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FUNDACcedilAtildeO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTACcedilAtildeO DE
HISTOacuteRIA CONTEMPORAcircNEA DO BRASIL ndash CPDOC
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM HISTOacuteRIA POLIacuteTICA E BENS
CULTURAIS
MESTRADO ACADEcircMICO EM HISTOacuteRIA POLIacuteTICA E BENS CULTURAIS
O DOI-CODI carioca
Memoacuteria e cotidiano no Castelo do Terror
APRESENTADA POR
RAFAELLA LUacuteCIA DE AZEVEDO FERREIRA BETTAMIO
ORIENTADOR(A) ACADEcircMICO(A) PROFordf DRordf MARLY SILVA DA MOTTA
Rio de Janeiro Marccedilo de 2012
2
FUNDACcedilAtildeO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTACcedilAtildeO DE
HISTOacuteRIA CONTEMPORAcircNEA DO BRASIL ndash CPDOC
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM HISTOacuteRIA POLIacuteTICA E BENS
CULTURAIS
MESTRADO ACADEcircMICO EM HISTOacuteRIA POLIacuteTICA E BENS CULTURAIS
ORIENTADOR(A) ACADEcircMICO(A) PROFordf DRordf MARLY SILVA DA MOTTA
RAFAELLA LUacuteCIA DE AZEVEDO FERREIRA BETTAMIO
O DOI-CODI carioca
Memoacuteria e cotidiano no Castelo do Terror
Dissertaccedilatildeo de Mestrado Acadecircmico em Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais apresentada
ao Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil ndash CPDOC
como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do grau de Mestre em Histoacuteria
Rio de Janeiro Marccedilo de 2012
3
Ficha catalograacutefica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique SimonsenFGV
Bettamio Rafaella Luacutecia de Azevedo Ferreira O DOI-CODI carioca memoacuteria e cotidiano no Castelo do Terror
Rafaella Luacutecia de Azevedo Ferreira Bettamio ndash 2012
218 f Dissertaccedilatildeo (mestrado) ndash Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de
Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais
Orientador Marly Silva da Motta Inclui bibliografia
1 Prisioneiros poliacuteticos 2 Brasil - Histoacuteria - 1964-1985 I Motta Marly Silva da II Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de
Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais III Tiacutetulo
CDD ndash 981063
4
5
Agradecimentos
Agradeccedilo primeiramente agrave minha orientadora Profordf Drordf Marly Silva da Motta
por sua orientaccedilatildeo zelosa pelo apoio e pelos inuacutemeros ensinamentos Com sua ajuda
consegui ultrapassar muitas dificuldades e penetrar com seguranccedila no universo dessa
pesquisa
Ao Professor Ameacuterico Freire de quem tive o prazer de ser aluna durante o
mestrado agradeccedilo pelas aulas pela bibliografia sobre o periacuteodo militar que muito me
ajudou na elaboraccedilatildeo dessa anaacutelise pelas criacuteticas construtivas elaboradas durante o
exame de qualificaccedilatildeo e pela participaccedilatildeo na banca examinadora dessa dissertaccedilatildeo
Ao Professor Luiacutes Reznik agradeccedilo por ter integrado a banca do exame de
qualificaccedilatildeo fazer parte da presente banca examinadora e tambeacutem pelas valiosas
sugestotildees indicaccedilotildees bibliograacuteficas e comentaacuterios incorporados ao estudo e agrave redaccedilatildeo
final desse trabalho
Agrave Professora Dulce Pandolfi agradeccedilo por sua generosidade em aceitar ser de
certa forma sujeito e objeto desta pesquisa desde seu nascimento durante a minha
graduaccedilatildeo em Histoacuteria pela UNIRIO quando permitiu que eu lhe entrevistasse e que
seu depoimento servisse de fonte para minha monografia de fim de curso cuja banca
examinadora contou com sua participaccedilatildeo Tambeacutem lhe agradeccedilo por durante o
mestrado continuar acompanhando de perto esta pesquisa participando da banca do
exame de qualificaccedilatildeo quando trouxe muitas consideraccedilotildees e sugestotildees produtivas a
este trabalho e da banca examinadora final desta dissertaccedilatildeo
Agrave Professora Icleacuteia Thiesen agradeccedilo pela credibilidade e incentivo que vem
injetando na minha face de pesquisadora desde o tempo em que fui sua aluna ainda
durante a graduaccedilatildeo
Aos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados Antocircnio Leite de Carvalho Dulce
Pandolfi Fernando Palha Freire Padre Maacuterio Prigol Ana Batista e Ceciacutelia Coimbra
agradeccedilo por me confiarem suas narrativas e me deixarem penetrar em parte de suas
memoacuterias
6
Agrave Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional onde muito me orgulho de trabalhar agradeccedilo
por incentivar a minha qualificaccedilatildeo enquanto pesquisadora permitindo que eu cursasse
o mestrado e me licenciasse nos uacuteltimos meses para me dedicar a esta dissertaccedilatildeo de
corpo e alma
Ao Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNMRJ) agradeccedilo por me
autorizar a consultar o arquivo da instituiccedilatildeo e por me receber afetuosamente durante
diversas reuniotildees onde pude conhecer alguns de seus integrantes tais como Ana Batista
e Ceciacutelia Coimbra a quem tive o prazer de entrevistar
Aos amigos Joatildeo Cerineu e Alejandra Estevez agradeccedilo a contribuiccedilatildeo
fundamental que efetuaram sobre este trabalho sendo os responsaacuteveis por me apresentar
aos ex-prisioneiros poliacuteticos Antocircnio e Padre Maacuterio
Agradeccedilo aos meus irmatildeos Rodrigo Renata e Melissa ao Rodrigo por despertar
em mim a vontade e a coragem de seguir a profissatildeo de historiadora agrave Renata por me
apoiar e ouvir sobre minha pesquisa atentamente mesmo quando eu repetia as mesmas
histoacuterias diversas vezes e principalmente agrave Melissa que muito me ajudou na
composiccedilatildeo do ldquoabstractrdquo desse trabalho com o seu inglecircs simplesmente perfeito
Aos amigos queridos que a Biblioteca Nacional me deu de presente
companheiros de jornada que me fazem melhorar a cada dia como profissional e que me
acompanharam durante todo o processo do mestrado me apoiando no que foi preciso e
me ajudando a superar os obstaacuteculos do dia-a-dia Agradeccedilo especialmente agrave Lia Jordatildeo
pelo companheirismo diaacuterio ao Francisco Madureira pelo auxiacutelio na ediccedilatildeo final dessa
dissertaccedilatildeo e agrave Regina Santiago pela amizade e disposiccedilatildeo sem igual em ler
minuciosamente este trabalho apontando sugestotildees que indiscutivelmente tornaram o
texto mais claro
Agraves amigas Manuela Joana e Letiacutecia agradeccedilo por estarem sempre comigo nas
alegrias e nas tristezas compartilhando conquistas e derrotas desde os tempos em que
juntas frequentaacutevamos as festas juninas da PE
7
Aos amigos do curso de Histoacuteria da UNIRIO agradeccedilo pelas trocas intelectuais
pelos incontaacuteveis momentos divertidos pela camaradagem e por essa amizade de dez
anos de histoacuteria
Aos meus pais sou e serei eternamente grata pelo carinho pelo apoio e por sempre
estarem ao meu lado durante todos esses anos
Aos meus sogros Eliana Lasmar e Luiz Fernando Arieira agradeccedilo por estarem
sempre por perto dispostos a estenderem a matildeo quando preciso
E por fim meus agradecimentos especiais a Raul Cordeiro meu companheiro de
todas as horas o engenheiro mais humano que eu jaacute conheci Agradeccedilo-lhe por tudo que
temos vivido juntos por nosso cantinho por nossas conversas por nosso conviacutevio de
todo dia por nosso amor pelo tanto e tatildeo pouco que enfeita cada momento da minha
vida me completa e me faz uma pessoa mais feliz
8
Tambeacutem neste lugar pode-se sobreviver e por isso eacute preciso
querer sobreviver para contar para testemunhar e que para
viver eacute importante esforccedilarmo-nos para salvar pelo menos o
esqueleto os pilares a forma da nossa civilizaccedilatildeo [hellip]
(Levi 2001 40)
9
Resumo
O objetivo dessa dissertaccedilatildeo eacute analisar a memoacuteria de seis ex-prisioneiros poliacuteticos
do Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees-Centro de Operaccedilotildees de Defesa Interna
do Rio de Janeiro (DOI-CODIRJ) entrevistados recentemente entre os anos de 2002 e
2004 sobre o cotidiano vivido nessa instituiccedilatildeo em 1970 Naquele ano dentro do
Sistema de Seguranccedila Interna (SISSEGIN) os DOI-CODI haviam sido criados e
distribuiacutedos por todas as Regiotildees Militares do paiacutes tornando-se a principal instituiccedilatildeo
de repressatildeo aos opositores poliacuteticos que optaram pela luta armada como forma de
derrotar a ditadura militar brasileira Assim as narrativas desses seis ex-prisioneiros
satildeo aleacutem de fontes essenciais o principal objeto de estudo deste trabalho Atraveacutes
delas torna-se possiacutevel acessar aspectos cruciais para a caracterizaccedilatildeo do cotidiano
vivido pelos presos em um desses oacutergatildeos ― o DOI-CODI do Rio de Janeiro ― uma
vez que esse passado se liga ao presente por meio de suas memoacuterias Diante disso a fim
de melhor entender tais memoacuterias a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI tambeacutem satildeo
aqui analisadas colocando as narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados em
diaacutelogo com uma bibliografia especialmente selecionada aleacutem de uma fonte a respeito
do DOI feita por um de seus agentes quando este oacutergatildeo ainda estava em atividade em
1978 Para que a essas memoacuterias seja aplicada uma criacutetica efetiva necessaacuteria a todo
trabalho histoacuterico o estudo se debruccedila ainda sobre as interferecircncias que o presente
exerce na construccedilatildeo que fazem com relaccedilatildeo ao passado vivido no DOI-CODIRJ com
o objetivo de esclarecer as bases sobre as quais satildeo construiacutedas cerca de trinta anos
depois
Palavras-chave Ex-prisioneiros poliacuteticos ndash Memoacuteria ndash DOI-CODI ndash Cotidiano ndash
Ditadura militar
10
Abstract
The objective of this thesis is to analyze the memory of six former political
prisoners of the Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees-Centro de Operaccedilotildees de
Defesa Interna do Rio de Janeiro or DOI-CODIRJ (Detachment of Information
Operations Center-Internal Defense Operations Center of Rio de Janeiro) recently
interviewed between 2002 and 2004 about their everyday living in that institution in
1970 At that year in the Sistema de Seguranccedila Interna or SISSEGIN (Internal Security
System) the DOI-CODI had been created and distributed by all the countryrsquos military
regions becoming the repression leading instituion of political opponents who oppted
for armed struggle as a way to defeat Brazilrsquos military dictatorship Thus these six
former prisioners narratives are not only essencial sources but the main study object of
this paper Through them it becomes possible to access crucial aspects for the
characterization of the daily lived by prisioners in one of these agencies - the DOI-
CODI in Rio de Janeiro - since this past connects to present through their memories
Therefore in order to understand such memories the training and the performance of
the DOI-CODI are also analyzed here placing the narratives of the interviewed former
political prisioners in dialogue with a specially selected bibliography and a source
about DOI made by one of its agents when that agency was still active in 1978 In
order to be applied to these memories an effective critique necessary to all historical
work the study still focuses on the interferences that the present exerts on the
construction that make in relation to the past lived in DOI-CODIRJ in order to clarify
the basis on which are built at about thirty years later
Key-Words Former political prisioners ndash Memory ndash DOICODI ndash daily Life ndash Military
dictatorship
11
Sumaacuterio
Agradecimentos 05
Resumo 09
Abstract 10
Introduccedilatildeo 13
Capiacutetulo 1 Os DOI-CODI formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo 28
1 Debate Histoacuterico 35
11 O papel da ESG para o Sistema de Seguranccedila Nacional 35
12 Os conceitos legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar 39
13 A montagem e o funcionamento do SISSEGIN 47
2 O DOI-CODI por ele mesmo 57
3 O DOI-CODI pelos prisioneiros 75
Capiacutetulo 2 Os presos poliacuteticos e suas organizaccedilotildees 85
1 A rede de entrevistas 91
11 Os sujeitos e suas trajetoacuterias 97
12 A nova esquerda brasileira 122
Capiacutetulo 3 O espaccedilo e o cotidiano do DOI-CODI carioca 136
1 O que sofre e o que resiste 137
2 Uma cartografia possiacutevel do ldquoCastelo do Terrorrdquo 142
12
3 Memoacuterias de um cotidiano 154
31 O interrogatoacuterio e a tortura 156
32 O dia-a-dia no caacutercere 184
Conclusatildeo 199
Fontes 205
1 ArquivoDocumentos Pessoais 205
2 Documentos Institucionais 205
3 Fonte Cinematograacutefica 205
4 Fontes Orais 205
5 Fontes Visuais 206
6 Perioacutedicos 206
Bibliografia 207
1 Bibliografia digital 213
Anexo I Glossaacuterio de Siglas 215
Anexo II A Hierarquia do Exeacutercito Brasileiro 218
13
Introduccedilatildeo
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo entatildeo que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino praacute laacute
Roda mundo roda gigante
Roda moinho roda piatildeo
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coraccedilatildeo
A gente vai contra a corrente
Ateacute natildeo poder resistir
Na volta do barco eacute que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que haacute
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira praacute laacute
Chico Buarque
(Roda Viva 1968)
14
Vivi bons momentos no 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito Era adolescente e os
momentos aos quais me refiro foram vividos durante o final de uma deacutecada
democraacutetica a de 1990 Mal sabia sobre a ditadura militar e muito menos que aquele
Batalhatildeo situado tatildeo proacuteximo agrave minha casa na Tijuca havia sediado um centro de
tortura O nome DOI-CODI nunca tinha ouvido falar Para mim e para todos os
adolescentes da Tijuca o 1ordm BPE era um Batalhatildeo convencional do Exeacutercito que tinha
um grande paacutetio utilizado todos os anos para a melhor festa junina da regiatildeo a ldquofesta
junina da PErdquo Logo para noacutes a principal caracteriacutestica da PE era o fato de durante os
meses de junho abrir as portas do seu paacutetio para tornaacute-lo ldquoponto de encontrordquo de muitos
jovens estudantes Quanta ironia
Jaacute no terceiro periacuteodo da faculdade de Histoacuteria da UNIRIO no primeiro semestre
de 2002 descobri o que aquele preacutedio havia sido durante a ditadura militar Soube
inclusive que ele era tombado pelo antigo Departamento Geral de Patrimocircnio Cultural
(DGPC) da Prefeitura justamente por representar a memoacuteria de muitos ex-prisioneiros
poliacuteticos que ali haviam sido torturados e mortos Fiquei perplexa Como nunca
ningueacutem havia me dito isso Como os professores de Histoacuteria da minha escola
localizada no mesmo bairro natildeo haviam destacado esse fato Por que essa parte da
Histoacuteria natildeo era amplamente divulgada Eu que sempre gostei de Histoacuteria natildeo agrave toa
escolhi fazer dela minha formaccedilatildeo e profissatildeo me senti instigada a revelar as memoacuterias
dos presos poliacuteticos que por laacute passaram A partir dessa descoberta mais do que uma
ldquonovardquo face do 1ordm BPE eu havia me deparado com outra revelaccedilatildeo o meu tema de
pesquisa
A partir de um amigo do curso de Histoacuteria no final de 2002 cheguei ao meu
primeiro entrevistado e daiacute em diante teci uma rede de entrevistas No final de 2004
havia reunido seis entrevistados trecircs homens e trecircs mulheres todos ex-prisioneiros
15
poliacuteticos que passaram pelo DOI-CODIRJ durante o mesmo ano de 1970 Essa
pesquisa resultou em minha monografia apresentada em 2005 como requisito para a
conclusatildeo do curso de Histoacuteria da UNIRIO O Castelo do terror memoacuteria e tortura no
espaccedilo prisional (1970-1974) 1
Natildeo abandonei o tema Ao contraacuterio resolvi aprofundaacute-lo no mestrado em
Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais do CPDOCFGV onde ingressei em marccedilo de 2010
Nessa dissertaccedilatildeo que representa a fase conclusiva do mestrado trabalho com os
depoimentos dos mesmos seis ex-prisioneiros do DOI-CODIRJ de 1970 colhidos entre
os anos de 2002 e 2004 Aqui o objetivo mais amplo eacute se inserir no conjunto de estudos
que reflete sobre a construccedilatildeo de uma determinada memoacuteria a respeito da ditadura
militar
Analisar a memoacuteria de ex-prisioneiros poliacuteticos a fim de entender como essas
foram construiacutedas jaacute em tempos democraacuteticos e o que trazem em benefiacutecio da
caracterizaccedilatildeo daquele passado eacute o objetivo principal desta dissertaccedilatildeo Assim sendo
alguns aspectos especiacuteficos merecem ser destacados
O primeiro deles eacute que as entrevistas foram concedidas entre os anos 2002 e 2004
ou seja o passado ditatorial foi recuperado jaacute em tempos democraacuteticos Ao mesmo
tempo considerou-se que esses depoimentos satildeo fontes essenciais para atingir o
objetivo aqui traccedilado jaacute que a metodologia de histoacuteria oral eacute a mais adequada para
analisar os aspectos subjetivos e repletos de detalhes que correspondem ao rigoroso dia-
a-dia de quem esteve preso em um organismo repressor Logo eacute faacutecil concluir que as
fontes que permitiram a elaboraccedilatildeo deste estudo natildeo poderiam ser encontradas em
documentaccedilatildeo oficial
1 O Castelo do terror memoacuteria e cotidiano de ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI carioca (1970-
1979) monografia de fim de curso de bacharelado e licenciatura plena em Histoacuteria da UNIRIO orientada
pela Profordf Drordf Icleacuteia Thiesen e apresentada em abril de 2005
16
Instituiacutedos por todo o territoacuterio brasileiro a partir de 1970 os DOI-CODI
tornaram-se referecircncia-chave na memoacuteria sobre a tortura e a repressatildeo praticada pela
ditadura militar A partir disso nota-se que o trabalho desenvolvido com as memoacuterias
de ex-prisioneiros de uma de suas sedes a do Rio de Janeiro eacute uma das escassas
possibilidades existentes de se acessar esse passado ainda tatildeo presente
Esse objeto de estudo representa um grande desafio Afinal estaacute inserido entre
duas temporalidades recentes ndash quando a experiecircncia prisional foi efetivamente vivida
em 1970 e quando ela foi narrada pelos entatildeo ex-prisioneiros poliacuteticos entre 2002 e
2004 Por isso mesmo lanccedilou-se matildeo do aparato teoacuterico do que se convencionou
chamar de histoacuteria do tempo presente A partir dos anos 1980 durante o processo de
renovaccedilatildeo da histoacuteria poliacutetica a valorizaccedilatildeo de uma histoacuteria das representaccedilotildees e a
compreensatildeo dos usos poliacuteticos do passado pelo presente acarretou uma reavaliaccedilatildeo das
relaccedilotildees estabelecidas entre histoacuteria e memoacuteria que permitiu agrave historiografia fazer novas
reflexotildees sobre as relaccedilotildees entre passado e presente 2 Diante dessa percepccedilatildeo nasceu
na Franccedila o Instituto de Histoacuteria do Tempo Presente (IHTP) fundado por Franccedilois
Beacutedarida consolidando a histoacuteria do tempo presente como portadora da especificidade
de conviver com testemunhos vivos colocando sob seu foco principal os depoimentos
orais 3
A histoacuteria oral eacute portanto a metodologia principal desta dissertaccedilatildeo e por
conseguinte os depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos dela decorrentes satildeo aqui
tratados com todo o rigor necessaacuterio agrave pesquisa histoacuterica Afinal apesar de ser
demasiadamente criticada por ser uma metodologia apoiada na memoacuteria o que a
tornaria capaz de produzir representaccedilotildees e natildeo reconstituiccedilotildees do real entende-se que
2 Para mais informaccedilotildees sobre o surgimento da histoacuteria do tempo presente na historiografia ver Remoacutend
1996 e Ferreira dez 2002 314-332 3 Para mais informaccedilotildees sobre os fundamentos da histoacuteria do tempo presente ver Beacutedarida 2006 219-
229
17
as narrativas orais devem ser submetidas ao crivo da criacutetica histoacuterica tal como deve
ocorrer com todas as outras fontes Os documentos orais ou escritos tecircm uma razatildeo de
ser pois foram feitos por algueacutem com determinada visatildeo estimulado por algum motivo
eou intenccedilatildeo e por isso nunca seratildeo capazes de representar a realidade pura e absoluta
dos fatos Portanto qualquer fonte caso natildeo seja bem contextualizada e analisada
possibilita que a pesquisa caia em armadilhas e reconstrua um passado que nunca
existiu conforme bem elucidado por Michael Pollak
[] se a memoacuteria eacute socialmente construiacuteda eacute oacutebvio que toda documentaccedilatildeo
tambeacutem o eacute Para mim natildeo haacute diferenccedila fundamental entre fonte escrita e
oral A criacutetica da fonte tal como todo historiador aprende a fazer deve a
meu ver ser aplicada a fontes de tudo quanto eacute tipo (Pollak 1992 207-208)
A histoacuteria oral eacute de grande valia agrave histoacuteria do tempo presente contribuindo para
que o estudo da histoacuteria recente ndash por natureza mais inacabada do que qualquer outra
histoacuteria (Beacutedarida 2006 229) ndash seja incentivado desafiando as dificuldades
relacionadas ao acesso a fontes documentais de periacuteodos pouco distantes Aleacutem disso a
histoacuteria oral traz outro diferencial aqui destacado atraveacutes da fala torna-se possiacutevel
evidenciar uma carga subjetiva tornando acessiacutevel um tipo de informaccedilatildeo capaz de
enriquecer a anaacutelise histoacuterica e que natildeo seria obtido por meio de fontes escritas oficiais
Assim mesmo que uma experiecircncia relatada natildeo seja em si mesma um fato de certa
forma pode vir a secirc-lo jaacute que traz agrave tona o verdadeiro sentimento de algueacutem perante
uma situaccedilatildeo e esse sentimento eacute um fato que soacute pode ser alcanccedilado mediante agraves
memoacuterias trazidas pelos relatos (Portelli 1996 59-72)
Os usos que os ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ fazem de seu passado
prisional eacute um dos principais aspectos aqui ressaltados Para tanto o conceito de
presente do passado de Robert Frank (1999) eacute utilizado ao longo deste trabalho como
18
ferramenta para destacar as influecircncias que o presente de suas narrativas exerce sobre a
maneira pela qual eacute revivido o passado vivenciado no DOI-CODIRJ
Desde que haviam passado pelo DOI-CODI carioca em 1970 em plena ditadura
militar a chamada ldquolei de anistiardquo jaacute havia sido instituiacuteda no paiacutes em 1979 que entre
outras providecircncias anistiava todos quantos no periacuteodo compreendido entre 02 de
setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 cometeram crimes poliacuteticos ou conexos com
estes (lei nordm 66831979) a ditadura militar havia terminado com a eleiccedilatildeo indireta de
um presidente civil em 1985 a Assembleia Nacional Constituinte havia sido instalada
em 1987 e a Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil a chamada ldquoconstituiccedilatildeo
cidadatilderdquo havia sido promulgada no ano seguinte e finalmente o primeiro presidente
civil eleito pelo voto direto apoacutes a ditadura militar havia tomado posse em 1990
completando a transiccedilatildeo poliacutetica do paiacutes ou seja tornando a ditadura uma memoacuteria do
passado e a democracia o momento presente Democracia esta que na eacutepoca em que os
depoimentos foram concedidos apresentava ainda mais sinais de seu fortalecimento e
consolidaccedilatildeo jaacute que o Brasil havia elegido para presidente o socioacutelogo e professor da
USP Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e o ex-operaacuterio e liacuteder sindical Luiacutes
Inaacutecio Lula da Silva (2003-2010) ambos perseguidos poliacuteticos durante o periacuteodo
ditatorial
Com relaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo dos que sofreram danos decorrentes da poliacutetica repressiva
promovida pela ditadura militar desde 1995 estava em curso o reconhecimento pelo
Estado brasileiro dos mortos e desaparecidos poliacuteticos durante a ditadura e a
indenizaccedilatildeo as suas famiacutelias (lei nordm 914095) Aleacutem disso a reparaccedilatildeo financeira aos
males sofridos por aqueles que ficaram presos ou foram perseguidos na eacutepoca tambeacutem
estava em voga desde 2002 (lei nordm 1055902) A demanda desta lei principalmente no
caso daqueles que passavam pelo processo de solicitaccedilatildeo eacute um elemento a ser levado
19
em conta na maneira pela qual os entrevistados construiacuteram suas narrativas Afinal o
procedimento necessaacuterio agrave concessatildeo da reparaccedilatildeo incluiacutea a construccedilatildeo de um memorial
sobre as mazelas a que os requerentes haviam sido submetidos pelo Estado durante a
ditadura militar
Dessa forma as narrativas significavam tambeacutem para os ex-prisioneiros poliacuteticos
um meio de conseguirem apoio da sociedade em favor da ampliaccedilatildeo desse
reconhecimento iniciado pelo Estado brasileiro Atraveacutes de suas narrativas poderiam
contribuir para que suas memoacuterias fossem encampadas pela histoacuteria Logo pode-se
dizer que no sentido atribuiacutedo por Michael Pollak (1992) esses depoimentos foram
concedidos sob o horizonte de contribuir com o trabalho de enquadramento da
memoacuteria nacional sobre a ditadura militar brasileira jaacute que esta ateacute hoje natildeo estaacute
consolidada
Finalmente verifica-se que ainda ocorre uma disputa pela memoacuteria da ditadura
militar onde de um lado estatildeo os que sofreram o peso da matildeo forte da ditadura e de
outro os militares que argumentam que os ldquoanos de chumbordquo devem ser relegados ao
passado Como exemplo a declaraccedilatildeo dada em outubro de 2004 ao jornal O Globo por
um representante do Exeacutercito em resposta agrave publicaccedilatildeo de supostas fotos pelas quais o
jornalista Vladimir Herzog4 aparece sendo humilhado na prisatildeo
As medidas tomadas pelas forccedilas legais foram uma legiacutetima resposta agrave
violecircncia dos que recusaram o diaacutelogo optaram pelo radicalismo e pela
ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e de desencadear accedilotildees
criminosas [] sentiu-se a necessidade da criaccedilatildeo de uma estrutura com
vistas a apoiar em operaccedilatildeo e inteligecircncia as atividades necessaacuterias para
desestruturar os movimentos radicais e ilegais [] Mesmo sem qualquer
mudanccedila de posicionamento e de convicccedilotildees em relaccedilatildeo ao que aconteceu
4 Vladimir Herzog era integrante do PCB e diretor da TV Cultura quando foi preso em outubro de 1975
no DOI-CODISP onde dias depois foi morto sob torturas Para mais informaccedilotildees sobre o caso Vladimir
Herzog e seus sucessivos encadeamentos ver Moraes 2006
20
naquele periacuteodo histoacuterico considera-se accedilatildeo pequena reavivar revanchismos
ou estimular discussotildees esteacutereis sobre conjunturas passadas que a nada
conduzem (Camarotti 19 out 2004 12)
Essa disputa travada entre a lembranccedila e o esquecimento pode ser notada atraveacutes
da batalha em torno do preacutedio que serviu de sede ao DOI-CODIRJ o 1ordm BPE Essa foi
iniciada nos primeiros anos da deacutecada de 1990 por meio de uma tentativa do Exeacutercito
de vender o edifiacutecio Sabendo da situaccedilatildeo um conjunto de moradores dos arredores
buscou impedir a venda solicitando o tombamento de todo o espaccedilo ocupado pelo
quartel agrave Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro alegando a sua importacircncia para a
memoacuteria poliacutetica do paiacutes Essa atitude eacute evidenciada em um manifesto contendo 236
assinaturas em defesa da preservaccedilatildeo do preacutedio que serviu como documento de
abertura para o processo de tombamento do edifiacutecio na Subsecretaria de Patrimocircnio
Cultural da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro
O Exeacutercito brasileiro alegando falta de recursos para seu programa de
construccedilatildeo de quarteacuteis em outros estados pretende vender o imoacutevel onde
estaacute o 1ordm BPE Trata-se de um imoacutevel altamente valorizado pela ampla infra-
estrutura urbana [] Acontece que o valor que o Exeacutercito quer faturar foi
criado a partir de obras e investimentos custeados com os impostos e taxas
que pagamos todos noacutes haacute mais de um seacuteculo O Exeacutercito natildeo contribuiu
em nada para isso e agora quer se apropriar desse valor para investir sabe-se
laacute aonde [] consideramos que o preacutedio do Batalhatildeo da PE estaacute
indissoluvelmente cravado na histoacuteria nas tradiccedilotildees na esteacutetica e na
paisagem local [] Sabemos que o Batalhatildeo da PE foi sede do DOI-CODI
na eacutepoca da ditadura militar e que ali estiveram presos e foram torturados
muitos companheiros nossos tendo inclusive alguns sido dados como
ldquodesaparecidosrdquo Tambeacutem por esta razatildeo o preacutedio estaacute ligado agrave memoacuteria
poliacutetica desse paiacutes [] Queremos na aacuterea um centro cultural com teatro e
museu agrave memoacuteria da luta pela liberdade com parque e jardins Esses satildeo os
21
anseios da comunidade e natildeo outrosrdquo (Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural
da Prefeitura do Rio de Janeiro 1992) 5
Aleacutem desse documento outras solicitaccedilotildees de preservaccedilatildeo do preacutedio foram
enviadas agrave Cacircmara Municipal por Associaccedilotildees de Moradores da Tijuca e bairros
vizinhos Enfim em 29 de marccedilo de 1993 no primeiro mandato do entatildeo prefeito Ceacutesar
Maia o processo de tombamento do 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito foi finalizado
No entanto a ideia de tiraacute-lo do Exeacutercito a fim de tornar o espaccedilo um centro cultural
que contivesse um museu da memoacuteria da luta pela liberdade natildeo se concretizou pois
apoacutes o tombamento o Exeacutercito natildeo deixou o local onde permanece ateacute os dias atuais
sinalizando que natildeo tem interesse em que o edifiacutecio se torne efetivamente um lugar de
memoacuteria tal como o conceito criado por Pierre Nora (1993)
No preacutedio do 1ordm BPE se encontram os trecircs sentidos atribuiacutedos por Nora como
caracteriacutesticos a um lugar de memoacuteria o material o simboacutelico e o funcional (Nora
1993 21) O sentido material no caso eacute o proacuteprio espaccedilo fiacutesico que ainda se conserva
no mesmo local sem grandes intervenccedilotildees o simboacutelico eacute o que o espaccedilo representa para
uma parte da sociedade carioca como marco memorial de um passado que natildeo se deve
esquecer e o funcional eacute a memoacuteria da ditadura militar ali preservada por meio do
tombamento do edifiacutecio Logo querendo ou natildeo o preacutedio do 1ordm BPE eacute um lugar de
memoacuteria jaacute que naquele espaccedilo fiacutesico ou seja material se encontram uma funccedilatildeo e
uma representaccedilatildeo simboacutelicas ligadas agrave memoacuteria da ditadura militar
A disputa em torno dessa memoacuteria parece aos poucos caminhar cada vez mais
para o lado dos ex-presos e perseguidos poliacuteticos Recentemente aleacutem das leis
5 Este documento que deu iniacutecio ao referido processo no ano de 1992 hoje se encontra arquivado na
Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro antigo Departamento Geral de
Patrimocircnio Cultural (DGPC) junto ao restante da documentaccedilatildeo que compocircs o processo Nordm
1200433692 e originou a lei municipal nordm 1954 de 290393
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reparadoras citadas acima um grande obstaacuteculo foi ultrapassado para que os crimes
ocorridos durante a ditadura militar sejam apurados e desvendados Em outubro de
2011 a Comissatildeo da Verdade foi enfim aprovada pelo Congresso Nacional e em
novembro do mesmo ano a lei que a institui sancionada pela Presidente Dilma
Rousseff Nesse contexto esta dissertaccedilatildeo ao estudar as memoacuterias de seis ex-
prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ relaciona-se com essa atualidade cumprindo
um papel social relevante
O ofiacutecio do historiador que pressupotildee trilhar caminhos e fazer escolhas
significando por exemplo atribuir significado agraves palavras agraves fontes e agrave bibliografia
escolhidas norteou a seleccedilatildeo e os criteacuterios aqui estipulados Conforme apontado por
Reinhart Koselleck (2006 167) eacute impossiacutevel que o ponto de vista do historiador deixe
de influenciar na representaccedilatildeo que faz dos fatos Assim cabe deixar claro que este
trabalho foi movido pelo interesse que as memoacuterias dos ex-prisioneiros poliacuteticos do
DOI-CODIRJ despertaram em mim Vale dizer que essa dissertaccedilatildeo eacute avessa ao
postulado cientiacutefico da total imparcialidade no sentido de neutralidade apartidarismo
ou abstenccedilatildeo seguindo orientaccedilatildeo de Manoel Salgado Guimaratildees (2008)
Ao historiador de ofiacutecio seria exigido cada vez mais uma escrita submetida
aos ditames dos afetos sejam eles derivados de engajamentos poliacuteticos
especiacuteficos de crenccedilas particulares ou mesmo derivados de um convite agrave
individualidade do historiador Este seria instado a mostrar-se atraveacutes de seu
texto postura bastante diversa daquela que o obrigava a esconder-se por traacutes
da pesquisa cientiacutefica (Guimaratildees 2008 17)
O primeiro capiacutetulo tem por objetivo analisar a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-
CODI que a partir de 1970 passaram a integrar o Sistema de Seguranccedila Interna
(SISSEGIN) se espalharam por todas as Regiotildees Militares do Brasil e se tornaram a
principal instituiccedilatildeo de repressatildeo aos opositores poliacuteticos da ditadura militar Afinal a
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partir do entendimento sobre a criaccedilatildeo e o funcionamento dessa instituiccedilatildeo se pretende
criar as condiccedilotildees necessaacuterias para analisar as memoacuterias dos seis ex-prisioneiros
poliacuteticos sobre uma de suas sedes o DOI-CODIRJ uma vez que a passagem por esse
espaccedilo prisional eacute aqui entendida como um elo fundamental entre essas memoacuterias
Assim optou-se por estruturar este capiacutetulo por meio de trecircs frentes 1) o debate
historiograacutefico 2) a monografia O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI)
do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e
perspectiva escrita em 1978 pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira
3) os depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de
Janeiro concedidos entre os anos de 2002 e 2004
A primeira frente de estudo se concentra em analisar a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos
DOI-CODI agrave luz da historiografia Nela apresentam-se autores e conceitos selecionados
a fim de elucidar algumas questotildees levantadas Qual o papel da Escola Superior de
Guerra (ESG) para a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional e dos DOI-CODI
Como a praxe ditatorial em respaldar atitudes arbitraacuterias por meio de leis
compulsoriamente promulgadas ou seja atraveacutes da legalidade autoritaacuteria conforme
nomenclatura utilizada por Anthony Pereira (2010) gerou as bases para a criaccedilatildeo do
SISSEGIN e dos DOI-CODI Como os conflitos internos gerados no seio da instituiccedilatildeo
militar que ocasionaram dissidecircncias as cizacircnias militares tal como conceituado por
Joatildeo Roberto Martins Filho (1993) influenciaram os rumos da ditadura e a construccedilatildeo
de seu aparato de seguranccedila interna De que maneira a montagem e o funcionamento do
SISSEGIN e dos DOI-CODI foram organizados e constituiacutedos
Jaacute a segunda e a terceira frentes de estudo deste capiacutetulo servem para analisar as
visotildees de atores que de uma forma ou de outra viveram os DOI-CODI Na segunda a
anaacutelise sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI debruccedila-se sobre a visatildeo de um de
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seus agentes atraveacutes da fonte O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do
Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo escrita pelo coronel de
cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira apontado por ex-prisioneiros poliacuteticos com um dos
torturadores do DOI do Rio de Janeiro Trata-se de uma monografia que o referido
coronel apresentou agrave Escola de Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) em
1978 quando os DOI-CODI apesar de atuantes jaacute sofriam certa diminuiccedilatildeo de suas
atividades O trabalho em cima desse documento se direciona no sentido de analisar
dados representativos do poder coercitivo dos DOI-CODI do iniacutecio dos anos 1970 e de
descrever os afazeres de cada uma de suas seccedilotildees a fim de contribuir para o
entendimento sobre o funcionamento interno deste oacutergatildeo Por fim na terceira frente a
anaacutelise eacute efetuada por meio das memoacuterias dos seis ex-prisioneiros entrevistados entre os
anos de 2002 e 2004 objeto central dessa dissertaccedilatildeo Dessa forma procura-se aqui
responder como eles percebiam a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo do DOI-CODIRJ e ao
entrelaccedilar aspectos de suas memoacuterias com a historiografia e a visatildeo do coronel Pereira
se aproximar do que vinha a ser o aparato de seguranccedila interna de 1970 cujos DOI-
CODI eram parte essencial
O segundo capiacutetulo eacute construiacutedo com a proposta de analisar de que forma e sob
quais influecircncias foram construiacutedas e narradas as memoacuterias dos seis ex-prisioneiros
poliacuteticos entrevistados entre os anos de 2002 e 2004 Parte-se aqui do pressuposto de
que cada uma de suas memoacuterias foi formada e influenciada por idiossincrasias relativas
a vivecircncias pessoais personalidades e outros aspectos individuais que merecem ser
analisados de forma a viabilizar o entendimento loacutegico da construccedilatildeo dessas memoacuterias
Dessa forma busca-se relativizar uma memoacuteria coletiva que aparentemente eacute comum a
todos os ex-prisioneiros poliacuteticos que passaram por algum DOI-CODI O aspecto
coletivo dessas memoacuterias no entanto natildeo eacute abandonado As memoacuterias individuais aqui
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trabalhadas natildeo estatildeo isoladas e constantemente tomam por referecircncia pontos externos
ao sujeito se apoiando em percepccedilotildees recebidas de determinada memoacuteria coletiva de
um grupo e tambeacutem pela memoacuteria histoacuterica de seu paiacutes (Halbwachs 2004 57-59)
Diante disso a capacidade de intervenccedilatildeo que o presente exerce sobre as
memoacuterias do passado (Frank 1999) toma um aspecto central nesse momento da anaacutelise
o que torna importante considerar aqui natildeo soacute o contexto histoacuterico que rodeava os
entrevistados no momento de suas narrativas (2002-2004) como tambeacutem a forma como
a rede de entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que essas foram realizadas
Assim este segundo capiacutetulo trata primeiramente dessas condiccedilotildees que viabilizaram e
de certa forma influiacuteram nas entrevistas para em seguida analisar as trajetoacuterias de vida
de cada um dos entrevistados e por fim baseando-se em algumas referecircncias sobre o
tema traccedilar um panorama sobre as organizaccedilotildees de esquerda das quais faziam parte ou
com que se relacionavam no momento de suas prisotildees
Finalmente o terceiro capiacutetulo visa analisar efetivamente a memoacuteria como
material para a histoacuteria Assim conforme elucidado por Fernando Catroga (2010) ao
buscar entender a escrita da histoacuteria como um rito de memoacuteria no sentido de lutar
contra o esquecimento e contra a corrosatildeo do tempo tal como ocorre em um ldquogesto de
sepulturardquo a histoacuteria eacute aqui escrita de forma a contribuir para que seja possiacutevel
caracterizar um passado que natildeo mais existe o do cotidiano do DOI-CODIRJ de 1970
Antes dessa caracterizaccedilatildeo a partir dos detalhes trazidos nos depoimentos sobre o
espaccedilo interno do preacutedio do 1ordm BPE conjugados agrave observaccedilatildeo minuciosa de sua fachada
que ateacute hoje ainda permanece preservada faz-se possiacutevel uma cartografia espacial do
local que sediou o DOI-CODIRJ Afinal esse entendimento da disposiccedilatildeo espacial do
referido edifiacutecio estaacute totalmente interligado com o cotidiano ali vivido por seus
prisioneiros logo eacute aqui entendido como essencial para a presente anaacutelise Feita esta
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cartografia parte-se entatildeo para a caracterizaccedilatildeo do cotidiano vivido no DOI-CODIRJ
de 1970 Para tanto aleacutem da anaacutelise dos seis depoimentos a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos
DOI-CODI a constituiccedilatildeo da rede de entrevistas a trajetoacuteria dos entrevistados e suas
organizaccedilotildees de esquerda estudadas nos capiacutetulos anteriores satildeo incorporadas ao
estudo A partir disso vaacuterios aspectos do cotidiano prisional satildeo abordados tais como
o interrogatoacuterio e a tortura os primeiros momentos na prisatildeo as formas de resistecircncia
os encontros e as relaccedilotildees entre os presos nas celas as formas de lidar com o tempo as
roupas e as refeiccedilotildees
No decorrer dos trecircs capiacutetulos dessa dissertaccedilatildeo faz-se constante referecircncia a
siglas relativas ao tema em abordagem e agrave hierarquia das patentes do Exeacutercito Diante
disso ao final de todo o texto apresentado na parte dos anexos encontra-se o Glossaacuterio
de siglas (Anexo I) e a tabela A hierarquia do Exeacutercito Brasileiro (Anexo II)
A partir dessa configuraccedilatildeo geral pretende-se responder agraves questotildees acima
pontuadas a fim de corroborar algumas hipoacuteteses aqui levantadas
1) A formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo do aparato de seguranccedila interna que abrangia o DOI-
CODIRJ tiveram por base as teses sobre seguranccedila nacional montadas pela
ESG anos antes da ditadura militar a promulgaccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo
arbitraacuteria condescendente a abusos de poder gerada a partir dos primeiros anos
do governo militar bem como a tentativa de solucionar impasses ocasionados
por disputas que vinham ocorrendo no seio do Exeacutercito e por conseguinte
ameaccedilavam sua unidade institucional
2) O peso do presente (200204) teve um papel decisivo na maneira pela qual os
entrevistados construiacuteram a narrativa sobre o periacuteodo (1970) em que estiveram
presos no DOI-CODIRJ
3) As organizaccedilotildees de esquerda e as accedilotildees em que os ex-presos poliacuteticos
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estiveram envolvidos antes de suas prisotildees influenciaram diretamente no grau
de violecircncia do cotidiano a que foram submetidos no DOI-CODIRJ
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Capiacutetulo 1 ndash Os DOI-CODI formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo
Se no teu distrito
Tem farta sessatildeo
De afogamento chicote
Garrote e punccedilatildeo
A lei tem caprichos
O que hoje eacute banal
Um dia vai dar no jornal
Se manchas as praccedilas
Com teus esquadrotildees
Sangrando ativistas
Cambistas turistas peotildees
A lei abre os olhos
A lei tem pudor
E espeta o seu proacuteprio inspetor
Chico Buarque
(Hino da repressatildeo 1985)
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A partir de 1970 os DOI-CODI (Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildeesndash
Centro de Operaccedilotildees de Defesa Interna) parte integrante do Sistema de Seguranccedila
Interna (SISSEGIN) passariam a ser a principal instituiccedilatildeo na repressatildeo aos opositores
da ditadura militar brasileira Seis desses opositores aprisionados no DOI-CODI do Rio
de Janeiro em meio ao primeiro ano de sua existecircncia tecircm na passagem por esse espaccedilo
prisional um elo fundamental entre suas memoacuterias Como essas memoacuterias satildeo o objeto
de estudo da presente dissertaccedilatildeo para melhor entendecirc-las primeiramente torna-se de
extrema importacircncia lanccedilar um olhar mais apurado sobre como foram construiacutedos e de
que forma atuavam os DOI-CODI Logo a anaacutelise sobre a criaccedilatildeo e o funcionamento
dessa instituiccedilatildeo eacute o objetivo desse primeiro capiacutetulo
Esta anaacutelise se estrutura a partir de trecircs frentes distintas 1) o debate
historiograacutefico 2) a monografia O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI)
do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e
perspectiva escrita em 1978 pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira
3) os depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de
Janeiro concedidos entre os anos de 2002 e 2004
Como dito a primeira frente de estudo analisa a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-
CODI agrave luz da historiografia Autores e conceitos foram selecionados tendo em vista
questotildees significativas para analisar a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI 1) o papel
da ESG para a criaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional 2) os conceitos de legalidade
autoritaacuteria e cizacircnia militar 3) a montagem e o funcionamento do SISSEGIN
Para abordar o papel da ESG na construccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional
parte-se da tese de Maria Helena Moreira Alves (2005) em que a autora defende a ideia
de que a institucionalizaccedilatildeo do Estado de Seguranccedila Nacional no Brasil se fez a partir
do papel determinante da Doutrina de Seguranccedila Nacional (DSN) construiacuteda pela
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Escola Superior de Guerra (ESG) nos anos 1950 Entende-se que este destacado papel
da ideologia esguiana para a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional da ditadura
militar brasileira teve ligaccedilatildeo direta com a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI Afinal
com a DSN surge o conceito de seguranccedila interna que serve como base para a
montagem do aparelho repressivo ditatorial no qual os DOI-CODI duas deacutecadas
depois seriam inseridos
Os conceitos de legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar satildeo aqui utilizados como
ferramentas elucidativas por auxiliarem na anaacutelise de como durante os primeiros anos
de ditadura militar a imperativa forma de legislar o paiacutes e as crises que por disputas
poliacuteticas ameaccedilaram a unidade institucional militar foram essenciais para a formaccedilatildeo e
atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
Nesse sentido a legalidade autoritaacuteria assim designada por Anthony Pereira
(2010) eacute aqui utilizada para destacar de que forma a preocupaccedilatildeo da ditadura militar
brasileira em respaldar legalmente seus atos ainda que arbitrariamente propiciou um
respaldo legal agrave repressatildeo poliacutetica e por conseguinte aos DOI-CODI Logo este
conceito serve para iluminar o entendimento de que a formaccedilatildeo de um aparato de
seguranccedila interna forte centralizado e violento como os DOI-CODI foi possibilitado
respaldado e sustentado no Brasil por um significativo amparo legal A ditadura militar
atraveacutes dessa preocupaccedilatildeo legal atiacutepica a um regime de cunho totalitaacuterio reiterava sua
imagem de regime democraacutetico de exceccedilatildeo perante a sociedade e ao mesmo tempo
possibilitava a criaccedilatildeo de um dos maiores organismos repressores que uma ditadura da
Ameacuterica Latina jaacute havia criado os DOI-CODI
Outro conceito necessaacuterio para entender a construccedilatildeo do cenaacuterio legal que
propiciaria a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI eacute o de cizacircnia militar elaborado por
Martins Filho em sua tese de doutorado A dinacircmica militar das crises poliacuteticas na
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ditadura (1964-1969) de 1993 em que o autor destaca os conflitos internos no seio
militar que acabariam resultando em dissidecircncias Ao analisar esses conflitos como fator
decisivo para a compreensatildeo dos rumos da ditadura Martins Filho apresenta uma
abordagem diferente da maioria dos estudiosos sobre o tema Ao inveacutes de partir de uma
suposta dicotomia entre dois grupos estanques divididos rigidamente entre a linha dura
e os castelistas apresenta uma visatildeo mais fluida de grupos militares que oscilavam na
forma de agir o palaacutecio representando os militares de altas patentes ocupantes de
cargos poliacuteticos e a caserna militares de patentes meacutedias que trabalhavam nas
instituiccedilotildees militares Esta abordagem eacute crucial para o presente trabalho uma vez que a
base da formaccedilatildeo e da atuaccedilatildeo dos DOI-CODI estava diretamente relacionada agraves
cizacircnias militares e seus decorrentes acontecimentos poliacuteticos Afinal apesar dos DOI-
CODI serem uma instituiccedilatildeo composta por militares das mais diversas posiccedilotildees
hieraacuterquicas a sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo foram estruturadas a partir principalmente de
reivindicaccedilotildees da caserna que com a implantaccedilatildeo dos DOI-CODI passou a ter poderes
poliacuteticos extraordinaacuterios jaacute que se tornava responsaacutevel pelas accedilotildees de prisotildees
apreensotildees e interrogatoacuterios dos perseguidos poliacuteticos
Finalmente para analisar a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Interna o
SISSEGIN composto entre outros pelos DOI-CODI partimos da anaacutelise feita por
Carlos Fico em sua obra Como eles agiam de 2001 Ao ter acesso a documentos
sigilosos sobre a formaccedilatildeo do SISSEGIN e a regulamentaccedilatildeo operacional dos DOI-
CODI Fico caracteriza de forma ineacutedita na historiografia a formaccedilatildeo e o
funcionamento de ambos os oacutergatildeos sendo portanto um referencial historiograacutefico
indispensaacutevel agrave minha pesquisa
Ainda no que toca agrave formaccedilatildeo do SISSEGIN e dos DOI-CODI tambeacutem eacute de
grande valia a tese exposta por Maria Celina DrsquoArauacutejo em Os anos de Chumbo a
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memoacuteria militar sobre a repressatildeo (1994) de que assim como em qualquer instituiccedilatildeo
militar era alto o grau de hierarquia e coordenaccedilatildeo presente nos DOI-CODI o que natildeo
impedia no entanto que houvesse brechas para uma perda de controle institucional
Logo uma das peculiaridades da atuaccedilatildeo dos DOI-CODI entendido pela a autora como
uma espeacutecie de sofisticaccedilatildeo da repressatildeo era a convivecircncia da obediecircncia hieraacuterquica
militar com a falta de controle sobre algumas accedilotildees deixando que procedimentos natildeo
regulamentares tais como a tortura pudessem ser efetivados com recorrecircncia
A segunda e a terceira frentes de estudo do presente capiacutetulo analisam as visotildees de
atores que de uma forma ou de outra viveram em algum dos DOI-CODI Portanto
diferentes do debate historiograacutefico que tem particular distanciamento analiacutetico do
objeto e preza por se aproximar da imparcialidade e tambeacutem diferentes entre si essas
fontes satildeo influenciadas por seus atoresnarradores e pelas eacutepocas em que foram
construiacutedas
Na segunda frente pode-se dizer que a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI satildeo
analisadas a partir dos proacuteprios DOI-CODI jaacute que nessa etapa debruccedila-se sobre o
estudo O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do Exeacutercito Brasileiro
Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo de um de seus agentes diretos o coronel de
cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira Conhecido entre os presos poliacuteticos do DOI do Rio
de Janeiro do iniacutecio dos anos 1970 como o torturador de codinome ldquoNagibrdquo coronel
Pereira apresentou a referida monografia agrave Escola de Comando e Estado Maior do
Exeacutercito (ECEME) em 1978 quando os DOI-CODI apesar de atuantes jaacute estavam em
decadecircncia Tratava-se de uma eacutepoca em que o presidente Ernesto Geisel comandava a
abertura poliacutetica ldquolenta gradual e segurardquo do paiacutes e vinha diminuindo o poder delegado
aos DOI-CODI que passavam a ter o seu pessoal reduzido e suas accedilotildees apenas voltadas
agrave espionagem e natildeo mais ao combate direto de opositores poliacuteticos jaacute que devido agraves
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inuacutemeras denuacutencias sobre violaccedilotildees aos Direitos Humanos no Brasil era forte o
desgaste que a ditadura sofria perante a comunidade internacional Em meio a esse
cenaacuterio o coronel em questatildeo construiu tal monografia motivado a por um lado provar
a importacircncia e a necessidade do trabalho de repressatildeo feito nos DOI-CODI e assim
tentar reverter a reduccedilatildeo de suas atividades e por outro conseguir uma promoccedilatildeo na
carreira militar visto que a ECEME eacute uma escola destinada agrave preparaccedilatildeo de oficiais
superiores para o exerciacutecio de funccedilotildees de Estado-Maior A partir disso essa monografia
apresenta dados representativos do poder coercitivo dos DOI do iniacutecio dos anos 1970
bem como a descriccedilatildeo dos afazeres de cada uma de suas seccedilotildees o que traz uma forte
contribuiccedilatildeo para a anaacutelise aqui traccedilada
Por fim na terceira e uacuteltima frente a anaacutelise da formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-
CODI eacute efetuada por meio de outro tipo de fonte que tem por base a memoacuteria os
depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de Janeiro a
mim fornecidos entre os anos de 2002 e 2004 Como essas entrevistas foram concedidas
durante a passagem dos governos dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso
(1995-2002) e Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva (2003-2010) ex-perseguidos poliacuteticos da
ditadura militar que entre seus feitos agrave frente da poliacutetica brasileira agiram no sentido
de reparar danos sofridos pelos perseguidos poliacuteticos daquele periacuteodo esse presente
nelas imprimiu fortes influecircncias Afinal trata-se de memoacuterias sobre o passado vivido
em uma das instituiccedilotildees de repressatildeo mais violentas da eacutepoca o DOI-CODIRJ
construiacutedas a partir de um presente em que jaacute vigorava a lei nordm 9140 de 1995 que
reconhecia mortos e desaparecidos pela ditadura militar e indenizava suas famiacutelias e
havia sido aprovada a lei nordm 10559 de 2002 que reparava financeiramente aqueles que
tivessem sofrido perseguiccedilatildeo ou maus tratos dentro de instituiccedilotildees do Estado durante o
periacuteodo de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988
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Percebe-se claramente a ideia de presente do passado de Robert Frank (1999)
como um dos principais aspectos criacuteticos aqui aplicados a essas memoacuterias Afinal o
fato de durante o periacuteodo em que se deram as entrevistas conhecidos opositores agrave
ditadura militar estarem agrave frente do governo brasileiro e grande nuacutemero de ex-
prisioneiros poliacuteticos inclusive os entrevistados buscarem se beneficiar da lei nordm
1055902 faz com que o presente seja aqui considerado o elemento organizador dessas
memoacuterias
Essa perspectiva de presente do passado eacute portanto um dos elementos criacuteticos
aplicados a essas memoacuterias que sobre elas trabalham a fim de aqui tornaacute-las objeto da
histoacuteria Dessa forma percebe-se na presente anaacutelise a perspectiva elucidada por Pierre
Nora (1993) ao diferir o trabalho da memoacuteria do trabalho da histoacuteria Afinal o que os
diferencia satildeo justamente os aspectos fluidos da memoacuteria tais como as emoccedilotildees e as
influecircncias conjunturais a que estaacute a todo tempo submetida que aqui satildeo minimizados
pelos aspectos criacuteticos objetivos e analiacuteticos peculiares agrave histoacuteria
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1 Debate Historiograacutefico
11 O papel da ESG para o Sistema de Seguranccedila Nacional
O golpe civil-militar ocorrido no Brasil em 31 de marccedilo de 1964 quando o
presidente Joatildeo Goulart foi deposto e se instalou um regime militar no paiacutes teria sido
precedido por uma elaborada desestabilizaccedilatildeo poliacutetica que de acordo com Maria Helena
Moreira Alves (2005) envolveu tanto corporaccedilotildees multinacionais o governo dos
Estados Unidos quanto o capital brasileiro associado-dependente e os militares
brasileiros destacando-se entre esses um grupo de oficiais da Escola Superior de Guerra
(ESG) Essa ldquoconspiraccedilatildeordquo foi efetivada anos antes ainda no iniacutecio dos anos 1950 por
instituiccedilotildees civis como o Instituto Brasileiro de Accedilatildeo Democraacutetica (IBAD) e o Instituto
de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) sob a coordenaccedilatildeo da ESG A Doutrina de
Seguranccedila Nacional e Desenvolvimento (DSN) ministrada pela mesma Escola era a
justificativa ideoloacutegica perfeita para a tomada do poder e para o autoritarismo como
uma forma de governo
Um dos criadores dessa doutrina Golbery do Couto e Silva era desde 1952
adjunto do Departamento de Estudos da ESG estabelecimento subordinado ao Estado
Maior das Forccedilas Armadas (EMFA) criado em 1948 com a assistecircncia de consultores
franceses e norte-americanos a fim de desenvolver e consolidar os conhecimentos
necessaacuterios para o exerciacutecio das funccedilotildees de direccedilatildeo e para o planejamento da Seguranccedila
Nacional Dentro da ESG Golbery encontrou condiccedilotildees favoraacuteveis para impulsionar
teses que defenderiam o ecircxito de um projeto global de desenvolvimento em cujas
tarefas o Estado deveria se associar agrave iniciativa privada atraveacutes do apoio intermediaacuterio
de uma elite tecnocraacutetica civil e militar ideologicamente comprometida com um
conjunto de ldquoobjetivos nacionais permanentesrdquo garantindo assim a Seguranccedila
Nacional Essas teses vieram posteriormente a constituir a base do programa da ESG
36
passando a ser conhecidas pela Doutrina de Seguranccedila Nacional (DSN) A DSN
sustentava ainda em meio agrave Guerra Fria o posicionamento do Brasil ao lado do
Ocidente logo em confronto com o bloco sovieacutetico considerando a preservaccedilatildeo da
seguranccedila o fator fundamental de promoccedilatildeo do desenvolvimento Previa dessa forma a
possiacutevel supressatildeo de alguns valores definidores da ordem democraacutetica devido agrave
necessidade de uma progressiva centralizaccedilatildeo de poderes
Para Moreira Alves o grande feito do ldquocomplexo ESGIPESIBADrdquo foi a criaccedilatildeo
antes do golpe de 1964 de uma rede de informaccedilotildees e de uma Doutrina de Seguranccedila
Nacional e Desenvolvimento ambas coordenadas por Golbery para nortear o que viria
a ser um Estado efetivamente centralizado Essa tese eacute sustentada ao se notar que o
general Castelo Branco como primeiro presidente do Estado ditatorial brasileiro
compocircs seus ministeacuterios quase totalmente com membros e colaboradores do complexo
ESGIPESIBAD A DSN passou entatildeo a ser utilizada para moldar as estruturas de
Estado impor formas especiacuteficas de controle para a sociedade civil e delinear um
projeto de governo para o Brasil Assim com destaque para a seguranccedila interna
ameaccedilada pelo comunismo a Doutrina de Seguranccedila Nacional passou a induzir ao
abuso de poder a prisotildees arbitraacuterias agrave tortura e agrave censura agrave imprensa e agraves artes de
forma geral
Eacute interessante perceber que a formulaccedilatildeo da DSN feita pela ESG em colaboraccedilatildeo
com o IPES e o IBAD ao longo de 25 anos tinha como base uma teoria de guerra que
nortearia a atuaccedilatildeo repressora do governo militar A partir do Manual Baacutesico da Escola
Superior de Guerra e dos escritos de Golbery do Couto e Silva em Conjuntura Poliacutetica
Nacional o poder executivo amp a geopoliacutetica do Brasil Moreira Alves destaca os tipos
de guerra apresentados pela Doutrina guerra total guerra limitada ou localizada
guerra revolucionaacuteria ou insurrecional guerra indireta ou ideoloacutegica
37
De acordo com estes paracircmetros a teoria da guerra total baseava-se na estrateacutegia
militar da Guerra Fria deixando de ser estritamente militar para ser tambeacutem econocircmica
financeira poliacutetica psicoloacutegica e cientiacutefica atingindo o mundo de forma global Logo
como as potecircncias envolvidas natildeo podiam travar uma guerra ativa pois existia a
possibilidade de uma destruiccedilatildeo completa e universal a guerra total passou a assumir
diversas formas Ela se destrinchava em guerras limitadas ou localizadas pelas quais as
duas superpotecircncias mediam suas respectivas capacidades de controlar territoacuterios Aleacutem
disso havia as guerras declaradas consideradas claacutessicas e as natildeo-declaradas que
correspondiam agraves formas de guerra revolucionaacuteria ou insurrecional
Essas guerras natildeo-declaradas ou natildeo-claacutessicas representavam uma guerra de
agressatildeo indireta A insurrecional eacute caracterizada como um conflito interno em que
parte da populaccedilatildeo armada busca a deposiccedilatildeo do governo Jaacute a guerra revolucionaacuteria
natildeo envolve necessariamente o emprego da forccedila armada mas significa um conflito
normalmente interno estimulado ou auxiliado do exterior inspirado normalmente em
uma ideologia e que visa agrave conquista do poder pelo controle progressivo da naccedilatildeo A
guerra revolucionaacuteria se referia portanto agrave infiltraccedilatildeo comunista internacional
associada ao bloco sovieacutetico Neste tipo de guerra a guerra ideoloacutegica substituiacutea a
convencional entendida como o enfrentamento direto entre Estados em suas fronteiras
geograacuteficas A caracteriacutestica principal da guerra revolucionaacuteria de acordo com o
Manual Baacutesico da ESG era o envolvimento da populaccedilatildeo do paiacutes-alvo por meio da
conquista ideoloacutegica
[] abrangendo desde a exploraccedilatildeo dos descontentamentos existentes com o
acirramento de acircnimos contra as autoridades constituiacutedas ateacute a organizaccedilatildeo
de zonas dominadas com o recurso agrave guerrilha ao terrorismo e outras taacuteticas
irregulares onde o proacuteprio nacional do paiacutes-alvo eacute utilizado como
combatente (Alves 2005 45)
38
Como a guerra revolucionaacuteria recrutava seus combatentes secretamente toda a
populaccedilatildeo tornava-se suspeita e portanto deveria ser cuidadosamente controlada para
que os ditos ldquoinimigos internosrdquo pudessem ser neutralizados A partir desse
entendimento de guerra revolucionaacuteria que segundo a ESG assombrava o paiacutes cria-se a
necessidade de um planejamento de Seguranccedila Nacional adaptado a essa conjuntura e
por conseguinte de um eficiente e centralizado aparato de informaccedilotildees internas
A partir disso a Constituiccedilatildeo de 1967 criou o Conselho de Seguranccedila Nacional
oacutergatildeo da Presidecircncia da Repuacuteblica responsaacutevel por supervisionar a defesa da seguranccedila
interna e principalmente modificou o significado de Seguranccedila Nacional que desde a
Constituiccedilatildeo de 1946 era associado agrave agressatildeo externa ou seja agrave defesa das fronteiras
territoriais A ameaccedila agrave Seguranccedila Nacional passava entatildeo a ser oficialmente definida
mais como uma ameaccedila agraves fronteiras ideoloacutegicas do que agraves territoriais Portanto ao criar
o Conselho de Seguranccedila Nacional e mudar o entendimento sobre a Seguranccedila
Nacional a Constituiccedilatildeo de 1967 abria o caminho necessaacuterio agrave adaptaccedilatildeo agrave teoria de
seguranccedila interna estipulada anos antes pela ESG
Esta teoria de seguranccedila interna dotou entatildeo o Estado de justificativa para
controlar e reprimir a populaccedilatildeo em geral O caraacuteter oculto da ameaccedila interna tornou
praticamente impossiacutevel se estabelecer limites para as accedilotildees repressivas do Estado e dos
militares e por isso mesmo fragilizou a defesa dos direitos humanos no paiacutes Afinal
todo cidadatildeo passava a ser culpado ateacute que fosse provada a sua inocecircncia Por meio
desse pensamento a raiz dos abusos de poder perpetrados pelo Estado se estruturou Por
isso defende-se aqui que a institucionalizaccedilatildeo dessa crenccedila no inimigo interno criada
pela ESG antes mesmo do golpe civil-militar estimulou a ditadura a nortear o
desenvolvimento das suas estruturas defensivas da sua articulada rede de informaccedilotildees
poliacuteticas e ainda do seu aparato repressivo de controle armado onde os DOI-CODI a
39
partir de 1970 tambeacutem estariam inseridos
12 Os conceitos legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar
Essa crenccedila no inimigo interno criada pela ESG norteou a Seguranccedila Nacional
durante a ditadura militar que se substanciou atraveacutes da alta legalidade autoritaacuteria e
das medidas criadas pelo governo como forma de conter as cizacircnias militares Esses trecircs
fatores juntos contribuiacuteram para consolidaccedilatildeo dos DOI-CODI por todo paiacutes
respaldando a atuaccedilatildeo altamente autoritaacuteria e violenta desses oacutergatildeos
A partir disso o conceito de legalidade autoritaacuteria construiacutedo pelo cientista
poliacutetico norte-americano Anthony Pereira (2010) ajuda a evidenciar como a existecircncia
de laccedilos entre o autoritarismo e o estado de direito do regime militar no Brasil ajudou na
configuraccedilatildeo de uma instituiccedilatildeo como o DOI-CODI Afinal a legalidade autoritaacuteria
identifica as coexistecircncias entre o autoritarismo ditatorial e a continuidade das
instituiccedilotildees juriacutedicas anteriores ao Golpe bem como entre o autoritarismo ditatorial e a
praacutetica de elaboraccedilatildeo de leis ainda que tambeacutem autoritaacuterias
Percebe-se assim que o Brasil obteve um alto grau de legalidade autoritaacuteria na
medida em que a legislaccedilatildeo foi amplamente arbitrada pelo Poder Executivo como forma
de legalizar arbitrariedades poliacuteticas e suprimir direitos da populaccedilatildeo Assim foi
construiacuteda uma sustentaccedilatildeo juriacutedica e poliacutetica necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um aparato de
seguranccedila cada vez mais forte e centralizado que garantiu a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos
DOI-CODI
Afinal a legalidade autoritaacuteria vivenciada no Brasil se baseava na confecccedilatildeo pelo
Poder Executivo de leis publicadas em meios de comunicaccedilatildeo oficiais a fim de
respaldar arbitrariedades A partir dessas leis instrumento associado ao sistema
democraacutetico o governo militar centralizava e reforccedilava o seu poder ditatorial tornando
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nebuloso o sistema em vigor naquele momento no Brasil Ou seja apesar da existecircncia
de uma ditadura militar consolidada havia integraccedilatildeo entre as Forccedilas Armadas e o
Poder Judiciaacuterio ndash que norteava os seus julgamentos pelas novas leis arbitraacuterias
legitimando-as ndash bem como a manutenccedilatildeo do Congresso em funcionamento na maior
parte do tempo Dessa forma a legalidade autoritaacuteria era um elo entre o autoritarismo
ditatorial e o estado de direito conseguindo fazer parecer por algum tempo que o paiacutes
vivenciava um sistema democraacutetico excepcional A praacutetica da legalidade autoritaacuteria na
forma de atos institucionais da Constituiccedilatildeo de 1967 e de leis de Seguranccedila Nacional
por exemplo forneceu os suportes legais necessaacuterios agrave construccedilatildeo do SISSEGIN e agrave
formaccedilatildeo e agrave atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
Aleacutem disso essa praxe da ditadura de agir por meio de leis arbitraacuterias na maior
parte das vezes se relaciona com as cizacircnias militares provocadas no seio dessa
instituiccedilatildeo como reflexos de acontecimentos poliacuteticos Afinal grande parte das leis
autoritaacuterias foram artifiacutecios usados como forma de acalmar os acircnimos na caserna
formada por militares de meacutedias e baixas patentes que reivindicavam mais poder
poliacutetico Assim para conter a oposiccedilatildeo poliacutetica e tambeacutem as reivindicaccedilotildees de poder da
caserna desenharam-se leis arbitraacuterias capazes de suportar um organismo de repressatildeo
onde esses militares trabalhariam com certa autonomia tal como viriam a ser os DOI-
CODI Logo percebe-se aqui que juntamente com a legalidade autoritaacuteria a leitura
dos encaminhamentos poliacutetico-militares feita por Joatildeo Roberto Martins Filho (1993)
sob a luz de conceitos como o de cizacircnias militares baseadas em dissidecircncias militares
internas entre o palaacutecio e a caserna tambeacutem ilumina o entendimento sobre a formaccedilatildeo
e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
Tais encaminhamentos poliacuteticos militares tecircm iniacutecio no dia 9 de abril dez dias
apoacutes o golpe civil-militar de 1964 e ainda antes da posse de Castelo Branco em 15 de
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abril quando o Comando Supremo da Revoluccedilatildeo baixou um ato institucional
posteriormente conhecido como AI-1 que conferia aos militares o poder de puniccedilatildeo a
crimes de cidadatildeos contra o Estado seu patrimocircnio e contra a ordem poliacutetica e social
No entanto o AI-1 previa tambeacutem a possibilidade de passar este poder para as matildeos do
novo presidente da Repuacuteblica dois meses apoacutes a sua posse colocando oficialmente o
Poder Executivo acima dos demais Assim Costa e Silva integrante do Comando e
futuro ministro da Guerra fez expedir um pouco antes da posse de Castelo Branco em
complemento ao AI-1 o Ato do Comando Supremo da Revoluccedilatildeo nordm 9 e a Portaria nordm1
que davam continuidade ao poder de puniccedilatildeo dos militares mesmo depois da posse de
Castelo Branco Com isso foram criadas as condiccedilotildees para que coroneacuteis tenentes-
coroneacuteis majores e capitatildees6 continuassem agindo na caccedila ao ldquoinimigo internordquo
O Ato do Comando Supremo da Revoluccedilatildeo nordm 9 estabelecia que os militares
encarregados de inqueacuteritos e processos (de suspensotildees de direitos poliacuteticos cassaccedilotildees
de mandatos etc) poderiam delegar atribuiccedilotildees referentes a investigaccedilotildees bem como
requisitar inqueacuteritos ou sindicacircncias instituiacutedas por outras esferas Jaacute a Portaria nordm1
determinava a abertura de Inqueacuterito Policial Militar (IPM) para apuraccedilatildeo de crimes
praticados contra o Estado e a ordem poliacutetica social
No entanto no dia 15 de junho de 1964 juntamente com o teacutermino da validade do
AI-1 acabaria tambeacutem o prazo dos militares cassarem mandatos e suspenderem direitos
poliacuteticos Tais militares requisitaram que o poder a eles concedido natildeo fosse cessado o
que foi negado pelo entatildeo presidente Castelo A partir disso a insatisfaccedilatildeo desses
militares acabou por causar o surgimento de uma primeira e consideraacutevel discoacuterdia
interna agrave instituiccedilatildeo militar uma primeira cizacircnia militar A partir dessa situaccedilatildeo de
conflito surge entatildeo a chamada linha dura que se formou atraveacutes do eco que um
6 Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II
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conjunto de pressotildees da jovem oficialidade nessa fase inicial da ditadura encontrou em
meio a alguns ldquoherdeiros civisrdquo do regime e em setores da hierarquia militar Dessa
forma a linha dura foi formada por grupos heterogecircneos de composiccedilatildeo variaacutevel e
ideologia difusa
Logo assim como Martins Filho e diferentemente da interpretaccedilatildeo de grande
parte dos historiadores acredita-se que mesmo em termos ideoloacutegicos a linha dura
estava longe de ser um grupo homogecircneo tendo por denominador comum apenas duas
caracteriacutesticas
Em primeiro lugar as reivindicaccedilotildees de maior rigor na ldquodepuraccedilatildeordquo do
sistema poliacutetico em segundo lugar as expectativas de influenciar
diretamente o processo de tomadas de decisotildees do governo militar Tanto em
um como em outro aspecto suas accedilotildees provocariam problemas para o
governo de Castelo Branco (Martins Filho 1993 61)
Portanto o governo Castelo Branco logo teve que se deparar com a questatildeo da
participaccedilatildeo poliacutetica do conjunto da categoria militar no regime ditatorial Sem atribuir
ao presidente uma visatildeo mais liberal ndash diferentemente daqueles que interpretam as
medidas mais ldquodurasrdquo de Castelo como resultado das pressotildees da linha dura ndash pondera-
se aqui que por parte do governo o redirecionamento de objetivos iniciais era
recorrente sempre que a situaccedilatildeo exigia uma reavaliaccedilatildeo Dessa forma percebe-se que
os rumos poliacuteticos escolhidos pela ditadura tinham como finalidade a preservaccedilatildeo da
hierarquia e da aparente homogeneidade da instituiccedilatildeo castrense o que demandava a
contenccedilatildeo das instabilidades internas
A partir dessa perspectiva destaca-se o caraacuteter flutuante dos conflitos internos ao
regime decorrentes da incompatibilidade de interesses poliacuteticos entre os militares de
altas patentes que possuiacuteam cargos no governo ditatorial representados
43
metaforicamente pelo palaacutecio e militares de meacutedias e baixas patentes que eram
responsaacuteveis por serviccedilos internos a caserna Nesse sentido evidencia-se por exemplo
que apoacutes ser retirado da caserna o poder de cassaccedilatildeo de mandatos e de suspensatildeo de
direitos poliacuteticos as derrotas dos candidatos aliados ao regime ditatorial nas eleiccedilotildees
para governador nos estados da Guanabara e de Minas Gerais em outubro de 1965
ocasionou uma forte divergecircncia entre o palaacutecio e a caserna resultando uma
instabilidade castrense que desembocou em mais uma cizacircnia militar Diante disso na
tentativa de apaziguar a instabilidade militar e por conseguinte os acircnimos da caserna
no fim desse mesmo mecircs Castelo Branco decretaria o AI-27 com vigecircncia prevista ateacute
15 de marccedilo de 1967
Afinal atraveacutes desse Ato a caserna aleacutem de passar a influir no acircmbito da poliacutetica
comeccedilava a ganhar poderes extras Nele se estabelecia a possibilidade de suspensatildeo de
direitos poliacuteticos e de cassaccedilatildeo de mandatos de parlamentares imposiccedilatildeo da eleiccedilatildeo
indireta para a Presidecircncia da Repuacuteblica permissatildeo para o presidente da Repuacuteblica
decretar o recesso do Congresso Nacional e das demais casas legislativas extinccedilatildeo de
partidos poliacuteticos delegaccedilatildeo ao presidente da Repuacuteblica do poder de legislar por
decretos-leis estabelecimento de foro especial militar para civis acusados de crimes
contra a Seguranccedila Nacional ou as instituiccedilotildees militares suspensatildeo das garantias de
vitaliciedade inamovibilidade (dos juiacutezes) e de estabilidade (dos servidores puacuteblicos)
ampliaccedilatildeo de 11 para 16 ministros do Supremo Tribunal Federal (Ato Institucional Nordm2
27 out 1965)
Com a cassaccedilatildeo de mandatos suspensatildeo de direitos poliacuteticos e demissatildeo de
funcionaacuterios puacuteblicos a caserna conseguia alguma interferecircncia nos assuntos poliacuteticos
e com a decretaccedilatildeo de foro militar especial para civis acusados de crimes contra a
7 Para mais informaccedilotildees sobre o AI-2 ver BRASIL Ato Institucional Nordm2 de 27 de outubro de 1965
44
Seguranccedila Nacional ou instituiccedilotildees militares comeccedilava a ganhar um espaccedilo proacuteprio e
aos poucos formar um grupo disposto a agir por sua conta sem maiores consideraccedilotildees
pelas normas legais tendendo a fazer valer suas ideias pela forccedila A futura comunidade
de seguranccedila comeccedilava entatildeo a ser desenhada e a formar o caraacuteter e a atuaccedilatildeo dos
futuros membros de seus oacutergatildeos A montagem do sistema de seguranccedila interna em que
os DOI-CODI seriam inseridos iria a partir das primeiras leis das desavenccedilas internas
e da deflagraccedilatildeo dos primeiros Atos Institucionais se tornando viaacutevel
Entretanto mesmo apoacutes o AI-2 a crise no regime castrense continuava A
caserna ansiosa por mais espaccedilo poliacutetico comeccedilava a se organizar para a ascensatildeo de
outra forccedila ao governo se articulando em torno do entatildeo ministro da Guerra o general
Costa e Silva A desuniatildeo hieraacuterquica provocada pela disputa sucessoacuteria se configurava
naquele momento como um importante fator da crise do regime militar Em meio a este
clima de tensatildeo Castelo Branco e seus partidaacuterios os ditos castelistas se preocupavam
com a ldquoinstitucionalizaccedilatildeo da revoluccedilatildeordquo Diante dessa configuraccedilatildeo a ldquorevoluccedilatildeo
castelistardquo de fato acabou sendo implantada pelo presidente e os pilares de seu
processo foram a Lei de Seguranccedila Nacional e a Constituiccedilatildeo de 1967
A Carta de 1967 incorporou boa parte das medidas autoritaacuterias estabelecidas pelos
atos institucionais Entre essas as que instituiacuteam que toda pessoa natural ou juriacutedica
seria responsaacutevel pela Seguranccedila Nacional nos limites definidos em lei e que o foro
militar previsto no AI-2 por limitado periacuteodo de tempo ficaria definitivamente
estendido aos civis por tempo indeterminado nos casos de crimes contra a Seguranccedila
Nacional Jaacute a Lei de Seguranccedila Nacional reflexo tambeacutem do caraacuteter ldquodurordquo do final do
governo Castelo transformava em legislaccedilatildeo a Doutrina de Seguranccedila Nacional da
ESG legalizando a concepccedilatildeo de ldquoguerra internardquo e de ldquosubversatildeordquo dois dias antes da
chegada de Costa e Silva ao poder presidencial Essas uacuteltimas medidas do governo de
45
Castelo merecem aqui destaque por significarem um impulso agrave criaccedilatildeo de um setor
voltado para a repressatildeo poliacutetica seara em que os DOI-CODI atuariam anos agrave frente
Assim em meio a um clima anti-castelista em 15 de marccedilo de 1967 Costa e
Silva assume o governo militar prometendo inclusive uma maior humanizaccedilatildeo da
poliacutetica Entretanto com a eclosatildeo de protestos de rua contra a violecircncia ditatorial o
novo presidente logo retomaria o aspecto ldquorevolucionaacuteriordquo do regime militar e
decretaria o Ato Institucional Nordm5 (AI-5) 8
Afinal a partir dos discursos do deputado
Maacutercio Moreira Alves evocando os brasileiros a natildeo comparecerem ao tradicional
desfile do dia sete de setembro daquele ano de 1968 Costa e Silva e o palaacutecio passaram
a ser extremamente pressionados pela caserna a reagir A recusa da Cacircmara dos
Deputados em abrir um processo para cassaccedilatildeo do entatildeo deputado foi a justificativa
necessaacuteria para que o presidente convocasse a cuacutepula do aparelho militar e os juristas
palacianos para darem forma ao AI-5 vindo a decretaacute-lo na noite do dia 13 de dezembro
de 1968
Percebe-se que a conjuntura de 1968 iniciado com os protestos estudantis de
massa tornou pela primeira vez desde o golpe de 1964 momentaneamente unificado o
movimento de repuacutedio de expressivos setores sociais ao avanccedilo da repressatildeo militar
Este fato que a princiacutepio pode fazer crer ter estimulado uma desuniatildeo militar parece
ter sido um fator adicional de uniatildeo das Forccedilas Armadas As tensotildees internas agrave
instituiccedilatildeo portanto foram neste momento colocadas em suspenso e a situaccedilatildeo militar
diante da ofensiva da oposiccedilatildeo teria criado uma espeacutecie de unidade de crise Poreacutem
esta unidade de crise das Forccedilas Armadas rapidamente se fragmentou trazendo agrave tona
novamente em meados de 1968 um variado e complexo conjunto de tensotildees no campo
militar Esta unidade no entanto voltaria a existir em torno da decretaccedilatildeo do AI-5 apoacutes
8 Para mais informaccedilotildees sobre o AI-5 ver BRASIL Ato Institucional Nordm5 de 13 de dezembro de 1968
46
a derrota na votaccedilatildeo no Congresso e quando as pressotildees da caserna em prol da
militarizaccedilatildeo do governo se voltaram para o palaacutecio
Nesse momento os generais do governo se sentiram muito mais ameaccedilados do
que na jaacute mencionada instabilidade gerada pelas derrotas nas eleiccedilotildees para governador
de 1965 O fato da oficialidade rebelde de entatildeo natildeo ter um porta-voz em postos de
comando como era na eacutepoca Costa e Silva e por isso parecer mais difusa a tornava
mais ameaccediladora agrave integridade da instituiccedilatildeo militar Assim a explicaccedilatildeo para
juntamente com a caserna os generais cobrarem do Ministro do Exeacutercito uma imediata
tomada de decisatildeo em favor da ldquoRevoluccedilatildeordquo estava portanto na busca pela
permanecircncia de uma unidade das Forccedilas Armadas Dessa forma momentos antes do AI-
5 a unidade da crise novamente se formou soacute que dessa vez por motivos inerentes
unicamente agrave proacutepria instituiccedilatildeo militar (Martins Filho 1993 158-174)
O AI-5 foi ateacute entatildeo a maior expressatildeo legal do autoritarismo da ditadura militar
e construiu uma base essencial para que em 1970 surgissem os DOI-CODI Afinal
aleacutem de natildeo estabelecer um prazo final para sua vigecircncia inovando em relaccedilatildeo aos
demais Atos Institucionais o AI-5 tornou legal a suspensatildeo da garantia de ldquohabeas
corpusrdquo nos casos de crimes poliacuteticos contra a Seguranccedila Nacional Logo a partir
desse Ato foram estabelecidas as condiccedilotildees necessaacuterias para a institucionalizaccedilatildeo dos
sistemas de seguranccedila e de informaccedilotildees bem como o surgimento da Comissatildeo Geral de
Investigaccedilotildees (CGI) na tentativa de combate agrave corrupccedilatildeo O sistema de seguranccedila
esboccedilado naquele momento buscava o aperfeiccediloamento sob a eacutegide da ldquoguerra
revolucionaacuteriardquo mencionada no preacircmbulo do proacuteprio AI-5
Considerando que assim se torna imperiosa a adoccedilatildeo de medidas que
impeccedilam que sejam frustrados os ideais superiores da Revoluccedilatildeo
preservando a ordem a seguranccedila a tranquilidade o desenvolvimento
econocircmico e cultural e a harmonia poliacutetica e social do Paiacutes comprometidos
47
por processos subversivos e de guerra revolucionaacuteria (Ato Institucional nordm
5 13 dez 1968)
Logo as cizacircnias militares e a legislaccedilatildeo a elas relacionada contribuiacuteram para a
formaccedilatildeo do cenaacuterio propiacutecio agrave institucionalizaccedilatildeo do aparato de repressatildeo Aparato este
que a partir do AI-5 foi se estruturando em trecircs grandes sistemas o SISNI Sistema
Nacional de Informaccedilotildees a CGI Comissatildeo Geral de Investigaccedilotildees e o SISSEGIN
Sistema de Seguranccedila Interna Este ao ser criado abriria espaccedilo para a repressatildeo
poliacutetica centralizada e institucionalizada dos DOI-CODI
13 A montagem e o funcionamento do SISSEGIN
Ao longo dos anos 70 os DOI-CODI passariam a ser os principais oacutergatildeos de
atuaccedilatildeo do SISSEGIN e um dos pontos centrais do aparelho de repressatildeo brasileiro Ao
seu lado em outras esferas de competecircncia estavam os oacutergatildeos do Sistema Nacional de
Informaccedilotildees (SISNI) e os da Comissatildeo Geral de Investigaccedilatildeo (CGI) Cada um desses
sistemas possuiacutea uma competecircncia especiacutefica o SISNI era responsaacutevel por buscar as
informaccedilotildees necessaacuterias agrave manutenccedilatildeo do regime de Seguranccedila Nacional procurando
desvendar quem eram os opositores ao governo os chamados ldquoinimigos internosrdquo
enquanto a CGI buscava o combate agrave corrupccedilatildeo no serviccedilo puacuteblico Jaacute o SISSEGIN
operava de forma centralizada tanto na investigaccedilatildeo quanto na apreensatildeo dos mesmos
ldquoinimigos internosrdquo
Para a anaacutelise do SISSEGIN vale-se aqui do trabalho de Carlos Fico Como eles
agiam (2001) feito com base no acervo da extinta Divisatildeo de Seguranccedila e Informaccedilotildees
do Ministeacuterio da Justiccedila inclusive nos documentos sigilosos Afinal nesse estudo Fico
revela em detalhes o que nenhum outro historiador havia conseguido ateacute entatildeo a
48
formaccedilatildeo e o funcionamento das comunidades de informaccedilotildees e de seguranccedila da
ditadura militar brasileira
A partir disso destaca-se aqui que a estrutura e o funcionamento do SISSEGIN
foram instituiacutedos e regulamentados por meio de decretos sigilosos O mesmo padratildeo de
regulamentaccedilatildeo foi seguido pela Operaccedilatildeo Bandeirantes (Oban) instituiccedilatildeo informal
criada em Satildeo Paulo em julho de 1969 bem como pelos DOI-CODI instituiacutedos no
primeiro semestre de 1970 formalizando a experiecircncia da Oban e espalhando-a por
todas as Regiotildees Militares do Brasil Jaacute que eacute atraveacutes dessas Regiotildees que o Exeacutercito
divide geograficamente sua administraccedilatildeo sobre o territoacuterio brasileiro foi tambeacutem por
meio delas que partiu durante parte da ditadura militar as responsabilidades territoriais
dos DOI-CODI Logo o DOI-CODI do Rio de Janeiro ficava responsaacutevel pelos crimes
poliacuteticos ocorridos na Primeira Regiatildeo ou seja nos estados do Rio de Janeiro e do
Espiacuterito Santo
A justificativa para esse sigilo dos atos que regiam o SISSEGIN e os DOI-CODI
estava na maior mobilidade e autonomia de accedilatildeo que o segredo traria para a atuaccedilatildeo
repressora desses organismos Dessa forma a repressatildeo podia agir sem grandes
limitaccedilotildees natildeo esbarrando em questotildees externas agraves decisotildees militares tais como os
Direitos Humanos Universais de 1948
No entanto eacute tambeacutem evidente a importacircncia que alguns atos legais natildeo-sigilosos
tiveram para a construccedilatildeo do cenaacuterio que sustentaria a atuaccedilatildeo do SISSEGIN e dos
DOI-CODI Eacute o caso por exemplo da adoccedilatildeo do foro especial para crimes poliacuteticos
que a partir do AI-2 e da subsequente incorporaccedilatildeo dessa medida pela Constituiccedilatildeo de
1967 passaram a ser julgados pelos tribunais militares e a suspensatildeo de garantias
individuais tal como o habeas corpus feita pelo AI-5 de dezembro de 1968 Afinal
natildeo seria eficaz para a atuaccedilatildeo desses oacutergatildeos repressores que seus prisioneiros poliacuteticos
49
atraveacutes do habeas corpus pudessem ser imediatamente soltos pela Justiccedila ou que
pudessem ser julgados por tribunais civis correndo o risco do juiz responsaacutevel pela
causa natildeo estar totalmente articulado aos princiacutepios impostos pela Doutrina de
Seguranccedila Nacional
Dessa forma ateacute o AI-5 foram levantadas as bases legais para que um Sistema de
Seguranccedila Nacional centralizado combativo e violento fosse institucionalizado Por
outro lado a partir do AI-5 para ter a autonomia e a mobilidade que se julgavam
necessaacuterias a organizaccedilatildeo desse Sistema de Seguranccedila Nacional foi sigilosa Ou seja a
reestruturaccedilatildeo do sistema repressivo com os seus novos oacutergatildeos e o detalhamento de
suas funccedilotildees internas natildeo foi publicada oficialmente por nenhum tipo de legislaccedilatildeo A
operacionalidade da seguranccedila interna foi regida por diretrizes secretas e o SISSEGIN
instituiacutedo por decretos sigilosos do Conselho de Seguranccedila Nacional (CSN) aprovados
pelo Presidente da Repuacuteblica
Por isso mesmo uma das primeiras medidas para o estabelecimento do SISSEGIN
e posteriormente dos DOI-CODI foi o fortalecimento do Conselho de Seguranccedila
Nacional cujas competecircncias foram ampliadas por atualizaccedilatildeo na legislaccedilatildeo operada
em janeiro de 1968 No ano seguinte em julho a Diretriz para a Poliacutetica de Seguranccedila
Interna foi instituiacuteda secretamente a fim de consolidar o SISSEGIN e adotar
nacionalmente o padratildeo da Oban (Operaccedilatildeo Bandeirante) No entanto somente em
1970 durante a vigecircncia do governo Meacutedici o modelo da Oban foi adaptado
transformado em DOI-CODI e de fato instituiacutedo por todas as Regiotildees Militares do
paiacutes
A Oban foi secretamente instituiacuteda em 1ordm de julho de 1969 no quartel do II
Exeacutercito em Satildeo Paulo No intuito de combater de forma mais organizada e eficaz a
esquerda armada a Oban usava de sua ldquoilegalidade oficialrdquo para agir contra os
50
ldquoinimigos internosrdquo sem precisar adequar seus meacutetodos de trabalho aos Direitos
Humanos A Oban criava uma estrutura nova que coordenava e integrava os diversos
oacutergatildeos de repressatildeo poliacutetica ndash entre eles as 2ordf seccedilotildees da Poliacutecia Militar Exeacutercito e
Marinha de Satildeo Paulo responsaacuteveis pelas investigaccedilotildees de crimes poliacuteticos nessas
instituiccedilotildees ndash que operavam de forma desordenada e ineficaz contra a esquerda armada
em aparente ascensatildeo O funcionamento da Oban se dava por meio de um trabalho
coordenado de diversas instacircncias conforme apresenta Fico no seguinte trecho
O funcionamento da Oban supunha um trabalho coordenado de diversas
instacircncias Toda quarta-feira era feita uma reuniatildeo no quartel-general do II
Exeacutercito na qual eram discutidas e avaliadas as accedilotildees da guerrilha da
semana Participavam dessas reuniotildees o chefe da 2ordf Seccedilatildeo do II Exeacutercito o
comandante da Oban major Waldyr Coelho um representante da 2ordf Seccedilatildeo
do II Exeacutercito o oficial chefe da 2ordf Seccedilatildeo do Distrito Naval o chefe da 2ordf
Seccedilatildeo da Poliacutecia Militar do Estado de Satildeo Paulo um representante da Poliacutecia
Federal um representante da Divisatildeo da Ordem Social e outro da Ordem
Poliacutetica ambos do DOPS (Fico 2001 117)
Aleacutem dos meios militar e policial a Oban tambeacutem era sustentada pelo
empresarial financeiro e parte das autoridades civis paulistas da eacutepoca conforme indica
trecho do artigo da historiadora Mariana Joffily para a revista Caros Amigos
O ato que celebrou a criaccedilatildeo da Oban foi organizado com pompa coqueteacuteis
e salgadinhos e contou com a presenccedila das principais autoridades poliacuteticas
de Satildeo Paulo o governador Roberto de Abreu Sodreacute o prefeito Paulo Maluf
o comandante do II Exeacutercito (atual Regional Sudeste) general Joseacute
Canavarro Pereira entre outros Tambeacutem acorreram agrave cerimocircnia figuras
proeminentes da elite paulista oriundas dos meios empresarial e financeiro
Luiz Macedo Quentel Antonio Delfim Netto Gastatildeo Vidigal Paulo Sawaya
e Henning Albert Boilesen Parte do setor empresarial paulista e das
multinacionais ndash com representaccedilatildeo em Satildeo Paulo ndash acreditava que as accedilotildees
guerrilheiras colocavam em risco a boa conduta dos negoacutecios e concorreu
51
para o apoio financeiro e material As autoridades da cidade colaboraram
com infra-estrutura incluindo a cessatildeo de partes das dependecircncias da 36ordf
delegacia de poliacutecia situada na Rua Tutoacuteia (Vila Mariana) para a
acomodaccedilatildeo do novo oacutergatildeo repressivo (Joffily 14 set 2009)
Percebe-se portanto que muitos empresaacuterios de Satildeo Paulo ajudaram a financiar a
Oban Entre outros gastos esse financiamento era destinado agrave capacitaccedilatildeo de seus
agentes e agrave compra de equipamentos de tortura novos entre eles uma maacutequina de
choques eleacutetricos nomeada de ldquoPianola Boilesenrdquo em homenagem a Henning Albert
Boilesen entatildeo presidente da empresa Ultragaacutes e um dos empresaacuterios agrave frente desse tipo
de investimento na Oban Boilesen assim como os demais empresaacuterios envolvidos
financeiramente com a Oban por desacreditar nas instituiccedilotildees do Estado que ateacute entatildeo
eram responsaacuteveis pelo combate agrave esquerda armada e por ter interesses reais nesse
combate optou por capitalizar a Oban Afinal uma instituiccedilatildeo extra-oficial de accedilatildeo
coordenada e com grande investimento teria autonomia e capacidade para neutralizar os
grupos da esquerda armada que vinham causando prejuiacutezos a seus negoacutecios tais como
assaltos e atentados Justamente devido a essa relaccedilatildeo que tinha com a Oban Boilesen
foi assassinado posteriormente em 1971 por militantes da esquerda armada 9
Percebe-se portanto que a Oban tinha caraacuteter paramilitar e unia a iniciativa
privada ao Estado a fim de que o poder de poliacutecia deste fosse fortalecido Sua criaccedilatildeo
empregou portanto um novo tipo de atuaccedilatildeo militar em que o combate ao ldquoinimigo
internordquo contaria com uma forte autonomia de accedilatildeo respaldada pelo sigilo dos decretos
regulamentares e pelo financiamento do empresariado A Oban se consagrava como um
poderoso e promissor modelo de repressatildeo
No entanto o envolvimento de oficiais das Forccedilas Armadas policiais e
empresaacuterios com a repressatildeo poderia assumir proporccedilotildees que fugissem ao controle
9 Para mais informaccedilotildees sobre Henning Albert Boilesen e a relaccedilatildeo do empresariado com a Oban ver o
filme documentaacuterio Cidadatildeo Boilesen (Brasil 2009)
52
militar e configurassem algumas vezes conflitos de interesses Assim com o sucesso
das accedilotildees da Oban no combate aos opositores armados os militares optaram por
ampliar o seu modelo para todo o Brasil desde que incorporasse algumas reformulaccedilotildees
que assegurassem o total controle militar Surgiriam entatildeo os DOI-CODI
Os DOI-CODI eram portanto a institucionalizaccedilatildeo e a sofisticaccedilatildeo do modelo da
Oban Afinal eles coordenavam todas as demais Forccedilas e Poliacutecias sob o comando do
Exeacutercito e estavam espalhados por todas as Regiotildees Militares do paiacutes Eram a nova
estrutura do SISSEGIN implantada por diretrizes secretas que o Conselho de Seguranccedila
Nacional havia formulado Tais diretrizes estabeleceram que para cada um dos
comandos militares haveria um Conselho de Defesa Interna (CONDI) um Centro de
Operaccedilotildees de Defesa Interna (CODI) e um Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees
(DOI) todos sob responsabilidade do comandante do Exeacutercito respectivo denominado
comandante da ldquoZona de Defesa Internardquo (ZDI) O paiacutes ficou assim dividido em seis
ZDI Podiam ser criadas ainda Aacutereas de Defesa Interna (ADI) ou Sub-Aacutereas de Defesa
Interna (SADI) em regiotildees que merecessem cuidados especiais
Aos Conselhos de Defesa Interna (CONDI) cabia assessorar os comandantes das
ZDI e tambeacutem facilitar a esses comandantes a coordenaccedilatildeo de accedilotildees e a necessaacuteria
cooperaccedilatildeo por parte das mais altas autoridades civis e militares com sede nas
respectivas aacutereas de responsabilidade Logo os CONDI podiam ser integrados por
governadores ou seus representantes assim como comandantes das Forccedilas Navais e
Aeacutereas comandantes subordinados secretaacuterios de seguranccedila e comandantes das demais
Poliacutecias ou outras autoridades conforme o comandante da respectiva ZDI julgasse
necessaacuterio Tinham como aacuterea de jurisdiccedilatildeo territorial as Regiotildees Militares cujas sedes
se localizam em Satildeo Paulo Rio de Janeiro (1ordm BPE) Brasiacutelia Minas Gerais Rio Grande
do Sul Bahia Pernambuco e Cearaacute No entanto segundo Fico os CONDI natildeo tiveram
53
funcionamento significativo
Os Centros de Operaccedilotildees de Defesa Interna (CODI) eram oacutergatildeos de planejamento
e coordenaccedilatildeo das medidas de defesa interna dirigidos pelo chefe do Estado-Maior do
Exeacutercito da Regiatildeo e compostos por representantes de todas as Forccedilas bem como da
divisatildeo local de ordem poliacutetica e social das Poliacutecias Civil Militar Federal e da agecircncia
local do Serviccedilo Nacional de Informaccedilotildees (SNI) Entre suas funccedilotildees estavam o
planejamento o controle e a execuccedilatildeo das medidas de defesa interna a coordenaccedilatildeo dos
meios utilizados para esta execuccedilatildeo e a ligaccedilatildeo com todos os escalotildees envolvidos
devendo possibilitar a conjugaccedilatildeo de esforccedilos do Exeacutercito da Marinha da Aeronaacuteutica
do SNI do Poliacutecia Federal e das Secretarias de Seguranccedila Puacuteblica
Jaacute os Destacamentos de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) tinham uma
estruturaccedilatildeo interna tiacutepica composta por setores especializados em operaccedilotildees externas
informaccedilotildees contra-informaccedilotildees interrogatoacuterios e anaacutelises aleacutem de assessoria juriacutedica
e policial e setores administrativos O trabalho nesses destacamentos era ininterrupto
Utilizavam regularmente dois regimes de trabalho um de expediente regular (das 8 agraves
18 horas) e outro atraveacutes de plantotildees de 24 horas por 48 de folga Abaixo visualiza-se a
estrutura orgacircnica dos DOI que sintetiza suas funccedilotildees e sua hierarquia institucional
(FICO 2001 123-125)
54
DOI do Exeacutercito
No organograma acima nota-se que os DOI eram divididos por setores seccedilotildees e
subseccedilotildees Esses satildeo caracterizados por Fico de acordo com suas funccedilotildees e
composiccedilotildees e tambeacutem pelo coronel Freddie Perdigatildeo Pereira em sua monografia que eacute
analisada na segunda frente do estudo aqui traccedilado Percebe-se que essa caracterizaccedilatildeo
feita por Fico e por Pereira eacute muito proacutexima uma vez que eles utilizam os mesmos
termos e palavras para descrever o trabalho ou a formaccedilatildeo de determinado setor ou
seccedilatildeo Diante disso torna-se evidente que ambos os trabalhos se basearam no mesmo
documento que apesar de natildeo ser citado na monografia de Pereira eacute referenciado por
Fico como ldquoSistema de Seguranccedila Interna SISSEGIN Documento classificado como
lsquosecretorsquo [1974] Capiacutetulo 2rdquo Entretanto enquanto o Sistema de Seguranccedila Nacional
como um todo eacute o foco da pesquisa de Fico o DOI eacute o objeto de Pereira o que por
conseguinte o faz apresentar de forma mais detalhada a composiccedilatildeo de cada uma de
suas partes integrantes Logo optou-se aqui por tratar da estrutura interna dos DOI na
Comandante
Seccedilatildeo de contra-informaccedilotildees Turma de comando
Setor de operaccedilotildees de informaccedilotildees Setor de administraccedilatildeo
Turno auxiliar
Assistecircncia juriacutedica
e policial
Seccedilatildeo
administrativa
Seccedilatildeo de busca e
apreensatildeo
Setor de
investigaccedilotildees
Setor de anaacutelise e
informaccedilotildees
Subseccedilatildeo de
interrogatoacuterio Subseccedilatildeo de anaacutelise
55
proacutexima frente de estudo durante a anaacutelise da monografia de Pereira onde
trabalharemos com os DOI-CODI sob o ponto de vista de um de seus agentes ainda
durante a ditadura
Com relaccedilatildeo agrave atuaccedilatildeo dos DOI-CODI dentro do SISSEGIN Maria Celina
DrsquoArauacutejo em Os anos de Chumbo a memoacuteria militar sobre a repressatildeo (1994)
apresenta grandes contribuiccedilotildees para a presente pesquisa uma vez que em sua obra
analisa por meio de depoimentos ineacuteditos de militares a atuaccedilatildeo dos oacutergatildeos de
informaccedilatildeo e repressatildeo poliacutetica durante a ditadura militar
Partindo dessa abordagem de DrsquoArauacutejo destaca-se que diferentemente do que
acontecia na Oban cada um dos DOI-CODI tinha por comandante-geral o chefe do
Estado-Maior do Exeacutercito de sua respectiva Regiatildeo Militar e seu financiamento contava
com recursos orccedilamentaacuterios regulares do governo Logo os DOI-CODI natildeo
estabeleciam uma ligaccedilatildeo direta com o capital privado que entretanto ainda podia
investir de forma indireta na repressatildeo por meio de doaccedilotildees de maacutequinas e serviccedilos
Dessa forma os DOI-CODI tinham uma maior independecircncia financeira que junto com
a centralizaccedilatildeo hieraacuterquica que tambeacutem os caracterizava permitia que suas
investigaccedilotildees e accedilotildees procedessem de forma ainda mais eficiente Afinal esses atributos
evitavam que suas operaccedilotildees estivessem suscetiacuteveis agrave duplicidade de tarefas a
competiccedilotildees e a conflitos de interesses maximizando os seus resultados e tornando-os
uma espeacutecie de sofisticaccedilatildeo da repressatildeo
Aleacutem disso percebe-se que essa sofisticaccedilatildeo dos DOI-CODI tambeacutem era formada
pelo proposital distanciamento ali mantido entre os militares do governo e os agentes
desses oacutergatildeos de repressatildeo Afinal a ditadura ao mesmo tempo em que sancionava a
tortura nos seus ldquoporotildeesrdquo estrategicamente negava a sua existecircncia perante a sociedade
Assim esse cenaacuterio que isentava os governantes e os demais militares relacionados ao
56
poder poliacutetico do paiacutes de qualquer ligaccedilatildeo com a tortura se mantinha atraveacutes da
seguinte configuraccedilatildeo de um lado o torturador ndash que natildeo montou a maacutequina e jamais
efetuaria a tortura num salatildeo do quartel do Exeacutercito se temesse a reaccedilatildeo de seus
comandantes ndash e de outro o seu superior responsaacutevel pela ordem puacuteblica e
beneficiaacuterio direto do poder poliacutetico ndash que sancionava as maacutequinas mas natildeo tocava nos
presos
Dessa forma os DOI responsaacuteveis por accedilotildees que englobavam as prisotildees e os
interrogatoacuterios dos presos poliacuteticos eram instituiccedilotildees que prezavam por natildeo ser
externamente identificadas por seus meacutetodos violentos O sistema funcional dos DOI
era entatildeo complexo e informal de modo que por mais que neles existissem hierarquia e
coordenaccedilatildeo as brechas para que a falta de controle se propagasse eram amplas a fim
de que os meacutetodos natildeo regulamentares tais como as torturas pudessem ser
desempenhados com a eficiecircncia e a recorrecircncia necessaacuterias sem serem relacionados
diretamente a um comando
Diante disso justifica-se que conforme apurado por Maria Celina DrsquoArauacutejo a
versatildeo oficial dos militares ainda possa ser a de que a tortura jamais resultou de
qualquer ordem ou orientaccedilatildeo superior E mesmo quando chega a ser admitida apareccedila
como exceccedilatildeo como abuso ou excesso de poucos Entretanto torna-se aqui evidente a
incoerecircncia dessa versatildeo militar Afinal verifica-se que assim como em todos os
organismos militares nos DOI tambeacutem existiam uma forte hierarquia a ser cumprida
onde apesar de uma estrutura complexa qualquer accedilatildeo deveria ser remetida a um
superior o que sugere que a questatildeo da responsabilidade sempre poderia ser resgatada
Logo se militares reconhecem que existiram ldquoexcessosrdquo na eacutepoca e mesmo assim os
chefes imediatos de tais infratores natildeo tomaram as devidas providecircncias encontra-se
nos DOI entatildeo uma forte incongruecircncia com relaccedilatildeo ao princiacutepio militar de
57
responsabilizaccedilatildeo do chefe-superior Portanto diante dessa constataccedilatildeo de como eram
tratados os torturadores nos DOI percebe-se que apesar de velada em geral a tortura
era um procedimento ali consentido
2 O DOI-CODI por ele mesmo
A anaacutelise ateacute agora feita por meio da historiografia cede aqui lugar para se
concentrar sobre uma fonte especiacutefica pela qual a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
satildeo vistas por um acircngulo mais proacuteximo a partir do olhar de um de seus agentes
enquanto a instituiccedilatildeo ainda estava em atividade Trata-se do trabalho O Destacamento
de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de
combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e perspectivas apresentado em 1978 agrave Escola de
Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie
Perdigatildeo Pereira10
posteriormente apontado por ex-prisioneiros poliacuteticos como o
torturador ldquoNagibrdquo do DOI carioca do iniacutecio dos anos 1970
A referida fonte eacute uma espeacutecie de trabalho final da ECEME estabelecimento de
ensino tradicional do Exeacutercito brasileiro situado no bairro da Praia Vermelha no Rio de
Janeiro cuja missatildeo eacute a preparaccedilatildeo de oficiais superiores para o exerciacutecio de funccedilotildees
de Estado-Maior comando chefia direccedilatildeo e assessoramento dos mais elevados
escalotildees da Forccedila Terrestre 11
Logo eacute fruto de uma espeacutecie de preparaccedilatildeo que o
coronel Pereira estava se submetendo a fim de ocupar algum cargo de chefia dentro do
Exeacutercito
Escrita durante a ditadura militar enquanto os DOI-CODI ainda estavam em
funcionamento embora em menor atividade devido agrave propagaccedilatildeo de denuacutencias sobre
10
Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II 11
ESCOLA de Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) [acesso em 29 jan 2012] Disponiacutevel
em httpwwwecemeensinoebbreceme
58
torturas e mortes ocasionadas dentro do Destacamento a monografia permite trabalhar
diretamente com a visatildeo de um dos agentes do DOI-CODI ainda no ldquocalor da horardquo
como se costuma dizer O tema abordado eacute a atuaccedilatildeo dos DOI durante o seu periacuteodo de
maior efetividade de 1970 a 1973 provavelmente como uma tentativa de fortalecer a
instituiccedilatildeo e reforccedilar o seu poder trazendo agrave tona os ldquovelhos temposrdquo de grande
atividade
Em 1978 momento em que a monografia foi escrita o DOI-CODI havia
diminuiacutedo suas atividades de repressatildeo se restringindo apenas ao papel de investigaccedilatildeo
Como indica o referido coronel no seguinte trecho
Fruto principalmente do trabalho anocircnimo e incansaacutevel dos DOI o
terrorismo no Brasil foi praticamente aniquilado Em funccedilatildeo disso tais
oacutergatildeos foram e continuam sendo alvo de uma das mais virulentas campanhas
difamatoacuterias que a imprensa brasileira e internacional jaacute desencadearam
contra uma instituiccedilatildeo E os DOI que surgiram no fragor da luta e com
estrutura adaptada para enfrentar a accedilatildeo direta no combate aberto
reformulam a sua atuaccedilatildeo [] O efetivo elevado trabalhando atualmente na
Seccedilatildeo de Investigaccedilotildees pode dar ideia do tipo de trabalho que ora eacute
desenvolvido nos DOI com prioridade absoluta Trata-se do levantamento
total das organizaccedilotildees atuantes a partir da vigilacircncia permanente e cerrada
sobre os elementos jaacute identificados [] o trabalho nos DOI deixou de ter
aquele caraacuteter de combate de peito aberto tantas vezes levado a efeito por
seus pioneiros Transformou-se o DOI atual numa verdadeira agecircncia de
informaccedilotildees onde impera o trabalho frio e calculado do analista a teacutecnica
sofisticada de aparelhagem eletrocircnica substituindo a coragem pessoal de
seus elementos
Os DOICODI satildeo e sempre seratildeo as sentinelas atentas e vigilantes de nossa
liberdade (Pereira 1978 28-35)
Essa mudanccedila promovida nos DOI se relaciona diretamente com o momento
vivido pelo Brasil em 1978 Existia entatildeo uma incompatibilidade entre a distensatildeo
59
poliacutetica ldquolenta gradual e segurardquo comandada pelo Presidente Ernesto Geisel a fim de
abrir o paiacutes e instalar futuramente uma democracia e as denuacutencias sobre torturas e
mortes que continuavam a ocorrer dentro dos DOI-CODI e eram com frequecircncia
noticiadas pelos jornais do Brasil e do mundo Assim com o intuito de reverter este
cenaacuterio desfavoraacutevel Geisel optou por exonerar em 1976 o comandante do II Exeacutercito
o general Ednardo DAacutevila Melo afastar do governo no ano seguinte o entatildeo ministro
do Exeacutercito o general Siacutelvio Frota ndash visto por muitos agentes dos DOI como uma
lideranccedila contra a distensatildeo poliacutetica e o enfraquecimento das operaccedilotildees repressoras e
apoiado como eventual candidato agrave Presidecircncia da Repuacuteblica ndash e de forma geral
diminuir a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI no combate direto agrave ldquosubversatildeordquo concentrando suas
atividades apenas na investigaccedilatildeo
Esta atitude logicamente causou resistecircncia entre muitos integrantes dos DOI-
CODI que tentavam provar a necessidade da atuaccedilatildeo repressora da instituiccedilatildeo para a
proteccedilatildeo da Seguranccedila Nacional Essas tentativas incluiacuteam muitas accedilotildees forjadas pelos
proacuteprios agentes dos DOI como atentados a bomba em bancas de jornal instituiccedilotildees que
lutavam contra a ditadura ndash como a sede da OAB no Rio de Janeiro atacada em agosto
de 1980 quando morreu a secretaacuteria Lyda Monteiro ndash e shows populares ndash como a
tentativa frustrada de ataque a bomba de dois agentes do DOI do Rio de Janeiro em
maio de 1980 no show em homenagem ao dia do trabalhador no Riocentro
Outro aspecto dessa fonte que merece tambeacutem ser aqui destacado satildeo as
circunstacircncias pessoais que impulsionaram a sua confecccedilatildeo Afinal se a funccedilatildeo da
ECEME eacute preparar militares para ocupar cargos de chefia dentro do Exeacutercito
certamente a monografia foi um requisito necessaacuterio para que o coronel Pereira se
preparasse para uma promoccedilatildeo na carreira militar Partindo dessa informaccedilatildeo e
juntando-a ao dado que Elio Gaspari apresenta na obra A Ditadura Escancarada (2002
60
184) de que foi oferecido ao mesmo coronel no iniacutecio de 1980 o posto de general de
brigada percebe-se que de fato essa preparaccedilatildeo de Pereira lhe gerou frutos Poreacutem de
acordo com Gaspari para ser general de brigada ele teria que aceitar comandar uma
tropa em uma unidade militar de Satildeo Paulo o que natildeo lhe agradou Preferiu entatildeo a
opccedilatildeo de ir para a reserva e ao mesmo tempo permanecer como contratado em um
cargo na seccedilatildeo de operaccedilotildees do SNI do Rio de Janeiro recebendo no total uma receita
superior agrave de general de Exeacutercito Essa situaccedilatildeo tal como o tema escolhido para sua
monografia eacute mais uma evidecircncia do apreccedilo que coronel Pereira tinha pelo ofiacutecio
investigativo que outrora exerceu nos DOI Diante de sua progressatildeo profissional e do
esvaziamento que os DOI vinham sofrendo o SNI12
se tornava uma opccedilatildeo atraente
pois aleacutem de ser uma instituiccedilatildeo que investigava elementos que ameaccedilavam a
Seguranccedila Nacional estava diretamente ligada ao alto esquadratildeo do Exeacutercito ciacuterculo de
que Pereira fazia parte nesse momento
Com relaccedilatildeo agrave monografia desse coronel muitos pontos interessantes satildeo
destacados Entre eles o detalhamento estrutural dos DOI-CODI
Internamente os CODI eram subdivididos entre trecircs centrais 1- Central de
Informaccedilotildees 2- Central de Operaccedilotildees 3- Central de Assuntos Civis O comando
principal era da 1- Central de Informaccedilotildees que coordenava as investigaccedilotildees locais e
era chefiada pelo dirigente do CODI ou seja pelo chefe do Estado-Maior do Exeacutercito
da aacuterea que deveria ser um general do Exeacutercito Este reunia em sua equipe um
representante local do alto escalatildeo da Aeronaacuteutica da Marinha do SNI e do
Departamento de Poliacutecia Federal o diretor do DOPS e o Comandante do DOI daquela
jurisdiccedilatildeo aleacutem do chefe da 2ordf Seccedilatildeo da Poliacutecia Militar responsaacutevel pela parte de
informaccedilotildees relativas a crimes poliacuteticos Jaacute a 2- Central de Operaccedilotildees e a 3- de
12
Para mais informaccedilotildees sobre a formaccedilatildeo do SNI ver Antunes 2002
61
Assuntos Civis davam suporte agrave equipe da 1- de Informaccedilotildees e para tanto tambeacutem
congregavam em suas equipes representantes das trecircs Forccedilas sendo um representante
do Exeacutercito da Regiatildeo Militar correspondente responsaacutevel por ocupar o cargo de chefe
aleacutem de um representante credenciado da Poliacutecia Civil da Poliacutecia Militar local e de
outros oacutergatildeos quando fosse necessaacuterio para contribuir com alguma anaacutelise especiacutefica
O CODI de cada Regiatildeo Militar tinha por funccedilatildeo centralizar as informaccedilotildees de
caraacuteter ldquosubversivordquo e repassaacute-las ao DOI correspondente para que as operaccedilotildees de
informaccedilotildees fossem realizadas de forma concentrada atraveacutes desse uacutenico oacutergatildeo e por
conseguinte sob um uacutenico comando Assim evitava-se que vaacuterios oacutergatildeos de informaccedilatildeo
ligados a uma das trecircs Forccedilas ou agraves Poliacutecias realizassem suas operaccedilotildees
independentemente de qualquer coordenaccedilatildeo ou planejamento global o que poderia
acabar prejudicando as accedilotildees contra seus ldquoinimigos internosrdquo
Afinal de acordo com as informaccedilotildees levantadas por Pereira em sua monografia
antes dos DOI-CODI serem institucionalizados natildeo foram poucas as vezes que um
desses oacutergatildeos prejudicou a atuaccedilatildeo de outro Em diversos momentos enquanto um
estava realizando uma vigilacircncia sobre determinados elementos ldquosubversivosrdquo por
exemplo outro sem saber da accedilatildeo do primeiro prendia dois ou trecircs desses elementos
Dessa forma os demais membros da mesma organizaccedilatildeo ao saberem da prisatildeo de seus
companheiros natildeo retornavam agrave aacuterea sob vigiacutelia e evitavam ser presos Tambeacutem em
vaacuterias ocasiotildees a documentaccedilatildeo apreendida por determinado oacutergatildeo de seguranccedila ficava
em seu poder e natildeo era encaminhada para outros escalotildees para ser analisada Com essas
informaccedilotildees ldquoencostadasrdquo as accedilotildees armadas de organizaccedilotildees de esquerda que ali
estavam indicadas prosseguiam normalmente sem impedimentos
Percebe-se portanto como a centralizaccedilatildeo de informaccedilotildees e de accedilotildees de
seguranccedila interna implantada pelos DOI-CODI conduziu a resultados positivos para a
62
repressatildeo Natildeo eacute agrave toa que conforme analisado anteriormente a partir da tese de Maria
Celina DrsquoArauacutejo os DOI-CODI satildeo aqui entendidos como a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo
jaacute que os CODI passaram a concentrar e coordenar as informaccedilotildees e atraveacutes dos DOI a
executar de forma concentrada as operaccedilotildees de informaccedilotildees
Oacutergatildeos operacionais dos CODI os Destacamentos de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees
os DOI eram destinados ao trabalho de combate direto ao ldquoinimigo internordquo Para tanto
conforme analisado a partir da monografia de Pereira e da jaacute referida obra de Fico13
os
DOI dividiam-se basicamente entre 1- Setor de operaccedilotildees de informaccedilotildees e 2- Setor de
administraccedilatildeo Tais setores estavam diretamente subordinados ao comandante do
Destacamento daquela Regiatildeo Militar que normalmente deveria ser um tenente-coronel
com vivecircncia na aacuterea de informaccedilotildees Essa patente de tenente-coronel compunha o
ciacuterculo hieraacuterquico de oficiais e a hierarquia de oficiais superiores14
ou seja pertencia
ao acircmbito de convivecircncia desses oficiais e portanto era considerado um deles Isto
significa que os comandantes dos DOI estavam um degrau abaixo do uacuteltimo acircmbito
hieraacuterquico do Exeacutercito o dos oficiais-generais ciacuterculo referente aos chefes dos CODI
que deveriam possuir a patente de general de Exeacutercito
Chefiado pelo subcomandante do DOI o 1- Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees
tinha diretamente subordinado a ele 11- Setor de Investigaccedilatildeo 12- Setor de Anaacutelise e
Informaccedilotildees e 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo Jaacute o 2- Setor de administraccedilatildeo se
subdividia em 21- Assessoria Juriacutedica e Policial e 22- Seccedilatildeo administrativa
Ao 11- Setor de Investigaccedilatildeo cabia fundamentalmente a realizaccedilatildeo de
investigaccedilotildees com a finalidade de identificar e localizar ldquoelementos subversivosrdquo a fim
de repassar as informaccedilotildees para que os agentes da 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo
prendessem os suspeitos e localizassem os seus ldquoaparelhosrdquo (termo designado para
13
Para visualizar o organograma dos DOI voltar agrave paacutegina 54 14
Para mais informaccedilotildees sobre os ciacuterculos hieraacuterquicos e a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II
63
definir o local em que ficavam escondidos os integrantes dos grupos de esquerda que
viviam na clandestinidade) A chefia e a subchefia do 11- Setor de Investigaccedilatildeo era
privativa de oficiais do Exeacutercito e seus integrantes natildeo deveriam ser identificados pelos
elementos a serem presos a fim de que a eficiecircncia da accedilatildeo fosse garantida uma vez que
as suas identificaccedilotildees poderiam ocasionar a fuga dos suspeitos No entanto quando a
situaccedilatildeo exigia os integrantes desse setor poderiam efetuar prisotildees neutralizar
ldquoaparelhosrdquo e apreender material ldquosubversivordquo Esse 11- Setor de Investigaccedilatildeo agia por
meio de diversas turmas de investigaccedilatildeo compostas cada uma por um agente um
auxiliar e um carro normalmente da marca Volkswagen
O 12- Setor de Anaacutelise e Informaccedilotildees tinha por funccedilatildeo fornecer ao comandante
do DOI e aos demais setores seccedilotildees e subseccedilotildees informaccedilotildees estudos e conclusotildees
sobre as organizaccedilotildees ldquosubversivo-terroristasrdquo que atuavam na aacuterea Esse setor era
composto por um chefe sem patente ou ciacuterculo hieraacuterquico preacute-determinados pela
121- Subseccedilatildeo de anaacutelise e pela 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio
A 121- Subseccedilatildeo de anaacutelise tambeacutem natildeo exigia de forma predeterminada a
patente ou o ciacuterculo hieraacuterquico de quem a chefiasse Tinha por funccedilatildeo analisar os
depoimentos prestados pelos presos daquele DOI analisar o material das organizaccedilotildees
ldquoterroristasrdquo que havia sido recolhido pelas turmas da 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo
fornecer subsiacutedios ao chefe do 1- Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees e agrave equipe da
122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio manter para cada organizaccedilatildeo de esquerda uma pasta
com o seu histoacuterico relaccedilatildeo de nomes e codinomes relaccedilatildeo de accedilotildees e uma espeacutecie de
aacutelbum contendo as fichas de qualificaccedilatildeo fotografia atuaccedilatildeo e situaccedilatildeo de cada um de
seus elementos e por fim organizar atualizar e manter o arquivo geral contendo o
dossiecirc de cada elemento fichado
64
Jaacute a 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio era responsaacutevel pelo interrogatoacuterio e por
conseguinte pela aplicaccedilatildeo de torturas nos presos a fim de fazecirc-los falar o que sabiam
Seu chefe deveria ser um oficial do Exeacutercito de niacutevel de capitatildeo ou seja deveria
pertencer ao ciacuterculo hieraacuterquico de oficiais mas natildeo ao meio de oficiais superiores e
sim ao de oficiais intermediaacuterios No entanto a partir do ano de 1971 era preferiacutevel que
ele tivesse o curso B1 da Escola Nacional de Informaccedilotildees (EsNI) Este curso era uma
espeacutecie de especializaccedilatildeo em informaccedilotildees e seguranccedila interna ministrada pela EsNI
escola que havia sido criada pelo SNI durante o ano de 1971 e era a este subordinada
Como a 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio trabalhava ininterruptamente durante 24
horas ela se dividia em trecircs turmas de interrogatoacuterio preliminar cada uma chefiada
tambeacutem por um capitatildeo do Exeacutercito com o curso B1 da EsNI Essas turmas eram
compostas por seis agentes cada e aleacutem disso subordinada ao chefe de cada uma delas
existia uma turma auxiliar encarregada da carceragem e da datilografia de documentos
Jaacute a 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo tinha por ofiacutecio efetuar prisotildees ldquocobrir
pontosrdquo (preparar uma emboscada para prender os militantes esquerdistas no momento
em que se encontravam em algum ponto anteriormente combinado) neutralizar
ldquoaparelhosrdquo apreender material ldquosubversivordquo coletar dados que possibilitassem o
levantamento de elementos ldquosubversivosrdquo conduzir presos ao DOPS auditorias
hospitais etc O chefe deveria ser um oficial do Exeacutercito sem predeterminaccedilatildeo de
patente militar e sua equipe se dividia em trecircs grupamentos ldquoAB e Crdquo Cada um deles
era composto por quatro turmas de busca e apreensatildeo que tinham cerca de trecircs ou cinco
agentes e possuiacuteam cada uma um carro espaccediloso muitas vezes dos modelos C14 Opala
ou Kombi equipado com raacutedio Aleacutem disso a 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo
tambeacutem era composta por quatro turmas de coletas de dados que tinham por missatildeo
reunir informaccedilotildees sobre os ldquosubversivosrdquo em universidades coleacutegios etc Cada uma
65
dessas turmas era constituiacuteda por dois elementos um oficial da PM da regiatildeo ou um
delegado de poliacutecia e um motorista que normalmente dirigia um carro de marca
Volkswagen com raacutedio
Ligada ao 2- Setor de administraccedilatildeo a 22- Seccedilatildeo administrativa garantia o apoio
logiacutestico ao DOI ou seja organizava o pedido de gecircneros alimentiacutecios bem como
outros utensiacutelios e equipamentos necessaacuterios Esta seccedilatildeo natildeo tinha nenhum tipo de
exigecircncia de patente ou ciacuterculo hieraacuterquico para o cargo de chefe Jaacute a 21- Assessoria
Juriacutedica e Policial era chefiada por um delegado de poliacutecia e tinha por missatildeo
assessorar o Comandante do DOI em assuntos judiciais elaborar a documentaccedilatildeo
formal e legal referente ao material apreendido e agraves confissotildees dos prisioneiros e
controlar a menagem dos presos que fossem liberados
A menagem estipulada pelo Coacutedigo Processual Militar criado pelo decreto-lei
1002 de outubro de 1969 era uma espeacutecie de prisatildeo cautelar concedida ao militar ou
ao civil que tivesse praticado um crime de cunho militar com previsatildeo de pena privativa
de liberdade O local de cumprimento da menagem era a cidade onde residisse o
suspeito no momento do crime ou a sede do oacutergatildeo que tivesse investigando a sua accedilatildeo
Como a partir do AI-5 os suspeitos de crimes poliacuteticos passaram a ser julgados pela
Justiccedila Militar e o instituto do habeas corpus foi suprimido atraveacutes da menagem os
suspeitos detidos poderiam ser levados agrave sede do DOI-CODI da respectiva Regiatildeo
Militar Afinal era neste oacutergatildeo que as investigaccedilotildees sobre os crimes poliacuteticos de
determinada aacuterea se concentravam A menagem tinha por fundamento evitar o conviacutevio
do acusado ateacute o seu julgamento em primeira instacircncia com pessoas que jaacute estivessem
condenadas Dessa forma a validade da menagem terminava a partir da abertura de um
processo condenatoacuterio contra o suspeito quando entatildeo este seria transferido para uma
Delegacia de Poliacutecia tal como o DOPS por exemplo para ser enfim julgado e poder se
66
fosse o caso cumprir sua pena em um presiacutedio convencional Poreacutem ateacute isso acontecer
caso fosse enquadrado como um possiacutevel criminoso poliacutetico esse suspeito poderia ficar
detido no DOI correspondente por ateacute trinta dias podendo sua prisatildeo ainda ser
prorrogada por mais sessenta dias
A menagem era entatildeo um respaldo legal tanto para o isolamento do preso poliacutetico
nos quarteacuteis que sediavam os DOI quanto se fosse o caso para o acompanhamento de
sua vida em liberdade ateacute o dia de seu julgamento Caso fosse diagnosticado pelos
agentes do respectivo DOI que o suspeito jaacute tivesse concedido todas as informaccedilotildees que
tinha e natildeo representasse perigo agrave Seguranccedila Nacional a instituiccedilatildeo poderia solicitar ao
juiz a sua liberaccedilatildeo a fim de que a sua menagem fosse cumprida em liberdade Quando
isto ocorria o suspeito deveria ficar na mesma cidade que havia sido preso ateacute o seu
julgamento em primeira instacircncia
Diante dos organogramas dos CODI e dos DOI aqui traccedilados evidencia-se que
existiam diferenccedilas nas patentes hieraacuterquicas dos chefes de cada um desses oacutergatildeos
Enquanto o chefe dos CODI era o chefe de Estado-Maior do Exeacutercito de cada Regiatildeo
Militar ou seja um general de Exeacutercito que por conseguinte pertencia ao ciacuterculo
hieraacuterquico de oficiais-generais localizado no topo da hierarquia militar o chefe de
cada DOI era um tenente-coronel patente que se insere no ciacuterculo hieraacuterquico de
oficiais superiores ou seja imediatamente abaixo do de oficiais-generais Assim como
os DOI eram o braccedilo operacional dos CODI ou seja a eles subordinados o fato de seus
chefes estarem obrigatoriamente no ciacuterculo hieraacuterquico abaixo dos dirigentes dos CODI
leva a crer que dentro dos DOI-CODI havia de fato um respeito agrave hierarquia militar
Este respeito jaacute foi aqui destacado por meio da anaacutelise historiograacutefica baseada na
tese Maria Celina DrsquoArauacutejo (1994) que defende a ideia de que o princiacutepio da
obediecircncia hieraacuterquica apesar de velado existia nos DOI-CODI logo como a tortura
67
fazia parte de suas accedilotildees ela era consentida Afinal se laacute existiam chefias e nelas a
hierarquia militar era minimamente respeitada isso sinaliza que as accedilotildees eram
comandadas por chefes que tinham o consentimento de seus chefes diretos para darem
tal ordem Portanto a tortura impetrada pelas turmas de interrogatoacuterio preliminar era
consentida pelo capitatildeo que as chefiava pelo capitatildeo que comandava a respectiva
Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio a que elas estavam subordinadas pelo chefe do Setor de
Anaacutelise e Informaccedilotildees que chefiava o chefe dessa Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio pelo
subcomandante do DOI que era responsaacutevel pelo Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees a
que o Setor de Anaacutelise e Informaccedilotildees estava vinculado pelo tenente-coronel que
comandava o DOI e estava hierarquicamente acima do chefe do Setor de Anaacutelise e
Informaccedilotildees e pelo general do Exeacutercito que dirigia o CODI e tinha o comandante do
DOI a ele subordinado Logo o DOI-CODI foi construiacutedo de forma tatildeo centralizada que
a maioria das accedilotildees feitas por algum de seus integrantes passava por toda a cadeia
hieraacuterquica nele envolvida
Assim se torna mais uma vez evidente que a tortura como meacutetodo de
interrogatoacuterio quando utilizada pelos agentes do DOI era consentida por seus
superiores e natildeo um fenocircmeno isolado ou mesmo ldquoexcesso de poucosrdquo como muitos
militares costumam argumentar Esta argumentaccedilatildeo que aparentemente encontra
fundamento no alto grau de autonomia e independecircncia que os DOI possuiacuteam eacute
derrubada quando se evidencia que estes eram autocircnomos e independentes apenas em
relaccedilatildeo a batalhotildees e outras instituiccedilotildees militares Afinal os DOI foram programados
para atuar a par das subordinaccedilotildees preacute-existentes em outros oacutergatildeos podendo congregar
agentes de instacircncias militares poliacutecias e Forccedilas diferentes entre si mas sem deixar de
respeitar a hierarquia do Exeacutercito inserida em seu interior tendo por direccedilatildeo maacutexima o
Chefe de Estado-Maior do Exeacutercito
68
Outro ponto interessante que a caracterizaccedilatildeo do organograma dos DOI ajuda a
revelar eacute o fato do cargo de chefe da Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio ser privativo de um
oficial do Exeacutercito de niacutevel de capitatildeo ou seja que deveria pertencer ao ciacuterculo
hieraacuterquico de oficiais intermediaacuterios excluindo-se das atividades afeitas agrave posiccedilatildeo de
membros do ciacuterculo hieraacuterquico dos oficiais superiores e dos oficiais-generais onde se
encontravam os homens que governavam o paiacutes Logo por traacutes dessa condiccedilatildeo de
chefia havia a tentativa de manter a responsabilidade direta dos atos proferidos nessa
Subseccedilatildeo longe do ciacuterculo de oficiais superiores ou de oficiais-generais instacircncias
maacuteximas na hierarquia do Exeacutercito Dessa forma as torturas executadas durante os
interrogatoacuterios natildeo seriam relacionadas aos ocupantes das altas patentes do Exeacutercito
que durante a ditadura eram os que estavam agrave frente do governo brasileiro Essa
medida era portanto para dissociar a imagem dos governantes com o que ocorria nos
porotildees
No entanto eacute notaacutevel que indiretamente o governo ditatorial apoiasse as torturas
que as turmas de interrogatoacuterio preliminar executavam nos DOI-CODI uma vez que
obviamente os governantes tinham conhecimento sobre a determinaccedilatildeo de que os
agentes dessas turmas e os chefes da Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio deveriam ter
preferencialmente uma espeacutecie de especializaccedilatildeo em informaccedilotildees e seguranccedila
ministrada pela EsNI Nesta escola ndash ligada ao SNI que era composto pelas mais altas
patentes do Exeacutercito e diretamente ligado ao alto escalatildeo do governo ndash os alunos
provavelmente recebiam instruccedilotildees sobre os meacutetodos de tortura a serem aplicados
durante o serviccedilo
Aleacutem disso o fato do chefe e dos demais componentes da Subseccedilatildeo de
interrogatoacuterio serem ligados ao ciacuterculo de oficiais intermediaacuterios do Exeacutercito tambeacutem
vai ao encontro da anaacutelise historiograacutefica sobre a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
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aqui apresentada a partir dos conceitos de Martins Filho de cizacircnia militar palaacutecio e
caserna Afinal a caserna era composta por militares de meacutedias e baixas patentes que
durante os primeiros anos da ditadura lutaram internamente por atuarem no combate ao
ldquoinimigo internordquo a fim de terem uma maior participaccedilatildeo na poliacutetica o que ocasionou
algumas cizacircnias militares Foi justamente por temer o resultado dessas cizacircnias que o
palaacutecio formado pelos militares de altas patentes que possuiacuteam cargos no governo aos
poucos cedeu esses poderes agrave caserna e assim o aparato de seguranccedila nacional foi
sendo instituiacutedo e dentro dele o SISSEGIN e os DOI-CODI Logo como eacute na
Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio e tambeacutem na Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo onde a atuaccedilatildeo
de interrogar torturar e prender traz os poderes poliacuteticos extras que a caserna
historicamente reivindicava percebe-se que a utilizaccedilatildeo de seus militares para compor
essas equipes era mais uma forma de manter a unidade militar contendo possiacuteveis
cizacircnias
Essa perspectiva torna-se completa quando se identifica que no momento em que
tais atribuiccedilotildees passaram a ser retiradas dos militares da caserna essas cizacircnias natildeo
mais puderam ser contidas Afinal conforme jaacute evidenciado anteriormente quando a
partir do governo de Geisel as atividades de busca apreensatildeo e interrogatoacuterio dos DOI
foram sendo abolidas a caserna passou a reagir posicionando-se contraacuteria agrave cuacutepula do
governo que defendia a abertura poliacutetica passando a apoiar a candidatura presidencial
de militares que defendessem a continuidade de tais atribuiccedilotildees aos DOI e ateacute mesmo
forjando situaccedilotildees terroristas tais como os diversos ataques a bomba que ocorreram na
eacutepoca como forma de endossar a necessidade das atuaccedilotildees repressivas desenvolvidas
pelos DOI
A monografia do coronel Pereira aqui analisada pode tambeacutem ser vista como
mais uma dessas reaccedilotildees da caserna Afinal durante toda a escrita de Pereira haacute uma
70
necessidade de comprovar a eficiecircncia dos DOI na atividade de proteger a seguranccedila
interna do paiacutes Percebe-se assim que Pereira apesar de ser coronel e por conseguinte
jaacute estar entre os oficiais superiores nesse momento ainda se via ligado de alguma forma
aos DOI Talvez porque a histoacuteria de sua carreira militar estivesse totalmente
relacionada com as atividades que ele laacute desempenhou e por isso acreditasse que
enquanto tais atividades continuassem sendo desenvolvidas o seu trabalho tambeacutem
continuaria a ser reconhecidamente importante
Os setores seccedilotildees e subseccedilotildees do DOI normalmente seguiam a configuraccedilatildeo aqui
exposta poreacutem nota-se que suas equipes natildeo eram fixas ou seja poderiam variar de
acordo com as necessidades das operaccedilotildees que surgissem Os DOI foram assim
concebidos como organismos instaacuteveis pois dependendo da gravidade e da quantidade
de accedilotildees armadas que deveriam ser reprimidas o nuacutemero de agentes poderia aumentar
ou diminuir Dessa forma os DOI se adaptavam a diversas circunstacircncias a fim de
combater com eficiecircncia o ldquoterrorismordquo e a ldquosubversatildeordquo
Grande parte dessa necessidade de adaptaccedilatildeo vinha da sobrevalorizaccedilatildeo da
guerrilha urbana entre os militares ligados a organismos de repressatildeo Uma vez que ao
verem a forma organizada e ousada com que a esquerda armada montava suas accedilotildees
sentiram que a estrutura repressiva da eacutepoca anterior agrave experiecircncia da Oban e ao
surgimento dos DOI natildeo estava preparada para combatecirc-las e diante disso
interpretaram tais accedilotildees esquerdistas como uma forte ameaccedila ao paiacutes Afinal as
instituiccedilotildees responsaacuteveis pela repressatildeo direta como por exemplo os DOPS estavam
engessadas por corporaccedilotildees fixas que combatiam as referidas accedilotildees de forma pouco
efetiva reprimindo-as sem a centralizaccedilatildeo e a grandiosidade necessaacuterias
A todos estes atos de banditismo [fazendo referecircncia a assaltos a banco a
sequestros de embaixadores e outras accedilotildees efetuadas pela esquerda armada
71
entre os anos de 1969 e 1970] a nossa Poliacutecia Civil e a Poliacutecia Militar
assistiam sem nada poder fazer Vaacuterias radiopatrulhas foram incendiadas e
os poucos soldados que ousavam enfrentar os terroristas eram
impiedosamente mortos Por que isso acontecia Porque as nossas poliacutecias
foram surpreendidas e natildeo estavam preparadas para um novo tipo de luta que
surgia a guerrilha urbana (Pereira 1978 10)
Entatildeo para conter a guerrilha urbana surgiu a necessidade de um oacutergatildeo de
repressatildeo centralizado e de estrutura maleaacutevel que tornasse possiacutevel e praacutetico reprimir
determinada accedilatildeo armada de acordo com a sua grandiosidade aumentando e diminuindo
o corpo funcional conforme o esforccedilo exigido Em meio a esta concepccedilatildeo de repressatildeo
a estrutura dos DOI foi criada tornando a repressatildeo poliacutetica mais combativa e
consequentemente aumentando a sua eficiecircncia
Com tamanha flexibilidade os DOI movimentavam pessoal e material variaacutevel
com grande mobilidade e agilidade Essa destacada autonomia dos DOI era travada
portanto em benefiacutecio de um aproveitamento maacuteximo de suas accedilotildees jaacute que eram
oacutergatildeos destinados ao combate direto agraves organizaccedilotildees subversivo-terroristas e sua
missatildeo era desmontar toda a estrutura de pessoal e de material destas organizaccedilotildees
bem como impedir a sua reorganizaccedilatildeo (Pereira 1978 22)
A utilizaccedilatildeo de codinomes pelos integrantes das turmas de interrogatoacuterio
preliminar era outra face dessa autonomia de trabalho dos DOI Esse costume era um
benefiacutecio de proteccedilatildeo para a instituiccedilatildeo e tambeacutem para tais militares Afinal como
muitos deles possivelmente aplicavam torturas nos presos durante os interrogatoacuterios o
sigilo com relaccedilatildeo aos seus nomes verdadeiros poderia inviabilizar posteriores
denuacutencias e por conseguinte fortes indiacutecios de que nos DOI a tortura era uma praacutetica
institucionalizada
Aleacutem disso essa mesma autonomia tambeacutem permitia que seus agentes para natildeo
serem reconhecidos pelos ldquoinimigosrdquo durante uma accedilatildeo de prisatildeo por exemplo natildeo
72
trabalhassem de farda e usassem trajes civis o que seria impensaacutevel em qualquer quartel
militar
Como norma de seguranccedila para o trabalho diaacuterio eacute obrigatoacuterio o uso de
traje civil (esporte ou social) de acordo com a missatildeo a desempenhar
Mesmo os oficiais e os comandantes de seccedilatildeo devem de preferecircncia usar
trajes esporte para se confundirem com a maioria dos integrantes do DOI
(Pereira 1978 25)
Os cabelos longos eram outra caracteriacutestica que apesar de improacutepria entre as
demais instituiccedilotildees militares a autonomia dos DOI imprimia a seus agentes conforme
evidenciado no seguinte trecho o cabelo deve ter o tamanho normalmente usado pela
maioria da populaccedilatildeo sendo proibido o cabelo com corte do ldquotipo militarrdquo (Pereira
1978 25) Percebe-se portanto que junto aos trajes civis os cabelos maiores
completavam o visual que os militares dos DOI precisavam ter para que evitassem ser
facilmente reconhecidos nas ruas Dessa forma tentavam minimizar os riscos de serem
percebidos durante uma operaccedilatildeo de investigaccedilatildeo ou minutos antes de efetuarem uma
accedilatildeo de prisatildeo Poreacutem apesar da utilizaccedilatildeo dessas caracteriacutesticas natildeo usuais ser em
benefiacutecio das funccedilotildees que exerciam nos DOI esses militares muitas vezes natildeo eram
compreendidos por aqueles que nas palavras de Pereira natildeo possuiacuteam uma
mentalidade de informaccedilotildees e por conta disso viam no uso do cabelo grande um ato de
indisciplina Essa incompatibilidade de interpretaccedilotildees portanto gerava alguns
transtornos para os agentes dos DOI que mesmo condecorados pela eficiecircncia de seus
serviccedilos de informaccedilotildees agraves vezes passavam por alguns constrangimentos
Jaacute aconteceu o fato de um oficial ou sargento de um DOI necessitar
comparecer a sua Unidade Militar a fim de tratar qualquer problema pessoal
ou mesmo de um assunto de serviccedilo Estes elementos eram barrados agrave
entrada de seus quarteacuteis e recebiam ordem dos comandantes para
73
regressarem cortarem o cabelo e a barba e se apresentarem fardados ou com
a posse de um documento de identidade assinado pelo Comandante do
Exeacutercito autorizando o uso do traje civil e o porte de arma Este
procedimento por parte de algumas autoridades militares daacute a entender que
os elementos do Serviccedilo de Informaccedilotildees satildeo indisciplinados
desenquadrados e sem espiacuterito militar Entretanto eacute necessaacuterio frisar que a
realidade eacute que por exemplo no DOI-CODI do II Exeacutercito [DOI-CODISP]
em trecircs anos 90 componentes foram condecorados com a medalha do
pacificador com palma (Pereira 1978 26)
A medalha do pacificador com palma eacute em tempo de paz a mais alta
condecoraccedilatildeo concedida pelo Comandante do Exeacutercito aos militares e civis brasileiros
que no exerciacutecio de sua funccedilatildeo ou no cumprimento de missotildees de caraacuteter militar
tenham se destacado por atos pessoais de abnegaccedilatildeo coragem e bravura com risco de
vida Portanto muitas vezes os agentes dos DOI que exerciam a funccedilatildeo de prender
integrantes de uma organizaccedilatildeo muito procurada de ldquodesmontar aparelhosrdquo de
destacada importacircncia investigativa ou mesmo de conseguir informaccedilotildees cruciais
durante interrogatoacuterios eram condecorados pelo Comandante do respectivo Exeacutercito
pelo serviccedilo prestado agrave paacutetria Logo percebe-se que mesmo existindo os
constrangimentos institucionais anteriormente citados os oficiais envolvidos nos DOI
eram prestigiados por seus serviccedilos e se sentiam valorizados e incentivados a designaacute-
los com rapidez e eficiecircncia
A partir disso evidencia-se mais uma vez que a tortura nos DOI era consentida
pelos militares superiores e ateacute mesmo incentivada pois atraveacutes do ldquoauxiacuteliordquo que
prestava aos interrogatoacuterios as informaccedilotildees poderiam ser mais faacutecil e rapidamente
conseguidas e grande quantidade de suspeitos presos ldquoaparelhos desmontadosrdquo e
materiais ldquosubversivosrdquo recolhidos Como a presteza desse serviccedilo era almejada tantos
pelos agentes dos DOI interessados no destaque e no reconhecimento militar quanto
74
por seus superiores que vislumbravam neutralizar o quanto antes a ameaccedila que o
ldquoinimigo internordquo representava para o governo ditatorial a tortura parecia ser nos DOI
um meio que se justificava pelos fins
Assim a centralizaccedilatildeo a flexibilidade a autonomia e o consentimentoincentivo agrave
tortura pautavam o ldquoeficienterdquo serviccedilo de repressatildeo dos DOI conforme se pode apurar a
partir dos dados do DOI-CODISP levantados ateacute 30 de junho de 1972 e apresentados
na monografia do coronel Pereira
Subversivos terroristas levantados no Brasil 4400
Quedas impostas pelos oacutergatildeos de seguranccedila no territoacuterio nacional 2800
Quedas impostas pelos oacutergatildeos de seguranccedila do II Exeacutercito (inclusive DOI-
CODI) 1600
Quedas impostas pelo DOI-CODI do II Exeacutercito 1400
Quedas impostas pelos outros oacutergatildeos de seguranccedila da aacuterea do II Exeacutercito
200
Periacuteodo de 23 de janeiro de 1969 a 30 de junho de 1972
Subversivo-terroristas que fizeram curso de guerrilha no exterior 340
Subversivo-terroristas que fizeram curso de guerrilha em Cuba 240
Situaccedilatildeo dos 4400 subversivo-terroristas levantados
Foragidos 1600
Liberados 900
Mortos em combate 100
Presos 1490
Banidos 140
Estes resultados vecircm demonstrar a eficiecircncia operacional do destacamento
neste tipo de guerra especial Natildeo eacute agrave toa que os inimigos assim reconhecem
ao destacamento esta assertiva encontrada na revista Times e no panfleto
Quinzenal (maio de 76) distribuiacutedos recentemente
ldquoSatildeo Paulo criou a mais eficiente e admiraacutevel maacutequina repressiva vista ateacute
hoje no mundo ndash a Operaccedilatildeo Bandeirantes que comeccedilou como uma alianccedila
temporaacuteria entre a poliacutecia local as vaacuterias seccedilotildees de inteligecircncia das trecircs
forccedilas armadas e o SNIrdquo (Pereira 1978 27)
75
Entretanto esse perigoso poder excepcional dos DOI-CODI tomou proporccedilotildees
grandiosas Em meados dos anos 1970 mais especificamente apoacutes o fim da guerrilha do
Araguaia no iniacutecio de 1974 as organizaccedilotildees clandestinas armadas estavam derrotadas
e em contrapartida os DOI-CODI se encontravam em pleno vapor com sua atuaccedilatildeo e
seu aparato institucional ampliado e especializado Tornou-se dessa forma
indispensaacutevel para a sobrevivecircncia do SISSEGIN encontrar novos ldquoinimigos internosrdquo
O foco de ameaccedila passou entatildeo a ser o envolvimento de elementos do Partido
Comunista Brasileiro (PCB) no Movimento Democraacutetico Brasileiro (MDB) partido de
oposiccedilatildeo consentida pelo governo e a atuaccedilatildeo repressiva dos DOI-CODI encontrou
argumentos para continuar em atividade Poreacutem como a declarada ldquoguerra internardquo
havia se esgotado e o paiacutes jaacute se preparava para dar lugar a um futuro democraacutetico o
poder de accedilatildeo dos DOI-CODI comeccedilou a parecer abusivo e negativo ao regime Diante
disso muitas foram as tentativas da caserna e dos demais militares a ela relacionados de
provar a importacircncia e a necessidade dos DOI-CODI para a defesa do paiacutes entre elas a
monografia aqui analisada No entanto tais tentativas natildeo conseguiram evitar que esses
oacutergatildeos sofressem num primeiro momento a reduccedilatildeo de suas atividades e no iniacutecio da
deacutecada de 1980 a extinccedilatildeo
3 O DOI-CODI pelos prisioneiros
Enfim na uacuteltima frente de estudo deste capiacutetulo a anaacutelise sobre a formaccedilatildeo e a
atuaccedilatildeo dos DOI-CODI recai sobre a memoacuteria de seis de seus ex-prisioneiros poliacuteticos
Vale lembrar que estes estiveram detidos no DOI-CODI do Rio de Janeiro durante o
segundo semestre do ano de 1970 e suas memoacuterias foram narradas recentemente entre
os anos de 2002 e 2004 quando foram por mim entrevistados Assim o trabalho sobre
esses depoimentos aqui se concentra na interpretaccedilatildeo que fazem a partir da construccedilatildeo
76
de suas memoacuterias sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI e em como suas
perspectivas dialogam com a frente historiograacutefica e com a monografia do coronel
Pereira abordadas anteriormente
Como o objetivo aqui traccedilado eacute analisar as diversas maneiras pelas quais a
historiografia o coronel Pereira e os presos veem a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-
CODI optou-se por apresentar as trajetoacuterias dos entrevistados no proacuteximo capiacutetulo
Essas junto com o conteuacutedo aqui levantado constroem as bases para a anaacutelise travada
na parte final da presente dissertaccedilatildeo onde se aborda a partir de um estudo mais
concentrado nas memoacuterias dos ex-prisioneiros entrevistados o cotidiano do DOI-
CODIRJ
Entretanto a fim de utilizar essas memoacuterias para a abordagem dialeacutetica aqui
desenhada natildeo pode ser dispensada a aplicaccedilatildeo de um olhar criacutetico tiacutepico a anaacutelises
histoacutericas problematizando-as de forma a perceber suas lacunas e modificaccedilotildees
decorrentes do tempo Tais memoacuterias satildeo inconscientemente fluidas pois estatildeo
diretamente ligadas a emoccedilotildees aleacutem de sofrerem muitas influecircncias do momento em
que satildeo narradas conforme bem elucida Pierre Nora (1993)
A memoacuteria eacute a vida sempre carregada por grupos vivos e nesse sentido ela
estaacute em permanente evoluccedilatildeo aberta agrave dialeacutetica da lembranccedila e do
esquecimento inconsciente de suas deformaccedilotildees sucessivas vulneraacutevel a
todos os usos e manipulaccedilotildees suscetiacutevel de longas latecircncias e de repentinas
revitalizaccedilotildees A histoacuteria eacute a reconstruccedilatildeo sempre problemaacutetica e incompleta
do que natildeo existe mais A memoacuteria eacute um fenocircmeno sempre atual um elo
vivido no eterno presente a histoacuteria uma representaccedilatildeo do passado (Nora
1993 9)
Eacute portanto imprescindiacutevel para este estudo perceber que por traacutes dessa fluidez
das memoacuterias dos depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ age um
77
elemento fundamental o presente Logo a feliz expressatildeo de Robert Frank (1999) o
presente do passado elucida a anaacutelise de forma a colocar em destaque a forte influecircncia
que a temporalidade vivida no momento em que as entrevistas foram concedidas tem
para a construccedilatildeo de suas narrativas
Trata-se de fontes que estatildeo marcadas pelo proacuteprio presente inerentes a ele
qualquer que seja a eacutepoca os depoimentos de testemunhas vivas as fontes
orais Aiacute haacute a contemporaneidade intriacutenseca entre o historiador e o ator
(Frank 1999 103)
Por isso eacute aqui crucial considerar o momento das entrevistas Afinal entre 2002 e
2004 o Brasil jaacute vivia uma democracia consolidada onde antigos oposicionistas agrave
ditadura militar se encontravam no poder Fernando Henrique Cardoso exilado no Chile
ateacute o ano de 1968 e na deacutecada de 1970 apoiador convicto do Movimento Democraacutetico
Brasileiro (MDB) havia sido presidente do Brasil entre os anos de 1995 e 2002 Jaacute
Lula ex-liacuteder sindical que havia comandado algumas das mais importantes greves na
virada das deacutecadas de 1970 para 1980 venceu a campanha presidencial em 2002 e se
tornou no ano seguinte o primeiro ex-operaacuterio a presidir o paiacutes Aleacutem disso as pastas
ministeriais de seu governo foram formadas por antigos opositores agrave ditadura tal como
o ex-liacuteder do movimento estudantil Joseacute Dirceu e a partir de 2005 por Dilma
Rousseff ex-militante de duas das organizaccedilotildees de esquerda que optaram na eacutepoca pela
luta armada o Comando de Libertaccedilatildeo Nacional (COLINA) e a Vanguarda Armada
Revolucionaacuteria Palmares (VAR-Palmares) Logo pode-se dizer que com relaccedilatildeo agrave
memoacuteria poliacutetica de vencidos nos anos de chumbo da ditadura os depoentes se
transformaram em vencedores nos tempos democraacuteticos e obviamente a leitura do
passado de prisatildeo e tortura foi iluminada por esse presente
78
Ressalte-se ainda que os depoimentos se vinculavam agrave implantaccedilatildeo da Comissatildeo
de Anistia por meio da Lei nordm 1055902 que atribuiacutea ao Estado a funccedilatildeo de anistiar e
reparar financeiramente todos os cidadatildeos que tivessem vivenciado quaisquer atos de
exceccedilatildeo incluindo torturas prisotildees arbitraacuterias demissotildees e transferecircncias por razotildees
poliacuteticas ocorridas durante o periacuteodo de 18 de setembro de 1946 ateacute 5 de outubro de
1988 Afinal a reparaccedilatildeo soacute poderia ser concedida pela Comissatildeo de Anistia apoacutes a
anaacutelise de um requerimento contendo as memoacuterias das viacutetimas sobre o periacuteodo em
questatildeo escritas individualmente Como na eacutepoca alguns dos depoentes jaacute haviam
construiacutedo suas memoacuterias prisionais para compor o referido requerimento este deve ser
considerado como um importante fator de influecircncia sobre as narrativas de suas
entrevistas
Em contraste com o que foi apresentado a partir da abordagem historiograacutefica e da
monografia do coronel Pereira Fernando Palha Freire um dos ex-prisioneiros do DOI-
CODIRJ destaca a importacircncia da contribuiccedilatildeo inicial dada pelos policiais civis do
DOPS para a utilizaccedilatildeo da violecircncia em favor da extraccedilatildeo de informaccedilotildees Afinal por
mais que os oacutergatildeos de repressatildeo anteriores agrave criaccedilatildeo dos DOI-CODI natildeo estivessem
devidamente preparados para combater as accedilotildees efetuadas pela esquerda armada seus
agentes de fato haviam acumulado uma experiecircncia em interrogatoacuterios Esta num
primeiro momento era importante uma vez que os militares ateacute entatildeo concentravam
sua formaccedilatildeo sobre a atuaccedilatildeo na guerra declarada natildeo possuindo as maliacutecias
necessaacuterias aos interrogatoacuterios
[] a Poliacutecia Civil tinha os caras mais preparados pra tortura mesmo
Porque jaacute vinham haacute muitos anos jaacute tinham a praacutetica da tortura O militar
batia de frente ele era capaz de te matar mas ele ainda natildeo tinha digamos o
seguinte a essecircncia da tortura Por exemplo um coronel virou pro cara e
disse assim - ldquoO senhor eacute um comunistardquo aiacute ele disse assim - ldquoE o senhor eacute
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uma bestardquo Ele matou o cara quer dizer matou sem colher o que queria
Um policial civil poderia ateacute matar o cara mas antes colheria o que queria
eles tinham a praacutetica da tortura Depois os militares se aperfeiccediloaram []
(Freire 28 jun 2004)
No entanto indo ao encontro do que foi abordado pelas outras duas frentes de
estudo aqui traccediladas Ceciacutelia Coimbra tambeacutem ex-prisioneira do DOI-CODIRJ
evidencia a eficiecircncia desse oacutergatildeo com relaccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo A partir de uma situaccedilatildeo
especiacutefica de sua prisatildeo ela percebe como o niacutevel de organizaccedilatildeo do serviccedilo de
informaccedilotildees dos DOI era superior ao do DOPS
Fomos presos eu e meu marido e levados para o DOPS em agosto de 1970
[] quando deram vistoria laacute em casa encontraram um documento que por
ironia do destino era sobre seguranccedila [] Eu fiquei dois dias e meio no
DOPS sendo interrogada sobre o tal documento que nem eu nem o Novaes
falaacutevamos diziacuteamos que natildeo sabiacuteamos de onde era Dois dias e meio depois
quando noacutes fomos para o DOI-CODI logo eles identificaram de onde era o
documento Para vocecirc ver o niacutevel de competecircncia do serviccedilo de informaccedilotildees
do DOI-CODI comparado ao do DOPS O DOPS era ldquomerdinhardquo comparado
com a eficiecircncia do DOI-CODI (Coimbra 30 nov 2004)
Percebe-se assim tanto pela historiografia e pela monografia do coronel Pereira
quanto pela memoacuteria de ex-prisioneiros poliacuteticos que a centralizaccedilatildeo de informaccedilotildees
nos CODI e a relaccedilatildeo direta que esses travavam com os DOI traziam uma agilidade agraves
anaacutelises que natildeo havia nos demais oacutergatildeos Logo a forma centralizada e orquestrada
com que os DOI-CODI agiam significava uma profissionalizaccedilatildeo cada vez maior da
repressatildeo poliacutetica ou seja a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo
Assim apesar de serem instituiccedilotildees distintas a atuaccedilatildeo dos CODI e dos DOI
estavam totalmente interligadas Como apurado por meio do estudo historiograacutefico e
dos dados contemplados na monografia do coronel Pereira enquanto aos CODI cabia
80
concentrar e analisar as informaccedilotildees sobre a seguranccedila interna de suas Regiotildees
Militares aos DOI cabia a partir das informaccedilotildees passadas pelos CODI atuar
diretamente na repressatildeo aos ldquoinimigos internosrdquo e extrair de seus prisioneiros poliacuteticos
informaccedilotildees a serem repassadas aos CODI Diante dessa forte ligaccedilatildeo essas duas
instituiccedilotildees ficaram conhecidas como se fossem um uacutenico oacutergatildeo por meio da sigla
DOI-CODI Essa simbiose entre os CODI e os DOI ficou marcada sobretudo nas
memoacuterias de suas viacutetimas conforme se pode verificar no seguinte trecho
[] tenta entender o que eacute DOI-CODI o DOI-CODI eacute uma instituiccedilatildeo
montada por diversos oacutergatildeos de repressatildeo que funcionava [no Rio de
Janeiro] no quartel da PE [1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito] (Pandolfi 5
fev 2003)
De acordo com os seis entrevistados assim como indicado pela a anaacutelise das
demais frentes de estudo do presente capiacutetulo a praacutetica de tortura era corriqueira nos
interrogatoacuterios dos DOI Esse fato inclusive poderia ser associado agrave sua proacutepria
designaccedilatildeo que na forma abreviada se apresenta sob a sigla DOI correspondendo
sugestivamente agrave conjugaccedilatildeo do verbo doer na terceira pessoa do singular
Soube que ningueacutem entrava no DOI-CODI sem sofrer algum tipo de tortura
fiacutesica ou psicoloacutegica mas principalmente a fiacutesica e realmente natildeo creio
que algueacutem tenha passado por laacute imune agrave tortura [] Quando a gente chega
ao DOI-CODI chega logo tomando porrada Natildeo tinha essa histoacuteria de meu
senhor era tapa Tapa choque eleacutetrico pau de arara a isso tudo eu fui
submetido O primeiro interrogatoacuterio que natildeo eacute um interrogatoacuterio formal
judicial eacute feito sob essas condiccedilotildees Depois bem depois eacute que eu fui ser
interrogado no DOPS em outras condiccedilotildees [] Eu fui torturado mesmo na
Rua Baratildeo de Mesquita na PE laacute sim eu fui bastante torturado []
(Carvalho 12 set 2002)
81
[] laacute na PE vocecirc natildeo fazia nada a natildeo ser ficar esperando o tempo para ser
interrogada para ser torturada [] (Pandolfi 5 fev 2003)
Laacute no DOI-CODI comia tudo choque pau-de-arara afogamento pancada
Laacute que eu descobri esse termo que fulano virou presunto neacute Porque vocecirc
fica igual a um presunto mesmo porque eles te datildeo pancadas localizadas []
(Freire 28 jun 2004)
[] laacute no DOI-CODI tinha todo tipo de torturas desde choques eleacutetricos na
matildeo direita esquerda peacute esquerdo Eu sofri isso tambeacutem (Prigol 28 set
2004)
[] o meu negoacutecio era ganhar tempo e o deles era conseguir informaccedilatildeo A
luta eacute essa nos primeiros dias eacute vocecirc dar o miacutenimo de informaccedilotildees e eles
querendo arrancar o maacuteximo de informaccedilatildeo neacute Aiacute eles vecircm com a maacutexima
de que torturar eacute investigar (risos) E daiacute se precisar ateacute a morte o negoacutecio
eacute conseguir informaccedilatildeo (Batista 17 nov 2004)
[] onde eram os choques eleacutetricos que na PE eles davam eles me
molhavam toda para o choque ser mais intenso e botavam principalmente
nas partes onde eram mais sensiacuteveis como ouvido nariz boca bico do
peito vagina acircnus[] o choque eleacutetrico eacute indescritiacutevel porque vocecirc perde a
noccedilatildeo do tempo e todo e qualquer controle da bexiga e dos intestinos []
(Coimbra 30 nov 2004)
Portanto ali a incumbecircncia era operar a extraccedilatildeo de informaccedilotildees e para isso a
tortura como meacutetodo era utilizada pelos agentes das turmas de interrogatoacuterio
preliminar Afinal em uma ponta da sofisticaccedilatildeo repressiva apresentada pelos DOI-
CODI estava a concentraccedilatildeo de informaccedilotildees dos CODI e na outra a agilidade que a
extraccedilatildeo de informaccedilotildees possibilitada principalmente pelo uso das torturas durante os
interrogatoacuterios dos presos dava agraves operaccedilotildees de busca e apreensatildeo de mais ldquoelementos
subversivosrdquo
82
A partir dos depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados assim como
da anaacutelise da historiografia selecionada e dos dados trazidos pelo coronel Pereira em sua
monografia percebe-se que os DOI-CODI ocupavam somente uma parte dos quarteacuteis
do Exeacutercito onde se localizavam e na parte restante o funcionamento desses quarteacuteis
continuava normalmente Os DOI-CODI eram portanto prisotildees atiacutepicas diferentes das
convencionais construiacutedas desde o iniacutecio para acomodar prisioneiros Assim eacute coerente
que o serviccedilo de carceragem nos DOI-CODI fosse executado pelos soldados que
serviam ao proacuteprio quartel jaacute que esse era apenas um serviccedilo de apoio um auxiacutelio natildeo
agrave toa feito por agentes de turmas que eram intituladas auxiliares
Os soldados que serviam ao quartel a quem era atribuiacutedo o serviccedilo de
carceragem eram conhecidos no DOI-CODIRJ por ldquocatarinasrdquo devido a suas
caracteriacutesticas fiacutesicas e tambeacutem ao sotaque tiacutepico ao estado de Santa Catarina Os
ldquocatarinasrdquo eram identificados como soldados devido ao fato dos agentes propriamente
do DOI-CODIRJ normalmente andarem a paisana enquanto eles usavam farda ou seja
trajes tradicionais a militares que natildeo estivessem ligados a operaccedilotildees de informaccedilotildees
Os agentes dos DOI-CODI como elucidado por meio da segunda frente deste capiacutetulo
por precisarem ser confundidos com civis se diferenciavam dos demais soldados
Na PE os soldados eram sempre de Santa Catarina [] pessoas de portes
fiacutesicos avantajados e essa condiccedilatildeo fiacutesica era uma espeacutecie de exigecircncia para
servir ao quartel da Poliacutecia Militar Eram entatildeo os ldquocatarinasrdquo [] (Carvalho
8 fev 2003)
[] quem torturava a gente era o pessoal do DOI-CODI normalmente eles
andavam a paisana [] e quem fazia o trabalho burocraacutetico ou seja a
limpeza da PE quem dava o cafeacute da gente quem abria a cela e fechava a
cela eram os soldados uniformizados Eram ateacute os ldquocatarinasrdquo porque
tinham muitos que vinham de Santa Catarina eram soldados altos [] entatildeo
83
os soldados faziam a burocracia e os militares do DOI-CODI faziam essa
parte digamos da investigaccedilatildeo poliacutetica [] (Pandolfi 5 fev 2003)
[] os ldquocatarinasrdquo eram os guardinhas era o pessoal que estava servindo
eles tinham dezoito ou dezenove anos eles estavam servindo ao Exeacutercito e
alguns deles ateacute amenizavam a nossa situaccedilatildeo [hellip] (Batista 17 nov 2004)
Diferentemente do que se percebe na monografia feita pelo coronel Pereira em
1978 nas memoacuterias aqui analisadas a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI no ano de 1970
consagrou-se como um dos periacuteodos mais difiacuteceis de suas vidas Nota-se no entanto
que os nuacutemeros e percentuais que na eacutepoca eram interpretados por muitos militares
como forte indiacutecio de eficiecircncia da instituiccedilatildeo no combate ao ldquoinimigo internordquo estatildeo
em meio ao contexto democraacutetico em que as narrativas dos ex-presos foram construiacutedas
diretamente ligados agrave memoacuteria da tortura e da violaccedilatildeo aos direitos humanos Como se
pode analisar a partir da interpretaccedilatildeo de Ceciacutelia Coimbra uma das ex-prisioneiras
poliacuteticas fundadoras do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro 15
[] eu acho a fala para mim a minha militacircncia no Tortura Nunca Mais
fundamental Em 85 quando a gente fundou o Grupo foi fundamental no
sentido de tornar isso puacuteblico e natildeo soacute como se fosse uma coisa de lamento
da gente uma coisa da dor da gente dessa marca que natildeo vai sair nunca []
mas como instrumento de luta instrumento de denuacutencia [] (Coimbra 30
nov 2004)
Durante o periacuteodo das entrevistas aqueles que viveram a experiecircncia dos DOI-
CODI a partir do outro lado de suas grades muitas vezes veem as dolorosas lembranccedilas
daquele tempo como um meio de fazer justiccedila e ateacute mesmo contribuir para a
solidificaccedilatildeo da democracia enquanto que os militares que no passado se orgulhavam
15
O GTNMRJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-prisioneiros poliacuteticos que viveram situaccedilotildees de
tortura durante o regime militar e por familiares de mortos e desaparecidos poliacuteticos Para mais
informaccedilotildees ver o perfil de Ceciacutelia Coimbra no proacuteximo capiacutetulo
84
de seus feitos lutam no presente por natildeo serem a eles associados Diante disso nota-se
que apoacutes o teacutermino da ditadura em 1985 as memoacuterias dos entatildeo vencidos
movimentam-se de forma a se sobreporem agraves dos vencedores conseguindo aos poucos
garantir seu espaccedilo de viacutetimas da ditadura e ao mesmo tempo de heroacuteis da democracia
na poliacutetica na justiccedila e na histoacuteria
85
Capiacutetulo 2 ndash Os presos poliacuteticos e suas organizaccedilotildees
Nas escolas nas ruas
campos construccedilotildees
Somos todos soldados
Armados ou natildeo
Caminhando e cantando
E seguindo a canccedilatildeo
Somos todos iguais
Braccedilos dados ou natildeo
Os amores na mente
As flores no chatildeo
A certeza na frente
A histoacuteria na matildeo
Caminhando e cantando
E seguindo a canccedilatildeo
Aprendendo e ensinando
Uma nova liccedilatildeo
Geraldo Vandreacute
(Pra natildeo dizer que natildeo falei de flores 1968)
86
Antocircnio Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia satildeo alguns dos brasileiros
que lutaram contra a ditadura militar no paiacutes e que na eacutepoca foram presos pelo governo
nas dependecircncias do DOI-CODI do Rio de Janeiro Trecircs homens e trecircs mulheres que
apesar de suas trajetoacuterias pessoais e poliacuteticas distintas possuem ateacute hoje fortes elos
construiacutedos pela passagem pelo DOI-CODI carioca
Foi especificamente essa vivecircncia prisional comum que me despertou o interesse
pelas memoacuterias desses seis atores histoacutericos O objetivo era a partir da oacutetica dos ex-
prisioneiros entender como funcionava na praacutetica o DOI-CODIRJ Assim entre os
anos de 2002 e 2004 em meio aos governos dos ex-presidentes Fernando Henrique e
Lula ou seja jaacute em tempos democraacuteticos Antocircnio Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana
e Ceciacutelia me concederam entrevistas sobre suas prisotildees no DOI-CODIRJ bem como
sobre suas trajetoacuterias pessoais e poliacuteticas antes e depois de suas prisotildees
Esses depoimentos ndash principal objeto de pesquisa desta dissertaccedilatildeo ndash trazem aleacutem
das lembranccedilas sobre o cotidiano prisional de um DOI-CODI muito da personalidade e
da vivecircncia de cada um desses indiviacuteduos Atraveacutes dessas memoacuterias pode-se lidar com
as idiossincrasias de cada um deles relativizando a ideia de uma memoacuteria coletiva
comum a todos os ex-prisioneiros poliacuteticos que ficaram no quartel da Rua Baratildeo de
Mesquita Pode-se ainda conhecer um pouco mais de perto a loacutegica de construccedilatildeo de
suas memoacuterias individuais analisando como cada um desses indiviacuteduos se vecirc atraveacutes do
passado de militacircncia e prisatildeo como se identifica por meio desse passado imprime essa
identidade no mundo externo e como este mundo influencia na percepccedilatildeo que possui
sobre si mesmo
No entanto as memoacuterias individuais aqui trabalhadas natildeo estatildeo isoladas jaacute que
conforme bem evidenciado por Maurice Halbwachs em A memoacuteria coletiva (2004)
frequentemente tomam como referecircncia pontos externos ao sujeito se apoiando em
87
percepccedilotildees recebidas de determinada memoacuteria coletiva de um grupo e tambeacutem pela
memoacuteria histoacuterica de seu paiacutes (2004 57-59) Partindo dessa ideia percebe-se aqui que
nas memoacuterias narradas por indiviacuteduos que fizeram parte de uma mesma organizaccedilatildeo de
esquerda armada ou que ainda hoje integram um mesmo grupo como por exemplo o
Grupo Tortura Nunca MaisRJ satildeo encontrados mais pontos de contato Aleacutem disso
todos os depoentes mostram ter como base de suas lembranccedilas a memoacuteria histoacuterica
pois em algum momento as localizam no tempo por meio de datas e fatos que se
estabeleceram como histoacutericos tal como o golpe civil-militar de 31 de marccedilo de 1964
ou a decretaccedilatildeo do AI-5 em 13 de dezembro de 1968
Cabe aqui ressaltar que ex-prisioneiros do DOI-CODIRJ entrevistados eram em
sua grande maioria estudantes que se tornaram combatentes da esquerda armada a
partir da proibiccedilatildeo de atividades e manifestaccedilatildeo sobre o assunto de natureza poliacutetica
estipulada pelo inciso III do artigo 5ordm do AI-5 e que em suas memoacuterias a
promulgaccedilatildeo deste Ato representa um marco temporal muito mais forte do que o golpe
civil-militar de 1964 Afinal para suas trajetoacuterias de vida o AI-5 de 13 de dezembro de
1968 foi um divisor de aacuteguas pois tornava as manifestaccedilotildees estudantis proibidas
revoltando-os e estimulando-os ainda mais a lutar pela derrubada do regime ditatorial
Diante disso a maioria dos depoentes sustenta em suas memoacuterias o AI-5 como um
momento em que suas vidas foram postas em xeque A partir do dia de sua
promulgaccedilatildeo eles se viram diante da necessidade de decidir se continuavam ou natildeo a
agir contra a ditadura e em caso positivo se deveriam considerar a violecircncia armada
como uma via de luta uma vez que os movimentos paciacuteficos estavam totalmente
encurralados Como a opccedilatildeo da maior parte deles foi a de pegar em armas ndash decisatildeo que
acarretou natildeo soacute em suas prisotildees mas tambeacutem na mudanccedila da percepccedilatildeo que tinham
sobre a vida jaacute que ao andarem armados passavam a ter a consciecircncia de que viviam
88
sob a ameaccedila da morte ndash o AI-5 tem papel de destaque entre suas memoacuterias do periacuteodo
militar Essa importacircncia do AI-5 pode ser exemplificada no trecho abaixo destacado da
entrevista de Ana de Miranda Batista
O AI-5 foi determinante Porque vocecirc natildeo tinha mais formas de expressatildeo
vocecirc natildeo podia se reunir vocecirc natildeo podia mais fazer nada era impedido pela
poliacutecia A gente estava amordaccedilado a imprensa amordaccedilada os teatros os
cinemas tudo Era um terror muita poliacutecia na rua muita blitz blitz de
montatildeo sabe Quem quisesse ser como a gente -ldquoAbaixo a Ditadura
Abaixo a Repressatildeordquo As formas de expressatildeo se reduziram a quase zero Aiacute
eacute que houve um pontapeacute na decisatildeo de muitos de noacutes de quer dizer soacute
restou a luta armada soacute restou resistir de forma armada mesmo que pra
maioria de noacutes fosse uma decisatildeo extrema [] eu nem uma arma de perto
eu nunca tinha visto Quer dizer esse momento eacute um momento draacutestico
quer dizer um tempo depois eacute que eu conversando eacute que vi que natildeo foi
assim soacute para mim Porque para alguns dos rapazes que tinham servido ao
Exeacutercito e sei laacute o quecirc eles jaacute tinham alguma familiaridade com armas quer
dizer alguns deles Mas a gente menina classe meacutedia natildeo Eu nunca tinha
visto nunca tinha me interessado por arma na vida (risos) natildeo fazia parte do
meu universo E teve muita gente que nessa eacutepoca pirou Pirou que eu digo
de natildeo querer mais saber Muita gente E eu acho extremamente respeitaacutevel
essa decisatildeo porque eacute uma decisatildeo draacutestica [] porque no momento em que
vocecirc estaacute com uma arma vocecirc pode matar ou morrer Eacute muito grave essa
decisatildeo Vocecirc estaacute lidando com a possibilidade da morte e quando vocecirc
nunca teve familiaridade assim quando vocecirc nunca viu uma arma eacute muito
difiacutecil [] (Batista 17 nov 2004)
Vale aqui mais uma vez destacar que essas memoacuterias do passado satildeo lavadas nas
aacuteguas do presente ou seja satildeo o preacutesent du passeacute conforme a feliz expressatildeo de Robert
Frank (1999) As memoacuterias sobre as experiecircncias prisionais do DOI-CODIRJ
ocorridas durante os ldquoanos de chumbordquo da ditadura militar foram construiacutedas em
entrevistas concedidas entre o final do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-
2002) e o iniacutecio do governo de Lula (2003-10) ambos perseguidos poliacuteticos durante o
89
periacuteodo ditatorial Portanto a perspectiva de vencidos que no passado direcionava as
memoacuterias dos depoentes abre lugar para uma narrativa proacutexima agrave de vencedores pela
qual os ex-prisioneiros poliacuteticos se veem como responsaacuteveis pela construccedilatildeo da
democracia e de uma justiccedila de transiccedilatildeo ainda em curso no Brasil
Uma ideia de justiccedila de transiccedilatildeo iniciou-se principalmente a partir da
Constituiccedilatildeo de 1988 quando a reparaccedilatildeo aos perseguidos poliacuteticos do passado
ditatorial se transformou em garantia constitucional No entanto foi somente a partir de
1995 jaacute no governo FHC que ela comeccedilou a ser implantada por meio da primeira
comissatildeo de reparaccedilatildeo a Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos (lei nordm
914095) Aleacutem disso em 2002 sete anos depois a reparaccedilatildeo aos perseguidos pela
ditadura foi complementada por meio da Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio da Justiccedila
(lei nordm 1055902) Assim quando a primeira entrevista me foi concedida em setembro
de 2002 a Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos jaacute trabalhava no sentido de
reconhecer a responsabilidade do Estado brasileiro por mortes e desaparecimentos de
presos poliacuteticos ocorridas durante a ditadura enquanto a Comissatildeo de Anistia iniciava a
sua funccedilatildeo de
[] reparar os atos de exceccedilatildeo incluindo as torturas prisotildees arbitraacuterias
demissotildees e transferecircncias por razotildees poliacuteticas sequestros compelimento agrave
clandestinidade e ao exiacutelio banimentos expurgos estudantis e
monitoramentos iliacutecitos (Abratildeo 2010 4)
Conforme jaacute abordado no primeiro capiacutetulo os procedimentos impostos pela Lei
105592002 influenciaram como natildeo podia deixar de ser o processo de construccedilatildeo das
memoacuterias aqui trabalhadas Afinal o referido processo se iniciava com um relato da
viacutetima sobre as agressotildees e perseguiccedilotildees sofridas agrave eacutepoca ditatorial Este deveria
configurar uma espeacutecie de memorial no qual o requerente deveria destacar todas as
90
violaccedilotildees sofridas a ser apresentado agrave Comissatildeo cabendo a esta apoacutes a verificaccedilatildeo dos
fatos expostos conceder ou natildeo ao requisitante a condiccedilatildeo de anistiado poliacutetico e
dependendo do caso a correspondente reparaccedilatildeo econocircmica Como alguns dos
entrevistados passavam por este processo no mesmo periacuteodo em que concederam as
entrevistas eacute notaacutevel que tal experiecircncia seja mais uma forte influecircncia do presente na
construccedilatildeo das memoacuterias por eles narradas Esse momento de busca por reparaccedilatildeo por
que muitos passavam inconscientemente os conduzia a enfatizar durante as narrativas
suas condiccedilotildees de ldquoviacutetimasrdquo do passado em detrimento por exemplo de suas condiccedilotildees
de ldquosiacutembolos da resistecircnciardquo
Ainda diante da capacidade de intervenccedilatildeo que o presente exerce sobre as
memoacuterias do passado deve-se considerar tambeacutem a forma como essa rede de
entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que as entrevistas foram realizadas
Afinal o caminho trilhado ateacute o depoente e o momento especiacutefico de cada narrativa
composto pelo local e as condiccedilotildees gerais sob as quais ocorreu tambeacutem influenciam na
construccedilatildeo das memoacuterias do entrevistado tanto por parte do historiador na maneira
como aborda o narrador quanto por parte do proacuteprio narrador por meio da forma com
que narra suas memoacuterias Portanto acredita-se aqui que a busca por cada entrevistado
interfere na abordagem que o entrevistador imprime agrave entrevista e na forma como o
narrador se sente ao narrar suas memoacuterias naquele momento tornando o instante de
cada entrevista um fator tambeacutem de intervenccedilatildeo na narrativa das memoacuterias do passado
Dessa forma antes de tratar-se das trajetoacuterias de vida narradas por cada ex-prisioneiro
entrevistado optou-se aqui por considerar como o instante de cada entrevista foi
construiacutedo ou seja como a rede de entrevistas foi formada
91
1 A rede de entrevistas
A primeira entrevista foi feita com o ex-preso poliacutetico Antocircnio Leite de Carvalho
em 12 de setembro de 2002 na sala de sua casa situada bem proacutexima ao quartel do 1ordm
BPE onde se localizava o DOI-CODIRJ O espaccedilo ocupado por esta instituiccedilatildeo que eacute
intensamente abordado no proacuteximo capiacutetulo situava-se nos fundos do referido quartel
cujo edifiacutecio foi construiacutedo durante o Impeacuterio e ainda hoje se encontra entre a Avenida
Maracanatilde e a Rua Baratildeo de Mesquita no bairro da Tijuca na cidade do Rio de Janeiro
Cheguei ateacute Antocircnio atraveacutes de seu filho Joatildeo meu colega do curso de graduaccedilatildeo
em histoacuteria pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Sabedor
do meu interesse sobre o tema da repressatildeo poliacutetica Joatildeo procurou me ajudar e ao
mesmo tempo satisfazer a curiosidade que sentia sobre esta parte da vida de seu pai
Portanto durante a minha primeira visita agrave casa de Antocircnio enquanto ele narrava
suas memoacuterias sobre o periacuteodo em que esteve preso nas dependecircncias do quartel
vizinho Joatildeo atravessava constantemente a sala em direccedilatildeo agrave varanda ou agrave cozinha
Assim sem que Antocircnio aparentemente percebesse jaacute que estava concentrado em sua
narrativa Joatildeo tentava ouvir um pouco mais sobre um passado que seu pai nunca havia
revelado abertamente aos filhos
Percebe-se entatildeo como lidar com detalhes dessa memoacuteria era complicado para
Antocircnio e portanto o quanto aquele momento era importante para ele e para seu filho
Atraveacutes da entrevista enquanto Antocircnio passava a sentir um maior orgulho daquelas
memoacuterias pois por meio do meu interesse em entrevistaacute-lo comeccedilava a percebecirc-las
como fonte para a histoacuteria do paiacutes Joatildeo conhecia melhor o seu pai e passava a entender
algumas de suas atitudes que ateacute entatildeo questionava
Era o caso da reaccedilatildeo arredia que Antocircnio tinha ao ser acordado de forma
inesperada enquanto dormia no sofaacute da casa Assim apoacutes ouvir sobre o cotidiano e as
92
torturas a que seu pai afirma ter sido submetido no DOI-CODIRJ Joatildeo comeccedilou a
compreender que tal reaccedilatildeo tinha relaccedilatildeo com esse passado quando Antocircnio muitas
vezes pode ter sido despertado de desmaios ocasionados por choques eleacutetricos e outras
torturas a ele perpetradas ainda na sala de interrogatoacuterio Logo o fato de acordar
assustado tentando se proteger ou ateacute mesmo agredir quem o acordasse pode ser
compreendido quando relacionado agraves marcas que as violecircncias vividas no DOI-
CODIRJ deixaram na memoacuteria de Antocircnio
A partir dessa primeira entrevista o meu interesse pelo tema se aprofundou
impulsionando-me a buscar outros possiacuteveis entrevistados No dia 5 de fevereiro de
2003 consegui entrevistar Dulce Chaves Pandolfi Seu nome foi aventado por meio da
leitura sobre a passagem de Dulce pelo DOI-CODIRJ encontrada no livro Brasil
Nunca Mais publicado pela Editora Vozes em 1985
A estudante Dulce Chaves Pandolfi 24 anos foi obrigada tambeacutem a servir
de cobaia no quartel da rua Baratildeo de Mesquita no Rio [] Na Poliacutecia do
Exeacutercito foi submetida a espancamento inteiramente despida bem como a
choques eleacutetricos e outros supliacutecios como o ldquopau-de-ararardquo Depois de
conduzida agrave cela onde foi assistida por meacutedico foi apoacutes algum tempo
novamente seviciada com requintes de crueldade numa demonstraccedilatildeo de
como deveria ser feita a tortura [] (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985 32)
Depois de algumas tentativas frustradas de marcar esta entrevista por meio de
mensagens via correio eletrocircnico que encontrei atraveacutes do site do CPDOC centro de
pesquisa onde Dulce trabalha como pesquisadora e professora ela enfim me recebeu em
sua sala no interior deste mesmo centro de pesquisa Sua resistecircncia inicial pode ser
atribuiacuteda ao fato de na condiccedilatildeo de pesquisadora estar mais acostumada ao papel de
entrevistadora do que ao de entrevistada ou seja estar mais afinada com o trabalho de
analisar as fontes do que com o de ser a proacutepria fonte Diante disso durante sua
93
entrevista Dulce natildeo se sentiu agrave vontade em tratar dos detalhes das violecircncias sofridas
no DOI-CODIRJ o que pode ser explicado pela dor que ainda acompanha suas
memoacuterias e tambeacutem pelo desconforto que a situaccedilatildeo lhe trazia jaacute que ela possivelmente
natildeo se desvinculava do fato de ser uma professora universitaacuteria expondo sua intimidade
a uma aluna de graduaccedilatildeo No entanto justamente por lecionar histoacuteria e por
conseguinte jaacute estar convencida da importacircncia de seu depoimento Dulce apresentou
uma narrativa articulada e aparentemente coerente
Apoacutes a entrevista de Dulce ficou evidente a desarticulaccedilatildeo da memoacuteria de
Antocircnio uma vez que esta era silenciada haacute muito tempo e portanto natildeo possuiacutea uma
construccedilatildeo preacute-estabelecida por outros discursos Tal percepccedilatildeo me levou a voltar a
entrevistaacute-lo em 8 de fevereiro de 2003 trecircs dias depois da entrevista de Dulce quando
Antocircnio jaacute demonstrava uma memoacuteria mais articulada Afinal esse silecircncio que
caracterizava sua memoacuteria lhe atribuiacutea um aspecto negativo e um destacadamente
positivo O lado negativo era que conforme elucidado por Michael Pollak em Memoacuteria
esquecimento e silecircncio (1989) dificilmente sua memoacuteria foi transmitida de forma
intacta durante todo o tempo em que ficou guardada ateacute o dia em que a entrevista
significou uma oportunidade para que ela saiacutesse do ldquonatildeo-ditordquo Poreacutem o lado positivo a
meu ver merecedor de destaque era que a memoacuteria de Antocircnio sobre a prisatildeo no DOI-
CODIRJ possuiacutea poucas influecircncias por decorrecircncia do contato com as memoacuterias de
outros ex-prisioneiros pois natildeo estava a elas diretamente relacionada por meio de
nenhuma coletividade especiacutefica
No ano seguinte ao buscar mais informaccedilotildees sobre o DOI-CODIRJ no Arquivo
Puacuteblico do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) conheci Fernando Palha Freire que viria
a ser o meu terceiro entrevistado Na eacutepoca da entrevista em junho de 2004 Fernando
trabalhava neste Arquivo enviando ao governo estadual a documentaccedilatildeo de requerentes
94
agrave reparaccedilatildeo econocircmica conforme constava no decreto nordm 31995 de 10 de outubro de
2002 Este decreto regulamentava a lei estadual Nordm 3744 de 21 de dezembro de 2001
que antes mesmo da lei federal 105592002 entrar em vigor dispunha sobre a
reparaccedilatildeo a pessoas que haviam sido detidas sob acusaccedilatildeo de terem participado de
atividades poliacuteticas entre os dias 1ordm de abril de 1964 e 15 de agosto de 1979 e que
haviam sofrido tortura em oacutergatildeos puacuteblicos estaduais
Ao saber sobre o meu tema de pesquisa um arquivista do APERJ me apresentou a
Fernando que natildeo hesitou em me conceder seu depoimento A entrevista foi realizada laacute
mesmo dentro da sala em que Fernando trabalhava e por ter sido concedida durante o
horaacuterio de expediente fomos constantemente interrompidos por ligaccedilotildees telefocircnicas Ao
longo de sua entrevista Fernando confessou ter falado muitas vezes sobre suas
memoacuterias do periacuteodo militar e que justamente por entender a importacircncia desse
passado havia sido nomeado para instruir os requisitantes agrave reparaccedilatildeo estipulada pelo
Decreto estadual Nordm 319952002 Dessa forma justifica-se a apresentaccedilatildeo tranquila e
eloquente que conduz sua narrativa
Trecircs meses depois no final de setembro Padre Maacuterio Prigol da Paroacutequia de
Nossa Senhora da Salete localizada no bairro do Catumbi no Rio de Janeiro me
concedeu seu depoimento Esta entrevista foi possiacutevel por intermeacutedio de Alejandra
outra colega do curso de graduaccedilatildeo em histoacuteria da UNIRIO que o conhecia por jaacute tecirc-lo
entrevistado sobre a sua participaccedilatildeo nos movimentos da Juventude Operaacuteria Catoacutelica
(JOC) e Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) 16
Durante a entrevista que me concedeu Padre Maacuterio falou muito sobre as lutas
sociais que travou durante a ditadura militar descritas no livro que havia acabado de
publicar ndash Maacuterio Prigol educador da feacute entre trabalhadores e militantes populares
16
Para mais informaccedilotildees ver Estevez 2008
95
(2003) Entretanto sobre sua passagem pelo DOI-CODIRJ pouco fazia questatildeo de
narrar reconhecendo em certo momento que laacute tambeacutem havia sofrido com torturas o
que explica em parte o desconforto que as lembranccedilas prisionais lhe traziam
Provavelmente por sua prisatildeo ter lhe colocado na eacutepoca em uma posiccedilatildeo extremamente
conflitante e perturbadora para uma autoridade da Igreja Catoacutelica anos mais tarde essas
memoacuterias ainda eram difiacuteceis de serem narradas e lembrar a violecircncia sofrida dentro do
DOI-CODIRJ possivelmente trazia de volta alguns transtornos de ordem sentimental
indesejaacuteveis Afinal presume-se que na prisatildeo seus sentimentos oscilassem entre os
tipicamente humanos tais como dor e raiva e os cristatildeos como feacute e perdatildeo tais
memoacuterias remetiam a sentimentos humanos que ele em respeito a sua vocaccedilatildeo de
padre deveria renegar
Decidida a ampliar ainda mais o escopo de minha rede de entrevistados passei a
frequentar as reuniotildees abertas ao puacuteblico agraves segundas-feiras agrave noite na sede do Grupo
Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTMNRJ) no bairro de Botafogo O
GTNMRJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-prisioneiros poliacuteticos que viveram
situaccedilotildees de tortura durante o regime militar bem como por familiares de mortos e
desaparecidos poliacuteticos O Grupo tornou-se por meio das lutas em defesa dos direitos
humanos uma importante referecircncia no cenaacuterio nacional Ao longo dessas deacutecadas o
GTNMRJ vem lutando pelo esclarecimento das circunstacircncias da morte e do
desaparecimento de militantes poliacuteticos pelo resgate da memoacuteria da repressatildeo ditatorial
pelo afastamento imediato dos cargos puacuteblicos de pessoas envolvidas com a tortura e
pela formaccedilatildeo de uma consciecircncia eacutetica condiccedilatildeo que a entidade defende ser
indispensaacutevel na luta contra a impunidade e pela justiccedila Aleacutem disso o Grupo vem
denunciando antigos e novos casos de tortura exigindo puniccedilatildeo para seus perpetradores
96
atraveacutes de notas na miacutedia entrevistas atos puacuteblicos seminaacuterios e outras atividades 17
Minha ida agrave sede do Grupo resultou na incorporaccedilatildeo de duas novas entrevistadas a
minha rede A primeira delas foi Ana de Miranda Batista que em 17 de novembro de
2004 me recebeu em uma das salas do proacuteprio GNTMRJ Ana havia acabado de
escrever seu memorial ndash onde narrava todas as perseguiccedilotildees e prisotildees que havia sofrido
durante a ditadura militar ndash e o havia encaminhado agrave presidecircncia da Comissatildeo Especial
da Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro a fim de comprovar
que fazia jus ao valor maacuteximo da reparaccedilatildeo prevista no Art 5ordm da Lei Estadual nordm 3744
de 21 de dezembro de 2001 O ponto principal de seu argumento era que havia sofrido
todas as mazelas prisotildees torturas fiacutesicas e psicoloacutegicas submetida pelas forccedilas
opressoras da eacutepoca fato este que ateacute hoje tem consequecircncias em sua vida (Batista
2004 10) 18
Antes de comeccedilar a entrevista Ana me concedeu uma coacutepia deste memorial
juntamente com a monografia do entatildeo Coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira
fonte analisada no capiacutetulo anterior cujo teor havia lhe servido como evidecircncia dos
meacutetodos violentos que ocorriam nas dependecircncias do DOI-CODI
Diante disso conforme o esperado seu depoimento oral apresentou um tom
narrativo muito similar ao assumido no referido documento que havia recentemente
escrito Assim orquestrada com o objetivo que tinha de conseguir a reparaccedilatildeo do
Estado Ana buscou construir suas memoacuterias de forma a ressaltar as violecircncias sofridas
ou seja priorizou a condiccedilatildeo de ldquoperseguida poliacutetica e viacutetima da repressatildeo militarrdquo em
detrimento da de ldquolutadora revolucionaacuteriardquo em prol da democracia
No final desse mesmo mecircs de novembro entrevistei a entatildeo vice-presidente do
Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro Ceciacutelia Coimbra Professora do
17
Para mais informaccedilotildees acessar httpwwwtorturanuncamais-rjorgbr 18
Memorial de Ana de Miranda Batista parte do requerimento agrave indenizaccedilatildeo enviado ao Secretaacuterio de
Estado de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro pela proacutepria em outubro de 2004
97
Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Ceciacutelia me
recebeu em uma das salas do preacutedio dessa faculdade localizada no campus do
Gragoataacute na cidade de Niteroacutei Uma das fundadoras do GTNMRJ Ceciacutelia natildeo mostrou
nenhum pudor em lembrar as violaccedilotildees sofridas durante a prisatildeo Detalhou as torturas
recebidas sem demonstrar constrangimento Esta forma de lidar com o passado se
explica pela maneira pela qual Ceciacutelia se auto-identifica Afinal devido a sua profissatildeo
de psicoacuteloga e sua condiccedilatildeo de liacuteder de um grupo que luta por reparar os danos morais e
fiacutesicos deixados pela tortura entende a difusatildeo dos detalhes de sua proacutepria memoacuteria
como uma arma poderosa para que a justiccedila seja feita em prol da redenccedilatildeo dos
torturados e da penalizaccedilatildeo dos torturadores
11 Os sujeitos e suas trajetoacuterias
A partir da anaacutelise dos depoimentos traccedila-se aqui a trajetoacuteria de vida de cada um
dos entrevistados a fim de que sejam desvendados outros fatores que influenciaram a
construccedilatildeo de suas memoacuterias sobre o periacuteodo em que estiveram presos no DOI-
CODIRJ Este periacuteodo se concentra no segundo semestre do ano de 1970 uma vez que
foi nesse momento que todos os seis entrevistados por laacute passaram Este dado temporal
em muito aproxima suas memoacuterias pois significa que estas se referem a uma mesma
fase desse oacutergatildeo repressivo Isso permitiu ateacute mesmo que tais memoacuterias englobassem
momentos compartilhados jaacute que alguns desses ex-prisioneiros laacute se encontraram e ateacute
dividiram uma mesma cela
No entanto cabe aqui destacar que natildeo houve qualquer intenccedilatildeo de entrevistar ex-
prisioneiros que estivessem no DOI-CODIRJ durante esse periacuteodo Conforme exposto
anteriormente a rede de entrevistas foi se desenhando de acordo com as oportunidades
o que torna o fato de todos terem por laacute passado na segunda metade de 1970 natildeo uma
98
feliz coincidecircncia como uma primeira impressatildeo pode fazer crer mas mais uma
demonstraccedilatildeo da alta eficiecircncia dos DOI-CODI Essas prisotildees correspondem justamente
ao periacuteodo em que o DOI-CODIRJ passou a funcionar em meados de 1970
demonstrando na praacutetica o que foi dito no capiacutetulo anterior diante da grande demanda
de accedilotildees que natildeo eram eficientemente combatidas pelos oacutergatildeos de repressatildeo anteriores
a sofisticaccedilatildeo dos DOI ldquorevolucionourdquo de fato a organizaccedilatildeo da repressatildeo agindo jaacute
num primeiro momento de forma avassaladora
Antocircnio Leite de Carvalho19
Antocircnio Leite de Carvalho nasceu no Cearaacute em 13 de agosto de 1945 Quando era
estudante secundarista pertenceu ao movimento que se concentrava no Calabouccedilo
restaurante estudantil proacuteximo ao Aeroporto Santos Dumont do Rio de Janeiro
frequentado por estudantes que eram como ele secundaristas pobres e principalmente
procedentes de outros estados
Em 1967 o governo apresentou planos para a demoliccedilatildeo do Calabouccedilo sob a
justificativa de construir em seu local um trevo rodoviaacuterio para desafogar o tracircnsito do
Aterro do Flamengo A partir disso os estudantes comeccedilaram a protestar contra a sua
demoliccedilatildeo e criaram a Frente Unida dos Estudantes do Calabouccedilo (FUEC) O governo
em maio daquele ano conseguiu demolir o restaurante e entregou em setembro ldquoo novo
Calabouccedilordquo para os estudantes poreacutem em situaccedilotildees precaacuterias Assim a luta da FUEC
continuou em prol da melhoria de suas condiccedilotildees de funcionamento e foi justamente em
torno desses protestos que o primeiro grande conflito de rua do ano de 1968 ocorreu
sensibilizando a opiniatildeo puacuteblica e o movimento estudantil como um todo No dia 28 de
19
Entrevistas realizadas com Antocircnio Leite de Carvalho em 12 de setembro de 2002 e 8 de fevereiro de
2003
99
marccedilo policiais invadiram a tiros o restaurante do Calabouccedilo onde se preparava mais
uma manifestaccedilatildeo contra as peacutessimas condiccedilotildees do local e mataram o estudante
secundarista Edson Luiacutes de Lima Souto de dezoito anos Este assassinato representou o
estopim para o desencadeamento de amplas manifestaccedilotildees contraacuterias agrave ditadura ao
longo do ano de 1968 que seriam cada vez mais reprimidas ateacute se tornarem totalmente
proibidas pelo AI-5 20
A partir desse contexto de ilegalidades e proibiccedilotildees Antocircnio se posicionou entre
os estudantes que optaram por continuar a lutar contra a ditadura de forma radicalizada
Aproximou-se entatildeo do Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR) onde
logo em seguida comeccedilou a militar Antocircnio associa a sua adesatildeo ao PCBR ao
programa deste partido de esquerda que tinha a guerrilha urbana como meio de luta
para a derrubada da ditadura e implantaccedilatildeo do socialismo no paiacutes e principalmente agrave
admiraccedilatildeo que tinha por um dos seus fundadores e liacutederes Apolocircnio de Carvalho
Como Antocircnio teve participaccedilatildeo assiacutedua em muitas passeatas do movimento
estudantil de 1968 conheceu muitas lideranccedilas de organizaccedilotildees que vinham se
formando e buscavam adeptos em meio aos estudantes Assim foi apresentado e
comeccedilou a admirar Apolocircnio de Carvalho um dos grandes motivos que o levaram a
posteriormente militar no PCBR partido cuja formaccedilatildeo atuaccedilatildeo e ideais seratildeo
abordados mais adiante Apolocircnio de Carvalho era uma figura haacute muito atuante na
poliacutetica havia lutado em favor dos republicanos na Espanha durante a Guerra Civil
Espanhola na Resistecircncia Francesa contra o nazismo e participava do Partido
Comunista Brasileiro (PCB) quando em 1967 rompeu com este e foi um dos
fundadores do PCBR 21
20
Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009 108-132 21
Em 1967 Apolocircnio rompeu com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e se tornou um dos fundadores
do PCBR partido em situaccedilatildeo clandestina na eacutepoca motivo que o levou a ser preso Juntamente com
outros 39 presos poliacuteticos Apolocircnio foi trocado pelo embaixador alematildeo que em 11 de junho de 1970
100
O partido era o PCBR que possuiacutea uma grande figura que se chama
Apolocircnio de Carvalho que pertence hoje ao PT ele era uma grande
lideranccedila do partido havia participado da Revoluccedilatildeo Espanhola da
resistecircncia ao nazismo na Franccedila um homem respeitado mundialmente pela
sua coragem e pela luta a favor da democracia e contra os ditadores ele era a
minha grande lideranccedila (Carvalho 12 set 2002)
Em 1970 aos 25 anos Antocircnio Leite de Carvalho foi preso No momento de sua
prisatildeo estava agrave espera de outro militante do PCBR na rua em um ponto de encontro
que havia combinado com ele Relacionando o depoimento de Antocircnio com as
estrateacutegias de captura dos DOI analisadas no primeiro capiacutetulo percebe-se que como o
companheiro de Antocircnio havia sido capturado antes de ir ao seu encontro acabou
informando aos agentes de umas das turmas de interrogatoacuterio preliminar do DOI-
CODIRJ muito provavelmente sob tortura o horaacuterio em que Antocircnio estaria no lugar
marcado A partir disso a informaccedilatildeo foi repassada agrave Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo e
agentes de uma das turmas que a formavam se encaminharam ateacute o local com carros e
roupas descaracterizadas como de praxe e levaram Antocircnio algemado para o DOI-
CODIRJ onde ficou preso durante cerca de trecircs meses
Eu fui preso na rua Eu tinha um encontro com outro militante mas esse
militante foi preso e sob tortura no DOI-CODI aqui no 1deg BPE da Rua
Baratildeo de Mesquita ele abriu o ponto quer dizer o ponto era o local de
encontro que a gente chamava de ponto ldquoTenho um ponto com fulanardquo quer
dizer que vocecirc tinha um encontro Ele abriu o local de encontro que eu teria
com ele e aiacute eu fui preso pelo DOI-CODI (Carvalho 12 set 2002)
havia sido sequestrado por esquerdistas integrantes da Vanguarda Popular Revolucionaacuteria (VPR) e da
Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN) vivendo algum tempo exilado na Argeacutelia Apoacutes a implantaccedilatildeo da Lei
de Anistia no Brasil em 1979 ele e sua famiacutelia retornaram agrave terra natal onde participaram da fundaccedilatildeo
do Partido dos Trabalhadores (PT) em 1980 Apolocircnio faleceu em setembro de 2005 aos 93 anos
(Carvalho 1997 13-16)
101
Antocircnio ressalta que durante a sua prisatildeo no DOI-CODIRJ esteve junto a
Fernando Gabeira e Daniel Aaratildeo Reis Filho Ambos haviam participado do sequestro
do embaixador americano no dia 4 de setembro de 1969 e por terem conseguido trocar
o embaixador por quinze presos poliacuteticos que foram exilados no Meacutexico haviam se
destacado entre os militantes da esquerda armada Aleacutem disso como na eacutepoca em que
Antocircnio concedeu as entrevistas Gabeira e Daniel Aaratildeo eram pessoas publicamente
reconhecidas pela luta contra a ditadura e tambeacutem por suas atividades profissionais ndash
Gabeira como jornalista e entatildeo deputado federal e Daniel Aaratildeo como intelectual ndash
percebe-se que o fato de ter tido contato com eles na prisatildeo eacute importante para a leitura
que Antocircnio faz sobre suas memoacuterias injetando-lhes certo orgulho Afinal apesar de
natildeo ter participado do sequestro Antocircnio tambeacutem havia sido preso e torturado por
pegar em armas contra a ditadura logo o fato de ter convivido na cadeia com essas
figuras jaacute reconhecidas pelos feitos desse mesmo passado lhe trazia no presente uma
dimensatildeo positiva sobre suas memoacuterias
Fiquei preso com pessoas que ficaram famosas como o Fernando Gabeira
que depois se tornou parlamentar foi candidato ao governo do Estado foi
candidato a prefeito e hoje eacute deputado federal Tambeacutem o Daniel Aaratildeo
Reis renomado professor de Histoacuteria e uma seacuterie de outros que hoje estatildeo aiacute
pelo governo inclusive em diversos governos (Carvalho 12 set 2002)
Apoacutes o tempo em que esteve preso no DOI-CODIRJ Antocircnio foi transferido para
o Departamento de Ordem Poliacutetica e Social (DOPS) onde permaneceu por um periacuteodo
de dois ou trecircs meses sendo entatildeo libertado Na eacutepoca em que concedeu a entrevista
Antocircnio aleacutem de bancaacuterio aposentado trabalhava como dirigente sindical em um cargo
eletivo
102
Dulce Chaves Pandolfi22
Dulce Chaves Pandolfi nasceu em Recife no dia 14 de dezembro de 1948
Cursava Ciecircncias Sociais em Pernambuco quando em 1967 entrou para o Diretoacuterio
Acadecircmico se tornando pouco depois secretaacuteria geral do Diretoacuterio Central dos
Estudantes (DCE) A partir de dezembro de 1968 com o AI-5 extinguindo os grecircmios
estudantis e substituindo-os por centros ciacutevicos sem autonomia que natildeo podiam realizar
atividades de natureza poliacutetica a opccedilatildeo de fazer parte da ALN era para Dulce uma
forma de continuar lutando por uma ldquosociedade mais igualitaacuteriardquo Aleacutem disso era
sobretudo um meio de derrubar o regime militar em vigor como se pode conferir na
passagem abaixo
[] a gente queria transformar a sociedade a gente queria o socialismo uma
sociedade igualitaacuteria Mas tinha uma fase anterior que era exatamente a de
querer derrubar a ditadura essa era a meta principal de todos Sabiacuteamos
inclusive que o socialismo natildeo era uma meta imediata era uma luta em
longo prazo [] entatildeo a nossa luta inicialmente era para ser instalado o
regime democraacutetico era a luta contra a ditadura (Pandolfi 5 fev 2003)
Ressalta-se entretanto que a opccedilatildeo de Dulce assim como da maior parte dos
estudantes que a partir do AI-5 se juntaram agraves organizaccedilotildees esquerdistas de luta armada
estava inserida no contexto mundial de 1968 Este por sua vez influenciava-se pela
vitoacuteria da Revoluccedilatildeo Cubana em 1959 pela independecircncia da Argeacutelia em 1962 pela
Guerra Fria que acabou por deflagrar entre os anos de 1959 e 1975 a Guerra do Vietnatilde
e por meio desta o enfrentamento indireto de Estados Unidos e Uniatildeo Sovieacutetica e pela
rebeliatildeo estudantil mundial iniciada a partir do ldquomaio francecircs de 1968rdquo que comeccedilou
por meio de uma manifestaccedilatildeo estudantil pontual questionadora de atitudes culturais
22
Entrevista realizada com Dulce Chaves Pandolfi em 5 de fevereiro de 2003
103
tradicionais e conservadoras e rapidamente atingiu a proporccedilatildeo de uma ldquorevoluccedilatildeo
cultural mundialrdquo Percebe-se entatildeo que o horizonte nesse momento era revolucionaacuterio
e principalmente entre os jovens impulsionava a percepccedilatildeo de que os partidos
tradicionais de esquerda estavam desacreditados e que era hora de uma nova geraccedilatildeo
partir para a accedilatildeo direta rumo agrave revoluccedilatildeo
Assim diferente de como eacute narrado por muitos ex-prisioneiros poliacuteticos em
tempos jaacute democraacuteticos que tais como Dulce veem a democracia do presente como
uma conquista positiva e por isso inconscientemente permitem que essa visatildeo atual
influencie suas memoacuterias de luta percebe-se aqui que a democracia natildeo prevalecia entre
os ideais das organizaccedilotildees de luta armada da eacutepoca muito pelo contraacuterio Afinal
acredita-se que em meio ao contexto mundial do momento as esquerdas armadas
tinham uma perspectiva de fato revolucionaacuteria ou seja valorizavam a revoluccedilatildeo muito
mais que a democracia que inclusive nesse momento estava diretamente associada
aos Estados Unidos e consequentemente ao sistema capitalista Como aponta Daniel
Aaratildeo na obra a Ditadura militar esquerdas e sociedade (2000)
a perspectiva ofensiva revolucionaacuteria que havia moldado aquelas
esquerdas E o fato de que elas natildeo eram de modo nenhum apaixonadas pela
democracia (Aaratildeo Reis 2000 70)
A democracia soacute comeccedilou mesmo a ser valorizada a partir do final da deacutecada de
1970 jaacute em uma nova conjuntura onde jaacute existiam outros significados tais como os
direitos humanos e a luta pela anistia No entanto por outro lado nota-se que conforme
destacado por Dulce a luta contra ditadura era tambeacutem um dos objetivos principais da
esquerda armada no final dos anos 1960 Dessa forma apesar da luta contra ditadura na
eacutepoca estar totalmente vinculada agrave revoluccedilatildeo socialista eacute compreensiacutevel que a
democracia tenha em tempos recentes um papel destacado entre as memoacuterias dos ex-
104
guerrilheiros Tal como analisa Marcelo Ridenti em Resistecircncia e mistificaccedilatildeo da
resistecircncia armada contra a ditadura armadilha para pesquisadores (2004) nota-se
aqui que a face de resistecircncia agrave ditadura das experiecircncias guerrilheiras passou a importar
mais apoacutes a implantaccedilatildeo da democracia que a ofensiva revolucionaacuteria ao contraacuterio da
intenccedilatildeo original dos guerrilheiros Afinal foi esta face que teve o objetivo alcanccedilado
ou seja saiu-se vencedora
Apoacutes o AI-5 Dulce optou entatildeo por militar na Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN)
organizaccedilatildeo de esquerda armada que seraacute abordada ainda neste capiacutetulo Assim no ano
de 1970 sabendo que estava sendo procurada pela repressatildeo por conta de sua militacircncia
clandestina Dulce se mudou para a cidade do Rio de Janeiro Sete meses depois no dia
14 de agosto foi presa na casa do seu namorado e levada direto para o DOI-CODIRJ
onde permaneceu cerca de trecircs meses
[] fui presa na casa do meu namorado noacutes fomos presos agrave noite no dia 14
de agosto Fui levada direto para PE Fiquei na PE mais ou menos uns trecircs
meses fiquei ateacute novembro comecinho de dezembro eu acho Depois eu
fui transferida para o DOPS (Pandolfi 5 fev 2003)
Apoacutes permanecer presa no DOI-CODI Dulce foi levada para o DOPS e depois
de seu julgamento foi transferida para o presiacutedio Talavera Bruce prisatildeo feminina de
regime fechado com grau de seguranccedila maacutexima localizada no bairro de Bangu
Passado um ano foi levada de volta para Recife sua cidade natal onde finalmente foi
libertada Encontrou-se prisioneira por mais de um ano de agosto de 1970 ateacute dezembro
de 1971
[] depois de um tempo praticamente um ano que eu estava presa fui
levada para Recife porque eu tambeacutem tinha processo laacute e de laacute eu saiacute Fui
105
solta laacute em Recife depois de um ano Saiacute em dezembro de 1971 fui presa
em agosto de 70 e fui solta em dezembro de 71 (Pandolfi 5 fev 2003)
Dulce no momento de sua entrevista jaacute era professora e pesquisadora do Centro de
Pesquisa e Documentaccedilatildeo de Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil (CPDOC) da Fundaccedilatildeo
Getuacutelio Vargas (FGV) ofiacutecio que exerce ateacute os dias de hoje
Fernando Palha Freire23
Fernando Palha Freire nasceu em Beleacutem (PA) e se mudou para o Rio de Janeiro
no fim de 1964 Antes de vir para o Rio ainda adolescente aprendeu alguns
fundamentos marxistas com sua irmatilde mais velha jaacute universitaacuteria que lhe deu o que ele
chamou de uma ldquonoccedilatildeo de mundordquo Quando se mudou para o Rio de Janeiro Fernando
mesmo jovem jaacute havia se definido esquerdista
Agrave eacutepoca do AI-5 Fernando tinha muitos amigos que militavam em uma
Dissidecircncia do Partidatildeo de Niteroacutei a Dissidecircncia do Estado do Rio de Janeiro que em
meados de 1969 foi desmontada atraveacutes da prisatildeo de seus integrantes pelo oacutergatildeo de
repressatildeo da Marinha o Centro de Informaccedilotildees da Marinha o CENIMAR Como esta
organizaccedilatildeo natildeo tinha um nome especiacutefico para noticiar o seu desmonte na imprensa
com um efeito grandioso os militares daquele oacutergatildeo optaram por nomeaacute-la de
Movimento Revolucionaacuterio 8 de outubro (MR-8) fazendo alusatildeo agrave data em que Che
Guevara havia sido capturado na Boliacutevia morrendo no dia seguinte Foi inclusive a
partir disso que a Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-GB)24
para provocar o
governo ditatorial que haacute pouco havia noticiado o desmonte do perigoso ldquoMR-8rdquo
23
Entrevista realizada com Fernando Palha Freire em 28 de junho de 2004 24
Tais organizaccedilotildees de esquerda da eacutepoca ainda seratildeo abordadas neste capiacutetulo no item 12 A nova
esquerda brasileira
106
assinou em co-autoria com a ALN o sequestro do embaixador norte-americano
autointitulando-se MR-8 como passou desde entatildeo a ser conhecida 25
[] quando veio o golpe minha irmatilde jaacute era universitaacuteria eu era um garoto
eu tinha quinze anos [] ela que me deu mesmo uma noccedilatildeo de mundo de
marxismo Quando veio o golpe noacutes moraacutevamos em Beleacutem No final de 64
eu estava me mudando para o Rio de Janeiro jaacute com essas noccedilotildees de justiccedila
social que eu havia aprendido com ela Digamos assim eu jaacute era
definidamente um cara de esquerda Aiacute veio a luta armada [] a primeira
organizaccedilatildeo [desmontada pelos militares] era o MR-8 uma organizaccedilatildeo de
Niteroacutei uma dissidecircncia do Partidatildeo [PCB] de Niteroacutei onde muitos de seus
integrantes eram meus conhecidos meus amigos entatildeo quando esses caras
foram presos eu jaacute era digamos assim um simpatizante dessa organizaccedilatildeo
natildeo era militante mas era simpatizante [] (Freire 28 jun 2004)
A partir dessa ligaccedilatildeo com outros militantes Fernando optou pela luta armada e
passou a militar na ALN mesma organizaccedilatildeo de Dulce Sua militacircncia poreacutem
concentrava-se em Niteroacutei no estado do Rio de Janeiro onde morava e estudava
economia na Universidade Federal Fluminense (UFF) Assim em 1970 Fernando e
outros militantes da ALN proacuteximos a ele resolveram planejar uma accedilatildeo para que muitos
de seus companheiros inclusive os do antigo MR-8 fossem libertados
No dia 1deg de julho de 1970 aos 22 anos Fernando participou do sequestro de um
aviatildeo da Companhia Cruzeiro do Sul que ia do Brasil para a Argentina com o objetivo
de negociar a troca dos passageiros por quarenta presos poliacuteticos
[] a gente pensou em fazer uma accedilatildeo accedilatildeo no sentido de tentar libertar esse
pessoal Na eacutepoca jaacute tinham sequestrado o embaixador americano e
trocado por quinze presos poliacuteticos [] Entatildeo nesse sentido a gente
resolveu planejar o sequestro de um aviatildeo A gente sequestrou um aviatildeo com
o objetivo de trocar os passageiros por quarenta presos poliacuteticos Quer dizer
25
Para mais informaccedilotildees sobre a mudanccedila de nome da Dissidecircncia da Guanabara para MR-8 ver
Berquoacute 1997 72-73
107
a gente entrou num processo de radicalizaccedilatildeo mesmo A gente queria era a
libertaccedilatildeo [] soacute que essa accedilatildeo natildeo deu certo [] (Freire 28 jun 2004)
O sequestro parecia correr como o planejado Durante o vocirco Fernando e os outros
militantes conseguiram desviar a rota que saiacutea do Rio de Janeiro para Buenos Aires
com escala em Satildeo Paulo fazendo o aviatildeo retornar ao Rio Poreacutem no Aeroporto
Internacional do Rio de Janeiro o Galeatildeo oficiais da Aeronaacuteutica cercaram o aviatildeo e
conseguiram render os opositores poliacuteticos envolvidos na operaccedilatildeo antes que eles
conseguissem negociar a troca dos refeacutens pelos quarenta prisioneiros poliacuteticos Durante
o combate um dos sequestradores irmatildeo de Fernando levou um tiro vindo a falecer
horas depois
A gente chegou a desviar o aviatildeo um aviatildeo que ia pra Argentina com uma
parada em Satildeo Paulo a gente mandou o aviatildeo voltar e quando chegamos ao
Rio o aviatildeo foi cercado Os caras chegaram com gaacutes lacrimogecircneo lama
arma e nessa accedilatildeo o meu irmatildeo foi baleado e depois morreu Eles mataram
meu irmatildeo A gente foi preso pelo CISA que era a forccedila secreta da
Aeronaacuteutica [] Jaacute na descida do aviatildeo a gente apanhou natildeo se sabe de
quem e nem por onde Depois fomos torturados no aparelho de repressatildeo
deles laacute dentro e de laacute fomos transferidos pro DOI-CODI na PE (Freire 28
jun 2004)
Primeiramente aprisionado pelo Centro de Informaccedilotildees e Seguranccedila da
Aeronaacuteutica (CISA) Fernando foi pouco tempo depois transferido para o DOI-
CODIRJ onde permaneceu cerca de dezoito a vinte dias Posteriormente voltou para
as dependecircncias do CISA no aeroporto do Galeatildeo onde ficou cerca de oito meses ateacute
ser julgado Apoacutes seu julgamento foi conduzido para o Instituto Penal Cacircndido Mendes
(IPCM) presiacutedio de seguranccedila maacutexima localizado em Ilha Grande no estado do Rio de
Janeiro Para Fernando em meio agraves privaccedilotildees que vivia nos oacutergatildeos de repressatildeo ser
transferido para um presiacutedio de fato como o da Ilha Grande era na eacutepoca um desejo
108
Afinal aleacutem de saber que laacute estavam alguns de seus companheiros no IPCM existia
uma rotina de presiacutedio normal com direito a jogar futebol no paacutetio a ler jornais e livros
situaccedilatildeo bem diferente da dos DOI-CODI por exemplo que conforme destacado no
capiacutetulo anterior eram oacutergatildeos estritamente de repressatildeo e investigaccedilatildeo localizados em
quarteacuteis cuja prisatildeo era improvisada apenas para cumprir tais funccedilotildees
Oito meses foi o tempo que a gente ficou laacute na Aeronaacuteutica E aiacute o que eacute a
perspectiva de vida Os sonhos da gente Vocecirc quando estaacute preso o seu
sonho eacute fugir realmente mas se vocecirc natildeo tem perspectiva de fuga o seu
sonho eacute o quecirc Eacute ir pra uma coletividade onde estatildeo os outros presos Entatildeo
meu sonho passou a ser esse ir pra Ilha Grande [] laacute eu sabia que os
companheiros estavam laacute sabia que tinha uma lsquopeladinharsquo que a gente podia
bater uma bola campeonato de xadrez livros para ler coisa que esses caras
sacaneavam tanto a gente que nem livros Jornal Raacutedio Essas coisas Nem
pensar Entatildeo meu sonho era Ilha Grande Apesar de ser um lugar
horroroso Era na eacutepoca um presiacutedio de seguranccedila maacutexima isolado (Freire
28 jun 2004)
Fernando permaneceu mais de seis anos na prisatildeo sendo libertado no dia 29 de
setembro de 1976 Ele e os demais companheiros envolvidos no sequestro tiveram suas
condenaccedilotildees embasadas no artigo 28 do Decreto-lei 898 de 29 de setembro de 1969
que alterava a Lei de Seguranccedila Nacional A partir deste artigo ficava estipulada uma
pena de reclusatildeo que poderia variar de 12 a 30 anos para quem devastasse saqueasse
assaltasse sequestrasse incendiasse depredasse ou praticasse qualquer tipo de atentado
pessoal ato de massacre sabotagem ou terrorismo Aleacutem disso no mesmo artigo havia
um paraacutegrafo uacutenico decretando que se a accedilatildeo resultasse em morte a condenaccedilatildeo seria
no miacutenimo agrave prisatildeo perpeacutetua e no maacuteximo agrave morte
Art 28 Devastar saquear assaltar roubar sequestrar incendiar depredar
ou praticar atentado pessoal ato de massacre sabotagem ou terrorismo
109
Pena reclusatildeo de 12 a 30 anos
Paraacutegrafo uacutenico Se da praacutetica do ato resultar morte
Pena prisatildeo perpeacutetua em grau miacutenimo e morte em grau maacuteximo (Decreto-
lei nordm 898 29 set 1969)
A partir desse decreto durante o julgamento de Fernando tentaram condenaacute-lo agrave
prisatildeo perpeacutetua baseando a argumentaccedilatildeo no fato do sequestro do aviatildeo ter acarretado
uma morte no caso a de seu irmatildeo No entanto como esta morte foi ocasionada pela
repressatildeo militar a pena de Fernando ficou estipulada em doze anos de reclusatildeo e mais
adiante reduzida para seis anos
[] tinha uma lei de seguranccedila nova entrado em evidecircncia os caras queriam
dar o exemplo com pena de morte ou prisatildeo perpeacutetua etc e noacutes fomos os
primeiros casos de pena de morte que eles pediram O meu o de Colombo
Jessie Jane - Jane eacute a ex-diretora daqui [Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio
de Janeiro ndash APERJ] [] tinha um artigo vinte e oito que previa pena capital
ou prisatildeo perpeacutetua em caso de morte Soacute que quem morreu foi um dos
nossos o meu irmatildeo foi morto por eles e eles em cima disso tentando
aplicar essa pena soacute que natildeo colou E eu peguei doze anos Colombo pegou
trinta mas era menor aiacute caiu pra dezoito a Jane de vinte e quatro parece
que a Jane caiu pra dezoito E eu como tinha a questatildeo de ser primaacuterio natildeo
sei mais o quecirc enfim quer dizer eu estou resumindo Aiacute por conta disso
fui condenado e fiquei seis anos [] (Freire 28 jun 2004)
Na eacutepoca da entrevista Fernando trabalhava no Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio
de Janeiro (APERJ) onde possuiacutea um cargo de confianccedila conforme explicado
anteriormente Hoje Fernando Palha Freire eacute comerciante responsaacutevel pela cantina do
primeiro piso do preacutedio do Instituto de Filosofia e Ciecircncias Sociais (IFCS) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
110
Padre Maacuterio Prigol26
Padre Maacuterio Prigol nasceu em 12 de novembro de 1928 em Vila Gramado no
municiacutepio de Paulo Bento no Rio Grande do Sul Em 1970 quando foi preso era
assistente da Juventude Operaacuteria Catoacutelica (JOC) e da Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO)
grupos ligados agrave Igreja Catoacutelica criados para atender a problemas de jovens e adultos
trabalhadores 27
Apoacutes o golpe de 1964 organizaccedilotildees como a JOC e a ACO ganharam
forccedila entre muitos trabalhadores devido agraves dificuldades impostas pelo governo militar
para a organizaccedilatildeo em sindicatos
A sede nacional da JOC era aqui no morro de Satildeo Joseacute Operaacuterio atraacutes da
Penitenciaacuteria [antigo Complexo Penitenciaacuterio Frei Caneca] era na favela []
eu trabalhei com a JOC de Satildeo Paulo e depois vim para caacute trabalhava na
Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria que hoje se chama MTC Movimento dos
Trabalhadores Cristatildeos Esse movimento preparava os jovens e adultos dos
sindicatos dos partidos poliacuteticos de todos os setores da sociedade onde haacute
trabalhadores que procuram descobrir os acontecimentos a situaccedilatildeo operaacuteria
e sobretudo melhorar a sua condiccedilatildeo de trabalhador E vamos lembrar que
naquela eacutepoca havia a nova lei [lei 458964] que soacute podia ser diretor do
sindicato quem natildeo tinha nada que comprometesse entatildeo todos aqueles que
lutavam pela greve contra a puniccedilatildeo da greve ou de forma geral pelos
trabalhadores natildeo podiam ser nem diretores de associaccedilotildees nem diretores de
sindicatos [] soacute poderia ser diretor de sindicato quem fosse aprovado pela
Lei de Seguranccedila Nacional (Prigol 28 set 2004)
Padre Maacuterio se destaca entre os ex-prisioneiros entrevistados por aleacutem de ser uma
autoridade de uma instituiccedilatildeo de importacircncia mundial como a Igreja Catoacutelica sua
atuaccedilatildeo ser diferente da dos demais natildeo estando ligada agrave esquerda armada da eacutepoca e
ao meio estudantil Quando foi preso no DOI-CODIRJ em 1970 Padre Maacuterio jaacute natildeo
era mais tatildeo jovem para ser estudante e sua formaccedilatildeo poliacutetica natildeo era a mesma da
26
Entrevista realizada com Padre Maacuterio Prigol em 28 de setembro de 2004 27
A JOC e ACO seratildeo abordadas ainda neste capiacutetulo no item 12 A nova esquerda brasileira
111
geraccedilatildeo que pegava em armas jaacute que sua intenccedilatildeo enquanto assistente da JOC e da
ACO era ajudar os trabalhadores a garantirem os seus direitos e para tanto opunha-se
agraves leis impostas pela ditadura solidificando entre os integrantes dessas associaccedilotildees uma
consciecircncia de reivindicaccedilatildeo classista sem entretanto aspirar propriamente a uma
revoluccedilatildeo socialista
Percebe-se poreacutem que a concomitacircncia entre os periacuteodos prisionais de Padre
Maacuterio e os demais entrevistados natildeo eacute casual Afinal diante da ideia de revoluccedilatildeo
socialista que guiava as accedilotildees armadas que se multiplicavam e ganhavam forccedila apoacutes o
AI-5 a consciecircncia de reivindicaccedilatildeo de classe que a JOC e conforme seraacute abordado
adiante principalmente a ACO disseminavam aos seus trabalhadores eram
interpretadas como ameaccediladoras pela repressatildeo Uma vez que as organizaccedilotildees
guerrilheiras tinham por meta justamente conseguir apoio da classe trabalhadora para
concluiacuterem o plano de revoluccedilatildeo socialista e o trabalho da JOC e da ACO vinha unindo
e organizando uma percepccedilatildeo de classe justamente entre os trabalhadores havia uma
forte propensatildeo que futuramente tais trabalhadores se unissem agrave esquerda em prol da
revoluccedilatildeo socialista
Diante disso explica-se o fato de Padre Maacuterio ter sido preso em meados de 1970
pelos agentes de uma das turmas de busca e apreensatildeo do DOI-CODIRJ durante a
invasatildeo feita ao Instituto Brasileiro de Estudos Sociais (IBRAES) que funcionava na
Casa dos Jesuiacutetas localizada na Rua Bambina no bairro de Botafogo Ele outros
integrantes da JOC e os demais estudantes que assistiam ao curso de desenvolvimento
social foram levados ao DOI-CODIRJ Este curso tinha duraccedilatildeo de aproximadamente
oito meses ao longo dos quais os alunos adquiriam informaccedilotildees sobre o sistema
poliacutetico e econocircmico do Brasil
112
Dias antes dos agentes chegarem ateacute o curso toda a direccedilatildeo nacional da JOC
havia sido presa inclusive dois alunos do IBRAES que foram levados ao DOI-
CODIRJ onde possivelmente sob tortura passaram aos agentes da turma de
interrogatoacuterio preliminar de plantatildeo informaccedilotildees sobre o curso que estava ocorrendo na
Rua Bambina Assim quando os agentes do DOI-CODIRJ chegaram ao local
prenderam todos que estavam participando do curso levando primeiro os militantes e
depois os padres Entre eles estavam Padre Maacuterio e Padre Agostinho de Freitas na
eacutepoca assistente latino-americano da JOC
Noacutes fomos presos natildeo por causa do curso mas porque esses elementos do
DOI prenderam esse pessoal da JOC considerados subversivos e
procuravam um dos assistentes que jaacute tinha sido acusado em Belo Horizonte
de ser subversivo o Padre Manuel de Jesus Ele foi assistente nacional da
JOC mas na eacutepoca natildeo era mais assistente [] entatildeo para prender Manuel
de Jesus foram prendendo toda a direccedilatildeo nacional da JOC que foram
torturados barbaramente torturas como por exemplo os homens
sexualmente em todos os aspectos foram torturados Eram quatro jovens
homens e quatro jovens mulheres e entre esses jovens havia dois alunos do
IBRAES onde eu fazia curso onde vaacuterios desses militantes da JOC tambeacutem
participavam inclusive o Manuel de Jesus Entatildeo no IBRAES os militantes
da JOC foram levados presos primeiro e noacutes padres depois e mais ainda
foi preso o assistente latino-americano da JOC Padre Augustinho Freitas
que hoje trabalha em Nova Iguaccedilu Entatildeo todos noacutes fomos presos []
(Prigol 28 set 2004)
Ao ser preso Padre Maacuterio foi levado diretamente para o DOI-CODIRJ onde
juntamente com os outros padres permaneceu por 54 dias enquanto os jovens
militantes da JOC permaneceram por cerca de trecircs meses Por ser padre sua prisatildeo foi
interrompida pela intervenccedilatildeo de cardeais como explica no trecho a seguir destacado
de seu livro autobiograacutefico
113
D Trevisan D Waldir Dom Aloiacutesio e Padre Celso Pinto que estava ligado
ao Secretariado dos Leigos da CNBB [Conferecircncia Nacional de Bispos do
Brasil] informaram a nossa situaccedilatildeo aos cardeais Mais tarde com a
libertaccedilatildeo de alguns de noacutes realizamos um encontro para discutirmos as
humilhaccedilotildees que sofremos (Prigol 2003 117)
Na eacutepoca em que a entrevista foi concedida Padre Maacuterio aos 75 anos era
missionaacuterio saletino trabalhava na Paroacutequia de Nossa Senhora da Salette no Catumbi e
ainda ocupava o cargo de assistente do MTC (Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos)
antiga Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) Atualmente aos 83 anos Padre Maacuterio ainda
permanece ativamente nessas mesmas funccedilotildees
Ana de Miranda Batista28
Ana Bursztyn nome de solteira de Ana de Miranda Batista nasceu no Rio de
Janeiro em 30 de dezembro de 1948 Era militante estudantil enquanto cursava
Farmaacutecia na UFRJ Foi presa pela primeira perto do clube Botafogo de Futebol e
Regatas localizado na Avenida Venceslau Braacutes no bairro de Botafogo em junho de
1968 juntamente com trezentos estudantes Ela e os demais haviam participado de uma
assembleia estudantil na reitoria da UFRJ no campus da Praia Vermelha que
reivindicava mais verbas do governo federal para o ensino superior Os policiais a
levaram para o DOPS libertando-a no dia seguinte Eleita em outubro de 1968
representante dos estudantes de seu curso participou do Congresso da Uniatildeo Nacional
dos Estudantes (UNE) em Ibiuacutena quando foi novamente capturada pela poliacutecia com
mais de 800 estudantes permanecendo pouco mais de uma semana em reclusatildeo
Ateacute 1968 eu fazia parte do Movimento Estudantil do Diretoacuterio da Faculdade
tudo que tinha de movimento estudantil fazia parte da minha preocupaccedilatildeo
28
Entrevista realizada com Ana de Miranda Batista em 17 de novembro de 2004
114
Em junho a gente foi preso no campus de Botafogo [] Nesse dia em que eu
fui presa pela primeira vez foi um dia que cerca de trezentos estudantes
foram presos porque como a gente estava batalhando por mais verbas era
um dia em que o Conselho Universitaacuterio estava reunido na Praia Vermelha
jaacute que a reitoria era na Praia Vermelha [] laacute pelas tantas veio uma notiacutecia
de que tinham cercado a universidade [] e a gente natildeo estava esperando
isso a gente fazia umas passeatas na cidade mas a barra natildeo era pesada []
Aiacute o reitor decidiu sair na frente dos estudantes e atraacutes dele saiacuteram as
lideranccedilas das faculdades - eu era a lideranccedila da minha faculdade - e depois
uns trezentos estudantes Aiacute eles comeccedilaram a atirar para baixo para o chatildeo
[] e a gente saiu correndo sem enxergar nada e a poliacutecia dando porrada e a
gente sem enxergar nada (risos) Fomos entatildeo andando em direccedilatildeo ao tuacutenel
quando algueacutem disse ldquo- Vem por aqui por aquirdquo Sem saber que era uma
cilada fomos quase os trezentos para laacute Quando a gente entrou ldquo- Todo
mundo pro chatildeordquo Fomos presos no DOPS naquele dia e passamos a noite laacute
[] Daiacute eacute que a gente comeccedilou a fazer as grandes passeatas na cidade ateacute
que comeccedilou a ter passeata sempre mobilizaccedilotildees [] Em outubro de 68 a
gente foi para o Congresso de Ibiuacutena em Satildeo Paulo que foi um congresso
da UNE que estava clandestina na eacutepoca onde fomos todos presos Foi aiacute eacute
que ficou preso natildeo sei cerca de oitocentos estudantes Eles ateacute fizeram um
aacutelbum ficharam todo mundo Esse foi o aacutelbum que eles mostravam na
imprensa e nos cartazes depois porque evidentemente quando a barra
pesou metade das lideranccedilas do movimento estudantil foi para a luta armada
[] mas a gente ficou uma semana preso e depois de uma semana ou dez
dias a gente saiu Mas a barra comeccedilou a pesar mesmo a partir de 13 de
dezembro com o AI-5 [] (Batista 17 nov 2004)
Apoacutes o decreto do AI-5 Ana assim como Antocircnio se aproximou de alguns
integrantes do PCBR poreacutem diferentemente dele natildeo chegou a militar no partido
tornando-se tal como Dulce e Fernando militante da ALN Em Satildeo Paulo para onde
fugiu quando estava sendo perseguida Ana foi presa no dia 14 de julho de 1970 dentro
do magazine Mappin no centro da cidade Na situaccedilatildeo Ana portava uma arma e
115
carregava carteira de identidade falsa pela qual se chamava Naacutedia Zanzin conforme
descreve na passagem abaixo
Quando eu saiacute da casa que a gente estava o Bacuri [codinome de Eduardo
Collen Leite seu companheiro de organizaccedilatildeo] me deu uma arma e dezoito
caacutepsulas porque eu estava sendo procurada [] eu estava com uma carteira
de identidade falsa me chamava Naacutedia Zanzin [] fui presa entatildeo com
nome falso e foi um bafafaacute o cara quis me tirar a arma da matildeo e entatildeo eu
reagi teve um tiro [] Naquele dia eu tinha perdido o lsquopontorsquo [ponto de
encontro com outro militante] porque eu fiquei conversando com a minha
amiga e cheguei atrasada O ponto era perto do centro da cidade e como eu
tinha que esperar duas ou trecircs horas ateacute o proacuteximo encontro eu fiquei
rodando por laacute onde entrei numa loja grande como se fosse a antiga Mesbla
[] chamava-se Mappin Laacute eu fiquei comprando coisas para maquiagem
para mudar a minha cara [] Laacute dentro eles tinham vaacuterios seguranccedilas e um
ou dois deles ficaram em duacutevida se tinham reconhecido ou natildeo quem eu era
e se aproximaram de mim Eu estava na fila para pagar quando se eles se
aproximaram e disseram ldquo- Essas coisas a senhora paga em outro lugarrdquo Aiacute
eu ldquo- Mas eu estou na fila para pagarrdquo Aiacute eles ldquo- Vem com a gente que a
senhora vai pagar em outro lugarrdquo Entatildeo entrei no elevador e fui parar no
seacutetimo andar na parte de seguranccedila da loja Laacute eles queriam que eu me
explicasse Eu tirei tudo o que eu tinha da bolsa eu fui tirando e mostrei para
eles que estava com dinheiro na bolsa e estava na fila para pagar Aiacute eles ldquo-
Natildeo natildeo eacute isso natildeo mas a gente precisa revistarrdquo E eu fui tirando tudo da
bolsa para ver se eles natildeo me revistavam mas eles ldquo- Natildeo a gente vai
revistarrdquo Aiacute comeccedilaram a lutar comeccedilou um pega bolsa e tira bolsa que eu
natildeo queria porque a arma estava no fundo da bolsa Aiacute eu falava ldquo- Natildeo
mas natildeo precisa estaacute tudo aquirdquo Mas natildeo era isso natildeo era porque eles
achavam que eu estava roubando eles desconfiavam de alguma coisa e natildeo
sabiam bem o quecirc e resolveram me revistar Aiacute eu reagi Depois disso
chamaram o delegado e me botaram amarrada na cadeira laacute em cima no
andar da seguranccedila da loja (Batista 17 nov 2004)
116
Esse mesmo episoacutedio foi retratado dois dias depois em um trecho do Jornal da
Tarde de 16 de julho de 1970 conforme Elio Gaspari destaca em seu livro As Ilusotildees
Armadas a Ditadura Escancarada (2002)
[] Ana Bursztyn ex-estudante de farmaacutecia presa [] no magazine Mappin
Um vigilante desconfiara ao vecirc-la colocar cosmeacuteticos numa sacola (da loja)
e levou-a a uma sala onde estava o chefe de seguranccedila Ana meteu a matildeo na
bolsa puxou um Taurus 32 feriu-o com um tiro na perna mas natildeo
conseguiu fugir (Gaspari 2002 299-300)
De fato no momento de sua prisatildeo Ana resistiu e disparou um tiro atingindo no
peacute um dos seguranccedilas da loja que era policial militar Naquele dia Ana foi levada presa
sem saber o que de fato tinha ocorrido com aquele homem Assim em novembro de
1970 mecircs do aniversaacuterio da ldquoIntentona Comunistardquo de 1935 Ana ainda presa leu em
um jornal uma relaccedilatildeo de mortos pelos terroristas divulgada pelos oacutergatildeos de seguranccedila
do governo Laacute o homem em quem havia atirado estava listado como morto e ela como
sua assassina Ana passou a carregar a culpa de tecirc-lo matado ateacute que algum tempo
depois ao vecirc-lo assistindo a seu julgamento constatou que o seguranccedila havia
sobrevivido e que aquela notiacutecia era mais um dos boatos que o governo na eacutepoca
costumava veicular na imprensa a fim de manipular a opiniatildeo puacuteblica
Depois disso durante anos quando eu estava presa no dia da Intentona
Comunista que eu acho que eacute novembro de 1935 colocavam nos jornais em
todos os jornais uma relaccedilatildeo dos mortos pelos terroristas entre aspas que
eacuteramos noacutes [] eu li que o cara laacute Izidoro Zambaldi foi morto pela
terrorista Ana Bursztyn Ele na hora da briga eu briguei com ele ele recebeu
um tiro acho que no peacute esbarrou assim no peacute ele ficou uns dias internado e
saiu ele estava no meu julgamento na audiecircncia Quer dizer e durante
muito tempo eu achando que tinha o matado Era um dos que eles
117
contabilizavam como mortos por noacutes E provavelmente ele estaacute aiacute vivo ateacute
hoje [] (Batista 17 nov 2004)
Ana foi presa portanto por ter sido reconhecida por um policial que tambeacutem
trabalhava como seguranccedila para a loja Mappin Provavelmente isso ocorreu pelo fato
dos organismos de repressatildeo colarem pelos muros da cidade bem como distribuiacuterem
nos estabelecimentos privados muitos folhetos e cartazes com fotos dos ldquoterroristas
procuradosrdquo pela ditadura militar entre os quais Ana A divulgaccedilatildeo de tais fotos era
mais uma forma que os agentes da repressatildeo utilizavam para cercar os suspeitos Assim
qualquer pessoa poderia denunciar e qualquer policial poderia prender tais suspeitos No
entanto caso a prisatildeo natildeo fosse feita pelos agentes do DOI-CODI da respectiva Regiatildeo
Militar obrigatoriamente depois de preso o cidadatildeo considerado ldquosubversivordquo deveria
ser para laacute transferido conforme ocorreu com Ana Afinal como jaacute analisado no
primeiro capiacutetulo o DOI-CODI de cada Regiatildeo concentrava as informaccedilotildees sobre
seguranccedila interna de cada aacuterea portanto laacute existiam as condiccedilotildees necessaacuterias para que a
extraccedilatildeo e anaacutelise das informaccedilotildees que os prisioneiros detivessem fossem trabalhadas
de forma mais eficiente
Diante disso Ana nos primeiros dias de prisatildeo passou pelo DOPS-SP e em
seguida pelo DOI-CODISP sendo posteriormente transferida para o DOI-CODIRJ
Laacute permaneceu por um mecircs voltando para DOI-CODISP passando ainda pelo
DOPSSP Depois de julgada foi levada para o Recolhimento de Presos Tiradentes ndash
localizado na Rua Tiradentes na cidade de Satildeo Paulo ndash para o Presiacutedio de Mulheres ndash
localizado no antigo Complexo Penitenciaacuterio do Carandiru tambeacutem na cidade de Satildeo
Paulo ndash e ainda passou por delegacias das poliacutecias Federal do Rio de Janeiro e de Satildeo
Paulo pelo Presiacutedio do Forte de Copacabana no Rio de Janeiro e por fim pelo
Depoacutesito de Presas Satildeo Judas Tadeu localizado no preacutedio do DOPS-RJ Permaneceu
118
presa por cerca de quatro anos conseguindo liberdade condicional em fevereiro de
1974
Ana de Miranda Batista nome que adotou depois de casada eacute farmacecircutica
bioquiacutemica e na eacutepoca em que concedeu a entrevista era ativista do Grupo Tortura
Nunca MaisRJ (GTNMRJ)
Ceciacutelia Coimbra29
Ceciacutelia Maria Bouccedilas Coimbra nasceu no Rio de Janeiro em 16 de marccedilo de 1941
Ao ingressar no curso de Histoacuteria da Universidade do Brasil atual UFRJ Ceciacutelia que
era por descendecircncia familiar ldquoconservadora e catoacutelicardquo em suas proacuteprias palavras
comeccedilou a questionar-se poliacutetica e religiosamente Iniciou assim sua militacircncia no
Partido Comunista Brasileiro (PCB) clandestino na eacutepoca Entre 1962 e 1963
trabalhou em um programa de alfabetizaccedilatildeo de adultos pelo meacutetodo do educador Paulo
Freire fato que visivelmente a marcou muito Apoacutes o golpe de 64 Ceciacutelia continuou
militando no Partido Comunista poreacutem com muitas discordacircncias ateacute quando comeccedilou
a fazer parte de uma das dissidecircncias do referido partido a Dissidecircncia Comunista da
Guanabara a que ela se refere por ldquoPC da Guanabarardquo
[] eu vim de uma famiacutelia muito tradicional extremamente tradicional meu
pai era um conservador era um cara que era portuguecircs a favor do regime
ditatorial de Salazar A minha matildee era extremamente catoacutelica Tanto que
quando eu entrei para faculdade para fazer Histoacuteria eu era uma pessoa
extremamente conservadora Era lacerdista a favor do Carlos Lacerda
contra Joatildeo Goulart contra os comunistas A minha famiacutelia era muito
anticomunista E quando eu entrei para a faculdade eu ateacute falei isso na
entrevista para a lsquoCaros Amigosrsquo [sua entrevista havia sido capa da Revista
Caros Amigos naquele mesmo mecircs] comecei a ter contato com algumas
29
Entrevista realizada com Ceciacutelia Maria Bouccedilas Coimbra em 30 de novembro de 2004
119
pessoas que eram comunistas e eram pessoas muito interessantes muito
inteligentes e eram pessoas com as quais as duacutevidas que eu tinha com
relaccedilatildeo agrave religiatildeo eu comecei a tirar Porque eu comecei a ler marxismo aiacute
eu comecei a ler materialismo histoacuterico materialismo dialeacutetico e eu comecei
a ver que de repente a religiatildeo era uma coisa produzida pelo proacuteprio
homem [] Eu comecei entatildeo em 6263 a participar de reuniatildeo do Partido
Comunista que era clandestino na eacutepoca e acabei entrando para o Partido
Aiacute comecei a namorar um cara que depois se tornou meu marido e foi preso
comigo que haacute pouco tempo eu ateacute me separei [] Ele jaacute era do Partido
Comunista haacute muito tempo a famiacutelia dele era toda uma famiacutelia formada por
comunistas ao contraacuterio da minha (risos) Em 64 veio o golpe mas aiacute eu
antes disso eu acho que tem a ver porque isso para mim tambeacutem eacute
militacircncia eu fui trabalhar com um programa de alfabetizaccedilatildeo de adultos
pelo meacutetodo Paulo Freire eu trabalhei com o proacuteprio Paulo Freire em 63 um
pouco antes do golpe [] Entatildeo depois do golpe eu continuei militando no
Partido mas jaacute com muitas discordacircncias quer dizer discordava de muita
coisa e aiacute comecei a fazer parte do que se chamou de Dissidecircncia do PC da
Guanabara (Coimbra 30 nov 2004)
Entretanto Ceciacutelia comeccedilou a discordar tanto da luta armada que a Dissidecircncia
Comunista da Guanabara a partir de 1968 veio a adotar quanto do caminho paciacutefico e
institucional defendido pelo PCB se afastando de ambos Dessa forma em 1968
Ceciacutelia Coimbra natildeo militava em nenhuma organizaccedilatildeo mas continuou a manter
contato com muitos companheiros que se tornaram guerrilheiros Destaca-se portanto a
partir do caso especiacutefico de Ceciacutelia como a histoacuteria oral eacute importante para que a
complexidade da militacircncia poliacutetica da eacutepoca seja compreendida Afinal por meio dessa
metodologia torna-se possiacutevel perceber que nem todos os estudantes que estiveram
ligados ao movimento estudantil e agraves dissidecircncias do Partido Comunista em meio ao
arrocho da repressatildeo acompanharam a decisatildeo de partir para a luta armada tomada por
muitas dissidecircncias e nem mesmo resolveram retornar agrave luta paciacutefica travada pelo
Partido Comunista Logo a histoacuteria oral permite atraveacutes dos depoimentos dos
120
militantes daquele tempo observar que tal como Ceciacutelia muitos desses militantes
ficaram principalmente a partir do AI-5 agrave margem da atuaccedilatildeo poliacutetica apesar de natildeo
terem abandonado os ideais de esquerda
Quando foi presa em 1970 Ceciacutelia natildeo estava diretamente relacionada a nenhuma
organizaccedilatildeo esquerdista entretanto como ainda relacionava-se com muitos militantes
guerrilheiros e algumas vezes ateacute mesmo abrigando-os em sua casa tinha informaccedilotildees
consideradas relevantes para os agentes do DOI-CODIRJ o que veio a ocasionar sua
prisatildeo Como vivia de forma legalizada com famiacutelia e emprego Ceciacutelia tinha passado
juntamente com seu marido a ajudar seus companheiros clandestinos Sua casa na
eacutepoca localizada no bairro do Engenho de Dentro na zona norte do Rio de Janeiro
passou a servir como esconderijo para alguns amigos que diferentemente de Ceciacutelia e
Novaes haviam continuado militantes da Dissidecircncia Comunista da Guanabara mesmo
apoacutes sua opccedilatildeo pela luta armada Entre os amigos que receberam guarida em sua casa
estavam Franklin Martins e Fernando Gabeira ambos envolvidos no sequestro do
embaixador norte-americano
Gabeira inclusive esteve hospedado na casa do casal logo apoacutes a libertaccedilatildeo do
referido embaixador sequestrado em setembro de 1969 Por conta disso em agosto de
1970 Ceciacutelia Coimbra e seu marido Joseacute Novaes foram denunciados e presos
[] eu ajudava muito esses companheiros porque eu tinha vida legal eu jaacute
era professora tinha casa tinha filho e meu marido era professor de
Filosofia entatildeo a nossa casa era onde as pessoas se escondiam passavam
uma noite passavam dias escondidos Por exemplo o pessoal do Movimento
estudantil o Franklin Martins o Fernando Gabeira [] todos eles passaram
por laacute entatildeo a gente ajudava muito [] Em 1969 o pessoal do MR-8 que
eram companheiros nossos amigos e tal vieram nos procurar para perguntar
se noacutes poderiacuteamos dar um apoio a um ato a uma accedilatildeo como se dizia na
eacutepoca a uma accedilatildeo que ia acontecer Mas a gente natildeo sabia que era o
sequestro do embaixador E aiacute depois de um tempo a gente ficou com o
121
Fernando Gabeira [] Eacute oacutebvio que depois a gente soube porque foi depois
que eles entregaram o embaixador que eles se esconderam laacute em casa E aiacute a
televisatildeo dava e a gente sacou que o Gabeira estava ali com a gente porque
natildeo tinha como guardar seguranccedila porque jaacute estava na televisatildeo a cara de
todos eles E a gente guardou ele laacute A gente soube que ele tinha participado
do sequestro do embaixador e conversaacutevamos muito sobre isso Ele ficou
algum tempo laacute em casa e depois saiu Um tempo depois a gente foi
denunciado a casa estava sendo observada e a gente natildeo sabia []
(Coimbra 30 nov 2004)
Ceciacutelia e Joseacute Novaes apoacutes terem a casa onde moravam cercada por agentes do
DOPSRJ foram para laacute levados e laacute permaneceram por dois dias No DOPS Ceciacutelia
ficou sob interrogatoacuterio por um dia e meio para que esclarecesse a origem de um
documento encontrado no interior de sua casa No segundo dia de prisatildeo foi levada para
o presiacutedio feminino Satildeo Judas Tadeu localizado no proacuteprio preacutedio do DOPSRJ Apoacutes
permanecerem dois dias e meio no DOPS Ceciacutelia e Novaes foram transferidos para o
DOI-CODIRJ
Ceciacutelia Coimbra ficou cerca de trecircs meses presa no DOI-CODIRJ sendo
libertada em novembro de 1970 Natildeo foi transferida para nenhum outro presiacutedio sendo
libertada diretamente do DOI-CODIRJ por meio da menagem conforme analisado no
primeiro capiacutetulo Sendo assim uma vez que natildeo foi constatado nenhum envolvimento
direto de Ceciacutelia com alguma accedilatildeo ldquosubversivardquo ela estava impedida de sair da cidade
ateacute a data de seu julgamento e durante esse iacutenterim teve que comparecer ao DOI-
CODIRJ regularmente para se apresentar e responder ao Inqueacuterito Policial Militar
(IPM)
Na eacutepoca da entrevista Ceciacutelia aleacutem de vice-presidente do GTMNRJ lecionava
no curso de Psicologia da UFF Atualmente continua com essas mesmas atividades
poreacutem no GTNMRJ ocupa hoje o cargo de presidente
122
12 A nova esquerda brasileira
Para melhor entender as memoacuterias dos ex-prisioneiros poliacuteticos aqui entrevistados
eacute importante caracterizar as organizaccedilotildees de esquerda nas quais os seis militavam
quando foram presos no DOI-CODIRJ Afinal a opccedilatildeo de atuar atraveacutes de certas
organizaccedilotildees estaacute diretamente relacionada com a percepccedilatildeo de mundo que cada um
tinha e tambeacutem com a ousadia a coragem as frustraccedilotildees por que passaram e com tantos
outros sentimentos e sensaccedilotildees que certamente influiacuteram diretamente na construccedilatildeo da
memoacuteria de cada um desses indiviacuteduos sobre o periacuteodo militar
Como jaacute destacamos ao traccedilarmos o perfil dos entrevistados as organizaccedilotildees em
que os estudantes Antocircnio Leite Fernando Palha Dulce Pandolfi e Ana de Miranda
militavam ao serem presos eram o PCBR e a ALN grupos poliacuteticos de esquerda ligados
ao combate armado Jaacute Padre Maacuterio era assistente da ACO e da JOC ndash associaccedilotildees
criadas para atender demandas de jovens e adultos trabalhadores e catoacutelicos Ceciacutelia
Coimbra era a uacutenica que natildeo era diretamente ligada a alguma organizaccedilatildeo na eacutepoca de
sua prisatildeo mas sua participaccedilatildeo anterior na Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-
GB) influenciou de forma indireta em sua prisatildeo e por isso merece ser aqui
considerada A partir disso analisa-se nesta seccedilatildeo de trabalho o PCBR a ANL a JOC a
ACO e a Dissidecircncia Comunista da Guanabara que passou a chamar-se MR-8
Diferentemente da JOC e da ACO que eram associaccedilotildees ligadas ao trabalho
social feito pela Igreja Catoacutelica o PCBR a ANL a DI-GBMR-8 faziam parte do que
vinha sendo nomeado desde a deacutecada de 1960 de nova esquerda brasileira Essa nova
esquerda era formada pelas dissidecircncias do Partido Comunista surgindo como forma de
buscar caminhos alternativos para a transformaccedilatildeo social e segundo Maria Paula
Arauacutejo em A utopia fragmentada (2000) natildeo era um fenocircmeno tipicamente brasileiro
123
ocorrendo concomitantemente em outras partes do mundo como Alemanha Franccedila
Itaacutelia Estados Unidos e Meacutexico 30
As organizaccedilotildees desta nova esquerda brasileira aleacutem de serem marcadas pelo
signo da dissidecircncia e pela busca de caminhos alternativos possuiacuteam outras ideias em
comum Havia entre elas uma forte desconfianccedila em relaccedilatildeo agraves formas tradicionais de
atuaccedilatildeo e representaccedilatildeo poliacuteticas jaacute que os tradicionais partidos comunistas na
avaliaccedilatildeo desses militantes eram travados por complicados aparatos burocraacuteticos Em
oposiccedilatildeo a essa linha dita ldquoconservadorardquo valorizaram a accedilatildeo revolucionaacuteria imediata
Aleacutem disso a maioria recusava a alianccedila com ldquofraccedilotildees das classes dominantesrdquo forma
como viam o Movimento Democraacutetico Brasileiro (MDB) na eacutepoca uacutenico partido de
oposiccedilatildeo consentido pela ditadura militar Enquanto o PCB continuava mantendo o
programa de via paciacutefica para o socialismo a dita nova esquerda defendia a luta armada
como a principal forma de atuaccedilatildeo naquele momento apesar de divergirem entre si
sobre as estrateacutegias a seguir 31
As divergecircncias internas no PCB atingiram o aacutepice por ocasiatildeo dos preparativos
para o VI Congresso do partido convocado para dezembro de 1967 Os debates acerca
das Teses para Discussatildeo veiculadas na Voz Operaacuteria publicaccedilatildeo clandestina do
Comitecirc Central do PCB causaram muita polecircmica Essas Teses propunham que a
derrota da ditadura deveria ser alcanccedilada por meio da alianccedila com setores progressistas
incluindo a burguesia e da participaccedilatildeo do PCB na poliacutetica institucional reafirmando a
opccedilatildeo pelo caminho paciacutefico para a revoluccedilatildeo social Tais Teses geraram uma total
insatisfaccedilatildeo dos setores oposicionistas do PCB que se revoltaram contra o Comitecirc
Central do chamado Partidatildeo Assim sem a participaccedilatildeo dos dissidentes internos o
PCB realizou o seu VI Congresso e reafirmou a ideia trazida pelas Teses
30
Para mais informaccedilotildees ver Arauacutejo 2000 35-72 31
Para mais informaccedilotildees ver Aaratildeo Reis Saacute 2006 15
124
Pelos jornais da grande imprensa os dissidentes souberam do Congresso e de suas
resoluccedilotildees dentre as quais a que expulsava do partido grandes lideranccedilas da Corrente
Revolucionaacuteria Esta corrente do Partidatildeo divergia de seu Comitecirc Central liderado por
Luiacutes Carlos Prestes e havia se organizado nacionalmente sob a denominaccedilatildeo de
Corrente Revolucionaacuteria Entre suas grandes lideranccedilas expulsas a partir das resoluccedilotildees
do VI Congresso do PCB estavam Carlos Marighella liacuteder da Corrente em Satildeo Paulo
Maacuterio Alves liacuteder em Minas Gerais Jacob Gorender liacuteder no Rio Grande do Sul e
Apolocircnio de Carvalho lideranccedila no antigo Estado do Rio de Janeiro32
Dessa forma em 1968 os principais membros da Corrente Revolucionaacuteria
estavam definitivamente afastados do PCB e juntamente com os militantes que os
seguiram se organizaram e formaram outras organizaccedilotildees poliacuteticas o PCBR e a ALN
Os liacutederes Apolocircnio de Carvalho Jacob Gorender e Maacuterio Alves formaram o Partido
Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR) partido clandestino de esquerda em que
Antocircnio Leite militava ao ser preso e o liacuteder Carlos Marighella fundou a Accedilatildeo
Libertadora Nacional (ALN) organizaccedilatildeo clandestina de esquerda adotada por Dulce
Pandolfi Fernando Palha e Ana Batista
Por outro lado existia outra vertente de divergecircncias internas do PCB as
chamadas Dissidecircncias mais conhecidas pela sigla DI formadas basicamente por
setores estudantis Existiam dissidecircncias em vaacuterios estados brasileiros mas seria a da
Guanabara onde Ceciacutelia Coimbra militou anos antes de ser presa que alcanccedilaria maior
destaque no cenaacuterio poliacutetico e estudantil da deacutecada de 1960
32
Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009
125
Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-GB)
As Dissidecircncias Universitaacuterias surgiram no periacuteodo preacute-1964 em meio a diversas
divergecircncias que abalaram o PCB principalmente em suas bases universitaacuterias Em
1964 esses estudantes divergentes se agruparam e comeccedilaram a reunir militantes de
diferentes universidades a fim de articular posiccedilotildees poliacuteticas que natildeo se afinavam com o
que as direccedilotildees do partido haviam estabelecido ndash no jargatildeo comunista eram as
chamadas ldquofraccedilotildeesrdquo As ldquofraccedilotildeesrdquo eram de acordo com o estatuto proibidas dentro do
partido logo eram executadas secretamente A ldquofraccedilatildeordquo da Guanabara foi inicialmente
constituiacuteda por estudantes comunistas das faculdades de filosofia e de direito hoje
pertencentes agrave UFRJ
Em 1965 as divergecircncias entre os dissidentes e a direccedilatildeo do PCB na Guanabara
comeccedilaram a se mostrar evidentes A orientaccedilatildeo do partido era para que seus militantes
fizessem campanha para o candidato a governador da Guanabara Francisco Negratildeo de
Lima indicado pela alianccedila PTB-PSD considerada de oposiccedilatildeo ao regime militar Com
a crescente radicalizaccedilatildeo do movimento estudantil a Dissidecircncia foi ganhando forccedila
Nas eleiccedilotildees parlamentares de 1966 apesar da orientaccedilatildeo do Partidatildeo para que sua
militacircncia votasse em determinados candidatos os dissidentes da Guanabara resolveram
fazer campanha pelo voto nulo ocasionando o rompimento definitivo entre os dois A
antiga ldquofraccedilatildeordquo passaria a ser a Dissidecircncia Comunista da Guanabara uma nova
organizaccedilatildeo independente com orientaccedilatildeo para a luta armada e com ampla influecircncia
no movimento estudantil carioca 33
Entretanto em 1967 a Dissidecircncia Comunista da Guanabara enfrentaria uma
grave crise poliacutetica interna Naquele momento muitos militantes da organizaccedilatildeo
apresentavam posiccedilotildees divergentes sobre quais rumos ela deveria trilhar Alguns
33
Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009
126
achavam que a Dissidecircncia deveria se integrar agrave Corrente Revolucionaacuteria que ainda
estava lutando internamente para mudar o PCB outros almejavam consolidar a
Dissidecircncia Comunista da Guanabara de forma a tornaacute-la uma organizaccedilatildeo nacional
reunindo nela dissidecircncias que ainda deveriam se desvincular do Partidatildeo e um terceiro
grupo a se juntar ao Partido Comunista do Brasil (PC do B) 34
Afinal a partir do V Congresso do PCB realizado em setembro de 1960 sob
influecircncia da revisionismo aprovado no XX Congresso do Partido Comunista Sovieacutetico
tinha sido aprovada uma nova resoluccedilatildeo poliacutetica para o partido Esta apesar da
resistecircncia dos opositires internos que seguiam a linha de pensamento marxista-
leninista modificava o programa do PCB tornando a nova taacutetica do partido a conquista
de um governo nacionalista e democraacutetico por meio de um processo eleitoral e da
pressatildeo de massas excluindo assim a via armada de seu programa Dessa forma foram
afastados da direccedilatildeo do PCB a maioria de seus opositores e eleito um Comitecirc Central
composto em grande parte por destacados revisionistas como Luiacutes Carlos Prestes
Logo em 18 de fevereiro de 1962 a maior parte dos comunistas que se opunham agrave nova
linha do PCB se separaram do partido e atraveacutes de uma Conferecircncia Extraordinaacuteria
aprovaram um programa que defendia a estrateacutegia chinesa de guerra popular
prolongada se aproximando do maoiacutesmo e adotaram a sigla PC do B (Partido
Comunista do Brasil) Em 1969 o PC do B deflagrou na regiatildeo de Tocantins um foco
guerrilheiro que ficou conhecido como Guerrilha do Araguaia esta foi neutralizada
pelos militares no final de 1973 atraveacutes do extermiacutenio de grande parte dos militantes
envolvidos
Em 1967 um ano depois de se tornar independente a resoluccedilatildeo para a crise
interna da Dissidecircncia Comunista da Guanabara foi o seu desmembramento Apoacutes este
34
Para mais informaccedilotildees ver Aaratildeo Reis 1990 e Ridenti 1993
127
desmembramento e duas conferecircncias internas realizadas em 1968 a Dissidecircncia
Comunista da Guanabara consolidou-se novamente como organizaccedilatildeo autocircnoma tendo
suas lideranccedilas agrave frente das grandes manifestaccedilotildees estudantis ndash que chegavam ao auge
de mobilizaccedilatildeo ndash e conquistando espaccedilo no cenaacuterio nacional Com o seu crescimento
junto ao movimento estudantil a DI-GB se ampliou notavelmente Apoacutes a decretaccedilatildeo
do AI-5 que tornava ilegal o movimento poliacutetico-estudantil a DI-GB organizou em
1969 uma nova conferecircncia reafirmando o seu empenho revolucionaacuterio de caraacuteter
comunista assumindo oficialmente a partir de entatildeo sua opccedilatildeo pela luta armada
Nessa eacutepoca Ceciacutelia Coimbra jaacute havia saiacutedo da organizaccedilatildeo e natildeo participava de
nenhum outro grupo de esquerda apesar de manter contato com muitos companheiros
que continuaram na militacircncia Afinal como abordado durante a anaacutelise de sua
trajetoacuteria Ceciacutelia preferiu se desligar por natildeo concordar nem com a poliacutetica paciacutefica do
entatildeo Partidatildeo e nem com a luta armada das demais organizaccedilotildees inclusive da
Dissidecircncia Comunista da Guanabara pois segundo ela achava que estas estavam
muito desvinculadas da sociedade e por isso natildeo teriam ecircxito
[] eu achava que natildeo era por aiacute eu discordava muito da questatildeo da luta
armada mas eu tambeacutem discordava da posiccedilatildeo do Partido Comunista que
era a favor do caminho paciacutefico a favor do caminho institucional parece
muito o PT de hoje a questatildeo da luta institucional que natildeo era pegando em
armas que natildeo era pela luta armada Eu natildeo concordava nem com um nem
com outro porque o pessoal da luta armada estava totalmente desvinculado
da sociedade brasileira entatildeo eu me afastei mas eu continuei com muito
contato com vaacuterios companheiros e aiacute comeccedilou 67-68 [] (Coimbra 30
nov 2004)
Em setembro de 1969 a Dissidecircncia Comunista da Guanabara juntamente com a
ALN elaborou e promoveu o sequestro do embaixador norte-americano no Brasil
128
Charles Burke Elbrick A accedilatildeo teve ecircxito e os envolvidos conseguiram trocar o
embaixador por quinze prisioneiros poliacuteticos entre eles importantes liacutederes estudantis
da antiga DI-GB Durante esse sequestro conforme explicado anteriormente os
militantes da entatildeo Dissidecircncia resolveram mudar o nome da organizaccedilatildeo para
Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro (MR-8) assinando esse novo nome no
manifesto entregue agrave imprensa
A mudanccedila de Dissidecircncia Comunista da Guanabara para MR-8 era na realidade
uma provocaccedilatildeo agrave ditadura Alguns meses antes do sequestro do embaixador americano
a repressatildeo havia desarticulado uma organizaccedilatildeo poliacutetica e anunciado que tinha
destruiacutedo o grupo terrorista Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro Poreacutem de acordo
com Alberto Berquoacute em O sequumlestro dia-a-dia (1997) o oacutergatildeo repressor que havia
prendido aqueles militantes o CENIMAR inventou esse nome pois o grupo capturado
era na verdade a Dissidecircncia do Estado do Rio de janeiro que a rigor se
autodenominava apenas como Organizaccedilatildeo Os militares entatildeo para anunciar a notiacutecia
na imprensa causando um maior impacto atribuiacuteram agrave Organizaccedilatildeo o nome de MR-8
fazendo referecircncia agrave data em que o guerrilheiro socialista Ernesto ldquoCherdquo Guevara havia
sido preso pela Central Intelligence Agency (CIA) na Boliacutevia Dessa forma ao
utilizarem o nome de MR-8 os militantes da ateacute entatildeo Dissidecircncia Comunista da
Guanabara estariam anunciando pertencerem agrave mesma organizaccedilatildeo que os militares
divulgaram meses antes jaacute estar aniquilada desmoralizando-os publicamente 35
Algum tempo depois do sequestro do embaixador a maioria de seus envolvidos
ou foram presos ou mortos pela repressatildeo Fernando Gabeira um dos militantes do MR-
8 envolvidos nessa accedilatildeo era conhecido de Ceciacutelia Coimbra e de seu marido desde a
eacutepoca em que militavam na Dissidecircncia Comunista da Guanabara Assim apoacutes a troca
35
Para mais informaccedilotildees sobre a mudanccedila de nome da Dissidecircncia Comunista da Guanabara para MR-8
ver Berquoacute 1997 72-73
129
do embaixador pelos prisioneiros poliacuteticos Gabeira por estar sendo procurado acabou
se escondendo na casa do casal fato que veio a ocasionar posteriormente a prisatildeo tanto
de Ceciacutelia quanto de seu marido nas dependecircncias do DOI-CODIRJ
Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR)
O partido clandestino pelo qual Antocircnio Leite militava ao ser preso o PCBR
havia sido criado em abril de 1968 a partir da expulsatildeo de liacutederes da Corrente
Revolucionaacuteria do PCB conforme mencionado anteriormente Um dos liacutederes e
tambeacutem fundador do PCBR Jacob Gorender na obra Combate nas Trevas a esquerda
brasileira (1999 111-116) caracteriza-o como marxista tendo por estrateacutegia de accedilatildeo a
combinaccedilatildeo entre guerrilha rural e trabalho de massas nas cidades com vistas agrave
formaccedilatildeo de um Governo Popular Revolucionaacuterio que abriria caminho para a
revoluccedilatildeo socialista
A partir dessa ideia de trabalho com as massas nas cidades o PCBR buscou
integrar-se agraves lutas estudantis de 1968 por meio das quais Antocircnio Leite de Carvalho
conheceu melhor a ideologia e as lideranccedilas do partido e posteriormente resolveu
tornar-se seu militante Aleacutem disso desenvolveu ainda algum trabalho nas faacutebricas nas
aacutereas rurais e promoveu entre os anos de 1969 e 1970 algumas accedilotildees armadas como
assaltos a bancos e roubos de veiacuteculos a fim de financiar a atuaccedilatildeo do partido Contudo
o PCBR sofreu com sucessivas prisotildees de seus liacutederes e integrantes restringindo de tal
