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O DOMÍNIO DE SI.doc

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0 PODERDA MENTE HUMAN

EDIÇÕES LOYOLA sãopaulo

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Fora de tôda opção moral, filosófica

ou religiosa, o domínio de si mesmo é

uma higiene prudente para nossa vida

quotidiana. O abandono animal aos

instintos, o deixar passar, a recusa ao

esforço e reflexão, é hoje uma posição

ultrapassada, porque as funções do

cérebro instintivo do animal

correspondem realmente no homem, por

sua maior evolução, ao cérebro superior.

O autor, nesta obra, faz um estudo

em profundidade do comportamento do

homem. Saber querer é primeiro saber

manter-se em boas condições de

equilíbrio cerebral. As vinculações da

vontade e do querer com o funcionamento

do cérebro levam-no a deduzir o

específico do psiquismo humano e os

meios práticos para conseguir a

concentração de nossas energias.

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CONTROLE CEREBRAL E EMOCIONAL_______1PSICANÁLISES DE ONTEM_____________2PSICANÁLISES DEHOJE._______________3A FACE OCULTA DA MENTE < T ° M o i > 4A FACE OCULTA DA MENTE < t o m ° a ____

____________________ 5OS GRANDES MÉDIUNS 6FUNDAMENTO DO HATHA YOGA______7PRÁTICA DO

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PAUL UMCianDoutor em Medicina 8 Ciências, é diretor

da Escola de Altos Estudos de Paris e

professor na Escola de Psicõíogcs

Práticos, Especialista da

fisiologia do siste-ma nervoso êle é considerado por

muitos como o melhor neurofisió-

logo do mundo. Autor de

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DOMÍNI DE SI

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PauloImpresso no Brasil

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Aos Educadores da Vontade pelas técnicas de realização de si mesmo (cultura psicofísica, relaxação, método Vittoz, yoga, psicossíntese, método

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“Ter consciência de um ato, não é pensá-lo mas senti-lo.É preciso dar-nos inteiramente àquilo que fazemos. É o meio de aperfeiçoar ainda os nossos menores atos. Para isto é preciso adquirir a unidade, que concentra tôdas as nossas forças, em lugar de gastá-las

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I N T R O D U Ç Ã O

O homem moderno gosta da facilidade, pois vê nela o sinal do progresso: o latim sem esforço, a matemática sem trabalho, o conforto generalizado, o automóvel para ir até à esquina, etc., etc. Doutro lado o Domínio de Si mesmo não está atualmente em grande favor. Com efeito, em pleno século da ciência e da técnica, em que vivemos, falar dêste Domínio seria defender uma posição idealista, ligada a posições morais ultrapassadas. Que um pregar dor, que um confessor nos aconselhe tal Domínio para obter mais santidade, nós admitimos e com tanta maior facilidade, quanto é certo não se tratar no caso, senão de um apêlo a uma boa vontade freqüentemente ineficaz. Não compreendemos por que razão o Domínio de Si mesmo, fora de tôda opção moral, filosófica ou religiosa, é uma necessidade

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trangimento desequilibrador, contrário às nossas mais profundas tendências, uma necessidade imposta pela vida social, mas à qual é melhor não submeter demasiado as crianças? Que estas aproveitem da própria juventude! Não é, por acaso, o Ideal, o provar de todos “os alimentos terrestres?” Não está a grandeza maravilhosa e trágica do homem na sua Liberdade absoluta, visto como não há Bem nem Mal? Tudo é permitido àqueles que se sentem bem! O essencial é ser livre e para isto, basta ter um cérebro normal. Para que moralista? É ao médico, ao psi- cólogo que convém curar os pecados capitais, produzidos pelos distúrbios hormonais e pelos complexos. O indivíduo curado fará o que lhe der na fantasia.

Por que propor-nos êste esforço de dominar-nos, esforço tão penoso, tão fatigante, talvez até perigoso? Graças à ciência, encontraremos êste Domínio na farmácia: pílulas para dormir ou para ficar acordado, pílulas para acalmar-nos e ver tudo cor-de-rosa, pílulas de inteligência, pílulas de esterilização a fim de que a fecundidade seja voluntária e responsável.

É possível tirar a vontade a um animal por meio de certos venenos.

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INTRODUÇÃO 15

der que aqui também, no atletismo, o mais importante é o “doping” e as receitas técnicas, que tornam iguais as oportunidades para todos os corredores das etapas montanhosas do Circuito Ciclista da França. Para melhorar as “performances” de uma graciosa atleta bastaria dar-lhe hormônio masculino!

Como pois exprobrar ao homem moderno de se desinteressar pelo Domínio de Si mesmo? Dominar-se é um luxo reservado para aqueles que têm tempo de sobra, que vivem calmamente; numa palavra, para os egoístas que vivem à parte da construção do progresso. Na vida agitada, cheia de responsabilidades, o homem moderno não pode permitir-se o repouso. É para êle um dever imprescindível ir sempre mais velozmente. Basta dar-lhe apenas os meios necessários para sustentar-se nesta resolução. Nada de sermões, mas sim, pílula!

Mas eis que êste homem moderno, tão bem ajudado pela medicina, tão bem aliviado pela técnica, desmoro- na-se, vítima da angina pectoris, do enfarte do miocárdio, da hipertensão arterial, da ruptura de uma úlcera esto-macal, etc. O operário, o empregado moderno, tem seus trabalhos racionalizados a fim de ser evitada tôda fadiga: nenhuma

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É o que se faz em geral, 'pensando ser o Domínio de tSi da ordem moral de um espiritual desencarnado. E o fatigado, cada vez mais cansado, vai de médico a médico, fio médico comum que o repele, como a um nervoso que fipenas se escuta a si mesmo, como um falso doente, ao médico especialista, ao psiquiatra, que o trata como um neurótico, fazendo com que consuma grande quantidade de tranqüilizantes, que poderiam ser úteis dentro de um es- fôrço razoável de relaxação e repouso, mas bem incapazes ide ser a panacéia mágica sem a dita relaxação e repouso.

O mundo moderno tem necessidade, quer para resta-belecer-se no próprio equilíbrio e saúde, quer — e ainda melhor — para não perdê-lo, precisamente dêste Domínio e desta Vontade, que existe nas aptidões do cérebro Jiumano, mas às quais tem tendência natural a fugir, porque lhe parece penoso e porque uma errada interpretação da psicologia, lhas faz parecer ainda mais inúteis e até perigosas.

Pode-se evidentemente desejar construir um homem nôvo, livre de constrangimentos biológicos. No

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INTRODUÇÃO 1?Para servir ao homem, o

importante não é saber o que fazem os homens, mas sim o que são os homens; julgando-os então por aquilo que deveriam fazer, a fim de se conformarem àquilo que são. Para logo se perceberia que o que é mais freqüente é o mais anormal, por conseguinte também o mais desequilibrante e mais perigoso, ainda que preconceitos e maus hábitos nô-lo tornem confortável e agradável.

O homem de hoje não sabe o que é ser Homem. Apaixonado pela técnica, êle aprende a utilizar a máquina e a mantê-la, mas o que êle mesmo é, êle o ignora. Utiliza seu organismo e seu cérebro mas com uma falta de conhecimento, de competência e de sabedoria verdadeiramente deploráveis. Em conseqüência, p. ex., da imprudên-cia de médicos que, esquecendo a fragilidade do embrião, não hesitam em encher com drogas perigosas uma mulher grávida, a fim de impedi-la de vomitar, assim também como efeito da imprudência de cientistas e de estadistas, que obtêm o mesmo resultado, aumentando a radioatividade natural, foi muito discutido ultimamente sobre os nati- monstros, que uma caridade

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compulsão sobrenatural opondo-se às tendências humanas profundas. Aquilo de que temos necessidade é de valores comuns, de uma Moral Natural fundada objetiva e cien-tificamente sôbre o que o homem é e sôbre o que lhe convém. Habituados a considerar a Moral como variável e relativa às livres opções filosóficas, políticas e religiosas, a ter da Tolerância um conceito negativo (isto é, a ter respeito da verdade do vizinho, pois que a verdade absoluta e certa não é acessível), não conseguimos conceber que o conhecimento psicobiológico do homem possa dar-nos preciosas indicações, válidas par\a todos, objetivamente. Lembramo-nos perfeitamente das tentativas da “Moral Biológica”, que tôdas visavam, mais ou menos, atacar a Moral, fazendo o elogio do desregramento sexual, do racismo, dos direitos do forte, etc.

Como seria possível que (no dizer de J. Rostand) “a biologia tenha passado para o campo da virtude”? Quem sabe? por ter sido ela falsamente desviada por biologistas espiritualistas moralizadores? De modo nenhum. A razão é outra. Simplesmente foi criada uma biologia humana, que, num espírito de comparação com o Animal numa perspectiva de

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INTRODUÇÃO 19Matéria (dois conceitos, -pelos quais a abstração filosófica explica o real) como se tivessem uma existência própria independente, no mundo material. Nós os “coisifica- mos” em um dualismo exagerado: materialista (a matéria e seu produto espiritual) ou espiritualista (a máquina e seu conduto). Negamos assim a unidade do real, no qual matéria e espírito são indissociáveis, a menos que queira-mos a destruição do Ser por êles formado. O homem não é um corpo e uma alma. É uma unidade psicossomática, um corpo vivo, animado, capaz de viver, agir, pensar e refletir graças ao cérebro. Não um cérebro animal acionado por uma alma humana, mas um cérebro especificamente humano, cuja supercomplexidade condiciona a espiritualidade humana. Por conseguinte, sem totalitarismo, sem ocupar absolutamente o lugar do psicossociólogo, do moralista e do metafísico, o neurofisiólogo, que fôr até ao fim de sua tarefa, pode mostrar-nos com precisão que ser homem é utilizar convenientemente as possibilidades do cérebro humano, dizendo previamente em que consiste isso. Nem por isso se tornará milagrosamente fácil ser Homem. Ao contrário, a neurofisiologia nos demonstra

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válida, tanto no plano individual quanto social, em referência àquilo que é o Homem. Não basta apenas opor o natural ao técnico, ou alterná-los ou escolher entre os dois, num espírito conservador ou progressista. É preciso utilizar a técnica ao serviço da natureza humana a fim de nos ajudar a sermos Homem, cada vez mais e melhor, e não a fim de o sermos cada vez menos, minimizando todos os inconvenientes. Considerar o espírito naturalista como minimizando o espiritual é agarrar-se a um conceito ultrapassado e, no dia de hoje, definitivamente anti- científico das ciências naturais: é rejeitar a biologia humana, privando o homem de seu cérebro e não aceitar o sentido da complexificação evolutiva que dá a verdadeira significação à série animal.

Não se trata pois de pregar o Domínio de Si mesmo e a Vontade, mas mostrar a necessidade psicobiológica humana dêles enquanto técnica dto realização de si mesmo. Pensar que se possa remediar os desequilíbrios do mun-do moderno e a fadiga nervosa com medicamentos é uma ilusão perigosa. Esta fadiga vem lembrar-nos que somos homens e que por conseguinte temos de observar

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INTRODUÇÃO 21

natureza animal. Nada há de menos livre e menos espontâneo do que o comportamento animal. Que ilusão, pois, a daqueles que invejam o animal, cuja sexualidade, pensam êles, pode desencadear-se sem constrangimentos. A sexualidade animalesca não é, de modo nenhum livre, porque o animal não o é tampouco: ela está ligada aos costumes da espécie. Não é a Vontade ou a Moral que a limitam, mas sim outros automatismos instintivos: nenhum domínio no inseto social de casta operária, mas uma esterilização biológica de origem alimentar; nenhum domínio no galo de casta inferior, mas um tabu social que lhe interdiz qualquer exercício de sexualidade, ainda que esta seja normal, porque nenhuma galinha é disponível para êle.

Só o homem pode ser livre, porque o progresso de sua cerebrização transferiu ao cérebro superior as funções do cérebro instintivo do animal. O homem tem sempre necessidade e impulsos, mas não encontra em si os automar tismos de comportamento permitindo satisfazê-los corre-tamente. Pode entregar-se à vontade a suas necessidades ou refreá-las. Mas para ser verdadeiramente livre, deve fundar sua conduta numa decisão refletida.

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são a nossa dignidade) procuramos tornar inócuas nossas ignorândas e nossos preconceitos por meios artificiais de defesa, por técnicas de preservação. Querendo defender- -nos contra aquilo que supomos ser fraquezas de nossa natureza e que tem raízes em nossas tentativas permanentes de desnaturação, de fixação em um nível inferior e in-completo de natureza, confundimos com a norma esta desnaturação, agravando-a um pouco mais por receitas que tornam ainda mais inútil o verdadeiro Domínio.

Que compreende atualmente a condenação lançada pelos moralistas católicos contra os processos artificiais de redução da fecundidade (ditos contraceptivos), palavra esta que, precisamente o uso tende a estender abusivamente a todos os processos de regulação de nascimentos, sem distinção entre artificial e natural? Se temos razões legitimas de restringir a natalidade, por quê não utilizar tudo quanto permite a técnica moderna, visando sobretudo a eficácia? Em que seriam imorais certos processos? Não se vê a diferença essencial entre defender-se contra uma sexualidade impossível de dominar e ser dono absoluto da própria sexualidade, fato que é realmente a única e verdadeira

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INTRODUÇÃO 23O problema é geral e sobrepassa

de muito o simples problema da contracepção. Que coisa mais natural do que a dor do parto, dadas as contrações e as dilatações? Que coisa mais feliz do que a anestesia geral que suprime tal dor? Está ou não assim resolvido o problema péla técnica?

No entanto, que é a dor do parto senão a conseqüência de um preconceito social agravado pelo acréscimo de sensibilidade e nervosismo moderno? Uma mulher passiva e aterrorizada, que sempre receia sofrer, é forçada a sofrer! Em lugar de aumentar a passividade dela, ador- mecendo-a com substâncias tóxicas para ela e para a criança, não seria melhor ensiná-la a utilizar melhor o cérebro para dar à luz voluntária e corretamente? Assim, em virtude das leis do cérebro, haveria o parto sem temor e sem dor. A anestesia ficaria para os partos anormais.

É conhecida a resistência que foi preciso vencer a fim de que triunfasse o método pavloviano do parto sem dor, porque, método de Domínio de Si que êle é, contraria as tendências do mundo atual.

Apesar de ser a mulher quem dá à luz, é preciso fazer do parto um ato conjugal do qual participe o

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higienicamente como Homem. Verdadeiro domínio do repouso, do sono, assim como da sexualidade. Sempre e em todo lugar, não queiramos remediar a nossa desnaturação mediante preconceitos ou falsa técnica, ainda mais desna- turante, mas desenvolver em nós os recursos de nossa natureza, principalmente êste domínio, fonte de felicidade, de alegria, de paz interior que é a marca da autêntica espontaneidade humana, senão o inverso da crispação no esforço daquele que quer, sem ter aprendido a querer.

Haverá algo de mais utópico do querer não adoecer? Não está, de fato, em nosso poder esquivar-nos do bacilo tuberculoso ou sermos insensíveis a um pólen qualquer, fonte de alergia. As pesquisas modernas porém, sem ab-solutamente negar êste aspecto objetivo da doença, descobrem cada vez mais, também cientificamente, o aspecto subjetivo. Está em nós levar uma vida higiênica, evitar o esgotamento, que abre a porta a tôdas as doenças e torna a cura difícil. Antigamente se contrapunham as verdadeiras doenças aos nervosismos, como se um desequilíbrio nervoso não fôsse também uma verdadeira doença.

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principalmente agora, quando não estamos mais enquadrados numa sociedade estável. Mas, igualmente perigoso é o falso Domínio de Si, de quem não aprendeu a querer corretamente. Inversamente, o retorno ao equilíbrio depende do Domínio de Si, coisa tanto mais difícil ao desequilibrado quanto é certo que seu desequilíbrio é prova de que estava êle anteriormente sem Domínio de Si. Por isto, não é necessário procurar desesperadamente querer, mas sim restabelecer a calma que permita aprender a querer.

Tudo se baseia na educação da Vontade. Infelizmente porém, só retivemos a metade da mensagem da psicanálise, quando ela nos manda evitar o excesso de constrangimento autoritário para não nos arriscar a causar complexos neurosantes. Apressadamente concluímos que não há mais nada a fazer da autoridade, esquecendo-nos por completo que não é a verdadeira Moral que desequilibra, mas o Legalismo moralizaáor, impondo constrangimentos incompreendidos. Uma criança será certamente desequilibrada por uma formação autoritária, oposta às suas tendências. Mas será também desequilibrada se não se fizer dela um Homem, isto é, se não se lhe ensinar o verdadeiro Domínio sôbre Si, propondo-lhe um esforço proporcionado a suas fôrças,

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de sofrer, mas sim aprendendo o Domínio de Si mesma que irá querer saber dar à luz corretamente. Como chegar até aí? Não simplesmente prescrevendo-lhe exercícios físicos, mas ensinando-lhe o funcionamento do próprio cérebro. É sabido como originàriamente Pavlov, por precon-ceito, restringiu seu método às mulheres do povo. Foi a estas mulheres sem cultura científica que foram dados os cursos de vulgarização científica que as transformaram. Pode parecer uma utopia, mas foi uma utopia vitoriosa! A cultura biológica, o conhecimento de Si mesmo é a fonte do Domínio de Si mesmo!

Quando compreenderão todos que o parto aqui não é senão um caso particular? É neste espírito da teoria ao serviço da prática que escrevemos êste livro. Pode-se con-siderar a Vontade sob um ângulo de visão científica como também podem dar-se receitas para querer. Mas estas receitas não serão plenamente eficazes se não compreendermos seu valor e necessidade. É preciso, pois, que abandonemos o preconceito de já sabermos o que seja QUERER. Poder querer, saber querer não dependem apenas de um simples

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INTRODUÇÃO 27ao filósofo os campos próprios. Êstes que digam o que é a Vontade em si mesma. A contribuição do neurofisiólogo — que é coisa nova e ainda mal conhecida — é o aspecto encarnado da Vontade, isto é, como o EU comanda a máquina, não do exterior, mas sim porque faz parte da própria máquina.

Tornando precisa a neurofisiologia da Vontade pelo estudo das propriedades específicas do cérebro humano, nós chegaremos a justificar cientificamente a intuição de numerosos Empíricos, que já se têm esforçaão esotèrica- mente a levar o homem ao Domínio de si mesmo. Já é hora de sair dêste empirismo, fonte sempre possível de erros. É preciso criar a ciência do Domínio de Si mesmo, não para impô-la a qualquer um, mas para que quem quiser usar dela saiba orientar corretamente seus próprios esforços. Cientistas e moralistas unem-se muitas vêzes no desprezo aos esforços empíricos, esquecendo-se que tais esforços são a única tentativa eficaz para ajudar o homem moderno a encontrar o seu verdadeiro equilíbrio. O cientista e o médico devem compreender que uma ciência analítica, em nome de uma

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te a lavagem passiva do cérebro por sugestão, mas a aprendizagem das condições corretas para a utilização dêle.

Que é Querer? Reflitamos um pouco sôbre isto, antes de nos ir perguntando, ao percorrer o livro, como querer, depois de termos, então, visto que é o nosso cérebro que nos assegura as possibilidades de exercer materialmente esta capacidade espiritual de uma ordem diferente da matéria, na qual se manifesta.

Usualmente, é a <efaculdade de se determinar livremente a certos atos”. O Vocabulário da Psicologia, sob a pena de H. Piéron, precisa ainda mais: um ato, uma atitude são ditas voluntárias na medida em que se integram no comportamento de uma personalidade que controla o jôgo normal das funções corticais. Opõem-se aos reflexos estereotipados, aos automatismos (quando êstes escapam ao controle), às reações e inibições afetivas de caráter impulsivo. O domínio do voluntário, retificado sob o nome de Vontade, na linguagem popular adotada pela psicologia primitiva das faculdades, é quase que exclusivamente limi-tado ao campo do sistema nervoso da vida de relação, ao jôgo dos músculos estriados. As funções

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INTRODUÇÃO 29Traço bipolar, de cujos extremos um é representado pela abulia. Um matiz apenas faz distinguir entre Aquêle que tem vontade, dotado de forte controle sôbre si mesmo, vencendo os próprios obstáculos, como a fadiga e a dor, e o Voluntarioso, que tende a impor suas decisões, a opor sua vontade às dos outros.

Demasiado freqüentemente figuramos a Vontade sob o aspecto limitado do ato ou do domínio motriz, dito voluntário. O interêsse de uma psicofisiologia completa da Vontade é precisamente minimizar a submissão da motricidade (que não é senão mecanismo de execução) e de insistir sôbre a submissão da motricidade cerebral à consciência refletida. Querer agir é primeiro querer pensar e para querer pensar é preciso querer sentir, conhecer a situação atual, ajudar-se pela imaginação, que evoca o passado e encara o futuro. Para saber querer, por conseguinte, não basta esforçar-se por querer no sentido motor, começar um ato ou impedi-lo. Será preciso pensar cor-retamente com uma consciência clara, coisa que não é tão fácil quanto parece, pois exige tôda uma educação. Esta, antes de ser simplesmente uma educação da vontade motriz, é uma arte de

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cialista, que nossa liberdade não é absurda porque sem limites. Não há vontade humana correta que não esteja ao serviço do autêntico e do verdadeiro. Não saber querer não é querer. O homem não tem boa vontade humana senão quando quer o Bem. A psicofisiologia confirma cada vez mais objetivamente a Moral, dando-lhe uma base científica, ancorada na natureza psicobiológica do homem e fazendo disto um valor comum, quaisquer que sejam as posições filosóficas ou religiosas, uma Moral biológica de prevenção e de promoção do homem e da humanidade. Como escreve Grenet, “a vontade não é uma fôrça que re-sista aos obstáculos ou que os quebré, a não ser nos casos em que encontra pela frente uma impulsão que a contrarie. De si e por natureza, ela é, positiva e essencialmente, o apetite do Bem”. Aqui também a neurofisiologia mo-derna é esclarecedora mostrando-nos que é impossível separar no homem o afetivo do racional. A verdadeira vontade humana tem sempre um aspecto afetivo, está sempre ligada a uma satisfação, a um desejo. É preciso querer o que é amável. Nossos desejos porém são enganadores e nosso apetite do Bem nos leva freqüentemente ao

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INTRODUÇÃO

Veremos então como, para querer, é preciso aprender a querer (a fim de ser um verdadeiro adulto) e como a civilização consiste em querer cada vez melhor. Por que querer? Para humanizar, para liberar, para não batizar como espontaneidade o abandonar-se a automatismos irrefletidos.

