ndash Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos

N-SISA ndash Nuacutecleo do Serviccedilo de Informaccedilotildees de Seguranccedila da Aeronaacuteutica

Oban ndash Operaccedilatildeo Bandeirantes

OLAS ndash Organizaccedilatildeo Latino-Americana de Solidariedade

217

PCB ndash Partido Comunista Brasileiro

PC do B ndash Partido Comunista do Brasil

PCBR ndash Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio

PT ndash Partido dos Trabalhadores

SADI - Sub-Aacutereas de Defesa Interna

SFICI ndash Serviccedilo Federal de Informaccedilotildees e Contra-Informaccedilotildees

SIM ndash Serviccedilo de Informaccedilotildees da Marinha

SNI ndash Serviccedilo Nacional de Informaccedilotildees

SISNI ndash Sistema Nacional de Informaccedilotildees

SISSEGIN ndash Sistema de Seguranccedila Interna

UFF ndash Universidade Federal Fluminense

UFRJ ndash Universidade Federal do Rio de Janeiro

UNE - Uniatildeo Nacional dos Estudantes

UNIRIO ndash Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

ZDI ndash Zona de Defesa Interna

218

Anexo II - A Hierarquia do Exeacutercito Brasileiro53

Ciacuterculos

Hieraacuterquicos54

Hierarquizaccedilatildeo Patentes do Exeacutercito

Ciacuterculo de oficiais

Ciacuterculo de oficiais-generais

Marechal

General de Exeacutercito

General de divisatildeo

General de brigada

Ciacuterculo de oficiais

superiores Coronel

Tenente-coronel

Major

Ciacuterculo de oficiais intermediaacuterios Capitatildeo

Ciacuterculo de oficiais

subalternos Primeiro- tenente

Segundo- tenente

Ciacuterculo de praccedilas

Ciacuterculo de suboficiais subtenentes e

sargentos

Subtenente

Primeiro-sargento

Segundo-sargento

Terceiro-sargento

Ciacuterculo de cabos e soldados

Cabo e taifeiro-mor

Soldado e taifeiro-de

primeira classe

Soldado-recruta e taifeiro-

de-segunda-classe

Ciacuterculo de praccedilas

especiais

Frequentam o ciacuterculo de oficiais

subalternos Aspirante-a-oficial

Excepcionalmente ou em reuniotildees sociais

tecircm acesso ao ciacuterculo de oficiais

Cadete (aluno da Academia

Militar)

Aluno da Escola

Preparatoacuteria de Cadetes do

Exeacutercito

Aluno de Oacutergatildeo de

Formaccedilatildeo da Reserva

Excepcionalmente ou em reuniotildees sociais

tecircm acesso ao ciacuterculo de suboficiais

subtenentes e sargentos

Aluno da Escola ou Centro

de Formaccedilatildeo de Sargentos

Frequentam o ciacuterculo de cabos e soldados Aluno de Oacutergatildeo de

Formaccedilatildeo de Praccedilas da

Reserva

53

LEIRNER 1997 74-75 54

Os ldquoCiacuterculos hieraacuterquicosrdquo satildeo o acircmbito de convivecircncia entre os militares da mesma categoria Esses

ldquociacuterculosrdquo satildeo incorporados a fundo na conduta militar de forma que a divisatildeo acima exposta eacute seguida

no ambiente de trabalho salas refeitoacuterios e banheiros da instituiccedilatildeo conforme demonstra Piero de

Camargo Leirner em estudo antropoloacutegico sobre a instituiccedilatildeo militar Meia Volta Volver (1997 74-76)

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