forma o seu poder de accedilatildeo que logo no iniacutecio da deacutecada de 1970 jaacute se encontrava quase
totalmente desarticulado
O precoce fracasso do PCBR segundo a avaliaccedilatildeo feita por Antocircnio ainda
durante sua primeira entrevista (12 set 2002) deve-se ao fato da estrateacutegia de revoluccedilatildeo
pregada pelo partido ser utoacutepica Afinal para Antocircnio os militantes e liacutederes do PCBR
130
inclusive ele proacuteprio acreditavam que com algumas poucas accedilotildees urbanas isoladas
conseguiriam o apoio da grande massa ao movimento revolucionaacuterio e tomariam o
poder Por conseguinte entende que foi justamente esse isolamento a causa da grande
derrota do PCBR como se pode conferir no trecho abaixo
Era uma grande utopia faziacuteamos duas accedilotildees urbanas na cidade e achaacutevamos
que essas accedilotildees seriam capazes de fazer as pessoas aderirem ao nosso
movimento e conseguiriacuteamos o apoio da grande massa [] Isso nunca iria
acontecer porque eram movimentos basicamente de conquistas quer dizer
que trabalhavam isolados e foi o isolamento a causa da nossa grande derrota
(Carvalho 12 Set 2002)
Entretanto eacute importante destacar que esta avaliaccedilatildeo soacute pocircde ser feita a partir do
presente quando jaacute se sabia que a luta armada havia sido derrotada muito antes da
ditadura terminar e que a democracia havia se tornado uma realidade Afinal logo apoacutes
o AI-5 a luta armada e a forma de atuar do PCBR representavam para seus militantes
uma forte possibilidade de derrubar a ditadura militar Eles natildeo se submeteriam a
arriscar suas vidas em prol de uma luta na qual natildeo tivessem total convicccedilatildeo Logo
percebe-se um anacronismo na avaliaccedilatildeo que Antocircnio faz sobre sua luta naquele
passado o que eacute muito comum entre as memoacuterias construiacutedas por ex-guerrilheiros da
eacutepoca conforme destacado pela revolta de um dos que concederam seus depoimentos a
Alzira Alves de Abreu em Os anos de chumbo memoacuteria da guerrilha (1998)
B [nome atribuiacutedo ao ex-guerrilheiro pela autora para preservar sua
identidade] comeccedilou chamando a atenccedilatildeo para o fato de que a mamoacuteria
daquela fase histoacuterica eacute muito precaacuteria ldquoNa verdade ela foi muito mal
construiacuteda acabou virando um folclore e acabou se contando a histoacuteria desse
periacuteodo de traacutes para frente ndash quer dizer sabendo que a luta armada natildeo deu
certo vamos contar por que ela natildeo deu certo Na eacutepoca em que ela ocorreu
ela era um campo de possibilidades natildeo era mais do que isso Mas hoje jaacute se
131
comeccedila a falar desse movimento para se mostrar o fim dessa histoacuteria[]
(Abreu 1998 31)
Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN)
A organizaccedilatildeo em que militavam Dulce Pandolfi Fernando Palha e Ana de
Miranda no momento de suas prisotildees a ALN foi fundada por Carlos Marighella em
fevereiro de 1968 depois de deixar o PCB Marighella havia sido expulso do Partidatildeo
sob a alegaccedilatildeo de ter viajado para Havana em Cuba sem a autorizaccedilatildeo do Comitecirc
Central do partido para participar da conferecircncia da Organizaccedilatildeo Latino-Americana de
Solidariedade (OLAS) ndash organizaccedilatildeo que tinha como objetivo estender a revoluccedilatildeo
armada por toda a Ameacuterica Latina nos moldes da Revoluccedilatildeo Cubana de 1959
Em apoio a Marighella apoacutes sua expulsatildeo do PCB as bases de Satildeo Paulo tambeacutem
se desligaram do partido e formaram o Agrupamento Comunista de Satildeo Paulo O
Pronunciamento desse grupo em fevereiro de 1968 fundou oficialmente a Accedilatildeo
Libertadora Nacional (ALN) muito embora o primeiro quadro de militantes da
organizaccedilatildeo tenha ido treinar em Cuba ainda em setembro de 1967 36
O nome Accedilatildeo Libertadora Nacional seria uma referecircncia agrave Alianccedila Nacional
Libertadora organizaccedilatildeo poliacutetica criada em 1935 composta por setores de diversas
correntes ideoloacutegicas basicamente a fim de lutar contra a influecircncia fascista no Brasil
Nesse mesmo sentido a ALN tambeacutem visava aleacutem da luta socialista a libertaccedilatildeo
nacional buscando adquirir igual ecircxito na congregaccedilatildeo de grande parte da esquerda
brasileira em torno de seus objetivos como ANL havia conseguido durante a deacutecada de
30 No entanto diferentemente da Alianccedila Nacional Libertadora a Accedilatildeo Libertadora
36
Para mais informaccedilotildees ver Lima 2007 31
132
Nacional natildeo era configurada por uma poliacutetica de alianccedilas mas pelo combate pela accedilatildeo
direta 37
Quanto ao programa da organizaccedilatildeo a ALN tinha por estrateacutegia maior a guerrilha
rural embora sua tarefa taacutetica estivesse concentrada nas cidades onde a maior parte de
suas accedilotildees ocorria Essas accedilotildees urbanas eram consideradas pela organizaccedilatildeo como um
meio de apoio para propaganda poliacutetica para obtenccedilatildeo de fundos (atraveacutes de
expropriaccedilotildees como assaltos a bancos) para recrutamento de quadros para a guerrilha e
para ataques estrateacutegicos ao inimigo Aleacutem disso a ALN permitia a existecircncia de
pequenos grupos com total independecircncia taacutetica desde que estivessem subordinados agrave
sua estrateacutegia geral Dessa forma sua estrutura pode ser entendida como horizontal sem
hierarquias jaacute que segundo Denise Rollemberg em Esquerdas revolucionaacuterias e luta
armada (2003) o militante da ALN que se considerasse capaz de fazer accedilotildees era
incentivado a agir e natildeo a ficar esperando a orientaccedilatildeo de um poder centralizado Afinal
uma das criacuteticas da antiga Corrente Revolucionaacuteria do PCB da qual o liacuteder da ALN
Marighella foi integrante era justamente sobre a centralizaccedilatildeo e como esta emperrava a
atuaccedilatildeo do partido Dessa forma a ALN atuava por meio de diversos grupos
multiplicando suas accedilotildees
A partir disso percebe-se como o sequestro do aviatildeo da Companhia Cruzeiro do
Sul efetuado pelo pequeno grupo que Fernando Palha integrava pocircde ser executado
dentro da ALN assim como os inuacutemeros assaltos a bancos e carros-fortes e os
sequestros a embaixadores em que outros pequenos grupos ligados agrave ALN estiveram
envolvidos Dessa forma nota-se tambeacutem como e por que a ALN se tornou a maior
organizaccedilatildeo de luta armada da eacutepoca e por conseguinte Marighella e seus demais
militantes os mais procurados pela ditadura militar 38
37
Para mais informaccedilotildees ver Lourenccedilo 2005 191 38
Para mais informaccedilotildees ver Gorender 1999
133
No trecho seguinte retirado da entrevista de Fernando Palha destaca-se como
muitos desses pequenos grupos da ALN tinham espaccedilo para planejar e administrar suas
proacuteprias accedilotildees sem se desligarem da Accedilatildeo
Eu era da ALN Accedilatildeo Libertadora Nacional era a maior organizaccedilatildeo de luta
armada que tinha na eacutepoca A Jane [Jessie Jane] por exemplo veio para caacute
para Niteroacutei jaacute fugida de Satildeo Paulo onde prenderam o pai prenderam a matildee
a famiacutelia dela toda sabe O pai natildeo era de nenhuma organizaccedilatildeo mas dava
guarida [] ele era um cara politizado e ela tambeacutem e quando ela veio para
caacute para Niteroacutei ela entrou para o nosso grupo de estudo Estudaacutevamos o
marxismo guerrilhas enfim aprendendo um pouco Aiacute a gente pensando
em como soltar eles [os pais de Jessie Jane] surgiu a ideacuteia de sequestrar o
aviatildeo O sequestro do aviatildeo foi tranquilo difiacutecil foi a negociaccedilatildeo da troca
dos passageiros pelos presos que a gente queria (Freire 28 jun 2004)
Essas variadas e espalhadas accedilotildees da ALN repercurtiram de forma negativa entre
os militares dos oacutergatildeos repressivos Afinal a atuaccedilatildeo descentralizada da ALN permitia
que uma grande quantidade de accedilotildees ldquoterroristasrdquo fossem atribuiacutedas ao movimento
tornando-o aos olhos dos agentes da repressatildeo mais ameaccedilador e perigoso agrave
manutenccedilatildeo do regime ditatorial Essa percepccedilatildeo dos militares pode ter causado reflexos
no cotidiano prisional de militantes ligados direta ou indiretamente agrave referida
organizaccedilatildeo como Dulce Fernando Ana e Ceciacutelia39
ndash considerada militante indireta
por ter escondido em sua casa um dos atores do sequestro do embaixador norte-
americano accedilatildeo conjunta entre MR-8 e ALN
39
No terceiro capiacutetulo a anaacutelise da memoacuteria dos seis entrevistados (Antocircnio Dulce Fernando Padre
Maacuterio Ana e Ceciacutelia) se concentra no cotidiano prisional vivido no DOI-CODI carioca
134
Juventude Operaacuteria Catoacutelica (JOC) amp Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO)
A Juventude Operaacuteria Catoacutelica a JOC uma das organizaccedilotildees de que Padre Maacuterio
era assistente no momento de sua prisatildeo surge no Brasil em iniacutecio dos anos 1930
ganhando forccedila apenas a partir de fins de 1940 A JOC objetivava melhorar a vida do
jovem trabalhador atraveacutes de uma accedilatildeo evangelizadora e formadora de uma consciecircncia
criacutetica Eacute a responsaacutevel pela criaccedilatildeo do meacutetodo pedagoacutegico ldquoVer-Julgar-Agirrdquo
ensinando seus jovens a ver o problema a julgaacute-lo agrave luz do Evangelho e a agir para
transformar sua condiccedilatildeo de classe trabalhadora explorada
A JOC que apresentava uma posiccedilatildeo mais conservadora ateacute meados da deacutecada de
1950 a partir do golpe de 1964 assume outra orientaccedilatildeo poliacutetica de caraacuteter mais
progressista realizando uma reflexatildeo mais profunda no que se refere agrave condiccedilatildeo da
classe trabalhadora do paiacutes e da Ameacuterica Latina o que ocasiona uma maior repressatildeo
por parte do governo ditatorial brasileiro Atraveacutes da JOC a criaccedilatildeo da Accedilatildeo Catoacutelica
Operaacuteria (ACO) ndash outra organizaccedilatildeo de que Padre Maacuterio tambeacutem participava no
momento de sua prisatildeo ndash foi incentivada comeccedilando a ser organizada em fins da
deacutecada de 1950 em funccedilatildeo do grande nuacutemero de militantes que haviam chegado agrave idade
adulta mas desejavam continuar a atuar por meio da organizaccedilatildeo
A ACO nasce entatildeo da Liga Operaacuteria Catoacutelica (LOC) que era um movimento
destinado aos adultos ligados agrave Igreja e inicialmente com forte preocupaccedilatildeo
assistencialista assumindo gradativamente um vieacutes poliacutetico e uma identidade de classe
Assim a partir da LOC a ACO brasileira surge de fato em 1962 apresentando-se como
uma continuidade da JOC para que os jovens trabalhadores pudessem quando adultos
permanecerem a atuar politicamente Muitos eram os pontos em comum dos dois
movimentos que vatildeo desde os mesmos participantes que migravam de um para o outro
ao atingirem a idade adulta como a aplicaccedilatildeo do mesmo meacutetodo de accedilatildeo ldquoVer-Julgar-
135
Agirrdquo Entretanto segundo Alejandra Luisa Magalhatildees Estevez em sua dissertaccedilatildeo de
mestrado (2008) O movimento dos trabalhadores catoacutelicos a Juventude Operaacuteria
Catoacutelica (JOC) e a Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) diferentemente da JOC que a
partir de 1969 com a prisatildeo de muitos de seus integrantes ndash como o proacuteprio Padre
Maacuterio Prigol ndash foi perdendo forccedilas e acabou desaparecendo a atuaccedilatildeo da ACO durante
o periacuteodo militar caracterizou-se pelo enfrentamento constante com a hierarquia
eclesiaacutestica e com os proacuteprios militares
Dessa forma Padre Maacuterio que antes de ser preso em 1970 era assistente tanto da
JOC quanto da ACO apoacutes sua prisatildeo deu continuidade ao seu trabalho junto agrave ACO o
que ainda faz atualmente Afinal a ACO permanece em atividade ateacute os dias de hoje
poreacutem sob o nome de Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos (MTC)
Logo mesmo com diferentes atuaccedilotildees no cenaacuterio poliacutetico da eacutepoca as
organizaccedilotildees acima tratadas nas quais os ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados
militavam direta ou indiretamente tinham por confluecircncia algum tipo de manifestaccedilatildeo
em oposiccedilatildeo agrave ditadura militar Entretanto apesar dessa face comum ser o motivo
principal de suas prisotildees as diferenccedilas na forma de agir de suas organizaccedilotildees pode ter
se refletido na intensidade das violecircncias a que foram submetidos no DOI-CODIRJ
Diante disso no capiacutetulo seguinte a partir da anaacutelise das memoacuterias dos seis
entrevistados essa relaccedilatildeo entre a organizaccedilatildeo de esquerda do militante e o seu
tratamento na prisatildeo seraacute abordada assim como os demais aspectos que caracterizavam
o cotidiano vivido no DOI-CODIRJ durante o ano de 1970
136
Capiacutetulo 3 ndash O espaccedilo e o cotidiano do DOI-CODI carioca
A lua
Tal qual a dona de um bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel
E nuvens
Laacute no mata-borratildeo do ceacuteu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco
Louco
O becircbado com chapeacuteu-coco
Fazia irreverecircncias mil
Praacute noite do Brasil
Meu Brasil
Aldir Blanc e Joatildeo Bosco
(O Becircbado e a Equilibrista 1979)
137
1 O que sofre e o que resiste
Os depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ fontes essenciais
para esta pesquisa encontram aqui um desfecho primordial Finalmente uma de suas
especificidades mais importantes eacute aqui trabalhada a possibilidade que trazem de
acessar desde os aspectos mais subjetivos do dia-a-dia do DOI-CODIRJ aos mais
triviais Diante disso neste capiacutetulo torna-se possiacutevel uma caracterizaccedilatildeo da rotina
institucional ali vivida pelos prisioneiros em 1970 trazendo agrave tona detalhes e
sentimentos que compunham esse cotidiano que haacute deacutecadas jaacute natildeo existe mais Essa
faccedilanha natildeo seria possiacutevel atraveacutes de qualquer outra fonte senatildeo a oral Somente as
memoacuterias trazidas nas narrativas orais quando devidamente trabalhadas satildeo capazes de
aproximar-se das sensaccedilotildees e sentimentos vivenciados naquele passado amenizando a
sua corrosatildeo pelo tempo e as lacunas encontradas na histoacuteria da ditadura militar
Diante disso a memoacuteria eacute aqui tratada como material para a histoacuteria conforme
elucidado por Paul Ricoeur em A memoacuteria a histoacuteria e o esquecimento (2008) Nessa
mesma direccedilatildeo vai Fernando Catroga em seu artigo A representaccedilatildeo do ausente
memoacuteria e historiografia (2010) pelo qual busca entender a escrita da histoacuteria como um
rito de memoacuteria anaacutelogo ao ldquogesto de sepulturardquo Afinal a escrita da histoacuteria tem uma
funccedilatildeo anaacuteloga agrave do tuacutemulo e agrave dos ritos de recordaccedilatildeo ajudando tal como no trabalho
do luto a pagar as diacutevidas do presente com o passado que jaacute natildeo existe mais Essa
analogia mostra que se o tuacutemulo eacute o primeiro monumento dos mortos deixado para os
vivos a escrita da histoacuteria tambeacutem atua no sentido de lutar contra o esquecimento e a
degradaccedilatildeo que marcam a passagem do tempo Logo tal como acontece quando se
visita o tuacutemulo de um cemiteacuterio a escrita da histoacuteria sobre o cotidiano do DOI-
CODIRJ pretende contribuir para que agindo sobre os vivos esse passado se
transforme de ldquolugar de sepulturardquo para o de ldquogesto de sepulturardquo (Ricoeur 2008) Essa
138
analogia do tuacutemulo com a escrita da histoacuteria tem como principal ponto em comum a
construccedilatildeo do passado a partir de traccedilos e de representaccedilotildees que almejam situar no
tempo algo que natildeo existe mais O cotidiano do DOI-CODIRJ passa aqui a ser escrito
por meio da anaacutelise de vestiacutegios e representaccedilotildees apresentados nas memoacuterias de seis
dos seus ex-prisioneiros poliacuteticos tal como ocorre com a representaccedilatildeo memorial de
uma sepultura
Evidencia-se que as memoacuterias aqui trabalhadas especialmente por evocarem
fatos vividos pelas proacuteprias testemunhas estatildeo permeadas de razotildees subjetivas
normativas e pragmaacuteticas que satildeo condicionantes e geram efeitos incontrolaacuteveis
resultando em uma construccedilatildeo qualitativa seletiva e apaixonada do passado Daiacute a
importacircncia do olhar criacutetico do historiador sobre essas memoacuterias uma vez que a funccedilatildeo
deste eacute justamente inserir os aspectos criacuteticos objetivos e analiacuteticos da histoacuteria na
fluidez emoccedilatildeo e submissatildeo aos influxos da conjuntura caracteriacutesticos da memoacuteria
(Nora 1993)
Portanto eacute imperativo analisar criticamente essas memoacuterias sobre o cotidiano do
DOI-CODIRJ mesmo sabendo das dificuldades que envolvem essa accedilatildeo como bem
aponta Beatriz Sarlo em Tempo passado Cultura da memoacuteria e guinada subjetiva
(2007) Afinal satildeo depoimentos de viacutetimas cuja confiabilidade sobre as torturas sofridas
na prisatildeo natildeo soacute foi elemento constituinte da instalaccedilatildeo do regime democraacutetico como
ainda eacute responsaacutevel pela solidificaccedilatildeo de um princiacutepio de reparaccedilatildeo e justiccedila Poreacutem
deve-se antes de tudo encaraacute-los como discursos testemunhais pois seguem o modo
persuasivo caracteriacutestico do discurso e por conseguinte natildeo podem ser cristalizados
Afinal esses seis testemunhos satildeo feitos por narradores que buscam firmar no passado a
verdade do presente jaacute que a narrativa no presente tem uma inevitaacutevel hegemonia sobre
o passado conforme bem enuncia Sarlo no trecho abaixo
139
O presente da enunciaccedilatildeo eacute o ldquotempo de base do discursordquo porque eacute
presente o momento de se comeccedilar a narrar e esse momento fica inscrito na
narraccedilatildeo Isso implica o narrador em sua histoacuteria e a inscreve numa retoacuterica
da persuasatildeo (o discurso pertence ao modo persuasivo diz Ricoeur) Os
relatos testemunhais satildeo ldquodiscursordquo nesse sentido porque tecircm como
condiccedilatildeo um narrador implicado nos fatos que natildeo persegue uma verdade
externa no momento em que ela eacute enunciada Eacute inevitaacutevel a marca do
presente no ato de narrar o passado justamente porque no discurso o
presente tem genuiacutena hegemonia reconhecida como inevitaacutevel e os tempos
verbais do passado natildeo ficam livres de uma ldquoexperiecircncia fenomenoloacutegicardquo
do tempo presente da enunciaccedilatildeo ldquoO presente dirige o passado assim como
um maestro seus muacutesicosrdquo escreveu Italo Severo (Sarlo 2007 49)
Daiacute destaca-se novamente a importacircncia de considerar o tempo presente como
base do discurso das memoacuterias sobre o cotidiano do DOI-CODIRJ trabalhadas neste
capiacutetulo evocando mais uma vez a elucidativa expressatildeo preacutesent du passeacute de Robert
Frank (1999) O presente a partir de onde falam os seis entrevistados como ex-
prisioneiros poliacuteticos corresponde a um momento em que a democracia brasileira para a
maioria deles dava passos largos em direccedilatildeo a sua total magnitude o presente vivido no
raiar dos anos 2000 vinha se distanciando poliacutetica e socialmente do passado ditatorial
militar Quem presidia o paiacutes eram antigos opositores poliacuteticos do governo militar os
ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva que vinham
construindo garantias de reparaccedilatildeo aos que sofreram violaccedilotildees aos direitos humanos
durante o passado ditatorial
Estava em curso o reconhecimento dos mortos e desaparecidos poliacuteticos pelo
Estado brasileiro bem como a indenizaccedilatildeo agraves famiacutelias por intermeacutedio da Lei nordm 9140
de 1995 e a reparaccedilatildeo financeira aos males sofridos por aqueles presos ou perseguidos
na eacutepoca da ditadura militar garantida pela Lei nordm 10559 de 2002 Eram esses fatos
140
que compunham o cenaacuterio do presente vivido durante as entrevistas e obviamente
influenciaram diretamente a construccedilatildeo das narrativas dos ex-presos poliacuteticos sobre o
cotidiano do DOI-CODI carioca
Essas influecircncias acabaram em alguns casos direcionando suas narrativas para
os detalhes dos horrores a que foram submetidos e para as sequelas deixadas pelas
torturas daquele tempo a fim de natildeo suscitar duacutevidas sobre o merecimento agrave reparaccedilatildeo
oferecida pelo Estado Afinal o DOI-CODIRJ correspondeu ao espaccedilo onde esses
presos poliacuteticos viveram um dos cotidianos mais violentos de todo o periacuteodo em que
estiveram na prisatildeo Ao enfatizarem em detalhes o lado duro dessa rotina prisional os
entrevistados ambicionavam fortalecer a interpretaccedilatildeo vigente sobre seu papel de viacutetima
e ao mesmo tempo de resistente a um Estado ditatorial Ao procurarem conquistar a
entrevistadora os entrevistados viam-se envolvidos no processo de enquadramento da
memoacuteria sobre a ditadura militar brasileira no sentido atribuiacutedo por Michael Pollak
(1992) O objetivo entre outros era o de fortalecer perante a sociedade e o governo
uma memoacuteria que a eles conferisse o duplo lugar de resistente e de viacutetima e endossasse
a necessidade de reparaccedilotildees financeiras e simboacutelicas aos atingidos
A reparaccedilatildeo financeira aos violentados pela ditadura militar jaacute vinha acontecendo
na eacutepoca em que as entrevistas foram concedidas por meio das leis que implantaram a
Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos e a Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio
da Justiccedila citadas anteriormente e abordadas no segundo capiacutetulo Jaacute a reparaccedilatildeo
simboacutelica soacute comeccedilaria a ser de fato implantada alguns anos depois das entrevistas
principalmente com as Caravanas da Anistia a partir de abril de 2008 e mediante a
aprovaccedilatildeo da Comissatildeo da Verdade pelo Congresso Nacional em outubro de 2011 As
Caravanas da Anistia satildeo sessotildees puacuteblicas itinerantes de apreciaccedilatildeo de requerimentos de
anistia poliacutetica a perseguidos poliacuteticos da ditadura militar acompanhadas por atividades
141
educativas e culturais promovidas pela Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio da Justiccedila
Jaacute a Comissatildeo da Verdade teraacute como finalidade examinar e esclarecer graves violaccedilotildees
de direitos humanos praticadas entre os anos de 1946 e 1988 a fim de promover a
reconciliaccedilatildeo nacional com o seu passado histoacuterico
Eacute faacutecil perceber que os entrevistados em seus testemunhos-discursos acabam
atribuindo um sentido uacutenico agrave histoacuteria e conforme salienta Beatriz Sarlo (2007) ao
acumularem detalhes em suas narrativas produzem um modo realista-romacircntico pelo
qual atribuem sentidos a todos os detalhes mencionados somente pelo fato de incluiacute-los
no relato sem se sentirem na obrigaccedilatildeo de atribuir sentidos ou explicar as ausecircncias ali
tambeacutem apresentadas Dessa forma a anaacutelise aqui traccedilada procura trabalhar de forma
criacutetica no sentido de reconhecer a face realista dos detalhes descritos pelos narradores
e ao mesmo tempo a face romacircntica construiacuteda por eles de forma a fortalecer a
credibilidade e a veracidade de sua narraccedilatildeo Uma vez que diferentemente do que datildeo a
entender os entrevistados ao narrarem suas proacuteprias vidas a anaacutelise histoacuterica do
presente trabalho firma-se longe da utopia de uma narraccedilatildeo total capaz de descrever
todo o passado estudado reconhecendo a necessidade de operar com elipses
No entanto se por um lado os detalhes mencionados nos depoimentos devem ser
submetidos ao pensamento criacutetico histoacuterico por outro lado satildeo exatamente eles que
enriquecem a anaacutelise de um cotidiano jaacute que os detalhes trazidos pelos depoimentos
conseguem muitas vezes tornar a rotina do dia-a-dia que jaacute natildeo mais existe palpaacutevel
ao entendimento Eacute o que ocorre por exemplo com a disposiccedilatildeo espacial interna do
preacutedio-sede do DOI-CODIRJ fator que estaacute intrinsecamente relacionado ao cotidiano
prisional e que torna-se passiacutevel de caracterizaccedilatildeo atraveacutes dos detalhes contidos nos
depoimentos Assim mesmo natildeo sendo possiacutevel visitar o interior do edifiacutecio e nem ter
acesso a alguns registros documentais como fotos ou outros documentos eacute possiacutevel
142
contrapor as descriccedilotildees contidas nos depoimentos com a fachada do preacutedio que ainda
existe e construir uma percepccedilatildeo aproximada sobre o espaccedilo em que de certa forma
essas memoacuterias estatildeo ancoradas
2 Uma cartografia possiacutevel do ldquoCastelo do Terrorrdquo
Constatada essa forte relaccedilatildeo entre as memoacuterias dos ex-prisioneiros que ali
ficaram presos em 1970 com o espaccedilo interno do 1ordm BPE resolvi tentar ver de perto
como este era distribuiacutedo No entanto muitas dificuldades foram encontradas e
inviabilizaram o meu projeto inicial de contrapor o que restava do interior do edifiacutecio
que sediou o DOI-CODIRJ com as memoacuterias de seus ex-prisioneiros
Em 2003 a minha primeira tentativa de visitar o interior do preacutedio do 1ordm BPE foi
interrompida no momento em que apresentei o propoacutesito de minha visita o interesse em
ver o preacutedio do DOI-CODIRJ Percebi imediatamente que o ldquoassunto DOI-CODIrdquo
gerava um grande desconforto para aquele Batalhatildeo Talvez porque apesar do referido
Batalhatildeo natildeo ter tido relaccedilatildeo direta com o DOI-CODIRJ pois eram instituiccedilotildees
distintas o fato desse oacutergatildeo repressivo ter sido instalado em seu interior evoca uma
forte relaccedilatildeo que atualmente imprime uma imagem negativa para seus militares
Percebe-se assim que o 1ordm BPE quer apagar da memoacuteria social sua associaccedilatildeo ao DOI-
CODIRJ o que explica o fato de seus militares natildeo permitirem que eu prosseguisse
com a visita
No ano seguinte em novembro tentei pela segunda vez visitar o interior do dito
edifiacutecio Prevendo dificuldades para a visita utilizei como pretexto uma suposta
pesquisa sobre patrimocircnios histoacutericos do bairro Um primeiro-sargento que se
apresentou como graduado em histoacuteria acompanhou-me pelo paacutetio interno do
complexo Durante o passeio por este espaccedilo ele apontava de longe para os preacutedios que
143
ficavam ao redor inclusive para o que sediava o DOI-CODIRJ agrave esquerda e ao fundo
daquele paacutetio a ceacuteu aberto Ao referir-se ao local o sargento apontou de longe e disse
ldquoLaacute funciona o DOI-CODIrdquo deixando transparecer que ateacute aquele momento natildeo
existia uma nova serventia para aquele local e que a estrutura do DOI-CODI havia sido
preservada Nada mais quis falar alegando que natildeo poderia dar explicaccedilotildees mais
amplas sobre o assunto e que aleacutem do mais eu natildeo poderia me aproximar das
instalaccedilotildees que me interessavam
Esta segunda visita corroborou a minha sensaccedilatildeo anterior de que os militares
daquele Batalhatildeo natildeo queriam que este ficasse historicamente associado ao DOI-CODI
percebendo a imagem negativa que essa associaccedilatildeo poderia conferir-lhes tentando
evitar a manutenccedilatildeo do viacutenculo daquele preacutedio com a memoacuteria das torturas e mortes ali
executadas nos chamados ldquoanos de chumbordquo
Aleacutem disso esta visita trouxe-me um dado novo ao apresentar aquele preacutedio
como sendo o ldquoDOI-CODIrdquo no presente do indicativo o sargento deixou perceptiacutevel
um interesse interno em preservaacute-lo Afinal por que ateacute aquele momento mesmo o
DOI-CODI natildeo estando mais em atividade o seu espaccedilo natildeo havia sido utilizado para
nenhuma outra funccedilatildeo permanente Este interesse reflete talvez um forte orgulho
interno de importantes setores do Exeacutercito pelos feitos do DOI-CODI no sentido de
para alguns mais radicais ter sido esta instituiccedilatildeo uma das principais defensoras da
soberania e da ordem nacional na eacutepoca ameaccediladas pela subversatildeo
Apesar de tais empecilhos os detalhes relatados pelos entrevistados viabilizariam
uma aproximada cartografia espacial do interior do DOI-CODIRJ de 1970 quando eles
laacute estiveram Essa cartografia fez-se aqui necessaacuteria por entender-se que essa disposiccedilatildeo
espacial eacute essencial para a anaacutelise das memoacuterias sobre o cotidiano ali vivido uma vez
que esse espaccedilo prisional estaacute presente a todo o tempo nos relatos de Antocircnio Dulce
144
Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia sendo um dos principais pontos de uniatildeo de suas
memoacuterias
Sendo assim defende-se aqui que o antigo preacutedio do DOI-CODI carioca eacute hoje
um lugar de memoacuteria jaacute que a ele se confere de forma simultacircnea e em graus diversos
os trecircs sentidos atribuiacutedos como necessaacuterios por Pierre Nora o material o simboacutelico e o
funcional (Nora 1993 21) O sentido material no caso eacute o proacuteprio espaccedilo fiacutesico o
preacutedio do 1ordm BPE ainda localizado agrave Rua Baratildeo de Mesquita nordm 425 no bairro da
Tijuca O simboacutelico eacute o que o edifiacutecio representa para parte da sociedade carioca que
partilha as memoacuterias dos ex-presos poliacuteticos e seus familiares sobre o violento
cotidiano as torturas e as mortes ali vivenciados atribuindo ao preacutedio o significado de
ldquoCastelo do terrorrdquo Por fim o sentido funcional eacute a atividade de preservaccedilatildeo da
memoacuteria da ditadura militar ali exercida jaacute que o preacutedio eacute um monumento tombado sob
a justificativa de guardar a memoacuteria ali vivida durante a ditadura militar brasileira e natildeo
deixar que ela venha a cair no esquecimento Este uacuteltimo sentido portanto embute ao
preacutedio o significado completo de um lugar de memoacuteria congregando ao espaccedilo uma
funccedilatildeo e uma representaccedilatildeo simboacutelica ou seja unindo os aspectos material simboacutelico e
funcional
145
Foto Nordm1 fachada entrada principal e paacutetio interno do quartel do 1ordm BPE (Bettamio dez 2004)
Este tombamento foi feito pela Prefeitura do Rio de Janeiro em 1993 e tem por
setor responsaacutevel a Subsecretaria municipal de Patrimocircnio Cultural lei nordm 1954 de
29039340
Seu processo teve iniacutecio atraveacutes da solicitaccedilatildeo de moradores da localidades
da Tijuca Grajauacute Andaraiacute e Praccedila Saens Pentildea que utilizaram para embasar o referido
ato o fato de parte do edifiacutecio do 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito ter abrigado o DOI-
CODI do Rio de Janeiro durante toda a deacutecada de 1970 e iniacutecio dos anos 1980
ressaltando a sua importacircncia para a memoacuteria da resistecircncia e luta pelo fim da ditadura
militar
Percebe-se ainda a grande importacircncia atribuiacuteda a essa memoacuteria quando se
destaca que mesmo o edifiacutecio tendo um valor histoacuterico anterior agrave fase em que cedeu
parte de seu espaccedilo ao DOI-CODIRJ o pedido de tombamento feito pela populaccedilatildeo
fundamentava-se no que ali havia ocorrido em tempos recentes durante a ditadura
militar Afinal esses requerentes propunham que o edifiacutecio fosse tirado do Exeacutercito e
desse lugar a um centro cultural com museu da memoacuteria da luta pela liberdade
40
Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro antigo Departamento Geral de
Patrimocircnio Cultural (DGPC) Nordm do processo 1200433692 1degdocumento de solicitaccedilatildeo de tombamento
26101992
146
O edifiacutecio foi construiacutedo em 1857 pela Imperial Coroa para servir de sede a um
Hospital Militar entretanto laacute se instalou o 1ordm Regimento de Cavalaria Ligeira e
posteriormente o Hospital Militar da Corte com funcionamento ateacute fevereiro de 1877
Desde entatildeo a construccedilatildeo foi utilizada pela Escola do Estado Maior pelo 2ordm Batalhatildeo
de Caccediladores pela Escola de Intendecircncia e a partir de 1946 pelo 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia
do Exeacutercito 41
Em ampla aacuterea estaacute situado na confluecircncia da Rua Baratildeo de Mesquita com a
Avenida Maracanatilde abrangendo tambeacutem a Praccedila Lamartine Babo Conforme pode ser
observado na paacutegina anterior Foto Nordm1 ao redor de todo o espaccedilo ocupado pelo preacutedio
estende-se uma mureta de alvenaria com grade assente na parte frontal do quartel O
complexo arquitetocircnico do 1ordm BPE apresenta nas extremidades alas perpendiculares
que formam no meio um largo paacutetio A uacuteltima dessas alas possui os fundos voltados
para a Avenida Maracanatilde em frente a um dos portotildees de entrada e saiacuteda de veiacuteculos do
quartel Era exatamente nesta parte localizada no final do paacutetio central do Batalhatildeo do
lado esquerdo ao lado da antiga faacutebrica de bebidas Brahma que as celas e a sala de
tortura do DOI-CODIRJ estavam localizadas A seguir na Foto Nordm2 visualiza-se o
fundo deste edifiacutecio na Avenida Maracanatilde
41
Para mais informaccedilotildees ver Gerson 2000 357
147
Foto Nordm2 preacutedio do DOI-CODIRJ nos fundos do quartel localizado na Avenida Maracanatilde (Bettamio dez 2004)
Como se pode ver na Foto Nordm2 em cima do muro do 1ordm BPE exclusivamente na
parte que cerca os fundos do antigo preacutedio do DOI-CODIRJ estaacute localizada uma cerca
de arame farpado Assim aleacutem da descriccedilatildeo dos entrevistados e da forma como o
primeiro-sargento nomeou o local ao apontaacute-lo durante a minha segunda visita ao
Batalhatildeo em 2004 entende-se esta cerca como mais um indiacutecio de que laacute ficavam as
celas do entatildeo DOI-CODIRJ Tais celas estavam distribuiacutedas pelos dois pavimentos do
edifiacutecio conforme pode-se auferir nos relatos e comprovar na Foto Nordm2 onde pela
distribuiccedilatildeo das janelas nota-se que o preacutedio eacute composto de fato por dois andares
O local da prisatildeo era mais nos fundos Quando vocecirc chega ali vocecirc tem duas
entradas uma pela pracinha [Foto Nordm3] onde entram os carros e outra pela
frente bem na Baratildeo de Mesquita [Foto Nordm1] Nesta entrada tem uma mesa
com um oficial do dia depois vem uma espeacutecie de paacutetio aberto como se
fosse uma quadra Jaacute nos fundos do quartel passa a Avenida Maracanatilde por
traacutes da Poliacutecia do Exeacutercito As celas tanto a da prisatildeo como a da tortura
eram mais perto da Avenida Maracanatilde Era laacute naquela parte mais para o
148
final mais isolada Vocecirc ficava mais proacuteximo da Avenida Maracanatilde e da
faacutebrica da Brahma [] (Carvalho 12 set 2002)
Foto Nordm3 uma das entradas do 1ordm BPE para veiacuteculos de frente para a Praccedila Lamartine Babo (Bettamio dez 2004)
Os prisioneiros poliacuteticos receacutem-capturados transferidos de outros oacutergatildeos de
repressatildeo ou mesmo do Hospital Central do Exeacutercito chegavam ao 1ordm BPE dentro de
uma das viaturas das turmas de busca e apreensatildeo do DOI que faziam parte da
estrutura abordada no primeiro capiacutetulo Os automoacuteveis que os traziam entravam no
Batalhatildeo atraveacutes do portatildeo para veiacuteculos que fica em frente agrave Praccedila Lamartine Babo
(Foto Nordm3) entre a Rua Baratildeo de Mesquita e a Avenida Maracanatilde Ao entrarem por
este portatildeo os carros seguiam em linha reta pelo paacutetio interno ateacute chegarem ao preacutedio
do DOI-CODI no fundo do quartel (Foto Nordm2) onde os presos eram deixados
Este trajeto de chegada descrito pelos entrevistados parece ser ateacute hoje um
procedimento formal para controlar a entrada de veiacuteculos no Batalhatildeo e atraveacutes dele
evidencia-se que o DOI-CODI mesmo natildeo sendo subordinado ao 1ordm BPE tinha como
dever respeitar algumas normas de seguranccedila ali vigentes Entre essas normas estava o
impedimento de utilizar o portatildeo para veiacuteculos localizado na Avenida Maracanatilde (Foto
149
Nordm2) para a entrada e a saiacuteda de seus presos mesmo sendo mais praacutetico e reservado
pois este portatildeo ficava ao lado do preacutedio do DOI-CODI Poreacutem como todo quartel
militar preza por um controle riacutegido de seguranccedila uma vez que satildeo responsaacuteveis por
guardar armas e outros equipamentos beacutelicos esses agentes eram obrigados a respeitar a
estrutura de seguranccedila tradicional do 1ordm BPE
[] a gente entrava pela pracinha aqui do lado [aponta para o desenho que
faz no papel] a gente entrava dentro dos carros aqui por esse portatildeo (o da
praccedila) A gente natildeo entrava pela porta principal natildeo E nem entrava ou saiacutea
pelo portatildeo do lado do preacutedio que a gente ficava [] (Coimbra 30 nov
2004)
No preacutedio do DOI-CODIRJ (Foto Nordm2) as celas ldquosolitaacuteriasrdquo se localizavam
somente no andar de baixo Nelas os prisioneiros receacutem-chegados permaneciam nos
primeiros dias de prisatildeo para ficarem no mesmo andar da sala de interrogatoacuterio ou ldquosala
de torturardquo ndash como os presos a chamavam ndash facilitando o deslocamento Era no
momento inicial da prisatildeo que as turmas de interrogatoacuterio preliminar executavam a
parte massiva dos interrogatoacuterios o que por conseguinte demandava a necessidade dos
presos ficarem em celas geograficamente proacuteximas agrave ldquosala de torturardquo
Nos primeiros dias de prisatildeo era quando os presos eram levados assiduamente
para a ldquosala de torturardquo visto que poderiam informar sobre os ldquopontos de encontrordquo e os
ldquoaparelhosrdquo ainda vaacutelidos informaccedilotildees que levariam os agentes dos DOI ateacute outros
ldquosubversivosrdquo Aleacutem da ldquosala de torturardquo a cela do tipo ldquosolitaacuteriardquo era mais um artifiacutecio
para torturar o preso receacutem-chegado a fim de degradaacute-lo e desestruturaacute-lo
psicologicamente de forma a impulsionaacute-lo a falar mais rapidamente o que sabia Para
isso essas celas ldquosolitaacuteriasrdquo aleacutem de deixarem o preso isolado dos demais se
diferenciavam estruturalmente das outras que existiam no mesmo preacutedio localizadas em
150
maior parte no pavimento superior para as quais os presos eram transferidos apoacutes o
momento inicial de sua prisatildeo
Nas celas do segundo andar existia banheiro com chuveiro e um colchatildeo para cada
preso Jaacute nas ldquosolitaacuteriasrdquo aleacutem do preso ficar sozinho natildeo havia cama colchatildeo
banheiro ou mesmo pia Durante o tempo em que laacute permaneciam os prisioneiros natildeo
tinham direito a tomar banho Eram celas pequenas com portotildees de grades vazadas
contendo apenas um buraco no chatildeo para que o preso ali pudesse evacuar Os presos
eram obrigados a conviver com o cheiro de sua proacutepria urina e fezes no provaacutevel intuito
de denegrir a sua condiccedilatildeo de ser humano
[] logo que eu cheguei fui para a lsquosolitaacuteriarsquo era torturada ia para a
lsquosolitaacuteriarsquo era torturada e ia para a lsquosolitaacuteriarsquo [] (Pandolfi 5 fev 2003)
[] primeiro que quando vocecirc eacute preso vocecirc passa alguns dias sem tomar
banho na verdade eu soacute fui tomar banho mesmo depois que eu fui para a
cela coletiva [] (Carvalho 8 fev 2003)
Aqui [aponta para as celas do andar teacuterreo do preacutedio que desenhou em um
papel] era soacute o pessoal que ficava de castigo era barra pesada [] vocecirc natildeo
tinha lugar para dormir natildeo tinha lugar para nada Tinha soacute um buraco para
vocecirc fazer as suas necessidades Na solitaacuteria natildeo tinha nem colchatildeo nem
banheiro nem privada era um buraco Nem tinha chuveiro Pelo menos
essas celas de cima tinham chuveiro [] (Coimbra 30 nov 2004)
151
Foto Nordm4 visatildeo panoracircmica do espaccedilo ocupada pelo 1ordm BPE com destaque aos fundos para o preacutedio do DOI-CODI
(Bettamio dez 2004)
A ldquosala de torturardquo localizada no primeiro pavimento do preacutedio eacute referida pelos
prisioneiros tambeacutem como ldquosala roxardquo pela cor de suas paredes Anexa a ela estava a
sala de observaccedilatildeo que era separada da ldquosala roxardquo por um vidro o chamado ldquoespelho
da verdaderdquo Este vidro composto por uma placa semi-espelhada possibilitava que da
sala de observaccedilatildeo se pudesse ver e reconhecer quem estava do outro lado sem ser
visto Assim presos e militares poderiam identificar pessoas e observar interrogatoacuterios
sem serem reconhecidos
[] a sala de tortura era pintada de uma cor horrorosa como se fosse um
roxo [] essa sala tinha um vidro que era o espelho da verdade porque dava
acesso agrave outra sala onde ficavam pessoas para te observar sem serem vistas
[] (Pandolfi 5 fev 2003)
A seta indica a localizaccedilatildeo do preacutedio do DOI-CODI dentro do espaccedilo do 1ordm BPE
152
[] aqui tinha a famosa sala roxa duas uma do lado da outra isso no
primeiro andar Porque ali estavam as pessoas que eles estavam inquirindo
direto [] (Freire 28 jun 2004)
Os dados informados acima satildeo exemplos tiacutepicos de detalhes apresentados pelos
entrevistados que muito podem contribuir para o entendimento desse passado Afinal
em uma primeira impressatildeo essas narrativas podem transmitir a ideia de que as paredes
roxas serviam apenas para imprimir um aspecto sombrio agrave ldquosala de torturardquo servindo
como mais um elemento produzido para intimidar o depoente durante o interrogatoacuterio
No entanto ao saber-se que uma das paredes dessa sala era composta pelo dito ldquoespelho
da verdaderdquo deduz-se que esta era bem iluminada O vidro que a dividia do local anexo
muito utilizado nas salas de reconhecimento em delegacias de poliacutecia age atraveacutes de um
mecanismo pelo qual quem estaacute do lado mais iluminado vecirc apenas o reflexo de sua
proacutepria imagem sem enxergar o que estaacute do lado mais escuro
A partir disso infere-se que as paredes roxas da ldquosala de torturardquo natildeo eram apenas
um aparato de tortura psicoloacutegica mas provavelmente uma forma de deixar os
integrantes das turmas de interrogatoacuterio preliminar mais agrave vontade para interrogar
ameaccedilar e torturar os seus prisioneiros Menos iluminada do que se suas paredes fossem
brancas contribuiacutea para que os prisioneiros natildeo pudessem ver os militares de forma tatildeo
clara e niacutetida fazendo com que os torturadores natildeo se sentissem acuados por atuar com
os seus rostos agrave mostra chegando mesmo a retirar o capuz dos prisioneiros
[] chegando nessa sala de tortura normalmente eles tiravam o capuz Quer
dizer o capuz na verdade era um mecanismo mais de intimidaccedilatildeo de deixar
a gente apavorada do que para eles se esconderem mesmo porque na tortura
a gente acabava vendo os torturadores [] (Pandolfi 5 fev 2003)
No DOI-CODI eu apanhei de cara limpa eu vi quem me bateu quem me
torturou [] (Freire 28 jun 2004)
153
No segundo andar do preacutedio do DOI-CODIRJ em meio agraves demais celas coletivas
e encostada em outra menor se encontrava uma cela feminina bem espaccedilosa onde
Dulce Ana e Ceciacutelia ficaram durante parte do tempo em que estiveram na instituiccedilatildeo
Essa cela mencionada pelas entrevistadas ora por ldquocoletivo das mulheresrdquo ora por
ldquoMaracanatilderdquo tinha no alto da parede de fundo um basculante que como bem se pode
observar na Foto Nordm2 provavelmente estava presente em todas as celas coletivas tanto
as do primeiro quanto as dos segundo andares Entretanto no caso do ldquocoletivo das
mulheresrdquo e da cela nele encostada esses basculantes eram virados para o paacutetio interno
do 1ordm BPE e por conseguinte os portotildees dessas celas ficavam na direccedilatildeo do muro da
Avenida Maracanatilde
[] eu fui para a cela do lado que era o coletivo das mulheres que era a cela
Maracanatilde como a gente chamava [] Eram duas celas Essa era enorme e
tinha a outra na outra ponta [] que era uma cela menor Eu fiquei nas duas
que eram as duas celas que ficavam na frente que davam para o paacutetio A
gente trepava [no basculante da cela] e soacute via o paacutetio (Coimbra 30 nov
2004)
Tinha ateacute uma cela ampla grande que chamavam de coletivo das mulheres
Entatildeo a maior parte do tempo eu fiquei nessa cela grande [] (Pandolfi 5
fev 2003)
No DOI-CODI natildeo havia uma grande separaccedilatildeo entre prisioneiros e prisioneiras
uma vez que as celas do primeiro e do segundo andares comportavam tanto homens
quanto mulheres No entanto natildeo havia celas mistas Apesar de que como somente
homens afirmaram ter permanecido em celas do piso teacuterreo pressupotildee-se que neste
pavimento com exceccedilatildeo das celas ldquosolitaacuteriasrdquo localizavam-se em grande parte caacuterceres
154
coletivos masculinos que tambeacutem existiam no segundo andar demonstrando que era
maior o nuacutemero de prisioneiros homens
[] eu sempre fiquei no teacuterreo nunca subi para aquela parte apesar de que
laacute onde ficavam as celas tinha uma escada Tinha uma parte teacuterrea onde
ficavam nossas celas e tinha tambeacutem umas celas em cima [] (Carvalho 12
set 2002)
No teacuterreo tinha duas celinhas aqui [rabisca em um pedaccedilo de papel] uma no
cantinho aqui e eu fiquei nessa segunda aqui aiacute ainda tinha a do meio e
mais duas para caacute eram cinco celas [] (Freire 28 jun 2004)
A partir dessa cartografia do espaccedilo fiacutesico do DOI-CODI viabilizou-se uma
aproximaccedilatildeo com a geografia do ambiente que mantinha uma iacutentima relaccedilatildeo com o
cotidiano dos entrevistados no periacuteodo em que laacute permaneceram como prisioneiros do
sistema de seguranccedila
3 Memoacuterias de um cotidiano
Falar sobre essa parte da histoacuteria implica muitas dificuldades pois suscita
lembranccedilas mal-vindas poreacutem necessaacuterias ao conhecimento de nossa
sociedade Trata-se aqui de uma viagem de volta ao inferno de uma face que
para muitos traduz supliacutecios fiacutesicos e psiacutequicos sentimentos de desamparo
solidatildeo medo pacircnico abandono e desespero (Coimbra 2004 45) 42
Como jaacute dito o momento da realizaccedilatildeo de uma entrevista eacute definidor da maneira
pela qual o(a) entrevistado(a) recupera o seu passado A construccedilatildeo da memoacuteria sobre o
cotidiano vivido no DOI-CODI em 1970 natildeo escapou desse passeacute do preacutesent e de
42
Artigo Gecircnero Militacircncia e Memoacuteria escrito pela entrevistada Ceciacutelia Coimbra e publicado em Strey
Marlene Neves (org) Violecircncia Gecircnero e Poliacuteticas Puacuteblicas Porto Alegre PUC-RS 2004
155
forma muito interessante ao mesmo tempo em que sofria influecircncias desse presente
tambeacutem agia politicamente sobre ele Beneficiados por uma legislaccedilatildeo que buscava
reparar os variados danos causados pelo Estado ditatorial os entrevistados visavam
sobretudo a obter reparaccedilotildees simboacutelicas comeccedilando pela consolidaccedilatildeo de suas
memoacuterias Por isso mesmo lutavam por accedilotildees governamentais tais como a construccedilatildeo
de museus sobre a ditadura militar em locais que haviam servido como prisatildeo poliacutetica
na eacutepoca e a instalaccedilatildeo da Comissatildeo da Verdade no paiacutes
Assim em 24 de janeiro de 2009 foi inaugurado no anexo do antigo preacutedio do
Departamento de Ordem e Poliacutetica Social de Satildeo Paulo (Deops) o Memorial da
Resistecircncia de Satildeo Paulo Eacute a primeira instituiccedilatildeo do paiacutes a ldquomusealizarrdquo parte de um
edifiacutecio que foi siacutembolo da poliacutecia poliacutetica em eacutepocas de ditadura a fim de salvaguardar
a memoacuteria da resistecircncia e da repressatildeo do Brasil republicano 43
E finalmente em 18
de novembro de 2011 a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei que criava a
Comissatildeo da Verdade (lei nordm 125282011) Esta seraacute composta por sete integrantes que
ainda seratildeo indicados e contaratildeo com ajuda de 14 auxiliares que teratildeo a missatildeo de ouvir
depoimentos em todo o paiacutes requisitar e analisar documentos que ajudem a esclarecer
os fatos da repressatildeo militar A Comissatildeo iraacute apurar as violaccedilotildees de direitos ocorridas
entre os anos de 1946 e 1988 e teraacute um prazo de dois anos para finalizar este trabalho de
investigaccedilatildeo
43
Para mais informaccedilotildees sobre o Memorial da Resistecircncia de Satildeo Paulo consultar
httpwwwmemorialdaresistenciasporgbr
156
31 O interrogatoacuterio e a tortura
Tendo em vista as novas funccedilotildees que se apresentavam para os agentes da
repressatildeo lotados nos DOI-CODI era necessaacuterio um treinamento que incluiacutea entre
outras mateacuterias o manuseio da dosagem de dor infringida durante os interrogatoacuterios
Depois de passarem por tal treinamento os militares poderiam atuar em uma das trecircs
turmas de interrogatoacuterio preliminar que compunham a Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio
responsaacutevel direta por torturar os presos ou em uma das turmas da Seccedilatildeo de busca e
apreensatildeo que capturavam os suspeitos e os direcionavam aos DOI
Esse processo de formaccedilatildeo de matildeo-de-obra para atuar no DOI-CODI surgiu em
1970 quando uma escola de repressatildeo foi criada a partir da mudanccedila de comando e da
reforma curricular do Centro de Estudos de Pessoal (CEP) no forte do Leme O novo
CEP passava a oferecer cursos de informaccedilotildees para oficiais programas de extensatildeo para
sargentos e estaacutegios para quadros das poliacutecias militares todos normalmente com
duraccedilatildeo de um semestre Nesses cursos os alunos assistiam aulas sobre teacutecnicas de
interrogatoacuterio ndash o que incluiacutea o manuseio de aparelhos de tortura ndash e vigilacircncia taacuteticas
de ldquoneutralizaccedilatildeo de aparelhosrdquo e de transporte de presos operaccedilotildees especiais
criptologia e produccedilatildeo de informaccedilotildees Ao fim do curso o aluno recebia uma
certificaccedilatildeo atraveacutes da qual poderia atestar sua aptidatildeo para desempenhar as funccedilotildees de
um oficial de informaccedilotildees
Parte dos meacutetodos aprendidos nessa escola eacute retratada em entrevista para a revista
Veja de 9 de dezembro de 1998 pelo tenente Marcelo Paixatildeo de Arauacutejo que de acordo
com Elio Gaspari (2002) teria atuado como torturador no 12ordm Regimento Interno de
Belo Horizonte entre 1968 e 1971
A primeira coisa era jogar o sujeito no meio de uma sala tirar a roupa dele e
comeccedilar a gritar para ele entregar o ponto [lugar marcado para encontros
157
com militantes do grupo] Era o primeiro estaacutegio Se ele resistisse tinha um
segundo estaacutegio que era vamos dizer assim mais porrada Um dava tapa na
cara Outro soco na boca do estocircmago Um terceiro soco no rim Tudo para
ver se ele falava Se natildeo falava tinha dois caminhos Dependia muito de
quem aplicava a tortura Eu gostava muito de aplicar a palmatoacuteria Eacute muito
doloroso mas faz o sujeito falar Eu era muito bom na palmatoacuteria [] Vocecirc
manda o sujeito abrir a matildeo O pior eacute que de tatildeo desmoralizado ele abre Aiacute
se aplicam dez quinze bolos na matildeo dele com forccedila A matildeo fica roxa Ele
fala A etapa seguinte era o famoso telefone das Forccedilas Armadas [] eacute uma
corrente de baixa amperagem e alta voltagem [] Natildeo tem perigo de fazer
mal Eu gostava muito de ligar as duas pontas dos dedos Pode ligar numa
matildeo e na orelha mas sempre do mesmo lado do corpo O sujeito fica
arrasado O que natildeo pode fazer eacute deixar a corrente passar pelo coraccedilatildeo Aiacute
mata [] o uacuteltimo estaacutegio em que cheguei foi o pau-de-arara com choque
Isso era para o queixo-duro o cara que natildeo abria nas etapas anteriores Mas
pau-de-arara eacute um negoacutecio meio complicado [] O pau-de-arara natildeo eacute
vantagem Primeiro porque deixa marca Depois porque eacute trabalhoso Tem
de montar a estrutura Em terceiro eacute necessaacuterio tomar conta do indiviacuteduo
porque ele pode passar mal (Gaspari 2002 182-183)
Antes de comeccedilar a atuar esses agentes passavam por treinamento no DOI-CODI
feito provavelmente com alguns prisioneiros que jaacute estavam laacute haacute algum tempo e que
haviam mostrado ter boa resistecircncia Conforme se pode evidenciar a partir da
declaraccedilatildeo feita por Dulce Pandolfi em 1970 registrada na auditoria militar 44
[]
que foi exposta perante 20 oficiais como numa demonstraccedilatildeo de aulas de torturas
pau-de-arara e choques [] (Arquidiocese de Satildeo Paulo tomo V 1985 758)
Essa denuacutencia feita na eacutepoca por Dulce na auditoria da Justiccedila Militar foi
publicada em A Tortura tomo V do ldquoProjeto Ardquo da pesquisa coordenada pela
Arquidiocese de Satildeo Paulo e intitulada Brasil Nunca Mais O ldquoProjeto Ardquo eacute constituiacutedo
por doze volumes que contecircm as conclusotildees da referida pesquisa feita a partir da
44
Assim satildeo chamadas as varas criminais com atribuiccedilatildeo especiacutefica de atuar em processos de crimes
militares da Justiccedila Militar brasileira
158
reuniatildeo de coacutepias da quase totalidade dos processos poliacuteticos que tramitaram na Justiccedila
Militar entre abril de 1964 e marccedilo de 1979 Esses volumes foram reproduzidos vinte e
cinco vezes pela Arquidiocese de Satildeo Paulo formando coleccedilotildees que foram doadas a
entidades de direitos humanos pesquisa e documentaccedilatildeo 45
As 6891 paacuteginas do
ldquoProjeto Ardquo estatildeo resumidas no ldquoProjeto Brdquo o livro Brasil Nunca Mais tambeacutem
datado de 1985 e publicado pela Editora Vozes
Os primeiros momentos no DOI-CODI
Desde o momento da detenccedilatildeo o preso era submetido a diversos tipos de maus
tratos Jaacute a caminho do caacutercere ainda dentro do automoacutevel comeccedilavam as agressotildees
como tapas pontapeacutes e empurrotildees a fim de acelerar a sua desestabilizaccedilatildeo para que
entregasse mais rapidamente informaccedilotildees que agilizassem a prisatildeo de outros militantes
procurados
As torturas que Ana Batista relata ter sofrido durante o percurso de transferecircncia
da OBANSP para o DOI-CODIRJ destacadas em seu memorial ndash escrito em outubro
de 2004 um mecircs antes de sua entrevista e encaminhado agrave Comissatildeo Especial da
Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro ndash trazem aspectos
proacuteximos agrave realidade vivida na eacutepoca pelos presos poliacuteticos do DOI-CODIRJ
[] dez dias apoacutes a prisatildeo fui levada de Satildeo Paulo [DOI-CODISP] para o
Rio [DOI-CODIRJ] de madrugada numa C-14 onde permaneci no banco de
traacutes entre dois agentes de grande porte No meio do caminho na Via Dutra
eles entraram por uma estradinha pararam o carro e me mandaram descer
aos berros Com fortes dores no corpo ndash especialmente nos rins ndash
queimaduras infectadas pelos choques eleacutetricos exausta dos interrogatoacuterios e
45
Os doze volumes do ldquoProjeto Ardquo estatildeo disponiacuteveis no Arquivo do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio
de Janeiro (GTMNRJ)
159
sem dormir haacute dias desembarquei meio trocircpega Gritaram impropeacuterios e
ordenaram que eu fugisse Como estava muito tonta sem saber o que pensar
ou fazer natildeo fiz nada Atiraram entatildeo repetidas vezes em volta de mim
que permaneci encostada em uma aacutervore gritaram vaacuterias vezes para que eu
fugisse Caiacute no chatildeo o que os fez parar de atirar e se jogarem em cima de
mim agraves gargalhadas Colocaram-me de volta no carro e continuamos a
viagem rumo ao DOI-CODI-RJ (Batista out 2004)
Assim quando chegavam ao DOI-CODIRJ apoacutes passarem pelo portatildeo de
entrada da Praccedila Lamartine Babo (Foto Nordm3) os presos preenchiam uma ficha de
identificaccedilatildeo e eram levados para a ldquosala roxardquo no andar teacuterreo do preacutedio dessa
instituiccedilatildeo (Foto Nordm2) Laacute em meio a interrogatoacuterio as ameaccedilas e torturas se
intensificavam perpetradas pelos integrantes de uma das trecircs turmas de interrogatoacuterio
preliminar de plantatildeo no momento
Cabe lembrar que tais turmas eram constituiacutedas por militares treinados para
conseguir extrair rapidamente dos presos o maior nuacutemero possiacutevel de informaccedilotildees
principalmente sobre a data hora e local de seu proacuteximo ldquopontordquo de encontro Afinal
caso esses agentes natildeo conseguissem tais dados logo nos primeiros dias natildeo chegariam
ao local a tempo de pegarem o outro militante clandestino que o preso encontraria A
partir do momento em que a ausecircncia desse militante fosse notada integrantes de sua
organizaccedilatildeo poliacutetica deduziriam o motivo e por proteccedilatildeo modificariam os locais dos
ldquoaparelhosrdquo e dos proacuteximos ldquopontosrdquo As informaccedilotildees do preso receacutem-capturado se
tornariam entatildeo desatualizadas o que dificultaria a investigaccedilatildeo dos agentes do DOI-
CODIRJ
As torturas infringidas aos presos eram mais intensas logo depois da prisatildeo
Lutando contra o tempo era comum deixar o preso em celas ldquosolitaacuteriasrdquo localizadas no
andar teacuterreo conforme jaacute indicado Dessa forma os presos receacutem-chegados ficavam
bem proacuteximos agrave sala de interrogatoacuterio a ldquosala roxardquo justamente por serem para laacute
160
levados com frequecircncia Como nas ldquosolitaacuteriasrdquo os presos ficavam sozinhos e natildeo
podiam contar com itens baacutesicos de higiene e proteccedilatildeo do corpo (tais como banheiro
chuveiro colchatildeo e cobertor) acabavam se sentindo ainda mais desestruturados e por
conseguinte desestabilizados Logo no momento inicial da prisatildeo quando os presos
natildeo eram submetidos agraves torturas fiacutesicas eram submetidos agraves torturas psicoloacutegicas das
ldquosolitaacuteriasrdquo as chamadas torturas brancas46
espeacutecie de degradaccedilatildeo fria sem violecircncia
humana expliacutecita
Por outro lado os presos receacutem-capturados tinham consciecircncia de que era naquele
momento inicial que mais poderiam prejudicar seus companheiros de organizaccedilatildeo
Diante disso normalmente tentavam dificultar o acesso dos militares agraves informaccedilotildees
lutando para resistir agraves torturas Apesar de muitas vezes fracassarem tentavam segurar
os dados que tinham ao menos ateacute passar o horaacuterio do proacuteximo ldquopontordquo que haviam
combinado com outro militante Portanto avalia-se que provavelmente o grau de
resistecircncia inicial do prisioneiro estava diretamente relacionado ao da intensidade da
tortura a ele perpetrada e vice-versa conforme analisa-se nos trechos da entrevista de
Ana de Miranda Batista abaixo destacados
[] o meu negoacutecio era ganhar tempo e o deles era conseguir informaccedilatildeo A
luta eacute essa nos primeiros dias eacute vocecirc dar o miacutenimo de informaccedilotildees e eles
querendo arrancar o maacuteximo de informaccedilatildeo Aiacute eles vecircm com a maacutexima de
que torturar eacute investigar [risos] E daiacute se precisar ateacute a morte O negoacutecio eacute
conseguir informaccedilatildeo
46
Em 1971 quando os ex-prisioneiros aqui entrevistados jaacute natildeo estavam mais no 1ordm BPE o projeto
ldquoTortura Limpardquo foi ali instalado Segundo Elio Gaspari o andar teacuterreo do DOI-CODIRJ sofreu obras
para que fossem construiacutedos quatro novos cubiacuteculos um foi forrado com isopor e amianto a fim de fazer
o prisioneiro sentir frio constantemente outro se tornou uma cacircmara de ruiacutedos pela qual o preso ouviria o
barulho por todo o tempo em que laacute estivesse o terceiro foi todo pintado de branco provocando dor na
vista do preso devido agrave claridade constante na cela o uacuteltimo transformou-se em um ambiente todo preto
natildeo fornecendo a quem estivesse em seu interior nenhuma claridade causando choque na vista quando
exposto a claridade normal (Gaspari 2002 189-190)
161
[] quando eu cheguei agrave OBAN [que na eacutepoca de sua prisatildeo jaacute havia se
transformado em DOI-CODISP] jaacute era noite eles estavam tomando cerveja
comemorando que eu tinha caiacutedo E aiacute eu passei o ponto da Ana Maria do
Carlos Eugecircnio com o Bacuri Porque laacute era um inferno [] laacute eu passei um
monte de ponto e todos eles eram procurados Entatildeo aiacute eacute que a barra pegou
mesmo (Batista 17 nov 2004)
Os trechos acima mesmo sendo baseados em uma experiecircncia vivida no DOI-
CODISP trazem muitas informaccedilotildees sobre o cotidiano prisional vivido de forma
geral em todos os DOI-CODI Afinal conforme ressaltado anteriormente esses oacutergatildeos
estavam espalhados por todas as jurisdiccedilotildees territoriais do Brasil e seguiam
basicamente a mesma organizaccedilatildeo Portanto pode-se concluir aqui que em ambos os
DOI-CODI no momento inicial da prisatildeo existia essa relaccedilatildeo entre a intensidade das
sessotildees de tortura adotadas pelos militares e o tamanho da vontade de resistir do preso
Tal relaccedilatildeo se torna ainda mais perceptiacutevel pela frustraccedilatildeo sentida na fala de Ana
ao afirmar ter passado muitos ldquopontosrdquo inclusive o de ldquoBacurirdquo codinome de Eduardo
Collen Leite seu companheiro de organizaccedilatildeo Ana no momento da entrevista sabia
que ldquoBacurirdquo havia sido preso em agosto de 1970 alguns dias depois de sua prisatildeo e
que havia morrido sob tortura Quando admite ter entregado aos agentes do DOISP o
ponto de encontro Ana se culpa O depoimento eacute o momento em que Ana aproveita
para se justificar ao demonstrar que acredita no quanto a resistecircncia agrave tortura era
importante no iniacutecio da prisatildeo mas como ela se tornava limitada sendo rapidamente
derrotada Resistir ao DOI-CODI era muito difiacutecil jaacute que os agentes haviam sido
fortemente preparados para a ldquoguerra internardquo e natildeo por acaso se tornariam os grandes
responsaacuteveis pela desarticulaccedilatildeo das organizaccedilotildees de luta armada
O silecircncio dos demais entrevistados sobre as informaccedilotildees que concederam ou natildeo
aos agentes das turmas de interrogatoacuterio preliminar serve aqui como mais um
argumento para a tese de que apesar da grande resistecircncia inicial dos presos poliacuteticos e
162
tambeacutem por causa dela a violecircncia vivida no DOI-CODIRJ nos primeiros dias de
prisatildeo era intensa e quase sempre prevalecia Afinal caso natildeo fosse desse modo os
entrevistados provavelmente orgulhar-se-iam de sua resistecircncia e por conseguinte natildeo
lhes faltariam motivos para lembraacute-la e narraacute-la Logo o silecircncio aqui tambeacutem se torna
revelador
Atraveacutes desse silecircncio destaca-se ainda que talvez pelos mesmos motivos que
Ana opta por lembrar e justificar-se os demais entrevistados optam por silenciar e tentar
esquecer Todos apesar de agirem de acordo com suas personalidades e experiecircncias de
vida provavelmente se sentem culpados ou envergonhados por natildeo terem aguentado
esconder o que sabiam ateacute o fim e poupado muitos de seus companheiros da prisatildeo e ateacute
mesmo da morte
A segunda fase
Passada esta primeira fase da prisatildeo no DOI-CODIRJ que durava em meacutedia uma
ou duas semanas os presos eram transferidos para celas maiores Estas continham
banheiro colchatildeo e em grande parte das vezes outros prisioneiros
Nessa segunda etapa os presos natildeo ficavam isentos das idas agrave ldquosala roxardquo poreacutem
estas natildeo eram tatildeo frequentes quanto anteriormente Afinal a busca desesperada por
ldquopontosrdquo codinomes ou ldquoaparelhosrdquo natildeo mais cabia pois esses prisioneiros jaacute estavam
distantes de suas organizaccedilotildees haacute tempo suficiente para que suas prisotildees fossem
notadas e por conseguinte para que as informaccedilotildees que tivessem jaacute natildeo fossem mais
ldquoquentesrdquo
Nessa fase as visitas agrave ldquosala roxardquo davam-se por outros motivos Normalmente
para ajudar em anaacutelises de novas suspeitas Os agentes das turmas de interrogatoacuterio
preliminar poderiam levar um preso mais antigo para a ldquosala roxardquo para ser acareado
163
com um receacutem-chegado com quem suspeitavam estar de alguma forma relacionado
Poderiam tambeacutem levaacute-lo ateacute laacute para ser interrogado a respeito de novas e possiacuteveis
accedilotildees da esquerda armada conforme indicassem as informaccedilotildees recebidas pelo CODI
conjugadas agraves anaacutelises feitas pelo Setor de anaacutelise e informaccedilotildees sobre algum material
apreendido pela Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo Eacute o que pode-se concluir a partir da
caracterizaccedilatildeo sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI quando colocadas em diaacutelogo
com as informaccedilotildees trazidas pelos trechos destacados abaixo
ldquoNome codinome e aparelhordquo isso eacute que eles querem saber de imediato
Depois que passa algum tempo isso natildeo interessa mais Aiacute eles tecircm um
trabalho mais analiacutetico que era para saber de outros que acabaram de cair o
que eles tecircm de quecirc jaacute participaram o que estaacute acontecendo [] (Batista 17
nov 2004)
[] de quem era preso eles queriam duas informaccedilotildees imediatas eles
comeccedilavam a te bater e soacute pediam o ponto o local de encontro que vocecirc
tivesse com algueacutem e o aparelho que era o apartamento alugado ou qualquer
coisa assim Era isso o que eles queriam basicamente [] (Freire 28 jun
2004)
Como o DOI-CODIRJ tinha poucas celas e muita rotatividade quando o preso
natildeo mais interessava agraves investigaccedilotildees era normalmente mandado para o DOPS onde
era aberto o processo de crime poliacutetico e ficava detido ateacute o primeiro julgamento ndash
como ocorreu com Antocircnio de Carvalho Dulce Pandolfi e Ana de Miranda Batista
Poreacutem quando o seu caso tivesse relaccedilatildeo com uma das outras Forccedilas Armadas o preso
era transferido para a instituiccedilatildeo repressiva diretamente ligada a esta ndash como aconteceu
com Fernando ao ser levado do DOI-CODIRJ para o CISA oacutergatildeo de repressatildeo ligado agrave
Aeronaacuteutica ndash onde permaneceria ateacute quando seus agentes julgassem necessaacuterio Aleacutem
disso caso os agentes do DOI-CODIRJ constatassem que o prisioneiro natildeo estava
164
envolvido diretamente em nenhum crime poliacutetico ele poderia ser posto em liberdade
provisoacuteria ndash como ocorreu com Padre Maacuterio e Ceciacutelia Coimbra
Vale lembrar que o DOI-CODIRJ natildeo era um presiacutedio comum Laacute os suspeitos de
crimes poliacuteticos natildeo estavam cumprindo pena baseada em um processo e sim na
menagem estipulada pelo Coacutedigo Processual Militar criado pelo decreto-lei Nordm1002
de outubro de 1969 Por meio da menagem os suspeitos de crimes poliacuteticos ndash que a
partir do AI-5 tinham passado a ser julgados pela Justiccedila Militar ndash poderiam ser
arbitrariamente detidos e levados ao quartel responsaacutevel pela Regiatildeo Militar onde
estivessem A menagem era justificada como uma forma de prisatildeo cautelar que visava
evitar o conviacutevio do acusado com pessoas que jaacute estivessem condenadas ateacute o seu
julgamento em primeira instacircncia Dessa forma os suspeitos de crimes poliacuteticos da
Regiatildeo Militar que englobava o Rio de Janeiro ficavam detidos no DOI-CODIRJ
localizado no quartel do 1ordm BPE e ali permaneciam presos sem direito a formalidades
convencionais de uma prisatildeo tais como as visitas de familiares e de um advogado por
um periacuteodo que chegava ateacute 30 dias podendo ser prorrogado por mais 60 dias
Poreacutem como ressaltado anteriormente quando novos grupos de suspeitos laacute
chegavam a saiacuteda dos presos mais antigos era impulsionada mesmo sem ainda terem
sido julgados No entanto como esses presos ainda estavam sob a menagem e por isso
natildeo poderiam ir para um presiacutedio comum a assessoria juriacutedica e policial do DOIRJ ou
os transferia ou os colocava em liberdade provisoacuteria controlando nesse uacuteltimo caso
para que natildeo saiacutessem da respectiva Regiatildeo Militar ateacute o seu julgamento em primeira
instacircncia
[] fiquei trecircs meses laacute na PE na Poliacutecia do Exeacutercito na Rua Baratildeo de
Mesquita Depois fui levada para o DOPS [] laacute na PE a gente ficava nessa
triagem sendo torturado ou ouvindo grito de tortura e esperando laacute o tempo
ateacute eles resolverem a nossa situaccedilatildeo e sermos transferidos Entatildeo laacute era um
165
esquema de uma circulaccedilatildeo muito grande de pessoas Daiacute o quartel estava
sempre cheio porque de repente quando caiacutea alguma organizaccedilatildeo
apareciam laacute 30 ou 40 pessoas presas naquela noite e aquilo ficava
abarrotado de gente Entatildeo tinha momentos que a coisa ficava mais
tranquila e tinha momentos que aquilo ali ficava realmente lotado [] a PE
era isso a PE natildeo tinha uma rotina desses presiacutedios da linha tradicional laacute
ningueacutem recebia visita porque era a fase completamente ilegal da sua prisatildeo
[] (Pandolfi 5 fev 2003)
Outro aspecto interessante da menagem que interferia no cotidiano prisional do
DOI-CODIRJ satildeo as regras para o tempo de inquiriccedilatildeo estipuladas pelo decreto-lei nordm
100269 Este impunha que exceto em casos de urgecircncia os presos que estivessem sob
menagem deveriam prestar depoimentos durante o dia das sete e agraves 18 horas Aleacutem
disso esses prisioneiros natildeo poderiam ser inquiridos por mais de quatro horas
consecutivas tendo direito apoacutes esse periacuteodo a um intervalo de meia hora antes de
voltarem a ser interrogados
Art 19 As testemunhas e o indiciado exceto caso de urgecircncia inadiaacutevel que
constaraacute da respectiva assentada devem ser ouvidos durante o dia em
periacuteodo que medeie entre as sete e as dezoito horas
[]
Inquiriccedilatildeo Limite de tempo
2ordm A testemunha natildeo seraacute inquirida por mais de quatro horas consecutivas
sendo-lhe facultado o descanso de meia hora sempre que tiver de prestar
declaraccedilotildees aleacutem daquele termo O depoimento que natildeo ficar concluiacutedo agraves
dezoito horas seraacute encerrado para prosseguir no dia seguinte em hora
determinada pelo encarregado do inqueacuterito (Decreto-lei nordm 1002 21 out
1969)
A partir disso faz mais sentido ainda as diferentes distacircncias existentes entre as
celas e a sala de tortura nas duas fases da prisatildeo Como o prazo maacuteximo estipulado para
um interrogatoacuterio era de quatro horas tendo o prisioneiro apoacutes este tempo direito a um
166
descanso de ao menos meia hora no primeiro momento da prisatildeo no DOI-CODIRJ
deixar o preso perto do local onde eram feitos os interrogatoacuterios era um facilitador Essa
proximidade entre a cela e a ldquosala roxardquo natildeo era necessaacuteria para o preso que estivesse na
segunda etapa da prisatildeo jaacute que ele natildeo seria transportado de um lugar para o outro com
tamanha frequecircncia e provavelmente os interrogatoacuterios que lhe seriam destinados nem
chegassem agraves quatro horas permitidas pelo referido Decreto-lei
Nas narrativas de todos os entrevistados estatildeo presentes as experiecircncias vividas
nas duas fases da prisatildeo Todos eles passaram os primeiros dias em solitaacuterias e
posteriormente ficaram em celas maiores Padre Maacuterio foi a uacutenica exceccedilatildeo Sua prisatildeo
no DOI-CODIRJ natildeo passou por essas duas etapas encaixando-se portanto em um
dos casos extraordinaacuterios dessa instituiccedilatildeo Afinal desde o momento em que foi levado
para o preacutedio do DOI-CODIRJ Padre Maacuterio afirma ter dividido uma cela no segundo
andar com outros padres e depois ter sido transferido para uma cela do primeiro andar
onde ficou sozinho e de frente para as celas de jovens militantes de sua Associaccedilatildeo
conforme pode-se conferir no trecho abaixo
[] foi exatamente em setembro logo nas primeiras duas semanas em que
noacutes estaacutevamos presos que eles me passaram para o primeiro andar porque
estaacutevamos todos no segundo andar [] entatildeo nos primeiros dias noacutes
padres passamos todos juntos [] e depois fomos separados Entatildeo me
colocaram sozinho nessa cela do andar de baixo bem em frente agraves celas dos
jovens que estavam presos no CENIMAR e que foram levados para laacute para
serem torturados [] (Prigol 28 set 2004)
Essa diferenccedila no cotidiano prisional encontra coerecircncia quando embasada por
alguns argumentos aqui levantados Como a fase em que os presos ficavam nas
ldquosolitaacuteriasrdquo tinha por finalidade desestruturaacute-los e principalmente deixaacute-los mais
proacuteximos da sala de tortura para onde seriam levados com frequecircncia essa fase natildeo
167
deveria ser destinada a um padre sem envolvimento em uma organizaccedilatildeo de luta
armada Os militares teriam que responder agrave Igreja caso algo de mais grave lhe
acontecesse dentro do DOI-CODIRJ Colocar sua vida em risco deveria ser uma opccedilatildeo
somente se ele tivesse informaccedilotildees preciosas para a neutralizaccedilatildeo da guerrilha urbana
principal objetivo do grupo de repressatildeo em 1970 conforme indicado na monografia do
coronel Pereira analisada no primeiro capiacutetulo
Entatildeo como a associaccedilatildeo da qual participava a ACO natildeo tinha envolvimento
com a luta armada a morte de Padre Maacuterio poderia causar desnecessariamente uma
tensatildeo ateacute entatildeo natildeo deflagrada entre o Exeacutercito e a Igreja Catoacutelica 47
Aleacutem disso
como se encontrava em uma faixa etaacuteria mais elevada com cerca de 40 anos ele tinha o
agravante de ter uma sauacutede mais fraacutegil que grande parte dos presos do DOI-CODIRJ
que eram majoritariamente jovens estudantes Assim o tratamento prisional
diferenciado ali recebido por Padre Maacuterio visava diminuir as chances que ele tinha de
desenvolver problemas decorrentes de torturas Essa interpretaccedilatildeo encontra fortes
indiacutecios em um dos trechos de sua entrevista
[] a mim eles soacute colocaram o fio eleacutetrico aqui [aponta para um dedo da
matildeo esquerda] e no peacute esquerdo eu fiquei sabendo que no mesmo lado do
corpo eu natildeo sentiria tatildeo forte mas mesmo assim eu resisti resisti Bom
entatildeo diante da prisatildeo da gente eu sofri tambeacutem torturas mas eu depois
que fingi estar sentindo o coraccedilatildeo eles deixaram de dar choques [risos]
Cada um tem que se defender de alguma forma (Prigol 28 set 2004)
Afinal por meio da descriccedilatildeo acima destacada nota-se que apesar de natildeo
excluiacuterem Padre Maacuterio das sessotildees de tortura uma vez que era esse o procedimento de
investigaccedilatildeo do DOI-CODIRJ existia de fato certo temor em causar-lhe graves
47
Para informaccedilotildees sobre as tensotildees que ocorreram entre a Igreja Catoacutelica e a ditadura militar ver
Serbin 2001 17-77
168
sequelas Dessa forma por mais que Padre Maacuterio relate que sua atitude de defesa
conseguiu inibir a accedilatildeo daqueles agentes conclui-se aqui que caso ele natildeo tivesse as
caracteriacutesticas profissionais morais etaacuterias e ideoloacutegicas aqui descritas certamente tal
inibiccedilatildeo natildeo ocorreria Ao menos natildeo na mesma proporccedilatildeo
Testando a resistecircncia
No ano de 1970 esta preocupaccedilatildeo em evitar sequelas evidentemente natildeo se
aplicava a jovens presos que tivessem algum tipo de ligaccedilatildeo com organizaccedilotildees
oposicionistas adeptas da luta armada Conforme pode-se conferir nos relatos sobre os
danos agrave sauacutede que Dulce Fernando e Ana destacam ter sofrido por conta das torturas
recebidas no DOI-CODIRJ
[] fiquei tomando medicaccedilatildeo especial porque eu estava muito mal estava
com uma paralisia tambeacutem por causa da tortura tinha ficado completamente
travada aquilo vocecirc vai contraindo contraindo e deixava vocecirc semiparaliacutetica
[] (Pandolfi 5 fev 2003)
Eu desmaiava acordava e o pau comia desmaiava acordava e o pau
comia Natildeo foi faacutecil natildeo Eu lembro que quando eu saiacute da PE um mecircs
depois eu fazia assim [passa a matildeo no ouvido] e vinha sangue vinha pus eu
estava bem abalado mesmo (Freire 28 jun 2004)
[] eu fiquei um mecircs no Rio no DOI-CODI Desse mecircs uma semana eu
fiquei no HCE [Hospital Central do Exeacutercito] eu tremia sem parar eu estava
cheia de ferida (Batista 17 nov 2004)
Em todas as fases da prisatildeo para cuidar dos estragos causados agrave sauacutede do preso
durante ou apoacutes a sessatildeo de tortura existiam enfermeiros e meacutedicos no DOI-CODIRJ
Os enfermeiros tratavam os prisioneiros nas celas conforme a recomendaccedilatildeo dos
169
meacutedicos Jaacute esses aleacutem de examinarem e receitarem cuidados especiais aos presos
machucados tambeacutem auxiliavam as turmas de interrogatoacuterio preliminar durante as
torturas averiguando os sinais vitais dos presos a fim de constatarem o quanto eles
ainda poderiam suportar No entanto quando a tortura saiacutea de controle de tal forma que
algum preso ficasse tatildeo mal que natildeo respondesse agrave medicaccedilatildeo e aos cuidados meacutedicos
feitos dentro do quartel esse poderia ser levado pelas turmas de busca e apreensatildeo
conforme demonstrado no primeiro capiacutetulo ateacute o Hospital Central do Exeacutercito48
onde
receberiam um tratamento mais especializado
A existecircncia de meacutedicos no DOI-CODIRJ pode ser averiguada por meio da
confissatildeo de Amilcar Lobo noticiada pela Revista Eacutepoca apresentada abaixo
(EacutePOCA 27 nov 2000 104)
Meacutedico de formaccedilatildeo psicanaliacutetica ele foi denunciado por muitos ex-prisioneiros
por exercer a profissatildeo prestando assessoria a torturas entre 1970 e 1974 no DOI-
CODIRJ Diante disso em 1988 teve o seu registro de meacutedico cassado pelo Conselho
Regional de Medicina do Rio de Janeiro A atuaccedilatildeo de Amilcar Lobo assim como a de 48
O Hospital Central do Exeacutercio (HCE) ainda estaacute localizado no mesmo local da eacutepoca na Rua Francisco
Manoel nordm 126 no bairro de Benfica na cidade do Rio de Janeiro Para mais informaccedilotildees acessar
httpwwwhceebmilbr
170
meacutedicos e enfermeiros em geral tambeacutem eacute encontrada nos depoimentos aqui
analisados conforme pode-se conferir nos trechos destacados a seguir
[] a primeira pessoa que me visitou antes de eu ser torturada foi um
meacutedico o Amilcar Lobo que depois eu denunciei o lsquofilho da putarsquo e a gente
conseguiu cassaacute-lo como meacutedico [] ele acompanhava as torturas antes
durante e depois era o assessor de tortura ele dizia ldquo- Daacute uma paradinha
agorardquo Isso para vocecirc aguumlentar neacute Entatildeo ele entrou na minha cela e me
perguntou se eu era cardiacuteaca tirou a minha pressatildeo e eu natildeo entendendo
nada Ele tinha um esparadrapo aqui [aponta para o lado esquerdo do peito]
para a gente natildeo ver o nome dele Eu fiquei sabendo o nome dele porque
meses depois eu jaacute estava na cela de Dulce [Pandolfi]49
quando ele
porque a Dulce ficou praticamente sem mexer as matildeos [] e ele entrou e
esqueceu o receituaacuterio com o nome dele noacutes olhamos e eu quando saiacute de laacute
o denunciei Anos depois a gente conseguiu que ele fosse cassado []
(Coimbra 30 nov 2004)
[] o meacutedico que vinha te ver vinha para ver as suas condiccedilotildees se tinha que
parar ou se podia continuar a te torturar Os caras batiam muito localizado
em partes que vocecirc resiste mais que satildeo nas naacutedegas nessa parte daqui
[aponta para as costas] Entatildeo satildeo lugares que o seu corpo suporta mais []
(Freire 28 jun 2004)
[] como eu fiquei muito mal eu tive cuidados meacutedicos o tempo quase todo
quer dizer claro que eram cuidados meacutedicos no sentido de me prepararem
para apanhar mais para ser mais torturada queriam evitar que eu morresse
porque politicamente natildeo interessava [] tinha laacute dois enfermeiros de rotina
e tinham tambeacutem dois meacutedicos o mais presente o que sempre visitava a
gente era o Amilcar Lobo Em alguns casos ele participou de algumas
sessotildees de tortura no meu eu me lembro dele dizendo ldquo- ela aguentardquo
tomando minha pressatildeo dizendo que eu aguentava apanhar mais ainda
(Pandolfi 5 fev 2003)
49
Dulce e Ana e Dulce e Ceciacutelia dividiram celas em parte do periacuteodo em que estiveram presas no DOI-
CODIRJ A convivecircncia que laacute tiveram seraacute analisada ainda neste capiacutetulo
171
De fato a tortura estava presente em grande parte do cotidiano do DOI-CODIRJ
e para que fosse eficiente e natildeo causasse maiores problemas tal como mortes
indesejadas ao redor dela havia todo um aparato Esse era formado tanto por
enfermeiros e meacutedicos como tambeacutem por outras especificidades tais como teacutecnicas
treinamentos e equipamentos que seratildeo tratados a seguir
Os meacutetodos da tortura
O meacutedico psicanalista Heacutelio Pelegrino traz uma oacutetima definiccedilatildeo sobre como
funciona a tortura poliacutetica
[] a tortura busca agrave custa do sofrimento corporal insuportaacutevel introduzir
uma cunha que leve agrave cisatildeo entre o corpo e a mente E mais do que isto ela
procura a todo preccedilo semear a discoacuterdia e a guerra entre o corpo e a mente
Atraveacutes da tortura o corpo torna-se nosso inimigo e nos persegue Eacute este o
modelo baacutesico no qual se apoacuteia a accedilatildeo de qualquer torturador [] na tortura
o corpo volta-se contra noacutes exigindo que falemos Da mais iacutentima espessura
de nossa proacutepria carne se levanta uma voz que nos nega na medida em que
pretende arrancar de noacutes um discurso do qual temos horror jaacute que eacute a
negaccedilatildeo de nossa liberdade A tortura nos impotildee a alienaccedilatildeo total de nosso
proacuteprio corpo tornando estrangeiro a noacutes e nosso inimigo de morte
(Pelegrino 5 jun 1982 3)
No interior do DOI-CODIRJ em nenhuma das fases da prisatildeo os presos poliacuteticos
eram poupados de torturas No iniacutecio as visitas agrave ldquosala roxardquo eram mais constantes mas
durante todo o periacuteodo em que permaneciam no DOI-CODIRJ os prisioneiros eram
levados para laacute e laacute eram torturados Nessa sala existiam equipamentos proacuteprios
tornando ainda maior a gama de possibilidades de tortura a serem perpetradas aos
prisioneiros Devido a essa diversidade as torturas recebiam nomes proacuteprios para serem
identificadas pelos oficiais das turmas de interrogatoacuterio preliminar do DOIRJ Tais
172
nomes na maior parte das vezes eram irocircnicos e serviam para demonstrar como ali a
praacutetica da tortura era usual e ao mesmo tempo encarada com naturalidade e frieza
pelos seus executores
Em A Tortura tomo V do ldquoProjeto Ardquo (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985)
encontram-se a caracterizaccedilatildeo e os nomes dessas torturas Comumente citadas pelos
presos poliacuteticos da ditadura militar do Brasil a identificaccedilatildeo dessas torturas foi baseada
sobretudo na anaacutelise da documentaccedilatildeo dos processos judiciais da eacutepoca Afinal muitas
vezes anexadas a esses processos encontram-se denuacutencias sobre torturas feitas por
prisioneiros poliacuteticos nas auditorias militares Essas denuacutencias vatildeo ao encontro de
muitas das descriccedilotildees encontradas nas narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos Antocircnio
Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia construiacutedas jaacute em tempos democraacuteticos
(2002-2004) Algumas delas satildeo destacadas a seguir
Capuz tortura psicoloacutegica Impedimento da visatildeo por meio de um capuz
ficando o indiviacuteduo incapacitado de se defender dos golpes a ele direcionados
Espancamento tapas socos e pontapeacutes aplicados em regiotildees como rins
estocircmago e diafragma
Telefone eletrochoque dado por um telefone de campainha do Exeacutercito
possuindo dois fios longos que satildeo ligados ao corpo molhado normalmente nas
partes genitais e nos mamilos aleacutem dos ouvidos dentes liacutengua e dedos
Pau-de-arara um dos meacutetodos mais antigos de tortura pelo qual se pendura a
viacutetima em posiccedilatildeo de ldquofrango assadordquo nua e de cabeccedila para baixo em um pau
preso no alto por duas barras de ferro causando dores terriacuteveis na cabeccedila e em
todo corpo
Choques eleacutetricos normalmente complemento do pau-de-arara Caracteriza-se
por enviar descargas eleacutetricas em contato com o corpo nu e molhado atraveacutes de
173
um magneto com dois terminais estando um geralmente nos oacutergatildeos genitais e
outro em alguma extremidade sensiacutevel do corpo como liacutengua mamilos e dedos
Palmatoacuteria raquete de madeira aplicada fortemente nas matildeos peacutes naacutedegas e
costas da viacutetima
Afogamento Complemento do pau-de-arara Pode ser aplicado ou por meio de
um pequeno tubo de borracha que lanccedila aacutegua na boca e nas narinas do
torturado ou atraveacutes de uma toalha molhada depositada tambeacutem na boca deste
ao mesmo tempo em que um jato drsquoaacutegua eacute lanccedilado em suas narinas
No referido tomo V do Projeto Brasil Nunca Mais encontram-se trechos das
denuacutencias feitas por Dulce Pandolfi nas auditorias militares em 1970 e tambeacutem por seu
advogado Dr Heleno Fragoso Comparando partes dessas denuacutencias de 1970 com
trechos da entrevista concedida por Dulce em 2003 nota-se que haacute muitos pontos em
comum No entanto percebe-se que em sua narrativa de 2003 as torturas satildeo relatadas
de forma mais impessoal e que talvez pelo tempo que separa este depoimento daquele
de 1970 alguns detalhes se perderam foram esquecidos ou mesmo silenciados Eacute o que
pode-se perceber nas transcriccedilotildees feitas a seguir
Nordm 433 Dulce Chaves Pandolfi Prof estudante Idade 23 Local Rio de
Janeiro (CODI) Ano 1970 Apelaccedilatildeo 39778 Vol 1 PAacuteG 328v LVI
PARTE auto de qualificaccedilatildeo e interrogatoacuterio ndash Auditoria
[] que no quartel da PE na Rua Baratildeo de Mesquita assinou sob torturas o
depoimento () que na sala de torturas da PE foi despida e aplicaram-lhe
choques eleacutetricos nas matildeos que foi levada para uma cela onde deram-lhe
um banho frio e sob o pretexto de ensaboaacute-la os torturadores alisavam o seu
corpo que ao retornar agrave sala de torturas foi colocada no chatildeo com um
jacareacute sobre seu corpo nu que depois foi pendurada num pau-de-arara que
levou choques na vagina no acircnus nos seios na cabeccedila e no restante do
corpo [] que ficou em estado de choque vomitando sangue que por 15
174
dias ficou totalmente paraliacutetica [] que foi exposta perante 20 oficiais
como numa demonstraccedilatildeo de aulas de torturas pau-de-arara e choques []
(Arquidiocese de Satildeo Paulo tomo V 1985 757)
Nordm 433 Dulce Chaves Pandolfi Prof estudante Idade 21 Local R de
Janeiro Ano 1970 Apelaccedilatildeo 39778 Vol 2ordm PAacuteG 712807 LVI
PARTE advogado
[] Com a palavra o Dr Heleno Fragoso defensor da acusada Dulce Chaves
Pandolfi este declarou que ela foi presa em agosto de 1970 tendo sido
submetida a uma seacuterie de torturas tendo inclusive o Delegado do DOPS
mandado submetecirc-la a exame de corpo de delito para salvaguardar a sua
responsabilidade [] Natildeo usaremos a palavra do co-reacuteu Paulo Henrique
Oliveira da Rocha Lins que foi ldquoforccedilado a presenciar a acusada DULCE
PANDOLFI sendo pisoteada nua no chatildeordquo (cf fls 325) Remeteremos o E
Conselho ao laudo fls 358 onde dois meacutedicos legistas do Instituto Meacutedico
Legal examinam a acusada e concluem pela verossimilhanccedila a
plausibilidade de suas alegaccedilotildees no sentido de que fora espancada
constatando os vestiacutegios das lesotildees Estaacute laacute a fls 358 a verdade do
inqueacuterito
Esse sofrimento deve ter sido tanto maior quanto era possiacutevel agrave acusada
fornecer as informaccedilotildees que seus torturadores exigiam [] (Arquidiocese de
Satildeo Paulo tomo V 1985 759)
[] vocecirc apanhava era super torturada ali em 1970 natildeo tinha escapatoacuteria
esse era o procedimento era a rotina e aiacute depois da tortura vocecirc jaacute toda
cheia de hematomas passando mal vocecirc era levada para uma cela muitas
vezes essas pessoas saiacuteam da sala de tortura e iam direto para essa cela onde
eu estava entatildeo eu tambeacutem presenciei muitas pessoas que chegavam laacute
completamente quebradas arrebentadas e essa era a nossa vida []
[] tinha o pau-de-arara que eu fui pendurada vaacuterias vezes nele com os
ferros verdes e as cordas tinha o tal telefone de choque que era para mim
um dos piores instrumentos era um aparelho de choque eleacutetrico tinha a
cadeira que eles tambeacutem te amarravam faziam mil sacanagens e tinha uns
enfim tinha uma espeacutecie de chicote que eles te batiam um porrete A tortura
tem vaacuterios procedimentos e tinha na PE nessa eacutepoca um jacareacute Ele natildeo
ficava na sala de tortura Esse jacareacute ficava do lado de fora Quando algumas
pessoas foram presas eles trouxeram o jacareacute para amedrontar Colocavam o
175
jacareacute sobre o seu corpo Era um filhote de jacareacute mas razoavelmente
grande quer dizer de um metro mais ou menos e era mais um dos
instrumentos que eles usavam [] fiquei tomando medicaccedilatildeo especial
porque eu estava muito mal estava com uma paralisia tambeacutem por causa da
tortura tinha ficado completamente travada eacute aquilo vocecirc vai contraindo
contraindo e deixava vocecirc semiparaliacutetica [] (Pandolfi 5 fev 2003)
A partir da comparaccedilatildeo dos trechos dos diferentes depoimentos acima destacados
dados sobre cenaacuterios e temporalidades distintas nota-se que a narrativa construiacuteda por
Dulce Pandolfi em 2003 eacute muito menos detalhada do que a por ela proferida em 1970
Percebe-se portanto no caso de Dulce que o presente vivido em 2003 de certa forma
agia sobre sua memoacuteria do passado ditatorial impulsionando o silecircncio sobre as
minuacutecias dos sofrimentos vividos no DOI-CODIRJ Logo nas memoacuterias de Dulce
nota-se uma inversatildeo da perspectiva de que o presente democraacutetico promovia uma
narrativa que enfatizasse os detalhes das torturas sofridas durante a ditadura militar a
fim de solidificar as conquistas ateacute entatildeo conseguidas e alcanccedilar outras tantas no futuro
Talvez em 2003 Dulce por jaacute ser uma mulher madura e uma profissional
reconhecida entendesse que o constrangimento trazido pela exposiccedilatildeo total de suas
memoacuterias sobre as torturas sofridas no passado superasse a vontade de denunciaacute-las no
presente Afinal naquele ano a democracia dava fortes sinais de consolidaccedilatildeo uma vez
que Lula ex-liacuteder sindical e perseguido poliacutetico pela ditadura acabava de assumir a
Presidecircncia do Brasil e o Estado brasileiro jaacute vinha reconhecendo sua responsabilidade
diante dos abusos da eacutepoca militar atraveacutes da concessatildeo de reparaccedilotildees financeiras agraves
famiacutelias dos militantes poliacuteticos desde entatildeo desaparecidos (lei nordm 914095) e agraves
viacutetimas de torturas em prisotildees poliacuteticas do periacuteodo (lei nordm 1055902)
Jaacute em 1970 os detalhes sobre as torturas sofridas por Dulce ainda eram
extremamente recentes e portanto muito presentes em sua memoacuteria Aleacutem disso tinha
consciecircncia de que no instante de seu depoimento muitos de seus companheiros
176
continuavam a sofrer dentro dos oacutergatildeos de repressatildeo com as mesmas torturas que havia
recebido E principalmente como estava defendendo-se perante um tribunal a
exposiccedilatildeo dos detalhes de suas torturas apresentava-se como uma arma importante na
luta em prol de sua liberdade
Diante disso enquanto Dulce relata em sua entrevista saber do uso de um filhote
de jacareacute como mais um instrumento de tortura utilizado no DOI-CODIRJ sem no
entanto afirmar ter passado por tal experiecircncia Ceciacutelia Coimbra em 2004 narra que
esse filhote de jacareacute havia sido colocado pelos militares sobre seu corpo nu
[] me botaram nua me amarraram numa cadeira e me puseram um filhote
de jacareacute que era um filhote de jacareacute que eles puxavam por uma corda no
pescoccedilo do pobre do jacareacute Era um filhote e aiacute eles puxavam o jacareacute
botavam o jacareacute em cima Olha era uma coisa horriacutevel Nessa hora eu
desmaiei neacute Natildeo aguentei [] (Coimbra 30 nov 2004)
Durante sua entrevista em 2004 Ceciacutelia descreve ter passado pela mesma
situaccedilatildeo de tortura que Dulce havia descrito em seu depoimento agrave Justiccedila Militar em
1970 mas que no presente em 2003 optou por relatar de forma impessoal Isso se
justifica pelo fato de para Ceciacutelia a descriccedilatildeo dos detalhes ainda ser essencial Afinal
Ceciacutelia eacute uma das fundadoras e ativistas assiacuteduas do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio
de Janeiro (GTNMRJ) onde ocupava entatildeo o cargo de vice-presidente
Eacute evidente portanto que na vida de Ceciacutelia a narrativa sobre os sofrimentos
acarretados pela repressatildeo militar ainda era arma na luta que travava para a
solidificaccedilatildeo das conquistas e para a concretizaccedilatildeo de outras tantas que julgava serem
igualmente importantes Para ela diferentemente de Dulce esse tipo de narrativa era
mais que sua memoacuteria pessoal dizia respeito tambeacutem a seu ofiacutecio Acreditava que o seu
sucesso pessoalprofissional dependia do detalhamento da memoacuteria sobre tais violaccedilotildees
177
o que colocava tais detalhes em um lugar de mais faacutecil aceitaccedilatildeo e por conseguinte
exteriorizaccedilatildeo
Mediante os depoimentos de Dulce e Ceciacutelia que chegaram a dividir cela no DOI-
CODIRJ como poderaacute ser visto paacuteginas agrave frente conclui-se que em meados de 1970
um filhote de jacareacute era utilizado para torturar os presos poliacuteticos do 1ordm BPE O uso
desse tipo de tortura eacute aqui entendido mais por seus efeitos psicoloacutegicos do que fiacutesicos e
como sendo destinado mais agraves presas do que aos presos poliacuteticos Afinal apesar de
tocar nos corpos das viacutetimas como acontece durante as torturas fiacutesicas aparentemente
o jacareacute que era dominado por um militar atraveacutes de uma corda amarrada em seu
pescoccedilo natildeo as atacava ou seja natildeo as causava lesotildees externas Era claramente
utilizado com o intuito de ameaccedilaacute-las Dessa forma mesmo sendo efetuado atraveacutes da
accedilatildeo direta do torturador e mediante o contato fiacutesico esse mecanismo de tortura tinha
por objetivo causar danos exclusivamente psicoloacutegicos Como normalmente as
mulheres possuem mais sensibilidades e fobias relacionadas ao contato com animais
provavelmente esse tipo de tortura atingisse maior eficiecircncia quando destinado agraves
presas
Conforme jaacute analisado e inclusive indicado pelo nome Destacamento de
Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) os presos do DOIRJ estavam ali para fornecer
informaccedilotildees que levassem agrave neutralizaccedilatildeo das organizaccedilotildees poliacuteticas de esquerda
Assim de acordo com a necessidade da raacutepida extraccedilatildeo de tais dados caracterizada
anteriormente natildeo eacute difiacutecil concluir que o clima de ameaccedila e tortura estivesse por toda
parte do preacutedio Portanto percebe-se que as torturas no DOI-CODIRJ de 1970 natildeo se
limitavam agraves fiacutesicas e nem agrave ldquosala roxardquo elas se apresentavam sob diversas faces em
vaacuterios momentos e lugares do edifiacutecio
178
As torturas psicoloacutegicas eram variadas Aleacutem da degradaccedilatildeo inicial que o
desconforto das celas ldquosolitaacuteriasrdquo trazia ao prisioneiro mesmo nas celas coletivas os
presos eram submetidos a muitos outros artifiacutecios desse tipo de tortura tais como luzes
das celas constantemente acesas a fim de que perdessem a noccedilatildeo da passagem do
tempo carcereiros durante a noite abrindo repetidamente a janelinha do portatildeo das
celas para vigiaacute-los acordando-os jaacute que o movimento emitia um som alto visitas
recorrentes de militares agraves celas e gritos vindos da ldquosala roxardquo ouvidos a todo tempo
[] essa porta da nossa cela ela tinha uma abertura era uma porta fechada
natildeo era grade natildeo era uma porta pesada e ela tinha um quadrado em cima
com uma abertura para o lado de fora e esses soldados que faziam a ronda
eles abriam essa portinha de cinco em cinco minutos Entatildeo eles passavam e
ldquopahrdquo e dependendo da maldade desses caras eles batiam com mais forccedila
ou menos forccedila isso era a noite toda Inclusive a luz ficava acesa
permanentemente e essa batidinha desse negoacutecio era uma coisa insuportaacutevel
De vez em quando a gente estava pegando no sono e tomava aquele susto
com aquela batida [] a gente tambeacutem ouvia muito grito de tortura o tempo
todo (Pandolfi 5 fev 2003)
[] nem na hora de dormir apagavam a luz dia e noite era a luz acesa vocecirc
sabia o horaacuterio pela hora do cafeacute da manhatilde Mas ateacute se tinha alguma noccedilatildeo
porque como a janela laacute no alto da parede era de vidro dava para vocecirc
perceber que estava agrave noite [] (Carvalho 8 fev 2003)
[] eles faziam o tal do confere de manhatilde e de noite vinham com catildees
policiais farejando a gente e a gente tinha que ficar em peacute igual a soldado
dizendo - ldquoCeciacutelia Coimbrardquo Tinha que falar o nome [] era o tal do
confere E era uma coisa de humilhaccedilatildeo eles de madrugada abriam
estrondosamente as celas entendeu [] era como se noacutes fossemos animais
animais de circo Animais raros eacuteramos os lsquoterroristasrsquo neacute [] era o tempo
todo as torturas fiacutesicas e a coisa da rotina para te degradar enquanto ser
humano [] (Coimbra 30 nov 2004)
179
Outro tipo de tortura psicoloacutegica aplicada no DOI-CODIRJ de 1970 fora da ldquosala
roxardquo jaacute aqui mencionada era o capuz Os agentes das turmas auxiliares encarregados
da carceragem colocavam uma espeacutecie de capuz no prisioneiro quando o levavam da
cela ateacute a ldquosala de torturardquo No entanto no momento em que o preso chegava nessa sala
tinha o capuz retirado pelos agentes das turmas de interrogatoacuterio preliminar Logo no
DOI-CODIRJ de 1970 o capuz ainda natildeo era um mecanismo para esconder os rostos
dos torturadores e sim mais um artifiacutecio de intimidaccedilatildeo do prisioneiro Aliaacutes foi
exatamente por isso que muitos ex-prisioneiros conseguiram anos depois denunciar
militares que na eacutepoca teriam sido seus algozes 50
Ana Batista ressalta ainda ter sido submetida no DOI-CODIRJ a outro tipo de
tortura psicoloacutegica O meacutedico Amilcar Lobo teria solicitado a um agente da turma
auxiliar de plantatildeo que a carregasse ateacute uma sala do 1ordm BPE fora do preacutedio do DOI-
CODIRJ jaacute que estava com ferimentos que natildeo permitiam que andasse Laacute Ana foi
supostamente examinada pelo referido meacutedico e dele escutou o diagnoacutestico de que natildeo
poderia ter filhos pois tinha o uacutetero infantil e retrovertido ou seja atrofiado e virado
para a parte posterior do corpo No entanto apoacutes ser posta em liberdade quatro anos
depois Ana descobriu que aquela afirmaccedilatildeo natildeo era verdadeira pois poderia
engravidar tendo tido posteriormente dois filhos
Eu sei que tem o paacutetio porque uma vez me carregaram para laacute um soldado
foi e me carregou Eu natildeo estava andando eu estava toda ferida entatildeo ele
me carregou pelo paacutetio ateacute uma espeacutecie de consultoacuterio do Amilcar Lobo []
eu estava toda ferida na vagina devido aos choques eleacutetricos e porque
tinham me enfiado o cassetete [] Aiacute ele me examinou e disse assim ldquo-
Vocecirc tem o uacutetero infantil e retrovertido vocecirc nunca vai poder ter filhosrdquo
Assim Eu tinha 21 anos e passei quase quatro anos achando que eu nunca ia
poder ter filhos O cara sabia o que estava fazendo (Miranda 17 nov 2004)
50
Em Os Funcionaacuterios tomo II do Projeto Brasil Nunca Mais se encontra a relaccedilatildeo alfabeacutetica das
pessoas envolvidas com torturas (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985 1-60)
180
Esse tipo de tortura psicoloacutegica destacada no trecho acima coincide com o tipo de
cotidiano vivido pelos presos do DOI-CODIRJ No entanto encaixa-se tambeacutem com o
estilo enfaacutetico que a narrativa de Ana atribuiacutea em 2004 aos danos que a prisatildeo poliacutetica
lhe causara A recente composiccedilatildeo de seu memorial sobre os sofrimentos vividos
durante a ditadura militar enviado agrave Comissatildeo Especial da Secretaria de Direitos
Humanos do Estado do Rio de Janeiro pautava-se no objetivo de receber o valor
maacuteximo da reparaccedilatildeo financeira oferecida pelo Estado No momento da entrevista era
esse o presente que Ana vivia e era atraveacutes dele que inconscientemente lia o passado
Logo sua narrativa apesar de aparentemente coerente sofria influecircncias que as
aspiraccedilotildees e interpretaccedilotildees do presente involuntariamente impuseram a suas memoacuterias
Poreacutem o fato do meacutedico Amilcar Lobo ter lhe dado um diagnoacutestico falso de
esterilidade encontra explicaccedilatildeo natildeo soacute em sua narrativa construiacuteda a partir da
interpretaccedilatildeo de que a notiacutecia teria sido motivada apenas pelo grande dano psicoloacutegico
que isso causaria a uma jovem de 21 anos mas tambeacutem no papel que o meacutedico
desempenhava dentro daquela instituiccedilatildeo Afinal aleacutem de funcionar como uma tortura
psicoloacutegica o diagnoacutestico dado por Amilcar Lobo foi provavelmente uma forma de
tentar resguardar o DOI-CODIRJ de possiacuteveis acusaccedilotildees posteriores de tecirc-la tornado
infeacutertil tantos eram os ferimentos que Ana havia sofrido em seus oacutergatildeos reprodutores
Afinal conforme constatado a principal funccedilatildeo do meacutedico ali era auxiliar as torturas e
cuidar dos ferimentos dos presos na tentativa de proteger a instituiccedilatildeo de acusaccedilotildees que
poderiam trazer preocupaccedilotildees futuras por exemplo a responsabilidade por graves
ferimentos e mortes
Isso no entanto natildeo quer dizer que as torturas do DOI-CODIRJ natildeo tenham
ocasionado mortes Sabe-se que muitos prisioneiros poliacuteticos depois de laacute entrarem
foram dados como desparecidos Quando esses presos eram mortos dentro de
181
instituiccedilotildees como o DOI-CODIRJ os militares envolvidos ou desapareciam com os
corpos pois assim natildeo se tinha como provar o que havia acontecido e por conseguinte
natildeo existiriam culpados ou quando a prisatildeo tivesse sido noticiada por algum meio de
comunicaccedilatildeo o corpo aparecia sob uma justificativa forjada que excluiacutesse a culpa da
instituiccedilatildeo prisional Na maior parte das vezes dizia-se que o prisioneiro havia
cometido suiciacutedio na prisatildeo ou sido baleado em tiroteio o que se supunha estar
relacionado a uma anterior tentativa sua de fuga
Nas entrevistas aqui trabalhadas alguns depoentes relataram ter tido contato
dentro do DOI-CODIRJ com pessoas que depois foram dadas como mortas sob tais
justificativas Dulce por exemplo afirma ter sido acareada durante uma sessatildeo de
tortura com Eduardo Collen Leite o Bacuri morto segundo a Comissatildeo Especial sobre
Mortos e Desaparecidos (2007 139) no Forte dos Andradas na cidade do Guarujaacute
(SP) trecircs dias apoacutes militares implantarem na imprensa a falsa notiacutecia de sua fuga
atribuindo sua morte a um suposto tiroteio na rua entre ele e militares
Quando eu estava laacute eu fui acareada com o Bacuri Eu jaacute encontrei com ele
assim muito mal ele estava respirando mal foi uma cena assim muito barra
pesada e eu sei que depois ele morreu eu natildeo sei se ele morreu laacute mas logo
depois que eu estive com ele ele morreu Ele eacute um desses mortos do
processo Ele morreu fruto de tortura ele foi brutalmente torturado ele jaacute
chegou na PE muito torturado muito quebrado e teve comentaacuterios de
torturadores que diziam ter feito um estrago muito grande nele e natildeo tinham
conseguido que ele falasse as coisas que eles queriam que ele falasse
(Pandolfi 5 fev 2003)
Fernando teve seu irmatildeo Eiraldo de Palha Freire baleado e junto com ele preso
pelos militares da Aeronaacuteutica no aeroporto do Galeatildeo no Rio de Janeiro Mesmo
gravemente ferido Eiraldo foi segundo Fernando e a Comissatildeo Especial sobre Mortos
e Desaparecidos (2007 131) transferido para o DOI-CODIRJ e laacute morto sob torturas
182
Poreacutem de acordo com Fernando seu corpo foi entregue agrave famiacutelia sob a versatildeo de
suiciacutedio
Meu irmatildeo veja bem ele foi metralhado no aviatildeo mas ele estava vivo e
ainda foi parar no DOI-CODI Ele estava ferido mas chegou a levar tortura
natildeo resistiu e morreu aiacute disseram que ele se suicidou (Freire 28 jun 2004)
Hoje no entanto grande parte dos mortos e desaparecidos foi reconhecida pelo
Estado brasileiro A Comissatildeo Especial sobre Mortos e Desaparecidos Poliacuteticos
implantada pela lei 914095 encerrou em 2006 a etapa de reconhecimento e reparaccedilatildeo
financeira agraves famiacutelias reconhecendo um total de 253 mortos e desaparecidos poliacuteticos
por autoridades do Estado brasileiro entre os anos de 1961 e 1988 A partir de 2007
essa Comissatildeo passou a concentrar-se na busca e no reconhecimento de ossadas para
que muitas famiacutelias descubram o que de fato aconteceu com seus entes desaparecidos e
possa enterraacute-los conforme indicado pelo seu livro-relatoacuterio Direito agrave verdade e agrave
memoacuteria (2007)
A partir da anaacutelise aqui feita a respeito das torturas a que os presos eram
submetidos no DOI-CODIRJ em 1970 nota-se que essas eram destinadas a todos que
laacute entravam No entanto percebe-se que a intensidade das torturas no DOI-CODIRJ de
1970 variava de acordo principalmente com o tempo de prisatildeo com o tipo de
organizaccedilatildeo que o preso integrasse (se era ou natildeo adepta da luta armada) e com a
resistecircncia que ele apresentasse para conceder as informaccedilotildees que os agentes das turmas
de interrogatoacuterio preliminar buscavam
Logo constata-se que quanto mais ativa fosse a organizaccedilatildeo de luta armada a que
o prisioneiro estivesse relacionado mais ele seria submetido a torturas e quanto mais
ele resistisse a essas mais intensas elas seriam podendo inclusive acarretar sua morte
183
Afinal os prisioneiros ligados a organizaccedilotildees armadas em ampla atividade tinham mais
informaccedilotildees sobre outros militantes procurados
Diante disso como a ALN e o MR-8 eram organizaccedilotildees envolvidas em grandes
accedilotildees armadas da eacutepoca ndash tais como os sequestros dos embaixadores americano e
alematildeo e do aviatildeo da Companhia Aeacuterea Cruzeiro do Sul ocorridos em 4 de setembro de
1969 11 de junho de 1970 e 1ordm de julho de 1970 respectivamente ndash os prisioneiros que
delas faziam parte ou tinham algum tipo de relaccedilatildeo com seus militantes foram
submetidos a intensas torturas no DOI-CODIRJ Como os perfis de Dulce Fernando
Ana e Ceciacutelia se encaixavam nessas caracteriacutesticas conforme analisado no segundo
capiacutetulo a eles foi imposto no DOI-CODIRJ um cotidiano ainda mais violento do que
por exemplo a Antocircnio
Afinal em meados de 1970 quando Antocircnio de Carvalho51
foi preso e levado
para o DOI-CODIRJ o PCBR sua organizaccedilatildeo na eacutepoca apesar de adepta da luta
armada jaacute se encontrava relativamente desestruturada uma vez que suas principais
lideranccedilas jaacute haviam ldquocaiacutedordquo Dessa forma o PCBR mesmo ainda em atividade natildeo
estava envolvido em accedilotildees tatildeo organizadas e com tamanha repercussatildeo como estavam a
ALN e o MR-8 por exemplo Entatildeo Antocircnio apesar de passar pelas duas fases da
prisatildeo e natildeo ser poupado de duras torturas como ocorreu com Padre Maacuterio
provavelmente natildeo sofreu o mesmo grau de violecircncia destinado a Dulce Fernando Ana
e Ceciacutelia As informaccedilotildees que ele tinha natildeo levariam o DOI-CODIRJ aos envolvidos
com as accedilotildees armadas em destaque na eacutepoca
51
Para mais informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria poliacutetica que acarretou a prisatildeo de Antocircnio Leite de Carvalho
voltar ao segundo capiacutetulo
184
32 O dia-a-dia no caacutercere
O dia-a-dia vivido pelos prisioneiros poliacuteticos no DOI-CODIRJ natildeo era o mesmo
que o vivido em um presiacutedio comum A ameaccedila de tortura o medo dela decorrente e o
sentimento de abandono que ela causava estavam presentes a todo momento Assim
natildeo poderia ser diferente que na memoacuteria construiacuteda pelos ex-prisioneiros poliacuteticos do
DOI-CODIRJ de 1970 a tortura ocupe a maior parte das narrativas sobre o cotidiano
ali vivido
No entanto a memoacuteria dos prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ de 1970
entrevistados entre os anos de 2002 e 2004 abarca tambeacutem outros aspectos daquele dia-
a-dia A partir de seus relatos aleacutem de se tornar viaacutevel a anaacutelise sobre as refeiccedilotildees os
banhos e os passatempos durante a prisatildeo no DOI-CODIRJ se torna possiacutevel tambeacutem
perceber como a convivecircncia a cumplicidade entre os presos e ateacute algumas
demonstraccedilotildees de solidariedade dos carcereiros foram elementos importantes para que
resistissem ao violento cotidiano ali vivido
Na primeira fase da prisatildeo os presos ficavam sozinhos em pequenas celas onde
natildeo havia colchatildeo banheiro e eram constantemente levados agrave sala de tortura Este
cotidiano inicial era muito degradante fiacutesica e mentalmente natildeo soacute pelo sofrimento
acarretado pelo grande nuacutemero de torturas sofridas e pelo desconforto das celas mas
tambeacutem pela solidatildeo nelas vivenciada Afinal natildeo foi por acaso que tais celas ficaram
conhecidas como ldquosolitaacuteriasrdquo
A solidatildeo era uma caracteriacutestica que contribuiacutea fortemente para a fragilidade do
prisioneiro do DOI-CODIRJ Isto torna-se mais evidente quando percebe-se a grande
importacircncia que um raacutepido contato com outro preso representava durante a primeira
fase da prisatildeo Eacute o que pode-se apurar no seguinte trecho narrado por Fernando
185
[] uma hora eu estava encostado aqui [aponta para onde ficava uma das
ldquosolitaacuteriasrdquo no desenho que fez em um papel] no primeiro dia aiacute botaram um
cara no corredor [] era um dirigente do Partido Comunista um velho da
minha idade atualmente Ele tremia muito [] Aiacute ele disse - ldquoEstaacute frio neacute
companheirordquo aiacute eu - ldquoMuitordquo e ele disse - ldquoMas eacute mais psicoloacutegicordquo Aiacute
eu senti uma vergonha sabe Porque eu estava me sentindo tatildeo mal tatildeo para
baixo e um homem daquela idade estava firme[] Ele me deu uma forccedila
muito maior do que ele imagina [] (Freire 28 jun 2004)
Evidencia-se atraveacutes dessa narrativa como em meio ao sofrimento e agrave solidatildeo que
Fernando lembra ter vivenciado no primeiro dia de sua prisatildeo no DOI-CODIRJ um
simples diaacutelogo foi capaz de revitalizar a sua resistecircncia Esse pequeno contato foi tatildeo
importante para Fernando a ponto de ficar marcado em sua memoacuteria ateacute o momento de
sua entrevista mais de trinta anos depois
A partir disso nota-se que aquele cotidiano criava independente das pequenas
diferenccedilas ideoloacutegicas que poderiam existir uma forte identidade entre os presos As
dores decorrentes das torturas e a sensaccedilatildeo de solidatildeo que sentiam no DOI-CODIRJ
faziam com que presos que nunca tivessem se visto antes criassem rapidamente uma
forte cumplicidade e amizade Assim nos momentos em que estavam juntos
principalmente durante a segunda fase da prisatildeo eles conversavam apoiavam-se e
cuidavam uns aos outros extraindo desse conviacutevio forccedila para encararem os proacuteximos
dias de prisatildeo
Essa experiecircncia coletiva dentro do DOI-CODIRJ era valiosa ateacute porque nem
mesmo quando os presos jaacute estavam na segunda fase da prisatildeo ela era garantida Afinal
apesar do prisioneiro poliacutetico do DOI-CODIRJ durante a segunda fase ficar em celas
com estrutura para mais de um preso ele nem sempre tinha companhia Conforme jaacute
analisado anteriormente no DOI-CODIRJ existia uma grande rotatividade e isso
186
implicava em que em determinados momentos as celas coletivas estivessem cheias e
em outros habitadas por dois ou ateacute mesmo um uacutenico prisioneiro
Logo por ser a primeira fase um periacuteodo de isolamento e a segunda devido agrave alta
rotatividade do DOI-CODIRJ uma fase em que ora se estava sozinho e ora tinha-se
companheiro(s) de cela a convivecircncia era entatildeo muito valorizada pelos presos como se
pode perceber na ecircnfase que ela recebe nas memoacuterias dos entrevistados
[] quando estaacutevamos juntas era bem melhor porque existia uma identidade
muito forte entre a gente Eram pessoas que nunca tinham se conhecido de
um modo geral mas aquele oacutedio contra a ditadura o fato de todas terem sido
torturadas aquilo dava margem a uma liga muito grande entre a gente
Entatildeo quando noacutes estaacutevamos juntas a gente cantava a gente conversava a
gente contava histoacuterias de vida o tempo passava e a gente tinha uma
intimidade Conseguimos construir uma coisa muito soacutelida mesmo com
poucas horas e poucos dias mesmo nesse esquema que eu estou te falando
quer dizer as pessoas natildeo ficavam laacute fixas Teve uma vez que uma moccedila
ficou laacute trecircs dias outra que ficou quatro outra que ficou cinco Mas era
uma coisa muito boa chegar algueacutem mesmo vocecirc vendo a pessoa chegar
toda esbagaccedilada porque os que entravam naquela cela jaacute tinham passado laacute
embaixo [] (Pandolfi 5 fev 2003)
[] a cela coletiva na verdade acabava se constituindo num foacuterum de
debates Sempre discutiacuteamos poliacutetica porque eram companheiros de
diversas organizaccedilotildees natildeo era uma uacutenica organizaccedilatildeo ou um uacutenico partido
que estava ali preso mas sim vaacuterios e havia aquela troca de experiecircncias
cada um contava a sua histoacuteria e assim ia passando o dia-a-dia sempre
havia novidades Assim a gente acabava quebrando um pouco o isolamento
[] (Carvalho 8 fev 2003)
Essa convivecircncia no caacutercere fomentou portanto a solidariedade e instituiu um
forte sentimento de coletividade entre os presos Afinal a luta pela sobrevivecircncia e o
pavor de voltar a ser torturado eram comuns a todos eles que procuravam na uniatildeo criar
forccedilas para suportar aquele pesado cotidiano A troca de apoio servia entatildeo como uma
187
espeacutecie de sustentaccedilatildeo como uma garantia de sobrevida Ao preocuparem-se e
ajudarem-se os presos injetavam-se um acircnimo importante para conseguirem resistir agrave
situaccedilatildeo de desespero e solidatildeo que ali era vivida e diante dessa realidade acabavam
formando um grupo coeso cuja principal caracteriacutestica era justamente esse apoio
Constituiacuteam portanto uma identidade conjunta atraveacutes da qual se viam sob os mesmos
temores e anseios aleacutem de perceberem essa parceria como uma extensatildeo da resistecircncia
agrave ditadura que vinham praticando desde antes de serem presos
Ana Dulce e Ceciacutelia memoacuterias relacionadas
Ana e Dulce e depois Dulce e Ceciacutelia foram companheiras de cela durante parte
da segunda fase de suas prisotildees no DOI-CODIRJ de 1970 Suas narrativas sobre a
convivecircncia que laacute tiveram servem aqui para analisar tanto as relaccedilotildees entre suas
memoacuterias quanto alguns aspectos do cotidiano dessa instituiccedilatildeo
Conforme analisado no segundo capiacutetulo Ana chegou ao DOI-CODIRJ no final
de julho de 1970 Logo depois em 14 de agosto do mesmo ano Dulce foi presa e para
laacute tambeacutem levada Como Ana afirma ter permanecido no DOI-CODIRJ por cerca de
um mecircs constata-se que no final de agosto quando ela jaacute estava em vias de ser
transferida colocaram Dulce em sua cela no segundo andar Dulce acabava de vir da
primeira fase de sua prisatildeo que por ter lhe causado graves consequecircncias fiacutesicas tinha
sido mais curta Nesse momento de extrema fragilidade em que Dulce se encontrava jaacute
que vinha de intensas sessotildees de tortura e de uma das ldquosolitaacuteriasrdquo do andar de baixo
Ana ajudou-a a cuidar de seus ferimentos e a tomar banho
Esse contato que teve com Ana apesar de curto jaacute que dias depois Ana foi
transferida para o DOI-CODISP parece ter sido muito importante para Dulce Afinal
apesar dela ter convivido com outras presas durante os quase trecircs meses em que ficou
188
no DOI-CODIRJ Ana foi a uacutenica companheira de cela que Dulce citou pelo nome
durante a entrevista
[] logo que eu cheguei fui para a solitaacuteria era torturada e ia para a solitaacuteria
era torturada e ia para a solitaacuteria quando eu comecei a passar muito mal
depois de um dia dois dias eles me levaram para outra cela maior onde
estava Ana Bursztyn que me deu banho Logo depois ela saiu da cela e eu
fiquei sozinha [] (Pandolfi 5 fev 2003)
A justificativa para a presenccedila de Ana ter ficado marcada na memoacuteria de Dulce
possivelmente eacute o fato de naquele momento aleacutem de estar extremamente machucada
Dulce natildeo ter ainda dividido cela com mais ningueacutem Estava ateacute entatildeo imersa em uma
rotina de solidatildeo e tortura que caracterizava a primeira fase da prisatildeo no DOI-
CODIRJ A ajuda e o conviacutevio com Ana portanto representaram para Dulce um
primeiro contato com algueacutem em quem podia confiar talvez uma primeira surpresa boa
no cotidiano que vinha vivendo no DOI-CODIRJ Jaacute para Ana que estava haacute mais
tempo presa Dulce provavelmente natildeo tinha sido a uacutenica a contar com sua ajuda logo
natildeo se destacava entre suas memoacuterias sobre o cotidiano ali vivido
Comparando as datas das prisotildees de Ana Dulce e Ceciacutelia percebe-se que apoacutes
Ana ter sido transferida Dulce ficou nessa cela grande chamada de ldquocoletivo das
mulheresrdquo enquanto Ceciacutelia entrava no DOI-CODIRJ Ceciacutelia passou pela fase das
ldquosolitaacuteriasrdquo e depois foi levada ateacute uma cela tambeacutem no segundo andar ao lado da de
Dulce onde esteve em companhia de uma moccedila Um tempo depois foi transferida para
o ldquocoletivo das mulheresrdquo onde estava Dulce com quem conviveu grande parte do
tempo
[] fiquei nessa cela [apontando para o desenho que havia feito mostra a
cela do segundo andar que ficava ao lado do ldquocoletivo das mulheresrdquo]
189
depois fui transferida para uma cela maior onde tinha vaacuterias presas poliacuteticas
inclusive uma pessoa que ficou grande parte do tempo comigo a Dulce
Grande parte do tempo eu fiquei com ela nessa cela era o lsquocoletivo das
mulheresrsquo [] (Coimbra 30 nov 2004)
Apesar de natildeo ser destacada entre as memoacuterias de Dulce Ceciacutelia durante sua
narrativa parece atribuir um papel importante ao conviacutevio que elas tiveram Afinal o
tempo que passou com Dulce no DOI-CODIRJ trouxe-lhe um dado a mais sobre as
aulas de tortura a novos oficiais que ali estavam ocorrendo jaacute que enquanto dividia cela
com Ceciacutelia Dulce serviu de cobaia para tais ensinamentos Assim como Ceciacutelia era
vice-presidente do GTNMRJ no momento de sua entrevista e por conseguinte tinha
como caracteriacutestica enfatizar em sua narrativa os detalhes sobre as torturas cometidas
pelos agentes do DOI-CODIRJ a fim de denunciaacute-las se justifica que Dulce tenha
papel marcante entre suas memoacuterias Esse destaque que a convivecircncia com Dulce
assumiu para Ceciacutelia pode ser conferido no trecho abaixo
[] a Dulce foi chamada para uma tortura de tarde [] a gente comeccedilou a
ouvir os gritos de Dulce e jaacute tinha passado todo o periacuteodo porque eles
torturam logo no iniacutecio para pegar informaccedilatildeo Aiacute eu digo ldquo- Soacute se
algueacutem caiu algueacutem foi preso e Dulce estaacute sendo acareadardquo Daqui a pouco
a Dulce volta para a cela com um soldado toda ferrada e aiacute ela ainda ia
voltar O cara disse ldquo- Oh eacute soacute para ela se lavarrdquo Entatildeo eu entrei no
chuveiro com ela e eu dizia ldquo- Dulce o que estaacute havendordquo E ela ldquo- Eu natildeo
estou entendendo o que estaacute acontecendo tem um bando de homem a minha
volta ningueacutem me faz pergunta nenhuma e estatildeo me torturando estatildeo me
botando no pau-de-arara estatildeo me fazendo afogamento estatildeo me dando
choque eleacutetrico eu natildeo estou entendendordquo E eu falei ldquo- Dulce isso eacute aula
para novos torturadoresrdquo Porque eu jaacute tinha lido num dos panfletos da UNE
sobre os meacutetodos de tortura que estavam sendo utilizados no DOI-CODI
aleacutem do jacareacute que a gente viu e que citavam tinha tambeacutem a aula a novos
torturadores ou seja eles pegavam um preso que tinha tido maior resistecircncia
e botavam laacute como cobaia para ensinar aos novos torturadores todas as
190
teacutecnicas E foi isso que fizeram com Dulce Aiacute eu falei ldquo- Dulce isso eacute aula
para novos torturadores eu li essa porrardquo [] (Coimbra 30 nov 2004)
A partir disso fica claro que para Ceciacutelia a constataccedilatildeo da existecircncia de aulas de
torturas no DOI-CODIRJ utilizando presos poliacuteticos teve uma destacada importacircncia
Logo o seu conviacutevio com Dulce durante o periacuteodo em que ela foi viacutetima desses
ensinamentos tambeacutem teve
Aleacutem disso Ceciacutelia durante sua entrevista perguntou quem eu jaacute havia
entrevistado Assim ao saber sobre a entrevista de Dulce sentiu-se motivada a falar
sobre as experiecircncias que com ela tinha compartilhado durante a prisatildeo no DOI-
CODIRJ Dessa forma alguns outros detalhes sobre essa convivecircncia contidos na
memoacuteria de Ceciacutelia foram naquele momento reconstruiacutedos e narrados
Um deles em especial contribui para a anaacutelise sobre o cotidiano do DOI-
CODIRJ Diz respeito agrave relaccedilatildeo travada com alguns carcereiros ou seja soldados do 1ordm
BPE que integravam as turmas auxiliares Afinal a partir do relato de Ceciacutelia Coimbra
percebe-se que ela e Dulce puderam ir ateacute as celas onde estavam os seus companheiros
que na eacutepoca tambeacutem se encontravam aprisionados no DOI-CODIRJ graccedilas agrave ajuda
de um dos responsaacuteveis pela vigia daquela noite
Teve uma noite tinha um soldadinho que a gente natildeo lembra o nome a
gente soacute se lembra dos lsquofilhos da putarsquo a gente devia lembrar dos caras que
foram legais com a gente Esse cara por exemplo ele soube que o marido de
Dulce estava preso o Alexandre e que o Novaes meu marido estava preso
Aiacute como ele ia ficar a noite toda de guarda ele mandou os soldadinhos
descerem e permitiu que Dulce fosse agrave cela de Alexandre e eu agrave de Novaes
Esse cara natildeo saiu da minha cabeccedila [] Esse cara a gente conversando com
ele ele soube que o Novaes estava na cela do lado e que o Alexandre estava
numa outra cela ali perto e ele deixou Dulce foi para a cela de Alexandre e
eu para a de Novaes Assim rapidinho neacute Demos a matildeo um beijo assim
[beija a proacutepria matildeo para demonstrar] O cara se expocircs mesmo neacute E tinha
191
outros que entregavam neacute Entregavam os bilhetes Era um vendaval de
bilhetes durante a madrugada Os caras se expunham mesmo entendeu
Tinha coisas bonitas ali apesar daquele clima de terror tinha pessoas assim
solidaacuterias E esses nomes a gente natildeo lembra neacute Devia lembrar []
(Coimbra 30 nov 2004)
Conforme analisado no primeiro capiacutetulo tais carcereiros que integravam as
turmas auxiliares do DOI-CODIRJ natildeo eram oficiais de informaccedilotildees treinados
especialmente para trabalhar junto agrave repressatildeo poliacutetica eram soldados que em 1970
serviam ao quartel do 1ordm BPE52
Logo eram passiacuteveis de sentir solidariedade jaacute que
muitos deles natildeo estavam servindo ao DOI-CODIRJ por algum tipo de vocaccedilatildeo
estavam ali somente para cumprir com o serviccedilo militar do quartel Afinal apesar de
haver entre eles alguns que se identificassem com a funccedilatildeo e ateacute almejassem tornar-se
agentes de informaccedilotildees os integrantes dessas turmas auxiliares natildeo trabalhavam nos
interrogatoacuterios dos presos e consequentemente natildeo estavam diretamente relacionados
com as torturas Portanto pode-se dizer que no DOI-COIRJ existia compaixatildeo entre
soldados e prisioneiros
A partir disso evidencia-se como o indiviacuteduo tem um papel primordial para essa
anaacutelise Afinal ao considerar sua memoacuteria como fonte para a histoacuteria torna-se possiacutevel
perceber aqui algumas de suas idiossincrasias ou seja peculiaridades comportamentais
capazes de interferir na percepccedilatildeo sobre o cotidiano vivido no DOI-CODIRJ de 1970
Afinal a ajuda que o soldado deu a Dulce e Ceciacutelia eacute um exemplo tiacutepico de como as
peculiaridades individuais satildeo capazes de atribuir contrastes e inconstacircncias agrave
interpretaccedilatildeo de uma realidade do passado Desse modo entende-se perfeitamente o
porquecirc de Marshall Sahlins afirmar em Histoacuteria e Cultura (2006) que os indiviacuteduos
52
Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar ver o Anexo II
192
representam um feixe uacutenico resultado de uma ligaccedilatildeo peculiar entre infinitos traccedilos
culturais e sociais que natildeo conseguem ser captados por anaacutelises generalizantes
Uma vez que a partir de accedilotildees como a desse soldado pode-se afirmar que o
cotidiano prisional do DOI-COIRJ de 1970 natildeo era formado unicamente pela repressatildeo
e pela violecircncia dos militares que ali representavam o Estado como uma generalizaccedilatildeo
ou uma reduccedilatildeo de varaacuteveis poderia fazer crer Havia tambeacutem compaixatildeo ateacute mesmo
entre lados aparentemente opostos
As formas de lidar com o tempo
Para sobreviver ao cotidiano do DOI-CODIRJ natildeo bastava ser resistente
fisicamente tambeacutem era necessaacuterio manter a mente em equiliacutebrio Essa preocupaccedilatildeo
acompanhava o prisioneiro em todas as fases da prisatildeo mas principalmente quando ele
estava sozinho Afinal a solidatildeo trazia a sensaccedilatildeo de que o tempo natildeo passava e em
meio ao violento cotidiano a que era submetido o preso do DOI-CODIRJ percebia
mais facilmente sinais que lhe causavam medo e desespero
Ceciacutelia Coimbra e Dulce Pandolfi ressaltam que mesmo quando estavam em
celas coletivas com a companhia de outras presas percebiam muitos desses sinais
Ficavam em pacircnico pois na maior parte das vezes significavam que seriam levadas
novamente agrave ldquosala roxardquo Quando sozinhas a sensaccedilatildeo de pavor por natildeo ser
compartilhada provavelmente era ainda mais intensa
[] a gente ficou tatildeo traumatizada com o barulho de chave que quando a
gente ouvia a gente dizia ldquo- Eles vecircm para caacute vecircm pegar alguma de noacutesrdquo
Era uma loucura era um clima de terror [] (Coimbra 30 nov 2004)
[] toda vez que um soldado abria a cela trazia o capuz Era ateacute uma cena
muito dramaacutetica porque todo mundo comeccedilava a tremer de medo porque se
193
sabia que se o capuz estava ali era porque algueacutem ia descer algueacutem ia
circular e descer normalmente significava ser torturada Entatildeo era assim
uma coisa bem dramaacutetica bem traumaacutetica tambeacutem porque quando abriam a
cela e retiravam o capuz a gente pensava ldquo- pronto algueacutem vai agora pro
caceterdquo (Pandolfi 5 fev 2003)
Para manterem suas mentes satildes os prisioneiros do DOI-CODIRJ quando
sozinhos utilizavam alguns artifiacutecios Dulce em sua narrativa relata ter ficado algum
tempo sozinha em uma cela coletiva onde se ocupava em frear a impressatildeo de
vagarosidade do tempo e os maus pensamentos de diversas maneiras tais como
[] eu lembro de duas coisas que eu fazia como exerciacutecio para passar o
tempo Os colchotildees que eram horriacuteveis eram colchotildees de crina eu tirava
aquelas palhas de dentro do colchatildeo e ficava fazendo tranccedilas fazia vaacuterias
tranccedilas e contava uma tranccedila duas tranccedilas e ia montando uma na outra
Fazia filas de tranccedilas depois eu desmanchava tudo eu lembro que eu ateacute
tinha medo ldquo- Se esses caras descobrirem isso vatildeo mandar costurar o
colchatildeordquo Depois eu tirava tudo e guardava de novo laacute dentro do colchatildeo No
dia seguinte eu comeccedilava outra vez Eu dizia ldquo- eu natildeo posso enlouquecer
entatildeo eu tenho que ocupar a minha cabeccedila com alguma coisardquo Porque eu
natildeo tinha nada nada nada para fazer Outra atividade que eu fazia tambeacutem
Como [] o chatildeo da cela era como se fosse de umas lajotas de uns azulejos
sei laacute o quecirc eu contava aqueles quadrados todos multiplicava fazia
milhares de contas Fazia um jogo no chatildeo do quarto contava para frente
para traacutes multiplicava e naquilo ali eu ficava horas naquelas contas
matemaacuteticas naquelas multiplicaccedilotildees naquelas somas naqueles ladrilhos
[] (Pandolfi 5 fev 2003)
A execuccedilatildeo de tais meacutetodos certamente contribuiacutea para aumentar a possibilidade
de sobrevivecircncia e sanidade do prisioneiro do DOI-CODIRJ Poreacutem o preso dependia
de sua capacidade e habilidade para usar recursos que o beneficiassem e que ajudassem
a se opor aos mecanismos desetruturadores e despersonalizadores sobre ele empregados
Nessa situaccedilatildeo assim como Elizabeth Ferreira na obra Mulheres Militacircncia e Memoacuteria
194
(1996 65) acredita-se que o sentimento de auto-estima gerado nos presos poliacuteticos pelo
seu ideal poliacutetico e social eacute um elemento crucial de resistecircncia Atraveacutes desse
sentimento normalmente tais presos costumam sustentar a esperanccedila na mudanccedila o
que lhes gera forccedila e ateacute mesmo uma criatividade para suportar o sofrimento maior que
a de presos comuns
As roupas e as refeiccedilotildees
Como o DOI-CODIRJ de 1970 natildeo era um presiacutedio havia acabado de ser
montado dentro de um preacutedio do quartel do 1ordm BPE para abrigar temporariamente os
presos poliacuteticos que pudessem contribuir com suas investigaccedilotildees laacute natildeo existiam
refeitoacuterios visitas banho de sol ou mesmo uniformes Aleacutem da falta de uma estrutura
que propiciasse uma rotina normal de presiacutedio esse diferencial era importante para o
procedimento investigativo do DOI-CODIRJ Afinal havia ali a necessidade do preso
ficar incomunicaacutevel jaacute que quanto maior seu isolamento maior seria sua fragilidade e
esta se relacionava diretamente com sua capacidade em conceder informaccedilotildees No mais
esse isolamento tambeacutem estava relacionado com a preocupaccedilatildeo em proteger a
instituiccedilatildeo de acusaccedilotildees de maus tratos uma vez que caso os ferimentos dos presos
fossem notados poderiam ser vinculados a torturas e consequentemente denunciados
Dessa forma os prisioneiros do DOI-CODIRJ natildeo podiam nem mesmo tomar sol pois
poderiam ser vistos por pessoas dos preacutedios vizinhos e funcionaacuterios da faacutebrica da
Brahma localizada atraacutes do paacutetio do 1ordm BPE
As refeiccedilotildees eram portanto servidas nas proacuteprias celas pelos soldados da turma
auxiliar de plantatildeo Para colocarem cada uma das quatro refeiccedilotildees a que cada preso
tinha direito esses abriam a cela de manhatilde cedo no iniacutecio e no fim da tarde e agrave noite
Segundo a narrativa dos presos no cafeacute da manhatilde costumavam trazer um patildeo com
195
pasta de amendoim e um cafeacute com leite na caneca para cada preso No almoccedilo uma
bandeja de alumiacutenio com um prato que normalmente continha repolho arroz angu e
algumas vezes um pedaccedilo de carne Durante a tarde deixavam um bule de mate com
um pedaccedilo de patildeo na cela e no fim do dia repetiam para o jantar a mesma comida do
almoccedilo
As comidas servidas em 1970 aos prisioneiros do DOI-CODIRJ satildeo mais alguns
exemplos de detalhes do cotidiano que soacute podem ser abordados por meio da memoacuteria de
quem viveu aquele passado Diante disso eacute interessante perceber aspectos que
justificam o fato dessas refeiccedilotildees terem marcado as memoacuterias dos prisioneiros a ponto
de nelas sobreviverem por cerca de trecircs deacutecadas
[] a gente ateacute brincava que eles deviam ter uma plantaccedilatildeo de repolho ali
porque era repolho todo dia repolho cru repolho assado mas na hora do
almoccedilo normalmente vinha nessa bandeja de alumiacutenio e era repolho um
pouco de arroz feijatildeo e agraves vezes um pedaccedilo de carne era uma comida bem
horrorosa [] (Pandolfi 5 fev 2003)
[] A comida era peacutessima era aquela comida do rancho parecia uma
lavagem de porco uma coisa horrorosa [] Eu fiquei com a pele toda
lsquofodidarsquo porque a uacutenica coisa que eu conseguia comer era o angu []
(Coimbra 30 nov 2004)
Portanto o conteuacutedo das refeiccedilotildees do DOI-CODIRJ aleacutem de ter ficado marcado
na memoacuteria dos prisioneiros pelo aspecto sensorial ou seja pelo gosto e apresentaccedilatildeo
ruins permaneceu tambeacutem pela relaccedilatildeo com a vaidade feminina e pelo fato de remeter a
momentos que foram compartilhados O angu marcou Ceciacutelia por ter feito mal a sua
pele jaacute que como eacute uma comida gordurosa lhe causou espinhas abalando ainda mais a
sua aparecircncia fiacutesica jaacute degrada por aquele cotidiano prisional O repolho por sua vez
deixou marcas na memoacuteria de Dulce por ser motivo de deboche entre as presas pois sua
196
presenccedila recorrente nos pratos ocasionava uma espeacutecie de piada entre elas e trazia um
pouco de descontraccedilatildeo
Outro aspecto do cotidiano do DOI-CODIRJ de 1970 tambeacutem alcanccedilado por
meio dos detalhes trazidos pelas memoacuterias de ex-prisioneiros satildeo as roupas Como natildeo
existiam uniformes institucionais na maior parte do tempo as roupas eram as mesmas
que eles vestiam no dia em que entraram no 1ordm BPE Dessa forma quando jaacute estavam
em celas coletivas os presos muitas vezes lavavam-nas e entatildeo voltavam a vestiacute-las
Depois de algum tempo afinal as famiacutelias acabavam descobrindo onde eles estavam
presos e algumas roupas eram deixadas no Palaacutecio Duque de Caxias antigo preacutedio do
Ministeacuterio do Exeacutercito no Centro da cidade do Rio de Janeiro para serem enviadas e
entregues no 1ordm BPE aos prisioneiros
No entanto ateacute isso chegar a acontecer demorava pois fazia parte da seguranccedila
institucional tentar manter num primeiro momento sigilo sobre seus presos Assim
Ceciacutelia presa em agosto de 1970 lembra que por ter sentido muito frio durante o seu
primeiro mecircs no DOI-CODIRJ ela e suas companheiras de cela costumavam
improvisar formas de protegerem os peacutes
[] a minha matildee ia ateacute o Ministeacuterio do Exeacutercito e ela dizia ldquo- Minha filha
estaacute laacute na PErdquo Aiacute quase um mecircs depois a minha matildee conseguiu mandar
roupa para mim Ateacute entatildeo minha filha era um loucura neacute A gente fedia
sabe A gente tomava banho de chuveiro e botava a mesma roupa a gente
lavava a roupa e era mecircs de agosto e ainda estava frio Era um frio que a
gente sentia que a gente enrolava jornal nos peacutes porque natildeo tinha nenhuma
coisa nada Era no colchatildeo puro que a gente dormia (Coimbra 30 nov
2004)
Quando as famiacutelias conseguiam descobrir onde estavam enviavam aleacutem de
roupas alguns mantimentos como frutas por exemplo Essas vinham muitas vezes
197
embrulhadas em jornais velhos que serviam para alguns como proteccedilatildeo para o corpo e
para outros como distraccedilatildeo conforme pode-se constatar na narrativa de Antocircnio ao
lembrar que ele e seus companheiros de cela passavam o tempo lendo as notiacutecias velhas
contidas em tais jornais
Eu me lembro tambeacutem que quando alguns presos recebiam frutas essas
coisas embrulhadas em papel jornal jornal velho a gente lia o jornal e
ficaacutevamos um bom tempo lendo aqueles jornais com datas de um mecircs trecircs
meses atraacutes mas era sempre bom para a cabeccedila da gente ficar lendo as
notiacutecias mesmo velhas [] (Carvalho 8 fev 2003)
Como jaacute aqui ressaltado a cumplicidade que existia entre os presos do DOI-
CODIRJ ajudava a construir mecanismos que os protegiam das mais diversas
dificuldades Segundo Dulce para amenizar a escassez de roupa a que eram submetidas
num primeiro momento dentro do DOI-CODIRJ as presas do ldquocoletivo das mulheresrdquo
estabeleceram uma espeacutecie de acordo Atraveacutes dele ficou determinado que quem de laacute
saiacutesse deixaria algumas peccedilas para quem ainda ficasse tinha uma espeacutecie de rotina
entre as mulheres que quem saiacutea deixava alguma roupa laacute (Pandolfi 5 fev 2003)
Assim atraveacutes desse tipo de cumplicidade elas ajudavam a diminuir o sofrimento
diaacuterio umas das outras uma vez que as peccedilas deixadas na cela possibilitavam que as
presas conseguissem manter a higiene e amenizar a sensaccedilatildeo do frio
Percebe-se portanto que de fato o dia-a-dia do DOI-CODIRJ de 1970 era
atiacutepico pois este natildeo era um presiacutedio e sim um oacutergatildeo de repressatildeo poliacutetica Assim uma
das poucas semelhanccedilas com a rotina de um presiacutedio comum era basicamente a privaccedilatildeo
da liberdade Poreacutem apesar de ofuscado pela tortura e pelo pavor ali existia um
cotidiano que abarcava outros aspectos muito interessantes Afinal estes satildeo capazes de
198
muito esclarecer sobre o funcionamento praacutetico desse importante oacutergatildeo de repressatildeo da
ditadura militar brasileira e tambeacutem sobre diversos tipos de reaccedilotildees e relaccedilotildees humanas
do passado e do presente
199
Conclusatildeo
Quando o muro separa uma ponte une
Se a vinganccedila encara o remorso pune
Vocecirc vem me agarra algueacutem vem me solta
Vocecirc vai na marra ela um dia volta
E se a forccedila eacute tua ela um dia eacute nossa
Olha o muro olha a ponte
Olha o dia de ontem chegando
Que medo vocecirc tem de noacutes
Olha aiacute
Vocecirc corta um verso eu escrevo outro
Vocecirc me prende vivo eu escapo morto
De repente olha eu de novo
Perturbando a paz exigindo o troco
Vamos por aiacute eu e meu cachorro
Olha um verso olha o outro
Olha o velho olha o moccedilo chegando
Que medo vocecirc tem de noacutes
Olha aiacute
O muro caiu olha a ponte
Da liberdade guardiatilde
O braccedilo do Cristo horizonte
Abraccedila o dia de amanhatilde
Olha aiacute
Mauriacutecio Tapajoacutes amp Paulo Ceacutesar Pinheiro
(Pesadelo 1972)
200
Diante do exposto ao longo desta dissertaccedilatildeo conclui-se que a formulaccedilatildeo da
Doutrina de Seguranccedila Nacional feita pela ESG em colaboraccedilatildeo com o IPES e o IBAD
cerca de vinte anos antes do surgimento dos DOI-CODI tinha por base uma teoria de
guerra que nortearia a atuaccedilatildeo repressora desses oacutergatildeos Essa teoria interpretava os
movimentos de oposiccedilatildeo que vinham crescendo desde o iniacutecio dos anos 1960 como uma
espeacutecie de guerra revolucionaacuteria Todos os cidadatildeos brasileiros passavam entatildeo a ser
encarados como suspeitos e foi esta percepccedilatildeo que estimulou o governo militar a
planejar a Seguranccedila Nacional e por conseguinte criar um centralizado e articulado
aparato de informaccedilotildees internas junto a um eficiente oacutergatildeo repressivo de controle
armado os DOI-CODI
Aleacutem disso constatou-se que a consolidaccedilatildeo dos DOI-CODI por todas as Regiotildees
Militares do paiacutes substanciou-se tambeacutem atraveacutes da alta legalidade autoritaacuteria e das
medidas tomadas pelo governo para conter as cizacircnias militares Afinal o governo
ditatorial brasileiro na medida em que arbitrou leis a fim de legalizar o seu poder
poliacutetico e suprimir direitos antes garantidos agrave populaccedilatildeo construiu uma sustentaccedilatildeo
juriacutedica necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um aparato de seguranccedila cada vez mais forte e
centralizado Grande parte dessas leis autoritaacuterias foi usada como artifiacutecio para acalmar
os acircnimos na caserna responsaacuteveis por importantes conflitos internos que ameaccedilavam a
uniatildeo militar as chamadas cizacircnias militares As leis arbitraacuterias serviam entatildeo tanto
para conter a oposiccedilatildeo poliacutetica quanto para ceder agraves reivindicaccedilotildees por poder vindas da
caserna Completava-se dessa forma um cenaacuterio legal capaz de suportar um organismo
de repressatildeo onde os militares de meacutedias e baixas patentes trabalhariam com autonomia
uma das bases para a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
Diante disso viu-se tambeacutem que natildeo foi agrave toa que a estrutura e o funcionamento
do SISSEGIN e dos seus oacutergatildeos foram instituiacutedos e regulamentados por meio de
201
decretos sigilosos o que incluiu a experiecircncia da Oban criada em Satildeo Paulo em
meados de 1969 e no ano seguinte a institucionalizaccedilatildeo dos DOI-CODI por todo o
paiacutes Afinal a justificativa para esse sigilo estava justamente na maior mobilidade e
autonomia de accedilatildeo que traria para a atuaccedilatildeo repressora desses organismos pois em
segredo podiam agir sem grandes limitaccedilotildees natildeo esbarrando em questotildees externas agraves
decisotildees militares tal como o respeito aos direitos humanos
Os DOI-CODI destacavam-se principalmente pela independecircncia financeira e pela
centralizaccedilatildeo hieraacuterquica que os constituiacuteam essenciais para a alta eficiecircncia de suas
investigaccedilotildees e accedilotildees Tais atributos evitavam que suas operaccedilotildees fossem suscetiacuteveis agrave
duplicidade de tarefas a competiccedilotildees e a conflitos de interesses maximizando os seus
resultados Eram entatildeo organismos de excelecircncia a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo
Entretanto essa sofisticaccedilatildeo tambeacutem vinha do distanciamento mantido entre os
militares do governo e os que agiam nesses oacutergatildeos jaacute que a ditadura ao mesmo tempo
em que sancionava a tortura nessa instituiccedilatildeo estrategicamente negava a sua existecircncia
perante a sociedade isentando governo do paiacutes de qualquer ligaccedilatildeo com ela Em
complemento a essa ideia o sistema funcional dos DOI responsaacuteveis por accedilotildees que
englobavam as prisotildees e os interrogatoacuterios dos presos poliacuteticos apresentava-se
complexo e informal Dessa forma as brechas para que a aparente falta de controle
fosse exercida eram amplas a fim de que meacutetodos violentos ilegais tivessem ali uma
legitimidade excepcional Justifica-se assim como a versatildeo oficial dos militares ainda
possa ser a de que a tortura jamais resultou de qualquer ordem ou orientaccedilatildeo superior
Evidenciou-se poreacutem a incoerecircncia desta versatildeo jaacute que ficou claro que em todos
os organismos militares nos DOI inclusive existiam uma forte hierarquia a ser
cumprida Mesmo com a estrutura complexa ali existente qualquer accedilatildeo deveria ser
remetida a um superior logo a questatildeo da responsabilidade sempre poderia ser
202
resgatada Percebeu-se que em geral apesar de velada a tortura era do conhecimento
de toda a hierarquia militar inclusive dos generais agrave frente do governo
Durante todo o trabalho a intervenccedilatildeo do presente (2002-2004) sobre as
memoacuterias do passado (1970) foi conferida nas narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos
entrevistados Percebeu-se que o contexto poliacutetico e social vivido no presente e o
momento da vida pessoal de cada um tiveram uma contribuiccedilatildeo importante na forma
como os ex-presos construiacuteram suas memoacuterias Aleacutem disso a forma como a rede de
entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que as entrevistas foram realizadas
tambeacutem concorreram para essa intervenccedilatildeo no relato que fizeram sobre o passado
Enfim um dos principais elementos para a anaacutelise criacutetica exercida aqui sobre essas
memoacuterias foi sem duacutevida o reconhecimento dessa influecircncia do presente sobre o
passado
A trajetoacuteria prisional dos entrevistados os grupos oposicionistas que integravam
as accedilotildees de que participaram o momento da prisatildeo o tempo que permaneceram presos
e as funccedilotildees que exerciam no presente foram aspectos aqui ressaltados por mostrarem
um pouco da histoacuteria de vida e por meio desta a personalidade ou seja as
idiossincrasias de cada um deles Dessa forma foi possiacutevel aproximar-se do aspecto
individual de suas memoacuterias uacutenico a cada ser entendendo um pouco mais as bases de
suas construccedilotildees
Tornou-se assim viaacutevel analisar essas memoacuterias e colocaacute-las em diaacutelogo com o
conteuacutedo levantado a partir da anaacutelise historiograacutefica e da monografia sobre o DOI
escrita pelo coronel Pereira em 1978 possibilitando uma caracterizaccedilatildeo do cotidiano
prisional vivido pelos presos do DOI-CODIRJ em 1970 O trabalho organizacional dos
DOI-CODIRJ foi visto portanto de forma praacutetica As funccedilotildees de cada setor e seccedilatildeo
teorizadas principalmente por meio da monografia do coronel foram analisadas a partir
203
do acircngulo dos prisioneiros o que viabilizou a percepccedilatildeo de detalhes que constituiacuteam a
rotina daquela instituiccedilatildeo
Ficou claro que a violecircncia era a principal forma de extraccedilatildeo de informaccedilotildees e o
elemento-chave para a eficiecircncia conferida pela instituiccedilatildeo com relaccedilatildeo ao combate aos
opositores poliacuteticos da eacutepoca A tortura e o medo dela ocupavam um espaccedilo
significativo no cotidiano ali impetrado aos prisioneiros uma vez que eles estavam no
DOI-CODIRJ para serem a ela submetidos de forma a fornecerem mais facilmente
informaccedilotildees que levassem os agentes dos DOI a outros suspeitos Poreacutem verificou-se
que a tortura natildeo era a uacutenica face do cotidiano do DOI-CODIRJ
Afinal este trabalho mostrou outros aspectos que constituiacuteam a rotina dos presos
dentro desse oacutergatildeo que ateacute entatildeo natildeo havia sido alcanccedilada pela historiografia Percebeu-
se aqui outros elementos que apesar de pouco destacados pelas memoacuterias dos
entrevistados muito tecircm a dizer sobre aquele cotidiano as fases prisionais as refeiccedilotildees
as roupas as formas de resistecircncia o conviacutevio ente prisioneiros e ateacute mesmo algumas
accedilotildees solidaacuterias efetuadas por soldados em benefiacutecio dos presos poliacuteticos
Constatou-se como a memoacuteria pode enriquecer a percepccedilatildeo que se tem sobre um
passado revelando faces natildeo evidenciadas em documentos oficiais e tambeacutem como eacute
importante para levar ateacute o presente um passado doloroso mas que deve ser encarado a
fim de ser perdoado e ultrapassado Uma movimentaccedilatildeo nesse sentido vem acontecendo
no Brasil com as Caravanas da Anistia e principalmente com a recente aprovaccedilatildeo da
Comissatildeo da Verdade conforme pontuado anteriormente
A atualidade dessas iniciativas inclusive estimulou esta pesquisa impulsionada
pela curiosidade sobre as memoacuterias do passado vivido nos ldquoporotildees da ditadurardquo Logo
o tema da presente dissertaccedilatildeo foi pautado pela crenccedila na necessidade de uma ampla
revelaccedilatildeo sobre o que ocorreu na eacutepoca de forma a contribuir para que a reconciliaccedilatildeo
204
do presente com o passado seja um dia alcanccedilada uma vez que defende-se aqui tal
como Paul Ricoeur (2008 507) que eacute no caminho da criacutetica histoacuterica que a memoacuteria
encontra o seu sentido de justiccedila Dessa forma tem-se o cidadatildeo como destinataacuterio do
texto histoacuterico cabendo a ele tornar a discussatildeo puacuteblica fazendo um balanccedilo entre
histoacuteria e memoacuteria a fim de que se perceba o sofrimento do outro e daqueles que
continuam a sofrer pelas matildeos do mesmo mal repressor do passado A partir disso a
reconciliaccedilatildeo entre o passado e presente se tornaraacute efetiva contribuindo para que no
futuro a democracia esteja plenamente consolidada
205
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poliacuteticas nas condiccedilotildees que menciona e daacute outras providecircncias Rio de Janeiro
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seguranccedila nacional a ordem poliacutetica e social estabelece seu processo e julgamento e daacute
outras providecircncias Brasiacutelia Ministeacuterio da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica
[acesso em 12 jan 2012] Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03decreto-
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Militar Brasiacutelia Ministeacuterio da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em 18
dez 2011]
Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03decreto-leiDel1002htm
BRASIL Lei Nordm6683 de 28 de agosto de 1979 Concede anistia e daacute outras
providecircncias Brasiacutelia Ministeacuterio da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em
05 fev 2012] Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL6683htm
214
BRASIL Lei Nordm9140 de 04 de novembro de 1995 Reconhece como mortas pessoas
desaparecidas em razatildeo de participaccedilatildeo ou acusaccedilatildeo de participaccedilatildeo em atividades
poliacuteticas no periacuteodo de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 e daacute outras
providecircncias Brasiacutelia Ministeacuterio da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em
13 nov 2011] Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9140htm
BRASIL Lei Nordm10559 de 13 de novembro de 2002 Regulamenta o art 8 ordm do Ato das
Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias e daacute outras providecircncias Brasiacutelia Ministeacuterio
da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em 13 nov 2011]
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Verdade no acircmbito da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica Brasiacutelia Ministeacuterio da
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215
Anexo I - Glossaacuterio de Siglas
ACO ndash Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria
ADI ndash Aacutereas de Defesa Interna
ALN ndash Accedilatildeo Libertadora Nacional
APERJ ndash Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio de Janeiro
1degBPE ndash 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito
Condi ndash Conselho de Defesa Interna
CENIMAR ndash Centro de Informaccedilotildees da Marinha
CEP ndash Centro de Estudos de Pessoal
CGI ndash Comissatildeo Geral de Investigaccedilotildees
CIA ndash Central Intelligence Agency
CIE ndash Centro de Informaccedilotildees do Exeacutercito
CISA ndash Centro de Informaccedilotildees de Seguranccedila da Aeronaacuteutica
CNBB ndash Conferecircncia Nacional dos Bispos do Brasil
CONDI ndash Conselhos de Defesa Interna
CPDOC ndash Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil
CSN ndash Conselho de Seguranccedila Nacional
DCE ndash Diretoacuterio Central dos Estudantes
DEOPS ndash Departamento de Ordem e Poliacutetica Social de Satildeo Paulo
DGPC ndash Departamento Geral de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro
DI-GB ndash Dissidecircncia Comunista da Guanabara
DOI-CODI ndash Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees ndash Centro de Operaccedilotildees de
Defesa Interna
216
DOPS ndash Departamento de Ordem Poliacutetica e Social
DSN ndash Doutrina de Seguranccedila Nacional
ECEME ndash Escola de Comando e Estado Maior do Exeacutercito
ESG ndash Escola Superior de Guerra
EMFA ndash Estado Maior das Forccedilas Armadas
EsNI ndash Escola Nacional de Informaccedilotildees
Fafich ndash Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas de Belo Horizonte
FUEC ndash Frente Unida dos Estudantes do Calabouccedilo
FGV ndash Fundaccedilatildeo Getuacutelio Vargas
GTNMRJ ndash Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro
HCE ndash Hospital Central do Exeacutercito
IBRADES ndash Instituto Brasileiro de Estudos Sociais
IFCS ndash Instituto de Filosofia e Ciecircncias Sociais
IHTP ndash Instituto de Histoacuteria do Tempo Presente
IPCM ndash Instituto Penal Cacircndido Mendes
IPM ndash Inqueacuterito Policial Militar
JOC ndash Juventude Operaacuteria Catoacutelica
LOC ndash Liga Operaacuteria Catoacutelica
MDB ndash Movimento Democraacutetico Brasileiro
MR-8 ndash Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro
MTC ndash Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos
N-SISA ndash Nuacutecleo do Serviccedilo de Informaccedilotildees de Seguranccedila da Aeronaacuteutica
Oban ndash Operaccedilatildeo Bandeirantes
OLAS ndash Organizaccedilatildeo Latino-Americana de Solidariedade
217
PCB ndash Partido Comunista Brasileiro
PC do B ndash Partido Comunista do Brasil
PCBR ndash Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio
PT ndash Partido dos Trabalhadores
SADI - Sub-Aacutereas de Defesa Interna
SFICI ndash Serviccedilo Federal de Informaccedilotildees e Contra-Informaccedilotildees
SIM ndash Serviccedilo de Informaccedilotildees da Marinha
SNI ndash Serviccedilo Nacional de Informaccedilotildees
SISNI ndash Sistema Nacional de Informaccedilotildees
SISSEGIN ndash Sistema de Seguranccedila Interna
UFF ndash Universidade Federal Fluminense
UFRJ ndash Universidade Federal do Rio de Janeiro
UNE - Uniatildeo Nacional dos Estudantes
UNIRIO ndash Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
ZDI ndash Zona de Defesa Interna
218
Anexo II - A Hierarquia do Exeacutercito Brasileiro53
Ciacuterculos
Hieraacuterquicos54
Hierarquizaccedilatildeo Patentes do Exeacutercito
Ciacuterculo de oficiais
Ciacuterculo de oficiais-generais
Marechal
General de Exeacutercito
General de divisatildeo
General de brigada
Ciacuterculo de oficiais
superiores Coronel
Tenente-coronel
Major
Ciacuterculo de oficiais intermediaacuterios Capitatildeo
Ciacuterculo de oficiais
subalternos Primeiro- tenente
Segundo- tenente
Ciacuterculo de praccedilas
Ciacuterculo de suboficiais subtenentes e
sargentos
Subtenente
Primeiro-sargento
Segundo-sargento
Terceiro-sargento
Ciacuterculo de cabos e soldados
Cabo e taifeiro-mor
Soldado e taifeiro-de
primeira classe
Soldado-recruta e taifeiro-
de-segunda-classe
Ciacuterculo de praccedilas
especiais
Frequentam o ciacuterculo de oficiais
subalternos Aspirante-a-oficial
Excepcionalmente ou em reuniotildees sociais
tecircm acesso ao ciacuterculo de oficiais
Cadete (aluno da Academia
Militar)
Aluno da Escola
Preparatoacuteria de Cadetes do
Exeacutercito
Aluno de Oacutergatildeo de
Formaccedilatildeo da Reserva
Excepcionalmente ou em reuniotildees sociais
tecircm acesso ao ciacuterculo de suboficiais
subtenentes e sargentos
Aluno da Escola ou Centro
de Formaccedilatildeo de Sargentos
Frequentam o ciacuterculo de cabos e soldados Aluno de Oacutergatildeo de
Formaccedilatildeo de Praccedilas da
Reserva
53
LEIRNER 1997 74-75 54
Os ldquoCiacuterculos hieraacuterquicosrdquo satildeo o acircmbito de convivecircncia entre os militares da mesma categoria Esses
ldquociacuterculosrdquo satildeo incorporados a fundo na conduta militar de forma que a divisatildeo acima exposta eacute seguida
no ambiente de trabalho salas refeitoacuterios e banheiros da instituiccedilatildeo conforme demonstra Piero de
Camargo Leirner em estudo antropoloacutegico sobre a instituiccedilatildeo militar Meia Volta Volver (1997 74-76)
2
FUNDACcedilAtildeO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTACcedilAtildeO DE
HISTOacuteRIA CONTEMPORAcircNEA DO BRASIL ndash CPDOC
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM HISTOacuteRIA POLIacuteTICA E BENS
CULTURAIS
MESTRADO ACADEcircMICO EM HISTOacuteRIA POLIacuteTICA E BENS CULTURAIS
ORIENTADOR(A) ACADEcircMICO(A) PROFordf DRordf MARLY SILVA DA MOTTA
RAFAELLA LUacuteCIA DE AZEVEDO FERREIRA BETTAMIO
O DOI-CODI carioca
Memoacuteria e cotidiano no Castelo do Terror
Dissertaccedilatildeo de Mestrado Acadecircmico em Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais apresentada
ao Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil ndash CPDOC
como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do grau de Mestre em Histoacuteria
Rio de Janeiro Marccedilo de 2012
3
Ficha catalograacutefica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique SimonsenFGV
Bettamio Rafaella Luacutecia de Azevedo Ferreira O DOI-CODI carioca memoacuteria e cotidiano no Castelo do Terror
Rafaella Luacutecia de Azevedo Ferreira Bettamio ndash 2012
218 f Dissertaccedilatildeo (mestrado) ndash Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de
Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais
Orientador Marly Silva da Motta Inclui bibliografia
1 Prisioneiros poliacuteticos 2 Brasil - Histoacuteria - 1964-1985 I Motta Marly Silva da II Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de
Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais III Tiacutetulo
CDD ndash 981063
4
5
Agradecimentos
Agradeccedilo primeiramente agrave minha orientadora Profordf Drordf Marly Silva da Motta
por sua orientaccedilatildeo zelosa pelo apoio e pelos inuacutemeros ensinamentos Com sua ajuda
consegui ultrapassar muitas dificuldades e penetrar com seguranccedila no universo dessa
pesquisa
Ao Professor Ameacuterico Freire de quem tive o prazer de ser aluna durante o
mestrado agradeccedilo pelas aulas pela bibliografia sobre o periacuteodo militar que muito me
ajudou na elaboraccedilatildeo dessa anaacutelise pelas criacuteticas construtivas elaboradas durante o
exame de qualificaccedilatildeo e pela participaccedilatildeo na banca examinadora dessa dissertaccedilatildeo
Ao Professor Luiacutes Reznik agradeccedilo por ter integrado a banca do exame de
qualificaccedilatildeo fazer parte da presente banca examinadora e tambeacutem pelas valiosas
sugestotildees indicaccedilotildees bibliograacuteficas e comentaacuterios incorporados ao estudo e agrave redaccedilatildeo
final desse trabalho
Agrave Professora Dulce Pandolfi agradeccedilo por sua generosidade em aceitar ser de
certa forma sujeito e objeto desta pesquisa desde seu nascimento durante a minha
graduaccedilatildeo em Histoacuteria pela UNIRIO quando permitiu que eu lhe entrevistasse e que
seu depoimento servisse de fonte para minha monografia de fim de curso cuja banca
examinadora contou com sua participaccedilatildeo Tambeacutem lhe agradeccedilo por durante o
mestrado continuar acompanhando de perto esta pesquisa participando da banca do
exame de qualificaccedilatildeo quando trouxe muitas consideraccedilotildees e sugestotildees produtivas a
este trabalho e da banca examinadora final desta dissertaccedilatildeo
Agrave Professora Icleacuteia Thiesen agradeccedilo pela credibilidade e incentivo que vem
injetando na minha face de pesquisadora desde o tempo em que fui sua aluna ainda
durante a graduaccedilatildeo
Aos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados Antocircnio Leite de Carvalho Dulce
Pandolfi Fernando Palha Freire Padre Maacuterio Prigol Ana Batista e Ceciacutelia Coimbra
agradeccedilo por me confiarem suas narrativas e me deixarem penetrar em parte de suas
memoacuterias
6
Agrave Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional onde muito me orgulho de trabalhar agradeccedilo
por incentivar a minha qualificaccedilatildeo enquanto pesquisadora permitindo que eu cursasse
o mestrado e me licenciasse nos uacuteltimos meses para me dedicar a esta dissertaccedilatildeo de
corpo e alma
Ao Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNMRJ) agradeccedilo por me
autorizar a consultar o arquivo da instituiccedilatildeo e por me receber afetuosamente durante
diversas reuniotildees onde pude conhecer alguns de seus integrantes tais como Ana Batista
e Ceciacutelia Coimbra a quem tive o prazer de entrevistar
Aos amigos Joatildeo Cerineu e Alejandra Estevez agradeccedilo a contribuiccedilatildeo
fundamental que efetuaram sobre este trabalho sendo os responsaacuteveis por me apresentar
aos ex-prisioneiros poliacuteticos Antocircnio e Padre Maacuterio
Agradeccedilo aos meus irmatildeos Rodrigo Renata e Melissa ao Rodrigo por despertar
em mim a vontade e a coragem de seguir a profissatildeo de historiadora agrave Renata por me
apoiar e ouvir sobre minha pesquisa atentamente mesmo quando eu repetia as mesmas
histoacuterias diversas vezes e principalmente agrave Melissa que muito me ajudou na
composiccedilatildeo do ldquoabstractrdquo desse trabalho com o seu inglecircs simplesmente perfeito
Aos amigos queridos que a Biblioteca Nacional me deu de presente
companheiros de jornada que me fazem melhorar a cada dia como profissional e que me
acompanharam durante todo o processo do mestrado me apoiando no que foi preciso e
me ajudando a superar os obstaacuteculos do dia-a-dia Agradeccedilo especialmente agrave Lia Jordatildeo
pelo companheirismo diaacuterio ao Francisco Madureira pelo auxiacutelio na ediccedilatildeo final dessa
dissertaccedilatildeo e agrave Regina Santiago pela amizade e disposiccedilatildeo sem igual em ler
minuciosamente este trabalho apontando sugestotildees que indiscutivelmente tornaram o
texto mais claro
Agraves amigas Manuela Joana e Letiacutecia agradeccedilo por estarem sempre comigo nas
alegrias e nas tristezas compartilhando conquistas e derrotas desde os tempos em que
juntas frequentaacutevamos as festas juninas da PE
7
Aos amigos do curso de Histoacuteria da UNIRIO agradeccedilo pelas trocas intelectuais
pelos incontaacuteveis momentos divertidos pela camaradagem e por essa amizade de dez
anos de histoacuteria
Aos meus pais sou e serei eternamente grata pelo carinho pelo apoio e por sempre
estarem ao meu lado durante todos esses anos
Aos meus sogros Eliana Lasmar e Luiz Fernando Arieira agradeccedilo por estarem
sempre por perto dispostos a estenderem a matildeo quando preciso
E por fim meus agradecimentos especiais a Raul Cordeiro meu companheiro de
todas as horas o engenheiro mais humano que eu jaacute conheci Agradeccedilo-lhe por tudo que
temos vivido juntos por nosso cantinho por nossas conversas por nosso conviacutevio de
todo dia por nosso amor pelo tanto e tatildeo pouco que enfeita cada momento da minha
vida me completa e me faz uma pessoa mais feliz
8
Tambeacutem neste lugar pode-se sobreviver e por isso eacute preciso
querer sobreviver para contar para testemunhar e que para
viver eacute importante esforccedilarmo-nos para salvar pelo menos o
esqueleto os pilares a forma da nossa civilizaccedilatildeo [hellip]
(Levi 2001 40)
9
Resumo
O objetivo dessa dissertaccedilatildeo eacute analisar a memoacuteria de seis ex-prisioneiros poliacuteticos
do Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees-Centro de Operaccedilotildees de Defesa Interna
do Rio de Janeiro (DOI-CODIRJ) entrevistados recentemente entre os anos de 2002 e
2004 sobre o cotidiano vivido nessa instituiccedilatildeo em 1970 Naquele ano dentro do
Sistema de Seguranccedila Interna (SISSEGIN) os DOI-CODI haviam sido criados e
distribuiacutedos por todas as Regiotildees Militares do paiacutes tornando-se a principal instituiccedilatildeo
de repressatildeo aos opositores poliacuteticos que optaram pela luta armada como forma de
derrotar a ditadura militar brasileira Assim as narrativas desses seis ex-prisioneiros
satildeo aleacutem de fontes essenciais o principal objeto de estudo deste trabalho Atraveacutes
delas torna-se possiacutevel acessar aspectos cruciais para a caracterizaccedilatildeo do cotidiano
vivido pelos presos em um desses oacutergatildeos ― o DOI-CODI do Rio de Janeiro ― uma
vez que esse passado se liga ao presente por meio de suas memoacuterias Diante disso a fim
de melhor entender tais memoacuterias a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI tambeacutem satildeo
aqui analisadas colocando as narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados em
diaacutelogo com uma bibliografia especialmente selecionada aleacutem de uma fonte a respeito
do DOI feita por um de seus agentes quando este oacutergatildeo ainda estava em atividade em
1978 Para que a essas memoacuterias seja aplicada uma criacutetica efetiva necessaacuteria a todo
trabalho histoacuterico o estudo se debruccedila ainda sobre as interferecircncias que o presente
exerce na construccedilatildeo que fazem com relaccedilatildeo ao passado vivido no DOI-CODIRJ com
o objetivo de esclarecer as bases sobre as quais satildeo construiacutedas cerca de trinta anos
depois
Palavras-chave Ex-prisioneiros poliacuteticos ndash Memoacuteria ndash DOI-CODI ndash Cotidiano ndash
Ditadura militar
10
Abstract
The objective of this thesis is to analyze the memory of six former political
prisoners of the Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees-Centro de Operaccedilotildees de
Defesa Interna do Rio de Janeiro or DOI-CODIRJ (Detachment of Information
Operations Center-Internal Defense Operations Center of Rio de Janeiro) recently
interviewed between 2002 and 2004 about their everyday living in that institution in
1970 At that year in the Sistema de Seguranccedila Interna or SISSEGIN (Internal Security
System) the DOI-CODI had been created and distributed by all the countryrsquos military
regions becoming the repression leading instituion of political opponents who oppted
for armed struggle as a way to defeat Brazilrsquos military dictatorship Thus these six
former prisioners narratives are not only essencial sources but the main study object of
this paper Through them it becomes possible to access crucial aspects for the
characterization of the daily lived by prisioners in one of these agencies - the DOI-
CODI in Rio de Janeiro - since this past connects to present through their memories
Therefore in order to understand such memories the training and the performance of
the DOI-CODI are also analyzed here placing the narratives of the interviewed former
political prisioners in dialogue with a specially selected bibliography and a source
about DOI made by one of its agents when that agency was still active in 1978 In
order to be applied to these memories an effective critique necessary to all historical
work the study still focuses on the interferences that the present exerts on the
construction that make in relation to the past lived in DOI-CODIRJ in order to clarify
the basis on which are built at about thirty years later
Key-Words Former political prisioners ndash Memory ndash DOICODI ndash daily Life ndash Military
dictatorship
11
Sumaacuterio
Agradecimentos 05
Resumo 09
Abstract 10
Introduccedilatildeo 13
Capiacutetulo 1 Os DOI-CODI formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo 28
1 Debate Histoacuterico 35
11 O papel da ESG para o Sistema de Seguranccedila Nacional 35
12 Os conceitos legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar 39
13 A montagem e o funcionamento do SISSEGIN 47
2 O DOI-CODI por ele mesmo 57
3 O DOI-CODI pelos prisioneiros 75
Capiacutetulo 2 Os presos poliacuteticos e suas organizaccedilotildees 85
1 A rede de entrevistas 91
11 Os sujeitos e suas trajetoacuterias 97
12 A nova esquerda brasileira 122
Capiacutetulo 3 O espaccedilo e o cotidiano do DOI-CODI carioca 136
1 O que sofre e o que resiste 137
2 Uma cartografia possiacutevel do ldquoCastelo do Terrorrdquo 142
12
3 Memoacuterias de um cotidiano 154
31 O interrogatoacuterio e a tortura 156
32 O dia-a-dia no caacutercere 184
Conclusatildeo 199
Fontes 205
1 ArquivoDocumentos Pessoais 205
2 Documentos Institucionais 205
3 Fonte Cinematograacutefica 205
4 Fontes Orais 205
5 Fontes Visuais 206
6 Perioacutedicos 206
Bibliografia 207
1 Bibliografia digital 213
Anexo I Glossaacuterio de Siglas 215
Anexo II A Hierarquia do Exeacutercito Brasileiro 218
13
Introduccedilatildeo
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo entatildeo que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino praacute laacute
Roda mundo roda gigante
Roda moinho roda piatildeo
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coraccedilatildeo
A gente vai contra a corrente
Ateacute natildeo poder resistir
Na volta do barco eacute que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que haacute
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira praacute laacute
Chico Buarque
(Roda Viva 1968)
14
Vivi bons momentos no 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito Era adolescente e os
momentos aos quais me refiro foram vividos durante o final de uma deacutecada
democraacutetica a de 1990 Mal sabia sobre a ditadura militar e muito menos que aquele
Batalhatildeo situado tatildeo proacuteximo agrave minha casa na Tijuca havia sediado um centro de
tortura O nome DOI-CODI nunca tinha ouvido falar Para mim e para todos os
adolescentes da Tijuca o 1ordm BPE era um Batalhatildeo convencional do Exeacutercito que tinha
um grande paacutetio utilizado todos os anos para a melhor festa junina da regiatildeo a ldquofesta
junina da PErdquo Logo para noacutes a principal caracteriacutestica da PE era o fato de durante os
meses de junho abrir as portas do seu paacutetio para tornaacute-lo ldquoponto de encontrordquo de muitos
jovens estudantes Quanta ironia
Jaacute no terceiro periacuteodo da faculdade de Histoacuteria da UNIRIO no primeiro semestre
de 2002 descobri o que aquele preacutedio havia sido durante a ditadura militar Soube
inclusive que ele era tombado pelo antigo Departamento Geral de Patrimocircnio Cultural
(DGPC) da Prefeitura justamente por representar a memoacuteria de muitos ex-prisioneiros
poliacuteticos que ali haviam sido torturados e mortos Fiquei perplexa Como nunca
ningueacutem havia me dito isso Como os professores de Histoacuteria da minha escola
localizada no mesmo bairro natildeo haviam destacado esse fato Por que essa parte da
Histoacuteria natildeo era amplamente divulgada Eu que sempre gostei de Histoacuteria natildeo agrave toa
escolhi fazer dela minha formaccedilatildeo e profissatildeo me senti instigada a revelar as memoacuterias
dos presos poliacuteticos que por laacute passaram A partir dessa descoberta mais do que uma
ldquonovardquo face do 1ordm BPE eu havia me deparado com outra revelaccedilatildeo o meu tema de
pesquisa
A partir de um amigo do curso de Histoacuteria no final de 2002 cheguei ao meu
primeiro entrevistado e daiacute em diante teci uma rede de entrevistas No final de 2004
havia reunido seis entrevistados trecircs homens e trecircs mulheres todos ex-prisioneiros
15
poliacuteticos que passaram pelo DOI-CODIRJ durante o mesmo ano de 1970 Essa
pesquisa resultou em minha monografia apresentada em 2005 como requisito para a
conclusatildeo do curso de Histoacuteria da UNIRIO O Castelo do terror memoacuteria e tortura no
espaccedilo prisional (1970-1974) 1
Natildeo abandonei o tema Ao contraacuterio resolvi aprofundaacute-lo no mestrado em
Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais do CPDOCFGV onde ingressei em marccedilo de 2010
Nessa dissertaccedilatildeo que representa a fase conclusiva do mestrado trabalho com os
depoimentos dos mesmos seis ex-prisioneiros do DOI-CODIRJ de 1970 colhidos entre
os anos de 2002 e 2004 Aqui o objetivo mais amplo eacute se inserir no conjunto de estudos
que reflete sobre a construccedilatildeo de uma determinada memoacuteria a respeito da ditadura
militar
Analisar a memoacuteria de ex-prisioneiros poliacuteticos a fim de entender como essas
foram construiacutedas jaacute em tempos democraacuteticos e o que trazem em benefiacutecio da
caracterizaccedilatildeo daquele passado eacute o objetivo principal desta dissertaccedilatildeo Assim sendo
alguns aspectos especiacuteficos merecem ser destacados
O primeiro deles eacute que as entrevistas foram concedidas entre os anos 2002 e 2004
ou seja o passado ditatorial foi recuperado jaacute em tempos democraacuteticos Ao mesmo
tempo considerou-se que esses depoimentos satildeo fontes essenciais para atingir o
objetivo aqui traccedilado jaacute que a metodologia de histoacuteria oral eacute a mais adequada para
analisar os aspectos subjetivos e repletos de detalhes que correspondem ao rigoroso dia-
a-dia de quem esteve preso em um organismo repressor Logo eacute faacutecil concluir que as
fontes que permitiram a elaboraccedilatildeo deste estudo natildeo poderiam ser encontradas em
documentaccedilatildeo oficial
1 O Castelo do terror memoacuteria e cotidiano de ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI carioca (1970-
1979) monografia de fim de curso de bacharelado e licenciatura plena em Histoacuteria da UNIRIO orientada
pela Profordf Drordf Icleacuteia Thiesen e apresentada em abril de 2005
16
Instituiacutedos por todo o territoacuterio brasileiro a partir de 1970 os DOI-CODI
tornaram-se referecircncia-chave na memoacuteria sobre a tortura e a repressatildeo praticada pela
ditadura militar A partir disso nota-se que o trabalho desenvolvido com as memoacuterias
de ex-prisioneiros de uma de suas sedes a do Rio de Janeiro eacute uma das escassas
possibilidades existentes de se acessar esse passado ainda tatildeo presente
Esse objeto de estudo representa um grande desafio Afinal estaacute inserido entre
duas temporalidades recentes ndash quando a experiecircncia prisional foi efetivamente vivida
em 1970 e quando ela foi narrada pelos entatildeo ex-prisioneiros poliacuteticos entre 2002 e
2004 Por isso mesmo lanccedilou-se matildeo do aparato teoacuterico do que se convencionou
chamar de histoacuteria do tempo presente A partir dos anos 1980 durante o processo de
renovaccedilatildeo da histoacuteria poliacutetica a valorizaccedilatildeo de uma histoacuteria das representaccedilotildees e a
compreensatildeo dos usos poliacuteticos do passado pelo presente acarretou uma reavaliaccedilatildeo das
relaccedilotildees estabelecidas entre histoacuteria e memoacuteria que permitiu agrave historiografia fazer novas
reflexotildees sobre as relaccedilotildees entre passado e presente 2 Diante dessa percepccedilatildeo nasceu
na Franccedila o Instituto de Histoacuteria do Tempo Presente (IHTP) fundado por Franccedilois
Beacutedarida consolidando a histoacuteria do tempo presente como portadora da especificidade
de conviver com testemunhos vivos colocando sob seu foco principal os depoimentos
orais 3
A histoacuteria oral eacute portanto a metodologia principal desta dissertaccedilatildeo e por
conseguinte os depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos dela decorrentes satildeo aqui
tratados com todo o rigor necessaacuterio agrave pesquisa histoacuterica Afinal apesar de ser
demasiadamente criticada por ser uma metodologia apoiada na memoacuteria o que a
tornaria capaz de produzir representaccedilotildees e natildeo reconstituiccedilotildees do real entende-se que
2 Para mais informaccedilotildees sobre o surgimento da histoacuteria do tempo presente na historiografia ver Remoacutend
1996 e Ferreira dez 2002 314-332 3 Para mais informaccedilotildees sobre os fundamentos da histoacuteria do tempo presente ver Beacutedarida 2006 219-
229
17
as narrativas orais devem ser submetidas ao crivo da criacutetica histoacuterica tal como deve
ocorrer com todas as outras fontes Os documentos orais ou escritos tecircm uma razatildeo de
ser pois foram feitos por algueacutem com determinada visatildeo estimulado por algum motivo
eou intenccedilatildeo e por isso nunca seratildeo capazes de representar a realidade pura e absoluta
dos fatos Portanto qualquer fonte caso natildeo seja bem contextualizada e analisada
possibilita que a pesquisa caia em armadilhas e reconstrua um passado que nunca
existiu conforme bem elucidado por Michael Pollak
[] se a memoacuteria eacute socialmente construiacuteda eacute oacutebvio que toda documentaccedilatildeo
tambeacutem o eacute Para mim natildeo haacute diferenccedila fundamental entre fonte escrita e
oral A criacutetica da fonte tal como todo historiador aprende a fazer deve a
meu ver ser aplicada a fontes de tudo quanto eacute tipo (Pollak 1992 207-208)
A histoacuteria oral eacute de grande valia agrave histoacuteria do tempo presente contribuindo para
que o estudo da histoacuteria recente ndash por natureza mais inacabada do que qualquer outra
histoacuteria (Beacutedarida 2006 229) ndash seja incentivado desafiando as dificuldades
relacionadas ao acesso a fontes documentais de periacuteodos pouco distantes Aleacutem disso a
histoacuteria oral traz outro diferencial aqui destacado atraveacutes da fala torna-se possiacutevel
evidenciar uma carga subjetiva tornando acessiacutevel um tipo de informaccedilatildeo capaz de
enriquecer a anaacutelise histoacuterica e que natildeo seria obtido por meio de fontes escritas oficiais
Assim mesmo que uma experiecircncia relatada natildeo seja em si mesma um fato de certa
forma pode vir a secirc-lo jaacute que traz agrave tona o verdadeiro sentimento de algueacutem perante
uma situaccedilatildeo e esse sentimento eacute um fato que soacute pode ser alcanccedilado mediante agraves
memoacuterias trazidas pelos relatos (Portelli 1996 59-72)
Os usos que os ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ fazem de seu passado
prisional eacute um dos principais aspectos aqui ressaltados Para tanto o conceito de
presente do passado de Robert Frank (1999) eacute utilizado ao longo deste trabalho como
18
ferramenta para destacar as influecircncias que o presente de suas narrativas exerce sobre a
maneira pela qual eacute revivido o passado vivenciado no DOI-CODIRJ
Desde que haviam passado pelo DOI-CODI carioca em 1970 em plena ditadura
militar a chamada ldquolei de anistiardquo jaacute havia sido instituiacuteda no paiacutes em 1979 que entre
outras providecircncias anistiava todos quantos no periacuteodo compreendido entre 02 de
setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 cometeram crimes poliacuteticos ou conexos com
estes (lei nordm 66831979) a ditadura militar havia terminado com a eleiccedilatildeo indireta de
um presidente civil em 1985 a Assembleia Nacional Constituinte havia sido instalada
em 1987 e a Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil a chamada ldquoconstituiccedilatildeo
cidadatilderdquo havia sido promulgada no ano seguinte e finalmente o primeiro presidente
civil eleito pelo voto direto apoacutes a ditadura militar havia tomado posse em 1990
completando a transiccedilatildeo poliacutetica do paiacutes ou seja tornando a ditadura uma memoacuteria do
passado e a democracia o momento presente Democracia esta que na eacutepoca em que os
depoimentos foram concedidos apresentava ainda mais sinais de seu fortalecimento e
consolidaccedilatildeo jaacute que o Brasil havia elegido para presidente o socioacutelogo e professor da
USP Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e o ex-operaacuterio e liacuteder sindical Luiacutes
Inaacutecio Lula da Silva (2003-2010) ambos perseguidos poliacuteticos durante o periacuteodo
ditatorial
Com relaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo dos que sofreram danos decorrentes da poliacutetica repressiva
promovida pela ditadura militar desde 1995 estava em curso o reconhecimento pelo
Estado brasileiro dos mortos e desaparecidos poliacuteticos durante a ditadura e a
indenizaccedilatildeo as suas famiacutelias (lei nordm 914095) Aleacutem disso a reparaccedilatildeo financeira aos
males sofridos por aqueles que ficaram presos ou foram perseguidos na eacutepoca tambeacutem
estava em voga desde 2002 (lei nordm 1055902) A demanda desta lei principalmente no
caso daqueles que passavam pelo processo de solicitaccedilatildeo eacute um elemento a ser levado
19
em conta na maneira pela qual os entrevistados construiacuteram suas narrativas Afinal o
procedimento necessaacuterio agrave concessatildeo da reparaccedilatildeo incluiacutea a construccedilatildeo de um memorial
sobre as mazelas a que os requerentes haviam sido submetidos pelo Estado durante a
ditadura militar
Dessa forma as narrativas significavam tambeacutem para os ex-prisioneiros poliacuteticos
um meio de conseguirem apoio da sociedade em favor da ampliaccedilatildeo desse
reconhecimento iniciado pelo Estado brasileiro Atraveacutes de suas narrativas poderiam
contribuir para que suas memoacuterias fossem encampadas pela histoacuteria Logo pode-se
dizer que no sentido atribuiacutedo por Michael Pollak (1992) esses depoimentos foram
concedidos sob o horizonte de contribuir com o trabalho de enquadramento da
memoacuteria nacional sobre a ditadura militar brasileira jaacute que esta ateacute hoje natildeo estaacute
consolidada
Finalmente verifica-se que ainda ocorre uma disputa pela memoacuteria da ditadura
militar onde de um lado estatildeo os que sofreram o peso da matildeo forte da ditadura e de
outro os militares que argumentam que os ldquoanos de chumbordquo devem ser relegados ao
passado Como exemplo a declaraccedilatildeo dada em outubro de 2004 ao jornal O Globo por
um representante do Exeacutercito em resposta agrave publicaccedilatildeo de supostas fotos pelas quais o
jornalista Vladimir Herzog4 aparece sendo humilhado na prisatildeo
As medidas tomadas pelas forccedilas legais foram uma legiacutetima resposta agrave
violecircncia dos que recusaram o diaacutelogo optaram pelo radicalismo e pela
ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e de desencadear accedilotildees
criminosas [] sentiu-se a necessidade da criaccedilatildeo de uma estrutura com
vistas a apoiar em operaccedilatildeo e inteligecircncia as atividades necessaacuterias para
desestruturar os movimentos radicais e ilegais [] Mesmo sem qualquer
mudanccedila de posicionamento e de convicccedilotildees em relaccedilatildeo ao que aconteceu
4 Vladimir Herzog era integrante do PCB e diretor da TV Cultura quando foi preso em outubro de 1975
no DOI-CODISP onde dias depois foi morto sob torturas Para mais informaccedilotildees sobre o caso Vladimir
Herzog e seus sucessivos encadeamentos ver Moraes 2006
20
naquele periacuteodo histoacuterico considera-se accedilatildeo pequena reavivar revanchismos
ou estimular discussotildees esteacutereis sobre conjunturas passadas que a nada
conduzem (Camarotti 19 out 2004 12)
Essa disputa travada entre a lembranccedila e o esquecimento pode ser notada atraveacutes
da batalha em torno do preacutedio que serviu de sede ao DOI-CODIRJ o 1ordm BPE Essa foi
iniciada nos primeiros anos da deacutecada de 1990 por meio de uma tentativa do Exeacutercito
de vender o edifiacutecio Sabendo da situaccedilatildeo um conjunto de moradores dos arredores
buscou impedir a venda solicitando o tombamento de todo o espaccedilo ocupado pelo
quartel agrave Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro alegando a sua importacircncia para a
memoacuteria poliacutetica do paiacutes Essa atitude eacute evidenciada em um manifesto contendo 236
assinaturas em defesa da preservaccedilatildeo do preacutedio que serviu como documento de
abertura para o processo de tombamento do edifiacutecio na Subsecretaria de Patrimocircnio
Cultural da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro
O Exeacutercito brasileiro alegando falta de recursos para seu programa de
construccedilatildeo de quarteacuteis em outros estados pretende vender o imoacutevel onde
estaacute o 1ordm BPE Trata-se de um imoacutevel altamente valorizado pela ampla infra-
estrutura urbana [] Acontece que o valor que o Exeacutercito quer faturar foi
criado a partir de obras e investimentos custeados com os impostos e taxas
que pagamos todos noacutes haacute mais de um seacuteculo O Exeacutercito natildeo contribuiu
em nada para isso e agora quer se apropriar desse valor para investir sabe-se
laacute aonde [] consideramos que o preacutedio do Batalhatildeo da PE estaacute
indissoluvelmente cravado na histoacuteria nas tradiccedilotildees na esteacutetica e na
paisagem local [] Sabemos que o Batalhatildeo da PE foi sede do DOI-CODI
na eacutepoca da ditadura militar e que ali estiveram presos e foram torturados
muitos companheiros nossos tendo inclusive alguns sido dados como
ldquodesaparecidosrdquo Tambeacutem por esta razatildeo o preacutedio estaacute ligado agrave memoacuteria
poliacutetica desse paiacutes [] Queremos na aacuterea um centro cultural com teatro e
museu agrave memoacuteria da luta pela liberdade com parque e jardins Esses satildeo os
21
anseios da comunidade e natildeo outrosrdquo (Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural
da Prefeitura do Rio de Janeiro 1992) 5
Aleacutem desse documento outras solicitaccedilotildees de preservaccedilatildeo do preacutedio foram
enviadas agrave Cacircmara Municipal por Associaccedilotildees de Moradores da Tijuca e bairros
vizinhos Enfim em 29 de marccedilo de 1993 no primeiro mandato do entatildeo prefeito Ceacutesar
Maia o processo de tombamento do 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito foi finalizado
No entanto a ideia de tiraacute-lo do Exeacutercito a fim de tornar o espaccedilo um centro cultural
que contivesse um museu da memoacuteria da luta pela liberdade natildeo se concretizou pois
apoacutes o tombamento o Exeacutercito natildeo deixou o local onde permanece ateacute os dias atuais
sinalizando que natildeo tem interesse em que o edifiacutecio se torne efetivamente um lugar de
memoacuteria tal como o conceito criado por Pierre Nora (1993)
No preacutedio do 1ordm BPE se encontram os trecircs sentidos atribuiacutedos por Nora como
caracteriacutesticos a um lugar de memoacuteria o material o simboacutelico e o funcional (Nora
1993 21) O sentido material no caso eacute o proacuteprio espaccedilo fiacutesico que ainda se conserva
no mesmo local sem grandes intervenccedilotildees o simboacutelico eacute o que o espaccedilo representa para
uma parte da sociedade carioca como marco memorial de um passado que natildeo se deve
esquecer e o funcional eacute a memoacuteria da ditadura militar ali preservada por meio do
tombamento do edifiacutecio Logo querendo ou natildeo o preacutedio do 1ordm BPE eacute um lugar de
memoacuteria jaacute que naquele espaccedilo fiacutesico ou seja material se encontram uma funccedilatildeo e
uma representaccedilatildeo simboacutelicas ligadas agrave memoacuteria da ditadura militar
A disputa em torno dessa memoacuteria parece aos poucos caminhar cada vez mais
para o lado dos ex-presos e perseguidos poliacuteticos Recentemente aleacutem das leis
5 Este documento que deu iniacutecio ao referido processo no ano de 1992 hoje se encontra arquivado na
Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro antigo Departamento Geral de
Patrimocircnio Cultural (DGPC) junto ao restante da documentaccedilatildeo que compocircs o processo Nordm
1200433692 e originou a lei municipal nordm 1954 de 290393
22
reparadoras citadas acima um grande obstaacuteculo foi ultrapassado para que os crimes
ocorridos durante a ditadura militar sejam apurados e desvendados Em outubro de
2011 a Comissatildeo da Verdade foi enfim aprovada pelo Congresso Nacional e em
novembro do mesmo ano a lei que a institui sancionada pela Presidente Dilma
Rousseff Nesse contexto esta dissertaccedilatildeo ao estudar as memoacuterias de seis ex-
prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ relaciona-se com essa atualidade cumprindo
um papel social relevante
O ofiacutecio do historiador que pressupotildee trilhar caminhos e fazer escolhas
significando por exemplo atribuir significado agraves palavras agraves fontes e agrave bibliografia
escolhidas norteou a seleccedilatildeo e os criteacuterios aqui estipulados Conforme apontado por
Reinhart Koselleck (2006 167) eacute impossiacutevel que o ponto de vista do historiador deixe
de influenciar na representaccedilatildeo que faz dos fatos Assim cabe deixar claro que este
trabalho foi movido pelo interesse que as memoacuterias dos ex-prisioneiros poliacuteticos do
DOI-CODIRJ despertaram em mim Vale dizer que essa dissertaccedilatildeo eacute avessa ao
postulado cientiacutefico da total imparcialidade no sentido de neutralidade apartidarismo
ou abstenccedilatildeo seguindo orientaccedilatildeo de Manoel Salgado Guimaratildees (2008)
Ao historiador de ofiacutecio seria exigido cada vez mais uma escrita submetida
aos ditames dos afetos sejam eles derivados de engajamentos poliacuteticos
especiacuteficos de crenccedilas particulares ou mesmo derivados de um convite agrave
individualidade do historiador Este seria instado a mostrar-se atraveacutes de seu
texto postura bastante diversa daquela que o obrigava a esconder-se por traacutes
da pesquisa cientiacutefica (Guimaratildees 2008 17)
O primeiro capiacutetulo tem por objetivo analisar a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-
CODI que a partir de 1970 passaram a integrar o Sistema de Seguranccedila Interna
(SISSEGIN) se espalharam por todas as Regiotildees Militares do Brasil e se tornaram a
principal instituiccedilatildeo de repressatildeo aos opositores poliacuteticos da ditadura militar Afinal a
23
partir do entendimento sobre a criaccedilatildeo e o funcionamento dessa instituiccedilatildeo se pretende
criar as condiccedilotildees necessaacuterias para analisar as memoacuterias dos seis ex-prisioneiros
poliacuteticos sobre uma de suas sedes o DOI-CODIRJ uma vez que a passagem por esse
espaccedilo prisional eacute aqui entendida como um elo fundamental entre essas memoacuterias
Assim optou-se por estruturar este capiacutetulo por meio de trecircs frentes 1) o debate
historiograacutefico 2) a monografia O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI)
do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e
perspectiva escrita em 1978 pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira
3) os depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de
Janeiro concedidos entre os anos de 2002 e 2004
A primeira frente de estudo se concentra em analisar a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos
DOI-CODI agrave luz da historiografia Nela apresentam-se autores e conceitos selecionados
a fim de elucidar algumas questotildees levantadas Qual o papel da Escola Superior de
Guerra (ESG) para a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional e dos DOI-CODI
Como a praxe ditatorial em respaldar atitudes arbitraacuterias por meio de leis
compulsoriamente promulgadas ou seja atraveacutes da legalidade autoritaacuteria conforme
nomenclatura utilizada por Anthony Pereira (2010) gerou as bases para a criaccedilatildeo do
SISSEGIN e dos DOI-CODI Como os conflitos internos gerados no seio da instituiccedilatildeo
militar que ocasionaram dissidecircncias as cizacircnias militares tal como conceituado por
Joatildeo Roberto Martins Filho (1993) influenciaram os rumos da ditadura e a construccedilatildeo
de seu aparato de seguranccedila interna De que maneira a montagem e o funcionamento do
SISSEGIN e dos DOI-CODI foram organizados e constituiacutedos
Jaacute a segunda e a terceira frentes de estudo deste capiacutetulo servem para analisar as
visotildees de atores que de uma forma ou de outra viveram os DOI-CODI Na segunda a
anaacutelise sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI debruccedila-se sobre a visatildeo de um de
24
seus agentes atraveacutes da fonte O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do
Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo escrita pelo coronel de
cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira apontado por ex-prisioneiros poliacuteticos com um dos
torturadores do DOI do Rio de Janeiro Trata-se de uma monografia que o referido
coronel apresentou agrave Escola de Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) em
1978 quando os DOI-CODI apesar de atuantes jaacute sofriam certa diminuiccedilatildeo de suas
atividades O trabalho em cima desse documento se direciona no sentido de analisar
dados representativos do poder coercitivo dos DOI-CODI do iniacutecio dos anos 1970 e de
descrever os afazeres de cada uma de suas seccedilotildees a fim de contribuir para o
entendimento sobre o funcionamento interno deste oacutergatildeo Por fim na terceira frente a
anaacutelise eacute efetuada por meio das memoacuterias dos seis ex-prisioneiros entrevistados entre os
anos de 2002 e 2004 objeto central dessa dissertaccedilatildeo Dessa forma procura-se aqui
responder como eles percebiam a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo do DOI-CODIRJ e ao
entrelaccedilar aspectos de suas memoacuterias com a historiografia e a visatildeo do coronel Pereira
se aproximar do que vinha a ser o aparato de seguranccedila interna de 1970 cujos DOI-
CODI eram parte essencial
O segundo capiacutetulo eacute construiacutedo com a proposta de analisar de que forma e sob
quais influecircncias foram construiacutedas e narradas as memoacuterias dos seis ex-prisioneiros
poliacuteticos entrevistados entre os anos de 2002 e 2004 Parte-se aqui do pressuposto de
que cada uma de suas memoacuterias foi formada e influenciada por idiossincrasias relativas
a vivecircncias pessoais personalidades e outros aspectos individuais que merecem ser
analisados de forma a viabilizar o entendimento loacutegico da construccedilatildeo dessas memoacuterias
Dessa forma busca-se relativizar uma memoacuteria coletiva que aparentemente eacute comum a
todos os ex-prisioneiros poliacuteticos que passaram por algum DOI-CODI O aspecto
coletivo dessas memoacuterias no entanto natildeo eacute abandonado As memoacuterias individuais aqui
25
trabalhadas natildeo estatildeo isoladas e constantemente tomam por referecircncia pontos externos
ao sujeito se apoiando em percepccedilotildees recebidas de determinada memoacuteria coletiva de
um grupo e tambeacutem pela memoacuteria histoacuterica de seu paiacutes (Halbwachs 2004 57-59)
Diante disso a capacidade de intervenccedilatildeo que o presente exerce sobre as
memoacuterias do passado (Frank 1999) toma um aspecto central nesse momento da anaacutelise
o que torna importante considerar aqui natildeo soacute o contexto histoacuterico que rodeava os
entrevistados no momento de suas narrativas (2002-2004) como tambeacutem a forma como
a rede de entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que essas foram realizadas
Assim este segundo capiacutetulo trata primeiramente dessas condiccedilotildees que viabilizaram e
de certa forma influiacuteram nas entrevistas para em seguida analisar as trajetoacuterias de vida
de cada um dos entrevistados e por fim baseando-se em algumas referecircncias sobre o
tema traccedilar um panorama sobre as organizaccedilotildees de esquerda das quais faziam parte ou
com que se relacionavam no momento de suas prisotildees
Finalmente o terceiro capiacutetulo visa analisar efetivamente a memoacuteria como
material para a histoacuteria Assim conforme elucidado por Fernando Catroga (2010) ao
buscar entender a escrita da histoacuteria como um rito de memoacuteria no sentido de lutar
contra o esquecimento e contra a corrosatildeo do tempo tal como ocorre em um ldquogesto de
sepulturardquo a histoacuteria eacute aqui escrita de forma a contribuir para que seja possiacutevel
caracterizar um passado que natildeo mais existe o do cotidiano do DOI-CODIRJ de 1970
Antes dessa caracterizaccedilatildeo a partir dos detalhes trazidos nos depoimentos sobre o
espaccedilo interno do preacutedio do 1ordm BPE conjugados agrave observaccedilatildeo minuciosa de sua fachada
que ateacute hoje ainda permanece preservada faz-se possiacutevel uma cartografia espacial do
local que sediou o DOI-CODIRJ Afinal esse entendimento da disposiccedilatildeo espacial do
referido edifiacutecio estaacute totalmente interligado com o cotidiano ali vivido por seus
prisioneiros logo eacute aqui entendido como essencial para a presente anaacutelise Feita esta
26
cartografia parte-se entatildeo para a caracterizaccedilatildeo do cotidiano vivido no DOI-CODIRJ
de 1970 Para tanto aleacutem da anaacutelise dos seis depoimentos a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos
DOI-CODI a constituiccedilatildeo da rede de entrevistas a trajetoacuteria dos entrevistados e suas
organizaccedilotildees de esquerda estudadas nos capiacutetulos anteriores satildeo incorporadas ao
estudo A partir disso vaacuterios aspectos do cotidiano prisional satildeo abordados tais como
o interrogatoacuterio e a tortura os primeiros momentos na prisatildeo as formas de resistecircncia
os encontros e as relaccedilotildees entre os presos nas celas as formas de lidar com o tempo as
roupas e as refeiccedilotildees
No decorrer dos trecircs capiacutetulos dessa dissertaccedilatildeo faz-se constante referecircncia a
siglas relativas ao tema em abordagem e agrave hierarquia das patentes do Exeacutercito Diante
disso ao final de todo o texto apresentado na parte dos anexos encontra-se o Glossaacuterio
de siglas (Anexo I) e a tabela A hierarquia do Exeacutercito Brasileiro (Anexo II)
A partir dessa configuraccedilatildeo geral pretende-se responder agraves questotildees acima
pontuadas a fim de corroborar algumas hipoacuteteses aqui levantadas
1) A formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo do aparato de seguranccedila interna que abrangia o DOI-
CODIRJ tiveram por base as teses sobre seguranccedila nacional montadas pela
ESG anos antes da ditadura militar a promulgaccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo
arbitraacuteria condescendente a abusos de poder gerada a partir dos primeiros anos
do governo militar bem como a tentativa de solucionar impasses ocasionados
por disputas que vinham ocorrendo no seio do Exeacutercito e por conseguinte
ameaccedilavam sua unidade institucional
2) O peso do presente (200204) teve um papel decisivo na maneira pela qual os
entrevistados construiacuteram a narrativa sobre o periacuteodo (1970) em que estiveram
presos no DOI-CODIRJ
3) As organizaccedilotildees de esquerda e as accedilotildees em que os ex-presos poliacuteticos
27
estiveram envolvidos antes de suas prisotildees influenciaram diretamente no grau
de violecircncia do cotidiano a que foram submetidos no DOI-CODIRJ
28
Capiacutetulo 1 ndash Os DOI-CODI formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo
Se no teu distrito
Tem farta sessatildeo
De afogamento chicote
Garrote e punccedilatildeo
A lei tem caprichos
O que hoje eacute banal
Um dia vai dar no jornal
Se manchas as praccedilas
Com teus esquadrotildees
Sangrando ativistas
Cambistas turistas peotildees
A lei abre os olhos
A lei tem pudor
E espeta o seu proacuteprio inspetor
Chico Buarque
(Hino da repressatildeo 1985)
29
A partir de 1970 os DOI-CODI (Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildeesndash
Centro de Operaccedilotildees de Defesa Interna) parte integrante do Sistema de Seguranccedila
Interna (SISSEGIN) passariam a ser a principal instituiccedilatildeo na repressatildeo aos opositores
da ditadura militar brasileira Seis desses opositores aprisionados no DOI-CODI do Rio
de Janeiro em meio ao primeiro ano de sua existecircncia tecircm na passagem por esse espaccedilo
prisional um elo fundamental entre suas memoacuterias Como essas memoacuterias satildeo o objeto
de estudo da presente dissertaccedilatildeo para melhor entendecirc-las primeiramente torna-se de
extrema importacircncia lanccedilar um olhar mais apurado sobre como foram construiacutedos e de
que forma atuavam os DOI-CODI Logo a anaacutelise sobre a criaccedilatildeo e o funcionamento
dessa instituiccedilatildeo eacute o objetivo desse primeiro capiacutetulo
Esta anaacutelise se estrutura a partir de trecircs frentes distintas 1) o debate
historiograacutefico 2) a monografia O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI)
do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e
perspectiva escrita em 1978 pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira
3) os depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de
Janeiro concedidos entre os anos de 2002 e 2004
Como dito a primeira frente de estudo analisa a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-
CODI agrave luz da historiografia Autores e conceitos foram selecionados tendo em vista
questotildees significativas para analisar a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI 1) o papel
da ESG para a criaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional 2) os conceitos de legalidade
autoritaacuteria e cizacircnia militar 3) a montagem e o funcionamento do SISSEGIN
Para abordar o papel da ESG na construccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional
parte-se da tese de Maria Helena Moreira Alves (2005) em que a autora defende a ideia
de que a institucionalizaccedilatildeo do Estado de Seguranccedila Nacional no Brasil se fez a partir
do papel determinante da Doutrina de Seguranccedila Nacional (DSN) construiacuteda pela
30
Escola Superior de Guerra (ESG) nos anos 1950 Entende-se que este destacado papel
da ideologia esguiana para a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional da ditadura
militar brasileira teve ligaccedilatildeo direta com a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI Afinal
com a DSN surge o conceito de seguranccedila interna que serve como base para a
montagem do aparelho repressivo ditatorial no qual os DOI-CODI duas deacutecadas
depois seriam inseridos
Os conceitos de legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar satildeo aqui utilizados como
ferramentas elucidativas por auxiliarem na anaacutelise de como durante os primeiros anos
de ditadura militar a imperativa forma de legislar o paiacutes e as crises que por disputas
poliacuteticas ameaccedilaram a unidade institucional militar foram essenciais para a formaccedilatildeo e
atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
Nesse sentido a legalidade autoritaacuteria assim designada por Anthony Pereira
(2010) eacute aqui utilizada para destacar de que forma a preocupaccedilatildeo da ditadura militar
brasileira em respaldar legalmente seus atos ainda que arbitrariamente propiciou um
respaldo legal agrave repressatildeo poliacutetica e por conseguinte aos DOI-CODI Logo este
conceito serve para iluminar o entendimento de que a formaccedilatildeo de um aparato de
seguranccedila interna forte centralizado e violento como os DOI-CODI foi possibilitado
respaldado e sustentado no Brasil por um significativo amparo legal A ditadura militar
atraveacutes dessa preocupaccedilatildeo legal atiacutepica a um regime de cunho totalitaacuterio reiterava sua
imagem de regime democraacutetico de exceccedilatildeo perante a sociedade e ao mesmo tempo
possibilitava a criaccedilatildeo de um dos maiores organismos repressores que uma ditadura da
Ameacuterica Latina jaacute havia criado os DOI-CODI
Outro conceito necessaacuterio para entender a construccedilatildeo do cenaacuterio legal que
propiciaria a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI eacute o de cizacircnia militar elaborado por
Martins Filho em sua tese de doutorado A dinacircmica militar das crises poliacuteticas na
31
ditadura (1964-1969) de 1993 em que o autor destaca os conflitos internos no seio
militar que acabariam resultando em dissidecircncias Ao analisar esses conflitos como fator
decisivo para a compreensatildeo dos rumos da ditadura Martins Filho apresenta uma
abordagem diferente da maioria dos estudiosos sobre o tema Ao inveacutes de partir de uma
suposta dicotomia entre dois grupos estanques divididos rigidamente entre a linha dura
e os castelistas apresenta uma visatildeo mais fluida de grupos militares que oscilavam na
forma de agir o palaacutecio representando os militares de altas patentes ocupantes de
cargos poliacuteticos e a caserna militares de patentes meacutedias que trabalhavam nas
instituiccedilotildees militares Esta abordagem eacute crucial para o presente trabalho uma vez que a
base da formaccedilatildeo e da atuaccedilatildeo dos DOI-CODI estava diretamente relacionada agraves
cizacircnias militares e seus decorrentes acontecimentos poliacuteticos Afinal apesar dos DOI-
CODI serem uma instituiccedilatildeo composta por militares das mais diversas posiccedilotildees
hieraacuterquicas a sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo foram estruturadas a partir principalmente de
reivindicaccedilotildees da caserna que com a implantaccedilatildeo dos DOI-CODI passou a ter poderes
poliacuteticos extraordinaacuterios jaacute que se tornava responsaacutevel pelas accedilotildees de prisotildees
apreensotildees e interrogatoacuterios dos perseguidos poliacuteticos
Finalmente para analisar a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Interna o
SISSEGIN composto entre outros pelos DOI-CODI partimos da anaacutelise feita por
Carlos Fico em sua obra Como eles agiam de 2001 Ao ter acesso a documentos
sigilosos sobre a formaccedilatildeo do SISSEGIN e a regulamentaccedilatildeo operacional dos DOI-
CODI Fico caracteriza de forma ineacutedita na historiografia a formaccedilatildeo e o
funcionamento de ambos os oacutergatildeos sendo portanto um referencial historiograacutefico
indispensaacutevel agrave minha pesquisa
Ainda no que toca agrave formaccedilatildeo do SISSEGIN e dos DOI-CODI tambeacutem eacute de
grande valia a tese exposta por Maria Celina DrsquoArauacutejo em Os anos de Chumbo a
32
memoacuteria militar sobre a repressatildeo (1994) de que assim como em qualquer instituiccedilatildeo
militar era alto o grau de hierarquia e coordenaccedilatildeo presente nos DOI-CODI o que natildeo
impedia no entanto que houvesse brechas para uma perda de controle institucional
Logo uma das peculiaridades da atuaccedilatildeo dos DOI-CODI entendido pela a autora como
uma espeacutecie de sofisticaccedilatildeo da repressatildeo era a convivecircncia da obediecircncia hieraacuterquica
militar com a falta de controle sobre algumas accedilotildees deixando que procedimentos natildeo
regulamentares tais como a tortura pudessem ser efetivados com recorrecircncia
A segunda e a terceira frentes de estudo do presente capiacutetulo analisam as visotildees de
atores que de uma forma ou de outra viveram em algum dos DOI-CODI Portanto
diferentes do debate historiograacutefico que tem particular distanciamento analiacutetico do
objeto e preza por se aproximar da imparcialidade e tambeacutem diferentes entre si essas
fontes satildeo influenciadas por seus atoresnarradores e pelas eacutepocas em que foram
construiacutedas
Na segunda frente pode-se dizer que a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI satildeo
analisadas a partir dos proacuteprios DOI-CODI jaacute que nessa etapa debruccedila-se sobre o
estudo O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do Exeacutercito Brasileiro
Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo de um de seus agentes diretos o coronel de
cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira Conhecido entre os presos poliacuteticos do DOI do Rio
de Janeiro do iniacutecio dos anos 1970 como o torturador de codinome ldquoNagibrdquo coronel
Pereira apresentou a referida monografia agrave Escola de Comando e Estado Maior do
Exeacutercito (ECEME) em 1978 quando os DOI-CODI apesar de atuantes jaacute estavam em
decadecircncia Tratava-se de uma eacutepoca em que o presidente Ernesto Geisel comandava a
abertura poliacutetica ldquolenta gradual e segurardquo do paiacutes e vinha diminuindo o poder delegado
aos DOI-CODI que passavam a ter o seu pessoal reduzido e suas accedilotildees apenas voltadas
agrave espionagem e natildeo mais ao combate direto de opositores poliacuteticos jaacute que devido agraves
33
inuacutemeras denuacutencias sobre violaccedilotildees aos Direitos Humanos no Brasil era forte o
desgaste que a ditadura sofria perante a comunidade internacional Em meio a esse
cenaacuterio o coronel em questatildeo construiu tal monografia motivado a por um lado provar
a importacircncia e a necessidade do trabalho de repressatildeo feito nos DOI-CODI e assim
tentar reverter a reduccedilatildeo de suas atividades e por outro conseguir uma promoccedilatildeo na
carreira militar visto que a ECEME eacute uma escola destinada agrave preparaccedilatildeo de oficiais
superiores para o exerciacutecio de funccedilotildees de Estado-Maior A partir disso essa monografia
apresenta dados representativos do poder coercitivo dos DOI do iniacutecio dos anos 1970
bem como a descriccedilatildeo dos afazeres de cada uma de suas seccedilotildees o que traz uma forte
contribuiccedilatildeo para a anaacutelise aqui traccedilada
Por fim na terceira e uacuteltima frente a anaacutelise da formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-
CODI eacute efetuada por meio de outro tipo de fonte que tem por base a memoacuteria os
depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de Janeiro a
mim fornecidos entre os anos de 2002 e 2004 Como essas entrevistas foram concedidas
durante a passagem dos governos dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso
(1995-2002) e Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva (2003-2010) ex-perseguidos poliacuteticos da
ditadura militar que entre seus feitos agrave frente da poliacutetica brasileira agiram no sentido
de reparar danos sofridos pelos perseguidos poliacuteticos daquele periacuteodo esse presente
nelas imprimiu fortes influecircncias Afinal trata-se de memoacuterias sobre o passado vivido
em uma das instituiccedilotildees de repressatildeo mais violentas da eacutepoca o DOI-CODIRJ
construiacutedas a partir de um presente em que jaacute vigorava a lei nordm 9140 de 1995 que
reconhecia mortos e desaparecidos pela ditadura militar e indenizava suas famiacutelias e
havia sido aprovada a lei nordm 10559 de 2002 que reparava financeiramente aqueles que
tivessem sofrido perseguiccedilatildeo ou maus tratos dentro de instituiccedilotildees do Estado durante o
periacuteodo de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988
34
Percebe-se claramente a ideia de presente do passado de Robert Frank (1999)
como um dos principais aspectos criacuteticos aqui aplicados a essas memoacuterias Afinal o
fato de durante o periacuteodo em que se deram as entrevistas conhecidos opositores agrave
ditadura militar estarem agrave frente do governo brasileiro e grande nuacutemero de ex-
prisioneiros poliacuteticos inclusive os entrevistados buscarem se beneficiar da lei nordm
1055902 faz com que o presente seja aqui considerado o elemento organizador dessas
memoacuterias
Essa perspectiva de presente do passado eacute portanto um dos elementos criacuteticos
aplicados a essas memoacuterias que sobre elas trabalham a fim de aqui tornaacute-las objeto da
histoacuteria Dessa forma percebe-se na presente anaacutelise a perspectiva elucidada por Pierre
Nora (1993) ao diferir o trabalho da memoacuteria do trabalho da histoacuteria Afinal o que os
diferencia satildeo justamente os aspectos fluidos da memoacuteria tais como as emoccedilotildees e as
influecircncias conjunturais a que estaacute a todo tempo submetida que aqui satildeo minimizados
pelos aspectos criacuteticos objetivos e analiacuteticos peculiares agrave histoacuteria
35
1 Debate Historiograacutefico
11 O papel da ESG para o Sistema de Seguranccedila Nacional
O golpe civil-militar ocorrido no Brasil em 31 de marccedilo de 1964 quando o
presidente Joatildeo Goulart foi deposto e se instalou um regime militar no paiacutes teria sido
precedido por uma elaborada desestabilizaccedilatildeo poliacutetica que de acordo com Maria Helena
Moreira Alves (2005) envolveu tanto corporaccedilotildees multinacionais o governo dos
Estados Unidos quanto o capital brasileiro associado-dependente e os militares
brasileiros destacando-se entre esses um grupo de oficiais da Escola Superior de Guerra
(ESG) Essa ldquoconspiraccedilatildeordquo foi efetivada anos antes ainda no iniacutecio dos anos 1950 por
instituiccedilotildees civis como o Instituto Brasileiro de Accedilatildeo Democraacutetica (IBAD) e o Instituto
de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) sob a coordenaccedilatildeo da ESG A Doutrina de
Seguranccedila Nacional e Desenvolvimento (DSN) ministrada pela mesma Escola era a
justificativa ideoloacutegica perfeita para a tomada do poder e para o autoritarismo como
uma forma de governo
Um dos criadores dessa doutrina Golbery do Couto e Silva era desde 1952
adjunto do Departamento de Estudos da ESG estabelecimento subordinado ao Estado
Maior das Forccedilas Armadas (EMFA) criado em 1948 com a assistecircncia de consultores
franceses e norte-americanos a fim de desenvolver e consolidar os conhecimentos
necessaacuterios para o exerciacutecio das funccedilotildees de direccedilatildeo e para o planejamento da Seguranccedila
Nacional Dentro da ESG Golbery encontrou condiccedilotildees favoraacuteveis para impulsionar
teses que defenderiam o ecircxito de um projeto global de desenvolvimento em cujas
tarefas o Estado deveria se associar agrave iniciativa privada atraveacutes do apoio intermediaacuterio
de uma elite tecnocraacutetica civil e militar ideologicamente comprometida com um
conjunto de ldquoobjetivos nacionais permanentesrdquo garantindo assim a Seguranccedila
Nacional Essas teses vieram posteriormente a constituir a base do programa da ESG
36
passando a ser conhecidas pela Doutrina de Seguranccedila Nacional (DSN) A DSN
sustentava ainda em meio agrave Guerra Fria o posicionamento do Brasil ao lado do
Ocidente logo em confronto com o bloco sovieacutetico considerando a preservaccedilatildeo da
seguranccedila o fator fundamental de promoccedilatildeo do desenvolvimento Previa dessa forma a
possiacutevel supressatildeo de alguns valores definidores da ordem democraacutetica devido agrave
necessidade de uma progressiva centralizaccedilatildeo de poderes
Para Moreira Alves o grande feito do ldquocomplexo ESGIPESIBADrdquo foi a criaccedilatildeo
antes do golpe de 1964 de uma rede de informaccedilotildees e de uma Doutrina de Seguranccedila
Nacional e Desenvolvimento ambas coordenadas por Golbery para nortear o que viria
a ser um Estado efetivamente centralizado Essa tese eacute sustentada ao se notar que o
general Castelo Branco como primeiro presidente do Estado ditatorial brasileiro
compocircs seus ministeacuterios quase totalmente com membros e colaboradores do complexo
ESGIPESIBAD A DSN passou entatildeo a ser utilizada para moldar as estruturas de
Estado impor formas especiacuteficas de controle para a sociedade civil e delinear um
projeto de governo para o Brasil Assim com destaque para a seguranccedila interna
ameaccedilada pelo comunismo a Doutrina de Seguranccedila Nacional passou a induzir ao
abuso de poder a prisotildees arbitraacuterias agrave tortura e agrave censura agrave imprensa e agraves artes de
forma geral
Eacute interessante perceber que a formulaccedilatildeo da DSN feita pela ESG em colaboraccedilatildeo
com o IPES e o IBAD ao longo de 25 anos tinha como base uma teoria de guerra que
nortearia a atuaccedilatildeo repressora do governo militar A partir do Manual Baacutesico da Escola
Superior de Guerra e dos escritos de Golbery do Couto e Silva em Conjuntura Poliacutetica
Nacional o poder executivo amp a geopoliacutetica do Brasil Moreira Alves destaca os tipos
de guerra apresentados pela Doutrina guerra total guerra limitada ou localizada
guerra revolucionaacuteria ou insurrecional guerra indireta ou ideoloacutegica
37
De acordo com estes paracircmetros a teoria da guerra total baseava-se na estrateacutegia
militar da Guerra Fria deixando de ser estritamente militar para ser tambeacutem econocircmica
financeira poliacutetica psicoloacutegica e cientiacutefica atingindo o mundo de forma global Logo
como as potecircncias envolvidas natildeo podiam travar uma guerra ativa pois existia a
possibilidade de uma destruiccedilatildeo completa e universal a guerra total passou a assumir
diversas formas Ela se destrinchava em guerras limitadas ou localizadas pelas quais as
duas superpotecircncias mediam suas respectivas capacidades de controlar territoacuterios Aleacutem
disso havia as guerras declaradas consideradas claacutessicas e as natildeo-declaradas que
correspondiam agraves formas de guerra revolucionaacuteria ou insurrecional
Essas guerras natildeo-declaradas ou natildeo-claacutessicas representavam uma guerra de
agressatildeo indireta A insurrecional eacute caracterizada como um conflito interno em que
parte da populaccedilatildeo armada busca a deposiccedilatildeo do governo Jaacute a guerra revolucionaacuteria
natildeo envolve necessariamente o emprego da forccedila armada mas significa um conflito
normalmente interno estimulado ou auxiliado do exterior inspirado normalmente em
uma ideologia e que visa agrave conquista do poder pelo controle progressivo da naccedilatildeo A
guerra revolucionaacuteria se referia portanto agrave infiltraccedilatildeo comunista internacional
associada ao bloco sovieacutetico Neste tipo de guerra a guerra ideoloacutegica substituiacutea a
convencional entendida como o enfrentamento direto entre Estados em suas fronteiras
geograacuteficas A caracteriacutestica principal da guerra revolucionaacuteria de acordo com o
Manual Baacutesico da ESG era o envolvimento da populaccedilatildeo do paiacutes-alvo por meio da
conquista ideoloacutegica
[] abrangendo desde a exploraccedilatildeo dos descontentamentos existentes com o
acirramento de acircnimos contra as autoridades constituiacutedas ateacute a organizaccedilatildeo
de zonas dominadas com o recurso agrave guerrilha ao terrorismo e outras taacuteticas
irregulares onde o proacuteprio nacional do paiacutes-alvo eacute utilizado como
combatente (Alves 2005 45)
38
Como a guerra revolucionaacuteria recrutava seus combatentes secretamente toda a
populaccedilatildeo tornava-se suspeita e portanto deveria ser cuidadosamente controlada para
que os ditos ldquoinimigos internosrdquo pudessem ser neutralizados A partir desse
entendimento de guerra revolucionaacuteria que segundo a ESG assombrava o paiacutes cria-se a
necessidade de um planejamento de Seguranccedila Nacional adaptado a essa conjuntura e
por conseguinte de um eficiente e centralizado aparato de informaccedilotildees internas
A partir disso a Constituiccedilatildeo de 1967 criou o Conselho de Seguranccedila Nacional
oacutergatildeo da Presidecircncia da Repuacuteblica responsaacutevel por supervisionar a defesa da seguranccedila
interna e principalmente modificou o significado de Seguranccedila Nacional que desde a
Constituiccedilatildeo de 1946 era associado agrave agressatildeo externa ou seja agrave defesa das fronteiras
territoriais A ameaccedila agrave Seguranccedila Nacional passava entatildeo a ser oficialmente definida
mais como uma ameaccedila agraves fronteiras ideoloacutegicas do que agraves territoriais Portanto ao criar
o Conselho de Seguranccedila Nacional e mudar o entendimento sobre a Seguranccedila
Nacional a Constituiccedilatildeo de 1967 abria o caminho necessaacuterio agrave adaptaccedilatildeo agrave teoria de
seguranccedila interna estipulada anos antes pela ESG
Esta teoria de seguranccedila interna dotou entatildeo o Estado de justificativa para
controlar e reprimir a populaccedilatildeo em geral O caraacuteter oculto da ameaccedila interna tornou
praticamente impossiacutevel se estabelecer limites para as accedilotildees repressivas do Estado e dos
militares e por isso mesmo fragilizou a defesa dos direitos humanos no paiacutes Afinal
todo cidadatildeo passava a ser culpado ateacute que fosse provada a sua inocecircncia Por meio
desse pensamento a raiz dos abusos de poder perpetrados pelo Estado se estruturou Por
isso defende-se aqui que a institucionalizaccedilatildeo dessa crenccedila no inimigo interno criada
pela ESG antes mesmo do golpe civil-militar estimulou a ditadura a nortear o
desenvolvimento das suas estruturas defensivas da sua articulada rede de informaccedilotildees
poliacuteticas e ainda do seu aparato repressivo de controle armado onde os DOI-CODI a
39
partir de 1970 tambeacutem estariam inseridos
12 Os conceitos legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar
Essa crenccedila no inimigo interno criada pela ESG norteou a Seguranccedila Nacional
durante a ditadura militar que se substanciou atraveacutes da alta legalidade autoritaacuteria e
das medidas criadas pelo governo como forma de conter as cizacircnias militares Esses trecircs
fatores juntos contribuiacuteram para consolidaccedilatildeo dos DOI-CODI por todo paiacutes
respaldando a atuaccedilatildeo altamente autoritaacuteria e violenta desses oacutergatildeos
A partir disso o conceito de legalidade autoritaacuteria construiacutedo pelo cientista
poliacutetico norte-americano Anthony Pereira (2010) ajuda a evidenciar como a existecircncia
de laccedilos entre o autoritarismo e o estado de direito do regime militar no Brasil ajudou na
configuraccedilatildeo de uma instituiccedilatildeo como o DOI-CODI Afinal a legalidade autoritaacuteria
identifica as coexistecircncias entre o autoritarismo ditatorial e a continuidade das
instituiccedilotildees juriacutedicas anteriores ao Golpe bem como entre o autoritarismo ditatorial e a
praacutetica de elaboraccedilatildeo de leis ainda que tambeacutem autoritaacuterias
Percebe-se assim que o Brasil obteve um alto grau de legalidade autoritaacuteria na
medida em que a legislaccedilatildeo foi amplamente arbitrada pelo Poder Executivo como forma
de legalizar arbitrariedades poliacuteticas e suprimir direitos da populaccedilatildeo Assim foi
construiacuteda uma sustentaccedilatildeo juriacutedica e poliacutetica necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um aparato de
seguranccedila cada vez mais forte e centralizado que garantiu a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos
DOI-CODI
Afinal a legalidade autoritaacuteria vivenciada no Brasil se baseava na confecccedilatildeo pelo
Poder Executivo de leis publicadas em meios de comunicaccedilatildeo oficiais a fim de
respaldar arbitrariedades A partir dessas leis instrumento associado ao sistema
democraacutetico o governo militar centralizava e reforccedilava o seu poder ditatorial tornando
40
nebuloso o sistema em vigor naquele momento no Brasil Ou seja apesar da existecircncia
de uma ditadura militar consolidada havia integraccedilatildeo entre as Forccedilas Armadas e o
Poder Judiciaacuterio ndash que norteava os seus julgamentos pelas novas leis arbitraacuterias
legitimando-as ndash bem como a manutenccedilatildeo do Congresso em funcionamento na maior
parte do tempo Dessa forma a legalidade autoritaacuteria era um elo entre o autoritarismo
ditatorial e o estado de direito conseguindo fazer parecer por algum tempo que o paiacutes
vivenciava um sistema democraacutetico excepcional A praacutetica da legalidade autoritaacuteria na
forma de atos institucionais da Constituiccedilatildeo de 1967 e de leis de Seguranccedila Nacional
por exemplo forneceu os suportes legais necessaacuterios agrave construccedilatildeo do SISSEGIN e agrave
formaccedilatildeo e agrave atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
Aleacutem disso essa praxe da ditadura de agir por meio de leis arbitraacuterias na maior
parte das vezes se relaciona com as cizacircnias militares provocadas no seio dessa
instituiccedilatildeo como reflexos de acontecimentos poliacuteticos Afinal grande parte das leis
autoritaacuterias foram artifiacutecios usados como forma de acalmar os acircnimos na caserna
formada por militares de meacutedias e baixas patentes que reivindicavam mais poder
poliacutetico Assim para conter a oposiccedilatildeo poliacutetica e tambeacutem as reivindicaccedilotildees de poder da
caserna desenharam-se leis arbitraacuterias capazes de suportar um organismo de repressatildeo
onde esses militares trabalhariam com certa autonomia tal como viriam a ser os DOI-
CODI Logo percebe-se aqui que juntamente com a legalidade autoritaacuteria a leitura
dos encaminhamentos poliacutetico-militares feita por Joatildeo Roberto Martins Filho (1993)
sob a luz de conceitos como o de cizacircnias militares baseadas em dissidecircncias militares
internas entre o palaacutecio e a caserna tambeacutem ilumina o entendimento sobre a formaccedilatildeo
e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
Tais encaminhamentos poliacuteticos militares tecircm iniacutecio no dia 9 de abril dez dias
apoacutes o golpe civil-militar de 1964 e ainda antes da posse de Castelo Branco em 15 de
41
abril quando o Comando Supremo da Revoluccedilatildeo baixou um ato institucional
posteriormente conhecido como AI-1 que conferia aos militares o poder de puniccedilatildeo a
crimes de cidadatildeos contra o Estado seu patrimocircnio e contra a ordem poliacutetica e social
No entanto o AI-1 previa tambeacutem a possibilidade de passar este poder para as matildeos do
novo presidente da Repuacuteblica dois meses apoacutes a sua posse colocando oficialmente o
Poder Executivo acima dos demais Assim Costa e Silva integrante do Comando e
futuro ministro da Guerra fez expedir um pouco antes da posse de Castelo Branco em
complemento ao AI-1 o Ato do Comando Supremo da Revoluccedilatildeo nordm 9 e a Portaria nordm1
que davam continuidade ao poder de puniccedilatildeo dos militares mesmo depois da posse de
Castelo Branco Com isso foram criadas as condiccedilotildees para que coroneacuteis tenentes-
coroneacuteis majores e capitatildees6 continuassem agindo na caccedila ao ldquoinimigo internordquo
O Ato do Comando Supremo da Revoluccedilatildeo nordm 9 estabelecia que os militares
encarregados de inqueacuteritos e processos (de suspensotildees de direitos poliacuteticos cassaccedilotildees
de mandatos etc) poderiam delegar atribuiccedilotildees referentes a investigaccedilotildees bem como
requisitar inqueacuteritos ou sindicacircncias instituiacutedas por outras esferas Jaacute a Portaria nordm1
determinava a abertura de Inqueacuterito Policial Militar (IPM) para apuraccedilatildeo de crimes
praticados contra o Estado e a ordem poliacutetica social
No entanto no dia 15 de junho de 1964 juntamente com o teacutermino da validade do
AI-1 acabaria tambeacutem o prazo dos militares cassarem mandatos e suspenderem direitos
poliacuteticos Tais militares requisitaram que o poder a eles concedido natildeo fosse cessado o
que foi negado pelo entatildeo presidente Castelo A partir disso a insatisfaccedilatildeo desses
militares acabou por causar o surgimento de uma primeira e consideraacutevel discoacuterdia
interna agrave instituiccedilatildeo militar uma primeira cizacircnia militar A partir dessa situaccedilatildeo de
conflito surge entatildeo a chamada linha dura que se formou atraveacutes do eco que um
6 Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II
42
conjunto de pressotildees da jovem oficialidade nessa fase inicial da ditadura encontrou em
meio a alguns ldquoherdeiros civisrdquo do regime e em setores da hierarquia militar Dessa
forma a linha dura foi formada por grupos heterogecircneos de composiccedilatildeo variaacutevel e
ideologia difusa
Logo assim como Martins Filho e diferentemente da interpretaccedilatildeo de grande
parte dos historiadores acredita-se que mesmo em termos ideoloacutegicos a linha dura
estava longe de ser um grupo homogecircneo tendo por denominador comum apenas duas
caracteriacutesticas
Em primeiro lugar as reivindicaccedilotildees de maior rigor na ldquodepuraccedilatildeordquo do
sistema poliacutetico em segundo lugar as expectativas de influenciar
diretamente o processo de tomadas de decisotildees do governo militar Tanto em
um como em outro aspecto suas accedilotildees provocariam problemas para o
governo de Castelo Branco (Martins Filho 1993 61)
Portanto o governo Castelo Branco logo teve que se deparar com a questatildeo da
participaccedilatildeo poliacutetica do conjunto da categoria militar no regime ditatorial Sem atribuir
ao presidente uma visatildeo mais liberal ndash diferentemente daqueles que interpretam as
medidas mais ldquodurasrdquo de Castelo como resultado das pressotildees da linha dura ndash pondera-
se aqui que por parte do governo o redirecionamento de objetivos iniciais era
recorrente sempre que a situaccedilatildeo exigia uma reavaliaccedilatildeo Dessa forma percebe-se que
os rumos poliacuteticos escolhidos pela ditadura tinham como finalidade a preservaccedilatildeo da
hierarquia e da aparente homogeneidade da instituiccedilatildeo castrense o que demandava a
contenccedilatildeo das instabilidades internas
A partir dessa perspectiva destaca-se o caraacuteter flutuante dos conflitos internos ao
regime decorrentes da incompatibilidade de interesses poliacuteticos entre os militares de
altas patentes que possuiacuteam cargos no governo ditatorial representados
43
metaforicamente pelo palaacutecio e militares de meacutedias e baixas patentes que eram
responsaacuteveis por serviccedilos internos a caserna Nesse sentido evidencia-se por exemplo
que apoacutes ser retirado da caserna o poder de cassaccedilatildeo de mandatos e de suspensatildeo de
direitos poliacuteticos as derrotas dos candidatos aliados ao regime ditatorial nas eleiccedilotildees
para governador nos estados da Guanabara e de Minas Gerais em outubro de 1965
ocasionou uma forte divergecircncia entre o palaacutecio e a caserna resultando uma
instabilidade castrense que desembocou em mais uma cizacircnia militar Diante disso na
tentativa de apaziguar a instabilidade militar e por conseguinte os acircnimos da caserna
no fim desse mesmo mecircs Castelo Branco decretaria o AI-27 com vigecircncia prevista ateacute
15 de marccedilo de 1967
Afinal atraveacutes desse Ato a caserna aleacutem de passar a influir no acircmbito da poliacutetica
comeccedilava a ganhar poderes extras Nele se estabelecia a possibilidade de suspensatildeo de
direitos poliacuteticos e de cassaccedilatildeo de mandatos de parlamentares imposiccedilatildeo da eleiccedilatildeo
indireta para a Presidecircncia da Repuacuteblica permissatildeo para o presidente da Repuacuteblica
decretar o recesso do Congresso Nacional e das demais casas legislativas extinccedilatildeo de
partidos poliacuteticos delegaccedilatildeo ao presidente da Repuacuteblica do poder de legislar por
decretos-leis estabelecimento de foro especial militar para civis acusados de crimes
contra a Seguranccedila Nacional ou as instituiccedilotildees militares suspensatildeo das garantias de
vitaliciedade inamovibilidade (dos juiacutezes) e de estabilidade (dos servidores puacuteblicos)
ampliaccedilatildeo de 11 para 16 ministros do Supremo Tribunal Federal (Ato Institucional Nordm2
27 out 1965)
Com a cassaccedilatildeo de mandatos suspensatildeo de direitos poliacuteticos e demissatildeo de
funcionaacuterios puacuteblicos a caserna conseguia alguma interferecircncia nos assuntos poliacuteticos
e com a decretaccedilatildeo de foro militar especial para civis acusados de crimes contra a
7 Para mais informaccedilotildees sobre o AI-2 ver BRASIL Ato Institucional Nordm2 de 27 de outubro de 1965
44
Seguranccedila Nacional ou instituiccedilotildees militares comeccedilava a ganhar um espaccedilo proacuteprio e
aos poucos formar um grupo disposto a agir por sua conta sem maiores consideraccedilotildees
pelas normas legais tendendo a fazer valer suas ideias pela forccedila A futura comunidade
de seguranccedila comeccedilava entatildeo a ser desenhada e a formar o caraacuteter e a atuaccedilatildeo dos
futuros membros de seus oacutergatildeos A montagem do sistema de seguranccedila interna em que
os DOI-CODI seriam inseridos iria a partir das primeiras leis das desavenccedilas internas
e da deflagraccedilatildeo dos primeiros Atos Institucionais se tornando viaacutevel
Entretanto mesmo apoacutes o AI-2 a crise no regime castrense continuava A
caserna ansiosa por mais espaccedilo poliacutetico comeccedilava a se organizar para a ascensatildeo de
outra forccedila ao governo se articulando em torno do entatildeo ministro da Guerra o general
Costa e Silva A desuniatildeo hieraacuterquica provocada pela disputa sucessoacuteria se configurava
naquele momento como um importante fator da crise do regime militar Em meio a este
clima de tensatildeo Castelo Branco e seus partidaacuterios os ditos castelistas se preocupavam
com a ldquoinstitucionalizaccedilatildeo da revoluccedilatildeordquo Diante dessa configuraccedilatildeo a ldquorevoluccedilatildeo
castelistardquo de fato acabou sendo implantada pelo presidente e os pilares de seu
processo foram a Lei de Seguranccedila Nacional e a Constituiccedilatildeo de 1967
A Carta de 1967 incorporou boa parte das medidas autoritaacuterias estabelecidas pelos
atos institucionais Entre essas as que instituiacuteam que toda pessoa natural ou juriacutedica
seria responsaacutevel pela Seguranccedila Nacional nos limites definidos em lei e que o foro
militar previsto no AI-2 por limitado periacuteodo de tempo ficaria definitivamente
estendido aos civis por tempo indeterminado nos casos de crimes contra a Seguranccedila
Nacional Jaacute a Lei de Seguranccedila Nacional reflexo tambeacutem do caraacuteter ldquodurordquo do final do
governo Castelo transformava em legislaccedilatildeo a Doutrina de Seguranccedila Nacional da
ESG legalizando a concepccedilatildeo de ldquoguerra internardquo e de ldquosubversatildeordquo dois dias antes da
chegada de Costa e Silva ao poder presidencial Essas uacuteltimas medidas do governo de
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Castelo merecem aqui destaque por significarem um impulso agrave criaccedilatildeo de um setor
voltado para a repressatildeo poliacutetica seara em que os DOI-CODI atuariam anos agrave frente
Assim em meio a um clima anti-castelista em 15 de marccedilo de 1967 Costa e
Silva assume o governo militar prometendo inclusive uma maior humanizaccedilatildeo da
poliacutetica Entretanto com a eclosatildeo de protestos de rua contra a violecircncia ditatorial o
novo presidente logo retomaria o aspecto ldquorevolucionaacuteriordquo do regime militar e
decretaria o Ato Institucional Nordm5 (AI-5) 8
Afinal a partir dos discursos do deputado
Maacutercio Moreira Alves evocando os brasileiros a natildeo comparecerem ao tradicional
desfile do dia sete de setembro daquele ano de 1968 Costa e Silva e o palaacutecio passaram
a ser extremamente pressionados pela caserna a reagir A recusa da Cacircmara dos
Deputados em abrir um processo para cassaccedilatildeo do entatildeo deputado foi a justificativa
necessaacuteria para que o presidente convocasse a cuacutepula do aparelho militar e os juristas
palacianos para darem forma ao AI-5 vindo a decretaacute-lo na noite do dia 13 de dezembro
de 1968
Percebe-se que a conjuntura de 1968 iniciado com os protestos estudantis de
massa tornou pela primeira vez desde o golpe de 1964 momentaneamente unificado o
movimento de repuacutedio de expressivos setores sociais ao avanccedilo da repressatildeo militar
Este fato que a princiacutepio pode fazer crer ter estimulado uma desuniatildeo militar parece
ter sido um fator adicional de uniatildeo das Forccedilas Armadas As tensotildees internas agrave
instituiccedilatildeo portanto foram neste momento colocadas em suspenso e a situaccedilatildeo militar
diante da ofensiva da oposiccedilatildeo teria criado uma espeacutecie de unidade de crise Poreacutem
esta unidade de crise das Forccedilas Armadas rapidamente se fragmentou trazendo agrave tona
novamente em meados de 1968 um variado e complexo conjunto de tensotildees no campo
militar Esta unidade no entanto voltaria a existir em torno da decretaccedilatildeo do AI-5 apoacutes
8 Para mais informaccedilotildees sobre o AI-5 ver BRASIL Ato Institucional Nordm5 de 13 de dezembro de 1968
46
a derrota na votaccedilatildeo no Congresso e quando as pressotildees da caserna em prol da
militarizaccedilatildeo do governo se voltaram para o palaacutecio
Nesse momento os generais do governo se sentiram muito mais ameaccedilados do
que na jaacute mencionada instabilidade gerada pelas derrotas nas eleiccedilotildees para governador
de 1965 O fato da oficialidade rebelde de entatildeo natildeo ter um porta-voz em postos de
comando como era na eacutepoca Costa e Silva e por isso parecer mais difusa a tornava
mais ameaccediladora agrave integridade da instituiccedilatildeo militar Assim a explicaccedilatildeo para
juntamente com a caserna os generais cobrarem do Ministro do Exeacutercito uma imediata
tomada de decisatildeo em favor da ldquoRevoluccedilatildeordquo estava portanto na busca pela
permanecircncia de uma unidade das Forccedilas Armadas Dessa forma momentos antes do AI-
5 a unidade da crise novamente se formou soacute que dessa vez por motivos inerentes
unicamente agrave proacutepria instituiccedilatildeo militar (Martins Filho 1993 158-174)
O AI-5 foi ateacute entatildeo a maior expressatildeo legal do autoritarismo da ditadura militar
e construiu uma base essencial para que em 1970 surgissem os DOI-CODI Afinal
aleacutem de natildeo estabelecer um prazo final para sua vigecircncia inovando em relaccedilatildeo aos
demais Atos Institucionais o AI-5 tornou legal a suspensatildeo da garantia de ldquohabeas
corpusrdquo nos casos de crimes poliacuteticos contra a Seguranccedila Nacional Logo a partir
desse Ato foram estabelecidas as condiccedilotildees necessaacuterias para a institucionalizaccedilatildeo dos
sistemas de seguranccedila e de informaccedilotildees bem como o surgimento da Comissatildeo Geral de
Investigaccedilotildees (CGI) na tentativa de combate agrave corrupccedilatildeo O sistema de seguranccedila
esboccedilado naquele momento buscava o aperfeiccediloamento sob a eacutegide da ldquoguerra
revolucionaacuteriardquo mencionada no preacircmbulo do proacuteprio AI-5
Considerando que assim se torna imperiosa a adoccedilatildeo de medidas que
impeccedilam que sejam frustrados os ideais superiores da Revoluccedilatildeo
preservando a ordem a seguranccedila a tranquilidade o desenvolvimento
econocircmico e cultural e a harmonia poliacutetica e social do Paiacutes comprometidos
47
por processos subversivos e de guerra revolucionaacuteria (Ato Institucional nordm
5 13 dez 1968)
Logo as cizacircnias militares e a legislaccedilatildeo a elas relacionada contribuiacuteram para a
formaccedilatildeo do cenaacuterio propiacutecio agrave institucionalizaccedilatildeo do aparato de repressatildeo Aparato este
que a partir do AI-5 foi se estruturando em trecircs grandes sistemas o SISNI Sistema
Nacional de Informaccedilotildees a CGI Comissatildeo Geral de Investigaccedilotildees e o SISSEGIN
Sistema de Seguranccedila Interna Este ao ser criado abriria espaccedilo para a repressatildeo
poliacutetica centralizada e institucionalizada dos DOI-CODI
13 A montagem e o funcionamento do SISSEGIN
Ao longo dos anos 70 os DOI-CODI passariam a ser os principais oacutergatildeos de
atuaccedilatildeo do SISSEGIN e um dos pontos centrais do aparelho de repressatildeo brasileiro Ao
seu lado em outras esferas de competecircncia estavam os oacutergatildeos do Sistema Nacional de
Informaccedilotildees (SISNI) e os da Comissatildeo Geral de Investigaccedilatildeo (CGI) Cada um desses
sistemas possuiacutea uma competecircncia especiacutefica o SISNI era responsaacutevel por buscar as
informaccedilotildees necessaacuterias agrave manutenccedilatildeo do regime de Seguranccedila Nacional procurando
desvendar quem eram os opositores ao governo os chamados ldquoinimigos internosrdquo
enquanto a CGI buscava o combate agrave corrupccedilatildeo no serviccedilo puacuteblico Jaacute o SISSEGIN
operava de forma centralizada tanto na investigaccedilatildeo quanto na apreensatildeo dos mesmos
ldquoinimigos internosrdquo
Para a anaacutelise do SISSEGIN vale-se aqui do trabalho de Carlos Fico Como eles
agiam (2001) feito com base no acervo da extinta Divisatildeo de Seguranccedila e Informaccedilotildees
do Ministeacuterio da Justiccedila inclusive nos documentos sigilosos Afinal nesse estudo Fico
revela em detalhes o que nenhum outro historiador havia conseguido ateacute entatildeo a
48
formaccedilatildeo e o funcionamento das comunidades de informaccedilotildees e de seguranccedila da
ditadura militar brasileira
A partir disso destaca-se aqui que a estrutura e o funcionamento do SISSEGIN
foram instituiacutedos e regulamentados por meio de decretos sigilosos O mesmo padratildeo de
regulamentaccedilatildeo foi seguido pela Operaccedilatildeo Bandeirantes (Oban) instituiccedilatildeo informal
criada em Satildeo Paulo em julho de 1969 bem como pelos DOI-CODI instituiacutedos no
primeiro semestre de 1970 formalizando a experiecircncia da Oban e espalhando-a por
todas as Regiotildees Militares do Brasil Jaacute que eacute atraveacutes dessas Regiotildees que o Exeacutercito
divide geograficamente sua administraccedilatildeo sobre o territoacuterio brasileiro foi tambeacutem por
meio delas que partiu durante parte da ditadura militar as responsabilidades territoriais
dos DOI-CODI Logo o DOI-CODI do Rio de Janeiro ficava responsaacutevel pelos crimes
poliacuteticos ocorridos na Primeira Regiatildeo ou seja nos estados do Rio de Janeiro e do
Espiacuterito Santo
A justificativa para esse sigilo dos atos que regiam o SISSEGIN e os DOI-CODI
estava na maior mobilidade e autonomia de accedilatildeo que o segredo traria para a atuaccedilatildeo
repressora desses organismos Dessa forma a repressatildeo podia agir sem grandes
limitaccedilotildees natildeo esbarrando em questotildees externas agraves decisotildees militares tais como os
Direitos Humanos Universais de 1948
No entanto eacute tambeacutem evidente a importacircncia que alguns atos legais natildeo-sigilosos
tiveram para a construccedilatildeo do cenaacuterio que sustentaria a atuaccedilatildeo do SISSEGIN e dos
DOI-CODI Eacute o caso por exemplo da adoccedilatildeo do foro especial para crimes poliacuteticos
que a partir do AI-2 e da subsequente incorporaccedilatildeo dessa medida pela Constituiccedilatildeo de
1967 passaram a ser julgados pelos tribunais militares e a suspensatildeo de garantias
individuais tal como o habeas corpus feita pelo AI-5 de dezembro de 1968 Afinal
natildeo seria eficaz para a atuaccedilatildeo desses oacutergatildeos repressores que seus prisioneiros poliacuteticos
49
atraveacutes do habeas corpus pudessem ser imediatamente soltos pela Justiccedila ou que
pudessem ser julgados por tribunais civis correndo o risco do juiz responsaacutevel pela
causa natildeo estar totalmente articulado aos princiacutepios impostos pela Doutrina de
Seguranccedila Nacional
Dessa forma ateacute o AI-5 foram levantadas as bases legais para que um Sistema de
Seguranccedila Nacional centralizado combativo e violento fosse institucionalizado Por
outro lado a partir do AI-5 para ter a autonomia e a mobilidade que se julgavam
necessaacuterias a organizaccedilatildeo desse Sistema de Seguranccedila Nacional foi sigilosa Ou seja a
reestruturaccedilatildeo do sistema repressivo com os seus novos oacutergatildeos e o detalhamento de
suas funccedilotildees internas natildeo foi publicada oficialmente por nenhum tipo de legislaccedilatildeo A
operacionalidade da seguranccedila interna foi regida por diretrizes secretas e o SISSEGIN
instituiacutedo por decretos sigilosos do Conselho de Seguranccedila Nacional (CSN) aprovados
pelo Presidente da Repuacuteblica
Por isso mesmo uma das primeiras medidas para o estabelecimento do SISSEGIN
e posteriormente dos DOI-CODI foi o fortalecimento do Conselho de Seguranccedila
Nacional cujas competecircncias foram ampliadas por atualizaccedilatildeo na legislaccedilatildeo operada
em janeiro de 1968 No ano seguinte em julho a Diretriz para a Poliacutetica de Seguranccedila
Interna foi instituiacuteda secretamente a fim de consolidar o SISSEGIN e adotar
nacionalmente o padratildeo da Oban (Operaccedilatildeo Bandeirante) No entanto somente em
1970 durante a vigecircncia do governo Meacutedici o modelo da Oban foi adaptado
transformado em DOI-CODI e de fato instituiacutedo por todas as Regiotildees Militares do
paiacutes
A Oban foi secretamente instituiacuteda em 1ordm de julho de 1969 no quartel do II
Exeacutercito em Satildeo Paulo No intuito de combater de forma mais organizada e eficaz a
esquerda armada a Oban usava de sua ldquoilegalidade oficialrdquo para agir contra os
50
ldquoinimigos internosrdquo sem precisar adequar seus meacutetodos de trabalho aos Direitos
Humanos A Oban criava uma estrutura nova que coordenava e integrava os diversos
oacutergatildeos de repressatildeo poliacutetica ndash entre eles as 2ordf seccedilotildees da Poliacutecia Militar Exeacutercito e
Marinha de Satildeo Paulo responsaacuteveis pelas investigaccedilotildees de crimes poliacuteticos nessas
instituiccedilotildees ndash que operavam de forma desordenada e ineficaz contra a esquerda armada
em aparente ascensatildeo O funcionamento da Oban se dava por meio de um trabalho
coordenado de diversas instacircncias conforme apresenta Fico no seguinte trecho
O funcionamento da Oban supunha um trabalho coordenado de diversas
instacircncias Toda quarta-feira era feita uma reuniatildeo no quartel-general do II
Exeacutercito na qual eram discutidas e avaliadas as accedilotildees da guerrilha da
semana Participavam dessas reuniotildees o chefe da 2ordf Seccedilatildeo do II Exeacutercito o
comandante da Oban major Waldyr Coelho um representante da 2ordf Seccedilatildeo
do II Exeacutercito o oficial chefe da 2ordf Seccedilatildeo do Distrito Naval o chefe da 2ordf
Seccedilatildeo da Poliacutecia Militar do Estado de Satildeo Paulo um representante da Poliacutecia
Federal um representante da Divisatildeo da Ordem Social e outro da Ordem
Poliacutetica ambos do DOPS (Fico 2001 117)
Aleacutem dos meios militar e policial a Oban tambeacutem era sustentada pelo
empresarial financeiro e parte das autoridades civis paulistas da eacutepoca conforme indica
trecho do artigo da historiadora Mariana Joffily para a revista Caros Amigos
O ato que celebrou a criaccedilatildeo da Oban foi organizado com pompa coqueteacuteis
e salgadinhos e contou com a presenccedila das principais autoridades poliacuteticas
de Satildeo Paulo o governador Roberto de Abreu Sodreacute o prefeito Paulo Maluf
o comandante do II Exeacutercito (atual Regional Sudeste) general Joseacute
Canavarro Pereira entre outros Tambeacutem acorreram agrave cerimocircnia figuras
proeminentes da elite paulista oriundas dos meios empresarial e financeiro
Luiz Macedo Quentel Antonio Delfim Netto Gastatildeo Vidigal Paulo Sawaya
e Henning Albert Boilesen Parte do setor empresarial paulista e das
multinacionais ndash com representaccedilatildeo em Satildeo Paulo ndash acreditava que as accedilotildees
guerrilheiras colocavam em risco a boa conduta dos negoacutecios e concorreu
51
para o apoio financeiro e material As autoridades da cidade colaboraram
com infra-estrutura incluindo a cessatildeo de partes das dependecircncias da 36ordf
delegacia de poliacutecia situada na Rua Tutoacuteia (Vila Mariana) para a
acomodaccedilatildeo do novo oacutergatildeo repressivo (Joffily 14 set 2009)
Percebe-se portanto que muitos empresaacuterios de Satildeo Paulo ajudaram a financiar a
Oban Entre outros gastos esse financiamento era destinado agrave capacitaccedilatildeo de seus
agentes e agrave compra de equipamentos de tortura novos entre eles uma maacutequina de
choques eleacutetricos nomeada de ldquoPianola Boilesenrdquo em homenagem a Henning Albert
Boilesen entatildeo presidente da empresa Ultragaacutes e um dos empresaacuterios agrave frente desse tipo
de investimento na Oban Boilesen assim como os demais empresaacuterios envolvidos
financeiramente com a Oban por desacreditar nas instituiccedilotildees do Estado que ateacute entatildeo
eram responsaacuteveis pelo combate agrave esquerda armada e por ter interesses reais nesse
combate optou por capitalizar a Oban Afinal uma instituiccedilatildeo extra-oficial de accedilatildeo
coordenada e com grande investimento teria autonomia e capacidade para neutralizar os
grupos da esquerda armada que vinham causando prejuiacutezos a seus negoacutecios tais como
assaltos e atentados Justamente devido a essa relaccedilatildeo que tinha com a Oban Boilesen
foi assassinado posteriormente em 1971 por militantes da esquerda armada 9
Percebe-se portanto que a Oban tinha caraacuteter paramilitar e unia a iniciativa
privada ao Estado a fim de que o poder de poliacutecia deste fosse fortalecido Sua criaccedilatildeo
empregou portanto um novo tipo de atuaccedilatildeo militar em que o combate ao ldquoinimigo
internordquo contaria com uma forte autonomia de accedilatildeo respaldada pelo sigilo dos decretos
regulamentares e pelo financiamento do empresariado A Oban se consagrava como um
poderoso e promissor modelo de repressatildeo
No entanto o envolvimento de oficiais das Forccedilas Armadas policiais e
empresaacuterios com a repressatildeo poderia assumir proporccedilotildees que fugissem ao controle
9 Para mais informaccedilotildees sobre Henning Albert Boilesen e a relaccedilatildeo do empresariado com a Oban ver o
filme documentaacuterio Cidadatildeo Boilesen (Brasil 2009)
52
militar e configurassem algumas vezes conflitos de interesses Assim com o sucesso
das accedilotildees da Oban no combate aos opositores armados os militares optaram por
ampliar o seu modelo para todo o Brasil desde que incorporasse algumas reformulaccedilotildees
que assegurassem o total controle militar Surgiriam entatildeo os DOI-CODI
Os DOI-CODI eram portanto a institucionalizaccedilatildeo e a sofisticaccedilatildeo do modelo da
Oban Afinal eles coordenavam todas as demais Forccedilas e Poliacutecias sob o comando do
Exeacutercito e estavam espalhados por todas as Regiotildees Militares do paiacutes Eram a nova
estrutura do SISSEGIN implantada por diretrizes secretas que o Conselho de Seguranccedila
Nacional havia formulado Tais diretrizes estabeleceram que para cada um dos
comandos militares haveria um Conselho de Defesa Interna (CONDI) um Centro de
Operaccedilotildees de Defesa Interna (CODI) e um Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees
(DOI) todos sob responsabilidade do comandante do Exeacutercito respectivo denominado
comandante da ldquoZona de Defesa Internardquo (ZDI) O paiacutes ficou assim dividido em seis
ZDI Podiam ser criadas ainda Aacutereas de Defesa Interna (ADI) ou Sub-Aacutereas de Defesa
Interna (SADI) em regiotildees que merecessem cuidados especiais
Aos Conselhos de Defesa Interna (CONDI) cabia assessorar os comandantes das
ZDI e tambeacutem facilitar a esses comandantes a coordenaccedilatildeo de accedilotildees e a necessaacuteria
cooperaccedilatildeo por parte das mais altas autoridades civis e militares com sede nas
respectivas aacutereas de responsabilidade Logo os CONDI podiam ser integrados por
governadores ou seus representantes assim como comandantes das Forccedilas Navais e
Aeacutereas comandantes subordinados secretaacuterios de seguranccedila e comandantes das demais
Poliacutecias ou outras autoridades conforme o comandante da respectiva ZDI julgasse
necessaacuterio Tinham como aacuterea de jurisdiccedilatildeo territorial as Regiotildees Militares cujas sedes
se localizam em Satildeo Paulo Rio de Janeiro (1ordm BPE) Brasiacutelia Minas Gerais Rio Grande
do Sul Bahia Pernambuco e Cearaacute No entanto segundo Fico os CONDI natildeo tiveram
53
funcionamento significativo
Os Centros de Operaccedilotildees de Defesa Interna (CODI) eram oacutergatildeos de planejamento
e coordenaccedilatildeo das medidas de defesa interna dirigidos pelo chefe do Estado-Maior do
Exeacutercito da Regiatildeo e compostos por representantes de todas as Forccedilas bem como da
divisatildeo local de ordem poliacutetica e social das Poliacutecias Civil Militar Federal e da agecircncia
local do Serviccedilo Nacional de Informaccedilotildees (SNI) Entre suas funccedilotildees estavam o
planejamento o controle e a execuccedilatildeo das medidas de defesa interna a coordenaccedilatildeo dos
meios utilizados para esta execuccedilatildeo e a ligaccedilatildeo com todos os escalotildees envolvidos
devendo possibilitar a conjugaccedilatildeo de esforccedilos do Exeacutercito da Marinha da Aeronaacuteutica
do SNI do Poliacutecia Federal e das Secretarias de Seguranccedila Puacuteblica
Jaacute os Destacamentos de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) tinham uma
estruturaccedilatildeo interna tiacutepica composta por setores especializados em operaccedilotildees externas
informaccedilotildees contra-informaccedilotildees interrogatoacuterios e anaacutelises aleacutem de assessoria juriacutedica
e policial e setores administrativos O trabalho nesses destacamentos era ininterrupto
Utilizavam regularmente dois regimes de trabalho um de expediente regular (das 8 agraves
18 horas) e outro atraveacutes de plantotildees de 24 horas por 48 de folga Abaixo visualiza-se a
estrutura orgacircnica dos DOI que sintetiza suas funccedilotildees e sua hierarquia institucional
(FICO 2001 123-125)
54
DOI do Exeacutercito
No organograma acima nota-se que os DOI eram divididos por setores seccedilotildees e
subseccedilotildees Esses satildeo caracterizados por Fico de acordo com suas funccedilotildees e
composiccedilotildees e tambeacutem pelo coronel Freddie Perdigatildeo Pereira em sua monografia que eacute
analisada na segunda frente do estudo aqui traccedilado Percebe-se que essa caracterizaccedilatildeo
feita por Fico e por Pereira eacute muito proacutexima uma vez que eles utilizam os mesmos
termos e palavras para descrever o trabalho ou a formaccedilatildeo de determinado setor ou
seccedilatildeo Diante disso torna-se evidente que ambos os trabalhos se basearam no mesmo
documento que apesar de natildeo ser citado na monografia de Pereira eacute referenciado por
Fico como ldquoSistema de Seguranccedila Interna SISSEGIN Documento classificado como
lsquosecretorsquo [1974] Capiacutetulo 2rdquo Entretanto enquanto o Sistema de Seguranccedila Nacional
como um todo eacute o foco da pesquisa de Fico o DOI eacute o objeto de Pereira o que por
conseguinte o faz apresentar de forma mais detalhada a composiccedilatildeo de cada uma de
suas partes integrantes Logo optou-se aqui por tratar da estrutura interna dos DOI na
Comandante
Seccedilatildeo de contra-informaccedilotildees Turma de comando
Setor de operaccedilotildees de informaccedilotildees Setor de administraccedilatildeo
Turno auxiliar
Assistecircncia juriacutedica
e policial
Seccedilatildeo
administrativa
Seccedilatildeo de busca e
apreensatildeo
Setor de
investigaccedilotildees
Setor de anaacutelise e
informaccedilotildees
Subseccedilatildeo de
interrogatoacuterio Subseccedilatildeo de anaacutelise
55
proacutexima frente de estudo durante a anaacutelise da monografia de Pereira onde
trabalharemos com os DOI-CODI sob o ponto de vista de um de seus agentes ainda
durante a ditadura
Com relaccedilatildeo agrave atuaccedilatildeo dos DOI-CODI dentro do SISSEGIN Maria Celina
DrsquoArauacutejo em Os anos de Chumbo a memoacuteria militar sobre a repressatildeo (1994)
apresenta grandes contribuiccedilotildees para a presente pesquisa uma vez que em sua obra
analisa por meio de depoimentos ineacuteditos de militares a atuaccedilatildeo dos oacutergatildeos de
informaccedilatildeo e repressatildeo poliacutetica durante a ditadura militar
Partindo dessa abordagem de DrsquoArauacutejo destaca-se que diferentemente do que
acontecia na Oban cada um dos DOI-CODI tinha por comandante-geral o chefe do
Estado-Maior do Exeacutercito de sua respectiva Regiatildeo Militar e seu financiamento contava
com recursos orccedilamentaacuterios regulares do governo Logo os DOI-CODI natildeo
estabeleciam uma ligaccedilatildeo direta com o capital privado que entretanto ainda podia
investir de forma indireta na repressatildeo por meio de doaccedilotildees de maacutequinas e serviccedilos
Dessa forma os DOI-CODI tinham uma maior independecircncia financeira que junto com
a centralizaccedilatildeo hieraacuterquica que tambeacutem os caracterizava permitia que suas
investigaccedilotildees e accedilotildees procedessem de forma ainda mais eficiente Afinal esses atributos
evitavam que suas operaccedilotildees estivessem suscetiacuteveis agrave duplicidade de tarefas a
competiccedilotildees e a conflitos de interesses maximizando os seus resultados e tornando-os
uma espeacutecie de sofisticaccedilatildeo da repressatildeo
Aleacutem disso percebe-se que essa sofisticaccedilatildeo dos DOI-CODI tambeacutem era formada
pelo proposital distanciamento ali mantido entre os militares do governo e os agentes
desses oacutergatildeos de repressatildeo Afinal a ditadura ao mesmo tempo em que sancionava a
tortura nos seus ldquoporotildeesrdquo estrategicamente negava a sua existecircncia perante a sociedade
Assim esse cenaacuterio que isentava os governantes e os demais militares relacionados ao
56
poder poliacutetico do paiacutes de qualquer ligaccedilatildeo com a tortura se mantinha atraveacutes da
seguinte configuraccedilatildeo de um lado o torturador ndash que natildeo montou a maacutequina e jamais
efetuaria a tortura num salatildeo do quartel do Exeacutercito se temesse a reaccedilatildeo de seus
comandantes ndash e de outro o seu superior responsaacutevel pela ordem puacuteblica e
beneficiaacuterio direto do poder poliacutetico ndash que sancionava as maacutequinas mas natildeo tocava nos
presos
Dessa forma os DOI responsaacuteveis por accedilotildees que englobavam as prisotildees e os
interrogatoacuterios dos presos poliacuteticos eram instituiccedilotildees que prezavam por natildeo ser
externamente identificadas por seus meacutetodos violentos O sistema funcional dos DOI
era entatildeo complexo e informal de modo que por mais que neles existissem hierarquia e
coordenaccedilatildeo as brechas para que a falta de controle se propagasse eram amplas a fim
de que os meacutetodos natildeo regulamentares tais como as torturas pudessem ser
desempenhados com a eficiecircncia e a recorrecircncia necessaacuterias sem serem relacionados
diretamente a um comando
Diante disso justifica-se que conforme apurado por Maria Celina DrsquoArauacutejo a
versatildeo oficial dos militares ainda possa ser a de que a tortura jamais resultou de
qualquer ordem ou orientaccedilatildeo superior E mesmo quando chega a ser admitida apareccedila
como exceccedilatildeo como abuso ou excesso de poucos Entretanto torna-se aqui evidente a
incoerecircncia dessa versatildeo militar Afinal verifica-se que assim como em todos os
organismos militares nos DOI tambeacutem existiam uma forte hierarquia a ser cumprida
onde apesar de uma estrutura complexa qualquer accedilatildeo deveria ser remetida a um
superior o que sugere que a questatildeo da responsabilidade sempre poderia ser resgatada
Logo se militares reconhecem que existiram ldquoexcessosrdquo na eacutepoca e mesmo assim os
chefes imediatos de tais infratores natildeo tomaram as devidas providecircncias encontra-se
nos DOI entatildeo uma forte incongruecircncia com relaccedilatildeo ao princiacutepio militar de