Evocaremos alguns aspectos práticos da educação psicofísica da

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1O Cérebro, órgão da Vontade

VONTADE E CÉREBRO.

Que a Vontade depende do cérebro e exige um funcionamento cerebral correto, é uma evidência. Não é possível querer, se o cérebro não funciona, como por ex., na inconsciência da coma. Não há verdadeira Vontade quando o cérebro está submerso no sono, ainda que sonhando, até quando o sonho comporta uma atividade motriz de tipo sonambúlico. Se subirmos demasiado, sem máscara de oxigênio, a diminuição de pressão impede ao cérebro de receber o oxigênio necessário. E então antes de soçobrar na incons-ciência, passa a pessoa por uma abulia feliz, durante a qual fica incapaz de fazer o esforço salvador de inalar oxigênio e isto tanto mais

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taria de um aspecto do insolúvel mistério entre o psicológico, hesita-se em geral entre duas soluções, ambas falsas e nocivas, como veremos. Para uns, o cérebro não seria senão uma mecânica, um aparelho ao serviço de uma vontade espiritual exterior. Isto minimizaria grandemente a impor-tância do cérebro e levantaria o insolúvel (porque falso) problema das relações da alma e do corpo. Grande é a tentação dos idealistas, que professam uma tal opinião, de confinar o animal, desprovido de alma, na mera mecânica e de negar-lhe, contrariamente a todo bom senso, tôda possibilidade de Vontade.

Mas se os idealistas mecanizam o corpo, bem freqüentemente seus adversários materialistas são também mecanicistas: simplesmente para êles, tanto o homem como o animal não passam de mecânica. A vontade não seria senão a tomada de consciência de um fenômeno localizado no cé-rebro. Nestas condições, ou a vontade é uma ilusão ou uma realidade material, da qual nos podemos assenhorear: sonha-se então com pílulas produzindo uma vontade sem esforços ou com um autômato artificial dotado de verdadeira vontade e de

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O CEREBRO, ÕRGAO DA VONTADE 35das excitações e inibições cerebrais, garantem os circuitos dos reflexos condicionados), mas no aspecto sintético. O êrro do gestaltismo foi, diante de uma neurofisiologia analítica que esquecia a síntese, pensar que a síntese escapava à neurofisiologia, que era inteiramente de outra or-dem. Mas atualmente, em conseqüência de seus progressos, a neurofisiologia descobre, sob seu próprio ângulo de visão, o aspecto sintético do funcionamento cerebral. Constitui-se, assim, uma neurofisiologia da consciência, fundando-se sôbre esta a neurofisiologia da vontade. O neurofisio- logista renunciou definitivamente a sair do próprio campo e não tem nenhuma intenção de totalitarismo. Não compete a êle conhecer a Vontade em si mesma, nem na sua fenomenologia psicológica nem na sua metafísica. O que êle pretende é precisar em que medida a Vontade é também, em princípio, um processo cerebral.

O DOMÍNIO VOLUNTÁRIO.

Qualificamos de voluntários alguns de nossos atos, que se referem à nossa vida de relação e se executam graças à contração de

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'O DO MIN TO DE 81

mais bela de vontade lúcida que o ato automático de uma rã, sem cérebro, limpando com uma pata o ácido caído sôbre a outra pata? É para admirar a vontade de combate de um pássaro que ataca corajosamente um rival, mas também não é para menosprezar sua apatia diante do mesmo ad-versário despojado das penas vermelhas. Estas penas vermelhas, fixadas na ponta de uma vara, restituem ao pássaro o antigo furor de combate! Não é o dito pássaro mais estúpido neste caso do que mais inteligente no outro. Real-mente êle não queria nada. Um automatismo incoercível o obriga a atacar, quando, em atividade sexual, vê penas vermelhas, mas normalmente tais penas estão cobrindo o rival. Um tal comportamento não exige a intervenção de um cérebro superior, sede da consciência e da vontade. Depende apenas dos centros instintivos da base do cérebro (hypho-thálamus) e do cérebro primitivo (rhinencéphalo). A sabedoria automática do instinto não é senão o aspecto superior dessa sabedoria do corpo, que por auto-regulação, marxtém constante a composição do ambiente interior. O homem doente de insuficiência renal não poderá curar-se se, cons-

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<J CÉREBRO, ÕRGAO DA VONTADE 37tade. Nada disto. Em neurocirurgia, nas condições usuais e favoráveis de operação em um doente acordado, os movimentos determinados por excitação elétrica desta zona, são interpretados como impulsões não-queridas.

Os neurônios psicomotores, tal como os músculos, são engrenagens que podem estar ao serviço da vontade, mas cujo funcionamento só é voluntário em determinadas condições. Contràriamente ao que se acreditava até agora, a ausência de comando voluntário no campo visceral não depende da inexistência de neurônios motores viscerais no córtex cerebral. A excitação elétrica do córtex revela a presença dêles assim como a possibilidade de criar reflexos condicionados córtico-viscerais (apanágio do córtex); fora pois, do campo consciente e voluntário. É simplesmente porque, pouco numerosos e lentos, êstes neurônios ficam à parte do funcionamento do conjunto. Mas, ainda no campo da vida de relação, a maior parte dos movimentos cerebrais são hábitos nos quais não intervém a vontade: nós tomamos consciência dêles se prestarmos

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somente que sejamos conscientes e atentos ao movimento, mas que metamos nossa consciência e atenção para começar o movimento. Longe de ser freqüente, o ato voluntrário é raro, pois que necessita de uma reflexão, de uma tomada de consciência daquilo que nos convém.

Mas a reflexão também não basta. É preciso que ela traduza ativamente (uma atividade, que não é unicamente positiva) o movimento, mas também negativamente (a possibilidade de se recusar a agir, dominando um impulso). Antes de querer agir ou não, é preciso querer refletir, isto é, aplicar a própria tomada de consciência à situação. Querer, transborda de muito da simples atividade motriz e se refere a todo o funcionamento cerebral. Somos vagamente conscientes daquilo que se passa ao nosso redor, um fenômeno insólito pode atrair, apesar de nossa atenção, mas não somos plenamente conscientes se não quisermos. Uma atenção passiva e automática basta para ouvir e ver, mas é preciso querer para escutar e olhar. Pensamos continuamente, mas é raro que nosso pensamento seja uma atenção querida e sem distração.

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O CÉREBRO, ÕRGAO DA VONTADE 39pação no esforço, contrária à fácil espontaneidade, quando não é o entregar-nos a impulsos, que nós justificamos mais ou menos cônscia e sinceramente. É que vivemos sob o preconceito de que querer é, primeiro, agir, é lançar-nos com energia na confrontação com um pensamento ou uma recusa, um ato ou a omissão dêle. Ora, querer tem por condição primeira sentir e compreender com lucidez, exigindo assim um acréscimo de consciência, de presença atenta é refletida. Não é a rigidez brutal, mas a adaptabilidade sábia e prudente.

SENSIBILIDADE MUSCULAR E HARMONIA DO GESTO.

Nada há na inteligência que não venha por meio dos sentidos. Êste velho adágio da filosofia realista é plenamente' confirmado pela neurofisiologia. Privado das men-sagens ativadoras dos sentidos, o cérebro inibe seu funcionamento e soçobra no sono. A neurofisiologia da Vontade deve pois insistir sôbre a importância da informação sensorial, que está na origem da precisão do gesto como de tôda harmonia do funcionamento cerebral, condição do pensamento. Mas não é somente para o comando voluntário que os

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na, de uma função de auto-regulação harmonizadora do funcionamento nervoso, dependendo de centros situados na base do cérebro. Não se trata simplesmente de querer ou de saber o que querer. Trata-se de “estar em estado de querer”, isto é, de poder e saber utilizar tôda nossa mecânica cerebral. Com efeito, veremos que o maior obstáculo à vontade é a impossibilidade de domínio de um cérebro, que, por imprudência e ignorância, havemos desequilibrado. Para querer, não há necessidade, é claro, de nos tornar todos neurofisiologistas, mas é importante justificar científica e objetivamente, em nome da neurofisiologia, precisando-as, as indicações da sabedoria tradicional.

A mecânica cerebral ao serviço da vontade é de uma extrema complexidade. Todo gesto faz intervir o comando de numerosos músculos necessários ao movimento, ditos sinérgicos. Há também freagem, inibição dos músculos de ação inversa, ditos antagonistas. É que, na pessoa acordada, os músculos não estão em repouso, ainda quando em imobilidade total. Estão sempre num certo grau de tensão, numa

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O CEREBRO, ÓRGAO DA VONTADE

quer nas doenças do cerebelo, que é o centro regulador da precisão dêste tônus. O doente do cerebelo tem movimentos desarmoniosos, escandidos, imprecisos. Como um títere, não pode tal doente fazer movimentos seguidos, contínuos (adia- dococinese).

A execução, pois, correta de um movimento voluntário pede tôda uma harmonia 'preestabelecida. Esta harmonia baseia-se na auto-regulação pelas mensagens dos sentidos. Se, em uma pessoa normal, os músculos nunca estão em repouso completo, é porque recebem incessantemente men-sagens sensoriais. As mais importantes destas mensagens, sempre presentes, vêm da sensibilidade muscular. Ê preciso que não esqueçamos ser o músculo não apenas um mero órgão de execução, mas também um dos nossos mais importantes órgãos dos sentidos. Tôda modificação da concentração do músculo, estática (tônus) ou dinâmica (movimento), vai ativar ou acalmar numerosos tipos de receptores sensoriais, mecânicamente sensíveis. Dêstes, alguns são dispositivos próprios dos músculos, como certas fibras especializadas, os fusos neuromusculares, que se compõem de um receptor principal e de

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a medula em repouso, mas ajunta um fato suplementar a esta dinâmica flutuante no tempo e no espaço de excitações e inibições.

Mas esta dinâmica não é somente auto-reguladora da medula graças às inter-relações entre neurônios sensitivos e neurônios motores. Um animal, privado de seus centros encefálicos mas conservando apenas a medula, não tem o tônus suficiente para guardar uma postura correta, para manter-se sôbre as patas. A harmonia do tônus exige uma auto-regulação, que faça intervir em um nível superior as mensagens da sensibilidade muscular. Estas sobem até aos centros da base do cérebro que asseguram esta regulação, enviando aos neurônios motores medulares mensagens re-guladoras, ativadoras ou inibidoras. Inversamente às regulações locais ou regionais medulares, trata-se aqui de uma regulação de conjunto, assegurando tôda a unidade motriz do indivíduo, que pode assim conservar seu equilíbrio geral durante o movimento. Mas a regulação não é apenas pela intervenção das mensagens ascendentes vindas dos músculos. A serviço da harmonia do gesto voluntário, os centros reguladores recebem

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o CEREBRO, ÕRGAO DA VONTADE 43trário, um tônus exagerado: têm contraturas em extensão, como se fôsse de madeira. É a rigidez descerebrada. Normalmente intervêm os centros reguladores principais, situados no mesencéfalo, impedindo esta hipertonia pelo ajustamento do tônus ao nível conveniente. A parte mais importante do cerebelo é um órgão de precisão, que age mediante êstes centros do mesencéfalo.

As mensagens da sensibilidade muscular não param na base do cérebro: sobem por etapas sucessivas, até o córtex cerebral. É por isto que elas estão na origem de sensações conscientes, informando-nos sôbre a posição e os movimentos das diversas partes do corpo, ainda quando não as ve-mos, dando-nos assim o sentido do relêvo (reconhecimento de um objeto por apalpação), ou do pêso. Apesar de prestarmos atenção a tais informações, no mais das vêzes não nos rendemos conta daquilo que acontece assim permanentemente em nosso cérebro. Estas mensagens não deixam pois de ter um papel da mais alta importância, tanto para a motricidade cerebral quanto para a motricidade medular. A mo-tricidade cerebral não depende de

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da, na circunvolução frontal ascendente. As estruturas sen-sitivas se transformam em estruturas motrizes, e então bas-tará que a ordem motora seja enviada para que a execução seja correta. Qualquer movimento, pois, não é simplesmente uma ordem motora que chega ao músculo. É a modificação da imagem motriz cerebral, da qual o cérebro é informado por uma modificação da imagem sensitiva muscular cere-bral. Querer, pois, não é apenas agir sôbre o músculo, mas manifestar imaginação motora, ter na própria cabeça a idéia de movimento, isto é, realizar a estruturação motora, que será a origem do comando muscular.

APRENDER A AGIR: GNOSIAS E PRAXIAS.

Não somos conscientes dos nossos movimentos porque já estamos a êles habituados. Enquanto que na medula, centro relativamente simples, tudo funciona correta e au-tomàticamente, sem aprendizagem, graças à harmonia das conexões nervosas que se vão fazendo no decurso do de-senvolvimento, no cérebro, pelo

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O CÉREBRO, ORGAO DA VONTADE 45A anatomia lhe dá neurônios

cerebrais sensitivos, que recebem as mensagens dos sentidos, como lhe dá neurônios motores. Estando na vizinhança dêstes neurônios, os neurônios vizinhos, pela própria situação, são pré-adaptados a um papel coordenador. Mas é o exercício, a aprendizagem, que permitirá a utilização destas possibilidades inatas. No cérebro, nem tudo repousa sôbre reflexos ordinários, mas sôbre reflexos adquiridos, reflexos condicionados. São reflexos condicionados as gnosias perceptivas, isto é, coor-denações que permitem compreender o sentido daquilo que sentimos. São reflexos condicionados as praxias motrizes, isto é, nossos gestos, cuja precisão foi adquirida às apalpadelas, ajustando movimento e esforço ao resultado procurado com a ajuda da sensibilidade muscular.

Aquilo que nos irá permitir agir, não são, pois, diretamente, as estruturações sensitivas e motrizes primárias, situadas de um e de outro lado da Fenda de Rolando, mas os circuitos coordenadores complexos, que tenhamos formado nas zonas vizinhas, zonas das gnosias e praxias..

As ZONAS MOTRIZES CEREBRAIS.

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culos. Os músculos do tronco, apesar da sua massa, são pouco importantes cerebralmente falando, ao contrário dos músculos, menos volumosos, das mãos, da facete..do jpescoçQ (a fonação tem um rico comando cerebral). O corpo ao ser-viço da vontade, não é o corpo que vemos, mas aquêle que sentimos cerebralmente.

Defronte à zona sensitiva parietal existem 2 zonas motrizes cerebrais. Diante da área motriz da circunvolução frontal ascendente (onde estão os neurônios psicomotores piramidais, que vão diretamente comandar os neurônios motores periféricos do lado oposto que são os órgãos da motricidade fina de precisão) existe uma área pré-motrizy origem das vias extrapiramidais, que não comandam os neurônios periféricos senão por relés sucessivos, nos centros da base do cérebro. Ê a motricidade mais grosseira, mas mais generalizada, facilitando a eficácia da precedente. Em todo movimento cerebral, não há apenas a adaptação precisa da contração de um músculo, mas o jôgo de numerosos músculos , acessórios, colaboradores e preparadores: o braço se desloca a fim de que a mão aja. A área pré-motriz é a sede, ao mesmo tempo,

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O CffiREBRO, ÕRGAO DA VONTADE 47afasia motriz (anartria) daquele que não pode mais coordenar seus músculos fonadores para articular palavras.

Uma dificuldade de nossa organização cerebral é têr- mos 2 hemisférios cerebrais comandando cada um dêles a metade do corpo. Há normalmente um hemisfério preponderante, dito dominante, que é o hemisfério que comanda a mão ativa: o esquerdo para o direito e o direito para o esquerdo. Neste hemisfério dominante são localizadas, mais eletivamente, as gnosias e as praxias, sobretudo as da linguagem. O dito hemisfério é o cérebro dela. As outras praxias são menos localizadas. As pesquisas atuais tendem a precisar o papel práxico dos 2 hemisférios e a im-portância do corpo caloso, que os une.

DOS AUTOMATISMOS CEREBRAIS À VONTADE.

O homem pode aprender a qualquer idade. Devem-se distinguir porém 3 categorias de praxias. Há automatismos adquiridos espontâneamente na infância por uma auto-edu- cação influenciada pelo meio social que, por exemplo, dá uma língua utilizando apenas certas aptidões cerebrais inatas à modulação dos

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automático para a vida de um ser relativamente passivo, se seguirá uma educação consciente e voluntária. Por exercício querido, aprenderemos certos gestos novos que se enxertarão nos gestos primitivos. Tornar-se-ão êles também um automatismo, não fazendo intervir a consciência e a vontade, mas isto será secundàriamente. Enfim, se podemos repousar sôbre gestos habituais automáticos, temos também a possibilidade de fazer gestos plenamente voluntários, isto é, de utilizar nossos gestos aprendidos em circunstâncias dife-rentes. Em todos êstes casos se trata do funcionamento dos mecanismos motores cerebrais dessa harmonia das excitações e inibições, onde a auto-regulação sensorial tem um papel preponderante. Os centros reguladores da base do cérebro não são somente responsáveis pela regulação descendente do tônus muscular por intermédio do tônus nervoso dos neurônios motores. Sua função reguladora é geral e concerne todo o funcionamento nervoso. Existe assim uma regulação ascendente responsável da harmonia das funções cerebrais. A informação que os centros

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O CÉREBRO, ÓRGÃÒ DA VÓNTADÉ 40

O EU CEREBRAL.

Durante muito tempo se creu que, por definição, o subjetivo, a consciência, a vontade escapavam a um estudo científico objetivo. Tôdas as tendências porém, da neu- rofisiologia moderna, que perscrutam o cérebro humano acordado, nos conduzem objetivamente aos mecanismos cerebrais precisos da subjetividade. Nós queremos apenas porque o Eu, qualquer que seja a sua especificidade, é um mecanismo cerebral apto, por causa disto, a entrar em relação com os mecanismos cerebrais. Uma vontade angélica espiritual desencarnada seria no homem, impotente. Impotente seria também uma vontade que não fôsse senão engrenagem cerebral.

Se as mensagens de nossos sentidos, que conduzem no cérebro às gnosias perceptivas, nos permitem distinguir os objetos exteriores, é porque nos situam em relação a êles. A síntese de tôdas as sensações relativas ao nosso corpo, onde a sensibilidade do cérebro parietal cutâneo e muscular exerce papel preponderante, cria em nosso cérebro a imagem do nosso corpo,

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cerebral são as estruturações da zona parietal na sua parte gnósica: aprendemos a utilizá-las para modificar as estruturações motrizes. O movimento voluntário ou o domínio voluntário é a tomada de conta da dinâmica motriz cerebral pelas estruturas do Eu. Tudo quanto não fôr comandado por estas estruturas escapa, justamente, à vontade.

Trata-se da alternância entre distração e atenção: estar atento é pôr o cérebro sob o controle do Eu cerebral; estar distraído, é deixar que aquêle funcione à revelia dêste. E isto não concerne apenas à motricidade, mas a tôda di-nâmica cerebral, que tem a mesma base de mosaicos de excitações e de inibições flutuando no tempo e no espaço, quer se trate de sensações ou de pensamentos. Tudo isto está no nosso cérebro, mas devemos aprender a tomar o controle de tudo. Se não há sensação senão pela tomada de consciência, todos os elementos da sensação preexistem no cérebro, a êle conduzidos à nossa revelia, pelas mensagens dos sentidos. Há em nós uma máquina de pensar pela associação das imagens do mundo exterior ou do equivalente verbal delas, mas temos que dirigi-la voluntariamente. Estar atento ou

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O CEREBRO, ORGAO DA VONTADE 51Hoje, pelo contrário, quando tudo é examinado e criticado, é imprescindível aprender a saber querer. Tanto mais quanto por falta de sabedoria, vivemos uma vida excessiva, que, desequilibrando nossos centros reguladores, nos faz sucumbir à fadiga nervosa. Esta torna o Domínio de Si mesmo bem mais difícil, mas exige precisamente êste Domínio, como condição de retorno ao equilíbrio e

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2Vontade animal e Vontade humana

COMPLEXIFICAÇÃO CEREBRAL E NÍVEIS DE VONTADE.

O homem primitivo personaliza os fenômenos naturais: dá um espírito ao vento e ao raio. Animista, que é, anima o inanimado. Com espontaneidade tôda natural, ‘ dá, por antropomorfismo, consciência e vontade humanas ao animal.

A objetividade, quer científica quer filosófica, se recusa a uma tal confusão. O animal não quer. Obedece apenas aos automatismos inatos de seus tropismos e instintos. O animal não seria outro tanto do homem? Talvez seria êste de uma ordem totalmente diversa por causa da espiritualidade de sua alma? Para QUERER será necessário ter uma alma espiritual, acionando a mecânica cerebral? Acabamos de ver que a neurofisiologia moderna não desagua sôbre o mistério de uma animação exterior pelo espiritual, mas nos diz com precisão a função cerebral de vontade, como o Eu cerebral personaliza a conduta. Nestas condições, como não conceder aos animais, pelo menos àqueles que têm um cérebro parecido com o nosso,

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um inseto, não o seria também negar a Vontade a um cão, a um

gato ou a um chimpanzé ? Tal foi a posição de L. Labic- que,

que por razões meramente científicas foi levado a desenvolver

a noção de Consciência ou Alma Celular. Sendo a série animal

uma continuidade, por que e onde parar?