57
responsabilizaccedilatildeo do chefe-superior Portanto diante dessa constataccedilatildeo de como eram
tratados os torturadores nos DOI percebe-se que apesar de velada em geral a tortura
era um procedimento ali consentido
2 O DOI-CODI por ele mesmo
A anaacutelise ateacute agora feita por meio da historiografia cede aqui lugar para se
concentrar sobre uma fonte especiacutefica pela qual a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
satildeo vistas por um acircngulo mais proacuteximo a partir do olhar de um de seus agentes
enquanto a instituiccedilatildeo ainda estava em atividade Trata-se do trabalho O Destacamento
de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de
combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e perspectivas apresentado em 1978 agrave Escola de
Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie
Perdigatildeo Pereira10
posteriormente apontado por ex-prisioneiros poliacuteticos como o
torturador ldquoNagibrdquo do DOI carioca do iniacutecio dos anos 1970
A referida fonte eacute uma espeacutecie de trabalho final da ECEME estabelecimento de
ensino tradicional do Exeacutercito brasileiro situado no bairro da Praia Vermelha no Rio de
Janeiro cuja missatildeo eacute a preparaccedilatildeo de oficiais superiores para o exerciacutecio de funccedilotildees
de Estado-Maior comando chefia direccedilatildeo e assessoramento dos mais elevados
escalotildees da Forccedila Terrestre 11
Logo eacute fruto de uma espeacutecie de preparaccedilatildeo que o
coronel Pereira estava se submetendo a fim de ocupar algum cargo de chefia dentro do
Exeacutercito
Escrita durante a ditadura militar enquanto os DOI-CODI ainda estavam em
funcionamento embora em menor atividade devido agrave propagaccedilatildeo de denuacutencias sobre
10
Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II 11
ESCOLA de Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) [acesso em 29 jan 2012] Disponiacutevel
em httpwwwecemeensinoebbreceme
58
torturas e mortes ocasionadas dentro do Destacamento a monografia permite trabalhar
diretamente com a visatildeo de um dos agentes do DOI-CODI ainda no ldquocalor da horardquo
como se costuma dizer O tema abordado eacute a atuaccedilatildeo dos DOI durante o seu periacuteodo de
maior efetividade de 1970 a 1973 provavelmente como uma tentativa de fortalecer a
instituiccedilatildeo e reforccedilar o seu poder trazendo agrave tona os ldquovelhos temposrdquo de grande
atividade
Em 1978 momento em que a monografia foi escrita o DOI-CODI havia
diminuiacutedo suas atividades de repressatildeo se restringindo apenas ao papel de investigaccedilatildeo
Como indica o referido coronel no seguinte trecho
Fruto principalmente do trabalho anocircnimo e incansaacutevel dos DOI o
terrorismo no Brasil foi praticamente aniquilado Em funccedilatildeo disso tais
oacutergatildeos foram e continuam sendo alvo de uma das mais virulentas campanhas
difamatoacuterias que a imprensa brasileira e internacional jaacute desencadearam
contra uma instituiccedilatildeo E os DOI que surgiram no fragor da luta e com
estrutura adaptada para enfrentar a accedilatildeo direta no combate aberto
reformulam a sua atuaccedilatildeo [] O efetivo elevado trabalhando atualmente na
Seccedilatildeo de Investigaccedilotildees pode dar ideia do tipo de trabalho que ora eacute
desenvolvido nos DOI com prioridade absoluta Trata-se do levantamento
total das organizaccedilotildees atuantes a partir da vigilacircncia permanente e cerrada
sobre os elementos jaacute identificados [] o trabalho nos DOI deixou de ter
aquele caraacuteter de combate de peito aberto tantas vezes levado a efeito por
seus pioneiros Transformou-se o DOI atual numa verdadeira agecircncia de
informaccedilotildees onde impera o trabalho frio e calculado do analista a teacutecnica
sofisticada de aparelhagem eletrocircnica substituindo a coragem pessoal de
seus elementos
Os DOICODI satildeo e sempre seratildeo as sentinelas atentas e vigilantes de nossa
liberdade (Pereira 1978 28-35)
Essa mudanccedila promovida nos DOI se relaciona diretamente com o momento
vivido pelo Brasil em 1978 Existia entatildeo uma incompatibilidade entre a distensatildeo
59
poliacutetica ldquolenta gradual e segurardquo comandada pelo Presidente Ernesto Geisel a fim de
abrir o paiacutes e instalar futuramente uma democracia e as denuacutencias sobre torturas e
mortes que continuavam a ocorrer dentro dos DOI-CODI e eram com frequecircncia
noticiadas pelos jornais do Brasil e do mundo Assim com o intuito de reverter este
cenaacuterio desfavoraacutevel Geisel optou por exonerar em 1976 o comandante do II Exeacutercito
o general Ednardo DAacutevila Melo afastar do governo no ano seguinte o entatildeo ministro
do Exeacutercito o general Siacutelvio Frota ndash visto por muitos agentes dos DOI como uma
lideranccedila contra a distensatildeo poliacutetica e o enfraquecimento das operaccedilotildees repressoras e
apoiado como eventual candidato agrave Presidecircncia da Repuacuteblica ndash e de forma geral
diminuir a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI no combate direto agrave ldquosubversatildeordquo concentrando suas
atividades apenas na investigaccedilatildeo
Esta atitude logicamente causou resistecircncia entre muitos integrantes dos DOI-
CODI que tentavam provar a necessidade da atuaccedilatildeo repressora da instituiccedilatildeo para a
proteccedilatildeo da Seguranccedila Nacional Essas tentativas incluiacuteam muitas accedilotildees forjadas pelos
proacuteprios agentes dos DOI como atentados a bomba em bancas de jornal instituiccedilotildees que
lutavam contra a ditadura ndash como a sede da OAB no Rio de Janeiro atacada em agosto
de 1980 quando morreu a secretaacuteria Lyda Monteiro ndash e shows populares ndash como a
tentativa frustrada de ataque a bomba de dois agentes do DOI do Rio de Janeiro em
maio de 1980 no show em homenagem ao dia do trabalhador no Riocentro
Outro aspecto dessa fonte que merece tambeacutem ser aqui destacado satildeo as
circunstacircncias pessoais que impulsionaram a sua confecccedilatildeo Afinal se a funccedilatildeo da
ECEME eacute preparar militares para ocupar cargos de chefia dentro do Exeacutercito
certamente a monografia foi um requisito necessaacuterio para que o coronel Pereira se
preparasse para uma promoccedilatildeo na carreira militar Partindo dessa informaccedilatildeo e
juntando-a ao dado que Elio Gaspari apresenta na obra A Ditadura Escancarada (2002
60
184) de que foi oferecido ao mesmo coronel no iniacutecio de 1980 o posto de general de
brigada percebe-se que de fato essa preparaccedilatildeo de Pereira lhe gerou frutos Poreacutem de
acordo com Gaspari para ser general de brigada ele teria que aceitar comandar uma
tropa em uma unidade militar de Satildeo Paulo o que natildeo lhe agradou Preferiu entatildeo a
opccedilatildeo de ir para a reserva e ao mesmo tempo permanecer como contratado em um
cargo na seccedilatildeo de operaccedilotildees do SNI do Rio de Janeiro recebendo no total uma receita
superior agrave de general de Exeacutercito Essa situaccedilatildeo tal como o tema escolhido para sua
monografia eacute mais uma evidecircncia do apreccedilo que coronel Pereira tinha pelo ofiacutecio
investigativo que outrora exerceu nos DOI Diante de sua progressatildeo profissional e do
esvaziamento que os DOI vinham sofrendo o SNI12
se tornava uma opccedilatildeo atraente
pois aleacutem de ser uma instituiccedilatildeo que investigava elementos que ameaccedilavam a
Seguranccedila Nacional estava diretamente ligada ao alto esquadratildeo do Exeacutercito ciacuterculo de
que Pereira fazia parte nesse momento
Com relaccedilatildeo agrave monografia desse coronel muitos pontos interessantes satildeo
destacados Entre eles o detalhamento estrutural dos DOI-CODI
Internamente os CODI eram subdivididos entre trecircs centrais 1- Central de
Informaccedilotildees 2- Central de Operaccedilotildees 3- Central de Assuntos Civis O comando
principal era da 1- Central de Informaccedilotildees que coordenava as investigaccedilotildees locais e
era chefiada pelo dirigente do CODI ou seja pelo chefe do Estado-Maior do Exeacutercito
da aacuterea que deveria ser um general do Exeacutercito Este reunia em sua equipe um
representante local do alto escalatildeo da Aeronaacuteutica da Marinha do SNI e do
Departamento de Poliacutecia Federal o diretor do DOPS e o Comandante do DOI daquela
jurisdiccedilatildeo aleacutem do chefe da 2ordf Seccedilatildeo da Poliacutecia Militar responsaacutevel pela parte de
informaccedilotildees relativas a crimes poliacuteticos Jaacute a 2- Central de Operaccedilotildees e a 3- de
12
Para mais informaccedilotildees sobre a formaccedilatildeo do SNI ver Antunes 2002
61
Assuntos Civis davam suporte agrave equipe da 1- de Informaccedilotildees e para tanto tambeacutem
congregavam em suas equipes representantes das trecircs Forccedilas sendo um representante
do Exeacutercito da Regiatildeo Militar correspondente responsaacutevel por ocupar o cargo de chefe
aleacutem de um representante credenciado da Poliacutecia Civil da Poliacutecia Militar local e de
outros oacutergatildeos quando fosse necessaacuterio para contribuir com alguma anaacutelise especiacutefica
O CODI de cada Regiatildeo Militar tinha por funccedilatildeo centralizar as informaccedilotildees de
caraacuteter ldquosubversivordquo e repassaacute-las ao DOI correspondente para que as operaccedilotildees de
informaccedilotildees fossem realizadas de forma concentrada atraveacutes desse uacutenico oacutergatildeo e por
conseguinte sob um uacutenico comando Assim evitava-se que vaacuterios oacutergatildeos de informaccedilatildeo
ligados a uma das trecircs Forccedilas ou agraves Poliacutecias realizassem suas operaccedilotildees
independentemente de qualquer coordenaccedilatildeo ou planejamento global o que poderia
acabar prejudicando as accedilotildees contra seus ldquoinimigos internosrdquo
Afinal de acordo com as informaccedilotildees levantadas por Pereira em sua monografia
antes dos DOI-CODI serem institucionalizados natildeo foram poucas as vezes que um
desses oacutergatildeos prejudicou a atuaccedilatildeo de outro Em diversos momentos enquanto um
estava realizando uma vigilacircncia sobre determinados elementos ldquosubversivosrdquo por
exemplo outro sem saber da accedilatildeo do primeiro prendia dois ou trecircs desses elementos
Dessa forma os demais membros da mesma organizaccedilatildeo ao saberem da prisatildeo de seus
companheiros natildeo retornavam agrave aacuterea sob vigiacutelia e evitavam ser presos Tambeacutem em
vaacuterias ocasiotildees a documentaccedilatildeo apreendida por determinado oacutergatildeo de seguranccedila ficava
em seu poder e natildeo era encaminhada para outros escalotildees para ser analisada Com essas
informaccedilotildees ldquoencostadasrdquo as accedilotildees armadas de organizaccedilotildees de esquerda que ali
estavam indicadas prosseguiam normalmente sem impedimentos
Percebe-se portanto como a centralizaccedilatildeo de informaccedilotildees e de accedilotildees de
seguranccedila interna implantada pelos DOI-CODI conduziu a resultados positivos para a
62
repressatildeo Natildeo eacute agrave toa que conforme analisado anteriormente a partir da tese de Maria
Celina DrsquoArauacutejo os DOI-CODI satildeo aqui entendidos como a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo
jaacute que os CODI passaram a concentrar e coordenar as informaccedilotildees e atraveacutes dos DOI a
executar de forma concentrada as operaccedilotildees de informaccedilotildees
Oacutergatildeos operacionais dos CODI os Destacamentos de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees
os DOI eram destinados ao trabalho de combate direto ao ldquoinimigo internordquo Para tanto
conforme analisado a partir da monografia de Pereira e da jaacute referida obra de Fico13
os
DOI dividiam-se basicamente entre 1- Setor de operaccedilotildees de informaccedilotildees e 2- Setor de
administraccedilatildeo Tais setores estavam diretamente subordinados ao comandante do
Destacamento daquela Regiatildeo Militar que normalmente deveria ser um tenente-coronel
com vivecircncia na aacuterea de informaccedilotildees Essa patente de tenente-coronel compunha o
ciacuterculo hieraacuterquico de oficiais e a hierarquia de oficiais superiores14
ou seja pertencia
ao acircmbito de convivecircncia desses oficiais e portanto era considerado um deles Isto
significa que os comandantes dos DOI estavam um degrau abaixo do uacuteltimo acircmbito
hieraacuterquico do Exeacutercito o dos oficiais-generais ciacuterculo referente aos chefes dos CODI
que deveriam possuir a patente de general de Exeacutercito
Chefiado pelo subcomandante do DOI o 1- Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees
tinha diretamente subordinado a ele 11- Setor de Investigaccedilatildeo 12- Setor de Anaacutelise e
Informaccedilotildees e 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo Jaacute o 2- Setor de administraccedilatildeo se
subdividia em 21- Assessoria Juriacutedica e Policial e 22- Seccedilatildeo administrativa
Ao 11- Setor de Investigaccedilatildeo cabia fundamentalmente a realizaccedilatildeo de
investigaccedilotildees com a finalidade de identificar e localizar ldquoelementos subversivosrdquo a fim
de repassar as informaccedilotildees para que os agentes da 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo
prendessem os suspeitos e localizassem os seus ldquoaparelhosrdquo (termo designado para
13
Para visualizar o organograma dos DOI voltar agrave paacutegina 54 14
Para mais informaccedilotildees sobre os ciacuterculos hieraacuterquicos e a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II
63
definir o local em que ficavam escondidos os integrantes dos grupos de esquerda que
viviam na clandestinidade) A chefia e a subchefia do 11- Setor de Investigaccedilatildeo era
privativa de oficiais do Exeacutercito e seus integrantes natildeo deveriam ser identificados pelos
elementos a serem presos a fim de que a eficiecircncia da accedilatildeo fosse garantida uma vez que
as suas identificaccedilotildees poderiam ocasionar a fuga dos suspeitos No entanto quando a
situaccedilatildeo exigia os integrantes desse setor poderiam efetuar prisotildees neutralizar
ldquoaparelhosrdquo e apreender material ldquosubversivordquo Esse 11- Setor de Investigaccedilatildeo agia por
meio de diversas turmas de investigaccedilatildeo compostas cada uma por um agente um
auxiliar e um carro normalmente da marca Volkswagen
O 12- Setor de Anaacutelise e Informaccedilotildees tinha por funccedilatildeo fornecer ao comandante
do DOI e aos demais setores seccedilotildees e subseccedilotildees informaccedilotildees estudos e conclusotildees
sobre as organizaccedilotildees ldquosubversivo-terroristasrdquo que atuavam na aacuterea Esse setor era
composto por um chefe sem patente ou ciacuterculo hieraacuterquico preacute-determinados pela
121- Subseccedilatildeo de anaacutelise e pela 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio
A 121- Subseccedilatildeo de anaacutelise tambeacutem natildeo exigia de forma predeterminada a
patente ou o ciacuterculo hieraacuterquico de quem a chefiasse Tinha por funccedilatildeo analisar os
depoimentos prestados pelos presos daquele DOI analisar o material das organizaccedilotildees
ldquoterroristasrdquo que havia sido recolhido pelas turmas da 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo
fornecer subsiacutedios ao chefe do 1- Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees e agrave equipe da
122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio manter para cada organizaccedilatildeo de esquerda uma pasta
com o seu histoacuterico relaccedilatildeo de nomes e codinomes relaccedilatildeo de accedilotildees e uma espeacutecie de
aacutelbum contendo as fichas de qualificaccedilatildeo fotografia atuaccedilatildeo e situaccedilatildeo de cada um de
seus elementos e por fim organizar atualizar e manter o arquivo geral contendo o
dossiecirc de cada elemento fichado
64
Jaacute a 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio era responsaacutevel pelo interrogatoacuterio e por
conseguinte pela aplicaccedilatildeo de torturas nos presos a fim de fazecirc-los falar o que sabiam
Seu chefe deveria ser um oficial do Exeacutercito de niacutevel de capitatildeo ou seja deveria
pertencer ao ciacuterculo hieraacuterquico de oficiais mas natildeo ao meio de oficiais superiores e
sim ao de oficiais intermediaacuterios No entanto a partir do ano de 1971 era preferiacutevel que
ele tivesse o curso B1 da Escola Nacional de Informaccedilotildees (EsNI) Este curso era uma
espeacutecie de especializaccedilatildeo em informaccedilotildees e seguranccedila interna ministrada pela EsNI
escola que havia sido criada pelo SNI durante o ano de 1971 e era a este subordinada
Como a 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio trabalhava ininterruptamente durante 24
horas ela se dividia em trecircs turmas de interrogatoacuterio preliminar cada uma chefiada
tambeacutem por um capitatildeo do Exeacutercito com o curso B1 da EsNI Essas turmas eram
compostas por seis agentes cada e aleacutem disso subordinada ao chefe de cada uma delas
existia uma turma auxiliar encarregada da carceragem e da datilografia de documentos
Jaacute a 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo tinha por ofiacutecio efetuar prisotildees ldquocobrir
pontosrdquo (preparar uma emboscada para prender os militantes esquerdistas no momento
em que se encontravam em algum ponto anteriormente combinado) neutralizar
ldquoaparelhosrdquo apreender material ldquosubversivordquo coletar dados que possibilitassem o
levantamento de elementos ldquosubversivosrdquo conduzir presos ao DOPS auditorias
hospitais etc O chefe deveria ser um oficial do Exeacutercito sem predeterminaccedilatildeo de
patente militar e sua equipe se dividia em trecircs grupamentos ldquoAB e Crdquo Cada um deles
era composto por quatro turmas de busca e apreensatildeo que tinham cerca de trecircs ou cinco
agentes e possuiacuteam cada uma um carro espaccediloso muitas vezes dos modelos C14 Opala
ou Kombi equipado com raacutedio Aleacutem disso a 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo
tambeacutem era composta por quatro turmas de coletas de dados que tinham por missatildeo
reunir informaccedilotildees sobre os ldquosubversivosrdquo em universidades coleacutegios etc Cada uma
65
dessas turmas era constituiacuteda por dois elementos um oficial da PM da regiatildeo ou um
delegado de poliacutecia e um motorista que normalmente dirigia um carro de marca
Volkswagen com raacutedio
Ligada ao 2- Setor de administraccedilatildeo a 22- Seccedilatildeo administrativa garantia o apoio
logiacutestico ao DOI ou seja organizava o pedido de gecircneros alimentiacutecios bem como
outros utensiacutelios e equipamentos necessaacuterios Esta seccedilatildeo natildeo tinha nenhum tipo de
exigecircncia de patente ou ciacuterculo hieraacuterquico para o cargo de chefe Jaacute a 21- Assessoria
Juriacutedica e Policial era chefiada por um delegado de poliacutecia e tinha por missatildeo
assessorar o Comandante do DOI em assuntos judiciais elaborar a documentaccedilatildeo
formal e legal referente ao material apreendido e agraves confissotildees dos prisioneiros e
controlar a menagem dos presos que fossem liberados
A menagem estipulada pelo Coacutedigo Processual Militar criado pelo decreto-lei
1002 de outubro de 1969 era uma espeacutecie de prisatildeo cautelar concedida ao militar ou
ao civil que tivesse praticado um crime de cunho militar com previsatildeo de pena privativa
de liberdade O local de cumprimento da menagem era a cidade onde residisse o
suspeito no momento do crime ou a sede do oacutergatildeo que tivesse investigando a sua accedilatildeo
Como a partir do AI-5 os suspeitos de crimes poliacuteticos passaram a ser julgados pela
Justiccedila Militar e o instituto do habeas corpus foi suprimido atraveacutes da menagem os
suspeitos detidos poderiam ser levados agrave sede do DOI-CODI da respectiva Regiatildeo
Militar Afinal era neste oacutergatildeo que as investigaccedilotildees sobre os crimes poliacuteticos de
determinada aacuterea se concentravam A menagem tinha por fundamento evitar o conviacutevio
do acusado ateacute o seu julgamento em primeira instacircncia com pessoas que jaacute estivessem
condenadas Dessa forma a validade da menagem terminava a partir da abertura de um
processo condenatoacuterio contra o suspeito quando entatildeo este seria transferido para uma
Delegacia de Poliacutecia tal como o DOPS por exemplo para ser enfim julgado e poder se
66
fosse o caso cumprir sua pena em um presiacutedio convencional Poreacutem ateacute isso acontecer
caso fosse enquadrado como um possiacutevel criminoso poliacutetico esse suspeito poderia ficar
detido no DOI correspondente por ateacute trinta dias podendo sua prisatildeo ainda ser
prorrogada por mais sessenta dias
A menagem era entatildeo um respaldo legal tanto para o isolamento do preso poliacutetico
nos quarteacuteis que sediavam os DOI quanto se fosse o caso para o acompanhamento de
sua vida em liberdade ateacute o dia de seu julgamento Caso fosse diagnosticado pelos
agentes do respectivo DOI que o suspeito jaacute tivesse concedido todas as informaccedilotildees que
tinha e natildeo representasse perigo agrave Seguranccedila Nacional a instituiccedilatildeo poderia solicitar ao
juiz a sua liberaccedilatildeo a fim de que a sua menagem fosse cumprida em liberdade Quando
isto ocorria o suspeito deveria ficar na mesma cidade que havia sido preso ateacute o seu
julgamento em primeira instacircncia
Diante dos organogramas dos CODI e dos DOI aqui traccedilados evidencia-se que
existiam diferenccedilas nas patentes hieraacuterquicas dos chefes de cada um desses oacutergatildeos
Enquanto o chefe dos CODI era o chefe de Estado-Maior do Exeacutercito de cada Regiatildeo
Militar ou seja um general de Exeacutercito que por conseguinte pertencia ao ciacuterculo
hieraacuterquico de oficiais-generais localizado no topo da hierarquia militar o chefe de
cada DOI era um tenente-coronel patente que se insere no ciacuterculo hieraacuterquico de
oficiais superiores ou seja imediatamente abaixo do de oficiais-generais Assim como
os DOI eram o braccedilo operacional dos CODI ou seja a eles subordinados o fato de seus
chefes estarem obrigatoriamente no ciacuterculo hieraacuterquico abaixo dos dirigentes dos CODI
leva a crer que dentro dos DOI-CODI havia de fato um respeito agrave hierarquia militar
Este respeito jaacute foi aqui destacado por meio da anaacutelise historiograacutefica baseada na
tese Maria Celina DrsquoArauacutejo (1994) que defende a ideia de que o princiacutepio da
obediecircncia hieraacuterquica apesar de velado existia nos DOI-CODI logo como a tortura
67
fazia parte de suas accedilotildees ela era consentida Afinal se laacute existiam chefias e nelas a
hierarquia militar era minimamente respeitada isso sinaliza que as accedilotildees eram
comandadas por chefes que tinham o consentimento de seus chefes diretos para darem
tal ordem Portanto a tortura impetrada pelas turmas de interrogatoacuterio preliminar era
consentida pelo capitatildeo que as chefiava pelo capitatildeo que comandava a respectiva
Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio a que elas estavam subordinadas pelo chefe do Setor de
Anaacutelise e Informaccedilotildees que chefiava o chefe dessa Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio pelo
subcomandante do DOI que era responsaacutevel pelo Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees a
que o Setor de Anaacutelise e Informaccedilotildees estava vinculado pelo tenente-coronel que
comandava o DOI e estava hierarquicamente acima do chefe do Setor de Anaacutelise e
Informaccedilotildees e pelo general do Exeacutercito que dirigia o CODI e tinha o comandante do
DOI a ele subordinado Logo o DOI-CODI foi construiacutedo de forma tatildeo centralizada que
a maioria das accedilotildees feitas por algum de seus integrantes passava por toda a cadeia
hieraacuterquica nele envolvida
Assim se torna mais uma vez evidente que a tortura como meacutetodo de
interrogatoacuterio quando utilizada pelos agentes do DOI era consentida por seus
superiores e natildeo um fenocircmeno isolado ou mesmo ldquoexcesso de poucosrdquo como muitos
militares costumam argumentar Esta argumentaccedilatildeo que aparentemente encontra
fundamento no alto grau de autonomia e independecircncia que os DOI possuiacuteam eacute
derrubada quando se evidencia que estes eram autocircnomos e independentes apenas em
relaccedilatildeo a batalhotildees e outras instituiccedilotildees militares Afinal os DOI foram programados
para atuar a par das subordinaccedilotildees preacute-existentes em outros oacutergatildeos podendo congregar
agentes de instacircncias militares poliacutecias e Forccedilas diferentes entre si mas sem deixar de
respeitar a hierarquia do Exeacutercito inserida em seu interior tendo por direccedilatildeo maacutexima o
Chefe de Estado-Maior do Exeacutercito
68
Outro ponto interessante que a caracterizaccedilatildeo do organograma dos DOI ajuda a
revelar eacute o fato do cargo de chefe da Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio ser privativo de um
oficial do Exeacutercito de niacutevel de capitatildeo ou seja que deveria pertencer ao ciacuterculo
hieraacuterquico de oficiais intermediaacuterios excluindo-se das atividades afeitas agrave posiccedilatildeo de
membros do ciacuterculo hieraacuterquico dos oficiais superiores e dos oficiais-generais onde se
encontravam os homens que governavam o paiacutes Logo por traacutes dessa condiccedilatildeo de
chefia havia a tentativa de manter a responsabilidade direta dos atos proferidos nessa
Subseccedilatildeo longe do ciacuterculo de oficiais superiores ou de oficiais-generais instacircncias
maacuteximas na hierarquia do Exeacutercito Dessa forma as torturas executadas durante os
interrogatoacuterios natildeo seriam relacionadas aos ocupantes das altas patentes do Exeacutercito
que durante a ditadura eram os que estavam agrave frente do governo brasileiro Essa
medida era portanto para dissociar a imagem dos governantes com o que ocorria nos
porotildees
No entanto eacute notaacutevel que indiretamente o governo ditatorial apoiasse as torturas
que as turmas de interrogatoacuterio preliminar executavam nos DOI-CODI uma vez que
obviamente os governantes tinham conhecimento sobre a determinaccedilatildeo de que os
agentes dessas turmas e os chefes da Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio deveriam ter
preferencialmente uma espeacutecie de especializaccedilatildeo em informaccedilotildees e seguranccedila
ministrada pela EsNI Nesta escola ndash ligada ao SNI que era composto pelas mais altas
patentes do Exeacutercito e diretamente ligado ao alto escalatildeo do governo ndash os alunos
provavelmente recebiam instruccedilotildees sobre os meacutetodos de tortura a serem aplicados
durante o serviccedilo
Aleacutem disso o fato do chefe e dos demais componentes da Subseccedilatildeo de
interrogatoacuterio serem ligados ao ciacuterculo de oficiais intermediaacuterios do Exeacutercito tambeacutem
vai ao encontro da anaacutelise historiograacutefica sobre a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
69
aqui apresentada a partir dos conceitos de Martins Filho de cizacircnia militar palaacutecio e
caserna Afinal a caserna era composta por militares de meacutedias e baixas patentes que
durante os primeiros anos da ditadura lutaram internamente por atuarem no combate ao
ldquoinimigo internordquo a fim de terem uma maior participaccedilatildeo na poliacutetica o que ocasionou
algumas cizacircnias militares Foi justamente por temer o resultado dessas cizacircnias que o
palaacutecio formado pelos militares de altas patentes que possuiacuteam cargos no governo aos
poucos cedeu esses poderes agrave caserna e assim o aparato de seguranccedila nacional foi
sendo instituiacutedo e dentro dele o SISSEGIN e os DOI-CODI Logo como eacute na
Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio e tambeacutem na Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo onde a atuaccedilatildeo
de interrogar torturar e prender traz os poderes poliacuteticos extras que a caserna
historicamente reivindicava percebe-se que a utilizaccedilatildeo de seus militares para compor
essas equipes era mais uma forma de manter a unidade militar contendo possiacuteveis
cizacircnias
Essa perspectiva torna-se completa quando se identifica que no momento em que
tais atribuiccedilotildees passaram a ser retiradas dos militares da caserna essas cizacircnias natildeo
mais puderam ser contidas Afinal conforme jaacute evidenciado anteriormente quando a
partir do governo de Geisel as atividades de busca apreensatildeo e interrogatoacuterio dos DOI
foram sendo abolidas a caserna passou a reagir posicionando-se contraacuteria agrave cuacutepula do
governo que defendia a abertura poliacutetica passando a apoiar a candidatura presidencial
de militares que defendessem a continuidade de tais atribuiccedilotildees aos DOI e ateacute mesmo
forjando situaccedilotildees terroristas tais como os diversos ataques a bomba que ocorreram na
eacutepoca como forma de endossar a necessidade das atuaccedilotildees repressivas desenvolvidas
pelos DOI
A monografia do coronel Pereira aqui analisada pode tambeacutem ser vista como
mais uma dessas reaccedilotildees da caserna Afinal durante toda a escrita de Pereira haacute uma
70
necessidade de comprovar a eficiecircncia dos DOI na atividade de proteger a seguranccedila
interna do paiacutes Percebe-se assim que Pereira apesar de ser coronel e por conseguinte
jaacute estar entre os oficiais superiores nesse momento ainda se via ligado de alguma forma
aos DOI Talvez porque a histoacuteria de sua carreira militar estivesse totalmente
relacionada com as atividades que ele laacute desempenhou e por isso acreditasse que
enquanto tais atividades continuassem sendo desenvolvidas o seu trabalho tambeacutem
continuaria a ser reconhecidamente importante
Os setores seccedilotildees e subseccedilotildees do DOI normalmente seguiam a configuraccedilatildeo aqui
exposta poreacutem nota-se que suas equipes natildeo eram fixas ou seja poderiam variar de
acordo com as necessidades das operaccedilotildees que surgissem Os DOI foram assim
concebidos como organismos instaacuteveis pois dependendo da gravidade e da quantidade
de accedilotildees armadas que deveriam ser reprimidas o nuacutemero de agentes poderia aumentar
ou diminuir Dessa forma os DOI se adaptavam a diversas circunstacircncias a fim de
combater com eficiecircncia o ldquoterrorismordquo e a ldquosubversatildeordquo
Grande parte dessa necessidade de adaptaccedilatildeo vinha da sobrevalorizaccedilatildeo da
guerrilha urbana entre os militares ligados a organismos de repressatildeo Uma vez que ao
verem a forma organizada e ousada com que a esquerda armada montava suas accedilotildees
sentiram que a estrutura repressiva da eacutepoca anterior agrave experiecircncia da Oban e ao
surgimento dos DOI natildeo estava preparada para combatecirc-las e diante disso
interpretaram tais accedilotildees esquerdistas como uma forte ameaccedila ao paiacutes Afinal as
instituiccedilotildees responsaacuteveis pela repressatildeo direta como por exemplo os DOPS estavam
engessadas por corporaccedilotildees fixas que combatiam as referidas accedilotildees de forma pouco
efetiva reprimindo-as sem a centralizaccedilatildeo e a grandiosidade necessaacuterias
A todos estes atos de banditismo [fazendo referecircncia a assaltos a banco a
sequestros de embaixadores e outras accedilotildees efetuadas pela esquerda armada
71
entre os anos de 1969 e 1970] a nossa Poliacutecia Civil e a Poliacutecia Militar
assistiam sem nada poder fazer Vaacuterias radiopatrulhas foram incendiadas e
os poucos soldados que ousavam enfrentar os terroristas eram
impiedosamente mortos Por que isso acontecia Porque as nossas poliacutecias
foram surpreendidas e natildeo estavam preparadas para um novo tipo de luta que
surgia a guerrilha urbana (Pereira 1978 10)
Entatildeo para conter a guerrilha urbana surgiu a necessidade de um oacutergatildeo de
repressatildeo centralizado e de estrutura maleaacutevel que tornasse possiacutevel e praacutetico reprimir
determinada accedilatildeo armada de acordo com a sua grandiosidade aumentando e diminuindo
o corpo funcional conforme o esforccedilo exigido Em meio a esta concepccedilatildeo de repressatildeo
a estrutura dos DOI foi criada tornando a repressatildeo poliacutetica mais combativa e
consequentemente aumentando a sua eficiecircncia
Com tamanha flexibilidade os DOI movimentavam pessoal e material variaacutevel
com grande mobilidade e agilidade Essa destacada autonomia dos DOI era travada
portanto em benefiacutecio de um aproveitamento maacuteximo de suas accedilotildees jaacute que eram
oacutergatildeos destinados ao combate direto agraves organizaccedilotildees subversivo-terroristas e sua
missatildeo era desmontar toda a estrutura de pessoal e de material destas organizaccedilotildees
bem como impedir a sua reorganizaccedilatildeo (Pereira 1978 22)
A utilizaccedilatildeo de codinomes pelos integrantes das turmas de interrogatoacuterio
preliminar era outra face dessa autonomia de trabalho dos DOI Esse costume era um
benefiacutecio de proteccedilatildeo para a instituiccedilatildeo e tambeacutem para tais militares Afinal como
muitos deles possivelmente aplicavam torturas nos presos durante os interrogatoacuterios o
sigilo com relaccedilatildeo aos seus nomes verdadeiros poderia inviabilizar posteriores
denuacutencias e por conseguinte fortes indiacutecios de que nos DOI a tortura era uma praacutetica
institucionalizada
Aleacutem disso essa mesma autonomia tambeacutem permitia que seus agentes para natildeo
serem reconhecidos pelos ldquoinimigosrdquo durante uma accedilatildeo de prisatildeo por exemplo natildeo
72
trabalhassem de farda e usassem trajes civis o que seria impensaacutevel em qualquer quartel
militar
Como norma de seguranccedila para o trabalho diaacuterio eacute obrigatoacuterio o uso de
traje civil (esporte ou social) de acordo com a missatildeo a desempenhar
Mesmo os oficiais e os comandantes de seccedilatildeo devem de preferecircncia usar
trajes esporte para se confundirem com a maioria dos integrantes do DOI
(Pereira 1978 25)
Os cabelos longos eram outra caracteriacutestica que apesar de improacutepria entre as
demais instituiccedilotildees militares a autonomia dos DOI imprimia a seus agentes conforme
evidenciado no seguinte trecho o cabelo deve ter o tamanho normalmente usado pela
maioria da populaccedilatildeo sendo proibido o cabelo com corte do ldquotipo militarrdquo (Pereira
1978 25) Percebe-se portanto que junto aos trajes civis os cabelos maiores
completavam o visual que os militares dos DOI precisavam ter para que evitassem ser
facilmente reconhecidos nas ruas Dessa forma tentavam minimizar os riscos de serem
percebidos durante uma operaccedilatildeo de investigaccedilatildeo ou minutos antes de efetuarem uma
accedilatildeo de prisatildeo Poreacutem apesar da utilizaccedilatildeo dessas caracteriacutesticas natildeo usuais ser em
benefiacutecio das funccedilotildees que exerciam nos DOI esses militares muitas vezes natildeo eram
compreendidos por aqueles que nas palavras de Pereira natildeo possuiacuteam uma
mentalidade de informaccedilotildees e por conta disso viam no uso do cabelo grande um ato de
indisciplina Essa incompatibilidade de interpretaccedilotildees portanto gerava alguns
transtornos para os agentes dos DOI que mesmo condecorados pela eficiecircncia de seus
serviccedilos de informaccedilotildees agraves vezes passavam por alguns constrangimentos
Jaacute aconteceu o fato de um oficial ou sargento de um DOI necessitar
comparecer a sua Unidade Militar a fim de tratar qualquer problema pessoal
ou mesmo de um assunto de serviccedilo Estes elementos eram barrados agrave
entrada de seus quarteacuteis e recebiam ordem dos comandantes para
73
regressarem cortarem o cabelo e a barba e se apresentarem fardados ou com
a posse de um documento de identidade assinado pelo Comandante do
Exeacutercito autorizando o uso do traje civil e o porte de arma Este
procedimento por parte de algumas autoridades militares daacute a entender que
os elementos do Serviccedilo de Informaccedilotildees satildeo indisciplinados
desenquadrados e sem espiacuterito militar Entretanto eacute necessaacuterio frisar que a
realidade eacute que por exemplo no DOI-CODI do II Exeacutercito [DOI-CODISP]
em trecircs anos 90 componentes foram condecorados com a medalha do
pacificador com palma (Pereira 1978 26)
A medalha do pacificador com palma eacute em tempo de paz a mais alta
condecoraccedilatildeo concedida pelo Comandante do Exeacutercito aos militares e civis brasileiros
que no exerciacutecio de sua funccedilatildeo ou no cumprimento de missotildees de caraacuteter militar
tenham se destacado por atos pessoais de abnegaccedilatildeo coragem e bravura com risco de
vida Portanto muitas vezes os agentes dos DOI que exerciam a funccedilatildeo de prender
integrantes de uma organizaccedilatildeo muito procurada de ldquodesmontar aparelhosrdquo de
destacada importacircncia investigativa ou mesmo de conseguir informaccedilotildees cruciais
durante interrogatoacuterios eram condecorados pelo Comandante do respectivo Exeacutercito
pelo serviccedilo prestado agrave paacutetria Logo percebe-se que mesmo existindo os
constrangimentos institucionais anteriormente citados os oficiais envolvidos nos DOI
eram prestigiados por seus serviccedilos e se sentiam valorizados e incentivados a designaacute-
los com rapidez e eficiecircncia
A partir disso evidencia-se mais uma vez que a tortura nos DOI era consentida
pelos militares superiores e ateacute mesmo incentivada pois atraveacutes do ldquoauxiacuteliordquo que
prestava aos interrogatoacuterios as informaccedilotildees poderiam ser mais faacutecil e rapidamente
conseguidas e grande quantidade de suspeitos presos ldquoaparelhos desmontadosrdquo e
materiais ldquosubversivosrdquo recolhidos Como a presteza desse serviccedilo era almejada tantos
pelos agentes dos DOI interessados no destaque e no reconhecimento militar quanto
74
por seus superiores que vislumbravam neutralizar o quanto antes a ameaccedila que o
ldquoinimigo internordquo representava para o governo ditatorial a tortura parecia ser nos DOI
um meio que se justificava pelos fins
Assim a centralizaccedilatildeo a flexibilidade a autonomia e o consentimentoincentivo agrave
tortura pautavam o ldquoeficienterdquo serviccedilo de repressatildeo dos DOI conforme se pode apurar a
partir dos dados do DOI-CODISP levantados ateacute 30 de junho de 1972 e apresentados
na monografia do coronel Pereira
Subversivos terroristas levantados no Brasil 4400
Quedas impostas pelos oacutergatildeos de seguranccedila no territoacuterio nacional 2800
Quedas impostas pelos oacutergatildeos de seguranccedila do II Exeacutercito (inclusive DOI-
CODI) 1600
Quedas impostas pelo DOI-CODI do II Exeacutercito 1400
Quedas impostas pelos outros oacutergatildeos de seguranccedila da aacuterea do II Exeacutercito
200
Periacuteodo de 23 de janeiro de 1969 a 30 de junho de 1972
Subversivo-terroristas que fizeram curso de guerrilha no exterior 340
Subversivo-terroristas que fizeram curso de guerrilha em Cuba 240
Situaccedilatildeo dos 4400 subversivo-terroristas levantados
Foragidos 1600
Liberados 900
Mortos em combate 100
Presos 1490
Banidos 140
Estes resultados vecircm demonstrar a eficiecircncia operacional do destacamento
neste tipo de guerra especial Natildeo eacute agrave toa que os inimigos assim reconhecem
ao destacamento esta assertiva encontrada na revista Times e no panfleto
Quinzenal (maio de 76) distribuiacutedos recentemente
ldquoSatildeo Paulo criou a mais eficiente e admiraacutevel maacutequina repressiva vista ateacute
hoje no mundo ndash a Operaccedilatildeo Bandeirantes que comeccedilou como uma alianccedila
temporaacuteria entre a poliacutecia local as vaacuterias seccedilotildees de inteligecircncia das trecircs
forccedilas armadas e o SNIrdquo (Pereira 1978 27)
75
Entretanto esse perigoso poder excepcional dos DOI-CODI tomou proporccedilotildees
grandiosas Em meados dos anos 1970 mais especificamente apoacutes o fim da guerrilha do
Araguaia no iniacutecio de 1974 as organizaccedilotildees clandestinas armadas estavam derrotadas
e em contrapartida os DOI-CODI se encontravam em pleno vapor com sua atuaccedilatildeo e
seu aparato institucional ampliado e especializado Tornou-se dessa forma
indispensaacutevel para a sobrevivecircncia do SISSEGIN encontrar novos ldquoinimigos internosrdquo
O foco de ameaccedila passou entatildeo a ser o envolvimento de elementos do Partido
Comunista Brasileiro (PCB) no Movimento Democraacutetico Brasileiro (MDB) partido de
oposiccedilatildeo consentida pelo governo e a atuaccedilatildeo repressiva dos DOI-CODI encontrou
argumentos para continuar em atividade Poreacutem como a declarada ldquoguerra internardquo
havia se esgotado e o paiacutes jaacute se preparava para dar lugar a um futuro democraacutetico o
poder de accedilatildeo dos DOI-CODI comeccedilou a parecer abusivo e negativo ao regime Diante
disso muitas foram as tentativas da caserna e dos demais militares a ela relacionados de
provar a importacircncia e a necessidade dos DOI-CODI para a defesa do paiacutes entre elas a
monografia aqui analisada No entanto tais tentativas natildeo conseguiram evitar que esses
oacutergatildeos sofressem num primeiro momento a reduccedilatildeo de suas atividades e no iniacutecio da
deacutecada de 1980 a extinccedilatildeo
3 O DOI-CODI pelos prisioneiros
Enfim na uacuteltima frente de estudo deste capiacutetulo a anaacutelise sobre a formaccedilatildeo e a
atuaccedilatildeo dos DOI-CODI recai sobre a memoacuteria de seis de seus ex-prisioneiros poliacuteticos
Vale lembrar que estes estiveram detidos no DOI-CODI do Rio de Janeiro durante o
segundo semestre do ano de 1970 e suas memoacuterias foram narradas recentemente entre
os anos de 2002 e 2004 quando foram por mim entrevistados Assim o trabalho sobre
esses depoimentos aqui se concentra na interpretaccedilatildeo que fazem a partir da construccedilatildeo
76
de suas memoacuterias sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI e em como suas
perspectivas dialogam com a frente historiograacutefica e com a monografia do coronel
Pereira abordadas anteriormente
Como o objetivo aqui traccedilado eacute analisar as diversas maneiras pelas quais a
historiografia o coronel Pereira e os presos veem a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-
CODI optou-se por apresentar as trajetoacuterias dos entrevistados no proacuteximo capiacutetulo
Essas junto com o conteuacutedo aqui levantado constroem as bases para a anaacutelise travada
na parte final da presente dissertaccedilatildeo onde se aborda a partir de um estudo mais
concentrado nas memoacuterias dos ex-prisioneiros entrevistados o cotidiano do DOI-
CODIRJ
Entretanto a fim de utilizar essas memoacuterias para a abordagem dialeacutetica aqui
desenhada natildeo pode ser dispensada a aplicaccedilatildeo de um olhar criacutetico tiacutepico a anaacutelises
histoacutericas problematizando-as de forma a perceber suas lacunas e modificaccedilotildees
decorrentes do tempo Tais memoacuterias satildeo inconscientemente fluidas pois estatildeo
diretamente ligadas a emoccedilotildees aleacutem de sofrerem muitas influecircncias do momento em
que satildeo narradas conforme bem elucida Pierre Nora (1993)
A memoacuteria eacute a vida sempre carregada por grupos vivos e nesse sentido ela
estaacute em permanente evoluccedilatildeo aberta agrave dialeacutetica da lembranccedila e do
esquecimento inconsciente de suas deformaccedilotildees sucessivas vulneraacutevel a
todos os usos e manipulaccedilotildees suscetiacutevel de longas latecircncias e de repentinas
revitalizaccedilotildees A histoacuteria eacute a reconstruccedilatildeo sempre problemaacutetica e incompleta
do que natildeo existe mais A memoacuteria eacute um fenocircmeno sempre atual um elo
vivido no eterno presente a histoacuteria uma representaccedilatildeo do passado (Nora
1993 9)
Eacute portanto imprescindiacutevel para este estudo perceber que por traacutes dessa fluidez
das memoacuterias dos depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ age um
77
elemento fundamental o presente Logo a feliz expressatildeo de Robert Frank (1999) o
presente do passado elucida a anaacutelise de forma a colocar em destaque a forte influecircncia
que a temporalidade vivida no momento em que as entrevistas foram concedidas tem
para a construccedilatildeo de suas narrativas
Trata-se de fontes que estatildeo marcadas pelo proacuteprio presente inerentes a ele
qualquer que seja a eacutepoca os depoimentos de testemunhas vivas as fontes
orais Aiacute haacute a contemporaneidade intriacutenseca entre o historiador e o ator
(Frank 1999 103)
Por isso eacute aqui crucial considerar o momento das entrevistas Afinal entre 2002 e
2004 o Brasil jaacute vivia uma democracia consolidada onde antigos oposicionistas agrave
ditadura militar se encontravam no poder Fernando Henrique Cardoso exilado no Chile
ateacute o ano de 1968 e na deacutecada de 1970 apoiador convicto do Movimento Democraacutetico
Brasileiro (MDB) havia sido presidente do Brasil entre os anos de 1995 e 2002 Jaacute
Lula ex-liacuteder sindical que havia comandado algumas das mais importantes greves na
virada das deacutecadas de 1970 para 1980 venceu a campanha presidencial em 2002 e se
tornou no ano seguinte o primeiro ex-operaacuterio a presidir o paiacutes Aleacutem disso as pastas
ministeriais de seu governo foram formadas por antigos opositores agrave ditadura tal como
o ex-liacuteder do movimento estudantil Joseacute Dirceu e a partir de 2005 por Dilma
Rousseff ex-militante de duas das organizaccedilotildees de esquerda que optaram na eacutepoca pela
luta armada o Comando de Libertaccedilatildeo Nacional (COLINA) e a Vanguarda Armada
Revolucionaacuteria Palmares (VAR-Palmares) Logo pode-se dizer que com relaccedilatildeo agrave
memoacuteria poliacutetica de vencidos nos anos de chumbo da ditadura os depoentes se
transformaram em vencedores nos tempos democraacuteticos e obviamente a leitura do
passado de prisatildeo e tortura foi iluminada por esse presente
78
Ressalte-se ainda que os depoimentos se vinculavam agrave implantaccedilatildeo da Comissatildeo
de Anistia por meio da Lei nordm 1055902 que atribuiacutea ao Estado a funccedilatildeo de anistiar e
reparar financeiramente todos os cidadatildeos que tivessem vivenciado quaisquer atos de
exceccedilatildeo incluindo torturas prisotildees arbitraacuterias demissotildees e transferecircncias por razotildees
poliacuteticas ocorridas durante o periacuteodo de 18 de setembro de 1946 ateacute 5 de outubro de
1988 Afinal a reparaccedilatildeo soacute poderia ser concedida pela Comissatildeo de Anistia apoacutes a
anaacutelise de um requerimento contendo as memoacuterias das viacutetimas sobre o periacuteodo em
questatildeo escritas individualmente Como na eacutepoca alguns dos depoentes jaacute haviam
construiacutedo suas memoacuterias prisionais para compor o referido requerimento este deve ser
considerado como um importante fator de influecircncia sobre as narrativas de suas
entrevistas
Em contraste com o que foi apresentado a partir da abordagem historiograacutefica e da
monografia do coronel Pereira Fernando Palha Freire um dos ex-prisioneiros do DOI-
CODIRJ destaca a importacircncia da contribuiccedilatildeo inicial dada pelos policiais civis do
DOPS para a utilizaccedilatildeo da violecircncia em favor da extraccedilatildeo de informaccedilotildees Afinal por
mais que os oacutergatildeos de repressatildeo anteriores agrave criaccedilatildeo dos DOI-CODI natildeo estivessem
devidamente preparados para combater as accedilotildees efetuadas pela esquerda armada seus
agentes de fato haviam acumulado uma experiecircncia em interrogatoacuterios Esta num
primeiro momento era importante uma vez que os militares ateacute entatildeo concentravam
sua formaccedilatildeo sobre a atuaccedilatildeo na guerra declarada natildeo possuindo as maliacutecias
necessaacuterias aos interrogatoacuterios
[] a Poliacutecia Civil tinha os caras mais preparados pra tortura mesmo
Porque jaacute vinham haacute muitos anos jaacute tinham a praacutetica da tortura O militar
batia de frente ele era capaz de te matar mas ele ainda natildeo tinha digamos o
seguinte a essecircncia da tortura Por exemplo um coronel virou pro cara e
disse assim - ldquoO senhor eacute um comunistardquo aiacute ele disse assim - ldquoE o senhor eacute
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uma bestardquo Ele matou o cara quer dizer matou sem colher o que queria
Um policial civil poderia ateacute matar o cara mas antes colheria o que queria
eles tinham a praacutetica da tortura Depois os militares se aperfeiccediloaram []
(Freire 28 jun 2004)
No entanto indo ao encontro do que foi abordado pelas outras duas frentes de
estudo aqui traccediladas Ceciacutelia Coimbra tambeacutem ex-prisioneira do DOI-CODIRJ
evidencia a eficiecircncia desse oacutergatildeo com relaccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo A partir de uma situaccedilatildeo
especiacutefica de sua prisatildeo ela percebe como o niacutevel de organizaccedilatildeo do serviccedilo de
informaccedilotildees dos DOI era superior ao do DOPS
Fomos presos eu e meu marido e levados para o DOPS em agosto de 1970
[] quando deram vistoria laacute em casa encontraram um documento que por
ironia do destino era sobre seguranccedila [] Eu fiquei dois dias e meio no
DOPS sendo interrogada sobre o tal documento que nem eu nem o Novaes
falaacutevamos diziacuteamos que natildeo sabiacuteamos de onde era Dois dias e meio depois
quando noacutes fomos para o DOI-CODI logo eles identificaram de onde era o
documento Para vocecirc ver o niacutevel de competecircncia do serviccedilo de informaccedilotildees
do DOI-CODI comparado ao do DOPS O DOPS era ldquomerdinhardquo comparado
com a eficiecircncia do DOI-CODI (Coimbra 30 nov 2004)
Percebe-se assim tanto pela historiografia e pela monografia do coronel Pereira
quanto pela memoacuteria de ex-prisioneiros poliacuteticos que a centralizaccedilatildeo de informaccedilotildees
nos CODI e a relaccedilatildeo direta que esses travavam com os DOI traziam uma agilidade agraves
anaacutelises que natildeo havia nos demais oacutergatildeos Logo a forma centralizada e orquestrada
com que os DOI-CODI agiam significava uma profissionalizaccedilatildeo cada vez maior da
repressatildeo poliacutetica ou seja a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo
Assim apesar de serem instituiccedilotildees distintas a atuaccedilatildeo dos CODI e dos DOI
estavam totalmente interligadas Como apurado por meio do estudo historiograacutefico e
dos dados contemplados na monografia do coronel Pereira enquanto aos CODI cabia
80
concentrar e analisar as informaccedilotildees sobre a seguranccedila interna de suas Regiotildees
Militares aos DOI cabia a partir das informaccedilotildees passadas pelos CODI atuar
diretamente na repressatildeo aos ldquoinimigos internosrdquo e extrair de seus prisioneiros poliacuteticos
informaccedilotildees a serem repassadas aos CODI Diante dessa forte ligaccedilatildeo essas duas
instituiccedilotildees ficaram conhecidas como se fossem um uacutenico oacutergatildeo por meio da sigla
DOI-CODI Essa simbiose entre os CODI e os DOI ficou marcada sobretudo nas
memoacuterias de suas viacutetimas conforme se pode verificar no seguinte trecho
[] tenta entender o que eacute DOI-CODI o DOI-CODI eacute uma instituiccedilatildeo
montada por diversos oacutergatildeos de repressatildeo que funcionava [no Rio de
Janeiro] no quartel da PE [1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito] (Pandolfi 5
fev 2003)
De acordo com os seis entrevistados assim como indicado pela a anaacutelise das
demais frentes de estudo do presente capiacutetulo a praacutetica de tortura era corriqueira nos
interrogatoacuterios dos DOI Esse fato inclusive poderia ser associado agrave sua proacutepria
designaccedilatildeo que na forma abreviada se apresenta sob a sigla DOI correspondendo
sugestivamente agrave conjugaccedilatildeo do verbo doer na terceira pessoa do singular
Soube que ningueacutem entrava no DOI-CODI sem sofrer algum tipo de tortura
fiacutesica ou psicoloacutegica mas principalmente a fiacutesica e realmente natildeo creio
que algueacutem tenha passado por laacute imune agrave tortura [] Quando a gente chega
ao DOI-CODI chega logo tomando porrada Natildeo tinha essa histoacuteria de meu
senhor era tapa Tapa choque eleacutetrico pau de arara a isso tudo eu fui
submetido O primeiro interrogatoacuterio que natildeo eacute um interrogatoacuterio formal
judicial eacute feito sob essas condiccedilotildees Depois bem depois eacute que eu fui ser
interrogado no DOPS em outras condiccedilotildees [] Eu fui torturado mesmo na
Rua Baratildeo de Mesquita na PE laacute sim eu fui bastante torturado []
(Carvalho 12 set 2002)
81
[] laacute na PE vocecirc natildeo fazia nada a natildeo ser ficar esperando o tempo para ser
interrogada para ser torturada [] (Pandolfi 5 fev 2003)
Laacute no DOI-CODI comia tudo choque pau-de-arara afogamento pancada
Laacute que eu descobri esse termo que fulano virou presunto neacute Porque vocecirc
fica igual a um presunto mesmo porque eles te datildeo pancadas localizadas []
(Freire 28 jun 2004)
[] laacute no DOI-CODI tinha todo tipo de torturas desde choques eleacutetricos na
matildeo direita esquerda peacute esquerdo Eu sofri isso tambeacutem (Prigol 28 set
2004)
[] o meu negoacutecio era ganhar tempo e o deles era conseguir informaccedilatildeo A
luta eacute essa nos primeiros dias eacute vocecirc dar o miacutenimo de informaccedilotildees e eles
querendo arrancar o maacuteximo de informaccedilatildeo neacute Aiacute eles vecircm com a maacutexima
de que torturar eacute investigar (risos) E daiacute se precisar ateacute a morte o negoacutecio
eacute conseguir informaccedilatildeo (Batista 17 nov 2004)
[] onde eram os choques eleacutetricos que na PE eles davam eles me
molhavam toda para o choque ser mais intenso e botavam principalmente
nas partes onde eram mais sensiacuteveis como ouvido nariz boca bico do
peito vagina acircnus[] o choque eleacutetrico eacute indescritiacutevel porque vocecirc perde a
noccedilatildeo do tempo e todo e qualquer controle da bexiga e dos intestinos []
(Coimbra 30 nov 2004)
Portanto ali a incumbecircncia era operar a extraccedilatildeo de informaccedilotildees e para isso a
tortura como meacutetodo era utilizada pelos agentes das turmas de interrogatoacuterio
preliminar Afinal em uma ponta da sofisticaccedilatildeo repressiva apresentada pelos DOI-
CODI estava a concentraccedilatildeo de informaccedilotildees dos CODI e na outra a agilidade que a
extraccedilatildeo de informaccedilotildees possibilitada principalmente pelo uso das torturas durante os
interrogatoacuterios dos presos dava agraves operaccedilotildees de busca e apreensatildeo de mais ldquoelementos
subversivosrdquo
82
A partir dos depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados assim como
da anaacutelise da historiografia selecionada e dos dados trazidos pelo coronel Pereira em sua
monografia percebe-se que os DOI-CODI ocupavam somente uma parte dos quarteacuteis
do Exeacutercito onde se localizavam e na parte restante o funcionamento desses quarteacuteis
continuava normalmente Os DOI-CODI eram portanto prisotildees atiacutepicas diferentes das
convencionais construiacutedas desde o iniacutecio para acomodar prisioneiros Assim eacute coerente
que o serviccedilo de carceragem nos DOI-CODI fosse executado pelos soldados que
serviam ao proacuteprio quartel jaacute que esse era apenas um serviccedilo de apoio um auxiacutelio natildeo
agrave toa feito por agentes de turmas que eram intituladas auxiliares
Os soldados que serviam ao quartel a quem era atribuiacutedo o serviccedilo de
carceragem eram conhecidos no DOI-CODIRJ por ldquocatarinasrdquo devido a suas
caracteriacutesticas fiacutesicas e tambeacutem ao sotaque tiacutepico ao estado de Santa Catarina Os
ldquocatarinasrdquo eram identificados como soldados devido ao fato dos agentes propriamente
do DOI-CODIRJ normalmente andarem a paisana enquanto eles usavam farda ou seja
trajes tradicionais a militares que natildeo estivessem ligados a operaccedilotildees de informaccedilotildees
Os agentes dos DOI-CODI como elucidado por meio da segunda frente deste capiacutetulo
por precisarem ser confundidos com civis se diferenciavam dos demais soldados
Na PE os soldados eram sempre de Santa Catarina [] pessoas de portes
fiacutesicos avantajados e essa condiccedilatildeo fiacutesica era uma espeacutecie de exigecircncia para
servir ao quartel da Poliacutecia Militar Eram entatildeo os ldquocatarinasrdquo [] (Carvalho
8 fev 2003)
[] quem torturava a gente era o pessoal do DOI-CODI normalmente eles
andavam a paisana [] e quem fazia o trabalho burocraacutetico ou seja a
limpeza da PE quem dava o cafeacute da gente quem abria a cela e fechava a
cela eram os soldados uniformizados Eram ateacute os ldquocatarinasrdquo porque
tinham muitos que vinham de Santa Catarina eram soldados altos [] entatildeo
83
os soldados faziam a burocracia e os militares do DOI-CODI faziam essa
parte digamos da investigaccedilatildeo poliacutetica [] (Pandolfi 5 fev 2003)
[] os ldquocatarinasrdquo eram os guardinhas era o pessoal que estava servindo
eles tinham dezoito ou dezenove anos eles estavam servindo ao Exeacutercito e
alguns deles ateacute amenizavam a nossa situaccedilatildeo [hellip] (Batista 17 nov 2004)
Diferentemente do que se percebe na monografia feita pelo coronel Pereira em
1978 nas memoacuterias aqui analisadas a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI no ano de 1970
consagrou-se como um dos periacuteodos mais difiacuteceis de suas vidas Nota-se no entanto
que os nuacutemeros e percentuais que na eacutepoca eram interpretados por muitos militares
como forte indiacutecio de eficiecircncia da instituiccedilatildeo no combate ao ldquoinimigo internordquo estatildeo
em meio ao contexto democraacutetico em que as narrativas dos ex-presos foram construiacutedas
diretamente ligados agrave memoacuteria da tortura e da violaccedilatildeo aos direitos humanos Como se
pode analisar a partir da interpretaccedilatildeo de Ceciacutelia Coimbra uma das ex-prisioneiras
poliacuteticas fundadoras do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro 15
[] eu acho a fala para mim a minha militacircncia no Tortura Nunca Mais
fundamental Em 85 quando a gente fundou o Grupo foi fundamental no
sentido de tornar isso puacuteblico e natildeo soacute como se fosse uma coisa de lamento
da gente uma coisa da dor da gente dessa marca que natildeo vai sair nunca []
mas como instrumento de luta instrumento de denuacutencia [] (Coimbra 30
nov 2004)
Durante o periacuteodo das entrevistas aqueles que viveram a experiecircncia dos DOI-
CODI a partir do outro lado de suas grades muitas vezes veem as dolorosas lembranccedilas
daquele tempo como um meio de fazer justiccedila e ateacute mesmo contribuir para a
solidificaccedilatildeo da democracia enquanto que os militares que no passado se orgulhavam
15
O GTNMRJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-prisioneiros poliacuteticos que viveram situaccedilotildees de
tortura durante o regime militar e por familiares de mortos e desaparecidos poliacuteticos Para mais
informaccedilotildees ver o perfil de Ceciacutelia Coimbra no proacuteximo capiacutetulo
84
de seus feitos lutam no presente por natildeo serem a eles associados Diante disso nota-se
que apoacutes o teacutermino da ditadura em 1985 as memoacuterias dos entatildeo vencidos
movimentam-se de forma a se sobreporem agraves dos vencedores conseguindo aos poucos
garantir seu espaccedilo de viacutetimas da ditadura e ao mesmo tempo de heroacuteis da democracia
na poliacutetica na justiccedila e na histoacuteria
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Capiacutetulo 2 ndash Os presos poliacuteticos e suas organizaccedilotildees
Nas escolas nas ruas
campos construccedilotildees
Somos todos soldados
Armados ou natildeo
Caminhando e cantando
E seguindo a canccedilatildeo
Somos todos iguais
Braccedilos dados ou natildeo
Os amores na mente
As flores no chatildeo
A certeza na frente
A histoacuteria na matildeo
Caminhando e cantando
E seguindo a canccedilatildeo
Aprendendo e ensinando
Uma nova liccedilatildeo
Geraldo Vandreacute
(Pra natildeo dizer que natildeo falei de flores 1968)
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Antocircnio Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia satildeo alguns dos brasileiros
que lutaram contra a ditadura militar no paiacutes e que na eacutepoca foram presos pelo governo
nas dependecircncias do DOI-CODI do Rio de Janeiro Trecircs homens e trecircs mulheres que
apesar de suas trajetoacuterias pessoais e poliacuteticas distintas possuem ateacute hoje fortes elos
construiacutedos pela passagem pelo DOI-CODI carioca
Foi especificamente essa vivecircncia prisional comum que me despertou o interesse
pelas memoacuterias desses seis atores histoacutericos O objetivo era a partir da oacutetica dos ex-
prisioneiros entender como funcionava na praacutetica o DOI-CODIRJ Assim entre os
anos de 2002 e 2004 em meio aos governos dos ex-presidentes Fernando Henrique e
Lula ou seja jaacute em tempos democraacuteticos Antocircnio Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana
e Ceciacutelia me concederam entrevistas sobre suas prisotildees no DOI-CODIRJ bem como
sobre suas trajetoacuterias pessoais e poliacuteticas antes e depois de suas prisotildees
Esses depoimentos ndash principal objeto de pesquisa desta dissertaccedilatildeo ndash trazem aleacutem
das lembranccedilas sobre o cotidiano prisional de um DOI-CODI muito da personalidade e
da vivecircncia de cada um desses indiviacuteduos Atraveacutes dessas memoacuterias pode-se lidar com
as idiossincrasias de cada um deles relativizando a ideia de uma memoacuteria coletiva
comum a todos os ex-prisioneiros poliacuteticos que ficaram no quartel da Rua Baratildeo de
Mesquita Pode-se ainda conhecer um pouco mais de perto a loacutegica de construccedilatildeo de
suas memoacuterias individuais analisando como cada um desses indiviacuteduos se vecirc atraveacutes do
passado de militacircncia e prisatildeo como se identifica por meio desse passado imprime essa
identidade no mundo externo e como este mundo influencia na percepccedilatildeo que possui
sobre si mesmo
No entanto as memoacuterias individuais aqui trabalhadas natildeo estatildeo isoladas jaacute que
conforme bem evidenciado por Maurice Halbwachs em A memoacuteria coletiva (2004)
frequentemente tomam como referecircncia pontos externos ao sujeito se apoiando em
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percepccedilotildees recebidas de determinada memoacuteria coletiva de um grupo e tambeacutem pela
memoacuteria histoacuterica de seu paiacutes (2004 57-59) Partindo dessa ideia percebe-se aqui que
nas memoacuterias narradas por indiviacuteduos que fizeram parte de uma mesma organizaccedilatildeo de
esquerda armada ou que ainda hoje integram um mesmo grupo como por exemplo o
Grupo Tortura Nunca MaisRJ satildeo encontrados mais pontos de contato Aleacutem disso
todos os depoentes mostram ter como base de suas lembranccedilas a memoacuteria histoacuterica
pois em algum momento as localizam no tempo por meio de datas e fatos que se
estabeleceram como histoacutericos tal como o golpe civil-militar de 31 de marccedilo de 1964
ou a decretaccedilatildeo do AI-5 em 13 de dezembro de 1968
Cabe aqui ressaltar que ex-prisioneiros do DOI-CODIRJ entrevistados eram em
sua grande maioria estudantes que se tornaram combatentes da esquerda armada a
partir da proibiccedilatildeo de atividades e manifestaccedilatildeo sobre o assunto de natureza poliacutetica
estipulada pelo inciso III do artigo 5ordm do AI-5 e que em suas memoacuterias a
promulgaccedilatildeo deste Ato representa um marco temporal muito mais forte do que o golpe
civil-militar de 1964 Afinal para suas trajetoacuterias de vida o AI-5 de 13 de dezembro de
1968 foi um divisor de aacuteguas pois tornava as manifestaccedilotildees estudantis proibidas
revoltando-os e estimulando-os ainda mais a lutar pela derrubada do regime ditatorial
Diante disso a maioria dos depoentes sustenta em suas memoacuterias o AI-5 como um
momento em que suas vidas foram postas em xeque A partir do dia de sua
promulgaccedilatildeo eles se viram diante da necessidade de decidir se continuavam ou natildeo a
agir contra a ditadura e em caso positivo se deveriam considerar a violecircncia armada
como uma via de luta uma vez que os movimentos paciacuteficos estavam totalmente
encurralados Como a opccedilatildeo da maior parte deles foi a de pegar em armas ndash decisatildeo que
acarretou natildeo soacute em suas prisotildees mas tambeacutem na mudanccedila da percepccedilatildeo que tinham
sobre a vida jaacute que ao andarem armados passavam a ter a consciecircncia de que viviam
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sob a ameaccedila da morte ndash o AI-5 tem papel de destaque entre suas memoacuterias do periacuteodo
militar Essa importacircncia do AI-5 pode ser exemplificada no trecho abaixo destacado da
entrevista de Ana de Miranda Batista
O AI-5 foi determinante Porque vocecirc natildeo tinha mais formas de expressatildeo
vocecirc natildeo podia se reunir vocecirc natildeo podia mais fazer nada era impedido pela
poliacutecia A gente estava amordaccedilado a imprensa amordaccedilada os teatros os
cinemas tudo Era um terror muita poliacutecia na rua muita blitz blitz de
montatildeo sabe Quem quisesse ser como a gente -ldquoAbaixo a Ditadura
Abaixo a Repressatildeordquo As formas de expressatildeo se reduziram a quase zero Aiacute
eacute que houve um pontapeacute na decisatildeo de muitos de noacutes de quer dizer soacute
restou a luta armada soacute restou resistir de forma armada mesmo que pra
maioria de noacutes fosse uma decisatildeo extrema [] eu nem uma arma de perto
eu nunca tinha visto Quer dizer esse momento eacute um momento draacutestico
quer dizer um tempo depois eacute que eu conversando eacute que vi que natildeo foi
assim soacute para mim Porque para alguns dos rapazes que tinham servido ao
Exeacutercito e sei laacute o quecirc eles jaacute tinham alguma familiaridade com armas quer
dizer alguns deles Mas a gente menina classe meacutedia natildeo Eu nunca tinha
visto nunca tinha me interessado por arma na vida (risos) natildeo fazia parte do
meu universo E teve muita gente que nessa eacutepoca pirou Pirou que eu digo
de natildeo querer mais saber Muita gente E eu acho extremamente respeitaacutevel
essa decisatildeo porque eacute uma decisatildeo draacutestica [] porque no momento em que
vocecirc estaacute com uma arma vocecirc pode matar ou morrer Eacute muito grave essa
decisatildeo Vocecirc estaacute lidando com a possibilidade da morte e quando vocecirc
nunca teve familiaridade assim quando vocecirc nunca viu uma arma eacute muito
difiacutecil [] (Batista 17 nov 2004)
Vale aqui mais uma vez destacar que essas memoacuterias do passado satildeo lavadas nas
aacuteguas do presente ou seja satildeo o preacutesent du passeacute conforme a feliz expressatildeo de Robert
Frank (1999) As memoacuterias sobre as experiecircncias prisionais do DOI-CODIRJ
ocorridas durante os ldquoanos de chumbordquo da ditadura militar foram construiacutedas em
entrevistas concedidas entre o final do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-
2002) e o iniacutecio do governo de Lula (2003-10) ambos perseguidos poliacuteticos durante o
89
periacuteodo ditatorial Portanto a perspectiva de vencidos que no passado direcionava as
memoacuterias dos depoentes abre lugar para uma narrativa proacutexima agrave de vencedores pela
qual os ex-prisioneiros poliacuteticos se veem como responsaacuteveis pela construccedilatildeo da
democracia e de uma justiccedila de transiccedilatildeo ainda em curso no Brasil
Uma ideia de justiccedila de transiccedilatildeo iniciou-se principalmente a partir da
Constituiccedilatildeo de 1988 quando a reparaccedilatildeo aos perseguidos poliacuteticos do passado
ditatorial se transformou em garantia constitucional No entanto foi somente a partir de
1995 jaacute no governo FHC que ela comeccedilou a ser implantada por meio da primeira
comissatildeo de reparaccedilatildeo a Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos (lei nordm
914095) Aleacutem disso em 2002 sete anos depois a reparaccedilatildeo aos perseguidos pela
ditadura foi complementada por meio da Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio da Justiccedila
(lei nordm 1055902) Assim quando a primeira entrevista me foi concedida em setembro
de 2002 a Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos jaacute trabalhava no sentido de
reconhecer a responsabilidade do Estado brasileiro por mortes e desaparecimentos de
presos poliacuteticos ocorridas durante a ditadura enquanto a Comissatildeo de Anistia iniciava a
sua funccedilatildeo de
[] reparar os atos de exceccedilatildeo incluindo as torturas prisotildees arbitraacuterias
demissotildees e transferecircncias por razotildees poliacuteticas sequestros compelimento agrave
clandestinidade e ao exiacutelio banimentos expurgos estudantis e
monitoramentos iliacutecitos (Abratildeo 2010 4)
Conforme jaacute abordado no primeiro capiacutetulo os procedimentos impostos pela Lei
105592002 influenciaram como natildeo podia deixar de ser o processo de construccedilatildeo das
memoacuterias aqui trabalhadas Afinal o referido processo se iniciava com um relato da
viacutetima sobre as agressotildees e perseguiccedilotildees sofridas agrave eacutepoca ditatorial Este deveria
configurar uma espeacutecie de memorial no qual o requerente deveria destacar todas as
90
violaccedilotildees sofridas a ser apresentado agrave Comissatildeo cabendo a esta apoacutes a verificaccedilatildeo dos
fatos expostos conceder ou natildeo ao requisitante a condiccedilatildeo de anistiado poliacutetico e
dependendo do caso a correspondente reparaccedilatildeo econocircmica Como alguns dos
entrevistados passavam por este processo no mesmo periacuteodo em que concederam as
entrevistas eacute notaacutevel que tal experiecircncia seja mais uma forte influecircncia do presente na
construccedilatildeo das memoacuterias por eles narradas Esse momento de busca por reparaccedilatildeo por
que muitos passavam inconscientemente os conduzia a enfatizar durante as narrativas
suas condiccedilotildees de ldquoviacutetimasrdquo do passado em detrimento por exemplo de suas condiccedilotildees
de ldquosiacutembolos da resistecircnciardquo
Ainda diante da capacidade de intervenccedilatildeo que o presente exerce sobre as
memoacuterias do passado deve-se considerar tambeacutem a forma como essa rede de
entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que as entrevistas foram realizadas
Afinal o caminho trilhado ateacute o depoente e o momento especiacutefico de cada narrativa
composto pelo local e as condiccedilotildees gerais sob as quais ocorreu tambeacutem influenciam na
construccedilatildeo das memoacuterias do entrevistado tanto por parte do historiador na maneira
como aborda o narrador quanto por parte do proacuteprio narrador por meio da forma com
que narra suas memoacuterias Portanto acredita-se aqui que a busca por cada entrevistado
interfere na abordagem que o entrevistador imprime agrave entrevista e na forma como o
narrador se sente ao narrar suas memoacuterias naquele momento tornando o instante de
cada entrevista um fator tambeacutem de intervenccedilatildeo na narrativa das memoacuterias do passado
Dessa forma antes de tratar-se das trajetoacuterias de vida narradas por cada ex-prisioneiro
entrevistado optou-se aqui por considerar como o instante de cada entrevista foi
construiacutedo ou seja como a rede de entrevistas foi formada
91
1 A rede de entrevistas
A primeira entrevista foi feita com o ex-preso poliacutetico Antocircnio Leite de Carvalho
em 12 de setembro de 2002 na sala de sua casa situada bem proacutexima ao quartel do 1ordm
BPE onde se localizava o DOI-CODIRJ O espaccedilo ocupado por esta instituiccedilatildeo que eacute
intensamente abordado no proacuteximo capiacutetulo situava-se nos fundos do referido quartel
cujo edifiacutecio foi construiacutedo durante o Impeacuterio e ainda hoje se encontra entre a Avenida
Maracanatilde e a Rua Baratildeo de Mesquita no bairro da Tijuca na cidade do Rio de Janeiro
Cheguei ateacute Antocircnio atraveacutes de seu filho Joatildeo meu colega do curso de graduaccedilatildeo
em histoacuteria pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Sabedor
do meu interesse sobre o tema da repressatildeo poliacutetica Joatildeo procurou me ajudar e ao
mesmo tempo satisfazer a curiosidade que sentia sobre esta parte da vida de seu pai
Portanto durante a minha primeira visita agrave casa de Antocircnio enquanto ele narrava
suas memoacuterias sobre o periacuteodo em que esteve preso nas dependecircncias do quartel
vizinho Joatildeo atravessava constantemente a sala em direccedilatildeo agrave varanda ou agrave cozinha
Assim sem que Antocircnio aparentemente percebesse jaacute que estava concentrado em sua
narrativa Joatildeo tentava ouvir um pouco mais sobre um passado que seu pai nunca havia
revelado abertamente aos filhos
Percebe-se entatildeo como lidar com detalhes dessa memoacuteria era complicado para
Antocircnio e portanto o quanto aquele momento era importante para ele e para seu filho
Atraveacutes da entrevista enquanto Antocircnio passava a sentir um maior orgulho daquelas
memoacuterias pois por meio do meu interesse em entrevistaacute-lo comeccedilava a percebecirc-las
como fonte para a histoacuteria do paiacutes Joatildeo conhecia melhor o seu pai e passava a entender
algumas de suas atitudes que ateacute entatildeo questionava
Era o caso da reaccedilatildeo arredia que Antocircnio tinha ao ser acordado de forma
inesperada enquanto dormia no sofaacute da casa Assim apoacutes ouvir sobre o cotidiano e as
92
torturas a que seu pai afirma ter sido submetido no DOI-CODIRJ Joatildeo comeccedilou a
compreender que tal reaccedilatildeo tinha relaccedilatildeo com esse passado quando Antocircnio muitas
vezes pode ter sido despertado de desmaios ocasionados por choques eleacutetricos e outras
torturas a ele perpetradas ainda na sala de interrogatoacuterio Logo o fato de acordar
assustado tentando se proteger ou ateacute mesmo agredir quem o acordasse pode ser
compreendido quando relacionado agraves marcas que as violecircncias vividas no DOI-
CODIRJ deixaram na memoacuteria de Antocircnio
A partir dessa primeira entrevista o meu interesse pelo tema se aprofundou
impulsionando-me a buscar outros possiacuteveis entrevistados No dia 5 de fevereiro de
2003 consegui entrevistar Dulce Chaves Pandolfi Seu nome foi aventado por meio da
leitura sobre a passagem de Dulce pelo DOI-CODIRJ encontrada no livro Brasil
Nunca Mais publicado pela Editora Vozes em 1985
A estudante Dulce Chaves Pandolfi 24 anos foi obrigada tambeacutem a servir
de cobaia no quartel da rua Baratildeo de Mesquita no Rio [] Na Poliacutecia do
Exeacutercito foi submetida a espancamento inteiramente despida bem como a
choques eleacutetricos e outros supliacutecios como o ldquopau-de-ararardquo Depois de
conduzida agrave cela onde foi assistida por meacutedico foi apoacutes algum tempo
novamente seviciada com requintes de crueldade numa demonstraccedilatildeo de
como deveria ser feita a tortura [] (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985 32)
Depois de algumas tentativas frustradas de marcar esta entrevista por meio de
mensagens via correio eletrocircnico que encontrei atraveacutes do site do CPDOC centro de
pesquisa onde Dulce trabalha como pesquisadora e professora ela enfim me recebeu em
sua sala no interior deste mesmo centro de pesquisa Sua resistecircncia inicial pode ser
atribuiacuteda ao fato de na condiccedilatildeo de pesquisadora estar mais acostumada ao papel de
entrevistadora do que ao de entrevistada ou seja estar mais afinada com o trabalho de
analisar as fontes do que com o de ser a proacutepria fonte Diante disso durante sua
93
entrevista Dulce natildeo se sentiu agrave vontade em tratar dos detalhes das violecircncias sofridas
no DOI-CODIRJ o que pode ser explicado pela dor que ainda acompanha suas
memoacuterias e tambeacutem pelo desconforto que a situaccedilatildeo lhe trazia jaacute que ela possivelmente
natildeo se desvinculava do fato de ser uma professora universitaacuteria expondo sua intimidade
a uma aluna de graduaccedilatildeo No entanto justamente por lecionar histoacuteria e por
conseguinte jaacute estar convencida da importacircncia de seu depoimento Dulce apresentou
uma narrativa articulada e aparentemente coerente
Apoacutes a entrevista de Dulce ficou evidente a desarticulaccedilatildeo da memoacuteria de
Antocircnio uma vez que esta era silenciada haacute muito tempo e portanto natildeo possuiacutea uma
construccedilatildeo preacute-estabelecida por outros discursos Tal percepccedilatildeo me levou a voltar a
entrevistaacute-lo em 8 de fevereiro de 2003 trecircs dias depois da entrevista de Dulce quando
Antocircnio jaacute demonstrava uma memoacuteria mais articulada Afinal esse silecircncio que
caracterizava sua memoacuteria lhe atribuiacutea um aspecto negativo e um destacadamente
positivo O lado negativo era que conforme elucidado por Michael Pollak em Memoacuteria
esquecimento e silecircncio (1989) dificilmente sua memoacuteria foi transmitida de forma
intacta durante todo o tempo em que ficou guardada ateacute o dia em que a entrevista
significou uma oportunidade para que ela saiacutesse do ldquonatildeo-ditordquo Poreacutem o lado positivo a
meu ver merecedor de destaque era que a memoacuteria de Antocircnio sobre a prisatildeo no DOI-
CODIRJ possuiacutea poucas influecircncias por decorrecircncia do contato com as memoacuterias de
outros ex-prisioneiros pois natildeo estava a elas diretamente relacionada por meio de
nenhuma coletividade especiacutefica
No ano seguinte ao buscar mais informaccedilotildees sobre o DOI-CODIRJ no Arquivo
Puacuteblico do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) conheci Fernando Palha Freire que viria
a ser o meu terceiro entrevistado Na eacutepoca da entrevista em junho de 2004 Fernando
trabalhava neste Arquivo enviando ao governo estadual a documentaccedilatildeo de requerentes
94
agrave reparaccedilatildeo econocircmica conforme constava no decreto nordm 31995 de 10 de outubro de
2002 Este decreto regulamentava a lei estadual Nordm 3744 de 21 de dezembro de 2001
que antes mesmo da lei federal 105592002 entrar em vigor dispunha sobre a
reparaccedilatildeo a pessoas que haviam sido detidas sob acusaccedilatildeo de terem participado de
atividades poliacuteticas entre os dias 1ordm de abril de 1964 e 15 de agosto de 1979 e que
haviam sofrido tortura em oacutergatildeos puacuteblicos estaduais
Ao saber sobre o meu tema de pesquisa um arquivista do APERJ me apresentou a
Fernando que natildeo hesitou em me conceder seu depoimento A entrevista foi realizada laacute
mesmo dentro da sala em que Fernando trabalhava e por ter sido concedida durante o
horaacuterio de expediente fomos constantemente interrompidos por ligaccedilotildees telefocircnicas Ao
longo de sua entrevista Fernando confessou ter falado muitas vezes sobre suas
memoacuterias do periacuteodo militar e que justamente por entender a importacircncia desse
passado havia sido nomeado para instruir os requisitantes agrave reparaccedilatildeo estipulada pelo
Decreto estadual Nordm 319952002 Dessa forma justifica-se a apresentaccedilatildeo tranquila e
eloquente que conduz sua narrativa
Trecircs meses depois no final de setembro Padre Maacuterio Prigol da Paroacutequia de
Nossa Senhora da Salete localizada no bairro do Catumbi no Rio de Janeiro me
concedeu seu depoimento Esta entrevista foi possiacutevel por intermeacutedio de Alejandra
outra colega do curso de graduaccedilatildeo em histoacuteria da UNIRIO que o conhecia por jaacute tecirc-lo
entrevistado sobre a sua participaccedilatildeo nos movimentos da Juventude Operaacuteria Catoacutelica
(JOC) e Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) 16
Durante a entrevista que me concedeu Padre Maacuterio falou muito sobre as lutas
sociais que travou durante a ditadura militar descritas no livro que havia acabado de
publicar ndash Maacuterio Prigol educador da feacute entre trabalhadores e militantes populares
16
Para mais informaccedilotildees ver Estevez 2008
95
(2003) Entretanto sobre sua passagem pelo DOI-CODIRJ pouco fazia questatildeo de
narrar reconhecendo em certo momento que laacute tambeacutem havia sofrido com torturas o
que explica em parte o desconforto que as lembranccedilas prisionais lhe traziam
Provavelmente por sua prisatildeo ter lhe colocado na eacutepoca em uma posiccedilatildeo extremamente
conflitante e perturbadora para uma autoridade da Igreja Catoacutelica anos mais tarde essas
memoacuterias ainda eram difiacuteceis de serem narradas e lembrar a violecircncia sofrida dentro do
DOI-CODIRJ possivelmente trazia de volta alguns transtornos de ordem sentimental
indesejaacuteveis Afinal presume-se que na prisatildeo seus sentimentos oscilassem entre os
tipicamente humanos tais como dor e raiva e os cristatildeos como feacute e perdatildeo tais
memoacuterias remetiam a sentimentos humanos que ele em respeito a sua vocaccedilatildeo de
padre deveria renegar
Decidida a ampliar ainda mais o escopo de minha rede de entrevistados passei a
frequentar as reuniotildees abertas ao puacuteblico agraves segundas-feiras agrave noite na sede do Grupo
Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTMNRJ) no bairro de Botafogo O
GTNMRJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-prisioneiros poliacuteticos que viveram
situaccedilotildees de tortura durante o regime militar bem como por familiares de mortos e
desaparecidos poliacuteticos O Grupo tornou-se por meio das lutas em defesa dos direitos
humanos uma importante referecircncia no cenaacuterio nacional Ao longo dessas deacutecadas o
GTNMRJ vem lutando pelo esclarecimento das circunstacircncias da morte e do
desaparecimento de militantes poliacuteticos pelo resgate da memoacuteria da repressatildeo ditatorial
pelo afastamento imediato dos cargos puacuteblicos de pessoas envolvidas com a tortura e
pela formaccedilatildeo de uma consciecircncia eacutetica condiccedilatildeo que a entidade defende ser
indispensaacutevel na luta contra a impunidade e pela justiccedila Aleacutem disso o Grupo vem
denunciando antigos e novos casos de tortura exigindo puniccedilatildeo para seus perpetradores
96
atraveacutes de notas na miacutedia entrevistas atos puacuteblicos seminaacuterios e outras atividades 17
Minha ida agrave sede do Grupo resultou na incorporaccedilatildeo de duas novas entrevistadas a
minha rede A primeira delas foi Ana de Miranda Batista que em 17 de novembro de
2004 me recebeu em uma das salas do proacuteprio GNTMRJ Ana havia acabado de
escrever seu memorial ndash onde narrava todas as perseguiccedilotildees e prisotildees que havia sofrido
durante a ditadura militar ndash e o havia encaminhado agrave presidecircncia da Comissatildeo Especial
da Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro a fim de comprovar
que fazia jus ao valor maacuteximo da reparaccedilatildeo prevista no Art 5ordm da Lei Estadual nordm 3744
de 21 de dezembro de 2001 O ponto principal de seu argumento era que havia sofrido
todas as mazelas prisotildees torturas fiacutesicas e psicoloacutegicas submetida pelas forccedilas
opressoras da eacutepoca fato este que ateacute hoje tem consequecircncias em sua vida (Batista
2004 10) 18
Antes de comeccedilar a entrevista Ana me concedeu uma coacutepia deste memorial
juntamente com a monografia do entatildeo Coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira
fonte analisada no capiacutetulo anterior cujo teor havia lhe servido como evidecircncia dos
meacutetodos violentos que ocorriam nas dependecircncias do DOI-CODI
Diante disso conforme o esperado seu depoimento oral apresentou um tom
narrativo muito similar ao assumido no referido documento que havia recentemente
escrito Assim orquestrada com o objetivo que tinha de conseguir a reparaccedilatildeo do
Estado Ana buscou construir suas memoacuterias de forma a ressaltar as violecircncias sofridas
ou seja priorizou a condiccedilatildeo de ldquoperseguida poliacutetica e viacutetima da repressatildeo militarrdquo em
detrimento da de ldquolutadora revolucionaacuteriardquo em prol da democracia
No final desse mesmo mecircs de novembro entrevistei a entatildeo vice-presidente do
Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro Ceciacutelia Coimbra Professora do
17
Para mais informaccedilotildees acessar httpwwwtorturanuncamais-rjorgbr 18
Memorial de Ana de Miranda Batista parte do requerimento agrave indenizaccedilatildeo enviado ao Secretaacuterio de
Estado de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro pela proacutepria em outubro de 2004
97
Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Ceciacutelia me
recebeu em uma das salas do preacutedio dessa faculdade localizada no campus do
Gragoataacute na cidade de Niteroacutei Uma das fundadoras do GTNMRJ Ceciacutelia natildeo mostrou
nenhum pudor em lembrar as violaccedilotildees sofridas durante a prisatildeo Detalhou as torturas
recebidas sem demonstrar constrangimento Esta forma de lidar com o passado se
explica pela maneira pela qual Ceciacutelia se auto-identifica Afinal devido a sua profissatildeo
de psicoacuteloga e sua condiccedilatildeo de liacuteder de um grupo que luta por reparar os danos morais e
fiacutesicos deixados pela tortura entende a difusatildeo dos detalhes de sua proacutepria memoacuteria
como uma arma poderosa para que a justiccedila seja feita em prol da redenccedilatildeo dos
torturados e da penalizaccedilatildeo dos torturadores
11 Os sujeitos e suas trajetoacuterias
A partir da anaacutelise dos depoimentos traccedila-se aqui a trajetoacuteria de vida de cada um
dos entrevistados a fim de que sejam desvendados outros fatores que influenciaram a
construccedilatildeo de suas memoacuterias sobre o periacuteodo em que estiveram presos no DOI-
CODIRJ Este periacuteodo se concentra no segundo semestre do ano de 1970 uma vez que
foi nesse momento que todos os seis entrevistados por laacute passaram Este dado temporal
em muito aproxima suas memoacuterias pois significa que estas se referem a uma mesma
fase desse oacutergatildeo repressivo Isso permitiu ateacute mesmo que tais memoacuterias englobassem
momentos compartilhados jaacute que alguns desses ex-prisioneiros laacute se encontraram e ateacute
dividiram uma mesma cela
No entanto cabe aqui destacar que natildeo houve qualquer intenccedilatildeo de entrevistar ex-
prisioneiros que estivessem no DOI-CODIRJ durante esse periacuteodo Conforme exposto
anteriormente a rede de entrevistas foi se desenhando de acordo com as oportunidades
o que torna o fato de todos terem por laacute passado na segunda metade de 1970 natildeo uma
98
feliz coincidecircncia como uma primeira impressatildeo pode fazer crer mas mais uma
demonstraccedilatildeo da alta eficiecircncia dos DOI-CODI Essas prisotildees correspondem justamente
ao periacuteodo em que o DOI-CODIRJ passou a funcionar em meados de 1970
demonstrando na praacutetica o que foi dito no capiacutetulo anterior diante da grande demanda
de accedilotildees que natildeo eram eficientemente combatidas pelos oacutergatildeos de repressatildeo anteriores
a sofisticaccedilatildeo dos DOI ldquorevolucionourdquo de fato a organizaccedilatildeo da repressatildeo agindo jaacute
num primeiro momento de forma avassaladora
Antocircnio Leite de Carvalho19
Antocircnio Leite de Carvalho nasceu no Cearaacute em 13 de agosto de 1945 Quando era
estudante secundarista pertenceu ao movimento que se concentrava no Calabouccedilo
restaurante estudantil proacuteximo ao Aeroporto Santos Dumont do Rio de Janeiro
frequentado por estudantes que eram como ele secundaristas pobres e principalmente
procedentes de outros estados
Em 1967 o governo apresentou planos para a demoliccedilatildeo do Calabouccedilo sob a
justificativa de construir em seu local um trevo rodoviaacuterio para desafogar o tracircnsito do
Aterro do Flamengo A partir disso os estudantes comeccedilaram a protestar contra a sua
demoliccedilatildeo e criaram a Frente Unida dos Estudantes do Calabouccedilo (FUEC) O governo
em maio daquele ano conseguiu demolir o restaurante e entregou em setembro ldquoo novo
Calabouccedilordquo para os estudantes poreacutem em situaccedilotildees precaacuterias Assim a luta da FUEC
continuou em prol da melhoria de suas condiccedilotildees de funcionamento e foi justamente em
torno desses protestos que o primeiro grande conflito de rua do ano de 1968 ocorreu
sensibilizando a opiniatildeo puacuteblica e o movimento estudantil como um todo No dia 28 de
19
Entrevistas realizadas com Antocircnio Leite de Carvalho em 12 de setembro de 2002 e 8 de fevereiro de
2003
99
marccedilo policiais invadiram a tiros o restaurante do Calabouccedilo onde se preparava mais
uma manifestaccedilatildeo contra as peacutessimas condiccedilotildees do local e mataram o estudante
secundarista Edson Luiacutes de Lima Souto de dezoito anos Este assassinato representou o
estopim para o desencadeamento de amplas manifestaccedilotildees contraacuterias agrave ditadura ao
longo do ano de 1968 que seriam cada vez mais reprimidas ateacute se tornarem totalmente
proibidas pelo AI-5 20
A partir desse contexto de ilegalidades e proibiccedilotildees Antocircnio se posicionou entre
os estudantes que optaram por continuar a lutar contra a ditadura de forma radicalizada
Aproximou-se entatildeo do Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR) onde
logo em seguida comeccedilou a militar Antocircnio associa a sua adesatildeo ao PCBR ao
programa deste partido de esquerda que tinha a guerrilha urbana como meio de luta
para a derrubada da ditadura e implantaccedilatildeo do socialismo no paiacutes e principalmente agrave
admiraccedilatildeo que tinha por um dos seus fundadores e liacutederes Apolocircnio de Carvalho
Como Antocircnio teve participaccedilatildeo assiacutedua em muitas passeatas do movimento
estudantil de 1968 conheceu muitas lideranccedilas de organizaccedilotildees que vinham se
formando e buscavam adeptos em meio aos estudantes Assim foi apresentado e
comeccedilou a admirar Apolocircnio de Carvalho um dos grandes motivos que o levaram a
posteriormente militar no PCBR partido cuja formaccedilatildeo atuaccedilatildeo e ideais seratildeo
abordados mais adiante Apolocircnio de Carvalho era uma figura haacute muito atuante na
poliacutetica havia lutado em favor dos republicanos na Espanha durante a Guerra Civil
Espanhola na Resistecircncia Francesa contra o nazismo e participava do Partido
Comunista Brasileiro (PCB) quando em 1967 rompeu com este e foi um dos
fundadores do PCBR 21
20
Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009 108-132 21
Em 1967 Apolocircnio rompeu com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e se tornou um dos fundadores
do PCBR partido em situaccedilatildeo clandestina na eacutepoca motivo que o levou a ser preso Juntamente com
outros 39 presos poliacuteticos Apolocircnio foi trocado pelo embaixador alematildeo que em 11 de junho de 1970
100
O partido era o PCBR que possuiacutea uma grande figura que se chama
Apolocircnio de Carvalho que pertence hoje ao PT ele era uma grande
lideranccedila do partido havia participado da Revoluccedilatildeo Espanhola da
resistecircncia ao nazismo na Franccedila um homem respeitado mundialmente pela
sua coragem e pela luta a favor da democracia e contra os ditadores ele era a
minha grande lideranccedila (Carvalho 12 set 2002)
Em 1970 aos 25 anos Antocircnio Leite de Carvalho foi preso No momento de sua
prisatildeo estava agrave espera de outro militante do PCBR na rua em um ponto de encontro
que havia combinado com ele Relacionando o depoimento de Antocircnio com as
estrateacutegias de captura dos DOI analisadas no primeiro capiacutetulo percebe-se que como o
companheiro de Antocircnio havia sido capturado antes de ir ao seu encontro acabou
informando aos agentes de umas das turmas de interrogatoacuterio preliminar do DOI-
CODIRJ muito provavelmente sob tortura o horaacuterio em que Antocircnio estaria no lugar
marcado A partir disso a informaccedilatildeo foi repassada agrave Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo e
agentes de uma das turmas que a formavam se encaminharam ateacute o local com carros e
roupas descaracterizadas como de praxe e levaram Antocircnio algemado para o DOI-
CODIRJ onde ficou preso durante cerca de trecircs meses
Eu fui preso na rua Eu tinha um encontro com outro militante mas esse
militante foi preso e sob tortura no DOI-CODI aqui no 1deg BPE da Rua
Baratildeo de Mesquita ele abriu o ponto quer dizer o ponto era o local de
encontro que a gente chamava de ponto ldquoTenho um ponto com fulanardquo quer
dizer que vocecirc tinha um encontro Ele abriu o local de encontro que eu teria
com ele e aiacute eu fui preso pelo DOI-CODI (Carvalho 12 set 2002)
havia sido sequestrado por esquerdistas integrantes da Vanguarda Popular Revolucionaacuteria (VPR) e da
Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN) vivendo algum tempo exilado na Argeacutelia Apoacutes a implantaccedilatildeo da Lei
de Anistia no Brasil em 1979 ele e sua famiacutelia retornaram agrave terra natal onde participaram da fundaccedilatildeo
do Partido dos Trabalhadores (PT) em 1980 Apolocircnio faleceu em setembro de 2005 aos 93 anos
(Carvalho 1997 13-16)
101
Antocircnio ressalta que durante a sua prisatildeo no DOI-CODIRJ esteve junto a
Fernando Gabeira e Daniel Aaratildeo Reis Filho Ambos haviam participado do sequestro
do embaixador americano no dia 4 de setembro de 1969 e por terem conseguido trocar
o embaixador por quinze presos poliacuteticos que foram exilados no Meacutexico haviam se
destacado entre os militantes da esquerda armada Aleacutem disso como na eacutepoca em que
Antocircnio concedeu as entrevistas Gabeira e Daniel Aaratildeo eram pessoas publicamente
reconhecidas pela luta contra a ditadura e tambeacutem por suas atividades profissionais ndash
Gabeira como jornalista e entatildeo deputado federal e Daniel Aaratildeo como intelectual ndash
percebe-se que o fato de ter tido contato com eles na prisatildeo eacute importante para a leitura
que Antocircnio faz sobre suas memoacuterias injetando-lhes certo orgulho Afinal apesar de
natildeo ter participado do sequestro Antocircnio tambeacutem havia sido preso e torturado por
pegar em armas contra a ditadura logo o fato de ter convivido na cadeia com essas
figuras jaacute reconhecidas pelos feitos desse mesmo passado lhe trazia no presente uma
dimensatildeo positiva sobre suas memoacuterias
Fiquei preso com pessoas que ficaram famosas como o Fernando Gabeira
que depois se tornou parlamentar foi candidato ao governo do Estado foi
candidato a prefeito e hoje eacute deputado federal Tambeacutem o Daniel Aaratildeo
Reis renomado professor de Histoacuteria e uma seacuterie de outros que hoje estatildeo aiacute
pelo governo inclusive em diversos governos (Carvalho 12 set 2002)
Apoacutes o tempo em que esteve preso no DOI-CODIRJ Antocircnio foi transferido para
o Departamento de Ordem Poliacutetica e Social (DOPS) onde permaneceu por um periacuteodo
de dois ou trecircs meses sendo entatildeo libertado Na eacutepoca em que concedeu a entrevista
Antocircnio aleacutem de bancaacuterio aposentado trabalhava como dirigente sindical em um cargo
eletivo
102
Dulce Chaves Pandolfi22
Dulce Chaves Pandolfi nasceu em Recife no dia 14 de dezembro de 1948
Cursava Ciecircncias Sociais em Pernambuco quando em 1967 entrou para o Diretoacuterio
Acadecircmico se tornando pouco depois secretaacuteria geral do Diretoacuterio Central dos
Estudantes (DCE) A partir de dezembro de 1968 com o AI-5 extinguindo os grecircmios
estudantis e substituindo-os por centros ciacutevicos sem autonomia que natildeo podiam realizar
atividades de natureza poliacutetica a opccedilatildeo de fazer parte da ALN era para Dulce uma
forma de continuar lutando por uma ldquosociedade mais igualitaacuteriardquo Aleacutem disso era
sobretudo um meio de derrubar o regime militar em vigor como se pode conferir na
passagem abaixo
[] a gente queria transformar a sociedade a gente queria o socialismo uma
sociedade igualitaacuteria Mas tinha uma fase anterior que era exatamente a de
querer derrubar a ditadura essa era a meta principal de todos Sabiacuteamos
inclusive que o socialismo natildeo era uma meta imediata era uma luta em
longo prazo [] entatildeo a nossa luta inicialmente era para ser instalado o
regime democraacutetico era a luta contra a ditadura (Pandolfi 5 fev 2003)
Ressalta-se entretanto que a opccedilatildeo de Dulce assim como da maior parte dos
estudantes que a partir do AI-5 se juntaram agraves organizaccedilotildees esquerdistas de luta armada
estava inserida no contexto mundial de 1968 Este por sua vez influenciava-se pela
vitoacuteria da Revoluccedilatildeo Cubana em 1959 pela independecircncia da Argeacutelia em 1962 pela
Guerra Fria que acabou por deflagrar entre os anos de 1959 e 1975 a Guerra do Vietnatilde
e por meio desta o enfrentamento indireto de Estados Unidos e Uniatildeo Sovieacutetica e pela
rebeliatildeo estudantil mundial iniciada a partir do ldquomaio francecircs de 1968rdquo que comeccedilou
por meio de uma manifestaccedilatildeo estudantil pontual questionadora de atitudes culturais
22
Entrevista realizada com Dulce Chaves Pandolfi em 5 de fevereiro de 2003
103
tradicionais e conservadoras e rapidamente atingiu a proporccedilatildeo de uma ldquorevoluccedilatildeo
cultural mundialrdquo Percebe-se entatildeo que o horizonte nesse momento era revolucionaacuterio
e principalmente entre os jovens impulsionava a percepccedilatildeo de que os partidos
tradicionais de esquerda estavam desacreditados e que era hora de uma nova geraccedilatildeo
partir para a accedilatildeo direta rumo agrave revoluccedilatildeo
Assim diferente de como eacute narrado por muitos ex-prisioneiros poliacuteticos em
tempos jaacute democraacuteticos que tais como Dulce veem a democracia do presente como
uma conquista positiva e por isso inconscientemente permitem que essa visatildeo atual
influencie suas memoacuterias de luta percebe-se aqui que a democracia natildeo prevalecia entre
os ideais das organizaccedilotildees de luta armada da eacutepoca muito pelo contraacuterio Afinal
acredita-se que em meio ao contexto mundial do momento as esquerdas armadas
tinham uma perspectiva de fato revolucionaacuteria ou seja valorizavam a revoluccedilatildeo muito
mais que a democracia que inclusive nesse momento estava diretamente associada
aos Estados Unidos e consequentemente ao sistema capitalista Como aponta Daniel
Aaratildeo na obra a Ditadura militar esquerdas e sociedade (2000)
a perspectiva ofensiva revolucionaacuteria que havia moldado aquelas
esquerdas E o fato de que elas natildeo eram de modo nenhum apaixonadas pela
democracia (Aaratildeo Reis 2000 70)
A democracia soacute comeccedilou mesmo a ser valorizada a partir do final da deacutecada de
1970 jaacute em uma nova conjuntura onde jaacute existiam outros significados tais como os
direitos humanos e a luta pela anistia No entanto por outro lado nota-se que conforme
destacado por Dulce a luta contra ditadura era tambeacutem um dos objetivos principais da
esquerda armada no final dos anos 1960 Dessa forma apesar da luta contra ditadura na
eacutepoca estar totalmente vinculada agrave revoluccedilatildeo socialista eacute compreensiacutevel que a
democracia tenha em tempos recentes um papel destacado entre as memoacuterias dos ex-
104
guerrilheiros Tal como analisa Marcelo Ridenti em Resistecircncia e mistificaccedilatildeo da
resistecircncia armada contra a ditadura armadilha para pesquisadores (2004) nota-se
aqui que a face de resistecircncia agrave ditadura das experiecircncias guerrilheiras passou a importar
mais apoacutes a implantaccedilatildeo da democracia que a ofensiva revolucionaacuteria ao contraacuterio da
intenccedilatildeo original dos guerrilheiros Afinal foi esta face que teve o objetivo alcanccedilado
ou seja saiu-se vencedora
Apoacutes o AI-5 Dulce optou entatildeo por militar na Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN)
organizaccedilatildeo de esquerda armada que seraacute abordada ainda neste capiacutetulo Assim no ano
de 1970 sabendo que estava sendo procurada pela repressatildeo por conta de sua militacircncia
clandestina Dulce se mudou para a cidade do Rio de Janeiro Sete meses depois no dia
14 de agosto foi presa na casa do seu namorado e levada direto para o DOI-CODIRJ
onde permaneceu cerca de trecircs meses
[] fui presa na casa do meu namorado noacutes fomos presos agrave noite no dia 14
de agosto Fui levada direto para PE Fiquei na PE mais ou menos uns trecircs
meses fiquei ateacute novembro comecinho de dezembro eu acho Depois eu
fui transferida para o DOPS (Pandolfi 5 fev 2003)
Apoacutes permanecer presa no DOI-CODI Dulce foi levada para o DOPS e depois
de seu julgamento foi transferida para o presiacutedio Talavera Bruce prisatildeo feminina de
regime fechado com grau de seguranccedila maacutexima localizada no bairro de Bangu
Passado um ano foi levada de volta para Recife sua cidade natal onde finalmente foi
libertada Encontrou-se prisioneira por mais de um ano de agosto de 1970 ateacute dezembro
de 1971
[] depois de um tempo praticamente um ano que eu estava presa fui
levada para Recife porque eu tambeacutem tinha processo laacute e de laacute eu saiacute Fui
105
solta laacute em Recife depois de um ano Saiacute em dezembro de 1971 fui presa
em agosto de 70 e fui solta em dezembro de 71 (Pandolfi 5 fev 2003)
Dulce no momento de sua entrevista jaacute era professora e pesquisadora do Centro de
Pesquisa e Documentaccedilatildeo de Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil (CPDOC) da Fundaccedilatildeo
Getuacutelio Vargas (FGV) ofiacutecio que exerce ateacute os dias de hoje
Fernando Palha Freire23
Fernando Palha Freire nasceu em Beleacutem (PA) e se mudou para o Rio de Janeiro
no fim de 1964 Antes de vir para o Rio ainda adolescente aprendeu alguns
fundamentos marxistas com sua irmatilde mais velha jaacute universitaacuteria que lhe deu o que ele
chamou de uma ldquonoccedilatildeo de mundordquo Quando se mudou para o Rio de Janeiro Fernando
mesmo jovem jaacute havia se definido esquerdista
Agrave eacutepoca do AI-5 Fernando tinha muitos amigos que militavam em uma
Dissidecircncia do Partidatildeo de Niteroacutei a Dissidecircncia do Estado do Rio de Janeiro que em
meados de 1969 foi desmontada atraveacutes da prisatildeo de seus integrantes pelo oacutergatildeo de
repressatildeo da Marinha o Centro de Informaccedilotildees da Marinha o CENIMAR Como esta
organizaccedilatildeo natildeo tinha um nome especiacutefico para noticiar o seu desmonte na imprensa
com um efeito grandioso os militares daquele oacutergatildeo optaram por nomeaacute-la de
Movimento Revolucionaacuterio 8 de outubro (MR-8) fazendo alusatildeo agrave data em que Che
Guevara havia sido capturado na Boliacutevia morrendo no dia seguinte Foi inclusive a
partir disso que a Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-GB)24
para provocar o
governo ditatorial que haacute pouco havia noticiado o desmonte do perigoso ldquoMR-8rdquo
23
Entrevista realizada com Fernando Palha Freire em 28 de junho de 2004 24
Tais organizaccedilotildees de esquerda da eacutepoca ainda seratildeo abordadas neste capiacutetulo no item 12 A nova
esquerda brasileira
106
assinou em co-autoria com a ALN o sequestro do embaixador norte-americano
autointitulando-se MR-8 como passou desde entatildeo a ser conhecida 25
[] quando veio o golpe minha irmatilde jaacute era universitaacuteria eu era um garoto
eu tinha quinze anos [] ela que me deu mesmo uma noccedilatildeo de mundo de
marxismo Quando veio o golpe noacutes moraacutevamos em Beleacutem No final de 64
eu estava me mudando para o Rio de Janeiro jaacute com essas noccedilotildees de justiccedila
social que eu havia aprendido com ela Digamos assim eu jaacute era
definidamente um cara de esquerda Aiacute veio a luta armada [] a primeira
organizaccedilatildeo [desmontada pelos militares] era o MR-8 uma organizaccedilatildeo de
Niteroacutei uma dissidecircncia do Partidatildeo [PCB] de Niteroacutei onde muitos de seus
integrantes eram meus conhecidos meus amigos entatildeo quando esses caras
foram presos eu jaacute era digamos assim um simpatizante dessa organizaccedilatildeo
natildeo era militante mas era simpatizante [] (Freire 28 jun 2004)
A partir dessa ligaccedilatildeo com outros militantes Fernando optou pela luta armada e
passou a militar na ALN mesma organizaccedilatildeo de Dulce Sua militacircncia poreacutem
concentrava-se em Niteroacutei no estado do Rio de Janeiro onde morava e estudava
economia na Universidade Federal Fluminense (UFF) Assim em 1970 Fernando e
outros militantes da ALN proacuteximos a ele resolveram planejar uma accedilatildeo para que muitos
de seus companheiros inclusive os do antigo MR-8 fossem libertados
No dia 1deg de julho de 1970 aos 22 anos Fernando participou do sequestro de um
aviatildeo da Companhia Cruzeiro do Sul que ia do Brasil para a Argentina com o objetivo
de negociar a troca dos passageiros por quarenta presos poliacuteticos
[] a gente pensou em fazer uma accedilatildeo accedilatildeo no sentido de tentar libertar esse
pessoal Na eacutepoca jaacute tinham sequestrado o embaixador americano e
trocado por quinze presos poliacuteticos [] Entatildeo nesse sentido a gente
resolveu planejar o sequestro de um aviatildeo A gente sequestrou um aviatildeo com
o objetivo de trocar os passageiros por quarenta presos poliacuteticos Quer dizer
25
Para mais informaccedilotildees sobre a mudanccedila de nome da Dissidecircncia da Guanabara para MR-8 ver
Berquoacute 1997 72-73
107
a gente entrou num processo de radicalizaccedilatildeo mesmo A gente queria era a
libertaccedilatildeo [] soacute que essa accedilatildeo natildeo deu certo [] (Freire 28 jun 2004)
O sequestro parecia correr como o planejado Durante o vocirco Fernando e os outros
militantes conseguiram desviar a rota que saiacutea do Rio de Janeiro para Buenos Aires
com escala em Satildeo Paulo fazendo o aviatildeo retornar ao Rio Poreacutem no Aeroporto
Internacional do Rio de Janeiro o Galeatildeo oficiais da Aeronaacuteutica cercaram o aviatildeo e
conseguiram render os opositores poliacuteticos envolvidos na operaccedilatildeo antes que eles
conseguissem negociar a troca dos refeacutens pelos quarenta prisioneiros poliacuteticos Durante
o combate um dos sequestradores irmatildeo de Fernando levou um tiro vindo a falecer
horas depois
A gente chegou a desviar o aviatildeo um aviatildeo que ia pra Argentina com uma
parada em Satildeo Paulo a gente mandou o aviatildeo voltar e quando chegamos ao
Rio o aviatildeo foi cercado Os caras chegaram com gaacutes lacrimogecircneo lama
arma e nessa accedilatildeo o meu irmatildeo foi baleado e depois morreu Eles mataram
meu irmatildeo A gente foi preso pelo CISA que era a forccedila secreta da
Aeronaacuteutica [] Jaacute na descida do aviatildeo a gente apanhou natildeo se sabe de
quem e nem por onde Depois fomos torturados no aparelho de repressatildeo
deles laacute dentro e de laacute fomos transferidos pro DOI-CODI na PE (Freire 28
jun 2004)
Primeiramente aprisionado pelo Centro de Informaccedilotildees e Seguranccedila da
Aeronaacuteutica (CISA) Fernando foi pouco tempo depois transferido para o DOI-
CODIRJ onde permaneceu cerca de dezoito a vinte dias Posteriormente voltou para
as dependecircncias do CISA no aeroporto do Galeatildeo onde ficou cerca de oito meses ateacute
ser julgado Apoacutes seu julgamento foi conduzido para o Instituto Penal Cacircndido Mendes
(IPCM) presiacutedio de seguranccedila maacutexima localizado em Ilha Grande no estado do Rio de
Janeiro Para Fernando em meio agraves privaccedilotildees que vivia nos oacutergatildeos de repressatildeo ser
transferido para um presiacutedio de fato como o da Ilha Grande era na eacutepoca um desejo
108
Afinal aleacutem de saber que laacute estavam alguns de seus companheiros no IPCM existia
uma rotina de presiacutedio normal com direito a jogar futebol no paacutetio a ler jornais e livros
situaccedilatildeo bem diferente da dos DOI-CODI por exemplo que conforme destacado no
capiacutetulo anterior eram oacutergatildeos estritamente de repressatildeo e investigaccedilatildeo localizados em
quarteacuteis cuja prisatildeo era improvisada apenas para cumprir tais funccedilotildees
Oito meses foi o tempo que a gente ficou laacute na Aeronaacuteutica E aiacute o que eacute a
perspectiva de vida Os sonhos da gente Vocecirc quando estaacute preso o seu
sonho eacute fugir realmente mas se vocecirc natildeo tem perspectiva de fuga o seu
sonho eacute o quecirc Eacute ir pra uma coletividade onde estatildeo os outros presos Entatildeo
meu sonho passou a ser esse ir pra Ilha Grande [] laacute eu sabia que os
companheiros estavam laacute sabia que tinha uma lsquopeladinharsquo que a gente podia
bater uma bola campeonato de xadrez livros para ler coisa que esses caras
sacaneavam tanto a gente que nem livros Jornal Raacutedio Essas coisas Nem
pensar Entatildeo meu sonho era Ilha Grande Apesar de ser um lugar
horroroso Era na eacutepoca um presiacutedio de seguranccedila maacutexima isolado (Freire
28 jun 2004)
Fernando permaneceu mais de seis anos na prisatildeo sendo libertado no dia 29 de
setembro de 1976 Ele e os demais companheiros envolvidos no sequestro tiveram suas
condenaccedilotildees embasadas no artigo 28 do Decreto-lei 898 de 29 de setembro de 1969
que alterava a Lei de Seguranccedila Nacional A partir deste artigo ficava estipulada uma
pena de reclusatildeo que poderia variar de 12 a 30 anos para quem devastasse saqueasse
assaltasse sequestrasse incendiasse depredasse ou praticasse qualquer tipo de atentado
pessoal ato de massacre sabotagem ou terrorismo Aleacutem disso no mesmo artigo havia
um paraacutegrafo uacutenico decretando que se a accedilatildeo resultasse em morte a condenaccedilatildeo seria
no miacutenimo agrave prisatildeo perpeacutetua e no maacuteximo agrave morte
Art 28 Devastar saquear assaltar roubar sequestrar incendiar depredar
ou praticar atentado pessoal ato de massacre sabotagem ou terrorismo
109
Pena reclusatildeo de 12 a 30 anos
Paraacutegrafo uacutenico Se da praacutetica do ato resultar morte
Pena prisatildeo perpeacutetua em grau miacutenimo e morte em grau maacuteximo (Decreto-
lei nordm 898 29 set 1969)
A partir desse decreto durante o julgamento de Fernando tentaram condenaacute-lo agrave
prisatildeo perpeacutetua baseando a argumentaccedilatildeo no fato do sequestro do aviatildeo ter acarretado
uma morte no caso a de seu irmatildeo No entanto como esta morte foi ocasionada pela
repressatildeo militar a pena de Fernando ficou estipulada em doze anos de reclusatildeo e mais
adiante reduzida para seis anos
[] tinha uma lei de seguranccedila nova entrado em evidecircncia os caras queriam
dar o exemplo com pena de morte ou prisatildeo perpeacutetua etc e noacutes fomos os
primeiros casos de pena de morte que eles pediram O meu o de Colombo
Jessie Jane - Jane eacute a ex-diretora daqui [Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio
de Janeiro ndash APERJ] [] tinha um artigo vinte e oito que previa pena capital
ou prisatildeo perpeacutetua em caso de morte Soacute que quem morreu foi um dos
nossos o meu irmatildeo foi morto por eles e eles em cima disso tentando
aplicar essa pena soacute que natildeo colou E eu peguei doze anos Colombo pegou
trinta mas era menor aiacute caiu pra dezoito a Jane de vinte e quatro parece
que a Jane caiu pra dezoito E eu como tinha a questatildeo de ser primaacuterio natildeo
sei mais o quecirc enfim quer dizer eu estou resumindo Aiacute por conta disso
fui condenado e fiquei seis anos [] (Freire 28 jun 2004)
Na eacutepoca da entrevista Fernando trabalhava no Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio
de Janeiro (APERJ) onde possuiacutea um cargo de confianccedila conforme explicado
anteriormente Hoje Fernando Palha Freire eacute comerciante responsaacutevel pela cantina do
primeiro piso do preacutedio do Instituto de Filosofia e Ciecircncias Sociais (IFCS) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
110
Padre Maacuterio Prigol26
Padre Maacuterio Prigol nasceu em 12 de novembro de 1928 em Vila Gramado no
municiacutepio de Paulo Bento no Rio Grande do Sul Em 1970 quando foi preso era
assistente da Juventude Operaacuteria Catoacutelica (JOC) e da Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO)
grupos ligados agrave Igreja Catoacutelica criados para atender a problemas de jovens e adultos
trabalhadores 27
Apoacutes o golpe de 1964 organizaccedilotildees como a JOC e a ACO ganharam
forccedila entre muitos trabalhadores devido agraves dificuldades impostas pelo governo militar
para a organizaccedilatildeo em sindicatos
A sede nacional da JOC era aqui no morro de Satildeo Joseacute Operaacuterio atraacutes da
Penitenciaacuteria [antigo Complexo Penitenciaacuterio Frei Caneca] era na favela []
eu trabalhei com a JOC de Satildeo Paulo e depois vim para caacute trabalhava na
Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria que hoje se chama MTC Movimento dos
Trabalhadores Cristatildeos Esse movimento preparava os jovens e adultos dos
sindicatos dos partidos poliacuteticos de todos os setores da sociedade onde haacute
trabalhadores que procuram descobrir os acontecimentos a situaccedilatildeo operaacuteria
e sobretudo melhorar a sua condiccedilatildeo de trabalhador E vamos lembrar que
naquela eacutepoca havia a nova lei [lei 458964] que soacute podia ser diretor do
sindicato quem natildeo tinha nada que comprometesse entatildeo todos aqueles que
lutavam pela greve contra a puniccedilatildeo da greve ou de forma geral pelos
trabalhadores natildeo podiam ser nem diretores de associaccedilotildees nem diretores de
sindicatos [] soacute poderia ser diretor de sindicato quem fosse aprovado pela
Lei de Seguranccedila Nacional (Prigol 28 set 2004)
Padre Maacuterio se destaca entre os ex-prisioneiros entrevistados por aleacutem de ser uma
autoridade de uma instituiccedilatildeo de importacircncia mundial como a Igreja Catoacutelica sua
atuaccedilatildeo ser diferente da dos demais natildeo estando ligada agrave esquerda armada da eacutepoca e
ao meio estudantil Quando foi preso no DOI-CODIRJ em 1970 Padre Maacuterio jaacute natildeo
era mais tatildeo jovem para ser estudante e sua formaccedilatildeo poliacutetica natildeo era a mesma da
26
Entrevista realizada com Padre Maacuterio Prigol em 28 de setembro de 2004 27
A JOC e ACO seratildeo abordadas ainda neste capiacutetulo no item 12 A nova esquerda brasileira
111
geraccedilatildeo que pegava em armas jaacute que sua intenccedilatildeo enquanto assistente da JOC e da
ACO era ajudar os trabalhadores a garantirem os seus direitos e para tanto opunha-se
agraves leis impostas pela ditadura solidificando entre os integrantes dessas associaccedilotildees uma
consciecircncia de reivindicaccedilatildeo classista sem entretanto aspirar propriamente a uma
revoluccedilatildeo socialista
Percebe-se poreacutem que a concomitacircncia entre os periacuteodos prisionais de Padre
Maacuterio e os demais entrevistados natildeo eacute casual Afinal diante da ideia de revoluccedilatildeo
socialista que guiava as accedilotildees armadas que se multiplicavam e ganhavam forccedila apoacutes o
AI-5 a consciecircncia de reivindicaccedilatildeo de classe que a JOC e conforme seraacute abordado
adiante principalmente a ACO disseminavam aos seus trabalhadores eram
interpretadas como ameaccediladoras pela repressatildeo Uma vez que as organizaccedilotildees
guerrilheiras tinham por meta justamente conseguir apoio da classe trabalhadora para
concluiacuterem o plano de revoluccedilatildeo socialista e o trabalho da JOC e da ACO vinha unindo
e organizando uma percepccedilatildeo de classe justamente entre os trabalhadores havia uma
forte propensatildeo que futuramente tais trabalhadores se unissem agrave esquerda em prol da
revoluccedilatildeo socialista
Diante disso explica-se o fato de Padre Maacuterio ter sido preso em meados de 1970
pelos agentes de uma das turmas de busca e apreensatildeo do DOI-CODIRJ durante a
invasatildeo feita ao Instituto Brasileiro de Estudos Sociais (IBRAES) que funcionava na
Casa dos Jesuiacutetas localizada na Rua Bambina no bairro de Botafogo Ele outros
integrantes da JOC e os demais estudantes que assistiam ao curso de desenvolvimento
social foram levados ao DOI-CODIRJ Este curso tinha duraccedilatildeo de aproximadamente
oito meses ao longo dos quais os alunos adquiriam informaccedilotildees sobre o sistema
poliacutetico e econocircmico do Brasil
112
Dias antes dos agentes chegarem ateacute o curso toda a direccedilatildeo nacional da JOC
havia sido presa inclusive dois alunos do IBRAES que foram levados ao DOI-
CODIRJ onde possivelmente sob tortura passaram aos agentes da turma de
interrogatoacuterio preliminar de plantatildeo informaccedilotildees sobre o curso que estava ocorrendo na
Rua Bambina Assim quando os agentes do DOI-CODIRJ chegaram ao local
prenderam todos que estavam participando do curso levando primeiro os militantes e
depois os padres Entre eles estavam Padre Maacuterio e Padre Agostinho de Freitas na
eacutepoca assistente latino-americano da JOC
Noacutes fomos presos natildeo por causa do curso mas porque esses elementos do
DOI prenderam esse pessoal da JOC considerados subversivos e
procuravam um dos assistentes que jaacute tinha sido acusado em Belo Horizonte
de ser subversivo o Padre Manuel de Jesus Ele foi assistente nacional da
JOC mas na eacutepoca natildeo era mais assistente [] entatildeo para prender Manuel
de Jesus foram prendendo toda a direccedilatildeo nacional da JOC que foram
torturados barbaramente torturas como por exemplo os homens
sexualmente em todos os aspectos foram torturados Eram quatro jovens
homens e quatro jovens mulheres e entre esses jovens havia dois alunos do
IBRAES onde eu fazia curso onde vaacuterios desses militantes da JOC tambeacutem
participavam inclusive o Manuel de Jesus Entatildeo no IBRAES os militantes
da JOC foram levados presos primeiro e noacutes padres depois e mais ainda
foi preso o assistente latino-americano da JOC Padre Augustinho Freitas
que hoje trabalha em Nova Iguaccedilu Entatildeo todos noacutes fomos presos []
(Prigol 28 set 2004)
Ao ser preso Padre Maacuterio foi levado diretamente para o DOI-CODIRJ onde
juntamente com os outros padres permaneceu por 54 dias enquanto os jovens
militantes da JOC permaneceram por cerca de trecircs meses Por ser padre sua prisatildeo foi
interrompida pela intervenccedilatildeo de cardeais como explica no trecho a seguir destacado
de seu livro autobiograacutefico
113
D Trevisan D Waldir Dom Aloiacutesio e Padre Celso Pinto que estava ligado
ao Secretariado dos Leigos da CNBB [Conferecircncia Nacional de Bispos do
Brasil] informaram a nossa situaccedilatildeo aos cardeais Mais tarde com a
libertaccedilatildeo de alguns de noacutes realizamos um encontro para discutirmos as
humilhaccedilotildees que sofremos (Prigol 2003 117)
Na eacutepoca em que a entrevista foi concedida Padre Maacuterio aos 75 anos era
missionaacuterio saletino trabalhava na Paroacutequia de Nossa Senhora da Salette no Catumbi e
ainda ocupava o cargo de assistente do MTC (Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos)
antiga Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) Atualmente aos 83 anos Padre Maacuterio ainda
permanece ativamente nessas mesmas funccedilotildees
Ana de Miranda Batista28
Ana Bursztyn nome de solteira de Ana de Miranda Batista nasceu no Rio de
Janeiro em 30 de dezembro de 1948 Era militante estudantil enquanto cursava
Farmaacutecia na UFRJ Foi presa pela primeira perto do clube Botafogo de Futebol e
Regatas localizado na Avenida Venceslau Braacutes no bairro de Botafogo em junho de
1968 juntamente com trezentos estudantes Ela e os demais haviam participado de uma
assembleia estudantil na reitoria da UFRJ no campus da Praia Vermelha que
reivindicava mais verbas do governo federal para o ensino superior Os policiais a
levaram para o DOPS libertando-a no dia seguinte Eleita em outubro de 1968
representante dos estudantes de seu curso participou do Congresso da Uniatildeo Nacional
dos Estudantes (UNE) em Ibiuacutena quando foi novamente capturada pela poliacutecia com
mais de 800 estudantes permanecendo pouco mais de uma semana em reclusatildeo
Ateacute 1968 eu fazia parte do Movimento Estudantil do Diretoacuterio da Faculdade
tudo que tinha de movimento estudantil fazia parte da minha preocupaccedilatildeo
28
Entrevista realizada com Ana de Miranda Batista em 17 de novembro de 2004
114
Em junho a gente foi preso no campus de Botafogo [] Nesse dia em que eu
fui presa pela primeira vez foi um dia que cerca de trezentos estudantes
foram presos porque como a gente estava batalhando por mais verbas era
um dia em que o Conselho Universitaacuterio estava reunido na Praia Vermelha
jaacute que a reitoria era na Praia Vermelha [] laacute pelas tantas veio uma notiacutecia
de que tinham cercado a universidade [] e a gente natildeo estava esperando
isso a gente fazia umas passeatas na cidade mas a barra natildeo era pesada []
Aiacute o reitor decidiu sair na frente dos estudantes e atraacutes dele saiacuteram as
lideranccedilas das faculdades - eu era a lideranccedila da minha faculdade - e depois
uns trezentos estudantes Aiacute eles comeccedilaram a atirar para baixo para o chatildeo
[] e a gente saiu correndo sem enxergar nada e a poliacutecia dando porrada e a
gente sem enxergar nada (risos) Fomos entatildeo andando em direccedilatildeo ao tuacutenel
quando algueacutem disse ldquo- Vem por aqui por aquirdquo Sem saber que era uma
cilada fomos quase os trezentos para laacute Quando a gente entrou ldquo- Todo
mundo pro chatildeordquo Fomos presos no DOPS naquele dia e passamos a noite laacute
[] Daiacute eacute que a gente comeccedilou a fazer as grandes passeatas na cidade ateacute
que comeccedilou a ter passeata sempre mobilizaccedilotildees [] Em outubro de 68 a
gente foi para o Congresso de Ibiuacutena em Satildeo Paulo que foi um congresso
da UNE que estava clandestina na eacutepoca onde fomos todos presos Foi aiacute eacute
que ficou preso natildeo sei cerca de oitocentos estudantes Eles ateacute fizeram um
aacutelbum ficharam todo mundo Esse foi o aacutelbum que eles mostravam na
imprensa e nos cartazes depois porque evidentemente quando a barra
pesou metade das lideranccedilas do movimento estudantil foi para a luta armada
[] mas a gente ficou uma semana preso e depois de uma semana ou dez
dias a gente saiu Mas a barra comeccedilou a pesar mesmo a partir de 13 de
dezembro com o AI-5 [] (Batista 17 nov 2004)
Apoacutes o decreto do AI-5 Ana assim como Antocircnio se aproximou de alguns
integrantes do PCBR poreacutem diferentemente dele natildeo chegou a militar no partido
tornando-se tal como Dulce e Fernando militante da ALN Em Satildeo Paulo para onde
fugiu quando estava sendo perseguida Ana foi presa no dia 14 de julho de 1970 dentro
do magazine Mappin no centro da cidade Na situaccedilatildeo Ana portava uma arma e
115
carregava carteira de identidade falsa pela qual se chamava Naacutedia Zanzin conforme
descreve na passagem abaixo
Quando eu saiacute da casa que a gente estava o Bacuri [codinome de Eduardo
Collen Leite seu companheiro de organizaccedilatildeo] me deu uma arma e dezoito
caacutepsulas porque eu estava sendo procurada [] eu estava com uma carteira
de identidade falsa me chamava Naacutedia Zanzin [] fui presa entatildeo com
nome falso e foi um bafafaacute o cara quis me tirar a arma da matildeo e entatildeo eu
reagi teve um tiro [] Naquele dia eu tinha perdido o lsquopontorsquo [ponto de
encontro com outro militante] porque eu fiquei conversando com a minha
amiga e cheguei atrasada O ponto era perto do centro da cidade e como eu
tinha que esperar duas ou trecircs horas ateacute o proacuteximo encontro eu fiquei
rodando por laacute onde entrei numa loja grande como se fosse a antiga Mesbla
[] chamava-se Mappin Laacute eu fiquei comprando coisas para maquiagem
para mudar a minha cara [] Laacute dentro eles tinham vaacuterios seguranccedilas e um
ou dois deles ficaram em duacutevida se tinham reconhecido ou natildeo quem eu era
e se aproximaram de mim Eu estava na fila para pagar quando se eles se
aproximaram e disseram ldquo- Essas coisas a senhora paga em outro lugarrdquo Aiacute
eu ldquo- Mas eu estou na fila para pagarrdquo Aiacute eles ldquo- Vem com a gente que a
senhora vai pagar em outro lugarrdquo Entatildeo entrei no elevador e fui parar no
seacutetimo andar na parte de seguranccedila da loja Laacute eles queriam que eu me
explicasse Eu tirei tudo o que eu tinha da bolsa eu fui tirando e mostrei para
eles que estava com dinheiro na bolsa e estava na fila para pagar Aiacute eles ldquo-
Natildeo natildeo eacute isso natildeo mas a gente precisa revistarrdquo E eu fui tirando tudo da
bolsa para ver se eles natildeo me revistavam mas eles ldquo- Natildeo a gente vai
revistarrdquo Aiacute comeccedilaram a lutar comeccedilou um pega bolsa e tira bolsa que eu
natildeo queria porque a arma estava no fundo da bolsa Aiacute eu falava ldquo- Natildeo
mas natildeo precisa estaacute tudo aquirdquo Mas natildeo era isso natildeo era porque eles
achavam que eu estava roubando eles desconfiavam de alguma coisa e natildeo
sabiam bem o quecirc e resolveram me revistar Aiacute eu reagi Depois disso
chamaram o delegado e me botaram amarrada na cadeira laacute em cima no
andar da seguranccedila da loja (Batista 17 nov 2004)
116
Esse mesmo episoacutedio foi retratado dois dias depois em um trecho do Jornal da
Tarde de 16 de julho de 1970 conforme Elio Gaspari destaca em seu livro As Ilusotildees
Armadas a Ditadura Escancarada (2002)
[] Ana Bursztyn ex-estudante de farmaacutecia presa [] no magazine Mappin
Um vigilante desconfiara ao vecirc-la colocar cosmeacuteticos numa sacola (da loja)
e levou-a a uma sala onde estava o chefe de seguranccedila Ana meteu a matildeo na
bolsa puxou um Taurus 32 feriu-o com um tiro na perna mas natildeo
conseguiu fugir (Gaspari 2002 299-300)
De fato no momento de sua prisatildeo Ana resistiu e disparou um tiro atingindo no
peacute um dos seguranccedilas da loja que era policial militar Naquele dia Ana foi levada presa
sem saber o que de fato tinha ocorrido com aquele homem Assim em novembro de
1970 mecircs do aniversaacuterio da ldquoIntentona Comunistardquo de 1935 Ana ainda presa leu em
um jornal uma relaccedilatildeo de mortos pelos terroristas divulgada pelos oacutergatildeos de seguranccedila
do governo Laacute o homem em quem havia atirado estava listado como morto e ela como
sua assassina Ana passou a carregar a culpa de tecirc-lo matado ateacute que algum tempo
depois ao vecirc-lo assistindo a seu julgamento constatou que o seguranccedila havia
sobrevivido e que aquela notiacutecia era mais um dos boatos que o governo na eacutepoca
costumava veicular na imprensa a fim de manipular a opiniatildeo puacuteblica
Depois disso durante anos quando eu estava presa no dia da Intentona
Comunista que eu acho que eacute novembro de 1935 colocavam nos jornais em
todos os jornais uma relaccedilatildeo dos mortos pelos terroristas entre aspas que
eacuteramos noacutes [] eu li que o cara laacute Izidoro Zambaldi foi morto pela
terrorista Ana Bursztyn Ele na hora da briga eu briguei com ele ele recebeu
um tiro acho que no peacute esbarrou assim no peacute ele ficou uns dias internado e
saiu ele estava no meu julgamento na audiecircncia Quer dizer e durante
muito tempo eu achando que tinha o matado Era um dos que eles
117
contabilizavam como mortos por noacutes E provavelmente ele estaacute aiacute vivo ateacute
hoje [] (Batista 17 nov 2004)
Ana foi presa portanto por ter sido reconhecida por um policial que tambeacutem
trabalhava como seguranccedila para a loja Mappin Provavelmente isso ocorreu pelo fato
dos organismos de repressatildeo colarem pelos muros da cidade bem como distribuiacuterem
nos estabelecimentos privados muitos folhetos e cartazes com fotos dos ldquoterroristas
procuradosrdquo pela ditadura militar entre os quais Ana A divulgaccedilatildeo de tais fotos era
mais uma forma que os agentes da repressatildeo utilizavam para cercar os suspeitos Assim
qualquer pessoa poderia denunciar e qualquer policial poderia prender tais suspeitos No
entanto caso a prisatildeo natildeo fosse feita pelos agentes do DOI-CODI da respectiva Regiatildeo
Militar obrigatoriamente depois de preso o cidadatildeo considerado ldquosubversivordquo deveria
ser para laacute transferido conforme ocorreu com Ana Afinal como jaacute analisado no
primeiro capiacutetulo o DOI-CODI de cada Regiatildeo concentrava as informaccedilotildees sobre
seguranccedila interna de cada aacuterea portanto laacute existiam as condiccedilotildees necessaacuterias para que a
extraccedilatildeo e anaacutelise das informaccedilotildees que os prisioneiros detivessem fossem trabalhadas
de forma mais eficiente
Diante disso Ana nos primeiros dias de prisatildeo passou pelo DOPS-SP e em
seguida pelo DOI-CODISP sendo posteriormente transferida para o DOI-CODIRJ
Laacute permaneceu por um mecircs voltando para DOI-CODISP passando ainda pelo
DOPSSP Depois de julgada foi levada para o Recolhimento de Presos Tiradentes ndash
localizado na Rua Tiradentes na cidade de Satildeo Paulo ndash para o Presiacutedio de Mulheres ndash
localizado no antigo Complexo Penitenciaacuterio do Carandiru tambeacutem na cidade de Satildeo
Paulo ndash e ainda passou por delegacias das poliacutecias Federal do Rio de Janeiro e de Satildeo
Paulo pelo Presiacutedio do Forte de Copacabana no Rio de Janeiro e por fim pelo
Depoacutesito de Presas Satildeo Judas Tadeu localizado no preacutedio do DOPS-RJ Permaneceu
118
presa por cerca de quatro anos conseguindo liberdade condicional em fevereiro de
1974
Ana de Miranda Batista nome que adotou depois de casada eacute farmacecircutica
bioquiacutemica e na eacutepoca em que concedeu a entrevista era ativista do Grupo Tortura
Nunca MaisRJ (GTNMRJ)
Ceciacutelia Coimbra29
Ceciacutelia Maria Bouccedilas Coimbra nasceu no Rio de Janeiro em 16 de marccedilo de 1941
Ao ingressar no curso de Histoacuteria da Universidade do Brasil atual UFRJ Ceciacutelia que
era por descendecircncia familiar ldquoconservadora e catoacutelicardquo em suas proacuteprias palavras
comeccedilou a questionar-se poliacutetica e religiosamente Iniciou assim sua militacircncia no
Partido Comunista Brasileiro (PCB) clandestino na eacutepoca Entre 1962 e 1963
trabalhou em um programa de alfabetizaccedilatildeo de adultos pelo meacutetodo do educador Paulo
Freire fato que visivelmente a marcou muito Apoacutes o golpe de 64 Ceciacutelia continuou
militando no Partido Comunista poreacutem com muitas discordacircncias ateacute quando comeccedilou
a fazer parte de uma das dissidecircncias do referido partido a Dissidecircncia Comunista da
Guanabara a que ela se refere por ldquoPC da Guanabarardquo
[] eu vim de uma famiacutelia muito tradicional extremamente tradicional meu
pai era um conservador era um cara que era portuguecircs a favor do regime
ditatorial de Salazar A minha matildee era extremamente catoacutelica Tanto que
quando eu entrei para faculdade para fazer Histoacuteria eu era uma pessoa
extremamente conservadora Era lacerdista a favor do Carlos Lacerda
contra Joatildeo Goulart contra os comunistas A minha famiacutelia era muito
anticomunista E quando eu entrei para a faculdade eu ateacute falei isso na
entrevista para a lsquoCaros Amigosrsquo [sua entrevista havia sido capa da Revista
Caros Amigos naquele mesmo mecircs] comecei a ter contato com algumas
29
Entrevista realizada com Ceciacutelia Maria Bouccedilas Coimbra em 30 de novembro de 2004
119
pessoas que eram comunistas e eram pessoas muito interessantes muito
inteligentes e eram pessoas com as quais as duacutevidas que eu tinha com
relaccedilatildeo agrave religiatildeo eu comecei a tirar Porque eu comecei a ler marxismo aiacute
eu comecei a ler materialismo histoacuterico materialismo dialeacutetico e eu comecei
a ver que de repente a religiatildeo era uma coisa produzida pelo proacuteprio
homem [] Eu comecei entatildeo em 6263 a participar de reuniatildeo do Partido
Comunista que era clandestino na eacutepoca e acabei entrando para o Partido
Aiacute comecei a namorar um cara que depois se tornou meu marido e foi preso
comigo que haacute pouco tempo eu ateacute me separei [] Ele jaacute era do Partido
Comunista haacute muito tempo a famiacutelia dele era toda uma famiacutelia formada por
comunistas ao contraacuterio da minha (risos) Em 64 veio o golpe mas aiacute eu
antes disso eu acho que tem a ver porque isso para mim tambeacutem eacute
militacircncia eu fui trabalhar com um programa de alfabetizaccedilatildeo de adultos
pelo meacutetodo Paulo Freire eu trabalhei com o proacuteprio Paulo Freire em 63 um
pouco antes do golpe [] Entatildeo depois do golpe eu continuei militando no
Partido mas jaacute com muitas discordacircncias quer dizer discordava de muita
coisa e aiacute comecei a fazer parte do que se chamou de Dissidecircncia do PC da
Guanabara (Coimbra 30 nov 2004)
Entretanto Ceciacutelia comeccedilou a discordar tanto da luta armada que a Dissidecircncia
Comunista da Guanabara a partir de 1968 veio a adotar quanto do caminho paciacutefico e
institucional defendido pelo PCB se afastando de ambos Dessa forma em 1968
Ceciacutelia Coimbra natildeo militava em nenhuma organizaccedilatildeo mas continuou a manter
contato com muitos companheiros que se tornaram guerrilheiros Destaca-se portanto a
partir do caso especiacutefico de Ceciacutelia como a histoacuteria oral eacute importante para que a
complexidade da militacircncia poliacutetica da eacutepoca seja compreendida Afinal por meio dessa
metodologia torna-se possiacutevel perceber que nem todos os estudantes que estiveram
ligados ao movimento estudantil e agraves dissidecircncias do Partido Comunista em meio ao
arrocho da repressatildeo acompanharam a decisatildeo de partir para a luta armada tomada por
muitas dissidecircncias e nem mesmo resolveram retornar agrave luta paciacutefica travada pelo
Partido Comunista Logo a histoacuteria oral permite atraveacutes dos depoimentos dos
120
militantes daquele tempo observar que tal como Ceciacutelia muitos desses militantes
ficaram principalmente a partir do AI-5 agrave margem da atuaccedilatildeo poliacutetica apesar de natildeo
terem abandonado os ideais de esquerda
Quando foi presa em 1970 Ceciacutelia natildeo estava diretamente relacionada a nenhuma
organizaccedilatildeo esquerdista entretanto como ainda relacionava-se com muitos militantes
guerrilheiros e algumas vezes ateacute mesmo abrigando-os em sua casa tinha informaccedilotildees
consideradas relevantes para os agentes do DOI-CODIRJ o que veio a ocasionar sua
prisatildeo Como vivia de forma legalizada com famiacutelia e emprego Ceciacutelia tinha passado
juntamente com seu marido a ajudar seus companheiros clandestinos Sua casa na
eacutepoca localizada no bairro do Engenho de Dentro na zona norte do Rio de Janeiro
passou a servir como esconderijo para alguns amigos que diferentemente de Ceciacutelia e
Novaes haviam continuado militantes da Dissidecircncia Comunista da Guanabara mesmo
apoacutes sua opccedilatildeo pela luta armada Entre os amigos que receberam guarida em sua casa
estavam Franklin Martins e Fernando Gabeira ambos envolvidos no sequestro do
embaixador norte-americano
Gabeira inclusive esteve hospedado na casa do casal logo apoacutes a libertaccedilatildeo do
referido embaixador sequestrado em setembro de 1969 Por conta disso em agosto de
1970 Ceciacutelia Coimbra e seu marido Joseacute Novaes foram denunciados e presos
[] eu ajudava muito esses companheiros porque eu tinha vida legal eu jaacute
era professora tinha casa tinha filho e meu marido era professor de
Filosofia entatildeo a nossa casa era onde as pessoas se escondiam passavam
uma noite passavam dias escondidos Por exemplo o pessoal do Movimento
estudantil o Franklin Martins o Fernando Gabeira [] todos eles passaram
por laacute entatildeo a gente ajudava muito [] Em 1969 o pessoal do MR-8 que
eram companheiros nossos amigos e tal vieram nos procurar para perguntar
se noacutes poderiacuteamos dar um apoio a um ato a uma accedilatildeo como se dizia na
eacutepoca a uma accedilatildeo que ia acontecer Mas a gente natildeo sabia que era o
sequestro do embaixador E aiacute depois de um tempo a gente ficou com o
121
Fernando Gabeira [] Eacute oacutebvio que depois a gente soube porque foi depois
que eles entregaram o embaixador que eles se esconderam laacute em casa E aiacute a
televisatildeo dava e a gente sacou que o Gabeira estava ali com a gente porque
natildeo tinha como guardar seguranccedila porque jaacute estava na televisatildeo a cara de
todos eles E a gente guardou ele laacute A gente soube que ele tinha participado
do sequestro do embaixador e conversaacutevamos muito sobre isso Ele ficou
algum tempo laacute em casa e depois saiu Um tempo depois a gente foi
denunciado a casa estava sendo observada e a gente natildeo sabia []
(Coimbra 30 nov 2004)
Ceciacutelia e Joseacute Novaes apoacutes terem a casa onde moravam cercada por agentes do
DOPSRJ foram para laacute levados e laacute permaneceram por dois dias No DOPS Ceciacutelia
ficou sob interrogatoacuterio por um dia e meio para que esclarecesse a origem de um
documento encontrado no interior de sua casa No segundo dia de prisatildeo foi levada para
o presiacutedio feminino Satildeo Judas Tadeu localizado no proacuteprio preacutedio do DOPSRJ Apoacutes
permanecerem dois dias e meio no DOPS Ceciacutelia e Novaes foram transferidos para o
DOI-CODIRJ
Ceciacutelia Coimbra ficou cerca de trecircs meses presa no DOI-CODIRJ sendo
libertada em novembro de 1970 Natildeo foi transferida para nenhum outro presiacutedio sendo
libertada diretamente do DOI-CODIRJ por meio da menagem conforme analisado no
primeiro capiacutetulo Sendo assim uma vez que natildeo foi constatado nenhum envolvimento
direto de Ceciacutelia com alguma accedilatildeo ldquosubversivardquo ela estava impedida de sair da cidade
ateacute a data de seu julgamento e durante esse iacutenterim teve que comparecer ao DOI-
CODIRJ regularmente para se apresentar e responder ao Inqueacuterito Policial Militar
(IPM)
Na eacutepoca da entrevista Ceciacutelia aleacutem de vice-presidente do GTMNRJ lecionava
no curso de Psicologia da UFF Atualmente continua com essas mesmas atividades
poreacutem no GTNMRJ ocupa hoje o cargo de presidente
122
12 A nova esquerda brasileira
Para melhor entender as memoacuterias dos ex-prisioneiros poliacuteticos aqui entrevistados
eacute importante caracterizar as organizaccedilotildees de esquerda nas quais os seis militavam
quando foram presos no DOI-CODIRJ Afinal a opccedilatildeo de atuar atraveacutes de certas
organizaccedilotildees estaacute diretamente relacionada com a percepccedilatildeo de mundo que cada um
tinha e tambeacutem com a ousadia a coragem as frustraccedilotildees por que passaram e com tantos
outros sentimentos e sensaccedilotildees que certamente influiacuteram diretamente na construccedilatildeo da
memoacuteria de cada um desses indiviacuteduos sobre o periacuteodo militar
Como jaacute destacamos ao traccedilarmos o perfil dos entrevistados as organizaccedilotildees em
que os estudantes Antocircnio Leite Fernando Palha Dulce Pandolfi e Ana de Miranda
militavam ao serem presos eram o PCBR e a ALN grupos poliacuteticos de esquerda ligados
ao combate armado Jaacute Padre Maacuterio era assistente da ACO e da JOC ndash associaccedilotildees
criadas para atender demandas de jovens e adultos trabalhadores e catoacutelicos Ceciacutelia
Coimbra era a uacutenica que natildeo era diretamente ligada a alguma organizaccedilatildeo na eacutepoca de
sua prisatildeo mas sua participaccedilatildeo anterior na Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-
GB) influenciou de forma indireta em sua prisatildeo e por isso merece ser aqui
considerada A partir disso analisa-se nesta seccedilatildeo de trabalho o PCBR a ANL a JOC a
ACO e a Dissidecircncia Comunista da Guanabara que passou a chamar-se MR-8
Diferentemente da JOC e da ACO que eram associaccedilotildees ligadas ao trabalho
social feito pela Igreja Catoacutelica o PCBR a ANL a DI-GBMR-8 faziam parte do que
vinha sendo nomeado desde a deacutecada de 1960 de nova esquerda brasileira Essa nova
esquerda era formada pelas dissidecircncias do Partido Comunista surgindo como forma de
buscar caminhos alternativos para a transformaccedilatildeo social e segundo Maria Paula
Arauacutejo em A utopia fragmentada (2000) natildeo era um fenocircmeno tipicamente brasileiro
123
ocorrendo concomitantemente em outras partes do mundo como Alemanha Franccedila
Itaacutelia Estados Unidos e Meacutexico 30
As organizaccedilotildees desta nova esquerda brasileira aleacutem de serem marcadas pelo
signo da dissidecircncia e pela busca de caminhos alternativos possuiacuteam outras ideias em
comum Havia entre elas uma forte desconfianccedila em relaccedilatildeo agraves formas tradicionais de
atuaccedilatildeo e representaccedilatildeo poliacuteticas jaacute que os tradicionais partidos comunistas na
avaliaccedilatildeo desses militantes eram travados por complicados aparatos burocraacuteticos Em
oposiccedilatildeo a essa linha dita ldquoconservadorardquo valorizaram a accedilatildeo revolucionaacuteria imediata
Aleacutem disso a maioria recusava a alianccedila com ldquofraccedilotildees das classes dominantesrdquo forma
como viam o Movimento Democraacutetico Brasileiro (MDB) na eacutepoca uacutenico partido de
oposiccedilatildeo consentido pela ditadura militar Enquanto o PCB continuava mantendo o
programa de via paciacutefica para o socialismo a dita nova esquerda defendia a luta armada
como a principal forma de atuaccedilatildeo naquele momento apesar de divergirem entre si
sobre as estrateacutegias a seguir 31
As divergecircncias internas no PCB atingiram o aacutepice por ocasiatildeo dos preparativos
para o VI Congresso do partido convocado para dezembro de 1967 Os debates acerca
das Teses para Discussatildeo veiculadas na Voz Operaacuteria publicaccedilatildeo clandestina do
Comitecirc Central do PCB causaram muita polecircmica Essas Teses propunham que a
derrota da ditadura deveria ser alcanccedilada por meio da alianccedila com setores progressistas
incluindo a burguesia e da participaccedilatildeo do PCB na poliacutetica institucional reafirmando a
opccedilatildeo pelo caminho paciacutefico para a revoluccedilatildeo social Tais Teses geraram uma total
insatisfaccedilatildeo dos setores oposicionistas do PCB que se revoltaram contra o Comitecirc
Central do chamado Partidatildeo Assim sem a participaccedilatildeo dos dissidentes internos o
PCB realizou o seu VI Congresso e reafirmou a ideia trazida pelas Teses
30
Para mais informaccedilotildees ver Arauacutejo 2000 35-72 31
Para mais informaccedilotildees ver Aaratildeo Reis Saacute 2006 15
124
Pelos jornais da grande imprensa os dissidentes souberam do Congresso e de suas
resoluccedilotildees dentre as quais a que expulsava do partido grandes lideranccedilas da Corrente
Revolucionaacuteria Esta corrente do Partidatildeo divergia de seu Comitecirc Central liderado por
Luiacutes Carlos Prestes e havia se organizado nacionalmente sob a denominaccedilatildeo de
Corrente Revolucionaacuteria Entre suas grandes lideranccedilas expulsas a partir das resoluccedilotildees
do VI Congresso do PCB estavam Carlos Marighella liacuteder da Corrente em Satildeo Paulo
Maacuterio Alves liacuteder em Minas Gerais Jacob Gorender liacuteder no Rio Grande do Sul e
Apolocircnio de Carvalho lideranccedila no antigo Estado do Rio de Janeiro32
Dessa forma em 1968 os principais membros da Corrente Revolucionaacuteria
estavam definitivamente afastados do PCB e juntamente com os militantes que os
seguiram se organizaram e formaram outras organizaccedilotildees poliacuteticas o PCBR e a ALN
Os liacutederes Apolocircnio de Carvalho Jacob Gorender e Maacuterio Alves formaram o Partido
Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR) partido clandestino de esquerda em que
Antocircnio Leite militava ao ser preso e o liacuteder Carlos Marighella fundou a Accedilatildeo
Libertadora Nacional (ALN) organizaccedilatildeo clandestina de esquerda adotada por Dulce
Pandolfi Fernando Palha e Ana Batista
Por outro lado existia outra vertente de divergecircncias internas do PCB as
chamadas Dissidecircncias mais conhecidas pela sigla DI formadas basicamente por
setores estudantis Existiam dissidecircncias em vaacuterios estados brasileiros mas seria a da
Guanabara onde Ceciacutelia Coimbra militou anos antes de ser presa que alcanccedilaria maior
destaque no cenaacuterio poliacutetico e estudantil da deacutecada de 1960
32
Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009
125
Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-GB)
As Dissidecircncias Universitaacuterias surgiram no periacuteodo preacute-1964 em meio a diversas
divergecircncias que abalaram o PCB principalmente em suas bases universitaacuterias Em
1964 esses estudantes divergentes se agruparam e comeccedilaram a reunir militantes de
diferentes universidades a fim de articular posiccedilotildees poliacuteticas que natildeo se afinavam com o
que as direccedilotildees do partido haviam estabelecido ndash no jargatildeo comunista eram as
chamadas ldquofraccedilotildeesrdquo As ldquofraccedilotildeesrdquo eram de acordo com o estatuto proibidas dentro do
partido logo eram executadas secretamente A ldquofraccedilatildeordquo da Guanabara foi inicialmente
constituiacuteda por estudantes comunistas das faculdades de filosofia e de direito hoje
pertencentes agrave UFRJ
Em 1965 as divergecircncias entre os dissidentes e a direccedilatildeo do PCB na Guanabara
comeccedilaram a se mostrar evidentes A orientaccedilatildeo do partido era para que seus militantes
fizessem campanha para o candidato a governador da Guanabara Francisco Negratildeo de
Lima indicado pela alianccedila PTB-PSD considerada de oposiccedilatildeo ao regime militar Com
a crescente radicalizaccedilatildeo do movimento estudantil a Dissidecircncia foi ganhando forccedila
Nas eleiccedilotildees parlamentares de 1966 apesar da orientaccedilatildeo do Partidatildeo para que sua
militacircncia votasse em determinados candidatos os dissidentes da Guanabara resolveram
fazer campanha pelo voto nulo ocasionando o rompimento definitivo entre os dois A
antiga ldquofraccedilatildeordquo passaria a ser a Dissidecircncia Comunista da Guanabara uma nova
organizaccedilatildeo independente com orientaccedilatildeo para a luta armada e com ampla influecircncia
no movimento estudantil carioca 33
Entretanto em 1967 a Dissidecircncia Comunista da Guanabara enfrentaria uma
grave crise poliacutetica interna Naquele momento muitos militantes da organizaccedilatildeo
apresentavam posiccedilotildees divergentes sobre quais rumos ela deveria trilhar Alguns
33
Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009
126
achavam que a Dissidecircncia deveria se integrar agrave Corrente Revolucionaacuteria que ainda
estava lutando internamente para mudar o PCB outros almejavam consolidar a
Dissidecircncia Comunista da Guanabara de forma a tornaacute-la uma organizaccedilatildeo nacional
reunindo nela dissidecircncias que ainda deveriam se desvincular do Partidatildeo e um terceiro
grupo a se juntar ao Partido Comunista do Brasil (PC do B) 34
Afinal a partir do V Congresso do PCB realizado em setembro de 1960 sob
influecircncia da revisionismo aprovado no XX Congresso do Partido Comunista Sovieacutetico
tinha sido aprovada uma nova resoluccedilatildeo poliacutetica para o partido Esta apesar da
resistecircncia dos opositires internos que seguiam a linha de pensamento marxista-
leninista modificava o programa do PCB tornando a nova taacutetica do partido a conquista
de um governo nacionalista e democraacutetico por meio de um processo eleitoral e da
pressatildeo de massas excluindo assim a via armada de seu programa Dessa forma foram
afastados da direccedilatildeo do PCB a maioria de seus opositores e eleito um Comitecirc Central
composto em grande parte por destacados revisionistas como Luiacutes Carlos Prestes
Logo em 18 de fevereiro de 1962 a maior parte dos comunistas que se opunham agrave nova
linha do PCB se separaram do partido e atraveacutes de uma Conferecircncia Extraordinaacuteria
aprovaram um programa que defendia a estrateacutegia chinesa de guerra popular
prolongada se aproximando do maoiacutesmo e adotaram a sigla PC do B (Partido
Comunista do Brasil) Em 1969 o PC do B deflagrou na regiatildeo de Tocantins um foco
guerrilheiro que ficou conhecido como Guerrilha do Araguaia esta foi neutralizada
pelos militares no final de 1973 atraveacutes do extermiacutenio de grande parte dos militantes
envolvidos
Em 1967 um ano depois de se tornar independente a resoluccedilatildeo para a crise
interna da Dissidecircncia Comunista da Guanabara foi o seu desmembramento Apoacutes este
34
Para mais informaccedilotildees ver Aaratildeo Reis 1990 e Ridenti 1993
127
desmembramento e duas conferecircncias internas realizadas em 1968 a Dissidecircncia
Comunista da Guanabara consolidou-se novamente como organizaccedilatildeo autocircnoma tendo
suas lideranccedilas agrave frente das grandes manifestaccedilotildees estudantis ndash que chegavam ao auge
de mobilizaccedilatildeo ndash e conquistando espaccedilo no cenaacuterio nacional Com o seu crescimento
junto ao movimento estudantil a DI-GB se ampliou notavelmente Apoacutes a decretaccedilatildeo
do AI-5 que tornava ilegal o movimento poliacutetico-estudantil a DI-GB organizou em
1969 uma nova conferecircncia reafirmando o seu empenho revolucionaacuterio de caraacuteter
comunista assumindo oficialmente a partir de entatildeo sua opccedilatildeo pela luta armada
Nessa eacutepoca Ceciacutelia Coimbra jaacute havia saiacutedo da organizaccedilatildeo e natildeo participava de
nenhum outro grupo de esquerda apesar de manter contato com muitos companheiros
que continuaram na militacircncia Afinal como abordado durante a anaacutelise de sua
trajetoacuteria Ceciacutelia preferiu se desligar por natildeo concordar nem com a poliacutetica paciacutefica do
entatildeo Partidatildeo e nem com a luta armada das demais organizaccedilotildees inclusive da
Dissidecircncia Comunista da Guanabara pois segundo ela achava que estas estavam
muito desvinculadas da sociedade e por isso natildeo teriam ecircxito
[] eu achava que natildeo era por aiacute eu discordava muito da questatildeo da luta
armada mas eu tambeacutem discordava da posiccedilatildeo do Partido Comunista que
era a favor do caminho paciacutefico a favor do caminho institucional parece
muito o PT de hoje a questatildeo da luta institucional que natildeo era pegando em
armas que natildeo era pela luta armada Eu natildeo concordava nem com um nem
com outro porque o pessoal da luta armada estava totalmente desvinculado
da sociedade brasileira entatildeo eu me afastei mas eu continuei com muito
contato com vaacuterios companheiros e aiacute comeccedilou 67-68 [] (Coimbra 30
nov 2004)
Em setembro de 1969 a Dissidecircncia Comunista da Guanabara juntamente com a
ALN elaborou e promoveu o sequestro do embaixador norte-americano no Brasil
128
Charles Burke Elbrick A accedilatildeo teve ecircxito e os envolvidos conseguiram trocar o
embaixador por quinze prisioneiros poliacuteticos entre eles importantes liacutederes estudantis
da antiga DI-GB Durante esse sequestro conforme explicado anteriormente os
militantes da entatildeo Dissidecircncia resolveram mudar o nome da organizaccedilatildeo para
Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro (MR-8) assinando esse novo nome no
manifesto entregue agrave imprensa
A mudanccedila de Dissidecircncia Comunista da Guanabara para MR-8 era na realidade
uma provocaccedilatildeo agrave ditadura Alguns meses antes do sequestro do embaixador americano
a repressatildeo havia desarticulado uma organizaccedilatildeo poliacutetica e anunciado que tinha
destruiacutedo o grupo terrorista Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro Poreacutem de acordo
com Alberto Berquoacute em O sequumlestro dia-a-dia (1997) o oacutergatildeo repressor que havia
prendido aqueles militantes o CENIMAR inventou esse nome pois o grupo capturado
era na verdade a Dissidecircncia do Estado do Rio de janeiro que a rigor se
autodenominava apenas como Organizaccedilatildeo Os militares entatildeo para anunciar a notiacutecia
na imprensa causando um maior impacto atribuiacuteram agrave Organizaccedilatildeo o nome de MR-8
fazendo referecircncia agrave data em que o guerrilheiro socialista Ernesto ldquoCherdquo Guevara havia
sido preso pela Central Intelligence Agency (CIA) na Boliacutevia Dessa forma ao
utilizarem o nome de MR-8 os militantes da ateacute entatildeo Dissidecircncia Comunista da
Guanabara estariam anunciando pertencerem agrave mesma organizaccedilatildeo que os militares
divulgaram meses antes jaacute estar aniquilada desmoralizando-os publicamente 35
Algum tempo depois do sequestro do embaixador a maioria de seus envolvidos
ou foram presos ou mortos pela repressatildeo Fernando Gabeira um dos militantes do MR-
8 envolvidos nessa accedilatildeo era conhecido de Ceciacutelia Coimbra e de seu marido desde a
eacutepoca em que militavam na Dissidecircncia Comunista da Guanabara Assim apoacutes a troca
35
Para mais informaccedilotildees sobre a mudanccedila de nome da Dissidecircncia Comunista da Guanabara para MR-8
ver Berquoacute 1997 72-73
129
do embaixador pelos prisioneiros poliacuteticos Gabeira por estar sendo procurado acabou
se escondendo na casa do casal fato que veio a ocasionar posteriormente a prisatildeo tanto
de Ceciacutelia quanto de seu marido nas dependecircncias do DOI-CODIRJ
Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR)
O partido clandestino pelo qual Antocircnio Leite militava ao ser preso o PCBR
havia sido criado em abril de 1968 a partir da expulsatildeo de liacutederes da Corrente
Revolucionaacuteria do PCB conforme mencionado anteriormente Um dos liacutederes e
tambeacutem fundador do PCBR Jacob Gorender na obra Combate nas Trevas a esquerda
brasileira (1999 111-116) caracteriza-o como marxista tendo por estrateacutegia de accedilatildeo a
combinaccedilatildeo entre guerrilha rural e trabalho de massas nas cidades com vistas agrave
formaccedilatildeo de um Governo Popular Revolucionaacuterio que abriria caminho para a
revoluccedilatildeo socialista
A partir dessa ideia de trabalho com as massas nas cidades o PCBR buscou
integrar-se agraves lutas estudantis de 1968 por meio das quais Antocircnio Leite de Carvalho
conheceu melhor a ideologia e as lideranccedilas do partido e posteriormente resolveu
tornar-se seu militante Aleacutem disso desenvolveu ainda algum trabalho nas faacutebricas nas
aacutereas rurais e promoveu entre os anos de 1969 e 1970 algumas accedilotildees armadas como
assaltos a bancos e roubos de veiacuteculos a fim de financiar a atuaccedilatildeo do partido Contudo
o PCBR sofreu com sucessivas prisotildees de seus liacutederes e integrantes restringindo de tal
forma o seu poder de accedilatildeo que logo no iniacutecio da deacutecada de 1970 jaacute se encontrava quase
totalmente desarticulado
O precoce fracasso do PCBR segundo a avaliaccedilatildeo feita por Antocircnio ainda
durante sua primeira entrevista (12 set 2002) deve-se ao fato da estrateacutegia de revoluccedilatildeo
pregada pelo partido ser utoacutepica Afinal para Antocircnio os militantes e liacutederes do PCBR
130
inclusive ele proacuteprio acreditavam que com algumas poucas accedilotildees urbanas isoladas
conseguiriam o apoio da grande massa ao movimento revolucionaacuterio e tomariam o
poder Por conseguinte entende que foi justamente esse isolamento a causa da grande
derrota do PCBR como se pode conferir no trecho abaixo
Era uma grande utopia faziacuteamos duas accedilotildees urbanas na cidade e achaacutevamos
que essas accedilotildees seriam capazes de fazer as pessoas aderirem ao nosso
movimento e conseguiriacuteamos o apoio da grande massa [] Isso nunca iria
acontecer porque eram movimentos basicamente de conquistas quer dizer
que trabalhavam isolados e foi o isolamento a causa da nossa grande derrota
(Carvalho 12 Set 2002)
Entretanto eacute importante destacar que esta avaliaccedilatildeo soacute pocircde ser feita a partir do
presente quando jaacute se sabia que a luta armada havia sido derrotada muito antes da
ditadura terminar e que a democracia havia se tornado uma realidade Afinal logo apoacutes
o AI-5 a luta armada e a forma de atuar do PCBR representavam para seus militantes
uma forte possibilidade de derrubar a ditadura militar Eles natildeo se submeteriam a
arriscar suas vidas em prol de uma luta na qual natildeo tivessem total convicccedilatildeo Logo
percebe-se um anacronismo na avaliaccedilatildeo que Antocircnio faz sobre sua luta naquele
passado o que eacute muito comum entre as memoacuterias construiacutedas por ex-guerrilheiros da
eacutepoca conforme destacado pela revolta de um dos que concederam seus depoimentos a
Alzira Alves de Abreu em Os anos de chumbo memoacuteria da guerrilha (1998)
B [nome atribuiacutedo ao ex-guerrilheiro pela autora para preservar sua
identidade] comeccedilou chamando a atenccedilatildeo para o fato de que a mamoacuteria
daquela fase histoacuterica eacute muito precaacuteria ldquoNa verdade ela foi muito mal
construiacuteda acabou virando um folclore e acabou se contando a histoacuteria desse
periacuteodo de traacutes para frente ndash quer dizer sabendo que a luta armada natildeo deu
certo vamos contar por que ela natildeo deu certo Na eacutepoca em que ela ocorreu
ela era um campo de possibilidades natildeo era mais do que isso Mas hoje jaacute se
131
comeccedila a falar desse movimento para se mostrar o fim dessa histoacuteria[]
(Abreu 1998 31)
Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN)
A organizaccedilatildeo em que militavam Dulce Pandolfi Fernando Palha e Ana de
Miranda no momento de suas prisotildees a ALN foi fundada por Carlos Marighella em
fevereiro de 1968 depois de deixar o PCB Marighella havia sido expulso do Partidatildeo
sob a alegaccedilatildeo de ter viajado para Havana em Cuba sem a autorizaccedilatildeo do Comitecirc
Central do partido para participar da conferecircncia da Organizaccedilatildeo Latino-Americana de
Solidariedade (OLAS) ndash organizaccedilatildeo que tinha como objetivo estender a revoluccedilatildeo
armada por toda a Ameacuterica Latina nos moldes da Revoluccedilatildeo Cubana de 1959
Em apoio a Marighella apoacutes sua expulsatildeo do PCB as bases de Satildeo Paulo tambeacutem
se desligaram do partido e formaram o Agrupamento Comunista de Satildeo Paulo O
Pronunciamento desse grupo em fevereiro de 1968 fundou oficialmente a Accedilatildeo
Libertadora Nacional (ALN) muito embora o primeiro quadro de militantes da
organizaccedilatildeo tenha ido treinar em Cuba ainda em setembro de 1967 36
O nome Accedilatildeo Libertadora Nacional seria uma referecircncia agrave Alianccedila Nacional
Libertadora organizaccedilatildeo poliacutetica criada em 1935 composta por setores de diversas
correntes ideoloacutegicas basicamente a fim de lutar contra a influecircncia fascista no Brasil
Nesse mesmo sentido a ALN tambeacutem visava aleacutem da luta socialista a libertaccedilatildeo
nacional buscando adquirir igual ecircxito na congregaccedilatildeo de grande parte da esquerda
brasileira em torno de seus objetivos como ANL havia conseguido durante a deacutecada de
30 No entanto diferentemente da Alianccedila Nacional Libertadora a Accedilatildeo Libertadora
36
Para mais informaccedilotildees ver Lima 2007 31
132
Nacional natildeo era configurada por uma poliacutetica de alianccedilas mas pelo combate pela accedilatildeo
direta 37
Quanto ao programa da organizaccedilatildeo a ALN tinha por estrateacutegia maior a guerrilha
rural embora sua tarefa taacutetica estivesse concentrada nas cidades onde a maior parte de
suas accedilotildees ocorria Essas accedilotildees urbanas eram consideradas pela organizaccedilatildeo como um
meio de apoio para propaganda poliacutetica para obtenccedilatildeo de fundos (atraveacutes de
expropriaccedilotildees como assaltos a bancos) para recrutamento de quadros para a guerrilha e
para ataques estrateacutegicos ao inimigo Aleacutem disso a ALN permitia a existecircncia de
pequenos grupos com total independecircncia taacutetica desde que estivessem subordinados agrave
sua estrateacutegia geral Dessa forma sua estrutura pode ser entendida como horizontal sem
hierarquias jaacute que segundo Denise Rollemberg em Esquerdas revolucionaacuterias e luta
armada (2003) o militante da ALN que se considerasse capaz de fazer accedilotildees era
incentivado a agir e natildeo a ficar esperando a orientaccedilatildeo de um poder centralizado Afinal
uma das criacuteticas da antiga Corrente Revolucionaacuteria do PCB da qual o liacuteder da ALN
Marighella foi integrante era justamente sobre a centralizaccedilatildeo e como esta emperrava a
atuaccedilatildeo do partido Dessa forma a ALN atuava por meio de diversos grupos
multiplicando suas accedilotildees
A partir disso percebe-se como o sequestro do aviatildeo da Companhia Cruzeiro do
Sul efetuado pelo pequeno grupo que Fernando Palha integrava pocircde ser executado
dentro da ALN assim como os inuacutemeros assaltos a bancos e carros-fortes e os
sequestros a embaixadores em que outros pequenos grupos ligados agrave ALN estiveram
envolvidos Dessa forma nota-se tambeacutem como e por que a ALN se tornou a maior
organizaccedilatildeo de luta armada da eacutepoca e por conseguinte Marighella e seus demais
militantes os mais procurados pela ditadura militar 38
37
Para mais informaccedilotildees ver Lourenccedilo 2005 191 38
Para mais informaccedilotildees ver Gorender 1999
133
No trecho seguinte retirado da entrevista de Fernando Palha destaca-se como
muitos desses pequenos grupos da ALN tinham espaccedilo para planejar e administrar suas
proacuteprias accedilotildees sem se desligarem da Accedilatildeo
Eu era da ALN Accedilatildeo Libertadora Nacional era a maior organizaccedilatildeo de luta
armada que tinha na eacutepoca A Jane [Jessie Jane] por exemplo veio para caacute
para Niteroacutei jaacute fugida de Satildeo Paulo onde prenderam o pai prenderam a matildee
a famiacutelia dela toda sabe O pai natildeo era de nenhuma organizaccedilatildeo mas dava
guarida [] ele era um cara politizado e ela tambeacutem e quando ela veio para
caacute para Niteroacutei ela entrou para o nosso grupo de estudo Estudaacutevamos o
marxismo guerrilhas enfim aprendendo um pouco Aiacute a gente pensando
em como soltar eles [os pais de Jessie Jane] surgiu a ideacuteia de sequestrar o
aviatildeo O sequestro do aviatildeo foi tranquilo difiacutecil foi a negociaccedilatildeo da troca
dos passageiros pelos presos que a gente queria (Freire 28 jun 2004)
Essas variadas e espalhadas accedilotildees da ALN repercurtiram de forma negativa entre
os militares dos oacutergatildeos repressivos Afinal a atuaccedilatildeo descentralizada da ALN permitia
que uma grande quantidade de accedilotildees ldquoterroristasrdquo fossem atribuiacutedas ao movimento
tornando-o aos olhos dos agentes da repressatildeo mais ameaccedilador e perigoso agrave
manutenccedilatildeo do regime ditatorial Essa percepccedilatildeo dos militares pode ter causado reflexos
no cotidiano prisional de militantes ligados direta ou indiretamente agrave referida
organizaccedilatildeo como Dulce Fernando Ana e Ceciacutelia39
ndash considerada militante indireta
por ter escondido em sua casa um dos atores do sequestro do embaixador norte-
americano accedilatildeo conjunta entre MR-8 e ALN
39
No terceiro capiacutetulo a anaacutelise da memoacuteria dos seis entrevistados (Antocircnio Dulce Fernando Padre
Maacuterio Ana e Ceciacutelia) se concentra no cotidiano prisional vivido no DOI-CODI carioca
134
Juventude Operaacuteria Catoacutelica (JOC) amp Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO)
A Juventude Operaacuteria Catoacutelica a JOC uma das organizaccedilotildees de que Padre Maacuterio
era assistente no momento de sua prisatildeo surge no Brasil em iniacutecio dos anos 1930
ganhando forccedila apenas a partir de fins de 1940 A JOC objetivava melhorar a vida do
jovem trabalhador atraveacutes de uma accedilatildeo evangelizadora e formadora de uma consciecircncia
criacutetica Eacute a responsaacutevel pela criaccedilatildeo do meacutetodo pedagoacutegico ldquoVer-Julgar-Agirrdquo
ensinando seus jovens a ver o problema a julgaacute-lo agrave luz do Evangelho e a agir para
transformar sua condiccedilatildeo de classe trabalhadora explorada
A JOC que apresentava uma posiccedilatildeo mais conservadora ateacute meados da deacutecada de
1950 a partir do golpe de 1964 assume outra orientaccedilatildeo poliacutetica de caraacuteter mais
progressista realizando uma reflexatildeo mais profunda no que se refere agrave condiccedilatildeo da
classe trabalhadora do paiacutes e da Ameacuterica Latina o que ocasiona uma maior repressatildeo
por parte do governo ditatorial brasileiro Atraveacutes da JOC a criaccedilatildeo da Accedilatildeo Catoacutelica
Operaacuteria (ACO) ndash outra organizaccedilatildeo de que Padre Maacuterio tambeacutem participava no
momento de sua prisatildeo ndash foi incentivada comeccedilando a ser organizada em fins da
deacutecada de 1950 em funccedilatildeo do grande nuacutemero de militantes que haviam chegado agrave idade
adulta mas desejavam continuar a atuar por meio da organizaccedilatildeo
A ACO nasce entatildeo da Liga Operaacuteria Catoacutelica (LOC) que era um movimento
destinado aos adultos ligados agrave Igreja e inicialmente com forte preocupaccedilatildeo
assistencialista assumindo gradativamente um vieacutes poliacutetico e uma identidade de classe
Assim a partir da LOC a ACO brasileira surge de fato em 1962 apresentando-se como
uma continuidade da JOC para que os jovens trabalhadores pudessem quando adultos
permanecerem a atuar politicamente Muitos eram os pontos em comum dos dois
movimentos que vatildeo desde os mesmos participantes que migravam de um para o outro
ao atingirem a idade adulta como a aplicaccedilatildeo do mesmo meacutetodo de accedilatildeo ldquoVer-Julgar-
135
Agirrdquo Entretanto segundo Alejandra Luisa Magalhatildees Estevez em sua dissertaccedilatildeo de
mestrado (2008) O movimento dos trabalhadores catoacutelicos a Juventude Operaacuteria
Catoacutelica (JOC) e a Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) diferentemente da JOC que a
partir de 1969 com a prisatildeo de muitos de seus integrantes ndash como o proacuteprio Padre
Maacuterio Prigol ndash foi perdendo forccedilas e acabou desaparecendo a atuaccedilatildeo da ACO durante
o periacuteodo militar caracterizou-se pelo enfrentamento constante com a hierarquia
eclesiaacutestica e com os proacuteprios militares
Dessa forma Padre Maacuterio que antes de ser preso em 1970 era assistente tanto da
JOC quanto da ACO apoacutes sua prisatildeo deu continuidade ao seu trabalho junto agrave ACO o
que ainda faz atualmente Afinal a ACO permanece em atividade ateacute os dias de hoje
poreacutem sob o nome de Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos (MTC)
Logo mesmo com diferentes atuaccedilotildees no cenaacuterio poliacutetico da eacutepoca as
organizaccedilotildees acima tratadas nas quais os ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados
militavam direta ou indiretamente tinham por confluecircncia algum tipo de manifestaccedilatildeo
em oposiccedilatildeo agrave ditadura militar Entretanto apesar dessa face comum ser o motivo
principal de suas prisotildees as diferenccedilas na forma de agir de suas organizaccedilotildees pode ter
se refletido na intensidade das violecircncias a que foram submetidos no DOI-CODIRJ
Diante disso no capiacutetulo seguinte a partir da anaacutelise das memoacuterias dos seis
entrevistados essa relaccedilatildeo entre a organizaccedilatildeo de esquerda do militante e o seu
tratamento na prisatildeo seraacute abordada assim como os demais aspectos que caracterizavam
o cotidiano vivido no DOI-CODIRJ durante o ano de 1970
136
Capiacutetulo 3 ndash O espaccedilo e o cotidiano do DOI-CODI carioca
A lua
Tal qual a dona de um bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel
E nuvens
Laacute no mata-borratildeo do ceacuteu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco
Louco
O becircbado com chapeacuteu-coco
Fazia irreverecircncias mil
Praacute noite do Brasil
Meu Brasil
Aldir Blanc e Joatildeo Bosco
(O Becircbado e a Equilibrista 1979)
137
1 O que sofre e o que resiste
Os depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ fontes essenciais
para esta pesquisa encontram aqui um desfecho primordial Finalmente uma de suas
especificidades mais importantes eacute aqui trabalhada a possibilidade que trazem de
acessar desde os aspectos mais subjetivos do dia-a-dia do DOI-CODIRJ aos mais
triviais Diante disso neste capiacutetulo torna-se possiacutevel uma caracterizaccedilatildeo da rotina
institucional ali vivida pelos prisioneiros em 1970 trazendo agrave tona detalhes e
sentimentos que compunham esse cotidiano que haacute deacutecadas jaacute natildeo existe mais Essa
faccedilanha natildeo seria possiacutevel atraveacutes de qualquer outra fonte senatildeo a oral Somente as
memoacuterias trazidas nas narrativas orais quando devidamente trabalhadas satildeo capazes de
aproximar-se das sensaccedilotildees e sentimentos vivenciados naquele passado amenizando a
sua corrosatildeo pelo tempo e as lacunas encontradas na histoacuteria da ditadura militar
Diante disso a memoacuteria eacute aqui tratada como material para a histoacuteria conforme
elucidado por Paul Ricoeur em A memoacuteria a histoacuteria e o esquecimento (2008) Nessa
mesma direccedilatildeo vai Fernando Catroga em seu artigo A representaccedilatildeo do ausente
memoacuteria e historiografia (2010) pelo qual busca entender a escrita da histoacuteria como um
rito de memoacuteria anaacutelogo ao ldquogesto de sepulturardquo Afinal a escrita da histoacuteria tem uma
funccedilatildeo anaacuteloga agrave do tuacutemulo e agrave dos ritos de recordaccedilatildeo ajudando tal como no trabalho
do luto a pagar as diacutevidas do presente com o passado que jaacute natildeo existe mais Essa
analogia mostra que se o tuacutemulo eacute o primeiro monumento dos mortos deixado para os
vivos a escrita da histoacuteria tambeacutem atua no sentido de lutar contra o esquecimento e a
degradaccedilatildeo que marcam a passagem do tempo Logo tal como acontece quando se
visita o tuacutemulo de um cemiteacuterio a escrita da histoacuteria sobre o cotidiano do DOI-
CODIRJ pretende contribuir para que agindo sobre os vivos esse passado se
transforme de ldquolugar de sepulturardquo para o de ldquogesto de sepulturardquo (Ricoeur 2008) Essa
138
analogia do tuacutemulo com a escrita da histoacuteria tem como principal ponto em comum a
construccedilatildeo do passado a partir de traccedilos e de representaccedilotildees que almejam situar no
tempo algo que natildeo existe mais O cotidiano do DOI-CODIRJ passa aqui a ser escrito
por meio da anaacutelise de vestiacutegios e representaccedilotildees apresentados nas memoacuterias de seis
dos seus ex-prisioneiros poliacuteticos tal como ocorre com a representaccedilatildeo memorial de
uma sepultura
Evidencia-se que as memoacuterias aqui trabalhadas especialmente por evocarem
fatos vividos pelas proacuteprias testemunhas estatildeo permeadas de razotildees subjetivas
normativas e pragmaacuteticas que satildeo condicionantes e geram efeitos incontrolaacuteveis
resultando em uma construccedilatildeo qualitativa seletiva e apaixonada do passado Daiacute a
importacircncia do olhar criacutetico do historiador sobre essas memoacuterias uma vez que a funccedilatildeo
deste eacute justamente inserir os aspectos criacuteticos objetivos e analiacuteticos da histoacuteria na
fluidez emoccedilatildeo e submissatildeo aos influxos da conjuntura caracteriacutesticos da memoacuteria
(Nora 1993)
Portanto eacute imperativo analisar criticamente essas memoacuterias sobre o cotidiano do
DOI-CODIRJ mesmo sabendo das dificuldades que envolvem essa accedilatildeo como bem
aponta Beatriz Sarlo em Tempo passado Cultura da memoacuteria e guinada subjetiva
(2007) Afinal satildeo depoimentos de viacutetimas cuja confiabilidade sobre as torturas sofridas
na prisatildeo natildeo soacute foi elemento constituinte da instalaccedilatildeo do regime democraacutetico como
ainda eacute responsaacutevel pela solidificaccedilatildeo de um princiacutepio de reparaccedilatildeo e justiccedila Poreacutem
deve-se antes de tudo encaraacute-los como discursos testemunhais pois seguem o modo
persuasivo caracteriacutestico do discurso e por conseguinte natildeo podem ser cristalizados
Afinal esses seis testemunhos satildeo feitos por narradores que buscam firmar no passado a
verdade do presente jaacute que a narrativa no presente tem uma inevitaacutevel hegemonia sobre
o passado conforme bem enuncia Sarlo no trecho abaixo
139
O presente da enunciaccedilatildeo eacute o ldquotempo de base do discursordquo porque eacute
presente o momento de se comeccedilar a narrar e esse momento fica inscrito na
narraccedilatildeo Isso implica o narrador em sua histoacuteria e a inscreve numa retoacuterica
da persuasatildeo (o discurso pertence ao modo persuasivo diz Ricoeur) Os
relatos testemunhais satildeo ldquodiscursordquo nesse sentido porque tecircm como
condiccedilatildeo um narrador implicado nos fatos que natildeo persegue uma verdade
externa no momento em que ela eacute enunciada Eacute inevitaacutevel a marca do
presente no ato de narrar o passado justamente porque no discurso o
presente tem genuiacutena hegemonia reconhecida como inevitaacutevel e os tempos
verbais do passado natildeo ficam livres de uma ldquoexperiecircncia fenomenoloacutegicardquo
do tempo presente da enunciaccedilatildeo ldquoO presente dirige o passado assim como
um maestro seus muacutesicosrdquo escreveu Italo Severo (Sarlo 2007 49)
Daiacute destaca-se novamente a importacircncia de considerar o tempo presente como
base do discurso das memoacuterias sobre o cotidiano do DOI-CODIRJ trabalhadas neste
capiacutetulo evocando mais uma vez a elucidativa expressatildeo preacutesent du passeacute de Robert
Frank (1999) O presente a partir de onde falam os seis entrevistados como ex-
prisioneiros poliacuteticos corresponde a um momento em que a democracia brasileira para a
maioria deles dava passos largos em direccedilatildeo a sua total magnitude o presente vivido no
raiar dos anos 2000 vinha se distanciando poliacutetica e socialmente do passado ditatorial
militar Quem presidia o paiacutes eram antigos opositores poliacuteticos do governo militar os
ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva que vinham
construindo garantias de reparaccedilatildeo aos que sofreram violaccedilotildees aos direitos humanos
durante o passado ditatorial
Estava em curso o reconhecimento dos mortos e desaparecidos poliacuteticos pelo
Estado brasileiro bem como a indenizaccedilatildeo agraves famiacutelias por intermeacutedio da Lei nordm 9140
de 1995 e a reparaccedilatildeo financeira aos males sofridos por aqueles presos ou perseguidos
na eacutepoca da ditadura militar garantida pela Lei nordm 10559 de 2002 Eram esses fatos
140
que compunham o cenaacuterio do presente vivido durante as entrevistas e obviamente
influenciaram diretamente a construccedilatildeo das narrativas dos ex-presos poliacuteticos sobre o
cotidiano do DOI-CODI carioca
Essas influecircncias acabaram em alguns casos direcionando suas narrativas para
os detalhes dos horrores a que foram submetidos e para as sequelas deixadas pelas
torturas daquele tempo a fim de natildeo suscitar duacutevidas sobre o merecimento agrave reparaccedilatildeo
oferecida pelo Estado Afinal o DOI-CODIRJ correspondeu ao espaccedilo onde esses
presos poliacuteticos viveram um dos cotidianos mais violentos de todo o periacuteodo em que
estiveram na prisatildeo Ao enfatizarem em detalhes o lado duro dessa rotina prisional os
entrevistados ambicionavam fortalecer a interpretaccedilatildeo vigente sobre seu papel de viacutetima
e ao mesmo tempo de resistente a um Estado ditatorial Ao procurarem conquistar a
entrevistadora os entrevistados viam-se envolvidos no processo de enquadramento da
memoacuteria sobre a ditadura militar brasileira no sentido atribuiacutedo por Michael Pollak
(1992) O objetivo entre outros era o de fortalecer perante a sociedade e o governo
uma memoacuteria que a eles conferisse o duplo lugar de resistente e de viacutetima e endossasse
a necessidade de reparaccedilotildees financeiras e simboacutelicas aos atingidos
A reparaccedilatildeo financeira aos violentados pela ditadura militar jaacute vinha acontecendo
na eacutepoca em que as entrevistas foram concedidas por meio das leis que implantaram a
Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos e a Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio
da Justiccedila citadas anteriormente e abordadas no segundo capiacutetulo Jaacute a reparaccedilatildeo
simboacutelica soacute comeccedilaria a ser de fato implantada alguns anos depois das entrevistas
principalmente com as Caravanas da Anistia a partir de abril de 2008 e mediante a
aprovaccedilatildeo da Comissatildeo da Verdade pelo Congresso Nacional em outubro de 2011 As
Caravanas da Anistia satildeo sessotildees puacuteblicas itinerantes de apreciaccedilatildeo de requerimentos de
anistia poliacutetica a perseguidos poliacuteticos da ditadura militar acompanhadas por atividades
141
educativas e culturais promovidas pela Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio da Justiccedila
Jaacute a Comissatildeo da Verdade teraacute como finalidade examinar e esclarecer graves violaccedilotildees
de direitos humanos praticadas entre os anos de 1946 e 1988 a fim de promover a
reconciliaccedilatildeo nacional com o seu passado histoacuterico
Eacute faacutecil perceber que os entrevistados em seus testemunhos-discursos acabam
atribuindo um sentido uacutenico agrave histoacuteria e conforme salienta Beatriz Sarlo (2007) ao
acumularem detalhes em suas narrativas produzem um modo realista-romacircntico pelo
qual atribuem sentidos a todos os detalhes mencionados somente pelo fato de incluiacute-los
no relato sem se sentirem na obrigaccedilatildeo de atribuir sentidos ou explicar as ausecircncias ali
tambeacutem apresentadas Dessa forma a anaacutelise aqui traccedilada procura trabalhar de forma
criacutetica no sentido de reconhecer a face realista dos detalhes descritos pelos narradores
e ao mesmo tempo a face romacircntica construiacuteda por eles de forma a fortalecer a
credibilidade e a veracidade de sua narraccedilatildeo Uma vez que diferentemente do que datildeo a
entender os entrevistados ao narrarem suas proacuteprias vidas a anaacutelise histoacuterica do
presente trabalho firma-se longe da utopia de uma narraccedilatildeo total capaz de descrever
todo o passado estudado reconhecendo a necessidade de operar com elipses
No entanto se por um lado os detalhes mencionados nos depoimentos devem ser
submetidos ao pensamento criacutetico histoacuterico por outro lado satildeo exatamente eles que
enriquecem a anaacutelise de um cotidiano jaacute que os detalhes trazidos pelos depoimentos
conseguem muitas vezes tornar a rotina do dia-a-dia que jaacute natildeo mais existe palpaacutevel
ao entendimento Eacute o que ocorre por exemplo com a disposiccedilatildeo espacial interna do
preacutedio-sede do DOI-CODIRJ fator que estaacute intrinsecamente relacionado ao cotidiano
prisional e que torna-se passiacutevel de caracterizaccedilatildeo atraveacutes dos detalhes contidos nos
depoimentos Assim mesmo natildeo sendo possiacutevel visitar o interior do edifiacutecio e nem ter
acesso a alguns registros documentais como fotos ou outros documentos eacute possiacutevel
142
contrapor as descriccedilotildees contidas nos depoimentos com a fachada do preacutedio que ainda
existe e construir uma percepccedilatildeo aproximada sobre o espaccedilo em que de certa forma
essas memoacuterias estatildeo ancoradas
2 Uma cartografia possiacutevel do ldquoCastelo do Terrorrdquo
Constatada essa forte relaccedilatildeo entre as memoacuterias dos ex-prisioneiros que ali
ficaram presos em 1970 com o espaccedilo interno do 1ordm BPE resolvi tentar ver de perto
como este era distribuiacutedo No entanto muitas dificuldades foram encontradas e
inviabilizaram o meu projeto inicial de contrapor o que restava do interior do edifiacutecio
que sediou o DOI-CODIRJ com as memoacuterias de seus ex-prisioneiros
Em 2003 a minha primeira tentativa de visitar o interior do preacutedio do 1ordm BPE foi
interrompida no momento em que apresentei o propoacutesito de minha visita o interesse em
ver o preacutedio do DOI-CODIRJ Percebi imediatamente que o ldquoassunto DOI-CODIrdquo
gerava um grande desconforto para aquele Batalhatildeo Talvez porque apesar do referido
Batalhatildeo natildeo ter tido relaccedilatildeo direta com o DOI-CODIRJ pois eram instituiccedilotildees
distintas o fato desse oacutergatildeo repressivo ter sido instalado em seu interior evoca uma
forte relaccedilatildeo que atualmente imprime uma imagem negativa para seus militares
Percebe-se assim que o 1ordm BPE quer apagar da memoacuteria social sua associaccedilatildeo ao DOI-
CODIRJ o que explica o fato de seus militares natildeo permitirem que eu prosseguisse
com a visita
No ano seguinte em novembro tentei pela segunda vez visitar o interior do dito
edifiacutecio Prevendo dificuldades para a visita utilizei como pretexto uma suposta
pesquisa sobre patrimocircnios histoacutericos do bairro Um primeiro-sargento que se
apresentou como graduado em histoacuteria acompanhou-me pelo paacutetio interno do
complexo Durante o passeio por este espaccedilo ele apontava de longe para os preacutedios que
143
ficavam ao redor inclusive para o que sediava o DOI-CODIRJ agrave esquerda e ao fundo
daquele paacutetio a ceacuteu aberto Ao referir-se ao local o sargento apontou de longe e disse
ldquoLaacute funciona o DOI-CODIrdquo deixando transparecer que ateacute aquele momento natildeo
existia uma nova serventia para aquele local e que a estrutura do DOI-CODI havia sido
preservada Nada mais quis falar alegando que natildeo poderia dar explicaccedilotildees mais
amplas sobre o assunto e que aleacutem do mais eu natildeo poderia me aproximar das
instalaccedilotildees que me interessavam
Esta segunda visita corroborou a minha sensaccedilatildeo anterior de que os militares
daquele Batalhatildeo natildeo queriam que este ficasse historicamente associado ao DOI-CODI
percebendo a imagem negativa que essa associaccedilatildeo poderia conferir-lhes tentando
evitar a manutenccedilatildeo do viacutenculo daquele preacutedio com a memoacuteria das torturas e mortes ali
executadas nos chamados ldquoanos de chumbordquo
Aleacutem disso esta visita trouxe-me um dado novo ao apresentar aquele preacutedio
como sendo o ldquoDOI-CODIrdquo no presente do indicativo o sargento deixou perceptiacutevel
um interesse interno em preservaacute-lo Afinal por que ateacute aquele momento mesmo o
DOI-CODI natildeo estando mais em atividade o seu espaccedilo natildeo havia sido utilizado para
nenhuma outra funccedilatildeo permanente Este interesse reflete talvez um forte orgulho
interno de importantes setores do Exeacutercito pelos feitos do DOI-CODI no sentido de
para alguns mais radicais ter sido esta instituiccedilatildeo uma das principais defensoras da
soberania e da ordem nacional na eacutepoca ameaccediladas pela subversatildeo
Apesar de tais empecilhos os detalhes relatados pelos entrevistados viabilizariam
uma aproximada cartografia espacial do interior do DOI-CODIRJ de 1970 quando eles
laacute estiveram Essa cartografia fez-se aqui necessaacuteria por entender-se que essa disposiccedilatildeo
espacial eacute essencial para a anaacutelise das memoacuterias sobre o cotidiano ali vivido uma vez
que esse espaccedilo prisional estaacute presente a todo o tempo nos relatos de Antocircnio Dulce
144
Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia sendo um dos principais pontos de uniatildeo de suas
memoacuterias
Sendo assim defende-se aqui que o antigo preacutedio do DOI-CODI carioca eacute hoje
um lugar de memoacuteria jaacute que a ele se confere de forma simultacircnea e em graus diversos
os trecircs sentidos atribuiacutedos como necessaacuterios por Pierre Nora o material o simboacutelico e o
funcional (Nora 1993 21) O sentido material no caso eacute o proacuteprio espaccedilo fiacutesico o
preacutedio do 1ordm BPE ainda localizado agrave Rua Baratildeo de Mesquita nordm 425 no bairro da
Tijuca O simboacutelico eacute o que o edifiacutecio representa para parte da sociedade carioca que
partilha as memoacuterias dos ex-presos poliacuteticos e seus familiares sobre o violento
cotidiano as torturas e as mortes ali vivenciados atribuindo ao preacutedio o significado de
ldquoCastelo do terrorrdquo Por fim o sentido funcional eacute a atividade de preservaccedilatildeo da
memoacuteria da ditadura militar ali exercida jaacute que o preacutedio eacute um monumento tombado sob
a justificativa de guardar a memoacuteria ali vivida durante a ditadura militar brasileira e natildeo
deixar que ela venha a cair no esquecimento Este uacuteltimo sentido portanto embute ao
preacutedio o significado completo de um lugar de memoacuteria congregando ao espaccedilo uma
funccedilatildeo e uma representaccedilatildeo simboacutelica ou seja unindo os aspectos material simboacutelico e
funcional
145
Foto Nordm1 fachada entrada principal e paacutetio interno do quartel do 1ordm BPE (Bettamio dez 2004)
Este tombamento foi feito pela Prefeitura do Rio de Janeiro em 1993 e tem por
setor responsaacutevel a Subsecretaria municipal de Patrimocircnio Cultural lei nordm 1954 de
29039340
Seu processo teve iniacutecio atraveacutes da solicitaccedilatildeo de moradores da localidades
da Tijuca Grajauacute Andaraiacute e Praccedila Saens Pentildea que utilizaram para embasar o referido
ato o fato de parte do edifiacutecio do 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito ter abrigado o DOI-
CODI do Rio de Janeiro durante toda a deacutecada de 1970 e iniacutecio dos anos 1980
ressaltando a sua importacircncia para a memoacuteria da resistecircncia e luta pelo fim da ditadura
militar
Percebe-se ainda a grande importacircncia atribuiacuteda a essa memoacuteria quando se
destaca que mesmo o edifiacutecio tendo um valor histoacuterico anterior agrave fase em que cedeu
parte de seu espaccedilo ao DOI-CODIRJ o pedido de tombamento feito pela populaccedilatildeo
fundamentava-se no que ali havia ocorrido em tempos recentes durante a ditadura
militar Afinal esses requerentes propunham que o edifiacutecio fosse tirado do Exeacutercito e
desse lugar a um centro cultural com museu da memoacuteria da luta pela liberdade
40
Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro antigo Departamento Geral de
Patrimocircnio Cultural (DGPC) Nordm do processo 1200433692 1degdocumento de solicitaccedilatildeo de tombamento
26101992
146
O edifiacutecio foi construiacutedo em 1857 pela Imperial Coroa para servir de sede a um
Hospital Militar entretanto laacute se instalou o 1ordm Regimento de Cavalaria Ligeira e
posteriormente o Hospital Militar da Corte com funcionamento ateacute fevereiro de 1877
Desde entatildeo a construccedilatildeo foi utilizada pela Escola do Estado Maior pelo 2ordm Batalhatildeo
de Caccediladores pela Escola de Intendecircncia e a partir de 1946 pelo 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia
do Exeacutercito 41
Em ampla aacuterea estaacute situado na confluecircncia da Rua Baratildeo de Mesquita com a
Avenida Maracanatilde abrangendo tambeacutem a Praccedila Lamartine Babo Conforme pode ser
observado na paacutegina anterior Foto Nordm1 ao redor de todo o espaccedilo ocupado pelo preacutedio
estende-se uma mureta de alvenaria com grade assente na parte frontal do quartel O
complexo arquitetocircnico do 1ordm BPE apresenta nas extremidades alas perpendiculares
que formam no meio um largo paacutetio A uacuteltima dessas alas possui os fundos voltados
para a Avenida Maracanatilde em frente a um dos portotildees de entrada e saiacuteda de veiacuteculos do
quartel Era exatamente nesta parte localizada no final do paacutetio central do Batalhatildeo do
lado esquerdo ao lado da antiga faacutebrica de bebidas Brahma que as celas e a sala de
tortura do DOI-CODIRJ estavam localizadas A seguir na Foto Nordm2 visualiza-se o
fundo deste edifiacutecio na Avenida Maracanatilde
41
Para mais informaccedilotildees ver Gerson 2000 357
147
Foto Nordm2 preacutedio do DOI-CODIRJ nos fundos do quartel localizado na Avenida Maracanatilde (Bettamio dez 2004)
Como se pode ver na Foto Nordm2 em cima do muro do 1ordm BPE exclusivamente na
parte que cerca os fundos do antigo preacutedio do DOI-CODIRJ estaacute localizada uma cerca
de arame farpado Assim aleacutem da descriccedilatildeo dos entrevistados e da forma como o
primeiro-sargento nomeou o local ao apontaacute-lo durante a minha segunda visita ao
Batalhatildeo em 2004 entende-se esta cerca como mais um indiacutecio de que laacute ficavam as
celas do entatildeo DOI-CODIRJ Tais celas estavam distribuiacutedas pelos dois pavimentos do
edifiacutecio conforme pode-se auferir nos relatos e comprovar na Foto Nordm2 onde pela
distribuiccedilatildeo das janelas nota-se que o preacutedio eacute composto de fato por dois andares
O local da prisatildeo era mais nos fundos Quando vocecirc chega ali vocecirc tem duas
entradas uma pela pracinha [Foto Nordm3] onde entram os carros e outra pela
frente bem na Baratildeo de Mesquita [Foto Nordm1] Nesta entrada tem uma mesa
com um oficial do dia depois vem uma espeacutecie de paacutetio aberto como se
fosse uma quadra Jaacute nos fundos do quartel passa a Avenida Maracanatilde por
traacutes da Poliacutecia do Exeacutercito As celas tanto a da prisatildeo como a da tortura
eram mais perto da Avenida Maracanatilde Era laacute naquela parte mais para o
148
final mais isolada Vocecirc ficava mais proacuteximo da Avenida Maracanatilde e da
faacutebrica da Brahma [] (Carvalho 12 set 2002)
Foto Nordm3 uma das entradas do 1ordm BPE para veiacuteculos de frente para a Praccedila Lamartine Babo (Bettamio dez 2004)
Os prisioneiros poliacuteticos receacutem-capturados transferidos de outros oacutergatildeos de
repressatildeo ou mesmo do Hospital Central do Exeacutercito chegavam ao 1ordm BPE dentro de
uma das viaturas das turmas de busca e apreensatildeo do DOI que faziam parte da
estrutura abordada no primeiro capiacutetulo Os automoacuteveis que os traziam entravam no
Batalhatildeo atraveacutes do portatildeo para veiacuteculos que fica em frente agrave Praccedila Lamartine Babo
(Foto Nordm3) entre a Rua Baratildeo de Mesquita e a Avenida Maracanatilde Ao entrarem por
este portatildeo os carros seguiam em linha reta pelo paacutetio interno ateacute chegarem ao preacutedio
do DOI-CODI no fundo do quartel (Foto Nordm2) onde os presos eram deixados
Este trajeto de chegada descrito pelos entrevistados parece ser ateacute hoje um
procedimento formal para controlar a entrada de veiacuteculos no Batalhatildeo e atraveacutes dele
evidencia-se que o DOI-CODI mesmo natildeo sendo subordinado ao 1ordm BPE tinha como
dever respeitar algumas normas de seguranccedila ali vigentes Entre essas normas estava o
impedimento de utilizar o portatildeo para veiacuteculos localizado na Avenida Maracanatilde (Foto
149
Nordm2) para a entrada e a saiacuteda de seus presos mesmo sendo mais praacutetico e reservado
pois este portatildeo ficava ao lado do preacutedio do DOI-CODI Poreacutem como todo quartel
militar preza por um controle riacutegido de seguranccedila uma vez que satildeo responsaacuteveis por
guardar armas e outros equipamentos beacutelicos esses agentes eram obrigados a respeitar a
estrutura de seguranccedila tradicional do 1ordm BPE
[] a gente entrava pela pracinha aqui do lado [aponta para o desenho que
faz no papel] a gente entrava dentro dos carros aqui por esse portatildeo (o da
praccedila) A gente natildeo entrava pela porta principal natildeo E nem entrava ou saiacutea
pelo portatildeo do lado do preacutedio que a gente ficava [] (Coimbra 30 nov
2004)
No preacutedio do DOI-CODIRJ (Foto Nordm2) as celas ldquosolitaacuteriasrdquo se localizavam
somente no andar de baixo Nelas os prisioneiros receacutem-chegados permaneciam nos
primeiros dias de prisatildeo para ficarem no mesmo andar da sala de interrogatoacuterio ou ldquosala
de torturardquo ndash como os presos a chamavam ndash facilitando o deslocamento Era no
momento inicial da prisatildeo que as turmas de interrogatoacuterio preliminar executavam a
parte massiva dos interrogatoacuterios o que por conseguinte demandava a necessidade dos
presos ficarem em celas geograficamente proacuteximas agrave ldquosala de torturardquo
Nos primeiros dias de prisatildeo era quando os presos eram levados assiduamente
para a ldquosala de torturardquo visto que poderiam informar sobre os ldquopontos de encontrordquo e os
ldquoaparelhosrdquo ainda vaacutelidos informaccedilotildees que levariam os agentes dos DOI ateacute outros
ldquosubversivosrdquo Aleacutem da ldquosala de torturardquo a cela do tipo ldquosolitaacuteriardquo era mais um artifiacutecio
para torturar o preso receacutem-chegado a fim de degradaacute-lo e desestruturaacute-lo
psicologicamente de forma a impulsionaacute-lo a falar mais rapidamente o que sabia Para
isso essas celas ldquosolitaacuteriasrdquo aleacutem de deixarem o preso isolado dos demais se
diferenciavam estruturalmente das outras que existiam no mesmo preacutedio localizadas em
150
maior parte no pavimento superior para as quais os presos eram transferidos apoacutes o
momento inicial de sua prisatildeo
Nas celas do segundo andar existia banheiro com chuveiro e um colchatildeo para cada
preso Jaacute nas ldquosolitaacuteriasrdquo aleacutem do preso ficar sozinho natildeo havia cama colchatildeo
banheiro ou mesmo pia Durante o tempo em que laacute permaneciam os prisioneiros natildeo
tinham direito a tomar banho Eram celas pequenas com portotildees de grades vazadas
contendo apenas um buraco no chatildeo para que o preso ali pudesse evacuar Os presos
eram obrigados a conviver com o cheiro de sua proacutepria urina e fezes no provaacutevel intuito
de denegrir a sua condiccedilatildeo de ser humano
[] logo que eu cheguei fui para a lsquosolitaacuteriarsquo era torturada ia para a
lsquosolitaacuteriarsquo era torturada e ia para a lsquosolitaacuteriarsquo [] (Pandolfi 5 fev 2003)
[] primeiro que quando vocecirc eacute preso vocecirc passa alguns dias sem tomar
banho na verdade eu soacute fui tomar banho mesmo depois que eu fui para a
cela coletiva [] (Carvalho 8 fev 2003)
Aqui [aponta para as celas do andar teacuterreo do preacutedio que desenhou em um
papel] era soacute o pessoal que ficava de castigo era barra pesada [] vocecirc natildeo
tinha lugar para dormir natildeo tinha lugar para nada Tinha soacute um buraco para
vocecirc fazer as suas necessidades Na solitaacuteria natildeo tinha nem colchatildeo nem
banheiro nem privada era um buraco Nem tinha chuveiro Pelo menos
essas celas de cima tinham chuveiro [] (Coimbra 30 nov 2004)
151
Foto Nordm4 visatildeo panoracircmica do espaccedilo ocupada pelo 1ordm BPE com destaque aos fundos para o preacutedio do DOI-CODI
(Bettamio dez 2004)
A ldquosala de torturardquo localizada no primeiro pavimento do preacutedio eacute referida pelos
prisioneiros tambeacutem como ldquosala roxardquo pela cor de suas paredes Anexa a ela estava a
sala de observaccedilatildeo que era separada da ldquosala roxardquo por um vidro o chamado ldquoespelho
da verdaderdquo Este vidro composto por uma placa semi-espelhada possibilitava que da
sala de observaccedilatildeo se pudesse ver e reconhecer quem estava do outro lado sem ser
visto Assim presos e militares poderiam identificar pessoas e observar interrogatoacuterios
sem serem reconhecidos
[] a sala de tortura era pintada de uma cor horrorosa como se fosse um
roxo [] essa sala tinha um vidro que era o espelho da verdade porque dava
acesso agrave outra sala onde ficavam pessoas para te observar sem serem vistas
[] (Pandolfi 5 fev 2003)
A seta indica a localizaccedilatildeo do preacutedio do DOI-CODI dentro do espaccedilo do 1ordm BPE
152
[] aqui tinha a famosa sala roxa duas uma do lado da outra isso no
primeiro andar Porque ali estavam as pessoas que eles estavam inquirindo
direto [] (Freire 28 jun 2004)
Os dados informados acima satildeo exemplos tiacutepicos de detalhes apresentados pelos
entrevistados que muito podem contribuir para o entendimento desse passado Afinal
em uma primeira impressatildeo essas narrativas podem transmitir a ideia de que as paredes
roxas serviam apenas para imprimir um aspecto sombrio agrave ldquosala de torturardquo servindo
como mais um elemento produzido para intimidar o depoente durante o interrogatoacuterio
No entanto ao saber-se que uma das paredes dessa sala era composta pelo dito ldquoespelho
da verdaderdquo deduz-se que esta era bem iluminada O vidro que a dividia do local anexo
muito utilizado nas salas de reconhecimento em delegacias de poliacutecia age atraveacutes de um
mecanismo pelo qual quem estaacute do lado mais iluminado vecirc apenas o reflexo de sua
proacutepria imagem sem enxergar o que estaacute do lado mais escuro
A partir disso infere-se que as paredes roxas da ldquosala de torturardquo natildeo eram apenas
um aparato de tortura psicoloacutegica mas provavelmente uma forma de deixar os
integrantes das turmas de interrogatoacuterio preliminar mais agrave vontade para interrogar
ameaccedilar e torturar os seus prisioneiros Menos iluminada do que se suas paredes fossem
brancas contribuiacutea para que os prisioneiros natildeo pudessem ver os militares de forma tatildeo
clara e niacutetida fazendo com que os torturadores natildeo se sentissem acuados por atuar com
os seus rostos agrave mostra chegando mesmo a retirar o capuz dos prisioneiros
[] chegando nessa sala de tortura normalmente eles tiravam o capuz Quer
dizer o capuz na verdade era um mecanismo mais de intimidaccedilatildeo de deixar
a gente apavorada do que para eles se esconderem mesmo porque na tortura
a gente acabava vendo os torturadores [] (Pandolfi 5 fev 2003)
No DOI-CODI eu apanhei de cara limpa eu vi quem me bateu quem me
torturou [] (Freire 28 jun 2004)
153
No segundo andar do preacutedio do DOI-CODIRJ em meio agraves demais celas coletivas
e encostada em outra menor se encontrava uma cela feminina bem espaccedilosa onde
Dulce Ana e Ceciacutelia ficaram durante parte do tempo em que estiveram na instituiccedilatildeo
Essa cela mencionada pelas entrevistadas ora por ldquocoletivo das mulheresrdquo ora por
ldquoMaracanatilderdquo tinha no alto da parede de fundo um basculante que como bem se pode
observar na Foto Nordm2 provavelmente estava presente em todas as celas coletivas tanto
as do primeiro quanto as dos segundo andares Entretanto no caso do ldquocoletivo das
mulheresrdquo e da cela nele encostada esses basculantes eram virados para o paacutetio interno
do 1ordm BPE e por conseguinte os portotildees dessas celas ficavam na direccedilatildeo do muro da
Avenida Maracanatilde
[] eu fui para a cela do lado que era o coletivo das mulheres que era a cela
Maracanatilde como a gente chamava [] Eram duas celas Essa era enorme e
tinha a outra na outra ponta [] que era uma cela menor Eu fiquei nas duas
que eram as duas celas que ficavam na frente que davam para o paacutetio A
gente trepava [no basculante da cela] e soacute via o paacutetio (Coimbra 30 nov
2004)
Tinha ateacute uma cela ampla grande que chamavam de coletivo das mulheres
Entatildeo a maior parte do tempo eu fiquei nessa cela grande [] (Pandolfi 5
fev 2003)
No DOI-CODI natildeo havia uma grande separaccedilatildeo entre prisioneiros e prisioneiras
uma vez que as celas do primeiro e do segundo andares comportavam tanto homens
quanto mulheres No entanto natildeo havia celas mistas Apesar de que como somente
homens afirmaram ter permanecido em celas do piso teacuterreo pressupotildee-se que neste
pavimento com exceccedilatildeo das celas ldquosolitaacuteriasrdquo localizavam-se em grande parte caacuterceres
154
coletivos masculinos que tambeacutem existiam no segundo andar demonstrando que era
maior o nuacutemero de prisioneiros homens
[] eu sempre fiquei no teacuterreo nunca subi para aquela parte apesar de que
laacute onde ficavam as celas tinha uma escada Tinha uma parte teacuterrea onde
ficavam nossas celas e tinha tambeacutem umas celas em cima [] (Carvalho 12
set 2002)
No teacuterreo tinha duas celinhas aqui [rabisca em um pedaccedilo de papel] uma no
cantinho aqui e eu fiquei nessa segunda aqui aiacute ainda tinha a do meio e
mais duas para caacute eram cinco celas [] (Freire 28 jun 2004)
A partir dessa cartografia do espaccedilo fiacutesico do DOI-CODI viabilizou-se uma
aproximaccedilatildeo com a geografia do ambiente que mantinha uma iacutentima relaccedilatildeo com o
cotidiano dos entrevistados no periacuteodo em que laacute permaneceram como prisioneiros do
sistema de seguranccedila
3 Memoacuterias de um cotidiano
Falar sobre essa parte da histoacuteria implica muitas dificuldades pois suscita
lembranccedilas mal-vindas poreacutem necessaacuterias ao conhecimento de nossa
sociedade Trata-se aqui de uma viagem de volta ao inferno de uma face que
para muitos traduz supliacutecios fiacutesicos e psiacutequicos sentimentos de desamparo
solidatildeo medo pacircnico abandono e desespero (Coimbra 2004 45) 42
Como jaacute dito o momento da realizaccedilatildeo de uma entrevista eacute definidor da maneira
pela qual o(a) entrevistado(a) recupera o seu passado A construccedilatildeo da memoacuteria sobre o
cotidiano vivido no DOI-CODI em 1970 natildeo escapou desse passeacute do preacutesent e de
42
Artigo Gecircnero Militacircncia e Memoacuteria escrito pela entrevistada Ceciacutelia Coimbra e publicado em Strey
Marlene Neves (org) Violecircncia Gecircnero e Poliacuteticas Puacuteblicas Porto Alegre PUC-RS 2004
155
forma muito interessante ao mesmo tempo em que sofria influecircncias desse presente
tambeacutem agia politicamente sobre ele Beneficiados por uma legislaccedilatildeo que buscava
reparar os variados danos causados pelo Estado ditatorial os entrevistados visavam
sobretudo a obter reparaccedilotildees simboacutelicas comeccedilando pela consolidaccedilatildeo de suas
memoacuterias Por isso mesmo lutavam por accedilotildees governamentais tais como a construccedilatildeo
de museus sobre a ditadura militar em locais que haviam servido como prisatildeo poliacutetica
na eacutepoca e a instalaccedilatildeo da Comissatildeo da Verdade no paiacutes
Assim em 24 de janeiro de 2009 foi inaugurado no anexo do antigo preacutedio do
Departamento de Ordem e Poliacutetica Social de Satildeo Paulo (Deops) o Memorial da
Resistecircncia de Satildeo Paulo Eacute a primeira instituiccedilatildeo do paiacutes a ldquomusealizarrdquo parte de um
edifiacutecio que foi siacutembolo da poliacutecia poliacutetica em eacutepocas de ditadura a fim de salvaguardar
a memoacuteria da resistecircncia e da repressatildeo do Brasil republicano 43
E finalmente em 18
de novembro de 2011 a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei que criava a
Comissatildeo da Verdade (lei nordm 125282011) Esta seraacute composta por sete integrantes que
ainda seratildeo indicados e contaratildeo com ajuda de 14 auxiliares que teratildeo a missatildeo de ouvir
depoimentos em todo o paiacutes requisitar e analisar documentos que ajudem a esclarecer
os fatos da repressatildeo militar A Comissatildeo iraacute apurar as violaccedilotildees de direitos ocorridas
entre os anos de 1946 e 1988 e teraacute um prazo de dois anos para finalizar este trabalho de
investigaccedilatildeo
43
Para mais informaccedilotildees sobre o Memorial da Resistecircncia de Satildeo Paulo consultar
httpwwwmemorialdaresistenciasporgbr
156
31 O interrogatoacuterio e a tortura
Tendo em vista as novas funccedilotildees que se apresentavam para os agentes da
repressatildeo lotados nos DOI-CODI era necessaacuterio um treinamento que incluiacutea entre
outras mateacuterias o manuseio da dosagem de dor infringida durante os interrogatoacuterios
Depois de passarem por tal treinamento os militares poderiam atuar em uma das trecircs
turmas de interrogatoacuterio preliminar que compunham a Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio
responsaacutevel direta por torturar os presos ou em uma das turmas da Seccedilatildeo de busca e
apreensatildeo que capturavam os suspeitos e os direcionavam aos DOI
Esse processo de formaccedilatildeo de matildeo-de-obra para atuar no DOI-CODI surgiu em
1970 quando uma escola de repressatildeo foi criada a partir da mudanccedila de comando e da
reforma curricular do Centro de Estudos de Pessoal (CEP) no forte do Leme O novo
CEP passava a oferecer cursos de informaccedilotildees para oficiais programas de extensatildeo para
sargentos e estaacutegios para quadros das poliacutecias militares todos normalmente com
duraccedilatildeo de um semestre Nesses cursos os alunos assistiam aulas sobre teacutecnicas de
interrogatoacuterio ndash o que incluiacutea o manuseio de aparelhos de tortura ndash e vigilacircncia taacuteticas
de ldquoneutralizaccedilatildeo de aparelhosrdquo e de transporte de presos operaccedilotildees especiais
criptologia e produccedilatildeo de informaccedilotildees Ao fim do curso o aluno recebia uma
certificaccedilatildeo atraveacutes da qual poderia atestar sua aptidatildeo para desempenhar as funccedilotildees de
um oficial de informaccedilotildees
Parte dos meacutetodos aprendidos nessa escola eacute retratada em entrevista para a revista
Veja de 9 de dezembro de 1998 pelo tenente Marcelo Paixatildeo de Arauacutejo que de acordo
com Elio Gaspari (2002) teria atuado como torturador no 12ordm Regimento Interno de
Belo Horizonte entre 1968 e 1971
A primeira coisa era jogar o sujeito no meio de uma sala tirar a roupa dele e
comeccedilar a gritar para ele entregar o ponto [lugar marcado para encontros
157
com militantes do grupo] Era o primeiro estaacutegio Se ele resistisse tinha um
segundo estaacutegio que era vamos dizer assim mais porrada Um dava tapa na
cara Outro soco na boca do estocircmago Um terceiro soco no rim Tudo para
ver se ele falava Se natildeo falava tinha dois caminhos Dependia muito de
quem aplicava a tortura Eu gostava muito de aplicar a palmatoacuteria Eacute muito
doloroso mas faz o sujeito falar Eu era muito bom na palmatoacuteria [] Vocecirc
manda o sujeito abrir a matildeo O pior eacute que de tatildeo desmoralizado ele abre Aiacute
se aplicam dez quinze bolos na matildeo dele com forccedila A matildeo fica roxa Ele
fala A etapa seguinte era o famoso telefone das Forccedilas Armadas [] eacute uma
corrente de baixa amperagem e alta voltagem [] Natildeo tem perigo de fazer
mal Eu gostava muito de ligar as duas pontas dos dedos Pode ligar numa
matildeo e na orelha mas sempre do mesmo lado do corpo O sujeito fica
arrasado O que natildeo pode fazer eacute deixar a corrente passar pelo coraccedilatildeo Aiacute
mata [] o uacuteltimo estaacutegio em que cheguei foi o pau-de-arara com choque
Isso era para o queixo-duro o cara que natildeo abria nas etapas anteriores Mas
pau-de-arara eacute um negoacutecio meio complicado [] O pau-de-arara natildeo eacute
vantagem Primeiro porque deixa marca Depois porque eacute trabalhoso Tem
de montar a estrutura Em terceiro eacute necessaacuterio tomar conta do indiviacuteduo
porque ele pode passar mal (Gaspari 2002 182-183)
Antes de comeccedilar a atuar esses agentes passavam por treinamento no DOI-CODI
feito provavelmente com alguns prisioneiros que jaacute estavam laacute haacute algum tempo e que
haviam mostrado ter boa resistecircncia Conforme se pode evidenciar a partir da
declaraccedilatildeo feita por Dulce Pandolfi em 1970 registrada na auditoria militar 44
[]
que foi exposta perante 20 oficiais como numa demonstraccedilatildeo de aulas de torturas
pau-de-arara e choques [] (Arquidiocese de Satildeo Paulo tomo V 1985 758)
Essa denuacutencia feita na eacutepoca por Dulce na auditoria da Justiccedila Militar foi
publicada em A Tortura tomo V do ldquoProjeto Ardquo da pesquisa coordenada pela
Arquidiocese de Satildeo Paulo e intitulada Brasil Nunca Mais O ldquoProjeto Ardquo eacute constituiacutedo
por doze volumes que contecircm as conclusotildees da referida pesquisa feita a partir da
44
Assim satildeo chamadas as varas criminais com atribuiccedilatildeo especiacutefica de atuar em processos de crimes
militares da Justiccedila Militar brasileira
158
reuniatildeo de coacutepias da quase totalidade dos processos poliacuteticos que tramitaram na Justiccedila
Militar entre abril de 1964 e marccedilo de 1979 Esses volumes foram reproduzidos vinte e
cinco vezes pela Arquidiocese de Satildeo Paulo formando coleccedilotildees que foram doadas a
entidades de direitos humanos pesquisa e documentaccedilatildeo 45
As 6891 paacuteginas do
ldquoProjeto Ardquo estatildeo resumidas no ldquoProjeto Brdquo o livro Brasil Nunca Mais tambeacutem
datado de 1985 e publicado pela Editora Vozes
Os primeiros momentos no DOI-CODI
Desde o momento da detenccedilatildeo o preso era submetido a diversos tipos de maus
tratos Jaacute a caminho do caacutercere ainda dentro do automoacutevel comeccedilavam as agressotildees
como tapas pontapeacutes e empurrotildees a fim de acelerar a sua desestabilizaccedilatildeo para que
entregasse mais rapidamente informaccedilotildees que agilizassem a prisatildeo de outros militantes
procurados
As torturas que Ana Batista relata ter sofrido durante o percurso de transferecircncia
da OBANSP para o DOI-CODIRJ destacadas em seu memorial ndash escrito em outubro
de 2004 um mecircs antes de sua entrevista e encaminhado agrave Comissatildeo Especial da
Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro ndash trazem aspectos
proacuteximos agrave realidade vivida na eacutepoca pelos presos poliacuteticos do DOI-CODIRJ
[] dez dias apoacutes a prisatildeo fui levada de Satildeo Paulo [DOI-CODISP] para o
Rio [DOI-CODIRJ] de madrugada numa C-14 onde permaneci no banco de
traacutes entre dois agentes de grande porte No meio do caminho na Via Dutra
eles entraram por uma estradinha pararam o carro e me mandaram descer
aos berros Com fortes dores no corpo ndash especialmente nos rins ndash
queimaduras infectadas pelos choques eleacutetricos exausta dos interrogatoacuterios e
45
Os doze volumes do ldquoProjeto Ardquo estatildeo disponiacuteveis no Arquivo do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio
de Janeiro (GTMNRJ)
159
sem dormir haacute dias desembarquei meio trocircpega Gritaram impropeacuterios e
ordenaram que eu fugisse Como estava muito tonta sem saber o que pensar
ou fazer natildeo fiz nada Atiraram entatildeo repetidas vezes em volta de mim
que permaneci encostada em uma aacutervore gritaram vaacuterias vezes para que eu
fugisse Caiacute no chatildeo o que os fez parar de atirar e se jogarem em cima de
mim agraves gargalhadas Colocaram-me de volta no carro e continuamos a
viagem rumo ao DOI-CODI-RJ (Batista out 2004)
Assim quando chegavam ao DOI-CODIRJ apoacutes passarem pelo portatildeo de
entrada da Praccedila Lamartine Babo (Foto Nordm3) os presos preenchiam uma ficha de
identificaccedilatildeo e eram levados para a ldquosala roxardquo no andar teacuterreo do preacutedio dessa
instituiccedilatildeo (Foto Nordm2) Laacute em meio a interrogatoacuterio as ameaccedilas e torturas se
intensificavam perpetradas pelos integrantes de uma das trecircs turmas de interrogatoacuterio
preliminar de plantatildeo no momento
Cabe lembrar que tais turmas eram constituiacutedas por militares treinados para
conseguir extrair rapidamente dos presos o maior nuacutemero possiacutevel de informaccedilotildees
principalmente sobre a data hora e local de seu proacuteximo ldquopontordquo de encontro Afinal
caso esses agentes natildeo conseguissem tais dados logo nos primeiros dias natildeo chegariam
ao local a tempo de pegarem o outro militante clandestino que o preso encontraria A
partir do momento em que a ausecircncia desse militante fosse notada integrantes de sua
organizaccedilatildeo poliacutetica deduziriam o motivo e por proteccedilatildeo modificariam os locais dos
ldquoaparelhosrdquo e dos proacuteximos ldquopontosrdquo As informaccedilotildees do preso receacutem-capturado se
tornariam entatildeo desatualizadas o que dificultaria a investigaccedilatildeo dos agentes do DOI-
CODIRJ
As torturas infringidas aos presos eram mais intensas logo depois da prisatildeo
Lutando contra o tempo era comum deixar o preso em celas ldquosolitaacuteriasrdquo localizadas no
andar teacuterreo conforme jaacute indicado Dessa forma os presos receacutem-chegados ficavam
bem proacuteximos agrave sala de interrogatoacuterio a ldquosala roxardquo justamente por serem para laacute
160
levados com frequecircncia Como nas ldquosolitaacuteriasrdquo os presos ficavam sozinhos e natildeo
podiam contar com itens baacutesicos de higiene e proteccedilatildeo do corpo (tais como banheiro
chuveiro colchatildeo e cobertor) acabavam se sentindo ainda mais desestruturados e por
conseguinte desestabilizados Logo no momento inicial da prisatildeo quando os presos
natildeo eram submetidos agraves torturas fiacutesicas eram submetidos agraves torturas psicoloacutegicas das
ldquosolitaacuteriasrdquo as chamadas torturas brancas46
espeacutecie de degradaccedilatildeo fria sem violecircncia
humana expliacutecita
Por outro lado os presos receacutem-capturados tinham consciecircncia de que era naquele
momento inicial que mais poderiam prejudicar seus companheiros de organizaccedilatildeo
Diante disso normalmente tentavam dificultar o acesso dos militares agraves informaccedilotildees
lutando para resistir agraves torturas Apesar de muitas vezes fracassarem tentavam segurar
os dados que tinham ao menos ateacute passar o horaacuterio do proacuteximo ldquopontordquo que haviam
combinado com outro militante Portanto avalia-se que provavelmente o grau de
resistecircncia inicial do prisioneiro estava diretamente relacionado ao da intensidade da
tortura a ele perpetrada e vice-versa conforme analisa-se nos trechos da entrevista de
Ana de Miranda Batista abaixo destacados
[] o meu negoacutecio era ganhar tempo e o deles era conseguir informaccedilatildeo A
luta eacute essa nos primeiros dias eacute vocecirc dar o miacutenimo de informaccedilotildees e eles
querendo arrancar o maacuteximo de informaccedilatildeo Aiacute eles vecircm com a maacutexima de
que torturar eacute investigar [risos] E daiacute se precisar ateacute a morte O negoacutecio eacute
conseguir informaccedilatildeo
46
Em 1971 quando os ex-prisioneiros aqui entrevistados jaacute natildeo estavam mais no 1ordm BPE o projeto
ldquoTortura Limpardquo foi ali instalado Segundo Elio Gaspari o andar teacuterreo do DOI-CODIRJ sofreu obras
para que fossem construiacutedos quatro novos cubiacuteculos um foi forrado com isopor e amianto a fim de fazer
o prisioneiro sentir frio constantemente outro se tornou uma cacircmara de ruiacutedos pela qual o preso ouviria o
barulho por todo o tempo em que laacute estivesse o terceiro foi todo pintado de branco provocando dor na
vista do preso devido agrave claridade constante na cela o uacuteltimo transformou-se em um ambiente todo preto
natildeo fornecendo a quem estivesse em seu interior nenhuma claridade causando choque na vista quando
exposto a claridade normal (Gaspari 2002 189-190)
161
[] quando eu cheguei agrave OBAN [que na eacutepoca de sua prisatildeo jaacute havia se
transformado em DOI-CODISP] jaacute era noite eles estavam tomando cerveja
comemorando que eu tinha caiacutedo E aiacute eu passei o ponto da Ana Maria do
Carlos Eugecircnio com o Bacuri Porque laacute era um inferno [] laacute eu passei um
monte de ponto e todos eles eram procurados Entatildeo aiacute eacute que a barra pegou
mesmo (Batista 17 nov 2004)
Os trechos acima mesmo sendo baseados em uma experiecircncia vivida no DOI-
CODISP trazem muitas informaccedilotildees sobre o cotidiano prisional vivido de forma
geral em todos os DOI-CODI Afinal conforme ressaltado anteriormente esses oacutergatildeos
estavam espalhados por todas as jurisdiccedilotildees territoriais do Brasil e seguiam
basicamente a mesma organizaccedilatildeo Portanto pode-se concluir aqui que em ambos os
DOI-CODI no momento inicial da prisatildeo existia essa relaccedilatildeo entre a intensidade das
sessotildees de tortura adotadas pelos militares e o tamanho da vontade de resistir do preso
Tal relaccedilatildeo se torna ainda mais perceptiacutevel pela frustraccedilatildeo sentida na fala de Ana
ao afirmar ter passado muitos ldquopontosrdquo inclusive o de ldquoBacurirdquo codinome de Eduardo
Collen Leite seu companheiro de organizaccedilatildeo Ana no momento da entrevista sabia
que ldquoBacurirdquo havia sido preso em agosto de 1970 alguns dias depois de sua prisatildeo e
que havia morrido sob tortura Quando admite ter entregado aos agentes do DOISP o
ponto de encontro Ana se culpa O depoimento eacute o momento em que Ana aproveita
para se justificar ao demonstrar que acredita no quanto a resistecircncia agrave tortura era
importante no iniacutecio da prisatildeo mas como ela se tornava limitada sendo rapidamente
derrotada Resistir ao DOI-CODI era muito difiacutecil jaacute que os agentes haviam sido
fortemente preparados para a ldquoguerra internardquo e natildeo por acaso se tornariam os grandes
responsaacuteveis pela desarticulaccedilatildeo das organizaccedilotildees de luta armada
O silecircncio dos demais entrevistados sobre as informaccedilotildees que concederam ou natildeo
aos agentes das turmas de interrogatoacuterio preliminar serve aqui como mais um
argumento para a tese de que apesar da grande resistecircncia inicial dos presos poliacuteticos e
162
tambeacutem por causa dela a violecircncia vivida no DOI-CODIRJ nos primeiros dias de
prisatildeo era intensa e quase sempre prevalecia Afinal caso natildeo fosse desse modo os
entrevistados provavelmente orgulhar-se-iam de sua resistecircncia e por conseguinte natildeo
lhes faltariam motivos para lembraacute-la e narraacute-la Logo o silecircncio aqui tambeacutem se torna
revelador
Atraveacutes desse silecircncio destaca-se ainda que talvez pelos mesmos motivos que
Ana opta por lembrar e justificar-se os demais entrevistados optam por silenciar e tentar
esquecer Todos apesar de agirem de acordo com suas personalidades e experiecircncias de
vida provavelmente se sentem culpados ou envergonhados por natildeo terem aguentado
esconder o que sabiam ateacute o fim e poupado muitos de seus companheiros da prisatildeo e ateacute
mesmo da morte
A segunda fase
Passada esta primeira fase da prisatildeo no DOI-CODIRJ que durava em meacutedia uma
ou duas semanas os presos eram transferidos para celas maiores Estas continham
banheiro colchatildeo e em grande parte das vezes outros prisioneiros
Nessa segunda etapa os presos natildeo ficavam isentos das idas agrave ldquosala roxardquo poreacutem
estas natildeo eram tatildeo frequentes quanto anteriormente Afinal a busca desesperada por
ldquopontosrdquo codinomes ou ldquoaparelhosrdquo natildeo mais cabia pois esses prisioneiros jaacute estavam
distantes de suas organizaccedilotildees haacute tempo suficiente para que suas prisotildees fossem
notadas e por conseguinte para que as informaccedilotildees que tivessem jaacute natildeo fossem mais
ldquoquentesrdquo
Nessa fase as visitas agrave ldquosala roxardquo davam-se por outros motivos Normalmente
para ajudar em anaacutelises de novas suspeitas Os agentes das turmas de interrogatoacuterio
preliminar poderiam levar um preso mais antigo para a ldquosala roxardquo para ser acareado
163
com um receacutem-chegado com quem suspeitavam estar de alguma forma relacionado
Poderiam tambeacutem levaacute-lo ateacute laacute para ser interrogado a respeito de novas e possiacuteveis
accedilotildees da esquerda armada conforme indicassem as informaccedilotildees recebidas pelo CODI
conjugadas agraves anaacutelises feitas pelo Setor de anaacutelise e informaccedilotildees sobre algum material
apreendido pela Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo Eacute o que pode-se concluir a partir da
caracterizaccedilatildeo sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI quando colocadas em diaacutelogo
com as informaccedilotildees trazidas pelos trechos destacados abaixo
ldquoNome codinome e aparelhordquo isso eacute que eles querem saber de imediato
Depois que passa algum tempo isso natildeo interessa mais Aiacute eles tecircm um
trabalho mais analiacutetico que era para saber de outros que acabaram de cair o
que eles tecircm de quecirc jaacute participaram o que estaacute acontecendo [] (Batista 17
nov 2004)
[] de quem era preso eles queriam duas informaccedilotildees imediatas eles
comeccedilavam a te bater e soacute pediam o ponto o local de encontro que vocecirc
tivesse com algueacutem e o aparelho que era o apartamento alugado ou qualquer
coisa assim Era isso o que eles queriam basicamente [] (Freire 28 jun
2004)
Como o DOI-CODIRJ tinha poucas celas e muita rotatividade quando o preso
natildeo mais interessava agraves investigaccedilotildees era normalmente mandado para o DOPS onde
era aberto o processo de crime poliacutetico e ficava detido ateacute o primeiro julgamento ndash
como ocorreu com Antocircnio de Carvalho Dulce Pandolfi e Ana de Miranda Batista
Poreacutem quando o seu caso tivesse relaccedilatildeo com uma das outras Forccedilas Armadas o preso
era transferido para a instituiccedilatildeo repressiva diretamente ligada a esta ndash como aconteceu
com Fernando ao ser levado do DOI-CODIRJ para o CISA oacutergatildeo de repressatildeo ligado agrave
Aeronaacuteutica ndash onde permaneceria ateacute quando seus agentes julgassem necessaacuterio Aleacutem
disso caso os agentes do DOI-CODIRJ constatassem que o prisioneiro natildeo estava
164
envolvido diretamente em nenhum crime poliacutetico ele poderia ser posto em liberdade
provisoacuteria ndash como ocorreu com Padre Maacuterio e Ceciacutelia Coimbra
Vale lembrar que o DOI-CODIRJ natildeo era um presiacutedio comum Laacute os suspeitos de
crimes poliacuteticos natildeo estavam cumprindo pena baseada em um processo e sim na
menagem estipulada pelo Coacutedigo Processual Militar criado pelo decreto-lei Nordm1002
de outubro de 1969 Por meio da menagem os suspeitos de crimes poliacuteticos ndash que a
partir do AI-5 tinham passado a ser julgados pela Justiccedila Militar ndash poderiam ser
arbitrariamente detidos e levados ao quartel responsaacutevel pela Regiatildeo Militar onde
estivessem A menagem era justificada como uma forma de prisatildeo cautelar que visava
evitar o conviacutevio do acusado com pessoas que jaacute estivessem condenadas ateacute o seu
julgamento em primeira instacircncia Dessa forma os suspeitos de crimes poliacuteticos da
Regiatildeo Militar que englobava o Rio de Janeiro ficavam detidos no DOI-CODIRJ
localizado no quartel do 1ordm BPE e ali permaneciam presos sem direito a formalidades
convencionais de uma prisatildeo tais como as visitas de familiares e de um advogado por
um periacuteodo que chegava ateacute 30 dias podendo ser prorrogado por mais 60 dias
Poreacutem como ressaltado anteriormente quando novos grupos de suspeitos laacute
chegavam a saiacuteda dos presos mais antigos era impulsionada mesmo sem ainda terem
sido julgados No entanto como esses presos ainda estavam sob a menagem e por isso
natildeo poderiam ir para um presiacutedio comum a assessoria juriacutedica e policial do DOIRJ ou
os transferia ou os colocava em liberdade provisoacuteria controlando nesse uacuteltimo caso
para que natildeo saiacutessem da respectiva Regiatildeo Militar ateacute o seu julgamento em primeira
instacircncia
[] fiquei trecircs meses laacute na PE na Poliacutecia do Exeacutercito na Rua Baratildeo de
Mesquita Depois fui levada para o DOPS [] laacute na PE a gente ficava nessa
triagem sendo torturado ou ouvindo grito de tortura e esperando laacute o tempo
ateacute eles resolverem a nossa situaccedilatildeo e sermos transferidos Entatildeo laacute era um
165
esquema de uma circulaccedilatildeo muito grande de pessoas Daiacute o quartel estava
sempre cheio porque de repente quando caiacutea alguma organizaccedilatildeo
apareciam laacute 30 ou 40 pessoas presas naquela noite e aquilo ficava
abarrotado de gente Entatildeo tinha momentos que a coisa ficava mais
tranquila e tinha momentos que aquilo ali ficava realmente lotado [] a PE
era isso a PE natildeo tinha uma rotina desses presiacutedios da linha tradicional laacute
ningueacutem recebia visita porque era a fase completamente ilegal da sua prisatildeo
[] (Pandolfi 5 fev 2003)
Outro aspecto interessante da menagem que interferia no cotidiano prisional do
DOI-CODIRJ satildeo as regras para o tempo de inquiriccedilatildeo estipuladas pelo decreto-lei nordm
100269 Este impunha que exceto em casos de urgecircncia os presos que estivessem sob
menagem deveriam prestar depoimentos durante o dia das sete e agraves 18 horas Aleacutem
disso esses prisioneiros natildeo poderiam ser inquiridos por mais de quatro horas
consecutivas tendo direito apoacutes esse periacuteodo a um intervalo de meia hora antes de
voltarem a ser interrogados
Art 19 As testemunhas e o indiciado exceto caso de urgecircncia inadiaacutevel que
constaraacute da respectiva assentada devem ser ouvidos durante o dia em
periacuteodo que medeie entre as sete e as dezoito horas
[]
Inquiriccedilatildeo Limite de tempo
2ordm A testemunha natildeo seraacute inquirida por mais de quatro horas consecutivas
sendo-lhe facultado o descanso de meia hora sempre que tiver de prestar
declaraccedilotildees aleacutem daquele termo O depoimento que natildeo ficar concluiacutedo agraves
dezoito horas seraacute encerrado para prosseguir no dia seguinte em hora
determinada pelo encarregado do inqueacuterito (Decreto-lei nordm 1002 21 out
1969)
A partir disso faz mais sentido ainda as diferentes distacircncias existentes entre as
celas e a sala de tortura nas duas fases da prisatildeo Como o prazo maacuteximo estipulado para
um interrogatoacuterio era de quatro horas tendo o prisioneiro apoacutes este tempo direito a um
166
descanso de ao menos meia hora no primeiro momento da prisatildeo no DOI-CODIRJ
deixar o preso perto do local onde eram feitos os interrogatoacuterios era um facilitador Essa
proximidade entre a cela e a ldquosala roxardquo natildeo era necessaacuteria para o preso que estivesse na
segunda etapa da prisatildeo jaacute que ele natildeo seria transportado de um lugar para o outro com
tamanha frequecircncia e provavelmente os interrogatoacuterios que lhe seriam destinados nem
chegassem agraves quatro horas permitidas pelo referido Decreto-lei
Nas narrativas de todos os entrevistados estatildeo presentes as experiecircncias vividas
nas duas fases da prisatildeo Todos eles passaram os primeiros dias em solitaacuterias e
posteriormente ficaram em celas maiores Padre Maacuterio foi a uacutenica exceccedilatildeo Sua prisatildeo
no DOI-CODIRJ natildeo passou por essas duas etapas encaixando-se portanto em um
dos casos extraordinaacuterios dessa instituiccedilatildeo Afinal desde o momento em que foi levado
para o preacutedio do DOI-CODIRJ Padre Maacuterio afirma ter dividido uma cela no segundo
andar com outros padres e depois ter sido transferido para uma cela do primeiro andar
onde ficou sozinho e de frente para as celas de jovens militantes de sua Associaccedilatildeo
conforme pode-se conferir no trecho abaixo
[] foi exatamente em setembro logo nas primeiras duas semanas em que
noacutes estaacutevamos presos que eles me passaram para o primeiro andar porque
estaacutevamos todos no segundo andar [] entatildeo nos primeiros dias noacutes
padres passamos todos juntos [] e depois fomos separados Entatildeo me
colocaram sozinho nessa cela do andar de baixo bem em frente agraves celas dos
jovens que estavam presos no CENIMAR e que foram levados para laacute para
serem torturados [] (Prigol 28 set 2004)
Essa diferenccedila no cotidiano prisional encontra coerecircncia quando embasada por
alguns argumentos aqui levantados Como a fase em que os presos ficavam nas
ldquosolitaacuteriasrdquo tinha por finalidade desestruturaacute-los e principalmente deixaacute-los mais
proacuteximos da sala de tortura para onde seriam levados com frequecircncia essa fase natildeo
167
deveria ser destinada a um padre sem envolvimento em uma organizaccedilatildeo de luta
armada Os militares teriam que responder agrave Igreja caso algo de mais grave lhe
acontecesse dentro do DOI-CODIRJ Colocar sua vida em risco deveria ser uma opccedilatildeo
somente se ele tivesse informaccedilotildees preciosas para a neutralizaccedilatildeo da guerrilha urbana
principal objetivo do grupo de repressatildeo em 1970 conforme indicado na monografia do
coronel Pereira analisada no primeiro capiacutetulo
Entatildeo como a associaccedilatildeo da qual participava a ACO natildeo tinha envolvimento
com a luta armada a morte de Padre Maacuterio poderia causar desnecessariamente uma
tensatildeo ateacute entatildeo natildeo deflagrada entre o Exeacutercito e a Igreja Catoacutelica 47
Aleacutem disso
como se encontrava em uma faixa etaacuteria mais elevada com cerca de 40 anos ele tinha o
agravante de ter uma sauacutede mais fraacutegil que grande parte dos presos do DOI-CODIRJ
que eram majoritariamente jovens estudantes Assim o tratamento prisional
diferenciado ali recebido por Padre Maacuterio visava diminuir as chances que ele tinha de
desenvolver problemas decorrentes de torturas Essa interpretaccedilatildeo encontra fortes
indiacutecios em um dos trechos de sua entrevista
[] a mim eles soacute colocaram o fio eleacutetrico aqui [aponta para um dedo da
matildeo esquerda] e no peacute esquerdo eu fiquei sabendo que no mesmo lado do
corpo eu natildeo sentiria tatildeo forte mas mesmo assim eu resisti resisti Bom
entatildeo diante da prisatildeo da gente eu sofri tambeacutem torturas mas eu depois
que fingi estar sentindo o coraccedilatildeo eles deixaram de dar choques [risos]
Cada um tem que se defender de alguma forma (Prigol 28 set 2004)
Afinal por meio da descriccedilatildeo acima destacada nota-se que apesar de natildeo
excluiacuterem Padre Maacuterio das sessotildees de tortura uma vez que era esse o procedimento de
investigaccedilatildeo do DOI-CODIRJ existia de fato certo temor em causar-lhe graves
47
Para informaccedilotildees sobre as tensotildees que ocorreram entre a Igreja Catoacutelica e a ditadura militar ver
Serbin 2001 17-77
168
sequelas Dessa forma por mais que Padre Maacuterio relate que sua atitude de defesa
conseguiu inibir a accedilatildeo daqueles agentes conclui-se aqui que caso ele natildeo tivesse as
caracteriacutesticas profissionais morais etaacuterias e ideoloacutegicas aqui descritas certamente tal
inibiccedilatildeo natildeo ocorreria Ao menos natildeo na mesma proporccedilatildeo
Testando a resistecircncia
No ano de 1970 esta preocupaccedilatildeo em evitar sequelas evidentemente natildeo se
aplicava a jovens presos que tivessem algum tipo de ligaccedilatildeo com organizaccedilotildees
oposicionistas adeptas da luta armada Conforme pode-se conferir nos relatos sobre os
danos agrave sauacutede que Dulce Fernando e Ana destacam ter sofrido por conta das torturas
recebidas no DOI-CODIRJ
[] fiquei tomando medicaccedilatildeo especial porque eu estava muito mal estava
com uma paralisia tambeacutem por causa da tortura tinha ficado completamente
travada aquilo vocecirc vai contraindo contraindo e deixava vocecirc semiparaliacutetica
[] (Pandolfi 5 fev 2003)
Eu desmaiava acordava e o pau comia desmaiava acordava e o pau
comia Natildeo foi faacutecil natildeo Eu lembro que quando eu saiacute da PE um mecircs
depois eu fazia assim [passa a matildeo no ouvido] e vinha sangue vinha pus eu
estava bem abalado mesmo (Freire 28 jun 2004)
[] eu fiquei um mecircs no Rio no DOI-CODI Desse mecircs uma semana eu
fiquei no HCE [Hospital Central do Exeacutercito] eu tremia sem parar eu estava
cheia de ferida (Batista 17 nov 2004)
Em todas as fases da prisatildeo para cuidar dos estragos causados agrave sauacutede do preso
durante ou apoacutes a sessatildeo de tortura existiam enfermeiros e meacutedicos no DOI-CODIRJ
Os enfermeiros tratavam os prisioneiros nas celas conforme a recomendaccedilatildeo dos
169
meacutedicos Jaacute esses aleacutem de examinarem e receitarem cuidados especiais aos presos
machucados tambeacutem auxiliavam as turmas de interrogatoacuterio preliminar durante as
torturas averiguando os sinais vitais dos presos a fim de constatarem o quanto eles
ainda poderiam suportar No entanto quando a tortura saiacutea de controle de tal forma que
algum preso ficasse tatildeo mal que natildeo respondesse agrave medicaccedilatildeo e aos cuidados meacutedicos
feitos dentro do quartel esse poderia ser levado pelas turmas de busca e apreensatildeo
conforme demonstrado no primeiro capiacutetulo ateacute o Hospital Central do Exeacutercito48
onde
receberiam um tratamento mais especializado
A existecircncia de meacutedicos no DOI-CODIRJ pode ser averiguada por meio da
confissatildeo de Amilcar Lobo noticiada pela Revista Eacutepoca apresentada abaixo
(EacutePOCA 27 nov 2000 104)
Meacutedico de formaccedilatildeo psicanaliacutetica ele foi denunciado por muitos ex-prisioneiros
por exercer a profissatildeo prestando assessoria a torturas entre 1970 e 1974 no DOI-
CODIRJ Diante disso em 1988 teve o seu registro de meacutedico cassado pelo Conselho
Regional de Medicina do Rio de Janeiro A atuaccedilatildeo de Amilcar Lobo assim como a de 48
O Hospital Central do Exeacutercio (HCE) ainda estaacute localizado no mesmo local da eacutepoca na Rua Francisco
Manoel nordm 126 no bairro de Benfica na cidade do Rio de Janeiro Para mais informaccedilotildees acessar
httpwwwhceebmilbr
170
meacutedicos e enfermeiros em geral tambeacutem eacute encontrada nos depoimentos aqui
analisados conforme pode-se conferir nos trechos destacados a seguir
[] a primeira pessoa que me visitou antes de eu ser torturada foi um
meacutedico o Amilcar Lobo que depois eu denunciei o lsquofilho da putarsquo e a gente
conseguiu cassaacute-lo como meacutedico [] ele acompanhava as torturas antes
durante e depois era o assessor de tortura ele dizia ldquo- Daacute uma paradinha
agorardquo Isso para vocecirc aguumlentar neacute Entatildeo ele entrou na minha cela e me
perguntou se eu era cardiacuteaca tirou a minha pressatildeo e eu natildeo entendendo
nada Ele tinha um esparadrapo aqui [aponta para o lado esquerdo do peito]
para a gente natildeo ver o nome dele Eu fiquei sabendo o nome dele porque
meses depois eu jaacute estava na cela de Dulce [Pandolfi]49
quando ele
porque a Dulce ficou praticamente sem mexer as matildeos [] e ele entrou e
esqueceu o receituaacuterio com o nome dele noacutes olhamos e eu quando saiacute de laacute
o denunciei Anos depois a gente conseguiu que ele fosse cassado []
(Coimbra 30 nov 2004)
[] o meacutedico que vinha te ver vinha para ver as suas condiccedilotildees se tinha que
parar ou se podia continuar a te torturar Os caras batiam muito localizado
em partes que vocecirc resiste mais que satildeo nas naacutedegas nessa parte daqui
[aponta para as costas] Entatildeo satildeo lugares que o seu corpo suporta mais []
(Freire 28 jun 2004)
[] como eu fiquei muito mal eu tive cuidados meacutedicos o tempo quase todo
quer dizer claro que eram cuidados meacutedicos no sentido de me prepararem
para apanhar mais para ser mais torturada queriam evitar que eu morresse
porque politicamente natildeo interessava [] tinha laacute dois enfermeiros de rotina
e tinham tambeacutem dois meacutedicos o mais presente o que sempre visitava a
gente era o Amilcar Lobo Em alguns casos ele participou de algumas
sessotildees de tortura no meu eu me lembro dele dizendo ldquo- ela aguentardquo
tomando minha pressatildeo dizendo que eu aguentava apanhar mais ainda
(Pandolfi 5 fev 2003)
49
Dulce e Ana e Dulce e Ceciacutelia dividiram celas em parte do periacuteodo em que estiveram presas no DOI-
CODIRJ A convivecircncia que laacute tiveram seraacute analisada ainda neste capiacutetulo
171
De fato a tortura estava presente em grande parte do cotidiano do DOI-CODIRJ
e para que fosse eficiente e natildeo causasse maiores problemas tal como mortes
indesejadas ao redor dela havia todo um aparato Esse era formado tanto por
enfermeiros e meacutedicos como tambeacutem por outras especificidades tais como teacutecnicas
treinamentos e equipamentos que seratildeo tratados a seguir
Os meacutetodos da tortura
O meacutedico psicanalista Heacutelio Pelegrino traz uma oacutetima definiccedilatildeo sobre como
funciona a tortura poliacutetica
[] a tortura busca agrave custa do sofrimento corporal insuportaacutevel introduzir
uma cunha que leve agrave cisatildeo entre o corpo e a mente E mais do que isto ela
procura a todo preccedilo semear a discoacuterdia e a guerra entre o corpo e a mente
Atraveacutes da tortura o corpo torna-se nosso inimigo e nos persegue Eacute este o
modelo baacutesico no qual se apoacuteia a accedilatildeo de qualquer torturador [] na tortura
o corpo volta-se contra noacutes exigindo que falemos Da mais iacutentima espessura
de nossa proacutepria carne se levanta uma voz que nos nega na medida em que
pretende arrancar de noacutes um discurso do qual temos horror jaacute que eacute a
negaccedilatildeo de nossa liberdade A tortura nos impotildee a alienaccedilatildeo total de nosso
proacuteprio corpo tornando estrangeiro a noacutes e nosso inimigo de morte
(Pelegrino 5 jun 1982 3)
No interior do DOI-CODIRJ em nenhuma das fases da prisatildeo os presos poliacuteticos
eram poupados de torturas No iniacutecio as visitas agrave ldquosala roxardquo eram mais constantes mas
durante todo o periacuteodo em que permaneciam no DOI-CODIRJ os prisioneiros eram
levados para laacute e laacute eram torturados Nessa sala existiam equipamentos proacuteprios
tornando ainda maior a gama de possibilidades de tortura a serem perpetradas aos
prisioneiros Devido a essa diversidade as torturas recebiam nomes proacuteprios para serem
identificadas pelos oficiais das turmas de interrogatoacuterio preliminar do DOIRJ Tais
172
nomes na maior parte das vezes eram irocircnicos e serviam para demonstrar como ali a
praacutetica da tortura era usual e ao mesmo tempo encarada com naturalidade e frieza
pelos seus executores
Em A Tortura tomo V do ldquoProjeto Ardquo (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985)
encontram-se a caracterizaccedilatildeo e os nomes dessas torturas Comumente citadas pelos
presos poliacuteticos da ditadura militar do Brasil a identificaccedilatildeo dessas torturas foi baseada
sobretudo na anaacutelise da documentaccedilatildeo dos processos judiciais da eacutepoca Afinal muitas
vezes anexadas a esses processos encontram-se denuacutencias sobre torturas feitas por
prisioneiros poliacuteticos nas auditorias militares Essas denuacutencias vatildeo ao encontro de
muitas das descriccedilotildees encontradas nas narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos Antocircnio
Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia construiacutedas jaacute em tempos democraacuteticos
(2002-2004) Algumas delas satildeo destacadas a seguir
Capuz tortura psicoloacutegica Impedimento da visatildeo por meio de um capuz
ficando o indiviacuteduo incapacitado de se defender dos golpes a ele direcionados
Espancamento tapas socos e pontapeacutes aplicados em regiotildees como rins
estocircmago e diafragma
Telefone eletrochoque dado por um telefone de campainha do Exeacutercito
possuindo dois fios longos que satildeo ligados ao corpo molhado normalmente nas
partes genitais e nos mamilos aleacutem dos ouvidos dentes liacutengua e dedos
Pau-de-arara um dos meacutetodos mais antigos de tortura pelo qual se pendura a
viacutetima em posiccedilatildeo de ldquofrango assadordquo nua e de cabeccedila para baixo em um pau
preso no alto por duas barras de ferro causando dores terriacuteveis na cabeccedila e em
todo corpo
Choques eleacutetricos normalmente complemento do pau-de-arara Caracteriza-se
por enviar descargas eleacutetricas em contato com o corpo nu e molhado atraveacutes de
173
um magneto com dois terminais estando um geralmente nos oacutergatildeos genitais e
outro em alguma extremidade sensiacutevel do corpo como liacutengua mamilos e dedos
Palmatoacuteria raquete de madeira aplicada fortemente nas matildeos peacutes naacutedegas e
costas da viacutetima
Afogamento Complemento do pau-de-arara Pode ser aplicado ou por meio de
um pequeno tubo de borracha que lanccedila aacutegua na boca e nas narinas do
torturado ou atraveacutes de uma toalha molhada depositada tambeacutem na boca deste
ao mesmo tempo em que um jato drsquoaacutegua eacute lanccedilado em suas narinas
No referido tomo V do Projeto Brasil Nunca Mais encontram-se trechos das
denuacutencias feitas por Dulce Pandolfi nas auditorias militares em 1970 e tambeacutem por seu
advogado Dr Heleno Fragoso Comparando partes dessas denuacutencias de 1970 com
trechos da entrevista concedida por Dulce em 2003 nota-se que haacute muitos pontos em
comum No entanto percebe-se que em sua narrativa de 2003 as torturas satildeo relatadas
de forma mais impessoal e que talvez pelo tempo que separa este depoimento daquele
de 1970 alguns detalhes se perderam foram esquecidos ou mesmo silenciados Eacute o que
pode-se perceber nas transcriccedilotildees feitas a seguir
Nordm 433 Dulce Chaves Pandolfi Prof estudante Idade 23 Local Rio de
Janeiro (CODI) Ano 1970 Apelaccedilatildeo 39778 Vol 1 PAacuteG 328v LVI
PARTE auto de qualificaccedilatildeo e interrogatoacuterio ndash Auditoria
[] que no quartel da PE na Rua Baratildeo de Mesquita assinou sob torturas o
depoimento () que na sala de torturas da PE foi despida e aplicaram-lhe
choques eleacutetricos nas matildeos que foi levada para uma cela onde deram-lhe
um banho frio e sob o pretexto de ensaboaacute-la os torturadores alisavam o seu
corpo que ao retornar agrave sala de torturas foi colocada no chatildeo com um
jacareacute sobre seu corpo nu que depois foi pendurada num pau-de-arara que
levou choques na vagina no acircnus nos seios na cabeccedila e no restante do
corpo [] que ficou em estado de choque vomitando sangue que por 15
174
dias ficou totalmente paraliacutetica [] que foi exposta perante 20 oficiais
como numa demonstraccedilatildeo de aulas de torturas pau-de-arara e choques []
(Arquidiocese de Satildeo Paulo tomo V 1985 757)
Nordm 433 Dulce Chaves Pandolfi Prof estudante Idade 21 Local R de
Janeiro Ano 1970 Apelaccedilatildeo 39778 Vol 2ordm PAacuteG 712807 LVI
PARTE advogado
[] Com a palavra o Dr Heleno Fragoso defensor da acusada Dulce Chaves
Pandolfi este declarou que ela foi presa em agosto de 1970 tendo sido
submetida a uma seacuterie de torturas tendo inclusive o Delegado do DOPS
mandado submetecirc-la a exame de corpo de delito para salvaguardar a sua
responsabilidade [] Natildeo usaremos a palavra do co-reacuteu Paulo Henrique
Oliveira da Rocha Lins que foi ldquoforccedilado a presenciar a acusada DULCE
PANDOLFI sendo pisoteada nua no chatildeordquo (cf fls 325) Remeteremos o E
Conselho ao laudo fls 358 onde dois meacutedicos legistas do Instituto Meacutedico
Legal examinam a acusada e concluem pela verossimilhanccedila a
plausibilidade de suas alegaccedilotildees no sentido de que fora espancada
constatando os vestiacutegios das lesotildees Estaacute laacute a fls 358 a verdade do
inqueacuterito
Esse sofrimento deve ter sido tanto maior quanto era possiacutevel agrave acusada
fornecer as informaccedilotildees que seus torturadores exigiam [] (Arquidiocese de
Satildeo Paulo tomo V 1985 759)
[] vocecirc apanhava era super torturada ali em 1970 natildeo tinha escapatoacuteria
esse era o procedimento era a rotina e aiacute depois da tortura vocecirc jaacute toda
cheia de hematomas passando mal vocecirc era levada para uma cela muitas
vezes essas pessoas saiacuteam da sala de tortura e iam direto para essa cela onde
eu estava entatildeo eu tambeacutem presenciei muitas pessoas que chegavam laacute
completamente quebradas arrebentadas e essa era a nossa vida []
[] tinha o pau-de-arara que eu fui pendurada vaacuterias vezes nele com os
ferros verdes e as cordas tinha o tal telefone de choque que era para mim
um dos piores instrumentos era um aparelho de choque eleacutetrico tinha a
cadeira que eles tambeacutem te amarravam faziam mil sacanagens e tinha uns
enfim tinha uma espeacutecie de chicote que eles te batiam um porrete A tortura
tem vaacuterios procedimentos e tinha na PE nessa eacutepoca um jacareacute Ele natildeo
ficava na sala de tortura Esse jacareacute ficava do lado de fora Quando algumas
pessoas foram presas eles trouxeram o jacareacute para amedrontar Colocavam o
175
jacareacute sobre o seu corpo Era um filhote de jacareacute mas razoavelmente
grande quer dizer de um metro mais ou menos e era mais um dos
instrumentos que eles usavam [] fiquei tomando medicaccedilatildeo especial
porque eu estava muito mal estava com uma paralisia tambeacutem por causa da
tortura tinha ficado completamente travada eacute aquilo vocecirc vai contraindo
contraindo e deixava vocecirc semiparaliacutetica [] (Pandolfi 5 fev 2003)
A partir da comparaccedilatildeo dos trechos dos diferentes depoimentos acima destacados
dados sobre cenaacuterios e temporalidades distintas nota-se que a narrativa construiacuteda por
Dulce Pandolfi em 2003 eacute muito menos detalhada do que a por ela proferida em 1970
Percebe-se portanto no caso de Dulce que o presente vivido em 2003 de certa forma
agia sobre sua memoacuteria do passado ditatorial impulsionando o silecircncio sobre as
minuacutecias dos sofrimentos vividos no DOI-CODIRJ Logo nas memoacuterias de Dulce
nota-se uma inversatildeo da perspectiva de que o presente democraacutetico promovia uma
narrativa que enfatizasse os detalhes das torturas sofridas durante a ditadura militar a
fim de solidificar as conquistas ateacute entatildeo conseguidas e alcanccedilar outras tantas no futuro
Talvez em 2003 Dulce por jaacute ser uma mulher madura e uma profissional
reconhecida entendesse que o constrangimento trazido pela exposiccedilatildeo total de suas
memoacuterias sobre as torturas sofridas no passado superasse a vontade de denunciaacute-las no
presente Afinal naquele ano a democracia dava fortes sinais de consolidaccedilatildeo uma vez
que Lula ex-liacuteder sindical e perseguido poliacutetico pela ditadura acabava de assumir a
Presidecircncia do Brasil e o Estado brasileiro jaacute vinha reconhecendo sua responsabilidade
diante dos abusos da eacutepoca militar atraveacutes da concessatildeo de reparaccedilotildees financeiras agraves
famiacutelias dos militantes poliacuteticos desde entatildeo desaparecidos (lei nordm 914095) e agraves
viacutetimas de torturas em prisotildees poliacuteticas do periacuteodo (lei nordm 1055902)
Jaacute em 1970 os detalhes sobre as torturas sofridas por Dulce ainda eram
extremamente recentes e portanto muito presentes em sua memoacuteria Aleacutem disso tinha
consciecircncia de que no instante de seu depoimento muitos de seus companheiros
176
continuavam a sofrer dentro dos oacutergatildeos de repressatildeo com as mesmas torturas que havia
recebido E principalmente como estava defendendo-se perante um tribunal a
exposiccedilatildeo dos detalhes de suas torturas apresentava-se como uma arma importante na
luta em prol de sua liberdade
Diante disso enquanto Dulce relata em sua entrevista saber do uso de um filhote
de jacareacute como mais um instrumento de tortura utilizado no DOI-CODIRJ sem no
entanto afirmar ter passado por tal experiecircncia Ceciacutelia Coimbra em 2004 narra que
esse filhote de jacareacute havia sido colocado pelos militares sobre seu corpo nu
[] me botaram nua me amarraram numa cadeira e me puseram um filhote
de jacareacute que era um filhote de jacareacute que eles puxavam por uma corda no
pescoccedilo do pobre do jacareacute Era um filhote e aiacute eles puxavam o jacareacute
botavam o jacareacute em cima Olha era uma coisa horriacutevel Nessa hora eu
desmaiei neacute Natildeo aguentei [] (Coimbra 30 nov 2004)
Durante sua entrevista em 2004 Ceciacutelia descreve ter passado pela mesma
situaccedilatildeo de tortura que Dulce havia descrito em seu depoimento agrave Justiccedila Militar em
1970 mas que no presente em 2003 optou por relatar de forma impessoal Isso se
justifica pelo fato de para Ceciacutelia a descriccedilatildeo dos detalhes ainda ser essencial Afinal
Ceciacutelia eacute uma das fundadoras e ativistas assiacuteduas do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio
de Janeiro (GTNMRJ) onde ocupava entatildeo o cargo de vice-presidente
Eacute evidente portanto que na vida de Ceciacutelia a narrativa sobre os sofrimentos
acarretados pela repressatildeo militar ainda era arma na luta que travava para a
solidificaccedilatildeo das conquistas e para a concretizaccedilatildeo de outras tantas que julgava serem
igualmente importantes Para ela diferentemente de Dulce esse tipo de narrativa era
mais que sua memoacuteria pessoal dizia respeito tambeacutem a seu ofiacutecio Acreditava que o seu
sucesso pessoalprofissional dependia do detalhamento da memoacuteria sobre tais violaccedilotildees
177
o que colocava tais detalhes em um lugar de mais faacutecil aceitaccedilatildeo e por conseguinte
exteriorizaccedilatildeo
Mediante os depoimentos de Dulce e Ceciacutelia que chegaram a dividir cela no DOI-
CODIRJ como poderaacute ser visto paacuteginas agrave frente conclui-se que em meados de 1970
um filhote de jacareacute era utilizado para torturar os presos poliacuteticos do 1ordm BPE O uso
desse tipo de tortura eacute aqui entendido mais por seus efeitos psicoloacutegicos do que fiacutesicos e
como sendo destinado mais agraves presas do que aos presos poliacuteticos Afinal apesar de
tocar nos corpos das viacutetimas como acontece durante as torturas fiacutesicas aparentemente
o jacareacute que era dominado por um militar atraveacutes de uma corda amarrada em seu
pescoccedilo natildeo as atacava ou seja natildeo as causava lesotildees externas Era claramente
utilizado com o intuito de ameaccedilaacute-las Dessa forma mesmo sendo efetuado atraveacutes da
accedilatildeo direta do torturador e mediante o contato fiacutesico esse mecanismo de tortura tinha
por objetivo causar danos exclusivamente psicoloacutegicos Como normalmente as
mulheres possuem mais sensibilidades e fobias relacionadas ao contato com animais
provavelmente esse tipo de tortura atingisse maior eficiecircncia quando destinado agraves
presas
Conforme jaacute analisado e inclusive indicado pelo nome Destacamento de
Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) os presos do DOIRJ estavam ali para fornecer
informaccedilotildees que levassem agrave neutralizaccedilatildeo das organizaccedilotildees poliacuteticas de esquerda
Assim de acordo com a necessidade da raacutepida extraccedilatildeo de tais dados caracterizada
anteriormente natildeo eacute difiacutecil concluir que o clima de ameaccedila e tortura estivesse por toda
parte do preacutedio Portanto percebe-se que as torturas no DOI-CODIRJ de 1970 natildeo se
limitavam agraves fiacutesicas e nem agrave ldquosala roxardquo elas se apresentavam sob diversas faces em
vaacuterios momentos e lugares do edifiacutecio
178
As torturas psicoloacutegicas eram variadas Aleacutem da degradaccedilatildeo inicial que o
desconforto das celas ldquosolitaacuteriasrdquo trazia ao prisioneiro mesmo nas celas coletivas os
presos eram submetidos a muitos outros artifiacutecios desse tipo de tortura tais como luzes
das celas constantemente acesas a fim de que perdessem a noccedilatildeo da passagem do
tempo carcereiros durante a noite abrindo repetidamente a janelinha do portatildeo das
celas para vigiaacute-los acordando-os jaacute que o movimento emitia um som alto visitas
recorrentes de militares agraves celas e gritos vindos da ldquosala roxardquo ouvidos a todo tempo
[] essa porta da nossa cela ela tinha uma abertura era uma porta fechada
natildeo era grade natildeo era uma porta pesada e ela tinha um quadrado em cima
com uma abertura para o lado de fora e esses soldados que faziam a ronda
eles abriam essa portinha de cinco em cinco minutos Entatildeo eles passavam e
ldquopahrdquo e dependendo da maldade desses caras eles batiam com mais forccedila
ou menos forccedila isso era a noite toda Inclusive a luz ficava acesa
permanentemente e essa batidinha desse negoacutecio era uma coisa insuportaacutevel
De vez em quando a gente estava pegando no sono e tomava aquele susto
com aquela batida [] a gente tambeacutem ouvia muito grito de tortura o tempo
todo (Pandolfi 5 fev 2003)
[] nem na hora de dormir apagavam a luz dia e noite era a luz acesa vocecirc
sabia o horaacuterio pela hora do cafeacute da manhatilde Mas ateacute se tinha alguma noccedilatildeo
porque como a janela laacute no alto da parede era de vidro dava para vocecirc
perceber que estava agrave noite [] (Carvalho 8 fev 2003)
[] eles faziam o tal do confere de manhatilde e de noite vinham com catildees
policiais farejando a gente e a gente tinha que ficar em peacute igual a soldado
dizendo - ldquoCeciacutelia Coimbrardquo Tinha que falar o nome [] era o tal do
confere E era uma coisa de humilhaccedilatildeo eles de madrugada abriam
estrondosamente as celas entendeu [] era como se noacutes fossemos animais
animais de circo Animais raros eacuteramos os lsquoterroristasrsquo neacute [] era o tempo
todo as torturas fiacutesicas e a coisa da rotina para te degradar enquanto ser
humano [] (Coimbra 30 nov 2004)
179
Outro tipo de tortura psicoloacutegica aplicada no DOI-CODIRJ de 1970 fora da ldquosala
roxardquo jaacute aqui mencionada era o capuz Os agentes das turmas auxiliares encarregados
da carceragem colocavam uma espeacutecie de capuz no prisioneiro quando o levavam da
cela ateacute a ldquosala de torturardquo No entanto no momento em que o preso chegava nessa sala
tinha o capuz retirado pelos agentes das turmas de interrogatoacuterio preliminar Logo no
DOI-CODIRJ de 1970 o capuz ainda natildeo era um mecanismo para esconder os rostos
dos torturadores e sim mais um artifiacutecio de intimidaccedilatildeo do prisioneiro Aliaacutes foi
exatamente por isso que muitos ex-prisioneiros conseguiram anos depois denunciar
militares que na eacutepoca teriam sido seus algozes 50
Ana Batista ressalta ainda ter sido submetida no DOI-CODIRJ a outro tipo de
tortura psicoloacutegica O meacutedico Amilcar Lobo teria solicitado a um agente da turma
auxiliar de plantatildeo que a carregasse ateacute uma sala do 1ordm BPE fora do preacutedio do DOI-
CODIRJ jaacute que estava com ferimentos que natildeo permitiam que andasse Laacute Ana foi
supostamente examinada pelo referido meacutedico e dele escutou o diagnoacutestico de que natildeo
poderia ter filhos pois tinha o uacutetero infantil e retrovertido ou seja atrofiado e virado
para a parte posterior do corpo No entanto apoacutes ser posta em liberdade quatro anos
depois Ana descobriu que aquela afirmaccedilatildeo natildeo era verdadeira pois poderia
engravidar tendo tido posteriormente dois filhos
Eu sei que tem o paacutetio porque uma vez me carregaram para laacute um soldado
foi e me carregou Eu natildeo estava andando eu estava toda ferida entatildeo ele
me carregou pelo paacutetio ateacute uma espeacutecie de consultoacuterio do Amilcar Lobo []
eu estava toda ferida na vagina devido aos choques eleacutetricos e porque
tinham me enfiado o cassetete [] Aiacute ele me examinou e disse assim ldquo-
Vocecirc tem o uacutetero infantil e retrovertido vocecirc nunca vai poder ter filhosrdquo
Assim Eu tinha 21 anos e passei quase quatro anos achando que eu nunca ia
poder ter filhos O cara sabia o que estava fazendo (Miranda 17 nov 2004)
50
Em Os Funcionaacuterios tomo II do Projeto Brasil Nunca Mais se encontra a relaccedilatildeo alfabeacutetica das
pessoas envolvidas com torturas (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985 1-60)
180
Esse tipo de tortura psicoloacutegica destacada no trecho acima coincide com o tipo de
cotidiano vivido pelos presos do DOI-CODIRJ No entanto encaixa-se tambeacutem com o
estilo enfaacutetico que a narrativa de Ana atribuiacutea em 2004 aos danos que a prisatildeo poliacutetica
lhe causara A recente composiccedilatildeo de seu memorial sobre os sofrimentos vividos
durante a ditadura militar enviado agrave Comissatildeo Especial da Secretaria de Direitos
Humanos do Estado do Rio de Janeiro pautava-se no objetivo de receber o valor
maacuteximo da reparaccedilatildeo financeira oferecida pelo Estado No momento da entrevista era
esse o presente que Ana vivia e era atraveacutes dele que inconscientemente lia o passado
Logo sua narrativa apesar de aparentemente coerente sofria influecircncias que as
aspiraccedilotildees e interpretaccedilotildees do presente involuntariamente impuseram a suas memoacuterias
Poreacutem o fato do meacutedico Amilcar Lobo ter lhe dado um diagnoacutestico falso de
esterilidade encontra explicaccedilatildeo natildeo soacute em sua narrativa construiacuteda a partir da
interpretaccedilatildeo de que a notiacutecia teria sido motivada apenas pelo grande dano psicoloacutegico
que isso causaria a uma jovem de 21 anos mas tambeacutem no papel que o meacutedico
desempenhava dentro daquela instituiccedilatildeo Afinal aleacutem de funcionar como uma tortura
psicoloacutegica o diagnoacutestico dado por Amilcar Lobo foi provavelmente uma forma de
tentar resguardar o DOI-CODIRJ de possiacuteveis acusaccedilotildees posteriores de tecirc-la tornado
infeacutertil tantos eram os ferimentos que Ana havia sofrido em seus oacutergatildeos reprodutores
Afinal conforme constatado a principal funccedilatildeo do meacutedico ali era auxiliar as torturas e
cuidar dos ferimentos dos presos na tentativa de proteger a instituiccedilatildeo de acusaccedilotildees que
poderiam trazer preocupaccedilotildees futuras por exemplo a responsabilidade por graves
ferimentos e mortes
Isso no entanto natildeo quer dizer que as torturas do DOI-CODIRJ natildeo tenham
ocasionado mortes Sabe-se que muitos prisioneiros poliacuteticos depois de laacute entrarem
foram dados como desparecidos Quando esses presos eram mortos dentro de
181
instituiccedilotildees como o DOI-CODIRJ os militares envolvidos ou desapareciam com os
corpos pois assim natildeo se tinha como provar o que havia acontecido e por conseguinte
natildeo existiriam culpados ou quando a prisatildeo tivesse sido noticiada por algum meio de
comunicaccedilatildeo o corpo aparecia sob uma justificativa forjada que excluiacutesse a culpa da
instituiccedilatildeo prisional Na maior parte das vezes dizia-se que o prisioneiro havia
cometido suiciacutedio na prisatildeo ou sido baleado em tiroteio o que se supunha estar
relacionado a uma anterior tentativa sua de fuga
Nas entrevistas aqui trabalhadas alguns depoentes relataram ter tido contato
dentro do DOI-CODIRJ com pessoas que depois foram dadas como mortas sob tais
justificativas Dulce por exemplo afirma ter sido acareada durante uma sessatildeo de
tortura com Eduardo Collen Leite o Bacuri morto segundo a Comissatildeo Especial sobre
Mortos e Desaparecidos (2007 139) no Forte dos Andradas na cidade do Guarujaacute
(SP) trecircs dias apoacutes militares implantarem na imprensa a falsa notiacutecia de sua fuga
atribuindo sua morte a um suposto tiroteio na rua entre ele e militares
Quando eu estava laacute eu fui acareada com o Bacuri Eu jaacute encontrei com ele
assim muito mal ele estava respirando mal foi uma cena assim muito barra
pesada e eu sei que depois ele morreu eu natildeo sei se ele morreu laacute mas logo
depois que eu estive com ele ele morreu Ele eacute um desses mortos do
processo Ele morreu fruto de tortura ele foi brutalmente torturado ele jaacute
chegou na PE muito torturado muito quebrado e teve comentaacuterios de
torturadores que diziam ter feito um estrago muito grande nele e natildeo tinham
conseguido que ele falasse as coisas que eles queriam que ele falasse
(Pandolfi 5 fev 2003)
Fernando teve seu irmatildeo Eiraldo de Palha Freire baleado e junto com ele preso
pelos militares da Aeronaacuteutica no aeroporto do Galeatildeo no Rio de Janeiro Mesmo
gravemente ferido Eiraldo foi segundo Fernando e a Comissatildeo Especial sobre Mortos
e Desaparecidos (2007 131) transferido para o DOI-CODIRJ e laacute morto sob torturas
182
Poreacutem de acordo com Fernando seu corpo foi entregue agrave famiacutelia sob a versatildeo de
suiciacutedio
Meu irmatildeo veja bem ele foi metralhado no aviatildeo mas ele estava vivo e
ainda foi parar no DOI-CODI Ele estava ferido mas chegou a levar tortura
natildeo resistiu e morreu aiacute disseram que ele se suicidou (Freire 28 jun 2004)
Hoje no entanto grande parte dos mortos e desaparecidos foi reconhecida pelo
Estado brasileiro A Comissatildeo Especial sobre Mortos e Desaparecidos Poliacuteticos
implantada pela lei 914095 encerrou em 2006 a etapa de reconhecimento e reparaccedilatildeo
financeira agraves famiacutelias reconhecendo um total de 253 mortos e desaparecidos poliacuteticos
por autoridades do Estado brasileiro entre os anos de 1961 e 1988 A partir de 2007
essa Comissatildeo passou a concentrar-se na busca e no reconhecimento de ossadas para
que muitas famiacutelias descubram o que de fato aconteceu com seus entes desaparecidos e
possa enterraacute-los conforme indicado pelo seu livro-relatoacuterio Direito agrave verdade e agrave
memoacuteria (2007)
A partir da anaacutelise aqui feita a respeito das torturas a que os presos eram
submetidos no DOI-CODIRJ em 1970 nota-se que essas eram destinadas a todos que
laacute entravam No entanto percebe-se que a intensidade das torturas no DOI-CODIRJ de
1970 variava de acordo principalmente com o tempo de prisatildeo com o tipo de
organizaccedilatildeo que o preso integrasse (se era ou natildeo adepta da luta armada) e com a
resistecircncia que ele apresentasse para conceder as informaccedilotildees que os agentes das turmas
de interrogatoacuterio preliminar buscavam
Logo constata-se que quanto mais ativa fosse a organizaccedilatildeo de luta armada a que
o prisioneiro estivesse relacionado mais ele seria submetido a torturas e quanto mais
ele resistisse a essas mais intensas elas seriam podendo inclusive acarretar sua morte
183
Afinal os prisioneiros ligados a organizaccedilotildees armadas em ampla atividade tinham mais
informaccedilotildees sobre outros militantes procurados
Diante disso como a ALN e o MR-8 eram organizaccedilotildees envolvidas em grandes
accedilotildees armadas da eacutepoca ndash tais como os sequestros dos embaixadores americano e
alematildeo e do aviatildeo da Companhia Aeacuterea Cruzeiro do Sul ocorridos em 4 de setembro de
1969 11 de junho de 1970 e 1ordm de julho de 1970 respectivamente ndash os prisioneiros que
delas faziam parte ou tinham algum tipo de relaccedilatildeo com seus militantes foram
submetidos a intensas torturas no DOI-CODIRJ Como os perfis de Dulce Fernando
Ana e Ceciacutelia se encaixavam nessas caracteriacutesticas conforme analisado no segundo
capiacutetulo a eles foi imposto no DOI-CODIRJ um cotidiano ainda mais violento do que
por exemplo a Antocircnio
Afinal em meados de 1970 quando Antocircnio de Carvalho51
foi preso e levado
para o DOI-CODIRJ o PCBR sua organizaccedilatildeo na eacutepoca apesar de adepta da luta
armada jaacute se encontrava relativamente desestruturada uma vez que suas principais
lideranccedilas jaacute haviam ldquocaiacutedordquo Dessa forma o PCBR mesmo ainda em atividade natildeo
estava envolvido em accedilotildees tatildeo organizadas e com tamanha repercussatildeo como estavam a
ALN e o MR-8 por exemplo Entatildeo Antocircnio apesar de passar pelas duas fases da
prisatildeo e natildeo ser poupado de duras torturas como ocorreu com Padre Maacuterio
provavelmente natildeo sofreu o mesmo grau de violecircncia destinado a Dulce Fernando Ana
e Ceciacutelia As informaccedilotildees que ele tinha natildeo levariam o DOI-CODIRJ aos envolvidos
com as accedilotildees armadas em destaque na eacutepoca
51
Para mais informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria poliacutetica que acarretou a prisatildeo de Antocircnio Leite de Carvalho
voltar ao segundo capiacutetulo
184
32 O dia-a-dia no caacutercere
O dia-a-dia vivido pelos prisioneiros poliacuteticos no DOI-CODIRJ natildeo era o mesmo
que o vivido em um presiacutedio comum A ameaccedila de tortura o medo dela decorrente e o
sentimento de abandono que ela causava estavam presentes a todo momento Assim
natildeo poderia ser diferente que na memoacuteria construiacuteda pelos ex-prisioneiros poliacuteticos do
DOI-CODIRJ de 1970 a tortura ocupe a maior parte das narrativas sobre o cotidiano
ali vivido
No entanto a memoacuteria dos prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ de 1970
entrevistados entre os anos de 2002 e 2004 abarca tambeacutem outros aspectos daquele dia-
a-dia A partir de seus relatos aleacutem de se tornar viaacutevel a anaacutelise sobre as refeiccedilotildees os
banhos e os passatempos durante a prisatildeo no DOI-CODIRJ se torna possiacutevel tambeacutem
perceber como a convivecircncia a cumplicidade entre os presos e ateacute algumas
demonstraccedilotildees de solidariedade dos carcereiros foram elementos importantes para que
resistissem ao violento cotidiano ali vivido
Na primeira fase da prisatildeo os presos ficavam sozinhos em pequenas celas onde
natildeo havia colchatildeo banheiro e eram constantemente levados agrave sala de tortura Este
cotidiano inicial era muito degradante fiacutesica e mentalmente natildeo soacute pelo sofrimento
acarretado pelo grande nuacutemero de torturas sofridas e pelo desconforto das celas mas
tambeacutem pela solidatildeo nelas vivenciada Afinal natildeo foi por acaso que tais celas ficaram
conhecidas como ldquosolitaacuteriasrdquo
A solidatildeo era uma caracteriacutestica que contribuiacutea fortemente para a fragilidade do
prisioneiro do DOI-CODIRJ Isto torna-se mais evidente quando percebe-se a grande
importacircncia que um raacutepido contato com outro preso representava durante a primeira
fase da prisatildeo Eacute o que pode-se apurar no seguinte trecho narrado por Fernando
185
[] uma hora eu estava encostado aqui [aponta para onde ficava uma das
ldquosolitaacuteriasrdquo no desenho que fez em um papel] no primeiro dia aiacute botaram um
cara no corredor [] era um dirigente do Partido Comunista um velho da
minha idade atualmente Ele tremia muito [] Aiacute ele disse - ldquoEstaacute frio neacute
companheirordquo aiacute eu - ldquoMuitordquo e ele disse - ldquoMas eacute mais psicoloacutegicordquo Aiacute
eu senti uma vergonha sabe Porque eu estava me sentindo tatildeo mal tatildeo para
baixo e um homem daquela idade estava firme[] Ele me deu uma forccedila
muito maior do que ele imagina [] (Freire 28 jun 2004)
Evidencia-se atraveacutes dessa narrativa como em meio ao sofrimento e agrave solidatildeo que
Fernando lembra ter vivenciado no primeiro dia de sua prisatildeo no DOI-CODIRJ um
simples diaacutelogo foi capaz de revitalizar a sua resistecircncia Esse pequeno contato foi tatildeo
importante para Fernando a ponto de ficar marcado em sua memoacuteria ateacute o momento de
sua entrevista mais de trinta anos depois
A partir disso nota-se que aquele cotidiano criava independente das pequenas
diferenccedilas ideoloacutegicas que poderiam existir uma forte identidade entre os presos As
dores decorrentes das torturas e a sensaccedilatildeo de solidatildeo que sentiam no DOI-CODIRJ
faziam com que presos que nunca tivessem se visto antes criassem rapidamente uma
forte cumplicidade e amizade Assim nos momentos em que estavam juntos
principalmente durante a segunda fase da prisatildeo eles conversavam apoiavam-se e
cuidavam uns aos outros extraindo desse conviacutevio forccedila para encararem os proacuteximos
dias de prisatildeo
Essa experiecircncia coletiva dentro do DOI-CODIRJ era valiosa ateacute porque nem
mesmo quando os presos jaacute estavam na segunda fase da prisatildeo ela era garantida Afinal
apesar do prisioneiro poliacutetico do DOI-CODIRJ durante a segunda fase ficar em celas
com estrutura para mais de um preso ele nem sempre tinha companhia Conforme jaacute
analisado anteriormente no DOI-CODIRJ existia uma grande rotatividade e isso
186
implicava em que em determinados momentos as celas coletivas estivessem cheias e
em outros habitadas por dois ou ateacute mesmo um uacutenico prisioneiro
Logo por ser a primeira fase um periacuteodo de isolamento e a segunda devido agrave alta
rotatividade do DOI-CODIRJ uma fase em que ora se estava sozinho e ora tinha-se
companheiro(s) de cela a convivecircncia era entatildeo muito valorizada pelos presos como se
pode perceber na ecircnfase que ela recebe nas memoacuterias dos entrevistados
[] quando estaacutevamos juntas era bem melhor porque existia uma identidade
muito forte entre a gente Eram pessoas que nunca tinham se conhecido de
um modo geral mas aquele oacutedio contra a ditadura o fato de todas terem sido
torturadas aquilo dava margem a uma liga muito grande entre a gente
Entatildeo quando noacutes estaacutevamos juntas a gente cantava a gente conversava a
gente contava histoacuterias de vida o tempo passava e a gente tinha uma
intimidade Conseguimos construir uma coisa muito soacutelida mesmo com
poucas horas e poucos dias mesmo nesse esquema que eu estou te falando
quer dizer as pessoas natildeo ficavam laacute fixas Teve uma vez que uma moccedila
ficou laacute trecircs dias outra que ficou quatro outra que ficou cinco Mas era
uma coisa muito boa chegar algueacutem mesmo vocecirc vendo a pessoa chegar
toda esbagaccedilada porque os que entravam naquela cela jaacute tinham passado laacute
embaixo [] (Pandolfi 5 fev 2003)
[] a cela coletiva na verdade acabava se constituindo num foacuterum de
debates Sempre discutiacuteamos poliacutetica porque eram companheiros de
diversas organizaccedilotildees natildeo era uma uacutenica organizaccedilatildeo ou um uacutenico partido
que estava ali preso mas sim vaacuterios e havia aquela troca de experiecircncias
cada um contava a sua histoacuteria e assim ia passando o dia-a-dia sempre
havia novidades Assim a gente acabava quebrando um pouco o isolamento
[] (Carvalho 8 fev 2003)
Essa convivecircncia no caacutercere fomentou portanto a solidariedade e instituiu um
forte sentimento de coletividade entre os presos Afinal a luta pela sobrevivecircncia e o
pavor de voltar a ser torturado eram comuns a todos eles que procuravam na uniatildeo criar
forccedilas para suportar aquele pesado cotidiano A troca de apoio servia entatildeo como uma
187
espeacutecie de sustentaccedilatildeo como uma garantia de sobrevida Ao preocuparem-se e
ajudarem-se os presos injetavam-se um acircnimo importante para conseguirem resistir agrave
situaccedilatildeo de desespero e solidatildeo que ali era vivida e diante dessa realidade acabavam
formando um grupo coeso cuja principal caracteriacutestica era justamente esse apoio
Constituiacuteam portanto uma identidade conjunta atraveacutes da qual se viam sob os mesmos
temores e anseios aleacutem de perceberem essa parceria como uma extensatildeo da resistecircncia
agrave ditadura que vinham praticando desde antes de serem presos
Ana Dulce e Ceciacutelia memoacuterias relacionadas
Ana e Dulce e depois Dulce e Ceciacutelia foram companheiras de cela durante parte
da segunda fase de suas prisotildees no DOI-CODIRJ de 1970 Suas narrativas sobre a
convivecircncia que laacute tiveram servem aqui para analisar tanto as relaccedilotildees entre suas
memoacuterias quanto alguns aspectos do cotidiano dessa instituiccedilatildeo
Conforme analisado no segundo capiacutetulo Ana chegou ao DOI-CODIRJ no final
de julho de 1970 Logo depois em 14 de agosto do mesmo ano Dulce foi presa e para
laacute tambeacutem levada Como Ana afirma ter permanecido no DOI-CODIRJ por cerca de
um mecircs constata-se que no final de agosto quando ela jaacute estava em vias de ser
transferida colocaram Dulce em sua cela no segundo andar Dulce acabava de vir da
primeira fase de sua prisatildeo que por ter lhe causado graves consequecircncias fiacutesicas tinha
sido mais curta Nesse momento de extrema fragilidade em que Dulce se encontrava jaacute
que vinha de intensas sessotildees de tortura e de uma das ldquosolitaacuteriasrdquo do andar de baixo
Ana ajudou-a a cuidar de seus ferimentos e a tomar banho
Esse contato que teve com Ana apesar de curto jaacute que dias depois Ana foi
transferida para o DOI-CODISP parece ter sido muito importante para Dulce Afinal
apesar dela ter convivido com outras presas durante os quase trecircs meses em que ficou
188
no DOI-CODIRJ Ana foi a uacutenica companheira de cela que Dulce citou pelo nome
durante a entrevista
[] logo que eu cheguei fui para a solitaacuteria era torturada e ia para a solitaacuteria
era torturada e ia para a solitaacuteria quando eu comecei a passar muito mal
depois de um dia dois dias eles me levaram para outra cela maior onde
estava Ana Bursztyn que me deu banho Logo depois ela saiu da cela e eu
fiquei sozinha [] (Pandolfi 5 fev 2003)
A justificativa para a presenccedila de Ana ter ficado marcada na memoacuteria de Dulce
possivelmente eacute o fato de naquele momento aleacutem de estar extremamente machucada
Dulce natildeo ter ainda dividido cela com mais ningueacutem Estava ateacute entatildeo imersa em uma
rotina de solidatildeo e tortura que caracterizava a primeira fase da prisatildeo no DOI-
CODIRJ A ajuda e o conviacutevio com Ana portanto representaram para Dulce um
primeiro contato com algueacutem em quem podia confiar talvez uma primeira surpresa boa
no cotidiano que vinha vivendo no DOI-CODIRJ Jaacute para Ana que estava haacute mais
tempo presa Dulce provavelmente natildeo tinha sido a uacutenica a contar com sua ajuda logo
natildeo se destacava entre suas memoacuterias sobre o cotidiano ali vivido
Comparando as datas das prisotildees de Ana Dulce e Ceciacutelia percebe-se que apoacutes
Ana ter sido transferida Dulce ficou nessa cela grande chamada de ldquocoletivo das
mulheresrdquo enquanto Ceciacutelia entrava no DOI-CODIRJ Ceciacutelia passou pela fase das
ldquosolitaacuteriasrdquo e depois foi levada ateacute uma cela tambeacutem no segundo andar ao lado da de
Dulce onde esteve em companhia de uma moccedila Um tempo depois foi transferida para
o ldquocoletivo das mulheresrdquo onde estava Dulce com quem conviveu grande parte do
tempo
[] fiquei nessa cela [apontando para o desenho que havia feito mostra a
cela do segundo andar que ficava ao lado do ldquocoletivo das mulheresrdquo]
189
depois fui transferida para uma cela maior onde tinha vaacuterias presas poliacuteticas
inclusive uma pessoa que ficou grande parte do tempo comigo a Dulce
Grande parte do tempo eu fiquei com ela nessa cela era o lsquocoletivo das
mulheresrsquo [] (Coimbra 30 nov 2004)
Apesar de natildeo ser destacada entre as memoacuterias de Dulce Ceciacutelia durante sua
narrativa parece atribuir um papel importante ao conviacutevio que elas tiveram Afinal o
tempo que passou com Dulce no DOI-CODIRJ trouxe-lhe um dado a mais sobre as
aulas de tortura a novos oficiais que ali estavam ocorrendo jaacute que enquanto dividia cela
com Ceciacutelia Dulce serviu de cobaia para tais ensinamentos Assim como Ceciacutelia era
vice-presidente do GTNMRJ no momento de sua entrevista e por conseguinte tinha
como caracteriacutestica enfatizar em sua narrativa os detalhes sobre as torturas cometidas
pelos agentes do DOI-CODIRJ a fim de denunciaacute-las se justifica que Dulce tenha
papel marcante entre suas memoacuterias Esse destaque que a convivecircncia com Dulce
assumiu para Ceciacutelia pode ser conferido no trecho abaixo
[] a Dulce foi chamada para uma tortura de tarde [] a gente comeccedilou a
ouvir os gritos de Dulce e jaacute tinha passado todo o periacuteodo porque eles
torturam logo no iniacutecio para pegar informaccedilatildeo Aiacute eu digo ldquo- Soacute se
algueacutem caiu algueacutem foi preso e Dulce estaacute sendo acareadardquo Daqui a pouco
a Dulce volta para a cela com um soldado toda ferrada e aiacute ela ainda ia
voltar O cara disse ldquo- Oh eacute soacute para ela se lavarrdquo Entatildeo eu entrei no
chuveiro com ela e eu dizia ldquo- Dulce o que estaacute havendordquo E ela ldquo- Eu natildeo
estou entendendo o que estaacute acontecendo tem um bando de homem a minha
volta ningueacutem me faz pergunta nenhuma e estatildeo me torturando estatildeo me
botando no pau-de-arara estatildeo me fazendo afogamento estatildeo me dando
choque eleacutetrico eu natildeo estou entendendordquo E eu falei ldquo- Dulce isso eacute aula
para novos torturadoresrdquo Porque eu jaacute tinha lido num dos panfletos da UNE
sobre os meacutetodos de tortura que estavam sendo utilizados no DOI-CODI
aleacutem do jacareacute que a gente viu e que citavam tinha tambeacutem a aula a novos
torturadores ou seja eles pegavam um preso que tinha tido maior resistecircncia
e botavam laacute como cobaia para ensinar aos novos torturadores todas as
190
teacutecnicas E foi isso que fizeram com Dulce Aiacute eu falei ldquo- Dulce isso eacute aula
para novos torturadores eu li essa porrardquo [] (Coimbra 30 nov 2004)
A partir disso fica claro que para Ceciacutelia a constataccedilatildeo da existecircncia de aulas de
torturas no DOI-CODIRJ utilizando presos poliacuteticos teve uma destacada importacircncia
Logo o seu conviacutevio com Dulce durante o periacuteodo em que ela foi viacutetima desses
ensinamentos tambeacutem teve
Aleacutem disso Ceciacutelia durante sua entrevista perguntou quem eu jaacute havia
entrevistado Assim ao saber sobre a entrevista de Dulce sentiu-se motivada a falar
sobre as experiecircncias que com ela tinha compartilhado durante a prisatildeo no DOI-
CODIRJ Dessa forma alguns outros detalhes sobre essa convivecircncia contidos na
memoacuteria de Ceciacutelia foram naquele momento reconstruiacutedos e narrados
Um deles em especial contribui para a anaacutelise sobre o cotidiano do DOI-
CODIRJ Diz respeito agrave relaccedilatildeo travada com alguns carcereiros ou seja soldados do 1ordm
BPE que integravam as turmas auxiliares Afinal a partir do relato de Ceciacutelia Coimbra
percebe-se que ela e Dulce puderam ir ateacute as celas onde estavam os seus companheiros
que na eacutepoca tambeacutem se encontravam aprisionados no DOI-CODIRJ graccedilas agrave ajuda
de um dos responsaacuteveis pela vigia daquela noite
Teve uma noite tinha um soldadinho que a gente natildeo lembra o nome a
gente soacute se lembra dos lsquofilhos da putarsquo a gente devia lembrar dos caras que
foram legais com a gente Esse cara por exemplo ele soube que o marido de
Dulce estava preso o Alexandre e que o Novaes meu marido estava preso
Aiacute como ele ia ficar a noite toda de guarda ele mandou os soldadinhos
descerem e permitiu que Dulce fosse agrave cela de Alexandre e eu agrave de Novaes
Esse cara natildeo saiu da minha cabeccedila [] Esse cara a gente conversando com
ele ele soube que o Novaes estava na cela do lado e que o Alexandre estava
numa outra cela ali perto e ele deixou Dulce foi para a cela de Alexandre e
eu para a de Novaes Assim rapidinho neacute Demos a matildeo um beijo assim
[beija a proacutepria matildeo para demonstrar] O cara se expocircs mesmo neacute E tinha
191
outros que entregavam neacute Entregavam os bilhetes Era um vendaval de
bilhetes durante a madrugada Os caras se expunham mesmo entendeu
Tinha coisas bonitas ali apesar daquele clima de terror tinha pessoas assim
solidaacuterias E esses nomes a gente natildeo lembra neacute Devia lembrar []
(Coimbra 30 nov 2004)
Conforme analisado no primeiro capiacutetulo tais carcereiros que integravam as
turmas auxiliares do DOI-CODIRJ natildeo eram oficiais de informaccedilotildees treinados
especialmente para trabalhar junto agrave repressatildeo poliacutetica eram soldados que em 1970
serviam ao quartel do 1ordm BPE52
Logo eram passiacuteveis de sentir solidariedade jaacute que
muitos deles natildeo estavam servindo ao DOI-CODIRJ por algum tipo de vocaccedilatildeo
estavam ali somente para cumprir com o serviccedilo militar do quartel Afinal apesar de
haver entre eles alguns que se identificassem com a funccedilatildeo e ateacute almejassem tornar-se
agentes de informaccedilotildees os integrantes dessas turmas auxiliares natildeo trabalhavam nos
interrogatoacuterios dos presos e consequentemente natildeo estavam diretamente relacionados
com as torturas Portanto pode-se dizer que no DOI-COIRJ existia compaixatildeo entre
soldados e prisioneiros
A partir disso evidencia-se como o indiviacuteduo tem um papel primordial para essa
anaacutelise Afinal ao considerar sua memoacuteria como fonte para a histoacuteria torna-se possiacutevel
perceber aqui algumas de suas idiossincrasias ou seja peculiaridades comportamentais
capazes de interferir na percepccedilatildeo sobre o cotidiano vivido no DOI-CODIRJ de 1970
Afinal a ajuda que o soldado deu a Dulce e Ceciacutelia eacute um exemplo tiacutepico de como as
peculiaridades individuais satildeo capazes de atribuir contrastes e inconstacircncias agrave
interpretaccedilatildeo de uma realidade do passado Desse modo entende-se perfeitamente o
porquecirc de Marshall Sahlins afirmar em Histoacuteria e Cultura (2006) que os indiviacuteduos
52
Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar ver o Anexo II
192
representam um feixe uacutenico resultado de uma ligaccedilatildeo peculiar entre infinitos traccedilos
culturais e sociais que natildeo conseguem ser captados por anaacutelises generalizantes
Uma vez que a partir de accedilotildees como a desse soldado pode-se afirmar que o
cotidiano prisional do DOI-COIRJ de 1970 natildeo era formado unicamente pela repressatildeo
e pela violecircncia dos militares que ali representavam o Estado como uma generalizaccedilatildeo
ou uma reduccedilatildeo de varaacuteveis poderia fazer crer Havia tambeacutem compaixatildeo ateacute mesmo
entre lados aparentemente opostos
As formas de lidar com o tempo
Para sobreviver ao cotidiano do DOI-CODIRJ natildeo bastava ser resistente
fisicamente tambeacutem era necessaacuterio manter a mente em equiliacutebrio Essa preocupaccedilatildeo
acompanhava o prisioneiro em todas as fases da prisatildeo mas principalmente quando ele
estava sozinho Afinal a solidatildeo trazia a sensaccedilatildeo de que o tempo natildeo passava e em
meio ao violento cotidiano a que era submetido o preso do DOI-CODIRJ percebia
mais facilmente sinais que lhe causavam medo e desespero
Ceciacutelia Coimbra e Dulce Pandolfi ressaltam que mesmo quando estavam em
celas coletivas com a companhia de outras presas percebiam muitos desses sinais
Ficavam em pacircnico pois na maior parte das vezes significavam que seriam levadas
novamente agrave ldquosala roxardquo Quando sozinhas a sensaccedilatildeo de pavor por natildeo ser
compartilhada provavelmente era ainda mais intensa
[] a gente ficou tatildeo traumatizada com o barulho de chave que quando a
gente ouvia a gente dizia ldquo- Eles vecircm para caacute vecircm pegar alguma de noacutesrdquo
Era uma loucura era um clima de terror [] (Coimbra 30 nov 2004)
[] toda vez que um soldado abria a cela trazia o capuz Era ateacute uma cena
muito dramaacutetica porque todo mundo comeccedilava a tremer de medo porque se
193
sabia que se o capuz estava ali era porque algueacutem ia descer algueacutem ia
circular e descer normalmente significava ser torturada Entatildeo era assim
uma coisa bem dramaacutetica bem traumaacutetica tambeacutem porque quando abriam a
cela e retiravam o capuz a gente pensava ldquo- pronto algueacutem vai agora pro
caceterdquo (Pandolfi 5 fev 2003)
Para manterem suas mentes satildes os prisioneiros do DOI-CODIRJ quando
sozinhos utilizavam alguns artifiacutecios Dulce em sua narrativa relata ter ficado algum
tempo sozinha em uma cela coletiva onde se ocupava em frear a impressatildeo de
vagarosidade do tempo e os maus pensamentos de diversas maneiras tais como
[] eu lembro de duas coisas que eu fazia como exerciacutecio para passar o
tempo Os colchotildees que eram horriacuteveis eram colchotildees de crina eu tirava
aquelas palhas de dentro do colchatildeo e ficava fazendo tranccedilas fazia vaacuterias
tranccedilas e contava uma tranccedila duas tranccedilas e ia montando uma na outra
Fazia filas de tranccedilas depois eu desmanchava tudo eu lembro que eu ateacute
tinha medo ldquo- Se esses caras descobrirem isso vatildeo mandar costurar o
colchatildeordquo Depois eu tirava tudo e guardava de novo laacute dentro do colchatildeo No
dia seguinte eu comeccedilava outra vez Eu dizia ldquo- eu natildeo posso enlouquecer
entatildeo eu tenho que ocupar a minha cabeccedila com alguma coisardquo Porque eu
natildeo tinha nada nada nada para fazer Outra atividade que eu fazia tambeacutem
Como [] o chatildeo da cela era como se fosse de umas lajotas de uns azulejos
sei laacute o quecirc eu contava aqueles quadrados todos multiplicava fazia
milhares de contas Fazia um jogo no chatildeo do quarto contava para frente
para traacutes multiplicava e naquilo ali eu ficava horas naquelas contas
matemaacuteticas naquelas multiplicaccedilotildees naquelas somas naqueles ladrilhos
[] (Pandolfi 5 fev 2003)
A execuccedilatildeo de tais meacutetodos certamente contribuiacutea para aumentar a possibilidade
de sobrevivecircncia e sanidade do prisioneiro do DOI-CODIRJ Poreacutem o preso dependia
de sua capacidade e habilidade para usar recursos que o beneficiassem e que ajudassem
a se opor aos mecanismos desetruturadores e despersonalizadores sobre ele empregados
Nessa situaccedilatildeo assim como Elizabeth Ferreira na obra Mulheres Militacircncia e Memoacuteria
194
(1996 65) acredita-se que o sentimento de auto-estima gerado nos presos poliacuteticos pelo
seu ideal poliacutetico e social eacute um elemento crucial de resistecircncia Atraveacutes desse
sentimento normalmente tais presos costumam sustentar a esperanccedila na mudanccedila o
que lhes gera forccedila e ateacute mesmo uma criatividade para suportar o sofrimento maior que
a de presos comuns
As roupas e as refeiccedilotildees
Como o DOI-CODIRJ de 1970 natildeo era um presiacutedio havia acabado de ser
montado dentro de um preacutedio do quartel do 1ordm BPE para abrigar temporariamente os
presos poliacuteticos que pudessem contribuir com suas investigaccedilotildees laacute natildeo existiam
refeitoacuterios visitas banho de sol ou mesmo uniformes Aleacutem da falta de uma estrutura
que propiciasse uma rotina normal de presiacutedio esse diferencial era importante para o
procedimento investigativo do DOI-CODIRJ Afinal havia ali a necessidade do preso
ficar incomunicaacutevel jaacute que quanto maior seu isolamento maior seria sua fragilidade e
esta se relacionava diretamente com sua capacidade em conceder informaccedilotildees No mais
esse isolamento tambeacutem estava relacionado com a preocupaccedilatildeo em proteger a
instituiccedilatildeo de acusaccedilotildees de maus tratos uma vez que caso os ferimentos dos presos
fossem notados poderiam ser vinculados a torturas e consequentemente denunciados
Dessa forma os prisioneiros do DOI-CODIRJ natildeo podiam nem mesmo tomar sol pois
poderiam ser vistos por pessoas dos preacutedios vizinhos e funcionaacuterios da faacutebrica da
Brahma localizada atraacutes do paacutetio do 1ordm BPE
As refeiccedilotildees eram portanto servidas nas proacuteprias celas pelos soldados da turma
auxiliar de plantatildeo Para colocarem cada uma das quatro refeiccedilotildees a que cada preso
tinha direito esses abriam a cela de manhatilde cedo no iniacutecio e no fim da tarde e agrave noite
Segundo a narrativa dos presos no cafeacute da manhatilde costumavam trazer um patildeo com
195
pasta de amendoim e um cafeacute com leite na caneca para cada preso No almoccedilo uma
bandeja de alumiacutenio com um prato que normalmente continha repolho arroz angu e
algumas vezes um pedaccedilo de carne Durante a tarde deixavam um bule de mate com
um pedaccedilo de patildeo na cela e no fim do dia repetiam para o jantar a mesma comida do
almoccedilo
As comidas servidas em 1970 aos prisioneiros do DOI-CODIRJ satildeo mais alguns
exemplos de detalhes do cotidiano que soacute podem ser abordados por meio da memoacuteria de
quem viveu aquele passado Diante disso eacute interessante perceber aspectos que
justificam o fato dessas refeiccedilotildees terem marcado as memoacuterias dos prisioneiros a ponto
de nelas sobreviverem por cerca de trecircs deacutecadas
[] a gente ateacute brincava que eles deviam ter uma plantaccedilatildeo de repolho ali
porque era repolho todo dia repolho cru repolho assado mas na hora do
almoccedilo normalmente vinha nessa bandeja de alumiacutenio e era repolho um
pouco de arroz feijatildeo e agraves vezes um pedaccedilo de carne era uma comida bem
horrorosa [] (Pandolfi 5 fev 2003)
[] A comida era peacutessima era aquela comida do rancho parecia uma
lavagem de porco uma coisa horrorosa [] Eu fiquei com a pele toda
lsquofodidarsquo porque a uacutenica coisa que eu conseguia comer era o angu []
(Coimbra 30 nov 2004)
Portanto o conteuacutedo das refeiccedilotildees do DOI-CODIRJ aleacutem de ter ficado marcado
na memoacuteria dos prisioneiros pelo aspecto sensorial ou seja pelo gosto e apresentaccedilatildeo
ruins permaneceu tambeacutem pela relaccedilatildeo com a vaidade feminina e pelo fato de remeter a
momentos que foram compartilhados O angu marcou Ceciacutelia por ter feito mal a sua
pele jaacute que como eacute uma comida gordurosa lhe causou espinhas abalando ainda mais a
sua aparecircncia fiacutesica jaacute degrada por aquele cotidiano prisional O repolho por sua vez
deixou marcas na memoacuteria de Dulce por ser motivo de deboche entre as presas pois sua
196
presenccedila recorrente nos pratos ocasionava uma espeacutecie de piada entre elas e trazia um
pouco de descontraccedilatildeo
Outro aspecto do cotidiano do DOI-CODIRJ de 1970 tambeacutem alcanccedilado por
meio dos detalhes trazidos pelas memoacuterias de ex-prisioneiros satildeo as roupas Como natildeo
existiam uniformes institucionais na maior parte do tempo as roupas eram as mesmas
que eles vestiam no dia em que entraram no 1ordm BPE Dessa forma quando jaacute estavam
em celas coletivas os presos muitas vezes lavavam-nas e entatildeo voltavam a vestiacute-las
Depois de algum tempo afinal as famiacutelias acabavam descobrindo onde eles estavam
presos e algumas roupas eram deixadas no Palaacutecio Duque de Caxias antigo preacutedio do
Ministeacuterio do Exeacutercito no Centro da cidade do Rio de Janeiro para serem enviadas e
entregues no 1ordm BPE aos prisioneiros
No entanto ateacute isso chegar a acontecer demorava pois fazia parte da seguranccedila
institucional tentar manter num primeiro momento sigilo sobre seus presos Assim
Ceciacutelia presa em agosto de 1970 lembra que por ter sentido muito frio durante o seu
primeiro mecircs no DOI-CODIRJ ela e suas companheiras de cela costumavam
improvisar formas de protegerem os peacutes
[] a minha matildee ia ateacute o Ministeacuterio do Exeacutercito e ela dizia ldquo- Minha filha
estaacute laacute na PErdquo Aiacute quase um mecircs depois a minha matildee conseguiu mandar
roupa para mim Ateacute entatildeo minha filha era um loucura neacute A gente fedia
sabe A gente tomava banho de chuveiro e botava a mesma roupa a gente
lavava a roupa e era mecircs de agosto e ainda estava frio Era um frio que a
gente sentia que a gente enrolava jornal nos peacutes porque natildeo tinha nenhuma
coisa nada Era no colchatildeo puro que a gente dormia (Coimbra 30 nov
2004)
Quando as famiacutelias conseguiam descobrir onde estavam enviavam aleacutem de
roupas alguns mantimentos como frutas por exemplo Essas vinham muitas vezes
197
embrulhadas em jornais velhos que serviam para alguns como proteccedilatildeo para o corpo e
para outros como distraccedilatildeo conforme pode-se constatar na narrativa de Antocircnio ao
lembrar que ele e seus companheiros de cela passavam o tempo lendo as notiacutecias velhas
contidas em tais jornais
Eu me lembro tambeacutem que quando alguns presos recebiam frutas essas
coisas embrulhadas em papel jornal jornal velho a gente lia o jornal e
ficaacutevamos um bom tempo lendo aqueles jornais com datas de um mecircs trecircs
meses atraacutes mas era sempre bom para a cabeccedila da gente ficar lendo as
notiacutecias mesmo velhas [] (Carvalho 8 fev 2003)
Como jaacute aqui ressaltado a cumplicidade que existia entre os presos do DOI-
CODIRJ ajudava a construir mecanismos que os protegiam das mais diversas
dificuldades Segundo Dulce para amenizar a escassez de roupa a que eram submetidas
num primeiro momento dentro do DOI-CODIRJ as presas do ldquocoletivo das mulheresrdquo
estabeleceram uma espeacutecie de acordo Atraveacutes dele ficou determinado que quem de laacute
saiacutesse deixaria algumas peccedilas para quem ainda ficasse tinha uma espeacutecie de rotina
entre as mulheres que quem saiacutea deixava alguma roupa laacute (Pandolfi 5 fev 2003)
Assim atraveacutes desse tipo de cumplicidade elas ajudavam a diminuir o sofrimento
diaacuterio umas das outras uma vez que as peccedilas deixadas na cela possibilitavam que as
presas conseguissem manter a higiene e amenizar a sensaccedilatildeo do frio
Percebe-se portanto que de fato o dia-a-dia do DOI-CODIRJ de 1970 era
atiacutepico pois este natildeo era um presiacutedio e sim um oacutergatildeo de repressatildeo poliacutetica Assim uma
das poucas semelhanccedilas com a rotina de um presiacutedio comum era basicamente a privaccedilatildeo
da liberdade Poreacutem apesar de ofuscado pela tortura e pelo pavor ali existia um
cotidiano que abarcava outros aspectos muito interessantes Afinal estes satildeo capazes de
198
muito esclarecer sobre o funcionamento praacutetico desse importante oacutergatildeo de repressatildeo da
ditadura militar brasileira e tambeacutem sobre diversos tipos de reaccedilotildees e relaccedilotildees humanas
do passado e do presente
199
Conclusatildeo
Quando o muro separa uma ponte une
Se a vinganccedila encara o remorso pune
Vocecirc vem me agarra algueacutem vem me solta
Vocecirc vai na marra ela um dia volta
E se a forccedila eacute tua ela um dia eacute nossa
Olha o muro olha a ponte
Olha o dia de ontem chegando
Que medo vocecirc tem de noacutes
Olha aiacute
Vocecirc corta um verso eu escrevo outro
Vocecirc me prende vivo eu escapo morto
De repente olha eu de novo
Perturbando a paz exigindo o troco
Vamos por aiacute eu e meu cachorro
Olha um verso olha o outro
Olha o velho olha o moccedilo chegando
Que medo vocecirc tem de noacutes
Olha aiacute
O muro caiu olha a ponte
Da liberdade guardiatilde
O braccedilo do Cristo horizonte
Abraccedila o dia de amanhatilde
Olha aiacute
Mauriacutecio Tapajoacutes amp Paulo Ceacutesar Pinheiro
(Pesadelo 1972)
200
Diante do exposto ao longo desta dissertaccedilatildeo conclui-se que a formulaccedilatildeo da
Doutrina de Seguranccedila Nacional feita pela ESG em colaboraccedilatildeo com o IPES e o IBAD
cerca de vinte anos antes do surgimento dos DOI-CODI tinha por base uma teoria de
guerra que nortearia a atuaccedilatildeo repressora desses oacutergatildeos Essa teoria interpretava os
movimentos de oposiccedilatildeo que vinham crescendo desde o iniacutecio dos anos 1960 como uma
espeacutecie de guerra revolucionaacuteria Todos os cidadatildeos brasileiros passavam entatildeo a ser
encarados como suspeitos e foi esta percepccedilatildeo que estimulou o governo militar a
planejar a Seguranccedila Nacional e por conseguinte criar um centralizado e articulado
aparato de informaccedilotildees internas junto a um eficiente oacutergatildeo repressivo de controle
armado os DOI-CODI
Aleacutem disso constatou-se que a consolidaccedilatildeo dos DOI-CODI por todas as Regiotildees
Militares do paiacutes substanciou-se tambeacutem atraveacutes da alta legalidade autoritaacuteria e das
medidas tomadas pelo governo para conter as cizacircnias militares Afinal o governo
ditatorial brasileiro na medida em que arbitrou leis a fim de legalizar o seu poder
poliacutetico e suprimir direitos antes garantidos agrave populaccedilatildeo construiu uma sustentaccedilatildeo
juriacutedica necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um aparato de seguranccedila cada vez mais forte e
centralizado Grande parte dessas leis autoritaacuterias foi usada como artifiacutecio para acalmar
os acircnimos na caserna responsaacuteveis por importantes conflitos internos que ameaccedilavam a
uniatildeo militar as chamadas cizacircnias militares As leis arbitraacuterias serviam entatildeo tanto
para conter a oposiccedilatildeo poliacutetica quanto para ceder agraves reivindicaccedilotildees por poder vindas da
caserna Completava-se dessa forma um cenaacuterio legal capaz de suportar um organismo
de repressatildeo onde os militares de meacutedias e baixas patentes trabalhariam com autonomia
uma das bases para a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
Diante disso viu-se tambeacutem que natildeo foi agrave toa que a estrutura e o funcionamento
do SISSEGIN e dos seus oacutergatildeos foram instituiacutedos e regulamentados por meio de
201
decretos sigilosos o que incluiu a experiecircncia da Oban criada em Satildeo Paulo em
meados de 1969 e no ano seguinte a institucionalizaccedilatildeo dos DOI-CODI por todo o
paiacutes Afinal a justificativa para esse sigilo estava justamente na maior mobilidade e
autonomia de accedilatildeo que traria para a atuaccedilatildeo repressora desses organismos pois em
segredo podiam agir sem grandes limitaccedilotildees natildeo esbarrando em questotildees externas agraves
decisotildees militares tal como o respeito aos direitos humanos
Os DOI-CODI destacavam-se principalmente pela independecircncia financeira e pela
centralizaccedilatildeo hieraacuterquica que os constituiacuteam essenciais para a alta eficiecircncia de suas
investigaccedilotildees e accedilotildees Tais atributos evitavam que suas operaccedilotildees fossem suscetiacuteveis agrave
duplicidade de tarefas a competiccedilotildees e a conflitos de interesses maximizando os seus
resultados Eram entatildeo organismos de excelecircncia a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo
Entretanto essa sofisticaccedilatildeo tambeacutem vinha do distanciamento mantido entre os
militares do governo e os que agiam nesses oacutergatildeos jaacute que a ditadura ao mesmo tempo
em que sancionava a tortura nessa instituiccedilatildeo estrategicamente negava a sua existecircncia
perante a sociedade isentando governo do paiacutes de qualquer ligaccedilatildeo com ela Em
complemento a essa ideia o sistema funcional dos DOI responsaacuteveis por accedilotildees que
englobavam as prisotildees e os interrogatoacuterios dos presos poliacuteticos apresentava-se
complexo e informal Dessa forma as brechas para que a aparente falta de controle
fosse exercida eram amplas a fim de que meacutetodos violentos ilegais tivessem ali uma
legitimidade excepcional Justifica-se assim como a versatildeo oficial dos militares ainda
possa ser a de que a tortura jamais resultou de qualquer ordem ou orientaccedilatildeo superior
Evidenciou-se poreacutem a incoerecircncia desta versatildeo jaacute que ficou claro que em todos
os organismos militares nos DOI inclusive existiam uma forte hierarquia a ser
cumprida Mesmo com a estrutura complexa ali existente qualquer accedilatildeo deveria ser
remetida a um superior logo a questatildeo da responsabilidade sempre poderia ser
202
resgatada Percebeu-se que em geral apesar de velada a tortura era do conhecimento
de toda a hierarquia militar inclusive dos generais agrave frente do governo
Durante todo o trabalho a intervenccedilatildeo do presente (2002-2004) sobre as
memoacuterias do passado (1970) foi conferida nas narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos
entrevistados Percebeu-se que o contexto poliacutetico e social vivido no presente e o
momento da vida pessoal de cada um tiveram uma contribuiccedilatildeo importante na forma
como os ex-presos construiacuteram suas memoacuterias Aleacutem disso a forma como a rede de
entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que as entrevistas foram realizadas
tambeacutem concorreram para essa intervenccedilatildeo no relato que fizeram sobre o passado
Enfim um dos principais elementos para a anaacutelise criacutetica exercida aqui sobre essas
memoacuterias foi sem duacutevida o reconhecimento dessa influecircncia do presente sobre o
passado
A trajetoacuteria prisional dos entrevistados os grupos oposicionistas que integravam
as accedilotildees de que participaram o momento da prisatildeo o tempo que permaneceram presos
e as funccedilotildees que exerciam no presente foram aspectos aqui ressaltados por mostrarem
um pouco da histoacuteria de vida e por meio desta a personalidade ou seja as
idiossincrasias de cada um deles Dessa forma foi possiacutevel aproximar-se do aspecto
individual de suas memoacuterias uacutenico a cada ser entendendo um pouco mais as bases de
suas construccedilotildees
Tornou-se assim viaacutevel analisar essas memoacuterias e colocaacute-las em diaacutelogo com o
conteuacutedo levantado a partir da anaacutelise historiograacutefica e da monografia sobre o DOI
escrita pelo coronel Pereira em 1978 possibilitando uma caracterizaccedilatildeo do cotidiano
prisional vivido pelos presos do DOI-CODIRJ em 1970 O trabalho organizacional dos
DOI-CODIRJ foi visto portanto de forma praacutetica As funccedilotildees de cada setor e seccedilatildeo
teorizadas principalmente por meio da monografia do coronel foram analisadas a partir
203
do acircngulo dos prisioneiros o que viabilizou a percepccedilatildeo de detalhes que constituiacuteam a
rotina daquela instituiccedilatildeo
Ficou claro que a violecircncia era a principal forma de extraccedilatildeo de informaccedilotildees e o
elemento-chave para a eficiecircncia conferida pela instituiccedilatildeo com relaccedilatildeo ao combate aos
opositores poliacuteticos da eacutepoca A tortura e o medo dela ocupavam um espaccedilo
significativo no cotidiano ali impetrado aos prisioneiros uma vez que eles estavam no
DOI-CODIRJ para serem a ela submetidos de forma a fornecerem mais facilmente
informaccedilotildees que levassem os agentes dos DOI a outros suspeitos Poreacutem verificou-se
que a tortura natildeo era a uacutenica face do cotidiano do DOI-CODIRJ
Afinal este trabalho mostrou outros aspectos que constituiacuteam a rotina dos presos
dentro desse oacutergatildeo que ateacute entatildeo natildeo havia sido alcanccedilada pela historiografia Percebeu-
se aqui outros elementos que apesar de pouco destacados pelas memoacuterias dos
entrevistados muito tecircm a dizer sobre aquele cotidiano as fases prisionais as refeiccedilotildees
as roupas as formas de resistecircncia o conviacutevio ente prisioneiros e ateacute mesmo algumas
accedilotildees solidaacuterias efetuadas por soldados em benefiacutecio dos presos poliacuteticos
Constatou-se como a memoacuteria pode enriquecer a percepccedilatildeo que se tem sobre um
passado revelando faces natildeo evidenciadas em documentos oficiais e tambeacutem como eacute
importante para levar ateacute o presente um passado doloroso mas que deve ser encarado a
fim de ser perdoado e ultrapassado Uma movimentaccedilatildeo nesse sentido vem acontecendo
no Brasil com as Caravanas da Anistia e principalmente com a recente aprovaccedilatildeo da
Comissatildeo da Verdade conforme pontuado anteriormente
A atualidade dessas iniciativas inclusive estimulou esta pesquisa impulsionada
pela curiosidade sobre as memoacuterias do passado vivido nos ldquoporotildees da ditadurardquo Logo
o tema da presente dissertaccedilatildeo foi pautado pela crenccedila na necessidade de uma ampla
revelaccedilatildeo sobre o que ocorreu na eacutepoca de forma a contribuir para que a reconciliaccedilatildeo
204
do presente com o passado seja um dia alcanccedilada uma vez que defende-se aqui tal
como Paul Ricoeur (2008 507) que eacute no caminho da criacutetica histoacuterica que a memoacuteria
encontra o seu sentido de justiccedila Dessa forma tem-se o cidadatildeo como destinataacuterio do
texto histoacuterico cabendo a ele tornar a discussatildeo puacuteblica fazendo um balanccedilo entre
histoacuteria e memoacuteria a fim de que se perceba o sofrimento do outro e daqueles que
continuam a sofrer pelas matildeos do mesmo mal repressor do passado A partir disso a
reconciliaccedilatildeo entre o passado e presente se tornaraacute efetiva contribuindo para que no
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2011]
Disponiacutevel em httpcarosamigosterracombrindex_sitephppag=materiaampid=129
MEMORIAL da Resistecircncia de Satildeo Paulo Satildeo Paulo Secretaria da Cultura do Governo
do Estado de Satildeo Paulo sd [acesso em 27 jan 2012]
Disponiacutevel em httpwwwmemorialdaresistenciasporgbr
215
Anexo I - Glossaacuterio de Siglas
ACO ndash Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria
ADI ndash Aacutereas de Defesa Interna
ALN ndash Accedilatildeo Libertadora Nacional
APERJ ndash Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio de Janeiro
1degBPE ndash 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito
Condi ndash Conselho de Defesa Interna
CENIMAR ndash Centro de Informaccedilotildees da Marinha
CEP ndash Centro de Estudos de Pessoal
CGI ndash Comissatildeo Geral de Investigaccedilotildees
CIA ndash Central Intelligence Agency
CIE ndash Centro de Informaccedilotildees do Exeacutercito
CISA ndash Centro de Informaccedilotildees de Seguranccedila da Aeronaacuteutica
CNBB ndash Conferecircncia Nacional dos Bispos do Brasil
CONDI ndash Conselhos de Defesa Interna
CPDOC ndash Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil
CSN ndash Conselho de Seguranccedila Nacional
DCE ndash Diretoacuterio Central dos Estudantes
DEOPS ndash Departamento de Ordem e Poliacutetica Social de Satildeo Paulo
DGPC ndash Departamento Geral de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro
DI-GB ndash Dissidecircncia Comunista da Guanabara
DOI-CODI ndash Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees ndash Centro de Operaccedilotildees de
Defesa Interna
216
DOPS ndash Departamento de Ordem Poliacutetica e Social
DSN ndash Doutrina de Seguranccedila Nacional
ECEME ndash Escola de Comando e Estado Maior do Exeacutercito
ESG ndash Escola Superior de Guerra
EMFA ndash Estado Maior das Forccedilas Armadas
EsNI ndash Escola Nacional de Informaccedilotildees
Fafich ndash Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas de Belo Horizonte
FUEC ndash Frente Unida dos Estudantes do Calabouccedilo
FGV ndash Fundaccedilatildeo Getuacutelio Vargas
GTNMRJ ndash Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro
HCE ndash Hospital Central do Exeacutercito
IBRADES ndash Instituto Brasileiro de Estudos Sociais
IFCS ndash Instituto de Filosofia e Ciecircncias Sociais
IHTP ndash Instituto de Histoacuteria do Tempo Presente
IPCM ndash Instituto Penal Cacircndido Mendes
IPM ndash Inqueacuterito Policial Militar
JOC ndash Juventude Operaacuteria Catoacutelica
LOC ndash Liga Operaacuteria Catoacutelica
MDB ndash Movimento Democraacutetico Brasileiro
MR-8 ndash Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro
MTC ndash Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos
N-SISA ndash Nuacutecleo do Serviccedilo de Informaccedilotildees de Seguranccedila da Aeronaacuteutica
Oban ndash Operaccedilatildeo Bandeirantes
OLAS ndash Organizaccedilatildeo Latino-Americana de Solidariedade
217
PCB ndash Partido Comunista Brasileiro
PC do B ndash Partido Comunista do Brasil
PCBR ndash Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio
PT ndash Partido dos Trabalhadores
SADI - Sub-Aacutereas de Defesa Interna
SFICI ndash Serviccedilo Federal de Informaccedilotildees e Contra-Informaccedilotildees
SIM ndash Serviccedilo de Informaccedilotildees da Marinha
SNI ndash Serviccedilo Nacional de Informaccedilotildees
SISNI ndash Sistema Nacional de Informaccedilotildees
SISSEGIN ndash Sistema de Seguranccedila Interna
UFF ndash Universidade Federal Fluminense
UFRJ ndash Universidade Federal do Rio de Janeiro
UNE - Uniatildeo Nacional dos Estudantes
UNIRIO ndash Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
ZDI ndash Zona de Defesa Interna
218
Anexo II - A Hierarquia do Exeacutercito Brasileiro53
Ciacuterculos
Hieraacuterquicos54
Hierarquizaccedilatildeo Patentes do Exeacutercito
Ciacuterculo de oficiais
Ciacuterculo de oficiais-generais
Marechal
General de Exeacutercito
General de divisatildeo
General de brigada
Ciacuterculo de oficiais
superiores Coronel
Tenente-coronel
Major
Ciacuterculo de oficiais intermediaacuterios Capitatildeo
Ciacuterculo de oficiais
subalternos Primeiro- tenente
Segundo- tenente
Ciacuterculo de praccedilas
Ciacuterculo de suboficiais subtenentes e
sargentos
Subtenente
Primeiro-sargento
Segundo-sargento
Terceiro-sargento
Ciacuterculo de cabos e soldados
Cabo e taifeiro-mor
Soldado e taifeiro-de
primeira classe
Soldado-recruta e taifeiro-
de-segunda-classe
Ciacuterculo de praccedilas
especiais
Frequentam o ciacuterculo de oficiais
subalternos Aspirante-a-oficial
Excepcionalmente ou em reuniotildees sociais
tecircm acesso ao ciacuterculo de oficiais
Cadete (aluno da Academia
Militar)
Aluno da Escola
Preparatoacuteria de Cadetes do
Exeacutercito
Aluno de Oacutergatildeo de
Formaccedilatildeo da Reserva
Excepcionalmente ou em reuniotildees sociais
tecircm acesso ao ciacuterculo de suboficiais
subtenentes e sargentos
Aluno da Escola ou Centro
de Formaccedilatildeo de Sargentos
Frequentam o ciacuterculo de cabos e soldados Aluno de Oacutergatildeo de
Formaccedilatildeo de Praccedilas da
Reserva
53
LEIRNER 1997 74-75 54
Os ldquoCiacuterculos hieraacuterquicosrdquo satildeo o acircmbito de convivecircncia entre os militares da mesma categoria Esses
ldquociacuterculosrdquo satildeo incorporados a fundo na conduta militar de forma que a divisatildeo acima exposta eacute seguida
no ambiente de trabalho salas refeitoacuterios e banheiros da instituiccedilatildeo conforme demonstra Piero de
Camargo Leirner em estudo antropoloacutegico sobre a instituiccedilatildeo militar Meia Volta Volver (1997 74-76)
3
Ficha catalograacutefica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique SimonsenFGV
Bettamio Rafaella Luacutecia de Azevedo Ferreira O DOI-CODI carioca memoacuteria e cotidiano no Castelo do Terror
Rafaella Luacutecia de Azevedo Ferreira Bettamio ndash 2012
218 f Dissertaccedilatildeo (mestrado) ndash Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de
Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais
Orientador Marly Silva da Motta Inclui bibliografia
1 Prisioneiros poliacuteticos 2 Brasil - Histoacuteria - 1964-1985 I Motta Marly Silva da II Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de
Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais III Tiacutetulo
CDD ndash 981063
4
5
Agradecimentos
Agradeccedilo primeiramente agrave minha orientadora Profordf Drordf Marly Silva da Motta
por sua orientaccedilatildeo zelosa pelo apoio e pelos inuacutemeros ensinamentos Com sua ajuda
consegui ultrapassar muitas dificuldades e penetrar com seguranccedila no universo dessa
pesquisa
Ao Professor Ameacuterico Freire de quem tive o prazer de ser aluna durante o
mestrado agradeccedilo pelas aulas pela bibliografia sobre o periacuteodo militar que muito me
ajudou na elaboraccedilatildeo dessa anaacutelise pelas criacuteticas construtivas elaboradas durante o
exame de qualificaccedilatildeo e pela participaccedilatildeo na banca examinadora dessa dissertaccedilatildeo
Ao Professor Luiacutes Reznik agradeccedilo por ter integrado a banca do exame de
qualificaccedilatildeo fazer parte da presente banca examinadora e tambeacutem pelas valiosas
sugestotildees indicaccedilotildees bibliograacuteficas e comentaacuterios incorporados ao estudo e agrave redaccedilatildeo
final desse trabalho
Agrave Professora Dulce Pandolfi agradeccedilo por sua generosidade em aceitar ser de
certa forma sujeito e objeto desta pesquisa desde seu nascimento durante a minha
graduaccedilatildeo em Histoacuteria pela UNIRIO quando permitiu que eu lhe entrevistasse e que
seu depoimento servisse de fonte para minha monografia de fim de curso cuja banca
examinadora contou com sua participaccedilatildeo Tambeacutem lhe agradeccedilo por durante o
mestrado continuar acompanhando de perto esta pesquisa participando da banca do
exame de qualificaccedilatildeo quando trouxe muitas consideraccedilotildees e sugestotildees produtivas a
este trabalho e da banca examinadora final desta dissertaccedilatildeo
Agrave Professora Icleacuteia Thiesen agradeccedilo pela credibilidade e incentivo que vem
injetando na minha face de pesquisadora desde o tempo em que fui sua aluna ainda
durante a graduaccedilatildeo
Aos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados Antocircnio Leite de Carvalho Dulce
Pandolfi Fernando Palha Freire Padre Maacuterio Prigol Ana Batista e Ceciacutelia Coimbra
agradeccedilo por me confiarem suas narrativas e me deixarem penetrar em parte de suas
memoacuterias
6
Agrave Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional onde muito me orgulho de trabalhar agradeccedilo
por incentivar a minha qualificaccedilatildeo enquanto pesquisadora permitindo que eu cursasse
o mestrado e me licenciasse nos uacuteltimos meses para me dedicar a esta dissertaccedilatildeo de
corpo e alma
Ao Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNMRJ) agradeccedilo por me
autorizar a consultar o arquivo da instituiccedilatildeo e por me receber afetuosamente durante
diversas reuniotildees onde pude conhecer alguns de seus integrantes tais como Ana Batista
e Ceciacutelia Coimbra a quem tive o prazer de entrevistar
Aos amigos Joatildeo Cerineu e Alejandra Estevez agradeccedilo a contribuiccedilatildeo
fundamental que efetuaram sobre este trabalho sendo os responsaacuteveis por me apresentar
aos ex-prisioneiros poliacuteticos Antocircnio e Padre Maacuterio
Agradeccedilo aos meus irmatildeos Rodrigo Renata e Melissa ao Rodrigo por despertar
em mim a vontade e a coragem de seguir a profissatildeo de historiadora agrave Renata por me
apoiar e ouvir sobre minha pesquisa atentamente mesmo quando eu repetia as mesmas
histoacuterias diversas vezes e principalmente agrave Melissa que muito me ajudou na
composiccedilatildeo do ldquoabstractrdquo desse trabalho com o seu inglecircs simplesmente perfeito
Aos amigos queridos que a Biblioteca Nacional me deu de presente
companheiros de jornada que me fazem melhorar a cada dia como profissional e que me
acompanharam durante todo o processo do mestrado me apoiando no que foi preciso e
me ajudando a superar os obstaacuteculos do dia-a-dia Agradeccedilo especialmente agrave Lia Jordatildeo
pelo companheirismo diaacuterio ao Francisco Madureira pelo auxiacutelio na ediccedilatildeo final dessa
dissertaccedilatildeo e agrave Regina Santiago pela amizade e disposiccedilatildeo sem igual em ler
minuciosamente este trabalho apontando sugestotildees que indiscutivelmente tornaram o
texto mais claro
Agraves amigas Manuela Joana e Letiacutecia agradeccedilo por estarem sempre comigo nas
alegrias e nas tristezas compartilhando conquistas e derrotas desde os tempos em que
juntas frequentaacutevamos as festas juninas da PE
7
Aos amigos do curso de Histoacuteria da UNIRIO agradeccedilo pelas trocas intelectuais
pelos incontaacuteveis momentos divertidos pela camaradagem e por essa amizade de dez
anos de histoacuteria
Aos meus pais sou e serei eternamente grata pelo carinho pelo apoio e por sempre
estarem ao meu lado durante todos esses anos
Aos meus sogros Eliana Lasmar e Luiz Fernando Arieira agradeccedilo por estarem
sempre por perto dispostos a estenderem a matildeo quando preciso
E por fim meus agradecimentos especiais a Raul Cordeiro meu companheiro de
todas as horas o engenheiro mais humano que eu jaacute conheci Agradeccedilo-lhe por tudo que
temos vivido juntos por nosso cantinho por nossas conversas por nosso conviacutevio de
todo dia por nosso amor pelo tanto e tatildeo pouco que enfeita cada momento da minha
vida me completa e me faz uma pessoa mais feliz
8
Tambeacutem neste lugar pode-se sobreviver e por isso eacute preciso
querer sobreviver para contar para testemunhar e que para
viver eacute importante esforccedilarmo-nos para salvar pelo menos o
esqueleto os pilares a forma da nossa civilizaccedilatildeo [hellip]
(Levi 2001 40)
9
Resumo
O objetivo dessa dissertaccedilatildeo eacute analisar a memoacuteria de seis ex-prisioneiros poliacuteticos
do Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees-Centro de Operaccedilotildees de Defesa Interna
do Rio de Janeiro (DOI-CODIRJ) entrevistados recentemente entre os anos de 2002 e
2004 sobre o cotidiano vivido nessa instituiccedilatildeo em 1970 Naquele ano dentro do
Sistema de Seguranccedila Interna (SISSEGIN) os DOI-CODI haviam sido criados e
distribuiacutedos por todas as Regiotildees Militares do paiacutes tornando-se a principal instituiccedilatildeo
de repressatildeo aos opositores poliacuteticos que optaram pela luta armada como forma de
derrotar a ditadura militar brasileira Assim as narrativas desses seis ex-prisioneiros
satildeo aleacutem de fontes essenciais o principal objeto de estudo deste trabalho Atraveacutes
delas torna-se possiacutevel acessar aspectos cruciais para a caracterizaccedilatildeo do cotidiano
vivido pelos presos em um desses oacutergatildeos ― o DOI-CODI do Rio de Janeiro ― uma
vez que esse passado se liga ao presente por meio de suas memoacuterias Diante disso a fim
de melhor entender tais memoacuterias a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI tambeacutem satildeo
aqui analisadas colocando as narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados em
diaacutelogo com uma bibliografia especialmente selecionada aleacutem de uma fonte a respeito
do DOI feita por um de seus agentes quando este oacutergatildeo ainda estava em atividade em
1978 Para que a essas memoacuterias seja aplicada uma criacutetica efetiva necessaacuteria a todo
trabalho histoacuterico o estudo se debruccedila ainda sobre as interferecircncias que o presente
exerce na construccedilatildeo que fazem com relaccedilatildeo ao passado vivido no DOI-CODIRJ com
o objetivo de esclarecer as bases sobre as quais satildeo construiacutedas cerca de trinta anos
depois
Palavras-chave Ex-prisioneiros poliacuteticos ndash Memoacuteria ndash DOI-CODI ndash Cotidiano ndash
Ditadura militar
10
Abstract
The objective of this thesis is to analyze the memory of six former political
prisoners of the Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees-Centro de Operaccedilotildees de
Defesa Interna do Rio de Janeiro or DOI-CODIRJ (Detachment of Information
Operations Center-Internal Defense Operations Center of Rio de Janeiro) recently
interviewed between 2002 and 2004 about their everyday living in that institution in
1970 At that year in the Sistema de Seguranccedila Interna or SISSEGIN (Internal Security
System) the DOI-CODI had been created and distributed by all the countryrsquos military
regions becoming the repression leading instituion of political opponents who oppted
for armed struggle as a way to defeat Brazilrsquos military dictatorship Thus these six
former prisioners narratives are not only essencial sources but the main study object of
this paper Through them it becomes possible to access crucial aspects for the
characterization of the daily lived by prisioners in one of these agencies - the DOI-
CODI in Rio de Janeiro - since this past connects to present through their memories
Therefore in order to understand such memories the training and the performance of
the DOI-CODI are also analyzed here placing the narratives of the interviewed former
political prisioners in dialogue with a specially selected bibliography and a source
about DOI made by one of its agents when that agency was still active in 1978 In
order to be applied to these memories an effective critique necessary to all historical
work the study still focuses on the interferences that the present exerts on the
construction that make in relation to the past lived in DOI-CODIRJ in order to clarify
the basis on which are built at about thirty years later
Key-Words Former political prisioners ndash Memory ndash DOICODI ndash daily Life ndash Military
dictatorship
11
Sumaacuterio
Agradecimentos 05
Resumo 09
Abstract 10
Introduccedilatildeo 13
Capiacutetulo 1 Os DOI-CODI formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo 28
1 Debate Histoacuterico 35
11 O papel da ESG para o Sistema de Seguranccedila Nacional 35
12 Os conceitos legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar 39
13 A montagem e o funcionamento do SISSEGIN 47
2 O DOI-CODI por ele mesmo 57
3 O DOI-CODI pelos prisioneiros 75
Capiacutetulo 2 Os presos poliacuteticos e suas organizaccedilotildees 85
1 A rede de entrevistas 91
11 Os sujeitos e suas trajetoacuterias 97
12 A nova esquerda brasileira 122
Capiacutetulo 3 O espaccedilo e o cotidiano do DOI-CODI carioca 136
1 O que sofre e o que resiste 137
2 Uma cartografia possiacutevel do ldquoCastelo do Terrorrdquo 142
12
3 Memoacuterias de um cotidiano 154
31 O interrogatoacuterio e a tortura 156
32 O dia-a-dia no caacutercere 184
Conclusatildeo 199
Fontes 205
1 ArquivoDocumentos Pessoais 205
2 Documentos Institucionais 205
3 Fonte Cinematograacutefica 205
4 Fontes Orais 205
5 Fontes Visuais 206
6 Perioacutedicos 206
Bibliografia 207
1 Bibliografia digital 213
Anexo I Glossaacuterio de Siglas 215
Anexo II A Hierarquia do Exeacutercito Brasileiro 218
13
Introduccedilatildeo
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo entatildeo que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino praacute laacute
Roda mundo roda gigante
Roda moinho roda piatildeo
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coraccedilatildeo
A gente vai contra a corrente
Ateacute natildeo poder resistir
Na volta do barco eacute que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que haacute
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira praacute laacute
Chico Buarque
(Roda Viva 1968)
14
Vivi bons momentos no 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito Era adolescente e os
momentos aos quais me refiro foram vividos durante o final de uma deacutecada
democraacutetica a de 1990 Mal sabia sobre a ditadura militar e muito menos que aquele
Batalhatildeo situado tatildeo proacuteximo agrave minha casa na Tijuca havia sediado um centro de
tortura O nome DOI-CODI nunca tinha ouvido falar Para mim e para todos os
adolescentes da Tijuca o 1ordm BPE era um Batalhatildeo convencional do Exeacutercito que tinha
um grande paacutetio utilizado todos os anos para a melhor festa junina da regiatildeo a ldquofesta
junina da PErdquo Logo para noacutes a principal caracteriacutestica da PE era o fato de durante os
meses de junho abrir as portas do seu paacutetio para tornaacute-lo ldquoponto de encontrordquo de muitos
jovens estudantes Quanta ironia
Jaacute no terceiro periacuteodo da faculdade de Histoacuteria da UNIRIO no primeiro semestre
de 2002 descobri o que aquele preacutedio havia sido durante a ditadura militar Soube
inclusive que ele era tombado pelo antigo Departamento Geral de Patrimocircnio Cultural
(DGPC) da Prefeitura justamente por representar a memoacuteria de muitos ex-prisioneiros
poliacuteticos que ali haviam sido torturados e mortos Fiquei perplexa Como nunca
ningueacutem havia me dito isso Como os professores de Histoacuteria da minha escola
localizada no mesmo bairro natildeo haviam destacado esse fato Por que essa parte da
Histoacuteria natildeo era amplamente divulgada Eu que sempre gostei de Histoacuteria natildeo agrave toa
escolhi fazer dela minha formaccedilatildeo e profissatildeo me senti instigada a revelar as memoacuterias
dos presos poliacuteticos que por laacute passaram A partir dessa descoberta mais do que uma
ldquonovardquo face do 1ordm BPE eu havia me deparado com outra revelaccedilatildeo o meu tema de
pesquisa
A partir de um amigo do curso de Histoacuteria no final de 2002 cheguei ao meu
primeiro entrevistado e daiacute em diante teci uma rede de entrevistas No final de 2004
havia reunido seis entrevistados trecircs homens e trecircs mulheres todos ex-prisioneiros
15
poliacuteticos que passaram pelo DOI-CODIRJ durante o mesmo ano de 1970 Essa
pesquisa resultou em minha monografia apresentada em 2005 como requisito para a
conclusatildeo do curso de Histoacuteria da UNIRIO O Castelo do terror memoacuteria e tortura no
espaccedilo prisional (1970-1974) 1
Natildeo abandonei o tema Ao contraacuterio resolvi aprofundaacute-lo no mestrado em
Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais do CPDOCFGV onde ingressei em marccedilo de 2010
Nessa dissertaccedilatildeo que representa a fase conclusiva do mestrado trabalho com os
depoimentos dos mesmos seis ex-prisioneiros do DOI-CODIRJ de 1970 colhidos entre
os anos de 2002 e 2004 Aqui o objetivo mais amplo eacute se inserir no conjunto de estudos
que reflete sobre a construccedilatildeo de uma determinada memoacuteria a respeito da ditadura
militar
Analisar a memoacuteria de ex-prisioneiros poliacuteticos a fim de entender como essas
foram construiacutedas jaacute em tempos democraacuteticos e o que trazem em benefiacutecio da
caracterizaccedilatildeo daquele passado eacute o objetivo principal desta dissertaccedilatildeo Assim sendo
alguns aspectos especiacuteficos merecem ser destacados
O primeiro deles eacute que as entrevistas foram concedidas entre os anos 2002 e 2004
ou seja o passado ditatorial foi recuperado jaacute em tempos democraacuteticos Ao mesmo
tempo considerou-se que esses depoimentos satildeo fontes essenciais para atingir o
objetivo aqui traccedilado jaacute que a metodologia de histoacuteria oral eacute a mais adequada para
analisar os aspectos subjetivos e repletos de detalhes que correspondem ao rigoroso dia-
a-dia de quem esteve preso em um organismo repressor Logo eacute faacutecil concluir que as
fontes que permitiram a elaboraccedilatildeo deste estudo natildeo poderiam ser encontradas em
documentaccedilatildeo oficial
1 O Castelo do terror memoacuteria e cotidiano de ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI carioca (1970-
1979) monografia de fim de curso de bacharelado e licenciatura plena em Histoacuteria da UNIRIO orientada
pela Profordf Drordf Icleacuteia Thiesen e apresentada em abril de 2005
16
Instituiacutedos por todo o territoacuterio brasileiro a partir de 1970 os DOI-CODI
tornaram-se referecircncia-chave na memoacuteria sobre a tortura e a repressatildeo praticada pela
ditadura militar A partir disso nota-se que o trabalho desenvolvido com as memoacuterias
de ex-prisioneiros de uma de suas sedes a do Rio de Janeiro eacute uma das escassas
possibilidades existentes de se acessar esse passado ainda tatildeo presente
Esse objeto de estudo representa um grande desafio Afinal estaacute inserido entre
duas temporalidades recentes ndash quando a experiecircncia prisional foi efetivamente vivida
em 1970 e quando ela foi narrada pelos entatildeo ex-prisioneiros poliacuteticos entre 2002 e
2004 Por isso mesmo lanccedilou-se matildeo do aparato teoacuterico do que se convencionou
chamar de histoacuteria do tempo presente A partir dos anos 1980 durante o processo de
renovaccedilatildeo da histoacuteria poliacutetica a valorizaccedilatildeo de uma histoacuteria das representaccedilotildees e a
compreensatildeo dos usos poliacuteticos do passado pelo presente acarretou uma reavaliaccedilatildeo das
relaccedilotildees estabelecidas entre histoacuteria e memoacuteria que permitiu agrave historiografia fazer novas
reflexotildees sobre as relaccedilotildees entre passado e presente 2 Diante dessa percepccedilatildeo nasceu
na Franccedila o Instituto de Histoacuteria do Tempo Presente (IHTP) fundado por Franccedilois
Beacutedarida consolidando a histoacuteria do tempo presente como portadora da especificidade
de conviver com testemunhos vivos colocando sob seu foco principal os depoimentos
orais 3
A histoacuteria oral eacute portanto a metodologia principal desta dissertaccedilatildeo e por
conseguinte os depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos dela decorrentes satildeo aqui
tratados com todo o rigor necessaacuterio agrave pesquisa histoacuterica Afinal apesar de ser
demasiadamente criticada por ser uma metodologia apoiada na memoacuteria o que a
tornaria capaz de produzir representaccedilotildees e natildeo reconstituiccedilotildees do real entende-se que
2 Para mais informaccedilotildees sobre o surgimento da histoacuteria do tempo presente na historiografia ver Remoacutend
1996 e Ferreira dez 2002 314-332 3 Para mais informaccedilotildees sobre os fundamentos da histoacuteria do tempo presente ver Beacutedarida 2006 219-
229
17
as narrativas orais devem ser submetidas ao crivo da criacutetica histoacuterica tal como deve
ocorrer com todas as outras fontes Os documentos orais ou escritos tecircm uma razatildeo de
ser pois foram feitos por algueacutem com determinada visatildeo estimulado por algum motivo
eou intenccedilatildeo e por isso nunca seratildeo capazes de representar a realidade pura e absoluta
dos fatos Portanto qualquer fonte caso natildeo seja bem contextualizada e analisada
possibilita que a pesquisa caia em armadilhas e reconstrua um passado que nunca
existiu conforme bem elucidado por Michael Pollak
[] se a memoacuteria eacute socialmente construiacuteda eacute oacutebvio que toda documentaccedilatildeo
tambeacutem o eacute Para mim natildeo haacute diferenccedila fundamental entre fonte escrita e
oral A criacutetica da fonte tal como todo historiador aprende a fazer deve a
meu ver ser aplicada a fontes de tudo quanto eacute tipo (Pollak 1992 207-208)
A histoacuteria oral eacute de grande valia agrave histoacuteria do tempo presente contribuindo para
que o estudo da histoacuteria recente ndash por natureza mais inacabada do que qualquer outra
histoacuteria (Beacutedarida 2006 229) ndash seja incentivado desafiando as dificuldades
relacionadas ao acesso a fontes documentais de periacuteodos pouco distantes Aleacutem disso a
histoacuteria oral traz outro diferencial aqui destacado atraveacutes da fala torna-se possiacutevel
evidenciar uma carga subjetiva tornando acessiacutevel um tipo de informaccedilatildeo capaz de
enriquecer a anaacutelise histoacuterica e que natildeo seria obtido por meio de fontes escritas oficiais
Assim mesmo que uma experiecircncia relatada natildeo seja em si mesma um fato de certa
forma pode vir a secirc-lo jaacute que traz agrave tona o verdadeiro sentimento de algueacutem perante
uma situaccedilatildeo e esse sentimento eacute um fato que soacute pode ser alcanccedilado mediante agraves
memoacuterias trazidas pelos relatos (Portelli 1996 59-72)
Os usos que os ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ fazem de seu passado
prisional eacute um dos principais aspectos aqui ressaltados Para tanto o conceito de
presente do passado de Robert Frank (1999) eacute utilizado ao longo deste trabalho como
18
ferramenta para destacar as influecircncias que o presente de suas narrativas exerce sobre a
maneira pela qual eacute revivido o passado vivenciado no DOI-CODIRJ
Desde que haviam passado pelo DOI-CODI carioca em 1970 em plena ditadura
militar a chamada ldquolei de anistiardquo jaacute havia sido instituiacuteda no paiacutes em 1979 que entre
outras providecircncias anistiava todos quantos no periacuteodo compreendido entre 02 de
setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 cometeram crimes poliacuteticos ou conexos com
estes (lei nordm 66831979) a ditadura militar havia terminado com a eleiccedilatildeo indireta de
um presidente civil em 1985 a Assembleia Nacional Constituinte havia sido instalada
em 1987 e a Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil a chamada ldquoconstituiccedilatildeo
cidadatilderdquo havia sido promulgada no ano seguinte e finalmente o primeiro presidente
civil eleito pelo voto direto apoacutes a ditadura militar havia tomado posse em 1990
completando a transiccedilatildeo poliacutetica do paiacutes ou seja tornando a ditadura uma memoacuteria do
passado e a democracia o momento presente Democracia esta que na eacutepoca em que os
depoimentos foram concedidos apresentava ainda mais sinais de seu fortalecimento e
consolidaccedilatildeo jaacute que o Brasil havia elegido para presidente o socioacutelogo e professor da
USP Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e o ex-operaacuterio e liacuteder sindical Luiacutes
Inaacutecio Lula da Silva (2003-2010) ambos perseguidos poliacuteticos durante o periacuteodo
ditatorial
Com relaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo dos que sofreram danos decorrentes da poliacutetica repressiva
promovida pela ditadura militar desde 1995 estava em curso o reconhecimento pelo
Estado brasileiro dos mortos e desaparecidos poliacuteticos durante a ditadura e a
indenizaccedilatildeo as suas famiacutelias (lei nordm 914095) Aleacutem disso a reparaccedilatildeo financeira aos
males sofridos por aqueles que ficaram presos ou foram perseguidos na eacutepoca tambeacutem
estava em voga desde 2002 (lei nordm 1055902) A demanda desta lei principalmente no
caso daqueles que passavam pelo processo de solicitaccedilatildeo eacute um elemento a ser levado
19
em conta na maneira pela qual os entrevistados construiacuteram suas narrativas Afinal o
procedimento necessaacuterio agrave concessatildeo da reparaccedilatildeo incluiacutea a construccedilatildeo de um memorial
sobre as mazelas a que os requerentes haviam sido submetidos pelo Estado durante a
ditadura militar
Dessa forma as narrativas significavam tambeacutem para os ex-prisioneiros poliacuteticos
um meio de conseguirem apoio da sociedade em favor da ampliaccedilatildeo desse
reconhecimento iniciado pelo Estado brasileiro Atraveacutes de suas narrativas poderiam
contribuir para que suas memoacuterias fossem encampadas pela histoacuteria Logo pode-se
dizer que no sentido atribuiacutedo por Michael Pollak (1992) esses depoimentos foram
concedidos sob o horizonte de contribuir com o trabalho de enquadramento da
memoacuteria nacional sobre a ditadura militar brasileira jaacute que esta ateacute hoje natildeo estaacute
consolidada
Finalmente verifica-se que ainda ocorre uma disputa pela memoacuteria da ditadura
militar onde de um lado estatildeo os que sofreram o peso da matildeo forte da ditadura e de
outro os militares que argumentam que os ldquoanos de chumbordquo devem ser relegados ao
passado Como exemplo a declaraccedilatildeo dada em outubro de 2004 ao jornal O Globo por
um representante do Exeacutercito em resposta agrave publicaccedilatildeo de supostas fotos pelas quais o
jornalista Vladimir Herzog4 aparece sendo humilhado na prisatildeo
As medidas tomadas pelas forccedilas legais foram uma legiacutetima resposta agrave
violecircncia dos que recusaram o diaacutelogo optaram pelo radicalismo e pela
ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e de desencadear accedilotildees
criminosas [] sentiu-se a necessidade da criaccedilatildeo de uma estrutura com
vistas a apoiar em operaccedilatildeo e inteligecircncia as atividades necessaacuterias para
desestruturar os movimentos radicais e ilegais [] Mesmo sem qualquer
mudanccedila de posicionamento e de convicccedilotildees em relaccedilatildeo ao que aconteceu
4 Vladimir Herzog era integrante do PCB e diretor da TV Cultura quando foi preso em outubro de 1975
no DOI-CODISP onde dias depois foi morto sob torturas Para mais informaccedilotildees sobre o caso Vladimir
Herzog e seus sucessivos encadeamentos ver Moraes 2006
20
naquele periacuteodo histoacuterico considera-se accedilatildeo pequena reavivar revanchismos
ou estimular discussotildees esteacutereis sobre conjunturas passadas que a nada
conduzem (Camarotti 19 out 2004 12)
Essa disputa travada entre a lembranccedila e o esquecimento pode ser notada atraveacutes
da batalha em torno do preacutedio que serviu de sede ao DOI-CODIRJ o 1ordm BPE Essa foi
iniciada nos primeiros anos da deacutecada de 1990 por meio de uma tentativa do Exeacutercito
de vender o edifiacutecio Sabendo da situaccedilatildeo um conjunto de moradores dos arredores
buscou impedir a venda solicitando o tombamento de todo o espaccedilo ocupado pelo
quartel agrave Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro alegando a sua importacircncia para a
memoacuteria poliacutetica do paiacutes Essa atitude eacute evidenciada em um manifesto contendo 236
assinaturas em defesa da preservaccedilatildeo do preacutedio que serviu como documento de
abertura para o processo de tombamento do edifiacutecio na Subsecretaria de Patrimocircnio
Cultural da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro
O Exeacutercito brasileiro alegando falta de recursos para seu programa de
construccedilatildeo de quarteacuteis em outros estados pretende vender o imoacutevel onde
estaacute o 1ordm BPE Trata-se de um imoacutevel altamente valorizado pela ampla infra-
estrutura urbana [] Acontece que o valor que o Exeacutercito quer faturar foi
criado a partir de obras e investimentos custeados com os impostos e taxas
que pagamos todos noacutes haacute mais de um seacuteculo O Exeacutercito natildeo contribuiu
em nada para isso e agora quer se apropriar desse valor para investir sabe-se
laacute aonde [] consideramos que o preacutedio do Batalhatildeo da PE estaacute
indissoluvelmente cravado na histoacuteria nas tradiccedilotildees na esteacutetica e na
paisagem local [] Sabemos que o Batalhatildeo da PE foi sede do DOI-CODI
na eacutepoca da ditadura militar e que ali estiveram presos e foram torturados
muitos companheiros nossos tendo inclusive alguns sido dados como
ldquodesaparecidosrdquo Tambeacutem por esta razatildeo o preacutedio estaacute ligado agrave memoacuteria
poliacutetica desse paiacutes [] Queremos na aacuterea um centro cultural com teatro e
museu agrave memoacuteria da luta pela liberdade com parque e jardins Esses satildeo os
21
anseios da comunidade e natildeo outrosrdquo (Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural
da Prefeitura do Rio de Janeiro 1992) 5
Aleacutem desse documento outras solicitaccedilotildees de preservaccedilatildeo do preacutedio foram
enviadas agrave Cacircmara Municipal por Associaccedilotildees de Moradores da Tijuca e bairros
vizinhos Enfim em 29 de marccedilo de 1993 no primeiro mandato do entatildeo prefeito Ceacutesar
Maia o processo de tombamento do 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito foi finalizado
No entanto a ideia de tiraacute-lo do Exeacutercito a fim de tornar o espaccedilo um centro cultural
que contivesse um museu da memoacuteria da luta pela liberdade natildeo se concretizou pois
apoacutes o tombamento o Exeacutercito natildeo deixou o local onde permanece ateacute os dias atuais
sinalizando que natildeo tem interesse em que o edifiacutecio se torne efetivamente um lugar de
memoacuteria tal como o conceito criado por Pierre Nora (1993)
No preacutedio do 1ordm BPE se encontram os trecircs sentidos atribuiacutedos por Nora como
caracteriacutesticos a um lugar de memoacuteria o material o simboacutelico e o funcional (Nora
1993 21) O sentido material no caso eacute o proacuteprio espaccedilo fiacutesico que ainda se conserva
no mesmo local sem grandes intervenccedilotildees o simboacutelico eacute o que o espaccedilo representa para
uma parte da sociedade carioca como marco memorial de um passado que natildeo se deve
esquecer e o funcional eacute a memoacuteria da ditadura militar ali preservada por meio do
tombamento do edifiacutecio Logo querendo ou natildeo o preacutedio do 1ordm BPE eacute um lugar de
memoacuteria jaacute que naquele espaccedilo fiacutesico ou seja material se encontram uma funccedilatildeo e
uma representaccedilatildeo simboacutelicas ligadas agrave memoacuteria da ditadura militar
A disputa em torno dessa memoacuteria parece aos poucos caminhar cada vez mais
para o lado dos ex-presos e perseguidos poliacuteticos Recentemente aleacutem das leis
5 Este documento que deu iniacutecio ao referido processo no ano de 1992 hoje se encontra arquivado na
Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro antigo Departamento Geral de
Patrimocircnio Cultural (DGPC) junto ao restante da documentaccedilatildeo que compocircs o processo Nordm
1200433692 e originou a lei municipal nordm 1954 de 290393
22
reparadoras citadas acima um grande obstaacuteculo foi ultrapassado para que os crimes
ocorridos durante a ditadura militar sejam apurados e desvendados Em outubro de
2011 a Comissatildeo da Verdade foi enfim aprovada pelo Congresso Nacional e em
novembro do mesmo ano a lei que a institui sancionada pela Presidente Dilma
Rousseff Nesse contexto esta dissertaccedilatildeo ao estudar as memoacuterias de seis ex-
prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ relaciona-se com essa atualidade cumprindo
um papel social relevante
O ofiacutecio do historiador que pressupotildee trilhar caminhos e fazer escolhas
significando por exemplo atribuir significado agraves palavras agraves fontes e agrave bibliografia
escolhidas norteou a seleccedilatildeo e os criteacuterios aqui estipulados Conforme apontado por
Reinhart Koselleck (2006 167) eacute impossiacutevel que o ponto de vista do historiador deixe
de influenciar na representaccedilatildeo que faz dos fatos Assim cabe deixar claro que este
trabalho foi movido pelo interesse que as memoacuterias dos ex-prisioneiros poliacuteticos do
DOI-CODIRJ despertaram em mim Vale dizer que essa dissertaccedilatildeo eacute avessa ao
postulado cientiacutefico da total imparcialidade no sentido de neutralidade apartidarismo
ou abstenccedilatildeo seguindo orientaccedilatildeo de Manoel Salgado Guimaratildees (2008)
Ao historiador de ofiacutecio seria exigido cada vez mais uma escrita submetida
aos ditames dos afetos sejam eles derivados de engajamentos poliacuteticos
especiacuteficos de crenccedilas particulares ou mesmo derivados de um convite agrave
individualidade do historiador Este seria instado a mostrar-se atraveacutes de seu
texto postura bastante diversa daquela que o obrigava a esconder-se por traacutes
da pesquisa cientiacutefica (Guimaratildees 2008 17)
O primeiro capiacutetulo tem por objetivo analisar a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-
CODI que a partir de 1970 passaram a integrar o Sistema de Seguranccedila Interna
(SISSEGIN) se espalharam por todas as Regiotildees Militares do Brasil e se tornaram a
principal instituiccedilatildeo de repressatildeo aos opositores poliacuteticos da ditadura militar Afinal a
23
partir do entendimento sobre a criaccedilatildeo e o funcionamento dessa instituiccedilatildeo se pretende
criar as condiccedilotildees necessaacuterias para analisar as memoacuterias dos seis ex-prisioneiros
poliacuteticos sobre uma de suas sedes o DOI-CODIRJ uma vez que a passagem por esse
espaccedilo prisional eacute aqui entendida como um elo fundamental entre essas memoacuterias
Assim optou-se por estruturar este capiacutetulo por meio de trecircs frentes 1) o debate
historiograacutefico 2) a monografia O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI)
do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e
perspectiva escrita em 1978 pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira
3) os depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de
Janeiro concedidos entre os anos de 2002 e 2004
A primeira frente de estudo se concentra em analisar a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos
DOI-CODI agrave luz da historiografia Nela apresentam-se autores e conceitos selecionados
a fim de elucidar algumas questotildees levantadas Qual o papel da Escola Superior de
Guerra (ESG) para a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional e dos DOI-CODI
Como a praxe ditatorial em respaldar atitudes arbitraacuterias por meio de leis
compulsoriamente promulgadas ou seja atraveacutes da legalidade autoritaacuteria conforme
nomenclatura utilizada por Anthony Pereira (2010) gerou as bases para a criaccedilatildeo do
SISSEGIN e dos DOI-CODI Como os conflitos internos gerados no seio da instituiccedilatildeo
militar que ocasionaram dissidecircncias as cizacircnias militares tal como conceituado por
Joatildeo Roberto Martins Filho (1993) influenciaram os rumos da ditadura e a construccedilatildeo
de seu aparato de seguranccedila interna De que maneira a montagem e o funcionamento do
SISSEGIN e dos DOI-CODI foram organizados e constituiacutedos
Jaacute a segunda e a terceira frentes de estudo deste capiacutetulo servem para analisar as
visotildees de atores que de uma forma ou de outra viveram os DOI-CODI Na segunda a
anaacutelise sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI debruccedila-se sobre a visatildeo de um de
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seus agentes atraveacutes da fonte O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do
Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo escrita pelo coronel de
cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira apontado por ex-prisioneiros poliacuteticos com um dos
torturadores do DOI do Rio de Janeiro Trata-se de uma monografia que o referido
coronel apresentou agrave Escola de Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) em
1978 quando os DOI-CODI apesar de atuantes jaacute sofriam certa diminuiccedilatildeo de suas
atividades O trabalho em cima desse documento se direciona no sentido de analisar
dados representativos do poder coercitivo dos DOI-CODI do iniacutecio dos anos 1970 e de
descrever os afazeres de cada uma de suas seccedilotildees a fim de contribuir para o
entendimento sobre o funcionamento interno deste oacutergatildeo Por fim na terceira frente a
anaacutelise eacute efetuada por meio das memoacuterias dos seis ex-prisioneiros entrevistados entre os
anos de 2002 e 2004 objeto central dessa dissertaccedilatildeo Dessa forma procura-se aqui
responder como eles percebiam a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo do DOI-CODIRJ e ao
entrelaccedilar aspectos de suas memoacuterias com a historiografia e a visatildeo do coronel Pereira
se aproximar do que vinha a ser o aparato de seguranccedila interna de 1970 cujos DOI-
CODI eram parte essencial
O segundo capiacutetulo eacute construiacutedo com a proposta de analisar de que forma e sob
quais influecircncias foram construiacutedas e narradas as memoacuterias dos seis ex-prisioneiros
poliacuteticos entrevistados entre os anos de 2002 e 2004 Parte-se aqui do pressuposto de
que cada uma de suas memoacuterias foi formada e influenciada por idiossincrasias relativas
a vivecircncias pessoais personalidades e outros aspectos individuais que merecem ser
analisados de forma a viabilizar o entendimento loacutegico da construccedilatildeo dessas memoacuterias
Dessa forma busca-se relativizar uma memoacuteria coletiva que aparentemente eacute comum a
todos os ex-prisioneiros poliacuteticos que passaram por algum DOI-CODI O aspecto
coletivo dessas memoacuterias no entanto natildeo eacute abandonado As memoacuterias individuais aqui
25
trabalhadas natildeo estatildeo isoladas e constantemente tomam por referecircncia pontos externos
ao sujeito se apoiando em percepccedilotildees recebidas de determinada memoacuteria coletiva de
um grupo e tambeacutem pela memoacuteria histoacuterica de seu paiacutes (Halbwachs 2004 57-59)
Diante disso a capacidade de intervenccedilatildeo que o presente exerce sobre as
memoacuterias do passado (Frank 1999) toma um aspecto central nesse momento da anaacutelise
o que torna importante considerar aqui natildeo soacute o contexto histoacuterico que rodeava os
entrevistados no momento de suas narrativas (2002-2004) como tambeacutem a forma como
a rede de entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que essas foram realizadas
Assim este segundo capiacutetulo trata primeiramente dessas condiccedilotildees que viabilizaram e
de certa forma influiacuteram nas entrevistas para em seguida analisar as trajetoacuterias de vida
de cada um dos entrevistados e por fim baseando-se em algumas referecircncias sobre o
tema traccedilar um panorama sobre as organizaccedilotildees de esquerda das quais faziam parte ou
com que se relacionavam no momento de suas prisotildees
Finalmente o terceiro capiacutetulo visa analisar efetivamente a memoacuteria como
material para a histoacuteria Assim conforme elucidado por Fernando Catroga (2010) ao
buscar entender a escrita da histoacuteria como um rito de memoacuteria no sentido de lutar
contra o esquecimento e contra a corrosatildeo do tempo tal como ocorre em um ldquogesto de
sepulturardquo a histoacuteria eacute aqui escrita de forma a contribuir para que seja possiacutevel
caracterizar um passado que natildeo mais existe o do cotidiano do DOI-CODIRJ de 1970
Antes dessa caracterizaccedilatildeo a partir dos detalhes trazidos nos depoimentos sobre o
espaccedilo interno do preacutedio do 1ordm BPE conjugados agrave observaccedilatildeo minuciosa de sua fachada
que ateacute hoje ainda permanece preservada faz-se possiacutevel uma cartografia espacial do
local que sediou o DOI-CODIRJ Afinal esse entendimento da disposiccedilatildeo espacial do
referido edifiacutecio estaacute totalmente interligado com o cotidiano ali vivido por seus
prisioneiros logo eacute aqui entendido como essencial para a presente anaacutelise Feita esta
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cartografia parte-se entatildeo para a caracterizaccedilatildeo do cotidiano vivido no DOI-CODIRJ
de 1970 Para tanto aleacutem da anaacutelise dos seis depoimentos a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos
DOI-CODI a constituiccedilatildeo da rede de entrevistas a trajetoacuteria dos entrevistados e suas
organizaccedilotildees de esquerda estudadas nos capiacutetulos anteriores satildeo incorporadas ao
estudo A partir disso vaacuterios aspectos do cotidiano prisional satildeo abordados tais como
o interrogatoacuterio e a tortura os primeiros momentos na prisatildeo as formas de resistecircncia
os encontros e as relaccedilotildees entre os presos nas celas as formas de lidar com o tempo as
roupas e as refeiccedilotildees
No decorrer dos trecircs capiacutetulos dessa dissertaccedilatildeo faz-se constante referecircncia a
siglas relativas ao tema em abordagem e agrave hierarquia das patentes do Exeacutercito Diante
disso ao final de todo o texto apresentado na parte dos anexos encontra-se o Glossaacuterio
de siglas (Anexo I) e a tabela A hierarquia do Exeacutercito Brasileiro (Anexo II)
A partir dessa configuraccedilatildeo geral pretende-se responder agraves questotildees acima
pontuadas a fim de corroborar algumas hipoacuteteses aqui levantadas
1) A formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo do aparato de seguranccedila interna que abrangia o DOI-
CODIRJ tiveram por base as teses sobre seguranccedila nacional montadas pela
ESG anos antes da ditadura militar a promulgaccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo
arbitraacuteria condescendente a abusos de poder gerada a partir dos primeiros anos
do governo militar bem como a tentativa de solucionar impasses ocasionados
por disputas que vinham ocorrendo no seio do Exeacutercito e por conseguinte
ameaccedilavam sua unidade institucional
2) O peso do presente (200204) teve um papel decisivo na maneira pela qual os
entrevistados construiacuteram a narrativa sobre o periacuteodo (1970) em que estiveram
presos no DOI-CODIRJ
3) As organizaccedilotildees de esquerda e as accedilotildees em que os ex-presos poliacuteticos
27
estiveram envolvidos antes de suas prisotildees influenciaram diretamente no grau
de violecircncia do cotidiano a que foram submetidos no DOI-CODIRJ
28
Capiacutetulo 1 ndash Os DOI-CODI formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo
Se no teu distrito
Tem farta sessatildeo
De afogamento chicote
Garrote e punccedilatildeo
A lei tem caprichos
O que hoje eacute banal
Um dia vai dar no jornal
Se manchas as praccedilas
Com teus esquadrotildees
Sangrando ativistas
Cambistas turistas peotildees
A lei abre os olhos
A lei tem pudor
E espeta o seu proacuteprio inspetor
Chico Buarque
(Hino da repressatildeo 1985)
29
A partir de 1970 os DOI-CODI (Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildeesndash
Centro de Operaccedilotildees de Defesa Interna) parte integrante do Sistema de Seguranccedila
Interna (SISSEGIN) passariam a ser a principal instituiccedilatildeo na repressatildeo aos opositores
da ditadura militar brasileira Seis desses opositores aprisionados no DOI-CODI do Rio
de Janeiro em meio ao primeiro ano de sua existecircncia tecircm na passagem por esse espaccedilo
prisional um elo fundamental entre suas memoacuterias Como essas memoacuterias satildeo o objeto
de estudo da presente dissertaccedilatildeo para melhor entendecirc-las primeiramente torna-se de
extrema importacircncia lanccedilar um olhar mais apurado sobre como foram construiacutedos e de
que forma atuavam os DOI-CODI Logo a anaacutelise sobre a criaccedilatildeo e o funcionamento
dessa instituiccedilatildeo eacute o objetivo desse primeiro capiacutetulo
Esta anaacutelise se estrutura a partir de trecircs frentes distintas 1) o debate
historiograacutefico 2) a monografia O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI)
do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e
perspectiva escrita em 1978 pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira
3) os depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de
Janeiro concedidos entre os anos de 2002 e 2004
Como dito a primeira frente de estudo analisa a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-
CODI agrave luz da historiografia Autores e conceitos foram selecionados tendo em vista
questotildees significativas para analisar a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI 1) o papel
da ESG para a criaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional 2) os conceitos de legalidade
autoritaacuteria e cizacircnia militar 3) a montagem e o funcionamento do SISSEGIN
Para abordar o papel da ESG na construccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional
parte-se da tese de Maria Helena Moreira Alves (2005) em que a autora defende a ideia
de que a institucionalizaccedilatildeo do Estado de Seguranccedila Nacional no Brasil se fez a partir
do papel determinante da Doutrina de Seguranccedila Nacional (DSN) construiacuteda pela
30
Escola Superior de Guerra (ESG) nos anos 1950 Entende-se que este destacado papel
da ideologia esguiana para a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional da ditadura
militar brasileira teve ligaccedilatildeo direta com a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI Afinal
com a DSN surge o conceito de seguranccedila interna que serve como base para a
montagem do aparelho repressivo ditatorial no qual os DOI-CODI duas deacutecadas
depois seriam inseridos
Os conceitos de legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar satildeo aqui utilizados como
ferramentas elucidativas por auxiliarem na anaacutelise de como durante os primeiros anos
de ditadura militar a imperativa forma de legislar o paiacutes e as crises que por disputas
poliacuteticas ameaccedilaram a unidade institucional militar foram essenciais para a formaccedilatildeo e
atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
Nesse sentido a legalidade autoritaacuteria assim designada por Anthony Pereira
(2010) eacute aqui utilizada para destacar de que forma a preocupaccedilatildeo da ditadura militar
brasileira em respaldar legalmente seus atos ainda que arbitrariamente propiciou um
respaldo legal agrave repressatildeo poliacutetica e por conseguinte aos DOI-CODI Logo este
conceito serve para iluminar o entendimento de que a formaccedilatildeo de um aparato de
seguranccedila interna forte centralizado e violento como os DOI-CODI foi possibilitado
respaldado e sustentado no Brasil por um significativo amparo legal A ditadura militar
atraveacutes dessa preocupaccedilatildeo legal atiacutepica a um regime de cunho totalitaacuterio reiterava sua
imagem de regime democraacutetico de exceccedilatildeo perante a sociedade e ao mesmo tempo
possibilitava a criaccedilatildeo de um dos maiores organismos repressores que uma ditadura da
Ameacuterica Latina jaacute havia criado os DOI-CODI
Outro conceito necessaacuterio para entender a construccedilatildeo do cenaacuterio legal que
propiciaria a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI eacute o de cizacircnia militar elaborado por
Martins Filho em sua tese de doutorado A dinacircmica militar das crises poliacuteticas na
31
ditadura (1964-1969) de 1993 em que o autor destaca os conflitos internos no seio
militar que acabariam resultando em dissidecircncias Ao analisar esses conflitos como fator
decisivo para a compreensatildeo dos rumos da ditadura Martins Filho apresenta uma
abordagem diferente da maioria dos estudiosos sobre o tema Ao inveacutes de partir de uma
suposta dicotomia entre dois grupos estanques divididos rigidamente entre a linha dura
e os castelistas apresenta uma visatildeo mais fluida de grupos militares que oscilavam na
forma de agir o palaacutecio representando os militares de altas patentes ocupantes de
cargos poliacuteticos e a caserna militares de patentes meacutedias que trabalhavam nas
instituiccedilotildees militares Esta abordagem eacute crucial para o presente trabalho uma vez que a
base da formaccedilatildeo e da atuaccedilatildeo dos DOI-CODI estava diretamente relacionada agraves
cizacircnias militares e seus decorrentes acontecimentos poliacuteticos Afinal apesar dos DOI-
CODI serem uma instituiccedilatildeo composta por militares das mais diversas posiccedilotildees
hieraacuterquicas a sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo foram estruturadas a partir principalmente de
reivindicaccedilotildees da caserna que com a implantaccedilatildeo dos DOI-CODI passou a ter poderes
poliacuteticos extraordinaacuterios jaacute que se tornava responsaacutevel pelas accedilotildees de prisotildees
apreensotildees e interrogatoacuterios dos perseguidos poliacuteticos
Finalmente para analisar a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Interna o
SISSEGIN composto entre outros pelos DOI-CODI partimos da anaacutelise feita por
Carlos Fico em sua obra Como eles agiam de 2001 Ao ter acesso a documentos
sigilosos sobre a formaccedilatildeo do SISSEGIN e a regulamentaccedilatildeo operacional dos DOI-
CODI Fico caracteriza de forma ineacutedita na historiografia a formaccedilatildeo e o
funcionamento de ambos os oacutergatildeos sendo portanto um referencial historiograacutefico
indispensaacutevel agrave minha pesquisa
Ainda no que toca agrave formaccedilatildeo do SISSEGIN e dos DOI-CODI tambeacutem eacute de
grande valia a tese exposta por Maria Celina DrsquoArauacutejo em Os anos de Chumbo a
32
memoacuteria militar sobre a repressatildeo (1994) de que assim como em qualquer instituiccedilatildeo
militar era alto o grau de hierarquia e coordenaccedilatildeo presente nos DOI-CODI o que natildeo
impedia no entanto que houvesse brechas para uma perda de controle institucional
Logo uma das peculiaridades da atuaccedilatildeo dos DOI-CODI entendido pela a autora como
uma espeacutecie de sofisticaccedilatildeo da repressatildeo era a convivecircncia da obediecircncia hieraacuterquica
militar com a falta de controle sobre algumas accedilotildees deixando que procedimentos natildeo
regulamentares tais como a tortura pudessem ser efetivados com recorrecircncia
A segunda e a terceira frentes de estudo do presente capiacutetulo analisam as visotildees de
atores que de uma forma ou de outra viveram em algum dos DOI-CODI Portanto
diferentes do debate historiograacutefico que tem particular distanciamento analiacutetico do
objeto e preza por se aproximar da imparcialidade e tambeacutem diferentes entre si essas
fontes satildeo influenciadas por seus atoresnarradores e pelas eacutepocas em que foram
construiacutedas
Na segunda frente pode-se dizer que a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI satildeo
analisadas a partir dos proacuteprios DOI-CODI jaacute que nessa etapa debruccedila-se sobre o
estudo O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do Exeacutercito Brasileiro
Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo de um de seus agentes diretos o coronel de
cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira Conhecido entre os presos poliacuteticos do DOI do Rio
de Janeiro do iniacutecio dos anos 1970 como o torturador de codinome ldquoNagibrdquo coronel
Pereira apresentou a referida monografia agrave Escola de Comando e Estado Maior do
Exeacutercito (ECEME) em 1978 quando os DOI-CODI apesar de atuantes jaacute estavam em
decadecircncia Tratava-se de uma eacutepoca em que o presidente Ernesto Geisel comandava a
abertura poliacutetica ldquolenta gradual e segurardquo do paiacutes e vinha diminuindo o poder delegado
aos DOI-CODI que passavam a ter o seu pessoal reduzido e suas accedilotildees apenas voltadas
agrave espionagem e natildeo mais ao combate direto de opositores poliacuteticos jaacute que devido agraves
33
inuacutemeras denuacutencias sobre violaccedilotildees aos Direitos Humanos no Brasil era forte o
desgaste que a ditadura sofria perante a comunidade internacional Em meio a esse
cenaacuterio o coronel em questatildeo construiu tal monografia motivado a por um lado provar
a importacircncia e a necessidade do trabalho de repressatildeo feito nos DOI-CODI e assim
tentar reverter a reduccedilatildeo de suas atividades e por outro conseguir uma promoccedilatildeo na
carreira militar visto que a ECEME eacute uma escola destinada agrave preparaccedilatildeo de oficiais
superiores para o exerciacutecio de funccedilotildees de Estado-Maior A partir disso essa monografia
apresenta dados representativos do poder coercitivo dos DOI do iniacutecio dos anos 1970
bem como a descriccedilatildeo dos afazeres de cada uma de suas seccedilotildees o que traz uma forte
contribuiccedilatildeo para a anaacutelise aqui traccedilada
Por fim na terceira e uacuteltima frente a anaacutelise da formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-
CODI eacute efetuada por meio de outro tipo de fonte que tem por base a memoacuteria os
depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de Janeiro a
mim fornecidos entre os anos de 2002 e 2004 Como essas entrevistas foram concedidas
durante a passagem dos governos dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso
(1995-2002) e Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva (2003-2010) ex-perseguidos poliacuteticos da
ditadura militar que entre seus feitos agrave frente da poliacutetica brasileira agiram no sentido
de reparar danos sofridos pelos perseguidos poliacuteticos daquele periacuteodo esse presente
nelas imprimiu fortes influecircncias Afinal trata-se de memoacuterias sobre o passado vivido
em uma das instituiccedilotildees de repressatildeo mais violentas da eacutepoca o DOI-CODIRJ
construiacutedas a partir de um presente em que jaacute vigorava a lei nordm 9140 de 1995 que
reconhecia mortos e desaparecidos pela ditadura militar e indenizava suas famiacutelias e
havia sido aprovada a lei nordm 10559 de 2002 que reparava financeiramente aqueles que
tivessem sofrido perseguiccedilatildeo ou maus tratos dentro de instituiccedilotildees do Estado durante o
periacuteodo de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988
34
Percebe-se claramente a ideia de presente do passado de Robert Frank (1999)
como um dos principais aspectos criacuteticos aqui aplicados a essas memoacuterias Afinal o
fato de durante o periacuteodo em que se deram as entrevistas conhecidos opositores agrave
ditadura militar estarem agrave frente do governo brasileiro e grande nuacutemero de ex-
prisioneiros poliacuteticos inclusive os entrevistados buscarem se beneficiar da lei nordm
1055902 faz com que o presente seja aqui considerado o elemento organizador dessas
memoacuterias
Essa perspectiva de presente do passado eacute portanto um dos elementos criacuteticos
aplicados a essas memoacuterias que sobre elas trabalham a fim de aqui tornaacute-las objeto da
histoacuteria Dessa forma percebe-se na presente anaacutelise a perspectiva elucidada por Pierre
Nora (1993) ao diferir o trabalho da memoacuteria do trabalho da histoacuteria Afinal o que os
diferencia satildeo justamente os aspectos fluidos da memoacuteria tais como as emoccedilotildees e as
influecircncias conjunturais a que estaacute a todo tempo submetida que aqui satildeo minimizados
pelos aspectos criacuteticos objetivos e analiacuteticos peculiares agrave histoacuteria
35
1 Debate Historiograacutefico
11 O papel da ESG para o Sistema de Seguranccedila Nacional
O golpe civil-militar ocorrido no Brasil em 31 de marccedilo de 1964 quando o
presidente Joatildeo Goulart foi deposto e se instalou um regime militar no paiacutes teria sido
precedido por uma elaborada desestabilizaccedilatildeo poliacutetica que de acordo com Maria Helena
Moreira Alves (2005) envolveu tanto corporaccedilotildees multinacionais o governo dos
Estados Unidos quanto o capital brasileiro associado-dependente e os militares
brasileiros destacando-se entre esses um grupo de oficiais da Escola Superior de Guerra
(ESG) Essa ldquoconspiraccedilatildeordquo foi efetivada anos antes ainda no iniacutecio dos anos 1950 por
instituiccedilotildees civis como o Instituto Brasileiro de Accedilatildeo Democraacutetica (IBAD) e o Instituto
de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) sob a coordenaccedilatildeo da ESG A Doutrina de
Seguranccedila Nacional e Desenvolvimento (DSN) ministrada pela mesma Escola era a
justificativa ideoloacutegica perfeita para a tomada do poder e para o autoritarismo como
uma forma de governo
Um dos criadores dessa doutrina Golbery do Couto e Silva era desde 1952
adjunto do Departamento de Estudos da ESG estabelecimento subordinado ao Estado
Maior das Forccedilas Armadas (EMFA) criado em 1948 com a assistecircncia de consultores
franceses e norte-americanos a fim de desenvolver e consolidar os conhecimentos
necessaacuterios para o exerciacutecio das funccedilotildees de direccedilatildeo e para o planejamento da Seguranccedila
Nacional Dentro da ESG Golbery encontrou condiccedilotildees favoraacuteveis para impulsionar
teses que defenderiam o ecircxito de um projeto global de desenvolvimento em cujas
tarefas o Estado deveria se associar agrave iniciativa privada atraveacutes do apoio intermediaacuterio
de uma elite tecnocraacutetica civil e militar ideologicamente comprometida com um
conjunto de ldquoobjetivos nacionais permanentesrdquo garantindo assim a Seguranccedila
Nacional Essas teses vieram posteriormente a constituir a base do programa da ESG
36
passando a ser conhecidas pela Doutrina de Seguranccedila Nacional (DSN) A DSN
sustentava ainda em meio agrave Guerra Fria o posicionamento do Brasil ao lado do
Ocidente logo em confronto com o bloco sovieacutetico considerando a preservaccedilatildeo da
seguranccedila o fator fundamental de promoccedilatildeo do desenvolvimento Previa dessa forma a
possiacutevel supressatildeo de alguns valores definidores da ordem democraacutetica devido agrave
necessidade de uma progressiva centralizaccedilatildeo de poderes
Para Moreira Alves o grande feito do ldquocomplexo ESGIPESIBADrdquo foi a criaccedilatildeo
antes do golpe de 1964 de uma rede de informaccedilotildees e de uma Doutrina de Seguranccedila
Nacional e Desenvolvimento ambas coordenadas por Golbery para nortear o que viria
a ser um Estado efetivamente centralizado Essa tese eacute sustentada ao se notar que o
general Castelo Branco como primeiro presidente do Estado ditatorial brasileiro
compocircs seus ministeacuterios quase totalmente com membros e colaboradores do complexo
ESGIPESIBAD A DSN passou entatildeo a ser utilizada para moldar as estruturas de
Estado impor formas especiacuteficas de controle para a sociedade civil e delinear um
projeto de governo para o Brasil Assim com destaque para a seguranccedila interna
ameaccedilada pelo comunismo a Doutrina de Seguranccedila Nacional passou a induzir ao
abuso de poder a prisotildees arbitraacuterias agrave tortura e agrave censura agrave imprensa e agraves artes de
forma geral
Eacute interessante perceber que a formulaccedilatildeo da DSN feita pela ESG em colaboraccedilatildeo
com o IPES e o IBAD ao longo de 25 anos tinha como base uma teoria de guerra que
nortearia a atuaccedilatildeo repressora do governo militar A partir do Manual Baacutesico da Escola
Superior de Guerra e dos escritos de Golbery do Couto e Silva em Conjuntura Poliacutetica
Nacional o poder executivo amp a geopoliacutetica do Brasil Moreira Alves destaca os tipos
de guerra apresentados pela Doutrina guerra total guerra limitada ou localizada
guerra revolucionaacuteria ou insurrecional guerra indireta ou ideoloacutegica
37
De acordo com estes paracircmetros a teoria da guerra total baseava-se na estrateacutegia
militar da Guerra Fria deixando de ser estritamente militar para ser tambeacutem econocircmica
financeira poliacutetica psicoloacutegica e cientiacutefica atingindo o mundo de forma global Logo
como as potecircncias envolvidas natildeo podiam travar uma guerra ativa pois existia a
possibilidade de uma destruiccedilatildeo completa e universal a guerra total passou a assumir
diversas formas Ela se destrinchava em guerras limitadas ou localizadas pelas quais as
duas superpotecircncias mediam suas respectivas capacidades de controlar territoacuterios Aleacutem
disso havia as guerras declaradas consideradas claacutessicas e as natildeo-declaradas que
correspondiam agraves formas de guerra revolucionaacuteria ou insurrecional
Essas guerras natildeo-declaradas ou natildeo-claacutessicas representavam uma guerra de
agressatildeo indireta A insurrecional eacute caracterizada como um conflito interno em que
parte da populaccedilatildeo armada busca a deposiccedilatildeo do governo Jaacute a guerra revolucionaacuteria
natildeo envolve necessariamente o emprego da forccedila armada mas significa um conflito
normalmente interno estimulado ou auxiliado do exterior inspirado normalmente em
uma ideologia e que visa agrave conquista do poder pelo controle progressivo da naccedilatildeo A
guerra revolucionaacuteria se referia portanto agrave infiltraccedilatildeo comunista internacional
associada ao bloco sovieacutetico Neste tipo de guerra a guerra ideoloacutegica substituiacutea a
convencional entendida como o enfrentamento direto entre Estados em suas fronteiras
geograacuteficas A caracteriacutestica principal da guerra revolucionaacuteria de acordo com o
Manual Baacutesico da ESG era o envolvimento da populaccedilatildeo do paiacutes-alvo por meio da
conquista ideoloacutegica
[] abrangendo desde a exploraccedilatildeo dos descontentamentos existentes com o
acirramento de acircnimos contra as autoridades constituiacutedas ateacute a organizaccedilatildeo
de zonas dominadas com o recurso agrave guerrilha ao terrorismo e outras taacuteticas
irregulares onde o proacuteprio nacional do paiacutes-alvo eacute utilizado como
combatente (Alves 2005 45)
38
Como a guerra revolucionaacuteria recrutava seus combatentes secretamente toda a
populaccedilatildeo tornava-se suspeita e portanto deveria ser cuidadosamente controlada para
que os ditos ldquoinimigos internosrdquo pudessem ser neutralizados A partir desse
entendimento de guerra revolucionaacuteria que segundo a ESG assombrava o paiacutes cria-se a
necessidade de um planejamento de Seguranccedila Nacional adaptado a essa conjuntura e
por conseguinte de um eficiente e centralizado aparato de informaccedilotildees internas
A partir disso a Constituiccedilatildeo de 1967 criou o Conselho de Seguranccedila Nacional
oacutergatildeo da Presidecircncia da Repuacuteblica responsaacutevel por supervisionar a defesa da seguranccedila
interna e principalmente modificou o significado de Seguranccedila Nacional que desde a
Constituiccedilatildeo de 1946 era associado agrave agressatildeo externa ou seja agrave defesa das fronteiras
territoriais A ameaccedila agrave Seguranccedila Nacional passava entatildeo a ser oficialmente definida
mais como uma ameaccedila agraves fronteiras ideoloacutegicas do que agraves territoriais Portanto ao criar
o Conselho de Seguranccedila Nacional e mudar o entendimento sobre a Seguranccedila
Nacional a Constituiccedilatildeo de 1967 abria o caminho necessaacuterio agrave adaptaccedilatildeo agrave teoria de
seguranccedila interna estipulada anos antes pela ESG
Esta teoria de seguranccedila interna dotou entatildeo o Estado de justificativa para
controlar e reprimir a populaccedilatildeo em geral O caraacuteter oculto da ameaccedila interna tornou
praticamente impossiacutevel se estabelecer limites para as accedilotildees repressivas do Estado e dos
militares e por isso mesmo fragilizou a defesa dos direitos humanos no paiacutes Afinal
todo cidadatildeo passava a ser culpado ateacute que fosse provada a sua inocecircncia Por meio
desse pensamento a raiz dos abusos de poder perpetrados pelo Estado se estruturou Por
isso defende-se aqui que a institucionalizaccedilatildeo dessa crenccedila no inimigo interno criada
pela ESG antes mesmo do golpe civil-militar estimulou a ditadura a nortear o
desenvolvimento das suas estruturas defensivas da sua articulada rede de informaccedilotildees
poliacuteticas e ainda do seu aparato repressivo de controle armado onde os DOI-CODI a
39
partir de 1970 tambeacutem estariam inseridos
12 Os conceitos legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar
Essa crenccedila no inimigo interno criada pela ESG norteou a Seguranccedila Nacional
durante a ditadura militar que se substanciou atraveacutes da alta legalidade autoritaacuteria e
das medidas criadas pelo governo como forma de conter as cizacircnias militares Esses trecircs
fatores juntos contribuiacuteram para consolidaccedilatildeo dos DOI-CODI por todo paiacutes
respaldando a atuaccedilatildeo altamente autoritaacuteria e violenta desses oacutergatildeos
A partir disso o conceito de legalidade autoritaacuteria construiacutedo pelo cientista
poliacutetico norte-americano Anthony Pereira (2010) ajuda a evidenciar como a existecircncia
de laccedilos entre o autoritarismo e o estado de direito do regime militar no Brasil ajudou na
configuraccedilatildeo de uma instituiccedilatildeo como o DOI-CODI Afinal a legalidade autoritaacuteria
identifica as coexistecircncias entre o autoritarismo ditatorial e a continuidade das
instituiccedilotildees juriacutedicas anteriores ao Golpe bem como entre o autoritarismo ditatorial e a
praacutetica de elaboraccedilatildeo de leis ainda que tambeacutem autoritaacuterias
Percebe-se assim que o Brasil obteve um alto grau de legalidade autoritaacuteria na
medida em que a legislaccedilatildeo foi amplamente arbitrada pelo Poder Executivo como forma
de legalizar arbitrariedades poliacuteticas e suprimir direitos da populaccedilatildeo Assim foi
construiacuteda uma sustentaccedilatildeo juriacutedica e poliacutetica necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um aparato de
seguranccedila cada vez mais forte e centralizado que garantiu a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos
DOI-CODI
Afinal a legalidade autoritaacuteria vivenciada no Brasil se baseava na confecccedilatildeo pelo
Poder Executivo de leis publicadas em meios de comunicaccedilatildeo oficiais a fim de
respaldar arbitrariedades A partir dessas leis instrumento associado ao sistema
democraacutetico o governo militar centralizava e reforccedilava o seu poder ditatorial tornando
40
nebuloso o sistema em vigor naquele momento no Brasil Ou seja apesar da existecircncia
de uma ditadura militar consolidada havia integraccedilatildeo entre as Forccedilas Armadas e o
Poder Judiciaacuterio ndash que norteava os seus julgamentos pelas novas leis arbitraacuterias
legitimando-as ndash bem como a manutenccedilatildeo do Congresso em funcionamento na maior
parte do tempo Dessa forma a legalidade autoritaacuteria era um elo entre o autoritarismo
ditatorial e o estado de direito conseguindo fazer parecer por algum tempo que o paiacutes
vivenciava um sistema democraacutetico excepcional A praacutetica da legalidade autoritaacuteria na
forma de atos institucionais da Constituiccedilatildeo de 1967 e de leis de Seguranccedila Nacional
por exemplo forneceu os suportes legais necessaacuterios agrave construccedilatildeo do SISSEGIN e agrave
formaccedilatildeo e agrave atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
Aleacutem disso essa praxe da ditadura de agir por meio de leis arbitraacuterias na maior
parte das vezes se relaciona com as cizacircnias militares provocadas no seio dessa
instituiccedilatildeo como reflexos de acontecimentos poliacuteticos Afinal grande parte das leis
autoritaacuterias foram artifiacutecios usados como forma de acalmar os acircnimos na caserna
formada por militares de meacutedias e baixas patentes que reivindicavam mais poder
poliacutetico Assim para conter a oposiccedilatildeo poliacutetica e tambeacutem as reivindicaccedilotildees de poder da
caserna desenharam-se leis arbitraacuterias capazes de suportar um organismo de repressatildeo
onde esses militares trabalhariam com certa autonomia tal como viriam a ser os DOI-
CODI Logo percebe-se aqui que juntamente com a legalidade autoritaacuteria a leitura
dos encaminhamentos poliacutetico-militares feita por Joatildeo Roberto Martins Filho (1993)
sob a luz de conceitos como o de cizacircnias militares baseadas em dissidecircncias militares
internas entre o palaacutecio e a caserna tambeacutem ilumina o entendimento sobre a formaccedilatildeo
e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
Tais encaminhamentos poliacuteticos militares tecircm iniacutecio no dia 9 de abril dez dias
apoacutes o golpe civil-militar de 1964 e ainda antes da posse de Castelo Branco em 15 de
41
abril quando o Comando Supremo da Revoluccedilatildeo baixou um ato institucional
posteriormente conhecido como AI-1 que conferia aos militares o poder de puniccedilatildeo a
crimes de cidadatildeos contra o Estado seu patrimocircnio e contra a ordem poliacutetica e social
No entanto o AI-1 previa tambeacutem a possibilidade de passar este poder para as matildeos do
novo presidente da Repuacuteblica dois meses apoacutes a sua posse colocando oficialmente o
Poder Executivo acima dos demais Assim Costa e Silva integrante do Comando e
futuro ministro da Guerra fez expedir um pouco antes da posse de Castelo Branco em
complemento ao AI-1 o Ato do Comando Supremo da Revoluccedilatildeo nordm 9 e a Portaria nordm1
que davam continuidade ao poder de puniccedilatildeo dos militares mesmo depois da posse de
Castelo Branco Com isso foram criadas as condiccedilotildees para que coroneacuteis tenentes-
coroneacuteis majores e capitatildees6 continuassem agindo na caccedila ao ldquoinimigo internordquo
O Ato do Comando Supremo da Revoluccedilatildeo nordm 9 estabelecia que os militares
encarregados de inqueacuteritos e processos (de suspensotildees de direitos poliacuteticos cassaccedilotildees
de mandatos etc) poderiam delegar atribuiccedilotildees referentes a investigaccedilotildees bem como
requisitar inqueacuteritos ou sindicacircncias instituiacutedas por outras esferas Jaacute a Portaria nordm1
determinava a abertura de Inqueacuterito Policial Militar (IPM) para apuraccedilatildeo de crimes
praticados contra o Estado e a ordem poliacutetica social
No entanto no dia 15 de junho de 1964 juntamente com o teacutermino da validade do
AI-1 acabaria tambeacutem o prazo dos militares cassarem mandatos e suspenderem direitos
poliacuteticos Tais militares requisitaram que o poder a eles concedido natildeo fosse cessado o
que foi negado pelo entatildeo presidente Castelo A partir disso a insatisfaccedilatildeo desses
militares acabou por causar o surgimento de uma primeira e consideraacutevel discoacuterdia
interna agrave instituiccedilatildeo militar uma primeira cizacircnia militar A partir dessa situaccedilatildeo de
conflito surge entatildeo a chamada linha dura que se formou atraveacutes do eco que um
6 Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II
42
conjunto de pressotildees da jovem oficialidade nessa fase inicial da ditadura encontrou em
meio a alguns ldquoherdeiros civisrdquo do regime e em setores da hierarquia militar Dessa
forma a linha dura foi formada por grupos heterogecircneos de composiccedilatildeo variaacutevel e
ideologia difusa
Logo assim como Martins Filho e diferentemente da interpretaccedilatildeo de grande
parte dos historiadores acredita-se que mesmo em termos ideoloacutegicos a linha dura
estava longe de ser um grupo homogecircneo tendo por denominador comum apenas duas
caracteriacutesticas
Em primeiro lugar as reivindicaccedilotildees de maior rigor na ldquodepuraccedilatildeordquo do
sistema poliacutetico em segundo lugar as expectativas de influenciar
diretamente o processo de tomadas de decisotildees do governo militar Tanto em
um como em outro aspecto suas accedilotildees provocariam problemas para o
governo de Castelo Branco (Martins Filho 1993 61)
Portanto o governo Castelo Branco logo teve que se deparar com a questatildeo da
participaccedilatildeo poliacutetica do conjunto da categoria militar no regime ditatorial Sem atribuir
ao presidente uma visatildeo mais liberal ndash diferentemente daqueles que interpretam as
medidas mais ldquodurasrdquo de Castelo como resultado das pressotildees da linha dura ndash pondera-
se aqui que por parte do governo o redirecionamento de objetivos iniciais era
recorrente sempre que a situaccedilatildeo exigia uma reavaliaccedilatildeo Dessa forma percebe-se que
os rumos poliacuteticos escolhidos pela ditadura tinham como finalidade a preservaccedilatildeo da
hierarquia e da aparente homogeneidade da instituiccedilatildeo castrense o que demandava a
contenccedilatildeo das instabilidades internas
A partir dessa perspectiva destaca-se o caraacuteter flutuante dos conflitos internos ao
regime decorrentes da incompatibilidade de interesses poliacuteticos entre os militares de
altas patentes que possuiacuteam cargos no governo ditatorial representados
43
metaforicamente pelo palaacutecio e militares de meacutedias e baixas patentes que eram
responsaacuteveis por serviccedilos internos a caserna Nesse sentido evidencia-se por exemplo
que apoacutes ser retirado da caserna o poder de cassaccedilatildeo de mandatos e de suspensatildeo de
direitos poliacuteticos as derrotas dos candidatos aliados ao regime ditatorial nas eleiccedilotildees
para governador nos estados da Guanabara e de Minas Gerais em outubro de 1965
ocasionou uma forte divergecircncia entre o palaacutecio e a caserna resultando uma
instabilidade castrense que desembocou em mais uma cizacircnia militar Diante disso na
tentativa de apaziguar a instabilidade militar e por conseguinte os acircnimos da caserna
no fim desse mesmo mecircs Castelo Branco decretaria o AI-27 com vigecircncia prevista ateacute
15 de marccedilo de 1967
Afinal atraveacutes desse Ato a caserna aleacutem de passar a influir no acircmbito da poliacutetica
comeccedilava a ganhar poderes extras Nele se estabelecia a possibilidade de suspensatildeo de
direitos poliacuteticos e de cassaccedilatildeo de mandatos de parlamentares imposiccedilatildeo da eleiccedilatildeo
indireta para a Presidecircncia da Repuacuteblica permissatildeo para o presidente da Repuacuteblica
decretar o recesso do Congresso Nacional e das demais casas legislativas extinccedilatildeo de
partidos poliacuteticos delegaccedilatildeo ao presidente da Repuacuteblica do poder de legislar por
decretos-leis estabelecimento de foro especial militar para civis acusados de crimes
contra a Seguranccedila Nacional ou as instituiccedilotildees militares suspensatildeo das garantias de
vitaliciedade inamovibilidade (dos juiacutezes) e de estabilidade (dos servidores puacuteblicos)
ampliaccedilatildeo de 11 para 16 ministros do Supremo Tribunal Federal (Ato Institucional Nordm2
27 out 1965)
Com a cassaccedilatildeo de mandatos suspensatildeo de direitos poliacuteticos e demissatildeo de
funcionaacuterios puacuteblicos a caserna conseguia alguma interferecircncia nos assuntos poliacuteticos
e com a decretaccedilatildeo de foro militar especial para civis acusados de crimes contra a
7 Para mais informaccedilotildees sobre o AI-2 ver BRASIL Ato Institucional Nordm2 de 27 de outubro de 1965
44
Seguranccedila Nacional ou instituiccedilotildees militares comeccedilava a ganhar um espaccedilo proacuteprio e
aos poucos formar um grupo disposto a agir por sua conta sem maiores consideraccedilotildees
pelas normas legais tendendo a fazer valer suas ideias pela forccedila A futura comunidade
de seguranccedila comeccedilava entatildeo a ser desenhada e a formar o caraacuteter e a atuaccedilatildeo dos
futuros membros de seus oacutergatildeos A montagem do sistema de seguranccedila interna em que
os DOI-CODI seriam inseridos iria a partir das primeiras leis das desavenccedilas internas
e da deflagraccedilatildeo dos primeiros Atos Institucionais se tornando viaacutevel
Entretanto mesmo apoacutes o AI-2 a crise no regime castrense continuava A
caserna ansiosa por mais espaccedilo poliacutetico comeccedilava a se organizar para a ascensatildeo de
outra forccedila ao governo se articulando em torno do entatildeo ministro da Guerra o general
Costa e Silva A desuniatildeo hieraacuterquica provocada pela disputa sucessoacuteria se configurava
naquele momento como um importante fator da crise do regime militar Em meio a este
clima de tensatildeo Castelo Branco e seus partidaacuterios os ditos castelistas se preocupavam
com a ldquoinstitucionalizaccedilatildeo da revoluccedilatildeordquo Diante dessa configuraccedilatildeo a ldquorevoluccedilatildeo
castelistardquo de fato acabou sendo implantada pelo presidente e os pilares de seu
processo foram a Lei de Seguranccedila Nacional e a Constituiccedilatildeo de 1967
A Carta de 1967 incorporou boa parte das medidas autoritaacuterias estabelecidas pelos
atos institucionais Entre essas as que instituiacuteam que toda pessoa natural ou juriacutedica
seria responsaacutevel pela Seguranccedila Nacional nos limites definidos em lei e que o foro
militar previsto no AI-2 por limitado periacuteodo de tempo ficaria definitivamente
estendido aos civis por tempo indeterminado nos casos de crimes contra a Seguranccedila
Nacional Jaacute a Lei de Seguranccedila Nacional reflexo tambeacutem do caraacuteter ldquodurordquo do final do
governo Castelo transformava em legislaccedilatildeo a Doutrina de Seguranccedila Nacional da
ESG legalizando a concepccedilatildeo de ldquoguerra internardquo e de ldquosubversatildeordquo dois dias antes da
chegada de Costa e Silva ao poder presidencial Essas uacuteltimas medidas do governo de
45
Castelo merecem aqui destaque por significarem um impulso agrave criaccedilatildeo de um setor
voltado para a repressatildeo poliacutetica seara em que os DOI-CODI atuariam anos agrave frente
Assim em meio a um clima anti-castelista em 15 de marccedilo de 1967 Costa e
Silva assume o governo militar prometendo inclusive uma maior humanizaccedilatildeo da
poliacutetica Entretanto com a eclosatildeo de protestos de rua contra a violecircncia ditatorial o
novo presidente logo retomaria o aspecto ldquorevolucionaacuteriordquo do regime militar e
decretaria o Ato Institucional Nordm5 (AI-5) 8
Afinal a partir dos discursos do deputado
Maacutercio Moreira Alves evocando os brasileiros a natildeo comparecerem ao tradicional
desfile do dia sete de setembro daquele ano de 1968 Costa e Silva e o palaacutecio passaram
a ser extremamente pressionados pela caserna a reagir A recusa da Cacircmara dos
Deputados em abrir um processo para cassaccedilatildeo do entatildeo deputado foi a justificativa
necessaacuteria para que o presidente convocasse a cuacutepula do aparelho militar e os juristas
palacianos para darem forma ao AI-5 vindo a decretaacute-lo na noite do dia 13 de dezembro
de 1968
Percebe-se que a conjuntura de 1968 iniciado com os protestos estudantis de
massa tornou pela primeira vez desde o golpe de 1964 momentaneamente unificado o
movimento de repuacutedio de expressivos setores sociais ao avanccedilo da repressatildeo militar
Este fato que a princiacutepio pode fazer crer ter estimulado uma desuniatildeo militar parece
ter sido um fator adicional de uniatildeo das Forccedilas Armadas As tensotildees internas agrave
instituiccedilatildeo portanto foram neste momento colocadas em suspenso e a situaccedilatildeo militar
diante da ofensiva da oposiccedilatildeo teria criado uma espeacutecie de unidade de crise Poreacutem
esta unidade de crise das Forccedilas Armadas rapidamente se fragmentou trazendo agrave tona
novamente em meados de 1968 um variado e complexo conjunto de tensotildees no campo
militar Esta unidade no entanto voltaria a existir em torno da decretaccedilatildeo do AI-5 apoacutes
8 Para mais informaccedilotildees sobre o AI-5 ver BRASIL Ato Institucional Nordm5 de 13 de dezembro de 1968
46
a derrota na votaccedilatildeo no Congresso e quando as pressotildees da caserna em prol da
militarizaccedilatildeo do governo se voltaram para o palaacutecio
Nesse momento os generais do governo se sentiram muito mais ameaccedilados do
que na jaacute mencionada instabilidade gerada pelas derrotas nas eleiccedilotildees para governador
de 1965 O fato da oficialidade rebelde de entatildeo natildeo ter um porta-voz em postos de
comando como era na eacutepoca Costa e Silva e por isso parecer mais difusa a tornava
mais ameaccediladora agrave integridade da instituiccedilatildeo militar Assim a explicaccedilatildeo para
juntamente com a caserna os generais cobrarem do Ministro do Exeacutercito uma imediata
tomada de decisatildeo em favor da ldquoRevoluccedilatildeordquo estava portanto na busca pela
permanecircncia de uma unidade das Forccedilas Armadas Dessa forma momentos antes do AI-
5 a unidade da crise novamente se formou soacute que dessa vez por motivos inerentes
unicamente agrave proacutepria instituiccedilatildeo militar (Martins Filho 1993 158-174)
O AI-5 foi ateacute entatildeo a maior expressatildeo legal do autoritarismo da ditadura militar
e construiu uma base essencial para que em 1970 surgissem os DOI-CODI Afinal
aleacutem de natildeo estabelecer um prazo final para sua vigecircncia inovando em relaccedilatildeo aos
demais Atos Institucionais o AI-5 tornou legal a suspensatildeo da garantia de ldquohabeas
corpusrdquo nos casos de crimes poliacuteticos contra a Seguranccedila Nacional Logo a partir
desse Ato foram estabelecidas as condiccedilotildees necessaacuterias para a institucionalizaccedilatildeo dos
sistemas de seguranccedila e de informaccedilotildees bem como o surgimento da Comissatildeo Geral de
Investigaccedilotildees (CGI) na tentativa de combate agrave corrupccedilatildeo O sistema de seguranccedila
esboccedilado naquele momento buscava o aperfeiccediloamento sob a eacutegide da ldquoguerra
revolucionaacuteriardquo mencionada no preacircmbulo do proacuteprio AI-5
Considerando que assim se torna imperiosa a adoccedilatildeo de medidas que
impeccedilam que sejam frustrados os ideais superiores da Revoluccedilatildeo
preservando a ordem a seguranccedila a tranquilidade o desenvolvimento
econocircmico e cultural e a harmonia poliacutetica e social do Paiacutes comprometidos
47
por processos subversivos e de guerra revolucionaacuteria (Ato Institucional nordm
5 13 dez 1968)
Logo as cizacircnias militares e a legislaccedilatildeo a elas relacionada contribuiacuteram para a
formaccedilatildeo do cenaacuterio propiacutecio agrave institucionalizaccedilatildeo do aparato de repressatildeo Aparato este
que a partir do AI-5 foi se estruturando em trecircs grandes sistemas o SISNI Sistema
Nacional de Informaccedilotildees a CGI Comissatildeo Geral de Investigaccedilotildees e o SISSEGIN
Sistema de Seguranccedila Interna Este ao ser criado abriria espaccedilo para a repressatildeo
poliacutetica centralizada e institucionalizada dos DOI-CODI
13 A montagem e o funcionamento do SISSEGIN
Ao longo dos anos 70 os DOI-CODI passariam a ser os principais oacutergatildeos de
atuaccedilatildeo do SISSEGIN e um dos pontos centrais do aparelho de repressatildeo brasileiro Ao
seu lado em outras esferas de competecircncia estavam os oacutergatildeos do Sistema Nacional de
Informaccedilotildees (SISNI) e os da Comissatildeo Geral de Investigaccedilatildeo (CGI) Cada um desses
sistemas possuiacutea uma competecircncia especiacutefica o SISNI era responsaacutevel por buscar as
informaccedilotildees necessaacuterias agrave manutenccedilatildeo do regime de Seguranccedila Nacional procurando
desvendar quem eram os opositores ao governo os chamados ldquoinimigos internosrdquo
enquanto a CGI buscava o combate agrave corrupccedilatildeo no serviccedilo puacuteblico Jaacute o SISSEGIN
operava de forma centralizada tanto na investigaccedilatildeo quanto na apreensatildeo dos mesmos
ldquoinimigos internosrdquo
Para a anaacutelise do SISSEGIN vale-se aqui do trabalho de Carlos Fico Como eles
agiam (2001) feito com base no acervo da extinta Divisatildeo de Seguranccedila e Informaccedilotildees
do Ministeacuterio da Justiccedila inclusive nos documentos sigilosos Afinal nesse estudo Fico
revela em detalhes o que nenhum outro historiador havia conseguido ateacute entatildeo a
48
formaccedilatildeo e o funcionamento das comunidades de informaccedilotildees e de seguranccedila da
ditadura militar brasileira
A partir disso destaca-se aqui que a estrutura e o funcionamento do SISSEGIN
foram instituiacutedos e regulamentados por meio de decretos sigilosos O mesmo padratildeo de
regulamentaccedilatildeo foi seguido pela Operaccedilatildeo Bandeirantes (Oban) instituiccedilatildeo informal
criada em Satildeo Paulo em julho de 1969 bem como pelos DOI-CODI instituiacutedos no
primeiro semestre de 1970 formalizando a experiecircncia da Oban e espalhando-a por
todas as Regiotildees Militares do Brasil Jaacute que eacute atraveacutes dessas Regiotildees que o Exeacutercito
divide geograficamente sua administraccedilatildeo sobre o territoacuterio brasileiro foi tambeacutem por
meio delas que partiu durante parte da ditadura militar as responsabilidades territoriais
dos DOI-CODI Logo o DOI-CODI do Rio de Janeiro ficava responsaacutevel pelos crimes
poliacuteticos ocorridos na Primeira Regiatildeo ou seja nos estados do Rio de Janeiro e do
Espiacuterito Santo
A justificativa para esse sigilo dos atos que regiam o SISSEGIN e os DOI-CODI
estava na maior mobilidade e autonomia de accedilatildeo que o segredo traria para a atuaccedilatildeo
repressora desses organismos Dessa forma a repressatildeo podia agir sem grandes
limitaccedilotildees natildeo esbarrando em questotildees externas agraves decisotildees militares tais como os
Direitos Humanos Universais de 1948
No entanto eacute tambeacutem evidente a importacircncia que alguns atos legais natildeo-sigilosos
tiveram para a construccedilatildeo do cenaacuterio que sustentaria a atuaccedilatildeo do SISSEGIN e dos
DOI-CODI Eacute o caso por exemplo da adoccedilatildeo do foro especial para crimes poliacuteticos
que a partir do AI-2 e da subsequente incorporaccedilatildeo dessa medida pela Constituiccedilatildeo de
1967 passaram a ser julgados pelos tribunais militares e a suspensatildeo de garantias
individuais tal como o habeas corpus feita pelo AI-5 de dezembro de 1968 Afinal
natildeo seria eficaz para a atuaccedilatildeo desses oacutergatildeos repressores que seus prisioneiros poliacuteticos
49
atraveacutes do habeas corpus pudessem ser imediatamente soltos pela Justiccedila ou que
pudessem ser julgados por tribunais civis correndo o risco do juiz responsaacutevel pela
causa natildeo estar totalmente articulado aos princiacutepios impostos pela Doutrina de
Seguranccedila Nacional
Dessa forma ateacute o AI-5 foram levantadas as bases legais para que um Sistema de
Seguranccedila Nacional centralizado combativo e violento fosse institucionalizado Por
outro lado a partir do AI-5 para ter a autonomia e a mobilidade que se julgavam
necessaacuterias a organizaccedilatildeo desse Sistema de Seguranccedila Nacional foi sigilosa Ou seja a
reestruturaccedilatildeo do sistema repressivo com os seus novos oacutergatildeos e o detalhamento de
suas funccedilotildees internas natildeo foi publicada oficialmente por nenhum tipo de legislaccedilatildeo A
operacionalidade da seguranccedila interna foi regida por diretrizes secretas e o SISSEGIN
instituiacutedo por decretos sigilosos do Conselho de Seguranccedila Nacional (CSN) aprovados
pelo Presidente da Repuacuteblica
Por isso mesmo uma das primeiras medidas para o estabelecimento do SISSEGIN
e posteriormente dos DOI-CODI foi o fortalecimento do Conselho de Seguranccedila
Nacional cujas competecircncias foram ampliadas por atualizaccedilatildeo na legislaccedilatildeo operada
em janeiro de 1968 No ano seguinte em julho a Diretriz para a Poliacutetica de Seguranccedila
Interna foi instituiacuteda secretamente a fim de consolidar o SISSEGIN e adotar
nacionalmente o padratildeo da Oban (Operaccedilatildeo Bandeirante) No entanto somente em
1970 durante a vigecircncia do governo Meacutedici o modelo da Oban foi adaptado
transformado em DOI-CODI e de fato instituiacutedo por todas as Regiotildees Militares do
paiacutes
A Oban foi secretamente instituiacuteda em 1ordm de julho de 1969 no quartel do II
Exeacutercito em Satildeo Paulo No intuito de combater de forma mais organizada e eficaz a
esquerda armada a Oban usava de sua ldquoilegalidade oficialrdquo para agir contra os
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ldquoinimigos internosrdquo sem precisar adequar seus meacutetodos de trabalho aos Direitos
Humanos A Oban criava uma estrutura nova que coordenava e integrava os diversos
oacutergatildeos de repressatildeo poliacutetica ndash entre eles as 2ordf seccedilotildees da Poliacutecia Militar Exeacutercito e
Marinha de Satildeo Paulo responsaacuteveis pelas investigaccedilotildees de crimes poliacuteticos nessas
instituiccedilotildees ndash que operavam de forma desordenada e ineficaz contra a esquerda armada
em aparente ascensatildeo O funcionamento da Oban se dava por meio de um trabalho
coordenado de diversas instacircncias conforme apresenta Fico no seguinte trecho
O funcionamento da Oban supunha um trabalho coordenado de diversas
instacircncias Toda quarta-feira era feita uma reuniatildeo no quartel-general do II
Exeacutercito na qual eram discutidas e avaliadas as accedilotildees da guerrilha da
semana Participavam dessas reuniotildees o chefe da 2ordf Seccedilatildeo do II Exeacutercito o
comandante da Oban major Waldyr Coelho um representante da 2ordf Seccedilatildeo
do II Exeacutercito o oficial chefe da 2ordf Seccedilatildeo do Distrito Naval o chefe da 2ordf
Seccedilatildeo da Poliacutecia Militar do Estado de Satildeo Paulo um representante da Poliacutecia
Federal um representante da Divisatildeo da Ordem Social e outro da Ordem
Poliacutetica ambos do DOPS (Fico 2001 117)
Aleacutem dos meios militar e policial a Oban tambeacutem era sustentada pelo
empresarial financeiro e parte das autoridades civis paulistas da eacutepoca conforme indica
trecho do artigo da historiadora Mariana Joffily para a revista Caros Amigos
O ato que celebrou a criaccedilatildeo da Oban foi organizado com pompa coqueteacuteis
e salgadinhos e contou com a presenccedila das principais autoridades poliacuteticas
de Satildeo Paulo o governador Roberto de Abreu Sodreacute o prefeito Paulo Maluf
o comandante do II Exeacutercito (atual Regional Sudeste) general Joseacute
Canavarro Pereira entre outros Tambeacutem acorreram agrave cerimocircnia figuras
proeminentes da elite paulista oriundas dos meios empresarial e financeiro
Luiz Macedo Quentel Antonio Delfim Netto Gastatildeo Vidigal Paulo Sawaya
e Henning Albert Boilesen Parte do setor empresarial paulista e das
multinacionais ndash com representaccedilatildeo em Satildeo Paulo ndash acreditava que as accedilotildees
guerrilheiras colocavam em risco a boa conduta dos negoacutecios e concorreu
51
para o apoio financeiro e material As autoridades da cidade colaboraram
com infra-estrutura incluindo a cessatildeo de partes das dependecircncias da 36ordf
delegacia de poliacutecia situada na Rua Tutoacuteia (Vila Mariana) para a
acomodaccedilatildeo do novo oacutergatildeo repressivo (Joffily 14 set 2009)
Percebe-se portanto que muitos empresaacuterios de Satildeo Paulo ajudaram a financiar a
Oban Entre outros gastos esse financiamento era destinado agrave capacitaccedilatildeo de seus
agentes e agrave compra de equipamentos de tortura novos entre eles uma maacutequina de
choques eleacutetricos nomeada de ldquoPianola Boilesenrdquo em homenagem a Henning Albert
Boilesen entatildeo presidente da empresa Ultragaacutes e um dos empresaacuterios agrave frente desse tipo
de investimento na Oban Boilesen assim como os demais empresaacuterios envolvidos
financeiramente com a Oban por desacreditar nas instituiccedilotildees do Estado que ateacute entatildeo
eram responsaacuteveis pelo combate agrave esquerda armada e por ter interesses reais nesse
combate optou por capitalizar a Oban Afinal uma instituiccedilatildeo extra-oficial de accedilatildeo
coordenada e com grande investimento teria autonomia e capacidade para neutralizar os
grupos da esquerda armada que vinham causando prejuiacutezos a seus negoacutecios tais como
assaltos e atentados Justamente devido a essa relaccedilatildeo que tinha com a Oban Boilesen
foi assassinado posteriormente em 1971 por militantes da esquerda armada 9
Percebe-se portanto que a Oban tinha caraacuteter paramilitar e unia a iniciativa
privada ao Estado a fim de que o poder de poliacutecia deste fosse fortalecido Sua criaccedilatildeo
empregou portanto um novo tipo de atuaccedilatildeo militar em que o combate ao ldquoinimigo
internordquo contaria com uma forte autonomia de accedilatildeo respaldada pelo sigilo dos decretos
regulamentares e pelo financiamento do empresariado A Oban se consagrava como um
poderoso e promissor modelo de repressatildeo
No entanto o envolvimento de oficiais das Forccedilas Armadas policiais e
empresaacuterios com a repressatildeo poderia assumir proporccedilotildees que fugissem ao controle
9 Para mais informaccedilotildees sobre Henning Albert Boilesen e a relaccedilatildeo do empresariado com a Oban ver o
filme documentaacuterio Cidadatildeo Boilesen (Brasil 2009)
52
militar e configurassem algumas vezes conflitos de interesses Assim com o sucesso
das accedilotildees da Oban no combate aos opositores armados os militares optaram por
ampliar o seu modelo para todo o Brasil desde que incorporasse algumas reformulaccedilotildees
que assegurassem o total controle militar Surgiriam entatildeo os DOI-CODI
Os DOI-CODI eram portanto a institucionalizaccedilatildeo e a sofisticaccedilatildeo do modelo da
Oban Afinal eles coordenavam todas as demais Forccedilas e Poliacutecias sob o comando do
Exeacutercito e estavam espalhados por todas as Regiotildees Militares do paiacutes Eram a nova
estrutura do SISSEGIN implantada por diretrizes secretas que o Conselho de Seguranccedila
Nacional havia formulado Tais diretrizes estabeleceram que para cada um dos
comandos militares haveria um Conselho de Defesa Interna (CONDI) um Centro de
Operaccedilotildees de Defesa Interna (CODI) e um Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees
(DOI) todos sob responsabilidade do comandante do Exeacutercito respectivo denominado
comandante da ldquoZona de Defesa Internardquo (ZDI) O paiacutes ficou assim dividido em seis
ZDI Podiam ser criadas ainda Aacutereas de Defesa Interna (ADI) ou Sub-Aacutereas de Defesa
Interna (SADI) em regiotildees que merecessem cuidados especiais
Aos Conselhos de Defesa Interna (CONDI) cabia assessorar os comandantes das
ZDI e tambeacutem facilitar a esses comandantes a coordenaccedilatildeo de accedilotildees e a necessaacuteria
cooperaccedilatildeo por parte das mais altas autoridades civis e militares com sede nas
respectivas aacutereas de responsabilidade Logo os CONDI podiam ser integrados por
governadores ou seus representantes assim como comandantes das Forccedilas Navais e
Aeacutereas comandantes subordinados secretaacuterios de seguranccedila e comandantes das demais
Poliacutecias ou outras autoridades conforme o comandante da respectiva ZDI julgasse
necessaacuterio Tinham como aacuterea de jurisdiccedilatildeo territorial as Regiotildees Militares cujas sedes
se localizam em Satildeo Paulo Rio de Janeiro (1ordm BPE) Brasiacutelia Minas Gerais Rio Grande
do Sul Bahia Pernambuco e Cearaacute No entanto segundo Fico os CONDI natildeo tiveram
53
funcionamento significativo
Os Centros de Operaccedilotildees de Defesa Interna (CODI) eram oacutergatildeos de planejamento
e coordenaccedilatildeo das medidas de defesa interna dirigidos pelo chefe do Estado-Maior do
Exeacutercito da Regiatildeo e compostos por representantes de todas as Forccedilas bem como da
divisatildeo local de ordem poliacutetica e social das Poliacutecias Civil Militar Federal e da agecircncia
local do Serviccedilo Nacional de Informaccedilotildees (SNI) Entre suas funccedilotildees estavam o
planejamento o controle e a execuccedilatildeo das medidas de defesa interna a coordenaccedilatildeo dos
meios utilizados para esta execuccedilatildeo e a ligaccedilatildeo com todos os escalotildees envolvidos
devendo possibilitar a conjugaccedilatildeo de esforccedilos do Exeacutercito da Marinha da Aeronaacuteutica
do SNI do Poliacutecia Federal e das Secretarias de Seguranccedila Puacuteblica
Jaacute os Destacamentos de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) tinham uma
estruturaccedilatildeo interna tiacutepica composta por setores especializados em operaccedilotildees externas
informaccedilotildees contra-informaccedilotildees interrogatoacuterios e anaacutelises aleacutem de assessoria juriacutedica
e policial e setores administrativos O trabalho nesses destacamentos era ininterrupto
Utilizavam regularmente dois regimes de trabalho um de expediente regular (das 8 agraves
18 horas) e outro atraveacutes de plantotildees de 24 horas por 48 de folga Abaixo visualiza-se a
estrutura orgacircnica dos DOI que sintetiza suas funccedilotildees e sua hierarquia institucional
(FICO 2001 123-125)
54
DOI do Exeacutercito
No organograma acima nota-se que os DOI eram divididos por setores seccedilotildees e
subseccedilotildees Esses satildeo caracterizados por Fico de acordo com suas funccedilotildees e
composiccedilotildees e tambeacutem pelo coronel Freddie Perdigatildeo Pereira em sua monografia que eacute
analisada na segunda frente do estudo aqui traccedilado Percebe-se que essa caracterizaccedilatildeo
feita por Fico e por Pereira eacute muito proacutexima uma vez que eles utilizam os mesmos
termos e palavras para descrever o trabalho ou a formaccedilatildeo de determinado setor ou
seccedilatildeo Diante disso torna-se evidente que ambos os trabalhos se basearam no mesmo
documento que apesar de natildeo ser citado na monografia de Pereira eacute referenciado por
Fico como ldquoSistema de Seguranccedila Interna SISSEGIN Documento classificado como
lsquosecretorsquo [1974] Capiacutetulo 2rdquo Entretanto enquanto o Sistema de Seguranccedila Nacional
como um todo eacute o foco da pesquisa de Fico o DOI eacute o objeto de Pereira o que por
conseguinte o faz apresentar de forma mais detalhada a composiccedilatildeo de cada uma de
suas partes integrantes Logo optou-se aqui por tratar da estrutura interna dos DOI na
Comandante
Seccedilatildeo de contra-informaccedilotildees Turma de comando
Setor de operaccedilotildees de informaccedilotildees Setor de administraccedilatildeo
Turno auxiliar
Assistecircncia juriacutedica
e policial
Seccedilatildeo
administrativa
Seccedilatildeo de busca e
apreensatildeo
Setor de
investigaccedilotildees
Setor de anaacutelise e
informaccedilotildees
Subseccedilatildeo de
interrogatoacuterio Subseccedilatildeo de anaacutelise
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proacutexima frente de estudo durante a anaacutelise da monografia de Pereira onde
trabalharemos com os DOI-CODI sob o ponto de vista de um de seus agentes ainda
durante a ditadura
Com relaccedilatildeo agrave atuaccedilatildeo dos DOI-CODI dentro do SISSEGIN Maria Celina
DrsquoArauacutejo em Os anos de Chumbo a memoacuteria militar sobre a repressatildeo (1994)
apresenta grandes contribuiccedilotildees para a presente pesquisa uma vez que em sua obra
analisa por meio de depoimentos ineacuteditos de militares a atuaccedilatildeo dos oacutergatildeos de
informaccedilatildeo e repressatildeo poliacutetica durante a ditadura militar
Partindo dessa abordagem de DrsquoArauacutejo destaca-se que diferentemente do que
acontecia na Oban cada um dos DOI-CODI tinha por comandante-geral o chefe do
Estado-Maior do Exeacutercito de sua respectiva Regiatildeo Militar e seu financiamento contava
com recursos orccedilamentaacuterios regulares do governo Logo os DOI-CODI natildeo
estabeleciam uma ligaccedilatildeo direta com o capital privado que entretanto ainda podia
investir de forma indireta na repressatildeo por meio de doaccedilotildees de maacutequinas e serviccedilos
Dessa forma os DOI-CODI tinham uma maior independecircncia financeira que junto com
a centralizaccedilatildeo hieraacuterquica que tambeacutem os caracterizava permitia que suas
investigaccedilotildees e accedilotildees procedessem de forma ainda mais eficiente Afinal esses atributos
evitavam que suas operaccedilotildees estivessem suscetiacuteveis agrave duplicidade de tarefas a
competiccedilotildees e a conflitos de interesses maximizando os seus resultados e tornando-os
uma espeacutecie de sofisticaccedilatildeo da repressatildeo
Aleacutem disso percebe-se que essa sofisticaccedilatildeo dos DOI-CODI tambeacutem era formada
pelo proposital distanciamento ali mantido entre os militares do governo e os agentes
desses oacutergatildeos de repressatildeo Afinal a ditadura ao mesmo tempo em que sancionava a
tortura nos seus ldquoporotildeesrdquo estrategicamente negava a sua existecircncia perante a sociedade
Assim esse cenaacuterio que isentava os governantes e os demais militares relacionados ao
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poder poliacutetico do paiacutes de qualquer ligaccedilatildeo com a tortura se mantinha atraveacutes da
seguinte configuraccedilatildeo de um lado o torturador ndash que natildeo montou a maacutequina e jamais
efetuaria a tortura num salatildeo do quartel do Exeacutercito se temesse a reaccedilatildeo de seus
comandantes ndash e de outro o seu superior responsaacutevel pela ordem puacuteblica e
beneficiaacuterio direto do poder poliacutetico ndash que sancionava as maacutequinas mas natildeo tocava nos
presos
Dessa forma os DOI responsaacuteveis por accedilotildees que englobavam as prisotildees e os
interrogatoacuterios dos presos poliacuteticos eram instituiccedilotildees que prezavam por natildeo ser
externamente identificadas por seus meacutetodos violentos O sistema funcional dos DOI
era entatildeo complexo e informal de modo que por mais que neles existissem hierarquia e
coordenaccedilatildeo as brechas para que a falta de controle se propagasse eram amplas a fim
de que os meacutetodos natildeo regulamentares tais como as torturas pudessem ser
desempenhados com a eficiecircncia e a recorrecircncia necessaacuterias sem serem relacionados
diretamente a um comando
Diante disso justifica-se que conforme apurado por Maria Celina DrsquoArauacutejo a
versatildeo oficial dos militares ainda possa ser a de que a tortura jamais resultou de
qualquer ordem ou orientaccedilatildeo superior E mesmo quando chega a ser admitida apareccedila
como exceccedilatildeo como abuso ou excesso de poucos Entretanto torna-se aqui evidente a
incoerecircncia dessa versatildeo militar Afinal verifica-se que assim como em todos os
organismos militares nos DOI tambeacutem existiam uma forte hierarquia a ser cumprida
onde apesar de uma estrutura complexa qualquer accedilatildeo deveria ser remetida a um
superior o que sugere que a questatildeo da responsabilidade sempre poderia ser resgatada
Logo se militares reconhecem que existiram ldquoexcessosrdquo na eacutepoca e mesmo assim os
chefes imediatos de tais infratores natildeo tomaram as devidas providecircncias encontra-se
nos DOI entatildeo uma forte incongruecircncia com relaccedilatildeo ao princiacutepio militar de
57
responsabilizaccedilatildeo do chefe-superior Portanto diante dessa constataccedilatildeo de como eram
tratados os torturadores nos DOI percebe-se que apesar de velada em geral a tortura
era um procedimento ali consentido
2 O DOI-CODI por ele mesmo
A anaacutelise ateacute agora feita por meio da historiografia cede aqui lugar para se
concentrar sobre uma fonte especiacutefica pela qual a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
satildeo vistas por um acircngulo mais proacuteximo a partir do olhar de um de seus agentes
enquanto a instituiccedilatildeo ainda estava em atividade Trata-se do trabalho O Destacamento
de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de
combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e perspectivas apresentado em 1978 agrave Escola de
Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie
Perdigatildeo Pereira10
posteriormente apontado por ex-prisioneiros poliacuteticos como o
torturador ldquoNagibrdquo do DOI carioca do iniacutecio dos anos 1970
A referida fonte eacute uma espeacutecie de trabalho final da ECEME estabelecimento de
ensino tradicional do Exeacutercito brasileiro situado no bairro da Praia Vermelha no Rio de
Janeiro cuja missatildeo eacute a preparaccedilatildeo de oficiais superiores para o exerciacutecio de funccedilotildees
de Estado-Maior comando chefia direccedilatildeo e assessoramento dos mais elevados
escalotildees da Forccedila Terrestre 11
Logo eacute fruto de uma espeacutecie de preparaccedilatildeo que o
coronel Pereira estava se submetendo a fim de ocupar algum cargo de chefia dentro do
Exeacutercito
Escrita durante a ditadura militar enquanto os DOI-CODI ainda estavam em
funcionamento embora em menor atividade devido agrave propagaccedilatildeo de denuacutencias sobre
10
Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II 11
ESCOLA de Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) [acesso em 29 jan 2012] Disponiacutevel
em httpwwwecemeensinoebbreceme
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torturas e mortes ocasionadas dentro do Destacamento a monografia permite trabalhar
diretamente com a visatildeo de um dos agentes do DOI-CODI ainda no ldquocalor da horardquo
como se costuma dizer O tema abordado eacute a atuaccedilatildeo dos DOI durante o seu periacuteodo de
maior efetividade de 1970 a 1973 provavelmente como uma tentativa de fortalecer a
instituiccedilatildeo e reforccedilar o seu poder trazendo agrave tona os ldquovelhos temposrdquo de grande
atividade
Em 1978 momento em que a monografia foi escrita o DOI-CODI havia
diminuiacutedo suas atividades de repressatildeo se restringindo apenas ao papel de investigaccedilatildeo
Como indica o referido coronel no seguinte trecho
Fruto principalmente do trabalho anocircnimo e incansaacutevel dos DOI o
terrorismo no Brasil foi praticamente aniquilado Em funccedilatildeo disso tais
oacutergatildeos foram e continuam sendo alvo de uma das mais virulentas campanhas
difamatoacuterias que a imprensa brasileira e internacional jaacute desencadearam
contra uma instituiccedilatildeo E os DOI que surgiram no fragor da luta e com
estrutura adaptada para enfrentar a accedilatildeo direta no combate aberto
reformulam a sua atuaccedilatildeo [] O efetivo elevado trabalhando atualmente na
Seccedilatildeo de Investigaccedilotildees pode dar ideia do tipo de trabalho que ora eacute
desenvolvido nos DOI com prioridade absoluta Trata-se do levantamento
total das organizaccedilotildees atuantes a partir da vigilacircncia permanente e cerrada
sobre os elementos jaacute identificados [] o trabalho nos DOI deixou de ter
aquele caraacuteter de combate de peito aberto tantas vezes levado a efeito por
seus pioneiros Transformou-se o DOI atual numa verdadeira agecircncia de
informaccedilotildees onde impera o trabalho frio e calculado do analista a teacutecnica
sofisticada de aparelhagem eletrocircnica substituindo a coragem pessoal de
seus elementos
Os DOICODI satildeo e sempre seratildeo as sentinelas atentas e vigilantes de nossa
liberdade (Pereira 1978 28-35)
Essa mudanccedila promovida nos DOI se relaciona diretamente com o momento
vivido pelo Brasil em 1978 Existia entatildeo uma incompatibilidade entre a distensatildeo
59
poliacutetica ldquolenta gradual e segurardquo comandada pelo Presidente Ernesto Geisel a fim de
abrir o paiacutes e instalar futuramente uma democracia e as denuacutencias sobre torturas e
mortes que continuavam a ocorrer dentro dos DOI-CODI e eram com frequecircncia
noticiadas pelos jornais do Brasil e do mundo Assim com o intuito de reverter este
cenaacuterio desfavoraacutevel Geisel optou por exonerar em 1976 o comandante do II Exeacutercito
o general Ednardo DAacutevila Melo afastar do governo no ano seguinte o entatildeo ministro
do Exeacutercito o general Siacutelvio Frota ndash visto por muitos agentes dos DOI como uma
lideranccedila contra a distensatildeo poliacutetica e o enfraquecimento das operaccedilotildees repressoras e
apoiado como eventual candidato agrave Presidecircncia da Repuacuteblica ndash e de forma geral
diminuir a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI no combate direto agrave ldquosubversatildeordquo concentrando suas
atividades apenas na investigaccedilatildeo
Esta atitude logicamente causou resistecircncia entre muitos integrantes dos DOI-
CODI que tentavam provar a necessidade da atuaccedilatildeo repressora da instituiccedilatildeo para a
proteccedilatildeo da Seguranccedila Nacional Essas tentativas incluiacuteam muitas accedilotildees forjadas pelos
proacuteprios agentes dos DOI como atentados a bomba em bancas de jornal instituiccedilotildees que
lutavam contra a ditadura ndash como a sede da OAB no Rio de Janeiro atacada em agosto
de 1980 quando morreu a secretaacuteria Lyda Monteiro ndash e shows populares ndash como a
tentativa frustrada de ataque a bomba de dois agentes do DOI do Rio de Janeiro em
maio de 1980 no show em homenagem ao dia do trabalhador no Riocentro
Outro aspecto dessa fonte que merece tambeacutem ser aqui destacado satildeo as
circunstacircncias pessoais que impulsionaram a sua confecccedilatildeo Afinal se a funccedilatildeo da
ECEME eacute preparar militares para ocupar cargos de chefia dentro do Exeacutercito
certamente a monografia foi um requisito necessaacuterio para que o coronel Pereira se
preparasse para uma promoccedilatildeo na carreira militar Partindo dessa informaccedilatildeo e
juntando-a ao dado que Elio Gaspari apresenta na obra A Ditadura Escancarada (2002
60
184) de que foi oferecido ao mesmo coronel no iniacutecio de 1980 o posto de general de
brigada percebe-se que de fato essa preparaccedilatildeo de Pereira lhe gerou frutos Poreacutem de
acordo com Gaspari para ser general de brigada ele teria que aceitar comandar uma
tropa em uma unidade militar de Satildeo Paulo o que natildeo lhe agradou Preferiu entatildeo a
opccedilatildeo de ir para a reserva e ao mesmo tempo permanecer como contratado em um
cargo na seccedilatildeo de operaccedilotildees do SNI do Rio de Janeiro recebendo no total uma receita
superior agrave de general de Exeacutercito Essa situaccedilatildeo tal como o tema escolhido para sua
monografia eacute mais uma evidecircncia do apreccedilo que coronel Pereira tinha pelo ofiacutecio
investigativo que outrora exerceu nos DOI Diante de sua progressatildeo profissional e do
esvaziamento que os DOI vinham sofrendo o SNI12
se tornava uma opccedilatildeo atraente
pois aleacutem de ser uma instituiccedilatildeo que investigava elementos que ameaccedilavam a
Seguranccedila Nacional estava diretamente ligada ao alto esquadratildeo do Exeacutercito ciacuterculo de
que Pereira fazia parte nesse momento
Com relaccedilatildeo agrave monografia desse coronel muitos pontos interessantes satildeo
destacados Entre eles o detalhamento estrutural dos DOI-CODI
Internamente os CODI eram subdivididos entre trecircs centrais 1- Central de
Informaccedilotildees 2- Central de Operaccedilotildees 3- Central de Assuntos Civis O comando
principal era da 1- Central de Informaccedilotildees que coordenava as investigaccedilotildees locais e
era chefiada pelo dirigente do CODI ou seja pelo chefe do Estado-Maior do Exeacutercito
da aacuterea que deveria ser um general do Exeacutercito Este reunia em sua equipe um
representante local do alto escalatildeo da Aeronaacuteutica da Marinha do SNI e do
Departamento de Poliacutecia Federal o diretor do DOPS e o Comandante do DOI daquela
jurisdiccedilatildeo aleacutem do chefe da 2ordf Seccedilatildeo da Poliacutecia Militar responsaacutevel pela parte de
informaccedilotildees relativas a crimes poliacuteticos Jaacute a 2- Central de Operaccedilotildees e a 3- de
12
Para mais informaccedilotildees sobre a formaccedilatildeo do SNI ver Antunes 2002
61
Assuntos Civis davam suporte agrave equipe da 1- de Informaccedilotildees e para tanto tambeacutem
congregavam em suas equipes representantes das trecircs Forccedilas sendo um representante
do Exeacutercito da Regiatildeo Militar correspondente responsaacutevel por ocupar o cargo de chefe
aleacutem de um representante credenciado da Poliacutecia Civil da Poliacutecia Militar local e de
outros oacutergatildeos quando fosse necessaacuterio para contribuir com alguma anaacutelise especiacutefica
O CODI de cada Regiatildeo Militar tinha por funccedilatildeo centralizar as informaccedilotildees de
caraacuteter ldquosubversivordquo e repassaacute-las ao DOI correspondente para que as operaccedilotildees de
informaccedilotildees fossem realizadas de forma concentrada atraveacutes desse uacutenico oacutergatildeo e por
conseguinte sob um uacutenico comando Assim evitava-se que vaacuterios oacutergatildeos de informaccedilatildeo
ligados a uma das trecircs Forccedilas ou agraves Poliacutecias realizassem suas operaccedilotildees
independentemente de qualquer coordenaccedilatildeo ou planejamento global o que poderia
acabar prejudicando as accedilotildees contra seus ldquoinimigos internosrdquo
Afinal de acordo com as informaccedilotildees levantadas por Pereira em sua monografia
antes dos DOI-CODI serem institucionalizados natildeo foram poucas as vezes que um
desses oacutergatildeos prejudicou a atuaccedilatildeo de outro Em diversos momentos enquanto um
estava realizando uma vigilacircncia sobre determinados elementos ldquosubversivosrdquo por
exemplo outro sem saber da accedilatildeo do primeiro prendia dois ou trecircs desses elementos
Dessa forma os demais membros da mesma organizaccedilatildeo ao saberem da prisatildeo de seus
companheiros natildeo retornavam agrave aacuterea sob vigiacutelia e evitavam ser presos Tambeacutem em
vaacuterias ocasiotildees a documentaccedilatildeo apreendida por determinado oacutergatildeo de seguranccedila ficava
em seu poder e natildeo era encaminhada para outros escalotildees para ser analisada Com essas
informaccedilotildees ldquoencostadasrdquo as accedilotildees armadas de organizaccedilotildees de esquerda que ali
estavam indicadas prosseguiam normalmente sem impedimentos
Percebe-se portanto como a centralizaccedilatildeo de informaccedilotildees e de accedilotildees de
seguranccedila interna implantada pelos DOI-CODI conduziu a resultados positivos para a
62
repressatildeo Natildeo eacute agrave toa que conforme analisado anteriormente a partir da tese de Maria
Celina DrsquoArauacutejo os DOI-CODI satildeo aqui entendidos como a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo
jaacute que os CODI passaram a concentrar e coordenar as informaccedilotildees e atraveacutes dos DOI a
executar de forma concentrada as operaccedilotildees de informaccedilotildees
Oacutergatildeos operacionais dos CODI os Destacamentos de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees
os DOI eram destinados ao trabalho de combate direto ao ldquoinimigo internordquo Para tanto
conforme analisado a partir da monografia de Pereira e da jaacute referida obra de Fico13
os
DOI dividiam-se basicamente entre 1- Setor de operaccedilotildees de informaccedilotildees e 2- Setor de
administraccedilatildeo Tais setores estavam diretamente subordinados ao comandante do
Destacamento daquela Regiatildeo Militar que normalmente deveria ser um tenente-coronel
com vivecircncia na aacuterea de informaccedilotildees Essa patente de tenente-coronel compunha o
ciacuterculo hieraacuterquico de oficiais e a hierarquia de oficiais superiores14
ou seja pertencia
ao acircmbito de convivecircncia desses oficiais e portanto era considerado um deles Isto
significa que os comandantes dos DOI estavam um degrau abaixo do uacuteltimo acircmbito
hieraacuterquico do Exeacutercito o dos oficiais-generais ciacuterculo referente aos chefes dos CODI
que deveriam possuir a patente de general de Exeacutercito
Chefiado pelo subcomandante do DOI o 1- Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees
tinha diretamente subordinado a ele 11- Setor de Investigaccedilatildeo 12- Setor de Anaacutelise e
Informaccedilotildees e 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo Jaacute o 2- Setor de administraccedilatildeo se
subdividia em 21- Assessoria Juriacutedica e Policial e 22- Seccedilatildeo administrativa
Ao 11- Setor de Investigaccedilatildeo cabia fundamentalmente a realizaccedilatildeo de
investigaccedilotildees com a finalidade de identificar e localizar ldquoelementos subversivosrdquo a fim
de repassar as informaccedilotildees para que os agentes da 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo
prendessem os suspeitos e localizassem os seus ldquoaparelhosrdquo (termo designado para
13
Para visualizar o organograma dos DOI voltar agrave paacutegina 54 14
Para mais informaccedilotildees sobre os ciacuterculos hieraacuterquicos e a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II
63
definir o local em que ficavam escondidos os integrantes dos grupos de esquerda que
viviam na clandestinidade) A chefia e a subchefia do 11- Setor de Investigaccedilatildeo era
privativa de oficiais do Exeacutercito e seus integrantes natildeo deveriam ser identificados pelos
elementos a serem presos a fim de que a eficiecircncia da accedilatildeo fosse garantida uma vez que
as suas identificaccedilotildees poderiam ocasionar a fuga dos suspeitos No entanto quando a
situaccedilatildeo exigia os integrantes desse setor poderiam efetuar prisotildees neutralizar
ldquoaparelhosrdquo e apreender material ldquosubversivordquo Esse 11- Setor de Investigaccedilatildeo agia por
meio de diversas turmas de investigaccedilatildeo compostas cada uma por um agente um
auxiliar e um carro normalmente da marca Volkswagen
O 12- Setor de Anaacutelise e Informaccedilotildees tinha por funccedilatildeo fornecer ao comandante
do DOI e aos demais setores seccedilotildees e subseccedilotildees informaccedilotildees estudos e conclusotildees
sobre as organizaccedilotildees ldquosubversivo-terroristasrdquo que atuavam na aacuterea Esse setor era
composto por um chefe sem patente ou ciacuterculo hieraacuterquico preacute-determinados pela
121- Subseccedilatildeo de anaacutelise e pela 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio
A 121- Subseccedilatildeo de anaacutelise tambeacutem natildeo exigia de forma predeterminada a
patente ou o ciacuterculo hieraacuterquico de quem a chefiasse Tinha por funccedilatildeo analisar os
depoimentos prestados pelos presos daquele DOI analisar o material das organizaccedilotildees
ldquoterroristasrdquo que havia sido recolhido pelas turmas da 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo
fornecer subsiacutedios ao chefe do 1- Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees e agrave equipe da
122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio manter para cada organizaccedilatildeo de esquerda uma pasta
com o seu histoacuterico relaccedilatildeo de nomes e codinomes relaccedilatildeo de accedilotildees e uma espeacutecie de
aacutelbum contendo as fichas de qualificaccedilatildeo fotografia atuaccedilatildeo e situaccedilatildeo de cada um de
seus elementos e por fim organizar atualizar e manter o arquivo geral contendo o
dossiecirc de cada elemento fichado
64
Jaacute a 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio era responsaacutevel pelo interrogatoacuterio e por
conseguinte pela aplicaccedilatildeo de torturas nos presos a fim de fazecirc-los falar o que sabiam
Seu chefe deveria ser um oficial do Exeacutercito de niacutevel de capitatildeo ou seja deveria
pertencer ao ciacuterculo hieraacuterquico de oficiais mas natildeo ao meio de oficiais superiores e
sim ao de oficiais intermediaacuterios No entanto a partir do ano de 1971 era preferiacutevel que
ele tivesse o curso B1 da Escola Nacional de Informaccedilotildees (EsNI) Este curso era uma
espeacutecie de especializaccedilatildeo em informaccedilotildees e seguranccedila interna ministrada pela EsNI
escola que havia sido criada pelo SNI durante o ano de 1971 e era a este subordinada
Como a 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio trabalhava ininterruptamente durante 24
horas ela se dividia em trecircs turmas de interrogatoacuterio preliminar cada uma chefiada
tambeacutem por um capitatildeo do Exeacutercito com o curso B1 da EsNI Essas turmas eram
compostas por seis agentes cada e aleacutem disso subordinada ao chefe de cada uma delas
existia uma turma auxiliar encarregada da carceragem e da datilografia de documentos
Jaacute a 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo tinha por ofiacutecio efetuar prisotildees ldquocobrir
pontosrdquo (preparar uma emboscada para prender os militantes esquerdistas no momento
em que se encontravam em algum ponto anteriormente combinado) neutralizar
ldquoaparelhosrdquo apreender material ldquosubversivordquo coletar dados que possibilitassem o
levantamento de elementos ldquosubversivosrdquo conduzir presos ao DOPS auditorias
hospitais etc O chefe deveria ser um oficial do Exeacutercito sem predeterminaccedilatildeo de
patente militar e sua equipe se dividia em trecircs grupamentos ldquoAB e Crdquo Cada um deles
era composto por quatro turmas de busca e apreensatildeo que tinham cerca de trecircs ou cinco
agentes e possuiacuteam cada uma um carro espaccediloso muitas vezes dos modelos C14 Opala
ou Kombi equipado com raacutedio Aleacutem disso a 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo
tambeacutem era composta por quatro turmas de coletas de dados que tinham por missatildeo
reunir informaccedilotildees sobre os ldquosubversivosrdquo em universidades coleacutegios etc Cada uma
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dessas turmas era constituiacuteda por dois elementos um oficial da PM da regiatildeo ou um
delegado de poliacutecia e um motorista que normalmente dirigia um carro de marca
Volkswagen com raacutedio
Ligada ao 2- Setor de administraccedilatildeo a 22- Seccedilatildeo administrativa garantia o apoio
logiacutestico ao DOI ou seja organizava o pedido de gecircneros alimentiacutecios bem como
outros utensiacutelios e equipamentos necessaacuterios Esta seccedilatildeo natildeo tinha nenhum tipo de
exigecircncia de patente ou ciacuterculo hieraacuterquico para o cargo de chefe Jaacute a 21- Assessoria
Juriacutedica e Policial era chefiada por um delegado de poliacutecia e tinha por missatildeo
assessorar o Comandante do DOI em assuntos judiciais elaborar a documentaccedilatildeo
formal e legal referente ao material apreendido e agraves confissotildees dos prisioneiros e
controlar a menagem dos presos que fossem liberados
A menagem estipulada pelo Coacutedigo Processual Militar criado pelo decreto-lei
1002 de outubro de 1969 era uma espeacutecie de prisatildeo cautelar concedida ao militar ou
ao civil que tivesse praticado um crime de cunho militar com previsatildeo de pena privativa
de liberdade O local de cumprimento da menagem era a cidade onde residisse o
suspeito no momento do crime ou a sede do oacutergatildeo que tivesse investigando a sua accedilatildeo
Como a partir do AI-5 os suspeitos de crimes poliacuteticos passaram a ser julgados pela
Justiccedila Militar e o instituto do habeas corpus foi suprimido atraveacutes da menagem os
suspeitos detidos poderiam ser levados agrave sede do DOI-CODI da respectiva Regiatildeo
Militar Afinal era neste oacutergatildeo que as investigaccedilotildees sobre os crimes poliacuteticos de
determinada aacuterea se concentravam A menagem tinha por fundamento evitar o conviacutevio
do acusado ateacute o seu julgamento em primeira instacircncia com pessoas que jaacute estivessem
condenadas Dessa forma a validade da menagem terminava a partir da abertura de um
processo condenatoacuterio contra o suspeito quando entatildeo este seria transferido para uma
Delegacia de Poliacutecia tal como o DOPS por exemplo para ser enfim julgado e poder se
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fosse o caso cumprir sua pena em um presiacutedio convencional Poreacutem ateacute isso acontecer
caso fosse enquadrado como um possiacutevel criminoso poliacutetico esse suspeito poderia ficar
detido no DOI correspondente por ateacute trinta dias podendo sua prisatildeo ainda ser
prorrogada por mais sessenta dias
A menagem era entatildeo um respaldo legal tanto para o isolamento do preso poliacutetico
nos quarteacuteis que sediavam os DOI quanto se fosse o caso para o acompanhamento de
sua vida em liberdade ateacute o dia de seu julgamento Caso fosse diagnosticado pelos
agentes do respectivo DOI que o suspeito jaacute tivesse concedido todas as informaccedilotildees que
tinha e natildeo representasse perigo agrave Seguranccedila Nacional a instituiccedilatildeo poderia solicitar ao
juiz a sua liberaccedilatildeo a fim de que a sua menagem fosse cumprida em liberdade Quando
isto ocorria o suspeito deveria ficar na mesma cidade que havia sido preso ateacute o seu
julgamento em primeira instacircncia
Diante dos organogramas dos CODI e dos DOI aqui traccedilados evidencia-se que
existiam diferenccedilas nas patentes hieraacuterquicas dos chefes de cada um desses oacutergatildeos
Enquanto o chefe dos CODI era o chefe de Estado-Maior do Exeacutercito de cada Regiatildeo
Militar ou seja um general de Exeacutercito que por conseguinte pertencia ao ciacuterculo
hieraacuterquico de oficiais-generais localizado no topo da hierarquia militar o chefe de
cada DOI era um tenente-coronel patente que se insere no ciacuterculo hieraacuterquico de
oficiais superiores ou seja imediatamente abaixo do de oficiais-generais Assim como
os DOI eram o braccedilo operacional dos CODI ou seja a eles subordinados o fato de seus
chefes estarem obrigatoriamente no ciacuterculo hieraacuterquico abaixo dos dirigentes dos CODI
leva a crer que dentro dos DOI-CODI havia de fato um respeito agrave hierarquia militar
Este respeito jaacute foi aqui destacado por meio da anaacutelise historiograacutefica baseada na
tese Maria Celina DrsquoArauacutejo (1994) que defende a ideia de que o princiacutepio da
obediecircncia hieraacuterquica apesar de velado existia nos DOI-CODI logo como a tortura
67
fazia parte de suas accedilotildees ela era consentida Afinal se laacute existiam chefias e nelas a
hierarquia militar era minimamente respeitada isso sinaliza que as accedilotildees eram
comandadas por chefes que tinham o consentimento de seus chefes diretos para darem
tal ordem Portanto a tortura impetrada pelas turmas de interrogatoacuterio preliminar era
consentida pelo capitatildeo que as chefiava pelo capitatildeo que comandava a respectiva
Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio a que elas estavam subordinadas pelo chefe do Setor de
Anaacutelise e Informaccedilotildees que chefiava o chefe dessa Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio pelo
subcomandante do DOI que era responsaacutevel pelo Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees a
que o Setor de Anaacutelise e Informaccedilotildees estava vinculado pelo tenente-coronel que
comandava o DOI e estava hierarquicamente acima do chefe do Setor de Anaacutelise e
Informaccedilotildees e pelo general do Exeacutercito que dirigia o CODI e tinha o comandante do
DOI a ele subordinado Logo o DOI-CODI foi construiacutedo de forma tatildeo centralizada que
a maioria das accedilotildees feitas por algum de seus integrantes passava por toda a cadeia
hieraacuterquica nele envolvida
Assim se torna mais uma vez evidente que a tortura como meacutetodo de
interrogatoacuterio quando utilizada pelos agentes do DOI era consentida por seus
superiores e natildeo um fenocircmeno isolado ou mesmo ldquoexcesso de poucosrdquo como muitos
militares costumam argumentar Esta argumentaccedilatildeo que aparentemente encontra
fundamento no alto grau de autonomia e independecircncia que os DOI possuiacuteam eacute
derrubada quando se evidencia que estes eram autocircnomos e independentes apenas em
relaccedilatildeo a batalhotildees e outras instituiccedilotildees militares Afinal os DOI foram programados
para atuar a par das subordinaccedilotildees preacute-existentes em outros oacutergatildeos podendo congregar
agentes de instacircncias militares poliacutecias e Forccedilas diferentes entre si mas sem deixar de
respeitar a hierarquia do Exeacutercito inserida em seu interior tendo por direccedilatildeo maacutexima o
Chefe de Estado-Maior do Exeacutercito
68
Outro ponto interessante que a caracterizaccedilatildeo do organograma dos DOI ajuda a
revelar eacute o fato do cargo de chefe da Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio ser privativo de um
oficial do Exeacutercito de niacutevel de capitatildeo ou seja que deveria pertencer ao ciacuterculo
hieraacuterquico de oficiais intermediaacuterios excluindo-se das atividades afeitas agrave posiccedilatildeo de
membros do ciacuterculo hieraacuterquico dos oficiais superiores e dos oficiais-generais onde se
encontravam os homens que governavam o paiacutes Logo por traacutes dessa condiccedilatildeo de
chefia havia a tentativa de manter a responsabilidade direta dos atos proferidos nessa
Subseccedilatildeo longe do ciacuterculo de oficiais superiores ou de oficiais-generais instacircncias
maacuteximas na hierarquia do Exeacutercito Dessa forma as torturas executadas durante os
interrogatoacuterios natildeo seriam relacionadas aos ocupantes das altas patentes do Exeacutercito
que durante a ditadura eram os que estavam agrave frente do governo brasileiro Essa
medida era portanto para dissociar a imagem dos governantes com o que ocorria nos
porotildees
No entanto eacute notaacutevel que indiretamente o governo ditatorial apoiasse as torturas
que as turmas de interrogatoacuterio preliminar executavam nos DOI-CODI uma vez que
obviamente os governantes tinham conhecimento sobre a determinaccedilatildeo de que os
agentes dessas turmas e os chefes da Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio deveriam ter
preferencialmente uma espeacutecie de especializaccedilatildeo em informaccedilotildees e seguranccedila
ministrada pela EsNI Nesta escola ndash ligada ao SNI que era composto pelas mais altas
patentes do Exeacutercito e diretamente ligado ao alto escalatildeo do governo ndash os alunos
provavelmente recebiam instruccedilotildees sobre os meacutetodos de tortura a serem aplicados
durante o serviccedilo
Aleacutem disso o fato do chefe e dos demais componentes da Subseccedilatildeo de
interrogatoacuterio serem ligados ao ciacuterculo de oficiais intermediaacuterios do Exeacutercito tambeacutem
vai ao encontro da anaacutelise historiograacutefica sobre a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
69
aqui apresentada a partir dos conceitos de Martins Filho de cizacircnia militar palaacutecio e
caserna Afinal a caserna era composta por militares de meacutedias e baixas patentes que
durante os primeiros anos da ditadura lutaram internamente por atuarem no combate ao
ldquoinimigo internordquo a fim de terem uma maior participaccedilatildeo na poliacutetica o que ocasionou
algumas cizacircnias militares Foi justamente por temer o resultado dessas cizacircnias que o
palaacutecio formado pelos militares de altas patentes que possuiacuteam cargos no governo aos
poucos cedeu esses poderes agrave caserna e assim o aparato de seguranccedila nacional foi
sendo instituiacutedo e dentro dele o SISSEGIN e os DOI-CODI Logo como eacute na
Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio e tambeacutem na Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo onde a atuaccedilatildeo
de interrogar torturar e prender traz os poderes poliacuteticos extras que a caserna
historicamente reivindicava percebe-se que a utilizaccedilatildeo de seus militares para compor
essas equipes era mais uma forma de manter a unidade militar contendo possiacuteveis
cizacircnias
Essa perspectiva torna-se completa quando se identifica que no momento em que
tais atribuiccedilotildees passaram a ser retiradas dos militares da caserna essas cizacircnias natildeo
mais puderam ser contidas Afinal conforme jaacute evidenciado anteriormente quando a
partir do governo de Geisel as atividades de busca apreensatildeo e interrogatoacuterio dos DOI
foram sendo abolidas a caserna passou a reagir posicionando-se contraacuteria agrave cuacutepula do
governo que defendia a abertura poliacutetica passando a apoiar a candidatura presidencial
de militares que defendessem a continuidade de tais atribuiccedilotildees aos DOI e ateacute mesmo
forjando situaccedilotildees terroristas tais como os diversos ataques a bomba que ocorreram na
eacutepoca como forma de endossar a necessidade das atuaccedilotildees repressivas desenvolvidas
pelos DOI
A monografia do coronel Pereira aqui analisada pode tambeacutem ser vista como
mais uma dessas reaccedilotildees da caserna Afinal durante toda a escrita de Pereira haacute uma
70
necessidade de comprovar a eficiecircncia dos DOI na atividade de proteger a seguranccedila
interna do paiacutes Percebe-se assim que Pereira apesar de ser coronel e por conseguinte
jaacute estar entre os oficiais superiores nesse momento ainda se via ligado de alguma forma
aos DOI Talvez porque a histoacuteria de sua carreira militar estivesse totalmente
relacionada com as atividades que ele laacute desempenhou e por isso acreditasse que
enquanto tais atividades continuassem sendo desenvolvidas o seu trabalho tambeacutem
continuaria a ser reconhecidamente importante
Os setores seccedilotildees e subseccedilotildees do DOI normalmente seguiam a configuraccedilatildeo aqui
exposta poreacutem nota-se que suas equipes natildeo eram fixas ou seja poderiam variar de
acordo com as necessidades das operaccedilotildees que surgissem Os DOI foram assim
concebidos como organismos instaacuteveis pois dependendo da gravidade e da quantidade
de accedilotildees armadas que deveriam ser reprimidas o nuacutemero de agentes poderia aumentar
ou diminuir Dessa forma os DOI se adaptavam a diversas circunstacircncias a fim de
combater com eficiecircncia o ldquoterrorismordquo e a ldquosubversatildeordquo
Grande parte dessa necessidade de adaptaccedilatildeo vinha da sobrevalorizaccedilatildeo da
guerrilha urbana entre os militares ligados a organismos de repressatildeo Uma vez que ao
verem a forma organizada e ousada com que a esquerda armada montava suas accedilotildees
sentiram que a estrutura repressiva da eacutepoca anterior agrave experiecircncia da Oban e ao
surgimento dos DOI natildeo estava preparada para combatecirc-las e diante disso
interpretaram tais accedilotildees esquerdistas como uma forte ameaccedila ao paiacutes Afinal as
instituiccedilotildees responsaacuteveis pela repressatildeo direta como por exemplo os DOPS estavam
engessadas por corporaccedilotildees fixas que combatiam as referidas accedilotildees de forma pouco
efetiva reprimindo-as sem a centralizaccedilatildeo e a grandiosidade necessaacuterias
A todos estes atos de banditismo [fazendo referecircncia a assaltos a banco a
sequestros de embaixadores e outras accedilotildees efetuadas pela esquerda armada
71
entre os anos de 1969 e 1970] a nossa Poliacutecia Civil e a Poliacutecia Militar
assistiam sem nada poder fazer Vaacuterias radiopatrulhas foram incendiadas e
os poucos soldados que ousavam enfrentar os terroristas eram
impiedosamente mortos Por que isso acontecia Porque as nossas poliacutecias
foram surpreendidas e natildeo estavam preparadas para um novo tipo de luta que
surgia a guerrilha urbana (Pereira 1978 10)
Entatildeo para conter a guerrilha urbana surgiu a necessidade de um oacutergatildeo de
repressatildeo centralizado e de estrutura maleaacutevel que tornasse possiacutevel e praacutetico reprimir
determinada accedilatildeo armada de acordo com a sua grandiosidade aumentando e diminuindo
o corpo funcional conforme o esforccedilo exigido Em meio a esta concepccedilatildeo de repressatildeo
a estrutura dos DOI foi criada tornando a repressatildeo poliacutetica mais combativa e
consequentemente aumentando a sua eficiecircncia
Com tamanha flexibilidade os DOI movimentavam pessoal e material variaacutevel
com grande mobilidade e agilidade Essa destacada autonomia dos DOI era travada
portanto em benefiacutecio de um aproveitamento maacuteximo de suas accedilotildees jaacute que eram
oacutergatildeos destinados ao combate direto agraves organizaccedilotildees subversivo-terroristas e sua
missatildeo era desmontar toda a estrutura de pessoal e de material destas organizaccedilotildees
bem como impedir a sua reorganizaccedilatildeo (Pereira 1978 22)
A utilizaccedilatildeo de codinomes pelos integrantes das turmas de interrogatoacuterio
preliminar era outra face dessa autonomia de trabalho dos DOI Esse costume era um
benefiacutecio de proteccedilatildeo para a instituiccedilatildeo e tambeacutem para tais militares Afinal como
muitos deles possivelmente aplicavam torturas nos presos durante os interrogatoacuterios o
sigilo com relaccedilatildeo aos seus nomes verdadeiros poderia inviabilizar posteriores
denuacutencias e por conseguinte fortes indiacutecios de que nos DOI a tortura era uma praacutetica
institucionalizada
Aleacutem disso essa mesma autonomia tambeacutem permitia que seus agentes para natildeo
serem reconhecidos pelos ldquoinimigosrdquo durante uma accedilatildeo de prisatildeo por exemplo natildeo
72
trabalhassem de farda e usassem trajes civis o que seria impensaacutevel em qualquer quartel
militar
Como norma de seguranccedila para o trabalho diaacuterio eacute obrigatoacuterio o uso de
traje civil (esporte ou social) de acordo com a missatildeo a desempenhar
Mesmo os oficiais e os comandantes de seccedilatildeo devem de preferecircncia usar
trajes esporte para se confundirem com a maioria dos integrantes do DOI
(Pereira 1978 25)
Os cabelos longos eram outra caracteriacutestica que apesar de improacutepria entre as
demais instituiccedilotildees militares a autonomia dos DOI imprimia a seus agentes conforme
evidenciado no seguinte trecho o cabelo deve ter o tamanho normalmente usado pela
maioria da populaccedilatildeo sendo proibido o cabelo com corte do ldquotipo militarrdquo (Pereira
1978 25) Percebe-se portanto que junto aos trajes civis os cabelos maiores
completavam o visual que os militares dos DOI precisavam ter para que evitassem ser
facilmente reconhecidos nas ruas Dessa forma tentavam minimizar os riscos de serem
percebidos durante uma operaccedilatildeo de investigaccedilatildeo ou minutos antes de efetuarem uma
accedilatildeo de prisatildeo Poreacutem apesar da utilizaccedilatildeo dessas caracteriacutesticas natildeo usuais ser em
benefiacutecio das funccedilotildees que exerciam nos DOI esses militares muitas vezes natildeo eram
compreendidos por aqueles que nas palavras de Pereira natildeo possuiacuteam uma
mentalidade de informaccedilotildees e por conta disso viam no uso do cabelo grande um ato de
indisciplina Essa incompatibilidade de interpretaccedilotildees portanto gerava alguns
transtornos para os agentes dos DOI que mesmo condecorados pela eficiecircncia de seus
serviccedilos de informaccedilotildees agraves vezes passavam por alguns constrangimentos
Jaacute aconteceu o fato de um oficial ou sargento de um DOI necessitar
comparecer a sua Unidade Militar a fim de tratar qualquer problema pessoal
ou mesmo de um assunto de serviccedilo Estes elementos eram barrados agrave
entrada de seus quarteacuteis e recebiam ordem dos comandantes para
73
regressarem cortarem o cabelo e a barba e se apresentarem fardados ou com
a posse de um documento de identidade assinado pelo Comandante do
Exeacutercito autorizando o uso do traje civil e o porte de arma Este
procedimento por parte de algumas autoridades militares daacute a entender que
os elementos do Serviccedilo de Informaccedilotildees satildeo indisciplinados
desenquadrados e sem espiacuterito militar Entretanto eacute necessaacuterio frisar que a
realidade eacute que por exemplo no DOI-CODI do II Exeacutercito [DOI-CODISP]
em trecircs anos 90 componentes foram condecorados com a medalha do
pacificador com palma (Pereira 1978 26)
A medalha do pacificador com palma eacute em tempo de paz a mais alta
condecoraccedilatildeo concedida pelo Comandante do Exeacutercito aos militares e civis brasileiros
que no exerciacutecio de sua funccedilatildeo ou no cumprimento de missotildees de caraacuteter militar
tenham se destacado por atos pessoais de abnegaccedilatildeo coragem e bravura com risco de
vida Portanto muitas vezes os agentes dos DOI que exerciam a funccedilatildeo de prender
integrantes de uma organizaccedilatildeo muito procurada de ldquodesmontar aparelhosrdquo de
destacada importacircncia investigativa ou mesmo de conseguir informaccedilotildees cruciais
durante interrogatoacuterios eram condecorados pelo Comandante do respectivo Exeacutercito
pelo serviccedilo prestado agrave paacutetria Logo percebe-se que mesmo existindo os
constrangimentos institucionais anteriormente citados os oficiais envolvidos nos DOI
eram prestigiados por seus serviccedilos e se sentiam valorizados e incentivados a designaacute-
los com rapidez e eficiecircncia
A partir disso evidencia-se mais uma vez que a tortura nos DOI era consentida
pelos militares superiores e ateacute mesmo incentivada pois atraveacutes do ldquoauxiacuteliordquo que
prestava aos interrogatoacuterios as informaccedilotildees poderiam ser mais faacutecil e rapidamente
conseguidas e grande quantidade de suspeitos presos ldquoaparelhos desmontadosrdquo e
materiais ldquosubversivosrdquo recolhidos Como a presteza desse serviccedilo era almejada tantos
pelos agentes dos DOI interessados no destaque e no reconhecimento militar quanto
74
por seus superiores que vislumbravam neutralizar o quanto antes a ameaccedila que o
ldquoinimigo internordquo representava para o governo ditatorial a tortura parecia ser nos DOI
um meio que se justificava pelos fins
Assim a centralizaccedilatildeo a flexibilidade a autonomia e o consentimentoincentivo agrave
tortura pautavam o ldquoeficienterdquo serviccedilo de repressatildeo dos DOI conforme se pode apurar a
partir dos dados do DOI-CODISP levantados ateacute 30 de junho de 1972 e apresentados
na monografia do coronel Pereira
Subversivos terroristas levantados no Brasil 4400
Quedas impostas pelos oacutergatildeos de seguranccedila no territoacuterio nacional 2800
Quedas impostas pelos oacutergatildeos de seguranccedila do II Exeacutercito (inclusive DOI-
CODI) 1600
Quedas impostas pelo DOI-CODI do II Exeacutercito 1400
Quedas impostas pelos outros oacutergatildeos de seguranccedila da aacuterea do II Exeacutercito
200
Periacuteodo de 23 de janeiro de 1969 a 30 de junho de 1972
Subversivo-terroristas que fizeram curso de guerrilha no exterior 340
Subversivo-terroristas que fizeram curso de guerrilha em Cuba 240
Situaccedilatildeo dos 4400 subversivo-terroristas levantados
Foragidos 1600
Liberados 900
Mortos em combate 100
Presos 1490
Banidos 140
Estes resultados vecircm demonstrar a eficiecircncia operacional do destacamento
neste tipo de guerra especial Natildeo eacute agrave toa que os inimigos assim reconhecem
ao destacamento esta assertiva encontrada na revista Times e no panfleto
Quinzenal (maio de 76) distribuiacutedos recentemente
ldquoSatildeo Paulo criou a mais eficiente e admiraacutevel maacutequina repressiva vista ateacute
hoje no mundo ndash a Operaccedilatildeo Bandeirantes que comeccedilou como uma alianccedila
temporaacuteria entre a poliacutecia local as vaacuterias seccedilotildees de inteligecircncia das trecircs
forccedilas armadas e o SNIrdquo (Pereira 1978 27)
75
Entretanto esse perigoso poder excepcional dos DOI-CODI tomou proporccedilotildees
grandiosas Em meados dos anos 1970 mais especificamente apoacutes o fim da guerrilha do
Araguaia no iniacutecio de 1974 as organizaccedilotildees clandestinas armadas estavam derrotadas
e em contrapartida os DOI-CODI se encontravam em pleno vapor com sua atuaccedilatildeo e
seu aparato institucional ampliado e especializado Tornou-se dessa forma
indispensaacutevel para a sobrevivecircncia do SISSEGIN encontrar novos ldquoinimigos internosrdquo
O foco de ameaccedila passou entatildeo a ser o envolvimento de elementos do Partido
Comunista Brasileiro (PCB) no Movimento Democraacutetico Brasileiro (MDB) partido de
oposiccedilatildeo consentida pelo governo e a atuaccedilatildeo repressiva dos DOI-CODI encontrou
argumentos para continuar em atividade Poreacutem como a declarada ldquoguerra internardquo
havia se esgotado e o paiacutes jaacute se preparava para dar lugar a um futuro democraacutetico o
poder de accedilatildeo dos DOI-CODI comeccedilou a parecer abusivo e negativo ao regime Diante
disso muitas foram as tentativas da caserna e dos demais militares a ela relacionados de
provar a importacircncia e a necessidade dos DOI-CODI para a defesa do paiacutes entre elas a
monografia aqui analisada No entanto tais tentativas natildeo conseguiram evitar que esses
oacutergatildeos sofressem num primeiro momento a reduccedilatildeo de suas atividades e no iniacutecio da
deacutecada de 1980 a extinccedilatildeo
3 O DOI-CODI pelos prisioneiros
Enfim na uacuteltima frente de estudo deste capiacutetulo a anaacutelise sobre a formaccedilatildeo e a
atuaccedilatildeo dos DOI-CODI recai sobre a memoacuteria de seis de seus ex-prisioneiros poliacuteticos
Vale lembrar que estes estiveram detidos no DOI-CODI do Rio de Janeiro durante o
segundo semestre do ano de 1970 e suas memoacuterias foram narradas recentemente entre
os anos de 2002 e 2004 quando foram por mim entrevistados Assim o trabalho sobre
esses depoimentos aqui se concentra na interpretaccedilatildeo que fazem a partir da construccedilatildeo
76
de suas memoacuterias sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI e em como suas
perspectivas dialogam com a frente historiograacutefica e com a monografia do coronel
Pereira abordadas anteriormente
Como o objetivo aqui traccedilado eacute analisar as diversas maneiras pelas quais a
historiografia o coronel Pereira e os presos veem a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-
CODI optou-se por apresentar as trajetoacuterias dos entrevistados no proacuteximo capiacutetulo
Essas junto com o conteuacutedo aqui levantado constroem as bases para a anaacutelise travada
na parte final da presente dissertaccedilatildeo onde se aborda a partir de um estudo mais
concentrado nas memoacuterias dos ex-prisioneiros entrevistados o cotidiano do DOI-
CODIRJ
Entretanto a fim de utilizar essas memoacuterias para a abordagem dialeacutetica aqui
desenhada natildeo pode ser dispensada a aplicaccedilatildeo de um olhar criacutetico tiacutepico a anaacutelises
histoacutericas problematizando-as de forma a perceber suas lacunas e modificaccedilotildees
decorrentes do tempo Tais memoacuterias satildeo inconscientemente fluidas pois estatildeo
diretamente ligadas a emoccedilotildees aleacutem de sofrerem muitas influecircncias do momento em
que satildeo narradas conforme bem elucida Pierre Nora (1993)
A memoacuteria eacute a vida sempre carregada por grupos vivos e nesse sentido ela
estaacute em permanente evoluccedilatildeo aberta agrave dialeacutetica da lembranccedila e do
esquecimento inconsciente de suas deformaccedilotildees sucessivas vulneraacutevel a
todos os usos e manipulaccedilotildees suscetiacutevel de longas latecircncias e de repentinas
revitalizaccedilotildees A histoacuteria eacute a reconstruccedilatildeo sempre problemaacutetica e incompleta
do que natildeo existe mais A memoacuteria eacute um fenocircmeno sempre atual um elo
vivido no eterno presente a histoacuteria uma representaccedilatildeo do passado (Nora
1993 9)
Eacute portanto imprescindiacutevel para este estudo perceber que por traacutes dessa fluidez
das memoacuterias dos depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ age um
77
elemento fundamental o presente Logo a feliz expressatildeo de Robert Frank (1999) o
presente do passado elucida a anaacutelise de forma a colocar em destaque a forte influecircncia
que a temporalidade vivida no momento em que as entrevistas foram concedidas tem
para a construccedilatildeo de suas narrativas
Trata-se de fontes que estatildeo marcadas pelo proacuteprio presente inerentes a ele
qualquer que seja a eacutepoca os depoimentos de testemunhas vivas as fontes
orais Aiacute haacute a contemporaneidade intriacutenseca entre o historiador e o ator
(Frank 1999 103)
Por isso eacute aqui crucial considerar o momento das entrevistas Afinal entre 2002 e
2004 o Brasil jaacute vivia uma democracia consolidada onde antigos oposicionistas agrave
ditadura militar se encontravam no poder Fernando Henrique Cardoso exilado no Chile
ateacute o ano de 1968 e na deacutecada de 1970 apoiador convicto do Movimento Democraacutetico
Brasileiro (MDB) havia sido presidente do Brasil entre os anos de 1995 e 2002 Jaacute
Lula ex-liacuteder sindical que havia comandado algumas das mais importantes greves na
virada das deacutecadas de 1970 para 1980 venceu a campanha presidencial em 2002 e se
tornou no ano seguinte o primeiro ex-operaacuterio a presidir o paiacutes Aleacutem disso as pastas
ministeriais de seu governo foram formadas por antigos opositores agrave ditadura tal como
o ex-liacuteder do movimento estudantil Joseacute Dirceu e a partir de 2005 por Dilma
Rousseff ex-militante de duas das organizaccedilotildees de esquerda que optaram na eacutepoca pela
luta armada o Comando de Libertaccedilatildeo Nacional (COLINA) e a Vanguarda Armada
Revolucionaacuteria Palmares (VAR-Palmares) Logo pode-se dizer que com relaccedilatildeo agrave
memoacuteria poliacutetica de vencidos nos anos de chumbo da ditadura os depoentes se
transformaram em vencedores nos tempos democraacuteticos e obviamente a leitura do
passado de prisatildeo e tortura foi iluminada por esse presente
78
Ressalte-se ainda que os depoimentos se vinculavam agrave implantaccedilatildeo da Comissatildeo
de Anistia por meio da Lei nordm 1055902 que atribuiacutea ao Estado a funccedilatildeo de anistiar e
reparar financeiramente todos os cidadatildeos que tivessem vivenciado quaisquer atos de
exceccedilatildeo incluindo torturas prisotildees arbitraacuterias demissotildees e transferecircncias por razotildees
poliacuteticas ocorridas durante o periacuteodo de 18 de setembro de 1946 ateacute 5 de outubro de
1988 Afinal a reparaccedilatildeo soacute poderia ser concedida pela Comissatildeo de Anistia apoacutes a
anaacutelise de um requerimento contendo as memoacuterias das viacutetimas sobre o periacuteodo em
questatildeo escritas individualmente Como na eacutepoca alguns dos depoentes jaacute haviam
construiacutedo suas memoacuterias prisionais para compor o referido requerimento este deve ser
considerado como um importante fator de influecircncia sobre as narrativas de suas
entrevistas
Em contraste com o que foi apresentado a partir da abordagem historiograacutefica e da
monografia do coronel Pereira Fernando Palha Freire um dos ex-prisioneiros do DOI-
CODIRJ destaca a importacircncia da contribuiccedilatildeo inicial dada pelos policiais civis do
DOPS para a utilizaccedilatildeo da violecircncia em favor da extraccedilatildeo de informaccedilotildees Afinal por
mais que os oacutergatildeos de repressatildeo anteriores agrave criaccedilatildeo dos DOI-CODI natildeo estivessem
devidamente preparados para combater as accedilotildees efetuadas pela esquerda armada seus
agentes de fato haviam acumulado uma experiecircncia em interrogatoacuterios Esta num
primeiro momento era importante uma vez que os militares ateacute entatildeo concentravam
sua formaccedilatildeo sobre a atuaccedilatildeo na guerra declarada natildeo possuindo as maliacutecias
necessaacuterias aos interrogatoacuterios
[] a Poliacutecia Civil tinha os caras mais preparados pra tortura mesmo
Porque jaacute vinham haacute muitos anos jaacute tinham a praacutetica da tortura O militar
batia de frente ele era capaz de te matar mas ele ainda natildeo tinha digamos o
seguinte a essecircncia da tortura Por exemplo um coronel virou pro cara e
disse assim - ldquoO senhor eacute um comunistardquo aiacute ele disse assim - ldquoE o senhor eacute
79
uma bestardquo Ele matou o cara quer dizer matou sem colher o que queria
Um policial civil poderia ateacute matar o cara mas antes colheria o que queria
eles tinham a praacutetica da tortura Depois os militares se aperfeiccediloaram []
(Freire 28 jun 2004)
No entanto indo ao encontro do que foi abordado pelas outras duas frentes de
estudo aqui traccediladas Ceciacutelia Coimbra tambeacutem ex-prisioneira do DOI-CODIRJ
evidencia a eficiecircncia desse oacutergatildeo com relaccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo A partir de uma situaccedilatildeo
especiacutefica de sua prisatildeo ela percebe como o niacutevel de organizaccedilatildeo do serviccedilo de
informaccedilotildees dos DOI era superior ao do DOPS
Fomos presos eu e meu marido e levados para o DOPS em agosto de 1970
[] quando deram vistoria laacute em casa encontraram um documento que por
ironia do destino era sobre seguranccedila [] Eu fiquei dois dias e meio no
DOPS sendo interrogada sobre o tal documento que nem eu nem o Novaes
falaacutevamos diziacuteamos que natildeo sabiacuteamos de onde era Dois dias e meio depois
quando noacutes fomos para o DOI-CODI logo eles identificaram de onde era o
documento Para vocecirc ver o niacutevel de competecircncia do serviccedilo de informaccedilotildees
do DOI-CODI comparado ao do DOPS O DOPS era ldquomerdinhardquo comparado
com a eficiecircncia do DOI-CODI (Coimbra 30 nov 2004)
Percebe-se assim tanto pela historiografia e pela monografia do coronel Pereira
quanto pela memoacuteria de ex-prisioneiros poliacuteticos que a centralizaccedilatildeo de informaccedilotildees
nos CODI e a relaccedilatildeo direta que esses travavam com os DOI traziam uma agilidade agraves
anaacutelises que natildeo havia nos demais oacutergatildeos Logo a forma centralizada e orquestrada
com que os DOI-CODI agiam significava uma profissionalizaccedilatildeo cada vez maior da
repressatildeo poliacutetica ou seja a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo
Assim apesar de serem instituiccedilotildees distintas a atuaccedilatildeo dos CODI e dos DOI
estavam totalmente interligadas Como apurado por meio do estudo historiograacutefico e
dos dados contemplados na monografia do coronel Pereira enquanto aos CODI cabia
80
concentrar e analisar as informaccedilotildees sobre a seguranccedila interna de suas Regiotildees
Militares aos DOI cabia a partir das informaccedilotildees passadas pelos CODI atuar
diretamente na repressatildeo aos ldquoinimigos internosrdquo e extrair de seus prisioneiros poliacuteticos
informaccedilotildees a serem repassadas aos CODI Diante dessa forte ligaccedilatildeo essas duas
instituiccedilotildees ficaram conhecidas como se fossem um uacutenico oacutergatildeo por meio da sigla
DOI-CODI Essa simbiose entre os CODI e os DOI ficou marcada sobretudo nas
memoacuterias de suas viacutetimas conforme se pode verificar no seguinte trecho
[] tenta entender o que eacute DOI-CODI o DOI-CODI eacute uma instituiccedilatildeo
montada por diversos oacutergatildeos de repressatildeo que funcionava [no Rio de
Janeiro] no quartel da PE [1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito] (Pandolfi 5
fev 2003)
De acordo com os seis entrevistados assim como indicado pela a anaacutelise das
demais frentes de estudo do presente capiacutetulo a praacutetica de tortura era corriqueira nos
interrogatoacuterios dos DOI Esse fato inclusive poderia ser associado agrave sua proacutepria
designaccedilatildeo que na forma abreviada se apresenta sob a sigla DOI correspondendo
sugestivamente agrave conjugaccedilatildeo do verbo doer na terceira pessoa do singular
Soube que ningueacutem entrava no DOI-CODI sem sofrer algum tipo de tortura
fiacutesica ou psicoloacutegica mas principalmente a fiacutesica e realmente natildeo creio
que algueacutem tenha passado por laacute imune agrave tortura [] Quando a gente chega
ao DOI-CODI chega logo tomando porrada Natildeo tinha essa histoacuteria de meu
senhor era tapa Tapa choque eleacutetrico pau de arara a isso tudo eu fui
submetido O primeiro interrogatoacuterio que natildeo eacute um interrogatoacuterio formal
judicial eacute feito sob essas condiccedilotildees Depois bem depois eacute que eu fui ser
interrogado no DOPS em outras condiccedilotildees [] Eu fui torturado mesmo na
Rua Baratildeo de Mesquita na PE laacute sim eu fui bastante torturado []
(Carvalho 12 set 2002)
81
[] laacute na PE vocecirc natildeo fazia nada a natildeo ser ficar esperando o tempo para ser
interrogada para ser torturada [] (Pandolfi 5 fev 2003)
Laacute no DOI-CODI comia tudo choque pau-de-arara afogamento pancada
Laacute que eu descobri esse termo que fulano virou presunto neacute Porque vocecirc
fica igual a um presunto mesmo porque eles te datildeo pancadas localizadas []
(Freire 28 jun 2004)
[] laacute no DOI-CODI tinha todo tipo de torturas desde choques eleacutetricos na
matildeo direita esquerda peacute esquerdo Eu sofri isso tambeacutem (Prigol 28 set
2004)
[] o meu negoacutecio era ganhar tempo e o deles era conseguir informaccedilatildeo A
luta eacute essa nos primeiros dias eacute vocecirc dar o miacutenimo de informaccedilotildees e eles
querendo arrancar o maacuteximo de informaccedilatildeo neacute Aiacute eles vecircm com a maacutexima
de que torturar eacute investigar (risos) E daiacute se precisar ateacute a morte o negoacutecio
eacute conseguir informaccedilatildeo (Batista 17 nov 2004)
[] onde eram os choques eleacutetricos que na PE eles davam eles me
molhavam toda para o choque ser mais intenso e botavam principalmente
nas partes onde eram mais sensiacuteveis como ouvido nariz boca bico do
peito vagina acircnus[] o choque eleacutetrico eacute indescritiacutevel porque vocecirc perde a
noccedilatildeo do tempo e todo e qualquer controle da bexiga e dos intestinos []
(Coimbra 30 nov 2004)
Portanto ali a incumbecircncia era operar a extraccedilatildeo de informaccedilotildees e para isso a
tortura como meacutetodo era utilizada pelos agentes das turmas de interrogatoacuterio
preliminar Afinal em uma ponta da sofisticaccedilatildeo repressiva apresentada pelos DOI-
CODI estava a concentraccedilatildeo de informaccedilotildees dos CODI e na outra a agilidade que a
extraccedilatildeo de informaccedilotildees possibilitada principalmente pelo uso das torturas durante os
interrogatoacuterios dos presos dava agraves operaccedilotildees de busca e apreensatildeo de mais ldquoelementos
subversivosrdquo
82
A partir dos depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados assim como
da anaacutelise da historiografia selecionada e dos dados trazidos pelo coronel Pereira em sua
monografia percebe-se que os DOI-CODI ocupavam somente uma parte dos quarteacuteis
do Exeacutercito onde se localizavam e na parte restante o funcionamento desses quarteacuteis
continuava normalmente Os DOI-CODI eram portanto prisotildees atiacutepicas diferentes das
convencionais construiacutedas desde o iniacutecio para acomodar prisioneiros Assim eacute coerente
que o serviccedilo de carceragem nos DOI-CODI fosse executado pelos soldados que
serviam ao proacuteprio quartel jaacute que esse era apenas um serviccedilo de apoio um auxiacutelio natildeo
agrave toa feito por agentes de turmas que eram intituladas auxiliares
Os soldados que serviam ao quartel a quem era atribuiacutedo o serviccedilo de
carceragem eram conhecidos no DOI-CODIRJ por ldquocatarinasrdquo devido a suas
caracteriacutesticas fiacutesicas e tambeacutem ao sotaque tiacutepico ao estado de Santa Catarina Os
ldquocatarinasrdquo eram identificados como soldados devido ao fato dos agentes propriamente
do DOI-CODIRJ normalmente andarem a paisana enquanto eles usavam farda ou seja
trajes tradicionais a militares que natildeo estivessem ligados a operaccedilotildees de informaccedilotildees
Os agentes dos DOI-CODI como elucidado por meio da segunda frente deste capiacutetulo
por precisarem ser confundidos com civis se diferenciavam dos demais soldados
Na PE os soldados eram sempre de Santa Catarina [] pessoas de portes
fiacutesicos avantajados e essa condiccedilatildeo fiacutesica era uma espeacutecie de exigecircncia para
servir ao quartel da Poliacutecia Militar Eram entatildeo os ldquocatarinasrdquo [] (Carvalho
8 fev 2003)
[] quem torturava a gente era o pessoal do DOI-CODI normalmente eles
andavam a paisana [] e quem fazia o trabalho burocraacutetico ou seja a
limpeza da PE quem dava o cafeacute da gente quem abria a cela e fechava a
cela eram os soldados uniformizados Eram ateacute os ldquocatarinasrdquo porque
tinham muitos que vinham de Santa Catarina eram soldados altos [] entatildeo
83
os soldados faziam a burocracia e os militares do DOI-CODI faziam essa
parte digamos da investigaccedilatildeo poliacutetica [] (Pandolfi 5 fev 2003)
[] os ldquocatarinasrdquo eram os guardinhas era o pessoal que estava servindo
eles tinham dezoito ou dezenove anos eles estavam servindo ao Exeacutercito e
alguns deles ateacute amenizavam a nossa situaccedilatildeo [hellip] (Batista 17 nov 2004)
Diferentemente do que se percebe na monografia feita pelo coronel Pereira em
1978 nas memoacuterias aqui analisadas a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI no ano de 1970
consagrou-se como um dos periacuteodos mais difiacuteceis de suas vidas Nota-se no entanto
que os nuacutemeros e percentuais que na eacutepoca eram interpretados por muitos militares
como forte indiacutecio de eficiecircncia da instituiccedilatildeo no combate ao ldquoinimigo internordquo estatildeo
em meio ao contexto democraacutetico em que as narrativas dos ex-presos foram construiacutedas
diretamente ligados agrave memoacuteria da tortura e da violaccedilatildeo aos direitos humanos Como se
pode analisar a partir da interpretaccedilatildeo de Ceciacutelia Coimbra uma das ex-prisioneiras
poliacuteticas fundadoras do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro 15
[] eu acho a fala para mim a minha militacircncia no Tortura Nunca Mais
fundamental Em 85 quando a gente fundou o Grupo foi fundamental no
sentido de tornar isso puacuteblico e natildeo soacute como se fosse uma coisa de lamento
da gente uma coisa da dor da gente dessa marca que natildeo vai sair nunca []
mas como instrumento de luta instrumento de denuacutencia [] (Coimbra 30
nov 2004)
Durante o periacuteodo das entrevistas aqueles que viveram a experiecircncia dos DOI-
CODI a partir do outro lado de suas grades muitas vezes veem as dolorosas lembranccedilas
daquele tempo como um meio de fazer justiccedila e ateacute mesmo contribuir para a
solidificaccedilatildeo da democracia enquanto que os militares que no passado se orgulhavam
15
O GTNMRJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-prisioneiros poliacuteticos que viveram situaccedilotildees de
tortura durante o regime militar e por familiares de mortos e desaparecidos poliacuteticos Para mais
informaccedilotildees ver o perfil de Ceciacutelia Coimbra no proacuteximo capiacutetulo
84
de seus feitos lutam no presente por natildeo serem a eles associados Diante disso nota-se
que apoacutes o teacutermino da ditadura em 1985 as memoacuterias dos entatildeo vencidos
movimentam-se de forma a se sobreporem agraves dos vencedores conseguindo aos poucos
garantir seu espaccedilo de viacutetimas da ditadura e ao mesmo tempo de heroacuteis da democracia
na poliacutetica na justiccedila e na histoacuteria
85
Capiacutetulo 2 ndash Os presos poliacuteticos e suas organizaccedilotildees
Nas escolas nas ruas
campos construccedilotildees
Somos todos soldados
Armados ou natildeo
Caminhando e cantando
E seguindo a canccedilatildeo
Somos todos iguais
Braccedilos dados ou natildeo
Os amores na mente
As flores no chatildeo
A certeza na frente
A histoacuteria na matildeo
Caminhando e cantando
E seguindo a canccedilatildeo
Aprendendo e ensinando
Uma nova liccedilatildeo
Geraldo Vandreacute
(Pra natildeo dizer que natildeo falei de flores 1968)
86
Antocircnio Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia satildeo alguns dos brasileiros
que lutaram contra a ditadura militar no paiacutes e que na eacutepoca foram presos pelo governo
nas dependecircncias do DOI-CODI do Rio de Janeiro Trecircs homens e trecircs mulheres que
apesar de suas trajetoacuterias pessoais e poliacuteticas distintas possuem ateacute hoje fortes elos
construiacutedos pela passagem pelo DOI-CODI carioca
Foi especificamente essa vivecircncia prisional comum que me despertou o interesse
pelas memoacuterias desses seis atores histoacutericos O objetivo era a partir da oacutetica dos ex-
prisioneiros entender como funcionava na praacutetica o DOI-CODIRJ Assim entre os
anos de 2002 e 2004 em meio aos governos dos ex-presidentes Fernando Henrique e
Lula ou seja jaacute em tempos democraacuteticos Antocircnio Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana
e Ceciacutelia me concederam entrevistas sobre suas prisotildees no DOI-CODIRJ bem como
sobre suas trajetoacuterias pessoais e poliacuteticas antes e depois de suas prisotildees
Esses depoimentos ndash principal objeto de pesquisa desta dissertaccedilatildeo ndash trazem aleacutem
das lembranccedilas sobre o cotidiano prisional de um DOI-CODI muito da personalidade e
da vivecircncia de cada um desses indiviacuteduos Atraveacutes dessas memoacuterias pode-se lidar com
as idiossincrasias de cada um deles relativizando a ideia de uma memoacuteria coletiva
comum a todos os ex-prisioneiros poliacuteticos que ficaram no quartel da Rua Baratildeo de
Mesquita Pode-se ainda conhecer um pouco mais de perto a loacutegica de construccedilatildeo de
suas memoacuterias individuais analisando como cada um desses indiviacuteduos se vecirc atraveacutes do
passado de militacircncia e prisatildeo como se identifica por meio desse passado imprime essa
identidade no mundo externo e como este mundo influencia na percepccedilatildeo que possui
sobre si mesmo
No entanto as memoacuterias individuais aqui trabalhadas natildeo estatildeo isoladas jaacute que
conforme bem evidenciado por Maurice Halbwachs em A memoacuteria coletiva (2004)
frequentemente tomam como referecircncia pontos externos ao sujeito se apoiando em
87
percepccedilotildees recebidas de determinada memoacuteria coletiva de um grupo e tambeacutem pela
memoacuteria histoacuterica de seu paiacutes (2004 57-59) Partindo dessa ideia percebe-se aqui que
nas memoacuterias narradas por indiviacuteduos que fizeram parte de uma mesma organizaccedilatildeo de
esquerda armada ou que ainda hoje integram um mesmo grupo como por exemplo o
Grupo Tortura Nunca MaisRJ satildeo encontrados mais pontos de contato Aleacutem disso
todos os depoentes mostram ter como base de suas lembranccedilas a memoacuteria histoacuterica
pois em algum momento as localizam no tempo por meio de datas e fatos que se
estabeleceram como histoacutericos tal como o golpe civil-militar de 31 de marccedilo de 1964
ou a decretaccedilatildeo do AI-5 em 13 de dezembro de 1968
Cabe aqui ressaltar que ex-prisioneiros do DOI-CODIRJ entrevistados eram em
sua grande maioria estudantes que se tornaram combatentes da esquerda armada a
partir da proibiccedilatildeo de atividades e manifestaccedilatildeo sobre o assunto de natureza poliacutetica
estipulada pelo inciso III do artigo 5ordm do AI-5 e que em suas memoacuterias a
promulgaccedilatildeo deste Ato representa um marco temporal muito mais forte do que o golpe
civil-militar de 1964 Afinal para suas trajetoacuterias de vida o AI-5 de 13 de dezembro de
1968 foi um divisor de aacuteguas pois tornava as manifestaccedilotildees estudantis proibidas
revoltando-os e estimulando-os ainda mais a lutar pela derrubada do regime ditatorial
Diante disso a maioria dos depoentes sustenta em suas memoacuterias o AI-5 como um
momento em que suas vidas foram postas em xeque A partir do dia de sua
promulgaccedilatildeo eles se viram diante da necessidade de decidir se continuavam ou natildeo a
agir contra a ditadura e em caso positivo se deveriam considerar a violecircncia armada
como uma via de luta uma vez que os movimentos paciacuteficos estavam totalmente
encurralados Como a opccedilatildeo da maior parte deles foi a de pegar em armas ndash decisatildeo que
acarretou natildeo soacute em suas prisotildees mas tambeacutem na mudanccedila da percepccedilatildeo que tinham
sobre a vida jaacute que ao andarem armados passavam a ter a consciecircncia de que viviam
88
sob a ameaccedila da morte ndash o AI-5 tem papel de destaque entre suas memoacuterias do periacuteodo
militar Essa importacircncia do AI-5 pode ser exemplificada no trecho abaixo destacado da
entrevista de Ana de Miranda Batista
O AI-5 foi determinante Porque vocecirc natildeo tinha mais formas de expressatildeo
vocecirc natildeo podia se reunir vocecirc natildeo podia mais fazer nada era impedido pela
poliacutecia A gente estava amordaccedilado a imprensa amordaccedilada os teatros os
cinemas tudo Era um terror muita poliacutecia na rua muita blitz blitz de
montatildeo sabe Quem quisesse ser como a gente -ldquoAbaixo a Ditadura
Abaixo a Repressatildeordquo As formas de expressatildeo se reduziram a quase zero Aiacute
eacute que houve um pontapeacute na decisatildeo de muitos de noacutes de quer dizer soacute
restou a luta armada soacute restou resistir de forma armada mesmo que pra
maioria de noacutes fosse uma decisatildeo extrema [] eu nem uma arma de perto
eu nunca tinha visto Quer dizer esse momento eacute um momento draacutestico
quer dizer um tempo depois eacute que eu conversando eacute que vi que natildeo foi
assim soacute para mim Porque para alguns dos rapazes que tinham servido ao
Exeacutercito e sei laacute o quecirc eles jaacute tinham alguma familiaridade com armas quer
dizer alguns deles Mas a gente menina classe meacutedia natildeo Eu nunca tinha
visto nunca tinha me interessado por arma na vida (risos) natildeo fazia parte do
meu universo E teve muita gente que nessa eacutepoca pirou Pirou que eu digo
de natildeo querer mais saber Muita gente E eu acho extremamente respeitaacutevel
essa decisatildeo porque eacute uma decisatildeo draacutestica [] porque no momento em que
vocecirc estaacute com uma arma vocecirc pode matar ou morrer Eacute muito grave essa
decisatildeo Vocecirc estaacute lidando com a possibilidade da morte e quando vocecirc
nunca teve familiaridade assim quando vocecirc nunca viu uma arma eacute muito
difiacutecil [] (Batista 17 nov 2004)
Vale aqui mais uma vez destacar que essas memoacuterias do passado satildeo lavadas nas
aacuteguas do presente ou seja satildeo o preacutesent du passeacute conforme a feliz expressatildeo de Robert
Frank (1999) As memoacuterias sobre as experiecircncias prisionais do DOI-CODIRJ
ocorridas durante os ldquoanos de chumbordquo da ditadura militar foram construiacutedas em
entrevistas concedidas entre o final do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-
2002) e o iniacutecio do governo de Lula (2003-10) ambos perseguidos poliacuteticos durante o
89
periacuteodo ditatorial Portanto a perspectiva de vencidos que no passado direcionava as
memoacuterias dos depoentes abre lugar para uma narrativa proacutexima agrave de vencedores pela
qual os ex-prisioneiros poliacuteticos se veem como responsaacuteveis pela construccedilatildeo da
democracia e de uma justiccedila de transiccedilatildeo ainda em curso no Brasil
Uma ideia de justiccedila de transiccedilatildeo iniciou-se principalmente a partir da
Constituiccedilatildeo de 1988 quando a reparaccedilatildeo aos perseguidos poliacuteticos do passado
ditatorial se transformou em garantia constitucional No entanto foi somente a partir de
1995 jaacute no governo FHC que ela comeccedilou a ser implantada por meio da primeira
comissatildeo de reparaccedilatildeo a Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos (lei nordm
914095) Aleacutem disso em 2002 sete anos depois a reparaccedilatildeo aos perseguidos pela
ditadura foi complementada por meio da Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio da Justiccedila
(lei nordm 1055902) Assim quando a primeira entrevista me foi concedida em setembro
de 2002 a Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos jaacute trabalhava no sentido de
reconhecer a responsabilidade do Estado brasileiro por mortes e desaparecimentos de
presos poliacuteticos ocorridas durante a ditadura enquanto a Comissatildeo de Anistia iniciava a
sua funccedilatildeo de
[] reparar os atos de exceccedilatildeo incluindo as torturas prisotildees arbitraacuterias
demissotildees e transferecircncias por razotildees poliacuteticas sequestros compelimento agrave
clandestinidade e ao exiacutelio banimentos expurgos estudantis e
monitoramentos iliacutecitos (Abratildeo 2010 4)
Conforme jaacute abordado no primeiro capiacutetulo os procedimentos impostos pela Lei
105592002 influenciaram como natildeo podia deixar de ser o processo de construccedilatildeo das
memoacuterias aqui trabalhadas Afinal o referido processo se iniciava com um relato da
viacutetima sobre as agressotildees e perseguiccedilotildees sofridas agrave eacutepoca ditatorial Este deveria
configurar uma espeacutecie de memorial no qual o requerente deveria destacar todas as
90
violaccedilotildees sofridas a ser apresentado agrave Comissatildeo cabendo a esta apoacutes a verificaccedilatildeo dos
fatos expostos conceder ou natildeo ao requisitante a condiccedilatildeo de anistiado poliacutetico e
dependendo do caso a correspondente reparaccedilatildeo econocircmica Como alguns dos
entrevistados passavam por este processo no mesmo periacuteodo em que concederam as
entrevistas eacute notaacutevel que tal experiecircncia seja mais uma forte influecircncia do presente na
construccedilatildeo das memoacuterias por eles narradas Esse momento de busca por reparaccedilatildeo por
que muitos passavam inconscientemente os conduzia a enfatizar durante as narrativas
suas condiccedilotildees de ldquoviacutetimasrdquo do passado em detrimento por exemplo de suas condiccedilotildees
de ldquosiacutembolos da resistecircnciardquo
Ainda diante da capacidade de intervenccedilatildeo que o presente exerce sobre as
memoacuterias do passado deve-se considerar tambeacutem a forma como essa rede de
entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que as entrevistas foram realizadas
Afinal o caminho trilhado ateacute o depoente e o momento especiacutefico de cada narrativa
composto pelo local e as condiccedilotildees gerais sob as quais ocorreu tambeacutem influenciam na
construccedilatildeo das memoacuterias do entrevistado tanto por parte do historiador na maneira
como aborda o narrador quanto por parte do proacuteprio narrador por meio da forma com
que narra suas memoacuterias Portanto acredita-se aqui que a busca por cada entrevistado
interfere na abordagem que o entrevistador imprime agrave entrevista e na forma como o
narrador se sente ao narrar suas memoacuterias naquele momento tornando o instante de
cada entrevista um fator tambeacutem de intervenccedilatildeo na narrativa das memoacuterias do passado
Dessa forma antes de tratar-se das trajetoacuterias de vida narradas por cada ex-prisioneiro
entrevistado optou-se aqui por considerar como o instante de cada entrevista foi
construiacutedo ou seja como a rede de entrevistas foi formada
91
1 A rede de entrevistas
A primeira entrevista foi feita com o ex-preso poliacutetico Antocircnio Leite de Carvalho
em 12 de setembro de 2002 na sala de sua casa situada bem proacutexima ao quartel do 1ordm
BPE onde se localizava o DOI-CODIRJ O espaccedilo ocupado por esta instituiccedilatildeo que eacute
intensamente abordado no proacuteximo capiacutetulo situava-se nos fundos do referido quartel
cujo edifiacutecio foi construiacutedo durante o Impeacuterio e ainda hoje se encontra entre a Avenida
Maracanatilde e a Rua Baratildeo de Mesquita no bairro da Tijuca na cidade do Rio de Janeiro
Cheguei ateacute Antocircnio atraveacutes de seu filho Joatildeo meu colega do curso de graduaccedilatildeo
em histoacuteria pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Sabedor
do meu interesse sobre o tema da repressatildeo poliacutetica Joatildeo procurou me ajudar e ao
mesmo tempo satisfazer a curiosidade que sentia sobre esta parte da vida de seu pai
Portanto durante a minha primeira visita agrave casa de Antocircnio enquanto ele narrava
suas memoacuterias sobre o periacuteodo em que esteve preso nas dependecircncias do quartel
vizinho Joatildeo atravessava constantemente a sala em direccedilatildeo agrave varanda ou agrave cozinha
Assim sem que Antocircnio aparentemente percebesse jaacute que estava concentrado em sua
narrativa Joatildeo tentava ouvir um pouco mais sobre um passado que seu pai nunca havia
revelado abertamente aos filhos
Percebe-se entatildeo como lidar com detalhes dessa memoacuteria era complicado para
Antocircnio e portanto o quanto aquele momento era importante para ele e para seu filho
Atraveacutes da entrevista enquanto Antocircnio passava a sentir um maior orgulho daquelas
memoacuterias pois por meio do meu interesse em entrevistaacute-lo comeccedilava a percebecirc-las
como fonte para a histoacuteria do paiacutes Joatildeo conhecia melhor o seu pai e passava a entender
algumas de suas atitudes que ateacute entatildeo questionava
Era o caso da reaccedilatildeo arredia que Antocircnio tinha ao ser acordado de forma
inesperada enquanto dormia no sofaacute da casa Assim apoacutes ouvir sobre o cotidiano e as
92
torturas a que seu pai afirma ter sido submetido no DOI-CODIRJ Joatildeo comeccedilou a
compreender que tal reaccedilatildeo tinha relaccedilatildeo com esse passado quando Antocircnio muitas
vezes pode ter sido despertado de desmaios ocasionados por choques eleacutetricos e outras
torturas a ele perpetradas ainda na sala de interrogatoacuterio Logo o fato de acordar
assustado tentando se proteger ou ateacute mesmo agredir quem o acordasse pode ser
compreendido quando relacionado agraves marcas que as violecircncias vividas no DOI-
CODIRJ deixaram na memoacuteria de Antocircnio
A partir dessa primeira entrevista o meu interesse pelo tema se aprofundou
impulsionando-me a buscar outros possiacuteveis entrevistados No dia 5 de fevereiro de
2003 consegui entrevistar Dulce Chaves Pandolfi Seu nome foi aventado por meio da
leitura sobre a passagem de Dulce pelo DOI-CODIRJ encontrada no livro Brasil
Nunca Mais publicado pela Editora Vozes em 1985
A estudante Dulce Chaves Pandolfi 24 anos foi obrigada tambeacutem a servir
de cobaia no quartel da rua Baratildeo de Mesquita no Rio [] Na Poliacutecia do
Exeacutercito foi submetida a espancamento inteiramente despida bem como a
choques eleacutetricos e outros supliacutecios como o ldquopau-de-ararardquo Depois de
conduzida agrave cela onde foi assistida por meacutedico foi apoacutes algum tempo
novamente seviciada com requintes de crueldade numa demonstraccedilatildeo de
como deveria ser feita a tortura [] (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985 32)
Depois de algumas tentativas frustradas de marcar esta entrevista por meio de
mensagens via correio eletrocircnico que encontrei atraveacutes do site do CPDOC centro de
pesquisa onde Dulce trabalha como pesquisadora e professora ela enfim me recebeu em
sua sala no interior deste mesmo centro de pesquisa Sua resistecircncia inicial pode ser
atribuiacuteda ao fato de na condiccedilatildeo de pesquisadora estar mais acostumada ao papel de
entrevistadora do que ao de entrevistada ou seja estar mais afinada com o trabalho de
analisar as fontes do que com o de ser a proacutepria fonte Diante disso durante sua
93
entrevista Dulce natildeo se sentiu agrave vontade em tratar dos detalhes das violecircncias sofridas
no DOI-CODIRJ o que pode ser explicado pela dor que ainda acompanha suas
memoacuterias e tambeacutem pelo desconforto que a situaccedilatildeo lhe trazia jaacute que ela possivelmente
natildeo se desvinculava do fato de ser uma professora universitaacuteria expondo sua intimidade
a uma aluna de graduaccedilatildeo No entanto justamente por lecionar histoacuteria e por
conseguinte jaacute estar convencida da importacircncia de seu depoimento Dulce apresentou
uma narrativa articulada e aparentemente coerente
Apoacutes a entrevista de Dulce ficou evidente a desarticulaccedilatildeo da memoacuteria de
Antocircnio uma vez que esta era silenciada haacute muito tempo e portanto natildeo possuiacutea uma
construccedilatildeo preacute-estabelecida por outros discursos Tal percepccedilatildeo me levou a voltar a
entrevistaacute-lo em 8 de fevereiro de 2003 trecircs dias depois da entrevista de Dulce quando
Antocircnio jaacute demonstrava uma memoacuteria mais articulada Afinal esse silecircncio que
caracterizava sua memoacuteria lhe atribuiacutea um aspecto negativo e um destacadamente
positivo O lado negativo era que conforme elucidado por Michael Pollak em Memoacuteria
esquecimento e silecircncio (1989) dificilmente sua memoacuteria foi transmitida de forma
intacta durante todo o tempo em que ficou guardada ateacute o dia em que a entrevista
significou uma oportunidade para que ela saiacutesse do ldquonatildeo-ditordquo Poreacutem o lado positivo a
meu ver merecedor de destaque era que a memoacuteria de Antocircnio sobre a prisatildeo no DOI-
CODIRJ possuiacutea poucas influecircncias por decorrecircncia do contato com as memoacuterias de
outros ex-prisioneiros pois natildeo estava a elas diretamente relacionada por meio de
nenhuma coletividade especiacutefica
No ano seguinte ao buscar mais informaccedilotildees sobre o DOI-CODIRJ no Arquivo
Puacuteblico do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) conheci Fernando Palha Freire que viria
a ser o meu terceiro entrevistado Na eacutepoca da entrevista em junho de 2004 Fernando
trabalhava neste Arquivo enviando ao governo estadual a documentaccedilatildeo de requerentes
94
agrave reparaccedilatildeo econocircmica conforme constava no decreto nordm 31995 de 10 de outubro de
2002 Este decreto regulamentava a lei estadual Nordm 3744 de 21 de dezembro de 2001
que antes mesmo da lei federal 105592002 entrar em vigor dispunha sobre a
reparaccedilatildeo a pessoas que haviam sido detidas sob acusaccedilatildeo de terem participado de
atividades poliacuteticas entre os dias 1ordm de abril de 1964 e 15 de agosto de 1979 e que
haviam sofrido tortura em oacutergatildeos puacuteblicos estaduais
Ao saber sobre o meu tema de pesquisa um arquivista do APERJ me apresentou a
Fernando que natildeo hesitou em me conceder seu depoimento A entrevista foi realizada laacute
mesmo dentro da sala em que Fernando trabalhava e por ter sido concedida durante o
horaacuterio de expediente fomos constantemente interrompidos por ligaccedilotildees telefocircnicas Ao
longo de sua entrevista Fernando confessou ter falado muitas vezes sobre suas
memoacuterias do periacuteodo militar e que justamente por entender a importacircncia desse
passado havia sido nomeado para instruir os requisitantes agrave reparaccedilatildeo estipulada pelo
Decreto estadual Nordm 319952002 Dessa forma justifica-se a apresentaccedilatildeo tranquila e
eloquente que conduz sua narrativa
Trecircs meses depois no final de setembro Padre Maacuterio Prigol da Paroacutequia de
Nossa Senhora da Salete localizada no bairro do Catumbi no Rio de Janeiro me
concedeu seu depoimento Esta entrevista foi possiacutevel por intermeacutedio de Alejandra
outra colega do curso de graduaccedilatildeo em histoacuteria da UNIRIO que o conhecia por jaacute tecirc-lo
entrevistado sobre a sua participaccedilatildeo nos movimentos da Juventude Operaacuteria Catoacutelica
(JOC) e Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) 16
Durante a entrevista que me concedeu Padre Maacuterio falou muito sobre as lutas
sociais que travou durante a ditadura militar descritas no livro que havia acabado de
publicar ndash Maacuterio Prigol educador da feacute entre trabalhadores e militantes populares
16
Para mais informaccedilotildees ver Estevez 2008
95
(2003) Entretanto sobre sua passagem pelo DOI-CODIRJ pouco fazia questatildeo de
narrar reconhecendo em certo momento que laacute tambeacutem havia sofrido com torturas o
que explica em parte o desconforto que as lembranccedilas prisionais lhe traziam
Provavelmente por sua prisatildeo ter lhe colocado na eacutepoca em uma posiccedilatildeo extremamente
conflitante e perturbadora para uma autoridade da Igreja Catoacutelica anos mais tarde essas
memoacuterias ainda eram difiacuteceis de serem narradas e lembrar a violecircncia sofrida dentro do
DOI-CODIRJ possivelmente trazia de volta alguns transtornos de ordem sentimental
indesejaacuteveis Afinal presume-se que na prisatildeo seus sentimentos oscilassem entre os
tipicamente humanos tais como dor e raiva e os cristatildeos como feacute e perdatildeo tais
memoacuterias remetiam a sentimentos humanos que ele em respeito a sua vocaccedilatildeo de
padre deveria renegar
Decidida a ampliar ainda mais o escopo de minha rede de entrevistados passei a
frequentar as reuniotildees abertas ao puacuteblico agraves segundas-feiras agrave noite na sede do Grupo
Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTMNRJ) no bairro de Botafogo O
GTNMRJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-prisioneiros poliacuteticos que viveram
situaccedilotildees de tortura durante o regime militar bem como por familiares de mortos e
desaparecidos poliacuteticos O Grupo tornou-se por meio das lutas em defesa dos direitos
humanos uma importante referecircncia no cenaacuterio nacional Ao longo dessas deacutecadas o
GTNMRJ vem lutando pelo esclarecimento das circunstacircncias da morte e do
desaparecimento de militantes poliacuteticos pelo resgate da memoacuteria da repressatildeo ditatorial
pelo afastamento imediato dos cargos puacuteblicos de pessoas envolvidas com a tortura e
pela formaccedilatildeo de uma consciecircncia eacutetica condiccedilatildeo que a entidade defende ser
indispensaacutevel na luta contra a impunidade e pela justiccedila Aleacutem disso o Grupo vem
denunciando antigos e novos casos de tortura exigindo puniccedilatildeo para seus perpetradores
96
atraveacutes de notas na miacutedia entrevistas atos puacuteblicos seminaacuterios e outras atividades 17
Minha ida agrave sede do Grupo resultou na incorporaccedilatildeo de duas novas entrevistadas a
minha rede A primeira delas foi Ana de Miranda Batista que em 17 de novembro de
2004 me recebeu em uma das salas do proacuteprio GNTMRJ Ana havia acabado de
escrever seu memorial ndash onde narrava todas as perseguiccedilotildees e prisotildees que havia sofrido
durante a ditadura militar ndash e o havia encaminhado agrave presidecircncia da Comissatildeo Especial
da Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro a fim de comprovar
que fazia jus ao valor maacuteximo da reparaccedilatildeo prevista no Art 5ordm da Lei Estadual nordm 3744
de 21 de dezembro de 2001 O ponto principal de seu argumento era que havia sofrido
todas as mazelas prisotildees torturas fiacutesicas e psicoloacutegicas submetida pelas forccedilas
opressoras da eacutepoca fato este que ateacute hoje tem consequecircncias em sua vida (Batista
2004 10) 18
Antes de comeccedilar a entrevista Ana me concedeu uma coacutepia deste memorial
juntamente com a monografia do entatildeo Coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira
fonte analisada no capiacutetulo anterior cujo teor havia lhe servido como evidecircncia dos
meacutetodos violentos que ocorriam nas dependecircncias do DOI-CODI
Diante disso conforme o esperado seu depoimento oral apresentou um tom
narrativo muito similar ao assumido no referido documento que havia recentemente
escrito Assim orquestrada com o objetivo que tinha de conseguir a reparaccedilatildeo do
Estado Ana buscou construir suas memoacuterias de forma a ressaltar as violecircncias sofridas
ou seja priorizou a condiccedilatildeo de ldquoperseguida poliacutetica e viacutetima da repressatildeo militarrdquo em
detrimento da de ldquolutadora revolucionaacuteriardquo em prol da democracia
No final desse mesmo mecircs de novembro entrevistei a entatildeo vice-presidente do
Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro Ceciacutelia Coimbra Professora do
17
Para mais informaccedilotildees acessar httpwwwtorturanuncamais-rjorgbr 18
Memorial de Ana de Miranda Batista parte do requerimento agrave indenizaccedilatildeo enviado ao Secretaacuterio de
Estado de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro pela proacutepria em outubro de 2004
97
Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Ceciacutelia me
recebeu em uma das salas do preacutedio dessa faculdade localizada no campus do
Gragoataacute na cidade de Niteroacutei Uma das fundadoras do GTNMRJ Ceciacutelia natildeo mostrou
nenhum pudor em lembrar as violaccedilotildees sofridas durante a prisatildeo Detalhou as torturas
recebidas sem demonstrar constrangimento Esta forma de lidar com o passado se
explica pela maneira pela qual Ceciacutelia se auto-identifica Afinal devido a sua profissatildeo
de psicoacuteloga e sua condiccedilatildeo de liacuteder de um grupo que luta por reparar os danos morais e
fiacutesicos deixados pela tortura entende a difusatildeo dos detalhes de sua proacutepria memoacuteria
como uma arma poderosa para que a justiccedila seja feita em prol da redenccedilatildeo dos
torturados e da penalizaccedilatildeo dos torturadores
11 Os sujeitos e suas trajetoacuterias
A partir da anaacutelise dos depoimentos traccedila-se aqui a trajetoacuteria de vida de cada um
dos entrevistados a fim de que sejam desvendados outros fatores que influenciaram a
construccedilatildeo de suas memoacuterias sobre o periacuteodo em que estiveram presos no DOI-
CODIRJ Este periacuteodo se concentra no segundo semestre do ano de 1970 uma vez que
foi nesse momento que todos os seis entrevistados por laacute passaram Este dado temporal
em muito aproxima suas memoacuterias pois significa que estas se referem a uma mesma
fase desse oacutergatildeo repressivo Isso permitiu ateacute mesmo que tais memoacuterias englobassem
momentos compartilhados jaacute que alguns desses ex-prisioneiros laacute se encontraram e ateacute
dividiram uma mesma cela
No entanto cabe aqui destacar que natildeo houve qualquer intenccedilatildeo de entrevistar ex-
prisioneiros que estivessem no DOI-CODIRJ durante esse periacuteodo Conforme exposto
anteriormente a rede de entrevistas foi se desenhando de acordo com as oportunidades
o que torna o fato de todos terem por laacute passado na segunda metade de 1970 natildeo uma
98
feliz coincidecircncia como uma primeira impressatildeo pode fazer crer mas mais uma
demonstraccedilatildeo da alta eficiecircncia dos DOI-CODI Essas prisotildees correspondem justamente
ao periacuteodo em que o DOI-CODIRJ passou a funcionar em meados de 1970
demonstrando na praacutetica o que foi dito no capiacutetulo anterior diante da grande demanda
de accedilotildees que natildeo eram eficientemente combatidas pelos oacutergatildeos de repressatildeo anteriores
a sofisticaccedilatildeo dos DOI ldquorevolucionourdquo de fato a organizaccedilatildeo da repressatildeo agindo jaacute
num primeiro momento de forma avassaladora
Antocircnio Leite de Carvalho19
Antocircnio Leite de Carvalho nasceu no Cearaacute em 13 de agosto de 1945 Quando era
estudante secundarista pertenceu ao movimento que se concentrava no Calabouccedilo
restaurante estudantil proacuteximo ao Aeroporto Santos Dumont do Rio de Janeiro
frequentado por estudantes que eram como ele secundaristas pobres e principalmente
procedentes de outros estados
Em 1967 o governo apresentou planos para a demoliccedilatildeo do Calabouccedilo sob a
justificativa de construir em seu local um trevo rodoviaacuterio para desafogar o tracircnsito do
Aterro do Flamengo A partir disso os estudantes comeccedilaram a protestar contra a sua
demoliccedilatildeo e criaram a Frente Unida dos Estudantes do Calabouccedilo (FUEC) O governo
em maio daquele ano conseguiu demolir o restaurante e entregou em setembro ldquoo novo
Calabouccedilordquo para os estudantes poreacutem em situaccedilotildees precaacuterias Assim a luta da FUEC
continuou em prol da melhoria de suas condiccedilotildees de funcionamento e foi justamente em
torno desses protestos que o primeiro grande conflito de rua do ano de 1968 ocorreu
sensibilizando a opiniatildeo puacuteblica e o movimento estudantil como um todo No dia 28 de
19
Entrevistas realizadas com Antocircnio Leite de Carvalho em 12 de setembro de 2002 e 8 de fevereiro de
2003
99
marccedilo policiais invadiram a tiros o restaurante do Calabouccedilo onde se preparava mais
uma manifestaccedilatildeo contra as peacutessimas condiccedilotildees do local e mataram o estudante
secundarista Edson Luiacutes de Lima Souto de dezoito anos Este assassinato representou o
estopim para o desencadeamento de amplas manifestaccedilotildees contraacuterias agrave ditadura ao
longo do ano de 1968 que seriam cada vez mais reprimidas ateacute se tornarem totalmente
proibidas pelo AI-5 20
A partir desse contexto de ilegalidades e proibiccedilotildees Antocircnio se posicionou entre
os estudantes que optaram por continuar a lutar contra a ditadura de forma radicalizada
Aproximou-se entatildeo do Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR) onde
logo em seguida comeccedilou a militar Antocircnio associa a sua adesatildeo ao PCBR ao
programa deste partido de esquerda que tinha a guerrilha urbana como meio de luta
para a derrubada da ditadura e implantaccedilatildeo do socialismo no paiacutes e principalmente agrave
admiraccedilatildeo que tinha por um dos seus fundadores e liacutederes Apolocircnio de Carvalho
Como Antocircnio teve participaccedilatildeo assiacutedua em muitas passeatas do movimento
estudantil de 1968 conheceu muitas lideranccedilas de organizaccedilotildees que vinham se
formando e buscavam adeptos em meio aos estudantes Assim foi apresentado e
comeccedilou a admirar Apolocircnio de Carvalho um dos grandes motivos que o levaram a
posteriormente militar no PCBR partido cuja formaccedilatildeo atuaccedilatildeo e ideais seratildeo
abordados mais adiante Apolocircnio de Carvalho era uma figura haacute muito atuante na
poliacutetica havia lutado em favor dos republicanos na Espanha durante a Guerra Civil
Espanhola na Resistecircncia Francesa contra o nazismo e participava do Partido
Comunista Brasileiro (PCB) quando em 1967 rompeu com este e foi um dos
fundadores do PCBR 21
20
Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009 108-132 21
Em 1967 Apolocircnio rompeu com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e se tornou um dos fundadores
do PCBR partido em situaccedilatildeo clandestina na eacutepoca motivo que o levou a ser preso Juntamente com
outros 39 presos poliacuteticos Apolocircnio foi trocado pelo embaixador alematildeo que em 11 de junho de 1970
100
O partido era o PCBR que possuiacutea uma grande figura que se chama
Apolocircnio de Carvalho que pertence hoje ao PT ele era uma grande
lideranccedila do partido havia participado da Revoluccedilatildeo Espanhola da
resistecircncia ao nazismo na Franccedila um homem respeitado mundialmente pela
sua coragem e pela luta a favor da democracia e contra os ditadores ele era a
minha grande lideranccedila (Carvalho 12 set 2002)
Em 1970 aos 25 anos Antocircnio Leite de Carvalho foi preso No momento de sua
prisatildeo estava agrave espera de outro militante do PCBR na rua em um ponto de encontro
que havia combinado com ele Relacionando o depoimento de Antocircnio com as
estrateacutegias de captura dos DOI analisadas no primeiro capiacutetulo percebe-se que como o
companheiro de Antocircnio havia sido capturado antes de ir ao seu encontro acabou
informando aos agentes de umas das turmas de interrogatoacuterio preliminar do DOI-
CODIRJ muito provavelmente sob tortura o horaacuterio em que Antocircnio estaria no lugar
marcado A partir disso a informaccedilatildeo foi repassada agrave Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo e
agentes de uma das turmas que a formavam se encaminharam ateacute o local com carros e
roupas descaracterizadas como de praxe e levaram Antocircnio algemado para o DOI-
CODIRJ onde ficou preso durante cerca de trecircs meses
Eu fui preso na rua Eu tinha um encontro com outro militante mas esse
militante foi preso e sob tortura no DOI-CODI aqui no 1deg BPE da Rua
Baratildeo de Mesquita ele abriu o ponto quer dizer o ponto era o local de
encontro que a gente chamava de ponto ldquoTenho um ponto com fulanardquo quer
dizer que vocecirc tinha um encontro Ele abriu o local de encontro que eu teria
com ele e aiacute eu fui preso pelo DOI-CODI (Carvalho 12 set 2002)
havia sido sequestrado por esquerdistas integrantes da Vanguarda Popular Revolucionaacuteria (VPR) e da
Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN) vivendo algum tempo exilado na Argeacutelia Apoacutes a implantaccedilatildeo da Lei
de Anistia no Brasil em 1979 ele e sua famiacutelia retornaram agrave terra natal onde participaram da fundaccedilatildeo
do Partido dos Trabalhadores (PT) em 1980 Apolocircnio faleceu em setembro de 2005 aos 93 anos
(Carvalho 1997 13-16)
101
Antocircnio ressalta que durante a sua prisatildeo no DOI-CODIRJ esteve junto a
Fernando Gabeira e Daniel Aaratildeo Reis Filho Ambos haviam participado do sequestro
do embaixador americano no dia 4 de setembro de 1969 e por terem conseguido trocar
o embaixador por quinze presos poliacuteticos que foram exilados no Meacutexico haviam se
destacado entre os militantes da esquerda armada Aleacutem disso como na eacutepoca em que
Antocircnio concedeu as entrevistas Gabeira e Daniel Aaratildeo eram pessoas publicamente
reconhecidas pela luta contra a ditadura e tambeacutem por suas atividades profissionais ndash
Gabeira como jornalista e entatildeo deputado federal e Daniel Aaratildeo como intelectual ndash
percebe-se que o fato de ter tido contato com eles na prisatildeo eacute importante para a leitura
que Antocircnio faz sobre suas memoacuterias injetando-lhes certo orgulho Afinal apesar de
natildeo ter participado do sequestro Antocircnio tambeacutem havia sido preso e torturado por
pegar em armas contra a ditadura logo o fato de ter convivido na cadeia com essas
figuras jaacute reconhecidas pelos feitos desse mesmo passado lhe trazia no presente uma
dimensatildeo positiva sobre suas memoacuterias
Fiquei preso com pessoas que ficaram famosas como o Fernando Gabeira
que depois se tornou parlamentar foi candidato ao governo do Estado foi
candidato a prefeito e hoje eacute deputado federal Tambeacutem o Daniel Aaratildeo
Reis renomado professor de Histoacuteria e uma seacuterie de outros que hoje estatildeo aiacute
pelo governo inclusive em diversos governos (Carvalho 12 set 2002)
Apoacutes o tempo em que esteve preso no DOI-CODIRJ Antocircnio foi transferido para
o Departamento de Ordem Poliacutetica e Social (DOPS) onde permaneceu por um periacuteodo
de dois ou trecircs meses sendo entatildeo libertado Na eacutepoca em que concedeu a entrevista
Antocircnio aleacutem de bancaacuterio aposentado trabalhava como dirigente sindical em um cargo
eletivo
102
Dulce Chaves Pandolfi22
Dulce Chaves Pandolfi nasceu em Recife no dia 14 de dezembro de 1948
Cursava Ciecircncias Sociais em Pernambuco quando em 1967 entrou para o Diretoacuterio
Acadecircmico se tornando pouco depois secretaacuteria geral do Diretoacuterio Central dos
Estudantes (DCE) A partir de dezembro de 1968 com o AI-5 extinguindo os grecircmios
estudantis e substituindo-os por centros ciacutevicos sem autonomia que natildeo podiam realizar
atividades de natureza poliacutetica a opccedilatildeo de fazer parte da ALN era para Dulce uma
forma de continuar lutando por uma ldquosociedade mais igualitaacuteriardquo Aleacutem disso era
sobretudo um meio de derrubar o regime militar em vigor como se pode conferir na
passagem abaixo
[] a gente queria transformar a sociedade a gente queria o socialismo uma
sociedade igualitaacuteria Mas tinha uma fase anterior que era exatamente a de
querer derrubar a ditadura essa era a meta principal de todos Sabiacuteamos
inclusive que o socialismo natildeo era uma meta imediata era uma luta em
longo prazo [] entatildeo a nossa luta inicialmente era para ser instalado o
regime democraacutetico era a luta contra a ditadura (Pandolfi 5 fev 2003)
Ressalta-se entretanto que a opccedilatildeo de Dulce assim como da maior parte dos
estudantes que a partir do AI-5 se juntaram agraves organizaccedilotildees esquerdistas de luta armada
estava inserida no contexto mundial de 1968 Este por sua vez influenciava-se pela
vitoacuteria da Revoluccedilatildeo Cubana em 1959 pela independecircncia da Argeacutelia em 1962 pela
Guerra Fria que acabou por deflagrar entre os anos de 1959 e 1975 a Guerra do Vietnatilde
e por meio desta o enfrentamento indireto de Estados Unidos e Uniatildeo Sovieacutetica e pela
rebeliatildeo estudantil mundial iniciada a partir do ldquomaio francecircs de 1968rdquo que comeccedilou
por meio de uma manifestaccedilatildeo estudantil pontual questionadora de atitudes culturais
22
Entrevista realizada com Dulce Chaves Pandolfi em 5 de fevereiro de 2003
103
tradicionais e conservadoras e rapidamente atingiu a proporccedilatildeo de uma ldquorevoluccedilatildeo
cultural mundialrdquo Percebe-se entatildeo que o horizonte nesse momento era revolucionaacuterio
e principalmente entre os jovens impulsionava a percepccedilatildeo de que os partidos
tradicionais de esquerda estavam desacreditados e que era hora de uma nova geraccedilatildeo
partir para a accedilatildeo direta rumo agrave revoluccedilatildeo
Assim diferente de como eacute narrado por muitos ex-prisioneiros poliacuteticos em
tempos jaacute democraacuteticos que tais como Dulce veem a democracia do presente como
uma conquista positiva e por isso inconscientemente permitem que essa visatildeo atual
influencie suas memoacuterias de luta percebe-se aqui que a democracia natildeo prevalecia entre
os ideais das organizaccedilotildees de luta armada da eacutepoca muito pelo contraacuterio Afinal
acredita-se que em meio ao contexto mundial do momento as esquerdas armadas
tinham uma perspectiva de fato revolucionaacuteria ou seja valorizavam a revoluccedilatildeo muito
mais que a democracia que inclusive nesse momento estava diretamente associada
aos Estados Unidos e consequentemente ao sistema capitalista Como aponta Daniel
Aaratildeo na obra a Ditadura militar esquerdas e sociedade (2000)
a perspectiva ofensiva revolucionaacuteria que havia moldado aquelas
esquerdas E o fato de que elas natildeo eram de modo nenhum apaixonadas pela
democracia (Aaratildeo Reis 2000 70)
A democracia soacute comeccedilou mesmo a ser valorizada a partir do final da deacutecada de
1970 jaacute em uma nova conjuntura onde jaacute existiam outros significados tais como os
direitos humanos e a luta pela anistia No entanto por outro lado nota-se que conforme
destacado por Dulce a luta contra ditadura era tambeacutem um dos objetivos principais da
esquerda armada no final dos anos 1960 Dessa forma apesar da luta contra ditadura na
eacutepoca estar totalmente vinculada agrave revoluccedilatildeo socialista eacute compreensiacutevel que a
democracia tenha em tempos recentes um papel destacado entre as memoacuterias dos ex-
104
guerrilheiros Tal como analisa Marcelo Ridenti em Resistecircncia e mistificaccedilatildeo da
resistecircncia armada contra a ditadura armadilha para pesquisadores (2004) nota-se
aqui que a face de resistecircncia agrave ditadura das experiecircncias guerrilheiras passou a importar
mais apoacutes a implantaccedilatildeo da democracia que a ofensiva revolucionaacuteria ao contraacuterio da
intenccedilatildeo original dos guerrilheiros Afinal foi esta face que teve o objetivo alcanccedilado
ou seja saiu-se vencedora
Apoacutes o AI-5 Dulce optou entatildeo por militar na Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN)
organizaccedilatildeo de esquerda armada que seraacute abordada ainda neste capiacutetulo Assim no ano
de 1970 sabendo que estava sendo procurada pela repressatildeo por conta de sua militacircncia
clandestina Dulce se mudou para a cidade do Rio de Janeiro Sete meses depois no dia
14 de agosto foi presa na casa do seu namorado e levada direto para o DOI-CODIRJ
onde permaneceu cerca de trecircs meses
[] fui presa na casa do meu namorado noacutes fomos presos agrave noite no dia 14
de agosto Fui levada direto para PE Fiquei na PE mais ou menos uns trecircs
meses fiquei ateacute novembro comecinho de dezembro eu acho Depois eu
fui transferida para o DOPS (Pandolfi 5 fev 2003)
Apoacutes permanecer presa no DOI-CODI Dulce foi levada para o DOPS e depois
de seu julgamento foi transferida para o presiacutedio Talavera Bruce prisatildeo feminina de
regime fechado com grau de seguranccedila maacutexima localizada no bairro de Bangu
Passado um ano foi levada de volta para Recife sua cidade natal onde finalmente foi
libertada Encontrou-se prisioneira por mais de um ano de agosto de 1970 ateacute dezembro
de 1971
[] depois de um tempo praticamente um ano que eu estava presa fui
levada para Recife porque eu tambeacutem tinha processo laacute e de laacute eu saiacute Fui
105
solta laacute em Recife depois de um ano Saiacute em dezembro de 1971 fui presa
em agosto de 70 e fui solta em dezembro de 71 (Pandolfi 5 fev 2003)
Dulce no momento de sua entrevista jaacute era professora e pesquisadora do Centro de
Pesquisa e Documentaccedilatildeo de Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil (CPDOC) da Fundaccedilatildeo
Getuacutelio Vargas (FGV) ofiacutecio que exerce ateacute os dias de hoje
Fernando Palha Freire23
Fernando Palha Freire nasceu em Beleacutem (PA) e se mudou para o Rio de Janeiro
no fim de 1964 Antes de vir para o Rio ainda adolescente aprendeu alguns
fundamentos marxistas com sua irmatilde mais velha jaacute universitaacuteria que lhe deu o que ele
chamou de uma ldquonoccedilatildeo de mundordquo Quando se mudou para o Rio de Janeiro Fernando
mesmo jovem jaacute havia se definido esquerdista
Agrave eacutepoca do AI-5 Fernando tinha muitos amigos que militavam em uma
Dissidecircncia do Partidatildeo de Niteroacutei a Dissidecircncia do Estado do Rio de Janeiro que em
meados de 1969 foi desmontada atraveacutes da prisatildeo de seus integrantes pelo oacutergatildeo de
repressatildeo da Marinha o Centro de Informaccedilotildees da Marinha o CENIMAR Como esta
organizaccedilatildeo natildeo tinha um nome especiacutefico para noticiar o seu desmonte na imprensa
com um efeito grandioso os militares daquele oacutergatildeo optaram por nomeaacute-la de
Movimento Revolucionaacuterio 8 de outubro (MR-8) fazendo alusatildeo agrave data em que Che
Guevara havia sido capturado na Boliacutevia morrendo no dia seguinte Foi inclusive a
partir disso que a Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-GB)24
para provocar o
governo ditatorial que haacute pouco havia noticiado o desmonte do perigoso ldquoMR-8rdquo
23
Entrevista realizada com Fernando Palha Freire em 28 de junho de 2004 24
Tais organizaccedilotildees de esquerda da eacutepoca ainda seratildeo abordadas neste capiacutetulo no item 12 A nova
esquerda brasileira
106
assinou em co-autoria com a ALN o sequestro do embaixador norte-americano
autointitulando-se MR-8 como passou desde entatildeo a ser conhecida 25
[] quando veio o golpe minha irmatilde jaacute era universitaacuteria eu era um garoto
eu tinha quinze anos [] ela que me deu mesmo uma noccedilatildeo de mundo de
marxismo Quando veio o golpe noacutes moraacutevamos em Beleacutem No final de 64
eu estava me mudando para o Rio de Janeiro jaacute com essas noccedilotildees de justiccedila
social que eu havia aprendido com ela Digamos assim eu jaacute era
definidamente um cara de esquerda Aiacute veio a luta armada [] a primeira
organizaccedilatildeo [desmontada pelos militares] era o MR-8 uma organizaccedilatildeo de
Niteroacutei uma dissidecircncia do Partidatildeo [PCB] de Niteroacutei onde muitos de seus
integrantes eram meus conhecidos meus amigos entatildeo quando esses caras
foram presos eu jaacute era digamos assim um simpatizante dessa organizaccedilatildeo
natildeo era militante mas era simpatizante [] (Freire 28 jun 2004)
A partir dessa ligaccedilatildeo com outros militantes Fernando optou pela luta armada e
passou a militar na ALN mesma organizaccedilatildeo de Dulce Sua militacircncia poreacutem
concentrava-se em Niteroacutei no estado do Rio de Janeiro onde morava e estudava
economia na Universidade Federal Fluminense (UFF) Assim em 1970 Fernando e
outros militantes da ALN proacuteximos a ele resolveram planejar uma accedilatildeo para que muitos
de seus companheiros inclusive os do antigo MR-8 fossem libertados
No dia 1deg de julho de 1970 aos 22 anos Fernando participou do sequestro de um
aviatildeo da Companhia Cruzeiro do Sul que ia do Brasil para a Argentina com o objetivo
de negociar a troca dos passageiros por quarenta presos poliacuteticos
[] a gente pensou em fazer uma accedilatildeo accedilatildeo no sentido de tentar libertar esse
pessoal Na eacutepoca jaacute tinham sequestrado o embaixador americano e
trocado por quinze presos poliacuteticos [] Entatildeo nesse sentido a gente
resolveu planejar o sequestro de um aviatildeo A gente sequestrou um aviatildeo com
o objetivo de trocar os passageiros por quarenta presos poliacuteticos Quer dizer
25
Para mais informaccedilotildees sobre a mudanccedila de nome da Dissidecircncia da Guanabara para MR-8 ver
Berquoacute 1997 72-73
107
a gente entrou num processo de radicalizaccedilatildeo mesmo A gente queria era a
libertaccedilatildeo [] soacute que essa accedilatildeo natildeo deu certo [] (Freire 28 jun 2004)
O sequestro parecia correr como o planejado Durante o vocirco Fernando e os outros