De fato, não temos compreendido bem o ensinamento do

estudo zoológico comparado dos animais e do homem, a

significação da evolução biológica que nos mostra a origem do

superior a partir do inferior. Os animais nos parecem uma

fantasia da natureza, sem maior interêsse para nós, quer um

animal entre outros, quer um ser espiritual de uma ordem

completamente outra. Ou igualamos as diferenças num

nivelamento generalizado, recusando todo juízo objetivo de

valor ou afirmamos descontinuidades totais, que tiram ao

inferior tôda e qualquer significação na preparação do superior.

Ê impossível compreender a vida e por conseqüência o Homem,

se não se partir da noção da complexificação, isto é, da

aparição de sêres cada vez mais complexos, quanto ao cérebro.

Isto permite objetivamente dizer que o homem é o florão da

evolução animal, porque tem o cérebro mais complexo. É

impossível compreender plenamente o Homem, tanto isolando-

o do animal quanto dividindo-o em um corpo animal e uma

alma espiritual. Tôda espiritualidade humana, qualquer que seja

sua sign!ficação metafísica, está encarnada, isto é, se realiza

pelas funções do cérebro humano. Ê justamente o progresso da

neurofisiologia humana que faz com que hoje os valores

espirituais humanos apareçam, cada vez mais como fatos

incontestáveis, quaisquer que sejam as conclusões filosóficas.

Se pois o espiritual humano é cerebralizado (ou então, o

cerebral humano, espiritualizado), é impossível que os estádios

pré-humanos de cerebra- lização não comportem uma certa

espiritualidade, certos degraus para a espiritualidade humana.

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Tem tôda razão o filósofo, que, apoiado sôbre a obje-tividade psicológica, insiste que se reserve a palavra “Espírito” ao homem. O homem chegou à Reflexão, “esta consciência da consciência”, segundo a justa expressão de Teilhard de Chardin.

Mas isto não exige absolutamente que aquilo que precede

(umbral de acesso ao Espírito) nada tenha que ver com o

Espírito. A ascensão, no animal, da complexidade cerebral

permite um psiquismo que, sem nunca atingir o nível humano,

sobe nessa direção. Nota-se perfeitamente bem uma

espiritualização, ou melhor, uma 'pré-espirituali- zação, uma

preparação para o passo da Reflexão. Da mesma forma, antes

da aparição da vida (outro umbral abrupto, outra

descontinuidade), houve uma complexificação do inanimado,

realizando moléculas cada vez mais complexas, que não eram

vivas, mas se aproximavam cada vez mais da

supercomplexidade destas. É uma posição simplista e falsa ver

tudo sob o aspecto contínuo ou totalmente descontínuo. Há

umbrais de descontinuidade sôbre um fundo de progresso

contínuo. A ciência nos mostra como a um certo momento a

complexificação quantitativa produz qualidades novas, estando

a origem da mudança quantitativa não no quantitativo mas na

sua supercomplexificação. Por que fazer dêste fato científico de

emergência uma afirmação filosófica materialista?

Se os espiritualistas fôssem realistas compreenderiam que

é precisamente uma sã reflexão filosófica sôbre a emergência

que leva a explicá-la metafisicamente por estas diferenças

formais de natureza do princípio explicativo da organização,

sôbre as quais insistia S. Tomás de Aquino, depois de

Aristóteles. Temos que retomar à sábia noção de analogia, que

tão bem nos explica a união do semelhante e do diferente. O

animal não tem vontade humana porque não é homem, não

tem um cérebro bastante complexo para

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56 O DOMÍNIO DE SI

querer humanamente sob a dependência de uma verdadeira

Reflexão, fonte de plena liberdade. Não deixa por isto de ter

um nível de vontade animalesca proporcionado ao grau de

complexidade de seu cérebro. A neurofisiologia moderna

objetifica nas estruturas cerebrais aquilo que a análise me-

tafísica acha na diferença entre a alma espiritual humana e o

nível animal da alma, destas almas animais que não saem do

nível animalesco ainda quando um mundo separa o psiquismo

inumano da ameba do psiquismo bem mais humano de um

mamífero. Um umbral enorme separa a ameba do chimpanzé,

mas é enchida por uma seqüência de degraus intermediários.

Êste não é o caso para a passagem do inanimado ao vivente

(ainda quando tenha havido formas pré- celulares de vida),

nem para a passagem do animal ao homem (ainda quando

tenha havido pré-humanos mais simples). A dificuldade aqui é

de situar onde começa o homem, onde êle passou a soleira.

Mas esta não desaparece em absoluto simplesmente pelo fato

de, antes do homem, ter havido superanimais que ascendiam

na escala na direção do Homem, nem tampouco, depois de

transposta a soleira, desaparece a continuação do

aperfeiçoamento.

LUGAR DA VONTADE NOS COMPORTAMENTOS.

Donde vem que, com a motricidade aperfeiçoada que têm,

tenham os animais insuficiência no Querer? Em conseqüência

da insuficiência do Eu cerebral dêles, que lhes não permite uma

plena tomada de contas da própria conduta. Um verdadeiro Eu

cerebral exige hemisférios cerebrais e uma cortiça cerebral,

coisa que não aparece senão nos pássaros e sobretudo nos

mamíferos. Os animais não sofrem, por causa desta

insuficiência de vontade, pois não têm necessidade dela para

uma conduta correta. Nêles o essencial é o instintivo, o inato, a

máquina de comporta-

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VONTADE ANIMAL E VONTADE HUMANA 57

mento, que lhes permite (sem ter necessidade de refletir e de

querer) portar-se corretamente, isto é, de acôrdo com a própria

natureza. Observando os animais, parece-nos que êles se

alimentam depois de tomarem consciência da própria fome,

seguida da decisão de procurar voluntàriamente aquilo que lhes

fôr conveniente. Na realidade o estudo moderno dos

comportamentos instintivos mostra que se trata de au-

tomatismos, que dependem dos centros da base do cérebro

sem exigirem nem consciência nem vontade. O estado de

necessidade orgânica, isto é, a modificação da composição

química do sangue sensibiliza os centros instintivos, obrigando

o animal a deslocar-se, fazendo assim com que encontre, sem

procurar, aquilo de que tem necessidade. Assim sensibilizado,

êle reage de modo reflexo aos alimentos que encontra. Um sinal

qualquer no alimento não faz com que o reconheça

conscientemente, mas determina automàticamente a captura e

a consumação dêle.

O que diferencia o homem é precisamente a redução dos

podêres do cérebro instintivo, que é sempre a-sede in-

consciente das necessidades, mas que não é capaz de de-

terminar comportamentos convenientes. O cérebro superior

toma consciência do estado de necessidade, mas é a êle que

pertence remediar quer por hábito por uso social, quer por

vontade refletida. Incapaz de liberdade, o animal segue bons

instintos. O Homem, privado dêstes bons instintos, é livre dêles,

mas a sua liberdade não é uma função que lhe permite agir a

seu bel-prazer, mas sim suprir a falta de instinto, achando

pela Reflexão, aquilo que fôr conveniente e bom,

conformemente à natureza de Homem. O Homem não pode

deixar de querer, a não ser depois de ter adquirido bons

hábitos. Geralmente porém, êle toma por vontade a escravidão

ao conformismo social, que às avêssas, dos bons instintos dos

animais, pode ser muito desnaturante.

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58 O DOMÍNIO DE SI

A neurofisiologia confirma assim, sem fazer nenhuma metafísica, a diferença de natureza que separa o homem do animal. Quando se fala de natureza do homem, entende-se de sua natureza de homem, em relação com a complexidade de seu supercérebro. De modo nenhum, como é crido fre-qüentemente, de uma metade dêle mesmo, que seria a parte quase animal, biológica, elementar, pela qual êle se confundiria com a natureza, em posição com sua dimensão espiritual e cultural. Ê, pelo contrário, na medida em que constatamos sua emergência acima da natureza, da qual é o florão, que está o homem na sua natureza humana, cuja conseqüência específica são o Espiritual e o Cultural.

Mas apesar da neurofisiologia reduzir o instinto animal a cadeias de reflexos de comportamento, por conseguinte a um automatismo total, ela não identifica o animal ao seu instinto, retornando assim à tese do animal-máquina. Se o homem, com sua superioridade refletida, não deixa de ter, apesar da ausência de verdadeiros instintos, tôda uma série de obscuras necessidades, de impulsos, de tendências que exigem uma satisfação correta para um bom equilíbrio; se debaixo do cérebro superior, o homem guarda um cérebro instintivo, mais desenvolvido até do que no animal (ainda que não seja capaz de funcionar sem o controle do cérebro superior) da mesma forma, o animal não é apenas instinto. Não tem êle obrigatoriamente necessidade do cérebro superior para regular sua conduta nas circunstâncias da vida normal, mas não deixa contudo de possuir ainda que em um grau menor do que o homem, um cérebro superior que lhe dá certa aptidão para adquirir comportamentos novos sôbre a base de reflexos condicionados, para ser consciente, para ascender a um certo nível de vontade e de domínio de si. O neurofisiologista se encontra aqui preservado de duas tendências errôneas, que são tentações inversas para o especialista em psicologia animal. Êste, de fato, pode ser levado a minimizar as possibilidades animais de inteligência,

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para escapar ao perigo de antropomorfismo, sem perceber que cai, freqüentemente, no risco inverso, faltando, na mesma proporção, à objetividade. Não podendo negar a evidência, é levado a majorar excessivamente as possibilidades psíquicas animais e, não julgando os comportamentos senão pelo lado exterior, a tomar por sinal de inteligência um automatismo instintivo ou de aprendizagem, no qual o animal não manifesta nenhum verdadeiro domínio. Ê preciso confrontar os comportamentos animais com o grau de desenvolvimento do cérebro. Não se deverá atribuir ao modesto cérebro de um inseto aquilo que ex:ge a complexidade da cortiça cerebral de um vertebrado.

Se a inteligência refletida, permitindo o ato livre, a

verdadeira Vontade, é própria do homem, o nível do homem

porém, é precedido do estádio pássaro-mamífero, no qual uma

inteligência, uma consciência, uma vontade análogas às do

homem, bem que em nível inferior, não podem ser negadas.

Dar vontade humana a um cão é uma puerilidade, na qual tanto

o neurofisiologista quanto o filósofo, cada um segundo seu

ângulo de visão, denunciam uma falta de bom senso. Mas seria

também não menor falta do mesmo cair no êrro inverso,

defendido por Descartes e justamente refutado por La Fontaine.

O cão tem consciência e vontade de cão. Antes de Descartes o

realismo da filosofia aristotélico- tomista havia reconhecido isto,

quando chamava Estimativa, esta inteligência concreta animal.

Empregar o têrmo Vontade aos níveis mais reduzidos de

organização cerebral é mais discutível. Os animais inferiores

têm sua conduta automàticamente regida pelos au- tomatismos

dos tropismos e dos instintos. Não deixaria porém de ser grave

êrro limitá-los a êste nível. Desde a origem, há uma

possibilidade de adaptação a situações novas. Os reflexos

condicionados, a possibilidade de aprendizagem se manifesta,

até antes do cérebro, como propriedade da

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matéria viva, nos unicelulares. Pode-se por exemplo, inverter um tropismo associando-o a uma recompensa ou punição, isto é, a algo de agradável ou de desagradável.

Passada a época, na qual se dava vontade humana à ameba, a análise científica dos comportamentos inferiores concluiu fazendo do unicelular o suporte passivo dos tropismos, propriedades de sua matéria viva. Êste estádio está hoje também superado. Fala-se atualmente de psiquismo inferior

de uma grande complexidade desde o escalão celular. Viaud, por exemplo, retomando os trabalhos de Jen- nings, nos mostra o aspecto patia dos tropismos, manifestação de uma proto-afetividade, que, evitando o desagradável escolhe o optimum, um praeferendum, em lugar das atrações e repulsões brutais ao máximo, dos tropismos ordinários.

O unicelular é uma pequena individualidade equipada de comportamentos que lhe permitem viver, fato que não significa uma justaposição de comportamentos, mas a síntese unificada finalizada dêles para a defesa do indivíduo. O especialista em comportamentos se curva objetivamente sôbre o exterior das condutas, mas lhe escapará o essencial se êle se recusar de ver que há um interior, a organização interna de uma matéria viva unificada, que é responsável por êsses comportamentos, que não passam de reações adaptadas e adaptadoras ao ambiente.

Nestes comportamentos elementares o animal reage como

um todo, um indivíduo, dependendo o nível de sua indi-

vidualidade da complexidade de sua organização que assegura

a sua unificação. A diferença essencial entre o inanimado e o

vivo é o grau de organização. O inanimado pouco complexo,

com interior relativamente simplrs (simplicidade, cuja

complexidade nos é mostrada pela física moderna) é uma

presença passiva no mundo. Um indivíduo vivo, por simples que

seja, é uma organização bem mais complexa,

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VONTADE ANIMAL E VONTADE HUMANA 61

que não subsiste senão por uma atividade permanente li- beradora de energia; é uma presença ativa no mundo, em luta permanente com êste, para manter-se e subsistir.

Esta noção científica da organização e de suas conse-qüências é desenvolvida por Teilhard de Chardin, quando fala do “dentro das coisas” e não uma filosofia errada, que daria consciência humana a uma pedra! Numa perspectiva de dinamismo evolutivo de cosmogênese, os níveis pré- -viventes de organização interior, de dentro das coisas, são uma pré-consciência em caminho para a soleira da com- plexificação, que permitirá o primeiro nível da verdadeira consciência, a consciência celular ou bio-consciência.

Uma tal consciência celular é evidentemente uma qua- se-

inconsciência em relação à consciência refletida humana e até à

consciência pré-refletida ou tangenciando um primeiro degrau

de reflexão do pássaro e do mamífero. Não deixa porém de ser

análoga a ela, em nível inferior e sua preparação, seu longínquo

anúncio. Qualquer animal tem conduta unificada e

individualizada: é dotado de poder reagir, enquanto indivíduo,

de se pôr, de uma certa maneira, na sua ação. Não há negar

que haja nisto uma pré-vontade. Para que se torne Vontade,

será preciso que emerja da imanência, graças ao progresso da

organização integrada, para dirigir a conduta. Todo o progresso

do sistema nervoso na série animal vai nesta direção, neste

sentido. A presença difusa do Eu se localiza nas estruturas

cerebrais, onde ela poderá individualizar a conduta. Acima dos

automatismos inatos e adquiridos, o animal possui uma conduta

melhor adaptada, que se desenvolve com a organização do

cérebro. Sendo apenas um bruxuleio mínimo nos animais

inferiores sem sistema nervoso ou sem centros superiores (sem

cabeça) sobe ela um degrau com a aparição dos gânglios cere-

bróides, cérebro dos invertebrados, cérebro essencialmente

instintivo, que culmina com a individualidade bem marcada

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da abelha ou do polvo. Os vertebrados inferiores, aos quais

falta a cortiça cerebral, não vão também muito mais longe.

Êste progresso de individualidade e de consciência, que se

nota já num plano orgânico, quando aparecem, nos pássaros e

mamíferos, os centros termo-reguladores (assegurando a

independência da temperatura interna dêstes para com o

ambiente em que vivem) é verificado especialmente nas

relações sociais entre indivíduos. Nos sêres inferiores, como os

insetos sociais, a relação social não é senão uma in- teratração

automática, enquanto que nos vertebrados sociais aparece um

conhecimento individual do outro. Êste não é mais objeto de

uma atração reflexa, mas é escolhido por ser quem é,

reconhecido como indivíduo. Isto é manifesto quando se trata

da relação sexual. Não há verdadeiro amor entre os

invertebrados, mas simples desencadeamento dos

automatismos genitais, provocados por um sinal, p. ex., um

odor. Ao contrário, nos Pássaros e Mamíferos, existe uma

verdadeira escolha voluntária de um tal indivíduo por tal outro.

O mesmo grau de consciência se vê no comportamento de

imitação. Só o Homem é capaz de imitação refletida. O macaco,

ao contrário do que geralmente se pensa, imita pouco, êle

macaqueia pois não sabe o que faz. Mas há tôda uma evolução

que vai da imitação biológica inconsciente, do mimetismo que

faz a côr do ambiente, aos automatismos instintivos de

imitação das lagartas, que seguem umas às outras ou dos

insetos sociais, que são obrigados, pelo instinto, a imitar o

trabalho do vizinho, com a tomada de consciência progressiva

do indivíduo vizinho e daquilo que êle faz. Se devemos censurar

os homens que se portam como os carneiros de Panúrgio,

deveríamos também censurar tais carneiros que, em seu

automatismo, não sabem utilizar as possibilidades e vontade de

seus cérebros de Mamíferos.

A psicologia comparada contribui, também ela, para nos

mostrar que Querer, para o homem, não é constrangir

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VONTADE ANIMAL E VONTADE HUMANA 63

a carne rebelde, impor a espiritualidade à parte animal. Ê pelo contrário, utilizar corretamente nossa carne, que é carne humana, provida de um cérebro que a comanda e lhe dá sua verdadeira significação espiritual. Querer pois não é algo de supérfluo, mas uma necessidade. O homem é feito para querer. Saber querer é a utilização correta do próprio cérebro.

A SUPERIORIDADE CEREBRAL HUMANAI A LINGUAGEM.

Ê interessante precisar um pouco mais a diferença entre cérebro animal e cérebro humano para melhor compreender a especificidade da Vontade Refletida Humana e sua diferença de natureza psicobiológica para com a vontade animal.

O Homem não tem apenas o mais volumoso ou o mais

pesado cérebro com relação ao próprio pêso corporal, mas

também o cérebro mais complexo, isto é, com a maior riqueza

em interconexões de sua rêde neurônica da cortiça cerebral.

A importância em pêso ou volume do cérebro humano está

em relação com a quantidade de neurônios: cêrca de 14 bilhões,

enquanto que o chimpanzé, que é o mais vizinho, na natureza

atual, tem apenas 4 bilhões. O número nada diz por si mesmo,

mas tendo os neurônios prolongamentos interconectados de

modo múltiplo, a riqueza das interconexões cresce infinitamente

mais do que o número de neurônios. Objetivamente, enquanto

máquina nervosa, o cérebro humano é um aparelho bem mais

complexo que o cérebro animal. Não nos admiremos, pois, se

êle efetua realizações psicológicas de outra ordem. Se a com-

plexificação quantitativa é origem de qualidades novas, é

porque efetivamente a rêde cerebral passou a soleira da

complexidade no nível humano.

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64 0 DOMÍNIO DE Sl

Esta superioridade do cérebro humano de tal modo se manifesta em todas as suas partes que tôdas as funções cerebrais são de outra ordem. Mas a diferença para com o animal não está apenas na riqueza da rêde. Está também num progresso de hierarquização do cérebro, na qual o cérebro superior toma uma preponderância maior e se torna mais necessário para a conduta. Quando se passa dos mamíferos inferiores aos primatas e, entre êstes, dos macacos inferiores aos antropóides e ao Homem ou quando se segue na série paleontológica dos hominídeos, a subida ao Homem verdadeiro, não se verifica simplesmente o acréscimo de riqueza da rêde nervosa, mas também o desenvolvimento cada vez maior da região pré-frontal. Ê a preponderância desta região que faz verdadeiramente o Homem. Pouco importa pois, que alguns mamíferos mais inteligentes (o elefante ou o delfim) tenham uma riqueza cerebral vizinha à do homem. Aquilo que lhes falta é o acabamento da hierarquia das regiões do cérebro, acabamento não atingido ainda pelo Homem de Neanderthal, cujo cérebro tem o volume atual, mas com insuficiência da região pré-frontal.

Esta mudança de importância relativa das regiões do

cérebro explica porque a superioridade humana não basta por

si mesma. Ela baseia-se sôbre uma inferioridade, a redução dos

podêres instintivos do cérebro inferior, que já assinalamos. O

homem não é superior se não utilizar seu cérebro superior. Se,

pelo contrário, êle se abandonar aos automatismos do cérebro

inferior, fica abaixo do animal, pois a humanização dêste

cérebro inferior não lhe assegura um funcionamento correto,

senão quando êste trabalhar sob o controle do cérebro superior.

E isto não é a Moral quem no-lo diz, mas a fisiologia correta do

cérebro humano, em afirmação absolutamente incontestável.

Mas uma diferença de princípio separa o funcionamento do

cérebro superior da do cérebro instintivo. Neste,

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VONTADE ANIMAL E VONTADE HUMANA 65

tudo depende da construção, das propriedades inatas do organismo. Não há necessidade de aprender. No cérebro superior, ao contrário, é preciso aprender a desenvolver as possibilidades inatas inscritas nas estruturas. Enquanto que um instinto é obrigatoriamente bom para o animal, um hábito humano pode ser mau, por ser apenas um preconceito social. Se não nos damos conta da mudança de natureza no campo daquilo que chamamos nossa vida instintiva, é porque parecemos estar presos a automatismos perfeitamente comparáveis aos automatismos animais. Tomamos por instintos, as maneiras pelas quais aprendemos socialmente a satisfazer nossas necessidades na adolescência em conformidade aos usos e costumes de uma sociedade onde crescemos.

Se não houvesse superioridade humana sem o cérebro

(isto é, de fato, sem a aptidão de origem genética da matéria

viva humana para dar, no desenvolvimento, um cérebro

humano), de nada serviria ao Homem ter êste su- percérebro,

se não fora também um ser de natureza social, isto é, que

não pode sozinho equilibrar-se, que tem necessidade dos

outros. Para nada teria servido ao homem seu supercérebro se

não fôsse ao mesmo tempo social, como também de nada lhe

serviria ser social se não tivesse êste supercérebro. As

sociedades animais são aparafusadas em seus costumes

instintivos. Uma diferença de natureza separa delas a sociedade

humana: êste dinamismo de progresso cultural de geração em

geração. Baseia-se êle numa melhor utilização das

possibilidades do cérebro humano, órgão do progresso.

Êste superdinamismo, nós vamos encontrar também no

desenvolvimento individual. Pela simples posse do próprio

cérebro, há aptidões plenamente humanas, quer no homem-

primitivo, quer no recém-nascido. Mas enquanto o animal, fora

do caso de grande patologia, vai certamen-

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66 O DOMÍNIO DE SI

te tornar-se um animal normal adulto munido de bons instintos, de certa aptidão a aprender e a utilizar inteligentemente sua experiência, nem sempre será assim com o ser humano. Êste tem que ser socializado, civilizado, sem o que não somente não dará tôdas as suas possibilidades, mas perderá até suas aptidões. O homem nasce com um cérebro inacabado e imaturo, que não é rico senão em possibilidades, que aprenderá a desenvolver copiando aquêles que com êle convivem.

Aquilo que nos mostra melhor o êrro a que nos arrasta

nosso egoísmo individualista (que nos faz esquecer nossa

socialização profunda) é ignorarmos que o essencial de nosso

psiquismo, aquilo que nos dá um pensamento verdadeiramente

humano apto à abstração, é a linguagem. Pensamos sempre

por meio de palavras, ainda quando, pelo hábito profundamente

adquirido, não nos damos conta disto e cremos ter um

pensamento “meramente” espiritual. O cérebro humano nos dá

a aptidão inata de modular os sons, mas o menino aprende a

imitar a língua de seu ambiente. Ê por isso que o menino surdo

se toma também mudo. O menino guardará apenas as aptidões

que puder exercitar no meio em que vive. Assim é que a falta

de uso do TH inglês ou J espanhol torna difícil a um brasileiro

pronunciá-los. Pensa-se com palavras, com uma sintaxe re-

cebidas do ambiente em que se vive, donde se segue que mais

lucrará aquele que pensar numa língua rica do que numa pobre.

O progresso cultural é, no fundo, um progresso de linguagem.

Sempre foi definido o pensamento humano pela sua

verbalização. Deveria porém, ter-se insistido mais em que, de

uma parte, a verbalização é um uso social e que, de outra, é ela

uma aptidão que não aparece senão com a supercomplexidade

do cérebro humano. É o grande mérito de Pavlov de haver

demonstrado, provando-o cientifi-

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VONTADE ANIMAL E VONTADE HUMANA 67

camente, que a supercomplexidade cerebral humana exigia uma diferença de natureza entre o pensamento humano e o animal. O animal, tendo um cérebro mais simples, tem apenas um pensamento muito reduzido pela associação das imagens diretas dos sentidos. Já o homem possui este pensamento por imagens, bem mais rico por causa da complexidade cerebral, nas zonas receptoras e nas suas possibilidades de associação. Esta riqueza de circuitos cerebrais lhe dá o poder de utilizar uma simbólica verbal para pensar, um segundo sistema de

sinalização. Aquilo, que no animal não passava de um sinal, um meio de comunicação elementar, se toma no homem um poder de designar as coisas e de pensar, não associando as imagens, mas as palavras: linguagem interior.

Para tirar-se todo o proveito da importância da linguagem, não basta contentar-se com o aspecto analítico dela. A linguagem está também ao serviço da supercons- ciência refletida humana. A consciência depende, já o vimos, da imagem do Eu que se forma no cérebro e a tomada de consciência da passagem da dinâmica' cerebral sob o controle dêste neuro-Eu. Enquanto que no animal um neuro-Eu insuficiente não atinge a direção da conduta, pois fica imerso no dinamismo cerebral, no homem, pelo contrário, se faz uma emergência, em que consiste a Reflexão. Esta emergência é condicionada pela supercomplexidade, que não exige a linguagem mas a torna possível. Esta, por seu lado, ao mesmo tempo que favorece o pensamento abstrato, favorece também a Reflexão. A imagem do Eu é também verbalizada na palavra Eu e a dos outros em Tu e Vós. Quando a criança começa a di-zer Eu, é quando ela faz progressos fulminantes com relação ao macaco. Dois são os fatôres que então intervêm: a maturação do cérebro, que normalmente a toma apta a dizer Eu (mas que existe também no surdo-mudo que não diz Eu) e socialização desta aptidão que fornece a

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68 O DOMÍNIO DE SI

palavra Eu. Havendo ausência desta verbalização, haverá insuficiências.

Se pois, QUERER é, de modo refletido, personalizar sua mecânica cerebral, aplicando a ela seu neuro-Eu, esta operação fica grandemente facilitada no homem, pelo fato de poder dizer Eu QUERO.

Acima do cérebro instintivo, localizado na face interna do cérebro, a grande massa do cérebro superior, onde se localizam as zonas motrizes e sensitivas, é uma sorte de máquina de pensar verbalizada, sede dos reflexos condicionados, isto é, dos hábitos sociais. Há nela tôda a mecânica essencial para as condições humanas. Isto porém, não basta. Pode dizer-se Eu QUERO e conformar-se irrefle- tidamente aos usos sociais. Ê possível também, de modo igualmente automático, aparentar alguém seu anticonfor- mismo social.

O PRÉ-FRONTAL HUMANO, VONTADE REFLETIDA DO BEM.

O homem não se define simplesmente pela substituição dos instintos inatos pelos usos aprendidos. Êle não é uma justaposição de afetividade e de necessidades elementares com reflexos condicionados. Como acharia êle o próprio equilíbrio, esforçando-se de lutar em nome da Moral contra suas tendências profundas, se ignora a quem deve dar a primazia: ao coração ou à razão? Que coisa é importante: a máquina de raciocinar ou a afetividade? Onde situar a espontaneidade humana?

É aqui que intervém a parte mais humana do cérebro, a região pré-frontal, cujas propriedades nos são reveladas pela patologia, pela experiência no macaco ou pelas operações de lobotomia, que propõem fora de circuito tal região, nos doentes mentais.Não queremos dizer que esta região seja o cérebro da inteligência, no sentido restrito da palavra. A inteli

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VONTADE ANIMAL E VONTADE HUMANA 69

gência depende da máquina de pensar do cérebro sensorial e motor. A fronte humana é o Domínio de si mesmo. Sem retomarmos a uma localização falsa do espiritual, vemos que os complexos circuitos cerebrais desta zona são a condição material, que dá à consciência humana sua superioridade. Não basta a verbalização do neuro-Eu. Ê preciso que o Eu ou a imagem dela mesma, que êle designa, possa atingir a direção da conduta. Esta emergência refletida depende dos circuitos pré-frontais. Graças a ês- tes não somos mais imersos como o animal, na ação, mas, utilizando um passado vivido e personalizado, temos preocupação com o futuro. Cérebro pré-frontal, cérebro da inquietude humana, fonte da inquietude patológica psiquiátrica, acalmada pela eliminação do pré-frontal (lobo- tomia), mas ao preço de uma mutilação grave e definitiva. Privado desta inquietude, que é a característica principal do Homem, êste não pode mais considerar-se livre e responsável, dotado de uma consciência moral, que o faz dis-tinguir o Bem do Mal e o excita a procurar o Bem.

O diálogo de surdos entre os partidários da primazia da razão e aquêles da preponderância do sentimento, recebe sua verdadeira solução da neurofisiologia. Esta mostra- -nos que o pré-frontal dá ao homem sua dimensão completa, esta união viva do racional e do afetivo em um nível superior, sobrepassando a razão sem lhe ser contrário. Ê o que se pode qualificar, em seus sentidos autênticos, pelas palavras Coração

e Amor. Há uma afetividade elementar que não é completamente humana; a da pressão do coração e do desencadeamento do instinto. Ê obra do cérebro inferior, comum ao homem e ao animal, mas incapaz de funcionar corretamente no homem sem o cérebro superior, apesar de ser isto que fazemos sempre sob pretexto de uma falsa espontaneidade. Há uma racionalidade fria e desumana, que consiste em não utilizar senão o cérebro superior sensitivo e motor, dominando, isto é, recalcando,

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depreciativamente, a afetividade. Alterna-se assim um esforço refletido e um abandono espontâneo. A verdade humana está em fazer sempre a síntese dos dois, estabelecendo-se dêste modo, na verdadeira espontaneidade humana, utilizando o cérebro pré-frontal, colocando-se no bom hábito de utilizá-lo.

Já foi muito discutido se o homem é ou não livre. Nisto está a chave do problema da vontade. Será a liberdade apenas uma ilusão ou ao contrário, uma certeza absurda, pois não haveria nem Bem nem Mal? Devemos acreditar naquilo que queremos ou simplesmente querer qualquer coisa?

E perfeitamente exato que, estatisticamente, os homens se comportam bem pouco livremente, pois não fazem senão obedecer a determinismos incoercíveis: hormônios, complexos ou usos e costumes. Ê exato que êles ignoram o Bem e o Mal, como tais, assim como o Bem e o Mal para a sua própria natureza. Baseiam a noção de ambos apenas sôbre as próprias opções filosóficas ou religiosas. Mas tudo isto tem origem somente em erros, preconceitos, ignorância ou estupidez mais espalhados do que a vontade de fazer o mal.

Com seu cérebro pré-frontal possui o homem um órgão libertador dêstes preconceitos, contanto que saiba uti- lizá-lo e utilizá-lo corretamente.

O fato de não sabermos utilizar nosso cérebro, não quer dizer que não tenha êle certas aptidões. Abandonar- -nos aos determinismos, quando êles não são ainda bastante fortes para nos aprisionar, é, no fundo, lobotomizar- -nos transitoriamente, isto é, utilizarmos a parte suprema do nosso cérebro. Escolher livremente o Mal é, como vemos, utilizar incorretamente o próprio cérebro, tornando-nos incapaz de liberdade. Só há uma utilização correta do cérebro e é precisamente a escolha

voluntária do

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VONTADE ANIMAL E VONTADE HUMANA 71

Bem. O cérebro pré-frontal aparece assim como sendo aquilo que dá ao homem, com relação ao animal, uma verdadeira Vontade, baseada sôbre a aptidão de refletir, a fim de determinar o Bem e o Mal, não com referência a uma Moral desequilibradora (porque Legalismo desencarnado) mas em conformidade com a lei própria do nosso ser. Pela sua constituição o homem não é livre de querer qualquer coisa que seja. Não é êle livre, se quiser permanecer normal e são, senão para escolher o Bem, para ter uma vontade boa. A saúde confundindo-se aqui com a sabedoria e, de um certo modo, com a santidade.

O drama da condição humana é que não basta ter um pré-frontal para querer e saber querer, mas é preciso também aprender a saber utilizá-lo. Ora bem. Deve-se dizer que esta é certamente a região mais inútil ou a mais mal usada. Ê lamentável que freqüentemente, o homem moderno, adorador da razão, esteja neste ponto em atraso para com o primitivo, mais humano, pois teria muito mais possibilidades de expandir seu pré-frontal. É isto o que exige precisamente, a saúde individual e social dos‘homens.

A neurofisiologia vem assim confirmar a moral. Será isto útil? Certamente, pois a Moral assim fundada na natureza humana se torna um valor comum irrecusável e doutro lado, a Moral deixará de aparecer apenas um mandamento legalista incompreensível. Mas a neurofisiologia, com suas indicações normativas, não substitui nem a Moral nem a Metafísica. As considerações neurofisiológicas sôbre o homem, longe de explicarem tudo, desaguam pelo contrário, no mistério do ser. Condicionada pelo cérebro a personalidade humana aparece bem diferente daquela que só a metafísica nos revela. Uma tal emergência não poderia manifestar-se se ela não dependesse da imersão de uma transcendência. Mas não é a ciência que nos deve dizer isto. 0 que entra em suas novas atribuições é somente precisar as condições do SABER QUERER.

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3Patologia do Cérebro e perturbações da Vontade

NORMAL E PATOLÓGICO.

Qualquer que seja sua natureza metafísica própria, a

Vontade acaba de ser apresentada como uma função cerebral.

A Vontade na sua plenitude, que é a vontade refletida do

Homem, não é possível senão pelo degrau de

supercomplexidade transposto pelo cérebro humano, dando

assim ao Eu cerebral sua plena dimensão e seus podê- res.

Sendo um mecanismo complexo, uma tomada de consciência

pessoal de automatismos cerebrais, em si mesmos involuntários

e inconscientes, não basta isto para que a Vontade aja. Não

basta ter um cérebro humano, feito, em princípio para querer. Ê

preciso que o cérebro seja normal; é preciso que saibamos

utilizá-lo corretamente a fim de saber e poder Querer.

Vamos pois examinar 2 condições da aptidão da Vontade,

que originam 2 aspectos diferentes das insuficiências e das

perturbações dela.

Há doenças do cérebro que o tornam mais ou menos

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74 O DOMÍNIO DE 81

tentar curá-lo, tornando a dar-lhe a aptidão normal de Querer.

Ora, são bem mais numerosos os indivíduos com cérebro

normal, mas tão incapazes quanto os doentes da vontade, pois

que não sabem querer. Aqui não é mais o caso de chamar

médico mas sim um educador, ainda quando se trate de

adultos. O doente e o ignorante, incapazes, por razões

diferentes, do domínio de si mesmos, têm um comportamento

análogo desumanizado. Não basta, pois, curar o doente, mas é

preciso, além disto, ensinar-lhe ou tornar a ensinar-lhe a querer.

De resto com exceção de casos extremos, há freqüentemente

associação de determinismos patológicos (que alienam a

vontade) com a ignorância.

Começamos a saber que, se é objetivamente possível

qualificar um comportamento colérico ou preguiçoso, isto não

deve implicar necessáriamente na existência de vício ou

pecado, do qual seria culpada a pessoa que a êle se entregasse

livre e voluntariamente. Pode tratar-se de um automatismo

patológico incoercível que suprime ou atenua tôda possibilidade

de domínio sôbre si mesmo. Não deixaremos apesar disto de

opor o doente ao de boa saúde, considerando que só a doença

suprime a vontade. Apesar disto ainda haverá gente que

pergunte se o culpado é “ doente ou pecador”, sem ver a

ilogicidade de associar culpabilidade ou doença, pois ninguém

pode ser culpado senão pela parte do comportamento que não

está inteiramente doentia. Ainda se falará da terapêutica dos

pecados capitais pretendendo substituir o confessor pelo

médico. Criar-se-á uma “Moral sem pecado”, não conservando

dêste senão o aspecto psicopatológico, isto é, a

responsabilidade falsa e doentia do “universo mórbido da

culpa”, crendo que bastará curar os doentes para lhes devolver

vontade e liberdade.

O dilema não está entre doenças e pecado, que não estão

no mesmo plano. Mas entre doença e ignorância,

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PATOLOGIA DO CÉREBRO E. 75

entre uma verdadeira patologia e a falta de educação ou de bom

senso.

Não basta que a saúde seja devolvida ao doente, mas além disto, é preciso que êle saiba utilizar corretamente suas aptidões a fim de poder portar-se como Homem. Também a ignorância atenua a culpabilidade. Fundamentalmente é ela, atualmente o pior dos flagelos. Os homens não são humanos, não pela vontade pecadora de fazer o Mal, mas pela ignorância da nocividade do Mal.

O pecado nos aparece em sua plena dimensão, que é religiosa, como uma desobediência à Lei Divina. Isto permite ao incrédulo de negá-lo, afirmando seu direito de gozar de tôdas “as iguarias terrestres” e de denunciar os perigos dos constrangimentos morais desequilibrantes. Atualmente é mais necessário do que nunca, desenvolver o aspecto natural do pecado e da moral; precisar que a liberdade não consiste em fazer alguém aquilo que bem lhe der na veneta fazer ou de impor a si mesmo a obediência a uma lei moral sobrenatural, mas de compreender as condições de equilíbrio do nosso ser. Ê por uma ignorância muito imprudente que cremos possível querer livremente qualquer coisa que seja, dentro de uma espontaneidade fantasiosa ou, ao contrário, dobrar-nos pela ascese ou penitência a regras morais, que nos parecem opostas a esta falsa espontaneidade. A verdade está na via média, que nos faz aderir à Moral como à própria lei do nosso ser, condição indispensável da verdadeira Liberdade e da vontade boa.

Se é pois necessário (mas bem difícil) averiguar a res-

ponsabilidade de um comportamento humano, não é tampouco

preciso ter um reflexo moralista, passando diretamente da

doença ao pecado. É preciso antes de mais nada, diagnosticar

se temos pela frente um doente, inapto a querer o Bem e do

qual é necessário que cuidemos ou um ignorante, que não sabe

comportar-se corretamente, fa-

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76 O DOMÍNIO DE SI

zendo, sem querer, sua própria infelicidade e a dos outros, e

que devemos educar, isto é, convencer. Um mau com-

portamento resulta sempre de uma má utilização cerebral

muito análoga. Mas em um caso ou por uma parte, se trata de

um anormal, mais ou menos, prêso pela doença; em outro

caso, um indivíduo normal que não sabe conduzir-se

normalmente utilizando corretamente seu cérebro, portando-

se, por ignorância, como um doente. “Basta que queira”,

dizemos, com desprezo paternalista, a quem não pode sair de

seus maus comportamentos. Ou então: “Que se trate”, se é um

doente! Por que esquecer que se o cliente não é doente, é o

mais das vêzes, um ignorante, tendo necessidade de aprender?

Aprender é tornar a virtude natural, o que não quer dizer que

seja ela fácil, pois nada do que é humano é fácil. Será

necessária sempre uma penosa ascese, mas uma ascese

alegre de cumprimentos, bem diferente da ascese queixosa do

constrangimento moralista puritano e maniqueu, que despreza

e castiga a carne em lugar de elevá-la, dando-lhe seu

verdadeiro sentido.

Não é nossa intenção especificar aqui tôda a patologia da

vontade, quer se trate das insuficiências das abu- lias ou dos

aparentes excessos, dos quais a verdadeira vontade está

ausente, nem de entrar em pormenores das perturbações

psicológicas dos deficientes da vontade.

Nossa intenção é simplesmente mostrar que a medicina e

a psicopatologia modernas puseram em evidência condições

cerebrais anormais, nas quais o exercício da vontade é

impossível ou freado, condições que reduzem o doente a níveis

de comportamento infra-humanos, cuja harmonia o homem não

pode tornar a encontrar visto como foi chamado para coisa

melhor. Isto levará a compreender como a ignorância pode

imitar o patológico, pois todos temos em nós tentações naturais

de desnaturação.

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PATOLOGIA DO CÉREBRO E. 77

Temos que ser prudentes quando apreciarmos nossa

conduta ou a dos outros, pois aquilo que nos parece voluntário,

não é, muitas vêzes, senão ilusão enganadora. Vimos como

nossa fisiologia cerebral explica que a vontade é sujeita,

possível mas não obrigatoriamente, a au- tomatismos cerebrais

preexistentes. O doente como o ignorante são igualmente prêsa

passiva dêstes automatis- mos, ainda quando têm a ilusão de

consentirem nêles. Está a diferença entre êles em que o

primeiro não tem mais ou tem menos possibilidade de domínio

sôbre si mesmo, enquanto que o outro não sabe utilizá-lo.

Apesar de bem diferentes, fundamentalmente, o normal e o

patológico, muitas vêzes não estão separados senão por uma

diferença de intensidade: é o mesmo determinismo, que quando

transpõe um certo grau, escapa à vontade. Aquém dêste grau,

êle a torna simplesmente mais difícil.

Excetuando o indivíduo completamente alienado por uma

psicose, que o separa do mundo, a possibilidade de domínio de

si variará com as circunstâncias, de um momento para outro. O

psicopata pode ter fases de lucidez, nas quais é responsável. O

indivíduo normal, por sua vez, pode por imprudência e

ignorância meter-se em circunstâncias, nas quais perderá todo

domínio de si, deixando-se levar pela cólera, pela sensualidade

ou entregando-se a excessos de álcool ou de alguma medicação

tranqüilizante.

O mérito da medicina e da psicologia moderna está em

mostrar-nos a fragilidade da vontade, em fazer que saiamos

de nossas ilusões. Aquêle a quem, talvez, fazemos belos

sermões é,muitas vêzes, tão irresponsável quanto a rã, sem

cérebro, que dá aparência de vontade, quando enxuga com

uma das patas o ácido caído na outra. Um simples

automatismo, dependendo da hamonia das auto- -regulações de

sua medula espinhal!

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78 o DOMÍNIO DE SI

Mas tentação ainda maior é a de passar de nm êrro para outro e, depois de ter engrandecido a vontade, minimizá-la ou negá-la. Apesar de os atos voluntários serem estatisticamente raros, nem por isto devemos esquecer que o funcionamento correto do cérebro humano repousa sôbre o ato voluntário. A possibilidade humana de liberdade não necessita nem da negação dos determinismos nem da aceitação dêles, mas sim o dever de aprender a dominá-los.

A Liberdade, baseando-se no funcionamento do cérebro, ficará comprometida por qualquer perturbação dêste funcionamento. Teríamos pois agora que passar em revista tôda a neuropsiquiatria a fim de conhecermos os múltiplos aspectos da patologia da vontade. Contentar-nos- -emos porém de relembrar a influência das lesões cerebrais e depois a das perturbações do equilíbrio do meio interior, que impedem o funcionamento correto do cérebro. Veremos também como a vontade é dificultada pelas perturbações da harmonia funcional cerebral, nas neuroses e nas fadigas nervosas.

VONTADE E DOENÇAS DO CÉREBRO: APRAXIAS, PERDA DE INICIATIVA MOTRIZ,

DESDOBRAMENTO DA PERSONALIDADE.