militantes conseguiram desviar a rota que saiacutea do Rio de Janeiro para Buenos Aires
com escala em Satildeo Paulo fazendo o aviatildeo retornar ao Rio Poreacutem no Aeroporto
Internacional do Rio de Janeiro o Galeatildeo oficiais da Aeronaacuteutica cercaram o aviatildeo e
conseguiram render os opositores poliacuteticos envolvidos na operaccedilatildeo antes que eles
conseguissem negociar a troca dos refeacutens pelos quarenta prisioneiros poliacuteticos Durante
o combate um dos sequestradores irmatildeo de Fernando levou um tiro vindo a falecer
horas depois
A gente chegou a desviar o aviatildeo um aviatildeo que ia pra Argentina com uma
parada em Satildeo Paulo a gente mandou o aviatildeo voltar e quando chegamos ao
Rio o aviatildeo foi cercado Os caras chegaram com gaacutes lacrimogecircneo lama
arma e nessa accedilatildeo o meu irmatildeo foi baleado e depois morreu Eles mataram
meu irmatildeo A gente foi preso pelo CISA que era a forccedila secreta da
Aeronaacuteutica [] Jaacute na descida do aviatildeo a gente apanhou natildeo se sabe de
quem e nem por onde Depois fomos torturados no aparelho de repressatildeo
deles laacute dentro e de laacute fomos transferidos pro DOI-CODI na PE (Freire 28
jun 2004)
Primeiramente aprisionado pelo Centro de Informaccedilotildees e Seguranccedila da
Aeronaacuteutica (CISA) Fernando foi pouco tempo depois transferido para o DOI-
CODIRJ onde permaneceu cerca de dezoito a vinte dias Posteriormente voltou para
as dependecircncias do CISA no aeroporto do Galeatildeo onde ficou cerca de oito meses ateacute
ser julgado Apoacutes seu julgamento foi conduzido para o Instituto Penal Cacircndido Mendes
(IPCM) presiacutedio de seguranccedila maacutexima localizado em Ilha Grande no estado do Rio de
Janeiro Para Fernando em meio agraves privaccedilotildees que vivia nos oacutergatildeos de repressatildeo ser
transferido para um presiacutedio de fato como o da Ilha Grande era na eacutepoca um desejo
108
Afinal aleacutem de saber que laacute estavam alguns de seus companheiros no IPCM existia
uma rotina de presiacutedio normal com direito a jogar futebol no paacutetio a ler jornais e livros
situaccedilatildeo bem diferente da dos DOI-CODI por exemplo que conforme destacado no
capiacutetulo anterior eram oacutergatildeos estritamente de repressatildeo e investigaccedilatildeo localizados em
quarteacuteis cuja prisatildeo era improvisada apenas para cumprir tais funccedilotildees
Oito meses foi o tempo que a gente ficou laacute na Aeronaacuteutica E aiacute o que eacute a
perspectiva de vida Os sonhos da gente Vocecirc quando estaacute preso o seu
sonho eacute fugir realmente mas se vocecirc natildeo tem perspectiva de fuga o seu
sonho eacute o quecirc Eacute ir pra uma coletividade onde estatildeo os outros presos Entatildeo
meu sonho passou a ser esse ir pra Ilha Grande [] laacute eu sabia que os
companheiros estavam laacute sabia que tinha uma lsquopeladinharsquo que a gente podia
bater uma bola campeonato de xadrez livros para ler coisa que esses caras
sacaneavam tanto a gente que nem livros Jornal Raacutedio Essas coisas Nem
pensar Entatildeo meu sonho era Ilha Grande Apesar de ser um lugar
horroroso Era na eacutepoca um presiacutedio de seguranccedila maacutexima isolado (Freire
28 jun 2004)
Fernando permaneceu mais de seis anos na prisatildeo sendo libertado no dia 29 de
setembro de 1976 Ele e os demais companheiros envolvidos no sequestro tiveram suas
condenaccedilotildees embasadas no artigo 28 do Decreto-lei 898 de 29 de setembro de 1969
que alterava a Lei de Seguranccedila Nacional A partir deste artigo ficava estipulada uma
pena de reclusatildeo que poderia variar de 12 a 30 anos para quem devastasse saqueasse
assaltasse sequestrasse incendiasse depredasse ou praticasse qualquer tipo de atentado
pessoal ato de massacre sabotagem ou terrorismo Aleacutem disso no mesmo artigo havia
um paraacutegrafo uacutenico decretando que se a accedilatildeo resultasse em morte a condenaccedilatildeo seria
no miacutenimo agrave prisatildeo perpeacutetua e no maacuteximo agrave morte
Art 28 Devastar saquear assaltar roubar sequestrar incendiar depredar
ou praticar atentado pessoal ato de massacre sabotagem ou terrorismo
109
Pena reclusatildeo de 12 a 30 anos
Paraacutegrafo uacutenico Se da praacutetica do ato resultar morte
Pena prisatildeo perpeacutetua em grau miacutenimo e morte em grau maacuteximo (Decreto-
lei nordm 898 29 set 1969)
A partir desse decreto durante o julgamento de Fernando tentaram condenaacute-lo agrave
prisatildeo perpeacutetua baseando a argumentaccedilatildeo no fato do sequestro do aviatildeo ter acarretado
uma morte no caso a de seu irmatildeo No entanto como esta morte foi ocasionada pela
repressatildeo militar a pena de Fernando ficou estipulada em doze anos de reclusatildeo e mais
adiante reduzida para seis anos
[] tinha uma lei de seguranccedila nova entrado em evidecircncia os caras queriam
dar o exemplo com pena de morte ou prisatildeo perpeacutetua etc e noacutes fomos os
primeiros casos de pena de morte que eles pediram O meu o de Colombo
Jessie Jane - Jane eacute a ex-diretora daqui [Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio
de Janeiro ndash APERJ] [] tinha um artigo vinte e oito que previa pena capital
ou prisatildeo perpeacutetua em caso de morte Soacute que quem morreu foi um dos
nossos o meu irmatildeo foi morto por eles e eles em cima disso tentando
aplicar essa pena soacute que natildeo colou E eu peguei doze anos Colombo pegou
trinta mas era menor aiacute caiu pra dezoito a Jane de vinte e quatro parece
que a Jane caiu pra dezoito E eu como tinha a questatildeo de ser primaacuterio natildeo
sei mais o quecirc enfim quer dizer eu estou resumindo Aiacute por conta disso
fui condenado e fiquei seis anos [] (Freire 28 jun 2004)
Na eacutepoca da entrevista Fernando trabalhava no Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio
de Janeiro (APERJ) onde possuiacutea um cargo de confianccedila conforme explicado
anteriormente Hoje Fernando Palha Freire eacute comerciante responsaacutevel pela cantina do
primeiro piso do preacutedio do Instituto de Filosofia e Ciecircncias Sociais (IFCS) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
110
Padre Maacuterio Prigol26
Padre Maacuterio Prigol nasceu em 12 de novembro de 1928 em Vila Gramado no
municiacutepio de Paulo Bento no Rio Grande do Sul Em 1970 quando foi preso era
assistente da Juventude Operaacuteria Catoacutelica (JOC) e da Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO)
grupos ligados agrave Igreja Catoacutelica criados para atender a problemas de jovens e adultos
trabalhadores 27
Apoacutes o golpe de 1964 organizaccedilotildees como a JOC e a ACO ganharam
forccedila entre muitos trabalhadores devido agraves dificuldades impostas pelo governo militar
para a organizaccedilatildeo em sindicatos
A sede nacional da JOC era aqui no morro de Satildeo Joseacute Operaacuterio atraacutes da
Penitenciaacuteria [antigo Complexo Penitenciaacuterio Frei Caneca] era na favela []
eu trabalhei com a JOC de Satildeo Paulo e depois vim para caacute trabalhava na
Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria que hoje se chama MTC Movimento dos
Trabalhadores Cristatildeos Esse movimento preparava os jovens e adultos dos
sindicatos dos partidos poliacuteticos de todos os setores da sociedade onde haacute
trabalhadores que procuram descobrir os acontecimentos a situaccedilatildeo operaacuteria
e sobretudo melhorar a sua condiccedilatildeo de trabalhador E vamos lembrar que
naquela eacutepoca havia a nova lei [lei 458964] que soacute podia ser diretor do
sindicato quem natildeo tinha nada que comprometesse entatildeo todos aqueles que
lutavam pela greve contra a puniccedilatildeo da greve ou de forma geral pelos
trabalhadores natildeo podiam ser nem diretores de associaccedilotildees nem diretores de
sindicatos [] soacute poderia ser diretor de sindicato quem fosse aprovado pela
Lei de Seguranccedila Nacional (Prigol 28 set 2004)
Padre Maacuterio se destaca entre os ex-prisioneiros entrevistados por aleacutem de ser uma
autoridade de uma instituiccedilatildeo de importacircncia mundial como a Igreja Catoacutelica sua
atuaccedilatildeo ser diferente da dos demais natildeo estando ligada agrave esquerda armada da eacutepoca e
ao meio estudantil Quando foi preso no DOI-CODIRJ em 1970 Padre Maacuterio jaacute natildeo
era mais tatildeo jovem para ser estudante e sua formaccedilatildeo poliacutetica natildeo era a mesma da
26
Entrevista realizada com Padre Maacuterio Prigol em 28 de setembro de 2004 27
A JOC e ACO seratildeo abordadas ainda neste capiacutetulo no item 12 A nova esquerda brasileira
111
geraccedilatildeo que pegava em armas jaacute que sua intenccedilatildeo enquanto assistente da JOC e da
ACO era ajudar os trabalhadores a garantirem os seus direitos e para tanto opunha-se
agraves leis impostas pela ditadura solidificando entre os integrantes dessas associaccedilotildees uma
consciecircncia de reivindicaccedilatildeo classista sem entretanto aspirar propriamente a uma
revoluccedilatildeo socialista
Percebe-se poreacutem que a concomitacircncia entre os periacuteodos prisionais de Padre
Maacuterio e os demais entrevistados natildeo eacute casual Afinal diante da ideia de revoluccedilatildeo
socialista que guiava as accedilotildees armadas que se multiplicavam e ganhavam forccedila apoacutes o
AI-5 a consciecircncia de reivindicaccedilatildeo de classe que a JOC e conforme seraacute abordado
adiante principalmente a ACO disseminavam aos seus trabalhadores eram
interpretadas como ameaccediladoras pela repressatildeo Uma vez que as organizaccedilotildees
guerrilheiras tinham por meta justamente conseguir apoio da classe trabalhadora para
concluiacuterem o plano de revoluccedilatildeo socialista e o trabalho da JOC e da ACO vinha unindo
e organizando uma percepccedilatildeo de classe justamente entre os trabalhadores havia uma
forte propensatildeo que futuramente tais trabalhadores se unissem agrave esquerda em prol da
revoluccedilatildeo socialista
Diante disso explica-se o fato de Padre Maacuterio ter sido preso em meados de 1970
pelos agentes de uma das turmas de busca e apreensatildeo do DOI-CODIRJ durante a
invasatildeo feita ao Instituto Brasileiro de Estudos Sociais (IBRAES) que funcionava na
Casa dos Jesuiacutetas localizada na Rua Bambina no bairro de Botafogo Ele outros
integrantes da JOC e os demais estudantes que assistiam ao curso de desenvolvimento
social foram levados ao DOI-CODIRJ Este curso tinha duraccedilatildeo de aproximadamente
oito meses ao longo dos quais os alunos adquiriam informaccedilotildees sobre o sistema
poliacutetico e econocircmico do Brasil
112
Dias antes dos agentes chegarem ateacute o curso toda a direccedilatildeo nacional da JOC
havia sido presa inclusive dois alunos do IBRAES que foram levados ao DOI-
CODIRJ onde possivelmente sob tortura passaram aos agentes da turma de
interrogatoacuterio preliminar de plantatildeo informaccedilotildees sobre o curso que estava ocorrendo na
Rua Bambina Assim quando os agentes do DOI-CODIRJ chegaram ao local
prenderam todos que estavam participando do curso levando primeiro os militantes e
depois os padres Entre eles estavam Padre Maacuterio e Padre Agostinho de Freitas na
eacutepoca assistente latino-americano da JOC
Noacutes fomos presos natildeo por causa do curso mas porque esses elementos do
DOI prenderam esse pessoal da JOC considerados subversivos e
procuravam um dos assistentes que jaacute tinha sido acusado em Belo Horizonte
de ser subversivo o Padre Manuel de Jesus Ele foi assistente nacional da
JOC mas na eacutepoca natildeo era mais assistente [] entatildeo para prender Manuel
de Jesus foram prendendo toda a direccedilatildeo nacional da JOC que foram
torturados barbaramente torturas como por exemplo os homens
sexualmente em todos os aspectos foram torturados Eram quatro jovens
homens e quatro jovens mulheres e entre esses jovens havia dois alunos do
IBRAES onde eu fazia curso onde vaacuterios desses militantes da JOC tambeacutem
participavam inclusive o Manuel de Jesus Entatildeo no IBRAES os militantes
da JOC foram levados presos primeiro e noacutes padres depois e mais ainda
foi preso o assistente latino-americano da JOC Padre Augustinho Freitas
que hoje trabalha em Nova Iguaccedilu Entatildeo todos noacutes fomos presos []
(Prigol 28 set 2004)
Ao ser preso Padre Maacuterio foi levado diretamente para o DOI-CODIRJ onde
juntamente com os outros padres permaneceu por 54 dias enquanto os jovens
militantes da JOC permaneceram por cerca de trecircs meses Por ser padre sua prisatildeo foi
interrompida pela intervenccedilatildeo de cardeais como explica no trecho a seguir destacado
de seu livro autobiograacutefico
113
D Trevisan D Waldir Dom Aloiacutesio e Padre Celso Pinto que estava ligado
ao Secretariado dos Leigos da CNBB [Conferecircncia Nacional de Bispos do
Brasil] informaram a nossa situaccedilatildeo aos cardeais Mais tarde com a
libertaccedilatildeo de alguns de noacutes realizamos um encontro para discutirmos as
humilhaccedilotildees que sofremos (Prigol 2003 117)
Na eacutepoca em que a entrevista foi concedida Padre Maacuterio aos 75 anos era
missionaacuterio saletino trabalhava na Paroacutequia de Nossa Senhora da Salette no Catumbi e
ainda ocupava o cargo de assistente do MTC (Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos)
antiga Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) Atualmente aos 83 anos Padre Maacuterio ainda
permanece ativamente nessas mesmas funccedilotildees
Ana de Miranda Batista28
Ana Bursztyn nome de solteira de Ana de Miranda Batista nasceu no Rio de
Janeiro em 30 de dezembro de 1948 Era militante estudantil enquanto cursava
Farmaacutecia na UFRJ Foi presa pela primeira perto do clube Botafogo de Futebol e
Regatas localizado na Avenida Venceslau Braacutes no bairro de Botafogo em junho de
1968 juntamente com trezentos estudantes Ela e os demais haviam participado de uma
assembleia estudantil na reitoria da UFRJ no campus da Praia Vermelha que
reivindicava mais verbas do governo federal para o ensino superior Os policiais a
levaram para o DOPS libertando-a no dia seguinte Eleita em outubro de 1968
representante dos estudantes de seu curso participou do Congresso da Uniatildeo Nacional
dos Estudantes (UNE) em Ibiuacutena quando foi novamente capturada pela poliacutecia com
mais de 800 estudantes permanecendo pouco mais de uma semana em reclusatildeo
Ateacute 1968 eu fazia parte do Movimento Estudantil do Diretoacuterio da Faculdade
tudo que tinha de movimento estudantil fazia parte da minha preocupaccedilatildeo
28
Entrevista realizada com Ana de Miranda Batista em 17 de novembro de 2004
114
Em junho a gente foi preso no campus de Botafogo [] Nesse dia em que eu
fui presa pela primeira vez foi um dia que cerca de trezentos estudantes
foram presos porque como a gente estava batalhando por mais verbas era
um dia em que o Conselho Universitaacuterio estava reunido na Praia Vermelha
jaacute que a reitoria era na Praia Vermelha [] laacute pelas tantas veio uma notiacutecia
de que tinham cercado a universidade [] e a gente natildeo estava esperando
isso a gente fazia umas passeatas na cidade mas a barra natildeo era pesada []
Aiacute o reitor decidiu sair na frente dos estudantes e atraacutes dele saiacuteram as
lideranccedilas das faculdades - eu era a lideranccedila da minha faculdade - e depois
uns trezentos estudantes Aiacute eles comeccedilaram a atirar para baixo para o chatildeo
[] e a gente saiu correndo sem enxergar nada e a poliacutecia dando porrada e a
gente sem enxergar nada (risos) Fomos entatildeo andando em direccedilatildeo ao tuacutenel
quando algueacutem disse ldquo- Vem por aqui por aquirdquo Sem saber que era uma
cilada fomos quase os trezentos para laacute Quando a gente entrou ldquo- Todo
mundo pro chatildeordquo Fomos presos no DOPS naquele dia e passamos a noite laacute
[] Daiacute eacute que a gente comeccedilou a fazer as grandes passeatas na cidade ateacute
que comeccedilou a ter passeata sempre mobilizaccedilotildees [] Em outubro de 68 a
gente foi para o Congresso de Ibiuacutena em Satildeo Paulo que foi um congresso
da UNE que estava clandestina na eacutepoca onde fomos todos presos Foi aiacute eacute
que ficou preso natildeo sei cerca de oitocentos estudantes Eles ateacute fizeram um
aacutelbum ficharam todo mundo Esse foi o aacutelbum que eles mostravam na
imprensa e nos cartazes depois porque evidentemente quando a barra
pesou metade das lideranccedilas do movimento estudantil foi para a luta armada
[] mas a gente ficou uma semana preso e depois de uma semana ou dez
dias a gente saiu Mas a barra comeccedilou a pesar mesmo a partir de 13 de
dezembro com o AI-5 [] (Batista 17 nov 2004)
Apoacutes o decreto do AI-5 Ana assim como Antocircnio se aproximou de alguns
integrantes do PCBR poreacutem diferentemente dele natildeo chegou a militar no partido
tornando-se tal como Dulce e Fernando militante da ALN Em Satildeo Paulo para onde
fugiu quando estava sendo perseguida Ana foi presa no dia 14 de julho de 1970 dentro
do magazine Mappin no centro da cidade Na situaccedilatildeo Ana portava uma arma e
115
carregava carteira de identidade falsa pela qual se chamava Naacutedia Zanzin conforme
descreve na passagem abaixo
Quando eu saiacute da casa que a gente estava o Bacuri [codinome de Eduardo
Collen Leite seu companheiro de organizaccedilatildeo] me deu uma arma e dezoito
caacutepsulas porque eu estava sendo procurada [] eu estava com uma carteira
de identidade falsa me chamava Naacutedia Zanzin [] fui presa entatildeo com
nome falso e foi um bafafaacute o cara quis me tirar a arma da matildeo e entatildeo eu
reagi teve um tiro [] Naquele dia eu tinha perdido o lsquopontorsquo [ponto de
encontro com outro militante] porque eu fiquei conversando com a minha
amiga e cheguei atrasada O ponto era perto do centro da cidade e como eu
tinha que esperar duas ou trecircs horas ateacute o proacuteximo encontro eu fiquei
rodando por laacute onde entrei numa loja grande como se fosse a antiga Mesbla
[] chamava-se Mappin Laacute eu fiquei comprando coisas para maquiagem
para mudar a minha cara [] Laacute dentro eles tinham vaacuterios seguranccedilas e um
ou dois deles ficaram em duacutevida se tinham reconhecido ou natildeo quem eu era
e se aproximaram de mim Eu estava na fila para pagar quando se eles se
aproximaram e disseram ldquo- Essas coisas a senhora paga em outro lugarrdquo Aiacute
eu ldquo- Mas eu estou na fila para pagarrdquo Aiacute eles ldquo- Vem com a gente que a
senhora vai pagar em outro lugarrdquo Entatildeo entrei no elevador e fui parar no
seacutetimo andar na parte de seguranccedila da loja Laacute eles queriam que eu me
explicasse Eu tirei tudo o que eu tinha da bolsa eu fui tirando e mostrei para
eles que estava com dinheiro na bolsa e estava na fila para pagar Aiacute eles ldquo-
Natildeo natildeo eacute isso natildeo mas a gente precisa revistarrdquo E eu fui tirando tudo da
bolsa para ver se eles natildeo me revistavam mas eles ldquo- Natildeo a gente vai
revistarrdquo Aiacute comeccedilaram a lutar comeccedilou um pega bolsa e tira bolsa que eu
natildeo queria porque a arma estava no fundo da bolsa Aiacute eu falava ldquo- Natildeo
mas natildeo precisa estaacute tudo aquirdquo Mas natildeo era isso natildeo era porque eles
achavam que eu estava roubando eles desconfiavam de alguma coisa e natildeo
sabiam bem o quecirc e resolveram me revistar Aiacute eu reagi Depois disso
chamaram o delegado e me botaram amarrada na cadeira laacute em cima no
andar da seguranccedila da loja (Batista 17 nov 2004)
116
Esse mesmo episoacutedio foi retratado dois dias depois em um trecho do Jornal da
Tarde de 16 de julho de 1970 conforme Elio Gaspari destaca em seu livro As Ilusotildees
Armadas a Ditadura Escancarada (2002)
[] Ana Bursztyn ex-estudante de farmaacutecia presa [] no magazine Mappin
Um vigilante desconfiara ao vecirc-la colocar cosmeacuteticos numa sacola (da loja)
e levou-a a uma sala onde estava o chefe de seguranccedila Ana meteu a matildeo na
bolsa puxou um Taurus 32 feriu-o com um tiro na perna mas natildeo
conseguiu fugir (Gaspari 2002 299-300)
De fato no momento de sua prisatildeo Ana resistiu e disparou um tiro atingindo no
peacute um dos seguranccedilas da loja que era policial militar Naquele dia Ana foi levada presa
sem saber o que de fato tinha ocorrido com aquele homem Assim em novembro de
1970 mecircs do aniversaacuterio da ldquoIntentona Comunistardquo de 1935 Ana ainda presa leu em
um jornal uma relaccedilatildeo de mortos pelos terroristas divulgada pelos oacutergatildeos de seguranccedila
do governo Laacute o homem em quem havia atirado estava listado como morto e ela como
sua assassina Ana passou a carregar a culpa de tecirc-lo matado ateacute que algum tempo
depois ao vecirc-lo assistindo a seu julgamento constatou que o seguranccedila havia
sobrevivido e que aquela notiacutecia era mais um dos boatos que o governo na eacutepoca
costumava veicular na imprensa a fim de manipular a opiniatildeo puacuteblica
Depois disso durante anos quando eu estava presa no dia da Intentona
Comunista que eu acho que eacute novembro de 1935 colocavam nos jornais em
todos os jornais uma relaccedilatildeo dos mortos pelos terroristas entre aspas que
eacuteramos noacutes [] eu li que o cara laacute Izidoro Zambaldi foi morto pela
terrorista Ana Bursztyn Ele na hora da briga eu briguei com ele ele recebeu
um tiro acho que no peacute esbarrou assim no peacute ele ficou uns dias internado e
saiu ele estava no meu julgamento na audiecircncia Quer dizer e durante
muito tempo eu achando que tinha o matado Era um dos que eles
117
contabilizavam como mortos por noacutes E provavelmente ele estaacute aiacute vivo ateacute
hoje [] (Batista 17 nov 2004)
Ana foi presa portanto por ter sido reconhecida por um policial que tambeacutem
trabalhava como seguranccedila para a loja Mappin Provavelmente isso ocorreu pelo fato
dos organismos de repressatildeo colarem pelos muros da cidade bem como distribuiacuterem
nos estabelecimentos privados muitos folhetos e cartazes com fotos dos ldquoterroristas
procuradosrdquo pela ditadura militar entre os quais Ana A divulgaccedilatildeo de tais fotos era
mais uma forma que os agentes da repressatildeo utilizavam para cercar os suspeitos Assim
qualquer pessoa poderia denunciar e qualquer policial poderia prender tais suspeitos No
entanto caso a prisatildeo natildeo fosse feita pelos agentes do DOI-CODI da respectiva Regiatildeo
Militar obrigatoriamente depois de preso o cidadatildeo considerado ldquosubversivordquo deveria
ser para laacute transferido conforme ocorreu com Ana Afinal como jaacute analisado no
primeiro capiacutetulo o DOI-CODI de cada Regiatildeo concentrava as informaccedilotildees sobre
seguranccedila interna de cada aacuterea portanto laacute existiam as condiccedilotildees necessaacuterias para que a
extraccedilatildeo e anaacutelise das informaccedilotildees que os prisioneiros detivessem fossem trabalhadas
de forma mais eficiente
Diante disso Ana nos primeiros dias de prisatildeo passou pelo DOPS-SP e em
seguida pelo DOI-CODISP sendo posteriormente transferida para o DOI-CODIRJ
Laacute permaneceu por um mecircs voltando para DOI-CODISP passando ainda pelo
DOPSSP Depois de julgada foi levada para o Recolhimento de Presos Tiradentes ndash
localizado na Rua Tiradentes na cidade de Satildeo Paulo ndash para o Presiacutedio de Mulheres ndash
localizado no antigo Complexo Penitenciaacuterio do Carandiru tambeacutem na cidade de Satildeo
Paulo ndash e ainda passou por delegacias das poliacutecias Federal do Rio de Janeiro e de Satildeo
Paulo pelo Presiacutedio do Forte de Copacabana no Rio de Janeiro e por fim pelo
Depoacutesito de Presas Satildeo Judas Tadeu localizado no preacutedio do DOPS-RJ Permaneceu
118
presa por cerca de quatro anos conseguindo liberdade condicional em fevereiro de
1974
Ana de Miranda Batista nome que adotou depois de casada eacute farmacecircutica
bioquiacutemica e na eacutepoca em que concedeu a entrevista era ativista do Grupo Tortura
Nunca MaisRJ (GTNMRJ)
Ceciacutelia Coimbra29
Ceciacutelia Maria Bouccedilas Coimbra nasceu no Rio de Janeiro em 16 de marccedilo de 1941
Ao ingressar no curso de Histoacuteria da Universidade do Brasil atual UFRJ Ceciacutelia que
era por descendecircncia familiar ldquoconservadora e catoacutelicardquo em suas proacuteprias palavras
comeccedilou a questionar-se poliacutetica e religiosamente Iniciou assim sua militacircncia no
Partido Comunista Brasileiro (PCB) clandestino na eacutepoca Entre 1962 e 1963
trabalhou em um programa de alfabetizaccedilatildeo de adultos pelo meacutetodo do educador Paulo
Freire fato que visivelmente a marcou muito Apoacutes o golpe de 64 Ceciacutelia continuou
militando no Partido Comunista poreacutem com muitas discordacircncias ateacute quando comeccedilou
a fazer parte de uma das dissidecircncias do referido partido a Dissidecircncia Comunista da
Guanabara a que ela se refere por ldquoPC da Guanabarardquo
[] eu vim de uma famiacutelia muito tradicional extremamente tradicional meu
pai era um conservador era um cara que era portuguecircs a favor do regime
ditatorial de Salazar A minha matildee era extremamente catoacutelica Tanto que
quando eu entrei para faculdade para fazer Histoacuteria eu era uma pessoa
extremamente conservadora Era lacerdista a favor do Carlos Lacerda
contra Joatildeo Goulart contra os comunistas A minha famiacutelia era muito
anticomunista E quando eu entrei para a faculdade eu ateacute falei isso na
entrevista para a lsquoCaros Amigosrsquo [sua entrevista havia sido capa da Revista
Caros Amigos naquele mesmo mecircs] comecei a ter contato com algumas
29
Entrevista realizada com Ceciacutelia Maria Bouccedilas Coimbra em 30 de novembro de 2004
119
pessoas que eram comunistas e eram pessoas muito interessantes muito
inteligentes e eram pessoas com as quais as duacutevidas que eu tinha com
relaccedilatildeo agrave religiatildeo eu comecei a tirar Porque eu comecei a ler marxismo aiacute
eu comecei a ler materialismo histoacuterico materialismo dialeacutetico e eu comecei
a ver que de repente a religiatildeo era uma coisa produzida pelo proacuteprio
homem [] Eu comecei entatildeo em 6263 a participar de reuniatildeo do Partido
Comunista que era clandestino na eacutepoca e acabei entrando para o Partido
Aiacute comecei a namorar um cara que depois se tornou meu marido e foi preso
comigo que haacute pouco tempo eu ateacute me separei [] Ele jaacute era do Partido
Comunista haacute muito tempo a famiacutelia dele era toda uma famiacutelia formada por
comunistas ao contraacuterio da minha (risos) Em 64 veio o golpe mas aiacute eu
antes disso eu acho que tem a ver porque isso para mim tambeacutem eacute
militacircncia eu fui trabalhar com um programa de alfabetizaccedilatildeo de adultos
pelo meacutetodo Paulo Freire eu trabalhei com o proacuteprio Paulo Freire em 63 um
pouco antes do golpe [] Entatildeo depois do golpe eu continuei militando no
Partido mas jaacute com muitas discordacircncias quer dizer discordava de muita
coisa e aiacute comecei a fazer parte do que se chamou de Dissidecircncia do PC da
Guanabara (Coimbra 30 nov 2004)
Entretanto Ceciacutelia comeccedilou a discordar tanto da luta armada que a Dissidecircncia
Comunista da Guanabara a partir de 1968 veio a adotar quanto do caminho paciacutefico e
institucional defendido pelo PCB se afastando de ambos Dessa forma em 1968
Ceciacutelia Coimbra natildeo militava em nenhuma organizaccedilatildeo mas continuou a manter
contato com muitos companheiros que se tornaram guerrilheiros Destaca-se portanto a
partir do caso especiacutefico de Ceciacutelia como a histoacuteria oral eacute importante para que a
complexidade da militacircncia poliacutetica da eacutepoca seja compreendida Afinal por meio dessa
metodologia torna-se possiacutevel perceber que nem todos os estudantes que estiveram
ligados ao movimento estudantil e agraves dissidecircncias do Partido Comunista em meio ao
arrocho da repressatildeo acompanharam a decisatildeo de partir para a luta armada tomada por
muitas dissidecircncias e nem mesmo resolveram retornar agrave luta paciacutefica travada pelo
Partido Comunista Logo a histoacuteria oral permite atraveacutes dos depoimentos dos
120
militantes daquele tempo observar que tal como Ceciacutelia muitos desses militantes
ficaram principalmente a partir do AI-5 agrave margem da atuaccedilatildeo poliacutetica apesar de natildeo
terem abandonado os ideais de esquerda
Quando foi presa em 1970 Ceciacutelia natildeo estava diretamente relacionada a nenhuma
organizaccedilatildeo esquerdista entretanto como ainda relacionava-se com muitos militantes
guerrilheiros e algumas vezes ateacute mesmo abrigando-os em sua casa tinha informaccedilotildees
consideradas relevantes para os agentes do DOI-CODIRJ o que veio a ocasionar sua
prisatildeo Como vivia de forma legalizada com famiacutelia e emprego Ceciacutelia tinha passado
juntamente com seu marido a ajudar seus companheiros clandestinos Sua casa na
eacutepoca localizada no bairro do Engenho de Dentro na zona norte do Rio de Janeiro
passou a servir como esconderijo para alguns amigos que diferentemente de Ceciacutelia e
Novaes haviam continuado militantes da Dissidecircncia Comunista da Guanabara mesmo
apoacutes sua opccedilatildeo pela luta armada Entre os amigos que receberam guarida em sua casa
estavam Franklin Martins e Fernando Gabeira ambos envolvidos no sequestro do
embaixador norte-americano
Gabeira inclusive esteve hospedado na casa do casal logo apoacutes a libertaccedilatildeo do
referido embaixador sequestrado em setembro de 1969 Por conta disso em agosto de
1970 Ceciacutelia Coimbra e seu marido Joseacute Novaes foram denunciados e presos
[] eu ajudava muito esses companheiros porque eu tinha vida legal eu jaacute
era professora tinha casa tinha filho e meu marido era professor de
Filosofia entatildeo a nossa casa era onde as pessoas se escondiam passavam
uma noite passavam dias escondidos Por exemplo o pessoal do Movimento
estudantil o Franklin Martins o Fernando Gabeira [] todos eles passaram
por laacute entatildeo a gente ajudava muito [] Em 1969 o pessoal do MR-8 que
eram companheiros nossos amigos e tal vieram nos procurar para perguntar
se noacutes poderiacuteamos dar um apoio a um ato a uma accedilatildeo como se dizia na
eacutepoca a uma accedilatildeo que ia acontecer Mas a gente natildeo sabia que era o
sequestro do embaixador E aiacute depois de um tempo a gente ficou com o
121
Fernando Gabeira [] Eacute oacutebvio que depois a gente soube porque foi depois
que eles entregaram o embaixador que eles se esconderam laacute em casa E aiacute a
televisatildeo dava e a gente sacou que o Gabeira estava ali com a gente porque
natildeo tinha como guardar seguranccedila porque jaacute estava na televisatildeo a cara de
todos eles E a gente guardou ele laacute A gente soube que ele tinha participado
do sequestro do embaixador e conversaacutevamos muito sobre isso Ele ficou
algum tempo laacute em casa e depois saiu Um tempo depois a gente foi
denunciado a casa estava sendo observada e a gente natildeo sabia []
(Coimbra 30 nov 2004)
Ceciacutelia e Joseacute Novaes apoacutes terem a casa onde moravam cercada por agentes do
DOPSRJ foram para laacute levados e laacute permaneceram por dois dias No DOPS Ceciacutelia
ficou sob interrogatoacuterio por um dia e meio para que esclarecesse a origem de um
documento encontrado no interior de sua casa No segundo dia de prisatildeo foi levada para
o presiacutedio feminino Satildeo Judas Tadeu localizado no proacuteprio preacutedio do DOPSRJ Apoacutes
permanecerem dois dias e meio no DOPS Ceciacutelia e Novaes foram transferidos para o
DOI-CODIRJ
Ceciacutelia Coimbra ficou cerca de trecircs meses presa no DOI-CODIRJ sendo
libertada em novembro de 1970 Natildeo foi transferida para nenhum outro presiacutedio sendo
libertada diretamente do DOI-CODIRJ por meio da menagem conforme analisado no
primeiro capiacutetulo Sendo assim uma vez que natildeo foi constatado nenhum envolvimento
direto de Ceciacutelia com alguma accedilatildeo ldquosubversivardquo ela estava impedida de sair da cidade
ateacute a data de seu julgamento e durante esse iacutenterim teve que comparecer ao DOI-
CODIRJ regularmente para se apresentar e responder ao Inqueacuterito Policial Militar
(IPM)
Na eacutepoca da entrevista Ceciacutelia aleacutem de vice-presidente do GTMNRJ lecionava
no curso de Psicologia da UFF Atualmente continua com essas mesmas atividades
poreacutem no GTNMRJ ocupa hoje o cargo de presidente
122
12 A nova esquerda brasileira
Para melhor entender as memoacuterias dos ex-prisioneiros poliacuteticos aqui entrevistados
eacute importante caracterizar as organizaccedilotildees de esquerda nas quais os seis militavam
quando foram presos no DOI-CODIRJ Afinal a opccedilatildeo de atuar atraveacutes de certas
organizaccedilotildees estaacute diretamente relacionada com a percepccedilatildeo de mundo que cada um
tinha e tambeacutem com a ousadia a coragem as frustraccedilotildees por que passaram e com tantos
outros sentimentos e sensaccedilotildees que certamente influiacuteram diretamente na construccedilatildeo da
memoacuteria de cada um desses indiviacuteduos sobre o periacuteodo militar
Como jaacute destacamos ao traccedilarmos o perfil dos entrevistados as organizaccedilotildees em
que os estudantes Antocircnio Leite Fernando Palha Dulce Pandolfi e Ana de Miranda
militavam ao serem presos eram o PCBR e a ALN grupos poliacuteticos de esquerda ligados
ao combate armado Jaacute Padre Maacuterio era assistente da ACO e da JOC ndash associaccedilotildees
criadas para atender demandas de jovens e adultos trabalhadores e catoacutelicos Ceciacutelia
Coimbra era a uacutenica que natildeo era diretamente ligada a alguma organizaccedilatildeo na eacutepoca de
sua prisatildeo mas sua participaccedilatildeo anterior na Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-
GB) influenciou de forma indireta em sua prisatildeo e por isso merece ser aqui
considerada A partir disso analisa-se nesta seccedilatildeo de trabalho o PCBR a ANL a JOC a
ACO e a Dissidecircncia Comunista da Guanabara que passou a chamar-se MR-8
Diferentemente da JOC e da ACO que eram associaccedilotildees ligadas ao trabalho
social feito pela Igreja Catoacutelica o PCBR a ANL a DI-GBMR-8 faziam parte do que
vinha sendo nomeado desde a deacutecada de 1960 de nova esquerda brasileira Essa nova
esquerda era formada pelas dissidecircncias do Partido Comunista surgindo como forma de
buscar caminhos alternativos para a transformaccedilatildeo social e segundo Maria Paula
Arauacutejo em A utopia fragmentada (2000) natildeo era um fenocircmeno tipicamente brasileiro
123
ocorrendo concomitantemente em outras partes do mundo como Alemanha Franccedila
Itaacutelia Estados Unidos e Meacutexico 30
As organizaccedilotildees desta nova esquerda brasileira aleacutem de serem marcadas pelo
signo da dissidecircncia e pela busca de caminhos alternativos possuiacuteam outras ideias em
comum Havia entre elas uma forte desconfianccedila em relaccedilatildeo agraves formas tradicionais de
atuaccedilatildeo e representaccedilatildeo poliacuteticas jaacute que os tradicionais partidos comunistas na
avaliaccedilatildeo desses militantes eram travados por complicados aparatos burocraacuteticos Em
oposiccedilatildeo a essa linha dita ldquoconservadorardquo valorizaram a accedilatildeo revolucionaacuteria imediata
Aleacutem disso a maioria recusava a alianccedila com ldquofraccedilotildees das classes dominantesrdquo forma
como viam o Movimento Democraacutetico Brasileiro (MDB) na eacutepoca uacutenico partido de
oposiccedilatildeo consentido pela ditadura militar Enquanto o PCB continuava mantendo o
programa de via paciacutefica para o socialismo a dita nova esquerda defendia a luta armada
como a principal forma de atuaccedilatildeo naquele momento apesar de divergirem entre si
sobre as estrateacutegias a seguir 31
As divergecircncias internas no PCB atingiram o aacutepice por ocasiatildeo dos preparativos
para o VI Congresso do partido convocado para dezembro de 1967 Os debates acerca
das Teses para Discussatildeo veiculadas na Voz Operaacuteria publicaccedilatildeo clandestina do
Comitecirc Central do PCB causaram muita polecircmica Essas Teses propunham que a
derrota da ditadura deveria ser alcanccedilada por meio da alianccedila com setores progressistas
incluindo a burguesia e da participaccedilatildeo do PCB na poliacutetica institucional reafirmando a
opccedilatildeo pelo caminho paciacutefico para a revoluccedilatildeo social Tais Teses geraram uma total
insatisfaccedilatildeo dos setores oposicionistas do PCB que se revoltaram contra o Comitecirc
Central do chamado Partidatildeo Assim sem a participaccedilatildeo dos dissidentes internos o
PCB realizou o seu VI Congresso e reafirmou a ideia trazida pelas Teses
30
Para mais informaccedilotildees ver Arauacutejo 2000 35-72 31
Para mais informaccedilotildees ver Aaratildeo Reis Saacute 2006 15
124
Pelos jornais da grande imprensa os dissidentes souberam do Congresso e de suas
resoluccedilotildees dentre as quais a que expulsava do partido grandes lideranccedilas da Corrente
Revolucionaacuteria Esta corrente do Partidatildeo divergia de seu Comitecirc Central liderado por
Luiacutes Carlos Prestes e havia se organizado nacionalmente sob a denominaccedilatildeo de
Corrente Revolucionaacuteria Entre suas grandes lideranccedilas expulsas a partir das resoluccedilotildees
do VI Congresso do PCB estavam Carlos Marighella liacuteder da Corrente em Satildeo Paulo
Maacuterio Alves liacuteder em Minas Gerais Jacob Gorender liacuteder no Rio Grande do Sul e
Apolocircnio de Carvalho lideranccedila no antigo Estado do Rio de Janeiro32
Dessa forma em 1968 os principais membros da Corrente Revolucionaacuteria
estavam definitivamente afastados do PCB e juntamente com os militantes que os
seguiram se organizaram e formaram outras organizaccedilotildees poliacuteticas o PCBR e a ALN
Os liacutederes Apolocircnio de Carvalho Jacob Gorender e Maacuterio Alves formaram o Partido
Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR) partido clandestino de esquerda em que
Antocircnio Leite militava ao ser preso e o liacuteder Carlos Marighella fundou a Accedilatildeo
Libertadora Nacional (ALN) organizaccedilatildeo clandestina de esquerda adotada por Dulce
Pandolfi Fernando Palha e Ana Batista
Por outro lado existia outra vertente de divergecircncias internas do PCB as
chamadas Dissidecircncias mais conhecidas pela sigla DI formadas basicamente por
setores estudantis Existiam dissidecircncias em vaacuterios estados brasileiros mas seria a da
Guanabara onde Ceciacutelia Coimbra militou anos antes de ser presa que alcanccedilaria maior
destaque no cenaacuterio poliacutetico e estudantil da deacutecada de 1960
32
Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009
125
Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-GB)
As Dissidecircncias Universitaacuterias surgiram no periacuteodo preacute-1964 em meio a diversas
divergecircncias que abalaram o PCB principalmente em suas bases universitaacuterias Em
1964 esses estudantes divergentes se agruparam e comeccedilaram a reunir militantes de
diferentes universidades a fim de articular posiccedilotildees poliacuteticas que natildeo se afinavam com o
que as direccedilotildees do partido haviam estabelecido ndash no jargatildeo comunista eram as
chamadas ldquofraccedilotildeesrdquo As ldquofraccedilotildeesrdquo eram de acordo com o estatuto proibidas dentro do
partido logo eram executadas secretamente A ldquofraccedilatildeordquo da Guanabara foi inicialmente
constituiacuteda por estudantes comunistas das faculdades de filosofia e de direito hoje
pertencentes agrave UFRJ
Em 1965 as divergecircncias entre os dissidentes e a direccedilatildeo do PCB na Guanabara
comeccedilaram a se mostrar evidentes A orientaccedilatildeo do partido era para que seus militantes
fizessem campanha para o candidato a governador da Guanabara Francisco Negratildeo de
Lima indicado pela alianccedila PTB-PSD considerada de oposiccedilatildeo ao regime militar Com
a crescente radicalizaccedilatildeo do movimento estudantil a Dissidecircncia foi ganhando forccedila
Nas eleiccedilotildees parlamentares de 1966 apesar da orientaccedilatildeo do Partidatildeo para que sua
militacircncia votasse em determinados candidatos os dissidentes da Guanabara resolveram
fazer campanha pelo voto nulo ocasionando o rompimento definitivo entre os dois A
antiga ldquofraccedilatildeordquo passaria a ser a Dissidecircncia Comunista da Guanabara uma nova
organizaccedilatildeo independente com orientaccedilatildeo para a luta armada e com ampla influecircncia
no movimento estudantil carioca 33
Entretanto em 1967 a Dissidecircncia Comunista da Guanabara enfrentaria uma
grave crise poliacutetica interna Naquele momento muitos militantes da organizaccedilatildeo
apresentavam posiccedilotildees divergentes sobre quais rumos ela deveria trilhar Alguns
33
Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009
126
achavam que a Dissidecircncia deveria se integrar agrave Corrente Revolucionaacuteria que ainda
estava lutando internamente para mudar o PCB outros almejavam consolidar a
Dissidecircncia Comunista da Guanabara de forma a tornaacute-la uma organizaccedilatildeo nacional
reunindo nela dissidecircncias que ainda deveriam se desvincular do Partidatildeo e um terceiro
grupo a se juntar ao Partido Comunista do Brasil (PC do B) 34
Afinal a partir do V Congresso do PCB realizado em setembro de 1960 sob
influecircncia da revisionismo aprovado no XX Congresso do Partido Comunista Sovieacutetico
tinha sido aprovada uma nova resoluccedilatildeo poliacutetica para o partido Esta apesar da
resistecircncia dos opositires internos que seguiam a linha de pensamento marxista-
leninista modificava o programa do PCB tornando a nova taacutetica do partido a conquista
de um governo nacionalista e democraacutetico por meio de um processo eleitoral e da
pressatildeo de massas excluindo assim a via armada de seu programa Dessa forma foram
afastados da direccedilatildeo do PCB a maioria de seus opositores e eleito um Comitecirc Central
composto em grande parte por destacados revisionistas como Luiacutes Carlos Prestes
Logo em 18 de fevereiro de 1962 a maior parte dos comunistas que se opunham agrave nova
linha do PCB se separaram do partido e atraveacutes de uma Conferecircncia Extraordinaacuteria
aprovaram um programa que defendia a estrateacutegia chinesa de guerra popular
prolongada se aproximando do maoiacutesmo e adotaram a sigla PC do B (Partido
Comunista do Brasil) Em 1969 o PC do B deflagrou na regiatildeo de Tocantins um foco
guerrilheiro que ficou conhecido como Guerrilha do Araguaia esta foi neutralizada
pelos militares no final de 1973 atraveacutes do extermiacutenio de grande parte dos militantes
envolvidos
Em 1967 um ano depois de se tornar independente a resoluccedilatildeo para a crise
interna da Dissidecircncia Comunista da Guanabara foi o seu desmembramento Apoacutes este
34
Para mais informaccedilotildees ver Aaratildeo Reis 1990 e Ridenti 1993
127
desmembramento e duas conferecircncias internas realizadas em 1968 a Dissidecircncia
Comunista da Guanabara consolidou-se novamente como organizaccedilatildeo autocircnoma tendo
suas lideranccedilas agrave frente das grandes manifestaccedilotildees estudantis ndash que chegavam ao auge
de mobilizaccedilatildeo ndash e conquistando espaccedilo no cenaacuterio nacional Com o seu crescimento
junto ao movimento estudantil a DI-GB se ampliou notavelmente Apoacutes a decretaccedilatildeo
do AI-5 que tornava ilegal o movimento poliacutetico-estudantil a DI-GB organizou em
1969 uma nova conferecircncia reafirmando o seu empenho revolucionaacuterio de caraacuteter
comunista assumindo oficialmente a partir de entatildeo sua opccedilatildeo pela luta armada
Nessa eacutepoca Ceciacutelia Coimbra jaacute havia saiacutedo da organizaccedilatildeo e natildeo participava de
nenhum outro grupo de esquerda apesar de manter contato com muitos companheiros
que continuaram na militacircncia Afinal como abordado durante a anaacutelise de sua
trajetoacuteria Ceciacutelia preferiu se desligar por natildeo concordar nem com a poliacutetica paciacutefica do
entatildeo Partidatildeo e nem com a luta armada das demais organizaccedilotildees inclusive da
Dissidecircncia Comunista da Guanabara pois segundo ela achava que estas estavam
muito desvinculadas da sociedade e por isso natildeo teriam ecircxito
[] eu achava que natildeo era por aiacute eu discordava muito da questatildeo da luta
armada mas eu tambeacutem discordava da posiccedilatildeo do Partido Comunista que
era a favor do caminho paciacutefico a favor do caminho institucional parece
muito o PT de hoje a questatildeo da luta institucional que natildeo era pegando em
armas que natildeo era pela luta armada Eu natildeo concordava nem com um nem
com outro porque o pessoal da luta armada estava totalmente desvinculado
da sociedade brasileira entatildeo eu me afastei mas eu continuei com muito
contato com vaacuterios companheiros e aiacute comeccedilou 67-68 [] (Coimbra 30
nov 2004)
Em setembro de 1969 a Dissidecircncia Comunista da Guanabara juntamente com a
ALN elaborou e promoveu o sequestro do embaixador norte-americano no Brasil
128
Charles Burke Elbrick A accedilatildeo teve ecircxito e os envolvidos conseguiram trocar o
embaixador por quinze prisioneiros poliacuteticos entre eles importantes liacutederes estudantis
da antiga DI-GB Durante esse sequestro conforme explicado anteriormente os
militantes da entatildeo Dissidecircncia resolveram mudar o nome da organizaccedilatildeo para
Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro (MR-8) assinando esse novo nome no
manifesto entregue agrave imprensa
A mudanccedila de Dissidecircncia Comunista da Guanabara para MR-8 era na realidade
uma provocaccedilatildeo agrave ditadura Alguns meses antes do sequestro do embaixador americano
a repressatildeo havia desarticulado uma organizaccedilatildeo poliacutetica e anunciado que tinha
destruiacutedo o grupo terrorista Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro Poreacutem de acordo
com Alberto Berquoacute em O sequumlestro dia-a-dia (1997) o oacutergatildeo repressor que havia
prendido aqueles militantes o CENIMAR inventou esse nome pois o grupo capturado
era na verdade a Dissidecircncia do Estado do Rio de janeiro que a rigor se
autodenominava apenas como Organizaccedilatildeo Os militares entatildeo para anunciar a notiacutecia
na imprensa causando um maior impacto atribuiacuteram agrave Organizaccedilatildeo o nome de MR-8
fazendo referecircncia agrave data em que o guerrilheiro socialista Ernesto ldquoCherdquo Guevara havia
sido preso pela Central Intelligence Agency (CIA) na Boliacutevia Dessa forma ao
utilizarem o nome de MR-8 os militantes da ateacute entatildeo Dissidecircncia Comunista da
Guanabara estariam anunciando pertencerem agrave mesma organizaccedilatildeo que os militares
divulgaram meses antes jaacute estar aniquilada desmoralizando-os publicamente 35
Algum tempo depois do sequestro do embaixador a maioria de seus envolvidos
ou foram presos ou mortos pela repressatildeo Fernando Gabeira um dos militantes do MR-
8 envolvidos nessa accedilatildeo era conhecido de Ceciacutelia Coimbra e de seu marido desde a
eacutepoca em que militavam na Dissidecircncia Comunista da Guanabara Assim apoacutes a troca
35
Para mais informaccedilotildees sobre a mudanccedila de nome da Dissidecircncia Comunista da Guanabara para MR-8
ver Berquoacute 1997 72-73
129
do embaixador pelos prisioneiros poliacuteticos Gabeira por estar sendo procurado acabou
se escondendo na casa do casal fato que veio a ocasionar posteriormente a prisatildeo tanto
de Ceciacutelia quanto de seu marido nas dependecircncias do DOI-CODIRJ
Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR)
O partido clandestino pelo qual Antocircnio Leite militava ao ser preso o PCBR
havia sido criado em abril de 1968 a partir da expulsatildeo de liacutederes da Corrente
Revolucionaacuteria do PCB conforme mencionado anteriormente Um dos liacutederes e
tambeacutem fundador do PCBR Jacob Gorender na obra Combate nas Trevas a esquerda
brasileira (1999 111-116) caracteriza-o como marxista tendo por estrateacutegia de accedilatildeo a
combinaccedilatildeo entre guerrilha rural e trabalho de massas nas cidades com vistas agrave
formaccedilatildeo de um Governo Popular Revolucionaacuterio que abriria caminho para a
revoluccedilatildeo socialista
A partir dessa ideia de trabalho com as massas nas cidades o PCBR buscou
integrar-se agraves lutas estudantis de 1968 por meio das quais Antocircnio Leite de Carvalho
conheceu melhor a ideologia e as lideranccedilas do partido e posteriormente resolveu
tornar-se seu militante Aleacutem disso desenvolveu ainda algum trabalho nas faacutebricas nas
aacutereas rurais e promoveu entre os anos de 1969 e 1970 algumas accedilotildees armadas como
assaltos a bancos e roubos de veiacuteculos a fim de financiar a atuaccedilatildeo do partido Contudo
o PCBR sofreu com sucessivas prisotildees de seus liacutederes e integrantes restringindo de tal
forma o seu poder de accedilatildeo que logo no iniacutecio da deacutecada de 1970 jaacute se encontrava quase
totalmente desarticulado
O precoce fracasso do PCBR segundo a avaliaccedilatildeo feita por Antocircnio ainda
durante sua primeira entrevista (12 set 2002) deve-se ao fato da estrateacutegia de revoluccedilatildeo
pregada pelo partido ser utoacutepica Afinal para Antocircnio os militantes e liacutederes do PCBR
130
inclusive ele proacuteprio acreditavam que com algumas poucas accedilotildees urbanas isoladas
conseguiriam o apoio da grande massa ao movimento revolucionaacuterio e tomariam o
poder Por conseguinte entende que foi justamente esse isolamento a causa da grande
derrota do PCBR como se pode conferir no trecho abaixo
Era uma grande utopia faziacuteamos duas accedilotildees urbanas na cidade e achaacutevamos
que essas accedilotildees seriam capazes de fazer as pessoas aderirem ao nosso
movimento e conseguiriacuteamos o apoio da grande massa [] Isso nunca iria
acontecer porque eram movimentos basicamente de conquistas quer dizer
que trabalhavam isolados e foi o isolamento a causa da nossa grande derrota
(Carvalho 12 Set 2002)
Entretanto eacute importante destacar que esta avaliaccedilatildeo soacute pocircde ser feita a partir do
presente quando jaacute se sabia que a luta armada havia sido derrotada muito antes da
ditadura terminar e que a democracia havia se tornado uma realidade Afinal logo apoacutes
o AI-5 a luta armada e a forma de atuar do PCBR representavam para seus militantes
uma forte possibilidade de derrubar a ditadura militar Eles natildeo se submeteriam a
arriscar suas vidas em prol de uma luta na qual natildeo tivessem total convicccedilatildeo Logo
percebe-se um anacronismo na avaliaccedilatildeo que Antocircnio faz sobre sua luta naquele
passado o que eacute muito comum entre as memoacuterias construiacutedas por ex-guerrilheiros da
eacutepoca conforme destacado pela revolta de um dos que concederam seus depoimentos a
Alzira Alves de Abreu em Os anos de chumbo memoacuteria da guerrilha (1998)
B [nome atribuiacutedo ao ex-guerrilheiro pela autora para preservar sua
identidade] comeccedilou chamando a atenccedilatildeo para o fato de que a mamoacuteria
daquela fase histoacuterica eacute muito precaacuteria ldquoNa verdade ela foi muito mal
construiacuteda acabou virando um folclore e acabou se contando a histoacuteria desse
periacuteodo de traacutes para frente ndash quer dizer sabendo que a luta armada natildeo deu
certo vamos contar por que ela natildeo deu certo Na eacutepoca em que ela ocorreu
ela era um campo de possibilidades natildeo era mais do que isso Mas hoje jaacute se
131
comeccedila a falar desse movimento para se mostrar o fim dessa histoacuteria[]
(Abreu 1998 31)
Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN)
A organizaccedilatildeo em que militavam Dulce Pandolfi Fernando Palha e Ana de
Miranda no momento de suas prisotildees a ALN foi fundada por Carlos Marighella em
fevereiro de 1968 depois de deixar o PCB Marighella havia sido expulso do Partidatildeo
sob a alegaccedilatildeo de ter viajado para Havana em Cuba sem a autorizaccedilatildeo do Comitecirc
Central do partido para participar da conferecircncia da Organizaccedilatildeo Latino-Americana de
Solidariedade (OLAS) ndash organizaccedilatildeo que tinha como objetivo estender a revoluccedilatildeo
armada por toda a Ameacuterica Latina nos moldes da Revoluccedilatildeo Cubana de 1959
Em apoio a Marighella apoacutes sua expulsatildeo do PCB as bases de Satildeo Paulo tambeacutem
se desligaram do partido e formaram o Agrupamento Comunista de Satildeo Paulo O
Pronunciamento desse grupo em fevereiro de 1968 fundou oficialmente a Accedilatildeo
Libertadora Nacional (ALN) muito embora o primeiro quadro de militantes da
organizaccedilatildeo tenha ido treinar em Cuba ainda em setembro de 1967 36
O nome Accedilatildeo Libertadora Nacional seria uma referecircncia agrave Alianccedila Nacional
Libertadora organizaccedilatildeo poliacutetica criada em 1935 composta por setores de diversas
correntes ideoloacutegicas basicamente a fim de lutar contra a influecircncia fascista no Brasil
Nesse mesmo sentido a ALN tambeacutem visava aleacutem da luta socialista a libertaccedilatildeo
nacional buscando adquirir igual ecircxito na congregaccedilatildeo de grande parte da esquerda
brasileira em torno de seus objetivos como ANL havia conseguido durante a deacutecada de
30 No entanto diferentemente da Alianccedila Nacional Libertadora a Accedilatildeo Libertadora
36
Para mais informaccedilotildees ver Lima 2007 31
132
Nacional natildeo era configurada por uma poliacutetica de alianccedilas mas pelo combate pela accedilatildeo
direta 37
Quanto ao programa da organizaccedilatildeo a ALN tinha por estrateacutegia maior a guerrilha
rural embora sua tarefa taacutetica estivesse concentrada nas cidades onde a maior parte de
suas accedilotildees ocorria Essas accedilotildees urbanas eram consideradas pela organizaccedilatildeo como um
meio de apoio para propaganda poliacutetica para obtenccedilatildeo de fundos (atraveacutes de
expropriaccedilotildees como assaltos a bancos) para recrutamento de quadros para a guerrilha e
para ataques estrateacutegicos ao inimigo Aleacutem disso a ALN permitia a existecircncia de
pequenos grupos com total independecircncia taacutetica desde que estivessem subordinados agrave
sua estrateacutegia geral Dessa forma sua estrutura pode ser entendida como horizontal sem
hierarquias jaacute que segundo Denise Rollemberg em Esquerdas revolucionaacuterias e luta
armada (2003) o militante da ALN que se considerasse capaz de fazer accedilotildees era
incentivado a agir e natildeo a ficar esperando a orientaccedilatildeo de um poder centralizado Afinal
uma das criacuteticas da antiga Corrente Revolucionaacuteria do PCB da qual o liacuteder da ALN
Marighella foi integrante era justamente sobre a centralizaccedilatildeo e como esta emperrava a
atuaccedilatildeo do partido Dessa forma a ALN atuava por meio de diversos grupos
multiplicando suas accedilotildees
A partir disso percebe-se como o sequestro do aviatildeo da Companhia Cruzeiro do
Sul efetuado pelo pequeno grupo que Fernando Palha integrava pocircde ser executado
dentro da ALN assim como os inuacutemeros assaltos a bancos e carros-fortes e os
sequestros a embaixadores em que outros pequenos grupos ligados agrave ALN estiveram
envolvidos Dessa forma nota-se tambeacutem como e por que a ALN se tornou a maior
organizaccedilatildeo de luta armada da eacutepoca e por conseguinte Marighella e seus demais
militantes os mais procurados pela ditadura militar 38
37
Para mais informaccedilotildees ver Lourenccedilo 2005 191 38
Para mais informaccedilotildees ver Gorender 1999
133
No trecho seguinte retirado da entrevista de Fernando Palha destaca-se como
muitos desses pequenos grupos da ALN tinham espaccedilo para planejar e administrar suas
proacuteprias accedilotildees sem se desligarem da Accedilatildeo
Eu era da ALN Accedilatildeo Libertadora Nacional era a maior organizaccedilatildeo de luta
armada que tinha na eacutepoca A Jane [Jessie Jane] por exemplo veio para caacute
para Niteroacutei jaacute fugida de Satildeo Paulo onde prenderam o pai prenderam a matildee
a famiacutelia dela toda sabe O pai natildeo era de nenhuma organizaccedilatildeo mas dava
guarida [] ele era um cara politizado e ela tambeacutem e quando ela veio para
caacute para Niteroacutei ela entrou para o nosso grupo de estudo Estudaacutevamos o
marxismo guerrilhas enfim aprendendo um pouco Aiacute a gente pensando
em como soltar eles [os pais de Jessie Jane] surgiu a ideacuteia de sequestrar o
aviatildeo O sequestro do aviatildeo foi tranquilo difiacutecil foi a negociaccedilatildeo da troca
dos passageiros pelos presos que a gente queria (Freire 28 jun 2004)
Essas variadas e espalhadas accedilotildees da ALN repercurtiram de forma negativa entre
os militares dos oacutergatildeos repressivos Afinal a atuaccedilatildeo descentralizada da ALN permitia
que uma grande quantidade de accedilotildees ldquoterroristasrdquo fossem atribuiacutedas ao movimento
tornando-o aos olhos dos agentes da repressatildeo mais ameaccedilador e perigoso agrave
manutenccedilatildeo do regime ditatorial Essa percepccedilatildeo dos militares pode ter causado reflexos
no cotidiano prisional de militantes ligados direta ou indiretamente agrave referida
organizaccedilatildeo como Dulce Fernando Ana e Ceciacutelia39
ndash considerada militante indireta
por ter escondido em sua casa um dos atores do sequestro do embaixador norte-
americano accedilatildeo conjunta entre MR-8 e ALN
39
No terceiro capiacutetulo a anaacutelise da memoacuteria dos seis entrevistados (Antocircnio Dulce Fernando Padre
Maacuterio Ana e Ceciacutelia) se concentra no cotidiano prisional vivido no DOI-CODI carioca
134
Juventude Operaacuteria Catoacutelica (JOC) amp Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO)
A Juventude Operaacuteria Catoacutelica a JOC uma das organizaccedilotildees de que Padre Maacuterio
era assistente no momento de sua prisatildeo surge no Brasil em iniacutecio dos anos 1930
ganhando forccedila apenas a partir de fins de 1940 A JOC objetivava melhorar a vida do
jovem trabalhador atraveacutes de uma accedilatildeo evangelizadora e formadora de uma consciecircncia
criacutetica Eacute a responsaacutevel pela criaccedilatildeo do meacutetodo pedagoacutegico ldquoVer-Julgar-Agirrdquo
ensinando seus jovens a ver o problema a julgaacute-lo agrave luz do Evangelho e a agir para
transformar sua condiccedilatildeo de classe trabalhadora explorada
A JOC que apresentava uma posiccedilatildeo mais conservadora ateacute meados da deacutecada de
1950 a partir do golpe de 1964 assume outra orientaccedilatildeo poliacutetica de caraacuteter mais
progressista realizando uma reflexatildeo mais profunda no que se refere agrave condiccedilatildeo da
classe trabalhadora do paiacutes e da Ameacuterica Latina o que ocasiona uma maior repressatildeo
por parte do governo ditatorial brasileiro Atraveacutes da JOC a criaccedilatildeo da Accedilatildeo Catoacutelica
Operaacuteria (ACO) ndash outra organizaccedilatildeo de que Padre Maacuterio tambeacutem participava no
momento de sua prisatildeo ndash foi incentivada comeccedilando a ser organizada em fins da
deacutecada de 1950 em funccedilatildeo do grande nuacutemero de militantes que haviam chegado agrave idade
adulta mas desejavam continuar a atuar por meio da organizaccedilatildeo
A ACO nasce entatildeo da Liga Operaacuteria Catoacutelica (LOC) que era um movimento
destinado aos adultos ligados agrave Igreja e inicialmente com forte preocupaccedilatildeo
assistencialista assumindo gradativamente um vieacutes poliacutetico e uma identidade de classe
Assim a partir da LOC a ACO brasileira surge de fato em 1962 apresentando-se como
uma continuidade da JOC para que os jovens trabalhadores pudessem quando adultos
permanecerem a atuar politicamente Muitos eram os pontos em comum dos dois
movimentos que vatildeo desde os mesmos participantes que migravam de um para o outro
ao atingirem a idade adulta como a aplicaccedilatildeo do mesmo meacutetodo de accedilatildeo ldquoVer-Julgar-
135
Agirrdquo Entretanto segundo Alejandra Luisa Magalhatildees Estevez em sua dissertaccedilatildeo de
mestrado (2008) O movimento dos trabalhadores catoacutelicos a Juventude Operaacuteria
Catoacutelica (JOC) e a Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) diferentemente da JOC que a
partir de 1969 com a prisatildeo de muitos de seus integrantes ndash como o proacuteprio Padre
Maacuterio Prigol ndash foi perdendo forccedilas e acabou desaparecendo a atuaccedilatildeo da ACO durante
o periacuteodo militar caracterizou-se pelo enfrentamento constante com a hierarquia
eclesiaacutestica e com os proacuteprios militares
Dessa forma Padre Maacuterio que antes de ser preso em 1970 era assistente tanto da
JOC quanto da ACO apoacutes sua prisatildeo deu continuidade ao seu trabalho junto agrave ACO o
que ainda faz atualmente Afinal a ACO permanece em atividade ateacute os dias de hoje
poreacutem sob o nome de Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos (MTC)
Logo mesmo com diferentes atuaccedilotildees no cenaacuterio poliacutetico da eacutepoca as
organizaccedilotildees acima tratadas nas quais os ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados
militavam direta ou indiretamente tinham por confluecircncia algum tipo de manifestaccedilatildeo
em oposiccedilatildeo agrave ditadura militar Entretanto apesar dessa face comum ser o motivo
principal de suas prisotildees as diferenccedilas na forma de agir de suas organizaccedilotildees pode ter
se refletido na intensidade das violecircncias a que foram submetidos no DOI-CODIRJ
Diante disso no capiacutetulo seguinte a partir da anaacutelise das memoacuterias dos seis
entrevistados essa relaccedilatildeo entre a organizaccedilatildeo de esquerda do militante e o seu
tratamento na prisatildeo seraacute abordada assim como os demais aspectos que caracterizavam
o cotidiano vivido no DOI-CODIRJ durante o ano de 1970
136
Capiacutetulo 3 ndash O espaccedilo e o cotidiano do DOI-CODI carioca
A lua
Tal qual a dona de um bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel
E nuvens
Laacute no mata-borratildeo do ceacuteu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco
Louco
O becircbado com chapeacuteu-coco
Fazia irreverecircncias mil
Praacute noite do Brasil
Meu Brasil
Aldir Blanc e Joatildeo Bosco
(O Becircbado e a Equilibrista 1979)
137
1 O que sofre e o que resiste
Os depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ fontes essenciais
para esta pesquisa encontram aqui um desfecho primordial Finalmente uma de suas
especificidades mais importantes eacute aqui trabalhada a possibilidade que trazem de
acessar desde os aspectos mais subjetivos do dia-a-dia do DOI-CODIRJ aos mais
triviais Diante disso neste capiacutetulo torna-se possiacutevel uma caracterizaccedilatildeo da rotina
institucional ali vivida pelos prisioneiros em 1970 trazendo agrave tona detalhes e
sentimentos que compunham esse cotidiano que haacute deacutecadas jaacute natildeo existe mais Essa
faccedilanha natildeo seria possiacutevel atraveacutes de qualquer outra fonte senatildeo a oral Somente as
memoacuterias trazidas nas narrativas orais quando devidamente trabalhadas satildeo capazes de
aproximar-se das sensaccedilotildees e sentimentos vivenciados naquele passado amenizando a
sua corrosatildeo pelo tempo e as lacunas encontradas na histoacuteria da ditadura militar
Diante disso a memoacuteria eacute aqui tratada como material para a histoacuteria conforme
elucidado por Paul Ricoeur em A memoacuteria a histoacuteria e o esquecimento (2008) Nessa
mesma direccedilatildeo vai Fernando Catroga em seu artigo A representaccedilatildeo do ausente
memoacuteria e historiografia (2010) pelo qual busca entender a escrita da histoacuteria como um
rito de memoacuteria anaacutelogo ao ldquogesto de sepulturardquo Afinal a escrita da histoacuteria tem uma
funccedilatildeo anaacuteloga agrave do tuacutemulo e agrave dos ritos de recordaccedilatildeo ajudando tal como no trabalho
do luto a pagar as diacutevidas do presente com o passado que jaacute natildeo existe mais Essa
analogia mostra que se o tuacutemulo eacute o primeiro monumento dos mortos deixado para os
vivos a escrita da histoacuteria tambeacutem atua no sentido de lutar contra o esquecimento e a
degradaccedilatildeo que marcam a passagem do tempo Logo tal como acontece quando se
visita o tuacutemulo de um cemiteacuterio a escrita da histoacuteria sobre o cotidiano do DOI-
CODIRJ pretende contribuir para que agindo sobre os vivos esse passado se
transforme de ldquolugar de sepulturardquo para o de ldquogesto de sepulturardquo (Ricoeur 2008) Essa
138
analogia do tuacutemulo com a escrita da histoacuteria tem como principal ponto em comum a
construccedilatildeo do passado a partir de traccedilos e de representaccedilotildees que almejam situar no
tempo algo que natildeo existe mais O cotidiano do DOI-CODIRJ passa aqui a ser escrito
por meio da anaacutelise de vestiacutegios e representaccedilotildees apresentados nas memoacuterias de seis
dos seus ex-prisioneiros poliacuteticos tal como ocorre com a representaccedilatildeo memorial de
uma sepultura
Evidencia-se que as memoacuterias aqui trabalhadas especialmente por evocarem
fatos vividos pelas proacuteprias testemunhas estatildeo permeadas de razotildees subjetivas
normativas e pragmaacuteticas que satildeo condicionantes e geram efeitos incontrolaacuteveis
resultando em uma construccedilatildeo qualitativa seletiva e apaixonada do passado Daiacute a
importacircncia do olhar criacutetico do historiador sobre essas memoacuterias uma vez que a funccedilatildeo
deste eacute justamente inserir os aspectos criacuteticos objetivos e analiacuteticos da histoacuteria na
fluidez emoccedilatildeo e submissatildeo aos influxos da conjuntura caracteriacutesticos da memoacuteria
(Nora 1993)
Portanto eacute imperativo analisar criticamente essas memoacuterias sobre o cotidiano do
DOI-CODIRJ mesmo sabendo das dificuldades que envolvem essa accedilatildeo como bem
aponta Beatriz Sarlo em Tempo passado Cultura da memoacuteria e guinada subjetiva
(2007) Afinal satildeo depoimentos de viacutetimas cuja confiabilidade sobre as torturas sofridas
na prisatildeo natildeo soacute foi elemento constituinte da instalaccedilatildeo do regime democraacutetico como
ainda eacute responsaacutevel pela solidificaccedilatildeo de um princiacutepio de reparaccedilatildeo e justiccedila Poreacutem
deve-se antes de tudo encaraacute-los como discursos testemunhais pois seguem o modo
persuasivo caracteriacutestico do discurso e por conseguinte natildeo podem ser cristalizados
Afinal esses seis testemunhos satildeo feitos por narradores que buscam firmar no passado a
verdade do presente jaacute que a narrativa no presente tem uma inevitaacutevel hegemonia sobre
o passado conforme bem enuncia Sarlo no trecho abaixo
139
O presente da enunciaccedilatildeo eacute o ldquotempo de base do discursordquo porque eacute
presente o momento de se comeccedilar a narrar e esse momento fica inscrito na
narraccedilatildeo Isso implica o narrador em sua histoacuteria e a inscreve numa retoacuterica
da persuasatildeo (o discurso pertence ao modo persuasivo diz Ricoeur) Os
relatos testemunhais satildeo ldquodiscursordquo nesse sentido porque tecircm como
condiccedilatildeo um narrador implicado nos fatos que natildeo persegue uma verdade
externa no momento em que ela eacute enunciada Eacute inevitaacutevel a marca do
presente no ato de narrar o passado justamente porque no discurso o
presente tem genuiacutena hegemonia reconhecida como inevitaacutevel e os tempos
verbais do passado natildeo ficam livres de uma ldquoexperiecircncia fenomenoloacutegicardquo
do tempo presente da enunciaccedilatildeo ldquoO presente dirige o passado assim como
um maestro seus muacutesicosrdquo escreveu Italo Severo (Sarlo 2007 49)
Daiacute destaca-se novamente a importacircncia de considerar o tempo presente como
base do discurso das memoacuterias sobre o cotidiano do DOI-CODIRJ trabalhadas neste
capiacutetulo evocando mais uma vez a elucidativa expressatildeo preacutesent du passeacute de Robert
Frank (1999) O presente a partir de onde falam os seis entrevistados como ex-
prisioneiros poliacuteticos corresponde a um momento em que a democracia brasileira para a
maioria deles dava passos largos em direccedilatildeo a sua total magnitude o presente vivido no
raiar dos anos 2000 vinha se distanciando poliacutetica e socialmente do passado ditatorial
militar Quem presidia o paiacutes eram antigos opositores poliacuteticos do governo militar os
ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva que vinham
construindo garantias de reparaccedilatildeo aos que sofreram violaccedilotildees aos direitos humanos
durante o passado ditatorial
Estava em curso o reconhecimento dos mortos e desaparecidos poliacuteticos pelo
Estado brasileiro bem como a indenizaccedilatildeo agraves famiacutelias por intermeacutedio da Lei nordm 9140
de 1995 e a reparaccedilatildeo financeira aos males sofridos por aqueles presos ou perseguidos
na eacutepoca da ditadura militar garantida pela Lei nordm 10559 de 2002 Eram esses fatos
140
que compunham o cenaacuterio do presente vivido durante as entrevistas e obviamente
influenciaram diretamente a construccedilatildeo das narrativas dos ex-presos poliacuteticos sobre o
cotidiano do DOI-CODI carioca
Essas influecircncias acabaram em alguns casos direcionando suas narrativas para
os detalhes dos horrores a que foram submetidos e para as sequelas deixadas pelas
torturas daquele tempo a fim de natildeo suscitar duacutevidas sobre o merecimento agrave reparaccedilatildeo
oferecida pelo Estado Afinal o DOI-CODIRJ correspondeu ao espaccedilo onde esses
presos poliacuteticos viveram um dos cotidianos mais violentos de todo o periacuteodo em que
estiveram na prisatildeo Ao enfatizarem em detalhes o lado duro dessa rotina prisional os
entrevistados ambicionavam fortalecer a interpretaccedilatildeo vigente sobre seu papel de viacutetima
e ao mesmo tempo de resistente a um Estado ditatorial Ao procurarem conquistar a
entrevistadora os entrevistados viam-se envolvidos no processo de enquadramento da
memoacuteria sobre a ditadura militar brasileira no sentido atribuiacutedo por Michael Pollak
(1992) O objetivo entre outros era o de fortalecer perante a sociedade e o governo
uma memoacuteria que a eles conferisse o duplo lugar de resistente e de viacutetima e endossasse
a necessidade de reparaccedilotildees financeiras e simboacutelicas aos atingidos
A reparaccedilatildeo financeira aos violentados pela ditadura militar jaacute vinha acontecendo
na eacutepoca em que as entrevistas foram concedidas por meio das leis que implantaram a
Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos e a Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio
da Justiccedila citadas anteriormente e abordadas no segundo capiacutetulo Jaacute a reparaccedilatildeo
simboacutelica soacute comeccedilaria a ser de fato implantada alguns anos depois das entrevistas
principalmente com as Caravanas da Anistia a partir de abril de 2008 e mediante a
aprovaccedilatildeo da Comissatildeo da Verdade pelo Congresso Nacional em outubro de 2011 As
Caravanas da Anistia satildeo sessotildees puacuteblicas itinerantes de apreciaccedilatildeo de requerimentos de
anistia poliacutetica a perseguidos poliacuteticos da ditadura militar acompanhadas por atividades
141
educativas e culturais promovidas pela Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio da Justiccedila
Jaacute a Comissatildeo da Verdade teraacute como finalidade examinar e esclarecer graves violaccedilotildees
de direitos humanos praticadas entre os anos de 1946 e 1988 a fim de promover a
reconciliaccedilatildeo nacional com o seu passado histoacuterico
Eacute faacutecil perceber que os entrevistados em seus testemunhos-discursos acabam
atribuindo um sentido uacutenico agrave histoacuteria e conforme salienta Beatriz Sarlo (2007) ao
acumularem detalhes em suas narrativas produzem um modo realista-romacircntico pelo
qual atribuem sentidos a todos os detalhes mencionados somente pelo fato de incluiacute-los
no relato sem se sentirem na obrigaccedilatildeo de atribuir sentidos ou explicar as ausecircncias ali
tambeacutem apresentadas Dessa forma a anaacutelise aqui traccedilada procura trabalhar de forma
criacutetica no sentido de reconhecer a face realista dos detalhes descritos pelos narradores
e ao mesmo tempo a face romacircntica construiacuteda por eles de forma a fortalecer a
credibilidade e a veracidade de sua narraccedilatildeo Uma vez que diferentemente do que datildeo a
entender os entrevistados ao narrarem suas proacuteprias vidas a anaacutelise histoacuterica do
presente trabalho firma-se longe da utopia de uma narraccedilatildeo total capaz de descrever
todo o passado estudado reconhecendo a necessidade de operar com elipses
No entanto se por um lado os detalhes mencionados nos depoimentos devem ser
submetidos ao pensamento criacutetico histoacuterico por outro lado satildeo exatamente eles que
enriquecem a anaacutelise de um cotidiano jaacute que os detalhes trazidos pelos depoimentos
conseguem muitas vezes tornar a rotina do dia-a-dia que jaacute natildeo mais existe palpaacutevel
ao entendimento Eacute o que ocorre por exemplo com a disposiccedilatildeo espacial interna do
preacutedio-sede do DOI-CODIRJ fator que estaacute intrinsecamente relacionado ao cotidiano
prisional e que torna-se passiacutevel de caracterizaccedilatildeo atraveacutes dos detalhes contidos nos
depoimentos Assim mesmo natildeo sendo possiacutevel visitar o interior do edifiacutecio e nem ter
acesso a alguns registros documentais como fotos ou outros documentos eacute possiacutevel
142
contrapor as descriccedilotildees contidas nos depoimentos com a fachada do preacutedio que ainda
existe e construir uma percepccedilatildeo aproximada sobre o espaccedilo em que de certa forma
essas memoacuterias estatildeo ancoradas
2 Uma cartografia possiacutevel do ldquoCastelo do Terrorrdquo
Constatada essa forte relaccedilatildeo entre as memoacuterias dos ex-prisioneiros que ali
ficaram presos em 1970 com o espaccedilo interno do 1ordm BPE resolvi tentar ver de perto
como este era distribuiacutedo No entanto muitas dificuldades foram encontradas e
inviabilizaram o meu projeto inicial de contrapor o que restava do interior do edifiacutecio
que sediou o DOI-CODIRJ com as memoacuterias de seus ex-prisioneiros
Em 2003 a minha primeira tentativa de visitar o interior do preacutedio do 1ordm BPE foi
interrompida no momento em que apresentei o propoacutesito de minha visita o interesse em
ver o preacutedio do DOI-CODIRJ Percebi imediatamente que o ldquoassunto DOI-CODIrdquo
gerava um grande desconforto para aquele Batalhatildeo Talvez porque apesar do referido
Batalhatildeo natildeo ter tido relaccedilatildeo direta com o DOI-CODIRJ pois eram instituiccedilotildees
distintas o fato desse oacutergatildeo repressivo ter sido instalado em seu interior evoca uma
forte relaccedilatildeo que atualmente imprime uma imagem negativa para seus militares
Percebe-se assim que o 1ordm BPE quer apagar da memoacuteria social sua associaccedilatildeo ao DOI-
CODIRJ o que explica o fato de seus militares natildeo permitirem que eu prosseguisse
com a visita
No ano seguinte em novembro tentei pela segunda vez visitar o interior do dito
edifiacutecio Prevendo dificuldades para a visita utilizei como pretexto uma suposta
pesquisa sobre patrimocircnios histoacutericos do bairro Um primeiro-sargento que se
apresentou como graduado em histoacuteria acompanhou-me pelo paacutetio interno do
complexo Durante o passeio por este espaccedilo ele apontava de longe para os preacutedios que
143
ficavam ao redor inclusive para o que sediava o DOI-CODIRJ agrave esquerda e ao fundo
daquele paacutetio a ceacuteu aberto Ao referir-se ao local o sargento apontou de longe e disse
ldquoLaacute funciona o DOI-CODIrdquo deixando transparecer que ateacute aquele momento natildeo
existia uma nova serventia para aquele local e que a estrutura do DOI-CODI havia sido
preservada Nada mais quis falar alegando que natildeo poderia dar explicaccedilotildees mais
amplas sobre o assunto e que aleacutem do mais eu natildeo poderia me aproximar das
instalaccedilotildees que me interessavam
Esta segunda visita corroborou a minha sensaccedilatildeo anterior de que os militares
daquele Batalhatildeo natildeo queriam que este ficasse historicamente associado ao DOI-CODI
percebendo a imagem negativa que essa associaccedilatildeo poderia conferir-lhes tentando
evitar a manutenccedilatildeo do viacutenculo daquele preacutedio com a memoacuteria das torturas e mortes ali
executadas nos chamados ldquoanos de chumbordquo
Aleacutem disso esta visita trouxe-me um dado novo ao apresentar aquele preacutedio
como sendo o ldquoDOI-CODIrdquo no presente do indicativo o sargento deixou perceptiacutevel
um interesse interno em preservaacute-lo Afinal por que ateacute aquele momento mesmo o
DOI-CODI natildeo estando mais em atividade o seu espaccedilo natildeo havia sido utilizado para
nenhuma outra funccedilatildeo permanente Este interesse reflete talvez um forte orgulho
interno de importantes setores do Exeacutercito pelos feitos do DOI-CODI no sentido de
para alguns mais radicais ter sido esta instituiccedilatildeo uma das principais defensoras da
soberania e da ordem nacional na eacutepoca ameaccediladas pela subversatildeo
Apesar de tais empecilhos os detalhes relatados pelos entrevistados viabilizariam
uma aproximada cartografia espacial do interior do DOI-CODIRJ de 1970 quando eles
laacute estiveram Essa cartografia fez-se aqui necessaacuteria por entender-se que essa disposiccedilatildeo
espacial eacute essencial para a anaacutelise das memoacuterias sobre o cotidiano ali vivido uma vez
que esse espaccedilo prisional estaacute presente a todo o tempo nos relatos de Antocircnio Dulce
144
Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia sendo um dos principais pontos de uniatildeo de suas
memoacuterias
Sendo assim defende-se aqui que o antigo preacutedio do DOI-CODI carioca eacute hoje
um lugar de memoacuteria jaacute que a ele se confere de forma simultacircnea e em graus diversos
os trecircs sentidos atribuiacutedos como necessaacuterios por Pierre Nora o material o simboacutelico e o
funcional (Nora 1993 21) O sentido material no caso eacute o proacuteprio espaccedilo fiacutesico o
preacutedio do 1ordm BPE ainda localizado agrave Rua Baratildeo de Mesquita nordm 425 no bairro da
Tijuca O simboacutelico eacute o que o edifiacutecio representa para parte da sociedade carioca que
partilha as memoacuterias dos ex-presos poliacuteticos e seus familiares sobre o violento
cotidiano as torturas e as mortes ali vivenciados atribuindo ao preacutedio o significado de
ldquoCastelo do terrorrdquo Por fim o sentido funcional eacute a atividade de preservaccedilatildeo da
memoacuteria da ditadura militar ali exercida jaacute que o preacutedio eacute um monumento tombado sob
a justificativa de guardar a memoacuteria ali vivida durante a ditadura militar brasileira e natildeo
deixar que ela venha a cair no esquecimento Este uacuteltimo sentido portanto embute ao
preacutedio o significado completo de um lugar de memoacuteria congregando ao espaccedilo uma
funccedilatildeo e uma representaccedilatildeo simboacutelica ou seja unindo os aspectos material simboacutelico e
funcional
145
Foto Nordm1 fachada entrada principal e paacutetio interno do quartel do 1ordm BPE (Bettamio dez 2004)
Este tombamento foi feito pela Prefeitura do Rio de Janeiro em 1993 e tem por
setor responsaacutevel a Subsecretaria municipal de Patrimocircnio Cultural lei nordm 1954 de
29039340
Seu processo teve iniacutecio atraveacutes da solicitaccedilatildeo de moradores da localidades
da Tijuca Grajauacute Andaraiacute e Praccedila Saens Pentildea que utilizaram para embasar o referido
ato o fato de parte do edifiacutecio do 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito ter abrigado o DOI-
CODI do Rio de Janeiro durante toda a deacutecada de 1970 e iniacutecio dos anos 1980
ressaltando a sua importacircncia para a memoacuteria da resistecircncia e luta pelo fim da ditadura
militar
Percebe-se ainda a grande importacircncia atribuiacuteda a essa memoacuteria quando se
destaca que mesmo o edifiacutecio tendo um valor histoacuterico anterior agrave fase em que cedeu
parte de seu espaccedilo ao DOI-CODIRJ o pedido de tombamento feito pela populaccedilatildeo
fundamentava-se no que ali havia ocorrido em tempos recentes durante a ditadura
militar Afinal esses requerentes propunham que o edifiacutecio fosse tirado do Exeacutercito e
desse lugar a um centro cultural com museu da memoacuteria da luta pela liberdade
40
Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro antigo Departamento Geral de
Patrimocircnio Cultural (DGPC) Nordm do processo 1200433692 1degdocumento de solicitaccedilatildeo de tombamento
26101992
146
O edifiacutecio foi construiacutedo em 1857 pela Imperial Coroa para servir de sede a um
Hospital Militar entretanto laacute se instalou o 1ordm Regimento de Cavalaria Ligeira e
posteriormente o Hospital Militar da Corte com funcionamento ateacute fevereiro de 1877
Desde entatildeo a construccedilatildeo foi utilizada pela Escola do Estado Maior pelo 2ordm Batalhatildeo
de Caccediladores pela Escola de Intendecircncia e a partir de 1946 pelo 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia
do Exeacutercito 41
Em ampla aacuterea estaacute situado na confluecircncia da Rua Baratildeo de Mesquita com a
Avenida Maracanatilde abrangendo tambeacutem a Praccedila Lamartine Babo Conforme pode ser
observado na paacutegina anterior Foto Nordm1 ao redor de todo o espaccedilo ocupado pelo preacutedio
estende-se uma mureta de alvenaria com grade assente na parte frontal do quartel O
complexo arquitetocircnico do 1ordm BPE apresenta nas extremidades alas perpendiculares
que formam no meio um largo paacutetio A uacuteltima dessas alas possui os fundos voltados
para a Avenida Maracanatilde em frente a um dos portotildees de entrada e saiacuteda de veiacuteculos do
quartel Era exatamente nesta parte localizada no final do paacutetio central do Batalhatildeo do
lado esquerdo ao lado da antiga faacutebrica de bebidas Brahma que as celas e a sala de
tortura do DOI-CODIRJ estavam localizadas A seguir na Foto Nordm2 visualiza-se o
fundo deste edifiacutecio na Avenida Maracanatilde
41
Para mais informaccedilotildees ver Gerson 2000 357
147
Foto Nordm2 preacutedio do DOI-CODIRJ nos fundos do quartel localizado na Avenida Maracanatilde (Bettamio dez 2004)
Como se pode ver na Foto Nordm2 em cima do muro do 1ordm BPE exclusivamente na
parte que cerca os fundos do antigo preacutedio do DOI-CODIRJ estaacute localizada uma cerca
de arame farpado Assim aleacutem da descriccedilatildeo dos entrevistados e da forma como o
primeiro-sargento nomeou o local ao apontaacute-lo durante a minha segunda visita ao
Batalhatildeo em 2004 entende-se esta cerca como mais um indiacutecio de que laacute ficavam as
celas do entatildeo DOI-CODIRJ Tais celas estavam distribuiacutedas pelos dois pavimentos do
edifiacutecio conforme pode-se auferir nos relatos e comprovar na Foto Nordm2 onde pela
distribuiccedilatildeo das janelas nota-se que o preacutedio eacute composto de fato por dois andares
O local da prisatildeo era mais nos fundos Quando vocecirc chega ali vocecirc tem duas
entradas uma pela pracinha [Foto Nordm3] onde entram os carros e outra pela
frente bem na Baratildeo de Mesquita [Foto Nordm1] Nesta entrada tem uma mesa
com um oficial do dia depois vem uma espeacutecie de paacutetio aberto como se
fosse uma quadra Jaacute nos fundos do quartel passa a Avenida Maracanatilde por
traacutes da Poliacutecia do Exeacutercito As celas tanto a da prisatildeo como a da tortura
eram mais perto da Avenida Maracanatilde Era laacute naquela parte mais para o
148
final mais isolada Vocecirc ficava mais proacuteximo da Avenida Maracanatilde e da
faacutebrica da Brahma [] (Carvalho 12 set 2002)
Foto Nordm3 uma das entradas do 1ordm BPE para veiacuteculos de frente para a Praccedila Lamartine Babo (Bettamio dez 2004)
Os prisioneiros poliacuteticos receacutem-capturados transferidos de outros oacutergatildeos de
repressatildeo ou mesmo do Hospital Central do Exeacutercito chegavam ao 1ordm BPE dentro de
uma das viaturas das turmas de busca e apreensatildeo do DOI que faziam parte da
estrutura abordada no primeiro capiacutetulo Os automoacuteveis que os traziam entravam no
Batalhatildeo atraveacutes do portatildeo para veiacuteculos que fica em frente agrave Praccedila Lamartine Babo
(Foto Nordm3) entre a Rua Baratildeo de Mesquita e a Avenida Maracanatilde Ao entrarem por
este portatildeo os carros seguiam em linha reta pelo paacutetio interno ateacute chegarem ao preacutedio
do DOI-CODI no fundo do quartel (Foto Nordm2) onde os presos eram deixados
Este trajeto de chegada descrito pelos entrevistados parece ser ateacute hoje um
procedimento formal para controlar a entrada de veiacuteculos no Batalhatildeo e atraveacutes dele
evidencia-se que o DOI-CODI mesmo natildeo sendo subordinado ao 1ordm BPE tinha como
dever respeitar algumas normas de seguranccedila ali vigentes Entre essas normas estava o
impedimento de utilizar o portatildeo para veiacuteculos localizado na Avenida Maracanatilde (Foto
149
Nordm2) para a entrada e a saiacuteda de seus presos mesmo sendo mais praacutetico e reservado
pois este portatildeo ficava ao lado do preacutedio do DOI-CODI Poreacutem como todo quartel
militar preza por um controle riacutegido de seguranccedila uma vez que satildeo responsaacuteveis por
guardar armas e outros equipamentos beacutelicos esses agentes eram obrigados a respeitar a
estrutura de seguranccedila tradicional do 1ordm BPE
[] a gente entrava pela pracinha aqui do lado [aponta para o desenho que
faz no papel] a gente entrava dentro dos carros aqui por esse portatildeo (o da
praccedila) A gente natildeo entrava pela porta principal natildeo E nem entrava ou saiacutea
pelo portatildeo do lado do preacutedio que a gente ficava [] (Coimbra 30 nov
2004)
No preacutedio do DOI-CODIRJ (Foto Nordm2) as celas ldquosolitaacuteriasrdquo se localizavam
somente no andar de baixo Nelas os prisioneiros receacutem-chegados permaneciam nos
primeiros dias de prisatildeo para ficarem no mesmo andar da sala de interrogatoacuterio ou ldquosala
de torturardquo ndash como os presos a chamavam ndash facilitando o deslocamento Era no
momento inicial da prisatildeo que as turmas de interrogatoacuterio preliminar executavam a
parte massiva dos interrogatoacuterios o que por conseguinte demandava a necessidade dos
presos ficarem em celas geograficamente proacuteximas agrave ldquosala de torturardquo
Nos primeiros dias de prisatildeo era quando os presos eram levados assiduamente
para a ldquosala de torturardquo visto que poderiam informar sobre os ldquopontos de encontrordquo e os
ldquoaparelhosrdquo ainda vaacutelidos informaccedilotildees que levariam os agentes dos DOI ateacute outros
ldquosubversivosrdquo Aleacutem da ldquosala de torturardquo a cela do tipo ldquosolitaacuteriardquo era mais um artifiacutecio
para torturar o preso receacutem-chegado a fim de degradaacute-lo e desestruturaacute-lo
psicologicamente de forma a impulsionaacute-lo a falar mais rapidamente o que sabia Para
isso essas celas ldquosolitaacuteriasrdquo aleacutem de deixarem o preso isolado dos demais se
diferenciavam estruturalmente das outras que existiam no mesmo preacutedio localizadas em
150
maior parte no pavimento superior para as quais os presos eram transferidos apoacutes o
momento inicial de sua prisatildeo
Nas celas do segundo andar existia banheiro com chuveiro e um colchatildeo para cada
preso Jaacute nas ldquosolitaacuteriasrdquo aleacutem do preso ficar sozinho natildeo havia cama colchatildeo
banheiro ou mesmo pia Durante o tempo em que laacute permaneciam os prisioneiros natildeo
tinham direito a tomar banho Eram celas pequenas com portotildees de grades vazadas
contendo apenas um buraco no chatildeo para que o preso ali pudesse evacuar Os presos
eram obrigados a conviver com o cheiro de sua proacutepria urina e fezes no provaacutevel intuito
de denegrir a sua condiccedilatildeo de ser humano
[] logo que eu cheguei fui para a lsquosolitaacuteriarsquo era torturada ia para a
lsquosolitaacuteriarsquo era torturada e ia para a lsquosolitaacuteriarsquo [] (Pandolfi 5 fev 2003)
[] primeiro que quando vocecirc eacute preso vocecirc passa alguns dias sem tomar
banho na verdade eu soacute fui tomar banho mesmo depois que eu fui para a
cela coletiva [] (Carvalho 8 fev 2003)
Aqui [aponta para as celas do andar teacuterreo do preacutedio que desenhou em um
papel] era soacute o pessoal que ficava de castigo era barra pesada [] vocecirc natildeo
tinha lugar para dormir natildeo tinha lugar para nada Tinha soacute um buraco para
vocecirc fazer as suas necessidades Na solitaacuteria natildeo tinha nem colchatildeo nem
banheiro nem privada era um buraco Nem tinha chuveiro Pelo menos
essas celas de cima tinham chuveiro [] (Coimbra 30 nov 2004)
151
Foto Nordm4 visatildeo panoracircmica do espaccedilo ocupada pelo 1ordm BPE com destaque aos fundos para o preacutedio do DOI-CODI
(Bettamio dez 2004)
A ldquosala de torturardquo localizada no primeiro pavimento do preacutedio eacute referida pelos
prisioneiros tambeacutem como ldquosala roxardquo pela cor de suas paredes Anexa a ela estava a
sala de observaccedilatildeo que era separada da ldquosala roxardquo por um vidro o chamado ldquoespelho
da verdaderdquo Este vidro composto por uma placa semi-espelhada possibilitava que da
sala de observaccedilatildeo se pudesse ver e reconhecer quem estava do outro lado sem ser
visto Assim presos e militares poderiam identificar pessoas e observar interrogatoacuterios
sem serem reconhecidos
[] a sala de tortura era pintada de uma cor horrorosa como se fosse um
roxo [] essa sala tinha um vidro que era o espelho da verdade porque dava
acesso agrave outra sala onde ficavam pessoas para te observar sem serem vistas
[] (Pandolfi 5 fev 2003)
A seta indica a localizaccedilatildeo do preacutedio do DOI-CODI dentro do espaccedilo do 1ordm BPE
152
[] aqui tinha a famosa sala roxa duas uma do lado da outra isso no
primeiro andar Porque ali estavam as pessoas que eles estavam inquirindo
direto [] (Freire 28 jun 2004)
Os dados informados acima satildeo exemplos tiacutepicos de detalhes apresentados pelos
entrevistados que muito podem contribuir para o entendimento desse passado Afinal
em uma primeira impressatildeo essas narrativas podem transmitir a ideia de que as paredes
roxas serviam apenas para imprimir um aspecto sombrio agrave ldquosala de torturardquo servindo
como mais um elemento produzido para intimidar o depoente durante o interrogatoacuterio
No entanto ao saber-se que uma das paredes dessa sala era composta pelo dito ldquoespelho
da verdaderdquo deduz-se que esta era bem iluminada O vidro que a dividia do local anexo
muito utilizado nas salas de reconhecimento em delegacias de poliacutecia age atraveacutes de um
mecanismo pelo qual quem estaacute do lado mais iluminado vecirc apenas o reflexo de sua
proacutepria imagem sem enxergar o que estaacute do lado mais escuro
A partir disso infere-se que as paredes roxas da ldquosala de torturardquo natildeo eram apenas
um aparato de tortura psicoloacutegica mas provavelmente uma forma de deixar os
integrantes das turmas de interrogatoacuterio preliminar mais agrave vontade para interrogar
ameaccedilar e torturar os seus prisioneiros Menos iluminada do que se suas paredes fossem
brancas contribuiacutea para que os prisioneiros natildeo pudessem ver os militares de forma tatildeo
clara e niacutetida fazendo com que os torturadores natildeo se sentissem acuados por atuar com
os seus rostos agrave mostra chegando mesmo a retirar o capuz dos prisioneiros
[] chegando nessa sala de tortura normalmente eles tiravam o capuz Quer
dizer o capuz na verdade era um mecanismo mais de intimidaccedilatildeo de deixar
a gente apavorada do que para eles se esconderem mesmo porque na tortura
a gente acabava vendo os torturadores [] (Pandolfi 5 fev 2003)
No DOI-CODI eu apanhei de cara limpa eu vi quem me bateu quem me
torturou [] (Freire 28 jun 2004)
153
No segundo andar do preacutedio do DOI-CODIRJ em meio agraves demais celas coletivas
e encostada em outra menor se encontrava uma cela feminina bem espaccedilosa onde
Dulce Ana e Ceciacutelia ficaram durante parte do tempo em que estiveram na instituiccedilatildeo
Essa cela mencionada pelas entrevistadas ora por ldquocoletivo das mulheresrdquo ora por
ldquoMaracanatilderdquo tinha no alto da parede de fundo um basculante que como bem se pode
observar na Foto Nordm2 provavelmente estava presente em todas as celas coletivas tanto
as do primeiro quanto as dos segundo andares Entretanto no caso do ldquocoletivo das
mulheresrdquo e da cela nele encostada esses basculantes eram virados para o paacutetio interno
do 1ordm BPE e por conseguinte os portotildees dessas celas ficavam na direccedilatildeo do muro da
Avenida Maracanatilde
[] eu fui para a cela do lado que era o coletivo das mulheres que era a cela
Maracanatilde como a gente chamava [] Eram duas celas Essa era enorme e
tinha a outra na outra ponta [] que era uma cela menor Eu fiquei nas duas
que eram as duas celas que ficavam na frente que davam para o paacutetio A
gente trepava [no basculante da cela] e soacute via o paacutetio (Coimbra 30 nov
2004)
Tinha ateacute uma cela ampla grande que chamavam de coletivo das mulheres
Entatildeo a maior parte do tempo eu fiquei nessa cela grande [] (Pandolfi 5
fev 2003)
No DOI-CODI natildeo havia uma grande separaccedilatildeo entre prisioneiros e prisioneiras
uma vez que as celas do primeiro e do segundo andares comportavam tanto homens
quanto mulheres No entanto natildeo havia celas mistas Apesar de que como somente
homens afirmaram ter permanecido em celas do piso teacuterreo pressupotildee-se que neste
pavimento com exceccedilatildeo das celas ldquosolitaacuteriasrdquo localizavam-se em grande parte caacuterceres
154
coletivos masculinos que tambeacutem existiam no segundo andar demonstrando que era
maior o nuacutemero de prisioneiros homens
[] eu sempre fiquei no teacuterreo nunca subi para aquela parte apesar de que
laacute onde ficavam as celas tinha uma escada Tinha uma parte teacuterrea onde
ficavam nossas celas e tinha tambeacutem umas celas em cima [] (Carvalho 12
set 2002)
No teacuterreo tinha duas celinhas aqui [rabisca em um pedaccedilo de papel] uma no
cantinho aqui e eu fiquei nessa segunda aqui aiacute ainda tinha a do meio e
mais duas para caacute eram cinco celas [] (Freire 28 jun 2004)
A partir dessa cartografia do espaccedilo fiacutesico do DOI-CODI viabilizou-se uma
aproximaccedilatildeo com a geografia do ambiente que mantinha uma iacutentima relaccedilatildeo com o
cotidiano dos entrevistados no periacuteodo em que laacute permaneceram como prisioneiros do
sistema de seguranccedila
3 Memoacuterias de um cotidiano
Falar sobre essa parte da histoacuteria implica muitas dificuldades pois suscita
lembranccedilas mal-vindas poreacutem necessaacuterias ao conhecimento de nossa
sociedade Trata-se aqui de uma viagem de volta ao inferno de uma face que
para muitos traduz supliacutecios fiacutesicos e psiacutequicos sentimentos de desamparo
solidatildeo medo pacircnico abandono e desespero (Coimbra 2004 45) 42
Como jaacute dito o momento da realizaccedilatildeo de uma entrevista eacute definidor da maneira
pela qual o(a) entrevistado(a) recupera o seu passado A construccedilatildeo da memoacuteria sobre o
cotidiano vivido no DOI-CODI em 1970 natildeo escapou desse passeacute do preacutesent e de
42
Artigo Gecircnero Militacircncia e Memoacuteria escrito pela entrevistada Ceciacutelia Coimbra e publicado em Strey
Marlene Neves (org) Violecircncia Gecircnero e Poliacuteticas Puacuteblicas Porto Alegre PUC-RS 2004
155
forma muito interessante ao mesmo tempo em que sofria influecircncias desse presente
tambeacutem agia politicamente sobre ele Beneficiados por uma legislaccedilatildeo que buscava
reparar os variados danos causados pelo Estado ditatorial os entrevistados visavam
sobretudo a obter reparaccedilotildees simboacutelicas comeccedilando pela consolidaccedilatildeo de suas
memoacuterias Por isso mesmo lutavam por accedilotildees governamentais tais como a construccedilatildeo
de museus sobre a ditadura militar em locais que haviam servido como prisatildeo poliacutetica
na eacutepoca e a instalaccedilatildeo da Comissatildeo da Verdade no paiacutes
Assim em 24 de janeiro de 2009 foi inaugurado no anexo do antigo preacutedio do
Departamento de Ordem e Poliacutetica Social de Satildeo Paulo (Deops) o Memorial da
Resistecircncia de Satildeo Paulo Eacute a primeira instituiccedilatildeo do paiacutes a ldquomusealizarrdquo parte de um
edifiacutecio que foi siacutembolo da poliacutecia poliacutetica em eacutepocas de ditadura a fim de salvaguardar
a memoacuteria da resistecircncia e da repressatildeo do Brasil republicano 43
E finalmente em 18
de novembro de 2011 a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei que criava a
Comissatildeo da Verdade (lei nordm 125282011) Esta seraacute composta por sete integrantes que
ainda seratildeo indicados e contaratildeo com ajuda de 14 auxiliares que teratildeo a missatildeo de ouvir
depoimentos em todo o paiacutes requisitar e analisar documentos que ajudem a esclarecer
os fatos da repressatildeo militar A Comissatildeo iraacute apurar as violaccedilotildees de direitos ocorridas
entre os anos de 1946 e 1988 e teraacute um prazo de dois anos para finalizar este trabalho de
investigaccedilatildeo
43
Para mais informaccedilotildees sobre o Memorial da Resistecircncia de Satildeo Paulo consultar
httpwwwmemorialdaresistenciasporgbr
156
31 O interrogatoacuterio e a tortura
Tendo em vista as novas funccedilotildees que se apresentavam para os agentes da
repressatildeo lotados nos DOI-CODI era necessaacuterio um treinamento que incluiacutea entre
outras mateacuterias o manuseio da dosagem de dor infringida durante os interrogatoacuterios
Depois de passarem por tal treinamento os militares poderiam atuar em uma das trecircs
turmas de interrogatoacuterio preliminar que compunham a Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio
responsaacutevel direta por torturar os presos ou em uma das turmas da Seccedilatildeo de busca e
apreensatildeo que capturavam os suspeitos e os direcionavam aos DOI
Esse processo de formaccedilatildeo de matildeo-de-obra para atuar no DOI-CODI surgiu em
1970 quando uma escola de repressatildeo foi criada a partir da mudanccedila de comando e da
reforma curricular do Centro de Estudos de Pessoal (CEP) no forte do Leme O novo
CEP passava a oferecer cursos de informaccedilotildees para oficiais programas de extensatildeo para
sargentos e estaacutegios para quadros das poliacutecias militares todos normalmente com
duraccedilatildeo de um semestre Nesses cursos os alunos assistiam aulas sobre teacutecnicas de
interrogatoacuterio ndash o que incluiacutea o manuseio de aparelhos de tortura ndash e vigilacircncia taacuteticas
de ldquoneutralizaccedilatildeo de aparelhosrdquo e de transporte de presos operaccedilotildees especiais
criptologia e produccedilatildeo de informaccedilotildees Ao fim do curso o aluno recebia uma
certificaccedilatildeo atraveacutes da qual poderia atestar sua aptidatildeo para desempenhar as funccedilotildees de
um oficial de informaccedilotildees
Parte dos meacutetodos aprendidos nessa escola eacute retratada em entrevista para a revista
Veja de 9 de dezembro de 1998 pelo tenente Marcelo Paixatildeo de Arauacutejo que de acordo
com Elio Gaspari (2002) teria atuado como torturador no 12ordm Regimento Interno de
Belo Horizonte entre 1968 e 1971
A primeira coisa era jogar o sujeito no meio de uma sala tirar a roupa dele e
comeccedilar a gritar para ele entregar o ponto [lugar marcado para encontros
157
com militantes do grupo] Era o primeiro estaacutegio Se ele resistisse tinha um
segundo estaacutegio que era vamos dizer assim mais porrada Um dava tapa na
cara Outro soco na boca do estocircmago Um terceiro soco no rim Tudo para
ver se ele falava Se natildeo falava tinha dois caminhos Dependia muito de
quem aplicava a tortura Eu gostava muito de aplicar a palmatoacuteria Eacute muito
doloroso mas faz o sujeito falar Eu era muito bom na palmatoacuteria [] Vocecirc
manda o sujeito abrir a matildeo O pior eacute que de tatildeo desmoralizado ele abre Aiacute
se aplicam dez quinze bolos na matildeo dele com forccedila A matildeo fica roxa Ele
fala A etapa seguinte era o famoso telefone das Forccedilas Armadas [] eacute uma
corrente de baixa amperagem e alta voltagem [] Natildeo tem perigo de fazer
mal Eu gostava muito de ligar as duas pontas dos dedos Pode ligar numa
matildeo e na orelha mas sempre do mesmo lado do corpo O sujeito fica
arrasado O que natildeo pode fazer eacute deixar a corrente passar pelo coraccedilatildeo Aiacute
mata [] o uacuteltimo estaacutegio em que cheguei foi o pau-de-arara com choque
Isso era para o queixo-duro o cara que natildeo abria nas etapas anteriores Mas
pau-de-arara eacute um negoacutecio meio complicado [] O pau-de-arara natildeo eacute
vantagem Primeiro porque deixa marca Depois porque eacute trabalhoso Tem
de montar a estrutura Em terceiro eacute necessaacuterio tomar conta do indiviacuteduo
porque ele pode passar mal (Gaspari 2002 182-183)
Antes de comeccedilar a atuar esses agentes passavam por treinamento no DOI-CODI
feito provavelmente com alguns prisioneiros que jaacute estavam laacute haacute algum tempo e que
haviam mostrado ter boa resistecircncia Conforme se pode evidenciar a partir da
declaraccedilatildeo feita por Dulce Pandolfi em 1970 registrada na auditoria militar 44
[]
que foi exposta perante 20 oficiais como numa demonstraccedilatildeo de aulas de torturas
pau-de-arara e choques [] (Arquidiocese de Satildeo Paulo tomo V 1985 758)
Essa denuacutencia feita na eacutepoca por Dulce na auditoria da Justiccedila Militar foi
publicada em A Tortura tomo V do ldquoProjeto Ardquo da pesquisa coordenada pela
Arquidiocese de Satildeo Paulo e intitulada Brasil Nunca Mais O ldquoProjeto Ardquo eacute constituiacutedo
por doze volumes que contecircm as conclusotildees da referida pesquisa feita a partir da
44
Assim satildeo chamadas as varas criminais com atribuiccedilatildeo especiacutefica de atuar em processos de crimes
militares da Justiccedila Militar brasileira
158
reuniatildeo de coacutepias da quase totalidade dos processos poliacuteticos que tramitaram na Justiccedila
Militar entre abril de 1964 e marccedilo de 1979 Esses volumes foram reproduzidos vinte e
cinco vezes pela Arquidiocese de Satildeo Paulo formando coleccedilotildees que foram doadas a
entidades de direitos humanos pesquisa e documentaccedilatildeo 45
As 6891 paacuteginas do
ldquoProjeto Ardquo estatildeo resumidas no ldquoProjeto Brdquo o livro Brasil Nunca Mais tambeacutem
datado de 1985 e publicado pela Editora Vozes
Os primeiros momentos no DOI-CODI
Desde o momento da detenccedilatildeo o preso era submetido a diversos tipos de maus
tratos Jaacute a caminho do caacutercere ainda dentro do automoacutevel comeccedilavam as agressotildees
como tapas pontapeacutes e empurrotildees a fim de acelerar a sua desestabilizaccedilatildeo para que
entregasse mais rapidamente informaccedilotildees que agilizassem a prisatildeo de outros militantes
procurados
As torturas que Ana Batista relata ter sofrido durante o percurso de transferecircncia
da OBANSP para o DOI-CODIRJ destacadas em seu memorial ndash escrito em outubro
de 2004 um mecircs antes de sua entrevista e encaminhado agrave Comissatildeo Especial da
Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro ndash trazem aspectos
proacuteximos agrave realidade vivida na eacutepoca pelos presos poliacuteticos do DOI-CODIRJ
[] dez dias apoacutes a prisatildeo fui levada de Satildeo Paulo [DOI-CODISP] para o
Rio [DOI-CODIRJ] de madrugada numa C-14 onde permaneci no banco de
traacutes entre dois agentes de grande porte No meio do caminho na Via Dutra
eles entraram por uma estradinha pararam o carro e me mandaram descer
aos berros Com fortes dores no corpo ndash especialmente nos rins ndash
queimaduras infectadas pelos choques eleacutetricos exausta dos interrogatoacuterios e
45
Os doze volumes do ldquoProjeto Ardquo estatildeo disponiacuteveis no Arquivo do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio
de Janeiro (GTMNRJ)
159
sem dormir haacute dias desembarquei meio trocircpega Gritaram impropeacuterios e
ordenaram que eu fugisse Como estava muito tonta sem saber o que pensar
ou fazer natildeo fiz nada Atiraram entatildeo repetidas vezes em volta de mim
que permaneci encostada em uma aacutervore gritaram vaacuterias vezes para que eu
fugisse Caiacute no chatildeo o que os fez parar de atirar e se jogarem em cima de
mim agraves gargalhadas Colocaram-me de volta no carro e continuamos a
viagem rumo ao DOI-CODI-RJ (Batista out 2004)
Assim quando chegavam ao DOI-CODIRJ apoacutes passarem pelo portatildeo de
entrada da Praccedila Lamartine Babo (Foto Nordm3) os presos preenchiam uma ficha de
identificaccedilatildeo e eram levados para a ldquosala roxardquo no andar teacuterreo do preacutedio dessa
instituiccedilatildeo (Foto Nordm2) Laacute em meio a interrogatoacuterio as ameaccedilas e torturas se
intensificavam perpetradas pelos integrantes de uma das trecircs turmas de interrogatoacuterio
preliminar de plantatildeo no momento
Cabe lembrar que tais turmas eram constituiacutedas por militares treinados para
conseguir extrair rapidamente dos presos o maior nuacutemero possiacutevel de informaccedilotildees
principalmente sobre a data hora e local de seu proacuteximo ldquopontordquo de encontro Afinal
caso esses agentes natildeo conseguissem tais dados logo nos primeiros dias natildeo chegariam
ao local a tempo de pegarem o outro militante clandestino que o preso encontraria A
partir do momento em que a ausecircncia desse militante fosse notada integrantes de sua
organizaccedilatildeo poliacutetica deduziriam o motivo e por proteccedilatildeo modificariam os locais dos
ldquoaparelhosrdquo e dos proacuteximos ldquopontosrdquo As informaccedilotildees do preso receacutem-capturado se
tornariam entatildeo desatualizadas o que dificultaria a investigaccedilatildeo dos agentes do DOI-
CODIRJ
As torturas infringidas aos presos eram mais intensas logo depois da prisatildeo
Lutando contra o tempo era comum deixar o preso em celas ldquosolitaacuteriasrdquo localizadas no
andar teacuterreo conforme jaacute indicado Dessa forma os presos receacutem-chegados ficavam
bem proacuteximos agrave sala de interrogatoacuterio a ldquosala roxardquo justamente por serem para laacute
160
levados com frequecircncia Como nas ldquosolitaacuteriasrdquo os presos ficavam sozinhos e natildeo
podiam contar com itens baacutesicos de higiene e proteccedilatildeo do corpo (tais como banheiro
chuveiro colchatildeo e cobertor) acabavam se sentindo ainda mais desestruturados e por
conseguinte desestabilizados Logo no momento inicial da prisatildeo quando os presos
natildeo eram submetidos agraves torturas fiacutesicas eram submetidos agraves torturas psicoloacutegicas das
ldquosolitaacuteriasrdquo as chamadas torturas brancas46
espeacutecie de degradaccedilatildeo fria sem violecircncia
humana expliacutecita
Por outro lado os presos receacutem-capturados tinham consciecircncia de que era naquele
momento inicial que mais poderiam prejudicar seus companheiros de organizaccedilatildeo
Diante disso normalmente tentavam dificultar o acesso dos militares agraves informaccedilotildees
lutando para resistir agraves torturas Apesar de muitas vezes fracassarem tentavam segurar
os dados que tinham ao menos ateacute passar o horaacuterio do proacuteximo ldquopontordquo que haviam
combinado com outro militante Portanto avalia-se que provavelmente o grau de
resistecircncia inicial do prisioneiro estava diretamente relacionado ao da intensidade da
tortura a ele perpetrada e vice-versa conforme analisa-se nos trechos da entrevista de
Ana de Miranda Batista abaixo destacados
[] o meu negoacutecio era ganhar tempo e o deles era conseguir informaccedilatildeo A
luta eacute essa nos primeiros dias eacute vocecirc dar o miacutenimo de informaccedilotildees e eles
querendo arrancar o maacuteximo de informaccedilatildeo Aiacute eles vecircm com a maacutexima de
que torturar eacute investigar [risos] E daiacute se precisar ateacute a morte O negoacutecio eacute
conseguir informaccedilatildeo
46
Em 1971 quando os ex-prisioneiros aqui entrevistados jaacute natildeo estavam mais no 1ordm BPE o projeto
ldquoTortura Limpardquo foi ali instalado Segundo Elio Gaspari o andar teacuterreo do DOI-CODIRJ sofreu obras
para que fossem construiacutedos quatro novos cubiacuteculos um foi forrado com isopor e amianto a fim de fazer
o prisioneiro sentir frio constantemente outro se tornou uma cacircmara de ruiacutedos pela qual o preso ouviria o
barulho por todo o tempo em que laacute estivesse o terceiro foi todo pintado de branco provocando dor na
vista do preso devido agrave claridade constante na cela o uacuteltimo transformou-se em um ambiente todo preto
natildeo fornecendo a quem estivesse em seu interior nenhuma claridade causando choque na vista quando
exposto a claridade normal (Gaspari 2002 189-190)
161
[] quando eu cheguei agrave OBAN [que na eacutepoca de sua prisatildeo jaacute havia se
transformado em DOI-CODISP] jaacute era noite eles estavam tomando cerveja
comemorando que eu tinha caiacutedo E aiacute eu passei o ponto da Ana Maria do
Carlos Eugecircnio com o Bacuri Porque laacute era um inferno [] laacute eu passei um
monte de ponto e todos eles eram procurados Entatildeo aiacute eacute que a barra pegou
mesmo (Batista 17 nov 2004)
Os trechos acima mesmo sendo baseados em uma experiecircncia vivida no DOI-
CODISP trazem muitas informaccedilotildees sobre o cotidiano prisional vivido de forma
geral em todos os DOI-CODI Afinal conforme ressaltado anteriormente esses oacutergatildeos
estavam espalhados por todas as jurisdiccedilotildees territoriais do Brasil e seguiam
basicamente a mesma organizaccedilatildeo Portanto pode-se concluir aqui que em ambos os
DOI-CODI no momento inicial da prisatildeo existia essa relaccedilatildeo entre a intensidade das
sessotildees de tortura adotadas pelos militares e o tamanho da vontade de resistir do preso
Tal relaccedilatildeo se torna ainda mais perceptiacutevel pela frustraccedilatildeo sentida na fala de Ana
ao afirmar ter passado muitos ldquopontosrdquo inclusive o de ldquoBacurirdquo codinome de Eduardo
Collen Leite seu companheiro de organizaccedilatildeo Ana no momento da entrevista sabia
que ldquoBacurirdquo havia sido preso em agosto de 1970 alguns dias depois de sua prisatildeo e
que havia morrido sob tortura Quando admite ter entregado aos agentes do DOISP o
ponto de encontro Ana se culpa O depoimento eacute o momento em que Ana aproveita
para se justificar ao demonstrar que acredita no quanto a resistecircncia agrave tortura era
importante no iniacutecio da prisatildeo mas como ela se tornava limitada sendo rapidamente
derrotada Resistir ao DOI-CODI era muito difiacutecil jaacute que os agentes haviam sido
fortemente preparados para a ldquoguerra internardquo e natildeo por acaso se tornariam os grandes
responsaacuteveis pela desarticulaccedilatildeo das organizaccedilotildees de luta armada
O silecircncio dos demais entrevistados sobre as informaccedilotildees que concederam ou natildeo
aos agentes das turmas de interrogatoacuterio preliminar serve aqui como mais um
argumento para a tese de que apesar da grande resistecircncia inicial dos presos poliacuteticos e
162
tambeacutem por causa dela a violecircncia vivida no DOI-CODIRJ nos primeiros dias de
prisatildeo era intensa e quase sempre prevalecia Afinal caso natildeo fosse desse modo os
entrevistados provavelmente orgulhar-se-iam de sua resistecircncia e por conseguinte natildeo
lhes faltariam motivos para lembraacute-la e narraacute-la Logo o silecircncio aqui tambeacutem se torna
revelador
Atraveacutes desse silecircncio destaca-se ainda que talvez pelos mesmos motivos que
Ana opta por lembrar e justificar-se os demais entrevistados optam por silenciar e tentar
esquecer Todos apesar de agirem de acordo com suas personalidades e experiecircncias de
vida provavelmente se sentem culpados ou envergonhados por natildeo terem aguentado
esconder o que sabiam ateacute o fim e poupado muitos de seus companheiros da prisatildeo e ateacute
mesmo da morte
A segunda fase
Passada esta primeira fase da prisatildeo no DOI-CODIRJ que durava em meacutedia uma
ou duas semanas os presos eram transferidos para celas maiores Estas continham
banheiro colchatildeo e em grande parte das vezes outros prisioneiros
Nessa segunda etapa os presos natildeo ficavam isentos das idas agrave ldquosala roxardquo poreacutem
estas natildeo eram tatildeo frequentes quanto anteriormente Afinal a busca desesperada por
ldquopontosrdquo codinomes ou ldquoaparelhosrdquo natildeo mais cabia pois esses prisioneiros jaacute estavam
distantes de suas organizaccedilotildees haacute tempo suficiente para que suas prisotildees fossem
notadas e por conseguinte para que as informaccedilotildees que tivessem jaacute natildeo fossem mais
ldquoquentesrdquo
Nessa fase as visitas agrave ldquosala roxardquo davam-se por outros motivos Normalmente
para ajudar em anaacutelises de novas suspeitas Os agentes das turmas de interrogatoacuterio
preliminar poderiam levar um preso mais antigo para a ldquosala roxardquo para ser acareado
163
com um receacutem-chegado com quem suspeitavam estar de alguma forma relacionado
Poderiam tambeacutem levaacute-lo ateacute laacute para ser interrogado a respeito de novas e possiacuteveis
accedilotildees da esquerda armada conforme indicassem as informaccedilotildees recebidas pelo CODI
conjugadas agraves anaacutelises feitas pelo Setor de anaacutelise e informaccedilotildees sobre algum material
apreendido pela Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo Eacute o que pode-se concluir a partir da
caracterizaccedilatildeo sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI quando colocadas em diaacutelogo
com as informaccedilotildees trazidas pelos trechos destacados abaixo
ldquoNome codinome e aparelhordquo isso eacute que eles querem saber de imediato
Depois que passa algum tempo isso natildeo interessa mais Aiacute eles tecircm um
trabalho mais analiacutetico que era para saber de outros que acabaram de cair o
que eles tecircm de quecirc jaacute participaram o que estaacute acontecendo [] (Batista 17
nov 2004)
[] de quem era preso eles queriam duas informaccedilotildees imediatas eles
comeccedilavam a te bater e soacute pediam o ponto o local de encontro que vocecirc
tivesse com algueacutem e o aparelho que era o apartamento alugado ou qualquer
coisa assim Era isso o que eles queriam basicamente [] (Freire 28 jun
2004)
Como o DOI-CODIRJ tinha poucas celas e muita rotatividade quando o preso
natildeo mais interessava agraves investigaccedilotildees era normalmente mandado para o DOPS onde
era aberto o processo de crime poliacutetico e ficava detido ateacute o primeiro julgamento ndash
como ocorreu com Antocircnio de Carvalho Dulce Pandolfi e Ana de Miranda Batista
Poreacutem quando o seu caso tivesse relaccedilatildeo com uma das outras Forccedilas Armadas o preso
era transferido para a instituiccedilatildeo repressiva diretamente ligada a esta ndash como aconteceu
com Fernando ao ser levado do DOI-CODIRJ para o CISA oacutergatildeo de repressatildeo ligado agrave
Aeronaacuteutica ndash onde permaneceria ateacute quando seus agentes julgassem necessaacuterio Aleacutem
disso caso os agentes do DOI-CODIRJ constatassem que o prisioneiro natildeo estava
164
envolvido diretamente em nenhum crime poliacutetico ele poderia ser posto em liberdade
provisoacuteria ndash como ocorreu com Padre Maacuterio e Ceciacutelia Coimbra
Vale lembrar que o DOI-CODIRJ natildeo era um presiacutedio comum Laacute os suspeitos de
crimes poliacuteticos natildeo estavam cumprindo pena baseada em um processo e sim na
menagem estipulada pelo Coacutedigo Processual Militar criado pelo decreto-lei Nordm1002
de outubro de 1969 Por meio da menagem os suspeitos de crimes poliacuteticos ndash que a
partir do AI-5 tinham passado a ser julgados pela Justiccedila Militar ndash poderiam ser
arbitrariamente detidos e levados ao quartel responsaacutevel pela Regiatildeo Militar onde
estivessem A menagem era justificada como uma forma de prisatildeo cautelar que visava
evitar o conviacutevio do acusado com pessoas que jaacute estivessem condenadas ateacute o seu
julgamento em primeira instacircncia Dessa forma os suspeitos de crimes poliacuteticos da
Regiatildeo Militar que englobava o Rio de Janeiro ficavam detidos no DOI-CODIRJ
localizado no quartel do 1ordm BPE e ali permaneciam presos sem direito a formalidades
convencionais de uma prisatildeo tais como as visitas de familiares e de um advogado por
um periacuteodo que chegava ateacute 30 dias podendo ser prorrogado por mais 60 dias
Poreacutem como ressaltado anteriormente quando novos grupos de suspeitos laacute
chegavam a saiacuteda dos presos mais antigos era impulsionada mesmo sem ainda terem
sido julgados No entanto como esses presos ainda estavam sob a menagem e por isso
natildeo poderiam ir para um presiacutedio comum a assessoria juriacutedica e policial do DOIRJ ou
os transferia ou os colocava em liberdade provisoacuteria controlando nesse uacuteltimo caso
para que natildeo saiacutessem da respectiva Regiatildeo Militar ateacute o seu julgamento em primeira
instacircncia
[] fiquei trecircs meses laacute na PE na Poliacutecia do Exeacutercito na Rua Baratildeo de
Mesquita Depois fui levada para o DOPS [] laacute na PE a gente ficava nessa
triagem sendo torturado ou ouvindo grito de tortura e esperando laacute o tempo
ateacute eles resolverem a nossa situaccedilatildeo e sermos transferidos Entatildeo laacute era um
165
esquema de uma circulaccedilatildeo muito grande de pessoas Daiacute o quartel estava
sempre cheio porque de repente quando caiacutea alguma organizaccedilatildeo
apareciam laacute 30 ou 40 pessoas presas naquela noite e aquilo ficava
abarrotado de gente Entatildeo tinha momentos que a coisa ficava mais
tranquila e tinha momentos que aquilo ali ficava realmente lotado [] a PE
era isso a PE natildeo tinha uma rotina desses presiacutedios da linha tradicional laacute
ningueacutem recebia visita porque era a fase completamente ilegal da sua prisatildeo
[] (Pandolfi 5 fev 2003)
Outro aspecto interessante da menagem que interferia no cotidiano prisional do
DOI-CODIRJ satildeo as regras para o tempo de inquiriccedilatildeo estipuladas pelo decreto-lei nordm
100269 Este impunha que exceto em casos de urgecircncia os presos que estivessem sob
menagem deveriam prestar depoimentos durante o dia das sete e agraves 18 horas Aleacutem
disso esses prisioneiros natildeo poderiam ser inquiridos por mais de quatro horas
consecutivas tendo direito apoacutes esse periacuteodo a um intervalo de meia hora antes de
voltarem a ser interrogados
Art 19 As testemunhas e o indiciado exceto caso de urgecircncia inadiaacutevel que
constaraacute da respectiva assentada devem ser ouvidos durante o dia em
periacuteodo que medeie entre as sete e as dezoito horas
[]
Inquiriccedilatildeo Limite de tempo
2ordm A testemunha natildeo seraacute inquirida por mais de quatro horas consecutivas
sendo-lhe facultado o descanso de meia hora sempre que tiver de prestar
declaraccedilotildees aleacutem daquele termo O depoimento que natildeo ficar concluiacutedo agraves
dezoito horas seraacute encerrado para prosseguir no dia seguinte em hora
determinada pelo encarregado do inqueacuterito (Decreto-lei nordm 1002 21 out
1969)
A partir disso faz mais sentido ainda as diferentes distacircncias existentes entre as
celas e a sala de tortura nas duas fases da prisatildeo Como o prazo maacuteximo estipulado para
um interrogatoacuterio era de quatro horas tendo o prisioneiro apoacutes este tempo direito a um
166
descanso de ao menos meia hora no primeiro momento da prisatildeo no DOI-CODIRJ
deixar o preso perto do local onde eram feitos os interrogatoacuterios era um facilitador Essa
proximidade entre a cela e a ldquosala roxardquo natildeo era necessaacuteria para o preso que estivesse na
segunda etapa da prisatildeo jaacute que ele natildeo seria transportado de um lugar para o outro com
tamanha frequecircncia e provavelmente os interrogatoacuterios que lhe seriam destinados nem
chegassem agraves quatro horas permitidas pelo referido Decreto-lei
Nas narrativas de todos os entrevistados estatildeo presentes as experiecircncias vividas
nas duas fases da prisatildeo Todos eles passaram os primeiros dias em solitaacuterias e
posteriormente ficaram em celas maiores Padre Maacuterio foi a uacutenica exceccedilatildeo Sua prisatildeo
no DOI-CODIRJ natildeo passou por essas duas etapas encaixando-se portanto em um
dos casos extraordinaacuterios dessa instituiccedilatildeo Afinal desde o momento em que foi levado
para o preacutedio do DOI-CODIRJ Padre Maacuterio afirma ter dividido uma cela no segundo
andar com outros padres e depois ter sido transferido para uma cela do primeiro andar
onde ficou sozinho e de frente para as celas de jovens militantes de sua Associaccedilatildeo
conforme pode-se conferir no trecho abaixo
[] foi exatamente em setembro logo nas primeiras duas semanas em que
noacutes estaacutevamos presos que eles me passaram para o primeiro andar porque
estaacutevamos todos no segundo andar [] entatildeo nos primeiros dias noacutes
padres passamos todos juntos [] e depois fomos separados Entatildeo me
colocaram sozinho nessa cela do andar de baixo bem em frente agraves celas dos
jovens que estavam presos no CENIMAR e que foram levados para laacute para
serem torturados [] (Prigol 28 set 2004)
Essa diferenccedila no cotidiano prisional encontra coerecircncia quando embasada por
alguns argumentos aqui levantados Como a fase em que os presos ficavam nas
ldquosolitaacuteriasrdquo tinha por finalidade desestruturaacute-los e principalmente deixaacute-los mais
proacuteximos da sala de tortura para onde seriam levados com frequecircncia essa fase natildeo
167
deveria ser destinada a um padre sem envolvimento em uma organizaccedilatildeo de luta
armada Os militares teriam que responder agrave Igreja caso algo de mais grave lhe
acontecesse dentro do DOI-CODIRJ Colocar sua vida em risco deveria ser uma opccedilatildeo
somente se ele tivesse informaccedilotildees preciosas para a neutralizaccedilatildeo da guerrilha urbana
principal objetivo do grupo de repressatildeo em 1970 conforme indicado na monografia do
coronel Pereira analisada no primeiro capiacutetulo
Entatildeo como a associaccedilatildeo da qual participava a ACO natildeo tinha envolvimento
com a luta armada a morte de Padre Maacuterio poderia causar desnecessariamente uma
tensatildeo ateacute entatildeo natildeo deflagrada entre o Exeacutercito e a Igreja Catoacutelica 47
Aleacutem disso
como se encontrava em uma faixa etaacuteria mais elevada com cerca de 40 anos ele tinha o
agravante de ter uma sauacutede mais fraacutegil que grande parte dos presos do DOI-CODIRJ
que eram majoritariamente jovens estudantes Assim o tratamento prisional
diferenciado ali recebido por Padre Maacuterio visava diminuir as chances que ele tinha de
desenvolver problemas decorrentes de torturas Essa interpretaccedilatildeo encontra fortes
indiacutecios em um dos trechos de sua entrevista
[] a mim eles soacute colocaram o fio eleacutetrico aqui [aponta para um dedo da
matildeo esquerda] e no peacute esquerdo eu fiquei sabendo que no mesmo lado do
corpo eu natildeo sentiria tatildeo forte mas mesmo assim eu resisti resisti Bom
entatildeo diante da prisatildeo da gente eu sofri tambeacutem torturas mas eu depois
que fingi estar sentindo o coraccedilatildeo eles deixaram de dar choques [risos]
Cada um tem que se defender de alguma forma (Prigol 28 set 2004)
Afinal por meio da descriccedilatildeo acima destacada nota-se que apesar de natildeo
excluiacuterem Padre Maacuterio das sessotildees de tortura uma vez que era esse o procedimento de
investigaccedilatildeo do DOI-CODIRJ existia de fato certo temor em causar-lhe graves
47
Para informaccedilotildees sobre as tensotildees que ocorreram entre a Igreja Catoacutelica e a ditadura militar ver
Serbin 2001 17-77
168
sequelas Dessa forma por mais que Padre Maacuterio relate que sua atitude de defesa
conseguiu inibir a accedilatildeo daqueles agentes conclui-se aqui que caso ele natildeo tivesse as
caracteriacutesticas profissionais morais etaacuterias e ideoloacutegicas aqui descritas certamente tal
inibiccedilatildeo natildeo ocorreria Ao menos natildeo na mesma proporccedilatildeo
Testando a resistecircncia
No ano de 1970 esta preocupaccedilatildeo em evitar sequelas evidentemente natildeo se
aplicava a jovens presos que tivessem algum tipo de ligaccedilatildeo com organizaccedilotildees
oposicionistas adeptas da luta armada Conforme pode-se conferir nos relatos sobre os
danos agrave sauacutede que Dulce Fernando e Ana destacam ter sofrido por conta das torturas
recebidas no DOI-CODIRJ
[] fiquei tomando medicaccedilatildeo especial porque eu estava muito mal estava
com uma paralisia tambeacutem por causa da tortura tinha ficado completamente
travada aquilo vocecirc vai contraindo contraindo e deixava vocecirc semiparaliacutetica
[] (Pandolfi 5 fev 2003)
Eu desmaiava acordava e o pau comia desmaiava acordava e o pau
comia Natildeo foi faacutecil natildeo Eu lembro que quando eu saiacute da PE um mecircs
depois eu fazia assim [passa a matildeo no ouvido] e vinha sangue vinha pus eu
estava bem abalado mesmo (Freire 28 jun 2004)
[] eu fiquei um mecircs no Rio no DOI-CODI Desse mecircs uma semana eu
fiquei no HCE [Hospital Central do Exeacutercito] eu tremia sem parar eu estava
cheia de ferida (Batista 17 nov 2004)
Em todas as fases da prisatildeo para cuidar dos estragos causados agrave sauacutede do preso
durante ou apoacutes a sessatildeo de tortura existiam enfermeiros e meacutedicos no DOI-CODIRJ
Os enfermeiros tratavam os prisioneiros nas celas conforme a recomendaccedilatildeo dos
169
meacutedicos Jaacute esses aleacutem de examinarem e receitarem cuidados especiais aos presos
machucados tambeacutem auxiliavam as turmas de interrogatoacuterio preliminar durante as
torturas averiguando os sinais vitais dos presos a fim de constatarem o quanto eles
ainda poderiam suportar No entanto quando a tortura saiacutea de controle de tal forma que
algum preso ficasse tatildeo mal que natildeo respondesse agrave medicaccedilatildeo e aos cuidados meacutedicos
feitos dentro do quartel esse poderia ser levado pelas turmas de busca e apreensatildeo
conforme demonstrado no primeiro capiacutetulo ateacute o Hospital Central do Exeacutercito48
onde
receberiam um tratamento mais especializado
A existecircncia de meacutedicos no DOI-CODIRJ pode ser averiguada por meio da
confissatildeo de Amilcar Lobo noticiada pela Revista Eacutepoca apresentada abaixo
(EacutePOCA 27 nov 2000 104)
Meacutedico de formaccedilatildeo psicanaliacutetica ele foi denunciado por muitos ex-prisioneiros
por exercer a profissatildeo prestando assessoria a torturas entre 1970 e 1974 no DOI-
CODIRJ Diante disso em 1988 teve o seu registro de meacutedico cassado pelo Conselho
Regional de Medicina do Rio de Janeiro A atuaccedilatildeo de Amilcar Lobo assim como a de 48
O Hospital Central do Exeacutercio (HCE) ainda estaacute localizado no mesmo local da eacutepoca na Rua Francisco
Manoel nordm 126 no bairro de Benfica na cidade do Rio de Janeiro Para mais informaccedilotildees acessar
httpwwwhceebmilbr
170
meacutedicos e enfermeiros em geral tambeacutem eacute encontrada nos depoimentos aqui
analisados conforme pode-se conferir nos trechos destacados a seguir
[] a primeira pessoa que me visitou antes de eu ser torturada foi um
meacutedico o Amilcar Lobo que depois eu denunciei o lsquofilho da putarsquo e a gente
conseguiu cassaacute-lo como meacutedico [] ele acompanhava as torturas antes
durante e depois era o assessor de tortura ele dizia ldquo- Daacute uma paradinha
agorardquo Isso para vocecirc aguumlentar neacute Entatildeo ele entrou na minha cela e me
perguntou se eu era cardiacuteaca tirou a minha pressatildeo e eu natildeo entendendo
nada Ele tinha um esparadrapo aqui [aponta para o lado esquerdo do peito]
para a gente natildeo ver o nome dele Eu fiquei sabendo o nome dele porque
meses depois eu jaacute estava na cela de Dulce [Pandolfi]49
quando ele
porque a Dulce ficou praticamente sem mexer as matildeos [] e ele entrou e
esqueceu o receituaacuterio com o nome dele noacutes olhamos e eu quando saiacute de laacute
o denunciei Anos depois a gente conseguiu que ele fosse cassado []
(Coimbra 30 nov 2004)
[] o meacutedico que vinha te ver vinha para ver as suas condiccedilotildees se tinha que
parar ou se podia continuar a te torturar Os caras batiam muito localizado
em partes que vocecirc resiste mais que satildeo nas naacutedegas nessa parte daqui
[aponta para as costas] Entatildeo satildeo lugares que o seu corpo suporta mais []
(Freire 28 jun 2004)
[] como eu fiquei muito mal eu tive cuidados meacutedicos o tempo quase todo
quer dizer claro que eram cuidados meacutedicos no sentido de me prepararem
para apanhar mais para ser mais torturada queriam evitar que eu morresse
porque politicamente natildeo interessava [] tinha laacute dois enfermeiros de rotina
e tinham tambeacutem dois meacutedicos o mais presente o que sempre visitava a
gente era o Amilcar Lobo Em alguns casos ele participou de algumas
sessotildees de tortura no meu eu me lembro dele dizendo ldquo- ela aguentardquo
tomando minha pressatildeo dizendo que eu aguentava apanhar mais ainda
(Pandolfi 5 fev 2003)
49
Dulce e Ana e Dulce e Ceciacutelia dividiram celas em parte do periacuteodo em que estiveram presas no DOI-
CODIRJ A convivecircncia que laacute tiveram seraacute analisada ainda neste capiacutetulo
171
De fato a tortura estava presente em grande parte do cotidiano do DOI-CODIRJ
e para que fosse eficiente e natildeo causasse maiores problemas tal como mortes
indesejadas ao redor dela havia todo um aparato Esse era formado tanto por
enfermeiros e meacutedicos como tambeacutem por outras especificidades tais como teacutecnicas
treinamentos e equipamentos que seratildeo tratados a seguir
Os meacutetodos da tortura
O meacutedico psicanalista Heacutelio Pelegrino traz uma oacutetima definiccedilatildeo sobre como
funciona a tortura poliacutetica
[] a tortura busca agrave custa do sofrimento corporal insuportaacutevel introduzir
uma cunha que leve agrave cisatildeo entre o corpo e a mente E mais do que isto ela
procura a todo preccedilo semear a discoacuterdia e a guerra entre o corpo e a mente
Atraveacutes da tortura o corpo torna-se nosso inimigo e nos persegue Eacute este o
modelo baacutesico no qual se apoacuteia a accedilatildeo de qualquer torturador [] na tortura
o corpo volta-se contra noacutes exigindo que falemos Da mais iacutentima espessura
de nossa proacutepria carne se levanta uma voz que nos nega na medida em que
pretende arrancar de noacutes um discurso do qual temos horror jaacute que eacute a
negaccedilatildeo de nossa liberdade A tortura nos impotildee a alienaccedilatildeo total de nosso
proacuteprio corpo tornando estrangeiro a noacutes e nosso inimigo de morte
(Pelegrino 5 jun 1982 3)
No interior do DOI-CODIRJ em nenhuma das fases da prisatildeo os presos poliacuteticos
eram poupados de torturas No iniacutecio as visitas agrave ldquosala roxardquo eram mais constantes mas
durante todo o periacuteodo em que permaneciam no DOI-CODIRJ os prisioneiros eram
levados para laacute e laacute eram torturados Nessa sala existiam equipamentos proacuteprios
tornando ainda maior a gama de possibilidades de tortura a serem perpetradas aos
prisioneiros Devido a essa diversidade as torturas recebiam nomes proacuteprios para serem
identificadas pelos oficiais das turmas de interrogatoacuterio preliminar do DOIRJ Tais
172
nomes na maior parte das vezes eram irocircnicos e serviam para demonstrar como ali a
praacutetica da tortura era usual e ao mesmo tempo encarada com naturalidade e frieza
pelos seus executores
Em A Tortura tomo V do ldquoProjeto Ardquo (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985)
encontram-se a caracterizaccedilatildeo e os nomes dessas torturas Comumente citadas pelos
presos poliacuteticos da ditadura militar do Brasil a identificaccedilatildeo dessas torturas foi baseada
sobretudo na anaacutelise da documentaccedilatildeo dos processos judiciais da eacutepoca Afinal muitas
vezes anexadas a esses processos encontram-se denuacutencias sobre torturas feitas por
prisioneiros poliacuteticos nas auditorias militares Essas denuacutencias vatildeo ao encontro de
muitas das descriccedilotildees encontradas nas narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos Antocircnio
Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia construiacutedas jaacute em tempos democraacuteticos
(2002-2004) Algumas delas satildeo destacadas a seguir
Capuz tortura psicoloacutegica Impedimento da visatildeo por meio de um capuz
ficando o indiviacuteduo incapacitado de se defender dos golpes a ele direcionados
Espancamento tapas socos e pontapeacutes aplicados em regiotildees como rins
estocircmago e diafragma
Telefone eletrochoque dado por um telefone de campainha do Exeacutercito
possuindo dois fios longos que satildeo ligados ao corpo molhado normalmente nas
partes genitais e nos mamilos aleacutem dos ouvidos dentes liacutengua e dedos
Pau-de-arara um dos meacutetodos mais antigos de tortura pelo qual se pendura a
viacutetima em posiccedilatildeo de ldquofrango assadordquo nua e de cabeccedila para baixo em um pau
preso no alto por duas barras de ferro causando dores terriacuteveis na cabeccedila e em
todo corpo
Choques eleacutetricos normalmente complemento do pau-de-arara Caracteriza-se
por enviar descargas eleacutetricas em contato com o corpo nu e molhado atraveacutes de
173
um magneto com dois terminais estando um geralmente nos oacutergatildeos genitais e
outro em alguma extremidade sensiacutevel do corpo como liacutengua mamilos e dedos
Palmatoacuteria raquete de madeira aplicada fortemente nas matildeos peacutes naacutedegas e
costas da viacutetima
Afogamento Complemento do pau-de-arara Pode ser aplicado ou por meio de
um pequeno tubo de borracha que lanccedila aacutegua na boca e nas narinas do
torturado ou atraveacutes de uma toalha molhada depositada tambeacutem na boca deste
ao mesmo tempo em que um jato drsquoaacutegua eacute lanccedilado em suas narinas
No referido tomo V do Projeto Brasil Nunca Mais encontram-se trechos das
denuacutencias feitas por Dulce Pandolfi nas auditorias militares em 1970 e tambeacutem por seu
advogado Dr Heleno Fragoso Comparando partes dessas denuacutencias de 1970 com
trechos da entrevista concedida por Dulce em 2003 nota-se que haacute muitos pontos em
comum No entanto percebe-se que em sua narrativa de 2003 as torturas satildeo relatadas
de forma mais impessoal e que talvez pelo tempo que separa este depoimento daquele
de 1970 alguns detalhes se perderam foram esquecidos ou mesmo silenciados Eacute o que
pode-se perceber nas transcriccedilotildees feitas a seguir
Nordm 433 Dulce Chaves Pandolfi Prof estudante Idade 23 Local Rio de
Janeiro (CODI) Ano 1970 Apelaccedilatildeo 39778 Vol 1 PAacuteG 328v LVI
PARTE auto de qualificaccedilatildeo e interrogatoacuterio ndash Auditoria
[] que no quartel da PE na Rua Baratildeo de Mesquita assinou sob torturas o
depoimento () que na sala de torturas da PE foi despida e aplicaram-lhe
choques eleacutetricos nas matildeos que foi levada para uma cela onde deram-lhe
um banho frio e sob o pretexto de ensaboaacute-la os torturadores alisavam o seu
corpo que ao retornar agrave sala de torturas foi colocada no chatildeo com um
jacareacute sobre seu corpo nu que depois foi pendurada num pau-de-arara que
levou choques na vagina no acircnus nos seios na cabeccedila e no restante do
corpo [] que ficou em estado de choque vomitando sangue que por 15
174
dias ficou totalmente paraliacutetica [] que foi exposta perante 20 oficiais
como numa demonstraccedilatildeo de aulas de torturas pau-de-arara e choques []
(Arquidiocese de Satildeo Paulo tomo V 1985 757)
Nordm 433 Dulce Chaves Pandolfi Prof estudante Idade 21 Local R de
Janeiro Ano 1970 Apelaccedilatildeo 39778 Vol 2ordm PAacuteG 712807 LVI
PARTE advogado
[] Com a palavra o Dr Heleno Fragoso defensor da acusada Dulce Chaves
Pandolfi este declarou que ela foi presa em agosto de 1970 tendo sido
submetida a uma seacuterie de torturas tendo inclusive o Delegado do DOPS
mandado submetecirc-la a exame de corpo de delito para salvaguardar a sua
responsabilidade [] Natildeo usaremos a palavra do co-reacuteu Paulo Henrique
Oliveira da Rocha Lins que foi ldquoforccedilado a presenciar a acusada DULCE
PANDOLFI sendo pisoteada nua no chatildeordquo (cf fls 325) Remeteremos o E
Conselho ao laudo fls 358 onde dois meacutedicos legistas do Instituto Meacutedico
Legal examinam a acusada e concluem pela verossimilhanccedila a
plausibilidade de suas alegaccedilotildees no sentido de que fora espancada
constatando os vestiacutegios das lesotildees Estaacute laacute a fls 358 a verdade do
inqueacuterito
Esse sofrimento deve ter sido tanto maior quanto era possiacutevel agrave acusada
fornecer as informaccedilotildees que seus torturadores exigiam [] (Arquidiocese de
Satildeo Paulo tomo V 1985 759)
[] vocecirc apanhava era super torturada ali em 1970 natildeo tinha escapatoacuteria
esse era o procedimento era a rotina e aiacute depois da tortura vocecirc jaacute toda
cheia de hematomas passando mal vocecirc era levada para uma cela muitas
vezes essas pessoas saiacuteam da sala de tortura e iam direto para essa cela onde
eu estava entatildeo eu tambeacutem presenciei muitas pessoas que chegavam laacute
completamente quebradas arrebentadas e essa era a nossa vida []
[] tinha o pau-de-arara que eu fui pendurada vaacuterias vezes nele com os
ferros verdes e as cordas tinha o tal telefone de choque que era para mim
um dos piores instrumentos era um aparelho de choque eleacutetrico tinha a
cadeira que eles tambeacutem te amarravam faziam mil sacanagens e tinha uns
enfim tinha uma espeacutecie de chicote que eles te batiam um porrete A tortura
tem vaacuterios procedimentos e tinha na PE nessa eacutepoca um jacareacute Ele natildeo
ficava na sala de tortura Esse jacareacute ficava do lado de fora Quando algumas
pessoas foram presas eles trouxeram o jacareacute para amedrontar Colocavam o
175
jacareacute sobre o seu corpo Era um filhote de jacareacute mas razoavelmente
grande quer dizer de um metro mais ou menos e era mais um dos
instrumentos que eles usavam [] fiquei tomando medicaccedilatildeo especial
porque eu estava muito mal estava com uma paralisia tambeacutem por causa da
tortura tinha ficado completamente travada eacute aquilo vocecirc vai contraindo
contraindo e deixava vocecirc semiparaliacutetica [] (Pandolfi 5 fev 2003)
A partir da comparaccedilatildeo dos trechos dos diferentes depoimentos acima destacados
dados sobre cenaacuterios e temporalidades distintas nota-se que a narrativa construiacuteda por
Dulce Pandolfi em 2003 eacute muito menos detalhada do que a por ela proferida em 1970
Percebe-se portanto no caso de Dulce que o presente vivido em 2003 de certa forma
agia sobre sua memoacuteria do passado ditatorial impulsionando o silecircncio sobre as
minuacutecias dos sofrimentos vividos no DOI-CODIRJ Logo nas memoacuterias de Dulce
nota-se uma inversatildeo da perspectiva de que o presente democraacutetico promovia uma
narrativa que enfatizasse os detalhes das torturas sofridas durante a ditadura militar a
fim de solidificar as conquistas ateacute entatildeo conseguidas e alcanccedilar outras tantas no futuro
Talvez em 2003 Dulce por jaacute ser uma mulher madura e uma profissional
reconhecida entendesse que o constrangimento trazido pela exposiccedilatildeo total de suas
memoacuterias sobre as torturas sofridas no passado superasse a vontade de denunciaacute-las no
presente Afinal naquele ano a democracia dava fortes sinais de consolidaccedilatildeo uma vez
que Lula ex-liacuteder sindical e perseguido poliacutetico pela ditadura acabava de assumir a
Presidecircncia do Brasil e o Estado brasileiro jaacute vinha reconhecendo sua responsabilidade
diante dos abusos da eacutepoca militar atraveacutes da concessatildeo de reparaccedilotildees financeiras agraves
famiacutelias dos militantes poliacuteticos desde entatildeo desaparecidos (lei nordm 914095) e agraves
viacutetimas de torturas em prisotildees poliacuteticas do periacuteodo (lei nordm 1055902)
Jaacute em 1970 os detalhes sobre as torturas sofridas por Dulce ainda eram
extremamente recentes e portanto muito presentes em sua memoacuteria Aleacutem disso tinha
consciecircncia de que no instante de seu depoimento muitos de seus companheiros
176
continuavam a sofrer dentro dos oacutergatildeos de repressatildeo com as mesmas torturas que havia
recebido E principalmente como estava defendendo-se perante um tribunal a
exposiccedilatildeo dos detalhes de suas torturas apresentava-se como uma arma importante na
luta em prol de sua liberdade
Diante disso enquanto Dulce relata em sua entrevista saber do uso de um filhote
de jacareacute como mais um instrumento de tortura utilizado no DOI-CODIRJ sem no
entanto afirmar ter passado por tal experiecircncia Ceciacutelia Coimbra em 2004 narra que
esse filhote de jacareacute havia sido colocado pelos militares sobre seu corpo nu
[] me botaram nua me amarraram numa cadeira e me puseram um filhote
de jacareacute que era um filhote de jacareacute que eles puxavam por uma corda no
pescoccedilo do pobre do jacareacute Era um filhote e aiacute eles puxavam o jacareacute
botavam o jacareacute em cima Olha era uma coisa horriacutevel Nessa hora eu
desmaiei neacute Natildeo aguentei [] (Coimbra 30 nov 2004)
Durante sua entrevista em 2004 Ceciacutelia descreve ter passado pela mesma
situaccedilatildeo de tortura que Dulce havia descrito em seu depoimento agrave Justiccedila Militar em
1970 mas que no presente em 2003 optou por relatar de forma impessoal Isso se
justifica pelo fato de para Ceciacutelia a descriccedilatildeo dos detalhes ainda ser essencial Afinal
Ceciacutelia eacute uma das fundadoras e ativistas assiacuteduas do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio
de Janeiro (GTNMRJ) onde ocupava entatildeo o cargo de vice-presidente
Eacute evidente portanto que na vida de Ceciacutelia a narrativa sobre os sofrimentos
acarretados pela repressatildeo militar ainda era arma na luta que travava para a
solidificaccedilatildeo das conquistas e para a concretizaccedilatildeo de outras tantas que julgava serem
igualmente importantes Para ela diferentemente de Dulce esse tipo de narrativa era
mais que sua memoacuteria pessoal dizia respeito tambeacutem a seu ofiacutecio Acreditava que o seu
sucesso pessoalprofissional dependia do detalhamento da memoacuteria sobre tais violaccedilotildees
177
o que colocava tais detalhes em um lugar de mais faacutecil aceitaccedilatildeo e por conseguinte
exteriorizaccedilatildeo
Mediante os depoimentos de Dulce e Ceciacutelia que chegaram a dividir cela no DOI-
CODIRJ como poderaacute ser visto paacuteginas agrave frente conclui-se que em meados de 1970
um filhote de jacareacute era utilizado para torturar os presos poliacuteticos do 1ordm BPE O uso
desse tipo de tortura eacute aqui entendido mais por seus efeitos psicoloacutegicos do que fiacutesicos e
como sendo destinado mais agraves presas do que aos presos poliacuteticos Afinal apesar de
tocar nos corpos das viacutetimas como acontece durante as torturas fiacutesicas aparentemente
o jacareacute que era dominado por um militar atraveacutes de uma corda amarrada em seu
pescoccedilo natildeo as atacava ou seja natildeo as causava lesotildees externas Era claramente
utilizado com o intuito de ameaccedilaacute-las Dessa forma mesmo sendo efetuado atraveacutes da
accedilatildeo direta do torturador e mediante o contato fiacutesico esse mecanismo de tortura tinha
por objetivo causar danos exclusivamente psicoloacutegicos Como normalmente as
mulheres possuem mais sensibilidades e fobias relacionadas ao contato com animais
provavelmente esse tipo de tortura atingisse maior eficiecircncia quando destinado agraves
presas
Conforme jaacute analisado e inclusive indicado pelo nome Destacamento de
Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) os presos do DOIRJ estavam ali para fornecer
informaccedilotildees que levassem agrave neutralizaccedilatildeo das organizaccedilotildees poliacuteticas de esquerda
Assim de acordo com a necessidade da raacutepida extraccedilatildeo de tais dados caracterizada
anteriormente natildeo eacute difiacutecil concluir que o clima de ameaccedila e tortura estivesse por toda
parte do preacutedio Portanto percebe-se que as torturas no DOI-CODIRJ de 1970 natildeo se
limitavam agraves fiacutesicas e nem agrave ldquosala roxardquo elas se apresentavam sob diversas faces em
vaacuterios momentos e lugares do edifiacutecio
178
As torturas psicoloacutegicas eram variadas Aleacutem da degradaccedilatildeo inicial que o
desconforto das celas ldquosolitaacuteriasrdquo trazia ao prisioneiro mesmo nas celas coletivas os
presos eram submetidos a muitos outros artifiacutecios desse tipo de tortura tais como luzes
das celas constantemente acesas a fim de que perdessem a noccedilatildeo da passagem do
tempo carcereiros durante a noite abrindo repetidamente a janelinha do portatildeo das
celas para vigiaacute-los acordando-os jaacute que o movimento emitia um som alto visitas
recorrentes de militares agraves celas e gritos vindos da ldquosala roxardquo ouvidos a todo tempo
[] essa porta da nossa cela ela tinha uma abertura era uma porta fechada
natildeo era grade natildeo era uma porta pesada e ela tinha um quadrado em cima
com uma abertura para o lado de fora e esses soldados que faziam a ronda
eles abriam essa portinha de cinco em cinco minutos Entatildeo eles passavam e
ldquopahrdquo e dependendo da maldade desses caras eles batiam com mais forccedila
ou menos forccedila isso era a noite toda Inclusive a luz ficava acesa
permanentemente e essa batidinha desse negoacutecio era uma coisa insuportaacutevel
De vez em quando a gente estava pegando no sono e tomava aquele susto
com aquela batida [] a gente tambeacutem ouvia muito grito de tortura o tempo
todo (Pandolfi 5 fev 2003)
[] nem na hora de dormir apagavam a luz dia e noite era a luz acesa vocecirc
sabia o horaacuterio pela hora do cafeacute da manhatilde Mas ateacute se tinha alguma noccedilatildeo
porque como a janela laacute no alto da parede era de vidro dava para vocecirc
perceber que estava agrave noite [] (Carvalho 8 fev 2003)
[] eles faziam o tal do confere de manhatilde e de noite vinham com catildees
policiais farejando a gente e a gente tinha que ficar em peacute igual a soldado
dizendo - ldquoCeciacutelia Coimbrardquo Tinha que falar o nome [] era o tal do
confere E era uma coisa de humilhaccedilatildeo eles de madrugada abriam
estrondosamente as celas entendeu [] era como se noacutes fossemos animais
animais de circo Animais raros eacuteramos os lsquoterroristasrsquo neacute [] era o tempo
todo as torturas fiacutesicas e a coisa da rotina para te degradar enquanto ser
humano [] (Coimbra 30 nov 2004)
179
Outro tipo de tortura psicoloacutegica aplicada no DOI-CODIRJ de 1970 fora da ldquosala
roxardquo jaacute aqui mencionada era o capuz Os agentes das turmas auxiliares encarregados
da carceragem colocavam uma espeacutecie de capuz no prisioneiro quando o levavam da
cela ateacute a ldquosala de torturardquo No entanto no momento em que o preso chegava nessa sala
tinha o capuz retirado pelos agentes das turmas de interrogatoacuterio preliminar Logo no
DOI-CODIRJ de 1970 o capuz ainda natildeo era um mecanismo para esconder os rostos
dos torturadores e sim mais um artifiacutecio de intimidaccedilatildeo do prisioneiro Aliaacutes foi
exatamente por isso que muitos ex-prisioneiros conseguiram anos depois denunciar
militares que na eacutepoca teriam sido seus algozes 50
Ana Batista ressalta ainda ter sido submetida no DOI-CODIRJ a outro tipo de
tortura psicoloacutegica O meacutedico Amilcar Lobo teria solicitado a um agente da turma
auxiliar de plantatildeo que a carregasse ateacute uma sala do 1ordm BPE fora do preacutedio do DOI-
CODIRJ jaacute que estava com ferimentos que natildeo permitiam que andasse Laacute Ana foi
supostamente examinada pelo referido meacutedico e dele escutou o diagnoacutestico de que natildeo
poderia ter filhos pois tinha o uacutetero infantil e retrovertido ou seja atrofiado e virado
para a parte posterior do corpo No entanto apoacutes ser posta em liberdade quatro anos
depois Ana descobriu que aquela afirmaccedilatildeo natildeo era verdadeira pois poderia
engravidar tendo tido posteriormente dois filhos
Eu sei que tem o paacutetio porque uma vez me carregaram para laacute um soldado
foi e me carregou Eu natildeo estava andando eu estava toda ferida entatildeo ele
me carregou pelo paacutetio ateacute uma espeacutecie de consultoacuterio do Amilcar Lobo []
eu estava toda ferida na vagina devido aos choques eleacutetricos e porque
tinham me enfiado o cassetete [] Aiacute ele me examinou e disse assim ldquo-
Vocecirc tem o uacutetero infantil e retrovertido vocecirc nunca vai poder ter filhosrdquo
Assim Eu tinha 21 anos e passei quase quatro anos achando que eu nunca ia
poder ter filhos O cara sabia o que estava fazendo (Miranda 17 nov 2004)
50
Em Os Funcionaacuterios tomo II do Projeto Brasil Nunca Mais se encontra a relaccedilatildeo alfabeacutetica das
pessoas envolvidas com torturas (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985 1-60)
180
Esse tipo de tortura psicoloacutegica destacada no trecho acima coincide com o tipo de
cotidiano vivido pelos presos do DOI-CODIRJ No entanto encaixa-se tambeacutem com o
estilo enfaacutetico que a narrativa de Ana atribuiacutea em 2004 aos danos que a prisatildeo poliacutetica
lhe causara A recente composiccedilatildeo de seu memorial sobre os sofrimentos vividos
durante a ditadura militar enviado agrave Comissatildeo Especial da Secretaria de Direitos
Humanos do Estado do Rio de Janeiro pautava-se no objetivo de receber o valor
maacuteximo da reparaccedilatildeo financeira oferecida pelo Estado No momento da entrevista era
esse o presente que Ana vivia e era atraveacutes dele que inconscientemente lia o passado
Logo sua narrativa apesar de aparentemente coerente sofria influecircncias que as
aspiraccedilotildees e interpretaccedilotildees do presente involuntariamente impuseram a suas memoacuterias
Poreacutem o fato do meacutedico Amilcar Lobo ter lhe dado um diagnoacutestico falso de
esterilidade encontra explicaccedilatildeo natildeo soacute em sua narrativa construiacuteda a partir da
interpretaccedilatildeo de que a notiacutecia teria sido motivada apenas pelo grande dano psicoloacutegico
que isso causaria a uma jovem de 21 anos mas tambeacutem no papel que o meacutedico
desempenhava dentro daquela instituiccedilatildeo Afinal aleacutem de funcionar como uma tortura
psicoloacutegica o diagnoacutestico dado por Amilcar Lobo foi provavelmente uma forma de
tentar resguardar o DOI-CODIRJ de possiacuteveis acusaccedilotildees posteriores de tecirc-la tornado
infeacutertil tantos eram os ferimentos que Ana havia sofrido em seus oacutergatildeos reprodutores
Afinal conforme constatado a principal funccedilatildeo do meacutedico ali era auxiliar as torturas e
cuidar dos ferimentos dos presos na tentativa de proteger a instituiccedilatildeo de acusaccedilotildees que
poderiam trazer preocupaccedilotildees futuras por exemplo a responsabilidade por graves
ferimentos e mortes
Isso no entanto natildeo quer dizer que as torturas do DOI-CODIRJ natildeo tenham
ocasionado mortes Sabe-se que muitos prisioneiros poliacuteticos depois de laacute entrarem
foram dados como desparecidos Quando esses presos eram mortos dentro de
181
instituiccedilotildees como o DOI-CODIRJ os militares envolvidos ou desapareciam com os
corpos pois assim natildeo se tinha como provar o que havia acontecido e por conseguinte
natildeo existiriam culpados ou quando a prisatildeo tivesse sido noticiada por algum meio de
comunicaccedilatildeo o corpo aparecia sob uma justificativa forjada que excluiacutesse a culpa da
instituiccedilatildeo prisional Na maior parte das vezes dizia-se que o prisioneiro havia
cometido suiciacutedio na prisatildeo ou sido baleado em tiroteio o que se supunha estar
relacionado a uma anterior tentativa sua de fuga
Nas entrevistas aqui trabalhadas alguns depoentes relataram ter tido contato
dentro do DOI-CODIRJ com pessoas que depois foram dadas como mortas sob tais
justificativas Dulce por exemplo afirma ter sido acareada durante uma sessatildeo de
tortura com Eduardo Collen Leite o Bacuri morto segundo a Comissatildeo Especial sobre
Mortos e Desaparecidos (2007 139) no Forte dos Andradas na cidade do Guarujaacute
(SP) trecircs dias apoacutes militares implantarem na imprensa a falsa notiacutecia de sua fuga
atribuindo sua morte a um suposto tiroteio na rua entre ele e militares
Quando eu estava laacute eu fui acareada com o Bacuri Eu jaacute encontrei com ele
assim muito mal ele estava respirando mal foi uma cena assim muito barra
pesada e eu sei que depois ele morreu eu natildeo sei se ele morreu laacute mas logo
depois que eu estive com ele ele morreu Ele eacute um desses mortos do
processo Ele morreu fruto de tortura ele foi brutalmente torturado ele jaacute
chegou na PE muito torturado muito quebrado e teve comentaacuterios de
torturadores que diziam ter feito um estrago muito grande nele e natildeo tinham
conseguido que ele falasse as coisas que eles queriam que ele falasse
(Pandolfi 5 fev 2003)
Fernando teve seu irmatildeo Eiraldo de Palha Freire baleado e junto com ele preso
pelos militares da Aeronaacuteutica no aeroporto do Galeatildeo no Rio de Janeiro Mesmo
gravemente ferido Eiraldo foi segundo Fernando e a Comissatildeo Especial sobre Mortos
e Desaparecidos (2007 131) transferido para o DOI-CODIRJ e laacute morto sob torturas
182
Poreacutem de acordo com Fernando seu corpo foi entregue agrave famiacutelia sob a versatildeo de
suiciacutedio
Meu irmatildeo veja bem ele foi metralhado no aviatildeo mas ele estava vivo e
ainda foi parar no DOI-CODI Ele estava ferido mas chegou a levar tortura
natildeo resistiu e morreu aiacute disseram que ele se suicidou (Freire 28 jun 2004)
Hoje no entanto grande parte dos mortos e desaparecidos foi reconhecida pelo
Estado brasileiro A Comissatildeo Especial sobre Mortos e Desaparecidos Poliacuteticos
implantada pela lei 914095 encerrou em 2006 a etapa de reconhecimento e reparaccedilatildeo
financeira agraves famiacutelias reconhecendo um total de 253 mortos e desaparecidos poliacuteticos
por autoridades do Estado brasileiro entre os anos de 1961 e 1988 A partir de 2007
essa Comissatildeo passou a concentrar-se na busca e no reconhecimento de ossadas para
que muitas famiacutelias descubram o que de fato aconteceu com seus entes desaparecidos e
possa enterraacute-los conforme indicado pelo seu livro-relatoacuterio Direito agrave verdade e agrave
memoacuteria (2007)
A partir da anaacutelise aqui feita a respeito das torturas a que os presos eram
submetidos no DOI-CODIRJ em 1970 nota-se que essas eram destinadas a todos que
laacute entravam No entanto percebe-se que a intensidade das torturas no DOI-CODIRJ de
1970 variava de acordo principalmente com o tempo de prisatildeo com o tipo de
organizaccedilatildeo que o preso integrasse (se era ou natildeo adepta da luta armada) e com a
resistecircncia que ele apresentasse para conceder as informaccedilotildees que os agentes das turmas
de interrogatoacuterio preliminar buscavam
Logo constata-se que quanto mais ativa fosse a organizaccedilatildeo de luta armada a que
o prisioneiro estivesse relacionado mais ele seria submetido a torturas e quanto mais
ele resistisse a essas mais intensas elas seriam podendo inclusive acarretar sua morte
183
Afinal os prisioneiros ligados a organizaccedilotildees armadas em ampla atividade tinham mais
informaccedilotildees sobre outros militantes procurados
Diante disso como a ALN e o MR-8 eram organizaccedilotildees envolvidas em grandes
accedilotildees armadas da eacutepoca ndash tais como os sequestros dos embaixadores americano e
alematildeo e do aviatildeo da Companhia Aeacuterea Cruzeiro do Sul ocorridos em 4 de setembro de
1969 11 de junho de 1970 e 1ordm de julho de 1970 respectivamente ndash os prisioneiros que
delas faziam parte ou tinham algum tipo de relaccedilatildeo com seus militantes foram
submetidos a intensas torturas no DOI-CODIRJ Como os perfis de Dulce Fernando
Ana e Ceciacutelia se encaixavam nessas caracteriacutesticas conforme analisado no segundo
capiacutetulo a eles foi imposto no DOI-CODIRJ um cotidiano ainda mais violento do que
por exemplo a Antocircnio
Afinal em meados de 1970 quando Antocircnio de Carvalho51
foi preso e levado
para o DOI-CODIRJ o PCBR sua organizaccedilatildeo na eacutepoca apesar de adepta da luta
armada jaacute se encontrava relativamente desestruturada uma vez que suas principais
lideranccedilas jaacute haviam ldquocaiacutedordquo Dessa forma o PCBR mesmo ainda em atividade natildeo
estava envolvido em accedilotildees tatildeo organizadas e com tamanha repercussatildeo como estavam a
ALN e o MR-8 por exemplo Entatildeo Antocircnio apesar de passar pelas duas fases da
prisatildeo e natildeo ser poupado de duras torturas como ocorreu com Padre Maacuterio
provavelmente natildeo sofreu o mesmo grau de violecircncia destinado a Dulce Fernando Ana
e Ceciacutelia As informaccedilotildees que ele tinha natildeo levariam o DOI-CODIRJ aos envolvidos
com as accedilotildees armadas em destaque na eacutepoca
51
Para mais informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria poliacutetica que acarretou a prisatildeo de Antocircnio Leite de Carvalho
voltar ao segundo capiacutetulo
184
32 O dia-a-dia no caacutercere
O dia-a-dia vivido pelos prisioneiros poliacuteticos no DOI-CODIRJ natildeo era o mesmo
que o vivido em um presiacutedio comum A ameaccedila de tortura o medo dela decorrente e o
sentimento de abandono que ela causava estavam presentes a todo momento Assim
natildeo poderia ser diferente que na memoacuteria construiacuteda pelos ex-prisioneiros poliacuteticos do
DOI-CODIRJ de 1970 a tortura ocupe a maior parte das narrativas sobre o cotidiano
ali vivido
No entanto a memoacuteria dos prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ de 1970
entrevistados entre os anos de 2002 e 2004 abarca tambeacutem outros aspectos daquele dia-
a-dia A partir de seus relatos aleacutem de se tornar viaacutevel a anaacutelise sobre as refeiccedilotildees os
banhos e os passatempos durante a prisatildeo no DOI-CODIRJ se torna possiacutevel tambeacutem
perceber como a convivecircncia a cumplicidade entre os presos e ateacute algumas
demonstraccedilotildees de solidariedade dos carcereiros foram elementos importantes para que
resistissem ao violento cotidiano ali vivido
Na primeira fase da prisatildeo os presos ficavam sozinhos em pequenas celas onde
natildeo havia colchatildeo banheiro e eram constantemente levados agrave sala de tortura Este
cotidiano inicial era muito degradante fiacutesica e mentalmente natildeo soacute pelo sofrimento
acarretado pelo grande nuacutemero de torturas sofridas e pelo desconforto das celas mas
tambeacutem pela solidatildeo nelas vivenciada Afinal natildeo foi por acaso que tais celas ficaram
conhecidas como ldquosolitaacuteriasrdquo
A solidatildeo era uma caracteriacutestica que contribuiacutea fortemente para a fragilidade do
prisioneiro do DOI-CODIRJ Isto torna-se mais evidente quando percebe-se a grande
importacircncia que um raacutepido contato com outro preso representava durante a primeira
fase da prisatildeo Eacute o que pode-se apurar no seguinte trecho narrado por Fernando
185
[] uma hora eu estava encostado aqui [aponta para onde ficava uma das
ldquosolitaacuteriasrdquo no desenho que fez em um papel] no primeiro dia aiacute botaram um
cara no corredor [] era um dirigente do Partido Comunista um velho da
minha idade atualmente Ele tremia muito [] Aiacute ele disse - ldquoEstaacute frio neacute
companheirordquo aiacute eu - ldquoMuitordquo e ele disse - ldquoMas eacute mais psicoloacutegicordquo Aiacute
eu senti uma vergonha sabe Porque eu estava me sentindo tatildeo mal tatildeo para
baixo e um homem daquela idade estava firme[] Ele me deu uma forccedila
muito maior do que ele imagina [] (Freire 28 jun 2004)
Evidencia-se atraveacutes dessa narrativa como em meio ao sofrimento e agrave solidatildeo que
Fernando lembra ter vivenciado no primeiro dia de sua prisatildeo no DOI-CODIRJ um
simples diaacutelogo foi capaz de revitalizar a sua resistecircncia Esse pequeno contato foi tatildeo
importante para Fernando a ponto de ficar marcado em sua memoacuteria ateacute o momento de
sua entrevista mais de trinta anos depois
A partir disso nota-se que aquele cotidiano criava independente das pequenas
diferenccedilas ideoloacutegicas que poderiam existir uma forte identidade entre os presos As
dores decorrentes das torturas e a sensaccedilatildeo de solidatildeo que sentiam no DOI-CODIRJ
faziam com que presos que nunca tivessem se visto antes criassem rapidamente uma
forte cumplicidade e amizade Assim nos momentos em que estavam juntos
principalmente durante a segunda fase da prisatildeo eles conversavam apoiavam-se e
cuidavam uns aos outros extraindo desse conviacutevio forccedila para encararem os proacuteximos
dias de prisatildeo
Essa experiecircncia coletiva dentro do DOI-CODIRJ era valiosa ateacute porque nem
mesmo quando os presos jaacute estavam na segunda fase da prisatildeo ela era garantida Afinal
apesar do prisioneiro poliacutetico do DOI-CODIRJ durante a segunda fase ficar em celas
com estrutura para mais de um preso ele nem sempre tinha companhia Conforme jaacute
analisado anteriormente no DOI-CODIRJ existia uma grande rotatividade e isso
186
implicava em que em determinados momentos as celas coletivas estivessem cheias e
em outros habitadas por dois ou ateacute mesmo um uacutenico prisioneiro
Logo por ser a primeira fase um periacuteodo de isolamento e a segunda devido agrave alta
rotatividade do DOI-CODIRJ uma fase em que ora se estava sozinho e ora tinha-se
companheiro(s) de cela a convivecircncia era entatildeo muito valorizada pelos presos como se
pode perceber na ecircnfase que ela recebe nas memoacuterias dos entrevistados
[] quando estaacutevamos juntas era bem melhor porque existia uma identidade
muito forte entre a gente Eram pessoas que nunca tinham se conhecido de
um modo geral mas aquele oacutedio contra a ditadura o fato de todas terem sido
torturadas aquilo dava margem a uma liga muito grande entre a gente
Entatildeo quando noacutes estaacutevamos juntas a gente cantava a gente conversava a
gente contava histoacuterias de vida o tempo passava e a gente tinha uma
intimidade Conseguimos construir uma coisa muito soacutelida mesmo com
poucas horas e poucos dias mesmo nesse esquema que eu estou te falando
quer dizer as pessoas natildeo ficavam laacute fixas Teve uma vez que uma moccedila
ficou laacute trecircs dias outra que ficou quatro outra que ficou cinco Mas era
uma coisa muito boa chegar algueacutem mesmo vocecirc vendo a pessoa chegar
toda esbagaccedilada porque os que entravam naquela cela jaacute tinham passado laacute
embaixo [] (Pandolfi 5 fev 2003)
[] a cela coletiva na verdade acabava se constituindo num foacuterum de
debates Sempre discutiacuteamos poliacutetica porque eram companheiros de
diversas organizaccedilotildees natildeo era uma uacutenica organizaccedilatildeo ou um uacutenico partido
que estava ali preso mas sim vaacuterios e havia aquela troca de experiecircncias
cada um contava a sua histoacuteria e assim ia passando o dia-a-dia sempre
havia novidades Assim a gente acabava quebrando um pouco o isolamento
[] (Carvalho 8 fev 2003)
Essa convivecircncia no caacutercere fomentou portanto a solidariedade e instituiu um
forte sentimento de coletividade entre os presos Afinal a luta pela sobrevivecircncia e o
pavor de voltar a ser torturado eram comuns a todos eles que procuravam na uniatildeo criar
forccedilas para suportar aquele pesado cotidiano A troca de apoio servia entatildeo como uma
187
espeacutecie de sustentaccedilatildeo como uma garantia de sobrevida Ao preocuparem-se e
ajudarem-se os presos injetavam-se um acircnimo importante para conseguirem resistir agrave
situaccedilatildeo de desespero e solidatildeo que ali era vivida e diante dessa realidade acabavam
formando um grupo coeso cuja principal caracteriacutestica era justamente esse apoio
Constituiacuteam portanto uma identidade conjunta atraveacutes da qual se viam sob os mesmos
temores e anseios aleacutem de perceberem essa parceria como uma extensatildeo da resistecircncia
agrave ditadura que vinham praticando desde antes de serem presos
Ana Dulce e Ceciacutelia memoacuterias relacionadas
Ana e Dulce e depois Dulce e Ceciacutelia foram companheiras de cela durante parte
da segunda fase de suas prisotildees no DOI-CODIRJ de 1970 Suas narrativas sobre a
convivecircncia que laacute tiveram servem aqui para analisar tanto as relaccedilotildees entre suas
memoacuterias quanto alguns aspectos do cotidiano dessa instituiccedilatildeo
Conforme analisado no segundo capiacutetulo Ana chegou ao DOI-CODIRJ no final
de julho de 1970 Logo depois em 14 de agosto do mesmo ano Dulce foi presa e para
laacute tambeacutem levada Como Ana afirma ter permanecido no DOI-CODIRJ por cerca de
um mecircs constata-se que no final de agosto quando ela jaacute estava em vias de ser
transferida colocaram Dulce em sua cela no segundo andar Dulce acabava de vir da
primeira fase de sua prisatildeo que por ter lhe causado graves consequecircncias fiacutesicas tinha
sido mais curta Nesse momento de extrema fragilidade em que Dulce se encontrava jaacute
que vinha de intensas sessotildees de tortura e de uma das ldquosolitaacuteriasrdquo do andar de baixo
Ana ajudou-a a cuidar de seus ferimentos e a tomar banho
Esse contato que teve com Ana apesar de curto jaacute que dias depois Ana foi
transferida para o DOI-CODISP parece ter sido muito importante para Dulce Afinal
apesar dela ter convivido com outras presas durante os quase trecircs meses em que ficou
188
no DOI-CODIRJ Ana foi a uacutenica companheira de cela que Dulce citou pelo nome
durante a entrevista
[] logo que eu cheguei fui para a solitaacuteria era torturada e ia para a solitaacuteria
era torturada e ia para a solitaacuteria quando eu comecei a passar muito mal
depois de um dia dois dias eles me levaram para outra cela maior onde
estava Ana Bursztyn que me deu banho Logo depois ela saiu da cela e eu
fiquei sozinha [] (Pandolfi 5 fev 2003)
A justificativa para a presenccedila de Ana ter ficado marcada na memoacuteria de Dulce
possivelmente eacute o fato de naquele momento aleacutem de estar extremamente machucada
Dulce natildeo ter ainda dividido cela com mais ningueacutem Estava ateacute entatildeo imersa em uma
rotina de solidatildeo e tortura que caracterizava a primeira fase da prisatildeo no DOI-
CODIRJ A ajuda e o conviacutevio com Ana portanto representaram para Dulce um
primeiro contato com algueacutem em quem podia confiar talvez uma primeira surpresa boa
no cotidiano que vinha vivendo no DOI-CODIRJ Jaacute para Ana que estava haacute mais
tempo presa Dulce provavelmente natildeo tinha sido a uacutenica a contar com sua ajuda logo
natildeo se destacava entre suas memoacuterias sobre o cotidiano ali vivido
Comparando as datas das prisotildees de Ana Dulce e Ceciacutelia percebe-se que apoacutes
Ana ter sido transferida Dulce ficou nessa cela grande chamada de ldquocoletivo das
mulheresrdquo enquanto Ceciacutelia entrava no DOI-CODIRJ Ceciacutelia passou pela fase das
ldquosolitaacuteriasrdquo e depois foi levada ateacute uma cela tambeacutem no segundo andar ao lado da de
Dulce onde esteve em companhia de uma moccedila Um tempo depois foi transferida para
o ldquocoletivo das mulheresrdquo onde estava Dulce com quem conviveu grande parte do
tempo
[] fiquei nessa cela [apontando para o desenho que havia feito mostra a
cela do segundo andar que ficava ao lado do ldquocoletivo das mulheresrdquo]
189
depois fui transferida para uma cela maior onde tinha vaacuterias presas poliacuteticas
inclusive uma pessoa que ficou grande parte do tempo comigo a Dulce
Grande parte do tempo eu fiquei com ela nessa cela era o lsquocoletivo das
mulheresrsquo [] (Coimbra 30 nov 2004)
Apesar de natildeo ser destacada entre as memoacuterias de Dulce Ceciacutelia durante sua
narrativa parece atribuir um papel importante ao conviacutevio que elas tiveram Afinal o
tempo que passou com Dulce no DOI-CODIRJ trouxe-lhe um dado a mais sobre as
aulas de tortura a novos oficiais que ali estavam ocorrendo jaacute que enquanto dividia cela
com Ceciacutelia Dulce serviu de cobaia para tais ensinamentos Assim como Ceciacutelia era
vice-presidente do GTNMRJ no momento de sua entrevista e por conseguinte tinha
como caracteriacutestica enfatizar em sua narrativa os detalhes sobre as torturas cometidas
pelos agentes do DOI-CODIRJ a fim de denunciaacute-las se justifica que Dulce tenha
papel marcante entre suas memoacuterias Esse destaque que a convivecircncia com Dulce
assumiu para Ceciacutelia pode ser conferido no trecho abaixo
[] a Dulce foi chamada para uma tortura de tarde [] a gente comeccedilou a
ouvir os gritos de Dulce e jaacute tinha passado todo o periacuteodo porque eles
torturam logo no iniacutecio para pegar informaccedilatildeo Aiacute eu digo ldquo- Soacute se
algueacutem caiu algueacutem foi preso e Dulce estaacute sendo acareadardquo Daqui a pouco
a Dulce volta para a cela com um soldado toda ferrada e aiacute ela ainda ia
voltar O cara disse ldquo- Oh eacute soacute para ela se lavarrdquo Entatildeo eu entrei no
chuveiro com ela e eu dizia ldquo- Dulce o que estaacute havendordquo E ela ldquo- Eu natildeo
estou entendendo o que estaacute acontecendo tem um bando de homem a minha
volta ningueacutem me faz pergunta nenhuma e estatildeo me torturando estatildeo me
botando no pau-de-arara estatildeo me fazendo afogamento estatildeo me dando
choque eleacutetrico eu natildeo estou entendendordquo E eu falei ldquo- Dulce isso eacute aula
para novos torturadoresrdquo Porque eu jaacute tinha lido num dos panfletos da UNE
sobre os meacutetodos de tortura que estavam sendo utilizados no DOI-CODI
aleacutem do jacareacute que a gente viu e que citavam tinha tambeacutem a aula a novos
torturadores ou seja eles pegavam um preso que tinha tido maior resistecircncia
e botavam laacute como cobaia para ensinar aos novos torturadores todas as
190
teacutecnicas E foi isso que fizeram com Dulce Aiacute eu falei ldquo- Dulce isso eacute aula
para novos torturadores eu li essa porrardquo [] (Coimbra 30 nov 2004)
A partir disso fica claro que para Ceciacutelia a constataccedilatildeo da existecircncia de aulas de
torturas no DOI-CODIRJ utilizando presos poliacuteticos teve uma destacada importacircncia
Logo o seu conviacutevio com Dulce durante o periacuteodo em que ela foi viacutetima desses
ensinamentos tambeacutem teve
Aleacutem disso Ceciacutelia durante sua entrevista perguntou quem eu jaacute havia
entrevistado Assim ao saber sobre a entrevista de Dulce sentiu-se motivada a falar
sobre as experiecircncias que com ela tinha compartilhado durante a prisatildeo no DOI-
CODIRJ Dessa forma alguns outros detalhes sobre essa convivecircncia contidos na
memoacuteria de Ceciacutelia foram naquele momento reconstruiacutedos e narrados
Um deles em especial contribui para a anaacutelise sobre o cotidiano do DOI-
CODIRJ Diz respeito agrave relaccedilatildeo travada com alguns carcereiros ou seja soldados do 1ordm
BPE que integravam as turmas auxiliares Afinal a partir do relato de Ceciacutelia Coimbra
percebe-se que ela e Dulce puderam ir ateacute as celas onde estavam os seus companheiros
que na eacutepoca tambeacutem se encontravam aprisionados no DOI-CODIRJ graccedilas agrave ajuda
de um dos responsaacuteveis pela vigia daquela noite
Teve uma noite tinha um soldadinho que a gente natildeo lembra o nome a
gente soacute se lembra dos lsquofilhos da putarsquo a gente devia lembrar dos caras que
foram legais com a gente Esse cara por exemplo ele soube que o marido de
Dulce estava preso o Alexandre e que o Novaes meu marido estava preso
Aiacute como ele ia ficar a noite toda de guarda ele mandou os soldadinhos
descerem e permitiu que Dulce fosse agrave cela de Alexandre e eu agrave de Novaes
Esse cara natildeo saiu da minha cabeccedila [] Esse cara a gente conversando com
ele ele soube que o Novaes estava na cela do lado e que o Alexandre estava
numa outra cela ali perto e ele deixou Dulce foi para a cela de Alexandre e
eu para a de Novaes Assim rapidinho neacute Demos a matildeo um beijo assim
[beija a proacutepria matildeo para demonstrar] O cara se expocircs mesmo neacute E tinha
191
outros que entregavam neacute Entregavam os bilhetes Era um vendaval de
bilhetes durante a madrugada Os caras se expunham mesmo entendeu
Tinha coisas bonitas ali apesar daquele clima de terror tinha pessoas assim
solidaacuterias E esses nomes a gente natildeo lembra neacute Devia lembrar []
(Coimbra 30 nov 2004)
Conforme analisado no primeiro capiacutetulo tais carcereiros que integravam as
turmas auxiliares do DOI-CODIRJ natildeo eram oficiais de informaccedilotildees treinados
especialmente para trabalhar junto agrave repressatildeo poliacutetica eram soldados que em 1970
serviam ao quartel do 1ordm BPE52
Logo eram passiacuteveis de sentir solidariedade jaacute que
muitos deles natildeo estavam servindo ao DOI-CODIRJ por algum tipo de vocaccedilatildeo
estavam ali somente para cumprir com o serviccedilo militar do quartel Afinal apesar de
haver entre eles alguns que se identificassem com a funccedilatildeo e ateacute almejassem tornar-se
agentes de informaccedilotildees os integrantes dessas turmas auxiliares natildeo trabalhavam nos
interrogatoacuterios dos presos e consequentemente natildeo estavam diretamente relacionados
com as torturas Portanto pode-se dizer que no DOI-COIRJ existia compaixatildeo entre
soldados e prisioneiros
A partir disso evidencia-se como o indiviacuteduo tem um papel primordial para essa
anaacutelise Afinal ao considerar sua memoacuteria como fonte para a histoacuteria torna-se possiacutevel
perceber aqui algumas de suas idiossincrasias ou seja peculiaridades comportamentais
capazes de interferir na percepccedilatildeo sobre o cotidiano vivido no DOI-CODIRJ de 1970
Afinal a ajuda que o soldado deu a Dulce e Ceciacutelia eacute um exemplo tiacutepico de como as
peculiaridades individuais satildeo capazes de atribuir contrastes e inconstacircncias agrave
interpretaccedilatildeo de uma realidade do passado Desse modo entende-se perfeitamente o
porquecirc de Marshall Sahlins afirmar em Histoacuteria e Cultura (2006) que os indiviacuteduos
52
Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar ver o Anexo II
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representam um feixe uacutenico resultado de uma ligaccedilatildeo peculiar entre infinitos traccedilos
culturais e sociais que natildeo conseguem ser captados por anaacutelises generalizantes
Uma vez que a partir de accedilotildees como a desse soldado pode-se afirmar que o
cotidiano prisional do DOI-COIRJ de 1970 natildeo era formado unicamente pela repressatildeo
e pela violecircncia dos militares que ali representavam o Estado como uma generalizaccedilatildeo
ou uma reduccedilatildeo de varaacuteveis poderia fazer crer Havia tambeacutem compaixatildeo ateacute mesmo
entre lados aparentemente opostos
As formas de lidar com o tempo
Para sobreviver ao cotidiano do DOI-CODIRJ natildeo bastava ser resistente
fisicamente tambeacutem era necessaacuterio manter a mente em equiliacutebrio Essa preocupaccedilatildeo
acompanhava o prisioneiro em todas as fases da prisatildeo mas principalmente quando ele
estava sozinho Afinal a solidatildeo trazia a sensaccedilatildeo de que o tempo natildeo passava e em
meio ao violento cotidiano a que era submetido o preso do DOI-CODIRJ percebia
mais facilmente sinais que lhe causavam medo e desespero
Ceciacutelia Coimbra e Dulce Pandolfi ressaltam que mesmo quando estavam em
celas coletivas com a companhia de outras presas percebiam muitos desses sinais
Ficavam em pacircnico pois na maior parte das vezes significavam que seriam levadas
novamente agrave ldquosala roxardquo Quando sozinhas a sensaccedilatildeo de pavor por natildeo ser
compartilhada provavelmente era ainda mais intensa
[] a gente ficou tatildeo traumatizada com o barulho de chave que quando a
gente ouvia a gente dizia ldquo- Eles vecircm para caacute vecircm pegar alguma de noacutesrdquo
Era uma loucura era um clima de terror [] (Coimbra 30 nov 2004)
[] toda vez que um soldado abria a cela trazia o capuz Era ateacute uma cena
muito dramaacutetica porque todo mundo comeccedilava a tremer de medo porque se
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sabia que se o capuz estava ali era porque algueacutem ia descer algueacutem ia
circular e descer normalmente significava ser torturada Entatildeo era assim
uma coisa bem dramaacutetica bem traumaacutetica tambeacutem porque quando abriam a
cela e retiravam o capuz a gente pensava ldquo- pronto algueacutem vai agora pro
caceterdquo (Pandolfi 5 fev 2003)
Para manterem suas mentes satildes os prisioneiros do DOI-CODIRJ quando
sozinhos utilizavam alguns artifiacutecios Dulce em sua narrativa relata ter ficado algum
tempo sozinha em uma cela coletiva onde se ocupava em frear a impressatildeo de
vagarosidade do tempo e os maus pensamentos de diversas maneiras tais como
[] eu lembro de duas coisas que eu fazia como exerciacutecio para passar o
tempo Os colchotildees que eram horriacuteveis eram colchotildees de crina eu tirava
aquelas palhas de dentro do colchatildeo e ficava fazendo tranccedilas fazia vaacuterias
tranccedilas e contava uma tranccedila duas tranccedilas e ia montando uma na outra
Fazia filas de tranccedilas depois eu desmanchava tudo eu lembro que eu ateacute
tinha medo ldquo- Se esses caras descobrirem isso vatildeo mandar costurar o
colchatildeordquo Depois eu tirava tudo e guardava de novo laacute dentro do colchatildeo No
dia seguinte eu comeccedilava outra vez Eu dizia ldquo- eu natildeo posso enlouquecer
entatildeo eu tenho que ocupar a minha cabeccedila com alguma coisardquo Porque eu
natildeo tinha nada nada nada para fazer Outra atividade que eu fazia tambeacutem
Como [] o chatildeo da cela era como se fosse de umas lajotas de uns azulejos
sei laacute o quecirc eu contava aqueles quadrados todos multiplicava fazia
milhares de contas Fazia um jogo no chatildeo do quarto contava para frente
para traacutes multiplicava e naquilo ali eu ficava horas naquelas contas
matemaacuteticas naquelas multiplicaccedilotildees naquelas somas naqueles ladrilhos
[] (Pandolfi 5 fev 2003)
A execuccedilatildeo de tais meacutetodos certamente contribuiacutea para aumentar a possibilidade
de sobrevivecircncia e sanidade do prisioneiro do DOI-CODIRJ Poreacutem o preso dependia
de sua capacidade e habilidade para usar recursos que o beneficiassem e que ajudassem
a se opor aos mecanismos desetruturadores e despersonalizadores sobre ele empregados
Nessa situaccedilatildeo assim como Elizabeth Ferreira na obra Mulheres Militacircncia e Memoacuteria
194
(1996 65) acredita-se que o sentimento de auto-estima gerado nos presos poliacuteticos pelo
seu ideal poliacutetico e social eacute um elemento crucial de resistecircncia Atraveacutes desse
sentimento normalmente tais presos costumam sustentar a esperanccedila na mudanccedila o
que lhes gera forccedila e ateacute mesmo uma criatividade para suportar o sofrimento maior que
a de presos comuns
As roupas e as refeiccedilotildees
Como o DOI-CODIRJ de 1970 natildeo era um presiacutedio havia acabado de ser
montado dentro de um preacutedio do quartel do 1ordm BPE para abrigar temporariamente os
presos poliacuteticos que pudessem contribuir com suas investigaccedilotildees laacute natildeo existiam
refeitoacuterios visitas banho de sol ou mesmo uniformes Aleacutem da falta de uma estrutura
que propiciasse uma rotina normal de presiacutedio esse diferencial era importante para o
procedimento investigativo do DOI-CODIRJ Afinal havia ali a necessidade do preso
ficar incomunicaacutevel jaacute que quanto maior seu isolamento maior seria sua fragilidade e
esta se relacionava diretamente com sua capacidade em conceder informaccedilotildees No mais
esse isolamento tambeacutem estava relacionado com a preocupaccedilatildeo em proteger a
instituiccedilatildeo de acusaccedilotildees de maus tratos uma vez que caso os ferimentos dos presos
fossem notados poderiam ser vinculados a torturas e consequentemente denunciados
Dessa forma os prisioneiros do DOI-CODIRJ natildeo podiam nem mesmo tomar sol pois
poderiam ser vistos por pessoas dos preacutedios vizinhos e funcionaacuterios da faacutebrica da
Brahma localizada atraacutes do paacutetio do 1ordm BPE
As refeiccedilotildees eram portanto servidas nas proacuteprias celas pelos soldados da turma
auxiliar de plantatildeo Para colocarem cada uma das quatro refeiccedilotildees a que cada preso
tinha direito esses abriam a cela de manhatilde cedo no iniacutecio e no fim da tarde e agrave noite
Segundo a narrativa dos presos no cafeacute da manhatilde costumavam trazer um patildeo com
195
pasta de amendoim e um cafeacute com leite na caneca para cada preso No almoccedilo uma
bandeja de alumiacutenio com um prato que normalmente continha repolho arroz angu e
algumas vezes um pedaccedilo de carne Durante a tarde deixavam um bule de mate com
um pedaccedilo de patildeo na cela e no fim do dia repetiam para o jantar a mesma comida do
almoccedilo
As comidas servidas em 1970 aos prisioneiros do DOI-CODIRJ satildeo mais alguns
exemplos de detalhes do cotidiano que soacute podem ser abordados por meio da memoacuteria de
quem viveu aquele passado Diante disso eacute interessante perceber aspectos que
justificam o fato dessas refeiccedilotildees terem marcado as memoacuterias dos prisioneiros a ponto
de nelas sobreviverem por cerca de trecircs deacutecadas
[] a gente ateacute brincava que eles deviam ter uma plantaccedilatildeo de repolho ali
porque era repolho todo dia repolho cru repolho assado mas na hora do
almoccedilo normalmente vinha nessa bandeja de alumiacutenio e era repolho um
pouco de arroz feijatildeo e agraves vezes um pedaccedilo de carne era uma comida bem
horrorosa [] (Pandolfi 5 fev 2003)
[] A comida era peacutessima era aquela comida do rancho parecia uma
lavagem de porco uma coisa horrorosa [] Eu fiquei com a pele toda
lsquofodidarsquo porque a uacutenica coisa que eu conseguia comer era o angu []
(Coimbra 30 nov 2004)
Portanto o conteuacutedo das refeiccedilotildees do DOI-CODIRJ aleacutem de ter ficado marcado
na memoacuteria dos prisioneiros pelo aspecto sensorial ou seja pelo gosto e apresentaccedilatildeo
ruins permaneceu tambeacutem pela relaccedilatildeo com a vaidade feminina e pelo fato de remeter a
momentos que foram compartilhados O angu marcou Ceciacutelia por ter feito mal a sua
pele jaacute que como eacute uma comida gordurosa lhe causou espinhas abalando ainda mais a
sua aparecircncia fiacutesica jaacute degrada por aquele cotidiano prisional O repolho por sua vez
deixou marcas na memoacuteria de Dulce por ser motivo de deboche entre as presas pois sua
196
presenccedila recorrente nos pratos ocasionava uma espeacutecie de piada entre elas e trazia um
pouco de descontraccedilatildeo
Outro aspecto do cotidiano do DOI-CODIRJ de 1970 tambeacutem alcanccedilado por
meio dos detalhes trazidos pelas memoacuterias de ex-prisioneiros satildeo as roupas Como natildeo
existiam uniformes institucionais na maior parte do tempo as roupas eram as mesmas
que eles vestiam no dia em que entraram no 1ordm BPE Dessa forma quando jaacute estavam
em celas coletivas os presos muitas vezes lavavam-nas e entatildeo voltavam a vestiacute-las
Depois de algum tempo afinal as famiacutelias acabavam descobrindo onde eles estavam
presos e algumas roupas eram deixadas no Palaacutecio Duque de Caxias antigo preacutedio do
Ministeacuterio do Exeacutercito no Centro da cidade do Rio de Janeiro para serem enviadas e
entregues no 1ordm BPE aos prisioneiros
No entanto ateacute isso chegar a acontecer demorava pois fazia parte da seguranccedila
institucional tentar manter num primeiro momento sigilo sobre seus presos Assim
Ceciacutelia presa em agosto de 1970 lembra que por ter sentido muito frio durante o seu
primeiro mecircs no DOI-CODIRJ ela e suas companheiras de cela costumavam
improvisar formas de protegerem os peacutes
[] a minha matildee ia ateacute o Ministeacuterio do Exeacutercito e ela dizia ldquo- Minha filha
estaacute laacute na PErdquo Aiacute quase um mecircs depois a minha matildee conseguiu mandar
roupa para mim Ateacute entatildeo minha filha era um loucura neacute A gente fedia
sabe A gente tomava banho de chuveiro e botava a mesma roupa a gente
lavava a roupa e era mecircs de agosto e ainda estava frio Era um frio que a
gente sentia que a gente enrolava jornal nos peacutes porque natildeo tinha nenhuma
coisa nada Era no colchatildeo puro que a gente dormia (Coimbra 30 nov
2004)
Quando as famiacutelias conseguiam descobrir onde estavam enviavam aleacutem de
roupas alguns mantimentos como frutas por exemplo Essas vinham muitas vezes
197
embrulhadas em jornais velhos que serviam para alguns como proteccedilatildeo para o corpo e
para outros como distraccedilatildeo conforme pode-se constatar na narrativa de Antocircnio ao
lembrar que ele e seus companheiros de cela passavam o tempo lendo as notiacutecias velhas
contidas em tais jornais
Eu me lembro tambeacutem que quando alguns presos recebiam frutas essas
coisas embrulhadas em papel jornal jornal velho a gente lia o jornal e
ficaacutevamos um bom tempo lendo aqueles jornais com datas de um mecircs trecircs
meses atraacutes mas era sempre bom para a cabeccedila da gente ficar lendo as
notiacutecias mesmo velhas [] (Carvalho 8 fev 2003)
Como jaacute aqui ressaltado a cumplicidade que existia entre os presos do DOI-
CODIRJ ajudava a construir mecanismos que os protegiam das mais diversas
dificuldades Segundo Dulce para amenizar a escassez de roupa a que eram submetidas
num primeiro momento dentro do DOI-CODIRJ as presas do ldquocoletivo das mulheresrdquo
estabeleceram uma espeacutecie de acordo Atraveacutes dele ficou determinado que quem de laacute
saiacutesse deixaria algumas peccedilas para quem ainda ficasse tinha uma espeacutecie de rotina
entre as mulheres que quem saiacutea deixava alguma roupa laacute (Pandolfi 5 fev 2003)
Assim atraveacutes desse tipo de cumplicidade elas ajudavam a diminuir o sofrimento
diaacuterio umas das outras uma vez que as peccedilas deixadas na cela possibilitavam que as
presas conseguissem manter a higiene e amenizar a sensaccedilatildeo do frio
Percebe-se portanto que de fato o dia-a-dia do DOI-CODIRJ de 1970 era
atiacutepico pois este natildeo era um presiacutedio e sim um oacutergatildeo de repressatildeo poliacutetica Assim uma
das poucas semelhanccedilas com a rotina de um presiacutedio comum era basicamente a privaccedilatildeo
da liberdade Poreacutem apesar de ofuscado pela tortura e pelo pavor ali existia um
cotidiano que abarcava outros aspectos muito interessantes Afinal estes satildeo capazes de
198
muito esclarecer sobre o funcionamento praacutetico desse importante oacutergatildeo de repressatildeo da
ditadura militar brasileira e tambeacutem sobre diversos tipos de reaccedilotildees e relaccedilotildees humanas
do passado e do presente
199
Conclusatildeo
Quando o muro separa uma ponte une
Se a vinganccedila encara o remorso pune
Vocecirc vem me agarra algueacutem vem me solta
Vocecirc vai na marra ela um dia volta
E se a forccedila eacute tua ela um dia eacute nossa
Olha o muro olha a ponte
Olha o dia de ontem chegando
Que medo vocecirc tem de noacutes
Olha aiacute
Vocecirc corta um verso eu escrevo outro
Vocecirc me prende vivo eu escapo morto
De repente olha eu de novo
Perturbando a paz exigindo o troco
Vamos por aiacute eu e meu cachorro
Olha um verso olha o outro
Olha o velho olha o moccedilo chegando
Que medo vocecirc tem de noacutes
Olha aiacute
O muro caiu olha a ponte
Da liberdade guardiatilde
O braccedilo do Cristo horizonte
Abraccedila o dia de amanhatilde
Olha aiacute
Mauriacutecio Tapajoacutes amp Paulo Ceacutesar Pinheiro
(Pesadelo 1972)
200
Diante do exposto ao longo desta dissertaccedilatildeo conclui-se que a formulaccedilatildeo da
Doutrina de Seguranccedila Nacional feita pela ESG em colaboraccedilatildeo com o IPES e o IBAD
cerca de vinte anos antes do surgimento dos DOI-CODI tinha por base uma teoria de
guerra que nortearia a atuaccedilatildeo repressora desses oacutergatildeos Essa teoria interpretava os
movimentos de oposiccedilatildeo que vinham crescendo desde o iniacutecio dos anos 1960 como uma
espeacutecie de guerra revolucionaacuteria Todos os cidadatildeos brasileiros passavam entatildeo a ser
encarados como suspeitos e foi esta percepccedilatildeo que estimulou o governo militar a
planejar a Seguranccedila Nacional e por conseguinte criar um centralizado e articulado
aparato de informaccedilotildees internas junto a um eficiente oacutergatildeo repressivo de controle
armado os DOI-CODI
Aleacutem disso constatou-se que a consolidaccedilatildeo dos DOI-CODI por todas as Regiotildees
Militares do paiacutes substanciou-se tambeacutem atraveacutes da alta legalidade autoritaacuteria e das
medidas tomadas pelo governo para conter as cizacircnias militares Afinal o governo
ditatorial brasileiro na medida em que arbitrou leis a fim de legalizar o seu poder
poliacutetico e suprimir direitos antes garantidos agrave populaccedilatildeo construiu uma sustentaccedilatildeo
juriacutedica necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um aparato de seguranccedila cada vez mais forte e
centralizado Grande parte dessas leis autoritaacuterias foi usada como artifiacutecio para acalmar
os acircnimos na caserna responsaacuteveis por importantes conflitos internos que ameaccedilavam a
uniatildeo militar as chamadas cizacircnias militares As leis arbitraacuterias serviam entatildeo tanto
para conter a oposiccedilatildeo poliacutetica quanto para ceder agraves reivindicaccedilotildees por poder vindas da
caserna Completava-se dessa forma um cenaacuterio legal capaz de suportar um organismo
de repressatildeo onde os militares de meacutedias e baixas patentes trabalhariam com autonomia
uma das bases para a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
Diante disso viu-se tambeacutem que natildeo foi agrave toa que a estrutura e o funcionamento
do SISSEGIN e dos seus oacutergatildeos foram instituiacutedos e regulamentados por meio de
201
decretos sigilosos o que incluiu a experiecircncia da Oban criada em Satildeo Paulo em
meados de 1969 e no ano seguinte a institucionalizaccedilatildeo dos DOI-CODI por todo o
paiacutes Afinal a justificativa para esse sigilo estava justamente na maior mobilidade e
autonomia de accedilatildeo que traria para a atuaccedilatildeo repressora desses organismos pois em
segredo podiam agir sem grandes limitaccedilotildees natildeo esbarrando em questotildees externas agraves
decisotildees militares tal como o respeito aos direitos humanos
Os DOI-CODI destacavam-se principalmente pela independecircncia financeira e pela
centralizaccedilatildeo hieraacuterquica que os constituiacuteam essenciais para a alta eficiecircncia de suas
investigaccedilotildees e accedilotildees Tais atributos evitavam que suas operaccedilotildees fossem suscetiacuteveis agrave
duplicidade de tarefas a competiccedilotildees e a conflitos de interesses maximizando os seus
resultados Eram entatildeo organismos de excelecircncia a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo
Entretanto essa sofisticaccedilatildeo tambeacutem vinha do distanciamento mantido entre os
militares do governo e os que agiam nesses oacutergatildeos jaacute que a ditadura ao mesmo tempo
em que sancionava a tortura nessa instituiccedilatildeo estrategicamente negava a sua existecircncia
perante a sociedade isentando governo do paiacutes de qualquer ligaccedilatildeo com ela Em
complemento a essa ideia o sistema funcional dos DOI responsaacuteveis por accedilotildees que
englobavam as prisotildees e os interrogatoacuterios dos presos poliacuteticos apresentava-se
complexo e informal Dessa forma as brechas para que a aparente falta de controle
fosse exercida eram amplas a fim de que meacutetodos violentos ilegais tivessem ali uma
legitimidade excepcional Justifica-se assim como a versatildeo oficial dos militares ainda
possa ser a de que a tortura jamais resultou de qualquer ordem ou orientaccedilatildeo superior
Evidenciou-se poreacutem a incoerecircncia desta versatildeo jaacute que ficou claro que em todos
os organismos militares nos DOI inclusive existiam uma forte hierarquia a ser
cumprida Mesmo com a estrutura complexa ali existente qualquer accedilatildeo deveria ser
remetida a um superior logo a questatildeo da responsabilidade sempre poderia ser
202
resgatada Percebeu-se que em geral apesar de velada a tortura era do conhecimento
de toda a hierarquia militar inclusive dos generais agrave frente do governo
Durante todo o trabalho a intervenccedilatildeo do presente (2002-2004) sobre as
memoacuterias do passado (1970) foi conferida nas narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos
entrevistados Percebeu-se que o contexto poliacutetico e social vivido no presente e o
momento da vida pessoal de cada um tiveram uma contribuiccedilatildeo importante na forma
como os ex-presos construiacuteram suas memoacuterias Aleacutem disso a forma como a rede de
entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que as entrevistas foram realizadas
tambeacutem concorreram para essa intervenccedilatildeo no relato que fizeram sobre o passado
Enfim um dos principais elementos para a anaacutelise criacutetica exercida aqui sobre essas
memoacuterias foi sem duacutevida o reconhecimento dessa influecircncia do presente sobre o
passado
A trajetoacuteria prisional dos entrevistados os grupos oposicionistas que integravam
as accedilotildees de que participaram o momento da prisatildeo o tempo que permaneceram presos
e as funccedilotildees que exerciam no presente foram aspectos aqui ressaltados por mostrarem
um pouco da histoacuteria de vida e por meio desta a personalidade ou seja as
idiossincrasias de cada um deles Dessa forma foi possiacutevel aproximar-se do aspecto
individual de suas memoacuterias uacutenico a cada ser entendendo um pouco mais as bases de
suas construccedilotildees
Tornou-se assim viaacutevel analisar essas memoacuterias e colocaacute-las em diaacutelogo com o
conteuacutedo levantado a partir da anaacutelise historiograacutefica e da monografia sobre o DOI
escrita pelo coronel Pereira em 1978 possibilitando uma caracterizaccedilatildeo do cotidiano
prisional vivido pelos presos do DOI-CODIRJ em 1970 O trabalho organizacional dos
DOI-CODIRJ foi visto portanto de forma praacutetica As funccedilotildees de cada setor e seccedilatildeo
teorizadas principalmente por meio da monografia do coronel foram analisadas a partir
203
do acircngulo dos prisioneiros o que viabilizou a percepccedilatildeo de detalhes que constituiacuteam a
rotina daquela instituiccedilatildeo
Ficou claro que a violecircncia era a principal forma de extraccedilatildeo de informaccedilotildees e o
elemento-chave para a eficiecircncia conferida pela instituiccedilatildeo com relaccedilatildeo ao combate aos
opositores poliacuteticos da eacutepoca A tortura e o medo dela ocupavam um espaccedilo
significativo no cotidiano ali impetrado aos prisioneiros uma vez que eles estavam no
DOI-CODIRJ para serem a ela submetidos de forma a fornecerem mais facilmente
informaccedilotildees que levassem os agentes dos DOI a outros suspeitos Poreacutem verificou-se
que a tortura natildeo era a uacutenica face do cotidiano do DOI-CODIRJ
Afinal este trabalho mostrou outros aspectos que constituiacuteam a rotina dos presos
dentro desse oacutergatildeo que ateacute entatildeo natildeo havia sido alcanccedilada pela historiografia Percebeu-
se aqui outros elementos que apesar de pouco destacados pelas memoacuterias dos
entrevistados muito tecircm a dizer sobre aquele cotidiano as fases prisionais as refeiccedilotildees
as roupas as formas de resistecircncia o conviacutevio ente prisioneiros e ateacute mesmo algumas
accedilotildees solidaacuterias efetuadas por soldados em benefiacutecio dos presos poliacuteticos
Constatou-se como a memoacuteria pode enriquecer a percepccedilatildeo que se tem sobre um
passado revelando faces natildeo evidenciadas em documentos oficiais e tambeacutem como eacute
importante para levar ateacute o presente um passado doloroso mas que deve ser encarado a
fim de ser perdoado e ultrapassado Uma movimentaccedilatildeo nesse sentido vem acontecendo
no Brasil com as Caravanas da Anistia e principalmente com a recente aprovaccedilatildeo da
Comissatildeo da Verdade conforme pontuado anteriormente
A atualidade dessas iniciativas inclusive estimulou esta pesquisa impulsionada
pela curiosidade sobre as memoacuterias do passado vivido nos ldquoporotildees da ditadurardquo Logo
o tema da presente dissertaccedilatildeo foi pautado pela crenccedila na necessidade de uma ampla
revelaccedilatildeo sobre o que ocorreu na eacutepoca de forma a contribuir para que a reconciliaccedilatildeo
204
do presente com o passado seja um dia alcanccedilada uma vez que defende-se aqui tal
como Paul Ricoeur (2008 507) que eacute no caminho da criacutetica histoacuterica que a memoacuteria
encontra o seu sentido de justiccedila Dessa forma tem-se o cidadatildeo como destinataacuterio do
texto histoacuterico cabendo a ele tornar a discussatildeo puacuteblica fazendo um balanccedilo entre
histoacuteria e memoacuteria a fim de que se perceba o sofrimento do outro e daqueles que
continuam a sofrer pelas matildeos do mesmo mal repressor do passado A partir disso a
reconciliaccedilatildeo entre o passado e presente se tornaraacute efetiva contribuindo para que no
futuro a democracia esteja plenamente consolidada
205
Fontes
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Requerimento de indenizaccedilatildeo enviado ao Secretaacuterio de Estado de Direitos
Humanos do Estado do Rio de Janeiro por Ana de Miranda Batista em outubro
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(DOI) do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo
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Maior do Exeacutercito (ECEME) 1978
2 Documentos Institucionais
Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio de Janeiro
Documentos do DOPS relativos a Ceciacutelia Maria Bouccedilas Coimbra
Documentos do DOPS relativos a Fernando Palha Freire
Documentos do DOPS relativos a Padre Maacuterio Prigol
Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro
Tombamento municipal lei nordm 1954 de 29 de marccedilo de 1993 Nordm do processo
1200433692
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CIDADAtildeO Boilesen Direccedilatildeo de Chaim Litewski Brasil 2009 (92 min) son
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de 2004
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setembro de 2002
CARVALHO Antocircnio Leite de Entrevista concedida agrave autora em 8 de fevereiro
206
de 2003
COIMBRA Ceciacutelia Maria Bouccedilas Entrevista concedida agrave autora em 30 de
novembro de 2004
FREIRE Fernando Palha Entrevista concedida agrave autora em 28 de junho de
2004
PANDOLFI Dulce Chaves Entrevista concedida agrave autora em 5 de fevereiro de
2003
PRIGOL Maacuterio [Padre] Entrevista concedida agrave autora em 28 de setembro de
2004
5 Fontes Visuais
BETTAMIO Rafaella Foto Nordm1 Dez 2004 1 aacutelbum (4 fotos) color
10X15cm
BETTAMIO Rafaella Foto Nordm2 Dez 2004 1 aacutelbum (4 fotos) color
10X15cm
BETTAMIO Rafaella Foto Nordm3 Dez 2004 1 aacutelbum (4 fotos) color
10X15cm
BETTAMIO Rafaella Foto Nordm4 Dez 2004 1 aacutelbum (4 fotos) color
10X15cm
6 Perioacutedicos
CAMAROTTI Gerson O Paiacutes Nota do Exeacutercito sobre caso Herzog causa
crise O GLOBO Rio de Janeiro 19 de outubro de 2004
CHICARINO Carlos Mergulhos na Histoacuteria EacutePOCA Rio de Janeiro 27 de
novembro de 2000 104
COMPARATTO Faacutebio Konder A Lei de Anistia de 1979 perante a Eacutetica e o
Direito GTNM Jornal do Grupo Tortura Nunca MaisRJ Rio de Janeiro
setembro de 2004
MARANHAtildeO Aluizio Caderno Prosa amp Verso Nos Bastidores da Ditadura O
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Ferreira Marieta de Moraes Usos e Abusos da Histoacuteria Oral Rio de Janeiro FGV
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BERQUOacute Alberto de Aguiar O sequumlestro dia-a-dia Rio de Janeiro Nova Fronteira
1997
BETTAMIO Rafaella O Castelo do terror memoacuteria e cotidiano de ex-prisioneiros
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poliacuteticas nas condiccedilotildees que menciona e daacute outras providecircncias Rio de Janeiro
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seguranccedila nacional a ordem poliacutetica e social estabelece seu processo e julgamento e daacute
outras providecircncias Brasiacutelia Ministeacuterio da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica
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05 fev 2012] Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL6683htm
214
BRASIL Lei Nordm9140 de 04 de novembro de 1995 Reconhece como mortas pessoas
desaparecidas em razatildeo de participaccedilatildeo ou acusaccedilatildeo de participaccedilatildeo em atividades
poliacuteticas no periacuteodo de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 e daacute outras
providecircncias Brasiacutelia Ministeacuterio da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em
13 nov 2011] Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9140htm
BRASIL Lei Nordm10559 de 13 de novembro de 2002 Regulamenta o art 8 ordm do Ato das
Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias e daacute outras providecircncias Brasiacutelia Ministeacuterio
da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em 13 nov 2011]
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BRASIL Lei Nordm12528 de 18 de novembro de 2011 Cria a Comissatildeo Nacional da
Verdade no acircmbito da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica Brasiacutelia Ministeacuterio da
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215
Anexo I - Glossaacuterio de Siglas
ACO ndash Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria
ADI ndash Aacutereas de Defesa Interna
ALN ndash Accedilatildeo Libertadora Nacional
APERJ ndash Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio de Janeiro
1degBPE ndash 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito
Condi ndash Conselho de Defesa Interna
CENIMAR ndash Centro de Informaccedilotildees da Marinha
CEP ndash Centro de Estudos de Pessoal
CGI ndash Comissatildeo Geral de Investigaccedilotildees
CIA ndash Central Intelligence Agency
CIE ndash Centro de Informaccedilotildees do Exeacutercito
CISA ndash Centro de Informaccedilotildees de Seguranccedila da Aeronaacuteutica
CNBB ndash Conferecircncia Nacional dos Bispos do Brasil
CONDI ndash Conselhos de Defesa Interna
CPDOC ndash Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil
CSN ndash Conselho de Seguranccedila Nacional
DCE ndash Diretoacuterio Central dos Estudantes
DEOPS ndash Departamento de Ordem e Poliacutetica Social de Satildeo Paulo
DGPC ndash Departamento Geral de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro
DI-GB ndash Dissidecircncia Comunista da Guanabara
DOI-CODI ndash Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees ndash Centro de Operaccedilotildees de
Defesa Interna
216
DOPS ndash Departamento de Ordem Poliacutetica e Social
DSN ndash Doutrina de Seguranccedila Nacional
ECEME ndash Escola de Comando e Estado Maior do Exeacutercito
ESG ndash Escola Superior de Guerra
EMFA ndash Estado Maior das Forccedilas Armadas
EsNI ndash Escola Nacional de Informaccedilotildees
Fafich ndash Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas de Belo Horizonte
FUEC ndash Frente Unida dos Estudantes do Calabouccedilo
FGV ndash Fundaccedilatildeo Getuacutelio Vargas
GTNMRJ ndash Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro
HCE ndash Hospital Central do Exeacutercito
IBRADES ndash Instituto Brasileiro de Estudos Sociais
IFCS ndash Instituto de Filosofia e Ciecircncias Sociais
IHTP ndash Instituto de Histoacuteria do Tempo Presente
IPCM ndash Instituto Penal Cacircndido Mendes
IPM ndash Inqueacuterito Policial Militar
JOC ndash Juventude Operaacuteria Catoacutelica
LOC ndash Liga Operaacuteria Catoacutelica
MDB ndash Movimento Democraacutetico Brasileiro
MR-8 ndash Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro
MTC ndash Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos
N-SISA ndash Nuacutecleo do Serviccedilo de Informaccedilotildees de Seguranccedila da Aeronaacuteutica
Oban ndash Operaccedilatildeo Bandeirantes
OLAS ndash Organizaccedilatildeo Latino-Americana de Solidariedade
217
PCB ndash Partido Comunista Brasileiro
PC do B ndash Partido Comunista do Brasil
PCBR ndash Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio
PT ndash Partido dos Trabalhadores
SADI - Sub-Aacutereas de Defesa Interna
SFICI ndash Serviccedilo Federal de Informaccedilotildees e Contra-Informaccedilotildees
SIM ndash Serviccedilo de Informaccedilotildees da Marinha
SNI ndash Serviccedilo Nacional de Informaccedilotildees
SISNI ndash Sistema Nacional de Informaccedilotildees
SISSEGIN ndash Sistema de Seguranccedila Interna
UFF ndash Universidade Federal Fluminense
UFRJ ndash Universidade Federal do Rio de Janeiro
UNE - Uniatildeo Nacional dos Estudantes
UNIRIO ndash Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
ZDI ndash Zona de Defesa Interna
218
Anexo II - A Hierarquia do Exeacutercito Brasileiro53
Ciacuterculos
Hieraacuterquicos54
Hierarquizaccedilatildeo Patentes do Exeacutercito
Ciacuterculo de oficiais
Ciacuterculo de oficiais-generais
Marechal
General de Exeacutercito
General de divisatildeo
General de brigada
Ciacuterculo de oficiais
superiores Coronel
Tenente-coronel
Major
Ciacuterculo de oficiais intermediaacuterios Capitatildeo
Ciacuterculo de oficiais
subalternos Primeiro- tenente
Segundo- tenente
Ciacuterculo de praccedilas
Ciacuterculo de suboficiais subtenentes e
sargentos
Subtenente
Primeiro-sargento
Segundo-sargento
Terceiro-sargento
Ciacuterculo de cabos e soldados
Cabo e taifeiro-mor
Soldado e taifeiro-de
primeira classe
Soldado-recruta e taifeiro-
de-segunda-classe
Ciacuterculo de praccedilas
especiais
Frequentam o ciacuterculo de oficiais
subalternos Aspirante-a-oficial
Excepcionalmente ou em reuniotildees sociais
tecircm acesso ao ciacuterculo de oficiais
Cadete (aluno da Academia
Militar)
Aluno da Escola
Preparatoacuteria de Cadetes do
Exeacutercito
Aluno de Oacutergatildeo de
Formaccedilatildeo da Reserva
Excepcionalmente ou em reuniotildees sociais
tecircm acesso ao ciacuterculo de suboficiais
subtenentes e sargentos
Aluno da Escola ou Centro
de Formaccedilatildeo de Sargentos
Frequentam o ciacuterculo de cabos e soldados Aluno de Oacutergatildeo de
Formaccedilatildeo de Praccedilas da
Reserva
53
LEIRNER 1997 74-75 54
Os ldquoCiacuterculos hieraacuterquicosrdquo satildeo o acircmbito de convivecircncia entre os militares da mesma categoria Esses
ldquociacuterculosrdquo satildeo incorporados a fundo na conduta militar de forma que a divisatildeo acima exposta eacute seguida
no ambiente de trabalho salas refeitoacuterios e banheiros da instituiccedilatildeo conforme demonstra Piero de
Camargo Leirner em estudo antropoloacutegico sobre a instituiccedilatildeo militar Meia Volta Volver (1997 74-76)
4
5
Agradecimentos
Agradeccedilo primeiramente agrave minha orientadora Profordf Drordf Marly Silva da Motta
por sua orientaccedilatildeo zelosa pelo apoio e pelos inuacutemeros ensinamentos Com sua ajuda
consegui ultrapassar muitas dificuldades e penetrar com seguranccedila no universo dessa
pesquisa
Ao Professor Ameacuterico Freire de quem tive o prazer de ser aluna durante o
mestrado agradeccedilo pelas aulas pela bibliografia sobre o periacuteodo militar que muito me
ajudou na elaboraccedilatildeo dessa anaacutelise pelas criacuteticas construtivas elaboradas durante o
exame de qualificaccedilatildeo e pela participaccedilatildeo na banca examinadora dessa dissertaccedilatildeo
Ao Professor Luiacutes Reznik agradeccedilo por ter integrado a banca do exame de
qualificaccedilatildeo fazer parte da presente banca examinadora e tambeacutem pelas valiosas
sugestotildees indicaccedilotildees bibliograacuteficas e comentaacuterios incorporados ao estudo e agrave redaccedilatildeo
final desse trabalho
Agrave Professora Dulce Pandolfi agradeccedilo por sua generosidade em aceitar ser de
certa forma sujeito e objeto desta pesquisa desde seu nascimento durante a minha
graduaccedilatildeo em Histoacuteria pela UNIRIO quando permitiu que eu lhe entrevistasse e que
seu depoimento servisse de fonte para minha monografia de fim de curso cuja banca
examinadora contou com sua participaccedilatildeo Tambeacutem lhe agradeccedilo por durante o
mestrado continuar acompanhando de perto esta pesquisa participando da banca do
exame de qualificaccedilatildeo quando trouxe muitas consideraccedilotildees e sugestotildees produtivas a
este trabalho e da banca examinadora final desta dissertaccedilatildeo
Agrave Professora Icleacuteia Thiesen agradeccedilo pela credibilidade e incentivo que vem
injetando na minha face de pesquisadora desde o tempo em que fui sua aluna ainda
durante a graduaccedilatildeo
Aos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados Antocircnio Leite de Carvalho Dulce
Pandolfi Fernando Palha Freire Padre Maacuterio Prigol Ana Batista e Ceciacutelia Coimbra
agradeccedilo por me confiarem suas narrativas e me deixarem penetrar em parte de suas
memoacuterias
6
Agrave Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional onde muito me orgulho de trabalhar agradeccedilo
por incentivar a minha qualificaccedilatildeo enquanto pesquisadora permitindo que eu cursasse
o mestrado e me licenciasse nos uacuteltimos meses para me dedicar a esta dissertaccedilatildeo de
corpo e alma
Ao Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNMRJ) agradeccedilo por me
autorizar a consultar o arquivo da instituiccedilatildeo e por me receber afetuosamente durante
diversas reuniotildees onde pude conhecer alguns de seus integrantes tais como Ana Batista
e Ceciacutelia Coimbra a quem tive o prazer de entrevistar
Aos amigos Joatildeo Cerineu e Alejandra Estevez agradeccedilo a contribuiccedilatildeo
fundamental que efetuaram sobre este trabalho sendo os responsaacuteveis por me apresentar
aos ex-prisioneiros poliacuteticos Antocircnio e Padre Maacuterio
Agradeccedilo aos meus irmatildeos Rodrigo Renata e Melissa ao Rodrigo por despertar
em mim a vontade e a coragem de seguir a profissatildeo de historiadora agrave Renata por me
apoiar e ouvir sobre minha pesquisa atentamente mesmo quando eu repetia as mesmas
histoacuterias diversas vezes e principalmente agrave Melissa que muito me ajudou na
composiccedilatildeo do ldquoabstractrdquo desse trabalho com o seu inglecircs simplesmente perfeito
Aos amigos queridos que a Biblioteca Nacional me deu de presente
companheiros de jornada que me fazem melhorar a cada dia como profissional e que me
acompanharam durante todo o processo do mestrado me apoiando no que foi preciso e
me ajudando a superar os obstaacuteculos do dia-a-dia Agradeccedilo especialmente agrave Lia Jordatildeo
pelo companheirismo diaacuterio ao Francisco Madureira pelo auxiacutelio na ediccedilatildeo final dessa
dissertaccedilatildeo e agrave Regina Santiago pela amizade e disposiccedilatildeo sem igual em ler
minuciosamente este trabalho apontando sugestotildees que indiscutivelmente tornaram o
texto mais claro
Agraves amigas Manuela Joana e Letiacutecia agradeccedilo por estarem sempre comigo nas
alegrias e nas tristezas compartilhando conquistas e derrotas desde os tempos em que
juntas frequentaacutevamos as festas juninas da PE
7
Aos amigos do curso de Histoacuteria da UNIRIO agradeccedilo pelas trocas intelectuais
pelos incontaacuteveis momentos divertidos pela camaradagem e por essa amizade de dez
anos de histoacuteria
Aos meus pais sou e serei eternamente grata pelo carinho pelo apoio e por sempre
estarem ao meu lado durante todos esses anos
Aos meus sogros Eliana Lasmar e Luiz Fernando Arieira agradeccedilo por estarem
sempre por perto dispostos a estenderem a matildeo quando preciso
E por fim meus agradecimentos especiais a Raul Cordeiro meu companheiro de
todas as horas o engenheiro mais humano que eu jaacute conheci Agradeccedilo-lhe por tudo que
temos vivido juntos por nosso cantinho por nossas conversas por nosso conviacutevio de
todo dia por nosso amor pelo tanto e tatildeo pouco que enfeita cada momento da minha
vida me completa e me faz uma pessoa mais feliz
8
Tambeacutem neste lugar pode-se sobreviver e por isso eacute preciso
querer sobreviver para contar para testemunhar e que para
viver eacute importante esforccedilarmo-nos para salvar pelo menos o
esqueleto os pilares a forma da nossa civilizaccedilatildeo [hellip]
(Levi 2001 40)
9
Resumo
O objetivo dessa dissertaccedilatildeo eacute analisar a memoacuteria de seis ex-prisioneiros poliacuteticos
do Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees-Centro de Operaccedilotildees de Defesa Interna
do Rio de Janeiro (DOI-CODIRJ) entrevistados recentemente entre os anos de 2002 e
2004 sobre o cotidiano vivido nessa instituiccedilatildeo em 1970 Naquele ano dentro do
Sistema de Seguranccedila Interna (SISSEGIN) os DOI-CODI haviam sido criados e
distribuiacutedos por todas as Regiotildees Militares do paiacutes tornando-se a principal instituiccedilatildeo
de repressatildeo aos opositores poliacuteticos que optaram pela luta armada como forma de
derrotar a ditadura militar brasileira Assim as narrativas desses seis ex-prisioneiros
satildeo aleacutem de fontes essenciais o principal objeto de estudo deste trabalho Atraveacutes
delas torna-se possiacutevel acessar aspectos cruciais para a caracterizaccedilatildeo do cotidiano
vivido pelos presos em um desses oacutergatildeos ― o DOI-CODI do Rio de Janeiro ― uma
vez que esse passado se liga ao presente por meio de suas memoacuterias Diante disso a fim
de melhor entender tais memoacuterias a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI tambeacutem satildeo
aqui analisadas colocando as narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados em
diaacutelogo com uma bibliografia especialmente selecionada aleacutem de uma fonte a respeito
do DOI feita por um de seus agentes quando este oacutergatildeo ainda estava em atividade em
1978 Para que a essas memoacuterias seja aplicada uma criacutetica efetiva necessaacuteria a todo
trabalho histoacuterico o estudo se debruccedila ainda sobre as interferecircncias que o presente
exerce na construccedilatildeo que fazem com relaccedilatildeo ao passado vivido no DOI-CODIRJ com
o objetivo de esclarecer as bases sobre as quais satildeo construiacutedas cerca de trinta anos
depois
Palavras-chave Ex-prisioneiros poliacuteticos ndash Memoacuteria ndash DOI-CODI ndash Cotidiano ndash
Ditadura militar
10
Abstract
The objective of this thesis is to analyze the memory of six former political
prisoners of the Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees-Centro de Operaccedilotildees de
Defesa Interna do Rio de Janeiro or DOI-CODIRJ (Detachment of Information
Operations Center-Internal Defense Operations Center of Rio de Janeiro) recently
interviewed between 2002 and 2004 about their everyday living in that institution in
1970 At that year in the Sistema de Seguranccedila Interna or SISSEGIN (Internal Security
System) the DOI-CODI had been created and distributed by all the countryrsquos military
regions becoming the repression leading instituion of political opponents who oppted
for armed struggle as a way to defeat Brazilrsquos military dictatorship Thus these six
former prisioners narratives are not only essencial sources but the main study object of
this paper Through them it becomes possible to access crucial aspects for the
characterization of the daily lived by prisioners in one of these agencies - the DOI-
CODI in Rio de Janeiro - since this past connects to present through their memories
Therefore in order to understand such memories the training and the performance of
the DOI-CODI are also analyzed here placing the narratives of the interviewed former
political prisioners in dialogue with a specially selected bibliography and a source
about DOI made by one of its agents when that agency was still active in 1978 In
order to be applied to these memories an effective critique necessary to all historical
work the study still focuses on the interferences that the present exerts on the
construction that make in relation to the past lived in DOI-CODIRJ in order to clarify
the basis on which are built at about thirty years later
Key-Words Former political prisioners ndash Memory ndash DOICODI ndash daily Life ndash Military
dictatorship
11
Sumaacuterio
Agradecimentos 05
Resumo 09
Abstract 10
Introduccedilatildeo 13
Capiacutetulo 1 Os DOI-CODI formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo 28
1 Debate Histoacuterico 35
11 O papel da ESG para o Sistema de Seguranccedila Nacional 35
12 Os conceitos legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar 39
13 A montagem e o funcionamento do SISSEGIN 47
2 O DOI-CODI por ele mesmo 57
3 O DOI-CODI pelos prisioneiros 75
Capiacutetulo 2 Os presos poliacuteticos e suas organizaccedilotildees 85
1 A rede de entrevistas 91
11 Os sujeitos e suas trajetoacuterias 97
12 A nova esquerda brasileira 122
Capiacutetulo 3 O espaccedilo e o cotidiano do DOI-CODI carioca 136
1 O que sofre e o que resiste 137
2 Uma cartografia possiacutevel do ldquoCastelo do Terrorrdquo 142
12
3 Memoacuterias de um cotidiano 154
31 O interrogatoacuterio e a tortura 156
32 O dia-a-dia no caacutercere 184
Conclusatildeo 199
Fontes 205
1 ArquivoDocumentos Pessoais 205
2 Documentos Institucionais 205
3 Fonte Cinematograacutefica 205
4 Fontes Orais 205
5 Fontes Visuais 206
6 Perioacutedicos 206
Bibliografia 207
1 Bibliografia digital 213
Anexo I Glossaacuterio de Siglas 215
Anexo II A Hierarquia do Exeacutercito Brasileiro 218
13
Introduccedilatildeo
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo entatildeo que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino praacute laacute
Roda mundo roda gigante
Roda moinho roda piatildeo
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coraccedilatildeo
A gente vai contra a corrente
Ateacute natildeo poder resistir
Na volta do barco eacute que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que haacute
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira praacute laacute
Chico Buarque
(Roda Viva 1968)
14
Vivi bons momentos no 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito Era adolescente e os
momentos aos quais me refiro foram vividos durante o final de uma deacutecada
democraacutetica a de 1990 Mal sabia sobre a ditadura militar e muito menos que aquele
Batalhatildeo situado tatildeo proacuteximo agrave minha casa na Tijuca havia sediado um centro de
tortura O nome DOI-CODI nunca tinha ouvido falar Para mim e para todos os
adolescentes da Tijuca o 1ordm BPE era um Batalhatildeo convencional do Exeacutercito que tinha
um grande paacutetio utilizado todos os anos para a melhor festa junina da regiatildeo a ldquofesta
junina da PErdquo Logo para noacutes a principal caracteriacutestica da PE era o fato de durante os
meses de junho abrir as portas do seu paacutetio para tornaacute-lo ldquoponto de encontrordquo de muitos
jovens estudantes Quanta ironia
Jaacute no terceiro periacuteodo da faculdade de Histoacuteria da UNIRIO no primeiro semestre
de 2002 descobri o que aquele preacutedio havia sido durante a ditadura militar Soube
inclusive que ele era tombado pelo antigo Departamento Geral de Patrimocircnio Cultural
(DGPC) da Prefeitura justamente por representar a memoacuteria de muitos ex-prisioneiros
poliacuteticos que ali haviam sido torturados e mortos Fiquei perplexa Como nunca
ningueacutem havia me dito isso Como os professores de Histoacuteria da minha escola
localizada no mesmo bairro natildeo haviam destacado esse fato Por que essa parte da
Histoacuteria natildeo era amplamente divulgada Eu que sempre gostei de Histoacuteria natildeo agrave toa
escolhi fazer dela minha formaccedilatildeo e profissatildeo me senti instigada a revelar as memoacuterias
dos presos poliacuteticos que por laacute passaram A partir dessa descoberta mais do que uma
ldquonovardquo face do 1ordm BPE eu havia me deparado com outra revelaccedilatildeo o meu tema de
pesquisa
A partir de um amigo do curso de Histoacuteria no final de 2002 cheguei ao meu
primeiro entrevistado e daiacute em diante teci uma rede de entrevistas No final de 2004
havia reunido seis entrevistados trecircs homens e trecircs mulheres todos ex-prisioneiros
15
poliacuteticos que passaram pelo DOI-CODIRJ durante o mesmo ano de 1970 Essa
pesquisa resultou em minha monografia apresentada em 2005 como requisito para a
conclusatildeo do curso de Histoacuteria da UNIRIO O Castelo do terror memoacuteria e tortura no
espaccedilo prisional (1970-1974) 1
Natildeo abandonei o tema Ao contraacuterio resolvi aprofundaacute-lo no mestrado em
Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais do CPDOCFGV onde ingressei em marccedilo de 2010
Nessa dissertaccedilatildeo que representa a fase conclusiva do mestrado trabalho com os
depoimentos dos mesmos seis ex-prisioneiros do DOI-CODIRJ de 1970 colhidos entre
os anos de 2002 e 2004 Aqui o objetivo mais amplo eacute se inserir no conjunto de estudos
que reflete sobre a construccedilatildeo de uma determinada memoacuteria a respeito da ditadura
militar
Analisar a memoacuteria de ex-prisioneiros poliacuteticos a fim de entender como essas
foram construiacutedas jaacute em tempos democraacuteticos e o que trazem em benefiacutecio da
caracterizaccedilatildeo daquele passado eacute o objetivo principal desta dissertaccedilatildeo Assim sendo
alguns aspectos especiacuteficos merecem ser destacados
O primeiro deles eacute que as entrevistas foram concedidas entre os anos 2002 e 2004
ou seja o passado ditatorial foi recuperado jaacute em tempos democraacuteticos Ao mesmo
tempo considerou-se que esses depoimentos satildeo fontes essenciais para atingir o
objetivo aqui traccedilado jaacute que a metodologia de histoacuteria oral eacute a mais adequada para
analisar os aspectos subjetivos e repletos de detalhes que correspondem ao rigoroso dia-
a-dia de quem esteve preso em um organismo repressor Logo eacute faacutecil concluir que as
fontes que permitiram a elaboraccedilatildeo deste estudo natildeo poderiam ser encontradas em
documentaccedilatildeo oficial
1 O Castelo do terror memoacuteria e cotidiano de ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI carioca (1970-
1979) monografia de fim de curso de bacharelado e licenciatura plena em Histoacuteria da UNIRIO orientada
pela Profordf Drordf Icleacuteia Thiesen e apresentada em abril de 2005
16
Instituiacutedos por todo o territoacuterio brasileiro a partir de 1970 os DOI-CODI
tornaram-se referecircncia-chave na memoacuteria sobre a tortura e a repressatildeo praticada pela
ditadura militar A partir disso nota-se que o trabalho desenvolvido com as memoacuterias
de ex-prisioneiros de uma de suas sedes a do Rio de Janeiro eacute uma das escassas
possibilidades existentes de se acessar esse passado ainda tatildeo presente
Esse objeto de estudo representa um grande desafio Afinal estaacute inserido entre
duas temporalidades recentes ndash quando a experiecircncia prisional foi efetivamente vivida
em 1970 e quando ela foi narrada pelos entatildeo ex-prisioneiros poliacuteticos entre 2002 e
2004 Por isso mesmo lanccedilou-se matildeo do aparato teoacuterico do que se convencionou
chamar de histoacuteria do tempo presente A partir dos anos 1980 durante o processo de
renovaccedilatildeo da histoacuteria poliacutetica a valorizaccedilatildeo de uma histoacuteria das representaccedilotildees e a
compreensatildeo dos usos poliacuteticos do passado pelo presente acarretou uma reavaliaccedilatildeo das
relaccedilotildees estabelecidas entre histoacuteria e memoacuteria que permitiu agrave historiografia fazer novas
reflexotildees sobre as relaccedilotildees entre passado e presente 2 Diante dessa percepccedilatildeo nasceu
na Franccedila o Instituto de Histoacuteria do Tempo Presente (IHTP) fundado por Franccedilois
Beacutedarida consolidando a histoacuteria do tempo presente como portadora da especificidade
de conviver com testemunhos vivos colocando sob seu foco principal os depoimentos
orais 3
A histoacuteria oral eacute portanto a metodologia principal desta dissertaccedilatildeo e por
conseguinte os depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos dela decorrentes satildeo aqui
tratados com todo o rigor necessaacuterio agrave pesquisa histoacuterica Afinal apesar de ser
demasiadamente criticada por ser uma metodologia apoiada na memoacuteria o que a
tornaria capaz de produzir representaccedilotildees e natildeo reconstituiccedilotildees do real entende-se que
2 Para mais informaccedilotildees sobre o surgimento da histoacuteria do tempo presente na historiografia ver Remoacutend
1996 e Ferreira dez 2002 314-332 3 Para mais informaccedilotildees sobre os fundamentos da histoacuteria do tempo presente ver Beacutedarida 2006 219-
229
17
as narrativas orais devem ser submetidas ao crivo da criacutetica histoacuterica tal como deve
ocorrer com todas as outras fontes Os documentos orais ou escritos tecircm uma razatildeo de
ser pois foram feitos por algueacutem com determinada visatildeo estimulado por algum motivo
eou intenccedilatildeo e por isso nunca seratildeo capazes de representar a realidade pura e absoluta
dos fatos Portanto qualquer fonte caso natildeo seja bem contextualizada e analisada
possibilita que a pesquisa caia em armadilhas e reconstrua um passado que nunca
existiu conforme bem elucidado por Michael Pollak
[] se a memoacuteria eacute socialmente construiacuteda eacute oacutebvio que toda documentaccedilatildeo
tambeacutem o eacute Para mim natildeo haacute diferenccedila fundamental entre fonte escrita e
oral A criacutetica da fonte tal como todo historiador aprende a fazer deve a
meu ver ser aplicada a fontes de tudo quanto eacute tipo (Pollak 1992 207-208)
A histoacuteria oral eacute de grande valia agrave histoacuteria do tempo presente contribuindo para
que o estudo da histoacuteria recente ndash por natureza mais inacabada do que qualquer outra
histoacuteria (Beacutedarida 2006 229) ndash seja incentivado desafiando as dificuldades
relacionadas ao acesso a fontes documentais de periacuteodos pouco distantes Aleacutem disso a
histoacuteria oral traz outro diferencial aqui destacado atraveacutes da fala torna-se possiacutevel
evidenciar uma carga subjetiva tornando acessiacutevel um tipo de informaccedilatildeo capaz de
enriquecer a anaacutelise histoacuterica e que natildeo seria obtido por meio de fontes escritas oficiais
Assim mesmo que uma experiecircncia relatada natildeo seja em si mesma um fato de certa
forma pode vir a secirc-lo jaacute que traz agrave tona o verdadeiro sentimento de algueacutem perante
uma situaccedilatildeo e esse sentimento eacute um fato que soacute pode ser alcanccedilado mediante agraves
memoacuterias trazidas pelos relatos (Portelli 1996 59-72)
Os usos que os ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ fazem de seu passado
prisional eacute um dos principais aspectos aqui ressaltados Para tanto o conceito de
presente do passado de Robert Frank (1999) eacute utilizado ao longo deste trabalho como
18
ferramenta para destacar as influecircncias que o presente de suas narrativas exerce sobre a
maneira pela qual eacute revivido o passado vivenciado no DOI-CODIRJ
Desde que haviam passado pelo DOI-CODI carioca em 1970 em plena ditadura
militar a chamada ldquolei de anistiardquo jaacute havia sido instituiacuteda no paiacutes em 1979 que entre
outras providecircncias anistiava todos quantos no periacuteodo compreendido entre 02 de
setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 cometeram crimes poliacuteticos ou conexos com
estes (lei nordm 66831979) a ditadura militar havia terminado com a eleiccedilatildeo indireta de
um presidente civil em 1985 a Assembleia Nacional Constituinte havia sido instalada
em 1987 e a Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil a chamada ldquoconstituiccedilatildeo
cidadatilderdquo havia sido promulgada no ano seguinte e finalmente o primeiro presidente
civil eleito pelo voto direto apoacutes a ditadura militar havia tomado posse em 1990
completando a transiccedilatildeo poliacutetica do paiacutes ou seja tornando a ditadura uma memoacuteria do
passado e a democracia o momento presente Democracia esta que na eacutepoca em que os
depoimentos foram concedidos apresentava ainda mais sinais de seu fortalecimento e
consolidaccedilatildeo jaacute que o Brasil havia elegido para presidente o socioacutelogo e professor da
USP Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e o ex-operaacuterio e liacuteder sindical Luiacutes
Inaacutecio Lula da Silva (2003-2010) ambos perseguidos poliacuteticos durante o periacuteodo
ditatorial
Com relaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo dos que sofreram danos decorrentes da poliacutetica repressiva
promovida pela ditadura militar desde 1995 estava em curso o reconhecimento pelo
Estado brasileiro dos mortos e desaparecidos poliacuteticos durante a ditadura e a
indenizaccedilatildeo as suas famiacutelias (lei nordm 914095) Aleacutem disso a reparaccedilatildeo financeira aos
males sofridos por aqueles que ficaram presos ou foram perseguidos na eacutepoca tambeacutem
estava em voga desde 2002 (lei nordm 1055902) A demanda desta lei principalmente no
caso daqueles que passavam pelo processo de solicitaccedilatildeo eacute um elemento a ser levado
19
em conta na maneira pela qual os entrevistados construiacuteram suas narrativas Afinal o
procedimento necessaacuterio agrave concessatildeo da reparaccedilatildeo incluiacutea a construccedilatildeo de um memorial
sobre as mazelas a que os requerentes haviam sido submetidos pelo Estado durante a
ditadura militar
Dessa forma as narrativas significavam tambeacutem para os ex-prisioneiros poliacuteticos
um meio de conseguirem apoio da sociedade em favor da ampliaccedilatildeo desse
reconhecimento iniciado pelo Estado brasileiro Atraveacutes de suas narrativas poderiam
contribuir para que suas memoacuterias fossem encampadas pela histoacuteria Logo pode-se
dizer que no sentido atribuiacutedo por Michael Pollak (1992) esses depoimentos foram
concedidos sob o horizonte de contribuir com o trabalho de enquadramento da
memoacuteria nacional sobre a ditadura militar brasileira jaacute que esta ateacute hoje natildeo estaacute
consolidada
Finalmente verifica-se que ainda ocorre uma disputa pela memoacuteria da ditadura
militar onde de um lado estatildeo os que sofreram o peso da matildeo forte da ditadura e de
outro os militares que argumentam que os ldquoanos de chumbordquo devem ser relegados ao
passado Como exemplo a declaraccedilatildeo dada em outubro de 2004 ao jornal O Globo por
um representante do Exeacutercito em resposta agrave publicaccedilatildeo de supostas fotos pelas quais o
jornalista Vladimir Herzog4 aparece sendo humilhado na prisatildeo
As medidas tomadas pelas forccedilas legais foram uma legiacutetima resposta agrave
violecircncia dos que recusaram o diaacutelogo optaram pelo radicalismo e pela
ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e de desencadear accedilotildees
criminosas [] sentiu-se a necessidade da criaccedilatildeo de uma estrutura com
vistas a apoiar em operaccedilatildeo e inteligecircncia as atividades necessaacuterias para
desestruturar os movimentos radicais e ilegais [] Mesmo sem qualquer
mudanccedila de posicionamento e de convicccedilotildees em relaccedilatildeo ao que aconteceu
4 Vladimir Herzog era integrante do PCB e diretor da TV Cultura quando foi preso em outubro de 1975
no DOI-CODISP onde dias depois foi morto sob torturas Para mais informaccedilotildees sobre o caso Vladimir
Herzog e seus sucessivos encadeamentos ver Moraes 2006
20
naquele periacuteodo histoacuterico considera-se accedilatildeo pequena reavivar revanchismos
ou estimular discussotildees esteacutereis sobre conjunturas passadas que a nada
conduzem (Camarotti 19 out 2004 12)
Essa disputa travada entre a lembranccedila e o esquecimento pode ser notada atraveacutes
da batalha em torno do preacutedio que serviu de sede ao DOI-CODIRJ o 1ordm BPE Essa foi
iniciada nos primeiros anos da deacutecada de 1990 por meio de uma tentativa do Exeacutercito
de vender o edifiacutecio Sabendo da situaccedilatildeo um conjunto de moradores dos arredores
buscou impedir a venda solicitando o tombamento de todo o espaccedilo ocupado pelo
quartel agrave Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro alegando a sua importacircncia para a
memoacuteria poliacutetica do paiacutes Essa atitude eacute evidenciada em um manifesto contendo 236
assinaturas em defesa da preservaccedilatildeo do preacutedio que serviu como documento de
abertura para o processo de tombamento do edifiacutecio na Subsecretaria de Patrimocircnio
Cultural da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro
O Exeacutercito brasileiro alegando falta de recursos para seu programa de
construccedilatildeo de quarteacuteis em outros estados pretende vender o imoacutevel onde
estaacute o 1ordm BPE Trata-se de um imoacutevel altamente valorizado pela ampla infra-
estrutura urbana [] Acontece que o valor que o Exeacutercito quer faturar foi
criado a partir de obras e investimentos custeados com os impostos e taxas
que pagamos todos noacutes haacute mais de um seacuteculo O Exeacutercito natildeo contribuiu
em nada para isso e agora quer se apropriar desse valor para investir sabe-se
laacute aonde [] consideramos que o preacutedio do Batalhatildeo da PE estaacute
indissoluvelmente cravado na histoacuteria nas tradiccedilotildees na esteacutetica e na
paisagem local [] Sabemos que o Batalhatildeo da PE foi sede do DOI-CODI
na eacutepoca da ditadura militar e que ali estiveram presos e foram torturados
muitos companheiros nossos tendo inclusive alguns sido dados como
ldquodesaparecidosrdquo Tambeacutem por esta razatildeo o preacutedio estaacute ligado agrave memoacuteria
poliacutetica desse paiacutes [] Queremos na aacuterea um centro cultural com teatro e
museu agrave memoacuteria da luta pela liberdade com parque e jardins Esses satildeo os
21
anseios da comunidade e natildeo outrosrdquo (Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural
da Prefeitura do Rio de Janeiro 1992) 5
Aleacutem desse documento outras solicitaccedilotildees de preservaccedilatildeo do preacutedio foram
enviadas agrave Cacircmara Municipal por Associaccedilotildees de Moradores da Tijuca e bairros
vizinhos Enfim em 29 de marccedilo de 1993 no primeiro mandato do entatildeo prefeito Ceacutesar
Maia o processo de tombamento do 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito foi finalizado
No entanto a ideia de tiraacute-lo do Exeacutercito a fim de tornar o espaccedilo um centro cultural
que contivesse um museu da memoacuteria da luta pela liberdade natildeo se concretizou pois
apoacutes o tombamento o Exeacutercito natildeo deixou o local onde permanece ateacute os dias atuais
sinalizando que natildeo tem interesse em que o edifiacutecio se torne efetivamente um lugar de
memoacuteria tal como o conceito criado por Pierre Nora (1993)
No preacutedio do 1ordm BPE se encontram os trecircs sentidos atribuiacutedos por Nora como
caracteriacutesticos a um lugar de memoacuteria o material o simboacutelico e o funcional (Nora
1993 21) O sentido material no caso eacute o proacuteprio espaccedilo fiacutesico que ainda se conserva
no mesmo local sem grandes intervenccedilotildees o simboacutelico eacute o que o espaccedilo representa para
uma parte da sociedade carioca como marco memorial de um passado que natildeo se deve
esquecer e o funcional eacute a memoacuteria da ditadura militar ali preservada por meio do
tombamento do edifiacutecio Logo querendo ou natildeo o preacutedio do 1ordm BPE eacute um lugar de
memoacuteria jaacute que naquele espaccedilo fiacutesico ou seja material se encontram uma funccedilatildeo e
uma representaccedilatildeo simboacutelicas ligadas agrave memoacuteria da ditadura militar
A disputa em torno dessa memoacuteria parece aos poucos caminhar cada vez mais
para o lado dos ex-presos e perseguidos poliacuteticos Recentemente aleacutem das leis
5 Este documento que deu iniacutecio ao referido processo no ano de 1992 hoje se encontra arquivado na
Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro antigo Departamento Geral de
Patrimocircnio Cultural (DGPC) junto ao restante da documentaccedilatildeo que compocircs o processo Nordm
1200433692 e originou a lei municipal nordm 1954 de 290393
22
reparadoras citadas acima um grande obstaacuteculo foi ultrapassado para que os crimes
ocorridos durante a ditadura militar sejam apurados e desvendados Em outubro de
2011 a Comissatildeo da Verdade foi enfim aprovada pelo Congresso Nacional e em
novembro do mesmo ano a lei que a institui sancionada pela Presidente Dilma
Rousseff Nesse contexto esta dissertaccedilatildeo ao estudar as memoacuterias de seis ex-
prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ relaciona-se com essa atualidade cumprindo
um papel social relevante
O ofiacutecio do historiador que pressupotildee trilhar caminhos e fazer escolhas
significando por exemplo atribuir significado agraves palavras agraves fontes e agrave bibliografia
escolhidas norteou a seleccedilatildeo e os criteacuterios aqui estipulados Conforme apontado por
Reinhart Koselleck (2006 167) eacute impossiacutevel que o ponto de vista do historiador deixe
de influenciar na representaccedilatildeo que faz dos fatos Assim cabe deixar claro que este
trabalho foi movido pelo interesse que as memoacuterias dos ex-prisioneiros poliacuteticos do
DOI-CODIRJ despertaram em mim Vale dizer que essa dissertaccedilatildeo eacute avessa ao
postulado cientiacutefico da total imparcialidade no sentido de neutralidade apartidarismo
ou abstenccedilatildeo seguindo orientaccedilatildeo de Manoel Salgado Guimaratildees (2008)
Ao historiador de ofiacutecio seria exigido cada vez mais uma escrita submetida
aos ditames dos afetos sejam eles derivados de engajamentos poliacuteticos
especiacuteficos de crenccedilas particulares ou mesmo derivados de um convite agrave
individualidade do historiador Este seria instado a mostrar-se atraveacutes de seu
texto postura bastante diversa daquela que o obrigava a esconder-se por traacutes
da pesquisa cientiacutefica (Guimaratildees 2008 17)
O primeiro capiacutetulo tem por objetivo analisar a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-
CODI que a partir de 1970 passaram a integrar o Sistema de Seguranccedila Interna
(SISSEGIN) se espalharam por todas as Regiotildees Militares do Brasil e se tornaram a
principal instituiccedilatildeo de repressatildeo aos opositores poliacuteticos da ditadura militar Afinal a
23
partir do entendimento sobre a criaccedilatildeo e o funcionamento dessa instituiccedilatildeo se pretende
criar as condiccedilotildees necessaacuterias para analisar as memoacuterias dos seis ex-prisioneiros
poliacuteticos sobre uma de suas sedes o DOI-CODIRJ uma vez que a passagem por esse
espaccedilo prisional eacute aqui entendida como um elo fundamental entre essas memoacuterias
Assim optou-se por estruturar este capiacutetulo por meio de trecircs frentes 1) o debate
historiograacutefico 2) a monografia O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI)
do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e
perspectiva escrita em 1978 pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira
3) os depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de
Janeiro concedidos entre os anos de 2002 e 2004
A primeira frente de estudo se concentra em analisar a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos
DOI-CODI agrave luz da historiografia Nela apresentam-se autores e conceitos selecionados
a fim de elucidar algumas questotildees levantadas Qual o papel da Escola Superior de
Guerra (ESG) para a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional e dos DOI-CODI
Como a praxe ditatorial em respaldar atitudes arbitraacuterias por meio de leis
compulsoriamente promulgadas ou seja atraveacutes da legalidade autoritaacuteria conforme
nomenclatura utilizada por Anthony Pereira (2010) gerou as bases para a criaccedilatildeo do
SISSEGIN e dos DOI-CODI Como os conflitos internos gerados no seio da instituiccedilatildeo
militar que ocasionaram dissidecircncias as cizacircnias militares tal como conceituado por
Joatildeo Roberto Martins Filho (1993) influenciaram os rumos da ditadura e a construccedilatildeo
de seu aparato de seguranccedila interna De que maneira a montagem e o funcionamento do
SISSEGIN e dos DOI-CODI foram organizados e constituiacutedos
Jaacute a segunda e a terceira frentes de estudo deste capiacutetulo servem para analisar as
visotildees de atores que de uma forma ou de outra viveram os DOI-CODI Na segunda a
anaacutelise sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI debruccedila-se sobre a visatildeo de um de
24
seus agentes atraveacutes da fonte O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do
Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo escrita pelo coronel de
cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira apontado por ex-prisioneiros poliacuteticos com um dos
torturadores do DOI do Rio de Janeiro Trata-se de uma monografia que o referido
coronel apresentou agrave Escola de Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) em
1978 quando os DOI-CODI apesar de atuantes jaacute sofriam certa diminuiccedilatildeo de suas
atividades O trabalho em cima desse documento se direciona no sentido de analisar
dados representativos do poder coercitivo dos DOI-CODI do iniacutecio dos anos 1970 e de
descrever os afazeres de cada uma de suas seccedilotildees a fim de contribuir para o
entendimento sobre o funcionamento interno deste oacutergatildeo Por fim na terceira frente a
anaacutelise eacute efetuada por meio das memoacuterias dos seis ex-prisioneiros entrevistados entre os
anos de 2002 e 2004 objeto central dessa dissertaccedilatildeo Dessa forma procura-se aqui
responder como eles percebiam a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo do DOI-CODIRJ e ao
entrelaccedilar aspectos de suas memoacuterias com a historiografia e a visatildeo do coronel Pereira
se aproximar do que vinha a ser o aparato de seguranccedila interna de 1970 cujos DOI-
CODI eram parte essencial
O segundo capiacutetulo eacute construiacutedo com a proposta de analisar de que forma e sob
quais influecircncias foram construiacutedas e narradas as memoacuterias dos seis ex-prisioneiros
poliacuteticos entrevistados entre os anos de 2002 e 2004 Parte-se aqui do pressuposto de
que cada uma de suas memoacuterias foi formada e influenciada por idiossincrasias relativas
a vivecircncias pessoais personalidades e outros aspectos individuais que merecem ser
analisados de forma a viabilizar o entendimento loacutegico da construccedilatildeo dessas memoacuterias
Dessa forma busca-se relativizar uma memoacuteria coletiva que aparentemente eacute comum a
todos os ex-prisioneiros poliacuteticos que passaram por algum DOI-CODI O aspecto
coletivo dessas memoacuterias no entanto natildeo eacute abandonado As memoacuterias individuais aqui
25
trabalhadas natildeo estatildeo isoladas e constantemente tomam por referecircncia pontos externos
ao sujeito se apoiando em percepccedilotildees recebidas de determinada memoacuteria coletiva de
um grupo e tambeacutem pela memoacuteria histoacuterica de seu paiacutes (Halbwachs 2004 57-59)
Diante disso a capacidade de intervenccedilatildeo que o presente exerce sobre as
memoacuterias do passado (Frank 1999) toma um aspecto central nesse momento da anaacutelise
o que torna importante considerar aqui natildeo soacute o contexto histoacuterico que rodeava os
entrevistados no momento de suas narrativas (2002-2004) como tambeacutem a forma como
a rede de entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que essas foram realizadas
Assim este segundo capiacutetulo trata primeiramente dessas condiccedilotildees que viabilizaram e
de certa forma influiacuteram nas entrevistas para em seguida analisar as trajetoacuterias de vida
de cada um dos entrevistados e por fim baseando-se em algumas referecircncias sobre o
tema traccedilar um panorama sobre as organizaccedilotildees de esquerda das quais faziam parte ou
com que se relacionavam no momento de suas prisotildees
Finalmente o terceiro capiacutetulo visa analisar efetivamente a memoacuteria como
material para a histoacuteria Assim conforme elucidado por Fernando Catroga (2010) ao
buscar entender a escrita da histoacuteria como um rito de memoacuteria no sentido de lutar
contra o esquecimento e contra a corrosatildeo do tempo tal como ocorre em um ldquogesto de
sepulturardquo a histoacuteria eacute aqui escrita de forma a contribuir para que seja possiacutevel
caracterizar um passado que natildeo mais existe o do cotidiano do DOI-CODIRJ de 1970
Antes dessa caracterizaccedilatildeo a partir dos detalhes trazidos nos depoimentos sobre o
espaccedilo interno do preacutedio do 1ordm BPE conjugados agrave observaccedilatildeo minuciosa de sua fachada
que ateacute hoje ainda permanece preservada faz-se possiacutevel uma cartografia espacial do
local que sediou o DOI-CODIRJ Afinal esse entendimento da disposiccedilatildeo espacial do
referido edifiacutecio estaacute totalmente interligado com o cotidiano ali vivido por seus
prisioneiros logo eacute aqui entendido como essencial para a presente anaacutelise Feita esta
26
cartografia parte-se entatildeo para a caracterizaccedilatildeo do cotidiano vivido no DOI-CODIRJ
de 1970 Para tanto aleacutem da anaacutelise dos seis depoimentos a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos
DOI-CODI a constituiccedilatildeo da rede de entrevistas a trajetoacuteria dos entrevistados e suas
organizaccedilotildees de esquerda estudadas nos capiacutetulos anteriores satildeo incorporadas ao
estudo A partir disso vaacuterios aspectos do cotidiano prisional satildeo abordados tais como
o interrogatoacuterio e a tortura os primeiros momentos na prisatildeo as formas de resistecircncia
os encontros e as relaccedilotildees entre os presos nas celas as formas de lidar com o tempo as
roupas e as refeiccedilotildees
No decorrer dos trecircs capiacutetulos dessa dissertaccedilatildeo faz-se constante referecircncia a
siglas relativas ao tema em abordagem e agrave hierarquia das patentes do Exeacutercito Diante
disso ao final de todo o texto apresentado na parte dos anexos encontra-se o Glossaacuterio
de siglas (Anexo I) e a tabela A hierarquia do Exeacutercito Brasileiro (Anexo II)
A partir dessa configuraccedilatildeo geral pretende-se responder agraves questotildees acima
pontuadas a fim de corroborar algumas hipoacuteteses aqui levantadas
1) A formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo do aparato de seguranccedila interna que abrangia o DOI-
CODIRJ tiveram por base as teses sobre seguranccedila nacional montadas pela
ESG anos antes da ditadura militar a promulgaccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo
arbitraacuteria condescendente a abusos de poder gerada a partir dos primeiros anos
do governo militar bem como a tentativa de solucionar impasses ocasionados
por disputas que vinham ocorrendo no seio do Exeacutercito e por conseguinte
ameaccedilavam sua unidade institucional
2) O peso do presente (200204) teve um papel decisivo na maneira pela qual os
entrevistados construiacuteram a narrativa sobre o periacuteodo (1970) em que estiveram
presos no DOI-CODIRJ
3) As organizaccedilotildees de esquerda e as accedilotildees em que os ex-presos poliacuteticos
27
estiveram envolvidos antes de suas prisotildees influenciaram diretamente no grau
de violecircncia do cotidiano a que foram submetidos no DOI-CODIRJ
28
Capiacutetulo 1 ndash Os DOI-CODI formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo
Se no teu distrito
Tem farta sessatildeo
De afogamento chicote
Garrote e punccedilatildeo
A lei tem caprichos
O que hoje eacute banal
Um dia vai dar no jornal
Se manchas as praccedilas
Com teus esquadrotildees
Sangrando ativistas
Cambistas turistas peotildees
A lei abre os olhos
A lei tem pudor
E espeta o seu proacuteprio inspetor
Chico Buarque
(Hino da repressatildeo 1985)
29
A partir de 1970 os DOI-CODI (Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildeesndash
Centro de Operaccedilotildees de Defesa Interna) parte integrante do Sistema de Seguranccedila
Interna (SISSEGIN) passariam a ser a principal instituiccedilatildeo na repressatildeo aos opositores
da ditadura militar brasileira Seis desses opositores aprisionados no DOI-CODI do Rio
de Janeiro em meio ao primeiro ano de sua existecircncia tecircm na passagem por esse espaccedilo
prisional um elo fundamental entre suas memoacuterias Como essas memoacuterias satildeo o objeto
de estudo da presente dissertaccedilatildeo para melhor entendecirc-las primeiramente torna-se de
extrema importacircncia lanccedilar um olhar mais apurado sobre como foram construiacutedos e de
que forma atuavam os DOI-CODI Logo a anaacutelise sobre a criaccedilatildeo e o funcionamento
dessa instituiccedilatildeo eacute o objetivo desse primeiro capiacutetulo
Esta anaacutelise se estrutura a partir de trecircs frentes distintas 1) o debate
historiograacutefico 2) a monografia O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI)
do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e
perspectiva escrita em 1978 pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira
3) os depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de
Janeiro concedidos entre os anos de 2002 e 2004
Como dito a primeira frente de estudo analisa a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-
CODI agrave luz da historiografia Autores e conceitos foram selecionados tendo em vista
questotildees significativas para analisar a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI 1) o papel
da ESG para a criaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional 2) os conceitos de legalidade
autoritaacuteria e cizacircnia militar 3) a montagem e o funcionamento do SISSEGIN
Para abordar o papel da ESG na construccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional
parte-se da tese de Maria Helena Moreira Alves (2005) em que a autora defende a ideia
de que a institucionalizaccedilatildeo do Estado de Seguranccedila Nacional no Brasil se fez a partir
do papel determinante da Doutrina de Seguranccedila Nacional (DSN) construiacuteda pela
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Escola Superior de Guerra (ESG) nos anos 1950 Entende-se que este destacado papel
da ideologia esguiana para a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional da ditadura
militar brasileira teve ligaccedilatildeo direta com a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI Afinal
com a DSN surge o conceito de seguranccedila interna que serve como base para a
montagem do aparelho repressivo ditatorial no qual os DOI-CODI duas deacutecadas
depois seriam inseridos
Os conceitos de legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar satildeo aqui utilizados como
ferramentas elucidativas por auxiliarem na anaacutelise de como durante os primeiros anos
de ditadura militar a imperativa forma de legislar o paiacutes e as crises que por disputas
poliacuteticas ameaccedilaram a unidade institucional militar foram essenciais para a formaccedilatildeo e
atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
Nesse sentido a legalidade autoritaacuteria assim designada por Anthony Pereira
(2010) eacute aqui utilizada para destacar de que forma a preocupaccedilatildeo da ditadura militar
brasileira em respaldar legalmente seus atos ainda que arbitrariamente propiciou um
respaldo legal agrave repressatildeo poliacutetica e por conseguinte aos DOI-CODI Logo este
conceito serve para iluminar o entendimento de que a formaccedilatildeo de um aparato de
seguranccedila interna forte centralizado e violento como os DOI-CODI foi possibilitado
respaldado e sustentado no Brasil por um significativo amparo legal A ditadura militar
atraveacutes dessa preocupaccedilatildeo legal atiacutepica a um regime de cunho totalitaacuterio reiterava sua
imagem de regime democraacutetico de exceccedilatildeo perante a sociedade e ao mesmo tempo
possibilitava a criaccedilatildeo de um dos maiores organismos repressores que uma ditadura da
Ameacuterica Latina jaacute havia criado os DOI-CODI
Outro conceito necessaacuterio para entender a construccedilatildeo do cenaacuterio legal que
propiciaria a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI eacute o de cizacircnia militar elaborado por
Martins Filho em sua tese de doutorado A dinacircmica militar das crises poliacuteticas na
31
ditadura (1964-1969) de 1993 em que o autor destaca os conflitos internos no seio
militar que acabariam resultando em dissidecircncias Ao analisar esses conflitos como fator
decisivo para a compreensatildeo dos rumos da ditadura Martins Filho apresenta uma
abordagem diferente da maioria dos estudiosos sobre o tema Ao inveacutes de partir de uma
suposta dicotomia entre dois grupos estanques divididos rigidamente entre a linha dura
e os castelistas apresenta uma visatildeo mais fluida de grupos militares que oscilavam na
forma de agir o palaacutecio representando os militares de altas patentes ocupantes de
cargos poliacuteticos e a caserna militares de patentes meacutedias que trabalhavam nas
instituiccedilotildees militares Esta abordagem eacute crucial para o presente trabalho uma vez que a
base da formaccedilatildeo e da atuaccedilatildeo dos DOI-CODI estava diretamente relacionada agraves
cizacircnias militares e seus decorrentes acontecimentos poliacuteticos Afinal apesar dos DOI-
CODI serem uma instituiccedilatildeo composta por militares das mais diversas posiccedilotildees
hieraacuterquicas a sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo foram estruturadas a partir principalmente de
reivindicaccedilotildees da caserna que com a implantaccedilatildeo dos DOI-CODI passou a ter poderes
poliacuteticos extraordinaacuterios jaacute que se tornava responsaacutevel pelas accedilotildees de prisotildees
apreensotildees e interrogatoacuterios dos perseguidos poliacuteticos
Finalmente para analisar a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Interna o
SISSEGIN composto entre outros pelos DOI-CODI partimos da anaacutelise feita por
Carlos Fico em sua obra Como eles agiam de 2001 Ao ter acesso a documentos
sigilosos sobre a formaccedilatildeo do SISSEGIN e a regulamentaccedilatildeo operacional dos DOI-
CODI Fico caracteriza de forma ineacutedita na historiografia a formaccedilatildeo e o
funcionamento de ambos os oacutergatildeos sendo portanto um referencial historiograacutefico
indispensaacutevel agrave minha pesquisa
Ainda no que toca agrave formaccedilatildeo do SISSEGIN e dos DOI-CODI tambeacutem eacute de
grande valia a tese exposta por Maria Celina DrsquoArauacutejo em Os anos de Chumbo a
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memoacuteria militar sobre a repressatildeo (1994) de que assim como em qualquer instituiccedilatildeo
militar era alto o grau de hierarquia e coordenaccedilatildeo presente nos DOI-CODI o que natildeo
impedia no entanto que houvesse brechas para uma perda de controle institucional
Logo uma das peculiaridades da atuaccedilatildeo dos DOI-CODI entendido pela a autora como
uma espeacutecie de sofisticaccedilatildeo da repressatildeo era a convivecircncia da obediecircncia hieraacuterquica
militar com a falta de controle sobre algumas accedilotildees deixando que procedimentos natildeo
regulamentares tais como a tortura pudessem ser efetivados com recorrecircncia
A segunda e a terceira frentes de estudo do presente capiacutetulo analisam as visotildees de
atores que de uma forma ou de outra viveram em algum dos DOI-CODI Portanto
diferentes do debate historiograacutefico que tem particular distanciamento analiacutetico do
objeto e preza por se aproximar da imparcialidade e tambeacutem diferentes entre si essas
fontes satildeo influenciadas por seus atoresnarradores e pelas eacutepocas em que foram
construiacutedas
Na segunda frente pode-se dizer que a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI satildeo
analisadas a partir dos proacuteprios DOI-CODI jaacute que nessa etapa debruccedila-se sobre o
estudo O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do Exeacutercito Brasileiro
Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo de um de seus agentes diretos o coronel de
cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira Conhecido entre os presos poliacuteticos do DOI do Rio
de Janeiro do iniacutecio dos anos 1970 como o torturador de codinome ldquoNagibrdquo coronel
Pereira apresentou a referida monografia agrave Escola de Comando e Estado Maior do
Exeacutercito (ECEME) em 1978 quando os DOI-CODI apesar de atuantes jaacute estavam em
decadecircncia Tratava-se de uma eacutepoca em que o presidente Ernesto Geisel comandava a
abertura poliacutetica ldquolenta gradual e segurardquo do paiacutes e vinha diminuindo o poder delegado
aos DOI-CODI que passavam a ter o seu pessoal reduzido e suas accedilotildees apenas voltadas
agrave espionagem e natildeo mais ao combate direto de opositores poliacuteticos jaacute que devido agraves
33
inuacutemeras denuacutencias sobre violaccedilotildees aos Direitos Humanos no Brasil era forte o
desgaste que a ditadura sofria perante a comunidade internacional Em meio a esse
cenaacuterio o coronel em questatildeo construiu tal monografia motivado a por um lado provar
a importacircncia e a necessidade do trabalho de repressatildeo feito nos DOI-CODI e assim
tentar reverter a reduccedilatildeo de suas atividades e por outro conseguir uma promoccedilatildeo na
carreira militar visto que a ECEME eacute uma escola destinada agrave preparaccedilatildeo de oficiais
superiores para o exerciacutecio de funccedilotildees de Estado-Maior A partir disso essa monografia
apresenta dados representativos do poder coercitivo dos DOI do iniacutecio dos anos 1970
bem como a descriccedilatildeo dos afazeres de cada uma de suas seccedilotildees o que traz uma forte
contribuiccedilatildeo para a anaacutelise aqui traccedilada
Por fim na terceira e uacuteltima frente a anaacutelise da formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-