Pode uma lesão cerebral alterar a Vontade? Sabemos perfeitamente que a Vontade não se localiza nestes me-canismos de execução, que são as zonas motrizes cerebrais e as diversas etapas motrizes. O indivíduo que quer e não pode, sofre por causa desta sua paralisia, seja ela completa, como nas lesões medulares ou atinja apenas a área motriz, responsável pelos movimentos precisos ou pelos circuitos práxicos da zona pré-motriz, tendo como conseqüência uma simples impossibilidade do gesto aprendido. A permanência, nestes casos, da vontade e da consciência tem uma grande importância prática. Ainda que

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PATOLOGIA DO CÉREBRO E. 79

a Vontade não faça o milagre de reconstituir as estruturas destruídas, possui ela o poder de favorecer a retomada funcional de estruturas simplesmente inibidas, de permitir utilizar ao máximo as possibilidades de suplência, de favorecer até os fenômenos de regeneração periférica. É já sabido como a vontade, dinamizada pela esperança e pela confiança, tem um papel na reeducação, p. ex., dos poliomielíticos, nos quais as paralisias superam originà- riamente as meras lesões irreparáveis. Está próximo o dia, quando o progresso das próteses permitirá fazer comandar seus mecanismos pelos influxos nervosos cerebrais do paralítico. É muito importante notar a manutenção de uma imagem cerebral normal do Eu em numerosos paralíticos ou mutilados, pois vimos a importância dela na fisiologia cerebral da motricidade.

Embora nascida congenitalmente sem braços e sem per-

nas, Denise Legrix se sente normal, pois suas estruturas

cerebrais não estão mutiladas, possuindo ela em seu cérebro a

noção normal do corpo humano. Certas lesões cerebrais, ao

contrário, mais ou menos localizadas' na zona gnósica parietal

trazem perturbações mais ou menos graves da consciência do

corpo. Por exemplo a anosogno- sia de certos hemiplégicos,

que perderam a consciência do membro paralisado, negando

pertencerem êles ao próprio corpo. Em um grau mais adiantado

temos a patologia psiquiátrica da eciutoscopia, na qual a

imagem do corpo se toma alucinação positiva da presença de

um outro ou alucinação negativa, que suprime a imagem

própria no espelho! Drama vivido e descrito por G. de

Maupassant.

Um caso particular de paralisia motriz cerebral é o dos

afásicos, incapazes somente dos mecanismos motores da

fonação. Classicamente se distinguem as afasias localizadas,

como a afasia motriz, que impede a articulação das palavras

(o paciente é silencioso, porque não pode

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80 O DOMÍNIO DE SI

articular por causa da lesão da zona motriz correspondente) ou as afasias sensoriais do tipo da surdez verbal, que é a impossibilidade de reconhecer palavras ouvidas. Mas, freqüentemente, lesões mais generalizadas do cérebro do-minante levam a uma afasia sensorial do tipo Wernicke, na qual o paciente, capaz de articular, não pode encontrar as palavras exatas. Chamaram a isto de Perda da linguagem interior. Na realidade porém, como demonstrou Alajouanine, se trata antes da impossibilidade de evocar voluntariamente as palavras. Estas são utilizadas no plano dos automatismos do pensamento, mas não podem ser evocadas para exprimir-se senão no caso de fórmulas automáticas, como p. ex., uma locução proverbial. Um doente não pode dizer o nome da filha, mas a chama corretamente para lhe fazer notar a própria incapacidade. É partindo da utilização de tais restos automáticos, que se conduz atualmente a reeducação, que é retomada encarregando a vontade da verbalização cerebral.

Existe a mesma distinção entre simples lesões dos me-

canismos de execução e perturbações mais graves, nas quais a

tomada de consciência, o nível psicológico são mais implicados.

Esta mesma distinção se encontra em outras apraxias.

Classicamente se distingue entre a apraxia ideomotriz,

na qual o doente não pode executar corretamente gestos

simples, que lhe são ordenados (simples perturbação de

execução) e a apraxia ideatória, que é a incapacidade “de

estabelecer o plano de ação necessário ao fim proposto, ainda

que a cinética segmentar esteja intata”. Neste último caso, p.

ex., haverá impossibilidade de acender uma vela com fósforo.

Trata-se de uma perturbação psíquica, que não significa perda

de inteligência, mas perturbações da atenção, da memória, da

associação das idéias. Mor- laas demonstrou a importância de

uma agnosia de utiliza

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PATOLOGIA DO CÉREBRO E. 81

ção, isto é, incapacidade, não de reconhecer os objetos, mas de manejá-los e utilizá-los corretamente. Sempre a importância da sensibilidade ao serviço da motricidade. Aqui também, os gestos automáticos são menos perturbados do que os voluntários. O doente pode dar a impressão de não querer. É porque êle se dá conta de sua incapacidade de execução, quer seja esta meramente motriz, quer concirna apenas a preparação mental do ato.

Existe, de outro lado, uma perturbação freqüente em

numerosas afecções mentais nas quais a doença não está na

execução, que é correta, mas em uma impossibilidade de

querer, que dependa da perda de iniciativa motriz. Foi mérito

de Baruk demonstrar por experiências em animais, que é de

base cerebral tal perda. Êle realizou em 1928, por intermédio de

um alcalóide vegetal, a bulbocapnina, a catatonia em diversos

animais, que, sob a influência de tal droga, conservam as mais

estranhas e desconfortáveis posições, em que eram colocados.

O gato permanece imóvel ainda quando espicaçado, ameaçado

com fósforo aceso. Se alguém o empurrar, resiste

negativamente. É possível que dê um ou dois passos adiante

quando violentado, mas volta logo a negar-se a andar. Se

todavia o seu equilíbrio fôr ameaçado, êle é capaz de fazer

todos os movimentos necessários para readquiri-los. Assim, se

colocarmos as suas patas dianteiras em uma cadeira e as trasei-

ras em outra e afastarmos estas repentinamente o gato saltará

com facilidade e elegância própria dos felinos, mas quase

imediatamente volta a imobilizar-se. Por vêzes fica o gato com

as patas traseiras na cadeira e as dianteiras pendentes dela. “Ê

interessante, diz também Baruk, reunir vários animais em

catatonia experimental: gato, rato, macaco e pássaro. Ficam

êles imóveis ou como bonecos articulados. Mas apenas passa o

efeito da intoxicação, o gato se joga repentinamente sôbre o

rato para devorá-lo,

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82 O DOMÍNIO DE SI

o pássaro voa e o macaco recomeça a pular e a trepar por

alguma coluna que por acaso exista no ambiente. O fenômeno

depende da cortiça cerebral, pois não é notado nos vertebrados

inferiores que manifestam apenas tontura, paralisia ou abalos

convulsivos. Foi possível também produzir manifestações

análogas por meio de diversas substâncias químicas e

principalmente por toxinas microbianas como a toxina

colibacilar. De modo que “certos tóxicos podem agir sôbre a

Vontade e paralisá-la”. “Esta noção tem conseqüências

consideráveis em psicologia”. Com efeito em presença de

perturbações patológicas da vontade, guarda-se a mesma

tendência como na presença de “má vontade” ou de “preguiça”.

Esta atitude é tanto do doente como do médico. O doente

envergonha-se ao sentir que está perdendo a iniciativa e faz a si

mesmo graves reprimendas. O médico, em lugar de procurar as

causas desta falta de vontade, tem a tendência, juntamente

com as pessoas que convivem com o doente, de acentuar as

reprimendas e o sentimento de culpabilidade do doente,

exortando-o a “encorajar-se”, a “dar provas de energia”, a

“mostrar que tem vontade”, etc. Uma outra tendência dêstes

doentes consiste em jogar sôbre os outros a causa de sua

própria perturbação, considerando-a como efeito da ação

malévola dos outros, exercida por meio de raios, de hipnose ou

de meios sobrenaturais.

Estas duas atitudes se baseiam sôbre a mesma idéia, a

saber, que a Vontade é geralmente considerada como uma

entidade metafísica particular independente das causas ha-

bituais de doença, crendo então, por conseguinte, freqüen-

temente, que não pode ser ela atingida senão pela preguiça ou

por alguma ação misteriosa ou sobrenatural. Por causa da

intoxicação, o animal em experiência e o doente mental têm

suas relações norma,is cortadas com o mundo exterior, no qual

por isto, não podem agir. É êste um

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PATOLOGIA DO CÉREBRO E. 83

dos sinais importantes do autismo introvertido da demência

precoce ou da esquizofrenia.

Esta ruptura com o mundo exterior, que não se manifesta

apenas com a perda da iniciativa voluntária, mas também com

impulsos incoercíveis (que não têm senão as aparências de um

excesso de vontade, pois que dependem de uma consciência

alienada), não é própria somente da patologia psiquiátrica. O

sono, êste repouso periódico do cérebro, comporta, como

sinais principais, resultando da inibição e da desorganização

cerebral, a perda da vontade e da consciência. Se no sono

profundo fica suspensa tôda atividade cerebral, não se dá o

mesmo no sono mais leve, no qual pode subsistir a atividade

anárquica e fora da realidade, que é o sonho. Assistindo como

espectador ao desenrolamento do sonho, o Eu do sonho pode

dêle participar com uma aparente vontade meramente

imaginária. Entretanto em casos extremos, esta vontade se

toma efetivamente motriz, no sonho vivido do sonambulismo.

De outro lado, no adormecimento e no despertar se

realizam desequilíbrios bem próximos àqueles da psicopa-

tologia. Com efeito, a consciência pode ser mais resistente que

a vontade e a pessoa, ainda consciente ou despertada, pode

ressentir uma inaptidão a agir, quer na euforia do

adormecimento quer na angústia de se sentir paralisada pela

cataplexia do despertar. Isto confirma a necessidade de um

funcionamento cerebral correto para o exercício da vontade.

Sob o efeito de fatores psicodislépticos de alucinações,

com a mescalina, o paciente é, de início, consciente, mas

acaba, em um segundo estádio vivendo num estado de sonho,

as próprias alucinações. É esta irrealidade de um mundo

imaginário onde o esforço não existiria, a vontade inútil que

está na origem da toxicomania.

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O DOMÍNIO DE Si

Se as atividades sonambúlicas são normalmente limitadas, já, nos casos extremos, se chega ao “desdobramento da personalidade”, no qual alternam duas atividades con-traditórias, aparentemente normais, estando uma das vontades ao serviço da consciência acordada e a outra, ao serviço da inconsciente. Tais casos não são específicos somente da patologia do sono, mas aparecem como manifestações de estados epilépticos, nos quais as crises convulsivas são substituídas por equivalentes: fugas inconscientes crises de sonolência, impulsos repentinos, etc. A neurofisiologia moderna, procurando compreender os efeitos terapêuticos das comaterapias convulsionantes (insulina, cardiazol, eletrochoque), acentuou o papel dos centros reguladores da base do cérebro, nestes fenômenos; êstes mesmos centros, que são implicados na fisiologia do sono e da vigília. Se a vontade depende da cortiça cerebral, exige um funcionamento harmonioso desta cortiça, que por sua vez, está sob a dependência da regulação pelos centros da base do cérebro.

EQUILÍBRIO DO AMBIENTE INTERIOR E VONTADE.

As PERTURBAÇÕES HORMONIAIS.

O funcionamento correto dos centros reguladores, como da

própria cortiça cerebral, depende do bom estado funcional dos

neurônios. Importa pois que os alimentos necessários sejam

fornecidos e que os detritos tóxicos sejam eliminados, a fim de

que a matéria viva esteja em boas condições. A perda da

iniciativa motriz por intoxicação não é senão um caso particular

de paralisia eletiva do querer. De fato, tôda perturbação

excessiva, para mais ou para menos, dos caracteres físicos ou

químicos do ambiente interior, suprimindo as condições

“óptima” do bom equilíbrio nervoso, se oporá ao exercício

correto da cons-

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PATOLOGIA DO CÉREBRO E. 85

ciência, do juízo, da vontade. Nos casos extremos o cérebro parará e o paciente cairá em coma. Se a perturbação fôr menor, o paciente parecerá normal mas um exame atento ou uma situação difícil mostrará a sua incapacidade de julgar, de decidir, de esforçar-se para agir. Pelas condições do ambiente, êle será posto na patologia mental. Ê o exemplo do qual falamos há pouco, dos efeitos da falta de oxigênio em altitudes maiores, falta que se encontra em tôdas as perturbações do ambiente interior, falta ou excesso de um alimento ou de detrito. Tanto a demasia quanto a falta são prejudiciais. Nosso cérebro não funciona corretamente senão em condições “optima”. É necessário bastante oxigênio, mas a demasia dêste gás vital é tóxica. O oxigênio sob pressão no nado submarino leva a manifestações epilépticas, às quais se ajunta a embria-guez das profundidades, devida à ação narcótica do excesso de azôto e em parte, do gás carbônico, que faz esquecer a situação, levando o nadador a retirar sua própria máscara. O gás carbônico, detrito respiratório, é perigoso, quando em excesso e tem influência na asfixia. Mas nossas células têm necessidade da quantidade normalmente presente no sangue, por causa do mecanismo da respiração. Uma baixa excessiva, que é fator de alcalose gasosa, leva a convulsões tetânicas. A respiração exagerada em ritmo e amplitude (hiperpnéia) modifica a atividade elétrica do cérebro e revela o temperamento epiléptico. Fora das condições normais de temperatura, asseguradas por mecanismos termoreguladores precisos, a hipotermia (fator de lentidão psíquica e de coma) como a hipertermia (fator e fonte de delírios) se opõe ao Domínio de si mesmo.

Do mesmo modo agirá, qualquer forma de perturbação do funcionamento cerebral quer se trate de falta de sangue, de insuficiência circular ou respiratória ou de uma modificação específica em tal fator preciso. O Domínio de si mesmo exige a saúde do cérebro. Se é fácil por em

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86 O DOMÍNIO DE SI

evidência a repercussão das perturbações mais graves, é preciso também saber que a sensibilidade do cérebro e dos centros reguladores é extrema e que tudo quanto agir sôbre o organismo, se manifestará por um desequilíbrio nervoso latente, revelado por certos métodos de avaliação sensíveis do equilíbrio nervoso, p. ex., a medida dos tempos de excitação elétrica dos nervos (cronaxias). Sob o efeito do barulho, alguns roedores mais sensíveis chegam a ter crise epiléptica, dita audiógena, às vêzes mortal. A medida das cronaxias mostra a generalidade da desequilibrante dos barulhos sôbre os centros nervosos, em particular no homem. Mas um silêncio total (câmara insonora) é também desequilibrante. O cérebro quer sempre o “optimum”.

É conhecida a importância das vitaminas fornecidas por

uma boa alimentação para o bom funcionamento celular. Com

efeito a patologia revelou as perturbações nervosas devidas à

carência de certas vitaminas, p. ex., as crises de polinevrites do

beribéri ou a demência pelagrosa. Uma mãe carenciada de

vitamina PP antipelagrosa (porque se privava de carne, durante

a ocupação alemã, para dá-la aos filhos) manifestou uma

aversão psicopatológica irresponsável contra os próprios filhos,

curados justamente pelas vitaminas das quais ela se privara.

Também aqui a cronaximetria revela ser preciso um “optimum”

de tôdas as vitaminas para um bom equilíbrio nervoso. Quer a

falta quer o excesso delas são fontes de um desequilíbrio la-

tente, que, apesar de não manifestar-se por efeitos espe-

taculares, como nos casos precedentes, não produzirão menos

dificuldades.

Juntamente com as vitaminas, o sangue leva ao cérebro

outras moléculas indispensáveis, os hormônios, produzidos

pelas glândulas endócrinas. A falta de hormônio por

insuficiência endocriniana ou o excesso dela, por hi-

perfuncionamento tumoral ou por administração terapêu-

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tica demasiada, perturbam tôda a atividade nervosa. Nosso desejo de esforço voluntário, nossa tendência à atividade ou à cólera e, inversamente, nossa recusa de esforço, nossa preguiça, nossa apatia, encontram freqüentemente a própria causa na patologia endocriniana. Antes das reprimendas e dos conselhos morais, seria necessário um balanço endocriniano.

Tal menino preguiçoso ou colérico é de fato um doente. Não será possível injetar-lhe vontade ou calma. Mas se se lhe administrassem os hormônios requeridos, ser-lhe- -ia restabelecido o equilíbrio nervoso, permitindo-lhe então vontade e calma. O Domínio de si mesmo exige um “tô- nus” nervoso “optimum”, que, por sua vez, depende de variados hormônios. Em primeiro lugar, o hormônio tiroi- diano, hormônio de ativação celular, cujo excesso leva a hipernervosismo e a uma porta aberta para a doença de Basedow; e cuja falta provoca a lentidão do mixedema do adulto e a idiotia na criança. Há também os hormônios da glândula supra-renal, a adrenalina da glândula medu- lo-supra-renal (hormônio do esforço e da emoção), os hormônios esteróides da glândula córtico-supra-renal, reguladoras do quimismo celular, cuja ausência é também fator de fatigabilidade excessiva. Uma carência supra-renal é a grande causa das fadigas. É gastando a supra-renal que os mais variados choques nos desequilibram.

Sem querermos passar em revista todos os hormônios,

todos êles importantes para o equilíbrio nervoso, assinalemos

porém ainda os hormônios sexuais. A diferença de fôrça entre o

macho e a fêmea vem da influência respectiva da testosterona

e da foliculina. Ao equilíbrio permanente do hormônio masculino

corresponde o ciclo feminino ovariano que submete a mulher

aos dois desequilíbrios caracterizados das regras e da ovulação,

quando a foliculina ganha sôbre a progesterona ou

inversamente. Se é nor-

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88 O DOMÍNIO DE 81

mal ser submetido a estas influências, a patologia endocrinia-

na, agigantando-as, leva a graves insuficiências ou impos-

sibilidades de Domínio de si mesmo, que alienam a liberdade e

nas quais a responsabilidade fica atenuada.

O sistema nervoso, apesar de submeter-se passivamente

às perturbações endocrinianas, pode também ser responsável

de dar-lhes início, perturbando-se assim a si mesmo. Para

facilitar o esforço, o sistema nervoso inicia, quer diretamente

pela inervação ortossimpática das glândulas endócrinas, como a

medulo-supra-renal, quer indiretamente, por meio dos

hormônios hipofisiários, a produção de hormônios. Pedindo, às

vêzes, às glândulas um esforço excessivo, pode desgastá-las

tomando-as insuficientes. Ê um círculo vicioso que se

estabelece assim entre os hormônios e o sistema nervoso. A

emotividade excita a tiróide e a supra- renal, que, de seu lado,

por seus hormônios, acrescem a emotividade. Tôda a

endocrinologia sexual está sob a dependência do psiquismo.

HAVERÁ MEDICAMENTOS PARA A VONTADE?

Esta química das desordens da vontade explica a existência

de “medicamentos”, ditos “da vontade”. Pode-se acalmar ou

ativar um sistema nervoso desequilibrado quer corrigindo o

fator específico de desequilíbrio, quer administrando uma

substância estranha acalmante ou excitante. Vamos

conhecendo cada vez melhor o modo de ação neurofisiológica

dêstes medicamentos e dispomos de medicamentos cada vez

mais eletivos para tôda espécie de comportamento. Foram

também feitos reais progressos no conhecimento das desordens

neuroquímicas, bases dos desequilíbrios e já se começam a

compreender os mecanismos

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PATOLOGIA DO CÉREBRO E. 89

químicos íntimos da ação dos medicamentos nervosos. Êstes são freqüentemente ativos sôbre a química específica da transmissão dos influxos entre os neurônios, fazendo intervir substâncias várias com enzimas ativadoras e destruidoras.

Restam porém, ainda, muitas incógnitas, tomando assim a

terapêutica muito empírica e imprecisa. Ê inútil esperar a

solução milagrosa da facilidade da vontade, obtida por pílulas e

sem esforços. Sendo a personalização da conduta por uma

utilização correta do cérebro, nunca será a Vontade, criada por

um medicamento. Aquilo que êste pode é acalmar um

desequilíbrio nervoso, e, restabelecendo um funcionamento

correto, restituir a aptidão à Vontade, tranqüilizando-a por

exemplo, acalmando uma emotividade anormal. Não convém

esquecer porém, que a ação medicamentosa é sempre o

primeiro estágio de uma ação tóxica. Para ser prudente é

necessário reservar os medicamentos para as circunstâncias

excepcionais e para as doenças. O êrro atual é de pedir aos

medicamentos aquilo que se deveria obter por um esforço

pessoal de higiene e de Domínio sôbre si mesmo. Permitindo

que evitemos o esforço, êstes medicamentos nos tornam

incapazes de o fazermos, fazendo de nós uns desequilibrados,

que ficam tendo uma falsa necessidade do tóxico. Nosso

cérebro desequilibrado não achará mais seu próprio equilíbrio

senão ao preço de nova intoxicação. O aguilhão do álcool

restitui ao fatigado a coragem em viver e de agir, mas êste

querer artificial e transitório o sujeita ao álcool, ao tóxico, levan-

do-o à intoxicação alcoólica, com conseqüente perda total do

Domínio de si mesmo. Ao contrário, sabiamente utilizados, os

medicamentos (entre os quais o álcool e o café) permitem saber

querer e assim, poder dispensá-los. Tomados em excesso são

verdadeiros tóxicos da vontade, suprimindo tôda possibilidade

de Domínio sôbre si mesmo, depois de haver

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90 O DOMÍNIO DE SI

fingido assegurá-la. Nada jamais nos dispensará do esforço necessário para conduzir-nos como Homens, isto é, como criaturas racionais.

VONTADE E NEUROSES.

Mas há ainda outra fonte de comportamentos patológicos opondo-se ao exercício da vontade, na qual o cérebro não está lesado nem submetido a condições anormais e no entanto, não é possível o Domínio de si mesmo. São os comportamentos neuróticos, cuja origem nos foi precisada pela psicanálise e cujos mecanismos nervosos a neuro- fisiologia nos está fazendo compreender. Nas psicoses há uma perturbação grave da consciência pessoal, havendo possibilidade que desordens da química do cérebro tenham nelas importante papel. Nas neuroses o paciente é normal, mas manifesta, em certas circunstâncias, condutas racionalmente inexplicáveis: é sujeito a impulsos incoercíveis ou a inibições não menos constrangedoras. Não pode deixar de fazer certas coisas e sente-se impedido de fazer certas outras.

Tornamos a encontrar aqui no patológico uma tal

acentuação do normal que passamos da ordem da tentação

para a da alienação. Nossa neurofisiologia normal nos privava

de vontade durante o sono e nos limitava pelas influências

hormonais. Estas condições normais tornavam possível tôda

uma patologia psiquiátrica da vontade. Vimos da mesma forma,

que o funcionamento do cérebro é em si mesmo, um

automatismo inconsciente; a tomada de consciência não é

senão um “processus” superior acrescentado. Não é possível

normalmente, ser consciente de tudo: dos mecanismos

elementares das sensações e do pensamento, do trabalho

cerebral inconsciente, que surge repentinamente nas intuições,

de todo êsse funcionamento cerebral enfim, que, quando

normal, escapa constitucionalmente, à cons-

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PATOLOGIA DO CÉREBRO E. 91

ciência e à vontade. Quanto às nossas lembranças, muitas estão já esquecidas e de outras só nos lembramos quando circunstâncias imprevistas provocam a evocação delas. O mérito de Freud, fundador da psicanálise, foi de mostrar que certos aspectos inexplicáveis de nossos comportamentos, certos traços de caráter, certas doenças ditas psicossomáticas tinham sua origem no inconsciente. Nem tôdas as lembranças, das quais não temos consciência, estão esquecidas, mas sim em estado de possibilidades virtuais em algum estoque cerebral, cujo mecanismo não conhecemos ainda bem. Há lembranças presentes em nosso cérebro, mas cuja tomada de consciência é impossível por causa de uma inibição, chamada recalque. Uma tal lembrança, isolada do psiquismo consciente, é um complexo, que se revelará por manifestações neuróticas, um impulso ou desgosto incoercível, uma perturbação visceral, levando até a pensar em doença orgânica. O recalque, ainda que fator de desordens neuróticas é um mecanismo de defesa, eliminando recordações ligadas a um choque afetivo durante a infância. Diante do defeito de alguém, não basta pois fazer apenas um balanço orgânico, eliminando, p. ex., as glândulas endócrinas, mas é necessário também um balanço psicológico. A neurose aparece como sendo uma fuga na doença, para esconder um complexo inconsciente. Se uma criança é preguiçosa, sem razão endocriniana, é necessário, antes de qualificar como pecaminosa a preguiça dela, ver se não está inibida por algum desequilíbrio neurótico, proveniente, p. ex., de um ciúme recalcado, devido ao nascimento de um irmãozinho, que lhe não souberam fazer aceitar.

A lenta confissão psicanalítica, a interpretação dos sonhos e eventualmente, a facilitação pelos hipnóticos na narcoanálise (na qual a inibição geral do cérebro suprime as inibições dos recalques) levam a reconhecer a origem das manifestações neuróticas e psicanalíticas. Isto vai permitir, pela tomada de consciência (que é realizada pela

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síntese cerebral personalizante) suprimir as manifestações

desequilibrantes. Lá onde tecnicamente, a psicanálise vê o

conflito do consciente e do inconsciente, a neurofisiologia

pavloviana nos acostumou a perceber os mecanismos cerebrais

do conflito entre excitação e inibição (fator de angústia) e a

repercussão sôbre os centros reguladores da base do cérebro,

responsáveis do equilíbrio visceral, isto é, de tudo aquilo que é

mantido à margem da tomada de consciência. Quem diz

psicossomático, diz córtico-visceral, isto é, interação entre a

cortiça cerebral e os centros hipotalâmicos do equilíbrio

visceral, da sabedoria do corpo. A psicanálise nos ensinou uma

grande prudência ao tratarmos da espontaneidade, da vontade

e da responsabilidade. Se devêssemos situar a liberdade em

alguma brecha entre os determinismos, não haveria lugar para

ela, visto como nossos mais espontâneos comportamentos

podem originar-se nas motivações do inconsciente. Mas ser livre

não é simplesmente não ter determinismos, mas sim ser capaz

de dominá-los. Isto é possível para um cérebro normal, coisa

que não acontece ou, pelo menos, não suficientemente, para

um nevrosado.

HIPNOSE E SUGESTÃO.

Êste cérebro nevrosado é um cérebro fraco, seja pela sua

própria constituição, que o toma mais frágil aos fatores

nevrosantes, seja por ter-se enfraquecido por um choque

emotivo nevrosante. O cérebro fraco não é simplesmente um

cérebro menos apto aos esforços voluntários e assim

susceptível de iludir-se, tomando por vontade automatis- mos

incoercíveis vindos do inconsciente. Êle é além disto, um

cérebro aberto à influência de outrem, isto é, suscetível de ser

sugestionado, quer dizer, de executar a vontade de outrem,

assumindo-a pessoalmente sem reflexão. A su

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gestão aparece, de fato, como sendo o inverso da persuasão e da conversão, que é a adesão racional e refletida a uma argumentação. Os neuróticos, particularmente os histéricos, são especialmente sugestionáveis e em primeira linha com a auto-sugestão, fator de numerosos sintomas neuróticos. Um caso espetacular é o da sugestão pós-hip- nótica, pela qual o paciente a quem foi dito, sob hipnose, que fizesse tal ou tal ato em determinado momento, depois de acordado. Ê o que êle fará sob o comando de uma intuição, que assume pessoalmente, apesar de tratar-se de influência de uma vontade de outrem, inscrita no inconsciente dêle. Esta vontade estranha só será porém eficaz enquanto não impuser atos demasiado contiários à moral do interessado. As manifestações espetaculares da hipnose, que originaram as pseudofeitiçarias e as pseudopossessões encontram-se em nevrosados de cérebro fraco. As pessoas mais normais não são capazes de fenômenos tão espetaculares, acompanhados de sono hipnótico, no qual a vigilância se limita à relação com o hipnotizador.

Pode-se, contudo, abaixar a resistência de indivíduos

normais menos sugestionáveis. É o que fazem os hipnóticos

utilizados na narcoanálise. Esta, ainda que fazendo

desaparecer os recalques, não é o famigerado sôro da ver-

dade, pois resta sempre uma possibilidade de resistência e de

mentira. Mas o paciente se torna sugestionável e pode-se

então, fazer com que êle confesse tudo quanto fôr desejado que

êle confesse. Aquilo que os jornalistas chamaram ex-

pressivamente como “lavagem do cérebro” é o conjunto das

práticas neurofisiológicas e psico-sociológicas, permitindo

cientificamente diminuir a resistência cerebral, enfraquecendo a

vontade e submetendo hipnòticamente o paciente a uma

vontade estranha, contrária às suas convicções. Esta prática

não tem eficácia definitiva senão mantendo o condicionamento.

Ê porém profundamente chocante e desequili-

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brante. Também aqui, se a hipnose pode ser útil, utilíssima, em diversas afecções psicossomáticas, não é para ser re-comendada aos indivíduos normais.

Apoiados sôbre o conhecimento das leis pavlovianas da neurofisiologia do cérebro humano, pôde-se assim construir, quer uma ação desumanizadora, visando diminuir a consciência e a vontade; quer uma ação super-humanizado- ra, tendente a dar a cada um uma melhor possibilidade de verdadeira vontade. Não, sugestionando, isto é, diminuindo sua consciência, mas explicando-lhe racionalmente, ensinando a aumentar a própria consciência.

É o caso, por exemplo, do parto sem dor, pelo método pavloviano psicoprofilático, no qual, ensinando-se à mãe a dirigir pessoalmente o próprio parto, recusando o preconceito social da dor, por isto mesmo se torna o parto voluntário e consciente, isto é, humanizado, indolor. Ê um exemplo que deveria ser generalizado. O médico não deveria fazer abstração do psiquismo nem tampouco sugestionar seu paciente, mas sim explicar-lhe tudo quanto acabamos de dizer, pedindo-lhe sua colaboração pessoal no ato da cura.

A PSICOCIRURGIA E OS SEUS PERIGOS.

Uma prática análoga à lavagem do cérebro, mas in-finitamente mais grave, são as operações de psicocirurgia.

Aqui a transformação da personalidade se baseia numa mutilação cerebral definitiva, justamente de uma parte es-sencial do cérebro humano: a região pré-frontal, sede do Domínio de si mesmo. Retirar esta dita região por lobo- tomia (quer se trate de leucotomia ou de topectomia) é suprir ou diminuir a aptidão ao domínio livre, à inquietude humana, que se preocupa de um futuro melhor. O paciente que perde a aptidão a utilizar a plena dimensão

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da própria vontade, é mais facilmente sugestionável. Alguns dêsses operados sofrem enormemente, outros caem numa euforia indiferente, que lhes esconde a própria diminuição. Se se tratasse de indivíduos normais, uma tal mutilação seria evidentemente inadmissível: não se converte ninguém tomando-o inapto a querer, mas fazendo com que perceba pessoalmente o Bem. Tais operações só são feitas em doentes mentais incapazes de verdadeira vontade, que foi nêles supressa ou mutilada pela inquietude psicopatológica. Tal operação se apresenta assim como um mal menor, que suprime uma perturbação por uma insuficiência: a inquietude anormal dá lugar a uma placidez exagerada.

Aquêles que, como Baruk, se opuseram a tais operações estavam inteiramente com razão, na medida em que era possível esperar, com o progresso da medicina, uma melhor solução. Hoje, de fato, tais mutilações são desnecessárias, pois são substituídas pelos tranqüilizantes e ti- moanalépticos, que acalmam as manifestações patológicas e permitem que os pacientes assim tratados possam recorrer à psicoterapia ou à reeducação pelo trabalho (ergote- rapia) ou ao jôgo em comum (ludoterapia), tôdas bem mais humanas. Contanto porém que êstes métodos não sejam senão um estádio transitório e que não se chegue aos excessos simbolizados pela camisa de fôrça química ou lobotomia química, na qual não se trata mais de educar a consciência e a vontade, mas de suprir as deficiências da verdadeira vontade, acalmando artificialmente os impulsos patológicos.

O CANHOTISMO CONTRARIADO.

Não é apenas o conflito neurosante da excitação e da inibição nos recalques que impede o pleno Domínio de si

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mesmo. Êle se manifesta em desordens análogas quer no plano psicológico, quer no plano das repercussões psicossomáticas, quando tal conflito não tem origem psicológica. Normalmente existe um hemisfério dominante, o da linguagem, que é o esquerdo nos destros. Se alguém fôr obrigado a servir-se primacialmente do hemisfério dominado (caso dos canhotos aos quais se obrigar a escrever com a mão direita ou daqueles que devem utilizar o ouvido não- -diretor) produz-se um conflito entre os dois hemisférios, resultando disto a tartamudez e outras manifestações neuróticas, corrigidas apenas pelo restabelecimento do papel diretor do hemisfério dominante.

A FADIGA NERVOSA.

As deficiências da vontade num paciente educado, não dependem hoje apenas e unicamente dêsses conflitos neu-rológicos de origem neurótica ou não. Há um fato de re-baixamento dos podêres cerebrais, que, apesar de menos patológica, tende a expandir-se cada vez mais. Se perdermos o esforço de querer, não é unicamente por causa da patologia do cérebro, da patologia hormonal ou das neuroses. É porque nos pomos imprudentemente em condições de vida esgotadoras.

Nestas condições, nosso cérebro, desequilibrado pela nossa falta de sabedoria, se torna incapaz de assegurar a direção consciente e voluntária de nossa conduta.

Esta causa suplementar da impossibilidade de querer é a fadiga. Não a fadiga física muscular tradicional, que obrigava ao repouso e ao sono, mas o aspecto moderno da fadiga, que é a fadiga nervosa, a “surmenage”, o esgotamento. As neuroses da fadiga são pseudoneuroses, isto é, não são conflitos psicológicos e recalques, de si neurógenos, mas sim as condições de vida. Se os estandardistas sucum

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bem à fadiga, não é por falta de equilíbrio, mas pelas condições inumanas de trabalho, em que vivem; no barulho, na multiplicidade de tarefas, na produtividade, no controle autoritário e incompreensivo. Para fazer com que saiam dêste desequilíbrio, que os obriga, depois do trabalho, a relaxar-se quer num repouso total, quer num passeio enervado, não é necessário psicanalisá-los nem enchê-los de tranqüilizantes, mas simplesmente humanizar o trabalho dê- les e também procurar aumentar-lhes a resistência.

A neurofisiologia moderna expressa-nos bem êste para-doxo, que é o progresso de uma fadiga, que se toma cada vez mais nociva, justamente quando a automação generalizada do trabalho e da vida deveria aliviá-la.

Temos na base do nosso cérebro centros reguladores,

responsáveis pela harmonia tanto das funções cerebrais quanto

ao funcionamento de todo o organismo. Êles asseguram o bem-

estar de nosso corpo, pedindo-nos um esforço de adaptação

que fazemos mal em desconhecer, exigindo- -lhes pelo

contrário, esforços exagerados, que nos conduzem ao

desequilíbrio e à patologia. Sabemos hoje cientificamente que

coisa é ser enervado, crispado e também tudo quanto precisa

ser feito para remediar e fazer repousar os centros reguladores

perturbados. São desequilíbrios análogos, esforços análogos

para o organismo: subir destreinado correndo por uma escada

acima e ser vítima de um cuidado angustiante. São de fato os

mesmos centros reguladores, responsáveis pela harmonia do

corpo, que determinam a aceleração respiratória e circulatória,

proveitosa tanto a quem sobe rápido por uma escada quanto a

quem sente as perturbações somáticas da emoção. Tôda a

harmonia cerebral exige um bom funcionamento dêstes centros

reguladores responsáveis da vigilância e da atenção. Se a

fadiga enerva tais centros não seremos mais capazes de

consciência e de vontade corretas. O esgotamento nervoso é o

grande fator

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da impossibilidade de domínio de si mesmo, no mundo atual. Longe de desculpar a ausência de Domínio de si mesmo pelo enervam ento e tentar remediá-la pelo álcool ou pelos tranqüilizantes, o que é preciso, ao contrário, é restabelecer a possibilidade de domínio, mudando as condições inumanas da vida. Não deixando, é claro, de ensinar a cada um, seus próprios recursos cerebrais de relaxamento e de luta contra a fadiga nervosa. Recursos em geral, ignorados ou negli-genciados, quando são de fato o segrêdo da verdadeira vontade (métodos de relaxamento, estudados mais adiante).

Uma compreensão errônea e implicações da psicanálise e

da significação da moral levaram muita gente a pensar que a

Moral é desequilibrante por se opor às tendências naturais do

ser, aceitando-se como origem dos recalques a barreira

constrangedora imposta sociologicamente por um super-Ego

desequilibrante.

A verdade porém é que a Moral não é desequilibrante, mas

sim a caricatura legalista dela, que consiste em opor a Moral a

falsos instintos naturais, que não são senão preconceitos

sociais.

Pelo contrário, atualmente a Moral aparece cada vez mais

como uma higiene de ordem superior, necessária para nosso

equilíbrio e garantia de um funcionamento cerebral normal, que

permite assim verdadeira liberdade e vontade. Os fatores da

fadiga nervosa são faltas de higiene, devidas à nossa ignorância

das condições do equilíbrio humano. Como guardar um cérebro

equilibrado quando as condições de vida moderna são um meio

impróprio para um tal equilíbrio? Indiquemos, entre outras, a

falta de oxigênio num ar infectado de gás de escapamento ou

de fumaça; o barulho, êsse grande fator de fadiga nervosa

(como já dissemos acima) ; as condições sociológicas de

relações humanas desu- manizadas, nas quais o indivíduo é,

segundo o momento, de-

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PATOLOGIA DO CEREBRO E. 99

masiado livre ou demasiado constrangido, afogado como fica, numa multidão, quando o equilíbrio psicossomático humano exige uma comunidade fraternal. Verdadeiramente o que deveria surpreender não é que sejam tão numerosos os de-sequilibrados, inaptos a saber querer, mas sim que em tais condições de vida como são as nossas, reste ainda alguém capaz de conservar o equilíbrio. Isto não nos deve levar apenas a lamentar um passado onde as condições primitivas de vida não permitiam tampouco o necessário equilíbrio, mas sim deplorar que o melhoramento de nossos conhecimentos, longe de cooperar para um tal indispensável equilíbrio, o tenha proposto às proezas técnicas e econômicas.

Nossa fadiga e as suas conseqüências, assim como tô- das as doenças e neuroses da civilização deveriam, se fossem bem compreendidas, ser um sinal de alarme. Infelizmente não compreendemos a origem delas e nos contentamos em esperar desesperadamente por um remédio mágico, que nos livraria dos efeitos sem que nós afastássemos as causas! Tal remédio não existe e até, se existisse seria pior do que a doença, pois nos dispensaria do esforço de plena reflexão e de plena liberdade. Ora, só êste esforço é que ^os permitirá humanizar a vida com tôda a lucidez.

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4A obrigação de saber querer e os perigos da ignorância

VERDADEIRA E FALSA LIBERDADE.

Que haja doenças que limitam ou suprimem a vontade; que seja necessário prestar atenção às nossas condições de vida a fim de não perdermos o Domínio de nós mesmos, como acontece com os enervados; nisto, todos os entendidos concordam. Ê preciso cuidar dos doentes para restituir-lhes a saúde. Ê preciso desenvolver a higiene pública para prevenir as doenças. Está tudo nisto, pensamos nós. Basta ser normal e têrmos, pela nossa própria constituição cerebral, o poder de querer segundo nosso desejo, e o poder também de não querermos se assim nos parecer. Não está por acaso nisto justamente a Liberdade? Não exige porventura a tolerância que deixemos cada um livre de decidir-se em função de suas próprias convicções?

Não é possível haver unanimidade naquilo que é necessário querer e também no papel da vontade e da fantasia. Quando o médico e o psicanalista conseguiram curar o patológico, concluíram sua missão restaurando a Liberdade. Devem abster-se de interferir abusivamente fora do próprio campo, isto é,

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devemos limitar, além de nossa moral pessoal, senão pela necessidade de não importunar os outros e não perturbar a ordem pública.

Tal é a opinião comum. Ela é justa na medida em que nada se deve impor e em que cada um deve decidir livremente aquilo que deve fazer. Não devemos obedecer a imposições mas sim àquilo que nos parece justo. Toda regra social à qual não cremos é um constrangimento ex- temo, que arrisca ser desequilibrante. Temos que compreender e aceitar a necessidade dela.

Mas é falso pensar que cada um é livre de inventar a própria Moral, como se não houvesse valores comuns, que dependem do fato de que sendo, como somos, sêres humanos, devemos conformar-nos à natureza humana.

Ê grave preconceito pensar que alguém sendo um homem

normal, provisto de um cérebro humano funcionando

corretamente, é automàticamente um ser livre que pode, sem

inconveniente algum, fazer o que bem lhe aprouver. Nosso

cérebro, como as máquinas, deve ser utilizado corretamente,

conforme à própria constituição, conforme àquilo para que foi

êle feito. Não somos livres senão de fazer livremente o Bem,

pois que o Mal é uma imprudente e errada utilização do cérebro,

visto como neste caso o homem arrisca a própria aptidão à

Liberdade. Fazer voluntària- mente o Mal é comportar-se como

um doente.

Mas quem faz voluntàriamente o Mal? Acabamos de

relembrar tôda uma inteira patologia do comportamento na qual

aquilo, que parecia pecado responsável, é de fato, uma atração

incoercível, que suprime tôda possibilidade de domínio e de

escolha.

Suponhamos (o que seria uma utopia) homens per-

feitamente reequilibrados e restituídos à própria liberdade por

uma medicina e psicoterapia perfeitas. Se escaparmos

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A OBRIGAÇÃO DE SABER QUERER E. 103

ao êrro de crer que farão obrigatoriamente só o Bem, cairemos certamente na tentação de pensar que, na plena lucidez em que estão, poderão livre e voluntariamente optar entre o Bem e o Mal. Qual pode ser uma opção livre e /úcida a qual um tem sua própria definição do Bem e do (Víal? Seria tal opção um simples negócio de gôsto pessoal?

Para fazer voluntàriamente o Bem é preciso compreender a significação disto. Não somente na relatividade de uma moral individual de situação mas de um ângulo de visão, que vise sempre a melhoria humana em tôdas as situações.

Ao contrário do que geralmente se pensa, a vontade de

fazer o Mal não é tão comum quanto possa parecer. Se reina o

Mal na sociedade humana é porque os homens não são livres

ou, pelo menos, não sabem usar a própria Liberdade. Mais do

que malvados são doentes, fracos, ignorantes, imprudentes.

Quem ousaria calcular exatamente a parte de responsabilidade

dos chefes hitleristas nas suas atrocidades, produtos de uma

mistura de patologia mental com estupidez?

Erramos quando pomos oposição total entre normal e

patológico. Apesar de suas motivações serem diferentes, é justo

que dominemos com o mesmo nome (preguiça ou cólera) um

mesmo comportamento, seja êle determinismo patológico ou

livre decisão. Escolher a preguiça, a cólera, chamadas de Mal

pelo moralista, por uma decisão que cremos ser livre, é

extremamente imprudente, pois quem nos assegurará que não

estamos iludidos e que não estamos senão curvando-nos à

patologia hormonal ou aos complexos ignorados de nosso

inconsciente?