CODI eacute efetuada por meio de outro tipo de fonte que tem por base a memoacuteria os
depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de Janeiro a
mim fornecidos entre os anos de 2002 e 2004 Como essas entrevistas foram concedidas
durante a passagem dos governos dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso
(1995-2002) e Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva (2003-2010) ex-perseguidos poliacuteticos da
ditadura militar que entre seus feitos agrave frente da poliacutetica brasileira agiram no sentido
de reparar danos sofridos pelos perseguidos poliacuteticos daquele periacuteodo esse presente
nelas imprimiu fortes influecircncias Afinal trata-se de memoacuterias sobre o passado vivido
em uma das instituiccedilotildees de repressatildeo mais violentas da eacutepoca o DOI-CODIRJ
construiacutedas a partir de um presente em que jaacute vigorava a lei nordm 9140 de 1995 que
reconhecia mortos e desaparecidos pela ditadura militar e indenizava suas famiacutelias e
havia sido aprovada a lei nordm 10559 de 2002 que reparava financeiramente aqueles que
tivessem sofrido perseguiccedilatildeo ou maus tratos dentro de instituiccedilotildees do Estado durante o
periacuteodo de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988
34
Percebe-se claramente a ideia de presente do passado de Robert Frank (1999)
como um dos principais aspectos criacuteticos aqui aplicados a essas memoacuterias Afinal o
fato de durante o periacuteodo em que se deram as entrevistas conhecidos opositores agrave
ditadura militar estarem agrave frente do governo brasileiro e grande nuacutemero de ex-
prisioneiros poliacuteticos inclusive os entrevistados buscarem se beneficiar da lei nordm
1055902 faz com que o presente seja aqui considerado o elemento organizador dessas
memoacuterias
Essa perspectiva de presente do passado eacute portanto um dos elementos criacuteticos
aplicados a essas memoacuterias que sobre elas trabalham a fim de aqui tornaacute-las objeto da
histoacuteria Dessa forma percebe-se na presente anaacutelise a perspectiva elucidada por Pierre
Nora (1993) ao diferir o trabalho da memoacuteria do trabalho da histoacuteria Afinal o que os
diferencia satildeo justamente os aspectos fluidos da memoacuteria tais como as emoccedilotildees e as
influecircncias conjunturais a que estaacute a todo tempo submetida que aqui satildeo minimizados
pelos aspectos criacuteticos objetivos e analiacuteticos peculiares agrave histoacuteria
35
1 Debate Historiograacutefico
11 O papel da ESG para o Sistema de Seguranccedila Nacional
O golpe civil-militar ocorrido no Brasil em 31 de marccedilo de 1964 quando o
presidente Joatildeo Goulart foi deposto e se instalou um regime militar no paiacutes teria sido
precedido por uma elaborada desestabilizaccedilatildeo poliacutetica que de acordo com Maria Helena
Moreira Alves (2005) envolveu tanto corporaccedilotildees multinacionais o governo dos
Estados Unidos quanto o capital brasileiro associado-dependente e os militares
brasileiros destacando-se entre esses um grupo de oficiais da Escola Superior de Guerra
(ESG) Essa ldquoconspiraccedilatildeordquo foi efetivada anos antes ainda no iniacutecio dos anos 1950 por
instituiccedilotildees civis como o Instituto Brasileiro de Accedilatildeo Democraacutetica (IBAD) e o Instituto
de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) sob a coordenaccedilatildeo da ESG A Doutrina de
Seguranccedila Nacional e Desenvolvimento (DSN) ministrada pela mesma Escola era a
justificativa ideoloacutegica perfeita para a tomada do poder e para o autoritarismo como
uma forma de governo
Um dos criadores dessa doutrina Golbery do Couto e Silva era desde 1952
adjunto do Departamento de Estudos da ESG estabelecimento subordinado ao Estado
Maior das Forccedilas Armadas (EMFA) criado em 1948 com a assistecircncia de consultores
franceses e norte-americanos a fim de desenvolver e consolidar os conhecimentos
necessaacuterios para o exerciacutecio das funccedilotildees de direccedilatildeo e para o planejamento da Seguranccedila
Nacional Dentro da ESG Golbery encontrou condiccedilotildees favoraacuteveis para impulsionar
teses que defenderiam o ecircxito de um projeto global de desenvolvimento em cujas
tarefas o Estado deveria se associar agrave iniciativa privada atraveacutes do apoio intermediaacuterio
de uma elite tecnocraacutetica civil e militar ideologicamente comprometida com um
conjunto de ldquoobjetivos nacionais permanentesrdquo garantindo assim a Seguranccedila
Nacional Essas teses vieram posteriormente a constituir a base do programa da ESG
36
passando a ser conhecidas pela Doutrina de Seguranccedila Nacional (DSN) A DSN
sustentava ainda em meio agrave Guerra Fria o posicionamento do Brasil ao lado do
Ocidente logo em confronto com o bloco sovieacutetico considerando a preservaccedilatildeo da
seguranccedila o fator fundamental de promoccedilatildeo do desenvolvimento Previa dessa forma a
possiacutevel supressatildeo de alguns valores definidores da ordem democraacutetica devido agrave
necessidade de uma progressiva centralizaccedilatildeo de poderes
Para Moreira Alves o grande feito do ldquocomplexo ESGIPESIBADrdquo foi a criaccedilatildeo
antes do golpe de 1964 de uma rede de informaccedilotildees e de uma Doutrina de Seguranccedila
Nacional e Desenvolvimento ambas coordenadas por Golbery para nortear o que viria
a ser um Estado efetivamente centralizado Essa tese eacute sustentada ao se notar que o
general Castelo Branco como primeiro presidente do Estado ditatorial brasileiro
compocircs seus ministeacuterios quase totalmente com membros e colaboradores do complexo
ESGIPESIBAD A DSN passou entatildeo a ser utilizada para moldar as estruturas de
Estado impor formas especiacuteficas de controle para a sociedade civil e delinear um
projeto de governo para o Brasil Assim com destaque para a seguranccedila interna
ameaccedilada pelo comunismo a Doutrina de Seguranccedila Nacional passou a induzir ao
abuso de poder a prisotildees arbitraacuterias agrave tortura e agrave censura agrave imprensa e agraves artes de
forma geral
Eacute interessante perceber que a formulaccedilatildeo da DSN feita pela ESG em colaboraccedilatildeo
com o IPES e o IBAD ao longo de 25 anos tinha como base uma teoria de guerra que
nortearia a atuaccedilatildeo repressora do governo militar A partir do Manual Baacutesico da Escola
Superior de Guerra e dos escritos de Golbery do Couto e Silva em Conjuntura Poliacutetica
Nacional o poder executivo amp a geopoliacutetica do Brasil Moreira Alves destaca os tipos
de guerra apresentados pela Doutrina guerra total guerra limitada ou localizada
guerra revolucionaacuteria ou insurrecional guerra indireta ou ideoloacutegica
37
De acordo com estes paracircmetros a teoria da guerra total baseava-se na estrateacutegia
militar da Guerra Fria deixando de ser estritamente militar para ser tambeacutem econocircmica
financeira poliacutetica psicoloacutegica e cientiacutefica atingindo o mundo de forma global Logo
como as potecircncias envolvidas natildeo podiam travar uma guerra ativa pois existia a
possibilidade de uma destruiccedilatildeo completa e universal a guerra total passou a assumir
diversas formas Ela se destrinchava em guerras limitadas ou localizadas pelas quais as
duas superpotecircncias mediam suas respectivas capacidades de controlar territoacuterios Aleacutem
disso havia as guerras declaradas consideradas claacutessicas e as natildeo-declaradas que
correspondiam agraves formas de guerra revolucionaacuteria ou insurrecional
Essas guerras natildeo-declaradas ou natildeo-claacutessicas representavam uma guerra de
agressatildeo indireta A insurrecional eacute caracterizada como um conflito interno em que
parte da populaccedilatildeo armada busca a deposiccedilatildeo do governo Jaacute a guerra revolucionaacuteria
natildeo envolve necessariamente o emprego da forccedila armada mas significa um conflito
normalmente interno estimulado ou auxiliado do exterior inspirado normalmente em
uma ideologia e que visa agrave conquista do poder pelo controle progressivo da naccedilatildeo A
guerra revolucionaacuteria se referia portanto agrave infiltraccedilatildeo comunista internacional
associada ao bloco sovieacutetico Neste tipo de guerra a guerra ideoloacutegica substituiacutea a
convencional entendida como o enfrentamento direto entre Estados em suas fronteiras
geograacuteficas A caracteriacutestica principal da guerra revolucionaacuteria de acordo com o
Manual Baacutesico da ESG era o envolvimento da populaccedilatildeo do paiacutes-alvo por meio da
conquista ideoloacutegica
[] abrangendo desde a exploraccedilatildeo dos descontentamentos existentes com o
acirramento de acircnimos contra as autoridades constituiacutedas ateacute a organizaccedilatildeo
de zonas dominadas com o recurso agrave guerrilha ao terrorismo e outras taacuteticas
irregulares onde o proacuteprio nacional do paiacutes-alvo eacute utilizado como
combatente (Alves 2005 45)
38
Como a guerra revolucionaacuteria recrutava seus combatentes secretamente toda a
populaccedilatildeo tornava-se suspeita e portanto deveria ser cuidadosamente controlada para
que os ditos ldquoinimigos internosrdquo pudessem ser neutralizados A partir desse
entendimento de guerra revolucionaacuteria que segundo a ESG assombrava o paiacutes cria-se a
necessidade de um planejamento de Seguranccedila Nacional adaptado a essa conjuntura e
por conseguinte de um eficiente e centralizado aparato de informaccedilotildees internas
A partir disso a Constituiccedilatildeo de 1967 criou o Conselho de Seguranccedila Nacional
oacutergatildeo da Presidecircncia da Repuacuteblica responsaacutevel por supervisionar a defesa da seguranccedila
interna e principalmente modificou o significado de Seguranccedila Nacional que desde a
Constituiccedilatildeo de 1946 era associado agrave agressatildeo externa ou seja agrave defesa das fronteiras
territoriais A ameaccedila agrave Seguranccedila Nacional passava entatildeo a ser oficialmente definida
mais como uma ameaccedila agraves fronteiras ideoloacutegicas do que agraves territoriais Portanto ao criar
o Conselho de Seguranccedila Nacional e mudar o entendimento sobre a Seguranccedila
Nacional a Constituiccedilatildeo de 1967 abria o caminho necessaacuterio agrave adaptaccedilatildeo agrave teoria de
seguranccedila interna estipulada anos antes pela ESG
Esta teoria de seguranccedila interna dotou entatildeo o Estado de justificativa para
controlar e reprimir a populaccedilatildeo em geral O caraacuteter oculto da ameaccedila interna tornou
praticamente impossiacutevel se estabelecer limites para as accedilotildees repressivas do Estado e dos
militares e por isso mesmo fragilizou a defesa dos direitos humanos no paiacutes Afinal
todo cidadatildeo passava a ser culpado ateacute que fosse provada a sua inocecircncia Por meio
desse pensamento a raiz dos abusos de poder perpetrados pelo Estado se estruturou Por
isso defende-se aqui que a institucionalizaccedilatildeo dessa crenccedila no inimigo interno criada
pela ESG antes mesmo do golpe civil-militar estimulou a ditadura a nortear o
desenvolvimento das suas estruturas defensivas da sua articulada rede de informaccedilotildees
poliacuteticas e ainda do seu aparato repressivo de controle armado onde os DOI-CODI a
39
partir de 1970 tambeacutem estariam inseridos
12 Os conceitos legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar
Essa crenccedila no inimigo interno criada pela ESG norteou a Seguranccedila Nacional
durante a ditadura militar que se substanciou atraveacutes da alta legalidade autoritaacuteria e
das medidas criadas pelo governo como forma de conter as cizacircnias militares Esses trecircs
fatores juntos contribuiacuteram para consolidaccedilatildeo dos DOI-CODI por todo paiacutes
respaldando a atuaccedilatildeo altamente autoritaacuteria e violenta desses oacutergatildeos
A partir disso o conceito de legalidade autoritaacuteria construiacutedo pelo cientista
poliacutetico norte-americano Anthony Pereira (2010) ajuda a evidenciar como a existecircncia
de laccedilos entre o autoritarismo e o estado de direito do regime militar no Brasil ajudou na
configuraccedilatildeo de uma instituiccedilatildeo como o DOI-CODI Afinal a legalidade autoritaacuteria
identifica as coexistecircncias entre o autoritarismo ditatorial e a continuidade das
instituiccedilotildees juriacutedicas anteriores ao Golpe bem como entre o autoritarismo ditatorial e a
praacutetica de elaboraccedilatildeo de leis ainda que tambeacutem autoritaacuterias
Percebe-se assim que o Brasil obteve um alto grau de legalidade autoritaacuteria na
medida em que a legislaccedilatildeo foi amplamente arbitrada pelo Poder Executivo como forma
de legalizar arbitrariedades poliacuteticas e suprimir direitos da populaccedilatildeo Assim foi
construiacuteda uma sustentaccedilatildeo juriacutedica e poliacutetica necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um aparato de
seguranccedila cada vez mais forte e centralizado que garantiu a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos
DOI-CODI
Afinal a legalidade autoritaacuteria vivenciada no Brasil se baseava na confecccedilatildeo pelo
Poder Executivo de leis publicadas em meios de comunicaccedilatildeo oficiais a fim de
respaldar arbitrariedades A partir dessas leis instrumento associado ao sistema
democraacutetico o governo militar centralizava e reforccedilava o seu poder ditatorial tornando
40
nebuloso o sistema em vigor naquele momento no Brasil Ou seja apesar da existecircncia
de uma ditadura militar consolidada havia integraccedilatildeo entre as Forccedilas Armadas e o
Poder Judiciaacuterio ndash que norteava os seus julgamentos pelas novas leis arbitraacuterias
legitimando-as ndash bem como a manutenccedilatildeo do Congresso em funcionamento na maior
parte do tempo Dessa forma a legalidade autoritaacuteria era um elo entre o autoritarismo
ditatorial e o estado de direito conseguindo fazer parecer por algum tempo que o paiacutes
vivenciava um sistema democraacutetico excepcional A praacutetica da legalidade autoritaacuteria na
forma de atos institucionais da Constituiccedilatildeo de 1967 e de leis de Seguranccedila Nacional
por exemplo forneceu os suportes legais necessaacuterios agrave construccedilatildeo do SISSEGIN e agrave
formaccedilatildeo e agrave atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
Aleacutem disso essa praxe da ditadura de agir por meio de leis arbitraacuterias na maior
parte das vezes se relaciona com as cizacircnias militares provocadas no seio dessa
instituiccedilatildeo como reflexos de acontecimentos poliacuteticos Afinal grande parte das leis
autoritaacuterias foram artifiacutecios usados como forma de acalmar os acircnimos na caserna
formada por militares de meacutedias e baixas patentes que reivindicavam mais poder
poliacutetico Assim para conter a oposiccedilatildeo poliacutetica e tambeacutem as reivindicaccedilotildees de poder da
caserna desenharam-se leis arbitraacuterias capazes de suportar um organismo de repressatildeo
onde esses militares trabalhariam com certa autonomia tal como viriam a ser os DOI-
CODI Logo percebe-se aqui que juntamente com a legalidade autoritaacuteria a leitura
dos encaminhamentos poliacutetico-militares feita por Joatildeo Roberto Martins Filho (1993)
sob a luz de conceitos como o de cizacircnias militares baseadas em dissidecircncias militares
internas entre o palaacutecio e a caserna tambeacutem ilumina o entendimento sobre a formaccedilatildeo
e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
Tais encaminhamentos poliacuteticos militares tecircm iniacutecio no dia 9 de abril dez dias
apoacutes o golpe civil-militar de 1964 e ainda antes da posse de Castelo Branco em 15 de
41
abril quando o Comando Supremo da Revoluccedilatildeo baixou um ato institucional
posteriormente conhecido como AI-1 que conferia aos militares o poder de puniccedilatildeo a
crimes de cidadatildeos contra o Estado seu patrimocircnio e contra a ordem poliacutetica e social
No entanto o AI-1 previa tambeacutem a possibilidade de passar este poder para as matildeos do
novo presidente da Repuacuteblica dois meses apoacutes a sua posse colocando oficialmente o
Poder Executivo acima dos demais Assim Costa e Silva integrante do Comando e
futuro ministro da Guerra fez expedir um pouco antes da posse de Castelo Branco em
complemento ao AI-1 o Ato do Comando Supremo da Revoluccedilatildeo nordm 9 e a Portaria nordm1
que davam continuidade ao poder de puniccedilatildeo dos militares mesmo depois da posse de
Castelo Branco Com isso foram criadas as condiccedilotildees para que coroneacuteis tenentes-
coroneacuteis majores e capitatildees6 continuassem agindo na caccedila ao ldquoinimigo internordquo
O Ato do Comando Supremo da Revoluccedilatildeo nordm 9 estabelecia que os militares
encarregados de inqueacuteritos e processos (de suspensotildees de direitos poliacuteticos cassaccedilotildees
de mandatos etc) poderiam delegar atribuiccedilotildees referentes a investigaccedilotildees bem como
requisitar inqueacuteritos ou sindicacircncias instituiacutedas por outras esferas Jaacute a Portaria nordm1
determinava a abertura de Inqueacuterito Policial Militar (IPM) para apuraccedilatildeo de crimes
praticados contra o Estado e a ordem poliacutetica social
No entanto no dia 15 de junho de 1964 juntamente com o teacutermino da validade do
AI-1 acabaria tambeacutem o prazo dos militares cassarem mandatos e suspenderem direitos
poliacuteticos Tais militares requisitaram que o poder a eles concedido natildeo fosse cessado o
que foi negado pelo entatildeo presidente Castelo A partir disso a insatisfaccedilatildeo desses
militares acabou por causar o surgimento de uma primeira e consideraacutevel discoacuterdia
interna agrave instituiccedilatildeo militar uma primeira cizacircnia militar A partir dessa situaccedilatildeo de
conflito surge entatildeo a chamada linha dura que se formou atraveacutes do eco que um
6 Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II
42
conjunto de pressotildees da jovem oficialidade nessa fase inicial da ditadura encontrou em
meio a alguns ldquoherdeiros civisrdquo do regime e em setores da hierarquia militar Dessa
forma a linha dura foi formada por grupos heterogecircneos de composiccedilatildeo variaacutevel e
ideologia difusa
Logo assim como Martins Filho e diferentemente da interpretaccedilatildeo de grande
parte dos historiadores acredita-se que mesmo em termos ideoloacutegicos a linha dura
estava longe de ser um grupo homogecircneo tendo por denominador comum apenas duas
caracteriacutesticas
Em primeiro lugar as reivindicaccedilotildees de maior rigor na ldquodepuraccedilatildeordquo do
sistema poliacutetico em segundo lugar as expectativas de influenciar
diretamente o processo de tomadas de decisotildees do governo militar Tanto em
um como em outro aspecto suas accedilotildees provocariam problemas para o
governo de Castelo Branco (Martins Filho 1993 61)
Portanto o governo Castelo Branco logo teve que se deparar com a questatildeo da
participaccedilatildeo poliacutetica do conjunto da categoria militar no regime ditatorial Sem atribuir
ao presidente uma visatildeo mais liberal ndash diferentemente daqueles que interpretam as
medidas mais ldquodurasrdquo de Castelo como resultado das pressotildees da linha dura ndash pondera-
se aqui que por parte do governo o redirecionamento de objetivos iniciais era
recorrente sempre que a situaccedilatildeo exigia uma reavaliaccedilatildeo Dessa forma percebe-se que
os rumos poliacuteticos escolhidos pela ditadura tinham como finalidade a preservaccedilatildeo da
hierarquia e da aparente homogeneidade da instituiccedilatildeo castrense o que demandava a
contenccedilatildeo das instabilidades internas
A partir dessa perspectiva destaca-se o caraacuteter flutuante dos conflitos internos ao
regime decorrentes da incompatibilidade de interesses poliacuteticos entre os militares de
altas patentes que possuiacuteam cargos no governo ditatorial representados
43
metaforicamente pelo palaacutecio e militares de meacutedias e baixas patentes que eram
responsaacuteveis por serviccedilos internos a caserna Nesse sentido evidencia-se por exemplo
que apoacutes ser retirado da caserna o poder de cassaccedilatildeo de mandatos e de suspensatildeo de
direitos poliacuteticos as derrotas dos candidatos aliados ao regime ditatorial nas eleiccedilotildees
para governador nos estados da Guanabara e de Minas Gerais em outubro de 1965
ocasionou uma forte divergecircncia entre o palaacutecio e a caserna resultando uma
instabilidade castrense que desembocou em mais uma cizacircnia militar Diante disso na
tentativa de apaziguar a instabilidade militar e por conseguinte os acircnimos da caserna
no fim desse mesmo mecircs Castelo Branco decretaria o AI-27 com vigecircncia prevista ateacute
15 de marccedilo de 1967
Afinal atraveacutes desse Ato a caserna aleacutem de passar a influir no acircmbito da poliacutetica
comeccedilava a ganhar poderes extras Nele se estabelecia a possibilidade de suspensatildeo de
direitos poliacuteticos e de cassaccedilatildeo de mandatos de parlamentares imposiccedilatildeo da eleiccedilatildeo
indireta para a Presidecircncia da Repuacuteblica permissatildeo para o presidente da Repuacuteblica
decretar o recesso do Congresso Nacional e das demais casas legislativas extinccedilatildeo de
partidos poliacuteticos delegaccedilatildeo ao presidente da Repuacuteblica do poder de legislar por
decretos-leis estabelecimento de foro especial militar para civis acusados de crimes
contra a Seguranccedila Nacional ou as instituiccedilotildees militares suspensatildeo das garantias de
vitaliciedade inamovibilidade (dos juiacutezes) e de estabilidade (dos servidores puacuteblicos)
ampliaccedilatildeo de 11 para 16 ministros do Supremo Tribunal Federal (Ato Institucional Nordm2
27 out 1965)
Com a cassaccedilatildeo de mandatos suspensatildeo de direitos poliacuteticos e demissatildeo de
funcionaacuterios puacuteblicos a caserna conseguia alguma interferecircncia nos assuntos poliacuteticos
e com a decretaccedilatildeo de foro militar especial para civis acusados de crimes contra a
7 Para mais informaccedilotildees sobre o AI-2 ver BRASIL Ato Institucional Nordm2 de 27 de outubro de 1965
44
Seguranccedila Nacional ou instituiccedilotildees militares comeccedilava a ganhar um espaccedilo proacuteprio e
aos poucos formar um grupo disposto a agir por sua conta sem maiores consideraccedilotildees
pelas normas legais tendendo a fazer valer suas ideias pela forccedila A futura comunidade
de seguranccedila comeccedilava entatildeo a ser desenhada e a formar o caraacuteter e a atuaccedilatildeo dos
futuros membros de seus oacutergatildeos A montagem do sistema de seguranccedila interna em que
os DOI-CODI seriam inseridos iria a partir das primeiras leis das desavenccedilas internas
e da deflagraccedilatildeo dos primeiros Atos Institucionais se tornando viaacutevel
Entretanto mesmo apoacutes o AI-2 a crise no regime castrense continuava A
caserna ansiosa por mais espaccedilo poliacutetico comeccedilava a se organizar para a ascensatildeo de
outra forccedila ao governo se articulando em torno do entatildeo ministro da Guerra o general
Costa e Silva A desuniatildeo hieraacuterquica provocada pela disputa sucessoacuteria se configurava
naquele momento como um importante fator da crise do regime militar Em meio a este
clima de tensatildeo Castelo Branco e seus partidaacuterios os ditos castelistas se preocupavam
com a ldquoinstitucionalizaccedilatildeo da revoluccedilatildeordquo Diante dessa configuraccedilatildeo a ldquorevoluccedilatildeo
castelistardquo de fato acabou sendo implantada pelo presidente e os pilares de seu
processo foram a Lei de Seguranccedila Nacional e a Constituiccedilatildeo de 1967
A Carta de 1967 incorporou boa parte das medidas autoritaacuterias estabelecidas pelos
atos institucionais Entre essas as que instituiacuteam que toda pessoa natural ou juriacutedica
seria responsaacutevel pela Seguranccedila Nacional nos limites definidos em lei e que o foro
militar previsto no AI-2 por limitado periacuteodo de tempo ficaria definitivamente
estendido aos civis por tempo indeterminado nos casos de crimes contra a Seguranccedila
Nacional Jaacute a Lei de Seguranccedila Nacional reflexo tambeacutem do caraacuteter ldquodurordquo do final do
governo Castelo transformava em legislaccedilatildeo a Doutrina de Seguranccedila Nacional da
ESG legalizando a concepccedilatildeo de ldquoguerra internardquo e de ldquosubversatildeordquo dois dias antes da
chegada de Costa e Silva ao poder presidencial Essas uacuteltimas medidas do governo de
45
Castelo merecem aqui destaque por significarem um impulso agrave criaccedilatildeo de um setor
voltado para a repressatildeo poliacutetica seara em que os DOI-CODI atuariam anos agrave frente
Assim em meio a um clima anti-castelista em 15 de marccedilo de 1967 Costa e
Silva assume o governo militar prometendo inclusive uma maior humanizaccedilatildeo da
poliacutetica Entretanto com a eclosatildeo de protestos de rua contra a violecircncia ditatorial o
novo presidente logo retomaria o aspecto ldquorevolucionaacuteriordquo do regime militar e
decretaria o Ato Institucional Nordm5 (AI-5) 8
Afinal a partir dos discursos do deputado
Maacutercio Moreira Alves evocando os brasileiros a natildeo comparecerem ao tradicional
desfile do dia sete de setembro daquele ano de 1968 Costa e Silva e o palaacutecio passaram
a ser extremamente pressionados pela caserna a reagir A recusa da Cacircmara dos
Deputados em abrir um processo para cassaccedilatildeo do entatildeo deputado foi a justificativa
necessaacuteria para que o presidente convocasse a cuacutepula do aparelho militar e os juristas
palacianos para darem forma ao AI-5 vindo a decretaacute-lo na noite do dia 13 de dezembro
de 1968
Percebe-se que a conjuntura de 1968 iniciado com os protestos estudantis de
massa tornou pela primeira vez desde o golpe de 1964 momentaneamente unificado o
movimento de repuacutedio de expressivos setores sociais ao avanccedilo da repressatildeo militar
Este fato que a princiacutepio pode fazer crer ter estimulado uma desuniatildeo militar parece
ter sido um fator adicional de uniatildeo das Forccedilas Armadas As tensotildees internas agrave
instituiccedilatildeo portanto foram neste momento colocadas em suspenso e a situaccedilatildeo militar
diante da ofensiva da oposiccedilatildeo teria criado uma espeacutecie de unidade de crise Poreacutem
esta unidade de crise das Forccedilas Armadas rapidamente se fragmentou trazendo agrave tona
novamente em meados de 1968 um variado e complexo conjunto de tensotildees no campo
militar Esta unidade no entanto voltaria a existir em torno da decretaccedilatildeo do AI-5 apoacutes
8 Para mais informaccedilotildees sobre o AI-5 ver BRASIL Ato Institucional Nordm5 de 13 de dezembro de 1968
46
a derrota na votaccedilatildeo no Congresso e quando as pressotildees da caserna em prol da
militarizaccedilatildeo do governo se voltaram para o palaacutecio
Nesse momento os generais do governo se sentiram muito mais ameaccedilados do
que na jaacute mencionada instabilidade gerada pelas derrotas nas eleiccedilotildees para governador
de 1965 O fato da oficialidade rebelde de entatildeo natildeo ter um porta-voz em postos de
comando como era na eacutepoca Costa e Silva e por isso parecer mais difusa a tornava
mais ameaccediladora agrave integridade da instituiccedilatildeo militar Assim a explicaccedilatildeo para
juntamente com a caserna os generais cobrarem do Ministro do Exeacutercito uma imediata
tomada de decisatildeo em favor da ldquoRevoluccedilatildeordquo estava portanto na busca pela
permanecircncia de uma unidade das Forccedilas Armadas Dessa forma momentos antes do AI-
5 a unidade da crise novamente se formou soacute que dessa vez por motivos inerentes
unicamente agrave proacutepria instituiccedilatildeo militar (Martins Filho 1993 158-174)
O AI-5 foi ateacute entatildeo a maior expressatildeo legal do autoritarismo da ditadura militar
e construiu uma base essencial para que em 1970 surgissem os DOI-CODI Afinal
aleacutem de natildeo estabelecer um prazo final para sua vigecircncia inovando em relaccedilatildeo aos
demais Atos Institucionais o AI-5 tornou legal a suspensatildeo da garantia de ldquohabeas
corpusrdquo nos casos de crimes poliacuteticos contra a Seguranccedila Nacional Logo a partir
desse Ato foram estabelecidas as condiccedilotildees necessaacuterias para a institucionalizaccedilatildeo dos
sistemas de seguranccedila e de informaccedilotildees bem como o surgimento da Comissatildeo Geral de
Investigaccedilotildees (CGI) na tentativa de combate agrave corrupccedilatildeo O sistema de seguranccedila
esboccedilado naquele momento buscava o aperfeiccediloamento sob a eacutegide da ldquoguerra
revolucionaacuteriardquo mencionada no preacircmbulo do proacuteprio AI-5
Considerando que assim se torna imperiosa a adoccedilatildeo de medidas que
impeccedilam que sejam frustrados os ideais superiores da Revoluccedilatildeo
preservando a ordem a seguranccedila a tranquilidade o desenvolvimento
econocircmico e cultural e a harmonia poliacutetica e social do Paiacutes comprometidos
47
por processos subversivos e de guerra revolucionaacuteria (Ato Institucional nordm
5 13 dez 1968)
Logo as cizacircnias militares e a legislaccedilatildeo a elas relacionada contribuiacuteram para a
formaccedilatildeo do cenaacuterio propiacutecio agrave institucionalizaccedilatildeo do aparato de repressatildeo Aparato este
que a partir do AI-5 foi se estruturando em trecircs grandes sistemas o SISNI Sistema
Nacional de Informaccedilotildees a CGI Comissatildeo Geral de Investigaccedilotildees e o SISSEGIN
Sistema de Seguranccedila Interna Este ao ser criado abriria espaccedilo para a repressatildeo
poliacutetica centralizada e institucionalizada dos DOI-CODI
13 A montagem e o funcionamento do SISSEGIN
Ao longo dos anos 70 os DOI-CODI passariam a ser os principais oacutergatildeos de
atuaccedilatildeo do SISSEGIN e um dos pontos centrais do aparelho de repressatildeo brasileiro Ao
seu lado em outras esferas de competecircncia estavam os oacutergatildeos do Sistema Nacional de
Informaccedilotildees (SISNI) e os da Comissatildeo Geral de Investigaccedilatildeo (CGI) Cada um desses
sistemas possuiacutea uma competecircncia especiacutefica o SISNI era responsaacutevel por buscar as
informaccedilotildees necessaacuterias agrave manutenccedilatildeo do regime de Seguranccedila Nacional procurando
desvendar quem eram os opositores ao governo os chamados ldquoinimigos internosrdquo
enquanto a CGI buscava o combate agrave corrupccedilatildeo no serviccedilo puacuteblico Jaacute o SISSEGIN
operava de forma centralizada tanto na investigaccedilatildeo quanto na apreensatildeo dos mesmos
ldquoinimigos internosrdquo
Para a anaacutelise do SISSEGIN vale-se aqui do trabalho de Carlos Fico Como eles
agiam (2001) feito com base no acervo da extinta Divisatildeo de Seguranccedila e Informaccedilotildees
do Ministeacuterio da Justiccedila inclusive nos documentos sigilosos Afinal nesse estudo Fico
revela em detalhes o que nenhum outro historiador havia conseguido ateacute entatildeo a
48
formaccedilatildeo e o funcionamento das comunidades de informaccedilotildees e de seguranccedila da
ditadura militar brasileira
A partir disso destaca-se aqui que a estrutura e o funcionamento do SISSEGIN
foram instituiacutedos e regulamentados por meio de decretos sigilosos O mesmo padratildeo de
regulamentaccedilatildeo foi seguido pela Operaccedilatildeo Bandeirantes (Oban) instituiccedilatildeo informal
criada em Satildeo Paulo em julho de 1969 bem como pelos DOI-CODI instituiacutedos no
primeiro semestre de 1970 formalizando a experiecircncia da Oban e espalhando-a por
todas as Regiotildees Militares do Brasil Jaacute que eacute atraveacutes dessas Regiotildees que o Exeacutercito
divide geograficamente sua administraccedilatildeo sobre o territoacuterio brasileiro foi tambeacutem por
meio delas que partiu durante parte da ditadura militar as responsabilidades territoriais
dos DOI-CODI Logo o DOI-CODI do Rio de Janeiro ficava responsaacutevel pelos crimes
poliacuteticos ocorridos na Primeira Regiatildeo ou seja nos estados do Rio de Janeiro e do
Espiacuterito Santo
A justificativa para esse sigilo dos atos que regiam o SISSEGIN e os DOI-CODI
estava na maior mobilidade e autonomia de accedilatildeo que o segredo traria para a atuaccedilatildeo
repressora desses organismos Dessa forma a repressatildeo podia agir sem grandes
limitaccedilotildees natildeo esbarrando em questotildees externas agraves decisotildees militares tais como os
Direitos Humanos Universais de 1948
No entanto eacute tambeacutem evidente a importacircncia que alguns atos legais natildeo-sigilosos
tiveram para a construccedilatildeo do cenaacuterio que sustentaria a atuaccedilatildeo do SISSEGIN e dos
DOI-CODI Eacute o caso por exemplo da adoccedilatildeo do foro especial para crimes poliacuteticos
que a partir do AI-2 e da subsequente incorporaccedilatildeo dessa medida pela Constituiccedilatildeo de
1967 passaram a ser julgados pelos tribunais militares e a suspensatildeo de garantias
individuais tal como o habeas corpus feita pelo AI-5 de dezembro de 1968 Afinal
natildeo seria eficaz para a atuaccedilatildeo desses oacutergatildeos repressores que seus prisioneiros poliacuteticos
49
atraveacutes do habeas corpus pudessem ser imediatamente soltos pela Justiccedila ou que
pudessem ser julgados por tribunais civis correndo o risco do juiz responsaacutevel pela
causa natildeo estar totalmente articulado aos princiacutepios impostos pela Doutrina de
Seguranccedila Nacional
Dessa forma ateacute o AI-5 foram levantadas as bases legais para que um Sistema de
Seguranccedila Nacional centralizado combativo e violento fosse institucionalizado Por
outro lado a partir do AI-5 para ter a autonomia e a mobilidade que se julgavam
necessaacuterias a organizaccedilatildeo desse Sistema de Seguranccedila Nacional foi sigilosa Ou seja a
reestruturaccedilatildeo do sistema repressivo com os seus novos oacutergatildeos e o detalhamento de
suas funccedilotildees internas natildeo foi publicada oficialmente por nenhum tipo de legislaccedilatildeo A
operacionalidade da seguranccedila interna foi regida por diretrizes secretas e o SISSEGIN
instituiacutedo por decretos sigilosos do Conselho de Seguranccedila Nacional (CSN) aprovados
pelo Presidente da Repuacuteblica
Por isso mesmo uma das primeiras medidas para o estabelecimento do SISSEGIN
e posteriormente dos DOI-CODI foi o fortalecimento do Conselho de Seguranccedila
Nacional cujas competecircncias foram ampliadas por atualizaccedilatildeo na legislaccedilatildeo operada
em janeiro de 1968 No ano seguinte em julho a Diretriz para a Poliacutetica de Seguranccedila
Interna foi instituiacuteda secretamente a fim de consolidar o SISSEGIN e adotar
nacionalmente o padratildeo da Oban (Operaccedilatildeo Bandeirante) No entanto somente em
1970 durante a vigecircncia do governo Meacutedici o modelo da Oban foi adaptado
transformado em DOI-CODI e de fato instituiacutedo por todas as Regiotildees Militares do
paiacutes
A Oban foi secretamente instituiacuteda em 1ordm de julho de 1969 no quartel do II
Exeacutercito em Satildeo Paulo No intuito de combater de forma mais organizada e eficaz a
esquerda armada a Oban usava de sua ldquoilegalidade oficialrdquo para agir contra os
50
ldquoinimigos internosrdquo sem precisar adequar seus meacutetodos de trabalho aos Direitos
Humanos A Oban criava uma estrutura nova que coordenava e integrava os diversos
oacutergatildeos de repressatildeo poliacutetica ndash entre eles as 2ordf seccedilotildees da Poliacutecia Militar Exeacutercito e
Marinha de Satildeo Paulo responsaacuteveis pelas investigaccedilotildees de crimes poliacuteticos nessas
instituiccedilotildees ndash que operavam de forma desordenada e ineficaz contra a esquerda armada
em aparente ascensatildeo O funcionamento da Oban se dava por meio de um trabalho
coordenado de diversas instacircncias conforme apresenta Fico no seguinte trecho
O funcionamento da Oban supunha um trabalho coordenado de diversas
instacircncias Toda quarta-feira era feita uma reuniatildeo no quartel-general do II
Exeacutercito na qual eram discutidas e avaliadas as accedilotildees da guerrilha da
semana Participavam dessas reuniotildees o chefe da 2ordf Seccedilatildeo do II Exeacutercito o
comandante da Oban major Waldyr Coelho um representante da 2ordf Seccedilatildeo
do II Exeacutercito o oficial chefe da 2ordf Seccedilatildeo do Distrito Naval o chefe da 2ordf
Seccedilatildeo da Poliacutecia Militar do Estado de Satildeo Paulo um representante da Poliacutecia
Federal um representante da Divisatildeo da Ordem Social e outro da Ordem
Poliacutetica ambos do DOPS (Fico 2001 117)
Aleacutem dos meios militar e policial a Oban tambeacutem era sustentada pelo
empresarial financeiro e parte das autoridades civis paulistas da eacutepoca conforme indica
trecho do artigo da historiadora Mariana Joffily para a revista Caros Amigos
O ato que celebrou a criaccedilatildeo da Oban foi organizado com pompa coqueteacuteis
e salgadinhos e contou com a presenccedila das principais autoridades poliacuteticas
de Satildeo Paulo o governador Roberto de Abreu Sodreacute o prefeito Paulo Maluf
o comandante do II Exeacutercito (atual Regional Sudeste) general Joseacute
Canavarro Pereira entre outros Tambeacutem acorreram agrave cerimocircnia figuras
proeminentes da elite paulista oriundas dos meios empresarial e financeiro
Luiz Macedo Quentel Antonio Delfim Netto Gastatildeo Vidigal Paulo Sawaya
e Henning Albert Boilesen Parte do setor empresarial paulista e das
multinacionais ndash com representaccedilatildeo em Satildeo Paulo ndash acreditava que as accedilotildees
guerrilheiras colocavam em risco a boa conduta dos negoacutecios e concorreu
51
para o apoio financeiro e material As autoridades da cidade colaboraram
com infra-estrutura incluindo a cessatildeo de partes das dependecircncias da 36ordf
delegacia de poliacutecia situada na Rua Tutoacuteia (Vila Mariana) para a
acomodaccedilatildeo do novo oacutergatildeo repressivo (Joffily 14 set 2009)
Percebe-se portanto que muitos empresaacuterios de Satildeo Paulo ajudaram a financiar a
Oban Entre outros gastos esse financiamento era destinado agrave capacitaccedilatildeo de seus
agentes e agrave compra de equipamentos de tortura novos entre eles uma maacutequina de
choques eleacutetricos nomeada de ldquoPianola Boilesenrdquo em homenagem a Henning Albert
Boilesen entatildeo presidente da empresa Ultragaacutes e um dos empresaacuterios agrave frente desse tipo
de investimento na Oban Boilesen assim como os demais empresaacuterios envolvidos
financeiramente com a Oban por desacreditar nas instituiccedilotildees do Estado que ateacute entatildeo
eram responsaacuteveis pelo combate agrave esquerda armada e por ter interesses reais nesse
combate optou por capitalizar a Oban Afinal uma instituiccedilatildeo extra-oficial de accedilatildeo
coordenada e com grande investimento teria autonomia e capacidade para neutralizar os
grupos da esquerda armada que vinham causando prejuiacutezos a seus negoacutecios tais como
assaltos e atentados Justamente devido a essa relaccedilatildeo que tinha com a Oban Boilesen
foi assassinado posteriormente em 1971 por militantes da esquerda armada 9
Percebe-se portanto que a Oban tinha caraacuteter paramilitar e unia a iniciativa
privada ao Estado a fim de que o poder de poliacutecia deste fosse fortalecido Sua criaccedilatildeo
empregou portanto um novo tipo de atuaccedilatildeo militar em que o combate ao ldquoinimigo
internordquo contaria com uma forte autonomia de accedilatildeo respaldada pelo sigilo dos decretos
regulamentares e pelo financiamento do empresariado A Oban se consagrava como um
poderoso e promissor modelo de repressatildeo
No entanto o envolvimento de oficiais das Forccedilas Armadas policiais e
empresaacuterios com a repressatildeo poderia assumir proporccedilotildees que fugissem ao controle
9 Para mais informaccedilotildees sobre Henning Albert Boilesen e a relaccedilatildeo do empresariado com a Oban ver o
filme documentaacuterio Cidadatildeo Boilesen (Brasil 2009)
52
militar e configurassem algumas vezes conflitos de interesses Assim com o sucesso
das accedilotildees da Oban no combate aos opositores armados os militares optaram por
ampliar o seu modelo para todo o Brasil desde que incorporasse algumas reformulaccedilotildees
que assegurassem o total controle militar Surgiriam entatildeo os DOI-CODI
Os DOI-CODI eram portanto a institucionalizaccedilatildeo e a sofisticaccedilatildeo do modelo da
Oban Afinal eles coordenavam todas as demais Forccedilas e Poliacutecias sob o comando do
Exeacutercito e estavam espalhados por todas as Regiotildees Militares do paiacutes Eram a nova
estrutura do SISSEGIN implantada por diretrizes secretas que o Conselho de Seguranccedila
Nacional havia formulado Tais diretrizes estabeleceram que para cada um dos
comandos militares haveria um Conselho de Defesa Interna (CONDI) um Centro de
Operaccedilotildees de Defesa Interna (CODI) e um Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees
(DOI) todos sob responsabilidade do comandante do Exeacutercito respectivo denominado
comandante da ldquoZona de Defesa Internardquo (ZDI) O paiacutes ficou assim dividido em seis
ZDI Podiam ser criadas ainda Aacutereas de Defesa Interna (ADI) ou Sub-Aacutereas de Defesa
Interna (SADI) em regiotildees que merecessem cuidados especiais
Aos Conselhos de Defesa Interna (CONDI) cabia assessorar os comandantes das
ZDI e tambeacutem facilitar a esses comandantes a coordenaccedilatildeo de accedilotildees e a necessaacuteria
cooperaccedilatildeo por parte das mais altas autoridades civis e militares com sede nas
respectivas aacutereas de responsabilidade Logo os CONDI podiam ser integrados por
governadores ou seus representantes assim como comandantes das Forccedilas Navais e
Aeacutereas comandantes subordinados secretaacuterios de seguranccedila e comandantes das demais
Poliacutecias ou outras autoridades conforme o comandante da respectiva ZDI julgasse
necessaacuterio Tinham como aacuterea de jurisdiccedilatildeo territorial as Regiotildees Militares cujas sedes
se localizam em Satildeo Paulo Rio de Janeiro (1ordm BPE) Brasiacutelia Minas Gerais Rio Grande
do Sul Bahia Pernambuco e Cearaacute No entanto segundo Fico os CONDI natildeo tiveram
53
funcionamento significativo
Os Centros de Operaccedilotildees de Defesa Interna (CODI) eram oacutergatildeos de planejamento
e coordenaccedilatildeo das medidas de defesa interna dirigidos pelo chefe do Estado-Maior do
Exeacutercito da Regiatildeo e compostos por representantes de todas as Forccedilas bem como da
divisatildeo local de ordem poliacutetica e social das Poliacutecias Civil Militar Federal e da agecircncia
local do Serviccedilo Nacional de Informaccedilotildees (SNI) Entre suas funccedilotildees estavam o
planejamento o controle e a execuccedilatildeo das medidas de defesa interna a coordenaccedilatildeo dos
meios utilizados para esta execuccedilatildeo e a ligaccedilatildeo com todos os escalotildees envolvidos
devendo possibilitar a conjugaccedilatildeo de esforccedilos do Exeacutercito da Marinha da Aeronaacuteutica
do SNI do Poliacutecia Federal e das Secretarias de Seguranccedila Puacuteblica
Jaacute os Destacamentos de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) tinham uma
estruturaccedilatildeo interna tiacutepica composta por setores especializados em operaccedilotildees externas
informaccedilotildees contra-informaccedilotildees interrogatoacuterios e anaacutelises aleacutem de assessoria juriacutedica
e policial e setores administrativos O trabalho nesses destacamentos era ininterrupto
Utilizavam regularmente dois regimes de trabalho um de expediente regular (das 8 agraves
18 horas) e outro atraveacutes de plantotildees de 24 horas por 48 de folga Abaixo visualiza-se a
estrutura orgacircnica dos DOI que sintetiza suas funccedilotildees e sua hierarquia institucional
(FICO 2001 123-125)
54
DOI do Exeacutercito
No organograma acima nota-se que os DOI eram divididos por setores seccedilotildees e
subseccedilotildees Esses satildeo caracterizados por Fico de acordo com suas funccedilotildees e
composiccedilotildees e tambeacutem pelo coronel Freddie Perdigatildeo Pereira em sua monografia que eacute
analisada na segunda frente do estudo aqui traccedilado Percebe-se que essa caracterizaccedilatildeo
feita por Fico e por Pereira eacute muito proacutexima uma vez que eles utilizam os mesmos
termos e palavras para descrever o trabalho ou a formaccedilatildeo de determinado setor ou
seccedilatildeo Diante disso torna-se evidente que ambos os trabalhos se basearam no mesmo
documento que apesar de natildeo ser citado na monografia de Pereira eacute referenciado por
Fico como ldquoSistema de Seguranccedila Interna SISSEGIN Documento classificado como
lsquosecretorsquo [1974] Capiacutetulo 2rdquo Entretanto enquanto o Sistema de Seguranccedila Nacional
como um todo eacute o foco da pesquisa de Fico o DOI eacute o objeto de Pereira o que por
conseguinte o faz apresentar de forma mais detalhada a composiccedilatildeo de cada uma de
suas partes integrantes Logo optou-se aqui por tratar da estrutura interna dos DOI na
Comandante
Seccedilatildeo de contra-informaccedilotildees Turma de comando
Setor de operaccedilotildees de informaccedilotildees Setor de administraccedilatildeo
Turno auxiliar
Assistecircncia juriacutedica
e policial
Seccedilatildeo
administrativa
Seccedilatildeo de busca e
apreensatildeo
Setor de
investigaccedilotildees
Setor de anaacutelise e
informaccedilotildees
Subseccedilatildeo de
interrogatoacuterio Subseccedilatildeo de anaacutelise
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proacutexima frente de estudo durante a anaacutelise da monografia de Pereira onde
trabalharemos com os DOI-CODI sob o ponto de vista de um de seus agentes ainda
durante a ditadura
Com relaccedilatildeo agrave atuaccedilatildeo dos DOI-CODI dentro do SISSEGIN Maria Celina
DrsquoArauacutejo em Os anos de Chumbo a memoacuteria militar sobre a repressatildeo (1994)
apresenta grandes contribuiccedilotildees para a presente pesquisa uma vez que em sua obra
analisa por meio de depoimentos ineacuteditos de militares a atuaccedilatildeo dos oacutergatildeos de
informaccedilatildeo e repressatildeo poliacutetica durante a ditadura militar
Partindo dessa abordagem de DrsquoArauacutejo destaca-se que diferentemente do que
acontecia na Oban cada um dos DOI-CODI tinha por comandante-geral o chefe do
Estado-Maior do Exeacutercito de sua respectiva Regiatildeo Militar e seu financiamento contava
com recursos orccedilamentaacuterios regulares do governo Logo os DOI-CODI natildeo
estabeleciam uma ligaccedilatildeo direta com o capital privado que entretanto ainda podia
investir de forma indireta na repressatildeo por meio de doaccedilotildees de maacutequinas e serviccedilos
Dessa forma os DOI-CODI tinham uma maior independecircncia financeira que junto com
a centralizaccedilatildeo hieraacuterquica que tambeacutem os caracterizava permitia que suas
investigaccedilotildees e accedilotildees procedessem de forma ainda mais eficiente Afinal esses atributos
evitavam que suas operaccedilotildees estivessem suscetiacuteveis agrave duplicidade de tarefas a
competiccedilotildees e a conflitos de interesses maximizando os seus resultados e tornando-os
uma espeacutecie de sofisticaccedilatildeo da repressatildeo
Aleacutem disso percebe-se que essa sofisticaccedilatildeo dos DOI-CODI tambeacutem era formada
pelo proposital distanciamento ali mantido entre os militares do governo e os agentes
desses oacutergatildeos de repressatildeo Afinal a ditadura ao mesmo tempo em que sancionava a
tortura nos seus ldquoporotildeesrdquo estrategicamente negava a sua existecircncia perante a sociedade
Assim esse cenaacuterio que isentava os governantes e os demais militares relacionados ao
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poder poliacutetico do paiacutes de qualquer ligaccedilatildeo com a tortura se mantinha atraveacutes da
seguinte configuraccedilatildeo de um lado o torturador ndash que natildeo montou a maacutequina e jamais
efetuaria a tortura num salatildeo do quartel do Exeacutercito se temesse a reaccedilatildeo de seus
comandantes ndash e de outro o seu superior responsaacutevel pela ordem puacuteblica e
beneficiaacuterio direto do poder poliacutetico ndash que sancionava as maacutequinas mas natildeo tocava nos
presos
Dessa forma os DOI responsaacuteveis por accedilotildees que englobavam as prisotildees e os
interrogatoacuterios dos presos poliacuteticos eram instituiccedilotildees que prezavam por natildeo ser
externamente identificadas por seus meacutetodos violentos O sistema funcional dos DOI
era entatildeo complexo e informal de modo que por mais que neles existissem hierarquia e
coordenaccedilatildeo as brechas para que a falta de controle se propagasse eram amplas a fim
de que os meacutetodos natildeo regulamentares tais como as torturas pudessem ser
desempenhados com a eficiecircncia e a recorrecircncia necessaacuterias sem serem relacionados
diretamente a um comando
Diante disso justifica-se que conforme apurado por Maria Celina DrsquoArauacutejo a
versatildeo oficial dos militares ainda possa ser a de que a tortura jamais resultou de
qualquer ordem ou orientaccedilatildeo superior E mesmo quando chega a ser admitida apareccedila
como exceccedilatildeo como abuso ou excesso de poucos Entretanto torna-se aqui evidente a
incoerecircncia dessa versatildeo militar Afinal verifica-se que assim como em todos os
organismos militares nos DOI tambeacutem existiam uma forte hierarquia a ser cumprida
onde apesar de uma estrutura complexa qualquer accedilatildeo deveria ser remetida a um
superior o que sugere que a questatildeo da responsabilidade sempre poderia ser resgatada
Logo se militares reconhecem que existiram ldquoexcessosrdquo na eacutepoca e mesmo assim os
chefes imediatos de tais infratores natildeo tomaram as devidas providecircncias encontra-se
nos DOI entatildeo uma forte incongruecircncia com relaccedilatildeo ao princiacutepio militar de
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responsabilizaccedilatildeo do chefe-superior Portanto diante dessa constataccedilatildeo de como eram
tratados os torturadores nos DOI percebe-se que apesar de velada em geral a tortura
era um procedimento ali consentido
2 O DOI-CODI por ele mesmo
A anaacutelise ateacute agora feita por meio da historiografia cede aqui lugar para se
concentrar sobre uma fonte especiacutefica pela qual a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
satildeo vistas por um acircngulo mais proacuteximo a partir do olhar de um de seus agentes
enquanto a instituiccedilatildeo ainda estava em atividade Trata-se do trabalho O Destacamento
de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de
combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e perspectivas apresentado em 1978 agrave Escola de
Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie
Perdigatildeo Pereira10
posteriormente apontado por ex-prisioneiros poliacuteticos como o
torturador ldquoNagibrdquo do DOI carioca do iniacutecio dos anos 1970
A referida fonte eacute uma espeacutecie de trabalho final da ECEME estabelecimento de
ensino tradicional do Exeacutercito brasileiro situado no bairro da Praia Vermelha no Rio de
Janeiro cuja missatildeo eacute a preparaccedilatildeo de oficiais superiores para o exerciacutecio de funccedilotildees
de Estado-Maior comando chefia direccedilatildeo e assessoramento dos mais elevados
escalotildees da Forccedila Terrestre 11
Logo eacute fruto de uma espeacutecie de preparaccedilatildeo que o
coronel Pereira estava se submetendo a fim de ocupar algum cargo de chefia dentro do
Exeacutercito
Escrita durante a ditadura militar enquanto os DOI-CODI ainda estavam em
funcionamento embora em menor atividade devido agrave propagaccedilatildeo de denuacutencias sobre
10
Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II 11
ESCOLA de Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) [acesso em 29 jan 2012] Disponiacutevel
em httpwwwecemeensinoebbreceme
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torturas e mortes ocasionadas dentro do Destacamento a monografia permite trabalhar
diretamente com a visatildeo de um dos agentes do DOI-CODI ainda no ldquocalor da horardquo
como se costuma dizer O tema abordado eacute a atuaccedilatildeo dos DOI durante o seu periacuteodo de
maior efetividade de 1970 a 1973 provavelmente como uma tentativa de fortalecer a
instituiccedilatildeo e reforccedilar o seu poder trazendo agrave tona os ldquovelhos temposrdquo de grande
atividade
Em 1978 momento em que a monografia foi escrita o DOI-CODI havia
diminuiacutedo suas atividades de repressatildeo se restringindo apenas ao papel de investigaccedilatildeo
Como indica o referido coronel no seguinte trecho
Fruto principalmente do trabalho anocircnimo e incansaacutevel dos DOI o
terrorismo no Brasil foi praticamente aniquilado Em funccedilatildeo disso tais
oacutergatildeos foram e continuam sendo alvo de uma das mais virulentas campanhas
difamatoacuterias que a imprensa brasileira e internacional jaacute desencadearam
contra uma instituiccedilatildeo E os DOI que surgiram no fragor da luta e com
estrutura adaptada para enfrentar a accedilatildeo direta no combate aberto
reformulam a sua atuaccedilatildeo [] O efetivo elevado trabalhando atualmente na
Seccedilatildeo de Investigaccedilotildees pode dar ideia do tipo de trabalho que ora eacute
desenvolvido nos DOI com prioridade absoluta Trata-se do levantamento
total das organizaccedilotildees atuantes a partir da vigilacircncia permanente e cerrada
sobre os elementos jaacute identificados [] o trabalho nos DOI deixou de ter
aquele caraacuteter de combate de peito aberto tantas vezes levado a efeito por
seus pioneiros Transformou-se o DOI atual numa verdadeira agecircncia de
informaccedilotildees onde impera o trabalho frio e calculado do analista a teacutecnica
sofisticada de aparelhagem eletrocircnica substituindo a coragem pessoal de
seus elementos
Os DOICODI satildeo e sempre seratildeo as sentinelas atentas e vigilantes de nossa
liberdade (Pereira 1978 28-35)
Essa mudanccedila promovida nos DOI se relaciona diretamente com o momento
vivido pelo Brasil em 1978 Existia entatildeo uma incompatibilidade entre a distensatildeo
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poliacutetica ldquolenta gradual e segurardquo comandada pelo Presidente Ernesto Geisel a fim de
abrir o paiacutes e instalar futuramente uma democracia e as denuacutencias sobre torturas e
mortes que continuavam a ocorrer dentro dos DOI-CODI e eram com frequecircncia
noticiadas pelos jornais do Brasil e do mundo Assim com o intuito de reverter este
cenaacuterio desfavoraacutevel Geisel optou por exonerar em 1976 o comandante do II Exeacutercito
o general Ednardo DAacutevila Melo afastar do governo no ano seguinte o entatildeo ministro
do Exeacutercito o general Siacutelvio Frota ndash visto por muitos agentes dos DOI como uma
lideranccedila contra a distensatildeo poliacutetica e o enfraquecimento das operaccedilotildees repressoras e
apoiado como eventual candidato agrave Presidecircncia da Repuacuteblica ndash e de forma geral
diminuir a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI no combate direto agrave ldquosubversatildeordquo concentrando suas
atividades apenas na investigaccedilatildeo
Esta atitude logicamente causou resistecircncia entre muitos integrantes dos DOI-
CODI que tentavam provar a necessidade da atuaccedilatildeo repressora da instituiccedilatildeo para a
proteccedilatildeo da Seguranccedila Nacional Essas tentativas incluiacuteam muitas accedilotildees forjadas pelos
proacuteprios agentes dos DOI como atentados a bomba em bancas de jornal instituiccedilotildees que
lutavam contra a ditadura ndash como a sede da OAB no Rio de Janeiro atacada em agosto
de 1980 quando morreu a secretaacuteria Lyda Monteiro ndash e shows populares ndash como a
tentativa frustrada de ataque a bomba de dois agentes do DOI do Rio de Janeiro em
maio de 1980 no show em homenagem ao dia do trabalhador no Riocentro
Outro aspecto dessa fonte que merece tambeacutem ser aqui destacado satildeo as
circunstacircncias pessoais que impulsionaram a sua confecccedilatildeo Afinal se a funccedilatildeo da
ECEME eacute preparar militares para ocupar cargos de chefia dentro do Exeacutercito
certamente a monografia foi um requisito necessaacuterio para que o coronel Pereira se
preparasse para uma promoccedilatildeo na carreira militar Partindo dessa informaccedilatildeo e
juntando-a ao dado que Elio Gaspari apresenta na obra A Ditadura Escancarada (2002
60
184) de que foi oferecido ao mesmo coronel no iniacutecio de 1980 o posto de general de
brigada percebe-se que de fato essa preparaccedilatildeo de Pereira lhe gerou frutos Poreacutem de
acordo com Gaspari para ser general de brigada ele teria que aceitar comandar uma
tropa em uma unidade militar de Satildeo Paulo o que natildeo lhe agradou Preferiu entatildeo a
opccedilatildeo de ir para a reserva e ao mesmo tempo permanecer como contratado em um
cargo na seccedilatildeo de operaccedilotildees do SNI do Rio de Janeiro recebendo no total uma receita
superior agrave de general de Exeacutercito Essa situaccedilatildeo tal como o tema escolhido para sua
monografia eacute mais uma evidecircncia do apreccedilo que coronel Pereira tinha pelo ofiacutecio
investigativo que outrora exerceu nos DOI Diante de sua progressatildeo profissional e do
esvaziamento que os DOI vinham sofrendo o SNI12
se tornava uma opccedilatildeo atraente
pois aleacutem de ser uma instituiccedilatildeo que investigava elementos que ameaccedilavam a
Seguranccedila Nacional estava diretamente ligada ao alto esquadratildeo do Exeacutercito ciacuterculo de
que Pereira fazia parte nesse momento
Com relaccedilatildeo agrave monografia desse coronel muitos pontos interessantes satildeo
destacados Entre eles o detalhamento estrutural dos DOI-CODI
Internamente os CODI eram subdivididos entre trecircs centrais 1- Central de
Informaccedilotildees 2- Central de Operaccedilotildees 3- Central de Assuntos Civis O comando
principal era da 1- Central de Informaccedilotildees que coordenava as investigaccedilotildees locais e
era chefiada pelo dirigente do CODI ou seja pelo chefe do Estado-Maior do Exeacutercito
da aacuterea que deveria ser um general do Exeacutercito Este reunia em sua equipe um
representante local do alto escalatildeo da Aeronaacuteutica da Marinha do SNI e do
Departamento de Poliacutecia Federal o diretor do DOPS e o Comandante do DOI daquela
jurisdiccedilatildeo aleacutem do chefe da 2ordf Seccedilatildeo da Poliacutecia Militar responsaacutevel pela parte de
informaccedilotildees relativas a crimes poliacuteticos Jaacute a 2- Central de Operaccedilotildees e a 3- de
12
Para mais informaccedilotildees sobre a formaccedilatildeo do SNI ver Antunes 2002
61
Assuntos Civis davam suporte agrave equipe da 1- de Informaccedilotildees e para tanto tambeacutem
congregavam em suas equipes representantes das trecircs Forccedilas sendo um representante
do Exeacutercito da Regiatildeo Militar correspondente responsaacutevel por ocupar o cargo de chefe
aleacutem de um representante credenciado da Poliacutecia Civil da Poliacutecia Militar local e de
outros oacutergatildeos quando fosse necessaacuterio para contribuir com alguma anaacutelise especiacutefica
O CODI de cada Regiatildeo Militar tinha por funccedilatildeo centralizar as informaccedilotildees de
caraacuteter ldquosubversivordquo e repassaacute-las ao DOI correspondente para que as operaccedilotildees de
informaccedilotildees fossem realizadas de forma concentrada atraveacutes desse uacutenico oacutergatildeo e por
conseguinte sob um uacutenico comando Assim evitava-se que vaacuterios oacutergatildeos de informaccedilatildeo
ligados a uma das trecircs Forccedilas ou agraves Poliacutecias realizassem suas operaccedilotildees
independentemente de qualquer coordenaccedilatildeo ou planejamento global o que poderia
acabar prejudicando as accedilotildees contra seus ldquoinimigos internosrdquo
Afinal de acordo com as informaccedilotildees levantadas por Pereira em sua monografia
antes dos DOI-CODI serem institucionalizados natildeo foram poucas as vezes que um
desses oacutergatildeos prejudicou a atuaccedilatildeo de outro Em diversos momentos enquanto um
estava realizando uma vigilacircncia sobre determinados elementos ldquosubversivosrdquo por
exemplo outro sem saber da accedilatildeo do primeiro prendia dois ou trecircs desses elementos
Dessa forma os demais membros da mesma organizaccedilatildeo ao saberem da prisatildeo de seus
companheiros natildeo retornavam agrave aacuterea sob vigiacutelia e evitavam ser presos Tambeacutem em
vaacuterias ocasiotildees a documentaccedilatildeo apreendida por determinado oacutergatildeo de seguranccedila ficava
em seu poder e natildeo era encaminhada para outros escalotildees para ser analisada Com essas
informaccedilotildees ldquoencostadasrdquo as accedilotildees armadas de organizaccedilotildees de esquerda que ali
estavam indicadas prosseguiam normalmente sem impedimentos
Percebe-se portanto como a centralizaccedilatildeo de informaccedilotildees e de accedilotildees de
seguranccedila interna implantada pelos DOI-CODI conduziu a resultados positivos para a
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repressatildeo Natildeo eacute agrave toa que conforme analisado anteriormente a partir da tese de Maria
Celina DrsquoArauacutejo os DOI-CODI satildeo aqui entendidos como a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo
jaacute que os CODI passaram a concentrar e coordenar as informaccedilotildees e atraveacutes dos DOI a
executar de forma concentrada as operaccedilotildees de informaccedilotildees
Oacutergatildeos operacionais dos CODI os Destacamentos de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees
os DOI eram destinados ao trabalho de combate direto ao ldquoinimigo internordquo Para tanto
conforme analisado a partir da monografia de Pereira e da jaacute referida obra de Fico13
os
DOI dividiam-se basicamente entre 1- Setor de operaccedilotildees de informaccedilotildees e 2- Setor de
administraccedilatildeo Tais setores estavam diretamente subordinados ao comandante do
Destacamento daquela Regiatildeo Militar que normalmente deveria ser um tenente-coronel
com vivecircncia na aacuterea de informaccedilotildees Essa patente de tenente-coronel compunha o
ciacuterculo hieraacuterquico de oficiais e a hierarquia de oficiais superiores14
ou seja pertencia
ao acircmbito de convivecircncia desses oficiais e portanto era considerado um deles Isto
significa que os comandantes dos DOI estavam um degrau abaixo do uacuteltimo acircmbito
hieraacuterquico do Exeacutercito o dos oficiais-generais ciacuterculo referente aos chefes dos CODI
que deveriam possuir a patente de general de Exeacutercito
Chefiado pelo subcomandante do DOI o 1- Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees
tinha diretamente subordinado a ele 11- Setor de Investigaccedilatildeo 12- Setor de Anaacutelise e
Informaccedilotildees e 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo Jaacute o 2- Setor de administraccedilatildeo se
subdividia em 21- Assessoria Juriacutedica e Policial e 22- Seccedilatildeo administrativa
Ao 11- Setor de Investigaccedilatildeo cabia fundamentalmente a realizaccedilatildeo de
investigaccedilotildees com a finalidade de identificar e localizar ldquoelementos subversivosrdquo a fim
de repassar as informaccedilotildees para que os agentes da 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo
prendessem os suspeitos e localizassem os seus ldquoaparelhosrdquo (termo designado para
13
Para visualizar o organograma dos DOI voltar agrave paacutegina 54 14
Para mais informaccedilotildees sobre os ciacuterculos hieraacuterquicos e a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II
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definir o local em que ficavam escondidos os integrantes dos grupos de esquerda que
viviam na clandestinidade) A chefia e a subchefia do 11- Setor de Investigaccedilatildeo era
privativa de oficiais do Exeacutercito e seus integrantes natildeo deveriam ser identificados pelos
elementos a serem presos a fim de que a eficiecircncia da accedilatildeo fosse garantida uma vez que
as suas identificaccedilotildees poderiam ocasionar a fuga dos suspeitos No entanto quando a
situaccedilatildeo exigia os integrantes desse setor poderiam efetuar prisotildees neutralizar
ldquoaparelhosrdquo e apreender material ldquosubversivordquo Esse 11- Setor de Investigaccedilatildeo agia por
meio de diversas turmas de investigaccedilatildeo compostas cada uma por um agente um
auxiliar e um carro normalmente da marca Volkswagen
O 12- Setor de Anaacutelise e Informaccedilotildees tinha por funccedilatildeo fornecer ao comandante
do DOI e aos demais setores seccedilotildees e subseccedilotildees informaccedilotildees estudos e conclusotildees
sobre as organizaccedilotildees ldquosubversivo-terroristasrdquo que atuavam na aacuterea Esse setor era
composto por um chefe sem patente ou ciacuterculo hieraacuterquico preacute-determinados pela
121- Subseccedilatildeo de anaacutelise e pela 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio
A 121- Subseccedilatildeo de anaacutelise tambeacutem natildeo exigia de forma predeterminada a
patente ou o ciacuterculo hieraacuterquico de quem a chefiasse Tinha por funccedilatildeo analisar os
depoimentos prestados pelos presos daquele DOI analisar o material das organizaccedilotildees
ldquoterroristasrdquo que havia sido recolhido pelas turmas da 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo
fornecer subsiacutedios ao chefe do 1- Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees e agrave equipe da
122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio manter para cada organizaccedilatildeo de esquerda uma pasta
com o seu histoacuterico relaccedilatildeo de nomes e codinomes relaccedilatildeo de accedilotildees e uma espeacutecie de
aacutelbum contendo as fichas de qualificaccedilatildeo fotografia atuaccedilatildeo e situaccedilatildeo de cada um de
seus elementos e por fim organizar atualizar e manter o arquivo geral contendo o
dossiecirc de cada elemento fichado
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Jaacute a 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio era responsaacutevel pelo interrogatoacuterio e por
conseguinte pela aplicaccedilatildeo de torturas nos presos a fim de fazecirc-los falar o que sabiam
Seu chefe deveria ser um oficial do Exeacutercito de niacutevel de capitatildeo ou seja deveria
pertencer ao ciacuterculo hieraacuterquico de oficiais mas natildeo ao meio de oficiais superiores e
sim ao de oficiais intermediaacuterios No entanto a partir do ano de 1971 era preferiacutevel que
ele tivesse o curso B1 da Escola Nacional de Informaccedilotildees (EsNI) Este curso era uma
espeacutecie de especializaccedilatildeo em informaccedilotildees e seguranccedila interna ministrada pela EsNI
escola que havia sido criada pelo SNI durante o ano de 1971 e era a este subordinada
Como a 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio trabalhava ininterruptamente durante 24
horas ela se dividia em trecircs turmas de interrogatoacuterio preliminar cada uma chefiada
tambeacutem por um capitatildeo do Exeacutercito com o curso B1 da EsNI Essas turmas eram
compostas por seis agentes cada e aleacutem disso subordinada ao chefe de cada uma delas
existia uma turma auxiliar encarregada da carceragem e da datilografia de documentos
Jaacute a 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo tinha por ofiacutecio efetuar prisotildees ldquocobrir
pontosrdquo (preparar uma emboscada para prender os militantes esquerdistas no momento
em que se encontravam em algum ponto anteriormente combinado) neutralizar
ldquoaparelhosrdquo apreender material ldquosubversivordquo coletar dados que possibilitassem o
levantamento de elementos ldquosubversivosrdquo conduzir presos ao DOPS auditorias
hospitais etc O chefe deveria ser um oficial do Exeacutercito sem predeterminaccedilatildeo de
patente militar e sua equipe se dividia em trecircs grupamentos ldquoAB e Crdquo Cada um deles
era composto por quatro turmas de busca e apreensatildeo que tinham cerca de trecircs ou cinco
agentes e possuiacuteam cada uma um carro espaccediloso muitas vezes dos modelos C14 Opala
ou Kombi equipado com raacutedio Aleacutem disso a 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo
tambeacutem era composta por quatro turmas de coletas de dados que tinham por missatildeo
reunir informaccedilotildees sobre os ldquosubversivosrdquo em universidades coleacutegios etc Cada uma
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dessas turmas era constituiacuteda por dois elementos um oficial da PM da regiatildeo ou um
delegado de poliacutecia e um motorista que normalmente dirigia um carro de marca
Volkswagen com raacutedio
Ligada ao 2- Setor de administraccedilatildeo a 22- Seccedilatildeo administrativa garantia o apoio
logiacutestico ao DOI ou seja organizava o pedido de gecircneros alimentiacutecios bem como
outros utensiacutelios e equipamentos necessaacuterios Esta seccedilatildeo natildeo tinha nenhum tipo de
exigecircncia de patente ou ciacuterculo hieraacuterquico para o cargo de chefe Jaacute a 21- Assessoria
Juriacutedica e Policial era chefiada por um delegado de poliacutecia e tinha por missatildeo
assessorar o Comandante do DOI em assuntos judiciais elaborar a documentaccedilatildeo
formal e legal referente ao material apreendido e agraves confissotildees dos prisioneiros e
controlar a menagem dos presos que fossem liberados
A menagem estipulada pelo Coacutedigo Processual Militar criado pelo decreto-lei
1002 de outubro de 1969 era uma espeacutecie de prisatildeo cautelar concedida ao militar ou
ao civil que tivesse praticado um crime de cunho militar com previsatildeo de pena privativa
de liberdade O local de cumprimento da menagem era a cidade onde residisse o
suspeito no momento do crime ou a sede do oacutergatildeo que tivesse investigando a sua accedilatildeo
Como a partir do AI-5 os suspeitos de crimes poliacuteticos passaram a ser julgados pela
Justiccedila Militar e o instituto do habeas corpus foi suprimido atraveacutes da menagem os
suspeitos detidos poderiam ser levados agrave sede do DOI-CODI da respectiva Regiatildeo
Militar Afinal era neste oacutergatildeo que as investigaccedilotildees sobre os crimes poliacuteticos de
determinada aacuterea se concentravam A menagem tinha por fundamento evitar o conviacutevio
do acusado ateacute o seu julgamento em primeira instacircncia com pessoas que jaacute estivessem
condenadas Dessa forma a validade da menagem terminava a partir da abertura de um
processo condenatoacuterio contra o suspeito quando entatildeo este seria transferido para uma
Delegacia de Poliacutecia tal como o DOPS por exemplo para ser enfim julgado e poder se
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fosse o caso cumprir sua pena em um presiacutedio convencional Poreacutem ateacute isso acontecer
caso fosse enquadrado como um possiacutevel criminoso poliacutetico esse suspeito poderia ficar
detido no DOI correspondente por ateacute trinta dias podendo sua prisatildeo ainda ser
prorrogada por mais sessenta dias
A menagem era entatildeo um respaldo legal tanto para o isolamento do preso poliacutetico
nos quarteacuteis que sediavam os DOI quanto se fosse o caso para o acompanhamento de
sua vida em liberdade ateacute o dia de seu julgamento Caso fosse diagnosticado pelos
agentes do respectivo DOI que o suspeito jaacute tivesse concedido todas as informaccedilotildees que
tinha e natildeo representasse perigo agrave Seguranccedila Nacional a instituiccedilatildeo poderia solicitar ao
juiz a sua liberaccedilatildeo a fim de que a sua menagem fosse cumprida em liberdade Quando
isto ocorria o suspeito deveria ficar na mesma cidade que havia sido preso ateacute o seu
julgamento em primeira instacircncia
Diante dos organogramas dos CODI e dos DOI aqui traccedilados evidencia-se que
existiam diferenccedilas nas patentes hieraacuterquicas dos chefes de cada um desses oacutergatildeos
Enquanto o chefe dos CODI era o chefe de Estado-Maior do Exeacutercito de cada Regiatildeo
Militar ou seja um general de Exeacutercito que por conseguinte pertencia ao ciacuterculo
hieraacuterquico de oficiais-generais localizado no topo da hierarquia militar o chefe de
cada DOI era um tenente-coronel patente que se insere no ciacuterculo hieraacuterquico de
oficiais superiores ou seja imediatamente abaixo do de oficiais-generais Assim como
os DOI eram o braccedilo operacional dos CODI ou seja a eles subordinados o fato de seus
chefes estarem obrigatoriamente no ciacuterculo hieraacuterquico abaixo dos dirigentes dos CODI
leva a crer que dentro dos DOI-CODI havia de fato um respeito agrave hierarquia militar
Este respeito jaacute foi aqui destacado por meio da anaacutelise historiograacutefica baseada na
tese Maria Celina DrsquoArauacutejo (1994) que defende a ideia de que o princiacutepio da
obediecircncia hieraacuterquica apesar de velado existia nos DOI-CODI logo como a tortura
67
fazia parte de suas accedilotildees ela era consentida Afinal se laacute existiam chefias e nelas a
hierarquia militar era minimamente respeitada isso sinaliza que as accedilotildees eram
comandadas por chefes que tinham o consentimento de seus chefes diretos para darem
tal ordem Portanto a tortura impetrada pelas turmas de interrogatoacuterio preliminar era
consentida pelo capitatildeo que as chefiava pelo capitatildeo que comandava a respectiva
Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio a que elas estavam subordinadas pelo chefe do Setor de
Anaacutelise e Informaccedilotildees que chefiava o chefe dessa Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio pelo
subcomandante do DOI que era responsaacutevel pelo Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees a
que o Setor de Anaacutelise e Informaccedilotildees estava vinculado pelo tenente-coronel que
comandava o DOI e estava hierarquicamente acima do chefe do Setor de Anaacutelise e
Informaccedilotildees e pelo general do Exeacutercito que dirigia o CODI e tinha o comandante do
DOI a ele subordinado Logo o DOI-CODI foi construiacutedo de forma tatildeo centralizada que
a maioria das accedilotildees feitas por algum de seus integrantes passava por toda a cadeia
hieraacuterquica nele envolvida
Assim se torna mais uma vez evidente que a tortura como meacutetodo de
interrogatoacuterio quando utilizada pelos agentes do DOI era consentida por seus
superiores e natildeo um fenocircmeno isolado ou mesmo ldquoexcesso de poucosrdquo como muitos
militares costumam argumentar Esta argumentaccedilatildeo que aparentemente encontra
fundamento no alto grau de autonomia e independecircncia que os DOI possuiacuteam eacute
derrubada quando se evidencia que estes eram autocircnomos e independentes apenas em
relaccedilatildeo a batalhotildees e outras instituiccedilotildees militares Afinal os DOI foram programados
para atuar a par das subordinaccedilotildees preacute-existentes em outros oacutergatildeos podendo congregar
agentes de instacircncias militares poliacutecias e Forccedilas diferentes entre si mas sem deixar de
respeitar a hierarquia do Exeacutercito inserida em seu interior tendo por direccedilatildeo maacutexima o
Chefe de Estado-Maior do Exeacutercito
68
Outro ponto interessante que a caracterizaccedilatildeo do organograma dos DOI ajuda a
revelar eacute o fato do cargo de chefe da Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio ser privativo de um
oficial do Exeacutercito de niacutevel de capitatildeo ou seja que deveria pertencer ao ciacuterculo
hieraacuterquico de oficiais intermediaacuterios excluindo-se das atividades afeitas agrave posiccedilatildeo de
membros do ciacuterculo hieraacuterquico dos oficiais superiores e dos oficiais-generais onde se
encontravam os homens que governavam o paiacutes Logo por traacutes dessa condiccedilatildeo de
chefia havia a tentativa de manter a responsabilidade direta dos atos proferidos nessa
Subseccedilatildeo longe do ciacuterculo de oficiais superiores ou de oficiais-generais instacircncias
maacuteximas na hierarquia do Exeacutercito Dessa forma as torturas executadas durante os
interrogatoacuterios natildeo seriam relacionadas aos ocupantes das altas patentes do Exeacutercito
que durante a ditadura eram os que estavam agrave frente do governo brasileiro Essa
medida era portanto para dissociar a imagem dos governantes com o que ocorria nos
porotildees
No entanto eacute notaacutevel que indiretamente o governo ditatorial apoiasse as torturas
que as turmas de interrogatoacuterio preliminar executavam nos DOI-CODI uma vez que
obviamente os governantes tinham conhecimento sobre a determinaccedilatildeo de que os
agentes dessas turmas e os chefes da Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio deveriam ter
preferencialmente uma espeacutecie de especializaccedilatildeo em informaccedilotildees e seguranccedila
ministrada pela EsNI Nesta escola ndash ligada ao SNI que era composto pelas mais altas
patentes do Exeacutercito e diretamente ligado ao alto escalatildeo do governo ndash os alunos
provavelmente recebiam instruccedilotildees sobre os meacutetodos de tortura a serem aplicados
durante o serviccedilo
Aleacutem disso o fato do chefe e dos demais componentes da Subseccedilatildeo de
interrogatoacuterio serem ligados ao ciacuterculo de oficiais intermediaacuterios do Exeacutercito tambeacutem
vai ao encontro da anaacutelise historiograacutefica sobre a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
69
aqui apresentada a partir dos conceitos de Martins Filho de cizacircnia militar palaacutecio e
caserna Afinal a caserna era composta por militares de meacutedias e baixas patentes que
durante os primeiros anos da ditadura lutaram internamente por atuarem no combate ao
ldquoinimigo internordquo a fim de terem uma maior participaccedilatildeo na poliacutetica o que ocasionou
algumas cizacircnias militares Foi justamente por temer o resultado dessas cizacircnias que o
palaacutecio formado pelos militares de altas patentes que possuiacuteam cargos no governo aos
poucos cedeu esses poderes agrave caserna e assim o aparato de seguranccedila nacional foi
sendo instituiacutedo e dentro dele o SISSEGIN e os DOI-CODI Logo como eacute na
Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio e tambeacutem na Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo onde a atuaccedilatildeo
de interrogar torturar e prender traz os poderes poliacuteticos extras que a caserna
historicamente reivindicava percebe-se que a utilizaccedilatildeo de seus militares para compor
essas equipes era mais uma forma de manter a unidade militar contendo possiacuteveis
cizacircnias
Essa perspectiva torna-se completa quando se identifica que no momento em que
tais atribuiccedilotildees passaram a ser retiradas dos militares da caserna essas cizacircnias natildeo
mais puderam ser contidas Afinal conforme jaacute evidenciado anteriormente quando a
partir do governo de Geisel as atividades de busca apreensatildeo e interrogatoacuterio dos DOI
foram sendo abolidas a caserna passou a reagir posicionando-se contraacuteria agrave cuacutepula do
governo que defendia a abertura poliacutetica passando a apoiar a candidatura presidencial
de militares que defendessem a continuidade de tais atribuiccedilotildees aos DOI e ateacute mesmo
forjando situaccedilotildees terroristas tais como os diversos ataques a bomba que ocorreram na
eacutepoca como forma de endossar a necessidade das atuaccedilotildees repressivas desenvolvidas
pelos DOI
A monografia do coronel Pereira aqui analisada pode tambeacutem ser vista como
mais uma dessas reaccedilotildees da caserna Afinal durante toda a escrita de Pereira haacute uma
70
necessidade de comprovar a eficiecircncia dos DOI na atividade de proteger a seguranccedila
interna do paiacutes Percebe-se assim que Pereira apesar de ser coronel e por conseguinte
jaacute estar entre os oficiais superiores nesse momento ainda se via ligado de alguma forma
aos DOI Talvez porque a histoacuteria de sua carreira militar estivesse totalmente
relacionada com as atividades que ele laacute desempenhou e por isso acreditasse que
enquanto tais atividades continuassem sendo desenvolvidas o seu trabalho tambeacutem
continuaria a ser reconhecidamente importante
Os setores seccedilotildees e subseccedilotildees do DOI normalmente seguiam a configuraccedilatildeo aqui
exposta poreacutem nota-se que suas equipes natildeo eram fixas ou seja poderiam variar de
acordo com as necessidades das operaccedilotildees que surgissem Os DOI foram assim
concebidos como organismos instaacuteveis pois dependendo da gravidade e da quantidade
de accedilotildees armadas que deveriam ser reprimidas o nuacutemero de agentes poderia aumentar
ou diminuir Dessa forma os DOI se adaptavam a diversas circunstacircncias a fim de
combater com eficiecircncia o ldquoterrorismordquo e a ldquosubversatildeordquo
Grande parte dessa necessidade de adaptaccedilatildeo vinha da sobrevalorizaccedilatildeo da
guerrilha urbana entre os militares ligados a organismos de repressatildeo Uma vez que ao
verem a forma organizada e ousada com que a esquerda armada montava suas accedilotildees
sentiram que a estrutura repressiva da eacutepoca anterior agrave experiecircncia da Oban e ao
surgimento dos DOI natildeo estava preparada para combatecirc-las e diante disso
interpretaram tais accedilotildees esquerdistas como uma forte ameaccedila ao paiacutes Afinal as
instituiccedilotildees responsaacuteveis pela repressatildeo direta como por exemplo os DOPS estavam
engessadas por corporaccedilotildees fixas que combatiam as referidas accedilotildees de forma pouco
efetiva reprimindo-as sem a centralizaccedilatildeo e a grandiosidade necessaacuterias
A todos estes atos de banditismo [fazendo referecircncia a assaltos a banco a
sequestros de embaixadores e outras accedilotildees efetuadas pela esquerda armada
71
entre os anos de 1969 e 1970] a nossa Poliacutecia Civil e a Poliacutecia Militar
assistiam sem nada poder fazer Vaacuterias radiopatrulhas foram incendiadas e
os poucos soldados que ousavam enfrentar os terroristas eram
impiedosamente mortos Por que isso acontecia Porque as nossas poliacutecias
foram surpreendidas e natildeo estavam preparadas para um novo tipo de luta que
surgia a guerrilha urbana (Pereira 1978 10)
Entatildeo para conter a guerrilha urbana surgiu a necessidade de um oacutergatildeo de
repressatildeo centralizado e de estrutura maleaacutevel que tornasse possiacutevel e praacutetico reprimir
determinada accedilatildeo armada de acordo com a sua grandiosidade aumentando e diminuindo
o corpo funcional conforme o esforccedilo exigido Em meio a esta concepccedilatildeo de repressatildeo
a estrutura dos DOI foi criada tornando a repressatildeo poliacutetica mais combativa e
consequentemente aumentando a sua eficiecircncia
Com tamanha flexibilidade os DOI movimentavam pessoal e material variaacutevel
com grande mobilidade e agilidade Essa destacada autonomia dos DOI era travada
portanto em benefiacutecio de um aproveitamento maacuteximo de suas accedilotildees jaacute que eram
oacutergatildeos destinados ao combate direto agraves organizaccedilotildees subversivo-terroristas e sua
missatildeo era desmontar toda a estrutura de pessoal e de material destas organizaccedilotildees
bem como impedir a sua reorganizaccedilatildeo (Pereira 1978 22)
A utilizaccedilatildeo de codinomes pelos integrantes das turmas de interrogatoacuterio
preliminar era outra face dessa autonomia de trabalho dos DOI Esse costume era um
benefiacutecio de proteccedilatildeo para a instituiccedilatildeo e tambeacutem para tais militares Afinal como
muitos deles possivelmente aplicavam torturas nos presos durante os interrogatoacuterios o
sigilo com relaccedilatildeo aos seus nomes verdadeiros poderia inviabilizar posteriores
denuacutencias e por conseguinte fortes indiacutecios de que nos DOI a tortura era uma praacutetica
institucionalizada
Aleacutem disso essa mesma autonomia tambeacutem permitia que seus agentes para natildeo
serem reconhecidos pelos ldquoinimigosrdquo durante uma accedilatildeo de prisatildeo por exemplo natildeo
72
trabalhassem de farda e usassem trajes civis o que seria impensaacutevel em qualquer quartel
militar
Como norma de seguranccedila para o trabalho diaacuterio eacute obrigatoacuterio o uso de
traje civil (esporte ou social) de acordo com a missatildeo a desempenhar
Mesmo os oficiais e os comandantes de seccedilatildeo devem de preferecircncia usar
trajes esporte para se confundirem com a maioria dos integrantes do DOI
(Pereira 1978 25)
Os cabelos longos eram outra caracteriacutestica que apesar de improacutepria entre as
demais instituiccedilotildees militares a autonomia dos DOI imprimia a seus agentes conforme
evidenciado no seguinte trecho o cabelo deve ter o tamanho normalmente usado pela
maioria da populaccedilatildeo sendo proibido o cabelo com corte do ldquotipo militarrdquo (Pereira
1978 25) Percebe-se portanto que junto aos trajes civis os cabelos maiores
completavam o visual que os militares dos DOI precisavam ter para que evitassem ser
facilmente reconhecidos nas ruas Dessa forma tentavam minimizar os riscos de serem
percebidos durante uma operaccedilatildeo de investigaccedilatildeo ou minutos antes de efetuarem uma
accedilatildeo de prisatildeo Poreacutem apesar da utilizaccedilatildeo dessas caracteriacutesticas natildeo usuais ser em
benefiacutecio das funccedilotildees que exerciam nos DOI esses militares muitas vezes natildeo eram
compreendidos por aqueles que nas palavras de Pereira natildeo possuiacuteam uma
mentalidade de informaccedilotildees e por conta disso viam no uso do cabelo grande um ato de
indisciplina Essa incompatibilidade de interpretaccedilotildees portanto gerava alguns
transtornos para os agentes dos DOI que mesmo condecorados pela eficiecircncia de seus
serviccedilos de informaccedilotildees agraves vezes passavam por alguns constrangimentos
Jaacute aconteceu o fato de um oficial ou sargento de um DOI necessitar
comparecer a sua Unidade Militar a fim de tratar qualquer problema pessoal
ou mesmo de um assunto de serviccedilo Estes elementos eram barrados agrave
entrada de seus quarteacuteis e recebiam ordem dos comandantes para
73
regressarem cortarem o cabelo e a barba e se apresentarem fardados ou com
a posse de um documento de identidade assinado pelo Comandante do
Exeacutercito autorizando o uso do traje civil e o porte de arma Este
procedimento por parte de algumas autoridades militares daacute a entender que
os elementos do Serviccedilo de Informaccedilotildees satildeo indisciplinados
desenquadrados e sem espiacuterito militar Entretanto eacute necessaacuterio frisar que a
realidade eacute que por exemplo no DOI-CODI do II Exeacutercito [DOI-CODISP]
em trecircs anos 90 componentes foram condecorados com a medalha do
pacificador com palma (Pereira 1978 26)
A medalha do pacificador com palma eacute em tempo de paz a mais alta
condecoraccedilatildeo concedida pelo Comandante do Exeacutercito aos militares e civis brasileiros
que no exerciacutecio de sua funccedilatildeo ou no cumprimento de missotildees de caraacuteter militar
tenham se destacado por atos pessoais de abnegaccedilatildeo coragem e bravura com risco de
vida Portanto muitas vezes os agentes dos DOI que exerciam a funccedilatildeo de prender
integrantes de uma organizaccedilatildeo muito procurada de ldquodesmontar aparelhosrdquo de
destacada importacircncia investigativa ou mesmo de conseguir informaccedilotildees cruciais
durante interrogatoacuterios eram condecorados pelo Comandante do respectivo Exeacutercito
pelo serviccedilo prestado agrave paacutetria Logo percebe-se que mesmo existindo os
constrangimentos institucionais anteriormente citados os oficiais envolvidos nos DOI
eram prestigiados por seus serviccedilos e se sentiam valorizados e incentivados a designaacute-
los com rapidez e eficiecircncia
A partir disso evidencia-se mais uma vez que a tortura nos DOI era consentida
pelos militares superiores e ateacute mesmo incentivada pois atraveacutes do ldquoauxiacuteliordquo que
prestava aos interrogatoacuterios as informaccedilotildees poderiam ser mais faacutecil e rapidamente
conseguidas e grande quantidade de suspeitos presos ldquoaparelhos desmontadosrdquo e
materiais ldquosubversivosrdquo recolhidos Como a presteza desse serviccedilo era almejada tantos
pelos agentes dos DOI interessados no destaque e no reconhecimento militar quanto
74
por seus superiores que vislumbravam neutralizar o quanto antes a ameaccedila que o
ldquoinimigo internordquo representava para o governo ditatorial a tortura parecia ser nos DOI
um meio que se justificava pelos fins
Assim a centralizaccedilatildeo a flexibilidade a autonomia e o consentimentoincentivo agrave
tortura pautavam o ldquoeficienterdquo serviccedilo de repressatildeo dos DOI conforme se pode apurar a
partir dos dados do DOI-CODISP levantados ateacute 30 de junho de 1972 e apresentados
na monografia do coronel Pereira
Subversivos terroristas levantados no Brasil 4400
Quedas impostas pelos oacutergatildeos de seguranccedila no territoacuterio nacional 2800
Quedas impostas pelos oacutergatildeos de seguranccedila do II Exeacutercito (inclusive DOI-
CODI) 1600
Quedas impostas pelo DOI-CODI do II Exeacutercito 1400
Quedas impostas pelos outros oacutergatildeos de seguranccedila da aacuterea do II Exeacutercito
200
Periacuteodo de 23 de janeiro de 1969 a 30 de junho de 1972
Subversivo-terroristas que fizeram curso de guerrilha no exterior 340
Subversivo-terroristas que fizeram curso de guerrilha em Cuba 240
Situaccedilatildeo dos 4400 subversivo-terroristas levantados
Foragidos 1600
Liberados 900
Mortos em combate 100
Presos 1490
Banidos 140
Estes resultados vecircm demonstrar a eficiecircncia operacional do destacamento
neste tipo de guerra especial Natildeo eacute agrave toa que os inimigos assim reconhecem
ao destacamento esta assertiva encontrada na revista Times e no panfleto
Quinzenal (maio de 76) distribuiacutedos recentemente
ldquoSatildeo Paulo criou a mais eficiente e admiraacutevel maacutequina repressiva vista ateacute
hoje no mundo ndash a Operaccedilatildeo Bandeirantes que comeccedilou como uma alianccedila
temporaacuteria entre a poliacutecia local as vaacuterias seccedilotildees de inteligecircncia das trecircs
forccedilas armadas e o SNIrdquo (Pereira 1978 27)
75
Entretanto esse perigoso poder excepcional dos DOI-CODI tomou proporccedilotildees
grandiosas Em meados dos anos 1970 mais especificamente apoacutes o fim da guerrilha do
Araguaia no iniacutecio de 1974 as organizaccedilotildees clandestinas armadas estavam derrotadas
e em contrapartida os DOI-CODI se encontravam em pleno vapor com sua atuaccedilatildeo e
seu aparato institucional ampliado e especializado Tornou-se dessa forma
indispensaacutevel para a sobrevivecircncia do SISSEGIN encontrar novos ldquoinimigos internosrdquo
O foco de ameaccedila passou entatildeo a ser o envolvimento de elementos do Partido
Comunista Brasileiro (PCB) no Movimento Democraacutetico Brasileiro (MDB) partido de
oposiccedilatildeo consentida pelo governo e a atuaccedilatildeo repressiva dos DOI-CODI encontrou
argumentos para continuar em atividade Poreacutem como a declarada ldquoguerra internardquo
havia se esgotado e o paiacutes jaacute se preparava para dar lugar a um futuro democraacutetico o
poder de accedilatildeo dos DOI-CODI comeccedilou a parecer abusivo e negativo ao regime Diante
disso muitas foram as tentativas da caserna e dos demais militares a ela relacionados de
provar a importacircncia e a necessidade dos DOI-CODI para a defesa do paiacutes entre elas a
monografia aqui analisada No entanto tais tentativas natildeo conseguiram evitar que esses
oacutergatildeos sofressem num primeiro momento a reduccedilatildeo de suas atividades e no iniacutecio da
deacutecada de 1980 a extinccedilatildeo
3 O DOI-CODI pelos prisioneiros
Enfim na uacuteltima frente de estudo deste capiacutetulo a anaacutelise sobre a formaccedilatildeo e a
atuaccedilatildeo dos DOI-CODI recai sobre a memoacuteria de seis de seus ex-prisioneiros poliacuteticos
Vale lembrar que estes estiveram detidos no DOI-CODI do Rio de Janeiro durante o
segundo semestre do ano de 1970 e suas memoacuterias foram narradas recentemente entre
os anos de 2002 e 2004 quando foram por mim entrevistados Assim o trabalho sobre
esses depoimentos aqui se concentra na interpretaccedilatildeo que fazem a partir da construccedilatildeo
76
de suas memoacuterias sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI e em como suas
perspectivas dialogam com a frente historiograacutefica e com a monografia do coronel
Pereira abordadas anteriormente
Como o objetivo aqui traccedilado eacute analisar as diversas maneiras pelas quais a
historiografia o coronel Pereira e os presos veem a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-
CODI optou-se por apresentar as trajetoacuterias dos entrevistados no proacuteximo capiacutetulo
Essas junto com o conteuacutedo aqui levantado constroem as bases para a anaacutelise travada
na parte final da presente dissertaccedilatildeo onde se aborda a partir de um estudo mais
concentrado nas memoacuterias dos ex-prisioneiros entrevistados o cotidiano do DOI-
CODIRJ
Entretanto a fim de utilizar essas memoacuterias para a abordagem dialeacutetica aqui
desenhada natildeo pode ser dispensada a aplicaccedilatildeo de um olhar criacutetico tiacutepico a anaacutelises
histoacutericas problematizando-as de forma a perceber suas lacunas e modificaccedilotildees
decorrentes do tempo Tais memoacuterias satildeo inconscientemente fluidas pois estatildeo
diretamente ligadas a emoccedilotildees aleacutem de sofrerem muitas influecircncias do momento em
que satildeo narradas conforme bem elucida Pierre Nora (1993)
A memoacuteria eacute a vida sempre carregada por grupos vivos e nesse sentido ela
estaacute em permanente evoluccedilatildeo aberta agrave dialeacutetica da lembranccedila e do
esquecimento inconsciente de suas deformaccedilotildees sucessivas vulneraacutevel a
todos os usos e manipulaccedilotildees suscetiacutevel de longas latecircncias e de repentinas
revitalizaccedilotildees A histoacuteria eacute a reconstruccedilatildeo sempre problemaacutetica e incompleta
do que natildeo existe mais A memoacuteria eacute um fenocircmeno sempre atual um elo
vivido no eterno presente a histoacuteria uma representaccedilatildeo do passado (Nora
1993 9)
Eacute portanto imprescindiacutevel para este estudo perceber que por traacutes dessa fluidez
das memoacuterias dos depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ age um
77
elemento fundamental o presente Logo a feliz expressatildeo de Robert Frank (1999) o
presente do passado elucida a anaacutelise de forma a colocar em destaque a forte influecircncia
que a temporalidade vivida no momento em que as entrevistas foram concedidas tem
para a construccedilatildeo de suas narrativas
Trata-se de fontes que estatildeo marcadas pelo proacuteprio presente inerentes a ele
qualquer que seja a eacutepoca os depoimentos de testemunhas vivas as fontes
orais Aiacute haacute a contemporaneidade intriacutenseca entre o historiador e o ator
(Frank 1999 103)
Por isso eacute aqui crucial considerar o momento das entrevistas Afinal entre 2002 e
2004 o Brasil jaacute vivia uma democracia consolidada onde antigos oposicionistas agrave
ditadura militar se encontravam no poder Fernando Henrique Cardoso exilado no Chile
ateacute o ano de 1968 e na deacutecada de 1970 apoiador convicto do Movimento Democraacutetico
Brasileiro (MDB) havia sido presidente do Brasil entre os anos de 1995 e 2002 Jaacute
Lula ex-liacuteder sindical que havia comandado algumas das mais importantes greves na
virada das deacutecadas de 1970 para 1980 venceu a campanha presidencial em 2002 e se
tornou no ano seguinte o primeiro ex-operaacuterio a presidir o paiacutes Aleacutem disso as pastas
ministeriais de seu governo foram formadas por antigos opositores agrave ditadura tal como
o ex-liacuteder do movimento estudantil Joseacute Dirceu e a partir de 2005 por Dilma
Rousseff ex-militante de duas das organizaccedilotildees de esquerda que optaram na eacutepoca pela
luta armada o Comando de Libertaccedilatildeo Nacional (COLINA) e a Vanguarda Armada
Revolucionaacuteria Palmares (VAR-Palmares) Logo pode-se dizer que com relaccedilatildeo agrave
memoacuteria poliacutetica de vencidos nos anos de chumbo da ditadura os depoentes se
transformaram em vencedores nos tempos democraacuteticos e obviamente a leitura do
passado de prisatildeo e tortura foi iluminada por esse presente
78
Ressalte-se ainda que os depoimentos se vinculavam agrave implantaccedilatildeo da Comissatildeo
de Anistia por meio da Lei nordm 1055902 que atribuiacutea ao Estado a funccedilatildeo de anistiar e
reparar financeiramente todos os cidadatildeos que tivessem vivenciado quaisquer atos de
exceccedilatildeo incluindo torturas prisotildees arbitraacuterias demissotildees e transferecircncias por razotildees
poliacuteticas ocorridas durante o periacuteodo de 18 de setembro de 1946 ateacute 5 de outubro de
1988 Afinal a reparaccedilatildeo soacute poderia ser concedida pela Comissatildeo de Anistia apoacutes a
anaacutelise de um requerimento contendo as memoacuterias das viacutetimas sobre o periacuteodo em
questatildeo escritas individualmente Como na eacutepoca alguns dos depoentes jaacute haviam
construiacutedo suas memoacuterias prisionais para compor o referido requerimento este deve ser
considerado como um importante fator de influecircncia sobre as narrativas de suas
entrevistas
Em contraste com o que foi apresentado a partir da abordagem historiograacutefica e da
monografia do coronel Pereira Fernando Palha Freire um dos ex-prisioneiros do DOI-
CODIRJ destaca a importacircncia da contribuiccedilatildeo inicial dada pelos policiais civis do
DOPS para a utilizaccedilatildeo da violecircncia em favor da extraccedilatildeo de informaccedilotildees Afinal por
mais que os oacutergatildeos de repressatildeo anteriores agrave criaccedilatildeo dos DOI-CODI natildeo estivessem
devidamente preparados para combater as accedilotildees efetuadas pela esquerda armada seus
agentes de fato haviam acumulado uma experiecircncia em interrogatoacuterios Esta num
primeiro momento era importante uma vez que os militares ateacute entatildeo concentravam
sua formaccedilatildeo sobre a atuaccedilatildeo na guerra declarada natildeo possuindo as maliacutecias
necessaacuterias aos interrogatoacuterios
[] a Poliacutecia Civil tinha os caras mais preparados pra tortura mesmo
Porque jaacute vinham haacute muitos anos jaacute tinham a praacutetica da tortura O militar
batia de frente ele era capaz de te matar mas ele ainda natildeo tinha digamos o
seguinte a essecircncia da tortura Por exemplo um coronel virou pro cara e
disse assim - ldquoO senhor eacute um comunistardquo aiacute ele disse assim - ldquoE o senhor eacute
79
uma bestardquo Ele matou o cara quer dizer matou sem colher o que queria
Um policial civil poderia ateacute matar o cara mas antes colheria o que queria
eles tinham a praacutetica da tortura Depois os militares se aperfeiccediloaram []
(Freire 28 jun 2004)
No entanto indo ao encontro do que foi abordado pelas outras duas frentes de
estudo aqui traccediladas Ceciacutelia Coimbra tambeacutem ex-prisioneira do DOI-CODIRJ
evidencia a eficiecircncia desse oacutergatildeo com relaccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo A partir de uma situaccedilatildeo
especiacutefica de sua prisatildeo ela percebe como o niacutevel de organizaccedilatildeo do serviccedilo de
informaccedilotildees dos DOI era superior ao do DOPS
Fomos presos eu e meu marido e levados para o DOPS em agosto de 1970
[] quando deram vistoria laacute em casa encontraram um documento que por
ironia do destino era sobre seguranccedila [] Eu fiquei dois dias e meio no
DOPS sendo interrogada sobre o tal documento que nem eu nem o Novaes
falaacutevamos diziacuteamos que natildeo sabiacuteamos de onde era Dois dias e meio depois
quando noacutes fomos para o DOI-CODI logo eles identificaram de onde era o
documento Para vocecirc ver o niacutevel de competecircncia do serviccedilo de informaccedilotildees
do DOI-CODI comparado ao do DOPS O DOPS era ldquomerdinhardquo comparado
com a eficiecircncia do DOI-CODI (Coimbra 30 nov 2004)
Percebe-se assim tanto pela historiografia e pela monografia do coronel Pereira
quanto pela memoacuteria de ex-prisioneiros poliacuteticos que a centralizaccedilatildeo de informaccedilotildees
nos CODI e a relaccedilatildeo direta que esses travavam com os DOI traziam uma agilidade agraves
anaacutelises que natildeo havia nos demais oacutergatildeos Logo a forma centralizada e orquestrada
com que os DOI-CODI agiam significava uma profissionalizaccedilatildeo cada vez maior da
repressatildeo poliacutetica ou seja a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo
Assim apesar de serem instituiccedilotildees distintas a atuaccedilatildeo dos CODI e dos DOI
estavam totalmente interligadas Como apurado por meio do estudo historiograacutefico e
dos dados contemplados na monografia do coronel Pereira enquanto aos CODI cabia
80
concentrar e analisar as informaccedilotildees sobre a seguranccedila interna de suas Regiotildees
Militares aos DOI cabia a partir das informaccedilotildees passadas pelos CODI atuar
diretamente na repressatildeo aos ldquoinimigos internosrdquo e extrair de seus prisioneiros poliacuteticos
informaccedilotildees a serem repassadas aos CODI Diante dessa forte ligaccedilatildeo essas duas
instituiccedilotildees ficaram conhecidas como se fossem um uacutenico oacutergatildeo por meio da sigla
DOI-CODI Essa simbiose entre os CODI e os DOI ficou marcada sobretudo nas
memoacuterias de suas viacutetimas conforme se pode verificar no seguinte trecho
[] tenta entender o que eacute DOI-CODI o DOI-CODI eacute uma instituiccedilatildeo
montada por diversos oacutergatildeos de repressatildeo que funcionava [no Rio de
Janeiro] no quartel da PE [1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito] (Pandolfi 5
fev 2003)
De acordo com os seis entrevistados assim como indicado pela a anaacutelise das
demais frentes de estudo do presente capiacutetulo a praacutetica de tortura era corriqueira nos
interrogatoacuterios dos DOI Esse fato inclusive poderia ser associado agrave sua proacutepria
designaccedilatildeo que na forma abreviada se apresenta sob a sigla DOI correspondendo
sugestivamente agrave conjugaccedilatildeo do verbo doer na terceira pessoa do singular
Soube que ningueacutem entrava no DOI-CODI sem sofrer algum tipo de tortura
fiacutesica ou psicoloacutegica mas principalmente a fiacutesica e realmente natildeo creio
que algueacutem tenha passado por laacute imune agrave tortura [] Quando a gente chega
ao DOI-CODI chega logo tomando porrada Natildeo tinha essa histoacuteria de meu
senhor era tapa Tapa choque eleacutetrico pau de arara a isso tudo eu fui
submetido O primeiro interrogatoacuterio que natildeo eacute um interrogatoacuterio formal
judicial eacute feito sob essas condiccedilotildees Depois bem depois eacute que eu fui ser
interrogado no DOPS em outras condiccedilotildees [] Eu fui torturado mesmo na
Rua Baratildeo de Mesquita na PE laacute sim eu fui bastante torturado []
(Carvalho 12 set 2002)
81
[] laacute na PE vocecirc natildeo fazia nada a natildeo ser ficar esperando o tempo para ser
interrogada para ser torturada [] (Pandolfi 5 fev 2003)
Laacute no DOI-CODI comia tudo choque pau-de-arara afogamento pancada
Laacute que eu descobri esse termo que fulano virou presunto neacute Porque vocecirc
fica igual a um presunto mesmo porque eles te datildeo pancadas localizadas []
(Freire 28 jun 2004)
[] laacute no DOI-CODI tinha todo tipo de torturas desde choques eleacutetricos na
matildeo direita esquerda peacute esquerdo Eu sofri isso tambeacutem (Prigol 28 set
2004)
[] o meu negoacutecio era ganhar tempo e o deles era conseguir informaccedilatildeo A
luta eacute essa nos primeiros dias eacute vocecirc dar o miacutenimo de informaccedilotildees e eles
querendo arrancar o maacuteximo de informaccedilatildeo neacute Aiacute eles vecircm com a maacutexima
de que torturar eacute investigar (risos) E daiacute se precisar ateacute a morte o negoacutecio
eacute conseguir informaccedilatildeo (Batista 17 nov 2004)
[] onde eram os choques eleacutetricos que na PE eles davam eles me
molhavam toda para o choque ser mais intenso e botavam principalmente
nas partes onde eram mais sensiacuteveis como ouvido nariz boca bico do
peito vagina acircnus[] o choque eleacutetrico eacute indescritiacutevel porque vocecirc perde a
noccedilatildeo do tempo e todo e qualquer controle da bexiga e dos intestinos []
(Coimbra 30 nov 2004)
Portanto ali a incumbecircncia era operar a extraccedilatildeo de informaccedilotildees e para isso a
tortura como meacutetodo era utilizada pelos agentes das turmas de interrogatoacuterio
preliminar Afinal em uma ponta da sofisticaccedilatildeo repressiva apresentada pelos DOI-
CODI estava a concentraccedilatildeo de informaccedilotildees dos CODI e na outra a agilidade que a
extraccedilatildeo de informaccedilotildees possibilitada principalmente pelo uso das torturas durante os
interrogatoacuterios dos presos dava agraves operaccedilotildees de busca e apreensatildeo de mais ldquoelementos
subversivosrdquo
82
A partir dos depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados assim como
da anaacutelise da historiografia selecionada e dos dados trazidos pelo coronel Pereira em sua
monografia percebe-se que os DOI-CODI ocupavam somente uma parte dos quarteacuteis
do Exeacutercito onde se localizavam e na parte restante o funcionamento desses quarteacuteis
continuava normalmente Os DOI-CODI eram portanto prisotildees atiacutepicas diferentes das
convencionais construiacutedas desde o iniacutecio para acomodar prisioneiros Assim eacute coerente
que o serviccedilo de carceragem nos DOI-CODI fosse executado pelos soldados que
serviam ao proacuteprio quartel jaacute que esse era apenas um serviccedilo de apoio um auxiacutelio natildeo
agrave toa feito por agentes de turmas que eram intituladas auxiliares
Os soldados que serviam ao quartel a quem era atribuiacutedo o serviccedilo de
carceragem eram conhecidos no DOI-CODIRJ por ldquocatarinasrdquo devido a suas
caracteriacutesticas fiacutesicas e tambeacutem ao sotaque tiacutepico ao estado de Santa Catarina Os
ldquocatarinasrdquo eram identificados como soldados devido ao fato dos agentes propriamente
do DOI-CODIRJ normalmente andarem a paisana enquanto eles usavam farda ou seja
trajes tradicionais a militares que natildeo estivessem ligados a operaccedilotildees de informaccedilotildees
Os agentes dos DOI-CODI como elucidado por meio da segunda frente deste capiacutetulo
por precisarem ser confundidos com civis se diferenciavam dos demais soldados
Na PE os soldados eram sempre de Santa Catarina [] pessoas de portes
fiacutesicos avantajados e essa condiccedilatildeo fiacutesica era uma espeacutecie de exigecircncia para
servir ao quartel da Poliacutecia Militar Eram entatildeo os ldquocatarinasrdquo [] (Carvalho
8 fev 2003)
[] quem torturava a gente era o pessoal do DOI-CODI normalmente eles
andavam a paisana [] e quem fazia o trabalho burocraacutetico ou seja a
limpeza da PE quem dava o cafeacute da gente quem abria a cela e fechava a
cela eram os soldados uniformizados Eram ateacute os ldquocatarinasrdquo porque
tinham muitos que vinham de Santa Catarina eram soldados altos [] entatildeo
83
os soldados faziam a burocracia e os militares do DOI-CODI faziam essa
parte digamos da investigaccedilatildeo poliacutetica [] (Pandolfi 5 fev 2003)
[] os ldquocatarinasrdquo eram os guardinhas era o pessoal que estava servindo
eles tinham dezoito ou dezenove anos eles estavam servindo ao Exeacutercito e
alguns deles ateacute amenizavam a nossa situaccedilatildeo [hellip] (Batista 17 nov 2004)
Diferentemente do que se percebe na monografia feita pelo coronel Pereira em
1978 nas memoacuterias aqui analisadas a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI no ano de 1970
consagrou-se como um dos periacuteodos mais difiacuteceis de suas vidas Nota-se no entanto
que os nuacutemeros e percentuais que na eacutepoca eram interpretados por muitos militares
como forte indiacutecio de eficiecircncia da instituiccedilatildeo no combate ao ldquoinimigo internordquo estatildeo
em meio ao contexto democraacutetico em que as narrativas dos ex-presos foram construiacutedas
diretamente ligados agrave memoacuteria da tortura e da violaccedilatildeo aos direitos humanos Como se
pode analisar a partir da interpretaccedilatildeo de Ceciacutelia Coimbra uma das ex-prisioneiras
poliacuteticas fundadoras do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro 15
[] eu acho a fala para mim a minha militacircncia no Tortura Nunca Mais
fundamental Em 85 quando a gente fundou o Grupo foi fundamental no
sentido de tornar isso puacuteblico e natildeo soacute como se fosse uma coisa de lamento
da gente uma coisa da dor da gente dessa marca que natildeo vai sair nunca []
mas como instrumento de luta instrumento de denuacutencia [] (Coimbra 30
nov 2004)
Durante o periacuteodo das entrevistas aqueles que viveram a experiecircncia dos DOI-
CODI a partir do outro lado de suas grades muitas vezes veem as dolorosas lembranccedilas
daquele tempo como um meio de fazer justiccedila e ateacute mesmo contribuir para a
solidificaccedilatildeo da democracia enquanto que os militares que no passado se orgulhavam
15
O GTNMRJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-prisioneiros poliacuteticos que viveram situaccedilotildees de
tortura durante o regime militar e por familiares de mortos e desaparecidos poliacuteticos Para mais
informaccedilotildees ver o perfil de Ceciacutelia Coimbra no proacuteximo capiacutetulo
84
de seus feitos lutam no presente por natildeo serem a eles associados Diante disso nota-se
que apoacutes o teacutermino da ditadura em 1985 as memoacuterias dos entatildeo vencidos
movimentam-se de forma a se sobreporem agraves dos vencedores conseguindo aos poucos
garantir seu espaccedilo de viacutetimas da ditadura e ao mesmo tempo de heroacuteis da democracia
na poliacutetica na justiccedila e na histoacuteria
85
Capiacutetulo 2 ndash Os presos poliacuteticos e suas organizaccedilotildees
Nas escolas nas ruas
campos construccedilotildees
Somos todos soldados
Armados ou natildeo
Caminhando e cantando
E seguindo a canccedilatildeo
Somos todos iguais
Braccedilos dados ou natildeo
Os amores na mente
As flores no chatildeo
A certeza na frente
A histoacuteria na matildeo
Caminhando e cantando
E seguindo a canccedilatildeo
Aprendendo e ensinando
Uma nova liccedilatildeo
Geraldo Vandreacute
(Pra natildeo dizer que natildeo falei de flores 1968)
86
Antocircnio Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia satildeo alguns dos brasileiros
que lutaram contra a ditadura militar no paiacutes e que na eacutepoca foram presos pelo governo
nas dependecircncias do DOI-CODI do Rio de Janeiro Trecircs homens e trecircs mulheres que
apesar de suas trajetoacuterias pessoais e poliacuteticas distintas possuem ateacute hoje fortes elos
construiacutedos pela passagem pelo DOI-CODI carioca
Foi especificamente essa vivecircncia prisional comum que me despertou o interesse
pelas memoacuterias desses seis atores histoacutericos O objetivo era a partir da oacutetica dos ex-
prisioneiros entender como funcionava na praacutetica o DOI-CODIRJ Assim entre os
anos de 2002 e 2004 em meio aos governos dos ex-presidentes Fernando Henrique e
Lula ou seja jaacute em tempos democraacuteticos Antocircnio Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana
e Ceciacutelia me concederam entrevistas sobre suas prisotildees no DOI-CODIRJ bem como
sobre suas trajetoacuterias pessoais e poliacuteticas antes e depois de suas prisotildees
Esses depoimentos ndash principal objeto de pesquisa desta dissertaccedilatildeo ndash trazem aleacutem
das lembranccedilas sobre o cotidiano prisional de um DOI-CODI muito da personalidade e
da vivecircncia de cada um desses indiviacuteduos Atraveacutes dessas memoacuterias pode-se lidar com
as idiossincrasias de cada um deles relativizando a ideia de uma memoacuteria coletiva
comum a todos os ex-prisioneiros poliacuteticos que ficaram no quartel da Rua Baratildeo de
Mesquita Pode-se ainda conhecer um pouco mais de perto a loacutegica de construccedilatildeo de
suas memoacuterias individuais analisando como cada um desses indiviacuteduos se vecirc atraveacutes do
passado de militacircncia e prisatildeo como se identifica por meio desse passado imprime essa
identidade no mundo externo e como este mundo influencia na percepccedilatildeo que possui
sobre si mesmo
No entanto as memoacuterias individuais aqui trabalhadas natildeo estatildeo isoladas jaacute que
conforme bem evidenciado por Maurice Halbwachs em A memoacuteria coletiva (2004)
frequentemente tomam como referecircncia pontos externos ao sujeito se apoiando em
87
percepccedilotildees recebidas de determinada memoacuteria coletiva de um grupo e tambeacutem pela
memoacuteria histoacuterica de seu paiacutes (2004 57-59) Partindo dessa ideia percebe-se aqui que
nas memoacuterias narradas por indiviacuteduos que fizeram parte de uma mesma organizaccedilatildeo de
esquerda armada ou que ainda hoje integram um mesmo grupo como por exemplo o
Grupo Tortura Nunca MaisRJ satildeo encontrados mais pontos de contato Aleacutem disso
todos os depoentes mostram ter como base de suas lembranccedilas a memoacuteria histoacuterica
pois em algum momento as localizam no tempo por meio de datas e fatos que se
estabeleceram como histoacutericos tal como o golpe civil-militar de 31 de marccedilo de 1964
ou a decretaccedilatildeo do AI-5 em 13 de dezembro de 1968
Cabe aqui ressaltar que ex-prisioneiros do DOI-CODIRJ entrevistados eram em
sua grande maioria estudantes que se tornaram combatentes da esquerda armada a
partir da proibiccedilatildeo de atividades e manifestaccedilatildeo sobre o assunto de natureza poliacutetica
estipulada pelo inciso III do artigo 5ordm do AI-5 e que em suas memoacuterias a
promulgaccedilatildeo deste Ato representa um marco temporal muito mais forte do que o golpe
civil-militar de 1964 Afinal para suas trajetoacuterias de vida o AI-5 de 13 de dezembro de
1968 foi um divisor de aacuteguas pois tornava as manifestaccedilotildees estudantis proibidas
revoltando-os e estimulando-os ainda mais a lutar pela derrubada do regime ditatorial
Diante disso a maioria dos depoentes sustenta em suas memoacuterias o AI-5 como um
momento em que suas vidas foram postas em xeque A partir do dia de sua
promulgaccedilatildeo eles se viram diante da necessidade de decidir se continuavam ou natildeo a
agir contra a ditadura e em caso positivo se deveriam considerar a violecircncia armada
como uma via de luta uma vez que os movimentos paciacuteficos estavam totalmente
encurralados Como a opccedilatildeo da maior parte deles foi a de pegar em armas ndash decisatildeo que
acarretou natildeo soacute em suas prisotildees mas tambeacutem na mudanccedila da percepccedilatildeo que tinham
sobre a vida jaacute que ao andarem armados passavam a ter a consciecircncia de que viviam
88
sob a ameaccedila da morte ndash o AI-5 tem papel de destaque entre suas memoacuterias do periacuteodo
militar Essa importacircncia do AI-5 pode ser exemplificada no trecho abaixo destacado da
entrevista de Ana de Miranda Batista
O AI-5 foi determinante Porque vocecirc natildeo tinha mais formas de expressatildeo
vocecirc natildeo podia se reunir vocecirc natildeo podia mais fazer nada era impedido pela
poliacutecia A gente estava amordaccedilado a imprensa amordaccedilada os teatros os
cinemas tudo Era um terror muita poliacutecia na rua muita blitz blitz de
montatildeo sabe Quem quisesse ser como a gente -ldquoAbaixo a Ditadura
Abaixo a Repressatildeordquo As formas de expressatildeo se reduziram a quase zero Aiacute
eacute que houve um pontapeacute na decisatildeo de muitos de noacutes de quer dizer soacute
restou a luta armada soacute restou resistir de forma armada mesmo que pra
maioria de noacutes fosse uma decisatildeo extrema [] eu nem uma arma de perto
eu nunca tinha visto Quer dizer esse momento eacute um momento draacutestico
quer dizer um tempo depois eacute que eu conversando eacute que vi que natildeo foi
assim soacute para mim Porque para alguns dos rapazes que tinham servido ao
Exeacutercito e sei laacute o quecirc eles jaacute tinham alguma familiaridade com armas quer
dizer alguns deles Mas a gente menina classe meacutedia natildeo Eu nunca tinha
visto nunca tinha me interessado por arma na vida (risos) natildeo fazia parte do
meu universo E teve muita gente que nessa eacutepoca pirou Pirou que eu digo
de natildeo querer mais saber Muita gente E eu acho extremamente respeitaacutevel
essa decisatildeo porque eacute uma decisatildeo draacutestica [] porque no momento em que
vocecirc estaacute com uma arma vocecirc pode matar ou morrer Eacute muito grave essa
decisatildeo Vocecirc estaacute lidando com a possibilidade da morte e quando vocecirc
nunca teve familiaridade assim quando vocecirc nunca viu uma arma eacute muito
difiacutecil [] (Batista 17 nov 2004)
Vale aqui mais uma vez destacar que essas memoacuterias do passado satildeo lavadas nas
aacuteguas do presente ou seja satildeo o preacutesent du passeacute conforme a feliz expressatildeo de Robert
Frank (1999) As memoacuterias sobre as experiecircncias prisionais do DOI-CODIRJ
ocorridas durante os ldquoanos de chumbordquo da ditadura militar foram construiacutedas em
entrevistas concedidas entre o final do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-
2002) e o iniacutecio do governo de Lula (2003-10) ambos perseguidos poliacuteticos durante o
89
periacuteodo ditatorial Portanto a perspectiva de vencidos que no passado direcionava as
memoacuterias dos depoentes abre lugar para uma narrativa proacutexima agrave de vencedores pela
qual os ex-prisioneiros poliacuteticos se veem como responsaacuteveis pela construccedilatildeo da
democracia e de uma justiccedila de transiccedilatildeo ainda em curso no Brasil
Uma ideia de justiccedila de transiccedilatildeo iniciou-se principalmente a partir da
Constituiccedilatildeo de 1988 quando a reparaccedilatildeo aos perseguidos poliacuteticos do passado
ditatorial se transformou em garantia constitucional No entanto foi somente a partir de
1995 jaacute no governo FHC que ela comeccedilou a ser implantada por meio da primeira
comissatildeo de reparaccedilatildeo a Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos (lei nordm
914095) Aleacutem disso em 2002 sete anos depois a reparaccedilatildeo aos perseguidos pela
ditadura foi complementada por meio da Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio da Justiccedila
(lei nordm 1055902) Assim quando a primeira entrevista me foi concedida em setembro
de 2002 a Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos jaacute trabalhava no sentido de
reconhecer a responsabilidade do Estado brasileiro por mortes e desaparecimentos de
presos poliacuteticos ocorridas durante a ditadura enquanto a Comissatildeo de Anistia iniciava a
sua funccedilatildeo de
[] reparar os atos de exceccedilatildeo incluindo as torturas prisotildees arbitraacuterias
demissotildees e transferecircncias por razotildees poliacuteticas sequestros compelimento agrave
clandestinidade e ao exiacutelio banimentos expurgos estudantis e
monitoramentos iliacutecitos (Abratildeo 2010 4)
Conforme jaacute abordado no primeiro capiacutetulo os procedimentos impostos pela Lei
105592002 influenciaram como natildeo podia deixar de ser o processo de construccedilatildeo das
memoacuterias aqui trabalhadas Afinal o referido processo se iniciava com um relato da
viacutetima sobre as agressotildees e perseguiccedilotildees sofridas agrave eacutepoca ditatorial Este deveria
configurar uma espeacutecie de memorial no qual o requerente deveria destacar todas as
90
violaccedilotildees sofridas a ser apresentado agrave Comissatildeo cabendo a esta apoacutes a verificaccedilatildeo dos
fatos expostos conceder ou natildeo ao requisitante a condiccedilatildeo de anistiado poliacutetico e
dependendo do caso a correspondente reparaccedilatildeo econocircmica Como alguns dos
entrevistados passavam por este processo no mesmo periacuteodo em que concederam as
entrevistas eacute notaacutevel que tal experiecircncia seja mais uma forte influecircncia do presente na
construccedilatildeo das memoacuterias por eles narradas Esse momento de busca por reparaccedilatildeo por
que muitos passavam inconscientemente os conduzia a enfatizar durante as narrativas
suas condiccedilotildees de ldquoviacutetimasrdquo do passado em detrimento por exemplo de suas condiccedilotildees
de ldquosiacutembolos da resistecircnciardquo
Ainda diante da capacidade de intervenccedilatildeo que o presente exerce sobre as
memoacuterias do passado deve-se considerar tambeacutem a forma como essa rede de
entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que as entrevistas foram realizadas
Afinal o caminho trilhado ateacute o depoente e o momento especiacutefico de cada narrativa
composto pelo local e as condiccedilotildees gerais sob as quais ocorreu tambeacutem influenciam na
construccedilatildeo das memoacuterias do entrevistado tanto por parte do historiador na maneira
como aborda o narrador quanto por parte do proacuteprio narrador por meio da forma com
que narra suas memoacuterias Portanto acredita-se aqui que a busca por cada entrevistado
interfere na abordagem que o entrevistador imprime agrave entrevista e na forma como o
narrador se sente ao narrar suas memoacuterias naquele momento tornando o instante de
cada entrevista um fator tambeacutem de intervenccedilatildeo na narrativa das memoacuterias do passado
Dessa forma antes de tratar-se das trajetoacuterias de vida narradas por cada ex-prisioneiro
entrevistado optou-se aqui por considerar como o instante de cada entrevista foi
construiacutedo ou seja como a rede de entrevistas foi formada
91
1 A rede de entrevistas
A primeira entrevista foi feita com o ex-preso poliacutetico Antocircnio Leite de Carvalho
em 12 de setembro de 2002 na sala de sua casa situada bem proacutexima ao quartel do 1ordm
BPE onde se localizava o DOI-CODIRJ O espaccedilo ocupado por esta instituiccedilatildeo que eacute
intensamente abordado no proacuteximo capiacutetulo situava-se nos fundos do referido quartel
cujo edifiacutecio foi construiacutedo durante o Impeacuterio e ainda hoje se encontra entre a Avenida
Maracanatilde e a Rua Baratildeo de Mesquita no bairro da Tijuca na cidade do Rio de Janeiro
Cheguei ateacute Antocircnio atraveacutes de seu filho Joatildeo meu colega do curso de graduaccedilatildeo
em histoacuteria pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Sabedor
do meu interesse sobre o tema da repressatildeo poliacutetica Joatildeo procurou me ajudar e ao
mesmo tempo satisfazer a curiosidade que sentia sobre esta parte da vida de seu pai
Portanto durante a minha primeira visita agrave casa de Antocircnio enquanto ele narrava
suas memoacuterias sobre o periacuteodo em que esteve preso nas dependecircncias do quartel
vizinho Joatildeo atravessava constantemente a sala em direccedilatildeo agrave varanda ou agrave cozinha
Assim sem que Antocircnio aparentemente percebesse jaacute que estava concentrado em sua
narrativa Joatildeo tentava ouvir um pouco mais sobre um passado que seu pai nunca havia
revelado abertamente aos filhos
Percebe-se entatildeo como lidar com detalhes dessa memoacuteria era complicado para
Antocircnio e portanto o quanto aquele momento era importante para ele e para seu filho
Atraveacutes da entrevista enquanto Antocircnio passava a sentir um maior orgulho daquelas
memoacuterias pois por meio do meu interesse em entrevistaacute-lo comeccedilava a percebecirc-las
como fonte para a histoacuteria do paiacutes Joatildeo conhecia melhor o seu pai e passava a entender
algumas de suas atitudes que ateacute entatildeo questionava
Era o caso da reaccedilatildeo arredia que Antocircnio tinha ao ser acordado de forma
inesperada enquanto dormia no sofaacute da casa Assim apoacutes ouvir sobre o cotidiano e as
92
torturas a que seu pai afirma ter sido submetido no DOI-CODIRJ Joatildeo comeccedilou a
compreender que tal reaccedilatildeo tinha relaccedilatildeo com esse passado quando Antocircnio muitas
vezes pode ter sido despertado de desmaios ocasionados por choques eleacutetricos e outras
torturas a ele perpetradas ainda na sala de interrogatoacuterio Logo o fato de acordar
assustado tentando se proteger ou ateacute mesmo agredir quem o acordasse pode ser
compreendido quando relacionado agraves marcas que as violecircncias vividas no DOI-
CODIRJ deixaram na memoacuteria de Antocircnio
A partir dessa primeira entrevista o meu interesse pelo tema se aprofundou
impulsionando-me a buscar outros possiacuteveis entrevistados No dia 5 de fevereiro de
2003 consegui entrevistar Dulce Chaves Pandolfi Seu nome foi aventado por meio da
leitura sobre a passagem de Dulce pelo DOI-CODIRJ encontrada no livro Brasil
Nunca Mais publicado pela Editora Vozes em 1985
A estudante Dulce Chaves Pandolfi 24 anos foi obrigada tambeacutem a servir
de cobaia no quartel da rua Baratildeo de Mesquita no Rio [] Na Poliacutecia do
Exeacutercito foi submetida a espancamento inteiramente despida bem como a
choques eleacutetricos e outros supliacutecios como o ldquopau-de-ararardquo Depois de
conduzida agrave cela onde foi assistida por meacutedico foi apoacutes algum tempo
novamente seviciada com requintes de crueldade numa demonstraccedilatildeo de
como deveria ser feita a tortura [] (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985 32)
Depois de algumas tentativas frustradas de marcar esta entrevista por meio de
mensagens via correio eletrocircnico que encontrei atraveacutes do site do CPDOC centro de
pesquisa onde Dulce trabalha como pesquisadora e professora ela enfim me recebeu em
sua sala no interior deste mesmo centro de pesquisa Sua resistecircncia inicial pode ser
atribuiacuteda ao fato de na condiccedilatildeo de pesquisadora estar mais acostumada ao papel de
entrevistadora do que ao de entrevistada ou seja estar mais afinada com o trabalho de
analisar as fontes do que com o de ser a proacutepria fonte Diante disso durante sua
93
entrevista Dulce natildeo se sentiu agrave vontade em tratar dos detalhes das violecircncias sofridas
no DOI-CODIRJ o que pode ser explicado pela dor que ainda acompanha suas
memoacuterias e tambeacutem pelo desconforto que a situaccedilatildeo lhe trazia jaacute que ela possivelmente
natildeo se desvinculava do fato de ser uma professora universitaacuteria expondo sua intimidade
a uma aluna de graduaccedilatildeo No entanto justamente por lecionar histoacuteria e por
conseguinte jaacute estar convencida da importacircncia de seu depoimento Dulce apresentou
uma narrativa articulada e aparentemente coerente
Apoacutes a entrevista de Dulce ficou evidente a desarticulaccedilatildeo da memoacuteria de
Antocircnio uma vez que esta era silenciada haacute muito tempo e portanto natildeo possuiacutea uma
construccedilatildeo preacute-estabelecida por outros discursos Tal percepccedilatildeo me levou a voltar a
entrevistaacute-lo em 8 de fevereiro de 2003 trecircs dias depois da entrevista de Dulce quando
Antocircnio jaacute demonstrava uma memoacuteria mais articulada Afinal esse silecircncio que
caracterizava sua memoacuteria lhe atribuiacutea um aspecto negativo e um destacadamente
positivo O lado negativo era que conforme elucidado por Michael Pollak em Memoacuteria
esquecimento e silecircncio (1989) dificilmente sua memoacuteria foi transmitida de forma
intacta durante todo o tempo em que ficou guardada ateacute o dia em que a entrevista
significou uma oportunidade para que ela saiacutesse do ldquonatildeo-ditordquo Poreacutem o lado positivo a
meu ver merecedor de destaque era que a memoacuteria de Antocircnio sobre a prisatildeo no DOI-
CODIRJ possuiacutea poucas influecircncias por decorrecircncia do contato com as memoacuterias de
outros ex-prisioneiros pois natildeo estava a elas diretamente relacionada por meio de
nenhuma coletividade especiacutefica
No ano seguinte ao buscar mais informaccedilotildees sobre o DOI-CODIRJ no Arquivo
Puacuteblico do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) conheci Fernando Palha Freire que viria
a ser o meu terceiro entrevistado Na eacutepoca da entrevista em junho de 2004 Fernando
trabalhava neste Arquivo enviando ao governo estadual a documentaccedilatildeo de requerentes
94
agrave reparaccedilatildeo econocircmica conforme constava no decreto nordm 31995 de 10 de outubro de
2002 Este decreto regulamentava a lei estadual Nordm 3744 de 21 de dezembro de 2001
que antes mesmo da lei federal 105592002 entrar em vigor dispunha sobre a
reparaccedilatildeo a pessoas que haviam sido detidas sob acusaccedilatildeo de terem participado de
atividades poliacuteticas entre os dias 1ordm de abril de 1964 e 15 de agosto de 1979 e que
haviam sofrido tortura em oacutergatildeos puacuteblicos estaduais
Ao saber sobre o meu tema de pesquisa um arquivista do APERJ me apresentou a
Fernando que natildeo hesitou em me conceder seu depoimento A entrevista foi realizada laacute
mesmo dentro da sala em que Fernando trabalhava e por ter sido concedida durante o
horaacuterio de expediente fomos constantemente interrompidos por ligaccedilotildees telefocircnicas Ao
longo de sua entrevista Fernando confessou ter falado muitas vezes sobre suas
memoacuterias do periacuteodo militar e que justamente por entender a importacircncia desse
passado havia sido nomeado para instruir os requisitantes agrave reparaccedilatildeo estipulada pelo
Decreto estadual Nordm 319952002 Dessa forma justifica-se a apresentaccedilatildeo tranquila e
eloquente que conduz sua narrativa
Trecircs meses depois no final de setembro Padre Maacuterio Prigol da Paroacutequia de
Nossa Senhora da Salete localizada no bairro do Catumbi no Rio de Janeiro me
concedeu seu depoimento Esta entrevista foi possiacutevel por intermeacutedio de Alejandra
outra colega do curso de graduaccedilatildeo em histoacuteria da UNIRIO que o conhecia por jaacute tecirc-lo
entrevistado sobre a sua participaccedilatildeo nos movimentos da Juventude Operaacuteria Catoacutelica
(JOC) e Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) 16
Durante a entrevista que me concedeu Padre Maacuterio falou muito sobre as lutas
sociais que travou durante a ditadura militar descritas no livro que havia acabado de
publicar ndash Maacuterio Prigol educador da feacute entre trabalhadores e militantes populares
16
Para mais informaccedilotildees ver Estevez 2008
95
(2003) Entretanto sobre sua passagem pelo DOI-CODIRJ pouco fazia questatildeo de
narrar reconhecendo em certo momento que laacute tambeacutem havia sofrido com torturas o
que explica em parte o desconforto que as lembranccedilas prisionais lhe traziam
Provavelmente por sua prisatildeo ter lhe colocado na eacutepoca em uma posiccedilatildeo extremamente
conflitante e perturbadora para uma autoridade da Igreja Catoacutelica anos mais tarde essas
memoacuterias ainda eram difiacuteceis de serem narradas e lembrar a violecircncia sofrida dentro do
DOI-CODIRJ possivelmente trazia de volta alguns transtornos de ordem sentimental
indesejaacuteveis Afinal presume-se que na prisatildeo seus sentimentos oscilassem entre os
tipicamente humanos tais como dor e raiva e os cristatildeos como feacute e perdatildeo tais
memoacuterias remetiam a sentimentos humanos que ele em respeito a sua vocaccedilatildeo de
padre deveria renegar
Decidida a ampliar ainda mais o escopo de minha rede de entrevistados passei a
frequentar as reuniotildees abertas ao puacuteblico agraves segundas-feiras agrave noite na sede do Grupo
Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTMNRJ) no bairro de Botafogo O
GTNMRJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-prisioneiros poliacuteticos que viveram
situaccedilotildees de tortura durante o regime militar bem como por familiares de mortos e
desaparecidos poliacuteticos O Grupo tornou-se por meio das lutas em defesa dos direitos
humanos uma importante referecircncia no cenaacuterio nacional Ao longo dessas deacutecadas o
GTNMRJ vem lutando pelo esclarecimento das circunstacircncias da morte e do
desaparecimento de militantes poliacuteticos pelo resgate da memoacuteria da repressatildeo ditatorial
pelo afastamento imediato dos cargos puacuteblicos de pessoas envolvidas com a tortura e
pela formaccedilatildeo de uma consciecircncia eacutetica condiccedilatildeo que a entidade defende ser
indispensaacutevel na luta contra a impunidade e pela justiccedila Aleacutem disso o Grupo vem
denunciando antigos e novos casos de tortura exigindo puniccedilatildeo para seus perpetradores
96
atraveacutes de notas na miacutedia entrevistas atos puacuteblicos seminaacuterios e outras atividades 17
Minha ida agrave sede do Grupo resultou na incorporaccedilatildeo de duas novas entrevistadas a
minha rede A primeira delas foi Ana de Miranda Batista que em 17 de novembro de
2004 me recebeu em uma das salas do proacuteprio GNTMRJ Ana havia acabado de
escrever seu memorial ndash onde narrava todas as perseguiccedilotildees e prisotildees que havia sofrido
durante a ditadura militar ndash e o havia encaminhado agrave presidecircncia da Comissatildeo Especial
da Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro a fim de comprovar
que fazia jus ao valor maacuteximo da reparaccedilatildeo prevista no Art 5ordm da Lei Estadual nordm 3744
de 21 de dezembro de 2001 O ponto principal de seu argumento era que havia sofrido
todas as mazelas prisotildees torturas fiacutesicas e psicoloacutegicas submetida pelas forccedilas
opressoras da eacutepoca fato este que ateacute hoje tem consequecircncias em sua vida (Batista
2004 10) 18
Antes de comeccedilar a entrevista Ana me concedeu uma coacutepia deste memorial
juntamente com a monografia do entatildeo Coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira
fonte analisada no capiacutetulo anterior cujo teor havia lhe servido como evidecircncia dos
meacutetodos violentos que ocorriam nas dependecircncias do DOI-CODI
Diante disso conforme o esperado seu depoimento oral apresentou um tom
narrativo muito similar ao assumido no referido documento que havia recentemente
escrito Assim orquestrada com o objetivo que tinha de conseguir a reparaccedilatildeo do
Estado Ana buscou construir suas memoacuterias de forma a ressaltar as violecircncias sofridas
ou seja priorizou a condiccedilatildeo de ldquoperseguida poliacutetica e viacutetima da repressatildeo militarrdquo em
detrimento da de ldquolutadora revolucionaacuteriardquo em prol da democracia
No final desse mesmo mecircs de novembro entrevistei a entatildeo vice-presidente do
Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro Ceciacutelia Coimbra Professora do
17
Para mais informaccedilotildees acessar httpwwwtorturanuncamais-rjorgbr 18
Memorial de Ana de Miranda Batista parte do requerimento agrave indenizaccedilatildeo enviado ao Secretaacuterio de
Estado de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro pela proacutepria em outubro de 2004
97
Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Ceciacutelia me
recebeu em uma das salas do preacutedio dessa faculdade localizada no campus do
Gragoataacute na cidade de Niteroacutei Uma das fundadoras do GTNMRJ Ceciacutelia natildeo mostrou
nenhum pudor em lembrar as violaccedilotildees sofridas durante a prisatildeo Detalhou as torturas
recebidas sem demonstrar constrangimento Esta forma de lidar com o passado se
explica pela maneira pela qual Ceciacutelia se auto-identifica Afinal devido a sua profissatildeo
de psicoacuteloga e sua condiccedilatildeo de liacuteder de um grupo que luta por reparar os danos morais e
fiacutesicos deixados pela tortura entende a difusatildeo dos detalhes de sua proacutepria memoacuteria
como uma arma poderosa para que a justiccedila seja feita em prol da redenccedilatildeo dos
torturados e da penalizaccedilatildeo dos torturadores
11 Os sujeitos e suas trajetoacuterias
A partir da anaacutelise dos depoimentos traccedila-se aqui a trajetoacuteria de vida de cada um
dos entrevistados a fim de que sejam desvendados outros fatores que influenciaram a
construccedilatildeo de suas memoacuterias sobre o periacuteodo em que estiveram presos no DOI-
CODIRJ Este periacuteodo se concentra no segundo semestre do ano de 1970 uma vez que
foi nesse momento que todos os seis entrevistados por laacute passaram Este dado temporal
em muito aproxima suas memoacuterias pois significa que estas se referem a uma mesma
fase desse oacutergatildeo repressivo Isso permitiu ateacute mesmo que tais memoacuterias englobassem
momentos compartilhados jaacute que alguns desses ex-prisioneiros laacute se encontraram e ateacute
dividiram uma mesma cela
No entanto cabe aqui destacar que natildeo houve qualquer intenccedilatildeo de entrevistar ex-
prisioneiros que estivessem no DOI-CODIRJ durante esse periacuteodo Conforme exposto
anteriormente a rede de entrevistas foi se desenhando de acordo com as oportunidades
o que torna o fato de todos terem por laacute passado na segunda metade de 1970 natildeo uma
98
feliz coincidecircncia como uma primeira impressatildeo pode fazer crer mas mais uma
demonstraccedilatildeo da alta eficiecircncia dos DOI-CODI Essas prisotildees correspondem justamente
ao periacuteodo em que o DOI-CODIRJ passou a funcionar em meados de 1970
demonstrando na praacutetica o que foi dito no capiacutetulo anterior diante da grande demanda
de accedilotildees que natildeo eram eficientemente combatidas pelos oacutergatildeos de repressatildeo anteriores
a sofisticaccedilatildeo dos DOI ldquorevolucionourdquo de fato a organizaccedilatildeo da repressatildeo agindo jaacute
num primeiro momento de forma avassaladora
Antocircnio Leite de Carvalho19
Antocircnio Leite de Carvalho nasceu no Cearaacute em 13 de agosto de 1945 Quando era
estudante secundarista pertenceu ao movimento que se concentrava no Calabouccedilo
restaurante estudantil proacuteximo ao Aeroporto Santos Dumont do Rio de Janeiro
frequentado por estudantes que eram como ele secundaristas pobres e principalmente
procedentes de outros estados
Em 1967 o governo apresentou planos para a demoliccedilatildeo do Calabouccedilo sob a
justificativa de construir em seu local um trevo rodoviaacuterio para desafogar o tracircnsito do
Aterro do Flamengo A partir disso os estudantes comeccedilaram a protestar contra a sua
demoliccedilatildeo e criaram a Frente Unida dos Estudantes do Calabouccedilo (FUEC) O governo
em maio daquele ano conseguiu demolir o restaurante e entregou em setembro ldquoo novo
Calabouccedilordquo para os estudantes poreacutem em situaccedilotildees precaacuterias Assim a luta da FUEC
continuou em prol da melhoria de suas condiccedilotildees de funcionamento e foi justamente em
torno desses protestos que o primeiro grande conflito de rua do ano de 1968 ocorreu
sensibilizando a opiniatildeo puacuteblica e o movimento estudantil como um todo No dia 28 de
19
Entrevistas realizadas com Antocircnio Leite de Carvalho em 12 de setembro de 2002 e 8 de fevereiro de
2003
99
marccedilo policiais invadiram a tiros o restaurante do Calabouccedilo onde se preparava mais
uma manifestaccedilatildeo contra as peacutessimas condiccedilotildees do local e mataram o estudante
secundarista Edson Luiacutes de Lima Souto de dezoito anos Este assassinato representou o
estopim para o desencadeamento de amplas manifestaccedilotildees contraacuterias agrave ditadura ao
longo do ano de 1968 que seriam cada vez mais reprimidas ateacute se tornarem totalmente
proibidas pelo AI-5 20
A partir desse contexto de ilegalidades e proibiccedilotildees Antocircnio se posicionou entre
os estudantes que optaram por continuar a lutar contra a ditadura de forma radicalizada
Aproximou-se entatildeo do Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR) onde
logo em seguida comeccedilou a militar Antocircnio associa a sua adesatildeo ao PCBR ao
programa deste partido de esquerda que tinha a guerrilha urbana como meio de luta
para a derrubada da ditadura e implantaccedilatildeo do socialismo no paiacutes e principalmente agrave
admiraccedilatildeo que tinha por um dos seus fundadores e liacutederes Apolocircnio de Carvalho
Como Antocircnio teve participaccedilatildeo assiacutedua em muitas passeatas do movimento
estudantil de 1968 conheceu muitas lideranccedilas de organizaccedilotildees que vinham se
formando e buscavam adeptos em meio aos estudantes Assim foi apresentado e
comeccedilou a admirar Apolocircnio de Carvalho um dos grandes motivos que o levaram a
posteriormente militar no PCBR partido cuja formaccedilatildeo atuaccedilatildeo e ideais seratildeo
abordados mais adiante Apolocircnio de Carvalho era uma figura haacute muito atuante na
poliacutetica havia lutado em favor dos republicanos na Espanha durante a Guerra Civil
Espanhola na Resistecircncia Francesa contra o nazismo e participava do Partido
Comunista Brasileiro (PCB) quando em 1967 rompeu com este e foi um dos
fundadores do PCBR 21
20
Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009 108-132 21
Em 1967 Apolocircnio rompeu com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e se tornou um dos fundadores
do PCBR partido em situaccedilatildeo clandestina na eacutepoca motivo que o levou a ser preso Juntamente com
outros 39 presos poliacuteticos Apolocircnio foi trocado pelo embaixador alematildeo que em 11 de junho de 1970
100
O partido era o PCBR que possuiacutea uma grande figura que se chama
Apolocircnio de Carvalho que pertence hoje ao PT ele era uma grande
lideranccedila do partido havia participado da Revoluccedilatildeo Espanhola da
resistecircncia ao nazismo na Franccedila um homem respeitado mundialmente pela
sua coragem e pela luta a favor da democracia e contra os ditadores ele era a
minha grande lideranccedila (Carvalho 12 set 2002)
Em 1970 aos 25 anos Antocircnio Leite de Carvalho foi preso No momento de sua
prisatildeo estava agrave espera de outro militante do PCBR na rua em um ponto de encontro
que havia combinado com ele Relacionando o depoimento de Antocircnio com as
estrateacutegias de captura dos DOI analisadas no primeiro capiacutetulo percebe-se que como o
companheiro de Antocircnio havia sido capturado antes de ir ao seu encontro acabou
informando aos agentes de umas das turmas de interrogatoacuterio preliminar do DOI-
CODIRJ muito provavelmente sob tortura o horaacuterio em que Antocircnio estaria no lugar
marcado A partir disso a informaccedilatildeo foi repassada agrave Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo e
agentes de uma das turmas que a formavam se encaminharam ateacute o local com carros e
roupas descaracterizadas como de praxe e levaram Antocircnio algemado para o DOI-
CODIRJ onde ficou preso durante cerca de trecircs meses
Eu fui preso na rua Eu tinha um encontro com outro militante mas esse
militante foi preso e sob tortura no DOI-CODI aqui no 1deg BPE da Rua
Baratildeo de Mesquita ele abriu o ponto quer dizer o ponto era o local de
encontro que a gente chamava de ponto ldquoTenho um ponto com fulanardquo quer
dizer que vocecirc tinha um encontro Ele abriu o local de encontro que eu teria
com ele e aiacute eu fui preso pelo DOI-CODI (Carvalho 12 set 2002)
havia sido sequestrado por esquerdistas integrantes da Vanguarda Popular Revolucionaacuteria (VPR) e da
Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN) vivendo algum tempo exilado na Argeacutelia Apoacutes a implantaccedilatildeo da Lei
de Anistia no Brasil em 1979 ele e sua famiacutelia retornaram agrave terra natal onde participaram da fundaccedilatildeo
do Partido dos Trabalhadores (PT) em 1980 Apolocircnio faleceu em setembro de 2005 aos 93 anos
(Carvalho 1997 13-16)
101
Antocircnio ressalta que durante a sua prisatildeo no DOI-CODIRJ esteve junto a
Fernando Gabeira e Daniel Aaratildeo Reis Filho Ambos haviam participado do sequestro
do embaixador americano no dia 4 de setembro de 1969 e por terem conseguido trocar
o embaixador por quinze presos poliacuteticos que foram exilados no Meacutexico haviam se
destacado entre os militantes da esquerda armada Aleacutem disso como na eacutepoca em que
Antocircnio concedeu as entrevistas Gabeira e Daniel Aaratildeo eram pessoas publicamente
reconhecidas pela luta contra a ditadura e tambeacutem por suas atividades profissionais ndash
Gabeira como jornalista e entatildeo deputado federal e Daniel Aaratildeo como intelectual ndash
percebe-se que o fato de ter tido contato com eles na prisatildeo eacute importante para a leitura
que Antocircnio faz sobre suas memoacuterias injetando-lhes certo orgulho Afinal apesar de
natildeo ter participado do sequestro Antocircnio tambeacutem havia sido preso e torturado por
pegar em armas contra a ditadura logo o fato de ter convivido na cadeia com essas
figuras jaacute reconhecidas pelos feitos desse mesmo passado lhe trazia no presente uma
dimensatildeo positiva sobre suas memoacuterias
Fiquei preso com pessoas que ficaram famosas como o Fernando Gabeira
que depois se tornou parlamentar foi candidato ao governo do Estado foi
candidato a prefeito e hoje eacute deputado federal Tambeacutem o Daniel Aaratildeo
Reis renomado professor de Histoacuteria e uma seacuterie de outros que hoje estatildeo aiacute
pelo governo inclusive em diversos governos (Carvalho 12 set 2002)
Apoacutes o tempo em que esteve preso no DOI-CODIRJ Antocircnio foi transferido para
o Departamento de Ordem Poliacutetica e Social (DOPS) onde permaneceu por um periacuteodo
de dois ou trecircs meses sendo entatildeo libertado Na eacutepoca em que concedeu a entrevista
Antocircnio aleacutem de bancaacuterio aposentado trabalhava como dirigente sindical em um cargo
eletivo
102
Dulce Chaves Pandolfi22
Dulce Chaves Pandolfi nasceu em Recife no dia 14 de dezembro de 1948
Cursava Ciecircncias Sociais em Pernambuco quando em 1967 entrou para o Diretoacuterio
Acadecircmico se tornando pouco depois secretaacuteria geral do Diretoacuterio Central dos
Estudantes (DCE) A partir de dezembro de 1968 com o AI-5 extinguindo os grecircmios
estudantis e substituindo-os por centros ciacutevicos sem autonomia que natildeo podiam realizar
atividades de natureza poliacutetica a opccedilatildeo de fazer parte da ALN era para Dulce uma
forma de continuar lutando por uma ldquosociedade mais igualitaacuteriardquo Aleacutem disso era
sobretudo um meio de derrubar o regime militar em vigor como se pode conferir na
passagem abaixo
[] a gente queria transformar a sociedade a gente queria o socialismo uma
sociedade igualitaacuteria Mas tinha uma fase anterior que era exatamente a de
querer derrubar a ditadura essa era a meta principal de todos Sabiacuteamos
inclusive que o socialismo natildeo era uma meta imediata era uma luta em
longo prazo [] entatildeo a nossa luta inicialmente era para ser instalado o
regime democraacutetico era a luta contra a ditadura (Pandolfi 5 fev 2003)
Ressalta-se entretanto que a opccedilatildeo de Dulce assim como da maior parte dos
estudantes que a partir do AI-5 se juntaram agraves organizaccedilotildees esquerdistas de luta armada
estava inserida no contexto mundial de 1968 Este por sua vez influenciava-se pela
vitoacuteria da Revoluccedilatildeo Cubana em 1959 pela independecircncia da Argeacutelia em 1962 pela
Guerra Fria que acabou por deflagrar entre os anos de 1959 e 1975 a Guerra do Vietnatilde
e por meio desta o enfrentamento indireto de Estados Unidos e Uniatildeo Sovieacutetica e pela
rebeliatildeo estudantil mundial iniciada a partir do ldquomaio francecircs de 1968rdquo que comeccedilou
por meio de uma manifestaccedilatildeo estudantil pontual questionadora de atitudes culturais
22
Entrevista realizada com Dulce Chaves Pandolfi em 5 de fevereiro de 2003
103
tradicionais e conservadoras e rapidamente atingiu a proporccedilatildeo de uma ldquorevoluccedilatildeo
cultural mundialrdquo Percebe-se entatildeo que o horizonte nesse momento era revolucionaacuterio
e principalmente entre os jovens impulsionava a percepccedilatildeo de que os partidos
tradicionais de esquerda estavam desacreditados e que era hora de uma nova geraccedilatildeo
partir para a accedilatildeo direta rumo agrave revoluccedilatildeo
Assim diferente de como eacute narrado por muitos ex-prisioneiros poliacuteticos em
tempos jaacute democraacuteticos que tais como Dulce veem a democracia do presente como
uma conquista positiva e por isso inconscientemente permitem que essa visatildeo atual
influencie suas memoacuterias de luta percebe-se aqui que a democracia natildeo prevalecia entre
os ideais das organizaccedilotildees de luta armada da eacutepoca muito pelo contraacuterio Afinal
acredita-se que em meio ao contexto mundial do momento as esquerdas armadas
tinham uma perspectiva de fato revolucionaacuteria ou seja valorizavam a revoluccedilatildeo muito
mais que a democracia que inclusive nesse momento estava diretamente associada
aos Estados Unidos e consequentemente ao sistema capitalista Como aponta Daniel
Aaratildeo na obra a Ditadura militar esquerdas e sociedade (2000)
a perspectiva ofensiva revolucionaacuteria que havia moldado aquelas
esquerdas E o fato de que elas natildeo eram de modo nenhum apaixonadas pela
democracia (Aaratildeo Reis 2000 70)
A democracia soacute comeccedilou mesmo a ser valorizada a partir do final da deacutecada de
1970 jaacute em uma nova conjuntura onde jaacute existiam outros significados tais como os
direitos humanos e a luta pela anistia No entanto por outro lado nota-se que conforme
destacado por Dulce a luta contra ditadura era tambeacutem um dos objetivos principais da
esquerda armada no final dos anos 1960 Dessa forma apesar da luta contra ditadura na
eacutepoca estar totalmente vinculada agrave revoluccedilatildeo socialista eacute compreensiacutevel que a
democracia tenha em tempos recentes um papel destacado entre as memoacuterias dos ex-
104
guerrilheiros Tal como analisa Marcelo Ridenti em Resistecircncia e mistificaccedilatildeo da
resistecircncia armada contra a ditadura armadilha para pesquisadores (2004) nota-se
aqui que a face de resistecircncia agrave ditadura das experiecircncias guerrilheiras passou a importar
mais apoacutes a implantaccedilatildeo da democracia que a ofensiva revolucionaacuteria ao contraacuterio da
intenccedilatildeo original dos guerrilheiros Afinal foi esta face que teve o objetivo alcanccedilado
ou seja saiu-se vencedora
Apoacutes o AI-5 Dulce optou entatildeo por militar na Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN)
organizaccedilatildeo de esquerda armada que seraacute abordada ainda neste capiacutetulo Assim no ano
de 1970 sabendo que estava sendo procurada pela repressatildeo por conta de sua militacircncia
clandestina Dulce se mudou para a cidade do Rio de Janeiro Sete meses depois no dia
14 de agosto foi presa na casa do seu namorado e levada direto para o DOI-CODIRJ
onde permaneceu cerca de trecircs meses
[] fui presa na casa do meu namorado noacutes fomos presos agrave noite no dia 14
de agosto Fui levada direto para PE Fiquei na PE mais ou menos uns trecircs
meses fiquei ateacute novembro comecinho de dezembro eu acho Depois eu
fui transferida para o DOPS (Pandolfi 5 fev 2003)
Apoacutes permanecer presa no DOI-CODI Dulce foi levada para o DOPS e depois
de seu julgamento foi transferida para o presiacutedio Talavera Bruce prisatildeo feminina de
regime fechado com grau de seguranccedila maacutexima localizada no bairro de Bangu
Passado um ano foi levada de volta para Recife sua cidade natal onde finalmente foi
libertada Encontrou-se prisioneira por mais de um ano de agosto de 1970 ateacute dezembro
de 1971
[] depois de um tempo praticamente um ano que eu estava presa fui
levada para Recife porque eu tambeacutem tinha processo laacute e de laacute eu saiacute Fui
105
solta laacute em Recife depois de um ano Saiacute em dezembro de 1971 fui presa
em agosto de 70 e fui solta em dezembro de 71 (Pandolfi 5 fev 2003)
Dulce no momento de sua entrevista jaacute era professora e pesquisadora do Centro de
Pesquisa e Documentaccedilatildeo de Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil (CPDOC) da Fundaccedilatildeo
Getuacutelio Vargas (FGV) ofiacutecio que exerce ateacute os dias de hoje
Fernando Palha Freire23
Fernando Palha Freire nasceu em Beleacutem (PA) e se mudou para o Rio de Janeiro
no fim de 1964 Antes de vir para o Rio ainda adolescente aprendeu alguns
fundamentos marxistas com sua irmatilde mais velha jaacute universitaacuteria que lhe deu o que ele
chamou de uma ldquonoccedilatildeo de mundordquo Quando se mudou para o Rio de Janeiro Fernando
mesmo jovem jaacute havia se definido esquerdista
Agrave eacutepoca do AI-5 Fernando tinha muitos amigos que militavam em uma
Dissidecircncia do Partidatildeo de Niteroacutei a Dissidecircncia do Estado do Rio de Janeiro que em
meados de 1969 foi desmontada atraveacutes da prisatildeo de seus integrantes pelo oacutergatildeo de
repressatildeo da Marinha o Centro de Informaccedilotildees da Marinha o CENIMAR Como esta
organizaccedilatildeo natildeo tinha um nome especiacutefico para noticiar o seu desmonte na imprensa
com um efeito grandioso os militares daquele oacutergatildeo optaram por nomeaacute-la de
Movimento Revolucionaacuterio 8 de outubro (MR-8) fazendo alusatildeo agrave data em que Che
Guevara havia sido capturado na Boliacutevia morrendo no dia seguinte Foi inclusive a
partir disso que a Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-GB)24
para provocar o
governo ditatorial que haacute pouco havia noticiado o desmonte do perigoso ldquoMR-8rdquo
23
Entrevista realizada com Fernando Palha Freire em 28 de junho de 2004 24
Tais organizaccedilotildees de esquerda da eacutepoca ainda seratildeo abordadas neste capiacutetulo no item 12 A nova
esquerda brasileira
106
assinou em co-autoria com a ALN o sequestro do embaixador norte-americano
autointitulando-se MR-8 como passou desde entatildeo a ser conhecida 25
[] quando veio o golpe minha irmatilde jaacute era universitaacuteria eu era um garoto
eu tinha quinze anos [] ela que me deu mesmo uma noccedilatildeo de mundo de
marxismo Quando veio o golpe noacutes moraacutevamos em Beleacutem No final de 64
eu estava me mudando para o Rio de Janeiro jaacute com essas noccedilotildees de justiccedila
social que eu havia aprendido com ela Digamos assim eu jaacute era
definidamente um cara de esquerda Aiacute veio a luta armada [] a primeira
organizaccedilatildeo [desmontada pelos militares] era o MR-8 uma organizaccedilatildeo de
Niteroacutei uma dissidecircncia do Partidatildeo [PCB] de Niteroacutei onde muitos de seus
integrantes eram meus conhecidos meus amigos entatildeo quando esses caras
foram presos eu jaacute era digamos assim um simpatizante dessa organizaccedilatildeo
natildeo era militante mas era simpatizante [] (Freire 28 jun 2004)
A partir dessa ligaccedilatildeo com outros militantes Fernando optou pela luta armada e
passou a militar na ALN mesma organizaccedilatildeo de Dulce Sua militacircncia poreacutem
concentrava-se em Niteroacutei no estado do Rio de Janeiro onde morava e estudava
economia na Universidade Federal Fluminense (UFF) Assim em 1970 Fernando e
outros militantes da ALN proacuteximos a ele resolveram planejar uma accedilatildeo para que muitos
de seus companheiros inclusive os do antigo MR-8 fossem libertados
No dia 1deg de julho de 1970 aos 22 anos Fernando participou do sequestro de um
aviatildeo da Companhia Cruzeiro do Sul que ia do Brasil para a Argentina com o objetivo
de negociar a troca dos passageiros por quarenta presos poliacuteticos
[] a gente pensou em fazer uma accedilatildeo accedilatildeo no sentido de tentar libertar esse
pessoal Na eacutepoca jaacute tinham sequestrado o embaixador americano e
trocado por quinze presos poliacuteticos [] Entatildeo nesse sentido a gente
resolveu planejar o sequestro de um aviatildeo A gente sequestrou um aviatildeo com
o objetivo de trocar os passageiros por quarenta presos poliacuteticos Quer dizer
25
Para mais informaccedilotildees sobre a mudanccedila de nome da Dissidecircncia da Guanabara para MR-8 ver
Berquoacute 1997 72-73
107
a gente entrou num processo de radicalizaccedilatildeo mesmo A gente queria era a
libertaccedilatildeo [] soacute que essa accedilatildeo natildeo deu certo [] (Freire 28 jun 2004)
O sequestro parecia correr como o planejado Durante o vocirco Fernando e os outros
militantes conseguiram desviar a rota que saiacutea do Rio de Janeiro para Buenos Aires
com escala em Satildeo Paulo fazendo o aviatildeo retornar ao Rio Poreacutem no Aeroporto
Internacional do Rio de Janeiro o Galeatildeo oficiais da Aeronaacuteutica cercaram o aviatildeo e
conseguiram render os opositores poliacuteticos envolvidos na operaccedilatildeo antes que eles
conseguissem negociar a troca dos refeacutens pelos quarenta prisioneiros poliacuteticos Durante
o combate um dos sequestradores irmatildeo de Fernando levou um tiro vindo a falecer
horas depois
A gente chegou a desviar o aviatildeo um aviatildeo que ia pra Argentina com uma
parada em Satildeo Paulo a gente mandou o aviatildeo voltar e quando chegamos ao
Rio o aviatildeo foi cercado Os caras chegaram com gaacutes lacrimogecircneo lama
arma e nessa accedilatildeo o meu irmatildeo foi baleado e depois morreu Eles mataram
meu irmatildeo A gente foi preso pelo CISA que era a forccedila secreta da
Aeronaacuteutica [] Jaacute na descida do aviatildeo a gente apanhou natildeo se sabe de
quem e nem por onde Depois fomos torturados no aparelho de repressatildeo
deles laacute dentro e de laacute fomos transferidos pro DOI-CODI na PE (Freire 28
jun 2004)
Primeiramente aprisionado pelo Centro de Informaccedilotildees e Seguranccedila da
Aeronaacuteutica (CISA) Fernando foi pouco tempo depois transferido para o DOI-
CODIRJ onde permaneceu cerca de dezoito a vinte dias Posteriormente voltou para
as dependecircncias do CISA no aeroporto do Galeatildeo onde ficou cerca de oito meses ateacute
ser julgado Apoacutes seu julgamento foi conduzido para o Instituto Penal Cacircndido Mendes
(IPCM) presiacutedio de seguranccedila maacutexima localizado em Ilha Grande no estado do Rio de
Janeiro Para Fernando em meio agraves privaccedilotildees que vivia nos oacutergatildeos de repressatildeo ser
transferido para um presiacutedio de fato como o da Ilha Grande era na eacutepoca um desejo
108
Afinal aleacutem de saber que laacute estavam alguns de seus companheiros no IPCM existia
uma rotina de presiacutedio normal com direito a jogar futebol no paacutetio a ler jornais e livros
situaccedilatildeo bem diferente da dos DOI-CODI por exemplo que conforme destacado no
capiacutetulo anterior eram oacutergatildeos estritamente de repressatildeo e investigaccedilatildeo localizados em
quarteacuteis cuja prisatildeo era improvisada apenas para cumprir tais funccedilotildees
Oito meses foi o tempo que a gente ficou laacute na Aeronaacuteutica E aiacute o que eacute a
perspectiva de vida Os sonhos da gente Vocecirc quando estaacute preso o seu
sonho eacute fugir realmente mas se vocecirc natildeo tem perspectiva de fuga o seu
sonho eacute o quecirc Eacute ir pra uma coletividade onde estatildeo os outros presos Entatildeo
meu sonho passou a ser esse ir pra Ilha Grande [] laacute eu sabia que os
companheiros estavam laacute sabia que tinha uma lsquopeladinharsquo que a gente podia
bater uma bola campeonato de xadrez livros para ler coisa que esses caras
sacaneavam tanto a gente que nem livros Jornal Raacutedio Essas coisas Nem
pensar Entatildeo meu sonho era Ilha Grande Apesar de ser um lugar
horroroso Era na eacutepoca um presiacutedio de seguranccedila maacutexima isolado (Freire
28 jun 2004)
Fernando permaneceu mais de seis anos na prisatildeo sendo libertado no dia 29 de
setembro de 1976 Ele e os demais companheiros envolvidos no sequestro tiveram suas
condenaccedilotildees embasadas no artigo 28 do Decreto-lei 898 de 29 de setembro de 1969
que alterava a Lei de Seguranccedila Nacional A partir deste artigo ficava estipulada uma
pena de reclusatildeo que poderia variar de 12 a 30 anos para quem devastasse saqueasse
assaltasse sequestrasse incendiasse depredasse ou praticasse qualquer tipo de atentado
pessoal ato de massacre sabotagem ou terrorismo Aleacutem disso no mesmo artigo havia
um paraacutegrafo uacutenico decretando que se a accedilatildeo resultasse em morte a condenaccedilatildeo seria
no miacutenimo agrave prisatildeo perpeacutetua e no maacuteximo agrave morte
Art 28 Devastar saquear assaltar roubar sequestrar incendiar depredar
ou praticar atentado pessoal ato de massacre sabotagem ou terrorismo
109
Pena reclusatildeo de 12 a 30 anos
Paraacutegrafo uacutenico Se da praacutetica do ato resultar morte
Pena prisatildeo perpeacutetua em grau miacutenimo e morte em grau maacuteximo (Decreto-
lei nordm 898 29 set 1969)
A partir desse decreto durante o julgamento de Fernando tentaram condenaacute-lo agrave
prisatildeo perpeacutetua baseando a argumentaccedilatildeo no fato do sequestro do aviatildeo ter acarretado
uma morte no caso a de seu irmatildeo No entanto como esta morte foi ocasionada pela
repressatildeo militar a pena de Fernando ficou estipulada em doze anos de reclusatildeo e mais
adiante reduzida para seis anos
[] tinha uma lei de seguranccedila nova entrado em evidecircncia os caras queriam
dar o exemplo com pena de morte ou prisatildeo perpeacutetua etc e noacutes fomos os
primeiros casos de pena de morte que eles pediram O meu o de Colombo
Jessie Jane - Jane eacute a ex-diretora daqui [Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio
de Janeiro ndash APERJ] [] tinha um artigo vinte e oito que previa pena capital
ou prisatildeo perpeacutetua em caso de morte Soacute que quem morreu foi um dos
nossos o meu irmatildeo foi morto por eles e eles em cima disso tentando
aplicar essa pena soacute que natildeo colou E eu peguei doze anos Colombo pegou
trinta mas era menor aiacute caiu pra dezoito a Jane de vinte e quatro parece
que a Jane caiu pra dezoito E eu como tinha a questatildeo de ser primaacuterio natildeo
sei mais o quecirc enfim quer dizer eu estou resumindo Aiacute por conta disso
fui condenado e fiquei seis anos [] (Freire 28 jun 2004)
Na eacutepoca da entrevista Fernando trabalhava no Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio
de Janeiro (APERJ) onde possuiacutea um cargo de confianccedila conforme explicado
anteriormente Hoje Fernando Palha Freire eacute comerciante responsaacutevel pela cantina do
primeiro piso do preacutedio do Instituto de Filosofia e Ciecircncias Sociais (IFCS) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
110
Padre Maacuterio Prigol26
Padre Maacuterio Prigol nasceu em 12 de novembro de 1928 em Vila Gramado no
municiacutepio de Paulo Bento no Rio Grande do Sul Em 1970 quando foi preso era
assistente da Juventude Operaacuteria Catoacutelica (JOC) e da Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO)
grupos ligados agrave Igreja Catoacutelica criados para atender a problemas de jovens e adultos
trabalhadores 27
Apoacutes o golpe de 1964 organizaccedilotildees como a JOC e a ACO ganharam
forccedila entre muitos trabalhadores devido agraves dificuldades impostas pelo governo militar
para a organizaccedilatildeo em sindicatos
A sede nacional da JOC era aqui no morro de Satildeo Joseacute Operaacuterio atraacutes da
Penitenciaacuteria [antigo Complexo Penitenciaacuterio Frei Caneca] era na favela []
eu trabalhei com a JOC de Satildeo Paulo e depois vim para caacute trabalhava na
Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria que hoje se chama MTC Movimento dos
Trabalhadores Cristatildeos Esse movimento preparava os jovens e adultos dos
sindicatos dos partidos poliacuteticos de todos os setores da sociedade onde haacute
trabalhadores que procuram descobrir os acontecimentos a situaccedilatildeo operaacuteria
e sobretudo melhorar a sua condiccedilatildeo de trabalhador E vamos lembrar que
naquela eacutepoca havia a nova lei [lei 458964] que soacute podia ser diretor do
sindicato quem natildeo tinha nada que comprometesse entatildeo todos aqueles que
lutavam pela greve contra a puniccedilatildeo da greve ou de forma geral pelos
trabalhadores natildeo podiam ser nem diretores de associaccedilotildees nem diretores de
sindicatos [] soacute poderia ser diretor de sindicato quem fosse aprovado pela
Lei de Seguranccedila Nacional (Prigol 28 set 2004)
Padre Maacuterio se destaca entre os ex-prisioneiros entrevistados por aleacutem de ser uma
autoridade de uma instituiccedilatildeo de importacircncia mundial como a Igreja Catoacutelica sua
atuaccedilatildeo ser diferente da dos demais natildeo estando ligada agrave esquerda armada da eacutepoca e
ao meio estudantil Quando foi preso no DOI-CODIRJ em 1970 Padre Maacuterio jaacute natildeo
era mais tatildeo jovem para ser estudante e sua formaccedilatildeo poliacutetica natildeo era a mesma da
26
Entrevista realizada com Padre Maacuterio Prigol em 28 de setembro de 2004 27
A JOC e ACO seratildeo abordadas ainda neste capiacutetulo no item 12 A nova esquerda brasileira
111
geraccedilatildeo que pegava em armas jaacute que sua intenccedilatildeo enquanto assistente da JOC e da
ACO era ajudar os trabalhadores a garantirem os seus direitos e para tanto opunha-se
agraves leis impostas pela ditadura solidificando entre os integrantes dessas associaccedilotildees uma
consciecircncia de reivindicaccedilatildeo classista sem entretanto aspirar propriamente a uma
revoluccedilatildeo socialista
Percebe-se poreacutem que a concomitacircncia entre os periacuteodos prisionais de Padre
Maacuterio e os demais entrevistados natildeo eacute casual Afinal diante da ideia de revoluccedilatildeo
socialista que guiava as accedilotildees armadas que se multiplicavam e ganhavam forccedila apoacutes o
AI-5 a consciecircncia de reivindicaccedilatildeo de classe que a JOC e conforme seraacute abordado
adiante principalmente a ACO disseminavam aos seus trabalhadores eram
interpretadas como ameaccediladoras pela repressatildeo Uma vez que as organizaccedilotildees
guerrilheiras tinham por meta justamente conseguir apoio da classe trabalhadora para
concluiacuterem o plano de revoluccedilatildeo socialista e o trabalho da JOC e da ACO vinha unindo
e organizando uma percepccedilatildeo de classe justamente entre os trabalhadores havia uma
forte propensatildeo que futuramente tais trabalhadores se unissem agrave esquerda em prol da
revoluccedilatildeo socialista
Diante disso explica-se o fato de Padre Maacuterio ter sido preso em meados de 1970
pelos agentes de uma das turmas de busca e apreensatildeo do DOI-CODIRJ durante a
invasatildeo feita ao Instituto Brasileiro de Estudos Sociais (IBRAES) que funcionava na
Casa dos Jesuiacutetas localizada na Rua Bambina no bairro de Botafogo Ele outros
integrantes da JOC e os demais estudantes que assistiam ao curso de desenvolvimento
social foram levados ao DOI-CODIRJ Este curso tinha duraccedilatildeo de aproximadamente
oito meses ao longo dos quais os alunos adquiriam informaccedilotildees sobre o sistema
poliacutetico e econocircmico do Brasil
112
Dias antes dos agentes chegarem ateacute o curso toda a direccedilatildeo nacional da JOC
havia sido presa inclusive dois alunos do IBRAES que foram levados ao DOI-
CODIRJ onde possivelmente sob tortura passaram aos agentes da turma de
interrogatoacuterio preliminar de plantatildeo informaccedilotildees sobre o curso que estava ocorrendo na
Rua Bambina Assim quando os agentes do DOI-CODIRJ chegaram ao local
prenderam todos que estavam participando do curso levando primeiro os militantes e
depois os padres Entre eles estavam Padre Maacuterio e Padre Agostinho de Freitas na
eacutepoca assistente latino-americano da JOC
Noacutes fomos presos natildeo por causa do curso mas porque esses elementos do
DOI prenderam esse pessoal da JOC considerados subversivos e
procuravam um dos assistentes que jaacute tinha sido acusado em Belo Horizonte
de ser subversivo o Padre Manuel de Jesus Ele foi assistente nacional da
JOC mas na eacutepoca natildeo era mais assistente [] entatildeo para prender Manuel
de Jesus foram prendendo toda a direccedilatildeo nacional da JOC que foram
torturados barbaramente torturas como por exemplo os homens
sexualmente em todos os aspectos foram torturados Eram quatro jovens
homens e quatro jovens mulheres e entre esses jovens havia dois alunos do
IBRAES onde eu fazia curso onde vaacuterios desses militantes da JOC tambeacutem
participavam inclusive o Manuel de Jesus Entatildeo no IBRAES os militantes
da JOC foram levados presos primeiro e noacutes padres depois e mais ainda
foi preso o assistente latino-americano da JOC Padre Augustinho Freitas
que hoje trabalha em Nova Iguaccedilu Entatildeo todos noacutes fomos presos []
(Prigol 28 set 2004)
Ao ser preso Padre Maacuterio foi levado diretamente para o DOI-CODIRJ onde
juntamente com os outros padres permaneceu por 54 dias enquanto os jovens
militantes da JOC permaneceram por cerca de trecircs meses Por ser padre sua prisatildeo foi
interrompida pela intervenccedilatildeo de cardeais como explica no trecho a seguir destacado
de seu livro autobiograacutefico
113
D Trevisan D Waldir Dom Aloiacutesio e Padre Celso Pinto que estava ligado
ao Secretariado dos Leigos da CNBB [Conferecircncia Nacional de Bispos do
Brasil] informaram a nossa situaccedilatildeo aos cardeais Mais tarde com a
libertaccedilatildeo de alguns de noacutes realizamos um encontro para discutirmos as
humilhaccedilotildees que sofremos (Prigol 2003 117)
Na eacutepoca em que a entrevista foi concedida Padre Maacuterio aos 75 anos era
missionaacuterio saletino trabalhava na Paroacutequia de Nossa Senhora da Salette no Catumbi e
ainda ocupava o cargo de assistente do MTC (Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos)
antiga Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) Atualmente aos 83 anos Padre Maacuterio ainda
permanece ativamente nessas mesmas funccedilotildees
Ana de Miranda Batista28
Ana Bursztyn nome de solteira de Ana de Miranda Batista nasceu no Rio de
Janeiro em 30 de dezembro de 1948 Era militante estudantil enquanto cursava
Farmaacutecia na UFRJ Foi presa pela primeira perto do clube Botafogo de Futebol e
Regatas localizado na Avenida Venceslau Braacutes no bairro de Botafogo em junho de
1968 juntamente com trezentos estudantes Ela e os demais haviam participado de uma
assembleia estudantil na reitoria da UFRJ no campus da Praia Vermelha que
reivindicava mais verbas do governo federal para o ensino superior Os policiais a
levaram para o DOPS libertando-a no dia seguinte Eleita em outubro de 1968
representante dos estudantes de seu curso participou do Congresso da Uniatildeo Nacional
dos Estudantes (UNE) em Ibiuacutena quando foi novamente capturada pela poliacutecia com
mais de 800 estudantes permanecendo pouco mais de uma semana em reclusatildeo
Ateacute 1968 eu fazia parte do Movimento Estudantil do Diretoacuterio da Faculdade
tudo que tinha de movimento estudantil fazia parte da minha preocupaccedilatildeo
28
Entrevista realizada com Ana de Miranda Batista em 17 de novembro de 2004
114
Em junho a gente foi preso no campus de Botafogo [] Nesse dia em que eu
fui presa pela primeira vez foi um dia que cerca de trezentos estudantes
foram presos porque como a gente estava batalhando por mais verbas era
um dia em que o Conselho Universitaacuterio estava reunido na Praia Vermelha
jaacute que a reitoria era na Praia Vermelha [] laacute pelas tantas veio uma notiacutecia
de que tinham cercado a universidade [] e a gente natildeo estava esperando
isso a gente fazia umas passeatas na cidade mas a barra natildeo era pesada []
Aiacute o reitor decidiu sair na frente dos estudantes e atraacutes dele saiacuteram as
lideranccedilas das faculdades - eu era a lideranccedila da minha faculdade - e depois
uns trezentos estudantes Aiacute eles comeccedilaram a atirar para baixo para o chatildeo
[] e a gente saiu correndo sem enxergar nada e a poliacutecia dando porrada e a
gente sem enxergar nada (risos) Fomos entatildeo andando em direccedilatildeo ao tuacutenel
quando algueacutem disse ldquo- Vem por aqui por aquirdquo Sem saber que era uma
cilada fomos quase os trezentos para laacute Quando a gente entrou ldquo- Todo
mundo pro chatildeordquo Fomos presos no DOPS naquele dia e passamos a noite laacute
[] Daiacute eacute que a gente comeccedilou a fazer as grandes passeatas na cidade ateacute
que comeccedilou a ter passeata sempre mobilizaccedilotildees [] Em outubro de 68 a
gente foi para o Congresso de Ibiuacutena em Satildeo Paulo que foi um congresso
da UNE que estava clandestina na eacutepoca onde fomos todos presos Foi aiacute eacute
que ficou preso natildeo sei cerca de oitocentos estudantes Eles ateacute fizeram um
aacutelbum ficharam todo mundo Esse foi o aacutelbum que eles mostravam na
imprensa e nos cartazes depois porque evidentemente quando a barra
pesou metade das lideranccedilas do movimento estudantil foi para a luta armada
[] mas a gente ficou uma semana preso e depois de uma semana ou dez
dias a gente saiu Mas a barra comeccedilou a pesar mesmo a partir de 13 de
dezembro com o AI-5 [] (Batista 17 nov 2004)
Apoacutes o decreto do AI-5 Ana assim como Antocircnio se aproximou de alguns
integrantes do PCBR poreacutem diferentemente dele natildeo chegou a militar no partido
tornando-se tal como Dulce e Fernando militante da ALN Em Satildeo Paulo para onde
fugiu quando estava sendo perseguida Ana foi presa no dia 14 de julho de 1970 dentro
do magazine Mappin no centro da cidade Na situaccedilatildeo Ana portava uma arma e
115
carregava carteira de identidade falsa pela qual se chamava Naacutedia Zanzin conforme
descreve na passagem abaixo
Quando eu saiacute da casa que a gente estava o Bacuri [codinome de Eduardo
Collen Leite seu companheiro de organizaccedilatildeo] me deu uma arma e dezoito
caacutepsulas porque eu estava sendo procurada [] eu estava com uma carteira
de identidade falsa me chamava Naacutedia Zanzin [] fui presa entatildeo com
nome falso e foi um bafafaacute o cara quis me tirar a arma da matildeo e entatildeo eu
reagi teve um tiro [] Naquele dia eu tinha perdido o lsquopontorsquo [ponto de
encontro com outro militante] porque eu fiquei conversando com a minha
amiga e cheguei atrasada O ponto era perto do centro da cidade e como eu
tinha que esperar duas ou trecircs horas ateacute o proacuteximo encontro eu fiquei
rodando por laacute onde entrei numa loja grande como se fosse a antiga Mesbla
[] chamava-se Mappin Laacute eu fiquei comprando coisas para maquiagem
para mudar a minha cara [] Laacute dentro eles tinham vaacuterios seguranccedilas e um
ou dois deles ficaram em duacutevida se tinham reconhecido ou natildeo quem eu era
e se aproximaram de mim Eu estava na fila para pagar quando se eles se
aproximaram e disseram ldquo- Essas coisas a senhora paga em outro lugarrdquo Aiacute
eu ldquo- Mas eu estou na fila para pagarrdquo Aiacute eles ldquo- Vem com a gente que a
senhora vai pagar em outro lugarrdquo Entatildeo entrei no elevador e fui parar no
seacutetimo andar na parte de seguranccedila da loja Laacute eles queriam que eu me
explicasse Eu tirei tudo o que eu tinha da bolsa eu fui tirando e mostrei para
eles que estava com dinheiro na bolsa e estava na fila para pagar Aiacute eles ldquo-
Natildeo natildeo eacute isso natildeo mas a gente precisa revistarrdquo E eu fui tirando tudo da
bolsa para ver se eles natildeo me revistavam mas eles ldquo- Natildeo a gente vai
revistarrdquo Aiacute comeccedilaram a lutar comeccedilou um pega bolsa e tira bolsa que eu
natildeo queria porque a arma estava no fundo da bolsa Aiacute eu falava ldquo- Natildeo
mas natildeo precisa estaacute tudo aquirdquo Mas natildeo era isso natildeo era porque eles
achavam que eu estava roubando eles desconfiavam de alguma coisa e natildeo
sabiam bem o quecirc e resolveram me revistar Aiacute eu reagi Depois disso
chamaram o delegado e me botaram amarrada na cadeira laacute em cima no
andar da seguranccedila da loja (Batista 17 nov 2004)
116
Esse mesmo episoacutedio foi retratado dois dias depois em um trecho do Jornal da
Tarde de 16 de julho de 1970 conforme Elio Gaspari destaca em seu livro As Ilusotildees
Armadas a Ditadura Escancarada (2002)
[] Ana Bursztyn ex-estudante de farmaacutecia presa [] no magazine Mappin
Um vigilante desconfiara ao vecirc-la colocar cosmeacuteticos numa sacola (da loja)
e levou-a a uma sala onde estava o chefe de seguranccedila Ana meteu a matildeo na
bolsa puxou um Taurus 32 feriu-o com um tiro na perna mas natildeo
conseguiu fugir (Gaspari 2002 299-300)
De fato no momento de sua prisatildeo Ana resistiu e disparou um tiro atingindo no
peacute um dos seguranccedilas da loja que era policial militar Naquele dia Ana foi levada presa
sem saber o que de fato tinha ocorrido com aquele homem Assim em novembro de
1970 mecircs do aniversaacuterio da ldquoIntentona Comunistardquo de 1935 Ana ainda presa leu em
um jornal uma relaccedilatildeo de mortos pelos terroristas divulgada pelos oacutergatildeos de seguranccedila
do governo Laacute o homem em quem havia atirado estava listado como morto e ela como
sua assassina Ana passou a carregar a culpa de tecirc-lo matado ateacute que algum tempo
depois ao vecirc-lo assistindo a seu julgamento constatou que o seguranccedila havia
sobrevivido e que aquela notiacutecia era mais um dos boatos que o governo na eacutepoca
costumava veicular na imprensa a fim de manipular a opiniatildeo puacuteblica
Depois disso durante anos quando eu estava presa no dia da Intentona
Comunista que eu acho que eacute novembro de 1935 colocavam nos jornais em
todos os jornais uma relaccedilatildeo dos mortos pelos terroristas entre aspas que
eacuteramos noacutes [] eu li que o cara laacute Izidoro Zambaldi foi morto pela
terrorista Ana Bursztyn Ele na hora da briga eu briguei com ele ele recebeu
um tiro acho que no peacute esbarrou assim no peacute ele ficou uns dias internado e
saiu ele estava no meu julgamento na audiecircncia Quer dizer e durante
muito tempo eu achando que tinha o matado Era um dos que eles
117
contabilizavam como mortos por noacutes E provavelmente ele estaacute aiacute vivo ateacute
hoje [] (Batista 17 nov 2004)
Ana foi presa portanto por ter sido reconhecida por um policial que tambeacutem
trabalhava como seguranccedila para a loja Mappin Provavelmente isso ocorreu pelo fato
dos organismos de repressatildeo colarem pelos muros da cidade bem como distribuiacuterem
nos estabelecimentos privados muitos folhetos e cartazes com fotos dos ldquoterroristas
procuradosrdquo pela ditadura militar entre os quais Ana A divulgaccedilatildeo de tais fotos era
mais uma forma que os agentes da repressatildeo utilizavam para cercar os suspeitos Assim
qualquer pessoa poderia denunciar e qualquer policial poderia prender tais suspeitos No
entanto caso a prisatildeo natildeo fosse feita pelos agentes do DOI-CODI da respectiva Regiatildeo
Militar obrigatoriamente depois de preso o cidadatildeo considerado ldquosubversivordquo deveria
ser para laacute transferido conforme ocorreu com Ana Afinal como jaacute analisado no
primeiro capiacutetulo o DOI-CODI de cada Regiatildeo concentrava as informaccedilotildees sobre
seguranccedila interna de cada aacuterea portanto laacute existiam as condiccedilotildees necessaacuterias para que a
extraccedilatildeo e anaacutelise das informaccedilotildees que os prisioneiros detivessem fossem trabalhadas
de forma mais eficiente
Diante disso Ana nos primeiros dias de prisatildeo passou pelo DOPS-SP e em
seguida pelo DOI-CODISP sendo posteriormente transferida para o DOI-CODIRJ
Laacute permaneceu por um mecircs voltando para DOI-CODISP passando ainda pelo
DOPSSP Depois de julgada foi levada para o Recolhimento de Presos Tiradentes ndash
localizado na Rua Tiradentes na cidade de Satildeo Paulo ndash para o Presiacutedio de Mulheres ndash
localizado no antigo Complexo Penitenciaacuterio do Carandiru tambeacutem na cidade de Satildeo
Paulo ndash e ainda passou por delegacias das poliacutecias Federal do Rio de Janeiro e de Satildeo
Paulo pelo Presiacutedio do Forte de Copacabana no Rio de Janeiro e por fim pelo
Depoacutesito de Presas Satildeo Judas Tadeu localizado no preacutedio do DOPS-RJ Permaneceu
118
presa por cerca de quatro anos conseguindo liberdade condicional em fevereiro de
1974
Ana de Miranda Batista nome que adotou depois de casada eacute farmacecircutica
bioquiacutemica e na eacutepoca em que concedeu a entrevista era ativista do Grupo Tortura
Nunca MaisRJ (GTNMRJ)
Ceciacutelia Coimbra29
Ceciacutelia Maria Bouccedilas Coimbra nasceu no Rio de Janeiro em 16 de marccedilo de 1941
Ao ingressar no curso de Histoacuteria da Universidade do Brasil atual UFRJ Ceciacutelia que
era por descendecircncia familiar ldquoconservadora e catoacutelicardquo em suas proacuteprias palavras
comeccedilou a questionar-se poliacutetica e religiosamente Iniciou assim sua militacircncia no
Partido Comunista Brasileiro (PCB) clandestino na eacutepoca Entre 1962 e 1963
trabalhou em um programa de alfabetizaccedilatildeo de adultos pelo meacutetodo do educador Paulo
Freire fato que visivelmente a marcou muito Apoacutes o golpe de 64 Ceciacutelia continuou
militando no Partido Comunista poreacutem com muitas discordacircncias ateacute quando comeccedilou
a fazer parte de uma das dissidecircncias do referido partido a Dissidecircncia Comunista da
Guanabara a que ela se refere por ldquoPC da Guanabarardquo
[] eu vim de uma famiacutelia muito tradicional extremamente tradicional meu
pai era um conservador era um cara que era portuguecircs a favor do regime
ditatorial de Salazar A minha matildee era extremamente catoacutelica Tanto que
quando eu entrei para faculdade para fazer Histoacuteria eu era uma pessoa
extremamente conservadora Era lacerdista a favor do Carlos Lacerda
contra Joatildeo Goulart contra os comunistas A minha famiacutelia era muito
anticomunista E quando eu entrei para a faculdade eu ateacute falei isso na
entrevista para a lsquoCaros Amigosrsquo [sua entrevista havia sido capa da Revista
Caros Amigos naquele mesmo mecircs] comecei a ter contato com algumas
29
Entrevista realizada com Ceciacutelia Maria Bouccedilas Coimbra em 30 de novembro de 2004
119
pessoas que eram comunistas e eram pessoas muito interessantes muito
inteligentes e eram pessoas com as quais as duacutevidas que eu tinha com
relaccedilatildeo agrave religiatildeo eu comecei a tirar Porque eu comecei a ler marxismo aiacute
eu comecei a ler materialismo histoacuterico materialismo dialeacutetico e eu comecei
a ver que de repente a religiatildeo era uma coisa produzida pelo proacuteprio
homem [] Eu comecei entatildeo em 6263 a participar de reuniatildeo do Partido
Comunista que era clandestino na eacutepoca e acabei entrando para o Partido
Aiacute comecei a namorar um cara que depois se tornou meu marido e foi preso
comigo que haacute pouco tempo eu ateacute me separei [] Ele jaacute era do Partido
Comunista haacute muito tempo a famiacutelia dele era toda uma famiacutelia formada por
comunistas ao contraacuterio da minha (risos) Em 64 veio o golpe mas aiacute eu
antes disso eu acho que tem a ver porque isso para mim tambeacutem eacute
militacircncia eu fui trabalhar com um programa de alfabetizaccedilatildeo de adultos
pelo meacutetodo Paulo Freire eu trabalhei com o proacuteprio Paulo Freire em 63 um
pouco antes do golpe [] Entatildeo depois do golpe eu continuei militando no
Partido mas jaacute com muitas discordacircncias quer dizer discordava de muita
coisa e aiacute comecei a fazer parte do que se chamou de Dissidecircncia do PC da
Guanabara (Coimbra 30 nov 2004)
Entretanto Ceciacutelia comeccedilou a discordar tanto da luta armada que a Dissidecircncia
Comunista da Guanabara a partir de 1968 veio a adotar quanto do caminho paciacutefico e
institucional defendido pelo PCB se afastando de ambos Dessa forma em 1968
Ceciacutelia Coimbra natildeo militava em nenhuma organizaccedilatildeo mas continuou a manter
contato com muitos companheiros que se tornaram guerrilheiros Destaca-se portanto a
partir do caso especiacutefico de Ceciacutelia como a histoacuteria oral eacute importante para que a
complexidade da militacircncia poliacutetica da eacutepoca seja compreendida Afinal por meio dessa
metodologia torna-se possiacutevel perceber que nem todos os estudantes que estiveram
ligados ao movimento estudantil e agraves dissidecircncias do Partido Comunista em meio ao
arrocho da repressatildeo acompanharam a decisatildeo de partir para a luta armada tomada por
muitas dissidecircncias e nem mesmo resolveram retornar agrave luta paciacutefica travada pelo
Partido Comunista Logo a histoacuteria oral permite atraveacutes dos depoimentos dos
120
militantes daquele tempo observar que tal como Ceciacutelia muitos desses militantes
ficaram principalmente a partir do AI-5 agrave margem da atuaccedilatildeo poliacutetica apesar de natildeo
terem abandonado os ideais de esquerda
Quando foi presa em 1970 Ceciacutelia natildeo estava diretamente relacionada a nenhuma
organizaccedilatildeo esquerdista entretanto como ainda relacionava-se com muitos militantes
guerrilheiros e algumas vezes ateacute mesmo abrigando-os em sua casa tinha informaccedilotildees
consideradas relevantes para os agentes do DOI-CODIRJ o que veio a ocasionar sua
prisatildeo Como vivia de forma legalizada com famiacutelia e emprego Ceciacutelia tinha passado
juntamente com seu marido a ajudar seus companheiros clandestinos Sua casa na
eacutepoca localizada no bairro do Engenho de Dentro na zona norte do Rio de Janeiro
passou a servir como esconderijo para alguns amigos que diferentemente de Ceciacutelia e
Novaes haviam continuado militantes da Dissidecircncia Comunista da Guanabara mesmo
apoacutes sua opccedilatildeo pela luta armada Entre os amigos que receberam guarida em sua casa
estavam Franklin Martins e Fernando Gabeira ambos envolvidos no sequestro do
embaixador norte-americano
Gabeira inclusive esteve hospedado na casa do casal logo apoacutes a libertaccedilatildeo do
referido embaixador sequestrado em setembro de 1969 Por conta disso em agosto de
1970 Ceciacutelia Coimbra e seu marido Joseacute Novaes foram denunciados e presos
[] eu ajudava muito esses companheiros porque eu tinha vida legal eu jaacute
era professora tinha casa tinha filho e meu marido era professor de
Filosofia entatildeo a nossa casa era onde as pessoas se escondiam passavam
uma noite passavam dias escondidos Por exemplo o pessoal do Movimento
estudantil o Franklin Martins o Fernando Gabeira [] todos eles passaram
por laacute entatildeo a gente ajudava muito [] Em 1969 o pessoal do MR-8 que
eram companheiros nossos amigos e tal vieram nos procurar para perguntar
se noacutes poderiacuteamos dar um apoio a um ato a uma accedilatildeo como se dizia na
eacutepoca a uma accedilatildeo que ia acontecer Mas a gente natildeo sabia que era o
sequestro do embaixador E aiacute depois de um tempo a gente ficou com o
121
Fernando Gabeira [] Eacute oacutebvio que depois a gente soube porque foi depois
que eles entregaram o embaixador que eles se esconderam laacute em casa E aiacute a
televisatildeo dava e a gente sacou que o Gabeira estava ali com a gente porque
natildeo tinha como guardar seguranccedila porque jaacute estava na televisatildeo a cara de
todos eles E a gente guardou ele laacute A gente soube que ele tinha participado
do sequestro do embaixador e conversaacutevamos muito sobre isso Ele ficou
algum tempo laacute em casa e depois saiu Um tempo depois a gente foi
denunciado a casa estava sendo observada e a gente natildeo sabia []
(Coimbra 30 nov 2004)
Ceciacutelia e Joseacute Novaes apoacutes terem a casa onde moravam cercada por agentes do
DOPSRJ foram para laacute levados e laacute permaneceram por dois dias No DOPS Ceciacutelia
ficou sob interrogatoacuterio por um dia e meio para que esclarecesse a origem de um
documento encontrado no interior de sua casa No segundo dia de prisatildeo foi levada para
o presiacutedio feminino Satildeo Judas Tadeu localizado no proacuteprio preacutedio do DOPSRJ Apoacutes
permanecerem dois dias e meio no DOPS Ceciacutelia e Novaes foram transferidos para o
DOI-CODIRJ
Ceciacutelia Coimbra ficou cerca de trecircs meses presa no DOI-CODIRJ sendo
libertada em novembro de 1970 Natildeo foi transferida para nenhum outro presiacutedio sendo
libertada diretamente do DOI-CODIRJ por meio da menagem conforme analisado no
primeiro capiacutetulo Sendo assim uma vez que natildeo foi constatado nenhum envolvimento
direto de Ceciacutelia com alguma accedilatildeo ldquosubversivardquo ela estava impedida de sair da cidade
ateacute a data de seu julgamento e durante esse iacutenterim teve que comparecer ao DOI-
CODIRJ regularmente para se apresentar e responder ao Inqueacuterito Policial Militar
(IPM)
Na eacutepoca da entrevista Ceciacutelia aleacutem de vice-presidente do GTMNRJ lecionava
no curso de Psicologia da UFF Atualmente continua com essas mesmas atividades
poreacutem no GTNMRJ ocupa hoje o cargo de presidente
122
12 A nova esquerda brasileira
Para melhor entender as memoacuterias dos ex-prisioneiros poliacuteticos aqui entrevistados
eacute importante caracterizar as organizaccedilotildees de esquerda nas quais os seis militavam
quando foram presos no DOI-CODIRJ Afinal a opccedilatildeo de atuar atraveacutes de certas
organizaccedilotildees estaacute diretamente relacionada com a percepccedilatildeo de mundo que cada um
tinha e tambeacutem com a ousadia a coragem as frustraccedilotildees por que passaram e com tantos
outros sentimentos e sensaccedilotildees que certamente influiacuteram diretamente na construccedilatildeo da
memoacuteria de cada um desses indiviacuteduos sobre o periacuteodo militar
Como jaacute destacamos ao traccedilarmos o perfil dos entrevistados as organizaccedilotildees em
que os estudantes Antocircnio Leite Fernando Palha Dulce Pandolfi e Ana de Miranda
militavam ao serem presos eram o PCBR e a ALN grupos poliacuteticos de esquerda ligados
ao combate armado Jaacute Padre Maacuterio era assistente da ACO e da JOC ndash associaccedilotildees
criadas para atender demandas de jovens e adultos trabalhadores e catoacutelicos Ceciacutelia
Coimbra era a uacutenica que natildeo era diretamente ligada a alguma organizaccedilatildeo na eacutepoca de
sua prisatildeo mas sua participaccedilatildeo anterior na Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-
GB) influenciou de forma indireta em sua prisatildeo e por isso merece ser aqui
considerada A partir disso analisa-se nesta seccedilatildeo de trabalho o PCBR a ANL a JOC a
ACO e a Dissidecircncia Comunista da Guanabara que passou a chamar-se MR-8
Diferentemente da JOC e da ACO que eram associaccedilotildees ligadas ao trabalho
social feito pela Igreja Catoacutelica o PCBR a ANL a DI-GBMR-8 faziam parte do que
vinha sendo nomeado desde a deacutecada de 1960 de nova esquerda brasileira Essa nova
esquerda era formada pelas dissidecircncias do Partido Comunista surgindo como forma de
buscar caminhos alternativos para a transformaccedilatildeo social e segundo Maria Paula
Arauacutejo em A utopia fragmentada (2000) natildeo era um fenocircmeno tipicamente brasileiro
123
ocorrendo concomitantemente em outras partes do mundo como Alemanha Franccedila
Itaacutelia Estados Unidos e Meacutexico 30
As organizaccedilotildees desta nova esquerda brasileira aleacutem de serem marcadas pelo
signo da dissidecircncia e pela busca de caminhos alternativos possuiacuteam outras ideias em
comum Havia entre elas uma forte desconfianccedila em relaccedilatildeo agraves formas tradicionais de
atuaccedilatildeo e representaccedilatildeo poliacuteticas jaacute que os tradicionais partidos comunistas na
avaliaccedilatildeo desses militantes eram travados por complicados aparatos burocraacuteticos Em
oposiccedilatildeo a essa linha dita ldquoconservadorardquo valorizaram a accedilatildeo revolucionaacuteria imediata
Aleacutem disso a maioria recusava a alianccedila com ldquofraccedilotildees das classes dominantesrdquo forma
como viam o Movimento Democraacutetico Brasileiro (MDB) na eacutepoca uacutenico partido de
oposiccedilatildeo consentido pela ditadura militar Enquanto o PCB continuava mantendo o
programa de via paciacutefica para o socialismo a dita nova esquerda defendia a luta armada
como a principal forma de atuaccedilatildeo naquele momento apesar de divergirem entre si
sobre as estrateacutegias a seguir 31
As divergecircncias internas no PCB atingiram o aacutepice por ocasiatildeo dos preparativos
para o VI Congresso do partido convocado para dezembro de 1967 Os debates acerca
das Teses para Discussatildeo veiculadas na Voz Operaacuteria publicaccedilatildeo clandestina do
Comitecirc Central do PCB causaram muita polecircmica Essas Teses propunham que a
derrota da ditadura deveria ser alcanccedilada por meio da alianccedila com setores progressistas
incluindo a burguesia e da participaccedilatildeo do PCB na poliacutetica institucional reafirmando a
opccedilatildeo pelo caminho paciacutefico para a revoluccedilatildeo social Tais Teses geraram uma total
insatisfaccedilatildeo dos setores oposicionistas do PCB que se revoltaram contra o Comitecirc
Central do chamado Partidatildeo Assim sem a participaccedilatildeo dos dissidentes internos o
PCB realizou o seu VI Congresso e reafirmou a ideia trazida pelas Teses
30
Para mais informaccedilotildees ver Arauacutejo 2000 35-72 31
Para mais informaccedilotildees ver Aaratildeo Reis Saacute 2006 15
124
Pelos jornais da grande imprensa os dissidentes souberam do Congresso e de suas
resoluccedilotildees dentre as quais a que expulsava do partido grandes lideranccedilas da Corrente
Revolucionaacuteria Esta corrente do Partidatildeo divergia de seu Comitecirc Central liderado por
Luiacutes Carlos Prestes e havia se organizado nacionalmente sob a denominaccedilatildeo de
Corrente Revolucionaacuteria Entre suas grandes lideranccedilas expulsas a partir das resoluccedilotildees
do VI Congresso do PCB estavam Carlos Marighella liacuteder da Corrente em Satildeo Paulo
Maacuterio Alves liacuteder em Minas Gerais Jacob Gorender liacuteder no Rio Grande do Sul e
Apolocircnio de Carvalho lideranccedila no antigo Estado do Rio de Janeiro32
Dessa forma em 1968 os principais membros da Corrente Revolucionaacuteria
estavam definitivamente afastados do PCB e juntamente com os militantes que os
seguiram se organizaram e formaram outras organizaccedilotildees poliacuteticas o PCBR e a ALN
Os liacutederes Apolocircnio de Carvalho Jacob Gorender e Maacuterio Alves formaram o Partido
Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR) partido clandestino de esquerda em que
Antocircnio Leite militava ao ser preso e o liacuteder Carlos Marighella fundou a Accedilatildeo
Libertadora Nacional (ALN) organizaccedilatildeo clandestina de esquerda adotada por Dulce
Pandolfi Fernando Palha e Ana Batista
Por outro lado existia outra vertente de divergecircncias internas do PCB as
chamadas Dissidecircncias mais conhecidas pela sigla DI formadas basicamente por
setores estudantis Existiam dissidecircncias em vaacuterios estados brasileiros mas seria a da
Guanabara onde Ceciacutelia Coimbra militou anos antes de ser presa que alcanccedilaria maior
destaque no cenaacuterio poliacutetico e estudantil da deacutecada de 1960
32
Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009
125
Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-GB)
As Dissidecircncias Universitaacuterias surgiram no periacuteodo preacute-1964 em meio a diversas
divergecircncias que abalaram o PCB principalmente em suas bases universitaacuterias Em
1964 esses estudantes divergentes se agruparam e comeccedilaram a reunir militantes de
diferentes universidades a fim de articular posiccedilotildees poliacuteticas que natildeo se afinavam com o
que as direccedilotildees do partido haviam estabelecido ndash no jargatildeo comunista eram as
chamadas ldquofraccedilotildeesrdquo As ldquofraccedilotildeesrdquo eram de acordo com o estatuto proibidas dentro do
partido logo eram executadas secretamente A ldquofraccedilatildeordquo da Guanabara foi inicialmente
constituiacuteda por estudantes comunistas das faculdades de filosofia e de direito hoje
pertencentes agrave UFRJ
Em 1965 as divergecircncias entre os dissidentes e a direccedilatildeo do PCB na Guanabara
comeccedilaram a se mostrar evidentes A orientaccedilatildeo do partido era para que seus militantes
fizessem campanha para o candidato a governador da Guanabara Francisco Negratildeo de
Lima indicado pela alianccedila PTB-PSD considerada de oposiccedilatildeo ao regime militar Com
a crescente radicalizaccedilatildeo do movimento estudantil a Dissidecircncia foi ganhando forccedila
Nas eleiccedilotildees parlamentares de 1966 apesar da orientaccedilatildeo do Partidatildeo para que sua
militacircncia votasse em determinados candidatos os dissidentes da Guanabara resolveram
fazer campanha pelo voto nulo ocasionando o rompimento definitivo entre os dois A
antiga ldquofraccedilatildeordquo passaria a ser a Dissidecircncia Comunista da Guanabara uma nova
organizaccedilatildeo independente com orientaccedilatildeo para a luta armada e com ampla influecircncia
no movimento estudantil carioca 33
Entretanto em 1967 a Dissidecircncia Comunista da Guanabara enfrentaria uma
grave crise poliacutetica interna Naquele momento muitos militantes da organizaccedilatildeo
apresentavam posiccedilotildees divergentes sobre quais rumos ela deveria trilhar Alguns
33
Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009
126
achavam que a Dissidecircncia deveria se integrar agrave Corrente Revolucionaacuteria que ainda
estava lutando internamente para mudar o PCB outros almejavam consolidar a
Dissidecircncia Comunista da Guanabara de forma a tornaacute-la uma organizaccedilatildeo nacional
reunindo nela dissidecircncias que ainda deveriam se desvincular do Partidatildeo e um terceiro
grupo a se juntar ao Partido Comunista do Brasil (PC do B) 34
Afinal a partir do V Congresso do PCB realizado em setembro de 1960 sob
influecircncia da revisionismo aprovado no XX Congresso do Partido Comunista Sovieacutetico
tinha sido aprovada uma nova resoluccedilatildeo poliacutetica para o partido Esta apesar da
resistecircncia dos opositires internos que seguiam a linha de pensamento marxista-
leninista modificava o programa do PCB tornando a nova taacutetica do partido a conquista
de um governo nacionalista e democraacutetico por meio de um processo eleitoral e da
pressatildeo de massas excluindo assim a via armada de seu programa Dessa forma foram
afastados da direccedilatildeo do PCB a maioria de seus opositores e eleito um Comitecirc Central
composto em grande parte por destacados revisionistas como Luiacutes Carlos Prestes
Logo em 18 de fevereiro de 1962 a maior parte dos comunistas que se opunham agrave nova
linha do PCB se separaram do partido e atraveacutes de uma Conferecircncia Extraordinaacuteria
aprovaram um programa que defendia a estrateacutegia chinesa de guerra popular
prolongada se aproximando do maoiacutesmo e adotaram a sigla PC do B (Partido
Comunista do Brasil) Em 1969 o PC do B deflagrou na regiatildeo de Tocantins um foco
guerrilheiro que ficou conhecido como Guerrilha do Araguaia esta foi neutralizada
pelos militares no final de 1973 atraveacutes do extermiacutenio de grande parte dos militantes
envolvidos
Em 1967 um ano depois de se tornar independente a resoluccedilatildeo para a crise
interna da Dissidecircncia Comunista da Guanabara foi o seu desmembramento Apoacutes este
34
Para mais informaccedilotildees ver Aaratildeo Reis 1990 e Ridenti 1993
127
desmembramento e duas conferecircncias internas realizadas em 1968 a Dissidecircncia
Comunista da Guanabara consolidou-se novamente como organizaccedilatildeo autocircnoma tendo
suas lideranccedilas agrave frente das grandes manifestaccedilotildees estudantis ndash que chegavam ao auge
de mobilizaccedilatildeo ndash e conquistando espaccedilo no cenaacuterio nacional Com o seu crescimento
junto ao movimento estudantil a DI-GB se ampliou notavelmente Apoacutes a decretaccedilatildeo
do AI-5 que tornava ilegal o movimento poliacutetico-estudantil a DI-GB organizou em
1969 uma nova conferecircncia reafirmando o seu empenho revolucionaacuterio de caraacuteter
comunista assumindo oficialmente a partir de entatildeo sua opccedilatildeo pela luta armada
Nessa eacutepoca Ceciacutelia Coimbra jaacute havia saiacutedo da organizaccedilatildeo e natildeo participava de
nenhum outro grupo de esquerda apesar de manter contato com muitos companheiros
que continuaram na militacircncia Afinal como abordado durante a anaacutelise de sua
trajetoacuteria Ceciacutelia preferiu se desligar por natildeo concordar nem com a poliacutetica paciacutefica do
entatildeo Partidatildeo e nem com a luta armada das demais organizaccedilotildees inclusive da
Dissidecircncia Comunista da Guanabara pois segundo ela achava que estas estavam
muito desvinculadas da sociedade e por isso natildeo teriam ecircxito
[] eu achava que natildeo era por aiacute eu discordava muito da questatildeo da luta
armada mas eu tambeacutem discordava da posiccedilatildeo do Partido Comunista que
era a favor do caminho paciacutefico a favor do caminho institucional parece
muito o PT de hoje a questatildeo da luta institucional que natildeo era pegando em
armas que natildeo era pela luta armada Eu natildeo concordava nem com um nem
com outro porque o pessoal da luta armada estava totalmente desvinculado
da sociedade brasileira entatildeo eu me afastei mas eu continuei com muito
contato com vaacuterios companheiros e aiacute comeccedilou 67-68 [] (Coimbra 30
nov 2004)
Em setembro de 1969 a Dissidecircncia Comunista da Guanabara juntamente com a
ALN elaborou e promoveu o sequestro do embaixador norte-americano no Brasil
128
Charles Burke Elbrick A accedilatildeo teve ecircxito e os envolvidos conseguiram trocar o
embaixador por quinze prisioneiros poliacuteticos entre eles importantes liacutederes estudantis
da antiga DI-GB Durante esse sequestro conforme explicado anteriormente os
militantes da entatildeo Dissidecircncia resolveram mudar o nome da organizaccedilatildeo para
Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro (MR-8) assinando esse novo nome no
manifesto entregue agrave imprensa
A mudanccedila de Dissidecircncia Comunista da Guanabara para MR-8 era na realidade
uma provocaccedilatildeo agrave ditadura Alguns meses antes do sequestro do embaixador americano
a repressatildeo havia desarticulado uma organizaccedilatildeo poliacutetica e anunciado que tinha
destruiacutedo o grupo terrorista Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro Poreacutem de acordo
com Alberto Berquoacute em O sequumlestro dia-a-dia (1997) o oacutergatildeo repressor que havia
prendido aqueles militantes o CENIMAR inventou esse nome pois o grupo capturado
era na verdade a Dissidecircncia do Estado do Rio de janeiro que a rigor se
autodenominava apenas como Organizaccedilatildeo Os militares entatildeo para anunciar a notiacutecia
na imprensa causando um maior impacto atribuiacuteram agrave Organizaccedilatildeo o nome de MR-8
fazendo referecircncia agrave data em que o guerrilheiro socialista Ernesto ldquoCherdquo Guevara havia
sido preso pela Central Intelligence Agency (CIA) na Boliacutevia Dessa forma ao
utilizarem o nome de MR-8 os militantes da ateacute entatildeo Dissidecircncia Comunista da
Guanabara estariam anunciando pertencerem agrave mesma organizaccedilatildeo que os militares
divulgaram meses antes jaacute estar aniquilada desmoralizando-os publicamente 35
Algum tempo depois do sequestro do embaixador a maioria de seus envolvidos
ou foram presos ou mortos pela repressatildeo Fernando Gabeira um dos militantes do MR-
8 envolvidos nessa accedilatildeo era conhecido de Ceciacutelia Coimbra e de seu marido desde a
eacutepoca em que militavam na Dissidecircncia Comunista da Guanabara Assim apoacutes a troca
35
Para mais informaccedilotildees sobre a mudanccedila de nome da Dissidecircncia Comunista da Guanabara para MR-8
ver Berquoacute 1997 72-73
129
do embaixador pelos prisioneiros poliacuteticos Gabeira por estar sendo procurado acabou
se escondendo na casa do casal fato que veio a ocasionar posteriormente a prisatildeo tanto
de Ceciacutelia quanto de seu marido nas dependecircncias do DOI-CODIRJ
Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR)
O partido clandestino pelo qual Antocircnio Leite militava ao ser preso o PCBR
havia sido criado em abril de 1968 a partir da expulsatildeo de liacutederes da Corrente
Revolucionaacuteria do PCB conforme mencionado anteriormente Um dos liacutederes e
tambeacutem fundador do PCBR Jacob Gorender na obra Combate nas Trevas a esquerda
brasileira (1999 111-116) caracteriza-o como marxista tendo por estrateacutegia de accedilatildeo a
combinaccedilatildeo entre guerrilha rural e trabalho de massas nas cidades com vistas agrave
formaccedilatildeo de um Governo Popular Revolucionaacuterio que abriria caminho para a
revoluccedilatildeo socialista
A partir dessa ideia de trabalho com as massas nas cidades o PCBR buscou
integrar-se agraves lutas estudantis de 1968 por meio das quais Antocircnio Leite de Carvalho
conheceu melhor a ideologia e as lideranccedilas do partido e posteriormente resolveu
tornar-se seu militante Aleacutem disso desenvolveu ainda algum trabalho nas faacutebricas nas
aacutereas rurais e promoveu entre os anos de 1969 e 1970 algumas accedilotildees armadas como
assaltos a bancos e roubos de veiacuteculos a fim de financiar a atuaccedilatildeo do partido Contudo
o PCBR sofreu com sucessivas prisotildees de seus liacutederes e integrantes restringindo de tal
forma o seu poder de accedilatildeo que logo no iniacutecio da deacutecada de 1970 jaacute se encontrava quase
totalmente desarticulado
O precoce fracasso do PCBR segundo a avaliaccedilatildeo feita por Antocircnio ainda
durante sua primeira entrevista (12 set 2002) deve-se ao fato da estrateacutegia de revoluccedilatildeo
pregada pelo partido ser utoacutepica Afinal para Antocircnio os militantes e liacutederes do PCBR
130
inclusive ele proacuteprio acreditavam que com algumas poucas accedilotildees urbanas isoladas
conseguiriam o apoio da grande massa ao movimento revolucionaacuterio e tomariam o
poder Por conseguinte entende que foi justamente esse isolamento a causa da grande
derrota do PCBR como se pode conferir no trecho abaixo
Era uma grande utopia faziacuteamos duas accedilotildees urbanas na cidade e achaacutevamos
que essas accedilotildees seriam capazes de fazer as pessoas aderirem ao nosso
movimento e conseguiriacuteamos o apoio da grande massa [] Isso nunca iria
acontecer porque eram movimentos basicamente de conquistas quer dizer
que trabalhavam isolados e foi o isolamento a causa da nossa grande derrota
(Carvalho 12 Set 2002)
Entretanto eacute importante destacar que esta avaliaccedilatildeo soacute pocircde ser feita a partir do
presente quando jaacute se sabia que a luta armada havia sido derrotada muito antes da
ditadura terminar e que a democracia havia se tornado uma realidade Afinal logo apoacutes
o AI-5 a luta armada e a forma de atuar do PCBR representavam para seus militantes
uma forte possibilidade de derrubar a ditadura militar Eles natildeo se submeteriam a
arriscar suas vidas em prol de uma luta na qual natildeo tivessem total convicccedilatildeo Logo
percebe-se um anacronismo na avaliaccedilatildeo que Antocircnio faz sobre sua luta naquele
passado o que eacute muito comum entre as memoacuterias construiacutedas por ex-guerrilheiros da
eacutepoca conforme destacado pela revolta de um dos que concederam seus depoimentos a
Alzira Alves de Abreu em Os anos de chumbo memoacuteria da guerrilha (1998)
B [nome atribuiacutedo ao ex-guerrilheiro pela autora para preservar sua
identidade] comeccedilou chamando a atenccedilatildeo para o fato de que a mamoacuteria
daquela fase histoacuterica eacute muito precaacuteria ldquoNa verdade ela foi muito mal
construiacuteda acabou virando um folclore e acabou se contando a histoacuteria desse
periacuteodo de traacutes para frente ndash quer dizer sabendo que a luta armada natildeo deu
certo vamos contar por que ela natildeo deu certo Na eacutepoca em que ela ocorreu
ela era um campo de possibilidades natildeo era mais do que isso Mas hoje jaacute se
131
comeccedila a falar desse movimento para se mostrar o fim dessa histoacuteria[]
(Abreu 1998 31)
Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN)
A organizaccedilatildeo em que militavam Dulce Pandolfi Fernando Palha e Ana de
Miranda no momento de suas prisotildees a ALN foi fundada por Carlos Marighella em
fevereiro de 1968 depois de deixar o PCB Marighella havia sido expulso do Partidatildeo
sob a alegaccedilatildeo de ter viajado para Havana em Cuba sem a autorizaccedilatildeo do Comitecirc
Central do partido para participar da conferecircncia da Organizaccedilatildeo Latino-Americana de
Solidariedade (OLAS) ndash organizaccedilatildeo que tinha como objetivo estender a revoluccedilatildeo
armada por toda a Ameacuterica Latina nos moldes da Revoluccedilatildeo Cubana de 1959
Em apoio a Marighella apoacutes sua expulsatildeo do PCB as bases de Satildeo Paulo tambeacutem
se desligaram do partido e formaram o Agrupamento Comunista de Satildeo Paulo O
Pronunciamento desse grupo em fevereiro de 1968 fundou oficialmente a Accedilatildeo
Libertadora Nacional (ALN) muito embora o primeiro quadro de militantes da
organizaccedilatildeo tenha ido treinar em Cuba ainda em setembro de 1967 36
O nome Accedilatildeo Libertadora Nacional seria uma referecircncia agrave Alianccedila Nacional
Libertadora organizaccedilatildeo poliacutetica criada em 1935 composta por setores de diversas
correntes ideoloacutegicas basicamente a fim de lutar contra a influecircncia fascista no Brasil
Nesse mesmo sentido a ALN tambeacutem visava aleacutem da luta socialista a libertaccedilatildeo
nacional buscando adquirir igual ecircxito na congregaccedilatildeo de grande parte da esquerda
brasileira em torno de seus objetivos como ANL havia conseguido durante a deacutecada de
30 No entanto diferentemente da Alianccedila Nacional Libertadora a Accedilatildeo Libertadora
36
Para mais informaccedilotildees ver Lima 2007 31
132
Nacional natildeo era configurada por uma poliacutetica de alianccedilas mas pelo combate pela accedilatildeo
direta 37
Quanto ao programa da organizaccedilatildeo a ALN tinha por estrateacutegia maior a guerrilha
rural embora sua tarefa taacutetica estivesse concentrada nas cidades onde a maior parte de
suas accedilotildees ocorria Essas accedilotildees urbanas eram consideradas pela organizaccedilatildeo como um
meio de apoio para propaganda poliacutetica para obtenccedilatildeo de fundos (atraveacutes de
expropriaccedilotildees como assaltos a bancos) para recrutamento de quadros para a guerrilha e
para ataques estrateacutegicos ao inimigo Aleacutem disso a ALN permitia a existecircncia de
pequenos grupos com total independecircncia taacutetica desde que estivessem subordinados agrave
sua estrateacutegia geral Dessa forma sua estrutura pode ser entendida como horizontal sem
hierarquias jaacute que segundo Denise Rollemberg em Esquerdas revolucionaacuterias e luta
armada (2003) o militante da ALN que se considerasse capaz de fazer accedilotildees era
incentivado a agir e natildeo a ficar esperando a orientaccedilatildeo de um poder centralizado Afinal
uma das criacuteticas da antiga Corrente Revolucionaacuteria do PCB da qual o liacuteder da ALN
Marighella foi integrante era justamente sobre a centralizaccedilatildeo e como esta emperrava a
atuaccedilatildeo do partido Dessa forma a ALN atuava por meio de diversos grupos
multiplicando suas accedilotildees
A partir disso percebe-se como o sequestro do aviatildeo da Companhia Cruzeiro do
Sul efetuado pelo pequeno grupo que Fernando Palha integrava pocircde ser executado
dentro da ALN assim como os inuacutemeros assaltos a bancos e carros-fortes e os
sequestros a embaixadores em que outros pequenos grupos ligados agrave ALN estiveram
envolvidos Dessa forma nota-se tambeacutem como e por que a ALN se tornou a maior
organizaccedilatildeo de luta armada da eacutepoca e por conseguinte Marighella e seus demais
militantes os mais procurados pela ditadura militar 38
37
Para mais informaccedilotildees ver Lourenccedilo 2005 191 38
Para mais informaccedilotildees ver Gorender 1999
133
No trecho seguinte retirado da entrevista de Fernando Palha destaca-se como
muitos desses pequenos grupos da ALN tinham espaccedilo para planejar e administrar suas
proacuteprias accedilotildees sem se desligarem da Accedilatildeo
Eu era da ALN Accedilatildeo Libertadora Nacional era a maior organizaccedilatildeo de luta
armada que tinha na eacutepoca A Jane [Jessie Jane] por exemplo veio para caacute
para Niteroacutei jaacute fugida de Satildeo Paulo onde prenderam o pai prenderam a matildee
a famiacutelia dela toda sabe O pai natildeo era de nenhuma organizaccedilatildeo mas dava
guarida [] ele era um cara politizado e ela tambeacutem e quando ela veio para
caacute para Niteroacutei ela entrou para o nosso grupo de estudo Estudaacutevamos o
marxismo guerrilhas enfim aprendendo um pouco Aiacute a gente pensando
em como soltar eles [os pais de Jessie Jane] surgiu a ideacuteia de sequestrar o
aviatildeo O sequestro do aviatildeo foi tranquilo difiacutecil foi a negociaccedilatildeo da troca
dos passageiros pelos presos que a gente queria (Freire 28 jun 2004)
Essas variadas e espalhadas accedilotildees da ALN repercurtiram de forma negativa entre
os militares dos oacutergatildeos repressivos Afinal a atuaccedilatildeo descentralizada da ALN permitia
que uma grande quantidade de accedilotildees ldquoterroristasrdquo fossem atribuiacutedas ao movimento
tornando-o aos olhos dos agentes da repressatildeo mais ameaccedilador e perigoso agrave
manutenccedilatildeo do regime ditatorial Essa percepccedilatildeo dos militares pode ter causado reflexos
no cotidiano prisional de militantes ligados direta ou indiretamente agrave referida
organizaccedilatildeo como Dulce Fernando Ana e Ceciacutelia39
ndash considerada militante indireta
por ter escondido em sua casa um dos atores do sequestro do embaixador norte-
americano accedilatildeo conjunta entre MR-8 e ALN
39
No terceiro capiacutetulo a anaacutelise da memoacuteria dos seis entrevistados (Antocircnio Dulce Fernando Padre
Maacuterio Ana e Ceciacutelia) se concentra no cotidiano prisional vivido no DOI-CODI carioca
134
Juventude Operaacuteria Catoacutelica (JOC) amp Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO)
A Juventude Operaacuteria Catoacutelica a JOC uma das organizaccedilotildees de que Padre Maacuterio
era assistente no momento de sua prisatildeo surge no Brasil em iniacutecio dos anos 1930
ganhando forccedila apenas a partir de fins de 1940 A JOC objetivava melhorar a vida do
jovem trabalhador atraveacutes de uma accedilatildeo evangelizadora e formadora de uma consciecircncia
criacutetica Eacute a responsaacutevel pela criaccedilatildeo do meacutetodo pedagoacutegico ldquoVer-Julgar-Agirrdquo
ensinando seus jovens a ver o problema a julgaacute-lo agrave luz do Evangelho e a agir para
transformar sua condiccedilatildeo de classe trabalhadora explorada
A JOC que apresentava uma posiccedilatildeo mais conservadora ateacute meados da deacutecada de
1950 a partir do golpe de 1964 assume outra orientaccedilatildeo poliacutetica de caraacuteter mais
progressista realizando uma reflexatildeo mais profunda no que se refere agrave condiccedilatildeo da
classe trabalhadora do paiacutes e da Ameacuterica Latina o que ocasiona uma maior repressatildeo
por parte do governo ditatorial brasileiro Atraveacutes da JOC a criaccedilatildeo da Accedilatildeo Catoacutelica
Operaacuteria (ACO) ndash outra organizaccedilatildeo de que Padre Maacuterio tambeacutem participava no
momento de sua prisatildeo ndash foi incentivada comeccedilando a ser organizada em fins da
deacutecada de 1950 em funccedilatildeo do grande nuacutemero de militantes que haviam chegado agrave idade
adulta mas desejavam continuar a atuar por meio da organizaccedilatildeo
A ACO nasce entatildeo da Liga Operaacuteria Catoacutelica (LOC) que era um movimento
destinado aos adultos ligados agrave Igreja e inicialmente com forte preocupaccedilatildeo
assistencialista assumindo gradativamente um vieacutes poliacutetico e uma identidade de classe
Assim a partir da LOC a ACO brasileira surge de fato em 1962 apresentando-se como
uma continuidade da JOC para que os jovens trabalhadores pudessem quando adultos
permanecerem a atuar politicamente Muitos eram os pontos em comum dos dois
movimentos que vatildeo desde os mesmos participantes que migravam de um para o outro
ao atingirem a idade adulta como a aplicaccedilatildeo do mesmo meacutetodo de accedilatildeo ldquoVer-Julgar-
135
Agirrdquo Entretanto segundo Alejandra Luisa Magalhatildees Estevez em sua dissertaccedilatildeo de
mestrado (2008) O movimento dos trabalhadores catoacutelicos a Juventude Operaacuteria
Catoacutelica (JOC) e a Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) diferentemente da JOC que a
partir de 1969 com a prisatildeo de muitos de seus integrantes ndash como o proacuteprio Padre
Maacuterio Prigol ndash foi perdendo forccedilas e acabou desaparecendo a atuaccedilatildeo da ACO durante
o periacuteodo militar caracterizou-se pelo enfrentamento constante com a hierarquia
eclesiaacutestica e com os proacuteprios militares
Dessa forma Padre Maacuterio que antes de ser preso em 1970 era assistente tanto da
JOC quanto da ACO apoacutes sua prisatildeo deu continuidade ao seu trabalho junto agrave ACO o
que ainda faz atualmente Afinal a ACO permanece em atividade ateacute os dias de hoje
poreacutem sob o nome de Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos (MTC)
Logo mesmo com diferentes atuaccedilotildees no cenaacuterio poliacutetico da eacutepoca as
organizaccedilotildees acima tratadas nas quais os ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados
militavam direta ou indiretamente tinham por confluecircncia algum tipo de manifestaccedilatildeo
em oposiccedilatildeo agrave ditadura militar Entretanto apesar dessa face comum ser o motivo
principal de suas prisotildees as diferenccedilas na forma de agir de suas organizaccedilotildees pode ter
se refletido na intensidade das violecircncias a que foram submetidos no DOI-CODIRJ
Diante disso no capiacutetulo seguinte a partir da anaacutelise das memoacuterias dos seis
entrevistados essa relaccedilatildeo entre a organizaccedilatildeo de esquerda do militante e o seu
tratamento na prisatildeo seraacute abordada assim como os demais aspectos que caracterizavam
o cotidiano vivido no DOI-CODIRJ durante o ano de 1970
136
Capiacutetulo 3 ndash O espaccedilo e o cotidiano do DOI-CODI carioca
A lua
Tal qual a dona de um bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel
E nuvens
Laacute no mata-borratildeo do ceacuteu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco
Louco
O becircbado com chapeacuteu-coco
Fazia irreverecircncias mil
Praacute noite do Brasil
Meu Brasil
Aldir Blanc e Joatildeo Bosco
(O Becircbado e a Equilibrista 1979)
137
1 O que sofre e o que resiste
Os depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ fontes essenciais
para esta pesquisa encontram aqui um desfecho primordial Finalmente uma de suas
especificidades mais importantes eacute aqui trabalhada a possibilidade que trazem de
acessar desde os aspectos mais subjetivos do dia-a-dia do DOI-CODIRJ aos mais
triviais Diante disso neste capiacutetulo torna-se possiacutevel uma caracterizaccedilatildeo da rotina
institucional ali vivida pelos prisioneiros em 1970 trazendo agrave tona detalhes e
sentimentos que compunham esse cotidiano que haacute deacutecadas jaacute natildeo existe mais Essa
faccedilanha natildeo seria possiacutevel atraveacutes de qualquer outra fonte senatildeo a oral Somente as
memoacuterias trazidas nas narrativas orais quando devidamente trabalhadas satildeo capazes de
aproximar-se das sensaccedilotildees e sentimentos vivenciados naquele passado amenizando a
sua corrosatildeo pelo tempo e as lacunas encontradas na histoacuteria da ditadura militar
Diante disso a memoacuteria eacute aqui tratada como material para a histoacuteria conforme
elucidado por Paul Ricoeur em A memoacuteria a histoacuteria e o esquecimento (2008) Nessa
mesma direccedilatildeo vai Fernando Catroga em seu artigo A representaccedilatildeo do ausente
memoacuteria e historiografia (2010) pelo qual busca entender a escrita da histoacuteria como um
rito de memoacuteria anaacutelogo ao ldquogesto de sepulturardquo Afinal a escrita da histoacuteria tem uma
funccedilatildeo anaacuteloga agrave do tuacutemulo e agrave dos ritos de recordaccedilatildeo ajudando tal como no trabalho
do luto a pagar as diacutevidas do presente com o passado que jaacute natildeo existe mais Essa
analogia mostra que se o tuacutemulo eacute o primeiro monumento dos mortos deixado para os
vivos a escrita da histoacuteria tambeacutem atua no sentido de lutar contra o esquecimento e a
degradaccedilatildeo que marcam a passagem do tempo Logo tal como acontece quando se
visita o tuacutemulo de um cemiteacuterio a escrita da histoacuteria sobre o cotidiano do DOI-
CODIRJ pretende contribuir para que agindo sobre os vivos esse passado se
transforme de ldquolugar de sepulturardquo para o de ldquogesto de sepulturardquo (Ricoeur 2008) Essa
138
analogia do tuacutemulo com a escrita da histoacuteria tem como principal ponto em comum a
construccedilatildeo do passado a partir de traccedilos e de representaccedilotildees que almejam situar no
tempo algo que natildeo existe mais O cotidiano do DOI-CODIRJ passa aqui a ser escrito
por meio da anaacutelise de vestiacutegios e representaccedilotildees apresentados nas memoacuterias de seis
dos seus ex-prisioneiros poliacuteticos tal como ocorre com a representaccedilatildeo memorial de
uma sepultura
Evidencia-se que as memoacuterias aqui trabalhadas especialmente por evocarem
fatos vividos pelas proacuteprias testemunhas estatildeo permeadas de razotildees subjetivas
normativas e pragmaacuteticas que satildeo condicionantes e geram efeitos incontrolaacuteveis
resultando em uma construccedilatildeo qualitativa seletiva e apaixonada do passado Daiacute a
importacircncia do olhar criacutetico do historiador sobre essas memoacuterias uma vez que a funccedilatildeo
deste eacute justamente inserir os aspectos criacuteticos objetivos e analiacuteticos da histoacuteria na
fluidez emoccedilatildeo e submissatildeo aos influxos da conjuntura caracteriacutesticos da memoacuteria
(Nora 1993)
Portanto eacute imperativo analisar criticamente essas memoacuterias sobre o cotidiano do
DOI-CODIRJ mesmo sabendo das dificuldades que envolvem essa accedilatildeo como bem
aponta Beatriz Sarlo em Tempo passado Cultura da memoacuteria e guinada subjetiva
(2007) Afinal satildeo depoimentos de viacutetimas cuja confiabilidade sobre as torturas sofridas
na prisatildeo natildeo soacute foi elemento constituinte da instalaccedilatildeo do regime democraacutetico como
ainda eacute responsaacutevel pela solidificaccedilatildeo de um princiacutepio de reparaccedilatildeo e justiccedila Poreacutem
deve-se antes de tudo encaraacute-los como discursos testemunhais pois seguem o modo
persuasivo caracteriacutestico do discurso e por conseguinte natildeo podem ser cristalizados
Afinal esses seis testemunhos satildeo feitos por narradores que buscam firmar no passado a
verdade do presente jaacute que a narrativa no presente tem uma inevitaacutevel hegemonia sobre
o passado conforme bem enuncia Sarlo no trecho abaixo
139
O presente da enunciaccedilatildeo eacute o ldquotempo de base do discursordquo porque eacute
presente o momento de se comeccedilar a narrar e esse momento fica inscrito na
narraccedilatildeo Isso implica o narrador em sua histoacuteria e a inscreve numa retoacuterica
da persuasatildeo (o discurso pertence ao modo persuasivo diz Ricoeur) Os
relatos testemunhais satildeo ldquodiscursordquo nesse sentido porque tecircm como
condiccedilatildeo um narrador implicado nos fatos que natildeo persegue uma verdade
externa no momento em que ela eacute enunciada Eacute inevitaacutevel a marca do
presente no ato de narrar o passado justamente porque no discurso o
presente tem genuiacutena hegemonia reconhecida como inevitaacutevel e os tempos
verbais do passado natildeo ficam livres de uma ldquoexperiecircncia fenomenoloacutegicardquo
do tempo presente da enunciaccedilatildeo ldquoO presente dirige o passado assim como
um maestro seus muacutesicosrdquo escreveu Italo Severo (Sarlo 2007 49)
Daiacute destaca-se novamente a importacircncia de considerar o tempo presente como
base do discurso das memoacuterias sobre o cotidiano do DOI-CODIRJ trabalhadas neste
capiacutetulo evocando mais uma vez a elucidativa expressatildeo preacutesent du passeacute de Robert
Frank (1999) O presente a partir de onde falam os seis entrevistados como ex-
prisioneiros poliacuteticos corresponde a um momento em que a democracia brasileira para a
maioria deles dava passos largos em direccedilatildeo a sua total magnitude o presente vivido no
raiar dos anos 2000 vinha se distanciando poliacutetica e socialmente do passado ditatorial
militar Quem presidia o paiacutes eram antigos opositores poliacuteticos do governo militar os
ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva que vinham
construindo garantias de reparaccedilatildeo aos que sofreram violaccedilotildees aos direitos humanos
durante o passado ditatorial
Estava em curso o reconhecimento dos mortos e desaparecidos poliacuteticos pelo
Estado brasileiro bem como a indenizaccedilatildeo agraves famiacutelias por intermeacutedio da Lei nordm 9140
de 1995 e a reparaccedilatildeo financeira aos males sofridos por aqueles presos ou perseguidos
na eacutepoca da ditadura militar garantida pela Lei nordm 10559 de 2002 Eram esses fatos
140
que compunham o cenaacuterio do presente vivido durante as entrevistas e obviamente
influenciaram diretamente a construccedilatildeo das narrativas dos ex-presos poliacuteticos sobre o
cotidiano do DOI-CODI carioca
Essas influecircncias acabaram em alguns casos direcionando suas narrativas para
os detalhes dos horrores a que foram submetidos e para as sequelas deixadas pelas
torturas daquele tempo a fim de natildeo suscitar duacutevidas sobre o merecimento agrave reparaccedilatildeo
oferecida pelo Estado Afinal o DOI-CODIRJ correspondeu ao espaccedilo onde esses
presos poliacuteticos viveram um dos cotidianos mais violentos de todo o periacuteodo em que
estiveram na prisatildeo Ao enfatizarem em detalhes o lado duro dessa rotina prisional os
entrevistados ambicionavam fortalecer a interpretaccedilatildeo vigente sobre seu papel de viacutetima
e ao mesmo tempo de resistente a um Estado ditatorial Ao procurarem conquistar a
entrevistadora os entrevistados viam-se envolvidos no processo de enquadramento da
memoacuteria sobre a ditadura militar brasileira no sentido atribuiacutedo por Michael Pollak
(1992) O objetivo entre outros era o de fortalecer perante a sociedade e o governo
uma memoacuteria que a eles conferisse o duplo lugar de resistente e de viacutetima e endossasse
a necessidade de reparaccedilotildees financeiras e simboacutelicas aos atingidos
A reparaccedilatildeo financeira aos violentados pela ditadura militar jaacute vinha acontecendo
na eacutepoca em que as entrevistas foram concedidas por meio das leis que implantaram a
Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos e a Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio
da Justiccedila citadas anteriormente e abordadas no segundo capiacutetulo Jaacute a reparaccedilatildeo
simboacutelica soacute comeccedilaria a ser de fato implantada alguns anos depois das entrevistas
principalmente com as Caravanas da Anistia a partir de abril de 2008 e mediante a
aprovaccedilatildeo da Comissatildeo da Verdade pelo Congresso Nacional em outubro de 2011 As
Caravanas da Anistia satildeo sessotildees puacuteblicas itinerantes de apreciaccedilatildeo de requerimentos de
anistia poliacutetica a perseguidos poliacuteticos da ditadura militar acompanhadas por atividades
141
educativas e culturais promovidas pela Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio da Justiccedila
Jaacute a Comissatildeo da Verdade teraacute como finalidade examinar e esclarecer graves violaccedilotildees
de direitos humanos praticadas entre os anos de 1946 e 1988 a fim de promover a
reconciliaccedilatildeo nacional com o seu passado histoacuterico
Eacute faacutecil perceber que os entrevistados em seus testemunhos-discursos acabam
atribuindo um sentido uacutenico agrave histoacuteria e conforme salienta Beatriz Sarlo (2007) ao
acumularem detalhes em suas narrativas produzem um modo realista-romacircntico pelo
qual atribuem sentidos a todos os detalhes mencionados somente pelo fato de incluiacute-los
no relato sem se sentirem na obrigaccedilatildeo de atribuir sentidos ou explicar as ausecircncias ali
tambeacutem apresentadas Dessa forma a anaacutelise aqui traccedilada procura trabalhar de forma
criacutetica no sentido de reconhecer a face realista dos detalhes descritos pelos narradores
e ao mesmo tempo a face romacircntica construiacuteda por eles de forma a fortalecer a
credibilidade e a veracidade de sua narraccedilatildeo Uma vez que diferentemente do que datildeo a
entender os entrevistados ao narrarem suas proacuteprias vidas a anaacutelise histoacuterica do
presente trabalho firma-se longe da utopia de uma narraccedilatildeo total capaz de descrever
todo o passado estudado reconhecendo a necessidade de operar com elipses
No entanto se por um lado os detalhes mencionados nos depoimentos devem ser
submetidos ao pensamento criacutetico histoacuterico por outro lado satildeo exatamente eles que
enriquecem a anaacutelise de um cotidiano jaacute que os detalhes trazidos pelos depoimentos
conseguem muitas vezes tornar a rotina do dia-a-dia que jaacute natildeo mais existe palpaacutevel
ao entendimento Eacute o que ocorre por exemplo com a disposiccedilatildeo espacial interna do
preacutedio-sede do DOI-CODIRJ fator que estaacute intrinsecamente relacionado ao cotidiano
prisional e que torna-se passiacutevel de caracterizaccedilatildeo atraveacutes dos detalhes contidos nos
depoimentos Assim mesmo natildeo sendo possiacutevel visitar o interior do edifiacutecio e nem ter
acesso a alguns registros documentais como fotos ou outros documentos eacute possiacutevel
142
contrapor as descriccedilotildees contidas nos depoimentos com a fachada do preacutedio que ainda
existe e construir uma percepccedilatildeo aproximada sobre o espaccedilo em que de certa forma
essas memoacuterias estatildeo ancoradas
2 Uma cartografia possiacutevel do ldquoCastelo do Terrorrdquo
Constatada essa forte relaccedilatildeo entre as memoacuterias dos ex-prisioneiros que ali
ficaram presos em 1970 com o espaccedilo interno do 1ordm BPE resolvi tentar ver de perto
como este era distribuiacutedo No entanto muitas dificuldades foram encontradas e
inviabilizaram o meu projeto inicial de contrapor o que restava do interior do edifiacutecio
que sediou o DOI-CODIRJ com as memoacuterias de seus ex-prisioneiros
Em 2003 a minha primeira tentativa de visitar o interior do preacutedio do 1ordm BPE foi
interrompida no momento em que apresentei o propoacutesito de minha visita o interesse em
ver o preacutedio do DOI-CODIRJ Percebi imediatamente que o ldquoassunto DOI-CODIrdquo
gerava um grande desconforto para aquele Batalhatildeo Talvez porque apesar do referido
Batalhatildeo natildeo ter tido relaccedilatildeo direta com o DOI-CODIRJ pois eram instituiccedilotildees
distintas o fato desse oacutergatildeo repressivo ter sido instalado em seu interior evoca uma
forte relaccedilatildeo que atualmente imprime uma imagem negativa para seus militares
Percebe-se assim que o 1ordm BPE quer apagar da memoacuteria social sua associaccedilatildeo ao DOI-
CODIRJ o que explica o fato de seus militares natildeo permitirem que eu prosseguisse
com a visita
No ano seguinte em novembro tentei pela segunda vez visitar o interior do dito
edifiacutecio Prevendo dificuldades para a visita utilizei como pretexto uma suposta
pesquisa sobre patrimocircnios histoacutericos do bairro Um primeiro-sargento que se
apresentou como graduado em histoacuteria acompanhou-me pelo paacutetio interno do
complexo Durante o passeio por este espaccedilo ele apontava de longe para os preacutedios que
143
ficavam ao redor inclusive para o que sediava o DOI-CODIRJ agrave esquerda e ao fundo
daquele paacutetio a ceacuteu aberto Ao referir-se ao local o sargento apontou de longe e disse
ldquoLaacute funciona o DOI-CODIrdquo deixando transparecer que ateacute aquele momento natildeo
existia uma nova serventia para aquele local e que a estrutura do DOI-CODI havia sido
preservada Nada mais quis falar alegando que natildeo poderia dar explicaccedilotildees mais
amplas sobre o assunto e que aleacutem do mais eu natildeo poderia me aproximar das
instalaccedilotildees que me interessavam
Esta segunda visita corroborou a minha sensaccedilatildeo anterior de que os militares
daquele Batalhatildeo natildeo queriam que este ficasse historicamente associado ao DOI-CODI
percebendo a imagem negativa que essa associaccedilatildeo poderia conferir-lhes tentando
evitar a manutenccedilatildeo do viacutenculo daquele preacutedio com a memoacuteria das torturas e mortes ali
executadas nos chamados ldquoanos de chumbordquo
Aleacutem disso esta visita trouxe-me um dado novo ao apresentar aquele preacutedio
como sendo o ldquoDOI-CODIrdquo no presente do indicativo o sargento deixou perceptiacutevel
um interesse interno em preservaacute-lo Afinal por que ateacute aquele momento mesmo o
DOI-CODI natildeo estando mais em atividade o seu espaccedilo natildeo havia sido utilizado para
nenhuma outra funccedilatildeo permanente Este interesse reflete talvez um forte orgulho
interno de importantes setores do Exeacutercito pelos feitos do DOI-CODI no sentido de
para alguns mais radicais ter sido esta instituiccedilatildeo uma das principais defensoras da
soberania e da ordem nacional na eacutepoca ameaccediladas pela subversatildeo
Apesar de tais empecilhos os detalhes relatados pelos entrevistados viabilizariam
uma aproximada cartografia espacial do interior do DOI-CODIRJ de 1970 quando eles
laacute estiveram Essa cartografia fez-se aqui necessaacuteria por entender-se que essa disposiccedilatildeo
espacial eacute essencial para a anaacutelise das memoacuterias sobre o cotidiano ali vivido uma vez
que esse espaccedilo prisional estaacute presente a todo o tempo nos relatos de Antocircnio Dulce
144
Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia sendo um dos principais pontos de uniatildeo de suas
memoacuterias
Sendo assim defende-se aqui que o antigo preacutedio do DOI-CODI carioca eacute hoje
um lugar de memoacuteria jaacute que a ele se confere de forma simultacircnea e em graus diversos
os trecircs sentidos atribuiacutedos como necessaacuterios por Pierre Nora o material o simboacutelico e o
funcional (Nora 1993 21) O sentido material no caso eacute o proacuteprio espaccedilo fiacutesico o
preacutedio do 1ordm BPE ainda localizado agrave Rua Baratildeo de Mesquita nordm 425 no bairro da
Tijuca O simboacutelico eacute o que o edifiacutecio representa para parte da sociedade carioca que
partilha as memoacuterias dos ex-presos poliacuteticos e seus familiares sobre o violento
cotidiano as torturas e as mortes ali vivenciados atribuindo ao preacutedio o significado de
ldquoCastelo do terrorrdquo Por fim o sentido funcional eacute a atividade de preservaccedilatildeo da
memoacuteria da ditadura militar ali exercida jaacute que o preacutedio eacute um monumento tombado sob
a justificativa de guardar a memoacuteria ali vivida durante a ditadura militar brasileira e natildeo
deixar que ela venha a cair no esquecimento Este uacuteltimo sentido portanto embute ao
preacutedio o significado completo de um lugar de memoacuteria congregando ao espaccedilo uma
funccedilatildeo e uma representaccedilatildeo simboacutelica ou seja unindo os aspectos material simboacutelico e
funcional
145
Foto Nordm1 fachada entrada principal e paacutetio interno do quartel do 1ordm BPE (Bettamio dez 2004)
Este tombamento foi feito pela Prefeitura do Rio de Janeiro em 1993 e tem por
setor responsaacutevel a Subsecretaria municipal de Patrimocircnio Cultural lei nordm 1954 de
29039340
Seu processo teve iniacutecio atraveacutes da solicitaccedilatildeo de moradores da localidades
da Tijuca Grajauacute Andaraiacute e Praccedila Saens Pentildea que utilizaram para embasar o referido
ato o fato de parte do edifiacutecio do 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito ter abrigado o DOI-
CODI do Rio de Janeiro durante toda a deacutecada de 1970 e iniacutecio dos anos 1980
ressaltando a sua importacircncia para a memoacuteria da resistecircncia e luta pelo fim da ditadura
militar
Percebe-se ainda a grande importacircncia atribuiacuteda a essa memoacuteria quando se
destaca que mesmo o edifiacutecio tendo um valor histoacuterico anterior agrave fase em que cedeu
parte de seu espaccedilo ao DOI-CODIRJ o pedido de tombamento feito pela populaccedilatildeo
fundamentava-se no que ali havia ocorrido em tempos recentes durante a ditadura
militar Afinal esses requerentes propunham que o edifiacutecio fosse tirado do Exeacutercito e
desse lugar a um centro cultural com museu da memoacuteria da luta pela liberdade
40
Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro antigo Departamento Geral de
Patrimocircnio Cultural (DGPC) Nordm do processo 1200433692 1degdocumento de solicitaccedilatildeo de tombamento
26101992
146
O edifiacutecio foi construiacutedo em 1857 pela Imperial Coroa para servir de sede a um
Hospital Militar entretanto laacute se instalou o 1ordm Regimento de Cavalaria Ligeira e
posteriormente o Hospital Militar da Corte com funcionamento ateacute fevereiro de 1877
Desde entatildeo a construccedilatildeo foi utilizada pela Escola do Estado Maior pelo 2ordm Batalhatildeo
de Caccediladores pela Escola de Intendecircncia e a partir de 1946 pelo 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia
do Exeacutercito 41
Em ampla aacuterea estaacute situado na confluecircncia da Rua Baratildeo de Mesquita com a
Avenida Maracanatilde abrangendo tambeacutem a Praccedila Lamartine Babo Conforme pode ser
observado na paacutegina anterior Foto Nordm1 ao redor de todo o espaccedilo ocupado pelo preacutedio
estende-se uma mureta de alvenaria com grade assente na parte frontal do quartel O
complexo arquitetocircnico do 1ordm BPE apresenta nas extremidades alas perpendiculares
que formam no meio um largo paacutetio A uacuteltima dessas alas possui os fundos voltados
para a Avenida Maracanatilde em frente a um dos portotildees de entrada e saiacuteda de veiacuteculos do
quartel Era exatamente nesta parte localizada no final do paacutetio central do Batalhatildeo do
lado esquerdo ao lado da antiga faacutebrica de bebidas Brahma que as celas e a sala de
tortura do DOI-CODIRJ estavam localizadas A seguir na Foto Nordm2 visualiza-se o
fundo deste edifiacutecio na Avenida Maracanatilde
41
Para mais informaccedilotildees ver Gerson 2000 357
147
Foto Nordm2 preacutedio do DOI-CODIRJ nos fundos do quartel localizado na Avenida Maracanatilde (Bettamio dez 2004)
Como se pode ver na Foto Nordm2 em cima do muro do 1ordm BPE exclusivamente na
parte que cerca os fundos do antigo preacutedio do DOI-CODIRJ estaacute localizada uma cerca
de arame farpado Assim aleacutem da descriccedilatildeo dos entrevistados e da forma como o
primeiro-sargento nomeou o local ao apontaacute-lo durante a minha segunda visita ao
Batalhatildeo em 2004 entende-se esta cerca como mais um indiacutecio de que laacute ficavam as
celas do entatildeo DOI-CODIRJ Tais celas estavam distribuiacutedas pelos dois pavimentos do
edifiacutecio conforme pode-se auferir nos relatos e comprovar na Foto Nordm2 onde pela
distribuiccedilatildeo das janelas nota-se que o preacutedio eacute composto de fato por dois andares
O local da prisatildeo era mais nos fundos Quando vocecirc chega ali vocecirc tem duas
entradas uma pela pracinha [Foto Nordm3] onde entram os carros e outra pela
frente bem na Baratildeo de Mesquita [Foto Nordm1] Nesta entrada tem uma mesa
com um oficial do dia depois vem uma espeacutecie de paacutetio aberto como se
fosse uma quadra Jaacute nos fundos do quartel passa a Avenida Maracanatilde por
traacutes da Poliacutecia do Exeacutercito As celas tanto a da prisatildeo como a da tortura
eram mais perto da Avenida Maracanatilde Era laacute naquela parte mais para o
148
final mais isolada Vocecirc ficava mais proacuteximo da Avenida Maracanatilde e da
faacutebrica da Brahma [] (Carvalho 12 set 2002)
Foto Nordm3 uma das entradas do 1ordm BPE para veiacuteculos de frente para a Praccedila Lamartine Babo (Bettamio dez 2004)
Os prisioneiros poliacuteticos receacutem-capturados transferidos de outros oacutergatildeos de
repressatildeo ou mesmo do Hospital Central do Exeacutercito chegavam ao 1ordm BPE dentro de
uma das viaturas das turmas de busca e apreensatildeo do DOI que faziam parte da
estrutura abordada no primeiro capiacutetulo Os automoacuteveis que os traziam entravam no
Batalhatildeo atraveacutes do portatildeo para veiacuteculos que fica em frente agrave Praccedila Lamartine Babo
(Foto Nordm3) entre a Rua Baratildeo de Mesquita e a Avenida Maracanatilde Ao entrarem por
este portatildeo os carros seguiam em linha reta pelo paacutetio interno ateacute chegarem ao preacutedio
do DOI-CODI no fundo do quartel (Foto Nordm2) onde os presos eram deixados
Este trajeto de chegada descrito pelos entrevistados parece ser ateacute hoje um
procedimento formal para controlar a entrada de veiacuteculos no Batalhatildeo e atraveacutes dele
evidencia-se que o DOI-CODI mesmo natildeo sendo subordinado ao 1ordm BPE tinha como
dever respeitar algumas normas de seguranccedila ali vigentes Entre essas normas estava o
impedimento de utilizar o portatildeo para veiacuteculos localizado na Avenida Maracanatilde (Foto
149
Nordm2) para a entrada e a saiacuteda de seus presos mesmo sendo mais praacutetico e reservado
pois este portatildeo ficava ao lado do preacutedio do DOI-CODI Poreacutem como todo quartel
militar preza por um controle riacutegido de seguranccedila uma vez que satildeo responsaacuteveis por
guardar armas e outros equipamentos beacutelicos esses agentes eram obrigados a respeitar a
estrutura de seguranccedila tradicional do 1ordm BPE
[] a gente entrava pela pracinha aqui do lado [aponta para o desenho que
faz no papel] a gente entrava dentro dos carros aqui por esse portatildeo (o da
praccedila) A gente natildeo entrava pela porta principal natildeo E nem entrava ou saiacutea
pelo portatildeo do lado do preacutedio que a gente ficava [] (Coimbra 30 nov
2004)
No preacutedio do DOI-CODIRJ (Foto Nordm2) as celas ldquosolitaacuteriasrdquo se localizavam
somente no andar de baixo Nelas os prisioneiros receacutem-chegados permaneciam nos
primeiros dias de prisatildeo para ficarem no mesmo andar da sala de interrogatoacuterio ou ldquosala
de torturardquo ndash como os presos a chamavam ndash facilitando o deslocamento Era no
momento inicial da prisatildeo que as turmas de interrogatoacuterio preliminar executavam a
parte massiva dos interrogatoacuterios o que por conseguinte demandava a necessidade dos
presos ficarem em celas geograficamente proacuteximas agrave ldquosala de torturardquo
Nos primeiros dias de prisatildeo era quando os presos eram levados assiduamente
para a ldquosala de torturardquo visto que poderiam informar sobre os ldquopontos de encontrordquo e os
ldquoaparelhosrdquo ainda vaacutelidos informaccedilotildees que levariam os agentes dos DOI ateacute outros
ldquosubversivosrdquo Aleacutem da ldquosala de torturardquo a cela do tipo ldquosolitaacuteriardquo era mais um artifiacutecio
para torturar o preso receacutem-chegado a fim de degradaacute-lo e desestruturaacute-lo
psicologicamente de forma a impulsionaacute-lo a falar mais rapidamente o que sabia Para
isso essas celas ldquosolitaacuteriasrdquo aleacutem de deixarem o preso isolado dos demais se
diferenciavam estruturalmente das outras que existiam no mesmo preacutedio localizadas em
150
maior parte no pavimento superior para as quais os presos eram transferidos apoacutes o
momento inicial de sua prisatildeo
Nas celas do segundo andar existia banheiro com chuveiro e um colchatildeo para cada
preso Jaacute nas ldquosolitaacuteriasrdquo aleacutem do preso ficar sozinho natildeo havia cama colchatildeo
banheiro ou mesmo pia Durante o tempo em que laacute permaneciam os prisioneiros natildeo
tinham direito a tomar banho Eram celas pequenas com portotildees de grades vazadas
contendo apenas um buraco no chatildeo para que o preso ali pudesse evacuar Os presos
eram obrigados a conviver com o cheiro de sua proacutepria urina e fezes no provaacutevel intuito
de denegrir a sua condiccedilatildeo de ser humano
[] logo que eu cheguei fui para a lsquosolitaacuteriarsquo era torturada ia para a
lsquosolitaacuteriarsquo era torturada e ia para a lsquosolitaacuteriarsquo [] (Pandolfi 5 fev 2003)
[] primeiro que quando vocecirc eacute preso vocecirc passa alguns dias sem tomar
banho na verdade eu soacute fui tomar banho mesmo depois que eu fui para a
cela coletiva [] (Carvalho 8 fev 2003)
Aqui [aponta para as celas do andar teacuterreo do preacutedio que desenhou em um
papel] era soacute o pessoal que ficava de castigo era barra pesada [] vocecirc natildeo
tinha lugar para dormir natildeo tinha lugar para nada Tinha soacute um buraco para
vocecirc fazer as suas necessidades Na solitaacuteria natildeo tinha nem colchatildeo nem
banheiro nem privada era um buraco Nem tinha chuveiro Pelo menos
essas celas de cima tinham chuveiro [] (Coimbra 30 nov 2004)
151
Foto Nordm4 visatildeo panoracircmica do espaccedilo ocupada pelo 1ordm BPE com destaque aos fundos para o preacutedio do DOI-CODI
(Bettamio dez 2004)
A ldquosala de torturardquo localizada no primeiro pavimento do preacutedio eacute referida pelos
prisioneiros tambeacutem como ldquosala roxardquo pela cor de suas paredes Anexa a ela estava a
sala de observaccedilatildeo que era separada da ldquosala roxardquo por um vidro o chamado ldquoespelho
da verdaderdquo Este vidro composto por uma placa semi-espelhada possibilitava que da
sala de observaccedilatildeo se pudesse ver e reconhecer quem estava do outro lado sem ser
visto Assim presos e militares poderiam identificar pessoas e observar interrogatoacuterios
sem serem reconhecidos
[] a sala de tortura era pintada de uma cor horrorosa como se fosse um
roxo [] essa sala tinha um vidro que era o espelho da verdade porque dava
acesso agrave outra sala onde ficavam pessoas para te observar sem serem vistas
[] (Pandolfi 5 fev 2003)
A seta indica a localizaccedilatildeo do preacutedio do DOI-CODI dentro do espaccedilo do 1ordm BPE
152
[] aqui tinha a famosa sala roxa duas uma do lado da outra isso no
primeiro andar Porque ali estavam as pessoas que eles estavam inquirindo
direto [] (Freire 28 jun 2004)
Os dados informados acima satildeo exemplos tiacutepicos de detalhes apresentados pelos
entrevistados que muito podem contribuir para o entendimento desse passado Afinal
em uma primeira impressatildeo essas narrativas podem transmitir a ideia de que as paredes
roxas serviam apenas para imprimir um aspecto sombrio agrave ldquosala de torturardquo servindo
como mais um elemento produzido para intimidar o depoente durante o interrogatoacuterio
No entanto ao saber-se que uma das paredes dessa sala era composta pelo dito ldquoespelho
da verdaderdquo deduz-se que esta era bem iluminada O vidro que a dividia do local anexo
muito utilizado nas salas de reconhecimento em delegacias de poliacutecia age atraveacutes de um
mecanismo pelo qual quem estaacute do lado mais iluminado vecirc apenas o reflexo de sua
proacutepria imagem sem enxergar o que estaacute do lado mais escuro
A partir disso infere-se que as paredes roxas da ldquosala de torturardquo natildeo eram apenas
um aparato de tortura psicoloacutegica mas provavelmente uma forma de deixar os
integrantes das turmas de interrogatoacuterio preliminar mais agrave vontade para interrogar
ameaccedilar e torturar os seus prisioneiros Menos iluminada do que se suas paredes fossem
brancas contribuiacutea para que os prisioneiros natildeo pudessem ver os militares de forma tatildeo
clara e niacutetida fazendo com que os torturadores natildeo se sentissem acuados por atuar com
os seus rostos agrave mostra chegando mesmo a retirar o capuz dos prisioneiros
[] chegando nessa sala de tortura normalmente eles tiravam o capuz Quer
dizer o capuz na verdade era um mecanismo mais de intimidaccedilatildeo de deixar
a gente apavorada do que para eles se esconderem mesmo porque na tortura
a gente acabava vendo os torturadores [] (Pandolfi 5 fev 2003)
No DOI-CODI eu apanhei de cara limpa eu vi quem me bateu quem me
torturou [] (Freire 28 jun 2004)
153
No segundo andar do preacutedio do DOI-CODIRJ em meio agraves demais celas coletivas
e encostada em outra menor se encontrava uma cela feminina bem espaccedilosa onde
Dulce Ana e Ceciacutelia ficaram durante parte do tempo em que estiveram na instituiccedilatildeo
Essa cela mencionada pelas entrevistadas ora por ldquocoletivo das mulheresrdquo ora por
ldquoMaracanatilderdquo tinha no alto da parede de fundo um basculante que como bem se pode
observar na Foto Nordm2 provavelmente estava presente em todas as celas coletivas tanto
as do primeiro quanto as dos segundo andares Entretanto no caso do ldquocoletivo das
mulheresrdquo e da cela nele encostada esses basculantes eram virados para o paacutetio interno
do 1ordm BPE e por conseguinte os portotildees dessas celas ficavam na direccedilatildeo do muro da
Avenida Maracanatilde
[] eu fui para a cela do lado que era o coletivo das mulheres que era a cela
Maracanatilde como a gente chamava [] Eram duas celas Essa era enorme e
tinha a outra na outra ponta [] que era uma cela menor Eu fiquei nas duas
que eram as duas celas que ficavam na frente que davam para o paacutetio A
gente trepava [no basculante da cela] e soacute via o paacutetio (Coimbra 30 nov
2004)
Tinha ateacute uma cela ampla grande que chamavam de coletivo das mulheres
Entatildeo a maior parte do tempo eu fiquei nessa cela grande [] (Pandolfi 5
fev 2003)
No DOI-CODI natildeo havia uma grande separaccedilatildeo entre prisioneiros e prisioneiras
uma vez que as celas do primeiro e do segundo andares comportavam tanto homens
quanto mulheres No entanto natildeo havia celas mistas Apesar de que como somente
homens afirmaram ter permanecido em celas do piso teacuterreo pressupotildee-se que neste
pavimento com exceccedilatildeo das celas ldquosolitaacuteriasrdquo localizavam-se em grande parte caacuterceres
154
coletivos masculinos que tambeacutem existiam no segundo andar demonstrando que era
maior o nuacutemero de prisioneiros homens
[] eu sempre fiquei no teacuterreo nunca subi para aquela parte apesar de que
laacute onde ficavam as celas tinha uma escada Tinha uma parte teacuterrea onde
ficavam nossas celas e tinha tambeacutem umas celas em cima [] (Carvalho 12
set 2002)
No teacuterreo tinha duas celinhas aqui [rabisca em um pedaccedilo de papel] uma no
cantinho aqui e eu fiquei nessa segunda aqui aiacute ainda tinha a do meio e
mais duas para caacute eram cinco celas [] (Freire 28 jun 2004)
A partir dessa cartografia do espaccedilo fiacutesico do DOI-CODI viabilizou-se uma
aproximaccedilatildeo com a geografia do ambiente que mantinha uma iacutentima relaccedilatildeo com o
cotidiano dos entrevistados no periacuteodo em que laacute permaneceram como prisioneiros do
sistema de seguranccedila
3 Memoacuterias de um cotidiano
Falar sobre essa parte da histoacuteria implica muitas dificuldades pois suscita
lembranccedilas mal-vindas poreacutem necessaacuterias ao conhecimento de nossa
sociedade Trata-se aqui de uma viagem de volta ao inferno de uma face que
para muitos traduz supliacutecios fiacutesicos e psiacutequicos sentimentos de desamparo
solidatildeo medo pacircnico abandono e desespero (Coimbra 2004 45) 42
Como jaacute dito o momento da realizaccedilatildeo de uma entrevista eacute definidor da maneira
pela qual o(a) entrevistado(a) recupera o seu passado A construccedilatildeo da memoacuteria sobre o
cotidiano vivido no DOI-CODI em 1970 natildeo escapou desse passeacute do preacutesent e de
42
Artigo Gecircnero Militacircncia e Memoacuteria escrito pela entrevistada Ceciacutelia Coimbra e publicado em Strey
Marlene Neves (org) Violecircncia Gecircnero e Poliacuteticas Puacuteblicas Porto Alegre PUC-RS 2004
155
forma muito interessante ao mesmo tempo em que sofria influecircncias desse presente
tambeacutem agia politicamente sobre ele Beneficiados por uma legislaccedilatildeo que buscava
reparar os variados danos causados pelo Estado ditatorial os entrevistados visavam
sobretudo a obter reparaccedilotildees simboacutelicas comeccedilando pela consolidaccedilatildeo de suas
memoacuterias Por isso mesmo lutavam por accedilotildees governamentais tais como a construccedilatildeo
de museus sobre a ditadura militar em locais que haviam servido como prisatildeo poliacutetica
na eacutepoca e a instalaccedilatildeo da Comissatildeo da Verdade no paiacutes
Assim em 24 de janeiro de 2009 foi inaugurado no anexo do antigo preacutedio do
Departamento de Ordem e Poliacutetica Social de Satildeo Paulo (Deops) o Memorial da
Resistecircncia de Satildeo Paulo Eacute a primeira instituiccedilatildeo do paiacutes a ldquomusealizarrdquo parte de um
edifiacutecio que foi siacutembolo da poliacutecia poliacutetica em eacutepocas de ditadura a fim de salvaguardar
a memoacuteria da resistecircncia e da repressatildeo do Brasil republicano 43
E finalmente em 18
de novembro de 2011 a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei que criava a
Comissatildeo da Verdade (lei nordm 125282011) Esta seraacute composta por sete integrantes que
ainda seratildeo indicados e contaratildeo com ajuda de 14 auxiliares que teratildeo a missatildeo de ouvir
depoimentos em todo o paiacutes requisitar e analisar documentos que ajudem a esclarecer
os fatos da repressatildeo militar A Comissatildeo iraacute apurar as violaccedilotildees de direitos ocorridas
entre os anos de 1946 e 1988 e teraacute um prazo de dois anos para finalizar este trabalho de
investigaccedilatildeo
43
Para mais informaccedilotildees sobre o Memorial da Resistecircncia de Satildeo Paulo consultar
httpwwwmemorialdaresistenciasporgbr
156
31 O interrogatoacuterio e a tortura
Tendo em vista as novas funccedilotildees que se apresentavam para os agentes da
repressatildeo lotados nos DOI-CODI era necessaacuterio um treinamento que incluiacutea entre
outras mateacuterias o manuseio da dosagem de dor infringida durante os interrogatoacuterios
Depois de passarem por tal treinamento os militares poderiam atuar em uma das trecircs
turmas de interrogatoacuterio preliminar que compunham a Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio
responsaacutevel direta por torturar os presos ou em uma das turmas da Seccedilatildeo de busca e
apreensatildeo que capturavam os suspeitos e os direcionavam aos DOI
Esse processo de formaccedilatildeo de matildeo-de-obra para atuar no DOI-CODI surgiu em
1970 quando uma escola de repressatildeo foi criada a partir da mudanccedila de comando e da
reforma curricular do Centro de Estudos de Pessoal (CEP) no forte do Leme O novo
CEP passava a oferecer cursos de informaccedilotildees para oficiais programas de extensatildeo para
sargentos e estaacutegios para quadros das poliacutecias militares todos normalmente com
duraccedilatildeo de um semestre Nesses cursos os alunos assistiam aulas sobre teacutecnicas de
interrogatoacuterio ndash o que incluiacutea o manuseio de aparelhos de tortura ndash e vigilacircncia taacuteticas
de ldquoneutralizaccedilatildeo de aparelhosrdquo e de transporte de presos operaccedilotildees especiais
criptologia e produccedilatildeo de informaccedilotildees Ao fim do curso o aluno recebia uma
certificaccedilatildeo atraveacutes da qual poderia atestar sua aptidatildeo para desempenhar as funccedilotildees de
um oficial de informaccedilotildees
Parte dos meacutetodos aprendidos nessa escola eacute retratada em entrevista para a revista
Veja de 9 de dezembro de 1998 pelo tenente Marcelo Paixatildeo de Arauacutejo que de acordo
com Elio Gaspari (2002) teria atuado como torturador no 12ordm Regimento Interno de
Belo Horizonte entre 1968 e 1971
A primeira coisa era jogar o sujeito no meio de uma sala tirar a roupa dele e
comeccedilar a gritar para ele entregar o ponto [lugar marcado para encontros
157
com militantes do grupo] Era o primeiro estaacutegio Se ele resistisse tinha um
segundo estaacutegio que era vamos dizer assim mais porrada Um dava tapa na
cara Outro soco na boca do estocircmago Um terceiro soco no rim Tudo para
ver se ele falava Se natildeo falava tinha dois caminhos Dependia muito de
quem aplicava a tortura Eu gostava muito de aplicar a palmatoacuteria Eacute muito
doloroso mas faz o sujeito falar Eu era muito bom na palmatoacuteria [] Vocecirc
manda o sujeito abrir a matildeo O pior eacute que de tatildeo desmoralizado ele abre Aiacute
se aplicam dez quinze bolos na matildeo dele com forccedila A matildeo fica roxa Ele
fala A etapa seguinte era o famoso telefone das Forccedilas Armadas [] eacute uma
corrente de baixa amperagem e alta voltagem [] Natildeo tem perigo de fazer
mal Eu gostava muito de ligar as duas pontas dos dedos Pode ligar numa
matildeo e na orelha mas sempre do mesmo lado do corpo O sujeito fica
arrasado O que natildeo pode fazer eacute deixar a corrente passar pelo coraccedilatildeo Aiacute
mata [] o uacuteltimo estaacutegio em que cheguei foi o pau-de-arara com choque
Isso era para o queixo-duro o cara que natildeo abria nas etapas anteriores Mas
pau-de-arara eacute um negoacutecio meio complicado [] O pau-de-arara natildeo eacute
vantagem Primeiro porque deixa marca Depois porque eacute trabalhoso Tem
de montar a estrutura Em terceiro eacute necessaacuterio tomar conta do indiviacuteduo
porque ele pode passar mal (Gaspari 2002 182-183)
Antes de comeccedilar a atuar esses agentes passavam por treinamento no DOI-CODI
feito provavelmente com alguns prisioneiros que jaacute estavam laacute haacute algum tempo e que
haviam mostrado ter boa resistecircncia Conforme se pode evidenciar a partir da
declaraccedilatildeo feita por Dulce Pandolfi em 1970 registrada na auditoria militar 44
[]
que foi exposta perante 20 oficiais como numa demonstraccedilatildeo de aulas de torturas
pau-de-arara e choques [] (Arquidiocese de Satildeo Paulo tomo V 1985 758)
Essa denuacutencia feita na eacutepoca por Dulce na auditoria da Justiccedila Militar foi
publicada em A Tortura tomo V do ldquoProjeto Ardquo da pesquisa coordenada pela
Arquidiocese de Satildeo Paulo e intitulada Brasil Nunca Mais O ldquoProjeto Ardquo eacute constituiacutedo
por doze volumes que contecircm as conclusotildees da referida pesquisa feita a partir da
44
Assim satildeo chamadas as varas criminais com atribuiccedilatildeo especiacutefica de atuar em processos de crimes
militares da Justiccedila Militar brasileira
158