Ê significativo que, exaltando todos os “alimentos ter-

restres”, A. Gide tenha feito sobretudo a apologia da neurose, à

qual o havia conduzido uma educação puritana,

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isto é, sua ausência total de liberdade e de lucidez. Mas há coisa mais grave. O indivíduo são traz em si mesmo determinismos normais, tão alienadores quanto os deter- minismos patológicos. A diferença está em que êle pode aprender a dominá-los. É isto que temos chamado de tentações naturais de desnaturação

ou de fixação em um nível de natureza inferior e incompleto. Se um degrau de des- continuidade separa o patológico do normal, apesar da identidade das aparências, é preciso também não esquecer a dimensão da continuidade. A patologia endocriniana não suprime nossa liberdade senão porque temos hormônios com atividade sôbre os centros nervosos. Nos limites do normal, êstes hormônios tornam mais difícil o domínio sôbre nós mesmos. Os complexos do inconsciente não são alienadores senão porque a neurofisiologia cerebral comporta possibilidades limitadas de tomada de consciência. Imenso é o campo do inconsciente: é mais fácil não refletir e não querer!

Curioso paradoxo! Esta supercomplexidade do cérebro

humano tanto nos dá o poder de fazer bem melhor que o

animal, quando refletimos, quanto o de fazer freqüentemente,

infinitivamente menos bem, quando não refletimos. Ser livre,

querer, refletir, não é uma fatalidade, mas sim um dever,

apesar de difícil.

A mais importante mensagem cultural e humanista da

neurofisiologia do cérebro humano é de marcar com precisão as

condições do querer humano, que não é humano se não fôr

vontade do Bem. Não somos livres senão para conduzir-nos

como Homens. Recusar fazer o Bem é uma grave imprudência,

é um risco de desumanização para nós e para os outros. O

homem não realiza sua natureza humana senão quando cumpre

livremente o Bem. É preciso desfazer o preconceito que aponta

o fácil como natural para o homem. É fácil para o animal ficar

na sua natureza animal seguindo os automatismos de seus bons

instintos. Não

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A OBRIGAÇÃO DE SABER QUERER E. 105

se dá isto com o homem, que deve descobrir pela Reflexão aquilo que é bom para si.

O grande obstáculo atual à liberdade, postos uma vez de lado os obstáculos patológicos e os resultados da fadiga nervosa, é a ignorância, a falta de cultura sôbre as leis do funcionamento de nosso cérebro. Mas, digamos tôda a verdade. Ainda que amanhã desapareça esta incultura, nem por isto desaparecerão tôdas as dificuldades no domínio de nós mesmos. Ninguém poderá conduzir-se como Homem ignorando as condições do equilíbrio humano, mas sempre será difícil ser verdadeiramente Homem, ainda quando uma educação adequada tenha facilitado o exercício da lucidez e da vontade. Como não será válida senão uma conduta humana livre baseada num engajamento pessoal, restará sempre a possibilidade de dizer NÃO, apesar dos mais sérios e objetivos argumentos a favor do Bem. Ê esta a enfermidade fundamental mais grave do homem. Subsistirão sempre tentações naturais de desnaturação, pois teremos sempre hormônios, necessidades, impulsos para um Bem fácil. Tais tentações serão ainda mais agravadas por uma misteriosa aptidão a recusar o bem, ainda que racionalmente apresentado como sendo o segrêdo da saúde, do equilíbrio e da felicidade. Um tal ilogismo de nossa liberdade deveria levar-nos a tomar em consideração sua interpretação metafísica, isto é, êsse desequilíbrio de orgulho de um ser fraco, mas responsável. Desequilíbrio expresso, no Cristianismo, pelo Pecado Original.

A SATISFAÇÃO HUMANA DAS NECESSIDADES.

A neurofisiologia nos atesta que o cérebro humano é o órgão da liberdade. Não haverá porém contradição se afirmarmos que bem poucos dos atos dos homens normais são livres. Isto é verdade, simplesmente porque não sabe

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mos ser livres, não sabemos que coisa seja querer, nem o que querer. Cultuamos a espontaneidade e recusamos crispar-nos sempre no esforço. Estabelecemos por isto em nós, cômodas barreiras: há a vida animal do corpo, a vida intelectual e racional do pensamento, a vida espiritual. A cada uma o seu lugar! Infelizmente estas separações são artificiais pois não há senão a vida humana, vida espiritual encarnada: não há vida animal do corpo, mas sim a vida humanizada de um corpo humano que não tem mais nada de animal. Não se trata pois de dar vez ao corpo ou de dominá-lo em nome de um espiritual desencarnado, fator de recalques. Nem sequer de utilizar, a fim de evitar re-calques, as energias inferiores, mudando-lhes o leito, trans-pondo-as a um plano superior (“Sublimação” em psicanálise). De fato, êste é um conceito ambíguo. Em lugar de ignorar o impulso e de deixar que faça estragos inconscientemente, é êle endereçado a uma utilização mais humana. A verdade não está na sublimação do interior (o que poderia levar ao êrro de negar a própria existência do superior), mas no reconhecimento que o inferior humano é um inferior incompleto e mutilado, que não tem existência própria e que é feito para ser comandado pelas estruturas superiores. Não há no homem, difícil conflito entre o amor superior, espiritual desencarnado e o impulso erótico genital, mas o verdadeiro amor humano é o encargo do sentido do erótico pelo espiritual. Não é humano e completo senão o erótico espiritualizado, isto é, humanamente dominado ou o espiritual encarnado na conduta dos reflexos sensuais genitais. Ê que o homem, apesar de ter um triplo aspecto hierarquizado, não é um ser duplo (alma e corpo) ou triplo (corpo, alma, espírito). Êle se exprime nas estruturas unificadoras de seu cérebro com 3 andares. Não há a justaposição do cérebro do instinto e da afetividade unificadora do corpo e do cérebro da inteligência, da tomada de cons-

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ciência e da relação social, mas sim encargo do cérebro primário e de suas necessidades pelo cérebro da inteligência e unificação suprema do instintivo-afetivo elementar e do racional pelas estruturas superiores pré-frontais, como já dissemos atrás. Dar primazia ao espírito não é recalcar o inferior, mas dar-lhe sua significação humana. Não é um corpo humano aquêle que não fôr comandado pela lucidez pré-frontal.

Ora, que fazemos nós pràticamente ? Aceitamos que nossa lucidez obedeça a nossas necessidades de uma maneira que nós cremos instintiva mas que, de fato, não é senão um hábito socialmente adquirido.

No animal, em razão da insuficiência do cérebro superior, os hormônios sexuais ou as modificações do ambiente interior, que mostram a necessidade alimentar das células, vão fazer disparar no cérebro inferior um automatismo instintivo, (satisfazendo à necessidade de uma maneira conforme aos costumes da espécie, inscritos nos automatismos do cérebro inferior). No homem, êstes fatôres continuam importantes, pois causam no cérebro inferior perturbações das quais o cérebro superior tomará consciência sob a forma de necessidades, mas o homem não está ligado à sua química orgânica. Na ausência de hormônios sexuais, na ausência de fome orgânica, pode êle ter desejo sexual ou alimentar, por motivação psicológica cerebral. Doutro lado, compete ao cérebro superior decidir se convém ou não satisfazer a tal necessidade e como satisfazê-la.

Nós julgamos ser espontâneos obedecendo às necessidades

orgânicas, consideradas como parte animal de nós mesmos.

Com efeito, por ignorância, cremos ser possível dividir nossa

vida em 2 partes: uma, da atividade consciente e refletida,

outra, da vida instintiva e sentimental. Submetemos nossa

conduta pessoal às nossas necessidades orgânicas, sexuais,

alimentares ou outras, esquecendo que

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a satisfação humana destas necessidades exige reflexão e vontade. Sob o ângulo de visão de construção constitutiva o cérebro inferior é feito para funcionar sob o controle do cérebro superior. Ignorando isto, nós nos tornamos autômatos do cérebro inferior e comparáveis ao animal desce- rebrado cujo hipotálamo desencadeado faz disparar estados violentos de raiva ou ao doente mental lobotomizado, também êle incapaz de controle. Para ser verdadeiro Homem, é preciso controlar os automatismos, induzidos pelos nossos humores no cérebro inferior.

Em lugar disto, pelo contrário, nós deixamos que se desencadeiem. Fixamo-nos assim num nível inferior à nossa natureza, tornando-nos comparáveis ao doente incapaz de Domínio sôbre si mesmo. É por causa disto que o comando humoral das condutas, que coloca o animal na sua natureza, nos coloca a nós fora da nossa, porque nos priva de nossa dimensão essencial.

O moralista avisa contra os excessos da gula, da sen-

sualidade, da agressividade. O neurofisiologista está nisto

completamente de acôrdo. Todavia é grande imprudência para

um sujeito normal deixar-se assim levar por tais excessos, pois

desumanizam a conduta dêle, tomando-o prê- sa de

automatismos inferiores. Não queremos dizer com isto que seja

necessário suprimir as alegrias da carne, que têm no homem sua

superioridade, precisamente graças ao progresso do cérebro.

Mas justamente estas alegrias não serão humanas senão

enquanto dominadas, permitindo assim consciência e lucidez

suficientes. Desprezar tais alegrias ou fingir ignorá-las é êrro

desequilibrado do purita- nismo, que, por vêzes esconde, sob

aparências de domínio e de virtude, as incapacidades neuróticas

dos recalques. Seria êrro complementar mergulhar alguém

nessas alegrias num desencadeamento total, privando-as assim

da dimensão humana.

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Êste desencadeamento alienador parece ter caráter natural e inevitável, evitado apenas por ascese extraordinária, da qual a maior parte é incapaz. Êste também é um preconceito, devido a sermos prêsa de maus hábitos. Nós não nos podemos dominar simplesmente porque temos o mau hábito de pensar que seria impossível dominar-nos e assim nos deixamos levar pela facilidade espontânea do desencadeamento das paixões.

É claro que não se trataria apenas de opor-se a êste desencadeamento com heróicos, mas freqüentemente ine-ficazes, esforços da vontade, mas sim de tomar o bom hábito de prevenir o desencadeamento das paixões, antes que seja tarde demais. Não por uma ascese desencarnada, mas pelo contrário, para gozar plena e humanamente de uma carne, mantida em sua plena significação. Nossa culpabilidade não está nas ações, que fazemos com autômatos, tão alienados quanto um doente mental, mas em nos ter deixado imprudentemente levar a tal estado. Culpabilidade aliás atenuada pela nossa ignorância do caráter inumano e contra-natureza de um tal desencadeamento.

A Moral não se opõe à natureza, mas permite evitar a contra-natureza, desde o momento em que compreendemos sua verdadeira significação. Não recusar a carne, mas usar a técnica da utilização espiritualizante da carne.

A ALIENAÇÃO SOCIAL.

Por causa de não nos servir corretamente dos mecanismos corporais para espiritualizar-nos, isto é, humanizar-nos, nós nos tomamos escravos das necessidades incoercíveis de um corpo materializado. Mas não é apenas das necessidades biológicas elementares que nos tornamos escravos, mas dos usos sociais, dos costumes, do ambiente em que vivemos.

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Libertar-nos do conformismo, que guia nossos atos, con-duz freqüentemente a êsse anticonformismo neurótico, igual-mente irrefletido, de certos adolescentes, que manifestam por atitudes anti-sociais o próprio inconsciente desequilíbrio de sêres mal-educados numa sociedade má. No Homem, a passagem das condutas do plano instintivo ao plano superior não leva logo de imediato, à plena dimensão humana da conduta, livre, porque refletida, por conseguinte, querida. Inicialmente há apenas a passagem dos reflexos inatos do instinto aos reflexos condicionados dos hábitos sociais. Esta aprendizagem automática pelo ambiente, à qual freqüentemente se limita uma falsa educação, não visa uma plena formação humana mas simplesmente fazer um cidadão conformado, bem adaptado e bem obediente.

Ao contrário dos costumes instintivos dos animais, que são

conformes à natureza da espécie, os usos e costumes humanos

podem ser preconceitos sociais antinaturais. A automação da

conduta é uma feliz lei cerebral que liberta nossa reflexão e não

nos constrange a estar sempre querendo. Ê bom descarregar-se

assim sôbre bons hábitos, mas contanto que sejam bons hábitos

e não apenas preconceitos sociais, contrários à verdadeira

natureza humana.

A educação não deveria ser uma aprendizagem conformista intelectual ou técnica, mas dar o hábito de refletir e de abraçar o que é Bem. Também aqui, como com os hormônios, nós fazemos de um precioso mecanismo fisiológico, que é esta possibilidade de adquirir hábitos, uma tentação grave de desnaturação, que nos transformará em “robots”. É por causa disto que nem sempre somos livres, que não temos verdadeira vontade! Nós nos escravizamos ao nosso ambiente, queremos o que querem nossos humores, o que querem nossos vizinhos!

Refletimos um pouco sôbre o engrandecimento caricatural que nos fornece a patologia social. Que coisa acon-

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tece com a liberdade individual em uma multidão hipnotizada pela própria compactividade e pelos seus líderes? Estará por acaso sendo realmente dono da própria vontade aquele cidadão pacato e responsável que agora, no meio de uma turba enfurecida, exige aos gritos e palavrões, seu próprio dinheiro, depositado em um banco, que parece estar indo à falência?

Nossas alienações sociais ordinárias são menos espe-taculares, mas é um fato que nossa alimentação e nossa sexualidade dependem dos usos e costumes. Não seguimos nossa verdadeira natureza, nossas verdadeiras necessidades, mas sim uma falsa natureza, falsas necessidades, que maus hábitos deram ao nosso corpo. Até o Bem, a Moral se tomam um bom conformismo de espiritualização ascética desencarnada, muito inumano e desumanizante, pois visamos a salvação de nossa alma, a obediência a Deus ou à Igreja e não o progresso de nós mesmos na conformidade àquilo que somos. Qual não deve ser a tentação de fazer o Mal, quando parece êle tão natural, tão tentador enquanto que o Bem, o Domínio de si mesmo são apresentados como renúncia às alegrias terrestres? Está estabelecido o conflito entre a consciência e a boa consciência!

Quando porém cessar o conflito do apêlo da Vida e da

Moral, quando a Moral aparecer como a possibilidade do

desdobramento total da Vida e o Mal como uma desequili-

brante diminuição, então o Bem não se tomará fácil nem o Mal

desaparecerá da face da terra, mas que mudança de

perspectiva! Para o homem alcançar uma tal situação, não tem

necessidade de sermões ascéticos desencarnados, mas apenas

de um conhecimento objetivo científico de si mesmo, de uma

cultura biológica enfim. Então êle compreenderá que, antes de

ser uma ofensa a Deus, o pecado é inicialmente uma falta

técnica contra si mesmo e contra os outros de um incapaz, bôbo

e ignorante, de con-

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duzir-se corretamente utilizando as magníficas possibilidades do

próprio cérebro e especialmente do cérebro pré-frontal.

Fazer o Bem, exige certamente uma ascese, mas bem diversa da costumeira! Exige uma ascese de realização de si mesmo, da ressacralização da carne. Maravilhosa possibilidade de todos os homens, normais ou curados, mas que êles deitam a perder! Tornados escravos, não compreendem a verdadeira razão da própria escravidão nem a maneira de livrarem-se dela. Reivindicam porém, alto e bom som, ser libertados artificialmente por drogas, que lhes fazem sentir necessidades artificiais e tomar por Domínio de si mesmos uma escravidão ainda maior.

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5A educação da Vontade

A MORAL POSITIVA.

Se é tão rara hoje esta livre vontade humana refletida, que não poderia, pela nossa própria constituição cerebral, estar senão a serviço do Bem, sob pena de se destruir, é fácil concluir, dentro de um pessimismo desesperado e desesperante, que tal Vontade só pode ser encontrada em uma elite. Afirmar que somente uma elite pode chegar ao pleno desdobramento humano, quando todos os homens normais, pela própria constituição de seus cérebros, têm esta aptidão, é infelizmente um paradoxo muito espalhado. Êle implica da parte daqueles que crêem pertencer a tal elite e que, de fato, freqüentemente se servem menos de sua liberdade do que os outros, uma sorte de paternalismo desprezador, que se veste com um manto de falsa caridade. Sente-se aqui o relento da divisão cátara entre os puros e a massa, tão contrário ao humanismo autêntico quanto o moralismo constrangedor de seus adversários, os Inquisidores. Estamos por acaso tão longe assim da época, na qual todos partilhavam a concepção de uma carne peri-

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114 O DOMÍNIO DE Sl

gosa e má, de uma carne perdida e causando perdição? Época em que se via na mortificação recalcando a carne o único caminho para a salvação, época que considerava a perigoso necessidade do matrimônio uma ocasião obrigatória de pecado? Preconceitos todos êstes tanto de S. Tomás de Aquino quanto de S. Bernardo e de Abelardo. A diferença é que hoje, uma maioria, repelindo a mortificação, afirmaria que, no fundo, é bem agradável perder-se!

Porém, uma mortificação, que fôsse esquecimento, horror ou recusa da carne, seria um comportamento contra a natureza, ameaçando manifestar uma neurose ou conduzir a esta. Não uma virtude, mas uma “doença da virtude”. Além disto, seria uma solução demasiado fácil, pois recusa, separando simplesmente a carne do espírito, realizar a unidade humana empregando corretamente a carne, segundo o verdadeiro papel dela, que é o de nos permitir um incessante progresso e espiritualização. O domínio autêntico de si mesmo, não é, em verdade, obtido senão pelo esforço, pela mortificação e pela ascese, mas num espírito completamente diferente. Não castigar a carne, mas expandi-la fazendo com que renda tôdas as suas possibilidades.

A neurofisiologia, cerebralizando o domínio de nós mesmos, acaba de confirmar o ângulo de visão do moralista mas de um certo modo, erguendo-o sôbre seus próprios pés até uma “Moral nova”. Esta não é senão um retômo à verdadeira Moral, a Moral do Cristo e de S. Paulo, moral dos princípios tradicionais, mas realizada de maneira equilibrada e humanizante. E isto pela recusa em aceitar um Legalismo desencarnado, repleto de proibições e autorizações, mas pela afirmação das condições positivas do desdobramento humano, fora até de qualquer consideração religiosa.

Ê paradoxal que se caricaturize como otimismo irrealista,

por ignorar a natureza, aquêles que, como Teilhard

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A EDUCAÇAO DA VONTADE 115

de Chardin, insistem nesta Moral Positiva. São os pessimistas, chamando-se a si mesmos de realistas e ignorando a verdadeira natureza do Homem, que tomam por naturais os desvios devidos à doença, à ignorância, à fraqueza e ao pecado. Seus interditos negativos instalam os homens na passividade do pecado e da impotência, na aceitação da desesperadora alternativa entre o pecado obrigatório e o arrependimento ineficaz.

Para ser eficaz deve o arrependimento basear-se sôbre a

convicção de que, apesar de fracos e inclinados à recaída, nós

temos a possibilidade de levantar-nos, não apenas passivamente

pela graça de Deus, mas também pelo nosso esforço pessoal, no

qual o crente vê precisamente a inserção da graça. Temos que

salvar-nos a nós mesmos. O que vale dizer, no plano profano,

comportar-nos sempre como Homens.

PERMANECER ADULTOS: APRENDIZAGEM PERMANENTE.

Isto supõe aprender: aprender que coisa significa hu-

manizar-se, aprender quais os meios de lá chegar, em uma

espiritualidade encarnada, de esforço positivo e eficaz. Devemos

ser adultos, cada vez mais e melhor. No sonho de qualquer

adolescente, rebelando-se, contra as prescrições, o estado

adulto é sempre um paraíso maravilhoso, no qual tudo é

permitido. Não mais será necessário esforço algum. Um ponto de

chegada afinal.

Todos nós vivemos, mais ou menos, tendo o preconceito de

que o dinamismo de realização do Homem pelo esforço

educativo concerne apenas aquêle que não é adulto.

Consideramos todo o adulto sob um aspecto estático acabado,

cuja velhice é a deterioração e que não deve sofrer imposição

alguma exterior da sociedade em que vive!

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116 O DOMÍNIO DE 81

Infelizmente o conhecimento atual da neurofisiologia nos diz o contrário, isto é, que não há estado humano estático, de equilíbrio estável, assegurado e definitivo; que nosso destino normal é de contínua maturação desde a concepção até a velhice, tendo êste último estado aspectos positivos não-negligenciáveis; que para ser e permanecer adulto não se trata de aceitar sem alegria inevitáveis constrangimentos, mas de nos constranger sem cessar a subir, a fim de evitar a tendência desnaturante de descer, que é uma lei da nossa fraca natureza.

Tomando-se rapidamente antiquado tudo quanto já temos aprendido na vida, devido à aceleração dos progressos científicos e técnicos, é necessário que sempre estejamos a par, mediante uma educação permanente. Não compreenderemos o verdadeiro sentido desta necessidade nova, que é o progresso autêntico, se não compreendermos que êle nos obriga a reconhecer que o Homem é um ser que deve sempre aprender.

Pela própria constituição do cérebro o Homem se define

pela aptidão a aprender. Êle crê porém que esta aptidão não

pede senão ser utilizada, bastando aprender qualquer coisa

intelectual ou tècnicamente. No entanto esta aptidão não é

senão virtual e antes de utilizá-la é preciso desenvolvê-la. O

homem deve inicialmente aprender a aprender. O segredo de

uma educação bem feita não estaria pois na soma dos

conhecimentos, freqüente e rapidamente antiquados, mas no

desenvolvimento da aptidão de aprender verdadeiramente, isto

é, a refletir, a compreender, a querer. Todo homem normal

possui esta aptidão a aprender, ainda quando as deficiências de

uma educação ausente, insuficiente ou falseada não a tenham

desenvolvido. Nunca pois será demasiado tarde para aprender e

adquirir assim o pleno Domínio de si mesmo, tomando-se então

verdadeiro Homem.

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A EDUCAÇAO DA VONTADE 117

E porém necessário um esforço muito grande para deixar maus hábitos, para deixar de ser um autômato do conformismo, para pôr-se enfim a refletir e a julgar. Teria valido melhor tomar de uma vez por tôdas o bom hábito de utilizar tôdas as suas próprias e mais completas possibilidades. Diante das terríveis deficiências atuais não devemos acusar a irresponsabilidade dos ineducados, mas sim a deficiência dos educadores.