reuniatildeo de coacutepias da quase totalidade dos processos poliacuteticos que tramitaram na Justiccedila
Militar entre abril de 1964 e marccedilo de 1979 Esses volumes foram reproduzidos vinte e
cinco vezes pela Arquidiocese de Satildeo Paulo formando coleccedilotildees que foram doadas a
entidades de direitos humanos pesquisa e documentaccedilatildeo 45
As 6891 paacuteginas do
ldquoProjeto Ardquo estatildeo resumidas no ldquoProjeto Brdquo o livro Brasil Nunca Mais tambeacutem
datado de 1985 e publicado pela Editora Vozes
Os primeiros momentos no DOI-CODI
Desde o momento da detenccedilatildeo o preso era submetido a diversos tipos de maus
tratos Jaacute a caminho do caacutercere ainda dentro do automoacutevel comeccedilavam as agressotildees
como tapas pontapeacutes e empurrotildees a fim de acelerar a sua desestabilizaccedilatildeo para que
entregasse mais rapidamente informaccedilotildees que agilizassem a prisatildeo de outros militantes
procurados
As torturas que Ana Batista relata ter sofrido durante o percurso de transferecircncia
da OBANSP para o DOI-CODIRJ destacadas em seu memorial ndash escrito em outubro
de 2004 um mecircs antes de sua entrevista e encaminhado agrave Comissatildeo Especial da
Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro ndash trazem aspectos
proacuteximos agrave realidade vivida na eacutepoca pelos presos poliacuteticos do DOI-CODIRJ
[] dez dias apoacutes a prisatildeo fui levada de Satildeo Paulo [DOI-CODISP] para o
Rio [DOI-CODIRJ] de madrugada numa C-14 onde permaneci no banco de
traacutes entre dois agentes de grande porte No meio do caminho na Via Dutra
eles entraram por uma estradinha pararam o carro e me mandaram descer
aos berros Com fortes dores no corpo ndash especialmente nos rins ndash
queimaduras infectadas pelos choques eleacutetricos exausta dos interrogatoacuterios e
45
Os doze volumes do ldquoProjeto Ardquo estatildeo disponiacuteveis no Arquivo do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio
de Janeiro (GTMNRJ)
159
sem dormir haacute dias desembarquei meio trocircpega Gritaram impropeacuterios e
ordenaram que eu fugisse Como estava muito tonta sem saber o que pensar
ou fazer natildeo fiz nada Atiraram entatildeo repetidas vezes em volta de mim
que permaneci encostada em uma aacutervore gritaram vaacuterias vezes para que eu
fugisse Caiacute no chatildeo o que os fez parar de atirar e se jogarem em cima de
mim agraves gargalhadas Colocaram-me de volta no carro e continuamos a
viagem rumo ao DOI-CODI-RJ (Batista out 2004)
Assim quando chegavam ao DOI-CODIRJ apoacutes passarem pelo portatildeo de
entrada da Praccedila Lamartine Babo (Foto Nordm3) os presos preenchiam uma ficha de
identificaccedilatildeo e eram levados para a ldquosala roxardquo no andar teacuterreo do preacutedio dessa
instituiccedilatildeo (Foto Nordm2) Laacute em meio a interrogatoacuterio as ameaccedilas e torturas se
intensificavam perpetradas pelos integrantes de uma das trecircs turmas de interrogatoacuterio
preliminar de plantatildeo no momento
Cabe lembrar que tais turmas eram constituiacutedas por militares treinados para
conseguir extrair rapidamente dos presos o maior nuacutemero possiacutevel de informaccedilotildees
principalmente sobre a data hora e local de seu proacuteximo ldquopontordquo de encontro Afinal
caso esses agentes natildeo conseguissem tais dados logo nos primeiros dias natildeo chegariam
ao local a tempo de pegarem o outro militante clandestino que o preso encontraria A
partir do momento em que a ausecircncia desse militante fosse notada integrantes de sua
organizaccedilatildeo poliacutetica deduziriam o motivo e por proteccedilatildeo modificariam os locais dos
ldquoaparelhosrdquo e dos proacuteximos ldquopontosrdquo As informaccedilotildees do preso receacutem-capturado se
tornariam entatildeo desatualizadas o que dificultaria a investigaccedilatildeo dos agentes do DOI-
CODIRJ
As torturas infringidas aos presos eram mais intensas logo depois da prisatildeo
Lutando contra o tempo era comum deixar o preso em celas ldquosolitaacuteriasrdquo localizadas no
andar teacuterreo conforme jaacute indicado Dessa forma os presos receacutem-chegados ficavam
bem proacuteximos agrave sala de interrogatoacuterio a ldquosala roxardquo justamente por serem para laacute
160
levados com frequecircncia Como nas ldquosolitaacuteriasrdquo os presos ficavam sozinhos e natildeo
podiam contar com itens baacutesicos de higiene e proteccedilatildeo do corpo (tais como banheiro
chuveiro colchatildeo e cobertor) acabavam se sentindo ainda mais desestruturados e por
conseguinte desestabilizados Logo no momento inicial da prisatildeo quando os presos
natildeo eram submetidos agraves torturas fiacutesicas eram submetidos agraves torturas psicoloacutegicas das
ldquosolitaacuteriasrdquo as chamadas torturas brancas46
espeacutecie de degradaccedilatildeo fria sem violecircncia
humana expliacutecita
Por outro lado os presos receacutem-capturados tinham consciecircncia de que era naquele
momento inicial que mais poderiam prejudicar seus companheiros de organizaccedilatildeo
Diante disso normalmente tentavam dificultar o acesso dos militares agraves informaccedilotildees
lutando para resistir agraves torturas Apesar de muitas vezes fracassarem tentavam segurar
os dados que tinham ao menos ateacute passar o horaacuterio do proacuteximo ldquopontordquo que haviam
combinado com outro militante Portanto avalia-se que provavelmente o grau de
resistecircncia inicial do prisioneiro estava diretamente relacionado ao da intensidade da
tortura a ele perpetrada e vice-versa conforme analisa-se nos trechos da entrevista de
Ana de Miranda Batista abaixo destacados
[] o meu negoacutecio era ganhar tempo e o deles era conseguir informaccedilatildeo A
luta eacute essa nos primeiros dias eacute vocecirc dar o miacutenimo de informaccedilotildees e eles
querendo arrancar o maacuteximo de informaccedilatildeo Aiacute eles vecircm com a maacutexima de
que torturar eacute investigar [risos] E daiacute se precisar ateacute a morte O negoacutecio eacute
conseguir informaccedilatildeo
46
Em 1971 quando os ex-prisioneiros aqui entrevistados jaacute natildeo estavam mais no 1ordm BPE o projeto
ldquoTortura Limpardquo foi ali instalado Segundo Elio Gaspari o andar teacuterreo do DOI-CODIRJ sofreu obras
para que fossem construiacutedos quatro novos cubiacuteculos um foi forrado com isopor e amianto a fim de fazer
o prisioneiro sentir frio constantemente outro se tornou uma cacircmara de ruiacutedos pela qual o preso ouviria o
barulho por todo o tempo em que laacute estivesse o terceiro foi todo pintado de branco provocando dor na
vista do preso devido agrave claridade constante na cela o uacuteltimo transformou-se em um ambiente todo preto
natildeo fornecendo a quem estivesse em seu interior nenhuma claridade causando choque na vista quando
exposto a claridade normal (Gaspari 2002 189-190)
161
[] quando eu cheguei agrave OBAN [que na eacutepoca de sua prisatildeo jaacute havia se
transformado em DOI-CODISP] jaacute era noite eles estavam tomando cerveja
comemorando que eu tinha caiacutedo E aiacute eu passei o ponto da Ana Maria do
Carlos Eugecircnio com o Bacuri Porque laacute era um inferno [] laacute eu passei um
monte de ponto e todos eles eram procurados Entatildeo aiacute eacute que a barra pegou
mesmo (Batista 17 nov 2004)
Os trechos acima mesmo sendo baseados em uma experiecircncia vivida no DOI-
CODISP trazem muitas informaccedilotildees sobre o cotidiano prisional vivido de forma
geral em todos os DOI-CODI Afinal conforme ressaltado anteriormente esses oacutergatildeos
estavam espalhados por todas as jurisdiccedilotildees territoriais do Brasil e seguiam
basicamente a mesma organizaccedilatildeo Portanto pode-se concluir aqui que em ambos os
DOI-CODI no momento inicial da prisatildeo existia essa relaccedilatildeo entre a intensidade das
sessotildees de tortura adotadas pelos militares e o tamanho da vontade de resistir do preso
Tal relaccedilatildeo se torna ainda mais perceptiacutevel pela frustraccedilatildeo sentida na fala de Ana
ao afirmar ter passado muitos ldquopontosrdquo inclusive o de ldquoBacurirdquo codinome de Eduardo
Collen Leite seu companheiro de organizaccedilatildeo Ana no momento da entrevista sabia
que ldquoBacurirdquo havia sido preso em agosto de 1970 alguns dias depois de sua prisatildeo e
que havia morrido sob tortura Quando admite ter entregado aos agentes do DOISP o
ponto de encontro Ana se culpa O depoimento eacute o momento em que Ana aproveita
para se justificar ao demonstrar que acredita no quanto a resistecircncia agrave tortura era
importante no iniacutecio da prisatildeo mas como ela se tornava limitada sendo rapidamente
derrotada Resistir ao DOI-CODI era muito difiacutecil jaacute que os agentes haviam sido
fortemente preparados para a ldquoguerra internardquo e natildeo por acaso se tornariam os grandes
responsaacuteveis pela desarticulaccedilatildeo das organizaccedilotildees de luta armada
O silecircncio dos demais entrevistados sobre as informaccedilotildees que concederam ou natildeo
aos agentes das turmas de interrogatoacuterio preliminar serve aqui como mais um
argumento para a tese de que apesar da grande resistecircncia inicial dos presos poliacuteticos e
162
tambeacutem por causa dela a violecircncia vivida no DOI-CODIRJ nos primeiros dias de
prisatildeo era intensa e quase sempre prevalecia Afinal caso natildeo fosse desse modo os
entrevistados provavelmente orgulhar-se-iam de sua resistecircncia e por conseguinte natildeo
lhes faltariam motivos para lembraacute-la e narraacute-la Logo o silecircncio aqui tambeacutem se torna
revelador
Atraveacutes desse silecircncio destaca-se ainda que talvez pelos mesmos motivos que
Ana opta por lembrar e justificar-se os demais entrevistados optam por silenciar e tentar
esquecer Todos apesar de agirem de acordo com suas personalidades e experiecircncias de
vida provavelmente se sentem culpados ou envergonhados por natildeo terem aguentado
esconder o que sabiam ateacute o fim e poupado muitos de seus companheiros da prisatildeo e ateacute
mesmo da morte
A segunda fase
Passada esta primeira fase da prisatildeo no DOI-CODIRJ que durava em meacutedia uma
ou duas semanas os presos eram transferidos para celas maiores Estas continham
banheiro colchatildeo e em grande parte das vezes outros prisioneiros
Nessa segunda etapa os presos natildeo ficavam isentos das idas agrave ldquosala roxardquo poreacutem
estas natildeo eram tatildeo frequentes quanto anteriormente Afinal a busca desesperada por
ldquopontosrdquo codinomes ou ldquoaparelhosrdquo natildeo mais cabia pois esses prisioneiros jaacute estavam
distantes de suas organizaccedilotildees haacute tempo suficiente para que suas prisotildees fossem
notadas e por conseguinte para que as informaccedilotildees que tivessem jaacute natildeo fossem mais
ldquoquentesrdquo
Nessa fase as visitas agrave ldquosala roxardquo davam-se por outros motivos Normalmente
para ajudar em anaacutelises de novas suspeitas Os agentes das turmas de interrogatoacuterio
preliminar poderiam levar um preso mais antigo para a ldquosala roxardquo para ser acareado
163
com um receacutem-chegado com quem suspeitavam estar de alguma forma relacionado
Poderiam tambeacutem levaacute-lo ateacute laacute para ser interrogado a respeito de novas e possiacuteveis
accedilotildees da esquerda armada conforme indicassem as informaccedilotildees recebidas pelo CODI
conjugadas agraves anaacutelises feitas pelo Setor de anaacutelise e informaccedilotildees sobre algum material
apreendido pela Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo Eacute o que pode-se concluir a partir da
caracterizaccedilatildeo sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI quando colocadas em diaacutelogo
com as informaccedilotildees trazidas pelos trechos destacados abaixo
ldquoNome codinome e aparelhordquo isso eacute que eles querem saber de imediato
Depois que passa algum tempo isso natildeo interessa mais Aiacute eles tecircm um
trabalho mais analiacutetico que era para saber de outros que acabaram de cair o
que eles tecircm de quecirc jaacute participaram o que estaacute acontecendo [] (Batista 17
nov 2004)
[] de quem era preso eles queriam duas informaccedilotildees imediatas eles
comeccedilavam a te bater e soacute pediam o ponto o local de encontro que vocecirc
tivesse com algueacutem e o aparelho que era o apartamento alugado ou qualquer
coisa assim Era isso o que eles queriam basicamente [] (Freire 28 jun
2004)
Como o DOI-CODIRJ tinha poucas celas e muita rotatividade quando o preso
natildeo mais interessava agraves investigaccedilotildees era normalmente mandado para o DOPS onde
era aberto o processo de crime poliacutetico e ficava detido ateacute o primeiro julgamento ndash
como ocorreu com Antocircnio de Carvalho Dulce Pandolfi e Ana de Miranda Batista
Poreacutem quando o seu caso tivesse relaccedilatildeo com uma das outras Forccedilas Armadas o preso
era transferido para a instituiccedilatildeo repressiva diretamente ligada a esta ndash como aconteceu
com Fernando ao ser levado do DOI-CODIRJ para o CISA oacutergatildeo de repressatildeo ligado agrave
Aeronaacuteutica ndash onde permaneceria ateacute quando seus agentes julgassem necessaacuterio Aleacutem
disso caso os agentes do DOI-CODIRJ constatassem que o prisioneiro natildeo estava
164
envolvido diretamente em nenhum crime poliacutetico ele poderia ser posto em liberdade
provisoacuteria ndash como ocorreu com Padre Maacuterio e Ceciacutelia Coimbra
Vale lembrar que o DOI-CODIRJ natildeo era um presiacutedio comum Laacute os suspeitos de
crimes poliacuteticos natildeo estavam cumprindo pena baseada em um processo e sim na
menagem estipulada pelo Coacutedigo Processual Militar criado pelo decreto-lei Nordm1002
de outubro de 1969 Por meio da menagem os suspeitos de crimes poliacuteticos ndash que a
partir do AI-5 tinham passado a ser julgados pela Justiccedila Militar ndash poderiam ser
arbitrariamente detidos e levados ao quartel responsaacutevel pela Regiatildeo Militar onde
estivessem A menagem era justificada como uma forma de prisatildeo cautelar que visava
evitar o conviacutevio do acusado com pessoas que jaacute estivessem condenadas ateacute o seu
julgamento em primeira instacircncia Dessa forma os suspeitos de crimes poliacuteticos da
Regiatildeo Militar que englobava o Rio de Janeiro ficavam detidos no DOI-CODIRJ
localizado no quartel do 1ordm BPE e ali permaneciam presos sem direito a formalidades
convencionais de uma prisatildeo tais como as visitas de familiares e de um advogado por
um periacuteodo que chegava ateacute 30 dias podendo ser prorrogado por mais 60 dias
Poreacutem como ressaltado anteriormente quando novos grupos de suspeitos laacute
chegavam a saiacuteda dos presos mais antigos era impulsionada mesmo sem ainda terem
sido julgados No entanto como esses presos ainda estavam sob a menagem e por isso
natildeo poderiam ir para um presiacutedio comum a assessoria juriacutedica e policial do DOIRJ ou
os transferia ou os colocava em liberdade provisoacuteria controlando nesse uacuteltimo caso
para que natildeo saiacutessem da respectiva Regiatildeo Militar ateacute o seu julgamento em primeira
instacircncia
[] fiquei trecircs meses laacute na PE na Poliacutecia do Exeacutercito na Rua Baratildeo de
Mesquita Depois fui levada para o DOPS [] laacute na PE a gente ficava nessa
triagem sendo torturado ou ouvindo grito de tortura e esperando laacute o tempo
ateacute eles resolverem a nossa situaccedilatildeo e sermos transferidos Entatildeo laacute era um
165
esquema de uma circulaccedilatildeo muito grande de pessoas Daiacute o quartel estava
sempre cheio porque de repente quando caiacutea alguma organizaccedilatildeo
apareciam laacute 30 ou 40 pessoas presas naquela noite e aquilo ficava
abarrotado de gente Entatildeo tinha momentos que a coisa ficava mais
tranquila e tinha momentos que aquilo ali ficava realmente lotado [] a PE
era isso a PE natildeo tinha uma rotina desses presiacutedios da linha tradicional laacute
ningueacutem recebia visita porque era a fase completamente ilegal da sua prisatildeo
[] (Pandolfi 5 fev 2003)
Outro aspecto interessante da menagem que interferia no cotidiano prisional do
DOI-CODIRJ satildeo as regras para o tempo de inquiriccedilatildeo estipuladas pelo decreto-lei nordm
100269 Este impunha que exceto em casos de urgecircncia os presos que estivessem sob
menagem deveriam prestar depoimentos durante o dia das sete e agraves 18 horas Aleacutem
disso esses prisioneiros natildeo poderiam ser inquiridos por mais de quatro horas
consecutivas tendo direito apoacutes esse periacuteodo a um intervalo de meia hora antes de
voltarem a ser interrogados
Art 19 As testemunhas e o indiciado exceto caso de urgecircncia inadiaacutevel que
constaraacute da respectiva assentada devem ser ouvidos durante o dia em
periacuteodo que medeie entre as sete e as dezoito horas
[]
Inquiriccedilatildeo Limite de tempo
2ordm A testemunha natildeo seraacute inquirida por mais de quatro horas consecutivas
sendo-lhe facultado o descanso de meia hora sempre que tiver de prestar
declaraccedilotildees aleacutem daquele termo O depoimento que natildeo ficar concluiacutedo agraves
dezoito horas seraacute encerrado para prosseguir no dia seguinte em hora
determinada pelo encarregado do inqueacuterito (Decreto-lei nordm 1002 21 out
1969)
A partir disso faz mais sentido ainda as diferentes distacircncias existentes entre as
celas e a sala de tortura nas duas fases da prisatildeo Como o prazo maacuteximo estipulado para
um interrogatoacuterio era de quatro horas tendo o prisioneiro apoacutes este tempo direito a um
166
descanso de ao menos meia hora no primeiro momento da prisatildeo no DOI-CODIRJ
deixar o preso perto do local onde eram feitos os interrogatoacuterios era um facilitador Essa
proximidade entre a cela e a ldquosala roxardquo natildeo era necessaacuteria para o preso que estivesse na
segunda etapa da prisatildeo jaacute que ele natildeo seria transportado de um lugar para o outro com
tamanha frequecircncia e provavelmente os interrogatoacuterios que lhe seriam destinados nem
chegassem agraves quatro horas permitidas pelo referido Decreto-lei
Nas narrativas de todos os entrevistados estatildeo presentes as experiecircncias vividas
nas duas fases da prisatildeo Todos eles passaram os primeiros dias em solitaacuterias e
posteriormente ficaram em celas maiores Padre Maacuterio foi a uacutenica exceccedilatildeo Sua prisatildeo
no DOI-CODIRJ natildeo passou por essas duas etapas encaixando-se portanto em um
dos casos extraordinaacuterios dessa instituiccedilatildeo Afinal desde o momento em que foi levado
para o preacutedio do DOI-CODIRJ Padre Maacuterio afirma ter dividido uma cela no segundo
andar com outros padres e depois ter sido transferido para uma cela do primeiro andar
onde ficou sozinho e de frente para as celas de jovens militantes de sua Associaccedilatildeo
conforme pode-se conferir no trecho abaixo
[] foi exatamente em setembro logo nas primeiras duas semanas em que
noacutes estaacutevamos presos que eles me passaram para o primeiro andar porque
estaacutevamos todos no segundo andar [] entatildeo nos primeiros dias noacutes
padres passamos todos juntos [] e depois fomos separados Entatildeo me
colocaram sozinho nessa cela do andar de baixo bem em frente agraves celas dos
jovens que estavam presos no CENIMAR e que foram levados para laacute para
serem torturados [] (Prigol 28 set 2004)
Essa diferenccedila no cotidiano prisional encontra coerecircncia quando embasada por
alguns argumentos aqui levantados Como a fase em que os presos ficavam nas
ldquosolitaacuteriasrdquo tinha por finalidade desestruturaacute-los e principalmente deixaacute-los mais
proacuteximos da sala de tortura para onde seriam levados com frequecircncia essa fase natildeo
167
deveria ser destinada a um padre sem envolvimento em uma organizaccedilatildeo de luta
armada Os militares teriam que responder agrave Igreja caso algo de mais grave lhe
acontecesse dentro do DOI-CODIRJ Colocar sua vida em risco deveria ser uma opccedilatildeo
somente se ele tivesse informaccedilotildees preciosas para a neutralizaccedilatildeo da guerrilha urbana
principal objetivo do grupo de repressatildeo em 1970 conforme indicado na monografia do
coronel Pereira analisada no primeiro capiacutetulo
Entatildeo como a associaccedilatildeo da qual participava a ACO natildeo tinha envolvimento
com a luta armada a morte de Padre Maacuterio poderia causar desnecessariamente uma
tensatildeo ateacute entatildeo natildeo deflagrada entre o Exeacutercito e a Igreja Catoacutelica 47
Aleacutem disso
como se encontrava em uma faixa etaacuteria mais elevada com cerca de 40 anos ele tinha o
agravante de ter uma sauacutede mais fraacutegil que grande parte dos presos do DOI-CODIRJ
que eram majoritariamente jovens estudantes Assim o tratamento prisional
diferenciado ali recebido por Padre Maacuterio visava diminuir as chances que ele tinha de
desenvolver problemas decorrentes de torturas Essa interpretaccedilatildeo encontra fortes
indiacutecios em um dos trechos de sua entrevista
[] a mim eles soacute colocaram o fio eleacutetrico aqui [aponta para um dedo da
matildeo esquerda] e no peacute esquerdo eu fiquei sabendo que no mesmo lado do
corpo eu natildeo sentiria tatildeo forte mas mesmo assim eu resisti resisti Bom
entatildeo diante da prisatildeo da gente eu sofri tambeacutem torturas mas eu depois
que fingi estar sentindo o coraccedilatildeo eles deixaram de dar choques [risos]
Cada um tem que se defender de alguma forma (Prigol 28 set 2004)
Afinal por meio da descriccedilatildeo acima destacada nota-se que apesar de natildeo
excluiacuterem Padre Maacuterio das sessotildees de tortura uma vez que era esse o procedimento de
investigaccedilatildeo do DOI-CODIRJ existia de fato certo temor em causar-lhe graves
47
Para informaccedilotildees sobre as tensotildees que ocorreram entre a Igreja Catoacutelica e a ditadura militar ver
Serbin 2001 17-77
168
sequelas Dessa forma por mais que Padre Maacuterio relate que sua atitude de defesa
conseguiu inibir a accedilatildeo daqueles agentes conclui-se aqui que caso ele natildeo tivesse as
caracteriacutesticas profissionais morais etaacuterias e ideoloacutegicas aqui descritas certamente tal
inibiccedilatildeo natildeo ocorreria Ao menos natildeo na mesma proporccedilatildeo
Testando a resistecircncia
No ano de 1970 esta preocupaccedilatildeo em evitar sequelas evidentemente natildeo se
aplicava a jovens presos que tivessem algum tipo de ligaccedilatildeo com organizaccedilotildees
oposicionistas adeptas da luta armada Conforme pode-se conferir nos relatos sobre os
danos agrave sauacutede que Dulce Fernando e Ana destacam ter sofrido por conta das torturas
recebidas no DOI-CODIRJ
[] fiquei tomando medicaccedilatildeo especial porque eu estava muito mal estava
com uma paralisia tambeacutem por causa da tortura tinha ficado completamente
travada aquilo vocecirc vai contraindo contraindo e deixava vocecirc semiparaliacutetica
[] (Pandolfi 5 fev 2003)
Eu desmaiava acordava e o pau comia desmaiava acordava e o pau
comia Natildeo foi faacutecil natildeo Eu lembro que quando eu saiacute da PE um mecircs
depois eu fazia assim [passa a matildeo no ouvido] e vinha sangue vinha pus eu
estava bem abalado mesmo (Freire 28 jun 2004)
[] eu fiquei um mecircs no Rio no DOI-CODI Desse mecircs uma semana eu
fiquei no HCE [Hospital Central do Exeacutercito] eu tremia sem parar eu estava
cheia de ferida (Batista 17 nov 2004)
Em todas as fases da prisatildeo para cuidar dos estragos causados agrave sauacutede do preso
durante ou apoacutes a sessatildeo de tortura existiam enfermeiros e meacutedicos no DOI-CODIRJ
Os enfermeiros tratavam os prisioneiros nas celas conforme a recomendaccedilatildeo dos
169
meacutedicos Jaacute esses aleacutem de examinarem e receitarem cuidados especiais aos presos
machucados tambeacutem auxiliavam as turmas de interrogatoacuterio preliminar durante as
torturas averiguando os sinais vitais dos presos a fim de constatarem o quanto eles
ainda poderiam suportar No entanto quando a tortura saiacutea de controle de tal forma que
algum preso ficasse tatildeo mal que natildeo respondesse agrave medicaccedilatildeo e aos cuidados meacutedicos
feitos dentro do quartel esse poderia ser levado pelas turmas de busca e apreensatildeo
conforme demonstrado no primeiro capiacutetulo ateacute o Hospital Central do Exeacutercito48
onde
receberiam um tratamento mais especializado
A existecircncia de meacutedicos no DOI-CODIRJ pode ser averiguada por meio da
confissatildeo de Amilcar Lobo noticiada pela Revista Eacutepoca apresentada abaixo
(EacutePOCA 27 nov 2000 104)
Meacutedico de formaccedilatildeo psicanaliacutetica ele foi denunciado por muitos ex-prisioneiros
por exercer a profissatildeo prestando assessoria a torturas entre 1970 e 1974 no DOI-
CODIRJ Diante disso em 1988 teve o seu registro de meacutedico cassado pelo Conselho
Regional de Medicina do Rio de Janeiro A atuaccedilatildeo de Amilcar Lobo assim como a de 48
O Hospital Central do Exeacutercio (HCE) ainda estaacute localizado no mesmo local da eacutepoca na Rua Francisco
Manoel nordm 126 no bairro de Benfica na cidade do Rio de Janeiro Para mais informaccedilotildees acessar
httpwwwhceebmilbr
170
meacutedicos e enfermeiros em geral tambeacutem eacute encontrada nos depoimentos aqui
analisados conforme pode-se conferir nos trechos destacados a seguir
[] a primeira pessoa que me visitou antes de eu ser torturada foi um
meacutedico o Amilcar Lobo que depois eu denunciei o lsquofilho da putarsquo e a gente
conseguiu cassaacute-lo como meacutedico [] ele acompanhava as torturas antes
durante e depois era o assessor de tortura ele dizia ldquo- Daacute uma paradinha
agorardquo Isso para vocecirc aguumlentar neacute Entatildeo ele entrou na minha cela e me
perguntou se eu era cardiacuteaca tirou a minha pressatildeo e eu natildeo entendendo
nada Ele tinha um esparadrapo aqui [aponta para o lado esquerdo do peito]
para a gente natildeo ver o nome dele Eu fiquei sabendo o nome dele porque
meses depois eu jaacute estava na cela de Dulce [Pandolfi]49
quando ele
porque a Dulce ficou praticamente sem mexer as matildeos [] e ele entrou e
esqueceu o receituaacuterio com o nome dele noacutes olhamos e eu quando saiacute de laacute
o denunciei Anos depois a gente conseguiu que ele fosse cassado []
(Coimbra 30 nov 2004)
[] o meacutedico que vinha te ver vinha para ver as suas condiccedilotildees se tinha que
parar ou se podia continuar a te torturar Os caras batiam muito localizado
em partes que vocecirc resiste mais que satildeo nas naacutedegas nessa parte daqui
[aponta para as costas] Entatildeo satildeo lugares que o seu corpo suporta mais []
(Freire 28 jun 2004)
[] como eu fiquei muito mal eu tive cuidados meacutedicos o tempo quase todo
quer dizer claro que eram cuidados meacutedicos no sentido de me prepararem
para apanhar mais para ser mais torturada queriam evitar que eu morresse
porque politicamente natildeo interessava [] tinha laacute dois enfermeiros de rotina
e tinham tambeacutem dois meacutedicos o mais presente o que sempre visitava a
gente era o Amilcar Lobo Em alguns casos ele participou de algumas
sessotildees de tortura no meu eu me lembro dele dizendo ldquo- ela aguentardquo
tomando minha pressatildeo dizendo que eu aguentava apanhar mais ainda
(Pandolfi 5 fev 2003)
49
Dulce e Ana e Dulce e Ceciacutelia dividiram celas em parte do periacuteodo em que estiveram presas no DOI-
CODIRJ A convivecircncia que laacute tiveram seraacute analisada ainda neste capiacutetulo
171
De fato a tortura estava presente em grande parte do cotidiano do DOI-CODIRJ
e para que fosse eficiente e natildeo causasse maiores problemas tal como mortes
indesejadas ao redor dela havia todo um aparato Esse era formado tanto por
enfermeiros e meacutedicos como tambeacutem por outras especificidades tais como teacutecnicas
treinamentos e equipamentos que seratildeo tratados a seguir
Os meacutetodos da tortura
O meacutedico psicanalista Heacutelio Pelegrino traz uma oacutetima definiccedilatildeo sobre como
funciona a tortura poliacutetica
[] a tortura busca agrave custa do sofrimento corporal insuportaacutevel introduzir
uma cunha que leve agrave cisatildeo entre o corpo e a mente E mais do que isto ela
procura a todo preccedilo semear a discoacuterdia e a guerra entre o corpo e a mente
Atraveacutes da tortura o corpo torna-se nosso inimigo e nos persegue Eacute este o
modelo baacutesico no qual se apoacuteia a accedilatildeo de qualquer torturador [] na tortura
o corpo volta-se contra noacutes exigindo que falemos Da mais iacutentima espessura
de nossa proacutepria carne se levanta uma voz que nos nega na medida em que
pretende arrancar de noacutes um discurso do qual temos horror jaacute que eacute a
negaccedilatildeo de nossa liberdade A tortura nos impotildee a alienaccedilatildeo total de nosso
proacuteprio corpo tornando estrangeiro a noacutes e nosso inimigo de morte
(Pelegrino 5 jun 1982 3)
No interior do DOI-CODIRJ em nenhuma das fases da prisatildeo os presos poliacuteticos
eram poupados de torturas No iniacutecio as visitas agrave ldquosala roxardquo eram mais constantes mas
durante todo o periacuteodo em que permaneciam no DOI-CODIRJ os prisioneiros eram
levados para laacute e laacute eram torturados Nessa sala existiam equipamentos proacuteprios
tornando ainda maior a gama de possibilidades de tortura a serem perpetradas aos
prisioneiros Devido a essa diversidade as torturas recebiam nomes proacuteprios para serem
identificadas pelos oficiais das turmas de interrogatoacuterio preliminar do DOIRJ Tais
172
nomes na maior parte das vezes eram irocircnicos e serviam para demonstrar como ali a
praacutetica da tortura era usual e ao mesmo tempo encarada com naturalidade e frieza
pelos seus executores
Em A Tortura tomo V do ldquoProjeto Ardquo (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985)
encontram-se a caracterizaccedilatildeo e os nomes dessas torturas Comumente citadas pelos
presos poliacuteticos da ditadura militar do Brasil a identificaccedilatildeo dessas torturas foi baseada
sobretudo na anaacutelise da documentaccedilatildeo dos processos judiciais da eacutepoca Afinal muitas
vezes anexadas a esses processos encontram-se denuacutencias sobre torturas feitas por
prisioneiros poliacuteticos nas auditorias militares Essas denuacutencias vatildeo ao encontro de
muitas das descriccedilotildees encontradas nas narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos Antocircnio
Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia construiacutedas jaacute em tempos democraacuteticos
(2002-2004) Algumas delas satildeo destacadas a seguir
Capuz tortura psicoloacutegica Impedimento da visatildeo por meio de um capuz
ficando o indiviacuteduo incapacitado de se defender dos golpes a ele direcionados
Espancamento tapas socos e pontapeacutes aplicados em regiotildees como rins
estocircmago e diafragma
Telefone eletrochoque dado por um telefone de campainha do Exeacutercito
possuindo dois fios longos que satildeo ligados ao corpo molhado normalmente nas
partes genitais e nos mamilos aleacutem dos ouvidos dentes liacutengua e dedos
Pau-de-arara um dos meacutetodos mais antigos de tortura pelo qual se pendura a
viacutetima em posiccedilatildeo de ldquofrango assadordquo nua e de cabeccedila para baixo em um pau
preso no alto por duas barras de ferro causando dores terriacuteveis na cabeccedila e em
todo corpo
Choques eleacutetricos normalmente complemento do pau-de-arara Caracteriza-se
por enviar descargas eleacutetricas em contato com o corpo nu e molhado atraveacutes de
173
um magneto com dois terminais estando um geralmente nos oacutergatildeos genitais e
outro em alguma extremidade sensiacutevel do corpo como liacutengua mamilos e dedos
Palmatoacuteria raquete de madeira aplicada fortemente nas matildeos peacutes naacutedegas e
costas da viacutetima
Afogamento Complemento do pau-de-arara Pode ser aplicado ou por meio de
um pequeno tubo de borracha que lanccedila aacutegua na boca e nas narinas do
torturado ou atraveacutes de uma toalha molhada depositada tambeacutem na boca deste
ao mesmo tempo em que um jato drsquoaacutegua eacute lanccedilado em suas narinas
No referido tomo V do Projeto Brasil Nunca Mais encontram-se trechos das
denuacutencias feitas por Dulce Pandolfi nas auditorias militares em 1970 e tambeacutem por seu
advogado Dr Heleno Fragoso Comparando partes dessas denuacutencias de 1970 com
trechos da entrevista concedida por Dulce em 2003 nota-se que haacute muitos pontos em
comum No entanto percebe-se que em sua narrativa de 2003 as torturas satildeo relatadas
de forma mais impessoal e que talvez pelo tempo que separa este depoimento daquele
de 1970 alguns detalhes se perderam foram esquecidos ou mesmo silenciados Eacute o que
pode-se perceber nas transcriccedilotildees feitas a seguir
Nordm 433 Dulce Chaves Pandolfi Prof estudante Idade 23 Local Rio de
Janeiro (CODI) Ano 1970 Apelaccedilatildeo 39778 Vol 1 PAacuteG 328v LVI
PARTE auto de qualificaccedilatildeo e interrogatoacuterio ndash Auditoria
[] que no quartel da PE na Rua Baratildeo de Mesquita assinou sob torturas o
depoimento () que na sala de torturas da PE foi despida e aplicaram-lhe
choques eleacutetricos nas matildeos que foi levada para uma cela onde deram-lhe
um banho frio e sob o pretexto de ensaboaacute-la os torturadores alisavam o seu
corpo que ao retornar agrave sala de torturas foi colocada no chatildeo com um
jacareacute sobre seu corpo nu que depois foi pendurada num pau-de-arara que
levou choques na vagina no acircnus nos seios na cabeccedila e no restante do
corpo [] que ficou em estado de choque vomitando sangue que por 15
174
dias ficou totalmente paraliacutetica [] que foi exposta perante 20 oficiais
como numa demonstraccedilatildeo de aulas de torturas pau-de-arara e choques []
(Arquidiocese de Satildeo Paulo tomo V 1985 757)
Nordm 433 Dulce Chaves Pandolfi Prof estudante Idade 21 Local R de
Janeiro Ano 1970 Apelaccedilatildeo 39778 Vol 2ordm PAacuteG 712807 LVI
PARTE advogado
[] Com a palavra o Dr Heleno Fragoso defensor da acusada Dulce Chaves
Pandolfi este declarou que ela foi presa em agosto de 1970 tendo sido
submetida a uma seacuterie de torturas tendo inclusive o Delegado do DOPS
mandado submetecirc-la a exame de corpo de delito para salvaguardar a sua
responsabilidade [] Natildeo usaremos a palavra do co-reacuteu Paulo Henrique
Oliveira da Rocha Lins que foi ldquoforccedilado a presenciar a acusada DULCE
PANDOLFI sendo pisoteada nua no chatildeordquo (cf fls 325) Remeteremos o E
Conselho ao laudo fls 358 onde dois meacutedicos legistas do Instituto Meacutedico
Legal examinam a acusada e concluem pela verossimilhanccedila a
plausibilidade de suas alegaccedilotildees no sentido de que fora espancada
constatando os vestiacutegios das lesotildees Estaacute laacute a fls 358 a verdade do
inqueacuterito
Esse sofrimento deve ter sido tanto maior quanto era possiacutevel agrave acusada
fornecer as informaccedilotildees que seus torturadores exigiam [] (Arquidiocese de
Satildeo Paulo tomo V 1985 759)
[] vocecirc apanhava era super torturada ali em 1970 natildeo tinha escapatoacuteria
esse era o procedimento era a rotina e aiacute depois da tortura vocecirc jaacute toda
cheia de hematomas passando mal vocecirc era levada para uma cela muitas
vezes essas pessoas saiacuteam da sala de tortura e iam direto para essa cela onde
eu estava entatildeo eu tambeacutem presenciei muitas pessoas que chegavam laacute
completamente quebradas arrebentadas e essa era a nossa vida []
[] tinha o pau-de-arara que eu fui pendurada vaacuterias vezes nele com os
ferros verdes e as cordas tinha o tal telefone de choque que era para mim
um dos piores instrumentos era um aparelho de choque eleacutetrico tinha a
cadeira que eles tambeacutem te amarravam faziam mil sacanagens e tinha uns
enfim tinha uma espeacutecie de chicote que eles te batiam um porrete A tortura
tem vaacuterios procedimentos e tinha na PE nessa eacutepoca um jacareacute Ele natildeo
ficava na sala de tortura Esse jacareacute ficava do lado de fora Quando algumas
pessoas foram presas eles trouxeram o jacareacute para amedrontar Colocavam o
175
jacareacute sobre o seu corpo Era um filhote de jacareacute mas razoavelmente
grande quer dizer de um metro mais ou menos e era mais um dos
instrumentos que eles usavam [] fiquei tomando medicaccedilatildeo especial
porque eu estava muito mal estava com uma paralisia tambeacutem por causa da
tortura tinha ficado completamente travada eacute aquilo vocecirc vai contraindo
contraindo e deixava vocecirc semiparaliacutetica [] (Pandolfi 5 fev 2003)
A partir da comparaccedilatildeo dos trechos dos diferentes depoimentos acima destacados
dados sobre cenaacuterios e temporalidades distintas nota-se que a narrativa construiacuteda por
Dulce Pandolfi em 2003 eacute muito menos detalhada do que a por ela proferida em 1970
Percebe-se portanto no caso de Dulce que o presente vivido em 2003 de certa forma
agia sobre sua memoacuteria do passado ditatorial impulsionando o silecircncio sobre as
minuacutecias dos sofrimentos vividos no DOI-CODIRJ Logo nas memoacuterias de Dulce
nota-se uma inversatildeo da perspectiva de que o presente democraacutetico promovia uma
narrativa que enfatizasse os detalhes das torturas sofridas durante a ditadura militar a
fim de solidificar as conquistas ateacute entatildeo conseguidas e alcanccedilar outras tantas no futuro
Talvez em 2003 Dulce por jaacute ser uma mulher madura e uma profissional
reconhecida entendesse que o constrangimento trazido pela exposiccedilatildeo total de suas
memoacuterias sobre as torturas sofridas no passado superasse a vontade de denunciaacute-las no
presente Afinal naquele ano a democracia dava fortes sinais de consolidaccedilatildeo uma vez
que Lula ex-liacuteder sindical e perseguido poliacutetico pela ditadura acabava de assumir a
Presidecircncia do Brasil e o Estado brasileiro jaacute vinha reconhecendo sua responsabilidade
diante dos abusos da eacutepoca militar atraveacutes da concessatildeo de reparaccedilotildees financeiras agraves
famiacutelias dos militantes poliacuteticos desde entatildeo desaparecidos (lei nordm 914095) e agraves
viacutetimas de torturas em prisotildees poliacuteticas do periacuteodo (lei nordm 1055902)
Jaacute em 1970 os detalhes sobre as torturas sofridas por Dulce ainda eram
extremamente recentes e portanto muito presentes em sua memoacuteria Aleacutem disso tinha
consciecircncia de que no instante de seu depoimento muitos de seus companheiros
176
continuavam a sofrer dentro dos oacutergatildeos de repressatildeo com as mesmas torturas que havia
recebido E principalmente como estava defendendo-se perante um tribunal a
exposiccedilatildeo dos detalhes de suas torturas apresentava-se como uma arma importante na
luta em prol de sua liberdade
Diante disso enquanto Dulce relata em sua entrevista saber do uso de um filhote
de jacareacute como mais um instrumento de tortura utilizado no DOI-CODIRJ sem no
entanto afirmar ter passado por tal experiecircncia Ceciacutelia Coimbra em 2004 narra que
esse filhote de jacareacute havia sido colocado pelos militares sobre seu corpo nu
[] me botaram nua me amarraram numa cadeira e me puseram um filhote
de jacareacute que era um filhote de jacareacute que eles puxavam por uma corda no
pescoccedilo do pobre do jacareacute Era um filhote e aiacute eles puxavam o jacareacute
botavam o jacareacute em cima Olha era uma coisa horriacutevel Nessa hora eu
desmaiei neacute Natildeo aguentei [] (Coimbra 30 nov 2004)
Durante sua entrevista em 2004 Ceciacutelia descreve ter passado pela mesma
situaccedilatildeo de tortura que Dulce havia descrito em seu depoimento agrave Justiccedila Militar em
1970 mas que no presente em 2003 optou por relatar de forma impessoal Isso se
justifica pelo fato de para Ceciacutelia a descriccedilatildeo dos detalhes ainda ser essencial Afinal
Ceciacutelia eacute uma das fundadoras e ativistas assiacuteduas do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio
de Janeiro (GTNMRJ) onde ocupava entatildeo o cargo de vice-presidente
Eacute evidente portanto que na vida de Ceciacutelia a narrativa sobre os sofrimentos
acarretados pela repressatildeo militar ainda era arma na luta que travava para a
solidificaccedilatildeo das conquistas e para a concretizaccedilatildeo de outras tantas que julgava serem
igualmente importantes Para ela diferentemente de Dulce esse tipo de narrativa era
mais que sua memoacuteria pessoal dizia respeito tambeacutem a seu ofiacutecio Acreditava que o seu
sucesso pessoalprofissional dependia do detalhamento da memoacuteria sobre tais violaccedilotildees
177
o que colocava tais detalhes em um lugar de mais faacutecil aceitaccedilatildeo e por conseguinte
exteriorizaccedilatildeo
Mediante os depoimentos de Dulce e Ceciacutelia que chegaram a dividir cela no DOI-
CODIRJ como poderaacute ser visto paacuteginas agrave frente conclui-se que em meados de 1970
um filhote de jacareacute era utilizado para torturar os presos poliacuteticos do 1ordm BPE O uso
desse tipo de tortura eacute aqui entendido mais por seus efeitos psicoloacutegicos do que fiacutesicos e
como sendo destinado mais agraves presas do que aos presos poliacuteticos Afinal apesar de
tocar nos corpos das viacutetimas como acontece durante as torturas fiacutesicas aparentemente
o jacareacute que era dominado por um militar atraveacutes de uma corda amarrada em seu
pescoccedilo natildeo as atacava ou seja natildeo as causava lesotildees externas Era claramente
utilizado com o intuito de ameaccedilaacute-las Dessa forma mesmo sendo efetuado atraveacutes da
accedilatildeo direta do torturador e mediante o contato fiacutesico esse mecanismo de tortura tinha
por objetivo causar danos exclusivamente psicoloacutegicos Como normalmente as
mulheres possuem mais sensibilidades e fobias relacionadas ao contato com animais
provavelmente esse tipo de tortura atingisse maior eficiecircncia quando destinado agraves
presas
Conforme jaacute analisado e inclusive indicado pelo nome Destacamento de
Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) os presos do DOIRJ estavam ali para fornecer
informaccedilotildees que levassem agrave neutralizaccedilatildeo das organizaccedilotildees poliacuteticas de esquerda
Assim de acordo com a necessidade da raacutepida extraccedilatildeo de tais dados caracterizada
anteriormente natildeo eacute difiacutecil concluir que o clima de ameaccedila e tortura estivesse por toda
parte do preacutedio Portanto percebe-se que as torturas no DOI-CODIRJ de 1970 natildeo se
limitavam agraves fiacutesicas e nem agrave ldquosala roxardquo elas se apresentavam sob diversas faces em
vaacuterios momentos e lugares do edifiacutecio
178
As torturas psicoloacutegicas eram variadas Aleacutem da degradaccedilatildeo inicial que o
desconforto das celas ldquosolitaacuteriasrdquo trazia ao prisioneiro mesmo nas celas coletivas os
presos eram submetidos a muitos outros artifiacutecios desse tipo de tortura tais como luzes
das celas constantemente acesas a fim de que perdessem a noccedilatildeo da passagem do
tempo carcereiros durante a noite abrindo repetidamente a janelinha do portatildeo das
celas para vigiaacute-los acordando-os jaacute que o movimento emitia um som alto visitas
recorrentes de militares agraves celas e gritos vindos da ldquosala roxardquo ouvidos a todo tempo
[] essa porta da nossa cela ela tinha uma abertura era uma porta fechada
natildeo era grade natildeo era uma porta pesada e ela tinha um quadrado em cima
com uma abertura para o lado de fora e esses soldados que faziam a ronda
eles abriam essa portinha de cinco em cinco minutos Entatildeo eles passavam e
ldquopahrdquo e dependendo da maldade desses caras eles batiam com mais forccedila
ou menos forccedila isso era a noite toda Inclusive a luz ficava acesa
permanentemente e essa batidinha desse negoacutecio era uma coisa insuportaacutevel
De vez em quando a gente estava pegando no sono e tomava aquele susto
com aquela batida [] a gente tambeacutem ouvia muito grito de tortura o tempo
todo (Pandolfi 5 fev 2003)
[] nem na hora de dormir apagavam a luz dia e noite era a luz acesa vocecirc
sabia o horaacuterio pela hora do cafeacute da manhatilde Mas ateacute se tinha alguma noccedilatildeo
porque como a janela laacute no alto da parede era de vidro dava para vocecirc
perceber que estava agrave noite [] (Carvalho 8 fev 2003)
[] eles faziam o tal do confere de manhatilde e de noite vinham com catildees
policiais farejando a gente e a gente tinha que ficar em peacute igual a soldado
dizendo - ldquoCeciacutelia Coimbrardquo Tinha que falar o nome [] era o tal do
confere E era uma coisa de humilhaccedilatildeo eles de madrugada abriam
estrondosamente as celas entendeu [] era como se noacutes fossemos animais
animais de circo Animais raros eacuteramos os lsquoterroristasrsquo neacute [] era o tempo
todo as torturas fiacutesicas e a coisa da rotina para te degradar enquanto ser
humano [] (Coimbra 30 nov 2004)
179
Outro tipo de tortura psicoloacutegica aplicada no DOI-CODIRJ de 1970 fora da ldquosala
roxardquo jaacute aqui mencionada era o capuz Os agentes das turmas auxiliares encarregados
da carceragem colocavam uma espeacutecie de capuz no prisioneiro quando o levavam da
cela ateacute a ldquosala de torturardquo No entanto no momento em que o preso chegava nessa sala
tinha o capuz retirado pelos agentes das turmas de interrogatoacuterio preliminar Logo no
DOI-CODIRJ de 1970 o capuz ainda natildeo era um mecanismo para esconder os rostos
dos torturadores e sim mais um artifiacutecio de intimidaccedilatildeo do prisioneiro Aliaacutes foi
exatamente por isso que muitos ex-prisioneiros conseguiram anos depois denunciar
militares que na eacutepoca teriam sido seus algozes 50
Ana Batista ressalta ainda ter sido submetida no DOI-CODIRJ a outro tipo de
tortura psicoloacutegica O meacutedico Amilcar Lobo teria solicitado a um agente da turma
auxiliar de plantatildeo que a carregasse ateacute uma sala do 1ordm BPE fora do preacutedio do DOI-
CODIRJ jaacute que estava com ferimentos que natildeo permitiam que andasse Laacute Ana foi
supostamente examinada pelo referido meacutedico e dele escutou o diagnoacutestico de que natildeo
poderia ter filhos pois tinha o uacutetero infantil e retrovertido ou seja atrofiado e virado
para a parte posterior do corpo No entanto apoacutes ser posta em liberdade quatro anos
depois Ana descobriu que aquela afirmaccedilatildeo natildeo era verdadeira pois poderia
engravidar tendo tido posteriormente dois filhos
Eu sei que tem o paacutetio porque uma vez me carregaram para laacute um soldado
foi e me carregou Eu natildeo estava andando eu estava toda ferida entatildeo ele
me carregou pelo paacutetio ateacute uma espeacutecie de consultoacuterio do Amilcar Lobo []
eu estava toda ferida na vagina devido aos choques eleacutetricos e porque
tinham me enfiado o cassetete [] Aiacute ele me examinou e disse assim ldquo-
Vocecirc tem o uacutetero infantil e retrovertido vocecirc nunca vai poder ter filhosrdquo
Assim Eu tinha 21 anos e passei quase quatro anos achando que eu nunca ia
poder ter filhos O cara sabia o que estava fazendo (Miranda 17 nov 2004)
50
Em Os Funcionaacuterios tomo II do Projeto Brasil Nunca Mais se encontra a relaccedilatildeo alfabeacutetica das
pessoas envolvidas com torturas (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985 1-60)
180
Esse tipo de tortura psicoloacutegica destacada no trecho acima coincide com o tipo de
cotidiano vivido pelos presos do DOI-CODIRJ No entanto encaixa-se tambeacutem com o
estilo enfaacutetico que a narrativa de Ana atribuiacutea em 2004 aos danos que a prisatildeo poliacutetica
lhe causara A recente composiccedilatildeo de seu memorial sobre os sofrimentos vividos
durante a ditadura militar enviado agrave Comissatildeo Especial da Secretaria de Direitos
Humanos do Estado do Rio de Janeiro pautava-se no objetivo de receber o valor
maacuteximo da reparaccedilatildeo financeira oferecida pelo Estado No momento da entrevista era
esse o presente que Ana vivia e era atraveacutes dele que inconscientemente lia o passado
Logo sua narrativa apesar de aparentemente coerente sofria influecircncias que as
aspiraccedilotildees e interpretaccedilotildees do presente involuntariamente impuseram a suas memoacuterias
Poreacutem o fato do meacutedico Amilcar Lobo ter lhe dado um diagnoacutestico falso de
esterilidade encontra explicaccedilatildeo natildeo soacute em sua narrativa construiacuteda a partir da
interpretaccedilatildeo de que a notiacutecia teria sido motivada apenas pelo grande dano psicoloacutegico
que isso causaria a uma jovem de 21 anos mas tambeacutem no papel que o meacutedico
desempenhava dentro daquela instituiccedilatildeo Afinal aleacutem de funcionar como uma tortura
psicoloacutegica o diagnoacutestico dado por Amilcar Lobo foi provavelmente uma forma de
tentar resguardar o DOI-CODIRJ de possiacuteveis acusaccedilotildees posteriores de tecirc-la tornado
infeacutertil tantos eram os ferimentos que Ana havia sofrido em seus oacutergatildeos reprodutores
Afinal conforme constatado a principal funccedilatildeo do meacutedico ali era auxiliar as torturas e
cuidar dos ferimentos dos presos na tentativa de proteger a instituiccedilatildeo de acusaccedilotildees que
poderiam trazer preocupaccedilotildees futuras por exemplo a responsabilidade por graves
ferimentos e mortes
Isso no entanto natildeo quer dizer que as torturas do DOI-CODIRJ natildeo tenham
ocasionado mortes Sabe-se que muitos prisioneiros poliacuteticos depois de laacute entrarem
foram dados como desparecidos Quando esses presos eram mortos dentro de
181
instituiccedilotildees como o DOI-CODIRJ os militares envolvidos ou desapareciam com os
corpos pois assim natildeo se tinha como provar o que havia acontecido e por conseguinte
natildeo existiriam culpados ou quando a prisatildeo tivesse sido noticiada por algum meio de
comunicaccedilatildeo o corpo aparecia sob uma justificativa forjada que excluiacutesse a culpa da
instituiccedilatildeo prisional Na maior parte das vezes dizia-se que o prisioneiro havia
cometido suiciacutedio na prisatildeo ou sido baleado em tiroteio o que se supunha estar
relacionado a uma anterior tentativa sua de fuga
Nas entrevistas aqui trabalhadas alguns depoentes relataram ter tido contato
dentro do DOI-CODIRJ com pessoas que depois foram dadas como mortas sob tais
justificativas Dulce por exemplo afirma ter sido acareada durante uma sessatildeo de
tortura com Eduardo Collen Leite o Bacuri morto segundo a Comissatildeo Especial sobre
Mortos e Desaparecidos (2007 139) no Forte dos Andradas na cidade do Guarujaacute
(SP) trecircs dias apoacutes militares implantarem na imprensa a falsa notiacutecia de sua fuga
atribuindo sua morte a um suposto tiroteio na rua entre ele e militares
Quando eu estava laacute eu fui acareada com o Bacuri Eu jaacute encontrei com ele
assim muito mal ele estava respirando mal foi uma cena assim muito barra
pesada e eu sei que depois ele morreu eu natildeo sei se ele morreu laacute mas logo
depois que eu estive com ele ele morreu Ele eacute um desses mortos do
processo Ele morreu fruto de tortura ele foi brutalmente torturado ele jaacute
chegou na PE muito torturado muito quebrado e teve comentaacuterios de
torturadores que diziam ter feito um estrago muito grande nele e natildeo tinham
conseguido que ele falasse as coisas que eles queriam que ele falasse
(Pandolfi 5 fev 2003)
Fernando teve seu irmatildeo Eiraldo de Palha Freire baleado e junto com ele preso
pelos militares da Aeronaacuteutica no aeroporto do Galeatildeo no Rio de Janeiro Mesmo
gravemente ferido Eiraldo foi segundo Fernando e a Comissatildeo Especial sobre Mortos
e Desaparecidos (2007 131) transferido para o DOI-CODIRJ e laacute morto sob torturas
182
Poreacutem de acordo com Fernando seu corpo foi entregue agrave famiacutelia sob a versatildeo de
suiciacutedio
Meu irmatildeo veja bem ele foi metralhado no aviatildeo mas ele estava vivo e
ainda foi parar no DOI-CODI Ele estava ferido mas chegou a levar tortura
natildeo resistiu e morreu aiacute disseram que ele se suicidou (Freire 28 jun 2004)
Hoje no entanto grande parte dos mortos e desaparecidos foi reconhecida pelo
Estado brasileiro A Comissatildeo Especial sobre Mortos e Desaparecidos Poliacuteticos
implantada pela lei 914095 encerrou em 2006 a etapa de reconhecimento e reparaccedilatildeo
financeira agraves famiacutelias reconhecendo um total de 253 mortos e desaparecidos poliacuteticos
por autoridades do Estado brasileiro entre os anos de 1961 e 1988 A partir de 2007
essa Comissatildeo passou a concentrar-se na busca e no reconhecimento de ossadas para
que muitas famiacutelias descubram o que de fato aconteceu com seus entes desaparecidos e
possa enterraacute-los conforme indicado pelo seu livro-relatoacuterio Direito agrave verdade e agrave
memoacuteria (2007)
A partir da anaacutelise aqui feita a respeito das torturas a que os presos eram
submetidos no DOI-CODIRJ em 1970 nota-se que essas eram destinadas a todos que
laacute entravam No entanto percebe-se que a intensidade das torturas no DOI-CODIRJ de
1970 variava de acordo principalmente com o tempo de prisatildeo com o tipo de
organizaccedilatildeo que o preso integrasse (se era ou natildeo adepta da luta armada) e com a
resistecircncia que ele apresentasse para conceder as informaccedilotildees que os agentes das turmas
de interrogatoacuterio preliminar buscavam
Logo constata-se que quanto mais ativa fosse a organizaccedilatildeo de luta armada a que
o prisioneiro estivesse relacionado mais ele seria submetido a torturas e quanto mais
ele resistisse a essas mais intensas elas seriam podendo inclusive acarretar sua morte
183
Afinal os prisioneiros ligados a organizaccedilotildees armadas em ampla atividade tinham mais
informaccedilotildees sobre outros militantes procurados
Diante disso como a ALN e o MR-8 eram organizaccedilotildees envolvidas em grandes
accedilotildees armadas da eacutepoca ndash tais como os sequestros dos embaixadores americano e
alematildeo e do aviatildeo da Companhia Aeacuterea Cruzeiro do Sul ocorridos em 4 de setembro de
1969 11 de junho de 1970 e 1ordm de julho de 1970 respectivamente ndash os prisioneiros que
delas faziam parte ou tinham algum tipo de relaccedilatildeo com seus militantes foram
submetidos a intensas torturas no DOI-CODIRJ Como os perfis de Dulce Fernando
Ana e Ceciacutelia se encaixavam nessas caracteriacutesticas conforme analisado no segundo
capiacutetulo a eles foi imposto no DOI-CODIRJ um cotidiano ainda mais violento do que
por exemplo a Antocircnio
Afinal em meados de 1970 quando Antocircnio de Carvalho51
foi preso e levado
para o DOI-CODIRJ o PCBR sua organizaccedilatildeo na eacutepoca apesar de adepta da luta
armada jaacute se encontrava relativamente desestruturada uma vez que suas principais
lideranccedilas jaacute haviam ldquocaiacutedordquo Dessa forma o PCBR mesmo ainda em atividade natildeo
estava envolvido em accedilotildees tatildeo organizadas e com tamanha repercussatildeo como estavam a
ALN e o MR-8 por exemplo Entatildeo Antocircnio apesar de passar pelas duas fases da
prisatildeo e natildeo ser poupado de duras torturas como ocorreu com Padre Maacuterio
provavelmente natildeo sofreu o mesmo grau de violecircncia destinado a Dulce Fernando Ana
e Ceciacutelia As informaccedilotildees que ele tinha natildeo levariam o DOI-CODIRJ aos envolvidos
com as accedilotildees armadas em destaque na eacutepoca
51
Para mais informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria poliacutetica que acarretou a prisatildeo de Antocircnio Leite de Carvalho
voltar ao segundo capiacutetulo
184
32 O dia-a-dia no caacutercere
O dia-a-dia vivido pelos prisioneiros poliacuteticos no DOI-CODIRJ natildeo era o mesmo
que o vivido em um presiacutedio comum A ameaccedila de tortura o medo dela decorrente e o
sentimento de abandono que ela causava estavam presentes a todo momento Assim
natildeo poderia ser diferente que na memoacuteria construiacuteda pelos ex-prisioneiros poliacuteticos do
DOI-CODIRJ de 1970 a tortura ocupe a maior parte das narrativas sobre o cotidiano
ali vivido
No entanto a memoacuteria dos prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ de 1970
entrevistados entre os anos de 2002 e 2004 abarca tambeacutem outros aspectos daquele dia-
a-dia A partir de seus relatos aleacutem de se tornar viaacutevel a anaacutelise sobre as refeiccedilotildees os
banhos e os passatempos durante a prisatildeo no DOI-CODIRJ se torna possiacutevel tambeacutem
perceber como a convivecircncia a cumplicidade entre os presos e ateacute algumas
demonstraccedilotildees de solidariedade dos carcereiros foram elementos importantes para que
resistissem ao violento cotidiano ali vivido
Na primeira fase da prisatildeo os presos ficavam sozinhos em pequenas celas onde
natildeo havia colchatildeo banheiro e eram constantemente levados agrave sala de tortura Este
cotidiano inicial era muito degradante fiacutesica e mentalmente natildeo soacute pelo sofrimento
acarretado pelo grande nuacutemero de torturas sofridas e pelo desconforto das celas mas
tambeacutem pela solidatildeo nelas vivenciada Afinal natildeo foi por acaso que tais celas ficaram
conhecidas como ldquosolitaacuteriasrdquo
A solidatildeo era uma caracteriacutestica que contribuiacutea fortemente para a fragilidade do
prisioneiro do DOI-CODIRJ Isto torna-se mais evidente quando percebe-se a grande
importacircncia que um raacutepido contato com outro preso representava durante a primeira
fase da prisatildeo Eacute o que pode-se apurar no seguinte trecho narrado por Fernando
185
[] uma hora eu estava encostado aqui [aponta para onde ficava uma das
ldquosolitaacuteriasrdquo no desenho que fez em um papel] no primeiro dia aiacute botaram um
cara no corredor [] era um dirigente do Partido Comunista um velho da
minha idade atualmente Ele tremia muito [] Aiacute ele disse - ldquoEstaacute frio neacute
companheirordquo aiacute eu - ldquoMuitordquo e ele disse - ldquoMas eacute mais psicoloacutegicordquo Aiacute
eu senti uma vergonha sabe Porque eu estava me sentindo tatildeo mal tatildeo para
baixo e um homem daquela idade estava firme[] Ele me deu uma forccedila
muito maior do que ele imagina [] (Freire 28 jun 2004)
Evidencia-se atraveacutes dessa narrativa como em meio ao sofrimento e agrave solidatildeo que
Fernando lembra ter vivenciado no primeiro dia de sua prisatildeo no DOI-CODIRJ um
simples diaacutelogo foi capaz de revitalizar a sua resistecircncia Esse pequeno contato foi tatildeo
importante para Fernando a ponto de ficar marcado em sua memoacuteria ateacute o momento de
sua entrevista mais de trinta anos depois
A partir disso nota-se que aquele cotidiano criava independente das pequenas
diferenccedilas ideoloacutegicas que poderiam existir uma forte identidade entre os presos As
dores decorrentes das torturas e a sensaccedilatildeo de solidatildeo que sentiam no DOI-CODIRJ
faziam com que presos que nunca tivessem se visto antes criassem rapidamente uma
forte cumplicidade e amizade Assim nos momentos em que estavam juntos
principalmente durante a segunda fase da prisatildeo eles conversavam apoiavam-se e
cuidavam uns aos outros extraindo desse conviacutevio forccedila para encararem os proacuteximos
dias de prisatildeo
Essa experiecircncia coletiva dentro do DOI-CODIRJ era valiosa ateacute porque nem
mesmo quando os presos jaacute estavam na segunda fase da prisatildeo ela era garantida Afinal
apesar do prisioneiro poliacutetico do DOI-CODIRJ durante a segunda fase ficar em celas
com estrutura para mais de um preso ele nem sempre tinha companhia Conforme jaacute
analisado anteriormente no DOI-CODIRJ existia uma grande rotatividade e isso
186
implicava em que em determinados momentos as celas coletivas estivessem cheias e
em outros habitadas por dois ou ateacute mesmo um uacutenico prisioneiro
Logo por ser a primeira fase um periacuteodo de isolamento e a segunda devido agrave alta
rotatividade do DOI-CODIRJ uma fase em que ora se estava sozinho e ora tinha-se
companheiro(s) de cela a convivecircncia era entatildeo muito valorizada pelos presos como se
pode perceber na ecircnfase que ela recebe nas memoacuterias dos entrevistados
[] quando estaacutevamos juntas era bem melhor porque existia uma identidade
muito forte entre a gente Eram pessoas que nunca tinham se conhecido de
um modo geral mas aquele oacutedio contra a ditadura o fato de todas terem sido
torturadas aquilo dava margem a uma liga muito grande entre a gente
Entatildeo quando noacutes estaacutevamos juntas a gente cantava a gente conversava a
gente contava histoacuterias de vida o tempo passava e a gente tinha uma
intimidade Conseguimos construir uma coisa muito soacutelida mesmo com
poucas horas e poucos dias mesmo nesse esquema que eu estou te falando
quer dizer as pessoas natildeo ficavam laacute fixas Teve uma vez que uma moccedila
ficou laacute trecircs dias outra que ficou quatro outra que ficou cinco Mas era
uma coisa muito boa chegar algueacutem mesmo vocecirc vendo a pessoa chegar
toda esbagaccedilada porque os que entravam naquela cela jaacute tinham passado laacute
embaixo [] (Pandolfi 5 fev 2003)
[] a cela coletiva na verdade acabava se constituindo num foacuterum de
debates Sempre discutiacuteamos poliacutetica porque eram companheiros de
diversas organizaccedilotildees natildeo era uma uacutenica organizaccedilatildeo ou um uacutenico partido
que estava ali preso mas sim vaacuterios e havia aquela troca de experiecircncias
cada um contava a sua histoacuteria e assim ia passando o dia-a-dia sempre
havia novidades Assim a gente acabava quebrando um pouco o isolamento
[] (Carvalho 8 fev 2003)
Essa convivecircncia no caacutercere fomentou portanto a solidariedade e instituiu um
forte sentimento de coletividade entre os presos Afinal a luta pela sobrevivecircncia e o
pavor de voltar a ser torturado eram comuns a todos eles que procuravam na uniatildeo criar
forccedilas para suportar aquele pesado cotidiano A troca de apoio servia entatildeo como uma
187
espeacutecie de sustentaccedilatildeo como uma garantia de sobrevida Ao preocuparem-se e
ajudarem-se os presos injetavam-se um acircnimo importante para conseguirem resistir agrave
situaccedilatildeo de desespero e solidatildeo que ali era vivida e diante dessa realidade acabavam
formando um grupo coeso cuja principal caracteriacutestica era justamente esse apoio
Constituiacuteam portanto uma identidade conjunta atraveacutes da qual se viam sob os mesmos
temores e anseios aleacutem de perceberem essa parceria como uma extensatildeo da resistecircncia
agrave ditadura que vinham praticando desde antes de serem presos
Ana Dulce e Ceciacutelia memoacuterias relacionadas
Ana e Dulce e depois Dulce e Ceciacutelia foram companheiras de cela durante parte
da segunda fase de suas prisotildees no DOI-CODIRJ de 1970 Suas narrativas sobre a
convivecircncia que laacute tiveram servem aqui para analisar tanto as relaccedilotildees entre suas
memoacuterias quanto alguns aspectos do cotidiano dessa instituiccedilatildeo
Conforme analisado no segundo capiacutetulo Ana chegou ao DOI-CODIRJ no final
de julho de 1970 Logo depois em 14 de agosto do mesmo ano Dulce foi presa e para
laacute tambeacutem levada Como Ana afirma ter permanecido no DOI-CODIRJ por cerca de
um mecircs constata-se que no final de agosto quando ela jaacute estava em vias de ser
transferida colocaram Dulce em sua cela no segundo andar Dulce acabava de vir da
primeira fase de sua prisatildeo que por ter lhe causado graves consequecircncias fiacutesicas tinha
sido mais curta Nesse momento de extrema fragilidade em que Dulce se encontrava jaacute
que vinha de intensas sessotildees de tortura e de uma das ldquosolitaacuteriasrdquo do andar de baixo
Ana ajudou-a a cuidar de seus ferimentos e a tomar banho
Esse contato que teve com Ana apesar de curto jaacute que dias depois Ana foi
transferida para o DOI-CODISP parece ter sido muito importante para Dulce Afinal
apesar dela ter convivido com outras presas durante os quase trecircs meses em que ficou
188
no DOI-CODIRJ Ana foi a uacutenica companheira de cela que Dulce citou pelo nome
durante a entrevista
[] logo que eu cheguei fui para a solitaacuteria era torturada e ia para a solitaacuteria
era torturada e ia para a solitaacuteria quando eu comecei a passar muito mal
depois de um dia dois dias eles me levaram para outra cela maior onde
estava Ana Bursztyn que me deu banho Logo depois ela saiu da cela e eu
fiquei sozinha [] (Pandolfi 5 fev 2003)
A justificativa para a presenccedila de Ana ter ficado marcada na memoacuteria de Dulce
possivelmente eacute o fato de naquele momento aleacutem de estar extremamente machucada
Dulce natildeo ter ainda dividido cela com mais ningueacutem Estava ateacute entatildeo imersa em uma
rotina de solidatildeo e tortura que caracterizava a primeira fase da prisatildeo no DOI-
CODIRJ A ajuda e o conviacutevio com Ana portanto representaram para Dulce um
primeiro contato com algueacutem em quem podia confiar talvez uma primeira surpresa boa
no cotidiano que vinha vivendo no DOI-CODIRJ Jaacute para Ana que estava haacute mais
tempo presa Dulce provavelmente natildeo tinha sido a uacutenica a contar com sua ajuda logo
natildeo se destacava entre suas memoacuterias sobre o cotidiano ali vivido
Comparando as datas das prisotildees de Ana Dulce e Ceciacutelia percebe-se que apoacutes
Ana ter sido transferida Dulce ficou nessa cela grande chamada de ldquocoletivo das
mulheresrdquo enquanto Ceciacutelia entrava no DOI-CODIRJ Ceciacutelia passou pela fase das
ldquosolitaacuteriasrdquo e depois foi levada ateacute uma cela tambeacutem no segundo andar ao lado da de
Dulce onde esteve em companhia de uma moccedila Um tempo depois foi transferida para
o ldquocoletivo das mulheresrdquo onde estava Dulce com quem conviveu grande parte do
tempo
[] fiquei nessa cela [apontando para o desenho que havia feito mostra a
cela do segundo andar que ficava ao lado do ldquocoletivo das mulheresrdquo]
189
depois fui transferida para uma cela maior onde tinha vaacuterias presas poliacuteticas
inclusive uma pessoa que ficou grande parte do tempo comigo a Dulce
Grande parte do tempo eu fiquei com ela nessa cela era o lsquocoletivo das
mulheresrsquo [] (Coimbra 30 nov 2004)
Apesar de natildeo ser destacada entre as memoacuterias de Dulce Ceciacutelia durante sua
narrativa parece atribuir um papel importante ao conviacutevio que elas tiveram Afinal o
tempo que passou com Dulce no DOI-CODIRJ trouxe-lhe um dado a mais sobre as
aulas de tortura a novos oficiais que ali estavam ocorrendo jaacute que enquanto dividia cela
com Ceciacutelia Dulce serviu de cobaia para tais ensinamentos Assim como Ceciacutelia era
vice-presidente do GTNMRJ no momento de sua entrevista e por conseguinte tinha
como caracteriacutestica enfatizar em sua narrativa os detalhes sobre as torturas cometidas
pelos agentes do DOI-CODIRJ a fim de denunciaacute-las se justifica que Dulce tenha
papel marcante entre suas memoacuterias Esse destaque que a convivecircncia com Dulce
assumiu para Ceciacutelia pode ser conferido no trecho abaixo
[] a Dulce foi chamada para uma tortura de tarde [] a gente comeccedilou a
ouvir os gritos de Dulce e jaacute tinha passado todo o periacuteodo porque eles
torturam logo no iniacutecio para pegar informaccedilatildeo Aiacute eu digo ldquo- Soacute se
algueacutem caiu algueacutem foi preso e Dulce estaacute sendo acareadardquo Daqui a pouco
a Dulce volta para a cela com um soldado toda ferrada e aiacute ela ainda ia
voltar O cara disse ldquo- Oh eacute soacute para ela se lavarrdquo Entatildeo eu entrei no
chuveiro com ela e eu dizia ldquo- Dulce o que estaacute havendordquo E ela ldquo- Eu natildeo
estou entendendo o que estaacute acontecendo tem um bando de homem a minha
volta ningueacutem me faz pergunta nenhuma e estatildeo me torturando estatildeo me
botando no pau-de-arara estatildeo me fazendo afogamento estatildeo me dando
choque eleacutetrico eu natildeo estou entendendordquo E eu falei ldquo- Dulce isso eacute aula
para novos torturadoresrdquo Porque eu jaacute tinha lido num dos panfletos da UNE
sobre os meacutetodos de tortura que estavam sendo utilizados no DOI-CODI
aleacutem do jacareacute que a gente viu e que citavam tinha tambeacutem a aula a novos
torturadores ou seja eles pegavam um preso que tinha tido maior resistecircncia
e botavam laacute como cobaia para ensinar aos novos torturadores todas as
190
teacutecnicas E foi isso que fizeram com Dulce Aiacute eu falei ldquo- Dulce isso eacute aula
para novos torturadores eu li essa porrardquo [] (Coimbra 30 nov 2004)
A partir disso fica claro que para Ceciacutelia a constataccedilatildeo da existecircncia de aulas de
torturas no DOI-CODIRJ utilizando presos poliacuteticos teve uma destacada importacircncia
Logo o seu conviacutevio com Dulce durante o periacuteodo em que ela foi viacutetima desses
ensinamentos tambeacutem teve
Aleacutem disso Ceciacutelia durante sua entrevista perguntou quem eu jaacute havia
entrevistado Assim ao saber sobre a entrevista de Dulce sentiu-se motivada a falar
sobre as experiecircncias que com ela tinha compartilhado durante a prisatildeo no DOI-
CODIRJ Dessa forma alguns outros detalhes sobre essa convivecircncia contidos na
memoacuteria de Ceciacutelia foram naquele momento reconstruiacutedos e narrados
Um deles em especial contribui para a anaacutelise sobre o cotidiano do DOI-
CODIRJ Diz respeito agrave relaccedilatildeo travada com alguns carcereiros ou seja soldados do 1ordm
BPE que integravam as turmas auxiliares Afinal a partir do relato de Ceciacutelia Coimbra
percebe-se que ela e Dulce puderam ir ateacute as celas onde estavam os seus companheiros
que na eacutepoca tambeacutem se encontravam aprisionados no DOI-CODIRJ graccedilas agrave ajuda
de um dos responsaacuteveis pela vigia daquela noite
Teve uma noite tinha um soldadinho que a gente natildeo lembra o nome a
gente soacute se lembra dos lsquofilhos da putarsquo a gente devia lembrar dos caras que
foram legais com a gente Esse cara por exemplo ele soube que o marido de
Dulce estava preso o Alexandre e que o Novaes meu marido estava preso
Aiacute como ele ia ficar a noite toda de guarda ele mandou os soldadinhos
descerem e permitiu que Dulce fosse agrave cela de Alexandre e eu agrave de Novaes
Esse cara natildeo saiu da minha cabeccedila [] Esse cara a gente conversando com
ele ele soube que o Novaes estava na cela do lado e que o Alexandre estava
numa outra cela ali perto e ele deixou Dulce foi para a cela de Alexandre e
eu para a de Novaes Assim rapidinho neacute Demos a matildeo um beijo assim
[beija a proacutepria matildeo para demonstrar] O cara se expocircs mesmo neacute E tinha
191
outros que entregavam neacute Entregavam os bilhetes Era um vendaval de
bilhetes durante a madrugada Os caras se expunham mesmo entendeu
Tinha coisas bonitas ali apesar daquele clima de terror tinha pessoas assim
solidaacuterias E esses nomes a gente natildeo lembra neacute Devia lembrar []
(Coimbra 30 nov 2004)
Conforme analisado no primeiro capiacutetulo tais carcereiros que integravam as
turmas auxiliares do DOI-CODIRJ natildeo eram oficiais de informaccedilotildees treinados
especialmente para trabalhar junto agrave repressatildeo poliacutetica eram soldados que em 1970
serviam ao quartel do 1ordm BPE52
Logo eram passiacuteveis de sentir solidariedade jaacute que
muitos deles natildeo estavam servindo ao DOI-CODIRJ por algum tipo de vocaccedilatildeo
estavam ali somente para cumprir com o serviccedilo militar do quartel Afinal apesar de
haver entre eles alguns que se identificassem com a funccedilatildeo e ateacute almejassem tornar-se
agentes de informaccedilotildees os integrantes dessas turmas auxiliares natildeo trabalhavam nos
interrogatoacuterios dos presos e consequentemente natildeo estavam diretamente relacionados
com as torturas Portanto pode-se dizer que no DOI-COIRJ existia compaixatildeo entre
soldados e prisioneiros
A partir disso evidencia-se como o indiviacuteduo tem um papel primordial para essa
anaacutelise Afinal ao considerar sua memoacuteria como fonte para a histoacuteria torna-se possiacutevel
perceber aqui algumas de suas idiossincrasias ou seja peculiaridades comportamentais
capazes de interferir na percepccedilatildeo sobre o cotidiano vivido no DOI-CODIRJ de 1970
Afinal a ajuda que o soldado deu a Dulce e Ceciacutelia eacute um exemplo tiacutepico de como as
peculiaridades individuais satildeo capazes de atribuir contrastes e inconstacircncias agrave
interpretaccedilatildeo de uma realidade do passado Desse modo entende-se perfeitamente o
porquecirc de Marshall Sahlins afirmar em Histoacuteria e Cultura (2006) que os indiviacuteduos
52
Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar ver o Anexo II
192
representam um feixe uacutenico resultado de uma ligaccedilatildeo peculiar entre infinitos traccedilos
culturais e sociais que natildeo conseguem ser captados por anaacutelises generalizantes
Uma vez que a partir de accedilotildees como a desse soldado pode-se afirmar que o
cotidiano prisional do DOI-COIRJ de 1970 natildeo era formado unicamente pela repressatildeo
e pela violecircncia dos militares que ali representavam o Estado como uma generalizaccedilatildeo
ou uma reduccedilatildeo de varaacuteveis poderia fazer crer Havia tambeacutem compaixatildeo ateacute mesmo
entre lados aparentemente opostos
As formas de lidar com o tempo
Para sobreviver ao cotidiano do DOI-CODIRJ natildeo bastava ser resistente
fisicamente tambeacutem era necessaacuterio manter a mente em equiliacutebrio Essa preocupaccedilatildeo
acompanhava o prisioneiro em todas as fases da prisatildeo mas principalmente quando ele
estava sozinho Afinal a solidatildeo trazia a sensaccedilatildeo de que o tempo natildeo passava e em
meio ao violento cotidiano a que era submetido o preso do DOI-CODIRJ percebia
mais facilmente sinais que lhe causavam medo e desespero
Ceciacutelia Coimbra e Dulce Pandolfi ressaltam que mesmo quando estavam em
celas coletivas com a companhia de outras presas percebiam muitos desses sinais
Ficavam em pacircnico pois na maior parte das vezes significavam que seriam levadas
novamente agrave ldquosala roxardquo Quando sozinhas a sensaccedilatildeo de pavor por natildeo ser
compartilhada provavelmente era ainda mais intensa
[] a gente ficou tatildeo traumatizada com o barulho de chave que quando a
gente ouvia a gente dizia ldquo- Eles vecircm para caacute vecircm pegar alguma de noacutesrdquo
Era uma loucura era um clima de terror [] (Coimbra 30 nov 2004)
[] toda vez que um soldado abria a cela trazia o capuz Era ateacute uma cena
muito dramaacutetica porque todo mundo comeccedilava a tremer de medo porque se
193
sabia que se o capuz estava ali era porque algueacutem ia descer algueacutem ia
circular e descer normalmente significava ser torturada Entatildeo era assim
uma coisa bem dramaacutetica bem traumaacutetica tambeacutem porque quando abriam a
cela e retiravam o capuz a gente pensava ldquo- pronto algueacutem vai agora pro
caceterdquo (Pandolfi 5 fev 2003)
Para manterem suas mentes satildes os prisioneiros do DOI-CODIRJ quando
sozinhos utilizavam alguns artifiacutecios Dulce em sua narrativa relata ter ficado algum
tempo sozinha em uma cela coletiva onde se ocupava em frear a impressatildeo de
vagarosidade do tempo e os maus pensamentos de diversas maneiras tais como
[] eu lembro de duas coisas que eu fazia como exerciacutecio para passar o
tempo Os colchotildees que eram horriacuteveis eram colchotildees de crina eu tirava
aquelas palhas de dentro do colchatildeo e ficava fazendo tranccedilas fazia vaacuterias
tranccedilas e contava uma tranccedila duas tranccedilas e ia montando uma na outra
Fazia filas de tranccedilas depois eu desmanchava tudo eu lembro que eu ateacute
tinha medo ldquo- Se esses caras descobrirem isso vatildeo mandar costurar o
colchatildeordquo Depois eu tirava tudo e guardava de novo laacute dentro do colchatildeo No
dia seguinte eu comeccedilava outra vez Eu dizia ldquo- eu natildeo posso enlouquecer
entatildeo eu tenho que ocupar a minha cabeccedila com alguma coisardquo Porque eu
natildeo tinha nada nada nada para fazer Outra atividade que eu fazia tambeacutem
Como [] o chatildeo da cela era como se fosse de umas lajotas de uns azulejos
sei laacute o quecirc eu contava aqueles quadrados todos multiplicava fazia
milhares de contas Fazia um jogo no chatildeo do quarto contava para frente
para traacutes multiplicava e naquilo ali eu ficava horas naquelas contas
matemaacuteticas naquelas multiplicaccedilotildees naquelas somas naqueles ladrilhos
[] (Pandolfi 5 fev 2003)
A execuccedilatildeo de tais meacutetodos certamente contribuiacutea para aumentar a possibilidade
de sobrevivecircncia e sanidade do prisioneiro do DOI-CODIRJ Poreacutem o preso dependia
de sua capacidade e habilidade para usar recursos que o beneficiassem e que ajudassem
a se opor aos mecanismos desetruturadores e despersonalizadores sobre ele empregados
Nessa situaccedilatildeo assim como Elizabeth Ferreira na obra Mulheres Militacircncia e Memoacuteria
194
(1996 65) acredita-se que o sentimento de auto-estima gerado nos presos poliacuteticos pelo
seu ideal poliacutetico e social eacute um elemento crucial de resistecircncia Atraveacutes desse
sentimento normalmente tais presos costumam sustentar a esperanccedila na mudanccedila o
que lhes gera forccedila e ateacute mesmo uma criatividade para suportar o sofrimento maior que
a de presos comuns
As roupas e as refeiccedilotildees
Como o DOI-CODIRJ de 1970 natildeo era um presiacutedio havia acabado de ser
montado dentro de um preacutedio do quartel do 1ordm BPE para abrigar temporariamente os
presos poliacuteticos que pudessem contribuir com suas investigaccedilotildees laacute natildeo existiam
refeitoacuterios visitas banho de sol ou mesmo uniformes Aleacutem da falta de uma estrutura
que propiciasse uma rotina normal de presiacutedio esse diferencial era importante para o
procedimento investigativo do DOI-CODIRJ Afinal havia ali a necessidade do preso
ficar incomunicaacutevel jaacute que quanto maior seu isolamento maior seria sua fragilidade e
esta se relacionava diretamente com sua capacidade em conceder informaccedilotildees No mais
esse isolamento tambeacutem estava relacionado com a preocupaccedilatildeo em proteger a
instituiccedilatildeo de acusaccedilotildees de maus tratos uma vez que caso os ferimentos dos presos
fossem notados poderiam ser vinculados a torturas e consequentemente denunciados
Dessa forma os prisioneiros do DOI-CODIRJ natildeo podiam nem mesmo tomar sol pois
poderiam ser vistos por pessoas dos preacutedios vizinhos e funcionaacuterios da faacutebrica da
Brahma localizada atraacutes do paacutetio do 1ordm BPE
As refeiccedilotildees eram portanto servidas nas proacuteprias celas pelos soldados da turma
auxiliar de plantatildeo Para colocarem cada uma das quatro refeiccedilotildees a que cada preso
tinha direito esses abriam a cela de manhatilde cedo no iniacutecio e no fim da tarde e agrave noite
Segundo a narrativa dos presos no cafeacute da manhatilde costumavam trazer um patildeo com
195
pasta de amendoim e um cafeacute com leite na caneca para cada preso No almoccedilo uma
bandeja de alumiacutenio com um prato que normalmente continha repolho arroz angu e
algumas vezes um pedaccedilo de carne Durante a tarde deixavam um bule de mate com
um pedaccedilo de patildeo na cela e no fim do dia repetiam para o jantar a mesma comida do
almoccedilo
As comidas servidas em 1970 aos prisioneiros do DOI-CODIRJ satildeo mais alguns
exemplos de detalhes do cotidiano que soacute podem ser abordados por meio da memoacuteria de
quem viveu aquele passado Diante disso eacute interessante perceber aspectos que
justificam o fato dessas refeiccedilotildees terem marcado as memoacuterias dos prisioneiros a ponto
de nelas sobreviverem por cerca de trecircs deacutecadas
[] a gente ateacute brincava que eles deviam ter uma plantaccedilatildeo de repolho ali
porque era repolho todo dia repolho cru repolho assado mas na hora do
almoccedilo normalmente vinha nessa bandeja de alumiacutenio e era repolho um
pouco de arroz feijatildeo e agraves vezes um pedaccedilo de carne era uma comida bem
horrorosa [] (Pandolfi 5 fev 2003)
[] A comida era peacutessima era aquela comida do rancho parecia uma
lavagem de porco uma coisa horrorosa [] Eu fiquei com a pele toda
lsquofodidarsquo porque a uacutenica coisa que eu conseguia comer era o angu []
(Coimbra 30 nov 2004)
Portanto o conteuacutedo das refeiccedilotildees do DOI-CODIRJ aleacutem de ter ficado marcado
na memoacuteria dos prisioneiros pelo aspecto sensorial ou seja pelo gosto e apresentaccedilatildeo
ruins permaneceu tambeacutem pela relaccedilatildeo com a vaidade feminina e pelo fato de remeter a
momentos que foram compartilhados O angu marcou Ceciacutelia por ter feito mal a sua
pele jaacute que como eacute uma comida gordurosa lhe causou espinhas abalando ainda mais a
sua aparecircncia fiacutesica jaacute degrada por aquele cotidiano prisional O repolho por sua vez
deixou marcas na memoacuteria de Dulce por ser motivo de deboche entre as presas pois sua
196
presenccedila recorrente nos pratos ocasionava uma espeacutecie de piada entre elas e trazia um
pouco de descontraccedilatildeo
Outro aspecto do cotidiano do DOI-CODIRJ de 1970 tambeacutem alcanccedilado por
meio dos detalhes trazidos pelas memoacuterias de ex-prisioneiros satildeo as roupas Como natildeo
existiam uniformes institucionais na maior parte do tempo as roupas eram as mesmas
que eles vestiam no dia em que entraram no 1ordm BPE Dessa forma quando jaacute estavam
em celas coletivas os presos muitas vezes lavavam-nas e entatildeo voltavam a vestiacute-las
Depois de algum tempo afinal as famiacutelias acabavam descobrindo onde eles estavam
presos e algumas roupas eram deixadas no Palaacutecio Duque de Caxias antigo preacutedio do
Ministeacuterio do Exeacutercito no Centro da cidade do Rio de Janeiro para serem enviadas e
entregues no 1ordm BPE aos prisioneiros
No entanto ateacute isso chegar a acontecer demorava pois fazia parte da seguranccedila
institucional tentar manter num primeiro momento sigilo sobre seus presos Assim
Ceciacutelia presa em agosto de 1970 lembra que por ter sentido muito frio durante o seu
primeiro mecircs no DOI-CODIRJ ela e suas companheiras de cela costumavam
improvisar formas de protegerem os peacutes
[] a minha matildee ia ateacute o Ministeacuterio do Exeacutercito e ela dizia ldquo- Minha filha
estaacute laacute na PErdquo Aiacute quase um mecircs depois a minha matildee conseguiu mandar
roupa para mim Ateacute entatildeo minha filha era um loucura neacute A gente fedia
sabe A gente tomava banho de chuveiro e botava a mesma roupa a gente
lavava a roupa e era mecircs de agosto e ainda estava frio Era um frio que a
gente sentia que a gente enrolava jornal nos peacutes porque natildeo tinha nenhuma
coisa nada Era no colchatildeo puro que a gente dormia (Coimbra 30 nov
2004)
Quando as famiacutelias conseguiam descobrir onde estavam enviavam aleacutem de
roupas alguns mantimentos como frutas por exemplo Essas vinham muitas vezes
197
embrulhadas em jornais velhos que serviam para alguns como proteccedilatildeo para o corpo e
para outros como distraccedilatildeo conforme pode-se constatar na narrativa de Antocircnio ao
lembrar que ele e seus companheiros de cela passavam o tempo lendo as notiacutecias velhas
contidas em tais jornais
Eu me lembro tambeacutem que quando alguns presos recebiam frutas essas
coisas embrulhadas em papel jornal jornal velho a gente lia o jornal e
ficaacutevamos um bom tempo lendo aqueles jornais com datas de um mecircs trecircs
meses atraacutes mas era sempre bom para a cabeccedila da gente ficar lendo as
notiacutecias mesmo velhas [] (Carvalho 8 fev 2003)
Como jaacute aqui ressaltado a cumplicidade que existia entre os presos do DOI-
CODIRJ ajudava a construir mecanismos que os protegiam das mais diversas
dificuldades Segundo Dulce para amenizar a escassez de roupa a que eram submetidas
num primeiro momento dentro do DOI-CODIRJ as presas do ldquocoletivo das mulheresrdquo
estabeleceram uma espeacutecie de acordo Atraveacutes dele ficou determinado que quem de laacute
saiacutesse deixaria algumas peccedilas para quem ainda ficasse tinha uma espeacutecie de rotina
entre as mulheres que quem saiacutea deixava alguma roupa laacute (Pandolfi 5 fev 2003)
Assim atraveacutes desse tipo de cumplicidade elas ajudavam a diminuir o sofrimento
diaacuterio umas das outras uma vez que as peccedilas deixadas na cela possibilitavam que as
presas conseguissem manter a higiene e amenizar a sensaccedilatildeo do frio
Percebe-se portanto que de fato o dia-a-dia do DOI-CODIRJ de 1970 era
atiacutepico pois este natildeo era um presiacutedio e sim um oacutergatildeo de repressatildeo poliacutetica Assim uma
das poucas semelhanccedilas com a rotina de um presiacutedio comum era basicamente a privaccedilatildeo
da liberdade Poreacutem apesar de ofuscado pela tortura e pelo pavor ali existia um
cotidiano que abarcava outros aspectos muito interessantes Afinal estes satildeo capazes de
198
muito esclarecer sobre o funcionamento praacutetico desse importante oacutergatildeo de repressatildeo da
ditadura militar brasileira e tambeacutem sobre diversos tipos de reaccedilotildees e relaccedilotildees humanas
do passado e do presente
199
Conclusatildeo
Quando o muro separa uma ponte une
Se a vinganccedila encara o remorso pune
Vocecirc vem me agarra algueacutem vem me solta
Vocecirc vai na marra ela um dia volta
E se a forccedila eacute tua ela um dia eacute nossa
Olha o muro olha a ponte
Olha o dia de ontem chegando
Que medo vocecirc tem de noacutes
Olha aiacute
Vocecirc corta um verso eu escrevo outro
Vocecirc me prende vivo eu escapo morto
De repente olha eu de novo
Perturbando a paz exigindo o troco
Vamos por aiacute eu e meu cachorro
Olha um verso olha o outro
Olha o velho olha o moccedilo chegando
Que medo vocecirc tem de noacutes
Olha aiacute
O muro caiu olha a ponte
Da liberdade guardiatilde
O braccedilo do Cristo horizonte
Abraccedila o dia de amanhatilde
Olha aiacute
Mauriacutecio Tapajoacutes amp Paulo Ceacutesar Pinheiro
(Pesadelo 1972)
200
Diante do exposto ao longo desta dissertaccedilatildeo conclui-se que a formulaccedilatildeo da
Doutrina de Seguranccedila Nacional feita pela ESG em colaboraccedilatildeo com o IPES e o IBAD
cerca de vinte anos antes do surgimento dos DOI-CODI tinha por base uma teoria de
guerra que nortearia a atuaccedilatildeo repressora desses oacutergatildeos Essa teoria interpretava os
movimentos de oposiccedilatildeo que vinham crescendo desde o iniacutecio dos anos 1960 como uma
espeacutecie de guerra revolucionaacuteria Todos os cidadatildeos brasileiros passavam entatildeo a ser
encarados como suspeitos e foi esta percepccedilatildeo que estimulou o governo militar a
planejar a Seguranccedila Nacional e por conseguinte criar um centralizado e articulado
aparato de informaccedilotildees internas junto a um eficiente oacutergatildeo repressivo de controle
armado os DOI-CODI
Aleacutem disso constatou-se que a consolidaccedilatildeo dos DOI-CODI por todas as Regiotildees
Militares do paiacutes substanciou-se tambeacutem atraveacutes da alta legalidade autoritaacuteria e das
medidas tomadas pelo governo para conter as cizacircnias militares Afinal o governo
ditatorial brasileiro na medida em que arbitrou leis a fim de legalizar o seu poder
poliacutetico e suprimir direitos antes garantidos agrave populaccedilatildeo construiu uma sustentaccedilatildeo
juriacutedica necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um aparato de seguranccedila cada vez mais forte e
centralizado Grande parte dessas leis autoritaacuterias foi usada como artifiacutecio para acalmar
os acircnimos na caserna responsaacuteveis por importantes conflitos internos que ameaccedilavam a
uniatildeo militar as chamadas cizacircnias militares As leis arbitraacuterias serviam entatildeo tanto
para conter a oposiccedilatildeo poliacutetica quanto para ceder agraves reivindicaccedilotildees por poder vindas da
caserna Completava-se dessa forma um cenaacuterio legal capaz de suportar um organismo
de repressatildeo onde os militares de meacutedias e baixas patentes trabalhariam com autonomia
uma das bases para a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
Diante disso viu-se tambeacutem que natildeo foi agrave toa que a estrutura e o funcionamento
do SISSEGIN e dos seus oacutergatildeos foram instituiacutedos e regulamentados por meio de
201
decretos sigilosos o que incluiu a experiecircncia da Oban criada em Satildeo Paulo em
meados de 1969 e no ano seguinte a institucionalizaccedilatildeo dos DOI-CODI por todo o
paiacutes Afinal a justificativa para esse sigilo estava justamente na maior mobilidade e
autonomia de accedilatildeo que traria para a atuaccedilatildeo repressora desses organismos pois em
segredo podiam agir sem grandes limitaccedilotildees natildeo esbarrando em questotildees externas agraves
decisotildees militares tal como o respeito aos direitos humanos
Os DOI-CODI destacavam-se principalmente pela independecircncia financeira e pela
centralizaccedilatildeo hieraacuterquica que os constituiacuteam essenciais para a alta eficiecircncia de suas
investigaccedilotildees e accedilotildees Tais atributos evitavam que suas operaccedilotildees fossem suscetiacuteveis agrave
duplicidade de tarefas a competiccedilotildees e a conflitos de interesses maximizando os seus
resultados Eram entatildeo organismos de excelecircncia a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo
Entretanto essa sofisticaccedilatildeo tambeacutem vinha do distanciamento mantido entre os
militares do governo e os que agiam nesses oacutergatildeos jaacute que a ditadura ao mesmo tempo
em que sancionava a tortura nessa instituiccedilatildeo estrategicamente negava a sua existecircncia
perante a sociedade isentando governo do paiacutes de qualquer ligaccedilatildeo com ela Em
complemento a essa ideia o sistema funcional dos DOI responsaacuteveis por accedilotildees que
englobavam as prisotildees e os interrogatoacuterios dos presos poliacuteticos apresentava-se
complexo e informal Dessa forma as brechas para que a aparente falta de controle
fosse exercida eram amplas a fim de que meacutetodos violentos ilegais tivessem ali uma
legitimidade excepcional Justifica-se assim como a versatildeo oficial dos militares ainda
possa ser a de que a tortura jamais resultou de qualquer ordem ou orientaccedilatildeo superior
Evidenciou-se poreacutem a incoerecircncia desta versatildeo jaacute que ficou claro que em todos
os organismos militares nos DOI inclusive existiam uma forte hierarquia a ser
cumprida Mesmo com a estrutura complexa ali existente qualquer accedilatildeo deveria ser
remetida a um superior logo a questatildeo da responsabilidade sempre poderia ser
202
resgatada Percebeu-se que em geral apesar de velada a tortura era do conhecimento
de toda a hierarquia militar inclusive dos generais agrave frente do governo
Durante todo o trabalho a intervenccedilatildeo do presente (2002-2004) sobre as
memoacuterias do passado (1970) foi conferida nas narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos
entrevistados Percebeu-se que o contexto poliacutetico e social vivido no presente e o
momento da vida pessoal de cada um tiveram uma contribuiccedilatildeo importante na forma
como os ex-presos construiacuteram suas memoacuterias Aleacutem disso a forma como a rede de
entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que as entrevistas foram realizadas
tambeacutem concorreram para essa intervenccedilatildeo no relato que fizeram sobre o passado
Enfim um dos principais elementos para a anaacutelise criacutetica exercida aqui sobre essas
memoacuterias foi sem duacutevida o reconhecimento dessa influecircncia do presente sobre o
passado
A trajetoacuteria prisional dos entrevistados os grupos oposicionistas que integravam
as accedilotildees de que participaram o momento da prisatildeo o tempo que permaneceram presos
e as funccedilotildees que exerciam no presente foram aspectos aqui ressaltados por mostrarem
um pouco da histoacuteria de vida e por meio desta a personalidade ou seja as
idiossincrasias de cada um deles Dessa forma foi possiacutevel aproximar-se do aspecto
individual de suas memoacuterias uacutenico a cada ser entendendo um pouco mais as bases de
suas construccedilotildees
Tornou-se assim viaacutevel analisar essas memoacuterias e colocaacute-las em diaacutelogo com o
conteuacutedo levantado a partir da anaacutelise historiograacutefica e da monografia sobre o DOI
escrita pelo coronel Pereira em 1978 possibilitando uma caracterizaccedilatildeo do cotidiano
prisional vivido pelos presos do DOI-CODIRJ em 1970 O trabalho organizacional dos
DOI-CODIRJ foi visto portanto de forma praacutetica As funccedilotildees de cada setor e seccedilatildeo
teorizadas principalmente por meio da monografia do coronel foram analisadas a partir
203
do acircngulo dos prisioneiros o que viabilizou a percepccedilatildeo de detalhes que constituiacuteam a
rotina daquela instituiccedilatildeo
Ficou claro que a violecircncia era a principal forma de extraccedilatildeo de informaccedilotildees e o
elemento-chave para a eficiecircncia conferida pela instituiccedilatildeo com relaccedilatildeo ao combate aos
opositores poliacuteticos da eacutepoca A tortura e o medo dela ocupavam um espaccedilo
significativo no cotidiano ali impetrado aos prisioneiros uma vez que eles estavam no
DOI-CODIRJ para serem a ela submetidos de forma a fornecerem mais facilmente
informaccedilotildees que levassem os agentes dos DOI a outros suspeitos Poreacutem verificou-se
que a tortura natildeo era a uacutenica face do cotidiano do DOI-CODIRJ
Afinal este trabalho mostrou outros aspectos que constituiacuteam a rotina dos presos
dentro desse oacutergatildeo que ateacute entatildeo natildeo havia sido alcanccedilada pela historiografia Percebeu-
se aqui outros elementos que apesar de pouco destacados pelas memoacuterias dos
entrevistados muito tecircm a dizer sobre aquele cotidiano as fases prisionais as refeiccedilotildees
as roupas as formas de resistecircncia o conviacutevio ente prisioneiros e ateacute mesmo algumas
accedilotildees solidaacuterias efetuadas por soldados em benefiacutecio dos presos poliacuteticos
Constatou-se como a memoacuteria pode enriquecer a percepccedilatildeo que se tem sobre um
passado revelando faces natildeo evidenciadas em documentos oficiais e tambeacutem como eacute
importante para levar ateacute o presente um passado doloroso mas que deve ser encarado a
fim de ser perdoado e ultrapassado Uma movimentaccedilatildeo nesse sentido vem acontecendo
no Brasil com as Caravanas da Anistia e principalmente com a recente aprovaccedilatildeo da
Comissatildeo da Verdade conforme pontuado anteriormente
A atualidade dessas iniciativas inclusive estimulou esta pesquisa impulsionada
pela curiosidade sobre as memoacuterias do passado vivido nos ldquoporotildees da ditadurardquo Logo
o tema da presente dissertaccedilatildeo foi pautado pela crenccedila na necessidade de uma ampla
revelaccedilatildeo sobre o que ocorreu na eacutepoca de forma a contribuir para que a reconciliaccedilatildeo
204
do presente com o passado seja um dia alcanccedilada uma vez que defende-se aqui tal
como Paul Ricoeur (2008 507) que eacute no caminho da criacutetica histoacuterica que a memoacuteria
encontra o seu sentido de justiccedila Dessa forma tem-se o cidadatildeo como destinataacuterio do
texto histoacuterico cabendo a ele tornar a discussatildeo puacuteblica fazendo um balanccedilo entre
histoacuteria e memoacuteria a fim de que se perceba o sofrimento do outro e daqueles que
continuam a sofrer pelas matildeos do mesmo mal repressor do passado A partir disso a
reconciliaccedilatildeo entre o passado e presente se tornaraacute efetiva contribuindo para que no
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lei1965-1988Del0898htm
BRASIL Decreto-lei Nordm1002 de 21 de outubro de 1969 Coacutedigo de Processo Penal
Militar Brasiacutelia Ministeacuterio da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em 18
dez 2011]
Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03decreto-leiDel1002htm
BRASIL Lei Nordm6683 de 28 de agosto de 1979 Concede anistia e daacute outras
providecircncias Brasiacutelia Ministeacuterio da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em
05 fev 2012] Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL6683htm
214
BRASIL Lei Nordm9140 de 04 de novembro de 1995 Reconhece como mortas pessoas
desaparecidas em razatildeo de participaccedilatildeo ou acusaccedilatildeo de participaccedilatildeo em atividades
poliacuteticas no periacuteodo de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 e daacute outras
providecircncias Brasiacutelia Ministeacuterio da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em
13 nov 2011] Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leisL9140htm
BRASIL Lei Nordm10559 de 13 de novembro de 2002 Regulamenta o art 8 ordm do Ato das
Disposiccedilotildees Constitucionais Transitoacuterias e daacute outras providecircncias Brasiacutelia Ministeacuterio
da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em 13 nov 2011]
Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03leis2002L10559htm
BRASIL Lei Nordm12528 de 18 de novembro de 2011 Cria a Comissatildeo Nacional da
Verdade no acircmbito da Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica Brasiacutelia Ministeacuterio da
Casa Civil da Presidecircncia da Repuacuteblica [acesso em 27 jan 2012] Disponiacutevel em
httpwwwplanaltogovbrccivil_03_Ato2011-20142011LeiL12528htm
DECLARACcedilAtildeO Universal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948
Brasiacutelia Representaccedilatildeo da UNESCO no Brasil 1998 [acesso em 15 jun 2011]
Disponiacutevel em httpunesdocunescoorgimages0013001394139423porpdf
ESCOLA de Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) Rio de Janeiro Divisatildeo
de Tecnologia da Informaccedilatildeo 2011 [acesso em 29 jan 2012]
Disponiacutevel em httpwwwecemeensinoebbreceme
GRUPO Tortura Nunca Mais Rio de Janeiro GTNM 2008 [acesso em 07 ago 2009]
Disponiacutevel em httpwwwtorturanuncamais-rjorgbr
HOSPITAL Central do Exeacutercito Rio de Janeiro Seccedilatildeo de Informaacutetica do Hospital
Central do Exeacutercito sd [acesso em 28 jan 2012]
Disponiacutevel em httpwwwhceebmilbr
JOFFILY Mariana Luzes e sombras da memoacuteria nacional os 40 anos da Oban In
Caros Amigos [perioacutedico na internet] Satildeo Paulo 14 set 2009 [acesso em 04 maio
2011]
Disponiacutevel em httpcarosamigosterracombrindex_sitephppag=materiaampid=129
MEMORIAL da Resistecircncia de Satildeo Paulo Satildeo Paulo Secretaria da Cultura do Governo
do Estado de Satildeo Paulo sd [acesso em 27 jan 2012]
Disponiacutevel em httpwwwmemorialdaresistenciasporgbr
215
Anexo I - Glossaacuterio de Siglas
ACO ndash Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria
ADI ndash Aacutereas de Defesa Interna
ALN ndash Accedilatildeo Libertadora Nacional
APERJ ndash Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio de Janeiro
1degBPE ndash 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito
Condi ndash Conselho de Defesa Interna
CENIMAR ndash Centro de Informaccedilotildees da Marinha
CEP ndash Centro de Estudos de Pessoal
CGI ndash Comissatildeo Geral de Investigaccedilotildees
CIA ndash Central Intelligence Agency
CIE ndash Centro de Informaccedilotildees do Exeacutercito
CISA ndash Centro de Informaccedilotildees de Seguranccedila da Aeronaacuteutica
CNBB ndash Conferecircncia Nacional dos Bispos do Brasil
CONDI ndash Conselhos de Defesa Interna
CPDOC ndash Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil
CSN ndash Conselho de Seguranccedila Nacional
DCE ndash Diretoacuterio Central dos Estudantes
DEOPS ndash Departamento de Ordem e Poliacutetica Social de Satildeo Paulo
DGPC ndash Departamento Geral de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro
DI-GB ndash Dissidecircncia Comunista da Guanabara
DOI-CODI ndash Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees ndash Centro de Operaccedilotildees de
Defesa Interna
216
DOPS ndash Departamento de Ordem Poliacutetica e Social
DSN ndash Doutrina de Seguranccedila Nacional
ECEME ndash Escola de Comando e Estado Maior do Exeacutercito
ESG ndash Escola Superior de Guerra
EMFA ndash Estado Maior das Forccedilas Armadas
EsNI ndash Escola Nacional de Informaccedilotildees
Fafich ndash Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas de Belo Horizonte
FUEC ndash Frente Unida dos Estudantes do Calabouccedilo
FGV ndash Fundaccedilatildeo Getuacutelio Vargas
GTNMRJ ndash Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro
HCE ndash Hospital Central do Exeacutercito
IBRADES ndash Instituto Brasileiro de Estudos Sociais
IFCS ndash Instituto de Filosofia e Ciecircncias Sociais
IHTP ndash Instituto de Histoacuteria do Tempo Presente
IPCM ndash Instituto Penal Cacircndido Mendes
IPM ndash Inqueacuterito Policial Militar
JOC ndash Juventude Operaacuteria Catoacutelica
LOC ndash Liga Operaacuteria Catoacutelica
MDB ndash Movimento Democraacutetico Brasileiro
MR-8 ndash Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro
MTC ndash Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos
N-SISA ndash Nuacutecleo do Serviccedilo de Informaccedilotildees de Seguranccedila da Aeronaacuteutica
Oban ndash Operaccedilatildeo Bandeirantes
OLAS ndash Organizaccedilatildeo Latino-Americana de Solidariedade
217
PCB ndash Partido Comunista Brasileiro
PC do B ndash Partido Comunista do Brasil
PCBR ndash Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio
PT ndash Partido dos Trabalhadores
SADI - Sub-Aacutereas de Defesa Interna
SFICI ndash Serviccedilo Federal de Informaccedilotildees e Contra-Informaccedilotildees
SIM ndash Serviccedilo de Informaccedilotildees da Marinha
SNI ndash Serviccedilo Nacional de Informaccedilotildees
SISNI ndash Sistema Nacional de Informaccedilotildees
SISSEGIN ndash Sistema de Seguranccedila Interna
UFF ndash Universidade Federal Fluminense
UFRJ ndash Universidade Federal do Rio de Janeiro
UNE - Uniatildeo Nacional dos Estudantes
UNIRIO ndash Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
ZDI ndash Zona de Defesa Interna
218
Anexo II - A Hierarquia do Exeacutercito Brasileiro53
Ciacuterculos
Hieraacuterquicos54
Hierarquizaccedilatildeo Patentes do Exeacutercito
Ciacuterculo de oficiais
Ciacuterculo de oficiais-generais
Marechal
General de Exeacutercito
General de divisatildeo
General de brigada
Ciacuterculo de oficiais
superiores Coronel
Tenente-coronel
Major
Ciacuterculo de oficiais intermediaacuterios Capitatildeo
Ciacuterculo de oficiais
subalternos Primeiro- tenente
Segundo- tenente
Ciacuterculo de praccedilas
Ciacuterculo de suboficiais subtenentes e
sargentos
Subtenente
Primeiro-sargento
Segundo-sargento
Terceiro-sargento
Ciacuterculo de cabos e soldados
Cabo e taifeiro-mor
Soldado e taifeiro-de
primeira classe
Soldado-recruta e taifeiro-
de-segunda-classe
Ciacuterculo de praccedilas
especiais
Frequentam o ciacuterculo de oficiais
subalternos Aspirante-a-oficial
Excepcionalmente ou em reuniotildees sociais
tecircm acesso ao ciacuterculo de oficiais
Cadete (aluno da Academia
Militar)
Aluno da Escola
Preparatoacuteria de Cadetes do
Exeacutercito
Aluno de Oacutergatildeo de
Formaccedilatildeo da Reserva
Excepcionalmente ou em reuniotildees sociais
tecircm acesso ao ciacuterculo de suboficiais
subtenentes e sargentos
Aluno da Escola ou Centro
de Formaccedilatildeo de Sargentos
Frequentam o ciacuterculo de cabos e soldados Aluno de Oacutergatildeo de
Formaccedilatildeo de Praccedilas da
Reserva
53
LEIRNER 1997 74-75 54
Os ldquoCiacuterculos hieraacuterquicosrdquo satildeo o acircmbito de convivecircncia entre os militares da mesma categoria Esses
ldquociacuterculosrdquo satildeo incorporados a fundo na conduta militar de forma que a divisatildeo acima exposta eacute seguida
no ambiente de trabalho salas refeitoacuterios e banheiros da instituiccedilatildeo conforme demonstra Piero de
Camargo Leirner em estudo antropoloacutegico sobre a instituiccedilatildeo militar Meia Volta Volver (1997 74-76)
5
Agradecimentos
Agradeccedilo primeiramente agrave minha orientadora Profordf Drordf Marly Silva da Motta
por sua orientaccedilatildeo zelosa pelo apoio e pelos inuacutemeros ensinamentos Com sua ajuda
consegui ultrapassar muitas dificuldades e penetrar com seguranccedila no universo dessa
pesquisa
Ao Professor Ameacuterico Freire de quem tive o prazer de ser aluna durante o
mestrado agradeccedilo pelas aulas pela bibliografia sobre o periacuteodo militar que muito me
ajudou na elaboraccedilatildeo dessa anaacutelise pelas criacuteticas construtivas elaboradas durante o
exame de qualificaccedilatildeo e pela participaccedilatildeo na banca examinadora dessa dissertaccedilatildeo
Ao Professor Luiacutes Reznik agradeccedilo por ter integrado a banca do exame de
qualificaccedilatildeo fazer parte da presente banca examinadora e tambeacutem pelas valiosas
sugestotildees indicaccedilotildees bibliograacuteficas e comentaacuterios incorporados ao estudo e agrave redaccedilatildeo
final desse trabalho
Agrave Professora Dulce Pandolfi agradeccedilo por sua generosidade em aceitar ser de
certa forma sujeito e objeto desta pesquisa desde seu nascimento durante a minha
graduaccedilatildeo em Histoacuteria pela UNIRIO quando permitiu que eu lhe entrevistasse e que
seu depoimento servisse de fonte para minha monografia de fim de curso cuja banca
examinadora contou com sua participaccedilatildeo Tambeacutem lhe agradeccedilo por durante o
mestrado continuar acompanhando de perto esta pesquisa participando da banca do
exame de qualificaccedilatildeo quando trouxe muitas consideraccedilotildees e sugestotildees produtivas a
este trabalho e da banca examinadora final desta dissertaccedilatildeo
Agrave Professora Icleacuteia Thiesen agradeccedilo pela credibilidade e incentivo que vem
injetando na minha face de pesquisadora desde o tempo em que fui sua aluna ainda
durante a graduaccedilatildeo
Aos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados Antocircnio Leite de Carvalho Dulce
Pandolfi Fernando Palha Freire Padre Maacuterio Prigol Ana Batista e Ceciacutelia Coimbra
agradeccedilo por me confiarem suas narrativas e me deixarem penetrar em parte de suas
memoacuterias
6
Agrave Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional onde muito me orgulho de trabalhar agradeccedilo
por incentivar a minha qualificaccedilatildeo enquanto pesquisadora permitindo que eu cursasse
o mestrado e me licenciasse nos uacuteltimos meses para me dedicar a esta dissertaccedilatildeo de
corpo e alma
Ao Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNMRJ) agradeccedilo por me
autorizar a consultar o arquivo da instituiccedilatildeo e por me receber afetuosamente durante
diversas reuniotildees onde pude conhecer alguns de seus integrantes tais como Ana Batista
e Ceciacutelia Coimbra a quem tive o prazer de entrevistar
Aos amigos Joatildeo Cerineu e Alejandra Estevez agradeccedilo a contribuiccedilatildeo
fundamental que efetuaram sobre este trabalho sendo os responsaacuteveis por me apresentar
aos ex-prisioneiros poliacuteticos Antocircnio e Padre Maacuterio
Agradeccedilo aos meus irmatildeos Rodrigo Renata e Melissa ao Rodrigo por despertar
em mim a vontade e a coragem de seguir a profissatildeo de historiadora agrave Renata por me
apoiar e ouvir sobre minha pesquisa atentamente mesmo quando eu repetia as mesmas
histoacuterias diversas vezes e principalmente agrave Melissa que muito me ajudou na
composiccedilatildeo do ldquoabstractrdquo desse trabalho com o seu inglecircs simplesmente perfeito
Aos amigos queridos que a Biblioteca Nacional me deu de presente
companheiros de jornada que me fazem melhorar a cada dia como profissional e que me
acompanharam durante todo o processo do mestrado me apoiando no que foi preciso e
me ajudando a superar os obstaacuteculos do dia-a-dia Agradeccedilo especialmente agrave Lia Jordatildeo
pelo companheirismo diaacuterio ao Francisco Madureira pelo auxiacutelio na ediccedilatildeo final dessa
dissertaccedilatildeo e agrave Regina Santiago pela amizade e disposiccedilatildeo sem igual em ler
minuciosamente este trabalho apontando sugestotildees que indiscutivelmente tornaram o
texto mais claro
Agraves amigas Manuela Joana e Letiacutecia agradeccedilo por estarem sempre comigo nas
alegrias e nas tristezas compartilhando conquistas e derrotas desde os tempos em que
juntas frequentaacutevamos as festas juninas da PE
7
Aos amigos do curso de Histoacuteria da UNIRIO agradeccedilo pelas trocas intelectuais
pelos incontaacuteveis momentos divertidos pela camaradagem e por essa amizade de dez
anos de histoacuteria
Aos meus pais sou e serei eternamente grata pelo carinho pelo apoio e por sempre
estarem ao meu lado durante todos esses anos
Aos meus sogros Eliana Lasmar e Luiz Fernando Arieira agradeccedilo por estarem
sempre por perto dispostos a estenderem a matildeo quando preciso
E por fim meus agradecimentos especiais a Raul Cordeiro meu companheiro de
todas as horas o engenheiro mais humano que eu jaacute conheci Agradeccedilo-lhe por tudo que
temos vivido juntos por nosso cantinho por nossas conversas por nosso conviacutevio de
todo dia por nosso amor pelo tanto e tatildeo pouco que enfeita cada momento da minha
vida me completa e me faz uma pessoa mais feliz
8
Tambeacutem neste lugar pode-se sobreviver e por isso eacute preciso
querer sobreviver para contar para testemunhar e que para
viver eacute importante esforccedilarmo-nos para salvar pelo menos o
esqueleto os pilares a forma da nossa civilizaccedilatildeo [hellip]
(Levi 2001 40)
9
Resumo
O objetivo dessa dissertaccedilatildeo eacute analisar a memoacuteria de seis ex-prisioneiros poliacuteticos
do Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees-Centro de Operaccedilotildees de Defesa Interna
do Rio de Janeiro (DOI-CODIRJ) entrevistados recentemente entre os anos de 2002 e
2004 sobre o cotidiano vivido nessa instituiccedilatildeo em 1970 Naquele ano dentro do
Sistema de Seguranccedila Interna (SISSEGIN) os DOI-CODI haviam sido criados e
distribuiacutedos por todas as Regiotildees Militares do paiacutes tornando-se a principal instituiccedilatildeo
de repressatildeo aos opositores poliacuteticos que optaram pela luta armada como forma de
derrotar a ditadura militar brasileira Assim as narrativas desses seis ex-prisioneiros
satildeo aleacutem de fontes essenciais o principal objeto de estudo deste trabalho Atraveacutes
delas torna-se possiacutevel acessar aspectos cruciais para a caracterizaccedilatildeo do cotidiano
vivido pelos presos em um desses oacutergatildeos ― o DOI-CODI do Rio de Janeiro ― uma
vez que esse passado se liga ao presente por meio de suas memoacuterias Diante disso a fim
de melhor entender tais memoacuterias a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI tambeacutem satildeo
aqui analisadas colocando as narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados em
diaacutelogo com uma bibliografia especialmente selecionada aleacutem de uma fonte a respeito
do DOI feita por um de seus agentes quando este oacutergatildeo ainda estava em atividade em
1978 Para que a essas memoacuterias seja aplicada uma criacutetica efetiva necessaacuteria a todo
trabalho histoacuterico o estudo se debruccedila ainda sobre as interferecircncias que o presente
exerce na construccedilatildeo que fazem com relaccedilatildeo ao passado vivido no DOI-CODIRJ com
o objetivo de esclarecer as bases sobre as quais satildeo construiacutedas cerca de trinta anos
depois
Palavras-chave Ex-prisioneiros poliacuteticos ndash Memoacuteria ndash DOI-CODI ndash Cotidiano ndash
Ditadura militar
10
Abstract
The objective of this thesis is to analyze the memory of six former political
prisoners of the Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees-Centro de Operaccedilotildees de
Defesa Interna do Rio de Janeiro or DOI-CODIRJ (Detachment of Information
Operations Center-Internal Defense Operations Center of Rio de Janeiro) recently
interviewed between 2002 and 2004 about their everyday living in that institution in
1970 At that year in the Sistema de Seguranccedila Interna or SISSEGIN (Internal Security
System) the DOI-CODI had been created and distributed by all the countryrsquos military
regions becoming the repression leading instituion of political opponents who oppted
for armed struggle as a way to defeat Brazilrsquos military dictatorship Thus these six
former prisioners narratives are not only essencial sources but the main study object of
this paper Through them it becomes possible to access crucial aspects for the
characterization of the daily lived by prisioners in one of these agencies - the DOI-
CODI in Rio de Janeiro - since this past connects to present through their memories
Therefore in order to understand such memories the training and the performance of
the DOI-CODI are also analyzed here placing the narratives of the interviewed former
political prisioners in dialogue with a specially selected bibliography and a source
about DOI made by one of its agents when that agency was still active in 1978 In
order to be applied to these memories an effective critique necessary to all historical
work the study still focuses on the interferences that the present exerts on the
construction that make in relation to the past lived in DOI-CODIRJ in order to clarify
the basis on which are built at about thirty years later
Key-Words Former political prisioners ndash Memory ndash DOICODI ndash daily Life ndash Military
dictatorship
11
Sumaacuterio
Agradecimentos 05
Resumo 09
Abstract 10
Introduccedilatildeo 13
Capiacutetulo 1 Os DOI-CODI formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo 28
1 Debate Histoacuterico 35
11 O papel da ESG para o Sistema de Seguranccedila Nacional 35
12 Os conceitos legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar 39
13 A montagem e o funcionamento do SISSEGIN 47
2 O DOI-CODI por ele mesmo 57
3 O DOI-CODI pelos prisioneiros 75
Capiacutetulo 2 Os presos poliacuteticos e suas organizaccedilotildees 85
1 A rede de entrevistas 91
11 Os sujeitos e suas trajetoacuterias 97
12 A nova esquerda brasileira 122
Capiacutetulo 3 O espaccedilo e o cotidiano do DOI-CODI carioca 136
1 O que sofre e o que resiste 137
2 Uma cartografia possiacutevel do ldquoCastelo do Terrorrdquo 142
12
3 Memoacuterias de um cotidiano 154
31 O interrogatoacuterio e a tortura 156
32 O dia-a-dia no caacutercere 184
Conclusatildeo 199
Fontes 205
1 ArquivoDocumentos Pessoais 205
2 Documentos Institucionais 205
3 Fonte Cinematograacutefica 205
4 Fontes Orais 205
5 Fontes Visuais 206
6 Perioacutedicos 206
Bibliografia 207
1 Bibliografia digital 213
Anexo I Glossaacuterio de Siglas 215
Anexo II A Hierarquia do Exeacutercito Brasileiro 218
13
Introduccedilatildeo
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo entatildeo que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino praacute laacute
Roda mundo roda gigante
Roda moinho roda piatildeo
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coraccedilatildeo
A gente vai contra a corrente
Ateacute natildeo poder resistir
Na volta do barco eacute que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que haacute
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira praacute laacute
Chico Buarque
(Roda Viva 1968)
14
Vivi bons momentos no 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito Era adolescente e os
momentos aos quais me refiro foram vividos durante o final de uma deacutecada
democraacutetica a de 1990 Mal sabia sobre a ditadura militar e muito menos que aquele
Batalhatildeo situado tatildeo proacuteximo agrave minha casa na Tijuca havia sediado um centro de
tortura O nome DOI-CODI nunca tinha ouvido falar Para mim e para todos os
adolescentes da Tijuca o 1ordm BPE era um Batalhatildeo convencional do Exeacutercito que tinha
um grande paacutetio utilizado todos os anos para a melhor festa junina da regiatildeo a ldquofesta
junina da PErdquo Logo para noacutes a principal caracteriacutestica da PE era o fato de durante os
meses de junho abrir as portas do seu paacutetio para tornaacute-lo ldquoponto de encontrordquo de muitos
jovens estudantes Quanta ironia
Jaacute no terceiro periacuteodo da faculdade de Histoacuteria da UNIRIO no primeiro semestre
de 2002 descobri o que aquele preacutedio havia sido durante a ditadura militar Soube
inclusive que ele era tombado pelo antigo Departamento Geral de Patrimocircnio Cultural
(DGPC) da Prefeitura justamente por representar a memoacuteria de muitos ex-prisioneiros
poliacuteticos que ali haviam sido torturados e mortos Fiquei perplexa Como nunca
ningueacutem havia me dito isso Como os professores de Histoacuteria da minha escola
localizada no mesmo bairro natildeo haviam destacado esse fato Por que essa parte da
Histoacuteria natildeo era amplamente divulgada Eu que sempre gostei de Histoacuteria natildeo agrave toa
escolhi fazer dela minha formaccedilatildeo e profissatildeo me senti instigada a revelar as memoacuterias
dos presos poliacuteticos que por laacute passaram A partir dessa descoberta mais do que uma
ldquonovardquo face do 1ordm BPE eu havia me deparado com outra revelaccedilatildeo o meu tema de
pesquisa
A partir de um amigo do curso de Histoacuteria no final de 2002 cheguei ao meu
primeiro entrevistado e daiacute em diante teci uma rede de entrevistas No final de 2004
havia reunido seis entrevistados trecircs homens e trecircs mulheres todos ex-prisioneiros
15
poliacuteticos que passaram pelo DOI-CODIRJ durante o mesmo ano de 1970 Essa
pesquisa resultou em minha monografia apresentada em 2005 como requisito para a
conclusatildeo do curso de Histoacuteria da UNIRIO O Castelo do terror memoacuteria e tortura no
espaccedilo prisional (1970-1974) 1
Natildeo abandonei o tema Ao contraacuterio resolvi aprofundaacute-lo no mestrado em
Histoacuteria Poliacutetica e Bens Culturais do CPDOCFGV onde ingressei em marccedilo de 2010
Nessa dissertaccedilatildeo que representa a fase conclusiva do mestrado trabalho com os
depoimentos dos mesmos seis ex-prisioneiros do DOI-CODIRJ de 1970 colhidos entre
os anos de 2002 e 2004 Aqui o objetivo mais amplo eacute se inserir no conjunto de estudos
que reflete sobre a construccedilatildeo de uma determinada memoacuteria a respeito da ditadura
militar
Analisar a memoacuteria de ex-prisioneiros poliacuteticos a fim de entender como essas
foram construiacutedas jaacute em tempos democraacuteticos e o que trazem em benefiacutecio da
caracterizaccedilatildeo daquele passado eacute o objetivo principal desta dissertaccedilatildeo Assim sendo
alguns aspectos especiacuteficos merecem ser destacados
O primeiro deles eacute que as entrevistas foram concedidas entre os anos 2002 e 2004
ou seja o passado ditatorial foi recuperado jaacute em tempos democraacuteticos Ao mesmo
tempo considerou-se que esses depoimentos satildeo fontes essenciais para atingir o
objetivo aqui traccedilado jaacute que a metodologia de histoacuteria oral eacute a mais adequada para
analisar os aspectos subjetivos e repletos de detalhes que correspondem ao rigoroso dia-
a-dia de quem esteve preso em um organismo repressor Logo eacute faacutecil concluir que as
fontes que permitiram a elaboraccedilatildeo deste estudo natildeo poderiam ser encontradas em
documentaccedilatildeo oficial
1 O Castelo do terror memoacuteria e cotidiano de ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI carioca (1970-
1979) monografia de fim de curso de bacharelado e licenciatura plena em Histoacuteria da UNIRIO orientada
pela Profordf Drordf Icleacuteia Thiesen e apresentada em abril de 2005
16
Instituiacutedos por todo o territoacuterio brasileiro a partir de 1970 os DOI-CODI
tornaram-se referecircncia-chave na memoacuteria sobre a tortura e a repressatildeo praticada pela
ditadura militar A partir disso nota-se que o trabalho desenvolvido com as memoacuterias
de ex-prisioneiros de uma de suas sedes a do Rio de Janeiro eacute uma das escassas
possibilidades existentes de se acessar esse passado ainda tatildeo presente
Esse objeto de estudo representa um grande desafio Afinal estaacute inserido entre
duas temporalidades recentes ndash quando a experiecircncia prisional foi efetivamente vivida
em 1970 e quando ela foi narrada pelos entatildeo ex-prisioneiros poliacuteticos entre 2002 e
2004 Por isso mesmo lanccedilou-se matildeo do aparato teoacuterico do que se convencionou
chamar de histoacuteria do tempo presente A partir dos anos 1980 durante o processo de
renovaccedilatildeo da histoacuteria poliacutetica a valorizaccedilatildeo de uma histoacuteria das representaccedilotildees e a
compreensatildeo dos usos poliacuteticos do passado pelo presente acarretou uma reavaliaccedilatildeo das
relaccedilotildees estabelecidas entre histoacuteria e memoacuteria que permitiu agrave historiografia fazer novas
reflexotildees sobre as relaccedilotildees entre passado e presente 2 Diante dessa percepccedilatildeo nasceu
na Franccedila o Instituto de Histoacuteria do Tempo Presente (IHTP) fundado por Franccedilois
Beacutedarida consolidando a histoacuteria do tempo presente como portadora da especificidade
de conviver com testemunhos vivos colocando sob seu foco principal os depoimentos
orais 3
A histoacuteria oral eacute portanto a metodologia principal desta dissertaccedilatildeo e por
conseguinte os depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos dela decorrentes satildeo aqui
tratados com todo o rigor necessaacuterio agrave pesquisa histoacuterica Afinal apesar de ser
demasiadamente criticada por ser uma metodologia apoiada na memoacuteria o que a
tornaria capaz de produzir representaccedilotildees e natildeo reconstituiccedilotildees do real entende-se que
2 Para mais informaccedilotildees sobre o surgimento da histoacuteria do tempo presente na historiografia ver Remoacutend
1996 e Ferreira dez 2002 314-332 3 Para mais informaccedilotildees sobre os fundamentos da histoacuteria do tempo presente ver Beacutedarida 2006 219-
229
17
as narrativas orais devem ser submetidas ao crivo da criacutetica histoacuterica tal como deve
ocorrer com todas as outras fontes Os documentos orais ou escritos tecircm uma razatildeo de
ser pois foram feitos por algueacutem com determinada visatildeo estimulado por algum motivo
eou intenccedilatildeo e por isso nunca seratildeo capazes de representar a realidade pura e absoluta
dos fatos Portanto qualquer fonte caso natildeo seja bem contextualizada e analisada
possibilita que a pesquisa caia em armadilhas e reconstrua um passado que nunca
existiu conforme bem elucidado por Michael Pollak
[] se a memoacuteria eacute socialmente construiacuteda eacute oacutebvio que toda documentaccedilatildeo
tambeacutem o eacute Para mim natildeo haacute diferenccedila fundamental entre fonte escrita e
oral A criacutetica da fonte tal como todo historiador aprende a fazer deve a
meu ver ser aplicada a fontes de tudo quanto eacute tipo (Pollak 1992 207-208)
A histoacuteria oral eacute de grande valia agrave histoacuteria do tempo presente contribuindo para
que o estudo da histoacuteria recente ndash por natureza mais inacabada do que qualquer outra
histoacuteria (Beacutedarida 2006 229) ndash seja incentivado desafiando as dificuldades
relacionadas ao acesso a fontes documentais de periacuteodos pouco distantes Aleacutem disso a
histoacuteria oral traz outro diferencial aqui destacado atraveacutes da fala torna-se possiacutevel
evidenciar uma carga subjetiva tornando acessiacutevel um tipo de informaccedilatildeo capaz de
enriquecer a anaacutelise histoacuterica e que natildeo seria obtido por meio de fontes escritas oficiais
Assim mesmo que uma experiecircncia relatada natildeo seja em si mesma um fato de certa
forma pode vir a secirc-lo jaacute que traz agrave tona o verdadeiro sentimento de algueacutem perante
uma situaccedilatildeo e esse sentimento eacute um fato que soacute pode ser alcanccedilado mediante agraves
memoacuterias trazidas pelos relatos (Portelli 1996 59-72)
Os usos que os ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ fazem de seu passado
prisional eacute um dos principais aspectos aqui ressaltados Para tanto o conceito de
presente do passado de Robert Frank (1999) eacute utilizado ao longo deste trabalho como
18
ferramenta para destacar as influecircncias que o presente de suas narrativas exerce sobre a
maneira pela qual eacute revivido o passado vivenciado no DOI-CODIRJ
Desde que haviam passado pelo DOI-CODI carioca em 1970 em plena ditadura
militar a chamada ldquolei de anistiardquo jaacute havia sido instituiacuteda no paiacutes em 1979 que entre
outras providecircncias anistiava todos quantos no periacuteodo compreendido entre 02 de
setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 cometeram crimes poliacuteticos ou conexos com
estes (lei nordm 66831979) a ditadura militar havia terminado com a eleiccedilatildeo indireta de
um presidente civil em 1985 a Assembleia Nacional Constituinte havia sido instalada
em 1987 e a Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Federativa do Brasil a chamada ldquoconstituiccedilatildeo
cidadatilderdquo havia sido promulgada no ano seguinte e finalmente o primeiro presidente
civil eleito pelo voto direto apoacutes a ditadura militar havia tomado posse em 1990
completando a transiccedilatildeo poliacutetica do paiacutes ou seja tornando a ditadura uma memoacuteria do
passado e a democracia o momento presente Democracia esta que na eacutepoca em que os
depoimentos foram concedidos apresentava ainda mais sinais de seu fortalecimento e
consolidaccedilatildeo jaacute que o Brasil havia elegido para presidente o socioacutelogo e professor da
USP Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e o ex-operaacuterio e liacuteder sindical Luiacutes
Inaacutecio Lula da Silva (2003-2010) ambos perseguidos poliacuteticos durante o periacuteodo
ditatorial
Com relaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo dos que sofreram danos decorrentes da poliacutetica repressiva
promovida pela ditadura militar desde 1995 estava em curso o reconhecimento pelo
Estado brasileiro dos mortos e desaparecidos poliacuteticos durante a ditadura e a
indenizaccedilatildeo as suas famiacutelias (lei nordm 914095) Aleacutem disso a reparaccedilatildeo financeira aos
males sofridos por aqueles que ficaram presos ou foram perseguidos na eacutepoca tambeacutem
estava em voga desde 2002 (lei nordm 1055902) A demanda desta lei principalmente no
caso daqueles que passavam pelo processo de solicitaccedilatildeo eacute um elemento a ser levado
19
em conta na maneira pela qual os entrevistados construiacuteram suas narrativas Afinal o
procedimento necessaacuterio agrave concessatildeo da reparaccedilatildeo incluiacutea a construccedilatildeo de um memorial
sobre as mazelas a que os requerentes haviam sido submetidos pelo Estado durante a
ditadura militar
Dessa forma as narrativas significavam tambeacutem para os ex-prisioneiros poliacuteticos
um meio de conseguirem apoio da sociedade em favor da ampliaccedilatildeo desse
reconhecimento iniciado pelo Estado brasileiro Atraveacutes de suas narrativas poderiam
contribuir para que suas memoacuterias fossem encampadas pela histoacuteria Logo pode-se
dizer que no sentido atribuiacutedo por Michael Pollak (1992) esses depoimentos foram
concedidos sob o horizonte de contribuir com o trabalho de enquadramento da
memoacuteria nacional sobre a ditadura militar brasileira jaacute que esta ateacute hoje natildeo estaacute
consolidada
Finalmente verifica-se que ainda ocorre uma disputa pela memoacuteria da ditadura
militar onde de um lado estatildeo os que sofreram o peso da matildeo forte da ditadura e de
outro os militares que argumentam que os ldquoanos de chumbordquo devem ser relegados ao
passado Como exemplo a declaraccedilatildeo dada em outubro de 2004 ao jornal O Globo por
um representante do Exeacutercito em resposta agrave publicaccedilatildeo de supostas fotos pelas quais o
jornalista Vladimir Herzog4 aparece sendo humilhado na prisatildeo
As medidas tomadas pelas forccedilas legais foram uma legiacutetima resposta agrave
violecircncia dos que recusaram o diaacutelogo optaram pelo radicalismo e pela
ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e de desencadear accedilotildees
criminosas [] sentiu-se a necessidade da criaccedilatildeo de uma estrutura com
vistas a apoiar em operaccedilatildeo e inteligecircncia as atividades necessaacuterias para
desestruturar os movimentos radicais e ilegais [] Mesmo sem qualquer
mudanccedila de posicionamento e de convicccedilotildees em relaccedilatildeo ao que aconteceu
4 Vladimir Herzog era integrante do PCB e diretor da TV Cultura quando foi preso em outubro de 1975
no DOI-CODISP onde dias depois foi morto sob torturas Para mais informaccedilotildees sobre o caso Vladimir
Herzog e seus sucessivos encadeamentos ver Moraes 2006
20
naquele periacuteodo histoacuterico considera-se accedilatildeo pequena reavivar revanchismos
ou estimular discussotildees esteacutereis sobre conjunturas passadas que a nada
conduzem (Camarotti 19 out 2004 12)
Essa disputa travada entre a lembranccedila e o esquecimento pode ser notada atraveacutes
da batalha em torno do preacutedio que serviu de sede ao DOI-CODIRJ o 1ordm BPE Essa foi
iniciada nos primeiros anos da deacutecada de 1990 por meio de uma tentativa do Exeacutercito
de vender o edifiacutecio Sabendo da situaccedilatildeo um conjunto de moradores dos arredores
buscou impedir a venda solicitando o tombamento de todo o espaccedilo ocupado pelo
quartel agrave Cacircmara Municipal do Rio de Janeiro alegando a sua importacircncia para a
memoacuteria poliacutetica do paiacutes Essa atitude eacute evidenciada em um manifesto contendo 236
assinaturas em defesa da preservaccedilatildeo do preacutedio que serviu como documento de
abertura para o processo de tombamento do edifiacutecio na Subsecretaria de Patrimocircnio
Cultural da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro
O Exeacutercito brasileiro alegando falta de recursos para seu programa de
construccedilatildeo de quarteacuteis em outros estados pretende vender o imoacutevel onde
estaacute o 1ordm BPE Trata-se de um imoacutevel altamente valorizado pela ampla infra-
estrutura urbana [] Acontece que o valor que o Exeacutercito quer faturar foi
criado a partir de obras e investimentos custeados com os impostos e taxas
que pagamos todos noacutes haacute mais de um seacuteculo O Exeacutercito natildeo contribuiu
em nada para isso e agora quer se apropriar desse valor para investir sabe-se
laacute aonde [] consideramos que o preacutedio do Batalhatildeo da PE estaacute
indissoluvelmente cravado na histoacuteria nas tradiccedilotildees na esteacutetica e na
paisagem local [] Sabemos que o Batalhatildeo da PE foi sede do DOI-CODI
na eacutepoca da ditadura militar e que ali estiveram presos e foram torturados
muitos companheiros nossos tendo inclusive alguns sido dados como
ldquodesaparecidosrdquo Tambeacutem por esta razatildeo o preacutedio estaacute ligado agrave memoacuteria
poliacutetica desse paiacutes [] Queremos na aacuterea um centro cultural com teatro e
museu agrave memoacuteria da luta pela liberdade com parque e jardins Esses satildeo os
21
anseios da comunidade e natildeo outrosrdquo (Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural
da Prefeitura do Rio de Janeiro 1992) 5
Aleacutem desse documento outras solicitaccedilotildees de preservaccedilatildeo do preacutedio foram
enviadas agrave Cacircmara Municipal por Associaccedilotildees de Moradores da Tijuca e bairros
vizinhos Enfim em 29 de marccedilo de 1993 no primeiro mandato do entatildeo prefeito Ceacutesar
Maia o processo de tombamento do 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito foi finalizado
No entanto a ideia de tiraacute-lo do Exeacutercito a fim de tornar o espaccedilo um centro cultural
que contivesse um museu da memoacuteria da luta pela liberdade natildeo se concretizou pois
apoacutes o tombamento o Exeacutercito natildeo deixou o local onde permanece ateacute os dias atuais
sinalizando que natildeo tem interesse em que o edifiacutecio se torne efetivamente um lugar de
memoacuteria tal como o conceito criado por Pierre Nora (1993)
No preacutedio do 1ordm BPE se encontram os trecircs sentidos atribuiacutedos por Nora como
caracteriacutesticos a um lugar de memoacuteria o material o simboacutelico e o funcional (Nora
1993 21) O sentido material no caso eacute o proacuteprio espaccedilo fiacutesico que ainda se conserva
no mesmo local sem grandes intervenccedilotildees o simboacutelico eacute o que o espaccedilo representa para
uma parte da sociedade carioca como marco memorial de um passado que natildeo se deve
esquecer e o funcional eacute a memoacuteria da ditadura militar ali preservada por meio do
tombamento do edifiacutecio Logo querendo ou natildeo o preacutedio do 1ordm BPE eacute um lugar de
memoacuteria jaacute que naquele espaccedilo fiacutesico ou seja material se encontram uma funccedilatildeo e
uma representaccedilatildeo simboacutelicas ligadas agrave memoacuteria da ditadura militar
A disputa em torno dessa memoacuteria parece aos poucos caminhar cada vez mais
para o lado dos ex-presos e perseguidos poliacuteticos Recentemente aleacutem das leis
5 Este documento que deu iniacutecio ao referido processo no ano de 1992 hoje se encontra arquivado na
Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro antigo Departamento Geral de
Patrimocircnio Cultural (DGPC) junto ao restante da documentaccedilatildeo que compocircs o processo Nordm
1200433692 e originou a lei municipal nordm 1954 de 290393
22
reparadoras citadas acima um grande obstaacuteculo foi ultrapassado para que os crimes
ocorridos durante a ditadura militar sejam apurados e desvendados Em outubro de
2011 a Comissatildeo da Verdade foi enfim aprovada pelo Congresso Nacional e em
novembro do mesmo ano a lei que a institui sancionada pela Presidente Dilma
Rousseff Nesse contexto esta dissertaccedilatildeo ao estudar as memoacuterias de seis ex-
prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ relaciona-se com essa atualidade cumprindo
um papel social relevante
O ofiacutecio do historiador que pressupotildee trilhar caminhos e fazer escolhas
significando por exemplo atribuir significado agraves palavras agraves fontes e agrave bibliografia
escolhidas norteou a seleccedilatildeo e os criteacuterios aqui estipulados Conforme apontado por
Reinhart Koselleck (2006 167) eacute impossiacutevel que o ponto de vista do historiador deixe
de influenciar na representaccedilatildeo que faz dos fatos Assim cabe deixar claro que este
trabalho foi movido pelo interesse que as memoacuterias dos ex-prisioneiros poliacuteticos do
DOI-CODIRJ despertaram em mim Vale dizer que essa dissertaccedilatildeo eacute avessa ao
postulado cientiacutefico da total imparcialidade no sentido de neutralidade apartidarismo
ou abstenccedilatildeo seguindo orientaccedilatildeo de Manoel Salgado Guimaratildees (2008)
Ao historiador de ofiacutecio seria exigido cada vez mais uma escrita submetida
aos ditames dos afetos sejam eles derivados de engajamentos poliacuteticos
especiacuteficos de crenccedilas particulares ou mesmo derivados de um convite agrave
individualidade do historiador Este seria instado a mostrar-se atraveacutes de seu
texto postura bastante diversa daquela que o obrigava a esconder-se por traacutes
da pesquisa cientiacutefica (Guimaratildees 2008 17)
O primeiro capiacutetulo tem por objetivo analisar a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-
CODI que a partir de 1970 passaram a integrar o Sistema de Seguranccedila Interna
(SISSEGIN) se espalharam por todas as Regiotildees Militares do Brasil e se tornaram a
principal instituiccedilatildeo de repressatildeo aos opositores poliacuteticos da ditadura militar Afinal a
23
partir do entendimento sobre a criaccedilatildeo e o funcionamento dessa instituiccedilatildeo se pretende
criar as condiccedilotildees necessaacuterias para analisar as memoacuterias dos seis ex-prisioneiros
poliacuteticos sobre uma de suas sedes o DOI-CODIRJ uma vez que a passagem por esse
espaccedilo prisional eacute aqui entendida como um elo fundamental entre essas memoacuterias
Assim optou-se por estruturar este capiacutetulo por meio de trecircs frentes 1) o debate
historiograacutefico 2) a monografia O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI)
do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e
perspectiva escrita em 1978 pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira
3) os depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de
Janeiro concedidos entre os anos de 2002 e 2004
A primeira frente de estudo se concentra em analisar a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos
DOI-CODI agrave luz da historiografia Nela apresentam-se autores e conceitos selecionados
a fim de elucidar algumas questotildees levantadas Qual o papel da Escola Superior de
Guerra (ESG) para a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional e dos DOI-CODI
Como a praxe ditatorial em respaldar atitudes arbitraacuterias por meio de leis
compulsoriamente promulgadas ou seja atraveacutes da legalidade autoritaacuteria conforme
nomenclatura utilizada por Anthony Pereira (2010) gerou as bases para a criaccedilatildeo do
SISSEGIN e dos DOI-CODI Como os conflitos internos gerados no seio da instituiccedilatildeo
militar que ocasionaram dissidecircncias as cizacircnias militares tal como conceituado por
Joatildeo Roberto Martins Filho (1993) influenciaram os rumos da ditadura e a construccedilatildeo
de seu aparato de seguranccedila interna De que maneira a montagem e o funcionamento do
SISSEGIN e dos DOI-CODI foram organizados e constituiacutedos
Jaacute a segunda e a terceira frentes de estudo deste capiacutetulo servem para analisar as
visotildees de atores que de uma forma ou de outra viveram os DOI-CODI Na segunda a
anaacutelise sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI debruccedila-se sobre a visatildeo de um de
24
seus agentes atraveacutes da fonte O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do
Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo escrita pelo coronel de
cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira apontado por ex-prisioneiros poliacuteticos com um dos
torturadores do DOI do Rio de Janeiro Trata-se de uma monografia que o referido
coronel apresentou agrave Escola de Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) em
1978 quando os DOI-CODI apesar de atuantes jaacute sofriam certa diminuiccedilatildeo de suas
atividades O trabalho em cima desse documento se direciona no sentido de analisar
dados representativos do poder coercitivo dos DOI-CODI do iniacutecio dos anos 1970 e de
descrever os afazeres de cada uma de suas seccedilotildees a fim de contribuir para o
entendimento sobre o funcionamento interno deste oacutergatildeo Por fim na terceira frente a
anaacutelise eacute efetuada por meio das memoacuterias dos seis ex-prisioneiros entrevistados entre os
anos de 2002 e 2004 objeto central dessa dissertaccedilatildeo Dessa forma procura-se aqui
responder como eles percebiam a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo do DOI-CODIRJ e ao
entrelaccedilar aspectos de suas memoacuterias com a historiografia e a visatildeo do coronel Pereira
se aproximar do que vinha a ser o aparato de seguranccedila interna de 1970 cujos DOI-
CODI eram parte essencial
O segundo capiacutetulo eacute construiacutedo com a proposta de analisar de que forma e sob
quais influecircncias foram construiacutedas e narradas as memoacuterias dos seis ex-prisioneiros
poliacuteticos entrevistados entre os anos de 2002 e 2004 Parte-se aqui do pressuposto de
que cada uma de suas memoacuterias foi formada e influenciada por idiossincrasias relativas
a vivecircncias pessoais personalidades e outros aspectos individuais que merecem ser
analisados de forma a viabilizar o entendimento loacutegico da construccedilatildeo dessas memoacuterias
Dessa forma busca-se relativizar uma memoacuteria coletiva que aparentemente eacute comum a
todos os ex-prisioneiros poliacuteticos que passaram por algum DOI-CODI O aspecto
coletivo dessas memoacuterias no entanto natildeo eacute abandonado As memoacuterias individuais aqui
25
trabalhadas natildeo estatildeo isoladas e constantemente tomam por referecircncia pontos externos
ao sujeito se apoiando em percepccedilotildees recebidas de determinada memoacuteria coletiva de
um grupo e tambeacutem pela memoacuteria histoacuterica de seu paiacutes (Halbwachs 2004 57-59)
Diante disso a capacidade de intervenccedilatildeo que o presente exerce sobre as
memoacuterias do passado (Frank 1999) toma um aspecto central nesse momento da anaacutelise
o que torna importante considerar aqui natildeo soacute o contexto histoacuterico que rodeava os
entrevistados no momento de suas narrativas (2002-2004) como tambeacutem a forma como
a rede de entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que essas foram realizadas
Assim este segundo capiacutetulo trata primeiramente dessas condiccedilotildees que viabilizaram e
de certa forma influiacuteram nas entrevistas para em seguida analisar as trajetoacuterias de vida
de cada um dos entrevistados e por fim baseando-se em algumas referecircncias sobre o
tema traccedilar um panorama sobre as organizaccedilotildees de esquerda das quais faziam parte ou
com que se relacionavam no momento de suas prisotildees
Finalmente o terceiro capiacutetulo visa analisar efetivamente a memoacuteria como
material para a histoacuteria Assim conforme elucidado por Fernando Catroga (2010) ao
buscar entender a escrita da histoacuteria como um rito de memoacuteria no sentido de lutar
contra o esquecimento e contra a corrosatildeo do tempo tal como ocorre em um ldquogesto de
sepulturardquo a histoacuteria eacute aqui escrita de forma a contribuir para que seja possiacutevel
caracterizar um passado que natildeo mais existe o do cotidiano do DOI-CODIRJ de 1970
Antes dessa caracterizaccedilatildeo a partir dos detalhes trazidos nos depoimentos sobre o
espaccedilo interno do preacutedio do 1ordm BPE conjugados agrave observaccedilatildeo minuciosa de sua fachada
que ateacute hoje ainda permanece preservada faz-se possiacutevel uma cartografia espacial do
local que sediou o DOI-CODIRJ Afinal esse entendimento da disposiccedilatildeo espacial do
referido edifiacutecio estaacute totalmente interligado com o cotidiano ali vivido por seus
prisioneiros logo eacute aqui entendido como essencial para a presente anaacutelise Feita esta
26
cartografia parte-se entatildeo para a caracterizaccedilatildeo do cotidiano vivido no DOI-CODIRJ
de 1970 Para tanto aleacutem da anaacutelise dos seis depoimentos a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos
DOI-CODI a constituiccedilatildeo da rede de entrevistas a trajetoacuteria dos entrevistados e suas
organizaccedilotildees de esquerda estudadas nos capiacutetulos anteriores satildeo incorporadas ao
estudo A partir disso vaacuterios aspectos do cotidiano prisional satildeo abordados tais como
o interrogatoacuterio e a tortura os primeiros momentos na prisatildeo as formas de resistecircncia
os encontros e as relaccedilotildees entre os presos nas celas as formas de lidar com o tempo as
roupas e as refeiccedilotildees
No decorrer dos trecircs capiacutetulos dessa dissertaccedilatildeo faz-se constante referecircncia a
siglas relativas ao tema em abordagem e agrave hierarquia das patentes do Exeacutercito Diante
disso ao final de todo o texto apresentado na parte dos anexos encontra-se o Glossaacuterio
de siglas (Anexo I) e a tabela A hierarquia do Exeacutercito Brasileiro (Anexo II)
A partir dessa configuraccedilatildeo geral pretende-se responder agraves questotildees acima
pontuadas a fim de corroborar algumas hipoacuteteses aqui levantadas
1) A formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo do aparato de seguranccedila interna que abrangia o DOI-
CODIRJ tiveram por base as teses sobre seguranccedila nacional montadas pela
ESG anos antes da ditadura militar a promulgaccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo
arbitraacuteria condescendente a abusos de poder gerada a partir dos primeiros anos
do governo militar bem como a tentativa de solucionar impasses ocasionados
por disputas que vinham ocorrendo no seio do Exeacutercito e por conseguinte
ameaccedilavam sua unidade institucional
2) O peso do presente (200204) teve um papel decisivo na maneira pela qual os
entrevistados construiacuteram a narrativa sobre o periacuteodo (1970) em que estiveram
presos no DOI-CODIRJ
3) As organizaccedilotildees de esquerda e as accedilotildees em que os ex-presos poliacuteticos
27
estiveram envolvidos antes de suas prisotildees influenciaram diretamente no grau
de violecircncia do cotidiano a que foram submetidos no DOI-CODIRJ
28
Capiacutetulo 1 ndash Os DOI-CODI formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo
Se no teu distrito
Tem farta sessatildeo
De afogamento chicote
Garrote e punccedilatildeo
A lei tem caprichos
O que hoje eacute banal
Um dia vai dar no jornal
Se manchas as praccedilas
Com teus esquadrotildees
Sangrando ativistas
Cambistas turistas peotildees
A lei abre os olhos
A lei tem pudor
E espeta o seu proacuteprio inspetor
Chico Buarque
(Hino da repressatildeo 1985)
29
A partir de 1970 os DOI-CODI (Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildeesndash
Centro de Operaccedilotildees de Defesa Interna) parte integrante do Sistema de Seguranccedila
Interna (SISSEGIN) passariam a ser a principal instituiccedilatildeo na repressatildeo aos opositores
da ditadura militar brasileira Seis desses opositores aprisionados no DOI-CODI do Rio
de Janeiro em meio ao primeiro ano de sua existecircncia tecircm na passagem por esse espaccedilo
prisional um elo fundamental entre suas memoacuterias Como essas memoacuterias satildeo o objeto
de estudo da presente dissertaccedilatildeo para melhor entendecirc-las primeiramente torna-se de
extrema importacircncia lanccedilar um olhar mais apurado sobre como foram construiacutedos e de
que forma atuavam os DOI-CODI Logo a anaacutelise sobre a criaccedilatildeo e o funcionamento
dessa instituiccedilatildeo eacute o objetivo desse primeiro capiacutetulo
Esta anaacutelise se estrutura a partir de trecircs frentes distintas 1) o debate
historiograacutefico 2) a monografia O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI)
do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e
perspectiva escrita em 1978 pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira
3) os depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de
Janeiro concedidos entre os anos de 2002 e 2004
Como dito a primeira frente de estudo analisa a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-
CODI agrave luz da historiografia Autores e conceitos foram selecionados tendo em vista
questotildees significativas para analisar a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI 1) o papel
da ESG para a criaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional 2) os conceitos de legalidade
autoritaacuteria e cizacircnia militar 3) a montagem e o funcionamento do SISSEGIN
Para abordar o papel da ESG na construccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional
parte-se da tese de Maria Helena Moreira Alves (2005) em que a autora defende a ideia
de que a institucionalizaccedilatildeo do Estado de Seguranccedila Nacional no Brasil se fez a partir
do papel determinante da Doutrina de Seguranccedila Nacional (DSN) construiacuteda pela
30
Escola Superior de Guerra (ESG) nos anos 1950 Entende-se que este destacado papel
da ideologia esguiana para a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Nacional da ditadura
militar brasileira teve ligaccedilatildeo direta com a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI Afinal
com a DSN surge o conceito de seguranccedila interna que serve como base para a
montagem do aparelho repressivo ditatorial no qual os DOI-CODI duas deacutecadas
depois seriam inseridos
Os conceitos de legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar satildeo aqui utilizados como
ferramentas elucidativas por auxiliarem na anaacutelise de como durante os primeiros anos
de ditadura militar a imperativa forma de legislar o paiacutes e as crises que por disputas
poliacuteticas ameaccedilaram a unidade institucional militar foram essenciais para a formaccedilatildeo e
atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
Nesse sentido a legalidade autoritaacuteria assim designada por Anthony Pereira
(2010) eacute aqui utilizada para destacar de que forma a preocupaccedilatildeo da ditadura militar
brasileira em respaldar legalmente seus atos ainda que arbitrariamente propiciou um
respaldo legal agrave repressatildeo poliacutetica e por conseguinte aos DOI-CODI Logo este
conceito serve para iluminar o entendimento de que a formaccedilatildeo de um aparato de
seguranccedila interna forte centralizado e violento como os DOI-CODI foi possibilitado
respaldado e sustentado no Brasil por um significativo amparo legal A ditadura militar
atraveacutes dessa preocupaccedilatildeo legal atiacutepica a um regime de cunho totalitaacuterio reiterava sua
imagem de regime democraacutetico de exceccedilatildeo perante a sociedade e ao mesmo tempo
possibilitava a criaccedilatildeo de um dos maiores organismos repressores que uma ditadura da
Ameacuterica Latina jaacute havia criado os DOI-CODI
Outro conceito necessaacuterio para entender a construccedilatildeo do cenaacuterio legal que
propiciaria a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI eacute o de cizacircnia militar elaborado por
Martins Filho em sua tese de doutorado A dinacircmica militar das crises poliacuteticas na
31
ditadura (1964-1969) de 1993 em que o autor destaca os conflitos internos no seio
militar que acabariam resultando em dissidecircncias Ao analisar esses conflitos como fator
decisivo para a compreensatildeo dos rumos da ditadura Martins Filho apresenta uma
abordagem diferente da maioria dos estudiosos sobre o tema Ao inveacutes de partir de uma
suposta dicotomia entre dois grupos estanques divididos rigidamente entre a linha dura
e os castelistas apresenta uma visatildeo mais fluida de grupos militares que oscilavam na
forma de agir o palaacutecio representando os militares de altas patentes ocupantes de
cargos poliacuteticos e a caserna militares de patentes meacutedias que trabalhavam nas
instituiccedilotildees militares Esta abordagem eacute crucial para o presente trabalho uma vez que a
base da formaccedilatildeo e da atuaccedilatildeo dos DOI-CODI estava diretamente relacionada agraves
cizacircnias militares e seus decorrentes acontecimentos poliacuteticos Afinal apesar dos DOI-
CODI serem uma instituiccedilatildeo composta por militares das mais diversas posiccedilotildees
hieraacuterquicas a sua formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo foram estruturadas a partir principalmente de
reivindicaccedilotildees da caserna que com a implantaccedilatildeo dos DOI-CODI passou a ter poderes
poliacuteticos extraordinaacuterios jaacute que se tornava responsaacutevel pelas accedilotildees de prisotildees
apreensotildees e interrogatoacuterios dos perseguidos poliacuteticos
Finalmente para analisar a formaccedilatildeo do Sistema de Seguranccedila Interna o
SISSEGIN composto entre outros pelos DOI-CODI partimos da anaacutelise feita por
Carlos Fico em sua obra Como eles agiam de 2001 Ao ter acesso a documentos
sigilosos sobre a formaccedilatildeo do SISSEGIN e a regulamentaccedilatildeo operacional dos DOI-
CODI Fico caracteriza de forma ineacutedita na historiografia a formaccedilatildeo e o
funcionamento de ambos os oacutergatildeos sendo portanto um referencial historiograacutefico
indispensaacutevel agrave minha pesquisa
Ainda no que toca agrave formaccedilatildeo do SISSEGIN e dos DOI-CODI tambeacutem eacute de
grande valia a tese exposta por Maria Celina DrsquoArauacutejo em Os anos de Chumbo a
32
memoacuteria militar sobre a repressatildeo (1994) de que assim como em qualquer instituiccedilatildeo
militar era alto o grau de hierarquia e coordenaccedilatildeo presente nos DOI-CODI o que natildeo
impedia no entanto que houvesse brechas para uma perda de controle institucional
Logo uma das peculiaridades da atuaccedilatildeo dos DOI-CODI entendido pela a autora como
uma espeacutecie de sofisticaccedilatildeo da repressatildeo era a convivecircncia da obediecircncia hieraacuterquica
militar com a falta de controle sobre algumas accedilotildees deixando que procedimentos natildeo
regulamentares tais como a tortura pudessem ser efetivados com recorrecircncia
A segunda e a terceira frentes de estudo do presente capiacutetulo analisam as visotildees de
atores que de uma forma ou de outra viveram em algum dos DOI-CODI Portanto
diferentes do debate historiograacutefico que tem particular distanciamento analiacutetico do
objeto e preza por se aproximar da imparcialidade e tambeacutem diferentes entre si essas
fontes satildeo influenciadas por seus atoresnarradores e pelas eacutepocas em que foram
construiacutedas
Na segunda frente pode-se dizer que a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI satildeo
analisadas a partir dos proacuteprios DOI-CODI jaacute que nessa etapa debruccedila-se sobre o
estudo O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do Exeacutercito Brasileiro
Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo de um de seus agentes diretos o coronel de
cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira Conhecido entre os presos poliacuteticos do DOI do Rio
de Janeiro do iniacutecio dos anos 1970 como o torturador de codinome ldquoNagibrdquo coronel
Pereira apresentou a referida monografia agrave Escola de Comando e Estado Maior do
Exeacutercito (ECEME) em 1978 quando os DOI-CODI apesar de atuantes jaacute estavam em
decadecircncia Tratava-se de uma eacutepoca em que o presidente Ernesto Geisel comandava a
abertura poliacutetica ldquolenta gradual e segurardquo do paiacutes e vinha diminuindo o poder delegado
aos DOI-CODI que passavam a ter o seu pessoal reduzido e suas accedilotildees apenas voltadas
agrave espionagem e natildeo mais ao combate direto de opositores poliacuteticos jaacute que devido agraves
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inuacutemeras denuacutencias sobre violaccedilotildees aos Direitos Humanos no Brasil era forte o
desgaste que a ditadura sofria perante a comunidade internacional Em meio a esse
cenaacuterio o coronel em questatildeo construiu tal monografia motivado a por um lado provar
a importacircncia e a necessidade do trabalho de repressatildeo feito nos DOI-CODI e assim
tentar reverter a reduccedilatildeo de suas atividades e por outro conseguir uma promoccedilatildeo na
carreira militar visto que a ECEME eacute uma escola destinada agrave preparaccedilatildeo de oficiais
superiores para o exerciacutecio de funccedilotildees de Estado-Maior A partir disso essa monografia
apresenta dados representativos do poder coercitivo dos DOI do iniacutecio dos anos 1970
bem como a descriccedilatildeo dos afazeres de cada uma de suas seccedilotildees o que traz uma forte
contribuiccedilatildeo para a anaacutelise aqui traccedilada
Por fim na terceira e uacuteltima frente a anaacutelise da formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-
CODI eacute efetuada por meio de outro tipo de fonte que tem por base a memoacuteria os
depoimentos orais de seis ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODI do Rio de Janeiro a
mim fornecidos entre os anos de 2002 e 2004 Como essas entrevistas foram concedidas
durante a passagem dos governos dos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso
(1995-2002) e Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva (2003-2010) ex-perseguidos poliacuteticos da
ditadura militar que entre seus feitos agrave frente da poliacutetica brasileira agiram no sentido
de reparar danos sofridos pelos perseguidos poliacuteticos daquele periacuteodo esse presente
nelas imprimiu fortes influecircncias Afinal trata-se de memoacuterias sobre o passado vivido
em uma das instituiccedilotildees de repressatildeo mais violentas da eacutepoca o DOI-CODIRJ
construiacutedas a partir de um presente em que jaacute vigorava a lei nordm 9140 de 1995 que
reconhecia mortos e desaparecidos pela ditadura militar e indenizava suas famiacutelias e
havia sido aprovada a lei nordm 10559 de 2002 que reparava financeiramente aqueles que
tivessem sofrido perseguiccedilatildeo ou maus tratos dentro de instituiccedilotildees do Estado durante o
periacuteodo de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988
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Percebe-se claramente a ideia de presente do passado de Robert Frank (1999)
como um dos principais aspectos criacuteticos aqui aplicados a essas memoacuterias Afinal o
fato de durante o periacuteodo em que se deram as entrevistas conhecidos opositores agrave
ditadura militar estarem agrave frente do governo brasileiro e grande nuacutemero de ex-
prisioneiros poliacuteticos inclusive os entrevistados buscarem se beneficiar da lei nordm
1055902 faz com que o presente seja aqui considerado o elemento organizador dessas
memoacuterias
Essa perspectiva de presente do passado eacute portanto um dos elementos criacuteticos
aplicados a essas memoacuterias que sobre elas trabalham a fim de aqui tornaacute-las objeto da
histoacuteria Dessa forma percebe-se na presente anaacutelise a perspectiva elucidada por Pierre
Nora (1993) ao diferir o trabalho da memoacuteria do trabalho da histoacuteria Afinal o que os
diferencia satildeo justamente os aspectos fluidos da memoacuteria tais como as emoccedilotildees e as
influecircncias conjunturais a que estaacute a todo tempo submetida que aqui satildeo minimizados
pelos aspectos criacuteticos objetivos e analiacuteticos peculiares agrave histoacuteria
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1 Debate Historiograacutefico
11 O papel da ESG para o Sistema de Seguranccedila Nacional
O golpe civil-militar ocorrido no Brasil em 31 de marccedilo de 1964 quando o
presidente Joatildeo Goulart foi deposto e se instalou um regime militar no paiacutes teria sido
precedido por uma elaborada desestabilizaccedilatildeo poliacutetica que de acordo com Maria Helena
Moreira Alves (2005) envolveu tanto corporaccedilotildees multinacionais o governo dos
Estados Unidos quanto o capital brasileiro associado-dependente e os militares
brasileiros destacando-se entre esses um grupo de oficiais da Escola Superior de Guerra
(ESG) Essa ldquoconspiraccedilatildeordquo foi efetivada anos antes ainda no iniacutecio dos anos 1950 por
instituiccedilotildees civis como o Instituto Brasileiro de Accedilatildeo Democraacutetica (IBAD) e o Instituto
de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) sob a coordenaccedilatildeo da ESG A Doutrina de
Seguranccedila Nacional e Desenvolvimento (DSN) ministrada pela mesma Escola era a
justificativa ideoloacutegica perfeita para a tomada do poder e para o autoritarismo como
uma forma de governo
Um dos criadores dessa doutrina Golbery do Couto e Silva era desde 1952
adjunto do Departamento de Estudos da ESG estabelecimento subordinado ao Estado
Maior das Forccedilas Armadas (EMFA) criado em 1948 com a assistecircncia de consultores
franceses e norte-americanos a fim de desenvolver e consolidar os conhecimentos
necessaacuterios para o exerciacutecio das funccedilotildees de direccedilatildeo e para o planejamento da Seguranccedila
Nacional Dentro da ESG Golbery encontrou condiccedilotildees favoraacuteveis para impulsionar
teses que defenderiam o ecircxito de um projeto global de desenvolvimento em cujas
tarefas o Estado deveria se associar agrave iniciativa privada atraveacutes do apoio intermediaacuterio
de uma elite tecnocraacutetica civil e militar ideologicamente comprometida com um
conjunto de ldquoobjetivos nacionais permanentesrdquo garantindo assim a Seguranccedila
Nacional Essas teses vieram posteriormente a constituir a base do programa da ESG
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passando a ser conhecidas pela Doutrina de Seguranccedila Nacional (DSN) A DSN
sustentava ainda em meio agrave Guerra Fria o posicionamento do Brasil ao lado do
Ocidente logo em confronto com o bloco sovieacutetico considerando a preservaccedilatildeo da
seguranccedila o fator fundamental de promoccedilatildeo do desenvolvimento Previa dessa forma a
possiacutevel supressatildeo de alguns valores definidores da ordem democraacutetica devido agrave
necessidade de uma progressiva centralizaccedilatildeo de poderes
Para Moreira Alves o grande feito do ldquocomplexo ESGIPESIBADrdquo foi a criaccedilatildeo
antes do golpe de 1964 de uma rede de informaccedilotildees e de uma Doutrina de Seguranccedila
Nacional e Desenvolvimento ambas coordenadas por Golbery para nortear o que viria
a ser um Estado efetivamente centralizado Essa tese eacute sustentada ao se notar que o
general Castelo Branco como primeiro presidente do Estado ditatorial brasileiro
compocircs seus ministeacuterios quase totalmente com membros e colaboradores do complexo
ESGIPESIBAD A DSN passou entatildeo a ser utilizada para moldar as estruturas de
Estado impor formas especiacuteficas de controle para a sociedade civil e delinear um
projeto de governo para o Brasil Assim com destaque para a seguranccedila interna
ameaccedilada pelo comunismo a Doutrina de Seguranccedila Nacional passou a induzir ao
abuso de poder a prisotildees arbitraacuterias agrave tortura e agrave censura agrave imprensa e agraves artes de
forma geral
Eacute interessante perceber que a formulaccedilatildeo da DSN feita pela ESG em colaboraccedilatildeo
com o IPES e o IBAD ao longo de 25 anos tinha como base uma teoria de guerra que
nortearia a atuaccedilatildeo repressora do governo militar A partir do Manual Baacutesico da Escola
Superior de Guerra e dos escritos de Golbery do Couto e Silva em Conjuntura Poliacutetica
Nacional o poder executivo amp a geopoliacutetica do Brasil Moreira Alves destaca os tipos
de guerra apresentados pela Doutrina guerra total guerra limitada ou localizada
guerra revolucionaacuteria ou insurrecional guerra indireta ou ideoloacutegica
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De acordo com estes paracircmetros a teoria da guerra total baseava-se na estrateacutegia
militar da Guerra Fria deixando de ser estritamente militar para ser tambeacutem econocircmica
financeira poliacutetica psicoloacutegica e cientiacutefica atingindo o mundo de forma global Logo
como as potecircncias envolvidas natildeo podiam travar uma guerra ativa pois existia a
possibilidade de uma destruiccedilatildeo completa e universal a guerra total passou a assumir
diversas formas Ela se destrinchava em guerras limitadas ou localizadas pelas quais as
duas superpotecircncias mediam suas respectivas capacidades de controlar territoacuterios Aleacutem
disso havia as guerras declaradas consideradas claacutessicas e as natildeo-declaradas que
correspondiam agraves formas de guerra revolucionaacuteria ou insurrecional
Essas guerras natildeo-declaradas ou natildeo-claacutessicas representavam uma guerra de
agressatildeo indireta A insurrecional eacute caracterizada como um conflito interno em que
parte da populaccedilatildeo armada busca a deposiccedilatildeo do governo Jaacute a guerra revolucionaacuteria
natildeo envolve necessariamente o emprego da forccedila armada mas significa um conflito
normalmente interno estimulado ou auxiliado do exterior inspirado normalmente em
uma ideologia e que visa agrave conquista do poder pelo controle progressivo da naccedilatildeo A
guerra revolucionaacuteria se referia portanto agrave infiltraccedilatildeo comunista internacional
associada ao bloco sovieacutetico Neste tipo de guerra a guerra ideoloacutegica substituiacutea a
convencional entendida como o enfrentamento direto entre Estados em suas fronteiras
geograacuteficas A caracteriacutestica principal da guerra revolucionaacuteria de acordo com o
Manual Baacutesico da ESG era o envolvimento da populaccedilatildeo do paiacutes-alvo por meio da
conquista ideoloacutegica
[] abrangendo desde a exploraccedilatildeo dos descontentamentos existentes com o
acirramento de acircnimos contra as autoridades constituiacutedas ateacute a organizaccedilatildeo
de zonas dominadas com o recurso agrave guerrilha ao terrorismo e outras taacuteticas
irregulares onde o proacuteprio nacional do paiacutes-alvo eacute utilizado como
combatente (Alves 2005 45)
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Como a guerra revolucionaacuteria recrutava seus combatentes secretamente toda a
populaccedilatildeo tornava-se suspeita e portanto deveria ser cuidadosamente controlada para
que os ditos ldquoinimigos internosrdquo pudessem ser neutralizados A partir desse
entendimento de guerra revolucionaacuteria que segundo a ESG assombrava o paiacutes cria-se a
necessidade de um planejamento de Seguranccedila Nacional adaptado a essa conjuntura e
por conseguinte de um eficiente e centralizado aparato de informaccedilotildees internas
A partir disso a Constituiccedilatildeo de 1967 criou o Conselho de Seguranccedila Nacional
oacutergatildeo da Presidecircncia da Repuacuteblica responsaacutevel por supervisionar a defesa da seguranccedila
interna e principalmente modificou o significado de Seguranccedila Nacional que desde a
Constituiccedilatildeo de 1946 era associado agrave agressatildeo externa ou seja agrave defesa das fronteiras
territoriais A ameaccedila agrave Seguranccedila Nacional passava entatildeo a ser oficialmente definida
mais como uma ameaccedila agraves fronteiras ideoloacutegicas do que agraves territoriais Portanto ao criar
o Conselho de Seguranccedila Nacional e mudar o entendimento sobre a Seguranccedila
Nacional a Constituiccedilatildeo de 1967 abria o caminho necessaacuterio agrave adaptaccedilatildeo agrave teoria de
seguranccedila interna estipulada anos antes pela ESG
Esta teoria de seguranccedila interna dotou entatildeo o Estado de justificativa para
controlar e reprimir a populaccedilatildeo em geral O caraacuteter oculto da ameaccedila interna tornou
praticamente impossiacutevel se estabelecer limites para as accedilotildees repressivas do Estado e dos
militares e por isso mesmo fragilizou a defesa dos direitos humanos no paiacutes Afinal
todo cidadatildeo passava a ser culpado ateacute que fosse provada a sua inocecircncia Por meio
desse pensamento a raiz dos abusos de poder perpetrados pelo Estado se estruturou Por
isso defende-se aqui que a institucionalizaccedilatildeo dessa crenccedila no inimigo interno criada
pela ESG antes mesmo do golpe civil-militar estimulou a ditadura a nortear o
desenvolvimento das suas estruturas defensivas da sua articulada rede de informaccedilotildees
poliacuteticas e ainda do seu aparato repressivo de controle armado onde os DOI-CODI a
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partir de 1970 tambeacutem estariam inseridos
12 Os conceitos legalidade autoritaacuteria e cizacircnia militar
Essa crenccedila no inimigo interno criada pela ESG norteou a Seguranccedila Nacional
durante a ditadura militar que se substanciou atraveacutes da alta legalidade autoritaacuteria e
das medidas criadas pelo governo como forma de conter as cizacircnias militares Esses trecircs
fatores juntos contribuiacuteram para consolidaccedilatildeo dos DOI-CODI por todo paiacutes
respaldando a atuaccedilatildeo altamente autoritaacuteria e violenta desses oacutergatildeos
A partir disso o conceito de legalidade autoritaacuteria construiacutedo pelo cientista
poliacutetico norte-americano Anthony Pereira (2010) ajuda a evidenciar como a existecircncia
de laccedilos entre o autoritarismo e o estado de direito do regime militar no Brasil ajudou na
configuraccedilatildeo de uma instituiccedilatildeo como o DOI-CODI Afinal a legalidade autoritaacuteria
identifica as coexistecircncias entre o autoritarismo ditatorial e a continuidade das
instituiccedilotildees juriacutedicas anteriores ao Golpe bem como entre o autoritarismo ditatorial e a
praacutetica de elaboraccedilatildeo de leis ainda que tambeacutem autoritaacuterias
Percebe-se assim que o Brasil obteve um alto grau de legalidade autoritaacuteria na
medida em que a legislaccedilatildeo foi amplamente arbitrada pelo Poder Executivo como forma
de legalizar arbitrariedades poliacuteticas e suprimir direitos da populaccedilatildeo Assim foi
construiacuteda uma sustentaccedilatildeo juriacutedica e poliacutetica necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um aparato de
seguranccedila cada vez mais forte e centralizado que garantiu a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos
DOI-CODI
Afinal a legalidade autoritaacuteria vivenciada no Brasil se baseava na confecccedilatildeo pelo
Poder Executivo de leis publicadas em meios de comunicaccedilatildeo oficiais a fim de
respaldar arbitrariedades A partir dessas leis instrumento associado ao sistema
democraacutetico o governo militar centralizava e reforccedilava o seu poder ditatorial tornando
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nebuloso o sistema em vigor naquele momento no Brasil Ou seja apesar da existecircncia
de uma ditadura militar consolidada havia integraccedilatildeo entre as Forccedilas Armadas e o
Poder Judiciaacuterio ndash que norteava os seus julgamentos pelas novas leis arbitraacuterias
legitimando-as ndash bem como a manutenccedilatildeo do Congresso em funcionamento na maior
parte do tempo Dessa forma a legalidade autoritaacuteria era um elo entre o autoritarismo
ditatorial e o estado de direito conseguindo fazer parecer por algum tempo que o paiacutes
vivenciava um sistema democraacutetico excepcional A praacutetica da legalidade autoritaacuteria na
forma de atos institucionais da Constituiccedilatildeo de 1967 e de leis de Seguranccedila Nacional
por exemplo forneceu os suportes legais necessaacuterios agrave construccedilatildeo do SISSEGIN e agrave
formaccedilatildeo e agrave atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
Aleacutem disso essa praxe da ditadura de agir por meio de leis arbitraacuterias na maior
parte das vezes se relaciona com as cizacircnias militares provocadas no seio dessa
instituiccedilatildeo como reflexos de acontecimentos poliacuteticos Afinal grande parte das leis
autoritaacuterias foram artifiacutecios usados como forma de acalmar os acircnimos na caserna
formada por militares de meacutedias e baixas patentes que reivindicavam mais poder
poliacutetico Assim para conter a oposiccedilatildeo poliacutetica e tambeacutem as reivindicaccedilotildees de poder da
caserna desenharam-se leis arbitraacuterias capazes de suportar um organismo de repressatildeo
onde esses militares trabalhariam com certa autonomia tal como viriam a ser os DOI-
CODI Logo percebe-se aqui que juntamente com a legalidade autoritaacuteria a leitura
dos encaminhamentos poliacutetico-militares feita por Joatildeo Roberto Martins Filho (1993)
sob a luz de conceitos como o de cizacircnias militares baseadas em dissidecircncias militares
internas entre o palaacutecio e a caserna tambeacutem ilumina o entendimento sobre a formaccedilatildeo
e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
Tais encaminhamentos poliacuteticos militares tecircm iniacutecio no dia 9 de abril dez dias
apoacutes o golpe civil-militar de 1964 e ainda antes da posse de Castelo Branco em 15 de
41
abril quando o Comando Supremo da Revoluccedilatildeo baixou um ato institucional
posteriormente conhecido como AI-1 que conferia aos militares o poder de puniccedilatildeo a
crimes de cidadatildeos contra o Estado seu patrimocircnio e contra a ordem poliacutetica e social
No entanto o AI-1 previa tambeacutem a possibilidade de passar este poder para as matildeos do
novo presidente da Repuacuteblica dois meses apoacutes a sua posse colocando oficialmente o
Poder Executivo acima dos demais Assim Costa e Silva integrante do Comando e
futuro ministro da Guerra fez expedir um pouco antes da posse de Castelo Branco em
complemento ao AI-1 o Ato do Comando Supremo da Revoluccedilatildeo nordm 9 e a Portaria nordm1
que davam continuidade ao poder de puniccedilatildeo dos militares mesmo depois da posse de
Castelo Branco Com isso foram criadas as condiccedilotildees para que coroneacuteis tenentes-
coroneacuteis majores e capitatildees6 continuassem agindo na caccedila ao ldquoinimigo internordquo
O Ato do Comando Supremo da Revoluccedilatildeo nordm 9 estabelecia que os militares
encarregados de inqueacuteritos e processos (de suspensotildees de direitos poliacuteticos cassaccedilotildees
de mandatos etc) poderiam delegar atribuiccedilotildees referentes a investigaccedilotildees bem como
requisitar inqueacuteritos ou sindicacircncias instituiacutedas por outras esferas Jaacute a Portaria nordm1
determinava a abertura de Inqueacuterito Policial Militar (IPM) para apuraccedilatildeo de crimes
praticados contra o Estado e a ordem poliacutetica social
No entanto no dia 15 de junho de 1964 juntamente com o teacutermino da validade do
AI-1 acabaria tambeacutem o prazo dos militares cassarem mandatos e suspenderem direitos
poliacuteticos Tais militares requisitaram que o poder a eles concedido natildeo fosse cessado o
que foi negado pelo entatildeo presidente Castelo A partir disso a insatisfaccedilatildeo desses
militares acabou por causar o surgimento de uma primeira e consideraacutevel discoacuterdia
interna agrave instituiccedilatildeo militar uma primeira cizacircnia militar A partir dessa situaccedilatildeo de
conflito surge entatildeo a chamada linha dura que se formou atraveacutes do eco que um
6 Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II
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conjunto de pressotildees da jovem oficialidade nessa fase inicial da ditadura encontrou em
meio a alguns ldquoherdeiros civisrdquo do regime e em setores da hierarquia militar Dessa
forma a linha dura foi formada por grupos heterogecircneos de composiccedilatildeo variaacutevel e
ideologia difusa
Logo assim como Martins Filho e diferentemente da interpretaccedilatildeo de grande
parte dos historiadores acredita-se que mesmo em termos ideoloacutegicos a linha dura
estava longe de ser um grupo homogecircneo tendo por denominador comum apenas duas
caracteriacutesticas
Em primeiro lugar as reivindicaccedilotildees de maior rigor na ldquodepuraccedilatildeordquo do
sistema poliacutetico em segundo lugar as expectativas de influenciar
diretamente o processo de tomadas de decisotildees do governo militar Tanto em
um como em outro aspecto suas accedilotildees provocariam problemas para o
governo de Castelo Branco (Martins Filho 1993 61)
Portanto o governo Castelo Branco logo teve que se deparar com a questatildeo da
participaccedilatildeo poliacutetica do conjunto da categoria militar no regime ditatorial Sem atribuir
ao presidente uma visatildeo mais liberal ndash diferentemente daqueles que interpretam as
medidas mais ldquodurasrdquo de Castelo como resultado das pressotildees da linha dura ndash pondera-
se aqui que por parte do governo o redirecionamento de objetivos iniciais era
recorrente sempre que a situaccedilatildeo exigia uma reavaliaccedilatildeo Dessa forma percebe-se que
os rumos poliacuteticos escolhidos pela ditadura tinham como finalidade a preservaccedilatildeo da
hierarquia e da aparente homogeneidade da instituiccedilatildeo castrense o que demandava a
contenccedilatildeo das instabilidades internas
A partir dessa perspectiva destaca-se o caraacuteter flutuante dos conflitos internos ao
regime decorrentes da incompatibilidade de interesses poliacuteticos entre os militares de
altas patentes que possuiacuteam cargos no governo ditatorial representados
43
metaforicamente pelo palaacutecio e militares de meacutedias e baixas patentes que eram
responsaacuteveis por serviccedilos internos a caserna Nesse sentido evidencia-se por exemplo
que apoacutes ser retirado da caserna o poder de cassaccedilatildeo de mandatos e de suspensatildeo de
direitos poliacuteticos as derrotas dos candidatos aliados ao regime ditatorial nas eleiccedilotildees
para governador nos estados da Guanabara e de Minas Gerais em outubro de 1965
ocasionou uma forte divergecircncia entre o palaacutecio e a caserna resultando uma
instabilidade castrense que desembocou em mais uma cizacircnia militar Diante disso na
tentativa de apaziguar a instabilidade militar e por conseguinte os acircnimos da caserna
no fim desse mesmo mecircs Castelo Branco decretaria o AI-27 com vigecircncia prevista ateacute
15 de marccedilo de 1967
Afinal atraveacutes desse Ato a caserna aleacutem de passar a influir no acircmbito da poliacutetica
comeccedilava a ganhar poderes extras Nele se estabelecia a possibilidade de suspensatildeo de
direitos poliacuteticos e de cassaccedilatildeo de mandatos de parlamentares imposiccedilatildeo da eleiccedilatildeo
indireta para a Presidecircncia da Repuacuteblica permissatildeo para o presidente da Repuacuteblica
decretar o recesso do Congresso Nacional e das demais casas legislativas extinccedilatildeo de
partidos poliacuteticos delegaccedilatildeo ao presidente da Repuacuteblica do poder de legislar por
decretos-leis estabelecimento de foro especial militar para civis acusados de crimes
contra a Seguranccedila Nacional ou as instituiccedilotildees militares suspensatildeo das garantias de
vitaliciedade inamovibilidade (dos juiacutezes) e de estabilidade (dos servidores puacuteblicos)
ampliaccedilatildeo de 11 para 16 ministros do Supremo Tribunal Federal (Ato Institucional Nordm2
27 out 1965)
Com a cassaccedilatildeo de mandatos suspensatildeo de direitos poliacuteticos e demissatildeo de
funcionaacuterios puacuteblicos a caserna conseguia alguma interferecircncia nos assuntos poliacuteticos
e com a decretaccedilatildeo de foro militar especial para civis acusados de crimes contra a
7 Para mais informaccedilotildees sobre o AI-2 ver BRASIL Ato Institucional Nordm2 de 27 de outubro de 1965
44
Seguranccedila Nacional ou instituiccedilotildees militares comeccedilava a ganhar um espaccedilo proacuteprio e
aos poucos formar um grupo disposto a agir por sua conta sem maiores consideraccedilotildees
pelas normas legais tendendo a fazer valer suas ideias pela forccedila A futura comunidade
de seguranccedila comeccedilava entatildeo a ser desenhada e a formar o caraacuteter e a atuaccedilatildeo dos
futuros membros de seus oacutergatildeos A montagem do sistema de seguranccedila interna em que
os DOI-CODI seriam inseridos iria a partir das primeiras leis das desavenccedilas internas
e da deflagraccedilatildeo dos primeiros Atos Institucionais se tornando viaacutevel
Entretanto mesmo apoacutes o AI-2 a crise no regime castrense continuava A
caserna ansiosa por mais espaccedilo poliacutetico comeccedilava a se organizar para a ascensatildeo de
outra forccedila ao governo se articulando em torno do entatildeo ministro da Guerra o general
Costa e Silva A desuniatildeo hieraacuterquica provocada pela disputa sucessoacuteria se configurava
naquele momento como um importante fator da crise do regime militar Em meio a este
clima de tensatildeo Castelo Branco e seus partidaacuterios os ditos castelistas se preocupavam
com a ldquoinstitucionalizaccedilatildeo da revoluccedilatildeordquo Diante dessa configuraccedilatildeo a ldquorevoluccedilatildeo
castelistardquo de fato acabou sendo implantada pelo presidente e os pilares de seu
processo foram a Lei de Seguranccedila Nacional e a Constituiccedilatildeo de 1967
A Carta de 1967 incorporou boa parte das medidas autoritaacuterias estabelecidas pelos
atos institucionais Entre essas as que instituiacuteam que toda pessoa natural ou juriacutedica
seria responsaacutevel pela Seguranccedila Nacional nos limites definidos em lei e que o foro
militar previsto no AI-2 por limitado periacuteodo de tempo ficaria definitivamente
estendido aos civis por tempo indeterminado nos casos de crimes contra a Seguranccedila
Nacional Jaacute a Lei de Seguranccedila Nacional reflexo tambeacutem do caraacuteter ldquodurordquo do final do
governo Castelo transformava em legislaccedilatildeo a Doutrina de Seguranccedila Nacional da
ESG legalizando a concepccedilatildeo de ldquoguerra internardquo e de ldquosubversatildeordquo dois dias antes da
chegada de Costa e Silva ao poder presidencial Essas uacuteltimas medidas do governo de
45
Castelo merecem aqui destaque por significarem um impulso agrave criaccedilatildeo de um setor
voltado para a repressatildeo poliacutetica seara em que os DOI-CODI atuariam anos agrave frente
Assim em meio a um clima anti-castelista em 15 de marccedilo de 1967 Costa e
Silva assume o governo militar prometendo inclusive uma maior humanizaccedilatildeo da
poliacutetica Entretanto com a eclosatildeo de protestos de rua contra a violecircncia ditatorial o
novo presidente logo retomaria o aspecto ldquorevolucionaacuteriordquo do regime militar e
decretaria o Ato Institucional Nordm5 (AI-5) 8
Afinal a partir dos discursos do deputado
Maacutercio Moreira Alves evocando os brasileiros a natildeo comparecerem ao tradicional
desfile do dia sete de setembro daquele ano de 1968 Costa e Silva e o palaacutecio passaram
a ser extremamente pressionados pela caserna a reagir A recusa da Cacircmara dos
Deputados em abrir um processo para cassaccedilatildeo do entatildeo deputado foi a justificativa
necessaacuteria para que o presidente convocasse a cuacutepula do aparelho militar e os juristas
palacianos para darem forma ao AI-5 vindo a decretaacute-lo na noite do dia 13 de dezembro
de 1968
Percebe-se que a conjuntura de 1968 iniciado com os protestos estudantis de
massa tornou pela primeira vez desde o golpe de 1964 momentaneamente unificado o
movimento de repuacutedio de expressivos setores sociais ao avanccedilo da repressatildeo militar
Este fato que a princiacutepio pode fazer crer ter estimulado uma desuniatildeo militar parece
ter sido um fator adicional de uniatildeo das Forccedilas Armadas As tensotildees internas agrave
instituiccedilatildeo portanto foram neste momento colocadas em suspenso e a situaccedilatildeo militar
diante da ofensiva da oposiccedilatildeo teria criado uma espeacutecie de unidade de crise Poreacutem
esta unidade de crise das Forccedilas Armadas rapidamente se fragmentou trazendo agrave tona
novamente em meados de 1968 um variado e complexo conjunto de tensotildees no campo
militar Esta unidade no entanto voltaria a existir em torno da decretaccedilatildeo do AI-5 apoacutes
8 Para mais informaccedilotildees sobre o AI-5 ver BRASIL Ato Institucional Nordm5 de 13 de dezembro de 1968
46
a derrota na votaccedilatildeo no Congresso e quando as pressotildees da caserna em prol da
militarizaccedilatildeo do governo se voltaram para o palaacutecio
Nesse momento os generais do governo se sentiram muito mais ameaccedilados do
que na jaacute mencionada instabilidade gerada pelas derrotas nas eleiccedilotildees para governador
de 1965 O fato da oficialidade rebelde de entatildeo natildeo ter um porta-voz em postos de
comando como era na eacutepoca Costa e Silva e por isso parecer mais difusa a tornava
mais ameaccediladora agrave integridade da instituiccedilatildeo militar Assim a explicaccedilatildeo para
juntamente com a caserna os generais cobrarem do Ministro do Exeacutercito uma imediata
tomada de decisatildeo em favor da ldquoRevoluccedilatildeordquo estava portanto na busca pela
permanecircncia de uma unidade das Forccedilas Armadas Dessa forma momentos antes do AI-
5 a unidade da crise novamente se formou soacute que dessa vez por motivos inerentes
unicamente agrave proacutepria instituiccedilatildeo militar (Martins Filho 1993 158-174)
O AI-5 foi ateacute entatildeo a maior expressatildeo legal do autoritarismo da ditadura militar
e construiu uma base essencial para que em 1970 surgissem os DOI-CODI Afinal
aleacutem de natildeo estabelecer um prazo final para sua vigecircncia inovando em relaccedilatildeo aos
demais Atos Institucionais o AI-5 tornou legal a suspensatildeo da garantia de ldquohabeas
corpusrdquo nos casos de crimes poliacuteticos contra a Seguranccedila Nacional Logo a partir
desse Ato foram estabelecidas as condiccedilotildees necessaacuterias para a institucionalizaccedilatildeo dos
sistemas de seguranccedila e de informaccedilotildees bem como o surgimento da Comissatildeo Geral de
Investigaccedilotildees (CGI) na tentativa de combate agrave corrupccedilatildeo O sistema de seguranccedila
esboccedilado naquele momento buscava o aperfeiccediloamento sob a eacutegide da ldquoguerra
revolucionaacuteriardquo mencionada no preacircmbulo do proacuteprio AI-5
Considerando que assim se torna imperiosa a adoccedilatildeo de medidas que
impeccedilam que sejam frustrados os ideais superiores da Revoluccedilatildeo
preservando a ordem a seguranccedila a tranquilidade o desenvolvimento
econocircmico e cultural e a harmonia poliacutetica e social do Paiacutes comprometidos
47
por processos subversivos e de guerra revolucionaacuteria (Ato Institucional nordm
5 13 dez 1968)
Logo as cizacircnias militares e a legislaccedilatildeo a elas relacionada contribuiacuteram para a
formaccedilatildeo do cenaacuterio propiacutecio agrave institucionalizaccedilatildeo do aparato de repressatildeo Aparato este
que a partir do AI-5 foi se estruturando em trecircs grandes sistemas o SISNI Sistema
Nacional de Informaccedilotildees a CGI Comissatildeo Geral de Investigaccedilotildees e o SISSEGIN
Sistema de Seguranccedila Interna Este ao ser criado abriria espaccedilo para a repressatildeo
poliacutetica centralizada e institucionalizada dos DOI-CODI
13 A montagem e o funcionamento do SISSEGIN
Ao longo dos anos 70 os DOI-CODI passariam a ser os principais oacutergatildeos de
atuaccedilatildeo do SISSEGIN e um dos pontos centrais do aparelho de repressatildeo brasileiro Ao
seu lado em outras esferas de competecircncia estavam os oacutergatildeos do Sistema Nacional de
Informaccedilotildees (SISNI) e os da Comissatildeo Geral de Investigaccedilatildeo (CGI) Cada um desses
sistemas possuiacutea uma competecircncia especiacutefica o SISNI era responsaacutevel por buscar as
informaccedilotildees necessaacuterias agrave manutenccedilatildeo do regime de Seguranccedila Nacional procurando
desvendar quem eram os opositores ao governo os chamados ldquoinimigos internosrdquo
enquanto a CGI buscava o combate agrave corrupccedilatildeo no serviccedilo puacuteblico Jaacute o SISSEGIN
operava de forma centralizada tanto na investigaccedilatildeo quanto na apreensatildeo dos mesmos
ldquoinimigos internosrdquo
Para a anaacutelise do SISSEGIN vale-se aqui do trabalho de Carlos Fico Como eles
agiam (2001) feito com base no acervo da extinta Divisatildeo de Seguranccedila e Informaccedilotildees
do Ministeacuterio da Justiccedila inclusive nos documentos sigilosos Afinal nesse estudo Fico
revela em detalhes o que nenhum outro historiador havia conseguido ateacute entatildeo a
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formaccedilatildeo e o funcionamento das comunidades de informaccedilotildees e de seguranccedila da
ditadura militar brasileira
A partir disso destaca-se aqui que a estrutura e o funcionamento do SISSEGIN
foram instituiacutedos e regulamentados por meio de decretos sigilosos O mesmo padratildeo de
regulamentaccedilatildeo foi seguido pela Operaccedilatildeo Bandeirantes (Oban) instituiccedilatildeo informal
criada em Satildeo Paulo em julho de 1969 bem como pelos DOI-CODI instituiacutedos no
primeiro semestre de 1970 formalizando a experiecircncia da Oban e espalhando-a por
todas as Regiotildees Militares do Brasil Jaacute que eacute atraveacutes dessas Regiotildees que o Exeacutercito
divide geograficamente sua administraccedilatildeo sobre o territoacuterio brasileiro foi tambeacutem por
meio delas que partiu durante parte da ditadura militar as responsabilidades territoriais
dos DOI-CODI Logo o DOI-CODI do Rio de Janeiro ficava responsaacutevel pelos crimes
poliacuteticos ocorridos na Primeira Regiatildeo ou seja nos estados do Rio de Janeiro e do
Espiacuterito Santo
A justificativa para esse sigilo dos atos que regiam o SISSEGIN e os DOI-CODI
estava na maior mobilidade e autonomia de accedilatildeo que o segredo traria para a atuaccedilatildeo
repressora desses organismos Dessa forma a repressatildeo podia agir sem grandes
limitaccedilotildees natildeo esbarrando em questotildees externas agraves decisotildees militares tais como os
Direitos Humanos Universais de 1948
No entanto eacute tambeacutem evidente a importacircncia que alguns atos legais natildeo-sigilosos
tiveram para a construccedilatildeo do cenaacuterio que sustentaria a atuaccedilatildeo do SISSEGIN e dos
DOI-CODI Eacute o caso por exemplo da adoccedilatildeo do foro especial para crimes poliacuteticos
que a partir do AI-2 e da subsequente incorporaccedilatildeo dessa medida pela Constituiccedilatildeo de
1967 passaram a ser julgados pelos tribunais militares e a suspensatildeo de garantias
individuais tal como o habeas corpus feita pelo AI-5 de dezembro de 1968 Afinal
natildeo seria eficaz para a atuaccedilatildeo desses oacutergatildeos repressores que seus prisioneiros poliacuteticos
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atraveacutes do habeas corpus pudessem ser imediatamente soltos pela Justiccedila ou que
pudessem ser julgados por tribunais civis correndo o risco do juiz responsaacutevel pela
causa natildeo estar totalmente articulado aos princiacutepios impostos pela Doutrina de
Seguranccedila Nacional
Dessa forma ateacute o AI-5 foram levantadas as bases legais para que um Sistema de
Seguranccedila Nacional centralizado combativo e violento fosse institucionalizado Por
outro lado a partir do AI-5 para ter a autonomia e a mobilidade que se julgavam
necessaacuterias a organizaccedilatildeo desse Sistema de Seguranccedila Nacional foi sigilosa Ou seja a
reestruturaccedilatildeo do sistema repressivo com os seus novos oacutergatildeos e o detalhamento de
suas funccedilotildees internas natildeo foi publicada oficialmente por nenhum tipo de legislaccedilatildeo A
operacionalidade da seguranccedila interna foi regida por diretrizes secretas e o SISSEGIN
instituiacutedo por decretos sigilosos do Conselho de Seguranccedila Nacional (CSN) aprovados
pelo Presidente da Repuacuteblica
Por isso mesmo uma das primeiras medidas para o estabelecimento do SISSEGIN
e posteriormente dos DOI-CODI foi o fortalecimento do Conselho de Seguranccedila
Nacional cujas competecircncias foram ampliadas por atualizaccedilatildeo na legislaccedilatildeo operada
em janeiro de 1968 No ano seguinte em julho a Diretriz para a Poliacutetica de Seguranccedila
Interna foi instituiacuteda secretamente a fim de consolidar o SISSEGIN e adotar
nacionalmente o padratildeo da Oban (Operaccedilatildeo Bandeirante) No entanto somente em
1970 durante a vigecircncia do governo Meacutedici o modelo da Oban foi adaptado
transformado em DOI-CODI e de fato instituiacutedo por todas as Regiotildees Militares do
paiacutes
A Oban foi secretamente instituiacuteda em 1ordm de julho de 1969 no quartel do II
Exeacutercito em Satildeo Paulo No intuito de combater de forma mais organizada e eficaz a
esquerda armada a Oban usava de sua ldquoilegalidade oficialrdquo para agir contra os
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ldquoinimigos internosrdquo sem precisar adequar seus meacutetodos de trabalho aos Direitos
Humanos A Oban criava uma estrutura nova que coordenava e integrava os diversos
oacutergatildeos de repressatildeo poliacutetica ndash entre eles as 2ordf seccedilotildees da Poliacutecia Militar Exeacutercito e
Marinha de Satildeo Paulo responsaacuteveis pelas investigaccedilotildees de crimes poliacuteticos nessas
instituiccedilotildees ndash que operavam de forma desordenada e ineficaz contra a esquerda armada
em aparente ascensatildeo O funcionamento da Oban se dava por meio de um trabalho
coordenado de diversas instacircncias conforme apresenta Fico no seguinte trecho
O funcionamento da Oban supunha um trabalho coordenado de diversas
instacircncias Toda quarta-feira era feita uma reuniatildeo no quartel-general do II
Exeacutercito na qual eram discutidas e avaliadas as accedilotildees da guerrilha da
semana Participavam dessas reuniotildees o chefe da 2ordf Seccedilatildeo do II Exeacutercito o
comandante da Oban major Waldyr Coelho um representante da 2ordf Seccedilatildeo
do II Exeacutercito o oficial chefe da 2ordf Seccedilatildeo do Distrito Naval o chefe da 2ordf
Seccedilatildeo da Poliacutecia Militar do Estado de Satildeo Paulo um representante da Poliacutecia
Federal um representante da Divisatildeo da Ordem Social e outro da Ordem
Poliacutetica ambos do DOPS (Fico 2001 117)
Aleacutem dos meios militar e policial a Oban tambeacutem era sustentada pelo
empresarial financeiro e parte das autoridades civis paulistas da eacutepoca conforme indica
trecho do artigo da historiadora Mariana Joffily para a revista Caros Amigos
O ato que celebrou a criaccedilatildeo da Oban foi organizado com pompa coqueteacuteis
e salgadinhos e contou com a presenccedila das principais autoridades poliacuteticas
de Satildeo Paulo o governador Roberto de Abreu Sodreacute o prefeito Paulo Maluf
o comandante do II Exeacutercito (atual Regional Sudeste) general Joseacute
Canavarro Pereira entre outros Tambeacutem acorreram agrave cerimocircnia figuras
proeminentes da elite paulista oriundas dos meios empresarial e financeiro
Luiz Macedo Quentel Antonio Delfim Netto Gastatildeo Vidigal Paulo Sawaya
e Henning Albert Boilesen Parte do setor empresarial paulista e das
multinacionais ndash com representaccedilatildeo em Satildeo Paulo ndash acreditava que as accedilotildees
guerrilheiras colocavam em risco a boa conduta dos negoacutecios e concorreu
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para o apoio financeiro e material As autoridades da cidade colaboraram
com infra-estrutura incluindo a cessatildeo de partes das dependecircncias da 36ordf
delegacia de poliacutecia situada na Rua Tutoacuteia (Vila Mariana) para a
acomodaccedilatildeo do novo oacutergatildeo repressivo (Joffily 14 set 2009)
Percebe-se portanto que muitos empresaacuterios de Satildeo Paulo ajudaram a financiar a
Oban Entre outros gastos esse financiamento era destinado agrave capacitaccedilatildeo de seus
agentes e agrave compra de equipamentos de tortura novos entre eles uma maacutequina de
choques eleacutetricos nomeada de ldquoPianola Boilesenrdquo em homenagem a Henning Albert
Boilesen entatildeo presidente da empresa Ultragaacutes e um dos empresaacuterios agrave frente desse tipo
de investimento na Oban Boilesen assim como os demais empresaacuterios envolvidos
financeiramente com a Oban por desacreditar nas instituiccedilotildees do Estado que ateacute entatildeo
eram responsaacuteveis pelo combate agrave esquerda armada e por ter interesses reais nesse
combate optou por capitalizar a Oban Afinal uma instituiccedilatildeo extra-oficial de accedilatildeo
coordenada e com grande investimento teria autonomia e capacidade para neutralizar os
grupos da esquerda armada que vinham causando prejuiacutezos a seus negoacutecios tais como
assaltos e atentados Justamente devido a essa relaccedilatildeo que tinha com a Oban Boilesen
foi assassinado posteriormente em 1971 por militantes da esquerda armada 9
Percebe-se portanto que a Oban tinha caraacuteter paramilitar e unia a iniciativa
privada ao Estado a fim de que o poder de poliacutecia deste fosse fortalecido Sua criaccedilatildeo
empregou portanto um novo tipo de atuaccedilatildeo militar em que o combate ao ldquoinimigo
internordquo contaria com uma forte autonomia de accedilatildeo respaldada pelo sigilo dos decretos
regulamentares e pelo financiamento do empresariado A Oban se consagrava como um
poderoso e promissor modelo de repressatildeo
No entanto o envolvimento de oficiais das Forccedilas Armadas policiais e
empresaacuterios com a repressatildeo poderia assumir proporccedilotildees que fugissem ao controle
9 Para mais informaccedilotildees sobre Henning Albert Boilesen e a relaccedilatildeo do empresariado com a Oban ver o
filme documentaacuterio Cidadatildeo Boilesen (Brasil 2009)
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militar e configurassem algumas vezes conflitos de interesses Assim com o sucesso
das accedilotildees da Oban no combate aos opositores armados os militares optaram por
ampliar o seu modelo para todo o Brasil desde que incorporasse algumas reformulaccedilotildees
que assegurassem o total controle militar Surgiriam entatildeo os DOI-CODI
Os DOI-CODI eram portanto a institucionalizaccedilatildeo e a sofisticaccedilatildeo do modelo da
Oban Afinal eles coordenavam todas as demais Forccedilas e Poliacutecias sob o comando do
Exeacutercito e estavam espalhados por todas as Regiotildees Militares do paiacutes Eram a nova
estrutura do SISSEGIN implantada por diretrizes secretas que o Conselho de Seguranccedila
Nacional havia formulado Tais diretrizes estabeleceram que para cada um dos
comandos militares haveria um Conselho de Defesa Interna (CONDI) um Centro de
Operaccedilotildees de Defesa Interna (CODI) e um Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees
(DOI) todos sob responsabilidade do comandante do Exeacutercito respectivo denominado
comandante da ldquoZona de Defesa Internardquo (ZDI) O paiacutes ficou assim dividido em seis
ZDI Podiam ser criadas ainda Aacutereas de Defesa Interna (ADI) ou Sub-Aacutereas de Defesa
Interna (SADI) em regiotildees que merecessem cuidados especiais
Aos Conselhos de Defesa Interna (CONDI) cabia assessorar os comandantes das
ZDI e tambeacutem facilitar a esses comandantes a coordenaccedilatildeo de accedilotildees e a necessaacuteria
cooperaccedilatildeo por parte das mais altas autoridades civis e militares com sede nas
respectivas aacutereas de responsabilidade Logo os CONDI podiam ser integrados por
governadores ou seus representantes assim como comandantes das Forccedilas Navais e
Aeacutereas comandantes subordinados secretaacuterios de seguranccedila e comandantes das demais
Poliacutecias ou outras autoridades conforme o comandante da respectiva ZDI julgasse
necessaacuterio Tinham como aacuterea de jurisdiccedilatildeo territorial as Regiotildees Militares cujas sedes
se localizam em Satildeo Paulo Rio de Janeiro (1ordm BPE) Brasiacutelia Minas Gerais Rio Grande
do Sul Bahia Pernambuco e Cearaacute No entanto segundo Fico os CONDI natildeo tiveram
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funcionamento significativo
Os Centros de Operaccedilotildees de Defesa Interna (CODI) eram oacutergatildeos de planejamento
e coordenaccedilatildeo das medidas de defesa interna dirigidos pelo chefe do Estado-Maior do
Exeacutercito da Regiatildeo e compostos por representantes de todas as Forccedilas bem como da
divisatildeo local de ordem poliacutetica e social das Poliacutecias Civil Militar Federal e da agecircncia
local do Serviccedilo Nacional de Informaccedilotildees (SNI) Entre suas funccedilotildees estavam o
planejamento o controle e a execuccedilatildeo das medidas de defesa interna a coordenaccedilatildeo dos
meios utilizados para esta execuccedilatildeo e a ligaccedilatildeo com todos os escalotildees envolvidos
devendo possibilitar a conjugaccedilatildeo de esforccedilos do Exeacutercito da Marinha da Aeronaacuteutica
do SNI do Poliacutecia Federal e das Secretarias de Seguranccedila Puacuteblica
Jaacute os Destacamentos de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) tinham uma
estruturaccedilatildeo interna tiacutepica composta por setores especializados em operaccedilotildees externas
informaccedilotildees contra-informaccedilotildees interrogatoacuterios e anaacutelises aleacutem de assessoria juriacutedica
e policial e setores administrativos O trabalho nesses destacamentos era ininterrupto
Utilizavam regularmente dois regimes de trabalho um de expediente regular (das 8 agraves
18 horas) e outro atraveacutes de plantotildees de 24 horas por 48 de folga Abaixo visualiza-se a
estrutura orgacircnica dos DOI que sintetiza suas funccedilotildees e sua hierarquia institucional
(FICO 2001 123-125)
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DOI do Exeacutercito
No organograma acima nota-se que os DOI eram divididos por setores seccedilotildees e
subseccedilotildees Esses satildeo caracterizados por Fico de acordo com suas funccedilotildees e
composiccedilotildees e tambeacutem pelo coronel Freddie Perdigatildeo Pereira em sua monografia que eacute
analisada na segunda frente do estudo aqui traccedilado Percebe-se que essa caracterizaccedilatildeo
feita por Fico e por Pereira eacute muito proacutexima uma vez que eles utilizam os mesmos
termos e palavras para descrever o trabalho ou a formaccedilatildeo de determinado setor ou
seccedilatildeo Diante disso torna-se evidente que ambos os trabalhos se basearam no mesmo
documento que apesar de natildeo ser citado na monografia de Pereira eacute referenciado por
Fico como ldquoSistema de Seguranccedila Interna SISSEGIN Documento classificado como
lsquosecretorsquo [1974] Capiacutetulo 2rdquo Entretanto enquanto o Sistema de Seguranccedila Nacional
como um todo eacute o foco da pesquisa de Fico o DOI eacute o objeto de Pereira o que por
conseguinte o faz apresentar de forma mais detalhada a composiccedilatildeo de cada uma de
suas partes integrantes Logo optou-se aqui por tratar da estrutura interna dos DOI na
Comandante
Seccedilatildeo de contra-informaccedilotildees Turma de comando
Setor de operaccedilotildees de informaccedilotildees Setor de administraccedilatildeo
Turno auxiliar
Assistecircncia juriacutedica
e policial
Seccedilatildeo
administrativa
Seccedilatildeo de busca e
apreensatildeo
Setor de
investigaccedilotildees
Setor de anaacutelise e
informaccedilotildees
Subseccedilatildeo de
interrogatoacuterio Subseccedilatildeo de anaacutelise
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proacutexima frente de estudo durante a anaacutelise da monografia de Pereira onde
trabalharemos com os DOI-CODI sob o ponto de vista de um de seus agentes ainda
durante a ditadura
Com relaccedilatildeo agrave atuaccedilatildeo dos DOI-CODI dentro do SISSEGIN Maria Celina
DrsquoArauacutejo em Os anos de Chumbo a memoacuteria militar sobre a repressatildeo (1994)
apresenta grandes contribuiccedilotildees para a presente pesquisa uma vez que em sua obra
analisa por meio de depoimentos ineacuteditos de militares a atuaccedilatildeo dos oacutergatildeos de
informaccedilatildeo e repressatildeo poliacutetica durante a ditadura militar
Partindo dessa abordagem de DrsquoArauacutejo destaca-se que diferentemente do que
acontecia na Oban cada um dos DOI-CODI tinha por comandante-geral o chefe do
Estado-Maior do Exeacutercito de sua respectiva Regiatildeo Militar e seu financiamento contava
com recursos orccedilamentaacuterios regulares do governo Logo os DOI-CODI natildeo
estabeleciam uma ligaccedilatildeo direta com o capital privado que entretanto ainda podia
investir de forma indireta na repressatildeo por meio de doaccedilotildees de maacutequinas e serviccedilos
Dessa forma os DOI-CODI tinham uma maior independecircncia financeira que junto com
a centralizaccedilatildeo hieraacuterquica que tambeacutem os caracterizava permitia que suas
investigaccedilotildees e accedilotildees procedessem de forma ainda mais eficiente Afinal esses atributos
evitavam que suas operaccedilotildees estivessem suscetiacuteveis agrave duplicidade de tarefas a
competiccedilotildees e a conflitos de interesses maximizando os seus resultados e tornando-os
uma espeacutecie de sofisticaccedilatildeo da repressatildeo
Aleacutem disso percebe-se que essa sofisticaccedilatildeo dos DOI-CODI tambeacutem era formada
pelo proposital distanciamento ali mantido entre os militares do governo e os agentes
desses oacutergatildeos de repressatildeo Afinal a ditadura ao mesmo tempo em que sancionava a
tortura nos seus ldquoporotildeesrdquo estrategicamente negava a sua existecircncia perante a sociedade
Assim esse cenaacuterio que isentava os governantes e os demais militares relacionados ao
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poder poliacutetico do paiacutes de qualquer ligaccedilatildeo com a tortura se mantinha atraveacutes da
seguinte configuraccedilatildeo de um lado o torturador ndash que natildeo montou a maacutequina e jamais
efetuaria a tortura num salatildeo do quartel do Exeacutercito se temesse a reaccedilatildeo de seus
comandantes ndash e de outro o seu superior responsaacutevel pela ordem puacuteblica e
beneficiaacuterio direto do poder poliacutetico ndash que sancionava as maacutequinas mas natildeo tocava nos
presos
Dessa forma os DOI responsaacuteveis por accedilotildees que englobavam as prisotildees e os
interrogatoacuterios dos presos poliacuteticos eram instituiccedilotildees que prezavam por natildeo ser
externamente identificadas por seus meacutetodos violentos O sistema funcional dos DOI
era entatildeo complexo e informal de modo que por mais que neles existissem hierarquia e
coordenaccedilatildeo as brechas para que a falta de controle se propagasse eram amplas a fim
de que os meacutetodos natildeo regulamentares tais como as torturas pudessem ser
desempenhados com a eficiecircncia e a recorrecircncia necessaacuterias sem serem relacionados
diretamente a um comando
Diante disso justifica-se que conforme apurado por Maria Celina DrsquoArauacutejo a
versatildeo oficial dos militares ainda possa ser a de que a tortura jamais resultou de
qualquer ordem ou orientaccedilatildeo superior E mesmo quando chega a ser admitida apareccedila
como exceccedilatildeo como abuso ou excesso de poucos Entretanto torna-se aqui evidente a
incoerecircncia dessa versatildeo militar Afinal verifica-se que assim como em todos os
organismos militares nos DOI tambeacutem existiam uma forte hierarquia a ser cumprida
onde apesar de uma estrutura complexa qualquer accedilatildeo deveria ser remetida a um
superior o que sugere que a questatildeo da responsabilidade sempre poderia ser resgatada
Logo se militares reconhecem que existiram ldquoexcessosrdquo na eacutepoca e mesmo assim os
chefes imediatos de tais infratores natildeo tomaram as devidas providecircncias encontra-se
nos DOI entatildeo uma forte incongruecircncia com relaccedilatildeo ao princiacutepio militar de
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responsabilizaccedilatildeo do chefe-superior Portanto diante dessa constataccedilatildeo de como eram
tratados os torturadores nos DOI percebe-se que apesar de velada em geral a tortura
era um procedimento ali consentido
2 O DOI-CODI por ele mesmo
A anaacutelise ateacute agora feita por meio da historiografia cede aqui lugar para se
concentrar sobre uma fonte especiacutefica pela qual a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
satildeo vistas por um acircngulo mais proacuteximo a partir do olhar de um de seus agentes
enquanto a instituiccedilatildeo ainda estava em atividade Trata-se do trabalho O Destacamento
de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de
combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo atual e perspectivas apresentado em 1978 agrave Escola de
Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) pelo entatildeo coronel de cavalaria Freddie
Perdigatildeo Pereira10
posteriormente apontado por ex-prisioneiros poliacuteticos como o
torturador ldquoNagibrdquo do DOI carioca do iniacutecio dos anos 1970
A referida fonte eacute uma espeacutecie de trabalho final da ECEME estabelecimento de
ensino tradicional do Exeacutercito brasileiro situado no bairro da Praia Vermelha no Rio de
Janeiro cuja missatildeo eacute a preparaccedilatildeo de oficiais superiores para o exerciacutecio de funccedilotildees
de Estado-Maior comando chefia direccedilatildeo e assessoramento dos mais elevados
escalotildees da Forccedila Terrestre 11
Logo eacute fruto de uma espeacutecie de preparaccedilatildeo que o
coronel Pereira estava se submetendo a fim de ocupar algum cargo de chefia dentro do
Exeacutercito
Escrita durante a ditadura militar enquanto os DOI-CODI ainda estavam em
funcionamento embora em menor atividade devido agrave propagaccedilatildeo de denuacutencias sobre
10
Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II 11
ESCOLA de Comando e Estado Maior do Exeacutercito (ECEME) [acesso em 29 jan 2012] Disponiacutevel
em httpwwwecemeensinoebbreceme
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torturas e mortes ocasionadas dentro do Destacamento a monografia permite trabalhar
diretamente com a visatildeo de um dos agentes do DOI-CODI ainda no ldquocalor da horardquo
como se costuma dizer O tema abordado eacute a atuaccedilatildeo dos DOI durante o seu periacuteodo de
maior efetividade de 1970 a 1973 provavelmente como uma tentativa de fortalecer a
instituiccedilatildeo e reforccedilar o seu poder trazendo agrave tona os ldquovelhos temposrdquo de grande
atividade
Em 1978 momento em que a monografia foi escrita o DOI-CODI havia
diminuiacutedo suas atividades de repressatildeo se restringindo apenas ao papel de investigaccedilatildeo
Como indica o referido coronel no seguinte trecho
Fruto principalmente do trabalho anocircnimo e incansaacutevel dos DOI o
terrorismo no Brasil foi praticamente aniquilado Em funccedilatildeo disso tais
oacutergatildeos foram e continuam sendo alvo de uma das mais virulentas campanhas
difamatoacuterias que a imprensa brasileira e internacional jaacute desencadearam
contra uma instituiccedilatildeo E os DOI que surgiram no fragor da luta e com
estrutura adaptada para enfrentar a accedilatildeo direta no combate aberto
reformulam a sua atuaccedilatildeo [] O efetivo elevado trabalhando atualmente na
Seccedilatildeo de Investigaccedilotildees pode dar ideia do tipo de trabalho que ora eacute
desenvolvido nos DOI com prioridade absoluta Trata-se do levantamento
total das organizaccedilotildees atuantes a partir da vigilacircncia permanente e cerrada
sobre os elementos jaacute identificados [] o trabalho nos DOI deixou de ter
aquele caraacuteter de combate de peito aberto tantas vezes levado a efeito por
seus pioneiros Transformou-se o DOI atual numa verdadeira agecircncia de
informaccedilotildees onde impera o trabalho frio e calculado do analista a teacutecnica
sofisticada de aparelhagem eletrocircnica substituindo a coragem pessoal de
seus elementos
Os DOICODI satildeo e sempre seratildeo as sentinelas atentas e vigilantes de nossa
liberdade (Pereira 1978 28-35)
Essa mudanccedila promovida nos DOI se relaciona diretamente com o momento
vivido pelo Brasil em 1978 Existia entatildeo uma incompatibilidade entre a distensatildeo
59
poliacutetica ldquolenta gradual e segurardquo comandada pelo Presidente Ernesto Geisel a fim de
abrir o paiacutes e instalar futuramente uma democracia e as denuacutencias sobre torturas e
mortes que continuavam a ocorrer dentro dos DOI-CODI e eram com frequecircncia
noticiadas pelos jornais do Brasil e do mundo Assim com o intuito de reverter este
cenaacuterio desfavoraacutevel Geisel optou por exonerar em 1976 o comandante do II Exeacutercito
o general Ednardo DAacutevila Melo afastar do governo no ano seguinte o entatildeo ministro
do Exeacutercito o general Siacutelvio Frota ndash visto por muitos agentes dos DOI como uma
lideranccedila contra a distensatildeo poliacutetica e o enfraquecimento das operaccedilotildees repressoras e
apoiado como eventual candidato agrave Presidecircncia da Repuacuteblica ndash e de forma geral
diminuir a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI no combate direto agrave ldquosubversatildeordquo concentrando suas
atividades apenas na investigaccedilatildeo
Esta atitude logicamente causou resistecircncia entre muitos integrantes dos DOI-
CODI que tentavam provar a necessidade da atuaccedilatildeo repressora da instituiccedilatildeo para a
proteccedilatildeo da Seguranccedila Nacional Essas tentativas incluiacuteam muitas accedilotildees forjadas pelos
proacuteprios agentes dos DOI como atentados a bomba em bancas de jornal instituiccedilotildees que
lutavam contra a ditadura ndash como a sede da OAB no Rio de Janeiro atacada em agosto
de 1980 quando morreu a secretaacuteria Lyda Monteiro ndash e shows populares ndash como a
tentativa frustrada de ataque a bomba de dois agentes do DOI do Rio de Janeiro em
maio de 1980 no show em homenagem ao dia do trabalhador no Riocentro
Outro aspecto dessa fonte que merece tambeacutem ser aqui destacado satildeo as
circunstacircncias pessoais que impulsionaram a sua confecccedilatildeo Afinal se a funccedilatildeo da
ECEME eacute preparar militares para ocupar cargos de chefia dentro do Exeacutercito
certamente a monografia foi um requisito necessaacuterio para que o coronel Pereira se
preparasse para uma promoccedilatildeo na carreira militar Partindo dessa informaccedilatildeo e
juntando-a ao dado que Elio Gaspari apresenta na obra A Ditadura Escancarada (2002
60
184) de que foi oferecido ao mesmo coronel no iniacutecio de 1980 o posto de general de
brigada percebe-se que de fato essa preparaccedilatildeo de Pereira lhe gerou frutos Poreacutem de
acordo com Gaspari para ser general de brigada ele teria que aceitar comandar uma
tropa em uma unidade militar de Satildeo Paulo o que natildeo lhe agradou Preferiu entatildeo a
opccedilatildeo de ir para a reserva e ao mesmo tempo permanecer como contratado em um
cargo na seccedilatildeo de operaccedilotildees do SNI do Rio de Janeiro recebendo no total uma receita
superior agrave de general de Exeacutercito Essa situaccedilatildeo tal como o tema escolhido para sua
monografia eacute mais uma evidecircncia do apreccedilo que coronel Pereira tinha pelo ofiacutecio
investigativo que outrora exerceu nos DOI Diante de sua progressatildeo profissional e do
esvaziamento que os DOI vinham sofrendo o SNI12
se tornava uma opccedilatildeo atraente
pois aleacutem de ser uma instituiccedilatildeo que investigava elementos que ameaccedilavam a
Seguranccedila Nacional estava diretamente ligada ao alto esquadratildeo do Exeacutercito ciacuterculo de
que Pereira fazia parte nesse momento
Com relaccedilatildeo agrave monografia desse coronel muitos pontos interessantes satildeo
destacados Entre eles o detalhamento estrutural dos DOI-CODI
Internamente os CODI eram subdivididos entre trecircs centrais 1- Central de
Informaccedilotildees 2- Central de Operaccedilotildees 3- Central de Assuntos Civis O comando
principal era da 1- Central de Informaccedilotildees que coordenava as investigaccedilotildees locais e
era chefiada pelo dirigente do CODI ou seja pelo chefe do Estado-Maior do Exeacutercito
da aacuterea que deveria ser um general do Exeacutercito Este reunia em sua equipe um
representante local do alto escalatildeo da Aeronaacuteutica da Marinha do SNI e do
Departamento de Poliacutecia Federal o diretor do DOPS e o Comandante do DOI daquela
jurisdiccedilatildeo aleacutem do chefe da 2ordf Seccedilatildeo da Poliacutecia Militar responsaacutevel pela parte de
informaccedilotildees relativas a crimes poliacuteticos Jaacute a 2- Central de Operaccedilotildees e a 3- de
12
Para mais informaccedilotildees sobre a formaccedilatildeo do SNI ver Antunes 2002
61
Assuntos Civis davam suporte agrave equipe da 1- de Informaccedilotildees e para tanto tambeacutem
congregavam em suas equipes representantes das trecircs Forccedilas sendo um representante
do Exeacutercito da Regiatildeo Militar correspondente responsaacutevel por ocupar o cargo de chefe
aleacutem de um representante credenciado da Poliacutecia Civil da Poliacutecia Militar local e de
outros oacutergatildeos quando fosse necessaacuterio para contribuir com alguma anaacutelise especiacutefica
O CODI de cada Regiatildeo Militar tinha por funccedilatildeo centralizar as informaccedilotildees de
caraacuteter ldquosubversivordquo e repassaacute-las ao DOI correspondente para que as operaccedilotildees de
informaccedilotildees fossem realizadas de forma concentrada atraveacutes desse uacutenico oacutergatildeo e por
conseguinte sob um uacutenico comando Assim evitava-se que vaacuterios oacutergatildeos de informaccedilatildeo
ligados a uma das trecircs Forccedilas ou agraves Poliacutecias realizassem suas operaccedilotildees
independentemente de qualquer coordenaccedilatildeo ou planejamento global o que poderia
acabar prejudicando as accedilotildees contra seus ldquoinimigos internosrdquo
Afinal de acordo com as informaccedilotildees levantadas por Pereira em sua monografia
antes dos DOI-CODI serem institucionalizados natildeo foram poucas as vezes que um
desses oacutergatildeos prejudicou a atuaccedilatildeo de outro Em diversos momentos enquanto um
estava realizando uma vigilacircncia sobre determinados elementos ldquosubversivosrdquo por
exemplo outro sem saber da accedilatildeo do primeiro prendia dois ou trecircs desses elementos
Dessa forma os demais membros da mesma organizaccedilatildeo ao saberem da prisatildeo de seus
companheiros natildeo retornavam agrave aacuterea sob vigiacutelia e evitavam ser presos Tambeacutem em
vaacuterias ocasiotildees a documentaccedilatildeo apreendida por determinado oacutergatildeo de seguranccedila ficava
em seu poder e natildeo era encaminhada para outros escalotildees para ser analisada Com essas
informaccedilotildees ldquoencostadasrdquo as accedilotildees armadas de organizaccedilotildees de esquerda que ali
estavam indicadas prosseguiam normalmente sem impedimentos
Percebe-se portanto como a centralizaccedilatildeo de informaccedilotildees e de accedilotildees de
seguranccedila interna implantada pelos DOI-CODI conduziu a resultados positivos para a
62
repressatildeo Natildeo eacute agrave toa que conforme analisado anteriormente a partir da tese de Maria
Celina DrsquoArauacutejo os DOI-CODI satildeo aqui entendidos como a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo
jaacute que os CODI passaram a concentrar e coordenar as informaccedilotildees e atraveacutes dos DOI a
executar de forma concentrada as operaccedilotildees de informaccedilotildees
Oacutergatildeos operacionais dos CODI os Destacamentos de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees
os DOI eram destinados ao trabalho de combate direto ao ldquoinimigo internordquo Para tanto
conforme analisado a partir da monografia de Pereira e da jaacute referida obra de Fico13
os
DOI dividiam-se basicamente entre 1- Setor de operaccedilotildees de informaccedilotildees e 2- Setor de
administraccedilatildeo Tais setores estavam diretamente subordinados ao comandante do
Destacamento daquela Regiatildeo Militar que normalmente deveria ser um tenente-coronel
com vivecircncia na aacuterea de informaccedilotildees Essa patente de tenente-coronel compunha o
ciacuterculo hieraacuterquico de oficiais e a hierarquia de oficiais superiores14
ou seja pertencia
ao acircmbito de convivecircncia desses oficiais e portanto era considerado um deles Isto
significa que os comandantes dos DOI estavam um degrau abaixo do uacuteltimo acircmbito
hieraacuterquico do Exeacutercito o dos oficiais-generais ciacuterculo referente aos chefes dos CODI
que deveriam possuir a patente de general de Exeacutercito
Chefiado pelo subcomandante do DOI o 1- Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees
tinha diretamente subordinado a ele 11- Setor de Investigaccedilatildeo 12- Setor de Anaacutelise e
Informaccedilotildees e 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo Jaacute o 2- Setor de administraccedilatildeo se
subdividia em 21- Assessoria Juriacutedica e Policial e 22- Seccedilatildeo administrativa
Ao 11- Setor de Investigaccedilatildeo cabia fundamentalmente a realizaccedilatildeo de
investigaccedilotildees com a finalidade de identificar e localizar ldquoelementos subversivosrdquo a fim
de repassar as informaccedilotildees para que os agentes da 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo
prendessem os suspeitos e localizassem os seus ldquoaparelhosrdquo (termo designado para
13
Para visualizar o organograma dos DOI voltar agrave paacutegina 54 14
Para mais informaccedilotildees sobre os ciacuterculos hieraacuterquicos e a hierarquia militar do Exeacutercito ver Anexo II
63
definir o local em que ficavam escondidos os integrantes dos grupos de esquerda que
viviam na clandestinidade) A chefia e a subchefia do 11- Setor de Investigaccedilatildeo era
privativa de oficiais do Exeacutercito e seus integrantes natildeo deveriam ser identificados pelos
elementos a serem presos a fim de que a eficiecircncia da accedilatildeo fosse garantida uma vez que
as suas identificaccedilotildees poderiam ocasionar a fuga dos suspeitos No entanto quando a
situaccedilatildeo exigia os integrantes desse setor poderiam efetuar prisotildees neutralizar
ldquoaparelhosrdquo e apreender material ldquosubversivordquo Esse 11- Setor de Investigaccedilatildeo agia por
meio de diversas turmas de investigaccedilatildeo compostas cada uma por um agente um
auxiliar e um carro normalmente da marca Volkswagen
O 12- Setor de Anaacutelise e Informaccedilotildees tinha por funccedilatildeo fornecer ao comandante
do DOI e aos demais setores seccedilotildees e subseccedilotildees informaccedilotildees estudos e conclusotildees
sobre as organizaccedilotildees ldquosubversivo-terroristasrdquo que atuavam na aacuterea Esse setor era
composto por um chefe sem patente ou ciacuterculo hieraacuterquico preacute-determinados pela
121- Subseccedilatildeo de anaacutelise e pela 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio
A 121- Subseccedilatildeo de anaacutelise tambeacutem natildeo exigia de forma predeterminada a
patente ou o ciacuterculo hieraacuterquico de quem a chefiasse Tinha por funccedilatildeo analisar os
depoimentos prestados pelos presos daquele DOI analisar o material das organizaccedilotildees
ldquoterroristasrdquo que havia sido recolhido pelas turmas da 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo
fornecer subsiacutedios ao chefe do 1- Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees e agrave equipe da
122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio manter para cada organizaccedilatildeo de esquerda uma pasta
com o seu histoacuterico relaccedilatildeo de nomes e codinomes relaccedilatildeo de accedilotildees e uma espeacutecie de
aacutelbum contendo as fichas de qualificaccedilatildeo fotografia atuaccedilatildeo e situaccedilatildeo de cada um de
seus elementos e por fim organizar atualizar e manter o arquivo geral contendo o
dossiecirc de cada elemento fichado
64
Jaacute a 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio era responsaacutevel pelo interrogatoacuterio e por
conseguinte pela aplicaccedilatildeo de torturas nos presos a fim de fazecirc-los falar o que sabiam
Seu chefe deveria ser um oficial do Exeacutercito de niacutevel de capitatildeo ou seja deveria
pertencer ao ciacuterculo hieraacuterquico de oficiais mas natildeo ao meio de oficiais superiores e
sim ao de oficiais intermediaacuterios No entanto a partir do ano de 1971 era preferiacutevel que
ele tivesse o curso B1 da Escola Nacional de Informaccedilotildees (EsNI) Este curso era uma
espeacutecie de especializaccedilatildeo em informaccedilotildees e seguranccedila interna ministrada pela EsNI
escola que havia sido criada pelo SNI durante o ano de 1971 e era a este subordinada
Como a 122- Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio trabalhava ininterruptamente durante 24
horas ela se dividia em trecircs turmas de interrogatoacuterio preliminar cada uma chefiada
tambeacutem por um capitatildeo do Exeacutercito com o curso B1 da EsNI Essas turmas eram
compostas por seis agentes cada e aleacutem disso subordinada ao chefe de cada uma delas
existia uma turma auxiliar encarregada da carceragem e da datilografia de documentos
Jaacute a 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo tinha por ofiacutecio efetuar prisotildees ldquocobrir
pontosrdquo (preparar uma emboscada para prender os militantes esquerdistas no momento
em que se encontravam em algum ponto anteriormente combinado) neutralizar
ldquoaparelhosrdquo apreender material ldquosubversivordquo coletar dados que possibilitassem o
levantamento de elementos ldquosubversivosrdquo conduzir presos ao DOPS auditorias
hospitais etc O chefe deveria ser um oficial do Exeacutercito sem predeterminaccedilatildeo de
patente militar e sua equipe se dividia em trecircs grupamentos ldquoAB e Crdquo Cada um deles
era composto por quatro turmas de busca e apreensatildeo que tinham cerca de trecircs ou cinco
agentes e possuiacuteam cada uma um carro espaccediloso muitas vezes dos modelos C14 Opala
ou Kombi equipado com raacutedio Aleacutem disso a 13- Seccedilatildeo de Busca e Apreensatildeo
tambeacutem era composta por quatro turmas de coletas de dados que tinham por missatildeo
reunir informaccedilotildees sobre os ldquosubversivosrdquo em universidades coleacutegios etc Cada uma
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dessas turmas era constituiacuteda por dois elementos um oficial da PM da regiatildeo ou um
delegado de poliacutecia e um motorista que normalmente dirigia um carro de marca
Volkswagen com raacutedio
Ligada ao 2- Setor de administraccedilatildeo a 22- Seccedilatildeo administrativa garantia o apoio
logiacutestico ao DOI ou seja organizava o pedido de gecircneros alimentiacutecios bem como
outros utensiacutelios e equipamentos necessaacuterios Esta seccedilatildeo natildeo tinha nenhum tipo de
exigecircncia de patente ou ciacuterculo hieraacuterquico para o cargo de chefe Jaacute a 21- Assessoria
Juriacutedica e Policial era chefiada por um delegado de poliacutecia e tinha por missatildeo
assessorar o Comandante do DOI em assuntos judiciais elaborar a documentaccedilatildeo
formal e legal referente ao material apreendido e agraves confissotildees dos prisioneiros e
controlar a menagem dos presos que fossem liberados
A menagem estipulada pelo Coacutedigo Processual Militar criado pelo decreto-lei
1002 de outubro de 1969 era uma espeacutecie de prisatildeo cautelar concedida ao militar ou
ao civil que tivesse praticado um crime de cunho militar com previsatildeo de pena privativa
de liberdade O local de cumprimento da menagem era a cidade onde residisse o
suspeito no momento do crime ou a sede do oacutergatildeo que tivesse investigando a sua accedilatildeo
Como a partir do AI-5 os suspeitos de crimes poliacuteticos passaram a ser julgados pela
Justiccedila Militar e o instituto do habeas corpus foi suprimido atraveacutes da menagem os
suspeitos detidos poderiam ser levados agrave sede do DOI-CODI da respectiva Regiatildeo
Militar Afinal era neste oacutergatildeo que as investigaccedilotildees sobre os crimes poliacuteticos de
determinada aacuterea se concentravam A menagem tinha por fundamento evitar o conviacutevio
do acusado ateacute o seu julgamento em primeira instacircncia com pessoas que jaacute estivessem
condenadas Dessa forma a validade da menagem terminava a partir da abertura de um
processo condenatoacuterio contra o suspeito quando entatildeo este seria transferido para uma
Delegacia de Poliacutecia tal como o DOPS por exemplo para ser enfim julgado e poder se
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fosse o caso cumprir sua pena em um presiacutedio convencional Poreacutem ateacute isso acontecer
caso fosse enquadrado como um possiacutevel criminoso poliacutetico esse suspeito poderia ficar
detido no DOI correspondente por ateacute trinta dias podendo sua prisatildeo ainda ser
prorrogada por mais sessenta dias
A menagem era entatildeo um respaldo legal tanto para o isolamento do preso poliacutetico
nos quarteacuteis que sediavam os DOI quanto se fosse o caso para o acompanhamento de
sua vida em liberdade ateacute o dia de seu julgamento Caso fosse diagnosticado pelos
agentes do respectivo DOI que o suspeito jaacute tivesse concedido todas as informaccedilotildees que
tinha e natildeo representasse perigo agrave Seguranccedila Nacional a instituiccedilatildeo poderia solicitar ao
juiz a sua liberaccedilatildeo a fim de que a sua menagem fosse cumprida em liberdade Quando
isto ocorria o suspeito deveria ficar na mesma cidade que havia sido preso ateacute o seu
julgamento em primeira instacircncia
Diante dos organogramas dos CODI e dos DOI aqui traccedilados evidencia-se que
existiam diferenccedilas nas patentes hieraacuterquicas dos chefes de cada um desses oacutergatildeos
Enquanto o chefe dos CODI era o chefe de Estado-Maior do Exeacutercito de cada Regiatildeo
Militar ou seja um general de Exeacutercito que por conseguinte pertencia ao ciacuterculo
hieraacuterquico de oficiais-generais localizado no topo da hierarquia militar o chefe de
cada DOI era um tenente-coronel patente que se insere no ciacuterculo hieraacuterquico de
oficiais superiores ou seja imediatamente abaixo do de oficiais-generais Assim como
os DOI eram o braccedilo operacional dos CODI ou seja a eles subordinados o fato de seus
chefes estarem obrigatoriamente no ciacuterculo hieraacuterquico abaixo dos dirigentes dos CODI
leva a crer que dentro dos DOI-CODI havia de fato um respeito agrave hierarquia militar
Este respeito jaacute foi aqui destacado por meio da anaacutelise historiograacutefica baseada na
tese Maria Celina DrsquoArauacutejo (1994) que defende a ideia de que o princiacutepio da
obediecircncia hieraacuterquica apesar de velado existia nos DOI-CODI logo como a tortura
67
fazia parte de suas accedilotildees ela era consentida Afinal se laacute existiam chefias e nelas a
hierarquia militar era minimamente respeitada isso sinaliza que as accedilotildees eram
comandadas por chefes que tinham o consentimento de seus chefes diretos para darem
tal ordem Portanto a tortura impetrada pelas turmas de interrogatoacuterio preliminar era
consentida pelo capitatildeo que as chefiava pelo capitatildeo que comandava a respectiva
Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio a que elas estavam subordinadas pelo chefe do Setor de
Anaacutelise e Informaccedilotildees que chefiava o chefe dessa Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio pelo
subcomandante do DOI que era responsaacutevel pelo Setor de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees a
que o Setor de Anaacutelise e Informaccedilotildees estava vinculado pelo tenente-coronel que
comandava o DOI e estava hierarquicamente acima do chefe do Setor de Anaacutelise e
Informaccedilotildees e pelo general do Exeacutercito que dirigia o CODI e tinha o comandante do
DOI a ele subordinado Logo o DOI-CODI foi construiacutedo de forma tatildeo centralizada que
a maioria das accedilotildees feitas por algum de seus integrantes passava por toda a cadeia
hieraacuterquica nele envolvida
Assim se torna mais uma vez evidente que a tortura como meacutetodo de
interrogatoacuterio quando utilizada pelos agentes do DOI era consentida por seus
superiores e natildeo um fenocircmeno isolado ou mesmo ldquoexcesso de poucosrdquo como muitos
militares costumam argumentar Esta argumentaccedilatildeo que aparentemente encontra
fundamento no alto grau de autonomia e independecircncia que os DOI possuiacuteam eacute
derrubada quando se evidencia que estes eram autocircnomos e independentes apenas em
relaccedilatildeo a batalhotildees e outras instituiccedilotildees militares Afinal os DOI foram programados
para atuar a par das subordinaccedilotildees preacute-existentes em outros oacutergatildeos podendo congregar
agentes de instacircncias militares poliacutecias e Forccedilas diferentes entre si mas sem deixar de
respeitar a hierarquia do Exeacutercito inserida em seu interior tendo por direccedilatildeo maacutexima o
Chefe de Estado-Maior do Exeacutercito
68
Outro ponto interessante que a caracterizaccedilatildeo do organograma dos DOI ajuda a
revelar eacute o fato do cargo de chefe da Subseccedilatildeo de Interrogatoacuterio ser privativo de um
oficial do Exeacutercito de niacutevel de capitatildeo ou seja que deveria pertencer ao ciacuterculo
hieraacuterquico de oficiais intermediaacuterios excluindo-se das atividades afeitas agrave posiccedilatildeo de
membros do ciacuterculo hieraacuterquico dos oficiais superiores e dos oficiais-generais onde se
encontravam os homens que governavam o paiacutes Logo por traacutes dessa condiccedilatildeo de
chefia havia a tentativa de manter a responsabilidade direta dos atos proferidos nessa
Subseccedilatildeo longe do ciacuterculo de oficiais superiores ou de oficiais-generais instacircncias
maacuteximas na hierarquia do Exeacutercito Dessa forma as torturas executadas durante os
interrogatoacuterios natildeo seriam relacionadas aos ocupantes das altas patentes do Exeacutercito
que durante a ditadura eram os que estavam agrave frente do governo brasileiro Essa
medida era portanto para dissociar a imagem dos governantes com o que ocorria nos
porotildees
No entanto eacute notaacutevel que indiretamente o governo ditatorial apoiasse as torturas
que as turmas de interrogatoacuterio preliminar executavam nos DOI-CODI uma vez que
obviamente os governantes tinham conhecimento sobre a determinaccedilatildeo de que os
agentes dessas turmas e os chefes da Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio deveriam ter
preferencialmente uma espeacutecie de especializaccedilatildeo em informaccedilotildees e seguranccedila
ministrada pela EsNI Nesta escola ndash ligada ao SNI que era composto pelas mais altas
patentes do Exeacutercito e diretamente ligado ao alto escalatildeo do governo ndash os alunos
provavelmente recebiam instruccedilotildees sobre os meacutetodos de tortura a serem aplicados
durante o serviccedilo
Aleacutem disso o fato do chefe e dos demais componentes da Subseccedilatildeo de
interrogatoacuterio serem ligados ao ciacuterculo de oficiais intermediaacuterios do Exeacutercito tambeacutem
vai ao encontro da anaacutelise historiograacutefica sobre a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
69
aqui apresentada a partir dos conceitos de Martins Filho de cizacircnia militar palaacutecio e
caserna Afinal a caserna era composta por militares de meacutedias e baixas patentes que
durante os primeiros anos da ditadura lutaram internamente por atuarem no combate ao
ldquoinimigo internordquo a fim de terem uma maior participaccedilatildeo na poliacutetica o que ocasionou
algumas cizacircnias militares Foi justamente por temer o resultado dessas cizacircnias que o
palaacutecio formado pelos militares de altas patentes que possuiacuteam cargos no governo aos
poucos cedeu esses poderes agrave caserna e assim o aparato de seguranccedila nacional foi
sendo instituiacutedo e dentro dele o SISSEGIN e os DOI-CODI Logo como eacute na
Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio e tambeacutem na Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo onde a atuaccedilatildeo
de interrogar torturar e prender traz os poderes poliacuteticos extras que a caserna
historicamente reivindicava percebe-se que a utilizaccedilatildeo de seus militares para compor
essas equipes era mais uma forma de manter a unidade militar contendo possiacuteveis
cizacircnias
Essa perspectiva torna-se completa quando se identifica que no momento em que
tais atribuiccedilotildees passaram a ser retiradas dos militares da caserna essas cizacircnias natildeo
mais puderam ser contidas Afinal conforme jaacute evidenciado anteriormente quando a
partir do governo de Geisel as atividades de busca apreensatildeo e interrogatoacuterio dos DOI
foram sendo abolidas a caserna passou a reagir posicionando-se contraacuteria agrave cuacutepula do
governo que defendia a abertura poliacutetica passando a apoiar a candidatura presidencial
de militares que defendessem a continuidade de tais atribuiccedilotildees aos DOI e ateacute mesmo
forjando situaccedilotildees terroristas tais como os diversos ataques a bomba que ocorreram na
eacutepoca como forma de endossar a necessidade das atuaccedilotildees repressivas desenvolvidas
pelos DOI
A monografia do coronel Pereira aqui analisada pode tambeacutem ser vista como
mais uma dessas reaccedilotildees da caserna Afinal durante toda a escrita de Pereira haacute uma
70
necessidade de comprovar a eficiecircncia dos DOI na atividade de proteger a seguranccedila
interna do paiacutes Percebe-se assim que Pereira apesar de ser coronel e por conseguinte
jaacute estar entre os oficiais superiores nesse momento ainda se via ligado de alguma forma
aos DOI Talvez porque a histoacuteria de sua carreira militar estivesse totalmente
relacionada com as atividades que ele laacute desempenhou e por isso acreditasse que
enquanto tais atividades continuassem sendo desenvolvidas o seu trabalho tambeacutem
continuaria a ser reconhecidamente importante
Os setores seccedilotildees e subseccedilotildees do DOI normalmente seguiam a configuraccedilatildeo aqui
exposta poreacutem nota-se que suas equipes natildeo eram fixas ou seja poderiam variar de
acordo com as necessidades das operaccedilotildees que surgissem Os DOI foram assim
concebidos como organismos instaacuteveis pois dependendo da gravidade e da quantidade
de accedilotildees armadas que deveriam ser reprimidas o nuacutemero de agentes poderia aumentar
ou diminuir Dessa forma os DOI se adaptavam a diversas circunstacircncias a fim de
combater com eficiecircncia o ldquoterrorismordquo e a ldquosubversatildeordquo
Grande parte dessa necessidade de adaptaccedilatildeo vinha da sobrevalorizaccedilatildeo da
guerrilha urbana entre os militares ligados a organismos de repressatildeo Uma vez que ao
verem a forma organizada e ousada com que a esquerda armada montava suas accedilotildees
sentiram que a estrutura repressiva da eacutepoca anterior agrave experiecircncia da Oban e ao
surgimento dos DOI natildeo estava preparada para combatecirc-las e diante disso
interpretaram tais accedilotildees esquerdistas como uma forte ameaccedila ao paiacutes Afinal as
instituiccedilotildees responsaacuteveis pela repressatildeo direta como por exemplo os DOPS estavam
engessadas por corporaccedilotildees fixas que combatiam as referidas accedilotildees de forma pouco
efetiva reprimindo-as sem a centralizaccedilatildeo e a grandiosidade necessaacuterias
A todos estes atos de banditismo [fazendo referecircncia a assaltos a banco a
sequestros de embaixadores e outras accedilotildees efetuadas pela esquerda armada
71
entre os anos de 1969 e 1970] a nossa Poliacutecia Civil e a Poliacutecia Militar
assistiam sem nada poder fazer Vaacuterias radiopatrulhas foram incendiadas e
os poucos soldados que ousavam enfrentar os terroristas eram
impiedosamente mortos Por que isso acontecia Porque as nossas poliacutecias
foram surpreendidas e natildeo estavam preparadas para um novo tipo de luta que
surgia a guerrilha urbana (Pereira 1978 10)
Entatildeo para conter a guerrilha urbana surgiu a necessidade de um oacutergatildeo de
repressatildeo centralizado e de estrutura maleaacutevel que tornasse possiacutevel e praacutetico reprimir
determinada accedilatildeo armada de acordo com a sua grandiosidade aumentando e diminuindo
o corpo funcional conforme o esforccedilo exigido Em meio a esta concepccedilatildeo de repressatildeo
a estrutura dos DOI foi criada tornando a repressatildeo poliacutetica mais combativa e
consequentemente aumentando a sua eficiecircncia
Com tamanha flexibilidade os DOI movimentavam pessoal e material variaacutevel
com grande mobilidade e agilidade Essa destacada autonomia dos DOI era travada
portanto em benefiacutecio de um aproveitamento maacuteximo de suas accedilotildees jaacute que eram
oacutergatildeos destinados ao combate direto agraves organizaccedilotildees subversivo-terroristas e sua
missatildeo era desmontar toda a estrutura de pessoal e de material destas organizaccedilotildees
bem como impedir a sua reorganizaccedilatildeo (Pereira 1978 22)
A utilizaccedilatildeo de codinomes pelos integrantes das turmas de interrogatoacuterio
preliminar era outra face dessa autonomia de trabalho dos DOI Esse costume era um
benefiacutecio de proteccedilatildeo para a instituiccedilatildeo e tambeacutem para tais militares Afinal como
muitos deles possivelmente aplicavam torturas nos presos durante os interrogatoacuterios o
sigilo com relaccedilatildeo aos seus nomes verdadeiros poderia inviabilizar posteriores
denuacutencias e por conseguinte fortes indiacutecios de que nos DOI a tortura era uma praacutetica
institucionalizada
Aleacutem disso essa mesma autonomia tambeacutem permitia que seus agentes para natildeo
serem reconhecidos pelos ldquoinimigosrdquo durante uma accedilatildeo de prisatildeo por exemplo natildeo
72
trabalhassem de farda e usassem trajes civis o que seria impensaacutevel em qualquer quartel
militar
Como norma de seguranccedila para o trabalho diaacuterio eacute obrigatoacuterio o uso de
traje civil (esporte ou social) de acordo com a missatildeo a desempenhar
Mesmo os oficiais e os comandantes de seccedilatildeo devem de preferecircncia usar
trajes esporte para se confundirem com a maioria dos integrantes do DOI
(Pereira 1978 25)
Os cabelos longos eram outra caracteriacutestica que apesar de improacutepria entre as
demais instituiccedilotildees militares a autonomia dos DOI imprimia a seus agentes conforme
evidenciado no seguinte trecho o cabelo deve ter o tamanho normalmente usado pela
maioria da populaccedilatildeo sendo proibido o cabelo com corte do ldquotipo militarrdquo (Pereira
1978 25) Percebe-se portanto que junto aos trajes civis os cabelos maiores
completavam o visual que os militares dos DOI precisavam ter para que evitassem ser
facilmente reconhecidos nas ruas Dessa forma tentavam minimizar os riscos de serem
percebidos durante uma operaccedilatildeo de investigaccedilatildeo ou minutos antes de efetuarem uma
accedilatildeo de prisatildeo Poreacutem apesar da utilizaccedilatildeo dessas caracteriacutesticas natildeo usuais ser em
benefiacutecio das funccedilotildees que exerciam nos DOI esses militares muitas vezes natildeo eram
compreendidos por aqueles que nas palavras de Pereira natildeo possuiacuteam uma
mentalidade de informaccedilotildees e por conta disso viam no uso do cabelo grande um ato de
indisciplina Essa incompatibilidade de interpretaccedilotildees portanto gerava alguns
transtornos para os agentes dos DOI que mesmo condecorados pela eficiecircncia de seus
serviccedilos de informaccedilotildees agraves vezes passavam por alguns constrangimentos
Jaacute aconteceu o fato de um oficial ou sargento de um DOI necessitar
comparecer a sua Unidade Militar a fim de tratar qualquer problema pessoal
ou mesmo de um assunto de serviccedilo Estes elementos eram barrados agrave
entrada de seus quarteacuteis e recebiam ordem dos comandantes para
73
regressarem cortarem o cabelo e a barba e se apresentarem fardados ou com
a posse de um documento de identidade assinado pelo Comandante do
Exeacutercito autorizando o uso do traje civil e o porte de arma Este
procedimento por parte de algumas autoridades militares daacute a entender que
os elementos do Serviccedilo de Informaccedilotildees satildeo indisciplinados
desenquadrados e sem espiacuterito militar Entretanto eacute necessaacuterio frisar que a
realidade eacute que por exemplo no DOI-CODI do II Exeacutercito [DOI-CODISP]
em trecircs anos 90 componentes foram condecorados com a medalha do
pacificador com palma (Pereira 1978 26)
A medalha do pacificador com palma eacute em tempo de paz a mais alta
condecoraccedilatildeo concedida pelo Comandante do Exeacutercito aos militares e civis brasileiros
que no exerciacutecio de sua funccedilatildeo ou no cumprimento de missotildees de caraacuteter militar
tenham se destacado por atos pessoais de abnegaccedilatildeo coragem e bravura com risco de
vida Portanto muitas vezes os agentes dos DOI que exerciam a funccedilatildeo de prender
integrantes de uma organizaccedilatildeo muito procurada de ldquodesmontar aparelhosrdquo de
destacada importacircncia investigativa ou mesmo de conseguir informaccedilotildees cruciais
durante interrogatoacuterios eram condecorados pelo Comandante do respectivo Exeacutercito
pelo serviccedilo prestado agrave paacutetria Logo percebe-se que mesmo existindo os
constrangimentos institucionais anteriormente citados os oficiais envolvidos nos DOI
eram prestigiados por seus serviccedilos e se sentiam valorizados e incentivados a designaacute-
los com rapidez e eficiecircncia
A partir disso evidencia-se mais uma vez que a tortura nos DOI era consentida
pelos militares superiores e ateacute mesmo incentivada pois atraveacutes do ldquoauxiacuteliordquo que
prestava aos interrogatoacuterios as informaccedilotildees poderiam ser mais faacutecil e rapidamente
conseguidas e grande quantidade de suspeitos presos ldquoaparelhos desmontadosrdquo e
materiais ldquosubversivosrdquo recolhidos Como a presteza desse serviccedilo era almejada tantos
pelos agentes dos DOI interessados no destaque e no reconhecimento militar quanto
74
por seus superiores que vislumbravam neutralizar o quanto antes a ameaccedila que o
ldquoinimigo internordquo representava para o governo ditatorial a tortura parecia ser nos DOI
um meio que se justificava pelos fins
Assim a centralizaccedilatildeo a flexibilidade a autonomia e o consentimentoincentivo agrave
tortura pautavam o ldquoeficienterdquo serviccedilo de repressatildeo dos DOI conforme se pode apurar a
partir dos dados do DOI-CODISP levantados ateacute 30 de junho de 1972 e apresentados
na monografia do coronel Pereira
Subversivos terroristas levantados no Brasil 4400
Quedas impostas pelos oacutergatildeos de seguranccedila no territoacuterio nacional 2800
Quedas impostas pelos oacutergatildeos de seguranccedila do II Exeacutercito (inclusive DOI-
CODI) 1600
Quedas impostas pelo DOI-CODI do II Exeacutercito 1400
Quedas impostas pelos outros oacutergatildeos de seguranccedila da aacuterea do II Exeacutercito
200
Periacuteodo de 23 de janeiro de 1969 a 30 de junho de 1972
Subversivo-terroristas que fizeram curso de guerrilha no exterior 340
Subversivo-terroristas que fizeram curso de guerrilha em Cuba 240
Situaccedilatildeo dos 4400 subversivo-terroristas levantados
Foragidos 1600
Liberados 900
Mortos em combate 100
Presos 1490
Banidos 140
Estes resultados vecircm demonstrar a eficiecircncia operacional do destacamento
neste tipo de guerra especial Natildeo eacute agrave toa que os inimigos assim reconhecem
ao destacamento esta assertiva encontrada na revista Times e no panfleto
Quinzenal (maio de 76) distribuiacutedos recentemente
ldquoSatildeo Paulo criou a mais eficiente e admiraacutevel maacutequina repressiva vista ateacute
hoje no mundo ndash a Operaccedilatildeo Bandeirantes que comeccedilou como uma alianccedila
temporaacuteria entre a poliacutecia local as vaacuterias seccedilotildees de inteligecircncia das trecircs
forccedilas armadas e o SNIrdquo (Pereira 1978 27)
75
Entretanto esse perigoso poder excepcional dos DOI-CODI tomou proporccedilotildees
grandiosas Em meados dos anos 1970 mais especificamente apoacutes o fim da guerrilha do
Araguaia no iniacutecio de 1974 as organizaccedilotildees clandestinas armadas estavam derrotadas
e em contrapartida os DOI-CODI se encontravam em pleno vapor com sua atuaccedilatildeo e
seu aparato institucional ampliado e especializado Tornou-se dessa forma
indispensaacutevel para a sobrevivecircncia do SISSEGIN encontrar novos ldquoinimigos internosrdquo
O foco de ameaccedila passou entatildeo a ser o envolvimento de elementos do Partido
Comunista Brasileiro (PCB) no Movimento Democraacutetico Brasileiro (MDB) partido de
oposiccedilatildeo consentida pelo governo e a atuaccedilatildeo repressiva dos DOI-CODI encontrou
argumentos para continuar em atividade Poreacutem como a declarada ldquoguerra internardquo
havia se esgotado e o paiacutes jaacute se preparava para dar lugar a um futuro democraacutetico o
poder de accedilatildeo dos DOI-CODI comeccedilou a parecer abusivo e negativo ao regime Diante
disso muitas foram as tentativas da caserna e dos demais militares a ela relacionados de
provar a importacircncia e a necessidade dos DOI-CODI para a defesa do paiacutes entre elas a
monografia aqui analisada No entanto tais tentativas natildeo conseguiram evitar que esses
oacutergatildeos sofressem num primeiro momento a reduccedilatildeo de suas atividades e no iniacutecio da
deacutecada de 1980 a extinccedilatildeo
3 O DOI-CODI pelos prisioneiros
Enfim na uacuteltima frente de estudo deste capiacutetulo a anaacutelise sobre a formaccedilatildeo e a
atuaccedilatildeo dos DOI-CODI recai sobre a memoacuteria de seis de seus ex-prisioneiros poliacuteticos
Vale lembrar que estes estiveram detidos no DOI-CODI do Rio de Janeiro durante o
segundo semestre do ano de 1970 e suas memoacuterias foram narradas recentemente entre
os anos de 2002 e 2004 quando foram por mim entrevistados Assim o trabalho sobre
esses depoimentos aqui se concentra na interpretaccedilatildeo que fazem a partir da construccedilatildeo
76
de suas memoacuterias sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI e em como suas
perspectivas dialogam com a frente historiograacutefica e com a monografia do coronel
Pereira abordadas anteriormente
Como o objetivo aqui traccedilado eacute analisar as diversas maneiras pelas quais a
historiografia o coronel Pereira e os presos veem a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI-
CODI optou-se por apresentar as trajetoacuterias dos entrevistados no proacuteximo capiacutetulo
Essas junto com o conteuacutedo aqui levantado constroem as bases para a anaacutelise travada
na parte final da presente dissertaccedilatildeo onde se aborda a partir de um estudo mais
concentrado nas memoacuterias dos ex-prisioneiros entrevistados o cotidiano do DOI-
CODIRJ
Entretanto a fim de utilizar essas memoacuterias para a abordagem dialeacutetica aqui
desenhada natildeo pode ser dispensada a aplicaccedilatildeo de um olhar criacutetico tiacutepico a anaacutelises
histoacutericas problematizando-as de forma a perceber suas lacunas e modificaccedilotildees
decorrentes do tempo Tais memoacuterias satildeo inconscientemente fluidas pois estatildeo
diretamente ligadas a emoccedilotildees aleacutem de sofrerem muitas influecircncias do momento em
que satildeo narradas conforme bem elucida Pierre Nora (1993)
A memoacuteria eacute a vida sempre carregada por grupos vivos e nesse sentido ela
estaacute em permanente evoluccedilatildeo aberta agrave dialeacutetica da lembranccedila e do
esquecimento inconsciente de suas deformaccedilotildees sucessivas vulneraacutevel a
todos os usos e manipulaccedilotildees suscetiacutevel de longas latecircncias e de repentinas
revitalizaccedilotildees A histoacuteria eacute a reconstruccedilatildeo sempre problemaacutetica e incompleta
do que natildeo existe mais A memoacuteria eacute um fenocircmeno sempre atual um elo
vivido no eterno presente a histoacuteria uma representaccedilatildeo do passado (Nora
1993 9)
Eacute portanto imprescindiacutevel para este estudo perceber que por traacutes dessa fluidez
das memoacuterias dos depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ age um
77
elemento fundamental o presente Logo a feliz expressatildeo de Robert Frank (1999) o
presente do passado elucida a anaacutelise de forma a colocar em destaque a forte influecircncia
que a temporalidade vivida no momento em que as entrevistas foram concedidas tem
para a construccedilatildeo de suas narrativas
Trata-se de fontes que estatildeo marcadas pelo proacuteprio presente inerentes a ele
qualquer que seja a eacutepoca os depoimentos de testemunhas vivas as fontes
orais Aiacute haacute a contemporaneidade intriacutenseca entre o historiador e o ator
(Frank 1999 103)
Por isso eacute aqui crucial considerar o momento das entrevistas Afinal entre 2002 e
2004 o Brasil jaacute vivia uma democracia consolidada onde antigos oposicionistas agrave
ditadura militar se encontravam no poder Fernando Henrique Cardoso exilado no Chile
ateacute o ano de 1968 e na deacutecada de 1970 apoiador convicto do Movimento Democraacutetico
Brasileiro (MDB) havia sido presidente do Brasil entre os anos de 1995 e 2002 Jaacute
Lula ex-liacuteder sindical que havia comandado algumas das mais importantes greves na
virada das deacutecadas de 1970 para 1980 venceu a campanha presidencial em 2002 e se
tornou no ano seguinte o primeiro ex-operaacuterio a presidir o paiacutes Aleacutem disso as pastas
ministeriais de seu governo foram formadas por antigos opositores agrave ditadura tal como
o ex-liacuteder do movimento estudantil Joseacute Dirceu e a partir de 2005 por Dilma
Rousseff ex-militante de duas das organizaccedilotildees de esquerda que optaram na eacutepoca pela
luta armada o Comando de Libertaccedilatildeo Nacional (COLINA) e a Vanguarda Armada
Revolucionaacuteria Palmares (VAR-Palmares) Logo pode-se dizer que com relaccedilatildeo agrave
memoacuteria poliacutetica de vencidos nos anos de chumbo da ditadura os depoentes se
transformaram em vencedores nos tempos democraacuteticos e obviamente a leitura do
passado de prisatildeo e tortura foi iluminada por esse presente
78
Ressalte-se ainda que os depoimentos se vinculavam agrave implantaccedilatildeo da Comissatildeo
de Anistia por meio da Lei nordm 1055902 que atribuiacutea ao Estado a funccedilatildeo de anistiar e
reparar financeiramente todos os cidadatildeos que tivessem vivenciado quaisquer atos de
exceccedilatildeo incluindo torturas prisotildees arbitraacuterias demissotildees e transferecircncias por razotildees
poliacuteticas ocorridas durante o periacuteodo de 18 de setembro de 1946 ateacute 5 de outubro de
1988 Afinal a reparaccedilatildeo soacute poderia ser concedida pela Comissatildeo de Anistia apoacutes a
anaacutelise de um requerimento contendo as memoacuterias das viacutetimas sobre o periacuteodo em
questatildeo escritas individualmente Como na eacutepoca alguns dos depoentes jaacute haviam
construiacutedo suas memoacuterias prisionais para compor o referido requerimento este deve ser
considerado como um importante fator de influecircncia sobre as narrativas de suas
entrevistas
Em contraste com o que foi apresentado a partir da abordagem historiograacutefica e da
monografia do coronel Pereira Fernando Palha Freire um dos ex-prisioneiros do DOI-
CODIRJ destaca a importacircncia da contribuiccedilatildeo inicial dada pelos policiais civis do
DOPS para a utilizaccedilatildeo da violecircncia em favor da extraccedilatildeo de informaccedilotildees Afinal por
mais que os oacutergatildeos de repressatildeo anteriores agrave criaccedilatildeo dos DOI-CODI natildeo estivessem
devidamente preparados para combater as accedilotildees efetuadas pela esquerda armada seus
agentes de fato haviam acumulado uma experiecircncia em interrogatoacuterios Esta num
primeiro momento era importante uma vez que os militares ateacute entatildeo concentravam
sua formaccedilatildeo sobre a atuaccedilatildeo na guerra declarada natildeo possuindo as maliacutecias
necessaacuterias aos interrogatoacuterios
[] a Poliacutecia Civil tinha os caras mais preparados pra tortura mesmo
Porque jaacute vinham haacute muitos anos jaacute tinham a praacutetica da tortura O militar
batia de frente ele era capaz de te matar mas ele ainda natildeo tinha digamos o
seguinte a essecircncia da tortura Por exemplo um coronel virou pro cara e
disse assim - ldquoO senhor eacute um comunistardquo aiacute ele disse assim - ldquoE o senhor eacute
79
uma bestardquo Ele matou o cara quer dizer matou sem colher o que queria
Um policial civil poderia ateacute matar o cara mas antes colheria o que queria
eles tinham a praacutetica da tortura Depois os militares se aperfeiccediloaram []
(Freire 28 jun 2004)
No entanto indo ao encontro do que foi abordado pelas outras duas frentes de
estudo aqui traccediladas Ceciacutelia Coimbra tambeacutem ex-prisioneira do DOI-CODIRJ
evidencia a eficiecircncia desse oacutergatildeo com relaccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo A partir de uma situaccedilatildeo
especiacutefica de sua prisatildeo ela percebe como o niacutevel de organizaccedilatildeo do serviccedilo de
informaccedilotildees dos DOI era superior ao do DOPS
Fomos presos eu e meu marido e levados para o DOPS em agosto de 1970
[] quando deram vistoria laacute em casa encontraram um documento que por
ironia do destino era sobre seguranccedila [] Eu fiquei dois dias e meio no
DOPS sendo interrogada sobre o tal documento que nem eu nem o Novaes
falaacutevamos diziacuteamos que natildeo sabiacuteamos de onde era Dois dias e meio depois
quando noacutes fomos para o DOI-CODI logo eles identificaram de onde era o
documento Para vocecirc ver o niacutevel de competecircncia do serviccedilo de informaccedilotildees
do DOI-CODI comparado ao do DOPS O DOPS era ldquomerdinhardquo comparado
com a eficiecircncia do DOI-CODI (Coimbra 30 nov 2004)
Percebe-se assim tanto pela historiografia e pela monografia do coronel Pereira
quanto pela memoacuteria de ex-prisioneiros poliacuteticos que a centralizaccedilatildeo de informaccedilotildees
nos CODI e a relaccedilatildeo direta que esses travavam com os DOI traziam uma agilidade agraves
anaacutelises que natildeo havia nos demais oacutergatildeos Logo a forma centralizada e orquestrada
com que os DOI-CODI agiam significava uma profissionalizaccedilatildeo cada vez maior da
repressatildeo poliacutetica ou seja a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo
Assim apesar de serem instituiccedilotildees distintas a atuaccedilatildeo dos CODI e dos DOI
estavam totalmente interligadas Como apurado por meio do estudo historiograacutefico e
dos dados contemplados na monografia do coronel Pereira enquanto aos CODI cabia
80
concentrar e analisar as informaccedilotildees sobre a seguranccedila interna de suas Regiotildees
Militares aos DOI cabia a partir das informaccedilotildees passadas pelos CODI atuar
diretamente na repressatildeo aos ldquoinimigos internosrdquo e extrair de seus prisioneiros poliacuteticos
informaccedilotildees a serem repassadas aos CODI Diante dessa forte ligaccedilatildeo essas duas
instituiccedilotildees ficaram conhecidas como se fossem um uacutenico oacutergatildeo por meio da sigla
DOI-CODI Essa simbiose entre os CODI e os DOI ficou marcada sobretudo nas
memoacuterias de suas viacutetimas conforme se pode verificar no seguinte trecho
[] tenta entender o que eacute DOI-CODI o DOI-CODI eacute uma instituiccedilatildeo
montada por diversos oacutergatildeos de repressatildeo que funcionava [no Rio de
Janeiro] no quartel da PE [1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito] (Pandolfi 5
fev 2003)
De acordo com os seis entrevistados assim como indicado pela a anaacutelise das
demais frentes de estudo do presente capiacutetulo a praacutetica de tortura era corriqueira nos
interrogatoacuterios dos DOI Esse fato inclusive poderia ser associado agrave sua proacutepria
designaccedilatildeo que na forma abreviada se apresenta sob a sigla DOI correspondendo
sugestivamente agrave conjugaccedilatildeo do verbo doer na terceira pessoa do singular
Soube que ningueacutem entrava no DOI-CODI sem sofrer algum tipo de tortura
fiacutesica ou psicoloacutegica mas principalmente a fiacutesica e realmente natildeo creio
que algueacutem tenha passado por laacute imune agrave tortura [] Quando a gente chega
ao DOI-CODI chega logo tomando porrada Natildeo tinha essa histoacuteria de meu
senhor era tapa Tapa choque eleacutetrico pau de arara a isso tudo eu fui
submetido O primeiro interrogatoacuterio que natildeo eacute um interrogatoacuterio formal
judicial eacute feito sob essas condiccedilotildees Depois bem depois eacute que eu fui ser
interrogado no DOPS em outras condiccedilotildees [] Eu fui torturado mesmo na
Rua Baratildeo de Mesquita na PE laacute sim eu fui bastante torturado []
(Carvalho 12 set 2002)
81
[] laacute na PE vocecirc natildeo fazia nada a natildeo ser ficar esperando o tempo para ser
interrogada para ser torturada [] (Pandolfi 5 fev 2003)
Laacute no DOI-CODI comia tudo choque pau-de-arara afogamento pancada
Laacute que eu descobri esse termo que fulano virou presunto neacute Porque vocecirc
fica igual a um presunto mesmo porque eles te datildeo pancadas localizadas []
(Freire 28 jun 2004)
[] laacute no DOI-CODI tinha todo tipo de torturas desde choques eleacutetricos na
matildeo direita esquerda peacute esquerdo Eu sofri isso tambeacutem (Prigol 28 set
2004)
[] o meu negoacutecio era ganhar tempo e o deles era conseguir informaccedilatildeo A
luta eacute essa nos primeiros dias eacute vocecirc dar o miacutenimo de informaccedilotildees e eles
querendo arrancar o maacuteximo de informaccedilatildeo neacute Aiacute eles vecircm com a maacutexima
de que torturar eacute investigar (risos) E daiacute se precisar ateacute a morte o negoacutecio
eacute conseguir informaccedilatildeo (Batista 17 nov 2004)
[] onde eram os choques eleacutetricos que na PE eles davam eles me
molhavam toda para o choque ser mais intenso e botavam principalmente
nas partes onde eram mais sensiacuteveis como ouvido nariz boca bico do
peito vagina acircnus[] o choque eleacutetrico eacute indescritiacutevel porque vocecirc perde a
noccedilatildeo do tempo e todo e qualquer controle da bexiga e dos intestinos []
(Coimbra 30 nov 2004)
Portanto ali a incumbecircncia era operar a extraccedilatildeo de informaccedilotildees e para isso a
tortura como meacutetodo era utilizada pelos agentes das turmas de interrogatoacuterio
preliminar Afinal em uma ponta da sofisticaccedilatildeo repressiva apresentada pelos DOI-
CODI estava a concentraccedilatildeo de informaccedilotildees dos CODI e na outra a agilidade que a
extraccedilatildeo de informaccedilotildees possibilitada principalmente pelo uso das torturas durante os
interrogatoacuterios dos presos dava agraves operaccedilotildees de busca e apreensatildeo de mais ldquoelementos
subversivosrdquo
82
A partir dos depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados assim como
da anaacutelise da historiografia selecionada e dos dados trazidos pelo coronel Pereira em sua
monografia percebe-se que os DOI-CODI ocupavam somente uma parte dos quarteacuteis
do Exeacutercito onde se localizavam e na parte restante o funcionamento desses quarteacuteis
continuava normalmente Os DOI-CODI eram portanto prisotildees atiacutepicas diferentes das
convencionais construiacutedas desde o iniacutecio para acomodar prisioneiros Assim eacute coerente
que o serviccedilo de carceragem nos DOI-CODI fosse executado pelos soldados que
serviam ao proacuteprio quartel jaacute que esse era apenas um serviccedilo de apoio um auxiacutelio natildeo
agrave toa feito por agentes de turmas que eram intituladas auxiliares
Os soldados que serviam ao quartel a quem era atribuiacutedo o serviccedilo de
carceragem eram conhecidos no DOI-CODIRJ por ldquocatarinasrdquo devido a suas
caracteriacutesticas fiacutesicas e tambeacutem ao sotaque tiacutepico ao estado de Santa Catarina Os
ldquocatarinasrdquo eram identificados como soldados devido ao fato dos agentes propriamente
do DOI-CODIRJ normalmente andarem a paisana enquanto eles usavam farda ou seja
trajes tradicionais a militares que natildeo estivessem ligados a operaccedilotildees de informaccedilotildees
Os agentes dos DOI-CODI como elucidado por meio da segunda frente deste capiacutetulo
por precisarem ser confundidos com civis se diferenciavam dos demais soldados
Na PE os soldados eram sempre de Santa Catarina [] pessoas de portes
fiacutesicos avantajados e essa condiccedilatildeo fiacutesica era uma espeacutecie de exigecircncia para
servir ao quartel da Poliacutecia Militar Eram entatildeo os ldquocatarinasrdquo [] (Carvalho
8 fev 2003)
[] quem torturava a gente era o pessoal do DOI-CODI normalmente eles
andavam a paisana [] e quem fazia o trabalho burocraacutetico ou seja a
limpeza da PE quem dava o cafeacute da gente quem abria a cela e fechava a
cela eram os soldados uniformizados Eram ateacute os ldquocatarinasrdquo porque
tinham muitos que vinham de Santa Catarina eram soldados altos [] entatildeo
83
os soldados faziam a burocracia e os militares do DOI-CODI faziam essa
parte digamos da investigaccedilatildeo poliacutetica [] (Pandolfi 5 fev 2003)
[] os ldquocatarinasrdquo eram os guardinhas era o pessoal que estava servindo
eles tinham dezoito ou dezenove anos eles estavam servindo ao Exeacutercito e
alguns deles ateacute amenizavam a nossa situaccedilatildeo [hellip] (Batista 17 nov 2004)
Diferentemente do que se percebe na monografia feita pelo coronel Pereira em
1978 nas memoacuterias aqui analisadas a atuaccedilatildeo dos DOI-CODI no ano de 1970
consagrou-se como um dos periacuteodos mais difiacuteceis de suas vidas Nota-se no entanto
que os nuacutemeros e percentuais que na eacutepoca eram interpretados por muitos militares
como forte indiacutecio de eficiecircncia da instituiccedilatildeo no combate ao ldquoinimigo internordquo estatildeo
em meio ao contexto democraacutetico em que as narrativas dos ex-presos foram construiacutedas
diretamente ligados agrave memoacuteria da tortura e da violaccedilatildeo aos direitos humanos Como se
pode analisar a partir da interpretaccedilatildeo de Ceciacutelia Coimbra uma das ex-prisioneiras
poliacuteticas fundadoras do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro 15
[] eu acho a fala para mim a minha militacircncia no Tortura Nunca Mais
fundamental Em 85 quando a gente fundou o Grupo foi fundamental no
sentido de tornar isso puacuteblico e natildeo soacute como se fosse uma coisa de lamento
da gente uma coisa da dor da gente dessa marca que natildeo vai sair nunca []
mas como instrumento de luta instrumento de denuacutencia [] (Coimbra 30
nov 2004)
Durante o periacuteodo das entrevistas aqueles que viveram a experiecircncia dos DOI-
CODI a partir do outro lado de suas grades muitas vezes veem as dolorosas lembranccedilas
daquele tempo como um meio de fazer justiccedila e ateacute mesmo contribuir para a
solidificaccedilatildeo da democracia enquanto que os militares que no passado se orgulhavam
15
O GTNMRJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-prisioneiros poliacuteticos que viveram situaccedilotildees de
tortura durante o regime militar e por familiares de mortos e desaparecidos poliacuteticos Para mais
informaccedilotildees ver o perfil de Ceciacutelia Coimbra no proacuteximo capiacutetulo
84
de seus feitos lutam no presente por natildeo serem a eles associados Diante disso nota-se
que apoacutes o teacutermino da ditadura em 1985 as memoacuterias dos entatildeo vencidos
movimentam-se de forma a se sobreporem agraves dos vencedores conseguindo aos poucos
garantir seu espaccedilo de viacutetimas da ditadura e ao mesmo tempo de heroacuteis da democracia
na poliacutetica na justiccedila e na histoacuteria
85
Capiacutetulo 2 ndash Os presos poliacuteticos e suas organizaccedilotildees
Nas escolas nas ruas
campos construccedilotildees
Somos todos soldados
Armados ou natildeo
Caminhando e cantando
E seguindo a canccedilatildeo
Somos todos iguais
Braccedilos dados ou natildeo
Os amores na mente
As flores no chatildeo
A certeza na frente
A histoacuteria na matildeo
Caminhando e cantando
E seguindo a canccedilatildeo
Aprendendo e ensinando
Uma nova liccedilatildeo
Geraldo Vandreacute
(Pra natildeo dizer que natildeo falei de flores 1968)
86
Antocircnio Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia satildeo alguns dos brasileiros
que lutaram contra a ditadura militar no paiacutes e que na eacutepoca foram presos pelo governo
nas dependecircncias do DOI-CODI do Rio de Janeiro Trecircs homens e trecircs mulheres que
apesar de suas trajetoacuterias pessoais e poliacuteticas distintas possuem ateacute hoje fortes elos
construiacutedos pela passagem pelo DOI-CODI carioca
Foi especificamente essa vivecircncia prisional comum que me despertou o interesse
pelas memoacuterias desses seis atores histoacutericos O objetivo era a partir da oacutetica dos ex-
prisioneiros entender como funcionava na praacutetica o DOI-CODIRJ Assim entre os
anos de 2002 e 2004 em meio aos governos dos ex-presidentes Fernando Henrique e
Lula ou seja jaacute em tempos democraacuteticos Antocircnio Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana
e Ceciacutelia me concederam entrevistas sobre suas prisotildees no DOI-CODIRJ bem como
sobre suas trajetoacuterias pessoais e poliacuteticas antes e depois de suas prisotildees
Esses depoimentos ndash principal objeto de pesquisa desta dissertaccedilatildeo ndash trazem aleacutem
das lembranccedilas sobre o cotidiano prisional de um DOI-CODI muito da personalidade e
da vivecircncia de cada um desses indiviacuteduos Atraveacutes dessas memoacuterias pode-se lidar com
as idiossincrasias de cada um deles relativizando a ideia de uma memoacuteria coletiva
comum a todos os ex-prisioneiros poliacuteticos que ficaram no quartel da Rua Baratildeo de
Mesquita Pode-se ainda conhecer um pouco mais de perto a loacutegica de construccedilatildeo de
suas memoacuterias individuais analisando como cada um desses indiviacuteduos se vecirc atraveacutes do
passado de militacircncia e prisatildeo como se identifica por meio desse passado imprime essa
identidade no mundo externo e como este mundo influencia na percepccedilatildeo que possui
sobre si mesmo
No entanto as memoacuterias individuais aqui trabalhadas natildeo estatildeo isoladas jaacute que
conforme bem evidenciado por Maurice Halbwachs em A memoacuteria coletiva (2004)
frequentemente tomam como referecircncia pontos externos ao sujeito se apoiando em
87
percepccedilotildees recebidas de determinada memoacuteria coletiva de um grupo e tambeacutem pela
memoacuteria histoacuterica de seu paiacutes (2004 57-59) Partindo dessa ideia percebe-se aqui que
nas memoacuterias narradas por indiviacuteduos que fizeram parte de uma mesma organizaccedilatildeo de
esquerda armada ou que ainda hoje integram um mesmo grupo como por exemplo o
Grupo Tortura Nunca MaisRJ satildeo encontrados mais pontos de contato Aleacutem disso
todos os depoentes mostram ter como base de suas lembranccedilas a memoacuteria histoacuterica
pois em algum momento as localizam no tempo por meio de datas e fatos que se
estabeleceram como histoacutericos tal como o golpe civil-militar de 31 de marccedilo de 1964
ou a decretaccedilatildeo do AI-5 em 13 de dezembro de 1968
Cabe aqui ressaltar que ex-prisioneiros do DOI-CODIRJ entrevistados eram em
sua grande maioria estudantes que se tornaram combatentes da esquerda armada a
partir da proibiccedilatildeo de atividades e manifestaccedilatildeo sobre o assunto de natureza poliacutetica
estipulada pelo inciso III do artigo 5ordm do AI-5 e que em suas memoacuterias a
promulgaccedilatildeo deste Ato representa um marco temporal muito mais forte do que o golpe
civil-militar de 1964 Afinal para suas trajetoacuterias de vida o AI-5 de 13 de dezembro de
1968 foi um divisor de aacuteguas pois tornava as manifestaccedilotildees estudantis proibidas
revoltando-os e estimulando-os ainda mais a lutar pela derrubada do regime ditatorial
Diante disso a maioria dos depoentes sustenta em suas memoacuterias o AI-5 como um
momento em que suas vidas foram postas em xeque A partir do dia de sua
promulgaccedilatildeo eles se viram diante da necessidade de decidir se continuavam ou natildeo a
agir contra a ditadura e em caso positivo se deveriam considerar a violecircncia armada
como uma via de luta uma vez que os movimentos paciacuteficos estavam totalmente
encurralados Como a opccedilatildeo da maior parte deles foi a de pegar em armas ndash decisatildeo que
acarretou natildeo soacute em suas prisotildees mas tambeacutem na mudanccedila da percepccedilatildeo que tinham
sobre a vida jaacute que ao andarem armados passavam a ter a consciecircncia de que viviam
88
sob a ameaccedila da morte ndash o AI-5 tem papel de destaque entre suas memoacuterias do periacuteodo
militar Essa importacircncia do AI-5 pode ser exemplificada no trecho abaixo destacado da
entrevista de Ana de Miranda Batista
O AI-5 foi determinante Porque vocecirc natildeo tinha mais formas de expressatildeo
vocecirc natildeo podia se reunir vocecirc natildeo podia mais fazer nada era impedido pela
poliacutecia A gente estava amordaccedilado a imprensa amordaccedilada os teatros os
cinemas tudo Era um terror muita poliacutecia na rua muita blitz blitz de
montatildeo sabe Quem quisesse ser como a gente -ldquoAbaixo a Ditadura
Abaixo a Repressatildeordquo As formas de expressatildeo se reduziram a quase zero Aiacute
eacute que houve um pontapeacute na decisatildeo de muitos de noacutes de quer dizer soacute
restou a luta armada soacute restou resistir de forma armada mesmo que pra
maioria de noacutes fosse uma decisatildeo extrema [] eu nem uma arma de perto
eu nunca tinha visto Quer dizer esse momento eacute um momento draacutestico
quer dizer um tempo depois eacute que eu conversando eacute que vi que natildeo foi
assim soacute para mim Porque para alguns dos rapazes que tinham servido ao
Exeacutercito e sei laacute o quecirc eles jaacute tinham alguma familiaridade com armas quer
dizer alguns deles Mas a gente menina classe meacutedia natildeo Eu nunca tinha
visto nunca tinha me interessado por arma na vida (risos) natildeo fazia parte do
meu universo E teve muita gente que nessa eacutepoca pirou Pirou que eu digo
de natildeo querer mais saber Muita gente E eu acho extremamente respeitaacutevel
essa decisatildeo porque eacute uma decisatildeo draacutestica [] porque no momento em que
vocecirc estaacute com uma arma vocecirc pode matar ou morrer Eacute muito grave essa
decisatildeo Vocecirc estaacute lidando com a possibilidade da morte e quando vocecirc
nunca teve familiaridade assim quando vocecirc nunca viu uma arma eacute muito
difiacutecil [] (Batista 17 nov 2004)
Vale aqui mais uma vez destacar que essas memoacuterias do passado satildeo lavadas nas
aacuteguas do presente ou seja satildeo o preacutesent du passeacute conforme a feliz expressatildeo de Robert
Frank (1999) As memoacuterias sobre as experiecircncias prisionais do DOI-CODIRJ
ocorridas durante os ldquoanos de chumbordquo da ditadura militar foram construiacutedas em
entrevistas concedidas entre o final do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-
2002) e o iniacutecio do governo de Lula (2003-10) ambos perseguidos poliacuteticos durante o
89
periacuteodo ditatorial Portanto a perspectiva de vencidos que no passado direcionava as
memoacuterias dos depoentes abre lugar para uma narrativa proacutexima agrave de vencedores pela
qual os ex-prisioneiros poliacuteticos se veem como responsaacuteveis pela construccedilatildeo da
democracia e de uma justiccedila de transiccedilatildeo ainda em curso no Brasil
Uma ideia de justiccedila de transiccedilatildeo iniciou-se principalmente a partir da
Constituiccedilatildeo de 1988 quando a reparaccedilatildeo aos perseguidos poliacuteticos do passado
ditatorial se transformou em garantia constitucional No entanto foi somente a partir de
1995 jaacute no governo FHC que ela comeccedilou a ser implantada por meio da primeira
comissatildeo de reparaccedilatildeo a Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos (lei nordm
914095) Aleacutem disso em 2002 sete anos depois a reparaccedilatildeo aos perseguidos pela
ditadura foi complementada por meio da Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio da Justiccedila
(lei nordm 1055902) Assim quando a primeira entrevista me foi concedida em setembro
de 2002 a Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos jaacute trabalhava no sentido de
reconhecer a responsabilidade do Estado brasileiro por mortes e desaparecimentos de
presos poliacuteticos ocorridas durante a ditadura enquanto a Comissatildeo de Anistia iniciava a
sua funccedilatildeo de
[] reparar os atos de exceccedilatildeo incluindo as torturas prisotildees arbitraacuterias
demissotildees e transferecircncias por razotildees poliacuteticas sequestros compelimento agrave
clandestinidade e ao exiacutelio banimentos expurgos estudantis e
monitoramentos iliacutecitos (Abratildeo 2010 4)
Conforme jaacute abordado no primeiro capiacutetulo os procedimentos impostos pela Lei
105592002 influenciaram como natildeo podia deixar de ser o processo de construccedilatildeo das
memoacuterias aqui trabalhadas Afinal o referido processo se iniciava com um relato da
viacutetima sobre as agressotildees e perseguiccedilotildees sofridas agrave eacutepoca ditatorial Este deveria
configurar uma espeacutecie de memorial no qual o requerente deveria destacar todas as
90
violaccedilotildees sofridas a ser apresentado agrave Comissatildeo cabendo a esta apoacutes a verificaccedilatildeo dos
fatos expostos conceder ou natildeo ao requisitante a condiccedilatildeo de anistiado poliacutetico e
dependendo do caso a correspondente reparaccedilatildeo econocircmica Como alguns dos
entrevistados passavam por este processo no mesmo periacuteodo em que concederam as
entrevistas eacute notaacutevel que tal experiecircncia seja mais uma forte influecircncia do presente na
construccedilatildeo das memoacuterias por eles narradas Esse momento de busca por reparaccedilatildeo por
que muitos passavam inconscientemente os conduzia a enfatizar durante as narrativas
suas condiccedilotildees de ldquoviacutetimasrdquo do passado em detrimento por exemplo de suas condiccedilotildees
de ldquosiacutembolos da resistecircnciardquo
Ainda diante da capacidade de intervenccedilatildeo que o presente exerce sobre as
memoacuterias do passado deve-se considerar tambeacutem a forma como essa rede de
entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que as entrevistas foram realizadas
Afinal o caminho trilhado ateacute o depoente e o momento especiacutefico de cada narrativa
composto pelo local e as condiccedilotildees gerais sob as quais ocorreu tambeacutem influenciam na
construccedilatildeo das memoacuterias do entrevistado tanto por parte do historiador na maneira
como aborda o narrador quanto por parte do proacuteprio narrador por meio da forma com
que narra suas memoacuterias Portanto acredita-se aqui que a busca por cada entrevistado
interfere na abordagem que o entrevistador imprime agrave entrevista e na forma como o
narrador se sente ao narrar suas memoacuterias naquele momento tornando o instante de
cada entrevista um fator tambeacutem de intervenccedilatildeo na narrativa das memoacuterias do passado
Dessa forma antes de tratar-se das trajetoacuterias de vida narradas por cada ex-prisioneiro
entrevistado optou-se aqui por considerar como o instante de cada entrevista foi
construiacutedo ou seja como a rede de entrevistas foi formada
91
1 A rede de entrevistas
A primeira entrevista foi feita com o ex-preso poliacutetico Antocircnio Leite de Carvalho
em 12 de setembro de 2002 na sala de sua casa situada bem proacutexima ao quartel do 1ordm
BPE onde se localizava o DOI-CODIRJ O espaccedilo ocupado por esta instituiccedilatildeo que eacute
intensamente abordado no proacuteximo capiacutetulo situava-se nos fundos do referido quartel
cujo edifiacutecio foi construiacutedo durante o Impeacuterio e ainda hoje se encontra entre a Avenida
Maracanatilde e a Rua Baratildeo de Mesquita no bairro da Tijuca na cidade do Rio de Janeiro
Cheguei ateacute Antocircnio atraveacutes de seu filho Joatildeo meu colega do curso de graduaccedilatildeo
em histoacuteria pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Sabedor
do meu interesse sobre o tema da repressatildeo poliacutetica Joatildeo procurou me ajudar e ao
mesmo tempo satisfazer a curiosidade que sentia sobre esta parte da vida de seu pai
Portanto durante a minha primeira visita agrave casa de Antocircnio enquanto ele narrava
suas memoacuterias sobre o periacuteodo em que esteve preso nas dependecircncias do quartel
vizinho Joatildeo atravessava constantemente a sala em direccedilatildeo agrave varanda ou agrave cozinha
Assim sem que Antocircnio aparentemente percebesse jaacute que estava concentrado em sua
narrativa Joatildeo tentava ouvir um pouco mais sobre um passado que seu pai nunca havia
revelado abertamente aos filhos
Percebe-se entatildeo como lidar com detalhes dessa memoacuteria era complicado para
Antocircnio e portanto o quanto aquele momento era importante para ele e para seu filho
Atraveacutes da entrevista enquanto Antocircnio passava a sentir um maior orgulho daquelas
memoacuterias pois por meio do meu interesse em entrevistaacute-lo comeccedilava a percebecirc-las
como fonte para a histoacuteria do paiacutes Joatildeo conhecia melhor o seu pai e passava a entender
algumas de suas atitudes que ateacute entatildeo questionava
Era o caso da reaccedilatildeo arredia que Antocircnio tinha ao ser acordado de forma
inesperada enquanto dormia no sofaacute da casa Assim apoacutes ouvir sobre o cotidiano e as
92
torturas a que seu pai afirma ter sido submetido no DOI-CODIRJ Joatildeo comeccedilou a
compreender que tal reaccedilatildeo tinha relaccedilatildeo com esse passado quando Antocircnio muitas
vezes pode ter sido despertado de desmaios ocasionados por choques eleacutetricos e outras
torturas a ele perpetradas ainda na sala de interrogatoacuterio Logo o fato de acordar
assustado tentando se proteger ou ateacute mesmo agredir quem o acordasse pode ser
compreendido quando relacionado agraves marcas que as violecircncias vividas no DOI-
CODIRJ deixaram na memoacuteria de Antocircnio
A partir dessa primeira entrevista o meu interesse pelo tema se aprofundou
impulsionando-me a buscar outros possiacuteveis entrevistados No dia 5 de fevereiro de
2003 consegui entrevistar Dulce Chaves Pandolfi Seu nome foi aventado por meio da
leitura sobre a passagem de Dulce pelo DOI-CODIRJ encontrada no livro Brasil
Nunca Mais publicado pela Editora Vozes em 1985
A estudante Dulce Chaves Pandolfi 24 anos foi obrigada tambeacutem a servir
de cobaia no quartel da rua Baratildeo de Mesquita no Rio [] Na Poliacutecia do
Exeacutercito foi submetida a espancamento inteiramente despida bem como a
choques eleacutetricos e outros supliacutecios como o ldquopau-de-ararardquo Depois de
conduzida agrave cela onde foi assistida por meacutedico foi apoacutes algum tempo
novamente seviciada com requintes de crueldade numa demonstraccedilatildeo de
como deveria ser feita a tortura [] (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985 32)
Depois de algumas tentativas frustradas de marcar esta entrevista por meio de
mensagens via correio eletrocircnico que encontrei atraveacutes do site do CPDOC centro de
pesquisa onde Dulce trabalha como pesquisadora e professora ela enfim me recebeu em
sua sala no interior deste mesmo centro de pesquisa Sua resistecircncia inicial pode ser
atribuiacuteda ao fato de na condiccedilatildeo de pesquisadora estar mais acostumada ao papel de
entrevistadora do que ao de entrevistada ou seja estar mais afinada com o trabalho de
analisar as fontes do que com o de ser a proacutepria fonte Diante disso durante sua
93
entrevista Dulce natildeo se sentiu agrave vontade em tratar dos detalhes das violecircncias sofridas
no DOI-CODIRJ o que pode ser explicado pela dor que ainda acompanha suas
memoacuterias e tambeacutem pelo desconforto que a situaccedilatildeo lhe trazia jaacute que ela possivelmente
natildeo se desvinculava do fato de ser uma professora universitaacuteria expondo sua intimidade
a uma aluna de graduaccedilatildeo No entanto justamente por lecionar histoacuteria e por
conseguinte jaacute estar convencida da importacircncia de seu depoimento Dulce apresentou
uma narrativa articulada e aparentemente coerente
Apoacutes a entrevista de Dulce ficou evidente a desarticulaccedilatildeo da memoacuteria de
Antocircnio uma vez que esta era silenciada haacute muito tempo e portanto natildeo possuiacutea uma
construccedilatildeo preacute-estabelecida por outros discursos Tal percepccedilatildeo me levou a voltar a
entrevistaacute-lo em 8 de fevereiro de 2003 trecircs dias depois da entrevista de Dulce quando
Antocircnio jaacute demonstrava uma memoacuteria mais articulada Afinal esse silecircncio que
caracterizava sua memoacuteria lhe atribuiacutea um aspecto negativo e um destacadamente
positivo O lado negativo era que conforme elucidado por Michael Pollak em Memoacuteria
esquecimento e silecircncio (1989) dificilmente sua memoacuteria foi transmitida de forma
intacta durante todo o tempo em que ficou guardada ateacute o dia em que a entrevista
significou uma oportunidade para que ela saiacutesse do ldquonatildeo-ditordquo Poreacutem o lado positivo a
meu ver merecedor de destaque era que a memoacuteria de Antocircnio sobre a prisatildeo no DOI-
CODIRJ possuiacutea poucas influecircncias por decorrecircncia do contato com as memoacuterias de
outros ex-prisioneiros pois natildeo estava a elas diretamente relacionada por meio de
nenhuma coletividade especiacutefica
No ano seguinte ao buscar mais informaccedilotildees sobre o DOI-CODIRJ no Arquivo
Puacuteblico do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) conheci Fernando Palha Freire que viria
a ser o meu terceiro entrevistado Na eacutepoca da entrevista em junho de 2004 Fernando
trabalhava neste Arquivo enviando ao governo estadual a documentaccedilatildeo de requerentes
94
agrave reparaccedilatildeo econocircmica conforme constava no decreto nordm 31995 de 10 de outubro de
2002 Este decreto regulamentava a lei estadual Nordm 3744 de 21 de dezembro de 2001
que antes mesmo da lei federal 105592002 entrar em vigor dispunha sobre a
reparaccedilatildeo a pessoas que haviam sido detidas sob acusaccedilatildeo de terem participado de
atividades poliacuteticas entre os dias 1ordm de abril de 1964 e 15 de agosto de 1979 e que
haviam sofrido tortura em oacutergatildeos puacuteblicos estaduais
Ao saber sobre o meu tema de pesquisa um arquivista do APERJ me apresentou a
Fernando que natildeo hesitou em me conceder seu depoimento A entrevista foi realizada laacute
mesmo dentro da sala em que Fernando trabalhava e por ter sido concedida durante o
horaacuterio de expediente fomos constantemente interrompidos por ligaccedilotildees telefocircnicas Ao
longo de sua entrevista Fernando confessou ter falado muitas vezes sobre suas
memoacuterias do periacuteodo militar e que justamente por entender a importacircncia desse
passado havia sido nomeado para instruir os requisitantes agrave reparaccedilatildeo estipulada pelo
Decreto estadual Nordm 319952002 Dessa forma justifica-se a apresentaccedilatildeo tranquila e
eloquente que conduz sua narrativa
Trecircs meses depois no final de setembro Padre Maacuterio Prigol da Paroacutequia de
Nossa Senhora da Salete localizada no bairro do Catumbi no Rio de Janeiro me
concedeu seu depoimento Esta entrevista foi possiacutevel por intermeacutedio de Alejandra
outra colega do curso de graduaccedilatildeo em histoacuteria da UNIRIO que o conhecia por jaacute tecirc-lo
entrevistado sobre a sua participaccedilatildeo nos movimentos da Juventude Operaacuteria Catoacutelica
(JOC) e Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) 16
Durante a entrevista que me concedeu Padre Maacuterio falou muito sobre as lutas
sociais que travou durante a ditadura militar descritas no livro que havia acabado de
publicar ndash Maacuterio Prigol educador da feacute entre trabalhadores e militantes populares
16
Para mais informaccedilotildees ver Estevez 2008
95
(2003) Entretanto sobre sua passagem pelo DOI-CODIRJ pouco fazia questatildeo de
narrar reconhecendo em certo momento que laacute tambeacutem havia sofrido com torturas o
que explica em parte o desconforto que as lembranccedilas prisionais lhe traziam
Provavelmente por sua prisatildeo ter lhe colocado na eacutepoca em uma posiccedilatildeo extremamente
conflitante e perturbadora para uma autoridade da Igreja Catoacutelica anos mais tarde essas
memoacuterias ainda eram difiacuteceis de serem narradas e lembrar a violecircncia sofrida dentro do
DOI-CODIRJ possivelmente trazia de volta alguns transtornos de ordem sentimental
indesejaacuteveis Afinal presume-se que na prisatildeo seus sentimentos oscilassem entre os
tipicamente humanos tais como dor e raiva e os cristatildeos como feacute e perdatildeo tais
memoacuterias remetiam a sentimentos humanos que ele em respeito a sua vocaccedilatildeo de
padre deveria renegar
Decidida a ampliar ainda mais o escopo de minha rede de entrevistados passei a
frequentar as reuniotildees abertas ao puacuteblico agraves segundas-feiras agrave noite na sede do Grupo
Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTMNRJ) no bairro de Botafogo O
GTNMRJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-prisioneiros poliacuteticos que viveram
situaccedilotildees de tortura durante o regime militar bem como por familiares de mortos e
desaparecidos poliacuteticos O Grupo tornou-se por meio das lutas em defesa dos direitos
humanos uma importante referecircncia no cenaacuterio nacional Ao longo dessas deacutecadas o
GTNMRJ vem lutando pelo esclarecimento das circunstacircncias da morte e do
desaparecimento de militantes poliacuteticos pelo resgate da memoacuteria da repressatildeo ditatorial
pelo afastamento imediato dos cargos puacuteblicos de pessoas envolvidas com a tortura e
pela formaccedilatildeo de uma consciecircncia eacutetica condiccedilatildeo que a entidade defende ser
indispensaacutevel na luta contra a impunidade e pela justiccedila Aleacutem disso o Grupo vem
denunciando antigos e novos casos de tortura exigindo puniccedilatildeo para seus perpetradores
96
atraveacutes de notas na miacutedia entrevistas atos puacuteblicos seminaacuterios e outras atividades 17
Minha ida agrave sede do Grupo resultou na incorporaccedilatildeo de duas novas entrevistadas a
minha rede A primeira delas foi Ana de Miranda Batista que em 17 de novembro de
2004 me recebeu em uma das salas do proacuteprio GNTMRJ Ana havia acabado de
escrever seu memorial ndash onde narrava todas as perseguiccedilotildees e prisotildees que havia sofrido
durante a ditadura militar ndash e o havia encaminhado agrave presidecircncia da Comissatildeo Especial
da Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro a fim de comprovar
que fazia jus ao valor maacuteximo da reparaccedilatildeo prevista no Art 5ordm da Lei Estadual nordm 3744
de 21 de dezembro de 2001 O ponto principal de seu argumento era que havia sofrido
todas as mazelas prisotildees torturas fiacutesicas e psicoloacutegicas submetida pelas forccedilas
opressoras da eacutepoca fato este que ateacute hoje tem consequecircncias em sua vida (Batista
2004 10) 18
Antes de comeccedilar a entrevista Ana me concedeu uma coacutepia deste memorial
juntamente com a monografia do entatildeo Coronel de cavalaria Freddie Perdigatildeo Pereira
fonte analisada no capiacutetulo anterior cujo teor havia lhe servido como evidecircncia dos
meacutetodos violentos que ocorriam nas dependecircncias do DOI-CODI
Diante disso conforme o esperado seu depoimento oral apresentou um tom
narrativo muito similar ao assumido no referido documento que havia recentemente
escrito Assim orquestrada com o objetivo que tinha de conseguir a reparaccedilatildeo do
Estado Ana buscou construir suas memoacuterias de forma a ressaltar as violecircncias sofridas
ou seja priorizou a condiccedilatildeo de ldquoperseguida poliacutetica e viacutetima da repressatildeo militarrdquo em
detrimento da de ldquolutadora revolucionaacuteriardquo em prol da democracia
No final desse mesmo mecircs de novembro entrevistei a entatildeo vice-presidente do
Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro Ceciacutelia Coimbra Professora do
17
Para mais informaccedilotildees acessar httpwwwtorturanuncamais-rjorgbr 18
Memorial de Ana de Miranda Batista parte do requerimento agrave indenizaccedilatildeo enviado ao Secretaacuterio de
Estado de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro pela proacutepria em outubro de 2004
97
Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Ceciacutelia me
recebeu em uma das salas do preacutedio dessa faculdade localizada no campus do
Gragoataacute na cidade de Niteroacutei Uma das fundadoras do GTNMRJ Ceciacutelia natildeo mostrou
nenhum pudor em lembrar as violaccedilotildees sofridas durante a prisatildeo Detalhou as torturas
recebidas sem demonstrar constrangimento Esta forma de lidar com o passado se
explica pela maneira pela qual Ceciacutelia se auto-identifica Afinal devido a sua profissatildeo
de psicoacuteloga e sua condiccedilatildeo de liacuteder de um grupo que luta por reparar os danos morais e
fiacutesicos deixados pela tortura entende a difusatildeo dos detalhes de sua proacutepria memoacuteria
como uma arma poderosa para que a justiccedila seja feita em prol da redenccedilatildeo dos
torturados e da penalizaccedilatildeo dos torturadores
11 Os sujeitos e suas trajetoacuterias
A partir da anaacutelise dos depoimentos traccedila-se aqui a trajetoacuteria de vida de cada um
dos entrevistados a fim de que sejam desvendados outros fatores que influenciaram a
construccedilatildeo de suas memoacuterias sobre o periacuteodo em que estiveram presos no DOI-
CODIRJ Este periacuteodo se concentra no segundo semestre do ano de 1970 uma vez que
foi nesse momento que todos os seis entrevistados por laacute passaram Este dado temporal
em muito aproxima suas memoacuterias pois significa que estas se referem a uma mesma
fase desse oacutergatildeo repressivo Isso permitiu ateacute mesmo que tais memoacuterias englobassem
momentos compartilhados jaacute que alguns desses ex-prisioneiros laacute se encontraram e ateacute
dividiram uma mesma cela
No entanto cabe aqui destacar que natildeo houve qualquer intenccedilatildeo de entrevistar ex-
prisioneiros que estivessem no DOI-CODIRJ durante esse periacuteodo Conforme exposto
anteriormente a rede de entrevistas foi se desenhando de acordo com as oportunidades
o que torna o fato de todos terem por laacute passado na segunda metade de 1970 natildeo uma
98
feliz coincidecircncia como uma primeira impressatildeo pode fazer crer mas mais uma
demonstraccedilatildeo da alta eficiecircncia dos DOI-CODI Essas prisotildees correspondem justamente
ao periacuteodo em que o DOI-CODIRJ passou a funcionar em meados de 1970
demonstrando na praacutetica o que foi dito no capiacutetulo anterior diante da grande demanda
de accedilotildees que natildeo eram eficientemente combatidas pelos oacutergatildeos de repressatildeo anteriores
a sofisticaccedilatildeo dos DOI ldquorevolucionourdquo de fato a organizaccedilatildeo da repressatildeo agindo jaacute
num primeiro momento de forma avassaladora
Antocircnio Leite de Carvalho19
Antocircnio Leite de Carvalho nasceu no Cearaacute em 13 de agosto de 1945 Quando era
estudante secundarista pertenceu ao movimento que se concentrava no Calabouccedilo
restaurante estudantil proacuteximo ao Aeroporto Santos Dumont do Rio de Janeiro
frequentado por estudantes que eram como ele secundaristas pobres e principalmente
procedentes de outros estados
Em 1967 o governo apresentou planos para a demoliccedilatildeo do Calabouccedilo sob a
justificativa de construir em seu local um trevo rodoviaacuterio para desafogar o tracircnsito do
Aterro do Flamengo A partir disso os estudantes comeccedilaram a protestar contra a sua
demoliccedilatildeo e criaram a Frente Unida dos Estudantes do Calabouccedilo (FUEC) O governo
em maio daquele ano conseguiu demolir o restaurante e entregou em setembro ldquoo novo
Calabouccedilordquo para os estudantes poreacutem em situaccedilotildees precaacuterias Assim a luta da FUEC
continuou em prol da melhoria de suas condiccedilotildees de funcionamento e foi justamente em
torno desses protestos que o primeiro grande conflito de rua do ano de 1968 ocorreu
sensibilizando a opiniatildeo puacuteblica e o movimento estudantil como um todo No dia 28 de
19
Entrevistas realizadas com Antocircnio Leite de Carvalho em 12 de setembro de 2002 e 8 de fevereiro de
2003
99
marccedilo policiais invadiram a tiros o restaurante do Calabouccedilo onde se preparava mais
uma manifestaccedilatildeo contra as peacutessimas condiccedilotildees do local e mataram o estudante
secundarista Edson Luiacutes de Lima Souto de dezoito anos Este assassinato representou o
estopim para o desencadeamento de amplas manifestaccedilotildees contraacuterias agrave ditadura ao
longo do ano de 1968 que seriam cada vez mais reprimidas ateacute se tornarem totalmente
proibidas pelo AI-5 20
A partir desse contexto de ilegalidades e proibiccedilotildees Antocircnio se posicionou entre
os estudantes que optaram por continuar a lutar contra a ditadura de forma radicalizada
Aproximou-se entatildeo do Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR) onde
logo em seguida comeccedilou a militar Antocircnio associa a sua adesatildeo ao PCBR ao
programa deste partido de esquerda que tinha a guerrilha urbana como meio de luta
para a derrubada da ditadura e implantaccedilatildeo do socialismo no paiacutes e principalmente agrave
admiraccedilatildeo que tinha por um dos seus fundadores e liacutederes Apolocircnio de Carvalho
Como Antocircnio teve participaccedilatildeo assiacutedua em muitas passeatas do movimento
estudantil de 1968 conheceu muitas lideranccedilas de organizaccedilotildees que vinham se
formando e buscavam adeptos em meio aos estudantes Assim foi apresentado e
comeccedilou a admirar Apolocircnio de Carvalho um dos grandes motivos que o levaram a
posteriormente militar no PCBR partido cuja formaccedilatildeo atuaccedilatildeo e ideais seratildeo
abordados mais adiante Apolocircnio de Carvalho era uma figura haacute muito atuante na
poliacutetica havia lutado em favor dos republicanos na Espanha durante a Guerra Civil
Espanhola na Resistecircncia Francesa contra o nazismo e participava do Partido
Comunista Brasileiro (PCB) quando em 1967 rompeu com este e foi um dos
fundadores do PCBR 21
20
Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009 108-132 21
Em 1967 Apolocircnio rompeu com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e se tornou um dos fundadores
do PCBR partido em situaccedilatildeo clandestina na eacutepoca motivo que o levou a ser preso Juntamente com
outros 39 presos poliacuteticos Apolocircnio foi trocado pelo embaixador alematildeo que em 11 de junho de 1970
100
O partido era o PCBR que possuiacutea uma grande figura que se chama
Apolocircnio de Carvalho que pertence hoje ao PT ele era uma grande
lideranccedila do partido havia participado da Revoluccedilatildeo Espanhola da
resistecircncia ao nazismo na Franccedila um homem respeitado mundialmente pela
sua coragem e pela luta a favor da democracia e contra os ditadores ele era a
minha grande lideranccedila (Carvalho 12 set 2002)
Em 1970 aos 25 anos Antocircnio Leite de Carvalho foi preso No momento de sua
prisatildeo estava agrave espera de outro militante do PCBR na rua em um ponto de encontro
que havia combinado com ele Relacionando o depoimento de Antocircnio com as
estrateacutegias de captura dos DOI analisadas no primeiro capiacutetulo percebe-se que como o
companheiro de Antocircnio havia sido capturado antes de ir ao seu encontro acabou
informando aos agentes de umas das turmas de interrogatoacuterio preliminar do DOI-
CODIRJ muito provavelmente sob tortura o horaacuterio em que Antocircnio estaria no lugar
marcado A partir disso a informaccedilatildeo foi repassada agrave Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo e
agentes de uma das turmas que a formavam se encaminharam ateacute o local com carros e
roupas descaracterizadas como de praxe e levaram Antocircnio algemado para o DOI-
CODIRJ onde ficou preso durante cerca de trecircs meses
Eu fui preso na rua Eu tinha um encontro com outro militante mas esse
militante foi preso e sob tortura no DOI-CODI aqui no 1deg BPE da Rua
Baratildeo de Mesquita ele abriu o ponto quer dizer o ponto era o local de
encontro que a gente chamava de ponto ldquoTenho um ponto com fulanardquo quer
dizer que vocecirc tinha um encontro Ele abriu o local de encontro que eu teria
com ele e aiacute eu fui preso pelo DOI-CODI (Carvalho 12 set 2002)
havia sido sequestrado por esquerdistas integrantes da Vanguarda Popular Revolucionaacuteria (VPR) e da
Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN) vivendo algum tempo exilado na Argeacutelia Apoacutes a implantaccedilatildeo da Lei
de Anistia no Brasil em 1979 ele e sua famiacutelia retornaram agrave terra natal onde participaram da fundaccedilatildeo
do Partido dos Trabalhadores (PT) em 1980 Apolocircnio faleceu em setembro de 2005 aos 93 anos
(Carvalho 1997 13-16)
101
Antocircnio ressalta que durante a sua prisatildeo no DOI-CODIRJ esteve junto a
Fernando Gabeira e Daniel Aaratildeo Reis Filho Ambos haviam participado do sequestro
do embaixador americano no dia 4 de setembro de 1969 e por terem conseguido trocar
o embaixador por quinze presos poliacuteticos que foram exilados no Meacutexico haviam se
destacado entre os militantes da esquerda armada Aleacutem disso como na eacutepoca em que
Antocircnio concedeu as entrevistas Gabeira e Daniel Aaratildeo eram pessoas publicamente
reconhecidas pela luta contra a ditadura e tambeacutem por suas atividades profissionais ndash
Gabeira como jornalista e entatildeo deputado federal e Daniel Aaratildeo como intelectual ndash
percebe-se que o fato de ter tido contato com eles na prisatildeo eacute importante para a leitura
que Antocircnio faz sobre suas memoacuterias injetando-lhes certo orgulho Afinal apesar de
natildeo ter participado do sequestro Antocircnio tambeacutem havia sido preso e torturado por
pegar em armas contra a ditadura logo o fato de ter convivido na cadeia com essas
figuras jaacute reconhecidas pelos feitos desse mesmo passado lhe trazia no presente uma
dimensatildeo positiva sobre suas memoacuterias
Fiquei preso com pessoas que ficaram famosas como o Fernando Gabeira
que depois se tornou parlamentar foi candidato ao governo do Estado foi
candidato a prefeito e hoje eacute deputado federal Tambeacutem o Daniel Aaratildeo
Reis renomado professor de Histoacuteria e uma seacuterie de outros que hoje estatildeo aiacute
pelo governo inclusive em diversos governos (Carvalho 12 set 2002)
Apoacutes o tempo em que esteve preso no DOI-CODIRJ Antocircnio foi transferido para
o Departamento de Ordem Poliacutetica e Social (DOPS) onde permaneceu por um periacuteodo
de dois ou trecircs meses sendo entatildeo libertado Na eacutepoca em que concedeu a entrevista
Antocircnio aleacutem de bancaacuterio aposentado trabalhava como dirigente sindical em um cargo
eletivo
102
Dulce Chaves Pandolfi22
Dulce Chaves Pandolfi nasceu em Recife no dia 14 de dezembro de 1948
Cursava Ciecircncias Sociais em Pernambuco quando em 1967 entrou para o Diretoacuterio
Acadecircmico se tornando pouco depois secretaacuteria geral do Diretoacuterio Central dos
Estudantes (DCE) A partir de dezembro de 1968 com o AI-5 extinguindo os grecircmios
estudantis e substituindo-os por centros ciacutevicos sem autonomia que natildeo podiam realizar
atividades de natureza poliacutetica a opccedilatildeo de fazer parte da ALN era para Dulce uma
forma de continuar lutando por uma ldquosociedade mais igualitaacuteriardquo Aleacutem disso era
sobretudo um meio de derrubar o regime militar em vigor como se pode conferir na
passagem abaixo
[] a gente queria transformar a sociedade a gente queria o socialismo uma
sociedade igualitaacuteria Mas tinha uma fase anterior que era exatamente a de
querer derrubar a ditadura essa era a meta principal de todos Sabiacuteamos
inclusive que o socialismo natildeo era uma meta imediata era uma luta em
longo prazo [] entatildeo a nossa luta inicialmente era para ser instalado o
regime democraacutetico era a luta contra a ditadura (Pandolfi 5 fev 2003)
Ressalta-se entretanto que a opccedilatildeo de Dulce assim como da maior parte dos
estudantes que a partir do AI-5 se juntaram agraves organizaccedilotildees esquerdistas de luta armada
estava inserida no contexto mundial de 1968 Este por sua vez influenciava-se pela
vitoacuteria da Revoluccedilatildeo Cubana em 1959 pela independecircncia da Argeacutelia em 1962 pela
Guerra Fria que acabou por deflagrar entre os anos de 1959 e 1975 a Guerra do Vietnatilde
e por meio desta o enfrentamento indireto de Estados Unidos e Uniatildeo Sovieacutetica e pela
rebeliatildeo estudantil mundial iniciada a partir do ldquomaio francecircs de 1968rdquo que comeccedilou
por meio de uma manifestaccedilatildeo estudantil pontual questionadora de atitudes culturais
22
Entrevista realizada com Dulce Chaves Pandolfi em 5 de fevereiro de 2003
103
tradicionais e conservadoras e rapidamente atingiu a proporccedilatildeo de uma ldquorevoluccedilatildeo
cultural mundialrdquo Percebe-se entatildeo que o horizonte nesse momento era revolucionaacuterio
e principalmente entre os jovens impulsionava a percepccedilatildeo de que os partidos
tradicionais de esquerda estavam desacreditados e que era hora de uma nova geraccedilatildeo
partir para a accedilatildeo direta rumo agrave revoluccedilatildeo
Assim diferente de como eacute narrado por muitos ex-prisioneiros poliacuteticos em
tempos jaacute democraacuteticos que tais como Dulce veem a democracia do presente como
uma conquista positiva e por isso inconscientemente permitem que essa visatildeo atual
influencie suas memoacuterias de luta percebe-se aqui que a democracia natildeo prevalecia entre
os ideais das organizaccedilotildees de luta armada da eacutepoca muito pelo contraacuterio Afinal
acredita-se que em meio ao contexto mundial do momento as esquerdas armadas
tinham uma perspectiva de fato revolucionaacuteria ou seja valorizavam a revoluccedilatildeo muito
mais que a democracia que inclusive nesse momento estava diretamente associada
aos Estados Unidos e consequentemente ao sistema capitalista Como aponta Daniel
Aaratildeo na obra a Ditadura militar esquerdas e sociedade (2000)
a perspectiva ofensiva revolucionaacuteria que havia moldado aquelas
esquerdas E o fato de que elas natildeo eram de modo nenhum apaixonadas pela
democracia (Aaratildeo Reis 2000 70)
A democracia soacute comeccedilou mesmo a ser valorizada a partir do final da deacutecada de
1970 jaacute em uma nova conjuntura onde jaacute existiam outros significados tais como os
direitos humanos e a luta pela anistia No entanto por outro lado nota-se que conforme
destacado por Dulce a luta contra ditadura era tambeacutem um dos objetivos principais da
esquerda armada no final dos anos 1960 Dessa forma apesar da luta contra ditadura na
eacutepoca estar totalmente vinculada agrave revoluccedilatildeo socialista eacute compreensiacutevel que a
democracia tenha em tempos recentes um papel destacado entre as memoacuterias dos ex-
104
guerrilheiros Tal como analisa Marcelo Ridenti em Resistecircncia e mistificaccedilatildeo da
resistecircncia armada contra a ditadura armadilha para pesquisadores (2004) nota-se
aqui que a face de resistecircncia agrave ditadura das experiecircncias guerrilheiras passou a importar
mais apoacutes a implantaccedilatildeo da democracia que a ofensiva revolucionaacuteria ao contraacuterio da
intenccedilatildeo original dos guerrilheiros Afinal foi esta face que teve o objetivo alcanccedilado
ou seja saiu-se vencedora
Apoacutes o AI-5 Dulce optou entatildeo por militar na Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN)
organizaccedilatildeo de esquerda armada que seraacute abordada ainda neste capiacutetulo Assim no ano
de 1970 sabendo que estava sendo procurada pela repressatildeo por conta de sua militacircncia
clandestina Dulce se mudou para a cidade do Rio de Janeiro Sete meses depois no dia
14 de agosto foi presa na casa do seu namorado e levada direto para o DOI-CODIRJ
onde permaneceu cerca de trecircs meses
[] fui presa na casa do meu namorado noacutes fomos presos agrave noite no dia 14
de agosto Fui levada direto para PE Fiquei na PE mais ou menos uns trecircs
meses fiquei ateacute novembro comecinho de dezembro eu acho Depois eu
fui transferida para o DOPS (Pandolfi 5 fev 2003)
Apoacutes permanecer presa no DOI-CODI Dulce foi levada para o DOPS e depois
de seu julgamento foi transferida para o presiacutedio Talavera Bruce prisatildeo feminina de
regime fechado com grau de seguranccedila maacutexima localizada no bairro de Bangu
Passado um ano foi levada de volta para Recife sua cidade natal onde finalmente foi
libertada Encontrou-se prisioneira por mais de um ano de agosto de 1970 ateacute dezembro
de 1971
[] depois de um tempo praticamente um ano que eu estava presa fui
levada para Recife porque eu tambeacutem tinha processo laacute e de laacute eu saiacute Fui
105
solta laacute em Recife depois de um ano Saiacute em dezembro de 1971 fui presa
em agosto de 70 e fui solta em dezembro de 71 (Pandolfi 5 fev 2003)
Dulce no momento de sua entrevista jaacute era professora e pesquisadora do Centro de
Pesquisa e Documentaccedilatildeo de Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil (CPDOC) da Fundaccedilatildeo
Getuacutelio Vargas (FGV) ofiacutecio que exerce ateacute os dias de hoje
Fernando Palha Freire23
Fernando Palha Freire nasceu em Beleacutem (PA) e se mudou para o Rio de Janeiro
no fim de 1964 Antes de vir para o Rio ainda adolescente aprendeu alguns
fundamentos marxistas com sua irmatilde mais velha jaacute universitaacuteria que lhe deu o que ele
chamou de uma ldquonoccedilatildeo de mundordquo Quando se mudou para o Rio de Janeiro Fernando
mesmo jovem jaacute havia se definido esquerdista
Agrave eacutepoca do AI-5 Fernando tinha muitos amigos que militavam em uma
Dissidecircncia do Partidatildeo de Niteroacutei a Dissidecircncia do Estado do Rio de Janeiro que em
meados de 1969 foi desmontada atraveacutes da prisatildeo de seus integrantes pelo oacutergatildeo de
repressatildeo da Marinha o Centro de Informaccedilotildees da Marinha o CENIMAR Como esta
organizaccedilatildeo natildeo tinha um nome especiacutefico para noticiar o seu desmonte na imprensa
com um efeito grandioso os militares daquele oacutergatildeo optaram por nomeaacute-la de
Movimento Revolucionaacuterio 8 de outubro (MR-8) fazendo alusatildeo agrave data em que Che
Guevara havia sido capturado na Boliacutevia morrendo no dia seguinte Foi inclusive a
partir disso que a Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-GB)24
para provocar o
governo ditatorial que haacute pouco havia noticiado o desmonte do perigoso ldquoMR-8rdquo
23
Entrevista realizada com Fernando Palha Freire em 28 de junho de 2004 24
Tais organizaccedilotildees de esquerda da eacutepoca ainda seratildeo abordadas neste capiacutetulo no item 12 A nova
esquerda brasileira
106
assinou em co-autoria com a ALN o sequestro do embaixador norte-americano
autointitulando-se MR-8 como passou desde entatildeo a ser conhecida 25
[] quando veio o golpe minha irmatilde jaacute era universitaacuteria eu era um garoto
eu tinha quinze anos [] ela que me deu mesmo uma noccedilatildeo de mundo de
marxismo Quando veio o golpe noacutes moraacutevamos em Beleacutem No final de 64
eu estava me mudando para o Rio de Janeiro jaacute com essas noccedilotildees de justiccedila
social que eu havia aprendido com ela Digamos assim eu jaacute era
definidamente um cara de esquerda Aiacute veio a luta armada [] a primeira
organizaccedilatildeo [desmontada pelos militares] era o MR-8 uma organizaccedilatildeo de
Niteroacutei uma dissidecircncia do Partidatildeo [PCB] de Niteroacutei onde muitos de seus
integrantes eram meus conhecidos meus amigos entatildeo quando esses caras
foram presos eu jaacute era digamos assim um simpatizante dessa organizaccedilatildeo
natildeo era militante mas era simpatizante [] (Freire 28 jun 2004)
A partir dessa ligaccedilatildeo com outros militantes Fernando optou pela luta armada e
passou a militar na ALN mesma organizaccedilatildeo de Dulce Sua militacircncia poreacutem
concentrava-se em Niteroacutei no estado do Rio de Janeiro onde morava e estudava
economia na Universidade Federal Fluminense (UFF) Assim em 1970 Fernando e
outros militantes da ALN proacuteximos a ele resolveram planejar uma accedilatildeo para que muitos
de seus companheiros inclusive os do antigo MR-8 fossem libertados
No dia 1deg de julho de 1970 aos 22 anos Fernando participou do sequestro de um
aviatildeo da Companhia Cruzeiro do Sul que ia do Brasil para a Argentina com o objetivo
de negociar a troca dos passageiros por quarenta presos poliacuteticos
[] a gente pensou em fazer uma accedilatildeo accedilatildeo no sentido de tentar libertar esse
pessoal Na eacutepoca jaacute tinham sequestrado o embaixador americano e
trocado por quinze presos poliacuteticos [] Entatildeo nesse sentido a gente
resolveu planejar o sequestro de um aviatildeo A gente sequestrou um aviatildeo com
o objetivo de trocar os passageiros por quarenta presos poliacuteticos Quer dizer
25
Para mais informaccedilotildees sobre a mudanccedila de nome da Dissidecircncia da Guanabara para MR-8 ver
Berquoacute 1997 72-73
107
a gente entrou num processo de radicalizaccedilatildeo mesmo A gente queria era a
libertaccedilatildeo [] soacute que essa accedilatildeo natildeo deu certo [] (Freire 28 jun 2004)
O sequestro parecia correr como o planejado Durante o vocirco Fernando e os outros
militantes conseguiram desviar a rota que saiacutea do Rio de Janeiro para Buenos Aires
com escala em Satildeo Paulo fazendo o aviatildeo retornar ao Rio Poreacutem no Aeroporto
Internacional do Rio de Janeiro o Galeatildeo oficiais da Aeronaacuteutica cercaram o aviatildeo e
conseguiram render os opositores poliacuteticos envolvidos na operaccedilatildeo antes que eles
conseguissem negociar a troca dos refeacutens pelos quarenta prisioneiros poliacuteticos Durante
o combate um dos sequestradores irmatildeo de Fernando levou um tiro vindo a falecer
horas depois
A gente chegou a desviar o aviatildeo um aviatildeo que ia pra Argentina com uma
parada em Satildeo Paulo a gente mandou o aviatildeo voltar e quando chegamos ao
Rio o aviatildeo foi cercado Os caras chegaram com gaacutes lacrimogecircneo lama
arma e nessa accedilatildeo o meu irmatildeo foi baleado e depois morreu Eles mataram
meu irmatildeo A gente foi preso pelo CISA que era a forccedila secreta da
Aeronaacuteutica [] Jaacute na descida do aviatildeo a gente apanhou natildeo se sabe de
quem e nem por onde Depois fomos torturados no aparelho de repressatildeo
deles laacute dentro e de laacute fomos transferidos pro DOI-CODI na PE (Freire 28
jun 2004)
Primeiramente aprisionado pelo Centro de Informaccedilotildees e Seguranccedila da
Aeronaacuteutica (CISA) Fernando foi pouco tempo depois transferido para o DOI-
CODIRJ onde permaneceu cerca de dezoito a vinte dias Posteriormente voltou para
as dependecircncias do CISA no aeroporto do Galeatildeo onde ficou cerca de oito meses ateacute
ser julgado Apoacutes seu julgamento foi conduzido para o Instituto Penal Cacircndido Mendes
(IPCM) presiacutedio de seguranccedila maacutexima localizado em Ilha Grande no estado do Rio de
Janeiro Para Fernando em meio agraves privaccedilotildees que vivia nos oacutergatildeos de repressatildeo ser
transferido para um presiacutedio de fato como o da Ilha Grande era na eacutepoca um desejo
108
Afinal aleacutem de saber que laacute estavam alguns de seus companheiros no IPCM existia
uma rotina de presiacutedio normal com direito a jogar futebol no paacutetio a ler jornais e livros
situaccedilatildeo bem diferente da dos DOI-CODI por exemplo que conforme destacado no
capiacutetulo anterior eram oacutergatildeos estritamente de repressatildeo e investigaccedilatildeo localizados em
quarteacuteis cuja prisatildeo era improvisada apenas para cumprir tais funccedilotildees
Oito meses foi o tempo que a gente ficou laacute na Aeronaacuteutica E aiacute o que eacute a
perspectiva de vida Os sonhos da gente Vocecirc quando estaacute preso o seu
sonho eacute fugir realmente mas se vocecirc natildeo tem perspectiva de fuga o seu
sonho eacute o quecirc Eacute ir pra uma coletividade onde estatildeo os outros presos Entatildeo
meu sonho passou a ser esse ir pra Ilha Grande [] laacute eu sabia que os
companheiros estavam laacute sabia que tinha uma lsquopeladinharsquo que a gente podia
bater uma bola campeonato de xadrez livros para ler coisa que esses caras
sacaneavam tanto a gente que nem livros Jornal Raacutedio Essas coisas Nem
pensar Entatildeo meu sonho era Ilha Grande Apesar de ser um lugar
horroroso Era na eacutepoca um presiacutedio de seguranccedila maacutexima isolado (Freire
28 jun 2004)
Fernando permaneceu mais de seis anos na prisatildeo sendo libertado no dia 29 de
setembro de 1976 Ele e os demais companheiros envolvidos no sequestro tiveram suas
condenaccedilotildees embasadas no artigo 28 do Decreto-lei 898 de 29 de setembro de 1969
que alterava a Lei de Seguranccedila Nacional A partir deste artigo ficava estipulada uma
pena de reclusatildeo que poderia variar de 12 a 30 anos para quem devastasse saqueasse
assaltasse sequestrasse incendiasse depredasse ou praticasse qualquer tipo de atentado
pessoal ato de massacre sabotagem ou terrorismo Aleacutem disso no mesmo artigo havia
um paraacutegrafo uacutenico decretando que se a accedilatildeo resultasse em morte a condenaccedilatildeo seria
no miacutenimo agrave prisatildeo perpeacutetua e no maacuteximo agrave morte
Art 28 Devastar saquear assaltar roubar sequestrar incendiar depredar
ou praticar atentado pessoal ato de massacre sabotagem ou terrorismo
109
Pena reclusatildeo de 12 a 30 anos
Paraacutegrafo uacutenico Se da praacutetica do ato resultar morte
Pena prisatildeo perpeacutetua em grau miacutenimo e morte em grau maacuteximo (Decreto-
lei nordm 898 29 set 1969)
A partir desse decreto durante o julgamento de Fernando tentaram condenaacute-lo agrave
prisatildeo perpeacutetua baseando a argumentaccedilatildeo no fato do sequestro do aviatildeo ter acarretado
uma morte no caso a de seu irmatildeo No entanto como esta morte foi ocasionada pela
repressatildeo militar a pena de Fernando ficou estipulada em doze anos de reclusatildeo e mais
adiante reduzida para seis anos
[] tinha uma lei de seguranccedila nova entrado em evidecircncia os caras queriam
dar o exemplo com pena de morte ou prisatildeo perpeacutetua etc e noacutes fomos os
primeiros casos de pena de morte que eles pediram O meu o de Colombo
Jessie Jane - Jane eacute a ex-diretora daqui [Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio
de Janeiro ndash APERJ] [] tinha um artigo vinte e oito que previa pena capital
ou prisatildeo perpeacutetua em caso de morte Soacute que quem morreu foi um dos
nossos o meu irmatildeo foi morto por eles e eles em cima disso tentando
aplicar essa pena soacute que natildeo colou E eu peguei doze anos Colombo pegou
trinta mas era menor aiacute caiu pra dezoito a Jane de vinte e quatro parece
que a Jane caiu pra dezoito E eu como tinha a questatildeo de ser primaacuterio natildeo
sei mais o quecirc enfim quer dizer eu estou resumindo Aiacute por conta disso
fui condenado e fiquei seis anos [] (Freire 28 jun 2004)
Na eacutepoca da entrevista Fernando trabalhava no Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio
de Janeiro (APERJ) onde possuiacutea um cargo de confianccedila conforme explicado
anteriormente Hoje Fernando Palha Freire eacute comerciante responsaacutevel pela cantina do
primeiro piso do preacutedio do Instituto de Filosofia e Ciecircncias Sociais (IFCS) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
110
Padre Maacuterio Prigol26
Padre Maacuterio Prigol nasceu em 12 de novembro de 1928 em Vila Gramado no
municiacutepio de Paulo Bento no Rio Grande do Sul Em 1970 quando foi preso era
assistente da Juventude Operaacuteria Catoacutelica (JOC) e da Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO)
grupos ligados agrave Igreja Catoacutelica criados para atender a problemas de jovens e adultos
trabalhadores 27
Apoacutes o golpe de 1964 organizaccedilotildees como a JOC e a ACO ganharam
forccedila entre muitos trabalhadores devido agraves dificuldades impostas pelo governo militar
para a organizaccedilatildeo em sindicatos
A sede nacional da JOC era aqui no morro de Satildeo Joseacute Operaacuterio atraacutes da
Penitenciaacuteria [antigo Complexo Penitenciaacuterio Frei Caneca] era na favela []
eu trabalhei com a JOC de Satildeo Paulo e depois vim para caacute trabalhava na
Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria que hoje se chama MTC Movimento dos
Trabalhadores Cristatildeos Esse movimento preparava os jovens e adultos dos
sindicatos dos partidos poliacuteticos de todos os setores da sociedade onde haacute
trabalhadores que procuram descobrir os acontecimentos a situaccedilatildeo operaacuteria
e sobretudo melhorar a sua condiccedilatildeo de trabalhador E vamos lembrar que
naquela eacutepoca havia a nova lei [lei 458964] que soacute podia ser diretor do
sindicato quem natildeo tinha nada que comprometesse entatildeo todos aqueles que
lutavam pela greve contra a puniccedilatildeo da greve ou de forma geral pelos
trabalhadores natildeo podiam ser nem diretores de associaccedilotildees nem diretores de
sindicatos [] soacute poderia ser diretor de sindicato quem fosse aprovado pela
Lei de Seguranccedila Nacional (Prigol 28 set 2004)
Padre Maacuterio se destaca entre os ex-prisioneiros entrevistados por aleacutem de ser uma
autoridade de uma instituiccedilatildeo de importacircncia mundial como a Igreja Catoacutelica sua
atuaccedilatildeo ser diferente da dos demais natildeo estando ligada agrave esquerda armada da eacutepoca e
ao meio estudantil Quando foi preso no DOI-CODIRJ em 1970 Padre Maacuterio jaacute natildeo
era mais tatildeo jovem para ser estudante e sua formaccedilatildeo poliacutetica natildeo era a mesma da
26
Entrevista realizada com Padre Maacuterio Prigol em 28 de setembro de 2004 27
A JOC e ACO seratildeo abordadas ainda neste capiacutetulo no item 12 A nova esquerda brasileira
111
geraccedilatildeo que pegava em armas jaacute que sua intenccedilatildeo enquanto assistente da JOC e da
ACO era ajudar os trabalhadores a garantirem os seus direitos e para tanto opunha-se
agraves leis impostas pela ditadura solidificando entre os integrantes dessas associaccedilotildees uma
consciecircncia de reivindicaccedilatildeo classista sem entretanto aspirar propriamente a uma
revoluccedilatildeo socialista
Percebe-se poreacutem que a concomitacircncia entre os periacuteodos prisionais de Padre
Maacuterio e os demais entrevistados natildeo eacute casual Afinal diante da ideia de revoluccedilatildeo
socialista que guiava as accedilotildees armadas que se multiplicavam e ganhavam forccedila apoacutes o
AI-5 a consciecircncia de reivindicaccedilatildeo de classe que a JOC e conforme seraacute abordado
adiante principalmente a ACO disseminavam aos seus trabalhadores eram
interpretadas como ameaccediladoras pela repressatildeo Uma vez que as organizaccedilotildees
guerrilheiras tinham por meta justamente conseguir apoio da classe trabalhadora para
concluiacuterem o plano de revoluccedilatildeo socialista e o trabalho da JOC e da ACO vinha unindo
e organizando uma percepccedilatildeo de classe justamente entre os trabalhadores havia uma
forte propensatildeo que futuramente tais trabalhadores se unissem agrave esquerda em prol da
revoluccedilatildeo socialista
Diante disso explica-se o fato de Padre Maacuterio ter sido preso em meados de 1970
pelos agentes de uma das turmas de busca e apreensatildeo do DOI-CODIRJ durante a
invasatildeo feita ao Instituto Brasileiro de Estudos Sociais (IBRAES) que funcionava na
Casa dos Jesuiacutetas localizada na Rua Bambina no bairro de Botafogo Ele outros
integrantes da JOC e os demais estudantes que assistiam ao curso de desenvolvimento
social foram levados ao DOI-CODIRJ Este curso tinha duraccedilatildeo de aproximadamente
oito meses ao longo dos quais os alunos adquiriam informaccedilotildees sobre o sistema
poliacutetico e econocircmico do Brasil
112
Dias antes dos agentes chegarem ateacute o curso toda a direccedilatildeo nacional da JOC
havia sido presa inclusive dois alunos do IBRAES que foram levados ao DOI-
CODIRJ onde possivelmente sob tortura passaram aos agentes da turma de
interrogatoacuterio preliminar de plantatildeo informaccedilotildees sobre o curso que estava ocorrendo na
Rua Bambina Assim quando os agentes do DOI-CODIRJ chegaram ao local
prenderam todos que estavam participando do curso levando primeiro os militantes e
depois os padres Entre eles estavam Padre Maacuterio e Padre Agostinho de Freitas na
eacutepoca assistente latino-americano da JOC
Noacutes fomos presos natildeo por causa do curso mas porque esses elementos do
DOI prenderam esse pessoal da JOC considerados subversivos e
procuravam um dos assistentes que jaacute tinha sido acusado em Belo Horizonte
de ser subversivo o Padre Manuel de Jesus Ele foi assistente nacional da
JOC mas na eacutepoca natildeo era mais assistente [] entatildeo para prender Manuel
de Jesus foram prendendo toda a direccedilatildeo nacional da JOC que foram
torturados barbaramente torturas como por exemplo os homens
sexualmente em todos os aspectos foram torturados Eram quatro jovens
homens e quatro jovens mulheres e entre esses jovens havia dois alunos do
IBRAES onde eu fazia curso onde vaacuterios desses militantes da JOC tambeacutem
participavam inclusive o Manuel de Jesus Entatildeo no IBRAES os militantes
da JOC foram levados presos primeiro e noacutes padres depois e mais ainda
foi preso o assistente latino-americano da JOC Padre Augustinho Freitas
que hoje trabalha em Nova Iguaccedilu Entatildeo todos noacutes fomos presos []
(Prigol 28 set 2004)
Ao ser preso Padre Maacuterio foi levado diretamente para o DOI-CODIRJ onde
juntamente com os outros padres permaneceu por 54 dias enquanto os jovens
militantes da JOC permaneceram por cerca de trecircs meses Por ser padre sua prisatildeo foi
interrompida pela intervenccedilatildeo de cardeais como explica no trecho a seguir destacado
de seu livro autobiograacutefico
113
D Trevisan D Waldir Dom Aloiacutesio e Padre Celso Pinto que estava ligado
ao Secretariado dos Leigos da CNBB [Conferecircncia Nacional de Bispos do
Brasil] informaram a nossa situaccedilatildeo aos cardeais Mais tarde com a
libertaccedilatildeo de alguns de noacutes realizamos um encontro para discutirmos as
humilhaccedilotildees que sofremos (Prigol 2003 117)
Na eacutepoca em que a entrevista foi concedida Padre Maacuterio aos 75 anos era
missionaacuterio saletino trabalhava na Paroacutequia de Nossa Senhora da Salette no Catumbi e
ainda ocupava o cargo de assistente do MTC (Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos)
antiga Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) Atualmente aos 83 anos Padre Maacuterio ainda
permanece ativamente nessas mesmas funccedilotildees
Ana de Miranda Batista28
Ana Bursztyn nome de solteira de Ana de Miranda Batista nasceu no Rio de
Janeiro em 30 de dezembro de 1948 Era militante estudantil enquanto cursava
Farmaacutecia na UFRJ Foi presa pela primeira perto do clube Botafogo de Futebol e
Regatas localizado na Avenida Venceslau Braacutes no bairro de Botafogo em junho de
1968 juntamente com trezentos estudantes Ela e os demais haviam participado de uma
assembleia estudantil na reitoria da UFRJ no campus da Praia Vermelha que
reivindicava mais verbas do governo federal para o ensino superior Os policiais a
levaram para o DOPS libertando-a no dia seguinte Eleita em outubro de 1968
representante dos estudantes de seu curso participou do Congresso da Uniatildeo Nacional
dos Estudantes (UNE) em Ibiuacutena quando foi novamente capturada pela poliacutecia com
mais de 800 estudantes permanecendo pouco mais de uma semana em reclusatildeo
Ateacute 1968 eu fazia parte do Movimento Estudantil do Diretoacuterio da Faculdade
tudo que tinha de movimento estudantil fazia parte da minha preocupaccedilatildeo
28
Entrevista realizada com Ana de Miranda Batista em 17 de novembro de 2004
114
Em junho a gente foi preso no campus de Botafogo [] Nesse dia em que eu
fui presa pela primeira vez foi um dia que cerca de trezentos estudantes
foram presos porque como a gente estava batalhando por mais verbas era
um dia em que o Conselho Universitaacuterio estava reunido na Praia Vermelha
jaacute que a reitoria era na Praia Vermelha [] laacute pelas tantas veio uma notiacutecia
de que tinham cercado a universidade [] e a gente natildeo estava esperando
isso a gente fazia umas passeatas na cidade mas a barra natildeo era pesada []
Aiacute o reitor decidiu sair na frente dos estudantes e atraacutes dele saiacuteram as
lideranccedilas das faculdades - eu era a lideranccedila da minha faculdade - e depois
uns trezentos estudantes Aiacute eles comeccedilaram a atirar para baixo para o chatildeo
[] e a gente saiu correndo sem enxergar nada e a poliacutecia dando porrada e a
gente sem enxergar nada (risos) Fomos entatildeo andando em direccedilatildeo ao tuacutenel
quando algueacutem disse ldquo- Vem por aqui por aquirdquo Sem saber que era uma
cilada fomos quase os trezentos para laacute Quando a gente entrou ldquo- Todo
mundo pro chatildeordquo Fomos presos no DOPS naquele dia e passamos a noite laacute
[] Daiacute eacute que a gente comeccedilou a fazer as grandes passeatas na cidade ateacute
que comeccedilou a ter passeata sempre mobilizaccedilotildees [] Em outubro de 68 a
gente foi para o Congresso de Ibiuacutena em Satildeo Paulo que foi um congresso
da UNE que estava clandestina na eacutepoca onde fomos todos presos Foi aiacute eacute
que ficou preso natildeo sei cerca de oitocentos estudantes Eles ateacute fizeram um
aacutelbum ficharam todo mundo Esse foi o aacutelbum que eles mostravam na
imprensa e nos cartazes depois porque evidentemente quando a barra
pesou metade das lideranccedilas do movimento estudantil foi para a luta armada
[] mas a gente ficou uma semana preso e depois de uma semana ou dez
dias a gente saiu Mas a barra comeccedilou a pesar mesmo a partir de 13 de
dezembro com o AI-5 [] (Batista 17 nov 2004)
Apoacutes o decreto do AI-5 Ana assim como Antocircnio se aproximou de alguns
integrantes do PCBR poreacutem diferentemente dele natildeo chegou a militar no partido
tornando-se tal como Dulce e Fernando militante da ALN Em Satildeo Paulo para onde
fugiu quando estava sendo perseguida Ana foi presa no dia 14 de julho de 1970 dentro
do magazine Mappin no centro da cidade Na situaccedilatildeo Ana portava uma arma e
115
carregava carteira de identidade falsa pela qual se chamava Naacutedia Zanzin conforme
descreve na passagem abaixo
Quando eu saiacute da casa que a gente estava o Bacuri [codinome de Eduardo
Collen Leite seu companheiro de organizaccedilatildeo] me deu uma arma e dezoito
caacutepsulas porque eu estava sendo procurada [] eu estava com uma carteira
de identidade falsa me chamava Naacutedia Zanzin [] fui presa entatildeo com
nome falso e foi um bafafaacute o cara quis me tirar a arma da matildeo e entatildeo eu
reagi teve um tiro [] Naquele dia eu tinha perdido o lsquopontorsquo [ponto de
encontro com outro militante] porque eu fiquei conversando com a minha
amiga e cheguei atrasada O ponto era perto do centro da cidade e como eu
tinha que esperar duas ou trecircs horas ateacute o proacuteximo encontro eu fiquei
rodando por laacute onde entrei numa loja grande como se fosse a antiga Mesbla
[] chamava-se Mappin Laacute eu fiquei comprando coisas para maquiagem
para mudar a minha cara [] Laacute dentro eles tinham vaacuterios seguranccedilas e um
ou dois deles ficaram em duacutevida se tinham reconhecido ou natildeo quem eu era
e se aproximaram de mim Eu estava na fila para pagar quando se eles se
aproximaram e disseram ldquo- Essas coisas a senhora paga em outro lugarrdquo Aiacute
eu ldquo- Mas eu estou na fila para pagarrdquo Aiacute eles ldquo- Vem com a gente que a
senhora vai pagar em outro lugarrdquo Entatildeo entrei no elevador e fui parar no
seacutetimo andar na parte de seguranccedila da loja Laacute eles queriam que eu me
explicasse Eu tirei tudo o que eu tinha da bolsa eu fui tirando e mostrei para
eles que estava com dinheiro na bolsa e estava na fila para pagar Aiacute eles ldquo-
Natildeo natildeo eacute isso natildeo mas a gente precisa revistarrdquo E eu fui tirando tudo da
bolsa para ver se eles natildeo me revistavam mas eles ldquo- Natildeo a gente vai
revistarrdquo Aiacute comeccedilaram a lutar comeccedilou um pega bolsa e tira bolsa que eu
natildeo queria porque a arma estava no fundo da bolsa Aiacute eu falava ldquo- Natildeo
mas natildeo precisa estaacute tudo aquirdquo Mas natildeo era isso natildeo era porque eles
achavam que eu estava roubando eles desconfiavam de alguma coisa e natildeo
sabiam bem o quecirc e resolveram me revistar Aiacute eu reagi Depois disso
chamaram o delegado e me botaram amarrada na cadeira laacute em cima no
andar da seguranccedila da loja (Batista 17 nov 2004)
116
Esse mesmo episoacutedio foi retratado dois dias depois em um trecho do Jornal da
Tarde de 16 de julho de 1970 conforme Elio Gaspari destaca em seu livro As Ilusotildees
Armadas a Ditadura Escancarada (2002)
[] Ana Bursztyn ex-estudante de farmaacutecia presa [] no magazine Mappin
Um vigilante desconfiara ao vecirc-la colocar cosmeacuteticos numa sacola (da loja)
e levou-a a uma sala onde estava o chefe de seguranccedila Ana meteu a matildeo na
bolsa puxou um Taurus 32 feriu-o com um tiro na perna mas natildeo
conseguiu fugir (Gaspari 2002 299-300)
De fato no momento de sua prisatildeo Ana resistiu e disparou um tiro atingindo no
peacute um dos seguranccedilas da loja que era policial militar Naquele dia Ana foi levada presa
sem saber o que de fato tinha ocorrido com aquele homem Assim em novembro de
1970 mecircs do aniversaacuterio da ldquoIntentona Comunistardquo de 1935 Ana ainda presa leu em
um jornal uma relaccedilatildeo de mortos pelos terroristas divulgada pelos oacutergatildeos de seguranccedila
do governo Laacute o homem em quem havia atirado estava listado como morto e ela como
sua assassina Ana passou a carregar a culpa de tecirc-lo matado ateacute que algum tempo
depois ao vecirc-lo assistindo a seu julgamento constatou que o seguranccedila havia
sobrevivido e que aquela notiacutecia era mais um dos boatos que o governo na eacutepoca
costumava veicular na imprensa a fim de manipular a opiniatildeo puacuteblica
Depois disso durante anos quando eu estava presa no dia da Intentona
Comunista que eu acho que eacute novembro de 1935 colocavam nos jornais em
todos os jornais uma relaccedilatildeo dos mortos pelos terroristas entre aspas que
eacuteramos noacutes [] eu li que o cara laacute Izidoro Zambaldi foi morto pela
terrorista Ana Bursztyn Ele na hora da briga eu briguei com ele ele recebeu
um tiro acho que no peacute esbarrou assim no peacute ele ficou uns dias internado e
saiu ele estava no meu julgamento na audiecircncia Quer dizer e durante
muito tempo eu achando que tinha o matado Era um dos que eles
117
contabilizavam como mortos por noacutes E provavelmente ele estaacute aiacute vivo ateacute
hoje [] (Batista 17 nov 2004)
Ana foi presa portanto por ter sido reconhecida por um policial que tambeacutem
trabalhava como seguranccedila para a loja Mappin Provavelmente isso ocorreu pelo fato
dos organismos de repressatildeo colarem pelos muros da cidade bem como distribuiacuterem
nos estabelecimentos privados muitos folhetos e cartazes com fotos dos ldquoterroristas
procuradosrdquo pela ditadura militar entre os quais Ana A divulgaccedilatildeo de tais fotos era
mais uma forma que os agentes da repressatildeo utilizavam para cercar os suspeitos Assim
qualquer pessoa poderia denunciar e qualquer policial poderia prender tais suspeitos No
entanto caso a prisatildeo natildeo fosse feita pelos agentes do DOI-CODI da respectiva Regiatildeo
Militar obrigatoriamente depois de preso o cidadatildeo considerado ldquosubversivordquo deveria
ser para laacute transferido conforme ocorreu com Ana Afinal como jaacute analisado no
primeiro capiacutetulo o DOI-CODI de cada Regiatildeo concentrava as informaccedilotildees sobre
seguranccedila interna de cada aacuterea portanto laacute existiam as condiccedilotildees necessaacuterias para que a
extraccedilatildeo e anaacutelise das informaccedilotildees que os prisioneiros detivessem fossem trabalhadas
de forma mais eficiente
Diante disso Ana nos primeiros dias de prisatildeo passou pelo DOPS-SP e em
seguida pelo DOI-CODISP sendo posteriormente transferida para o DOI-CODIRJ
Laacute permaneceu por um mecircs voltando para DOI-CODISP passando ainda pelo
DOPSSP Depois de julgada foi levada para o Recolhimento de Presos Tiradentes ndash
localizado na Rua Tiradentes na cidade de Satildeo Paulo ndash para o Presiacutedio de Mulheres ndash
localizado no antigo Complexo Penitenciaacuterio do Carandiru tambeacutem na cidade de Satildeo
Paulo ndash e ainda passou por delegacias das poliacutecias Federal do Rio de Janeiro e de Satildeo
Paulo pelo Presiacutedio do Forte de Copacabana no Rio de Janeiro e por fim pelo
Depoacutesito de Presas Satildeo Judas Tadeu localizado no preacutedio do DOPS-RJ Permaneceu
118
presa por cerca de quatro anos conseguindo liberdade condicional em fevereiro de
1974
Ana de Miranda Batista nome que adotou depois de casada eacute farmacecircutica
bioquiacutemica e na eacutepoca em que concedeu a entrevista era ativista do Grupo Tortura
Nunca MaisRJ (GTNMRJ)
Ceciacutelia Coimbra29
Ceciacutelia Maria Bouccedilas Coimbra nasceu no Rio de Janeiro em 16 de marccedilo de 1941
Ao ingressar no curso de Histoacuteria da Universidade do Brasil atual UFRJ Ceciacutelia que
era por descendecircncia familiar ldquoconservadora e catoacutelicardquo em suas proacuteprias palavras
comeccedilou a questionar-se poliacutetica e religiosamente Iniciou assim sua militacircncia no
Partido Comunista Brasileiro (PCB) clandestino na eacutepoca Entre 1962 e 1963
trabalhou em um programa de alfabetizaccedilatildeo de adultos pelo meacutetodo do educador Paulo
Freire fato que visivelmente a marcou muito Apoacutes o golpe de 64 Ceciacutelia continuou
militando no Partido Comunista poreacutem com muitas discordacircncias ateacute quando comeccedilou
a fazer parte de uma das dissidecircncias do referido partido a Dissidecircncia Comunista da
Guanabara a que ela se refere por ldquoPC da Guanabarardquo
[] eu vim de uma famiacutelia muito tradicional extremamente tradicional meu
pai era um conservador era um cara que era portuguecircs a favor do regime
ditatorial de Salazar A minha matildee era extremamente catoacutelica Tanto que
quando eu entrei para faculdade para fazer Histoacuteria eu era uma pessoa
extremamente conservadora Era lacerdista a favor do Carlos Lacerda
contra Joatildeo Goulart contra os comunistas A minha famiacutelia era muito
anticomunista E quando eu entrei para a faculdade eu ateacute falei isso na
entrevista para a lsquoCaros Amigosrsquo [sua entrevista havia sido capa da Revista
Caros Amigos naquele mesmo mecircs] comecei a ter contato com algumas
29
Entrevista realizada com Ceciacutelia Maria Bouccedilas Coimbra em 30 de novembro de 2004
119
pessoas que eram comunistas e eram pessoas muito interessantes muito
inteligentes e eram pessoas com as quais as duacutevidas que eu tinha com
relaccedilatildeo agrave religiatildeo eu comecei a tirar Porque eu comecei a ler marxismo aiacute
eu comecei a ler materialismo histoacuterico materialismo dialeacutetico e eu comecei
a ver que de repente a religiatildeo era uma coisa produzida pelo proacuteprio
homem [] Eu comecei entatildeo em 6263 a participar de reuniatildeo do Partido
Comunista que era clandestino na eacutepoca e acabei entrando para o Partido
Aiacute comecei a namorar um cara que depois se tornou meu marido e foi preso
comigo que haacute pouco tempo eu ateacute me separei [] Ele jaacute era do Partido
Comunista haacute muito tempo a famiacutelia dele era toda uma famiacutelia formada por
comunistas ao contraacuterio da minha (risos) Em 64 veio o golpe mas aiacute eu
antes disso eu acho que tem a ver porque isso para mim tambeacutem eacute
militacircncia eu fui trabalhar com um programa de alfabetizaccedilatildeo de adultos
pelo meacutetodo Paulo Freire eu trabalhei com o proacuteprio Paulo Freire em 63 um
pouco antes do golpe [] Entatildeo depois do golpe eu continuei militando no
Partido mas jaacute com muitas discordacircncias quer dizer discordava de muita
coisa e aiacute comecei a fazer parte do que se chamou de Dissidecircncia do PC da
Guanabara (Coimbra 30 nov 2004)
Entretanto Ceciacutelia comeccedilou a discordar tanto da luta armada que a Dissidecircncia
Comunista da Guanabara a partir de 1968 veio a adotar quanto do caminho paciacutefico e
institucional defendido pelo PCB se afastando de ambos Dessa forma em 1968
Ceciacutelia Coimbra natildeo militava em nenhuma organizaccedilatildeo mas continuou a manter
contato com muitos companheiros que se tornaram guerrilheiros Destaca-se portanto a
partir do caso especiacutefico de Ceciacutelia como a histoacuteria oral eacute importante para que a
complexidade da militacircncia poliacutetica da eacutepoca seja compreendida Afinal por meio dessa
metodologia torna-se possiacutevel perceber que nem todos os estudantes que estiveram
ligados ao movimento estudantil e agraves dissidecircncias do Partido Comunista em meio ao
arrocho da repressatildeo acompanharam a decisatildeo de partir para a luta armada tomada por
muitas dissidecircncias e nem mesmo resolveram retornar agrave luta paciacutefica travada pelo
Partido Comunista Logo a histoacuteria oral permite atraveacutes dos depoimentos dos
120
militantes daquele tempo observar que tal como Ceciacutelia muitos desses militantes
ficaram principalmente a partir do AI-5 agrave margem da atuaccedilatildeo poliacutetica apesar de natildeo
terem abandonado os ideais de esquerda
Quando foi presa em 1970 Ceciacutelia natildeo estava diretamente relacionada a nenhuma
organizaccedilatildeo esquerdista entretanto como ainda relacionava-se com muitos militantes
guerrilheiros e algumas vezes ateacute mesmo abrigando-os em sua casa tinha informaccedilotildees
consideradas relevantes para os agentes do DOI-CODIRJ o que veio a ocasionar sua
prisatildeo Como vivia de forma legalizada com famiacutelia e emprego Ceciacutelia tinha passado
juntamente com seu marido a ajudar seus companheiros clandestinos Sua casa na
eacutepoca localizada no bairro do Engenho de Dentro na zona norte do Rio de Janeiro
passou a servir como esconderijo para alguns amigos que diferentemente de Ceciacutelia e
Novaes haviam continuado militantes da Dissidecircncia Comunista da Guanabara mesmo
apoacutes sua opccedilatildeo pela luta armada Entre os amigos que receberam guarida em sua casa
estavam Franklin Martins e Fernando Gabeira ambos envolvidos no sequestro do
embaixador norte-americano
Gabeira inclusive esteve hospedado na casa do casal logo apoacutes a libertaccedilatildeo do
referido embaixador sequestrado em setembro de 1969 Por conta disso em agosto de
1970 Ceciacutelia Coimbra e seu marido Joseacute Novaes foram denunciados e presos
[] eu ajudava muito esses companheiros porque eu tinha vida legal eu jaacute
era professora tinha casa tinha filho e meu marido era professor de
Filosofia entatildeo a nossa casa era onde as pessoas se escondiam passavam
uma noite passavam dias escondidos Por exemplo o pessoal do Movimento
estudantil o Franklin Martins o Fernando Gabeira [] todos eles passaram
por laacute entatildeo a gente ajudava muito [] Em 1969 o pessoal do MR-8 que
eram companheiros nossos amigos e tal vieram nos procurar para perguntar
se noacutes poderiacuteamos dar um apoio a um ato a uma accedilatildeo como se dizia na
eacutepoca a uma accedilatildeo que ia acontecer Mas a gente natildeo sabia que era o
sequestro do embaixador E aiacute depois de um tempo a gente ficou com o
121
Fernando Gabeira [] Eacute oacutebvio que depois a gente soube porque foi depois
que eles entregaram o embaixador que eles se esconderam laacute em casa E aiacute a
televisatildeo dava e a gente sacou que o Gabeira estava ali com a gente porque
natildeo tinha como guardar seguranccedila porque jaacute estava na televisatildeo a cara de
todos eles E a gente guardou ele laacute A gente soube que ele tinha participado
do sequestro do embaixador e conversaacutevamos muito sobre isso Ele ficou
algum tempo laacute em casa e depois saiu Um tempo depois a gente foi
denunciado a casa estava sendo observada e a gente natildeo sabia []
(Coimbra 30 nov 2004)
Ceciacutelia e Joseacute Novaes apoacutes terem a casa onde moravam cercada por agentes do
DOPSRJ foram para laacute levados e laacute permaneceram por dois dias No DOPS Ceciacutelia
ficou sob interrogatoacuterio por um dia e meio para que esclarecesse a origem de um
documento encontrado no interior de sua casa No segundo dia de prisatildeo foi levada para
o presiacutedio feminino Satildeo Judas Tadeu localizado no proacuteprio preacutedio do DOPSRJ Apoacutes
permanecerem dois dias e meio no DOPS Ceciacutelia e Novaes foram transferidos para o
DOI-CODIRJ
Ceciacutelia Coimbra ficou cerca de trecircs meses presa no DOI-CODIRJ sendo
libertada em novembro de 1970 Natildeo foi transferida para nenhum outro presiacutedio sendo
libertada diretamente do DOI-CODIRJ por meio da menagem conforme analisado no
primeiro capiacutetulo Sendo assim uma vez que natildeo foi constatado nenhum envolvimento
direto de Ceciacutelia com alguma accedilatildeo ldquosubversivardquo ela estava impedida de sair da cidade
ateacute a data de seu julgamento e durante esse iacutenterim teve que comparecer ao DOI-
CODIRJ regularmente para se apresentar e responder ao Inqueacuterito Policial Militar
(IPM)
Na eacutepoca da entrevista Ceciacutelia aleacutem de vice-presidente do GTMNRJ lecionava
no curso de Psicologia da UFF Atualmente continua com essas mesmas atividades
poreacutem no GTNMRJ ocupa hoje o cargo de presidente
122
12 A nova esquerda brasileira
Para melhor entender as memoacuterias dos ex-prisioneiros poliacuteticos aqui entrevistados
eacute importante caracterizar as organizaccedilotildees de esquerda nas quais os seis militavam
quando foram presos no DOI-CODIRJ Afinal a opccedilatildeo de atuar atraveacutes de certas
organizaccedilotildees estaacute diretamente relacionada com a percepccedilatildeo de mundo que cada um
tinha e tambeacutem com a ousadia a coragem as frustraccedilotildees por que passaram e com tantos
outros sentimentos e sensaccedilotildees que certamente influiacuteram diretamente na construccedilatildeo da
memoacuteria de cada um desses indiviacuteduos sobre o periacuteodo militar
Como jaacute destacamos ao traccedilarmos o perfil dos entrevistados as organizaccedilotildees em
que os estudantes Antocircnio Leite Fernando Palha Dulce Pandolfi e Ana de Miranda
militavam ao serem presos eram o PCBR e a ALN grupos poliacuteticos de esquerda ligados
ao combate armado Jaacute Padre Maacuterio era assistente da ACO e da JOC ndash associaccedilotildees
criadas para atender demandas de jovens e adultos trabalhadores e catoacutelicos Ceciacutelia
Coimbra era a uacutenica que natildeo era diretamente ligada a alguma organizaccedilatildeo na eacutepoca de
sua prisatildeo mas sua participaccedilatildeo anterior na Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-
GB) influenciou de forma indireta em sua prisatildeo e por isso merece ser aqui
considerada A partir disso analisa-se nesta seccedilatildeo de trabalho o PCBR a ANL a JOC a
ACO e a Dissidecircncia Comunista da Guanabara que passou a chamar-se MR-8
Diferentemente da JOC e da ACO que eram associaccedilotildees ligadas ao trabalho
social feito pela Igreja Catoacutelica o PCBR a ANL a DI-GBMR-8 faziam parte do que
vinha sendo nomeado desde a deacutecada de 1960 de nova esquerda brasileira Essa nova
esquerda era formada pelas dissidecircncias do Partido Comunista surgindo como forma de
buscar caminhos alternativos para a transformaccedilatildeo social e segundo Maria Paula
Arauacutejo em A utopia fragmentada (2000) natildeo era um fenocircmeno tipicamente brasileiro
123
ocorrendo concomitantemente em outras partes do mundo como Alemanha Franccedila
Itaacutelia Estados Unidos e Meacutexico 30
As organizaccedilotildees desta nova esquerda brasileira aleacutem de serem marcadas pelo
signo da dissidecircncia e pela busca de caminhos alternativos possuiacuteam outras ideias em
comum Havia entre elas uma forte desconfianccedila em relaccedilatildeo agraves formas tradicionais de
atuaccedilatildeo e representaccedilatildeo poliacuteticas jaacute que os tradicionais partidos comunistas na
avaliaccedilatildeo desses militantes eram travados por complicados aparatos burocraacuteticos Em
oposiccedilatildeo a essa linha dita ldquoconservadorardquo valorizaram a accedilatildeo revolucionaacuteria imediata
Aleacutem disso a maioria recusava a alianccedila com ldquofraccedilotildees das classes dominantesrdquo forma
como viam o Movimento Democraacutetico Brasileiro (MDB) na eacutepoca uacutenico partido de
oposiccedilatildeo consentido pela ditadura militar Enquanto o PCB continuava mantendo o
programa de via paciacutefica para o socialismo a dita nova esquerda defendia a luta armada
como a principal forma de atuaccedilatildeo naquele momento apesar de divergirem entre si
sobre as estrateacutegias a seguir 31
As divergecircncias internas no PCB atingiram o aacutepice por ocasiatildeo dos preparativos
para o VI Congresso do partido convocado para dezembro de 1967 Os debates acerca
das Teses para Discussatildeo veiculadas na Voz Operaacuteria publicaccedilatildeo clandestina do
Comitecirc Central do PCB causaram muita polecircmica Essas Teses propunham que a
derrota da ditadura deveria ser alcanccedilada por meio da alianccedila com setores progressistas
incluindo a burguesia e da participaccedilatildeo do PCB na poliacutetica institucional reafirmando a
opccedilatildeo pelo caminho paciacutefico para a revoluccedilatildeo social Tais Teses geraram uma total
insatisfaccedilatildeo dos setores oposicionistas do PCB que se revoltaram contra o Comitecirc
Central do chamado Partidatildeo Assim sem a participaccedilatildeo dos dissidentes internos o
PCB realizou o seu VI Congresso e reafirmou a ideia trazida pelas Teses
30
Para mais informaccedilotildees ver Arauacutejo 2000 35-72 31
Para mais informaccedilotildees ver Aaratildeo Reis Saacute 2006 15
124
Pelos jornais da grande imprensa os dissidentes souberam do Congresso e de suas
resoluccedilotildees dentre as quais a que expulsava do partido grandes lideranccedilas da Corrente
Revolucionaacuteria Esta corrente do Partidatildeo divergia de seu Comitecirc Central liderado por
Luiacutes Carlos Prestes e havia se organizado nacionalmente sob a denominaccedilatildeo de
Corrente Revolucionaacuteria Entre suas grandes lideranccedilas expulsas a partir das resoluccedilotildees
do VI Congresso do PCB estavam Carlos Marighella liacuteder da Corrente em Satildeo Paulo
Maacuterio Alves liacuteder em Minas Gerais Jacob Gorender liacuteder no Rio Grande do Sul e
Apolocircnio de Carvalho lideranccedila no antigo Estado do Rio de Janeiro32
Dessa forma em 1968 os principais membros da Corrente Revolucionaacuteria
estavam definitivamente afastados do PCB e juntamente com os militantes que os
seguiram se organizaram e formaram outras organizaccedilotildees poliacuteticas o PCBR e a ALN
Os liacutederes Apolocircnio de Carvalho Jacob Gorender e Maacuterio Alves formaram o Partido
Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR) partido clandestino de esquerda em que
Antocircnio Leite militava ao ser preso e o liacuteder Carlos Marighella fundou a Accedilatildeo
Libertadora Nacional (ALN) organizaccedilatildeo clandestina de esquerda adotada por Dulce
Pandolfi Fernando Palha e Ana Batista
Por outro lado existia outra vertente de divergecircncias internas do PCB as
chamadas Dissidecircncias mais conhecidas pela sigla DI formadas basicamente por
setores estudantis Existiam dissidecircncias em vaacuterios estados brasileiros mas seria a da
Guanabara onde Ceciacutelia Coimbra militou anos antes de ser presa que alcanccedilaria maior
destaque no cenaacuterio poliacutetico e estudantil da deacutecada de 1960
32
Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009
125
Dissidecircncia Comunista da Guanabara (DI-GB)
As Dissidecircncias Universitaacuterias surgiram no periacuteodo preacute-1964 em meio a diversas
divergecircncias que abalaram o PCB principalmente em suas bases universitaacuterias Em
1964 esses estudantes divergentes se agruparam e comeccedilaram a reunir militantes de
diferentes universidades a fim de articular posiccedilotildees poliacuteticas que natildeo se afinavam com o
que as direccedilotildees do partido haviam estabelecido ndash no jargatildeo comunista eram as
chamadas ldquofraccedilotildeesrdquo As ldquofraccedilotildeesrdquo eram de acordo com o estatuto proibidas dentro do
partido logo eram executadas secretamente A ldquofraccedilatildeordquo da Guanabara foi inicialmente
constituiacuteda por estudantes comunistas das faculdades de filosofia e de direito hoje
pertencentes agrave UFRJ
Em 1965 as divergecircncias entre os dissidentes e a direccedilatildeo do PCB na Guanabara
comeccedilaram a se mostrar evidentes A orientaccedilatildeo do partido era para que seus militantes
fizessem campanha para o candidato a governador da Guanabara Francisco Negratildeo de
Lima indicado pela alianccedila PTB-PSD considerada de oposiccedilatildeo ao regime militar Com
a crescente radicalizaccedilatildeo do movimento estudantil a Dissidecircncia foi ganhando forccedila
Nas eleiccedilotildees parlamentares de 1966 apesar da orientaccedilatildeo do Partidatildeo para que sua
militacircncia votasse em determinados candidatos os dissidentes da Guanabara resolveram
fazer campanha pelo voto nulo ocasionando o rompimento definitivo entre os dois A
antiga ldquofraccedilatildeordquo passaria a ser a Dissidecircncia Comunista da Guanabara uma nova
organizaccedilatildeo independente com orientaccedilatildeo para a luta armada e com ampla influecircncia
no movimento estudantil carioca 33
Entretanto em 1967 a Dissidecircncia Comunista da Guanabara enfrentaria uma
grave crise poliacutetica interna Naquele momento muitos militantes da organizaccedilatildeo
apresentavam posiccedilotildees divergentes sobre quais rumos ela deveria trilhar Alguns
33
Para mais informaccedilotildees ver Silva 2009
126
achavam que a Dissidecircncia deveria se integrar agrave Corrente Revolucionaacuteria que ainda
estava lutando internamente para mudar o PCB outros almejavam consolidar a
Dissidecircncia Comunista da Guanabara de forma a tornaacute-la uma organizaccedilatildeo nacional
reunindo nela dissidecircncias que ainda deveriam se desvincular do Partidatildeo e um terceiro
grupo a se juntar ao Partido Comunista do Brasil (PC do B) 34
Afinal a partir do V Congresso do PCB realizado em setembro de 1960 sob
influecircncia da revisionismo aprovado no XX Congresso do Partido Comunista Sovieacutetico
tinha sido aprovada uma nova resoluccedilatildeo poliacutetica para o partido Esta apesar da
resistecircncia dos opositires internos que seguiam a linha de pensamento marxista-
leninista modificava o programa do PCB tornando a nova taacutetica do partido a conquista
de um governo nacionalista e democraacutetico por meio de um processo eleitoral e da
pressatildeo de massas excluindo assim a via armada de seu programa Dessa forma foram
afastados da direccedilatildeo do PCB a maioria de seus opositores e eleito um Comitecirc Central
composto em grande parte por destacados revisionistas como Luiacutes Carlos Prestes
Logo em 18 de fevereiro de 1962 a maior parte dos comunistas que se opunham agrave nova
linha do PCB se separaram do partido e atraveacutes de uma Conferecircncia Extraordinaacuteria
aprovaram um programa que defendia a estrateacutegia chinesa de guerra popular
prolongada se aproximando do maoiacutesmo e adotaram a sigla PC do B (Partido
Comunista do Brasil) Em 1969 o PC do B deflagrou na regiatildeo de Tocantins um foco
guerrilheiro que ficou conhecido como Guerrilha do Araguaia esta foi neutralizada
pelos militares no final de 1973 atraveacutes do extermiacutenio de grande parte dos militantes
envolvidos
Em 1967 um ano depois de se tornar independente a resoluccedilatildeo para a crise
interna da Dissidecircncia Comunista da Guanabara foi o seu desmembramento Apoacutes este
34
Para mais informaccedilotildees ver Aaratildeo Reis 1990 e Ridenti 1993
127
desmembramento e duas conferecircncias internas realizadas em 1968 a Dissidecircncia
Comunista da Guanabara consolidou-se novamente como organizaccedilatildeo autocircnoma tendo
suas lideranccedilas agrave frente das grandes manifestaccedilotildees estudantis ndash que chegavam ao auge
de mobilizaccedilatildeo ndash e conquistando espaccedilo no cenaacuterio nacional Com o seu crescimento
junto ao movimento estudantil a DI-GB se ampliou notavelmente Apoacutes a decretaccedilatildeo
do AI-5 que tornava ilegal o movimento poliacutetico-estudantil a DI-GB organizou em
1969 uma nova conferecircncia reafirmando o seu empenho revolucionaacuterio de caraacuteter
comunista assumindo oficialmente a partir de entatildeo sua opccedilatildeo pela luta armada
Nessa eacutepoca Ceciacutelia Coimbra jaacute havia saiacutedo da organizaccedilatildeo e natildeo participava de
nenhum outro grupo de esquerda apesar de manter contato com muitos companheiros
que continuaram na militacircncia Afinal como abordado durante a anaacutelise de sua
trajetoacuteria Ceciacutelia preferiu se desligar por natildeo concordar nem com a poliacutetica paciacutefica do
entatildeo Partidatildeo e nem com a luta armada das demais organizaccedilotildees inclusive da
Dissidecircncia Comunista da Guanabara pois segundo ela achava que estas estavam
muito desvinculadas da sociedade e por isso natildeo teriam ecircxito
[] eu achava que natildeo era por aiacute eu discordava muito da questatildeo da luta
armada mas eu tambeacutem discordava da posiccedilatildeo do Partido Comunista que
era a favor do caminho paciacutefico a favor do caminho institucional parece
muito o PT de hoje a questatildeo da luta institucional que natildeo era pegando em
armas que natildeo era pela luta armada Eu natildeo concordava nem com um nem
com outro porque o pessoal da luta armada estava totalmente desvinculado
da sociedade brasileira entatildeo eu me afastei mas eu continuei com muito
contato com vaacuterios companheiros e aiacute comeccedilou 67-68 [] (Coimbra 30
nov 2004)
Em setembro de 1969 a Dissidecircncia Comunista da Guanabara juntamente com a
ALN elaborou e promoveu o sequestro do embaixador norte-americano no Brasil
128
Charles Burke Elbrick A accedilatildeo teve ecircxito e os envolvidos conseguiram trocar o
embaixador por quinze prisioneiros poliacuteticos entre eles importantes liacutederes estudantis
da antiga DI-GB Durante esse sequestro conforme explicado anteriormente os
militantes da entatildeo Dissidecircncia resolveram mudar o nome da organizaccedilatildeo para
Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro (MR-8) assinando esse novo nome no
manifesto entregue agrave imprensa
A mudanccedila de Dissidecircncia Comunista da Guanabara para MR-8 era na realidade
uma provocaccedilatildeo agrave ditadura Alguns meses antes do sequestro do embaixador americano
a repressatildeo havia desarticulado uma organizaccedilatildeo poliacutetica e anunciado que tinha
destruiacutedo o grupo terrorista Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro Poreacutem de acordo
com Alberto Berquoacute em O sequumlestro dia-a-dia (1997) o oacutergatildeo repressor que havia
prendido aqueles militantes o CENIMAR inventou esse nome pois o grupo capturado
era na verdade a Dissidecircncia do Estado do Rio de janeiro que a rigor se
autodenominava apenas como Organizaccedilatildeo Os militares entatildeo para anunciar a notiacutecia
na imprensa causando um maior impacto atribuiacuteram agrave Organizaccedilatildeo o nome de MR-8
fazendo referecircncia agrave data em que o guerrilheiro socialista Ernesto ldquoCherdquo Guevara havia
sido preso pela Central Intelligence Agency (CIA) na Boliacutevia Dessa forma ao
utilizarem o nome de MR-8 os militantes da ateacute entatildeo Dissidecircncia Comunista da
Guanabara estariam anunciando pertencerem agrave mesma organizaccedilatildeo que os militares
divulgaram meses antes jaacute estar aniquilada desmoralizando-os publicamente 35
Algum tempo depois do sequestro do embaixador a maioria de seus envolvidos
ou foram presos ou mortos pela repressatildeo Fernando Gabeira um dos militantes do MR-
8 envolvidos nessa accedilatildeo era conhecido de Ceciacutelia Coimbra e de seu marido desde a
eacutepoca em que militavam na Dissidecircncia Comunista da Guanabara Assim apoacutes a troca
35
Para mais informaccedilotildees sobre a mudanccedila de nome da Dissidecircncia Comunista da Guanabara para MR-8
ver Berquoacute 1997 72-73
129
do embaixador pelos prisioneiros poliacuteticos Gabeira por estar sendo procurado acabou
se escondendo na casa do casal fato que veio a ocasionar posteriormente a prisatildeo tanto
de Ceciacutelia quanto de seu marido nas dependecircncias do DOI-CODIRJ
Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio (PCBR)
O partido clandestino pelo qual Antocircnio Leite militava ao ser preso o PCBR
havia sido criado em abril de 1968 a partir da expulsatildeo de liacutederes da Corrente
Revolucionaacuteria do PCB conforme mencionado anteriormente Um dos liacutederes e
tambeacutem fundador do PCBR Jacob Gorender na obra Combate nas Trevas a esquerda
brasileira (1999 111-116) caracteriza-o como marxista tendo por estrateacutegia de accedilatildeo a
combinaccedilatildeo entre guerrilha rural e trabalho de massas nas cidades com vistas agrave
formaccedilatildeo de um Governo Popular Revolucionaacuterio que abriria caminho para a
revoluccedilatildeo socialista
A partir dessa ideia de trabalho com as massas nas cidades o PCBR buscou
integrar-se agraves lutas estudantis de 1968 por meio das quais Antocircnio Leite de Carvalho
conheceu melhor a ideologia e as lideranccedilas do partido e posteriormente resolveu
tornar-se seu militante Aleacutem disso desenvolveu ainda algum trabalho nas faacutebricas nas
aacutereas rurais e promoveu entre os anos de 1969 e 1970 algumas accedilotildees armadas como
assaltos a bancos e roubos de veiacuteculos a fim de financiar a atuaccedilatildeo do partido Contudo
o PCBR sofreu com sucessivas prisotildees de seus liacutederes e integrantes restringindo de tal
forma o seu poder de accedilatildeo que logo no iniacutecio da deacutecada de 1970 jaacute se encontrava quase
totalmente desarticulado
O precoce fracasso do PCBR segundo a avaliaccedilatildeo feita por Antocircnio ainda
durante sua primeira entrevista (12 set 2002) deve-se ao fato da estrateacutegia de revoluccedilatildeo
pregada pelo partido ser utoacutepica Afinal para Antocircnio os militantes e liacutederes do PCBR
130
inclusive ele proacuteprio acreditavam que com algumas poucas accedilotildees urbanas isoladas
conseguiriam o apoio da grande massa ao movimento revolucionaacuterio e tomariam o
poder Por conseguinte entende que foi justamente esse isolamento a causa da grande
derrota do PCBR como se pode conferir no trecho abaixo
Era uma grande utopia faziacuteamos duas accedilotildees urbanas na cidade e achaacutevamos
que essas accedilotildees seriam capazes de fazer as pessoas aderirem ao nosso
movimento e conseguiriacuteamos o apoio da grande massa [] Isso nunca iria
acontecer porque eram movimentos basicamente de conquistas quer dizer
que trabalhavam isolados e foi o isolamento a causa da nossa grande derrota
(Carvalho 12 Set 2002)
Entretanto eacute importante destacar que esta avaliaccedilatildeo soacute pocircde ser feita a partir do
presente quando jaacute se sabia que a luta armada havia sido derrotada muito antes da
ditadura terminar e que a democracia havia se tornado uma realidade Afinal logo apoacutes
o AI-5 a luta armada e a forma de atuar do PCBR representavam para seus militantes
uma forte possibilidade de derrubar a ditadura militar Eles natildeo se submeteriam a
arriscar suas vidas em prol de uma luta na qual natildeo tivessem total convicccedilatildeo Logo
percebe-se um anacronismo na avaliaccedilatildeo que Antocircnio faz sobre sua luta naquele
passado o que eacute muito comum entre as memoacuterias construiacutedas por ex-guerrilheiros da
eacutepoca conforme destacado pela revolta de um dos que concederam seus depoimentos a
Alzira Alves de Abreu em Os anos de chumbo memoacuteria da guerrilha (1998)
B [nome atribuiacutedo ao ex-guerrilheiro pela autora para preservar sua
identidade] comeccedilou chamando a atenccedilatildeo para o fato de que a mamoacuteria
daquela fase histoacuterica eacute muito precaacuteria ldquoNa verdade ela foi muito mal
construiacuteda acabou virando um folclore e acabou se contando a histoacuteria desse
periacuteodo de traacutes para frente ndash quer dizer sabendo que a luta armada natildeo deu
certo vamos contar por que ela natildeo deu certo Na eacutepoca em que ela ocorreu
ela era um campo de possibilidades natildeo era mais do que isso Mas hoje jaacute se
131
comeccedila a falar desse movimento para se mostrar o fim dessa histoacuteria[]
(Abreu 1998 31)
Accedilatildeo Libertadora Nacional (ALN)
A organizaccedilatildeo em que militavam Dulce Pandolfi Fernando Palha e Ana de
Miranda no momento de suas prisotildees a ALN foi fundada por Carlos Marighella em
fevereiro de 1968 depois de deixar o PCB Marighella havia sido expulso do Partidatildeo
sob a alegaccedilatildeo de ter viajado para Havana em Cuba sem a autorizaccedilatildeo do Comitecirc
Central do partido para participar da conferecircncia da Organizaccedilatildeo Latino-Americana de
Solidariedade (OLAS) ndash organizaccedilatildeo que tinha como objetivo estender a revoluccedilatildeo
armada por toda a Ameacuterica Latina nos moldes da Revoluccedilatildeo Cubana de 1959
Em apoio a Marighella apoacutes sua expulsatildeo do PCB as bases de Satildeo Paulo tambeacutem
se desligaram do partido e formaram o Agrupamento Comunista de Satildeo Paulo O
Pronunciamento desse grupo em fevereiro de 1968 fundou oficialmente a Accedilatildeo
Libertadora Nacional (ALN) muito embora o primeiro quadro de militantes da
organizaccedilatildeo tenha ido treinar em Cuba ainda em setembro de 1967 36
O nome Accedilatildeo Libertadora Nacional seria uma referecircncia agrave Alianccedila Nacional
Libertadora organizaccedilatildeo poliacutetica criada em 1935 composta por setores de diversas
correntes ideoloacutegicas basicamente a fim de lutar contra a influecircncia fascista no Brasil
Nesse mesmo sentido a ALN tambeacutem visava aleacutem da luta socialista a libertaccedilatildeo
nacional buscando adquirir igual ecircxito na congregaccedilatildeo de grande parte da esquerda
brasileira em torno de seus objetivos como ANL havia conseguido durante a deacutecada de
30 No entanto diferentemente da Alianccedila Nacional Libertadora a Accedilatildeo Libertadora
36
Para mais informaccedilotildees ver Lima 2007 31
132
Nacional natildeo era configurada por uma poliacutetica de alianccedilas mas pelo combate pela accedilatildeo
direta 37
Quanto ao programa da organizaccedilatildeo a ALN tinha por estrateacutegia maior a guerrilha
rural embora sua tarefa taacutetica estivesse concentrada nas cidades onde a maior parte de
suas accedilotildees ocorria Essas accedilotildees urbanas eram consideradas pela organizaccedilatildeo como um
meio de apoio para propaganda poliacutetica para obtenccedilatildeo de fundos (atraveacutes de
expropriaccedilotildees como assaltos a bancos) para recrutamento de quadros para a guerrilha e
para ataques estrateacutegicos ao inimigo Aleacutem disso a ALN permitia a existecircncia de
pequenos grupos com total independecircncia taacutetica desde que estivessem subordinados agrave
sua estrateacutegia geral Dessa forma sua estrutura pode ser entendida como horizontal sem
hierarquias jaacute que segundo Denise Rollemberg em Esquerdas revolucionaacuterias e luta
armada (2003) o militante da ALN que se considerasse capaz de fazer accedilotildees era
incentivado a agir e natildeo a ficar esperando a orientaccedilatildeo de um poder centralizado Afinal
uma das criacuteticas da antiga Corrente Revolucionaacuteria do PCB da qual o liacuteder da ALN
Marighella foi integrante era justamente sobre a centralizaccedilatildeo e como esta emperrava a
atuaccedilatildeo do partido Dessa forma a ALN atuava por meio de diversos grupos
multiplicando suas accedilotildees
A partir disso percebe-se como o sequestro do aviatildeo da Companhia Cruzeiro do
Sul efetuado pelo pequeno grupo que Fernando Palha integrava pocircde ser executado
dentro da ALN assim como os inuacutemeros assaltos a bancos e carros-fortes e os
sequestros a embaixadores em que outros pequenos grupos ligados agrave ALN estiveram
envolvidos Dessa forma nota-se tambeacutem como e por que a ALN se tornou a maior
organizaccedilatildeo de luta armada da eacutepoca e por conseguinte Marighella e seus demais
militantes os mais procurados pela ditadura militar 38
37
Para mais informaccedilotildees ver Lourenccedilo 2005 191 38
Para mais informaccedilotildees ver Gorender 1999
133
No trecho seguinte retirado da entrevista de Fernando Palha destaca-se como
muitos desses pequenos grupos da ALN tinham espaccedilo para planejar e administrar suas
proacuteprias accedilotildees sem se desligarem da Accedilatildeo
Eu era da ALN Accedilatildeo Libertadora Nacional era a maior organizaccedilatildeo de luta
armada que tinha na eacutepoca A Jane [Jessie Jane] por exemplo veio para caacute
para Niteroacutei jaacute fugida de Satildeo Paulo onde prenderam o pai prenderam a matildee
a famiacutelia dela toda sabe O pai natildeo era de nenhuma organizaccedilatildeo mas dava
guarida [] ele era um cara politizado e ela tambeacutem e quando ela veio para
caacute para Niteroacutei ela entrou para o nosso grupo de estudo Estudaacutevamos o
marxismo guerrilhas enfim aprendendo um pouco Aiacute a gente pensando
em como soltar eles [os pais de Jessie Jane] surgiu a ideacuteia de sequestrar o
aviatildeo O sequestro do aviatildeo foi tranquilo difiacutecil foi a negociaccedilatildeo da troca
dos passageiros pelos presos que a gente queria (Freire 28 jun 2004)
Essas variadas e espalhadas accedilotildees da ALN repercurtiram de forma negativa entre
os militares dos oacutergatildeos repressivos Afinal a atuaccedilatildeo descentralizada da ALN permitia
que uma grande quantidade de accedilotildees ldquoterroristasrdquo fossem atribuiacutedas ao movimento
tornando-o aos olhos dos agentes da repressatildeo mais ameaccedilador e perigoso agrave
manutenccedilatildeo do regime ditatorial Essa percepccedilatildeo dos militares pode ter causado reflexos
no cotidiano prisional de militantes ligados direta ou indiretamente agrave referida
organizaccedilatildeo como Dulce Fernando Ana e Ceciacutelia39
ndash considerada militante indireta
por ter escondido em sua casa um dos atores do sequestro do embaixador norte-
americano accedilatildeo conjunta entre MR-8 e ALN
39
No terceiro capiacutetulo a anaacutelise da memoacuteria dos seis entrevistados (Antocircnio Dulce Fernando Padre
Maacuterio Ana e Ceciacutelia) se concentra no cotidiano prisional vivido no DOI-CODI carioca
134
Juventude Operaacuteria Catoacutelica (JOC) amp Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO)
A Juventude Operaacuteria Catoacutelica a JOC uma das organizaccedilotildees de que Padre Maacuterio
era assistente no momento de sua prisatildeo surge no Brasil em iniacutecio dos anos 1930
ganhando forccedila apenas a partir de fins de 1940 A JOC objetivava melhorar a vida do
jovem trabalhador atraveacutes de uma accedilatildeo evangelizadora e formadora de uma consciecircncia
criacutetica Eacute a responsaacutevel pela criaccedilatildeo do meacutetodo pedagoacutegico ldquoVer-Julgar-Agirrdquo
ensinando seus jovens a ver o problema a julgaacute-lo agrave luz do Evangelho e a agir para
transformar sua condiccedilatildeo de classe trabalhadora explorada
A JOC que apresentava uma posiccedilatildeo mais conservadora ateacute meados da deacutecada de
1950 a partir do golpe de 1964 assume outra orientaccedilatildeo poliacutetica de caraacuteter mais
progressista realizando uma reflexatildeo mais profunda no que se refere agrave condiccedilatildeo da
classe trabalhadora do paiacutes e da Ameacuterica Latina o que ocasiona uma maior repressatildeo
por parte do governo ditatorial brasileiro Atraveacutes da JOC a criaccedilatildeo da Accedilatildeo Catoacutelica
Operaacuteria (ACO) ndash outra organizaccedilatildeo de que Padre Maacuterio tambeacutem participava no
momento de sua prisatildeo ndash foi incentivada comeccedilando a ser organizada em fins da
deacutecada de 1950 em funccedilatildeo do grande nuacutemero de militantes que haviam chegado agrave idade
adulta mas desejavam continuar a atuar por meio da organizaccedilatildeo
A ACO nasce entatildeo da Liga Operaacuteria Catoacutelica (LOC) que era um movimento
destinado aos adultos ligados agrave Igreja e inicialmente com forte preocupaccedilatildeo
assistencialista assumindo gradativamente um vieacutes poliacutetico e uma identidade de classe
Assim a partir da LOC a ACO brasileira surge de fato em 1962 apresentando-se como
uma continuidade da JOC para que os jovens trabalhadores pudessem quando adultos
permanecerem a atuar politicamente Muitos eram os pontos em comum dos dois
movimentos que vatildeo desde os mesmos participantes que migravam de um para o outro
ao atingirem a idade adulta como a aplicaccedilatildeo do mesmo meacutetodo de accedilatildeo ldquoVer-Julgar-
135
Agirrdquo Entretanto segundo Alejandra Luisa Magalhatildees Estevez em sua dissertaccedilatildeo de
mestrado (2008) O movimento dos trabalhadores catoacutelicos a Juventude Operaacuteria
Catoacutelica (JOC) e a Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria (ACO) diferentemente da JOC que a
partir de 1969 com a prisatildeo de muitos de seus integrantes ndash como o proacuteprio Padre
Maacuterio Prigol ndash foi perdendo forccedilas e acabou desaparecendo a atuaccedilatildeo da ACO durante
o periacuteodo militar caracterizou-se pelo enfrentamento constante com a hierarquia
eclesiaacutestica e com os proacuteprios militares
Dessa forma Padre Maacuterio que antes de ser preso em 1970 era assistente tanto da
JOC quanto da ACO apoacutes sua prisatildeo deu continuidade ao seu trabalho junto agrave ACO o
que ainda faz atualmente Afinal a ACO permanece em atividade ateacute os dias de hoje
poreacutem sob o nome de Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos (MTC)
Logo mesmo com diferentes atuaccedilotildees no cenaacuterio poliacutetico da eacutepoca as
organizaccedilotildees acima tratadas nas quais os ex-prisioneiros poliacuteticos entrevistados
militavam direta ou indiretamente tinham por confluecircncia algum tipo de manifestaccedilatildeo
em oposiccedilatildeo agrave ditadura militar Entretanto apesar dessa face comum ser o motivo
principal de suas prisotildees as diferenccedilas na forma de agir de suas organizaccedilotildees pode ter
se refletido na intensidade das violecircncias a que foram submetidos no DOI-CODIRJ
Diante disso no capiacutetulo seguinte a partir da anaacutelise das memoacuterias dos seis
entrevistados essa relaccedilatildeo entre a organizaccedilatildeo de esquerda do militante e o seu
tratamento na prisatildeo seraacute abordada assim como os demais aspectos que caracterizavam
o cotidiano vivido no DOI-CODIRJ durante o ano de 1970
136
Capiacutetulo 3 ndash O espaccedilo e o cotidiano do DOI-CODI carioca
A lua
Tal qual a dona de um bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel
E nuvens
Laacute no mata-borratildeo do ceacuteu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco
Louco
O becircbado com chapeacuteu-coco
Fazia irreverecircncias mil
Praacute noite do Brasil
Meu Brasil
Aldir Blanc e Joatildeo Bosco
(O Becircbado e a Equilibrista 1979)
137
1 O que sofre e o que resiste
Os depoimentos dos ex-prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ fontes essenciais
para esta pesquisa encontram aqui um desfecho primordial Finalmente uma de suas
especificidades mais importantes eacute aqui trabalhada a possibilidade que trazem de
acessar desde os aspectos mais subjetivos do dia-a-dia do DOI-CODIRJ aos mais
triviais Diante disso neste capiacutetulo torna-se possiacutevel uma caracterizaccedilatildeo da rotina
institucional ali vivida pelos prisioneiros em 1970 trazendo agrave tona detalhes e
sentimentos que compunham esse cotidiano que haacute deacutecadas jaacute natildeo existe mais Essa
faccedilanha natildeo seria possiacutevel atraveacutes de qualquer outra fonte senatildeo a oral Somente as
memoacuterias trazidas nas narrativas orais quando devidamente trabalhadas satildeo capazes de
aproximar-se das sensaccedilotildees e sentimentos vivenciados naquele passado amenizando a
sua corrosatildeo pelo tempo e as lacunas encontradas na histoacuteria da ditadura militar
Diante disso a memoacuteria eacute aqui tratada como material para a histoacuteria conforme
elucidado por Paul Ricoeur em A memoacuteria a histoacuteria e o esquecimento (2008) Nessa
mesma direccedilatildeo vai Fernando Catroga em seu artigo A representaccedilatildeo do ausente
memoacuteria e historiografia (2010) pelo qual busca entender a escrita da histoacuteria como um
rito de memoacuteria anaacutelogo ao ldquogesto de sepulturardquo Afinal a escrita da histoacuteria tem uma
funccedilatildeo anaacuteloga agrave do tuacutemulo e agrave dos ritos de recordaccedilatildeo ajudando tal como no trabalho
do luto a pagar as diacutevidas do presente com o passado que jaacute natildeo existe mais Essa
analogia mostra que se o tuacutemulo eacute o primeiro monumento dos mortos deixado para os
vivos a escrita da histoacuteria tambeacutem atua no sentido de lutar contra o esquecimento e a
degradaccedilatildeo que marcam a passagem do tempo Logo tal como acontece quando se
visita o tuacutemulo de um cemiteacuterio a escrita da histoacuteria sobre o cotidiano do DOI-
CODIRJ pretende contribuir para que agindo sobre os vivos esse passado se
transforme de ldquolugar de sepulturardquo para o de ldquogesto de sepulturardquo (Ricoeur 2008) Essa
138
analogia do tuacutemulo com a escrita da histoacuteria tem como principal ponto em comum a
construccedilatildeo do passado a partir de traccedilos e de representaccedilotildees que almejam situar no
tempo algo que natildeo existe mais O cotidiano do DOI-CODIRJ passa aqui a ser escrito
por meio da anaacutelise de vestiacutegios e representaccedilotildees apresentados nas memoacuterias de seis
dos seus ex-prisioneiros poliacuteticos tal como ocorre com a representaccedilatildeo memorial de
uma sepultura
Evidencia-se que as memoacuterias aqui trabalhadas especialmente por evocarem
fatos vividos pelas proacuteprias testemunhas estatildeo permeadas de razotildees subjetivas
normativas e pragmaacuteticas que satildeo condicionantes e geram efeitos incontrolaacuteveis
resultando em uma construccedilatildeo qualitativa seletiva e apaixonada do passado Daiacute a
importacircncia do olhar criacutetico do historiador sobre essas memoacuterias uma vez que a funccedilatildeo
deste eacute justamente inserir os aspectos criacuteticos objetivos e analiacuteticos da histoacuteria na
fluidez emoccedilatildeo e submissatildeo aos influxos da conjuntura caracteriacutesticos da memoacuteria
(Nora 1993)
Portanto eacute imperativo analisar criticamente essas memoacuterias sobre o cotidiano do
DOI-CODIRJ mesmo sabendo das dificuldades que envolvem essa accedilatildeo como bem
aponta Beatriz Sarlo em Tempo passado Cultura da memoacuteria e guinada subjetiva
(2007) Afinal satildeo depoimentos de viacutetimas cuja confiabilidade sobre as torturas sofridas
na prisatildeo natildeo soacute foi elemento constituinte da instalaccedilatildeo do regime democraacutetico como
ainda eacute responsaacutevel pela solidificaccedilatildeo de um princiacutepio de reparaccedilatildeo e justiccedila Poreacutem
deve-se antes de tudo encaraacute-los como discursos testemunhais pois seguem o modo
persuasivo caracteriacutestico do discurso e por conseguinte natildeo podem ser cristalizados
Afinal esses seis testemunhos satildeo feitos por narradores que buscam firmar no passado a
verdade do presente jaacute que a narrativa no presente tem uma inevitaacutevel hegemonia sobre
o passado conforme bem enuncia Sarlo no trecho abaixo
139
O presente da enunciaccedilatildeo eacute o ldquotempo de base do discursordquo porque eacute
presente o momento de se comeccedilar a narrar e esse momento fica inscrito na
narraccedilatildeo Isso implica o narrador em sua histoacuteria e a inscreve numa retoacuterica
da persuasatildeo (o discurso pertence ao modo persuasivo diz Ricoeur) Os
relatos testemunhais satildeo ldquodiscursordquo nesse sentido porque tecircm como
condiccedilatildeo um narrador implicado nos fatos que natildeo persegue uma verdade
externa no momento em que ela eacute enunciada Eacute inevitaacutevel a marca do
presente no ato de narrar o passado justamente porque no discurso o
presente tem genuiacutena hegemonia reconhecida como inevitaacutevel e os tempos
verbais do passado natildeo ficam livres de uma ldquoexperiecircncia fenomenoloacutegicardquo
do tempo presente da enunciaccedilatildeo ldquoO presente dirige o passado assim como
um maestro seus muacutesicosrdquo escreveu Italo Severo (Sarlo 2007 49)
Daiacute destaca-se novamente a importacircncia de considerar o tempo presente como
base do discurso das memoacuterias sobre o cotidiano do DOI-CODIRJ trabalhadas neste
capiacutetulo evocando mais uma vez a elucidativa expressatildeo preacutesent du passeacute de Robert
Frank (1999) O presente a partir de onde falam os seis entrevistados como ex-
prisioneiros poliacuteticos corresponde a um momento em que a democracia brasileira para a
maioria deles dava passos largos em direccedilatildeo a sua total magnitude o presente vivido no
raiar dos anos 2000 vinha se distanciando poliacutetica e socialmente do passado ditatorial
militar Quem presidia o paiacutes eram antigos opositores poliacuteticos do governo militar os
ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiacutes Inaacutecio Lula da Silva que vinham
construindo garantias de reparaccedilatildeo aos que sofreram violaccedilotildees aos direitos humanos
durante o passado ditatorial
Estava em curso o reconhecimento dos mortos e desaparecidos poliacuteticos pelo
Estado brasileiro bem como a indenizaccedilatildeo agraves famiacutelias por intermeacutedio da Lei nordm 9140
de 1995 e a reparaccedilatildeo financeira aos males sofridos por aqueles presos ou perseguidos
na eacutepoca da ditadura militar garantida pela Lei nordm 10559 de 2002 Eram esses fatos
140
que compunham o cenaacuterio do presente vivido durante as entrevistas e obviamente
influenciaram diretamente a construccedilatildeo das narrativas dos ex-presos poliacuteticos sobre o
cotidiano do DOI-CODI carioca
Essas influecircncias acabaram em alguns casos direcionando suas narrativas para
os detalhes dos horrores a que foram submetidos e para as sequelas deixadas pelas
torturas daquele tempo a fim de natildeo suscitar duacutevidas sobre o merecimento agrave reparaccedilatildeo
oferecida pelo Estado Afinal o DOI-CODIRJ correspondeu ao espaccedilo onde esses
presos poliacuteticos viveram um dos cotidianos mais violentos de todo o periacuteodo em que
estiveram na prisatildeo Ao enfatizarem em detalhes o lado duro dessa rotina prisional os
entrevistados ambicionavam fortalecer a interpretaccedilatildeo vigente sobre seu papel de viacutetima
e ao mesmo tempo de resistente a um Estado ditatorial Ao procurarem conquistar a
entrevistadora os entrevistados viam-se envolvidos no processo de enquadramento da
memoacuteria sobre a ditadura militar brasileira no sentido atribuiacutedo por Michael Pollak
(1992) O objetivo entre outros era o de fortalecer perante a sociedade e o governo
uma memoacuteria que a eles conferisse o duplo lugar de resistente e de viacutetima e endossasse
a necessidade de reparaccedilotildees financeiras e simboacutelicas aos atingidos
A reparaccedilatildeo financeira aos violentados pela ditadura militar jaacute vinha acontecendo
na eacutepoca em que as entrevistas foram concedidas por meio das leis que implantaram a
Comissatildeo Especial de Mortos e Desaparecidos e a Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio
da Justiccedila citadas anteriormente e abordadas no segundo capiacutetulo Jaacute a reparaccedilatildeo
simboacutelica soacute comeccedilaria a ser de fato implantada alguns anos depois das entrevistas
principalmente com as Caravanas da Anistia a partir de abril de 2008 e mediante a
aprovaccedilatildeo da Comissatildeo da Verdade pelo Congresso Nacional em outubro de 2011 As
Caravanas da Anistia satildeo sessotildees puacuteblicas itinerantes de apreciaccedilatildeo de requerimentos de
anistia poliacutetica a perseguidos poliacuteticos da ditadura militar acompanhadas por atividades
141
educativas e culturais promovidas pela Comissatildeo de Anistia do Ministeacuterio da Justiccedila
Jaacute a Comissatildeo da Verdade teraacute como finalidade examinar e esclarecer graves violaccedilotildees
de direitos humanos praticadas entre os anos de 1946 e 1988 a fim de promover a
reconciliaccedilatildeo nacional com o seu passado histoacuterico
Eacute faacutecil perceber que os entrevistados em seus testemunhos-discursos acabam
atribuindo um sentido uacutenico agrave histoacuteria e conforme salienta Beatriz Sarlo (2007) ao
acumularem detalhes em suas narrativas produzem um modo realista-romacircntico pelo
qual atribuem sentidos a todos os detalhes mencionados somente pelo fato de incluiacute-los
no relato sem se sentirem na obrigaccedilatildeo de atribuir sentidos ou explicar as ausecircncias ali
tambeacutem apresentadas Dessa forma a anaacutelise aqui traccedilada procura trabalhar de forma
criacutetica no sentido de reconhecer a face realista dos detalhes descritos pelos narradores
e ao mesmo tempo a face romacircntica construiacuteda por eles de forma a fortalecer a
credibilidade e a veracidade de sua narraccedilatildeo Uma vez que diferentemente do que datildeo a
entender os entrevistados ao narrarem suas proacuteprias vidas a anaacutelise histoacuterica do
presente trabalho firma-se longe da utopia de uma narraccedilatildeo total capaz de descrever
todo o passado estudado reconhecendo a necessidade de operar com elipses
No entanto se por um lado os detalhes mencionados nos depoimentos devem ser
submetidos ao pensamento criacutetico histoacuterico por outro lado satildeo exatamente eles que
enriquecem a anaacutelise de um cotidiano jaacute que os detalhes trazidos pelos depoimentos
conseguem muitas vezes tornar a rotina do dia-a-dia que jaacute natildeo mais existe palpaacutevel
ao entendimento Eacute o que ocorre por exemplo com a disposiccedilatildeo espacial interna do
preacutedio-sede do DOI-CODIRJ fator que estaacute intrinsecamente relacionado ao cotidiano
prisional e que torna-se passiacutevel de caracterizaccedilatildeo atraveacutes dos detalhes contidos nos
depoimentos Assim mesmo natildeo sendo possiacutevel visitar o interior do edifiacutecio e nem ter
acesso a alguns registros documentais como fotos ou outros documentos eacute possiacutevel
142
contrapor as descriccedilotildees contidas nos depoimentos com a fachada do preacutedio que ainda
existe e construir uma percepccedilatildeo aproximada sobre o espaccedilo em que de certa forma
essas memoacuterias estatildeo ancoradas
2 Uma cartografia possiacutevel do ldquoCastelo do Terrorrdquo
Constatada essa forte relaccedilatildeo entre as memoacuterias dos ex-prisioneiros que ali
ficaram presos em 1970 com o espaccedilo interno do 1ordm BPE resolvi tentar ver de perto
como este era distribuiacutedo No entanto muitas dificuldades foram encontradas e
inviabilizaram o meu projeto inicial de contrapor o que restava do interior do edifiacutecio
que sediou o DOI-CODIRJ com as memoacuterias de seus ex-prisioneiros
Em 2003 a minha primeira tentativa de visitar o interior do preacutedio do 1ordm BPE foi
interrompida no momento em que apresentei o propoacutesito de minha visita o interesse em
ver o preacutedio do DOI-CODIRJ Percebi imediatamente que o ldquoassunto DOI-CODIrdquo
gerava um grande desconforto para aquele Batalhatildeo Talvez porque apesar do referido
Batalhatildeo natildeo ter tido relaccedilatildeo direta com o DOI-CODIRJ pois eram instituiccedilotildees
distintas o fato desse oacutergatildeo repressivo ter sido instalado em seu interior evoca uma
forte relaccedilatildeo que atualmente imprime uma imagem negativa para seus militares
Percebe-se assim que o 1ordm BPE quer apagar da memoacuteria social sua associaccedilatildeo ao DOI-
CODIRJ o que explica o fato de seus militares natildeo permitirem que eu prosseguisse
com a visita
No ano seguinte em novembro tentei pela segunda vez visitar o interior do dito
edifiacutecio Prevendo dificuldades para a visita utilizei como pretexto uma suposta
pesquisa sobre patrimocircnios histoacutericos do bairro Um primeiro-sargento que se
apresentou como graduado em histoacuteria acompanhou-me pelo paacutetio interno do
complexo Durante o passeio por este espaccedilo ele apontava de longe para os preacutedios que
143
ficavam ao redor inclusive para o que sediava o DOI-CODIRJ agrave esquerda e ao fundo
daquele paacutetio a ceacuteu aberto Ao referir-se ao local o sargento apontou de longe e disse
ldquoLaacute funciona o DOI-CODIrdquo deixando transparecer que ateacute aquele momento natildeo
existia uma nova serventia para aquele local e que a estrutura do DOI-CODI havia sido
preservada Nada mais quis falar alegando que natildeo poderia dar explicaccedilotildees mais
amplas sobre o assunto e que aleacutem do mais eu natildeo poderia me aproximar das
instalaccedilotildees que me interessavam
Esta segunda visita corroborou a minha sensaccedilatildeo anterior de que os militares
daquele Batalhatildeo natildeo queriam que este ficasse historicamente associado ao DOI-CODI
percebendo a imagem negativa que essa associaccedilatildeo poderia conferir-lhes tentando
evitar a manutenccedilatildeo do viacutenculo daquele preacutedio com a memoacuteria das torturas e mortes ali
executadas nos chamados ldquoanos de chumbordquo
Aleacutem disso esta visita trouxe-me um dado novo ao apresentar aquele preacutedio
como sendo o ldquoDOI-CODIrdquo no presente do indicativo o sargento deixou perceptiacutevel
um interesse interno em preservaacute-lo Afinal por que ateacute aquele momento mesmo o
DOI-CODI natildeo estando mais em atividade o seu espaccedilo natildeo havia sido utilizado para
nenhuma outra funccedilatildeo permanente Este interesse reflete talvez um forte orgulho
interno de importantes setores do Exeacutercito pelos feitos do DOI-CODI no sentido de
para alguns mais radicais ter sido esta instituiccedilatildeo uma das principais defensoras da
soberania e da ordem nacional na eacutepoca ameaccediladas pela subversatildeo
Apesar de tais empecilhos os detalhes relatados pelos entrevistados viabilizariam
uma aproximada cartografia espacial do interior do DOI-CODIRJ de 1970 quando eles
laacute estiveram Essa cartografia fez-se aqui necessaacuteria por entender-se que essa disposiccedilatildeo
espacial eacute essencial para a anaacutelise das memoacuterias sobre o cotidiano ali vivido uma vez
que esse espaccedilo prisional estaacute presente a todo o tempo nos relatos de Antocircnio Dulce
144
Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia sendo um dos principais pontos de uniatildeo de suas
memoacuterias
Sendo assim defende-se aqui que o antigo preacutedio do DOI-CODI carioca eacute hoje
um lugar de memoacuteria jaacute que a ele se confere de forma simultacircnea e em graus diversos
os trecircs sentidos atribuiacutedos como necessaacuterios por Pierre Nora o material o simboacutelico e o
funcional (Nora 1993 21) O sentido material no caso eacute o proacuteprio espaccedilo fiacutesico o
preacutedio do 1ordm BPE ainda localizado agrave Rua Baratildeo de Mesquita nordm 425 no bairro da
Tijuca O simboacutelico eacute o que o edifiacutecio representa para parte da sociedade carioca que
partilha as memoacuterias dos ex-presos poliacuteticos e seus familiares sobre o violento
cotidiano as torturas e as mortes ali vivenciados atribuindo ao preacutedio o significado de
ldquoCastelo do terrorrdquo Por fim o sentido funcional eacute a atividade de preservaccedilatildeo da
memoacuteria da ditadura militar ali exercida jaacute que o preacutedio eacute um monumento tombado sob
a justificativa de guardar a memoacuteria ali vivida durante a ditadura militar brasileira e natildeo
deixar que ela venha a cair no esquecimento Este uacuteltimo sentido portanto embute ao
preacutedio o significado completo de um lugar de memoacuteria congregando ao espaccedilo uma
funccedilatildeo e uma representaccedilatildeo simboacutelica ou seja unindo os aspectos material simboacutelico e
funcional
145
Foto Nordm1 fachada entrada principal e paacutetio interno do quartel do 1ordm BPE (Bettamio dez 2004)
Este tombamento foi feito pela Prefeitura do Rio de Janeiro em 1993 e tem por
setor responsaacutevel a Subsecretaria municipal de Patrimocircnio Cultural lei nordm 1954 de
29039340
Seu processo teve iniacutecio atraveacutes da solicitaccedilatildeo de moradores da localidades
da Tijuca Grajauacute Andaraiacute e Praccedila Saens Pentildea que utilizaram para embasar o referido
ato o fato de parte do edifiacutecio do 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito ter abrigado o DOI-
CODI do Rio de Janeiro durante toda a deacutecada de 1970 e iniacutecio dos anos 1980
ressaltando a sua importacircncia para a memoacuteria da resistecircncia e luta pelo fim da ditadura
militar
Percebe-se ainda a grande importacircncia atribuiacuteda a essa memoacuteria quando se
destaca que mesmo o edifiacutecio tendo um valor histoacuterico anterior agrave fase em que cedeu
parte de seu espaccedilo ao DOI-CODIRJ o pedido de tombamento feito pela populaccedilatildeo
fundamentava-se no que ali havia ocorrido em tempos recentes durante a ditadura
militar Afinal esses requerentes propunham que o edifiacutecio fosse tirado do Exeacutercito e
desse lugar a um centro cultural com museu da memoacuteria da luta pela liberdade
40
Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro antigo Departamento Geral de
Patrimocircnio Cultural (DGPC) Nordm do processo 1200433692 1degdocumento de solicitaccedilatildeo de tombamento
26101992
146
O edifiacutecio foi construiacutedo em 1857 pela Imperial Coroa para servir de sede a um
Hospital Militar entretanto laacute se instalou o 1ordm Regimento de Cavalaria Ligeira e
posteriormente o Hospital Militar da Corte com funcionamento ateacute fevereiro de 1877
Desde entatildeo a construccedilatildeo foi utilizada pela Escola do Estado Maior pelo 2ordm Batalhatildeo
de Caccediladores pela Escola de Intendecircncia e a partir de 1946 pelo 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia
do Exeacutercito 41
Em ampla aacuterea estaacute situado na confluecircncia da Rua Baratildeo de Mesquita com a
Avenida Maracanatilde abrangendo tambeacutem a Praccedila Lamartine Babo Conforme pode ser
observado na paacutegina anterior Foto Nordm1 ao redor de todo o espaccedilo ocupado pelo preacutedio
estende-se uma mureta de alvenaria com grade assente na parte frontal do quartel O
complexo arquitetocircnico do 1ordm BPE apresenta nas extremidades alas perpendiculares
que formam no meio um largo paacutetio A uacuteltima dessas alas possui os fundos voltados
para a Avenida Maracanatilde em frente a um dos portotildees de entrada e saiacuteda de veiacuteculos do
quartel Era exatamente nesta parte localizada no final do paacutetio central do Batalhatildeo do
lado esquerdo ao lado da antiga faacutebrica de bebidas Brahma que as celas e a sala de
tortura do DOI-CODIRJ estavam localizadas A seguir na Foto Nordm2 visualiza-se o
fundo deste edifiacutecio na Avenida Maracanatilde
41
Para mais informaccedilotildees ver Gerson 2000 357
147
Foto Nordm2 preacutedio do DOI-CODIRJ nos fundos do quartel localizado na Avenida Maracanatilde (Bettamio dez 2004)
Como se pode ver na Foto Nordm2 em cima do muro do 1ordm BPE exclusivamente na
parte que cerca os fundos do antigo preacutedio do DOI-CODIRJ estaacute localizada uma cerca
de arame farpado Assim aleacutem da descriccedilatildeo dos entrevistados e da forma como o
primeiro-sargento nomeou o local ao apontaacute-lo durante a minha segunda visita ao
Batalhatildeo em 2004 entende-se esta cerca como mais um indiacutecio de que laacute ficavam as
celas do entatildeo DOI-CODIRJ Tais celas estavam distribuiacutedas pelos dois pavimentos do
edifiacutecio conforme pode-se auferir nos relatos e comprovar na Foto Nordm2 onde pela
distribuiccedilatildeo das janelas nota-se que o preacutedio eacute composto de fato por dois andares
O local da prisatildeo era mais nos fundos Quando vocecirc chega ali vocecirc tem duas
entradas uma pela pracinha [Foto Nordm3] onde entram os carros e outra pela
frente bem na Baratildeo de Mesquita [Foto Nordm1] Nesta entrada tem uma mesa
com um oficial do dia depois vem uma espeacutecie de paacutetio aberto como se
fosse uma quadra Jaacute nos fundos do quartel passa a Avenida Maracanatilde por
traacutes da Poliacutecia do Exeacutercito As celas tanto a da prisatildeo como a da tortura
eram mais perto da Avenida Maracanatilde Era laacute naquela parte mais para o
148
final mais isolada Vocecirc ficava mais proacuteximo da Avenida Maracanatilde e da
faacutebrica da Brahma [] (Carvalho 12 set 2002)
Foto Nordm3 uma das entradas do 1ordm BPE para veiacuteculos de frente para a Praccedila Lamartine Babo (Bettamio dez 2004)
Os prisioneiros poliacuteticos receacutem-capturados transferidos de outros oacutergatildeos de
repressatildeo ou mesmo do Hospital Central do Exeacutercito chegavam ao 1ordm BPE dentro de
uma das viaturas das turmas de busca e apreensatildeo do DOI que faziam parte da
estrutura abordada no primeiro capiacutetulo Os automoacuteveis que os traziam entravam no
Batalhatildeo atraveacutes do portatildeo para veiacuteculos que fica em frente agrave Praccedila Lamartine Babo
(Foto Nordm3) entre a Rua Baratildeo de Mesquita e a Avenida Maracanatilde Ao entrarem por
este portatildeo os carros seguiam em linha reta pelo paacutetio interno ateacute chegarem ao preacutedio
do DOI-CODI no fundo do quartel (Foto Nordm2) onde os presos eram deixados
Este trajeto de chegada descrito pelos entrevistados parece ser ateacute hoje um
procedimento formal para controlar a entrada de veiacuteculos no Batalhatildeo e atraveacutes dele
evidencia-se que o DOI-CODI mesmo natildeo sendo subordinado ao 1ordm BPE tinha como
dever respeitar algumas normas de seguranccedila ali vigentes Entre essas normas estava o
impedimento de utilizar o portatildeo para veiacuteculos localizado na Avenida Maracanatilde (Foto
149
Nordm2) para a entrada e a saiacuteda de seus presos mesmo sendo mais praacutetico e reservado
pois este portatildeo ficava ao lado do preacutedio do DOI-CODI Poreacutem como todo quartel
militar preza por um controle riacutegido de seguranccedila uma vez que satildeo responsaacuteveis por
guardar armas e outros equipamentos beacutelicos esses agentes eram obrigados a respeitar a
estrutura de seguranccedila tradicional do 1ordm BPE
[] a gente entrava pela pracinha aqui do lado [aponta para o desenho que
faz no papel] a gente entrava dentro dos carros aqui por esse portatildeo (o da
praccedila) A gente natildeo entrava pela porta principal natildeo E nem entrava ou saiacutea
pelo portatildeo do lado do preacutedio que a gente ficava [] (Coimbra 30 nov
2004)
No preacutedio do DOI-CODIRJ (Foto Nordm2) as celas ldquosolitaacuteriasrdquo se localizavam
somente no andar de baixo Nelas os prisioneiros receacutem-chegados permaneciam nos
primeiros dias de prisatildeo para ficarem no mesmo andar da sala de interrogatoacuterio ou ldquosala
de torturardquo ndash como os presos a chamavam ndash facilitando o deslocamento Era no
momento inicial da prisatildeo que as turmas de interrogatoacuterio preliminar executavam a
parte massiva dos interrogatoacuterios o que por conseguinte demandava a necessidade dos
presos ficarem em celas geograficamente proacuteximas agrave ldquosala de torturardquo
Nos primeiros dias de prisatildeo era quando os presos eram levados assiduamente
para a ldquosala de torturardquo visto que poderiam informar sobre os ldquopontos de encontrordquo e os
ldquoaparelhosrdquo ainda vaacutelidos informaccedilotildees que levariam os agentes dos DOI ateacute outros
ldquosubversivosrdquo Aleacutem da ldquosala de torturardquo a cela do tipo ldquosolitaacuteriardquo era mais um artifiacutecio
para torturar o preso receacutem-chegado a fim de degradaacute-lo e desestruturaacute-lo
psicologicamente de forma a impulsionaacute-lo a falar mais rapidamente o que sabia Para
isso essas celas ldquosolitaacuteriasrdquo aleacutem de deixarem o preso isolado dos demais se
diferenciavam estruturalmente das outras que existiam no mesmo preacutedio localizadas em
150
maior parte no pavimento superior para as quais os presos eram transferidos apoacutes o
momento inicial de sua prisatildeo
Nas celas do segundo andar existia banheiro com chuveiro e um colchatildeo para cada
preso Jaacute nas ldquosolitaacuteriasrdquo aleacutem do preso ficar sozinho natildeo havia cama colchatildeo
banheiro ou mesmo pia Durante o tempo em que laacute permaneciam os prisioneiros natildeo
tinham direito a tomar banho Eram celas pequenas com portotildees de grades vazadas
contendo apenas um buraco no chatildeo para que o preso ali pudesse evacuar Os presos
eram obrigados a conviver com o cheiro de sua proacutepria urina e fezes no provaacutevel intuito
de denegrir a sua condiccedilatildeo de ser humano
[] logo que eu cheguei fui para a lsquosolitaacuteriarsquo era torturada ia para a
lsquosolitaacuteriarsquo era torturada e ia para a lsquosolitaacuteriarsquo [] (Pandolfi 5 fev 2003)
[] primeiro que quando vocecirc eacute preso vocecirc passa alguns dias sem tomar
banho na verdade eu soacute fui tomar banho mesmo depois que eu fui para a
cela coletiva [] (Carvalho 8 fev 2003)
Aqui [aponta para as celas do andar teacuterreo do preacutedio que desenhou em um
papel] era soacute o pessoal que ficava de castigo era barra pesada [] vocecirc natildeo
tinha lugar para dormir natildeo tinha lugar para nada Tinha soacute um buraco para
vocecirc fazer as suas necessidades Na solitaacuteria natildeo tinha nem colchatildeo nem
banheiro nem privada era um buraco Nem tinha chuveiro Pelo menos
essas celas de cima tinham chuveiro [] (Coimbra 30 nov 2004)
151
Foto Nordm4 visatildeo panoracircmica do espaccedilo ocupada pelo 1ordm BPE com destaque aos fundos para o preacutedio do DOI-CODI
(Bettamio dez 2004)
A ldquosala de torturardquo localizada no primeiro pavimento do preacutedio eacute referida pelos
prisioneiros tambeacutem como ldquosala roxardquo pela cor de suas paredes Anexa a ela estava a
sala de observaccedilatildeo que era separada da ldquosala roxardquo por um vidro o chamado ldquoespelho
da verdaderdquo Este vidro composto por uma placa semi-espelhada possibilitava que da
sala de observaccedilatildeo se pudesse ver e reconhecer quem estava do outro lado sem ser
visto Assim presos e militares poderiam identificar pessoas e observar interrogatoacuterios
sem serem reconhecidos
[] a sala de tortura era pintada de uma cor horrorosa como se fosse um
roxo [] essa sala tinha um vidro que era o espelho da verdade porque dava
acesso agrave outra sala onde ficavam pessoas para te observar sem serem vistas
[] (Pandolfi 5 fev 2003)
A seta indica a localizaccedilatildeo do preacutedio do DOI-CODI dentro do espaccedilo do 1ordm BPE
152
[] aqui tinha a famosa sala roxa duas uma do lado da outra isso no
primeiro andar Porque ali estavam as pessoas que eles estavam inquirindo
direto [] (Freire 28 jun 2004)
Os dados informados acima satildeo exemplos tiacutepicos de detalhes apresentados pelos
entrevistados que muito podem contribuir para o entendimento desse passado Afinal
em uma primeira impressatildeo essas narrativas podem transmitir a ideia de que as paredes
roxas serviam apenas para imprimir um aspecto sombrio agrave ldquosala de torturardquo servindo
como mais um elemento produzido para intimidar o depoente durante o interrogatoacuterio
No entanto ao saber-se que uma das paredes dessa sala era composta pelo dito ldquoespelho
da verdaderdquo deduz-se que esta era bem iluminada O vidro que a dividia do local anexo
muito utilizado nas salas de reconhecimento em delegacias de poliacutecia age atraveacutes de um
mecanismo pelo qual quem estaacute do lado mais iluminado vecirc apenas o reflexo de sua
proacutepria imagem sem enxergar o que estaacute do lado mais escuro
A partir disso infere-se que as paredes roxas da ldquosala de torturardquo natildeo eram apenas
um aparato de tortura psicoloacutegica mas provavelmente uma forma de deixar os
integrantes das turmas de interrogatoacuterio preliminar mais agrave vontade para interrogar
ameaccedilar e torturar os seus prisioneiros Menos iluminada do que se suas paredes fossem
brancas contribuiacutea para que os prisioneiros natildeo pudessem ver os militares de forma tatildeo
clara e niacutetida fazendo com que os torturadores natildeo se sentissem acuados por atuar com
os seus rostos agrave mostra chegando mesmo a retirar o capuz dos prisioneiros
[] chegando nessa sala de tortura normalmente eles tiravam o capuz Quer
dizer o capuz na verdade era um mecanismo mais de intimidaccedilatildeo de deixar
a gente apavorada do que para eles se esconderem mesmo porque na tortura
a gente acabava vendo os torturadores [] (Pandolfi 5 fev 2003)
No DOI-CODI eu apanhei de cara limpa eu vi quem me bateu quem me
torturou [] (Freire 28 jun 2004)
153
No segundo andar do preacutedio do DOI-CODIRJ em meio agraves demais celas coletivas
e encostada em outra menor se encontrava uma cela feminina bem espaccedilosa onde
Dulce Ana e Ceciacutelia ficaram durante parte do tempo em que estiveram na instituiccedilatildeo
Essa cela mencionada pelas entrevistadas ora por ldquocoletivo das mulheresrdquo ora por
ldquoMaracanatilderdquo tinha no alto da parede de fundo um basculante que como bem se pode
observar na Foto Nordm2 provavelmente estava presente em todas as celas coletivas tanto
as do primeiro quanto as dos segundo andares Entretanto no caso do ldquocoletivo das
mulheresrdquo e da cela nele encostada esses basculantes eram virados para o paacutetio interno
do 1ordm BPE e por conseguinte os portotildees dessas celas ficavam na direccedilatildeo do muro da
Avenida Maracanatilde
[] eu fui para a cela do lado que era o coletivo das mulheres que era a cela
Maracanatilde como a gente chamava [] Eram duas celas Essa era enorme e
tinha a outra na outra ponta [] que era uma cela menor Eu fiquei nas duas
que eram as duas celas que ficavam na frente que davam para o paacutetio A
gente trepava [no basculante da cela] e soacute via o paacutetio (Coimbra 30 nov
2004)
Tinha ateacute uma cela ampla grande que chamavam de coletivo das mulheres
Entatildeo a maior parte do tempo eu fiquei nessa cela grande [] (Pandolfi 5
fev 2003)
No DOI-CODI natildeo havia uma grande separaccedilatildeo entre prisioneiros e prisioneiras
uma vez que as celas do primeiro e do segundo andares comportavam tanto homens
quanto mulheres No entanto natildeo havia celas mistas Apesar de que como somente
homens afirmaram ter permanecido em celas do piso teacuterreo pressupotildee-se que neste
pavimento com exceccedilatildeo das celas ldquosolitaacuteriasrdquo localizavam-se em grande parte caacuterceres
154
coletivos masculinos que tambeacutem existiam no segundo andar demonstrando que era
maior o nuacutemero de prisioneiros homens
[] eu sempre fiquei no teacuterreo nunca subi para aquela parte apesar de que
laacute onde ficavam as celas tinha uma escada Tinha uma parte teacuterrea onde
ficavam nossas celas e tinha tambeacutem umas celas em cima [] (Carvalho 12
set 2002)
No teacuterreo tinha duas celinhas aqui [rabisca em um pedaccedilo de papel] uma no
cantinho aqui e eu fiquei nessa segunda aqui aiacute ainda tinha a do meio e
mais duas para caacute eram cinco celas [] (Freire 28 jun 2004)
A partir dessa cartografia do espaccedilo fiacutesico do DOI-CODI viabilizou-se uma
aproximaccedilatildeo com a geografia do ambiente que mantinha uma iacutentima relaccedilatildeo com o
cotidiano dos entrevistados no periacuteodo em que laacute permaneceram como prisioneiros do
sistema de seguranccedila
3 Memoacuterias de um cotidiano
Falar sobre essa parte da histoacuteria implica muitas dificuldades pois suscita
lembranccedilas mal-vindas poreacutem necessaacuterias ao conhecimento de nossa
sociedade Trata-se aqui de uma viagem de volta ao inferno de uma face que
para muitos traduz supliacutecios fiacutesicos e psiacutequicos sentimentos de desamparo
solidatildeo medo pacircnico abandono e desespero (Coimbra 2004 45) 42
Como jaacute dito o momento da realizaccedilatildeo de uma entrevista eacute definidor da maneira
pela qual o(a) entrevistado(a) recupera o seu passado A construccedilatildeo da memoacuteria sobre o
cotidiano vivido no DOI-CODI em 1970 natildeo escapou desse passeacute do preacutesent e de
42
Artigo Gecircnero Militacircncia e Memoacuteria escrito pela entrevistada Ceciacutelia Coimbra e publicado em Strey
Marlene Neves (org) Violecircncia Gecircnero e Poliacuteticas Puacuteblicas Porto Alegre PUC-RS 2004
155
forma muito interessante ao mesmo tempo em que sofria influecircncias desse presente
tambeacutem agia politicamente sobre ele Beneficiados por uma legislaccedilatildeo que buscava
reparar os variados danos causados pelo Estado ditatorial os entrevistados visavam
sobretudo a obter reparaccedilotildees simboacutelicas comeccedilando pela consolidaccedilatildeo de suas
memoacuterias Por isso mesmo lutavam por accedilotildees governamentais tais como a construccedilatildeo
de museus sobre a ditadura militar em locais que haviam servido como prisatildeo poliacutetica
na eacutepoca e a instalaccedilatildeo da Comissatildeo da Verdade no paiacutes
Assim em 24 de janeiro de 2009 foi inaugurado no anexo do antigo preacutedio do
Departamento de Ordem e Poliacutetica Social de Satildeo Paulo (Deops) o Memorial da
Resistecircncia de Satildeo Paulo Eacute a primeira instituiccedilatildeo do paiacutes a ldquomusealizarrdquo parte de um
edifiacutecio que foi siacutembolo da poliacutecia poliacutetica em eacutepocas de ditadura a fim de salvaguardar
a memoacuteria da resistecircncia e da repressatildeo do Brasil republicano 43
E finalmente em 18
de novembro de 2011 a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei que criava a
Comissatildeo da Verdade (lei nordm 125282011) Esta seraacute composta por sete integrantes que
ainda seratildeo indicados e contaratildeo com ajuda de 14 auxiliares que teratildeo a missatildeo de ouvir
depoimentos em todo o paiacutes requisitar e analisar documentos que ajudem a esclarecer
os fatos da repressatildeo militar A Comissatildeo iraacute apurar as violaccedilotildees de direitos ocorridas
entre os anos de 1946 e 1988 e teraacute um prazo de dois anos para finalizar este trabalho de
investigaccedilatildeo
43
Para mais informaccedilotildees sobre o Memorial da Resistecircncia de Satildeo Paulo consultar
httpwwwmemorialdaresistenciasporgbr
156
31 O interrogatoacuterio e a tortura
Tendo em vista as novas funccedilotildees que se apresentavam para os agentes da
repressatildeo lotados nos DOI-CODI era necessaacuterio um treinamento que incluiacutea entre
outras mateacuterias o manuseio da dosagem de dor infringida durante os interrogatoacuterios
Depois de passarem por tal treinamento os militares poderiam atuar em uma das trecircs
turmas de interrogatoacuterio preliminar que compunham a Subseccedilatildeo de interrogatoacuterio
responsaacutevel direta por torturar os presos ou em uma das turmas da Seccedilatildeo de busca e
apreensatildeo que capturavam os suspeitos e os direcionavam aos DOI
Esse processo de formaccedilatildeo de matildeo-de-obra para atuar no DOI-CODI surgiu em
1970 quando uma escola de repressatildeo foi criada a partir da mudanccedila de comando e da
reforma curricular do Centro de Estudos de Pessoal (CEP) no forte do Leme O novo
CEP passava a oferecer cursos de informaccedilotildees para oficiais programas de extensatildeo para
sargentos e estaacutegios para quadros das poliacutecias militares todos normalmente com
duraccedilatildeo de um semestre Nesses cursos os alunos assistiam aulas sobre teacutecnicas de
interrogatoacuterio ndash o que incluiacutea o manuseio de aparelhos de tortura ndash e vigilacircncia taacuteticas
de ldquoneutralizaccedilatildeo de aparelhosrdquo e de transporte de presos operaccedilotildees especiais
criptologia e produccedilatildeo de informaccedilotildees Ao fim do curso o aluno recebia uma
certificaccedilatildeo atraveacutes da qual poderia atestar sua aptidatildeo para desempenhar as funccedilotildees de
um oficial de informaccedilotildees
Parte dos meacutetodos aprendidos nessa escola eacute retratada em entrevista para a revista
Veja de 9 de dezembro de 1998 pelo tenente Marcelo Paixatildeo de Arauacutejo que de acordo
com Elio Gaspari (2002) teria atuado como torturador no 12ordm Regimento Interno de
Belo Horizonte entre 1968 e 1971
A primeira coisa era jogar o sujeito no meio de uma sala tirar a roupa dele e
comeccedilar a gritar para ele entregar o ponto [lugar marcado para encontros
157
com militantes do grupo] Era o primeiro estaacutegio Se ele resistisse tinha um
segundo estaacutegio que era vamos dizer assim mais porrada Um dava tapa na
cara Outro soco na boca do estocircmago Um terceiro soco no rim Tudo para
ver se ele falava Se natildeo falava tinha dois caminhos Dependia muito de
quem aplicava a tortura Eu gostava muito de aplicar a palmatoacuteria Eacute muito
doloroso mas faz o sujeito falar Eu era muito bom na palmatoacuteria [] Vocecirc
manda o sujeito abrir a matildeo O pior eacute que de tatildeo desmoralizado ele abre Aiacute
se aplicam dez quinze bolos na matildeo dele com forccedila A matildeo fica roxa Ele
fala A etapa seguinte era o famoso telefone das Forccedilas Armadas [] eacute uma
corrente de baixa amperagem e alta voltagem [] Natildeo tem perigo de fazer
mal Eu gostava muito de ligar as duas pontas dos dedos Pode ligar numa
matildeo e na orelha mas sempre do mesmo lado do corpo O sujeito fica
arrasado O que natildeo pode fazer eacute deixar a corrente passar pelo coraccedilatildeo Aiacute
mata [] o uacuteltimo estaacutegio em que cheguei foi o pau-de-arara com choque
Isso era para o queixo-duro o cara que natildeo abria nas etapas anteriores Mas
pau-de-arara eacute um negoacutecio meio complicado [] O pau-de-arara natildeo eacute
vantagem Primeiro porque deixa marca Depois porque eacute trabalhoso Tem
de montar a estrutura Em terceiro eacute necessaacuterio tomar conta do indiviacuteduo
porque ele pode passar mal (Gaspari 2002 182-183)
Antes de comeccedilar a atuar esses agentes passavam por treinamento no DOI-CODI
feito provavelmente com alguns prisioneiros que jaacute estavam laacute haacute algum tempo e que
haviam mostrado ter boa resistecircncia Conforme se pode evidenciar a partir da
declaraccedilatildeo feita por Dulce Pandolfi em 1970 registrada na auditoria militar 44
[]
que foi exposta perante 20 oficiais como numa demonstraccedilatildeo de aulas de torturas
pau-de-arara e choques [] (Arquidiocese de Satildeo Paulo tomo V 1985 758)
Essa denuacutencia feita na eacutepoca por Dulce na auditoria da Justiccedila Militar foi
publicada em A Tortura tomo V do ldquoProjeto Ardquo da pesquisa coordenada pela
Arquidiocese de Satildeo Paulo e intitulada Brasil Nunca Mais O ldquoProjeto Ardquo eacute constituiacutedo
por doze volumes que contecircm as conclusotildees da referida pesquisa feita a partir da
44
Assim satildeo chamadas as varas criminais com atribuiccedilatildeo especiacutefica de atuar em processos de crimes
militares da Justiccedila Militar brasileira
158
reuniatildeo de coacutepias da quase totalidade dos processos poliacuteticos que tramitaram na Justiccedila
Militar entre abril de 1964 e marccedilo de 1979 Esses volumes foram reproduzidos vinte e
cinco vezes pela Arquidiocese de Satildeo Paulo formando coleccedilotildees que foram doadas a
entidades de direitos humanos pesquisa e documentaccedilatildeo 45
As 6891 paacuteginas do
ldquoProjeto Ardquo estatildeo resumidas no ldquoProjeto Brdquo o livro Brasil Nunca Mais tambeacutem
datado de 1985 e publicado pela Editora Vozes
Os primeiros momentos no DOI-CODI
Desde o momento da detenccedilatildeo o preso era submetido a diversos tipos de maus
tratos Jaacute a caminho do caacutercere ainda dentro do automoacutevel comeccedilavam as agressotildees
como tapas pontapeacutes e empurrotildees a fim de acelerar a sua desestabilizaccedilatildeo para que
entregasse mais rapidamente informaccedilotildees que agilizassem a prisatildeo de outros militantes
procurados
As torturas que Ana Batista relata ter sofrido durante o percurso de transferecircncia
da OBANSP para o DOI-CODIRJ destacadas em seu memorial ndash escrito em outubro
de 2004 um mecircs antes de sua entrevista e encaminhado agrave Comissatildeo Especial da
Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro ndash trazem aspectos
proacuteximos agrave realidade vivida na eacutepoca pelos presos poliacuteticos do DOI-CODIRJ
[] dez dias apoacutes a prisatildeo fui levada de Satildeo Paulo [DOI-CODISP] para o
Rio [DOI-CODIRJ] de madrugada numa C-14 onde permaneci no banco de
traacutes entre dois agentes de grande porte No meio do caminho na Via Dutra
eles entraram por uma estradinha pararam o carro e me mandaram descer
aos berros Com fortes dores no corpo ndash especialmente nos rins ndash
queimaduras infectadas pelos choques eleacutetricos exausta dos interrogatoacuterios e
45
Os doze volumes do ldquoProjeto Ardquo estatildeo disponiacuteveis no Arquivo do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio
de Janeiro (GTMNRJ)
159
sem dormir haacute dias desembarquei meio trocircpega Gritaram impropeacuterios e
ordenaram que eu fugisse Como estava muito tonta sem saber o que pensar
ou fazer natildeo fiz nada Atiraram entatildeo repetidas vezes em volta de mim
que permaneci encostada em uma aacutervore gritaram vaacuterias vezes para que eu
fugisse Caiacute no chatildeo o que os fez parar de atirar e se jogarem em cima de
mim agraves gargalhadas Colocaram-me de volta no carro e continuamos a
viagem rumo ao DOI-CODI-RJ (Batista out 2004)
Assim quando chegavam ao DOI-CODIRJ apoacutes passarem pelo portatildeo de
entrada da Praccedila Lamartine Babo (Foto Nordm3) os presos preenchiam uma ficha de
identificaccedilatildeo e eram levados para a ldquosala roxardquo no andar teacuterreo do preacutedio dessa
instituiccedilatildeo (Foto Nordm2) Laacute em meio a interrogatoacuterio as ameaccedilas e torturas se
intensificavam perpetradas pelos integrantes de uma das trecircs turmas de interrogatoacuterio
preliminar de plantatildeo no momento
Cabe lembrar que tais turmas eram constituiacutedas por militares treinados para
conseguir extrair rapidamente dos presos o maior nuacutemero possiacutevel de informaccedilotildees
principalmente sobre a data hora e local de seu proacuteximo ldquopontordquo de encontro Afinal
caso esses agentes natildeo conseguissem tais dados logo nos primeiros dias natildeo chegariam
ao local a tempo de pegarem o outro militante clandestino que o preso encontraria A
partir do momento em que a ausecircncia desse militante fosse notada integrantes de sua
organizaccedilatildeo poliacutetica deduziriam o motivo e por proteccedilatildeo modificariam os locais dos
ldquoaparelhosrdquo e dos proacuteximos ldquopontosrdquo As informaccedilotildees do preso receacutem-capturado se
tornariam entatildeo desatualizadas o que dificultaria a investigaccedilatildeo dos agentes do DOI-
CODIRJ
As torturas infringidas aos presos eram mais intensas logo depois da prisatildeo
Lutando contra o tempo era comum deixar o preso em celas ldquosolitaacuteriasrdquo localizadas no
andar teacuterreo conforme jaacute indicado Dessa forma os presos receacutem-chegados ficavam
bem proacuteximos agrave sala de interrogatoacuterio a ldquosala roxardquo justamente por serem para laacute
160
levados com frequecircncia Como nas ldquosolitaacuteriasrdquo os presos ficavam sozinhos e natildeo
podiam contar com itens baacutesicos de higiene e proteccedilatildeo do corpo (tais como banheiro
chuveiro colchatildeo e cobertor) acabavam se sentindo ainda mais desestruturados e por
conseguinte desestabilizados Logo no momento inicial da prisatildeo quando os presos
natildeo eram submetidos agraves torturas fiacutesicas eram submetidos agraves torturas psicoloacutegicas das
ldquosolitaacuteriasrdquo as chamadas torturas brancas46
espeacutecie de degradaccedilatildeo fria sem violecircncia
humana expliacutecita
Por outro lado os presos receacutem-capturados tinham consciecircncia de que era naquele
momento inicial que mais poderiam prejudicar seus companheiros de organizaccedilatildeo
Diante disso normalmente tentavam dificultar o acesso dos militares agraves informaccedilotildees
lutando para resistir agraves torturas Apesar de muitas vezes fracassarem tentavam segurar
os dados que tinham ao menos ateacute passar o horaacuterio do proacuteximo ldquopontordquo que haviam
combinado com outro militante Portanto avalia-se que provavelmente o grau de
resistecircncia inicial do prisioneiro estava diretamente relacionado ao da intensidade da
tortura a ele perpetrada e vice-versa conforme analisa-se nos trechos da entrevista de
Ana de Miranda Batista abaixo destacados
[] o meu negoacutecio era ganhar tempo e o deles era conseguir informaccedilatildeo A
luta eacute essa nos primeiros dias eacute vocecirc dar o miacutenimo de informaccedilotildees e eles
querendo arrancar o maacuteximo de informaccedilatildeo Aiacute eles vecircm com a maacutexima de
que torturar eacute investigar [risos] E daiacute se precisar ateacute a morte O negoacutecio eacute
conseguir informaccedilatildeo
46
Em 1971 quando os ex-prisioneiros aqui entrevistados jaacute natildeo estavam mais no 1ordm BPE o projeto
ldquoTortura Limpardquo foi ali instalado Segundo Elio Gaspari o andar teacuterreo do DOI-CODIRJ sofreu obras
para que fossem construiacutedos quatro novos cubiacuteculos um foi forrado com isopor e amianto a fim de fazer
o prisioneiro sentir frio constantemente outro se tornou uma cacircmara de ruiacutedos pela qual o preso ouviria o
barulho por todo o tempo em que laacute estivesse o terceiro foi todo pintado de branco provocando dor na
vista do preso devido agrave claridade constante na cela o uacuteltimo transformou-se em um ambiente todo preto
natildeo fornecendo a quem estivesse em seu interior nenhuma claridade causando choque na vista quando
exposto a claridade normal (Gaspari 2002 189-190)
161
[] quando eu cheguei agrave OBAN [que na eacutepoca de sua prisatildeo jaacute havia se
transformado em DOI-CODISP] jaacute era noite eles estavam tomando cerveja
comemorando que eu tinha caiacutedo E aiacute eu passei o ponto da Ana Maria do
Carlos Eugecircnio com o Bacuri Porque laacute era um inferno [] laacute eu passei um
monte de ponto e todos eles eram procurados Entatildeo aiacute eacute que a barra pegou
mesmo (Batista 17 nov 2004)
Os trechos acima mesmo sendo baseados em uma experiecircncia vivida no DOI-
CODISP trazem muitas informaccedilotildees sobre o cotidiano prisional vivido de forma
geral em todos os DOI-CODI Afinal conforme ressaltado anteriormente esses oacutergatildeos
estavam espalhados por todas as jurisdiccedilotildees territoriais do Brasil e seguiam
basicamente a mesma organizaccedilatildeo Portanto pode-se concluir aqui que em ambos os
DOI-CODI no momento inicial da prisatildeo existia essa relaccedilatildeo entre a intensidade das
sessotildees de tortura adotadas pelos militares e o tamanho da vontade de resistir do preso
Tal relaccedilatildeo se torna ainda mais perceptiacutevel pela frustraccedilatildeo sentida na fala de Ana
ao afirmar ter passado muitos ldquopontosrdquo inclusive o de ldquoBacurirdquo codinome de Eduardo
Collen Leite seu companheiro de organizaccedilatildeo Ana no momento da entrevista sabia
que ldquoBacurirdquo havia sido preso em agosto de 1970 alguns dias depois de sua prisatildeo e
que havia morrido sob tortura Quando admite ter entregado aos agentes do DOISP o
ponto de encontro Ana se culpa O depoimento eacute o momento em que Ana aproveita
para se justificar ao demonstrar que acredita no quanto a resistecircncia agrave tortura era
importante no iniacutecio da prisatildeo mas como ela se tornava limitada sendo rapidamente
derrotada Resistir ao DOI-CODI era muito difiacutecil jaacute que os agentes haviam sido
fortemente preparados para a ldquoguerra internardquo e natildeo por acaso se tornariam os grandes
responsaacuteveis pela desarticulaccedilatildeo das organizaccedilotildees de luta armada
O silecircncio dos demais entrevistados sobre as informaccedilotildees que concederam ou natildeo
aos agentes das turmas de interrogatoacuterio preliminar serve aqui como mais um
argumento para a tese de que apesar da grande resistecircncia inicial dos presos poliacuteticos e
162
tambeacutem por causa dela a violecircncia vivida no DOI-CODIRJ nos primeiros dias de
prisatildeo era intensa e quase sempre prevalecia Afinal caso natildeo fosse desse modo os
entrevistados provavelmente orgulhar-se-iam de sua resistecircncia e por conseguinte natildeo
lhes faltariam motivos para lembraacute-la e narraacute-la Logo o silecircncio aqui tambeacutem se torna
revelador
Atraveacutes desse silecircncio destaca-se ainda que talvez pelos mesmos motivos que
Ana opta por lembrar e justificar-se os demais entrevistados optam por silenciar e tentar
esquecer Todos apesar de agirem de acordo com suas personalidades e experiecircncias de
vida provavelmente se sentem culpados ou envergonhados por natildeo terem aguentado
esconder o que sabiam ateacute o fim e poupado muitos de seus companheiros da prisatildeo e ateacute
mesmo da morte
A segunda fase
Passada esta primeira fase da prisatildeo no DOI-CODIRJ que durava em meacutedia uma
ou duas semanas os presos eram transferidos para celas maiores Estas continham
banheiro colchatildeo e em grande parte das vezes outros prisioneiros
Nessa segunda etapa os presos natildeo ficavam isentos das idas agrave ldquosala roxardquo poreacutem
estas natildeo eram tatildeo frequentes quanto anteriormente Afinal a busca desesperada por
ldquopontosrdquo codinomes ou ldquoaparelhosrdquo natildeo mais cabia pois esses prisioneiros jaacute estavam
distantes de suas organizaccedilotildees haacute tempo suficiente para que suas prisotildees fossem
notadas e por conseguinte para que as informaccedilotildees que tivessem jaacute natildeo fossem mais
ldquoquentesrdquo
Nessa fase as visitas agrave ldquosala roxardquo davam-se por outros motivos Normalmente
para ajudar em anaacutelises de novas suspeitas Os agentes das turmas de interrogatoacuterio
preliminar poderiam levar um preso mais antigo para a ldquosala roxardquo para ser acareado
163
com um receacutem-chegado com quem suspeitavam estar de alguma forma relacionado
Poderiam tambeacutem levaacute-lo ateacute laacute para ser interrogado a respeito de novas e possiacuteveis
accedilotildees da esquerda armada conforme indicassem as informaccedilotildees recebidas pelo CODI
conjugadas agraves anaacutelises feitas pelo Setor de anaacutelise e informaccedilotildees sobre algum material
apreendido pela Seccedilatildeo de busca e apreensatildeo Eacute o que pode-se concluir a partir da
caracterizaccedilatildeo sobre a formaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo dos DOI quando colocadas em diaacutelogo
com as informaccedilotildees trazidas pelos trechos destacados abaixo
ldquoNome codinome e aparelhordquo isso eacute que eles querem saber de imediato
Depois que passa algum tempo isso natildeo interessa mais Aiacute eles tecircm um
trabalho mais analiacutetico que era para saber de outros que acabaram de cair o
que eles tecircm de quecirc jaacute participaram o que estaacute acontecendo [] (Batista 17
nov 2004)
[] de quem era preso eles queriam duas informaccedilotildees imediatas eles
comeccedilavam a te bater e soacute pediam o ponto o local de encontro que vocecirc
tivesse com algueacutem e o aparelho que era o apartamento alugado ou qualquer
coisa assim Era isso o que eles queriam basicamente [] (Freire 28 jun
2004)
Como o DOI-CODIRJ tinha poucas celas e muita rotatividade quando o preso
natildeo mais interessava agraves investigaccedilotildees era normalmente mandado para o DOPS onde
era aberto o processo de crime poliacutetico e ficava detido ateacute o primeiro julgamento ndash
como ocorreu com Antocircnio de Carvalho Dulce Pandolfi e Ana de Miranda Batista
Poreacutem quando o seu caso tivesse relaccedilatildeo com uma das outras Forccedilas Armadas o preso
era transferido para a instituiccedilatildeo repressiva diretamente ligada a esta ndash como aconteceu
com Fernando ao ser levado do DOI-CODIRJ para o CISA oacutergatildeo de repressatildeo ligado agrave
Aeronaacuteutica ndash onde permaneceria ateacute quando seus agentes julgassem necessaacuterio Aleacutem
disso caso os agentes do DOI-CODIRJ constatassem que o prisioneiro natildeo estava
164
envolvido diretamente em nenhum crime poliacutetico ele poderia ser posto em liberdade
provisoacuteria ndash como ocorreu com Padre Maacuterio e Ceciacutelia Coimbra
Vale lembrar que o DOI-CODIRJ natildeo era um presiacutedio comum Laacute os suspeitos de
crimes poliacuteticos natildeo estavam cumprindo pena baseada em um processo e sim na
menagem estipulada pelo Coacutedigo Processual Militar criado pelo decreto-lei Nordm1002
de outubro de 1969 Por meio da menagem os suspeitos de crimes poliacuteticos ndash que a
partir do AI-5 tinham passado a ser julgados pela Justiccedila Militar ndash poderiam ser
arbitrariamente detidos e levados ao quartel responsaacutevel pela Regiatildeo Militar onde
estivessem A menagem era justificada como uma forma de prisatildeo cautelar que visava
evitar o conviacutevio do acusado com pessoas que jaacute estivessem condenadas ateacute o seu
julgamento em primeira instacircncia Dessa forma os suspeitos de crimes poliacuteticos da
Regiatildeo Militar que englobava o Rio de Janeiro ficavam detidos no DOI-CODIRJ
localizado no quartel do 1ordm BPE e ali permaneciam presos sem direito a formalidades
convencionais de uma prisatildeo tais como as visitas de familiares e de um advogado por
um periacuteodo que chegava ateacute 30 dias podendo ser prorrogado por mais 60 dias
Poreacutem como ressaltado anteriormente quando novos grupos de suspeitos laacute
chegavam a saiacuteda dos presos mais antigos era impulsionada mesmo sem ainda terem
sido julgados No entanto como esses presos ainda estavam sob a menagem e por isso
natildeo poderiam ir para um presiacutedio comum a assessoria juriacutedica e policial do DOIRJ ou
os transferia ou os colocava em liberdade provisoacuteria controlando nesse uacuteltimo caso
para que natildeo saiacutessem da respectiva Regiatildeo Militar ateacute o seu julgamento em primeira
instacircncia
[] fiquei trecircs meses laacute na PE na Poliacutecia do Exeacutercito na Rua Baratildeo de
Mesquita Depois fui levada para o DOPS [] laacute na PE a gente ficava nessa
triagem sendo torturado ou ouvindo grito de tortura e esperando laacute o tempo
ateacute eles resolverem a nossa situaccedilatildeo e sermos transferidos Entatildeo laacute era um
165
esquema de uma circulaccedilatildeo muito grande de pessoas Daiacute o quartel estava
sempre cheio porque de repente quando caiacutea alguma organizaccedilatildeo
apareciam laacute 30 ou 40 pessoas presas naquela noite e aquilo ficava
abarrotado de gente Entatildeo tinha momentos que a coisa ficava mais
tranquila e tinha momentos que aquilo ali ficava realmente lotado [] a PE
era isso a PE natildeo tinha uma rotina desses presiacutedios da linha tradicional laacute
ningueacutem recebia visita porque era a fase completamente ilegal da sua prisatildeo
[] (Pandolfi 5 fev 2003)
Outro aspecto interessante da menagem que interferia no cotidiano prisional do
DOI-CODIRJ satildeo as regras para o tempo de inquiriccedilatildeo estipuladas pelo decreto-lei nordm
100269 Este impunha que exceto em casos de urgecircncia os presos que estivessem sob
menagem deveriam prestar depoimentos durante o dia das sete e agraves 18 horas Aleacutem
disso esses prisioneiros natildeo poderiam ser inquiridos por mais de quatro horas
consecutivas tendo direito apoacutes esse periacuteodo a um intervalo de meia hora antes de
voltarem a ser interrogados
Art 19 As testemunhas e o indiciado exceto caso de urgecircncia inadiaacutevel que
constaraacute da respectiva assentada devem ser ouvidos durante o dia em
periacuteodo que medeie entre as sete e as dezoito horas
[]
Inquiriccedilatildeo Limite de tempo
2ordm A testemunha natildeo seraacute inquirida por mais de quatro horas consecutivas
sendo-lhe facultado o descanso de meia hora sempre que tiver de prestar
declaraccedilotildees aleacutem daquele termo O depoimento que natildeo ficar concluiacutedo agraves
dezoito horas seraacute encerrado para prosseguir no dia seguinte em hora
determinada pelo encarregado do inqueacuterito (Decreto-lei nordm 1002 21 out
1969)
A partir disso faz mais sentido ainda as diferentes distacircncias existentes entre as
celas e a sala de tortura nas duas fases da prisatildeo Como o prazo maacuteximo estipulado para
um interrogatoacuterio era de quatro horas tendo o prisioneiro apoacutes este tempo direito a um
166
descanso de ao menos meia hora no primeiro momento da prisatildeo no DOI-CODIRJ
deixar o preso perto do local onde eram feitos os interrogatoacuterios era um facilitador Essa
proximidade entre a cela e a ldquosala roxardquo natildeo era necessaacuteria para o preso que estivesse na
segunda etapa da prisatildeo jaacute que ele natildeo seria transportado de um lugar para o outro com
tamanha frequecircncia e provavelmente os interrogatoacuterios que lhe seriam destinados nem
chegassem agraves quatro horas permitidas pelo referido Decreto-lei
Nas narrativas de todos os entrevistados estatildeo presentes as experiecircncias vividas
nas duas fases da prisatildeo Todos eles passaram os primeiros dias em solitaacuterias e
posteriormente ficaram em celas maiores Padre Maacuterio foi a uacutenica exceccedilatildeo Sua prisatildeo
no DOI-CODIRJ natildeo passou por essas duas etapas encaixando-se portanto em um
dos casos extraordinaacuterios dessa instituiccedilatildeo Afinal desde o momento em que foi levado
para o preacutedio do DOI-CODIRJ Padre Maacuterio afirma ter dividido uma cela no segundo
andar com outros padres e depois ter sido transferido para uma cela do primeiro andar
onde ficou sozinho e de frente para as celas de jovens militantes de sua Associaccedilatildeo
conforme pode-se conferir no trecho abaixo
[] foi exatamente em setembro logo nas primeiras duas semanas em que
noacutes estaacutevamos presos que eles me passaram para o primeiro andar porque
estaacutevamos todos no segundo andar [] entatildeo nos primeiros dias noacutes
padres passamos todos juntos [] e depois fomos separados Entatildeo me
colocaram sozinho nessa cela do andar de baixo bem em frente agraves celas dos
jovens que estavam presos no CENIMAR e que foram levados para laacute para
serem torturados [] (Prigol 28 set 2004)
Essa diferenccedila no cotidiano prisional encontra coerecircncia quando embasada por
alguns argumentos aqui levantados Como a fase em que os presos ficavam nas
ldquosolitaacuteriasrdquo tinha por finalidade desestruturaacute-los e principalmente deixaacute-los mais
proacuteximos da sala de tortura para onde seriam levados com frequecircncia essa fase natildeo
167
deveria ser destinada a um padre sem envolvimento em uma organizaccedilatildeo de luta
armada Os militares teriam que responder agrave Igreja caso algo de mais grave lhe
acontecesse dentro do DOI-CODIRJ Colocar sua vida em risco deveria ser uma opccedilatildeo
somente se ele tivesse informaccedilotildees preciosas para a neutralizaccedilatildeo da guerrilha urbana
principal objetivo do grupo de repressatildeo em 1970 conforme indicado na monografia do
coronel Pereira analisada no primeiro capiacutetulo
Entatildeo como a associaccedilatildeo da qual participava a ACO natildeo tinha envolvimento
com a luta armada a morte de Padre Maacuterio poderia causar desnecessariamente uma
tensatildeo ateacute entatildeo natildeo deflagrada entre o Exeacutercito e a Igreja Catoacutelica 47
Aleacutem disso
como se encontrava em uma faixa etaacuteria mais elevada com cerca de 40 anos ele tinha o
agravante de ter uma sauacutede mais fraacutegil que grande parte dos presos do DOI-CODIRJ
que eram majoritariamente jovens estudantes Assim o tratamento prisional
diferenciado ali recebido por Padre Maacuterio visava diminuir as chances que ele tinha de
desenvolver problemas decorrentes de torturas Essa interpretaccedilatildeo encontra fortes
indiacutecios em um dos trechos de sua entrevista
[] a mim eles soacute colocaram o fio eleacutetrico aqui [aponta para um dedo da
matildeo esquerda] e no peacute esquerdo eu fiquei sabendo que no mesmo lado do
corpo eu natildeo sentiria tatildeo forte mas mesmo assim eu resisti resisti Bom
entatildeo diante da prisatildeo da gente eu sofri tambeacutem torturas mas eu depois
que fingi estar sentindo o coraccedilatildeo eles deixaram de dar choques [risos]
Cada um tem que se defender de alguma forma (Prigol 28 set 2004)
Afinal por meio da descriccedilatildeo acima destacada nota-se que apesar de natildeo
excluiacuterem Padre Maacuterio das sessotildees de tortura uma vez que era esse o procedimento de
investigaccedilatildeo do DOI-CODIRJ existia de fato certo temor em causar-lhe graves
47
Para informaccedilotildees sobre as tensotildees que ocorreram entre a Igreja Catoacutelica e a ditadura militar ver
Serbin 2001 17-77
168
sequelas Dessa forma por mais que Padre Maacuterio relate que sua atitude de defesa
conseguiu inibir a accedilatildeo daqueles agentes conclui-se aqui que caso ele natildeo tivesse as
caracteriacutesticas profissionais morais etaacuterias e ideoloacutegicas aqui descritas certamente tal
inibiccedilatildeo natildeo ocorreria Ao menos natildeo na mesma proporccedilatildeo
Testando a resistecircncia
No ano de 1970 esta preocupaccedilatildeo em evitar sequelas evidentemente natildeo se
aplicava a jovens presos que tivessem algum tipo de ligaccedilatildeo com organizaccedilotildees
oposicionistas adeptas da luta armada Conforme pode-se conferir nos relatos sobre os
danos agrave sauacutede que Dulce Fernando e Ana destacam ter sofrido por conta das torturas
recebidas no DOI-CODIRJ
[] fiquei tomando medicaccedilatildeo especial porque eu estava muito mal estava
com uma paralisia tambeacutem por causa da tortura tinha ficado completamente
travada aquilo vocecirc vai contraindo contraindo e deixava vocecirc semiparaliacutetica
[] (Pandolfi 5 fev 2003)
Eu desmaiava acordava e o pau comia desmaiava acordava e o pau
comia Natildeo foi faacutecil natildeo Eu lembro que quando eu saiacute da PE um mecircs
depois eu fazia assim [passa a matildeo no ouvido] e vinha sangue vinha pus eu
estava bem abalado mesmo (Freire 28 jun 2004)
[] eu fiquei um mecircs no Rio no DOI-CODI Desse mecircs uma semana eu
fiquei no HCE [Hospital Central do Exeacutercito] eu tremia sem parar eu estava
cheia de ferida (Batista 17 nov 2004)
Em todas as fases da prisatildeo para cuidar dos estragos causados agrave sauacutede do preso
durante ou apoacutes a sessatildeo de tortura existiam enfermeiros e meacutedicos no DOI-CODIRJ
Os enfermeiros tratavam os prisioneiros nas celas conforme a recomendaccedilatildeo dos
169
meacutedicos Jaacute esses aleacutem de examinarem e receitarem cuidados especiais aos presos
machucados tambeacutem auxiliavam as turmas de interrogatoacuterio preliminar durante as
torturas averiguando os sinais vitais dos presos a fim de constatarem o quanto eles
ainda poderiam suportar No entanto quando a tortura saiacutea de controle de tal forma que
algum preso ficasse tatildeo mal que natildeo respondesse agrave medicaccedilatildeo e aos cuidados meacutedicos
feitos dentro do quartel esse poderia ser levado pelas turmas de busca e apreensatildeo
conforme demonstrado no primeiro capiacutetulo ateacute o Hospital Central do Exeacutercito48
onde
receberiam um tratamento mais especializado
A existecircncia de meacutedicos no DOI-CODIRJ pode ser averiguada por meio da
confissatildeo de Amilcar Lobo noticiada pela Revista Eacutepoca apresentada abaixo
(EacutePOCA 27 nov 2000 104)
Meacutedico de formaccedilatildeo psicanaliacutetica ele foi denunciado por muitos ex-prisioneiros
por exercer a profissatildeo prestando assessoria a torturas entre 1970 e 1974 no DOI-
CODIRJ Diante disso em 1988 teve o seu registro de meacutedico cassado pelo Conselho
Regional de Medicina do Rio de Janeiro A atuaccedilatildeo de Amilcar Lobo assim como a de 48
O Hospital Central do Exeacutercio (HCE) ainda estaacute localizado no mesmo local da eacutepoca na Rua Francisco
Manoel nordm 126 no bairro de Benfica na cidade do Rio de Janeiro Para mais informaccedilotildees acessar
httpwwwhceebmilbr
170
meacutedicos e enfermeiros em geral tambeacutem eacute encontrada nos depoimentos aqui
analisados conforme pode-se conferir nos trechos destacados a seguir
[] a primeira pessoa que me visitou antes de eu ser torturada foi um
meacutedico o Amilcar Lobo que depois eu denunciei o lsquofilho da putarsquo e a gente
conseguiu cassaacute-lo como meacutedico [] ele acompanhava as torturas antes
durante e depois era o assessor de tortura ele dizia ldquo- Daacute uma paradinha
agorardquo Isso para vocecirc aguumlentar neacute Entatildeo ele entrou na minha cela e me
perguntou se eu era cardiacuteaca tirou a minha pressatildeo e eu natildeo entendendo
nada Ele tinha um esparadrapo aqui [aponta para o lado esquerdo do peito]
para a gente natildeo ver o nome dele Eu fiquei sabendo o nome dele porque
meses depois eu jaacute estava na cela de Dulce [Pandolfi]49
quando ele
porque a Dulce ficou praticamente sem mexer as matildeos [] e ele entrou e
esqueceu o receituaacuterio com o nome dele noacutes olhamos e eu quando saiacute de laacute
o denunciei Anos depois a gente conseguiu que ele fosse cassado []
(Coimbra 30 nov 2004)
[] o meacutedico que vinha te ver vinha para ver as suas condiccedilotildees se tinha que
parar ou se podia continuar a te torturar Os caras batiam muito localizado
em partes que vocecirc resiste mais que satildeo nas naacutedegas nessa parte daqui
[aponta para as costas] Entatildeo satildeo lugares que o seu corpo suporta mais []
(Freire 28 jun 2004)
[] como eu fiquei muito mal eu tive cuidados meacutedicos o tempo quase todo
quer dizer claro que eram cuidados meacutedicos no sentido de me prepararem
para apanhar mais para ser mais torturada queriam evitar que eu morresse
porque politicamente natildeo interessava [] tinha laacute dois enfermeiros de rotina
e tinham tambeacutem dois meacutedicos o mais presente o que sempre visitava a
gente era o Amilcar Lobo Em alguns casos ele participou de algumas
sessotildees de tortura no meu eu me lembro dele dizendo ldquo- ela aguentardquo
tomando minha pressatildeo dizendo que eu aguentava apanhar mais ainda
(Pandolfi 5 fev 2003)
49
Dulce e Ana e Dulce e Ceciacutelia dividiram celas em parte do periacuteodo em que estiveram presas no DOI-
CODIRJ A convivecircncia que laacute tiveram seraacute analisada ainda neste capiacutetulo
171
De fato a tortura estava presente em grande parte do cotidiano do DOI-CODIRJ
e para que fosse eficiente e natildeo causasse maiores problemas tal como mortes
indesejadas ao redor dela havia todo um aparato Esse era formado tanto por
enfermeiros e meacutedicos como tambeacutem por outras especificidades tais como teacutecnicas
treinamentos e equipamentos que seratildeo tratados a seguir
Os meacutetodos da tortura
O meacutedico psicanalista Heacutelio Pelegrino traz uma oacutetima definiccedilatildeo sobre como
funciona a tortura poliacutetica
[] a tortura busca agrave custa do sofrimento corporal insuportaacutevel introduzir
uma cunha que leve agrave cisatildeo entre o corpo e a mente E mais do que isto ela
procura a todo preccedilo semear a discoacuterdia e a guerra entre o corpo e a mente
Atraveacutes da tortura o corpo torna-se nosso inimigo e nos persegue Eacute este o
modelo baacutesico no qual se apoacuteia a accedilatildeo de qualquer torturador [] na tortura
o corpo volta-se contra noacutes exigindo que falemos Da mais iacutentima espessura
de nossa proacutepria carne se levanta uma voz que nos nega na medida em que
pretende arrancar de noacutes um discurso do qual temos horror jaacute que eacute a
negaccedilatildeo de nossa liberdade A tortura nos impotildee a alienaccedilatildeo total de nosso
proacuteprio corpo tornando estrangeiro a noacutes e nosso inimigo de morte
(Pelegrino 5 jun 1982 3)
No interior do DOI-CODIRJ em nenhuma das fases da prisatildeo os presos poliacuteticos
eram poupados de torturas No iniacutecio as visitas agrave ldquosala roxardquo eram mais constantes mas
durante todo o periacuteodo em que permaneciam no DOI-CODIRJ os prisioneiros eram
levados para laacute e laacute eram torturados Nessa sala existiam equipamentos proacuteprios
tornando ainda maior a gama de possibilidades de tortura a serem perpetradas aos
prisioneiros Devido a essa diversidade as torturas recebiam nomes proacuteprios para serem
identificadas pelos oficiais das turmas de interrogatoacuterio preliminar do DOIRJ Tais
172
nomes na maior parte das vezes eram irocircnicos e serviam para demonstrar como ali a
praacutetica da tortura era usual e ao mesmo tempo encarada com naturalidade e frieza
pelos seus executores
Em A Tortura tomo V do ldquoProjeto Ardquo (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985)
encontram-se a caracterizaccedilatildeo e os nomes dessas torturas Comumente citadas pelos
presos poliacuteticos da ditadura militar do Brasil a identificaccedilatildeo dessas torturas foi baseada
sobretudo na anaacutelise da documentaccedilatildeo dos processos judiciais da eacutepoca Afinal muitas
vezes anexadas a esses processos encontram-se denuacutencias sobre torturas feitas por
prisioneiros poliacuteticos nas auditorias militares Essas denuacutencias vatildeo ao encontro de
muitas das descriccedilotildees encontradas nas narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos Antocircnio
Dulce Fernando Padre Maacuterio Ana e Ceciacutelia construiacutedas jaacute em tempos democraacuteticos
(2002-2004) Algumas delas satildeo destacadas a seguir
Capuz tortura psicoloacutegica Impedimento da visatildeo por meio de um capuz
ficando o indiviacuteduo incapacitado de se defender dos golpes a ele direcionados
Espancamento tapas socos e pontapeacutes aplicados em regiotildees como rins
estocircmago e diafragma
Telefone eletrochoque dado por um telefone de campainha do Exeacutercito
possuindo dois fios longos que satildeo ligados ao corpo molhado normalmente nas
partes genitais e nos mamilos aleacutem dos ouvidos dentes liacutengua e dedos
Pau-de-arara um dos meacutetodos mais antigos de tortura pelo qual se pendura a
viacutetima em posiccedilatildeo de ldquofrango assadordquo nua e de cabeccedila para baixo em um pau
preso no alto por duas barras de ferro causando dores terriacuteveis na cabeccedila e em
todo corpo
Choques eleacutetricos normalmente complemento do pau-de-arara Caracteriza-se
por enviar descargas eleacutetricas em contato com o corpo nu e molhado atraveacutes de
173
um magneto com dois terminais estando um geralmente nos oacutergatildeos genitais e
outro em alguma extremidade sensiacutevel do corpo como liacutengua mamilos e dedos
Palmatoacuteria raquete de madeira aplicada fortemente nas matildeos peacutes naacutedegas e
costas da viacutetima
Afogamento Complemento do pau-de-arara Pode ser aplicado ou por meio de
um pequeno tubo de borracha que lanccedila aacutegua na boca e nas narinas do
torturado ou atraveacutes de uma toalha molhada depositada tambeacutem na boca deste
ao mesmo tempo em que um jato drsquoaacutegua eacute lanccedilado em suas narinas
No referido tomo V do Projeto Brasil Nunca Mais encontram-se trechos das
denuacutencias feitas por Dulce Pandolfi nas auditorias militares em 1970 e tambeacutem por seu
advogado Dr Heleno Fragoso Comparando partes dessas denuacutencias de 1970 com
trechos da entrevista concedida por Dulce em 2003 nota-se que haacute muitos pontos em
comum No entanto percebe-se que em sua narrativa de 2003 as torturas satildeo relatadas
de forma mais impessoal e que talvez pelo tempo que separa este depoimento daquele
de 1970 alguns detalhes se perderam foram esquecidos ou mesmo silenciados Eacute o que
pode-se perceber nas transcriccedilotildees feitas a seguir
Nordm 433 Dulce Chaves Pandolfi Prof estudante Idade 23 Local Rio de
Janeiro (CODI) Ano 1970 Apelaccedilatildeo 39778 Vol 1 PAacuteG 328v LVI
PARTE auto de qualificaccedilatildeo e interrogatoacuterio ndash Auditoria
[] que no quartel da PE na Rua Baratildeo de Mesquita assinou sob torturas o
depoimento () que na sala de torturas da PE foi despida e aplicaram-lhe
choques eleacutetricos nas matildeos que foi levada para uma cela onde deram-lhe
um banho frio e sob o pretexto de ensaboaacute-la os torturadores alisavam o seu
corpo que ao retornar agrave sala de torturas foi colocada no chatildeo com um
jacareacute sobre seu corpo nu que depois foi pendurada num pau-de-arara que
levou choques na vagina no acircnus nos seios na cabeccedila e no restante do
corpo [] que ficou em estado de choque vomitando sangue que por 15
174
dias ficou totalmente paraliacutetica [] que foi exposta perante 20 oficiais
como numa demonstraccedilatildeo de aulas de torturas pau-de-arara e choques []
(Arquidiocese de Satildeo Paulo tomo V 1985 757)
Nordm 433 Dulce Chaves Pandolfi Prof estudante Idade 21 Local R de
Janeiro Ano 1970 Apelaccedilatildeo 39778 Vol 2ordm PAacuteG 712807 LVI
PARTE advogado
[] Com a palavra o Dr Heleno Fragoso defensor da acusada Dulce Chaves
Pandolfi este declarou que ela foi presa em agosto de 1970 tendo sido
submetida a uma seacuterie de torturas tendo inclusive o Delegado do DOPS
mandado submetecirc-la a exame de corpo de delito para salvaguardar a sua
responsabilidade [] Natildeo usaremos a palavra do co-reacuteu Paulo Henrique
Oliveira da Rocha Lins que foi ldquoforccedilado a presenciar a acusada DULCE
PANDOLFI sendo pisoteada nua no chatildeordquo (cf fls 325) Remeteremos o E
Conselho ao laudo fls 358 onde dois meacutedicos legistas do Instituto Meacutedico
Legal examinam a acusada e concluem pela verossimilhanccedila a
plausibilidade de suas alegaccedilotildees no sentido de que fora espancada
constatando os vestiacutegios das lesotildees Estaacute laacute a fls 358 a verdade do
inqueacuterito
Esse sofrimento deve ter sido tanto maior quanto era possiacutevel agrave acusada
fornecer as informaccedilotildees que seus torturadores exigiam [] (Arquidiocese de
Satildeo Paulo tomo V 1985 759)
[] vocecirc apanhava era super torturada ali em 1970 natildeo tinha escapatoacuteria
esse era o procedimento era a rotina e aiacute depois da tortura vocecirc jaacute toda
cheia de hematomas passando mal vocecirc era levada para uma cela muitas
vezes essas pessoas saiacuteam da sala de tortura e iam direto para essa cela onde
eu estava entatildeo eu tambeacutem presenciei muitas pessoas que chegavam laacute
completamente quebradas arrebentadas e essa era a nossa vida []
[] tinha o pau-de-arara que eu fui pendurada vaacuterias vezes nele com os
ferros verdes e as cordas tinha o tal telefone de choque que era para mim
um dos piores instrumentos era um aparelho de choque eleacutetrico tinha a
cadeira que eles tambeacutem te amarravam faziam mil sacanagens e tinha uns
enfim tinha uma espeacutecie de chicote que eles te batiam um porrete A tortura
tem vaacuterios procedimentos e tinha na PE nessa eacutepoca um jacareacute Ele natildeo
ficava na sala de tortura Esse jacareacute ficava do lado de fora Quando algumas
pessoas foram presas eles trouxeram o jacareacute para amedrontar Colocavam o
175
jacareacute sobre o seu corpo Era um filhote de jacareacute mas razoavelmente
grande quer dizer de um metro mais ou menos e era mais um dos
instrumentos que eles usavam [] fiquei tomando medicaccedilatildeo especial
porque eu estava muito mal estava com uma paralisia tambeacutem por causa da
tortura tinha ficado completamente travada eacute aquilo vocecirc vai contraindo
contraindo e deixava vocecirc semiparaliacutetica [] (Pandolfi 5 fev 2003)
A partir da comparaccedilatildeo dos trechos dos diferentes depoimentos acima destacados
dados sobre cenaacuterios e temporalidades distintas nota-se que a narrativa construiacuteda por
Dulce Pandolfi em 2003 eacute muito menos detalhada do que a por ela proferida em 1970
Percebe-se portanto no caso de Dulce que o presente vivido em 2003 de certa forma
agia sobre sua memoacuteria do passado ditatorial impulsionando o silecircncio sobre as
minuacutecias dos sofrimentos vividos no DOI-CODIRJ Logo nas memoacuterias de Dulce
nota-se uma inversatildeo da perspectiva de que o presente democraacutetico promovia uma
narrativa que enfatizasse os detalhes das torturas sofridas durante a ditadura militar a
fim de solidificar as conquistas ateacute entatildeo conseguidas e alcanccedilar outras tantas no futuro
Talvez em 2003 Dulce por jaacute ser uma mulher madura e uma profissional
reconhecida entendesse que o constrangimento trazido pela exposiccedilatildeo total de suas
memoacuterias sobre as torturas sofridas no passado superasse a vontade de denunciaacute-las no
presente Afinal naquele ano a democracia dava fortes sinais de consolidaccedilatildeo uma vez
que Lula ex-liacuteder sindical e perseguido poliacutetico pela ditadura acabava de assumir a
Presidecircncia do Brasil e o Estado brasileiro jaacute vinha reconhecendo sua responsabilidade
diante dos abusos da eacutepoca militar atraveacutes da concessatildeo de reparaccedilotildees financeiras agraves
famiacutelias dos militantes poliacuteticos desde entatildeo desaparecidos (lei nordm 914095) e agraves
viacutetimas de torturas em prisotildees poliacuteticas do periacuteodo (lei nordm 1055902)
Jaacute em 1970 os detalhes sobre as torturas sofridas por Dulce ainda eram
extremamente recentes e portanto muito presentes em sua memoacuteria Aleacutem disso tinha
consciecircncia de que no instante de seu depoimento muitos de seus companheiros
176
continuavam a sofrer dentro dos oacutergatildeos de repressatildeo com as mesmas torturas que havia
recebido E principalmente como estava defendendo-se perante um tribunal a
exposiccedilatildeo dos detalhes de suas torturas apresentava-se como uma arma importante na
luta em prol de sua liberdade
Diante disso enquanto Dulce relata em sua entrevista saber do uso de um filhote
de jacareacute como mais um instrumento de tortura utilizado no DOI-CODIRJ sem no
entanto afirmar ter passado por tal experiecircncia Ceciacutelia Coimbra em 2004 narra que
esse filhote de jacareacute havia sido colocado pelos militares sobre seu corpo nu
[] me botaram nua me amarraram numa cadeira e me puseram um filhote
de jacareacute que era um filhote de jacareacute que eles puxavam por uma corda no
pescoccedilo do pobre do jacareacute Era um filhote e aiacute eles puxavam o jacareacute
botavam o jacareacute em cima Olha era uma coisa horriacutevel Nessa hora eu
desmaiei neacute Natildeo aguentei [] (Coimbra 30 nov 2004)
Durante sua entrevista em 2004 Ceciacutelia descreve ter passado pela mesma
situaccedilatildeo de tortura que Dulce havia descrito em seu depoimento agrave Justiccedila Militar em
1970 mas que no presente em 2003 optou por relatar de forma impessoal Isso se
justifica pelo fato de para Ceciacutelia a descriccedilatildeo dos detalhes ainda ser essencial Afinal
Ceciacutelia eacute uma das fundadoras e ativistas assiacuteduas do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio
de Janeiro (GTNMRJ) onde ocupava entatildeo o cargo de vice-presidente
Eacute evidente portanto que na vida de Ceciacutelia a narrativa sobre os sofrimentos
acarretados pela repressatildeo militar ainda era arma na luta que travava para a
solidificaccedilatildeo das conquistas e para a concretizaccedilatildeo de outras tantas que julgava serem
igualmente importantes Para ela diferentemente de Dulce esse tipo de narrativa era
mais que sua memoacuteria pessoal dizia respeito tambeacutem a seu ofiacutecio Acreditava que o seu
sucesso pessoalprofissional dependia do detalhamento da memoacuteria sobre tais violaccedilotildees
177
o que colocava tais detalhes em um lugar de mais faacutecil aceitaccedilatildeo e por conseguinte
exteriorizaccedilatildeo
Mediante os depoimentos de Dulce e Ceciacutelia que chegaram a dividir cela no DOI-
CODIRJ como poderaacute ser visto paacuteginas agrave frente conclui-se que em meados de 1970
um filhote de jacareacute era utilizado para torturar os presos poliacuteticos do 1ordm BPE O uso
desse tipo de tortura eacute aqui entendido mais por seus efeitos psicoloacutegicos do que fiacutesicos e
como sendo destinado mais agraves presas do que aos presos poliacuteticos Afinal apesar de
tocar nos corpos das viacutetimas como acontece durante as torturas fiacutesicas aparentemente
o jacareacute que era dominado por um militar atraveacutes de uma corda amarrada em seu
pescoccedilo natildeo as atacava ou seja natildeo as causava lesotildees externas Era claramente
utilizado com o intuito de ameaccedilaacute-las Dessa forma mesmo sendo efetuado atraveacutes da
accedilatildeo direta do torturador e mediante o contato fiacutesico esse mecanismo de tortura tinha
por objetivo causar danos exclusivamente psicoloacutegicos Como normalmente as
mulheres possuem mais sensibilidades e fobias relacionadas ao contato com animais
provavelmente esse tipo de tortura atingisse maior eficiecircncia quando destinado agraves
presas
Conforme jaacute analisado e inclusive indicado pelo nome Destacamento de
Operaccedilotildees de Informaccedilotildees (DOI) os presos do DOIRJ estavam ali para fornecer
informaccedilotildees que levassem agrave neutralizaccedilatildeo das organizaccedilotildees poliacuteticas de esquerda
Assim de acordo com a necessidade da raacutepida extraccedilatildeo de tais dados caracterizada
anteriormente natildeo eacute difiacutecil concluir que o clima de ameaccedila e tortura estivesse por toda
parte do preacutedio Portanto percebe-se que as torturas no DOI-CODIRJ de 1970 natildeo se
limitavam agraves fiacutesicas e nem agrave ldquosala roxardquo elas se apresentavam sob diversas faces em
vaacuterios momentos e lugares do edifiacutecio
178
As torturas psicoloacutegicas eram variadas Aleacutem da degradaccedilatildeo inicial que o
desconforto das celas ldquosolitaacuteriasrdquo trazia ao prisioneiro mesmo nas celas coletivas os
presos eram submetidos a muitos outros artifiacutecios desse tipo de tortura tais como luzes
das celas constantemente acesas a fim de que perdessem a noccedilatildeo da passagem do
tempo carcereiros durante a noite abrindo repetidamente a janelinha do portatildeo das
celas para vigiaacute-los acordando-os jaacute que o movimento emitia um som alto visitas
recorrentes de militares agraves celas e gritos vindos da ldquosala roxardquo ouvidos a todo tempo
[] essa porta da nossa cela ela tinha uma abertura era uma porta fechada
natildeo era grade natildeo era uma porta pesada e ela tinha um quadrado em cima
com uma abertura para o lado de fora e esses soldados que faziam a ronda
eles abriam essa portinha de cinco em cinco minutos Entatildeo eles passavam e
ldquopahrdquo e dependendo da maldade desses caras eles batiam com mais forccedila
ou menos forccedila isso era a noite toda Inclusive a luz ficava acesa
permanentemente e essa batidinha desse negoacutecio era uma coisa insuportaacutevel
De vez em quando a gente estava pegando no sono e tomava aquele susto
com aquela batida [] a gente tambeacutem ouvia muito grito de tortura o tempo
todo (Pandolfi 5 fev 2003)
[] nem na hora de dormir apagavam a luz dia e noite era a luz acesa vocecirc
sabia o horaacuterio pela hora do cafeacute da manhatilde Mas ateacute se tinha alguma noccedilatildeo
porque como a janela laacute no alto da parede era de vidro dava para vocecirc
perceber que estava agrave noite [] (Carvalho 8 fev 2003)
[] eles faziam o tal do confere de manhatilde e de noite vinham com catildees
policiais farejando a gente e a gente tinha que ficar em peacute igual a soldado
dizendo - ldquoCeciacutelia Coimbrardquo Tinha que falar o nome [] era o tal do
confere E era uma coisa de humilhaccedilatildeo eles de madrugada abriam
estrondosamente as celas entendeu [] era como se noacutes fossemos animais
animais de circo Animais raros eacuteramos os lsquoterroristasrsquo neacute [] era o tempo
todo as torturas fiacutesicas e a coisa da rotina para te degradar enquanto ser
humano [] (Coimbra 30 nov 2004)
179
Outro tipo de tortura psicoloacutegica aplicada no DOI-CODIRJ de 1970 fora da ldquosala
roxardquo jaacute aqui mencionada era o capuz Os agentes das turmas auxiliares encarregados
da carceragem colocavam uma espeacutecie de capuz no prisioneiro quando o levavam da
cela ateacute a ldquosala de torturardquo No entanto no momento em que o preso chegava nessa sala
tinha o capuz retirado pelos agentes das turmas de interrogatoacuterio preliminar Logo no
DOI-CODIRJ de 1970 o capuz ainda natildeo era um mecanismo para esconder os rostos
dos torturadores e sim mais um artifiacutecio de intimidaccedilatildeo do prisioneiro Aliaacutes foi
exatamente por isso que muitos ex-prisioneiros conseguiram anos depois denunciar
militares que na eacutepoca teriam sido seus algozes 50
Ana Batista ressalta ainda ter sido submetida no DOI-CODIRJ a outro tipo de
tortura psicoloacutegica O meacutedico Amilcar Lobo teria solicitado a um agente da turma
auxiliar de plantatildeo que a carregasse ateacute uma sala do 1ordm BPE fora do preacutedio do DOI-
CODIRJ jaacute que estava com ferimentos que natildeo permitiam que andasse Laacute Ana foi
supostamente examinada pelo referido meacutedico e dele escutou o diagnoacutestico de que natildeo
poderia ter filhos pois tinha o uacutetero infantil e retrovertido ou seja atrofiado e virado
para a parte posterior do corpo No entanto apoacutes ser posta em liberdade quatro anos
depois Ana descobriu que aquela afirmaccedilatildeo natildeo era verdadeira pois poderia
engravidar tendo tido posteriormente dois filhos
Eu sei que tem o paacutetio porque uma vez me carregaram para laacute um soldado
foi e me carregou Eu natildeo estava andando eu estava toda ferida entatildeo ele
me carregou pelo paacutetio ateacute uma espeacutecie de consultoacuterio do Amilcar Lobo []
eu estava toda ferida na vagina devido aos choques eleacutetricos e porque
tinham me enfiado o cassetete [] Aiacute ele me examinou e disse assim ldquo-
Vocecirc tem o uacutetero infantil e retrovertido vocecirc nunca vai poder ter filhosrdquo
Assim Eu tinha 21 anos e passei quase quatro anos achando que eu nunca ia
poder ter filhos O cara sabia o que estava fazendo (Miranda 17 nov 2004)
50
Em Os Funcionaacuterios tomo II do Projeto Brasil Nunca Mais se encontra a relaccedilatildeo alfabeacutetica das
pessoas envolvidas com torturas (Arquidiocese de Satildeo Paulo 1985 1-60)
180
Esse tipo de tortura psicoloacutegica destacada no trecho acima coincide com o tipo de
cotidiano vivido pelos presos do DOI-CODIRJ No entanto encaixa-se tambeacutem com o
estilo enfaacutetico que a narrativa de Ana atribuiacutea em 2004 aos danos que a prisatildeo poliacutetica
lhe causara A recente composiccedilatildeo de seu memorial sobre os sofrimentos vividos
durante a ditadura militar enviado agrave Comissatildeo Especial da Secretaria de Direitos
Humanos do Estado do Rio de Janeiro pautava-se no objetivo de receber o valor
maacuteximo da reparaccedilatildeo financeira oferecida pelo Estado No momento da entrevista era
esse o presente que Ana vivia e era atraveacutes dele que inconscientemente lia o passado
Logo sua narrativa apesar de aparentemente coerente sofria influecircncias que as
aspiraccedilotildees e interpretaccedilotildees do presente involuntariamente impuseram a suas memoacuterias
Poreacutem o fato do meacutedico Amilcar Lobo ter lhe dado um diagnoacutestico falso de
esterilidade encontra explicaccedilatildeo natildeo soacute em sua narrativa construiacuteda a partir da
interpretaccedilatildeo de que a notiacutecia teria sido motivada apenas pelo grande dano psicoloacutegico
que isso causaria a uma jovem de 21 anos mas tambeacutem no papel que o meacutedico
desempenhava dentro daquela instituiccedilatildeo Afinal aleacutem de funcionar como uma tortura
psicoloacutegica o diagnoacutestico dado por Amilcar Lobo foi provavelmente uma forma de
tentar resguardar o DOI-CODIRJ de possiacuteveis acusaccedilotildees posteriores de tecirc-la tornado
infeacutertil tantos eram os ferimentos que Ana havia sofrido em seus oacutergatildeos reprodutores
Afinal conforme constatado a principal funccedilatildeo do meacutedico ali era auxiliar as torturas e
cuidar dos ferimentos dos presos na tentativa de proteger a instituiccedilatildeo de acusaccedilotildees que
poderiam trazer preocupaccedilotildees futuras por exemplo a responsabilidade por graves
ferimentos e mortes
Isso no entanto natildeo quer dizer que as torturas do DOI-CODIRJ natildeo tenham
ocasionado mortes Sabe-se que muitos prisioneiros poliacuteticos depois de laacute entrarem
foram dados como desparecidos Quando esses presos eram mortos dentro de
181
instituiccedilotildees como o DOI-CODIRJ os militares envolvidos ou desapareciam com os
corpos pois assim natildeo se tinha como provar o que havia acontecido e por conseguinte
natildeo existiriam culpados ou quando a prisatildeo tivesse sido noticiada por algum meio de
comunicaccedilatildeo o corpo aparecia sob uma justificativa forjada que excluiacutesse a culpa da
instituiccedilatildeo prisional Na maior parte das vezes dizia-se que o prisioneiro havia
cometido suiciacutedio na prisatildeo ou sido baleado em tiroteio o que se supunha estar
relacionado a uma anterior tentativa sua de fuga
Nas entrevistas aqui trabalhadas alguns depoentes relataram ter tido contato
dentro do DOI-CODIRJ com pessoas que depois foram dadas como mortas sob tais
justificativas Dulce por exemplo afirma ter sido acareada durante uma sessatildeo de
tortura com Eduardo Collen Leite o Bacuri morto segundo a Comissatildeo Especial sobre
Mortos e Desaparecidos (2007 139) no Forte dos Andradas na cidade do Guarujaacute
(SP) trecircs dias apoacutes militares implantarem na imprensa a falsa notiacutecia de sua fuga
atribuindo sua morte a um suposto tiroteio na rua entre ele e militares
Quando eu estava laacute eu fui acareada com o Bacuri Eu jaacute encontrei com ele
assim muito mal ele estava respirando mal foi uma cena assim muito barra
pesada e eu sei que depois ele morreu eu natildeo sei se ele morreu laacute mas logo
depois que eu estive com ele ele morreu Ele eacute um desses mortos do
processo Ele morreu fruto de tortura ele foi brutalmente torturado ele jaacute
chegou na PE muito torturado muito quebrado e teve comentaacuterios de
torturadores que diziam ter feito um estrago muito grande nele e natildeo tinham
conseguido que ele falasse as coisas que eles queriam que ele falasse
(Pandolfi 5 fev 2003)
Fernando teve seu irmatildeo Eiraldo de Palha Freire baleado e junto com ele preso
pelos militares da Aeronaacuteutica no aeroporto do Galeatildeo no Rio de Janeiro Mesmo
gravemente ferido Eiraldo foi segundo Fernando e a Comissatildeo Especial sobre Mortos
e Desaparecidos (2007 131) transferido para o DOI-CODIRJ e laacute morto sob torturas
182
Poreacutem de acordo com Fernando seu corpo foi entregue agrave famiacutelia sob a versatildeo de
suiciacutedio
Meu irmatildeo veja bem ele foi metralhado no aviatildeo mas ele estava vivo e
ainda foi parar no DOI-CODI Ele estava ferido mas chegou a levar tortura
natildeo resistiu e morreu aiacute disseram que ele se suicidou (Freire 28 jun 2004)
Hoje no entanto grande parte dos mortos e desaparecidos foi reconhecida pelo
Estado brasileiro A Comissatildeo Especial sobre Mortos e Desaparecidos Poliacuteticos
implantada pela lei 914095 encerrou em 2006 a etapa de reconhecimento e reparaccedilatildeo
financeira agraves famiacutelias reconhecendo um total de 253 mortos e desaparecidos poliacuteticos
por autoridades do Estado brasileiro entre os anos de 1961 e 1988 A partir de 2007
essa Comissatildeo passou a concentrar-se na busca e no reconhecimento de ossadas para
que muitas famiacutelias descubram o que de fato aconteceu com seus entes desaparecidos e
possa enterraacute-los conforme indicado pelo seu livro-relatoacuterio Direito agrave verdade e agrave
memoacuteria (2007)
A partir da anaacutelise aqui feita a respeito das torturas a que os presos eram
submetidos no DOI-CODIRJ em 1970 nota-se que essas eram destinadas a todos que
laacute entravam No entanto percebe-se que a intensidade das torturas no DOI-CODIRJ de
1970 variava de acordo principalmente com o tempo de prisatildeo com o tipo de
organizaccedilatildeo que o preso integrasse (se era ou natildeo adepta da luta armada) e com a
resistecircncia que ele apresentasse para conceder as informaccedilotildees que os agentes das turmas
de interrogatoacuterio preliminar buscavam
Logo constata-se que quanto mais ativa fosse a organizaccedilatildeo de luta armada a que
o prisioneiro estivesse relacionado mais ele seria submetido a torturas e quanto mais
ele resistisse a essas mais intensas elas seriam podendo inclusive acarretar sua morte
183
Afinal os prisioneiros ligados a organizaccedilotildees armadas em ampla atividade tinham mais
informaccedilotildees sobre outros militantes procurados
Diante disso como a ALN e o MR-8 eram organizaccedilotildees envolvidas em grandes
accedilotildees armadas da eacutepoca ndash tais como os sequestros dos embaixadores americano e
alematildeo e do aviatildeo da Companhia Aeacuterea Cruzeiro do Sul ocorridos em 4 de setembro de
1969 11 de junho de 1970 e 1ordm de julho de 1970 respectivamente ndash os prisioneiros que
delas faziam parte ou tinham algum tipo de relaccedilatildeo com seus militantes foram
submetidos a intensas torturas no DOI-CODIRJ Como os perfis de Dulce Fernando
Ana e Ceciacutelia se encaixavam nessas caracteriacutesticas conforme analisado no segundo
capiacutetulo a eles foi imposto no DOI-CODIRJ um cotidiano ainda mais violento do que
por exemplo a Antocircnio
Afinal em meados de 1970 quando Antocircnio de Carvalho51
foi preso e levado
para o DOI-CODIRJ o PCBR sua organizaccedilatildeo na eacutepoca apesar de adepta da luta
armada jaacute se encontrava relativamente desestruturada uma vez que suas principais
lideranccedilas jaacute haviam ldquocaiacutedordquo Dessa forma o PCBR mesmo ainda em atividade natildeo
estava envolvido em accedilotildees tatildeo organizadas e com tamanha repercussatildeo como estavam a
ALN e o MR-8 por exemplo Entatildeo Antocircnio apesar de passar pelas duas fases da
prisatildeo e natildeo ser poupado de duras torturas como ocorreu com Padre Maacuterio
provavelmente natildeo sofreu o mesmo grau de violecircncia destinado a Dulce Fernando Ana
e Ceciacutelia As informaccedilotildees que ele tinha natildeo levariam o DOI-CODIRJ aos envolvidos
com as accedilotildees armadas em destaque na eacutepoca
51
Para mais informaccedilotildees sobre a trajetoacuteria poliacutetica que acarretou a prisatildeo de Antocircnio Leite de Carvalho
voltar ao segundo capiacutetulo
184
32 O dia-a-dia no caacutercere
O dia-a-dia vivido pelos prisioneiros poliacuteticos no DOI-CODIRJ natildeo era o mesmo
que o vivido em um presiacutedio comum A ameaccedila de tortura o medo dela decorrente e o
sentimento de abandono que ela causava estavam presentes a todo momento Assim
natildeo poderia ser diferente que na memoacuteria construiacuteda pelos ex-prisioneiros poliacuteticos do
DOI-CODIRJ de 1970 a tortura ocupe a maior parte das narrativas sobre o cotidiano
ali vivido
No entanto a memoacuteria dos prisioneiros poliacuteticos do DOI-CODIRJ de 1970
entrevistados entre os anos de 2002 e 2004 abarca tambeacutem outros aspectos daquele dia-
a-dia A partir de seus relatos aleacutem de se tornar viaacutevel a anaacutelise sobre as refeiccedilotildees os
banhos e os passatempos durante a prisatildeo no DOI-CODIRJ se torna possiacutevel tambeacutem
perceber como a convivecircncia a cumplicidade entre os presos e ateacute algumas
demonstraccedilotildees de solidariedade dos carcereiros foram elementos importantes para que
resistissem ao violento cotidiano ali vivido
Na primeira fase da prisatildeo os presos ficavam sozinhos em pequenas celas onde
natildeo havia colchatildeo banheiro e eram constantemente levados agrave sala de tortura Este
cotidiano inicial era muito degradante fiacutesica e mentalmente natildeo soacute pelo sofrimento
acarretado pelo grande nuacutemero de torturas sofridas e pelo desconforto das celas mas
tambeacutem pela solidatildeo nelas vivenciada Afinal natildeo foi por acaso que tais celas ficaram
conhecidas como ldquosolitaacuteriasrdquo
A solidatildeo era uma caracteriacutestica que contribuiacutea fortemente para a fragilidade do
prisioneiro do DOI-CODIRJ Isto torna-se mais evidente quando percebe-se a grande
importacircncia que um raacutepido contato com outro preso representava durante a primeira
fase da prisatildeo Eacute o que pode-se apurar no seguinte trecho narrado por Fernando
185
[] uma hora eu estava encostado aqui [aponta para onde ficava uma das
ldquosolitaacuteriasrdquo no desenho que fez em um papel] no primeiro dia aiacute botaram um
cara no corredor [] era um dirigente do Partido Comunista um velho da
minha idade atualmente Ele tremia muito [] Aiacute ele disse - ldquoEstaacute frio neacute
companheirordquo aiacute eu - ldquoMuitordquo e ele disse - ldquoMas eacute mais psicoloacutegicordquo Aiacute
eu senti uma vergonha sabe Porque eu estava me sentindo tatildeo mal tatildeo para
baixo e um homem daquela idade estava firme[] Ele me deu uma forccedila
muito maior do que ele imagina [] (Freire 28 jun 2004)
Evidencia-se atraveacutes dessa narrativa como em meio ao sofrimento e agrave solidatildeo que
Fernando lembra ter vivenciado no primeiro dia de sua prisatildeo no DOI-CODIRJ um
simples diaacutelogo foi capaz de revitalizar a sua resistecircncia Esse pequeno contato foi tatildeo
importante para Fernando a ponto de ficar marcado em sua memoacuteria ateacute o momento de
sua entrevista mais de trinta anos depois
A partir disso nota-se que aquele cotidiano criava independente das pequenas
diferenccedilas ideoloacutegicas que poderiam existir uma forte identidade entre os presos As
dores decorrentes das torturas e a sensaccedilatildeo de solidatildeo que sentiam no DOI-CODIRJ
faziam com que presos que nunca tivessem se visto antes criassem rapidamente uma
forte cumplicidade e amizade Assim nos momentos em que estavam juntos
principalmente durante a segunda fase da prisatildeo eles conversavam apoiavam-se e
cuidavam uns aos outros extraindo desse conviacutevio forccedila para encararem os proacuteximos
dias de prisatildeo
Essa experiecircncia coletiva dentro do DOI-CODIRJ era valiosa ateacute porque nem
mesmo quando os presos jaacute estavam na segunda fase da prisatildeo ela era garantida Afinal
apesar do prisioneiro poliacutetico do DOI-CODIRJ durante a segunda fase ficar em celas
com estrutura para mais de um preso ele nem sempre tinha companhia Conforme jaacute
analisado anteriormente no DOI-CODIRJ existia uma grande rotatividade e isso
186
implicava em que em determinados momentos as celas coletivas estivessem cheias e
em outros habitadas por dois ou ateacute mesmo um uacutenico prisioneiro
Logo por ser a primeira fase um periacuteodo de isolamento e a segunda devido agrave alta
rotatividade do DOI-CODIRJ uma fase em que ora se estava sozinho e ora tinha-se
companheiro(s) de cela a convivecircncia era entatildeo muito valorizada pelos presos como se
pode perceber na ecircnfase que ela recebe nas memoacuterias dos entrevistados
[] quando estaacutevamos juntas era bem melhor porque existia uma identidade
muito forte entre a gente Eram pessoas que nunca tinham se conhecido de
um modo geral mas aquele oacutedio contra a ditadura o fato de todas terem sido
torturadas aquilo dava margem a uma liga muito grande entre a gente
Entatildeo quando noacutes estaacutevamos juntas a gente cantava a gente conversava a
gente contava histoacuterias de vida o tempo passava e a gente tinha uma
intimidade Conseguimos construir uma coisa muito soacutelida mesmo com
poucas horas e poucos dias mesmo nesse esquema que eu estou te falando
quer dizer as pessoas natildeo ficavam laacute fixas Teve uma vez que uma moccedila
ficou laacute trecircs dias outra que ficou quatro outra que ficou cinco Mas era
uma coisa muito boa chegar algueacutem mesmo vocecirc vendo a pessoa chegar
toda esbagaccedilada porque os que entravam naquela cela jaacute tinham passado laacute
embaixo [] (Pandolfi 5 fev 2003)
[] a cela coletiva na verdade acabava se constituindo num foacuterum de
debates Sempre discutiacuteamos poliacutetica porque eram companheiros de
diversas organizaccedilotildees natildeo era uma uacutenica organizaccedilatildeo ou um uacutenico partido
que estava ali preso mas sim vaacuterios e havia aquela troca de experiecircncias
cada um contava a sua histoacuteria e assim ia passando o dia-a-dia sempre
havia novidades Assim a gente acabava quebrando um pouco o isolamento
[] (Carvalho 8 fev 2003)
Essa convivecircncia no caacutercere fomentou portanto a solidariedade e instituiu um
forte sentimento de coletividade entre os presos Afinal a luta pela sobrevivecircncia e o
pavor de voltar a ser torturado eram comuns a todos eles que procuravam na uniatildeo criar
forccedilas para suportar aquele pesado cotidiano A troca de apoio servia entatildeo como uma
187
espeacutecie de sustentaccedilatildeo como uma garantia de sobrevida Ao preocuparem-se e
ajudarem-se os presos injetavam-se um acircnimo importante para conseguirem resistir agrave
situaccedilatildeo de desespero e solidatildeo que ali era vivida e diante dessa realidade acabavam
formando um grupo coeso cuja principal caracteriacutestica era justamente esse apoio
Constituiacuteam portanto uma identidade conjunta atraveacutes da qual se viam sob os mesmos
temores e anseios aleacutem de perceberem essa parceria como uma extensatildeo da resistecircncia
agrave ditadura que vinham praticando desde antes de serem presos
Ana Dulce e Ceciacutelia memoacuterias relacionadas
Ana e Dulce e depois Dulce e Ceciacutelia foram companheiras de cela durante parte
da segunda fase de suas prisotildees no DOI-CODIRJ de 1970 Suas narrativas sobre a
convivecircncia que laacute tiveram servem aqui para analisar tanto as relaccedilotildees entre suas
memoacuterias quanto alguns aspectos do cotidiano dessa instituiccedilatildeo
Conforme analisado no segundo capiacutetulo Ana chegou ao DOI-CODIRJ no final
de julho de 1970 Logo depois em 14 de agosto do mesmo ano Dulce foi presa e para
laacute tambeacutem levada Como Ana afirma ter permanecido no DOI-CODIRJ por cerca de
um mecircs constata-se que no final de agosto quando ela jaacute estava em vias de ser
transferida colocaram Dulce em sua cela no segundo andar Dulce acabava de vir da
primeira fase de sua prisatildeo que por ter lhe causado graves consequecircncias fiacutesicas tinha
sido mais curta Nesse momento de extrema fragilidade em que Dulce se encontrava jaacute
que vinha de intensas sessotildees de tortura e de uma das ldquosolitaacuteriasrdquo do andar de baixo
Ana ajudou-a a cuidar de seus ferimentos e a tomar banho
Esse contato que teve com Ana apesar de curto jaacute que dias depois Ana foi
transferida para o DOI-CODISP parece ter sido muito importante para Dulce Afinal
apesar dela ter convivido com outras presas durante os quase trecircs meses em que ficou
188
no DOI-CODIRJ Ana foi a uacutenica companheira de cela que Dulce citou pelo nome
durante a entrevista
[] logo que eu cheguei fui para a solitaacuteria era torturada e ia para a solitaacuteria
era torturada e ia para a solitaacuteria quando eu comecei a passar muito mal
depois de um dia dois dias eles me levaram para outra cela maior onde
estava Ana Bursztyn que me deu banho Logo depois ela saiu da cela e eu
fiquei sozinha [] (Pandolfi 5 fev 2003)
A justificativa para a presenccedila de Ana ter ficado marcada na memoacuteria de Dulce
possivelmente eacute o fato de naquele momento aleacutem de estar extremamente machucada
Dulce natildeo ter ainda dividido cela com mais ningueacutem Estava ateacute entatildeo imersa em uma
rotina de solidatildeo e tortura que caracterizava a primeira fase da prisatildeo no DOI-
CODIRJ A ajuda e o conviacutevio com Ana portanto representaram para Dulce um
primeiro contato com algueacutem em quem podia confiar talvez uma primeira surpresa boa
no cotidiano que vinha vivendo no DOI-CODIRJ Jaacute para Ana que estava haacute mais
tempo presa Dulce provavelmente natildeo tinha sido a uacutenica a contar com sua ajuda logo
natildeo se destacava entre suas memoacuterias sobre o cotidiano ali vivido
Comparando as datas das prisotildees de Ana Dulce e Ceciacutelia percebe-se que apoacutes
Ana ter sido transferida Dulce ficou nessa cela grande chamada de ldquocoletivo das
mulheresrdquo enquanto Ceciacutelia entrava no DOI-CODIRJ Ceciacutelia passou pela fase das
ldquosolitaacuteriasrdquo e depois foi levada ateacute uma cela tambeacutem no segundo andar ao lado da de
Dulce onde esteve em companhia de uma moccedila Um tempo depois foi transferida para
o ldquocoletivo das mulheresrdquo onde estava Dulce com quem conviveu grande parte do
tempo
[] fiquei nessa cela [apontando para o desenho que havia feito mostra a
cela do segundo andar que ficava ao lado do ldquocoletivo das mulheresrdquo]
189
depois fui transferida para uma cela maior onde tinha vaacuterias presas poliacuteticas
inclusive uma pessoa que ficou grande parte do tempo comigo a Dulce
Grande parte do tempo eu fiquei com ela nessa cela era o lsquocoletivo das
mulheresrsquo [] (Coimbra 30 nov 2004)
Apesar de natildeo ser destacada entre as memoacuterias de Dulce Ceciacutelia durante sua
narrativa parece atribuir um papel importante ao conviacutevio que elas tiveram Afinal o
tempo que passou com Dulce no DOI-CODIRJ trouxe-lhe um dado a mais sobre as
aulas de tortura a novos oficiais que ali estavam ocorrendo jaacute que enquanto dividia cela
com Ceciacutelia Dulce serviu de cobaia para tais ensinamentos Assim como Ceciacutelia era
vice-presidente do GTNMRJ no momento de sua entrevista e por conseguinte tinha
como caracteriacutestica enfatizar em sua narrativa os detalhes sobre as torturas cometidas
pelos agentes do DOI-CODIRJ a fim de denunciaacute-las se justifica que Dulce tenha
papel marcante entre suas memoacuterias Esse destaque que a convivecircncia com Dulce
assumiu para Ceciacutelia pode ser conferido no trecho abaixo
[] a Dulce foi chamada para uma tortura de tarde [] a gente comeccedilou a
ouvir os gritos de Dulce e jaacute tinha passado todo o periacuteodo porque eles
torturam logo no iniacutecio para pegar informaccedilatildeo Aiacute eu digo ldquo- Soacute se
algueacutem caiu algueacutem foi preso e Dulce estaacute sendo acareadardquo Daqui a pouco
a Dulce volta para a cela com um soldado toda ferrada e aiacute ela ainda ia
voltar O cara disse ldquo- Oh eacute soacute para ela se lavarrdquo Entatildeo eu entrei no
chuveiro com ela e eu dizia ldquo- Dulce o que estaacute havendordquo E ela ldquo- Eu natildeo
estou entendendo o que estaacute acontecendo tem um bando de homem a minha
volta ningueacutem me faz pergunta nenhuma e estatildeo me torturando estatildeo me
botando no pau-de-arara estatildeo me fazendo afogamento estatildeo me dando
choque eleacutetrico eu natildeo estou entendendordquo E eu falei ldquo- Dulce isso eacute aula
para novos torturadoresrdquo Porque eu jaacute tinha lido num dos panfletos da UNE
sobre os meacutetodos de tortura que estavam sendo utilizados no DOI-CODI
aleacutem do jacareacute que a gente viu e que citavam tinha tambeacutem a aula a novos
torturadores ou seja eles pegavam um preso que tinha tido maior resistecircncia
e botavam laacute como cobaia para ensinar aos novos torturadores todas as
190
teacutecnicas E foi isso que fizeram com Dulce Aiacute eu falei ldquo- Dulce isso eacute aula
para novos torturadores eu li essa porrardquo [] (Coimbra 30 nov 2004)
A partir disso fica claro que para Ceciacutelia a constataccedilatildeo da existecircncia de aulas de
torturas no DOI-CODIRJ utilizando presos poliacuteticos teve uma destacada importacircncia
Logo o seu conviacutevio com Dulce durante o periacuteodo em que ela foi viacutetima desses
ensinamentos tambeacutem teve
Aleacutem disso Ceciacutelia durante sua entrevista perguntou quem eu jaacute havia
entrevistado Assim ao saber sobre a entrevista de Dulce sentiu-se motivada a falar
sobre as experiecircncias que com ela tinha compartilhado durante a prisatildeo no DOI-
CODIRJ Dessa forma alguns outros detalhes sobre essa convivecircncia contidos na
memoacuteria de Ceciacutelia foram naquele momento reconstruiacutedos e narrados
Um deles em especial contribui para a anaacutelise sobre o cotidiano do DOI-
CODIRJ Diz respeito agrave relaccedilatildeo travada com alguns carcereiros ou seja soldados do 1ordm
BPE que integravam as turmas auxiliares Afinal a partir do relato de Ceciacutelia Coimbra
percebe-se que ela e Dulce puderam ir ateacute as celas onde estavam os seus companheiros
que na eacutepoca tambeacutem se encontravam aprisionados no DOI-CODIRJ graccedilas agrave ajuda
de um dos responsaacuteveis pela vigia daquela noite
Teve uma noite tinha um soldadinho que a gente natildeo lembra o nome a
gente soacute se lembra dos lsquofilhos da putarsquo a gente devia lembrar dos caras que
foram legais com a gente Esse cara por exemplo ele soube que o marido de
Dulce estava preso o Alexandre e que o Novaes meu marido estava preso
Aiacute como ele ia ficar a noite toda de guarda ele mandou os soldadinhos
descerem e permitiu que Dulce fosse agrave cela de Alexandre e eu agrave de Novaes
Esse cara natildeo saiu da minha cabeccedila [] Esse cara a gente conversando com
ele ele soube que o Novaes estava na cela do lado e que o Alexandre estava
numa outra cela ali perto e ele deixou Dulce foi para a cela de Alexandre e
eu para a de Novaes Assim rapidinho neacute Demos a matildeo um beijo assim
[beija a proacutepria matildeo para demonstrar] O cara se expocircs mesmo neacute E tinha
191
outros que entregavam neacute Entregavam os bilhetes Era um vendaval de
bilhetes durante a madrugada Os caras se expunham mesmo entendeu
Tinha coisas bonitas ali apesar daquele clima de terror tinha pessoas assim
solidaacuterias E esses nomes a gente natildeo lembra neacute Devia lembrar []
(Coimbra 30 nov 2004)
Conforme analisado no primeiro capiacutetulo tais carcereiros que integravam as
turmas auxiliares do DOI-CODIRJ natildeo eram oficiais de informaccedilotildees treinados
especialmente para trabalhar junto agrave repressatildeo poliacutetica eram soldados que em 1970
serviam ao quartel do 1ordm BPE52
Logo eram passiacuteveis de sentir solidariedade jaacute que
muitos deles natildeo estavam servindo ao DOI-CODIRJ por algum tipo de vocaccedilatildeo
estavam ali somente para cumprir com o serviccedilo militar do quartel Afinal apesar de
haver entre eles alguns que se identificassem com a funccedilatildeo e ateacute almejassem tornar-se
agentes de informaccedilotildees os integrantes dessas turmas auxiliares natildeo trabalhavam nos
interrogatoacuterios dos presos e consequentemente natildeo estavam diretamente relacionados
com as torturas Portanto pode-se dizer que no DOI-COIRJ existia compaixatildeo entre
soldados e prisioneiros
A partir disso evidencia-se como o indiviacuteduo tem um papel primordial para essa
anaacutelise Afinal ao considerar sua memoacuteria como fonte para a histoacuteria torna-se possiacutevel
perceber aqui algumas de suas idiossincrasias ou seja peculiaridades comportamentais
capazes de interferir na percepccedilatildeo sobre o cotidiano vivido no DOI-CODIRJ de 1970
Afinal a ajuda que o soldado deu a Dulce e Ceciacutelia eacute um exemplo tiacutepico de como as
peculiaridades individuais satildeo capazes de atribuir contrastes e inconstacircncias agrave
interpretaccedilatildeo de uma realidade do passado Desse modo entende-se perfeitamente o
porquecirc de Marshall Sahlins afirmar em Histoacuteria e Cultura (2006) que os indiviacuteduos
52
Para mais informaccedilotildees sobre a hierarquia militar ver o Anexo II
192
representam um feixe uacutenico resultado de uma ligaccedilatildeo peculiar entre infinitos traccedilos
culturais e sociais que natildeo conseguem ser captados por anaacutelises generalizantes
Uma vez que a partir de accedilotildees como a desse soldado pode-se afirmar que o
cotidiano prisional do DOI-COIRJ de 1970 natildeo era formado unicamente pela repressatildeo
e pela violecircncia dos militares que ali representavam o Estado como uma generalizaccedilatildeo
ou uma reduccedilatildeo de varaacuteveis poderia fazer crer Havia tambeacutem compaixatildeo ateacute mesmo
entre lados aparentemente opostos
As formas de lidar com o tempo
Para sobreviver ao cotidiano do DOI-CODIRJ natildeo bastava ser resistente
fisicamente tambeacutem era necessaacuterio manter a mente em equiliacutebrio Essa preocupaccedilatildeo
acompanhava o prisioneiro em todas as fases da prisatildeo mas principalmente quando ele
estava sozinho Afinal a solidatildeo trazia a sensaccedilatildeo de que o tempo natildeo passava e em
meio ao violento cotidiano a que era submetido o preso do DOI-CODIRJ percebia
mais facilmente sinais que lhe causavam medo e desespero
Ceciacutelia Coimbra e Dulce Pandolfi ressaltam que mesmo quando estavam em
celas coletivas com a companhia de outras presas percebiam muitos desses sinais
Ficavam em pacircnico pois na maior parte das vezes significavam que seriam levadas
novamente agrave ldquosala roxardquo Quando sozinhas a sensaccedilatildeo de pavor por natildeo ser
compartilhada provavelmente era ainda mais intensa
[] a gente ficou tatildeo traumatizada com o barulho de chave que quando a
gente ouvia a gente dizia ldquo- Eles vecircm para caacute vecircm pegar alguma de noacutesrdquo
Era uma loucura era um clima de terror [] (Coimbra 30 nov 2004)
[] toda vez que um soldado abria a cela trazia o capuz Era ateacute uma cena
muito dramaacutetica porque todo mundo comeccedilava a tremer de medo porque se
193
sabia que se o capuz estava ali era porque algueacutem ia descer algueacutem ia
circular e descer normalmente significava ser torturada Entatildeo era assim
uma coisa bem dramaacutetica bem traumaacutetica tambeacutem porque quando abriam a
cela e retiravam o capuz a gente pensava ldquo- pronto algueacutem vai agora pro
caceterdquo (Pandolfi 5 fev 2003)
Para manterem suas mentes satildes os prisioneiros do DOI-CODIRJ quando
sozinhos utilizavam alguns artifiacutecios Dulce em sua narrativa relata ter ficado algum
tempo sozinha em uma cela coletiva onde se ocupava em frear a impressatildeo de
vagarosidade do tempo e os maus pensamentos de diversas maneiras tais como
[] eu lembro de duas coisas que eu fazia como exerciacutecio para passar o
tempo Os colchotildees que eram horriacuteveis eram colchotildees de crina eu tirava
aquelas palhas de dentro do colchatildeo e ficava fazendo tranccedilas fazia vaacuterias
tranccedilas e contava uma tranccedila duas tranccedilas e ia montando uma na outra
Fazia filas de tranccedilas depois eu desmanchava tudo eu lembro que eu ateacute
tinha medo ldquo- Se esses caras descobrirem isso vatildeo mandar costurar o
colchatildeordquo Depois eu tirava tudo e guardava de novo laacute dentro do colchatildeo No
dia seguinte eu comeccedilava outra vez Eu dizia ldquo- eu natildeo posso enlouquecer
entatildeo eu tenho que ocupar a minha cabeccedila com alguma coisardquo Porque eu
natildeo tinha nada nada nada para fazer Outra atividade que eu fazia tambeacutem
Como [] o chatildeo da cela era como se fosse de umas lajotas de uns azulejos
sei laacute o quecirc eu contava aqueles quadrados todos multiplicava fazia
milhares de contas Fazia um jogo no chatildeo do quarto contava para frente
para traacutes multiplicava e naquilo ali eu ficava horas naquelas contas
matemaacuteticas naquelas multiplicaccedilotildees naquelas somas naqueles ladrilhos
[] (Pandolfi 5 fev 2003)
A execuccedilatildeo de tais meacutetodos certamente contribuiacutea para aumentar a possibilidade
de sobrevivecircncia e sanidade do prisioneiro do DOI-CODIRJ Poreacutem o preso dependia
de sua capacidade e habilidade para usar recursos que o beneficiassem e que ajudassem
a se opor aos mecanismos desetruturadores e despersonalizadores sobre ele empregados
Nessa situaccedilatildeo assim como Elizabeth Ferreira na obra Mulheres Militacircncia e Memoacuteria
194
(1996 65) acredita-se que o sentimento de auto-estima gerado nos presos poliacuteticos pelo
seu ideal poliacutetico e social eacute um elemento crucial de resistecircncia Atraveacutes desse
sentimento normalmente tais presos costumam sustentar a esperanccedila na mudanccedila o
que lhes gera forccedila e ateacute mesmo uma criatividade para suportar o sofrimento maior que
a de presos comuns
As roupas e as refeiccedilotildees
Como o DOI-CODIRJ de 1970 natildeo era um presiacutedio havia acabado de ser
montado dentro de um preacutedio do quartel do 1ordm BPE para abrigar temporariamente os
presos poliacuteticos que pudessem contribuir com suas investigaccedilotildees laacute natildeo existiam
refeitoacuterios visitas banho de sol ou mesmo uniformes Aleacutem da falta de uma estrutura
que propiciasse uma rotina normal de presiacutedio esse diferencial era importante para o
procedimento investigativo do DOI-CODIRJ Afinal havia ali a necessidade do preso
ficar incomunicaacutevel jaacute que quanto maior seu isolamento maior seria sua fragilidade e
esta se relacionava diretamente com sua capacidade em conceder informaccedilotildees No mais
esse isolamento tambeacutem estava relacionado com a preocupaccedilatildeo em proteger a
instituiccedilatildeo de acusaccedilotildees de maus tratos uma vez que caso os ferimentos dos presos
fossem notados poderiam ser vinculados a torturas e consequentemente denunciados
Dessa forma os prisioneiros do DOI-CODIRJ natildeo podiam nem mesmo tomar sol pois
poderiam ser vistos por pessoas dos preacutedios vizinhos e funcionaacuterios da faacutebrica da
Brahma localizada atraacutes do paacutetio do 1ordm BPE
As refeiccedilotildees eram portanto servidas nas proacuteprias celas pelos soldados da turma
auxiliar de plantatildeo Para colocarem cada uma das quatro refeiccedilotildees a que cada preso
tinha direito esses abriam a cela de manhatilde cedo no iniacutecio e no fim da tarde e agrave noite
Segundo a narrativa dos presos no cafeacute da manhatilde costumavam trazer um patildeo com
195
pasta de amendoim e um cafeacute com leite na caneca para cada preso No almoccedilo uma
bandeja de alumiacutenio com um prato que normalmente continha repolho arroz angu e
algumas vezes um pedaccedilo de carne Durante a tarde deixavam um bule de mate com
um pedaccedilo de patildeo na cela e no fim do dia repetiam para o jantar a mesma comida do
almoccedilo
As comidas servidas em 1970 aos prisioneiros do DOI-CODIRJ satildeo mais alguns
exemplos de detalhes do cotidiano que soacute podem ser abordados por meio da memoacuteria de
quem viveu aquele passado Diante disso eacute interessante perceber aspectos que
justificam o fato dessas refeiccedilotildees terem marcado as memoacuterias dos prisioneiros a ponto
de nelas sobreviverem por cerca de trecircs deacutecadas
[] a gente ateacute brincava que eles deviam ter uma plantaccedilatildeo de repolho ali
porque era repolho todo dia repolho cru repolho assado mas na hora do
almoccedilo normalmente vinha nessa bandeja de alumiacutenio e era repolho um
pouco de arroz feijatildeo e agraves vezes um pedaccedilo de carne era uma comida bem
horrorosa [] (Pandolfi 5 fev 2003)
[] A comida era peacutessima era aquela comida do rancho parecia uma
lavagem de porco uma coisa horrorosa [] Eu fiquei com a pele toda
lsquofodidarsquo porque a uacutenica coisa que eu conseguia comer era o angu []
(Coimbra 30 nov 2004)
Portanto o conteuacutedo das refeiccedilotildees do DOI-CODIRJ aleacutem de ter ficado marcado
na memoacuteria dos prisioneiros pelo aspecto sensorial ou seja pelo gosto e apresentaccedilatildeo
ruins permaneceu tambeacutem pela relaccedilatildeo com a vaidade feminina e pelo fato de remeter a
momentos que foram compartilhados O angu marcou Ceciacutelia por ter feito mal a sua
pele jaacute que como eacute uma comida gordurosa lhe causou espinhas abalando ainda mais a
sua aparecircncia fiacutesica jaacute degrada por aquele cotidiano prisional O repolho por sua vez
deixou marcas na memoacuteria de Dulce por ser motivo de deboche entre as presas pois sua
196
presenccedila recorrente nos pratos ocasionava uma espeacutecie de piada entre elas e trazia um
pouco de descontraccedilatildeo
Outro aspecto do cotidiano do DOI-CODIRJ de 1970 tambeacutem alcanccedilado por
meio dos detalhes trazidos pelas memoacuterias de ex-prisioneiros satildeo as roupas Como natildeo
existiam uniformes institucionais na maior parte do tempo as roupas eram as mesmas
que eles vestiam no dia em que entraram no 1ordm BPE Dessa forma quando jaacute estavam
em celas coletivas os presos muitas vezes lavavam-nas e entatildeo voltavam a vestiacute-las
Depois de algum tempo afinal as famiacutelias acabavam descobrindo onde eles estavam
presos e algumas roupas eram deixadas no Palaacutecio Duque de Caxias antigo preacutedio do
Ministeacuterio do Exeacutercito no Centro da cidade do Rio de Janeiro para serem enviadas e
entregues no 1ordm BPE aos prisioneiros
No entanto ateacute isso chegar a acontecer demorava pois fazia parte da seguranccedila
institucional tentar manter num primeiro momento sigilo sobre seus presos Assim
Ceciacutelia presa em agosto de 1970 lembra que por ter sentido muito frio durante o seu
primeiro mecircs no DOI-CODIRJ ela e suas companheiras de cela costumavam
improvisar formas de protegerem os peacutes
[] a minha matildee ia ateacute o Ministeacuterio do Exeacutercito e ela dizia ldquo- Minha filha
estaacute laacute na PErdquo Aiacute quase um mecircs depois a minha matildee conseguiu mandar
roupa para mim Ateacute entatildeo minha filha era um loucura neacute A gente fedia
sabe A gente tomava banho de chuveiro e botava a mesma roupa a gente
lavava a roupa e era mecircs de agosto e ainda estava frio Era um frio que a
gente sentia que a gente enrolava jornal nos peacutes porque natildeo tinha nenhuma
coisa nada Era no colchatildeo puro que a gente dormia (Coimbra 30 nov
2004)
Quando as famiacutelias conseguiam descobrir onde estavam enviavam aleacutem de
roupas alguns mantimentos como frutas por exemplo Essas vinham muitas vezes
197
embrulhadas em jornais velhos que serviam para alguns como proteccedilatildeo para o corpo e
para outros como distraccedilatildeo conforme pode-se constatar na narrativa de Antocircnio ao
lembrar que ele e seus companheiros de cela passavam o tempo lendo as notiacutecias velhas
contidas em tais jornais
Eu me lembro tambeacutem que quando alguns presos recebiam frutas essas
coisas embrulhadas em papel jornal jornal velho a gente lia o jornal e
ficaacutevamos um bom tempo lendo aqueles jornais com datas de um mecircs trecircs
meses atraacutes mas era sempre bom para a cabeccedila da gente ficar lendo as
notiacutecias mesmo velhas [] (Carvalho 8 fev 2003)
Como jaacute aqui ressaltado a cumplicidade que existia entre os presos do DOI-
CODIRJ ajudava a construir mecanismos que os protegiam das mais diversas
dificuldades Segundo Dulce para amenizar a escassez de roupa a que eram submetidas
num primeiro momento dentro do DOI-CODIRJ as presas do ldquocoletivo das mulheresrdquo
estabeleceram uma espeacutecie de acordo Atraveacutes dele ficou determinado que quem de laacute
saiacutesse deixaria algumas peccedilas para quem ainda ficasse tinha uma espeacutecie de rotina
entre as mulheres que quem saiacutea deixava alguma roupa laacute (Pandolfi 5 fev 2003)
Assim atraveacutes desse tipo de cumplicidade elas ajudavam a diminuir o sofrimento
diaacuterio umas das outras uma vez que as peccedilas deixadas na cela possibilitavam que as
presas conseguissem manter a higiene e amenizar a sensaccedilatildeo do frio
Percebe-se portanto que de fato o dia-a-dia do DOI-CODIRJ de 1970 era
atiacutepico pois este natildeo era um presiacutedio e sim um oacutergatildeo de repressatildeo poliacutetica Assim uma
das poucas semelhanccedilas com a rotina de um presiacutedio comum era basicamente a privaccedilatildeo
da liberdade Poreacutem apesar de ofuscado pela tortura e pelo pavor ali existia um
cotidiano que abarcava outros aspectos muito interessantes Afinal estes satildeo capazes de
198
muito esclarecer sobre o funcionamento praacutetico desse importante oacutergatildeo de repressatildeo da
ditadura militar brasileira e tambeacutem sobre diversos tipos de reaccedilotildees e relaccedilotildees humanas
do passado e do presente
199
Conclusatildeo
Quando o muro separa uma ponte une
Se a vinganccedila encara o remorso pune
Vocecirc vem me agarra algueacutem vem me solta
Vocecirc vai na marra ela um dia volta
E se a forccedila eacute tua ela um dia eacute nossa
Olha o muro olha a ponte
Olha o dia de ontem chegando
Que medo vocecirc tem de noacutes
Olha aiacute
Vocecirc corta um verso eu escrevo outro
Vocecirc me prende vivo eu escapo morto
De repente olha eu de novo
Perturbando a paz exigindo o troco
Vamos por aiacute eu e meu cachorro
Olha um verso olha o outro
Olha o velho olha o moccedilo chegando
Que medo vocecirc tem de noacutes
Olha aiacute
O muro caiu olha a ponte
Da liberdade guardiatilde
O braccedilo do Cristo horizonte
Abraccedila o dia de amanhatilde
Olha aiacute
Mauriacutecio Tapajoacutes amp Paulo Ceacutesar Pinheiro
(Pesadelo 1972)
200
Diante do exposto ao longo desta dissertaccedilatildeo conclui-se que a formulaccedilatildeo da
Doutrina de Seguranccedila Nacional feita pela ESG em colaboraccedilatildeo com o IPES e o IBAD
cerca de vinte anos antes do surgimento dos DOI-CODI tinha por base uma teoria de
guerra que nortearia a atuaccedilatildeo repressora desses oacutergatildeos Essa teoria interpretava os
movimentos de oposiccedilatildeo que vinham crescendo desde o iniacutecio dos anos 1960 como uma
espeacutecie de guerra revolucionaacuteria Todos os cidadatildeos brasileiros passavam entatildeo a ser
encarados como suspeitos e foi esta percepccedilatildeo que estimulou o governo militar a
planejar a Seguranccedila Nacional e por conseguinte criar um centralizado e articulado
aparato de informaccedilotildees internas junto a um eficiente oacutergatildeo repressivo de controle
armado os DOI-CODI
Aleacutem disso constatou-se que a consolidaccedilatildeo dos DOI-CODI por todas as Regiotildees
Militares do paiacutes substanciou-se tambeacutem atraveacutes da alta legalidade autoritaacuteria e das
medidas tomadas pelo governo para conter as cizacircnias militares Afinal o governo
ditatorial brasileiro na medida em que arbitrou leis a fim de legalizar o seu poder
poliacutetico e suprimir direitos antes garantidos agrave populaccedilatildeo construiu uma sustentaccedilatildeo
juriacutedica necessaacuteria agrave formaccedilatildeo de um aparato de seguranccedila cada vez mais forte e
centralizado Grande parte dessas leis autoritaacuterias foi usada como artifiacutecio para acalmar
os acircnimos na caserna responsaacuteveis por importantes conflitos internos que ameaccedilavam a
uniatildeo militar as chamadas cizacircnias militares As leis arbitraacuterias serviam entatildeo tanto
para conter a oposiccedilatildeo poliacutetica quanto para ceder agraves reivindicaccedilotildees por poder vindas da
caserna Completava-se dessa forma um cenaacuterio legal capaz de suportar um organismo
de repressatildeo onde os militares de meacutedias e baixas patentes trabalhariam com autonomia
uma das bases para a formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo dos DOI-CODI
Diante disso viu-se tambeacutem que natildeo foi agrave toa que a estrutura e o funcionamento
do SISSEGIN e dos seus oacutergatildeos foram instituiacutedos e regulamentados por meio de
201
decretos sigilosos o que incluiu a experiecircncia da Oban criada em Satildeo Paulo em
meados de 1969 e no ano seguinte a institucionalizaccedilatildeo dos DOI-CODI por todo o
paiacutes Afinal a justificativa para esse sigilo estava justamente na maior mobilidade e
autonomia de accedilatildeo que traria para a atuaccedilatildeo repressora desses organismos pois em
segredo podiam agir sem grandes limitaccedilotildees natildeo esbarrando em questotildees externas agraves
decisotildees militares tal como o respeito aos direitos humanos
Os DOI-CODI destacavam-se principalmente pela independecircncia financeira e pela
centralizaccedilatildeo hieraacuterquica que os constituiacuteam essenciais para a alta eficiecircncia de suas
investigaccedilotildees e accedilotildees Tais atributos evitavam que suas operaccedilotildees fossem suscetiacuteveis agrave
duplicidade de tarefas a competiccedilotildees e a conflitos de interesses maximizando os seus
resultados Eram entatildeo organismos de excelecircncia a sofisticaccedilatildeo da repressatildeo
Entretanto essa sofisticaccedilatildeo tambeacutem vinha do distanciamento mantido entre os
militares do governo e os que agiam nesses oacutergatildeos jaacute que a ditadura ao mesmo tempo
em que sancionava a tortura nessa instituiccedilatildeo estrategicamente negava a sua existecircncia
perante a sociedade isentando governo do paiacutes de qualquer ligaccedilatildeo com ela Em
complemento a essa ideia o sistema funcional dos DOI responsaacuteveis por accedilotildees que
englobavam as prisotildees e os interrogatoacuterios dos presos poliacuteticos apresentava-se
complexo e informal Dessa forma as brechas para que a aparente falta de controle
fosse exercida eram amplas a fim de que meacutetodos violentos ilegais tivessem ali uma
legitimidade excepcional Justifica-se assim como a versatildeo oficial dos militares ainda
possa ser a de que a tortura jamais resultou de qualquer ordem ou orientaccedilatildeo superior
Evidenciou-se poreacutem a incoerecircncia desta versatildeo jaacute que ficou claro que em todos
os organismos militares nos DOI inclusive existiam uma forte hierarquia a ser
cumprida Mesmo com a estrutura complexa ali existente qualquer accedilatildeo deveria ser
remetida a um superior logo a questatildeo da responsabilidade sempre poderia ser
202
resgatada Percebeu-se que em geral apesar de velada a tortura era do conhecimento
de toda a hierarquia militar inclusive dos generais agrave frente do governo
Durante todo o trabalho a intervenccedilatildeo do presente (2002-2004) sobre as
memoacuterias do passado (1970) foi conferida nas narrativas dos ex-prisioneiros poliacuteticos
entrevistados Percebeu-se que o contexto poliacutetico e social vivido no presente e o
momento da vida pessoal de cada um tiveram uma contribuiccedilatildeo importante na forma
como os ex-presos construiacuteram suas memoacuterias Aleacutem disso a forma como a rede de
entrevistados foi desenhada e as condiccedilotildees em que as entrevistas foram realizadas
tambeacutem concorreram para essa intervenccedilatildeo no relato que fizeram sobre o passado
Enfim um dos principais elementos para a anaacutelise criacutetica exercida aqui sobre essas
memoacuterias foi sem duacutevida o reconhecimento dessa influecircncia do presente sobre o
passado
A trajetoacuteria prisional dos entrevistados os grupos oposicionistas que integravam
as accedilotildees de que participaram o momento da prisatildeo o tempo que permaneceram presos
e as funccedilotildees que exerciam no presente foram aspectos aqui ressaltados por mostrarem
um pouco da histoacuteria de vida e por meio desta a personalidade ou seja as
idiossincrasias de cada um deles Dessa forma foi possiacutevel aproximar-se do aspecto
individual de suas memoacuterias uacutenico a cada ser entendendo um pouco mais as bases de
suas construccedilotildees
Tornou-se assim viaacutevel analisar essas memoacuterias e colocaacute-las em diaacutelogo com o
conteuacutedo levantado a partir da anaacutelise historiograacutefica e da monografia sobre o DOI
escrita pelo coronel Pereira em 1978 possibilitando uma caracterizaccedilatildeo do cotidiano
prisional vivido pelos presos do DOI-CODIRJ em 1970 O trabalho organizacional dos
DOI-CODIRJ foi visto portanto de forma praacutetica As funccedilotildees de cada setor e seccedilatildeo
teorizadas principalmente por meio da monografia do coronel foram analisadas a partir
203
do acircngulo dos prisioneiros o que viabilizou a percepccedilatildeo de detalhes que constituiacuteam a
rotina daquela instituiccedilatildeo
Ficou claro que a violecircncia era a principal forma de extraccedilatildeo de informaccedilotildees e o
elemento-chave para a eficiecircncia conferida pela instituiccedilatildeo com relaccedilatildeo ao combate aos
opositores poliacuteticos da eacutepoca A tortura e o medo dela ocupavam um espaccedilo
significativo no cotidiano ali impetrado aos prisioneiros uma vez que eles estavam no
DOI-CODIRJ para serem a ela submetidos de forma a fornecerem mais facilmente
informaccedilotildees que levassem os agentes dos DOI a outros suspeitos Poreacutem verificou-se
que a tortura natildeo era a uacutenica face do cotidiano do DOI-CODIRJ
Afinal este trabalho mostrou outros aspectos que constituiacuteam a rotina dos presos
dentro desse oacutergatildeo que ateacute entatildeo natildeo havia sido alcanccedilada pela historiografia Percebeu-
se aqui outros elementos que apesar de pouco destacados pelas memoacuterias dos
entrevistados muito tecircm a dizer sobre aquele cotidiano as fases prisionais as refeiccedilotildees
as roupas as formas de resistecircncia o conviacutevio ente prisioneiros e ateacute mesmo algumas
accedilotildees solidaacuterias efetuadas por soldados em benefiacutecio dos presos poliacuteticos
Constatou-se como a memoacuteria pode enriquecer a percepccedilatildeo que se tem sobre um
passado revelando faces natildeo evidenciadas em documentos oficiais e tambeacutem como eacute
importante para levar ateacute o presente um passado doloroso mas que deve ser encarado a
fim de ser perdoado e ultrapassado Uma movimentaccedilatildeo nesse sentido vem acontecendo
no Brasil com as Caravanas da Anistia e principalmente com a recente aprovaccedilatildeo da
Comissatildeo da Verdade conforme pontuado anteriormente
A atualidade dessas iniciativas inclusive estimulou esta pesquisa impulsionada
pela curiosidade sobre as memoacuterias do passado vivido nos ldquoporotildees da ditadurardquo Logo
o tema da presente dissertaccedilatildeo foi pautado pela crenccedila na necessidade de uma ampla
revelaccedilatildeo sobre o que ocorreu na eacutepoca de forma a contribuir para que a reconciliaccedilatildeo
204
do presente com o passado seja um dia alcanccedilada uma vez que defende-se aqui tal
como Paul Ricoeur (2008 507) que eacute no caminho da criacutetica histoacuterica que a memoacuteria
encontra o seu sentido de justiccedila Dessa forma tem-se o cidadatildeo como destinataacuterio do
texto histoacuterico cabendo a ele tornar a discussatildeo puacuteblica fazendo um balanccedilo entre
histoacuteria e memoacuteria a fim de que se perceba o sofrimento do outro e daqueles que
continuam a sofrer pelas matildeos do mesmo mal repressor do passado A partir disso a
reconciliaccedilatildeo entre o passado e presente se tornaraacute efetiva contribuindo para que no
futuro a democracia esteja plenamente consolidada
205
Fontes
1 ArquivoDocumentos Pessoais
Ana de Miranda Batista
Requerimento de indenizaccedilatildeo enviado ao Secretaacuterio de Estado de Direitos
Humanos do Estado do Rio de Janeiro por Ana de Miranda Batista em outubro
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PEREIRA Freddie Perdigatildeo O Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees
(DOI) do Exeacutercito Brasileiro Histoacuterico papel de combate agrave subversatildeo situaccedilatildeo
atual e perspectivas SL Monografia 1137 Escola de Comando e Estado -
Maior do Exeacutercito (ECEME) 1978
2 Documentos Institucionais
Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio de Janeiro
Documentos do DOPS relativos a Ceciacutelia Maria Bouccedilas Coimbra
Documentos do DOPS relativos a Fernando Palha Freire
Documentos do DOPS relativos a Padre Maacuterio Prigol
Subsecretaria de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro
Tombamento municipal lei nordm 1954 de 29 de marccedilo de 1993 Nordm do processo
1200433692
3 Fonte Cinematograacutefica
CIDADAtildeO Boilesen Direccedilatildeo de Chaim Litewski Brasil 2009 (92 min) son
color Documentaacuterio
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de 2004
CARVALHO Antocircnio Leite de Entrevista concedida agrave autora em 12 de
setembro de 2002
CARVALHO Antocircnio Leite de Entrevista concedida agrave autora em 8 de fevereiro
206
de 2003
COIMBRA Ceciacutelia Maria Bouccedilas Entrevista concedida agrave autora em 30 de
novembro de 2004
FREIRE Fernando Palha Entrevista concedida agrave autora em 28 de junho de
2004
PANDOLFI Dulce Chaves Entrevista concedida agrave autora em 5 de fevereiro de
2003
PRIGOL Maacuterio [Padre] Entrevista concedida agrave autora em 28 de setembro de
2004
5 Fontes Visuais
BETTAMIO Rafaella Foto Nordm1 Dez 2004 1 aacutelbum (4 fotos) color
10X15cm
BETTAMIO Rafaella Foto Nordm2 Dez 2004 1 aacutelbum (4 fotos) color
10X15cm
BETTAMIO Rafaella Foto Nordm3 Dez 2004 1 aacutelbum (4 fotos) color
10X15cm
BETTAMIO Rafaella Foto Nordm4 Dez 2004 1 aacutelbum (4 fotos) color
10X15cm
6 Perioacutedicos
CAMAROTTI Gerson O Paiacutes Nota do Exeacutercito sobre caso Herzog causa
crise O GLOBO Rio de Janeiro 19 de outubro de 2004
CHICARINO Carlos Mergulhos na Histoacuteria EacutePOCA Rio de Janeiro 27 de
novembro de 2000 104
COMPARATTO Faacutebio Konder A Lei de Anistia de 1979 perante a Eacutetica e o
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setembro de 2004
MARANHAtildeO Aluizio Caderno Prosa amp Verso Nos Bastidores da Ditadura O
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poliacuteticas no periacuteodo de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 e daacute outras
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Anexo I - Glossaacuterio de Siglas
ACO ndash Accedilatildeo Catoacutelica Operaacuteria
ADI ndash Aacutereas de Defesa Interna
ALN ndash Accedilatildeo Libertadora Nacional
APERJ ndash Arquivo Puacuteblico do Estado do Rio de Janeiro
1degBPE ndash 1ordm Batalhatildeo da Poliacutecia do Exeacutercito
Condi ndash Conselho de Defesa Interna
CENIMAR ndash Centro de Informaccedilotildees da Marinha
CEP ndash Centro de Estudos de Pessoal
CGI ndash Comissatildeo Geral de Investigaccedilotildees
CIA ndash Central Intelligence Agency
CIE ndash Centro de Informaccedilotildees do Exeacutercito
CISA ndash Centro de Informaccedilotildees de Seguranccedila da Aeronaacuteutica
CNBB ndash Conferecircncia Nacional dos Bispos do Brasil
CONDI ndash Conselhos de Defesa Interna
CPDOC ndash Centro de Pesquisa e Documentaccedilatildeo de Histoacuteria Contemporacircnea do Brasil
CSN ndash Conselho de Seguranccedila Nacional
DCE ndash Diretoacuterio Central dos Estudantes
DEOPS ndash Departamento de Ordem e Poliacutetica Social de Satildeo Paulo
DGPC ndash Departamento Geral de Patrimocircnio Cultural da Prefeitura do Rio de Janeiro
DI-GB ndash Dissidecircncia Comunista da Guanabara
DOI-CODI ndash Destacamento de Operaccedilotildees de Informaccedilotildees ndash Centro de Operaccedilotildees de
Defesa Interna
216
DOPS ndash Departamento de Ordem Poliacutetica e Social
DSN ndash Doutrina de Seguranccedila Nacional
ECEME ndash Escola de Comando e Estado Maior do Exeacutercito
ESG ndash Escola Superior de Guerra
EMFA ndash Estado Maior das Forccedilas Armadas
EsNI ndash Escola Nacional de Informaccedilotildees
Fafich ndash Faculdade de Filosofia e Ciecircncias Humanas de Belo Horizonte
FUEC ndash Frente Unida dos Estudantes do Calabouccedilo
FGV ndash Fundaccedilatildeo Getuacutelio Vargas
GTNMRJ ndash Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro
HCE ndash Hospital Central do Exeacutercito
IBRADES ndash Instituto Brasileiro de Estudos Sociais
IFCS ndash Instituto de Filosofia e Ciecircncias Sociais
IHTP ndash Instituto de Histoacuteria do Tempo Presente
IPCM ndash Instituto Penal Cacircndido Mendes
IPM ndash Inqueacuterito Policial Militar
JOC ndash Juventude Operaacuteria Catoacutelica
LOC ndash Liga Operaacuteria Catoacutelica
MDB ndash Movimento Democraacutetico Brasileiro
MR-8 ndash Movimento Revolucionaacuterio 8 de Outubro
MTC ndash Movimento dos Trabalhadores Cristatildeos
N-SISA ndash Nuacutecleo do Serviccedilo de Informaccedilotildees de Seguranccedila da Aeronaacuteutica
Oban ndash Operaccedilatildeo Bandeirantes
OLAS ndash Organizaccedilatildeo Latino-Americana de Solidariedade
217
PCB ndash Partido Comunista Brasileiro
PC do B ndash Partido Comunista do Brasil
PCBR ndash Partido Comunista Brasileiro Revolucionaacuterio
PT ndash Partido dos Trabalhadores
SADI - Sub-Aacutereas de Defesa Interna
SFICI ndash Serviccedilo Federal de Informaccedilotildees e Contra-Informaccedilotildees
SIM ndash Serviccedilo de Informaccedilotildees da Marinha
SNI ndash Serviccedilo Nacional de Informaccedilotildees
SISNI ndash Sistema Nacional de Informaccedilotildees
SISSEGIN ndash Sistema de Seguranccedila Interna
UFF ndash Universidade Federal Fluminense
UFRJ ndash Universidade Federal do Rio de Janeiro
UNE - Uniatildeo Nacional dos Estudantes
UNIRIO ndash Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
ZDI ndash Zona de Defesa Interna
218
Anexo II - A Hierarquia do Exeacutercito Brasileiro53
Ciacuterculos
Hieraacuterquicos54
Hierarquizaccedilatildeo Patentes do Exeacutercito
Ciacuterculo de oficiais
Ciacuterculo de oficiais-generais
Marechal
General de Exeacutercito
General de divisatildeo
General de brigada
Ciacuterculo de oficiais
superiores Coronel
Tenente-coronel
Major
Ciacuterculo de oficiais intermediaacuterios Capitatildeo
Ciacuterculo de oficiais
subalternos Primeiro- tenente
Segundo- tenente
Ciacuterculo de praccedilas
Ciacuterculo de suboficiais subtenentes e
sargentos
Subtenente
Primeiro-sargento
Segundo-sargento
Terceiro-sargento
Ciacuterculo de cabos e soldados
Cabo e taifeiro-mor
Soldado e taifeiro-de
primeira classe
Soldado-recruta e taifeiro-
de-segunda-classe
Ciacuterculo de praccedilas
especiais
Frequentam o ciacuterculo de oficiais
subalternos Aspirante-a-oficial
Excepcionalmente ou em reuniotildees sociais
tecircm acesso ao ciacuterculo de oficiais
Cadete (aluno da Academia
Militar)
Aluno da Escola
Preparatoacuteria de Cadetes do
Exeacutercito
Aluno de Oacutergatildeo de
Formaccedilatildeo da Reserva
Excepcionalmente ou em reuniotildees sociais
tecircm acesso ao ciacuterculo de suboficiais
subtenentes e sargentos
Aluno da Escola ou Centro
de Formaccedilatildeo de Sargentos
Frequentam o ciacuterculo de cabos e soldados Aluno de Oacutergatildeo de
Formaccedilatildeo de Praccedilas da
Reserva
53
LEIRNER 1997 74-75 54
Os ldquoCiacuterculos hieraacuterquicosrdquo satildeo o acircmbito de convivecircncia entre os militares da mesma categoria Esses
ldquociacuterculosrdquo satildeo incorporados a fundo na conduta militar de forma que a divisatildeo acima exposta eacute seguida
no ambiente de trabalho salas refeitoacuterios e banheiros da instituiccedilatildeo conforme demonstra Piero de
Camargo Leirner em estudo antropoloacutegico sobre a instituiccedilatildeo militar Meia Volta Volver (1997 74-76)