As CONDIÇÕES DO ESTADO ADULTO HUMANO! PROLONGAÇÃO DA

IMATURIDADE.

Não somente temos o preconceito da perfeição automática

de um estado adulto acabado, mas pensamos também que

basta ser um homem normal, basta ter escapado às doenças do

desenvolvimento (que lesam direta ou indiretamente o cérebro)

para chegarmos a êste estado adulto. É grave êste nosso êrro,

pois confundimos estado adulto animal com estado adulto

humano. Bem que o animal como o homem, se construam ao

longo de uma dinâmica de crescimento, a natureza do animal é

bem mais estática, mais fatal, mais obrigatória. Basta-lhe um

crescimento biológico elementar sem carências e doenças,

fontes naturais de monstruosidades.

Deve êle especialmente esperar que a própria maturação se

faça, trazendo com ela os instintos necessários. A parte da

educação e reflexão é reduzida e não indispensável para a

sobrevivência. No Homem é tudo diferente, ainda que,

contràriamente aos preconceitos, o estado adulto normal,

baseando a conduta numa reflexão, que ache o Bem atraente e

preferível, seja ainda uma raridade e o anormal, isto é, o

imaturo, o comum. A mais grave das patologias não é a

patologia doentia usual dos anormais, ma?

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118 O DOMÍNIO DE SI

sim aquela daqueles que se crêem normais porque não estão doentes, sem porém terem aprendido a utilizar completamente as possibilidades humanas.

O homem não é superior ao animal senão utilizando as possibilidades cerebrais humanas de superioridade. Caso contrário é inferior ao animal, pois pode chegar a desnaturar-se. Vimos isto naquilo que concerne à deficiência dos instintos. Esta deficiência existe “pari passu” com o retardamento do desenvolvimento do homem, condição normal da superioridade humana, que, se não fôr utilizada corretamente, tem por conseqüência impedir uma maturação completa.

Primo afastado do homem, o chimpanzé interessa es-pecialmente ao psicofisiologista, que não tem à disposição os verdadeiros ancestrais do homem, os hominídeos em via de humanização, de encaminhamento à plena Reflexão. Entre todos os sêres atuais êle é o mais rico cerebral- mente, pois possui um cérebro com uma estrutura hierarquizada bem vizinha à do homem. A maior diferença para com êste, a mais significativa é que, apesar de partirem ambos, a quando do nascimento de estados imaturos muito vizinhos têm duração de crescimento muito diferente. O chimpanzé amadurece rapidamente: é com rapidez que seu cérebro se completa anatòmicamente e aprende tudo quanto lhe é necessário. O homem, de seu lado, permanece muito mais tempo inacabado. Por isto foi possível compará-lo ao feto do chimpanzé, pois conserva por muito mais tempo uma imaturidade, que sendo fonte de múltiplas possibilidades, o faz ficar mais jovem. Quando todo progresso já está preparado no chimpanzé, então é que se dá uma partida fulminante no Homem.

Passado o período da infância, que compreende uma lenta

maturação anatômica do cérebro, a maturidade sexual não

coincide com o fim do crescimento e do estado

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A EDUCAÇAO DA VONTADE 119

adulto, mas sim com o estado tipicamente humano da adolescência, na qual o cérebro acaba sua maturação fisio-lógica, bem revelada pela eletroencefalografia. Desprovido de instintos, o homem tem todo o tempo para aprender a servir-se do próprio cérebro. Mas não há aqui a aprendizagem de um cérebro acabado. Ê a utilização de um cérebro em maturação, condicionando até certo ponto, esta mesma maturação. Um cérebro maleável, porque inacabado e que não dará tôdas as suas possibilidades senão submetido a uma educação plenamente humana, isto é, hu- manizante.

NECESSIDADE DA CULTURA.

O crescimento é sempre uma assimilação. Sob a direção de

hereditariedade, que não é senão o órgão de programação dos

ácidos nucléicos, o organismo cresce tomando elementos

emprestados ao meio exterior. No animal a assimilação é

meramente material: é adulto o indivíduo cujos órgãos estão

corretamente acabados e que, por conseguinte, não tem senão

que usar dêles corretamente. Na espécie humana, ao contrário,

além desta assimilação material, é necessária uma assimilação

espiritual cultural, orientando a maturação no sentido da

realização completa das possibilidades humanas. O animal,

salvo deficiência patológica do ambiente material de

crescimento e de seus recursos orgânicos, é obrigado a ser êle

mesmo. Se existem diferenças individuais, elas se realizam

automàticamente, sem influência maior do ambiente. O homem,

ao contrário, fica bem marcado pelo ambiente e sua realização

individual variará conforme as condições da assimilação cultural.

É perfeitamente legítimo que julguemos o valor destas diversas

possibilidades, pois algumas dão desdobramentos autênticos,

verdadeiros sucessos enquanto que

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120 O DOMÍNIO DE 81

outras são fracassos, por ter um ambiente insuficiente feito

abordar a humanização. Se insuficiências leves ou tardias não

são mutilações graves e definitivas, há outras importantes e

precoces que irão marcar definitivamente a criança e privá-la de

certas aptidões, ainda que admissíveis hereditàriamente.

Também aqui, numa escala contínua das condições de

ambiente, desde o mais até o menos humanizante, veremos

surgir degraus de descontinuidade, que introduzem uma ver-

dadeira diferença de natureza entre um patológico extremo

definitivo e um simples retardamento recuperável eventual-

mente. Duplo degrau: degrau de nível cultural, abaixo do qual o

homem normal será forçosamente um sub-homem e degrau de

crescimento, pois o que não foi realizado em certos estados da

maturação se torna sempre mais difícil, por ir perdendo o

cérebro suas possibilidades.

O êrro do racismo não está em reconhecer diferenças de

inferioridade ou de superioridade entre os grupos humanos

(coisa evidente) mas sim atribuir tais diferenças à constituição

hereditária, quando se trata apenas de níveis atingidos pela

superioridade ou inferioridade cultural do ambiente. Notemos

também que não convém exagerar o valor das superioridades

intelectuais sôbre o bom senso, sôbre a inteligência prática e

principalmente sôbre o coração, pois nestas últimas aquêles que

julgamos inferiores são superiores a nós. Também não se trata

aqui de superioridade absoluta de um tipo de cultura, mas de re-

tardamento ou avanço de desenvolvimento e de maturação

desta cultura na sua caminhada para a Verdade, que é uma,

apesar de serem muitos os caminhos para ela.

Nada mais útil do que a patologia social para nos fazer

compreender esta maleabilidade do homem pelo ambiente e por

conseguinte a necessidade neurofisiológica de

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A EDUCAÇAO DA VONTADE 121

uma boa educação. São bem conhecidos os casos de desu- manização de meninos seqüestrados, normais originalmente, mas que por falta de contato natural ou humano, se tornaram idiotas. Sua inteligência não se pôde desenvolver, prova esta bastante de que a espontaneidade da maturação cerebral é orientada pelo ambiente. Uma criança impedida de andar durante o período, no qual o menino normal parece exercitar-se nisto, ràpidamente se toma capaz de fazê-lo na idade conveniente. “Parece”, dissemos, pois que de fato, não se trata senão de manifestações espontâneas da maturação dos feixes piramidais. Ao contrário, um macaco a que se costuraram as pálpebras, quando do nascimento, perde sua aptidão para ver, pois são indispensáveis as mensagens da vista para a construção correta do cérebro visual. No caso dos meninos-lôbos da Índia (caso bem conhecido de meninos selvagens que cres-ceram fora da civilização) a perda das possibilidades é menor porque a vida em um ambiente natural e em sociedade, ainda que de lôbos, favorece mais a maturação cé- rebro-psíquica. Há simplesmente uma grande desumani- zação (simultâneamente com uma lupificação, traduzindo sem dúvida alguma a inteligência humana, pois que nenhum animal teria uma tal potência de imitação de comportamentos contrários à sua natureza): corridas a 4 “patas”, uivos lupinos, sem expressão emotiva humana, sem linguagem articulada. A reeducação é difícü, especialmente a da linguagem, uma vez que já tiver sido passada a idade em que a criança, graças às aptidões heredi-tárias de seu cérebro, começa a modular os sons, época na qual deve êle normalmente aprender a imitar a língua daqueles com quem vive e que lhe darão seu nível cultural. Se a articulação se tomar inútil por falta de utilidade social, a criança perderá, em grande parte, tal aptidão.

Completamente diferente é o caso dos surdos-mudos aão

reeducados a qualquer forma de linguagem, pois suas

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deficiências são menos graves. Não falando porque a palavra lhes é inútil, por não a ouvirem, êles não desenvolvem a própria aptidão, donde a mudez dêles. Mas criados em sociedade humana, são menos gravemente desumaniza- dos, o que explica porque guardam melhor a possibilidade de aprender a linguagem humana. Ê sabido porém, que quanto mais depressa forem reeducados, menos graves serão as suas deficiências. Temos que levar em conta êstes exemplos para compreender a importância das deficiências do ambiente e da educação na expansão das aptidões. Não é de modo algum indiferente para nós têrmos vivido nossa infância em um ambiente humanamente rico ou ao contrário, deficiente. As novidades científicas tão duras de assimilar pelo adulto esclerosado nas suas rotinas, são bem mais acessíveis em um ensino precoce dos jovens.

Exemplo inverso dos meninos-lôbos, é o do acesso dos

jovens selvagens à vida civilizada. Antes dos 5 anos tudo é

possível em função das possibilidades individuais. Depois dos 5

anos há possibilidades perdidas pois o social já orientou

demasiado a maturação. Adaptar um homem de Cro-Magnon

adulto à nossa cultura seria sem dúvida, impossível, mas não

haveria dificuldades com uma criancinha, pois ela possuiria as

aptidões.

Ê muito importante não exagerar demasiado a here-

ditariedade no homem. Ela causa diferenças individuais

constitutivas, diferenças de tipos intelectuais, de aptidões e de

gôsto entre as civilizações, as etnias. Mas as mais grosseiras

diferenças vêm do ambiente educativo; da maneira pela qual

êste orientou a realização das virtualida- des de origem. Todos

os homens são da raça humana e tôdas as etnias têm uma

repartição análoga de inteligências. O que faz um indivíduo

inferior a outro (se fizermos abstração dos falsos preconceitos) é

a insuficiência

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de formação educativa humanizante. Se se tratasse sim-

plesmente da hereditariedade, poder-se-ia falar de fatalidade

natural e sonhar de melhorar algum dia os ácidos nucléicos

(bem que seria mais fácil deteriorá-los). Mas, visto como o

responsável é o ambiente, não há fatalidade.Como não indignar-se, como não lutar diante do fato que

numerosos homens não podem, por deficiência de seu ambiente de juventude, realizar completamente suas possibilidades humanas, quer sejam êles das classes pobres quer homens de culturas e de economias de desenvolvimento retardado ou subdesenvolvimento? Que um homem tenha aptidões para ser um músico ou um cientista de gênio e que os azares do nascimento o impeçam de aceder ao nível e à utilização superior de sua própria inteligência, confinando-o a ser operário braçal ou selvagem nas profundezas das florestas africanas, eis uma injustiça, hoje inaceitável, pois que há remédio para ela. O crime da ignorância racista é precisamente justificar por ignorância científica uma tal injustiça. Nós nos indignamos facilmente do bárbaro século XIX, que punha meninos a trabalhar nas minas e nas fábricas, pensando não poder dispensá-los. Que dirá o futuro sôbre as barbáries de nosso século ignorante?

A neurofisiologia nos mostra com precisão a necessidade que há, para ser um Homem verdadeiro, de receber uma boa educação humanizante, progredindo em função da maturação biológica do cérebro que ela favorece. Se é necessária uma higiene da gravidez, particularmente prudente nos primeiros meses, quando o embrião está formando seus futuros órgãos, sob pena de graves monstruosidades, não é possível também, na infância e na adolescência preocupar-se apenas com a higiene física. A verdadeira educação é uma higiene de ordem superior, pois ela forma a personalidade, ensinando a utilizar os recursos cerebrais. E isto não é o supérfluo para o uso de uma elite, mas uma absoluta necessidade para, todos os homens.

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Sem entrarmos em todos estádios do desenvolvimento, desde o nascimento à idade adulta, cujo conhecimento permite adaptar a educação às possibilidades individuais, importa que recordemos aqui a significação de 3 períodos sucessivos: da infância até cêrca de 5 anos, da infância antes da puberdade e da adolescência.

Também aqui nós vivemos engolfados em preconceitos. Há um mito muito espalhado por culpa da psicopedagogia científica ocidental (que confunde objetividade científica com recusa positiva dos valores humanos) que o menino é como uma planta, que vinga num bom ambiente. Bastaria pois o bom ambiente e a boa hereditariedade para que tudo vá bem. Êrro gravíssimo, pois até a objetividade da pedagogia soviética nos afirma que o menino é, antes de tudo, uma consciência para formar.

PRÉ-EDUCAÇÃO DO MENINO.

Quando se fala de educação, visa-se mais freqüentemente a infância, pela tentação que temos, de pensar que ela é o momento mais importante. Ignoramos que o essencial é o que se passa antes, é a pré-educação que marca definitivamente e que está acabada, mais ou menos, aos 5 anos. Vemos assim no adolescente um homenzinho, que não tem lá muito mais que aprender, senão no plano intelectual.

Além disto, vemos esta educação da infância sob a forma escolar da instrução que visa dar certos mecanismos de base e os conhecimentos necessários para uma profissão. Ensinar a ser Homem, isto está fora das preocupações, pois vem por si mesmo! A cultura recua sem cessar diante da massa de pormenores a ingurgitar em todos os campos. O humanismo tradicional reservado a uma elite desaparece. Ignora-se completamente que a verdadeira cul

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A EDUCAÇAO DA VONTADE 125

tura é precisamente saber comportar-se como Homem. Para isto deveriam convergir todos os ramos da educação, quer se trate de conhecer as realizações do passado (humanismo dito literário) quer se trate do conhecimento científico do mundo e do homem. Prefere-se porém, ensinar a gramática latina em tôdas as suas minudências, os mecanismos pormenorizados da climatologia e a última descoberta sôbre as prothalias de Fougères. E êstes jovens não saberão nunca o que é um cérebro sob o ponto de vista do equilíbrio humano, pois é preciso preservar a santa liberdade da opção das diversas morais, mantendo a. todo custo uma estúpida separação entre a ciência e a vida.

A meninice antes dos 5 anos, é o período capital, tão capital quanto as primeiras semanas do desenvolvimento intra-uterino. Não se trata mais de ter um cérebro com as células, mas sim que êste cérebro se acabe de formar anatòmicamente, tomando suas interconexões e que o menino aprenda a utilizá-lo. Sendo um ser social que tem necessidade dos outros, o menino vai receber dos outros mas especialmente do ambiente familiar, a imagem daquilo que deve ser do que deve fazer. Tudo isto êle deve poder aceitar sem desequilíbrio.

Para confirmar a importância formadora dêste período, no

qual não vemos freqüentemente senão a maturação biológica do

cérebro, condicionando os progressos psicológicos, é preciso

levar em conta a patologia. Não somente recordemos os

meninos dessocializados como os meninos- -lôbos, mas também

a descoberta das perturbações do hos- 2ntalismo,

demonstrando que a higiene necessária à saúde psicossomática

e até ao crescimento físico não é só e simplesmente material.

Esta higiene comporta a afeição maternal pois o menino

materialmente bem cuidado, mas sem tal afeição, sofre

gravemente na sua saúde física como também não está

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em boas condições para seu equilíbrio psicológico. O grande mérito da psicanálise, infelizmente em um vocabulário freqüentemente contestável (majoração da sexualidade em terminologia de genitalidade adulta, minimizando o afetivo e o social) foi insistir sôbre a importância dos choques, principalmente afetivos da infância. Ela nos mostrou como as neuroses do adulto provêm precisamente dêsses erros pré-educativos de pais, que pensam poder ignorar tudo da psicofisiologia da criança. Quando julgamos o caráter, os defeitos e as qualidades de um menino de 5 anos, temos a tendência de não ver senão a hereditariedade, esquecendo a imensa influência dos primeiros anos que orientaram as tendências hereditárias. Fala-se de meninos perversos, quando se deveria falar de meninos pervertidos, que eram talvez, no máximo, os mais pervertíveis.

O bebê deve aprender tudo. Ao mesmo tempo que se

amadurece seu cérebro, incapaz de funcionar a quando do

nascimento, vai êle, brincando no próprio berço, formando as

praxias e as gnosias, aprendendo a distinguir-se do mundo

exterior. Forma então em seu cérebro a imagem do próprio Eu e

a utiliza para a personalização de sua conduta, havendo assim o

nascimento de uma vontade própria que se opõe ao ambiente.

Há aqui uma espécie de auto-educa- ção de base que irá dar

ao pensamento e à consciência elementares sua plena dimensão

humana, quando, baseando-se sôbre as aptidões inatas à

vocalização, vai ser aprendida a língua cultural. Com ela o

menino poderá querer melhor, chegando então a dizer: Eu

quero!

Qualquer que seja porém, a importância do papel da auto-

educação e da influência do ambiente, esta aquisição das bases

da vontade fica sempre muito automática e pouco refletida. Vai

ser necessário, num segundo estádio, sair desta vontade

espontânea para chegar a uma vontade verdadeira, que é

refletida. Nisto a deficiência é total,

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À EDUCAÇAO DA VONTADE 127

pois que os educadores se limitam a orientar a vontade de seus pupilos por meio de interditos ou de ordens, pouco justificados, sem procurar desenvolver a dita Vontade. O adulto teria necessidade de uma vontade bem diferente desta primeira vontade automática da infância. Infelizmente, nada é feito para dar-lha e isto é tanto mais grave quanto é certo que as condições educativas são nisto muito deficientes. Uma educação da vontade, que é uma promoção à verdadeira liberdade, não se pode conceber que seja fácil. Ê preciso ensinar o esforço do Domínio de si mesmo, esforço difícil, mas recompensado pela alegria do sucesso obtido por si mesmo. Aquilo que a criança realizava no seu berço, aquelas múltiplas e difíceis proezas sen- soriais e motoras, que felizmente ninguém lhe podia proi- brir, o menino, o adolescente, o adulto deve continuá-las no plano das condutas humanas.

Em razão de a psicanálise, muito justamente, prevenir contra a aprendizagem demasiadamente autoritária, que perturba a espontaneidade do menino e é fator de complexos nevrosantes, muitos pedagogos caíram nô extremo oposto de achar perigo em qualquer grau de autoridade. Segundo 'êles o menino perderia sua espontaneidade. Êstes pedagogos não percebem que se o menino educado autoritàriamente não chega a compreender e a conseguir a verdadeira direção voluntária autônoma de sua conduta, outro tanto acontece com aquele que não foi educado e se tornará prêsa fácil de necessidades e maus hábitos, que lhe farão recusar tôda imposição social. Habituar o menino, proporcionalmente à sua idade, a querer e a saber que-rer é certamente uma emprêsa delicada, mas deve ser a meta dos pais e educadores, cuidadosos de evitar os erros complementares despersonalizantes do excesso e de ausência da autoridade.

Para ser equilibrada, a relação entre o menino e o edu-cador, como de resto, tôda relação social, deve tentar ser,

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uma relação não de sujeito a objeto, de tirano a escravo, (pouco importando qual dos dois seja o escravo) mas uma relação interpessoal, isto é, personalizante. Ê mais verdadeiro ainda, não ser o menino um animal para domesticar, mas um ser humano para transformar em uma pessoa autêntica capaz de vontade refletida. A relação deve pois basear-se numa certa igualdade respeitosa, no reconhecimento da complementariedade, que é, aqui, a diferença de situação entre o adulto acabado e o menino em formação. É também uma lei de higiene biológica psicossomática que o Homem, ser social, não encontra a própria saúde (nem o menino as condições convenientes de desenvolvimento) senão em relações sociais “optima”, que assegurem sua necessidade dos outros, mas que respeitem a necessidade de expansão limitada de cada um.

Não é psicobiològicamente bom nem ser demasiadamente

constrangido nem demasiadamente relaxado. O equilíbrio está

num “optimum”, numa dialética equilibrada de dar e de receber,

que não é possível conceber sem amor. Mas amar

verdadeiramente alguém é querer seu bem e não desequilibrá-lo

por um excesso de pseudo-amor ou por ausência premeditada

de amor.

Esta relação a outrem, da qual o menino tem vitalmente

necessidade, não lhe fornece apenas autorizações ou

constrangimentos, ocasiões estas de formar-se para a liberdade.

Inicialmente, é ela e bem antes do acordar da plena consciência,

a apresentação de um modêlo para imitar. Tomando consciência

de si mesmo, o menino se reconhece como membro da família

humana e deve aceitar sua situação sociológica de

masculinidade ou de feminilidade, condicionada por sua

anatomia. A imagem cerebral refletida de seu corpo é

socializada. Tudo quanto a psicanálise freudiana nos descreveu

dramàticamente, sob o têr- mo de Complexo de Édipo ou de

castração, utilizando os

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A EDUCAÇAO DA VONTADE 129

exageros dos desvios patológicos, corresponde à realidade profunda das primeiras relações do menino para com sua mãe, protótipo daquilo que êle é ou não é, e para com seu pai. O principal é social e afetivo, antes de ser sexual, mas terá forçosamente, uma modalidade sexual, uma repercussão sôbre a expansão futura da sexualidade. Para poder saber querer, mais tarde, é preciso inicialmente, ter podido situar-se bem e aceitar sua própria situação no mundo, no seio da humanidade. Insistindo sôbre a importância do social, fonte de neuroses de superioridade ou de inferioridade, Adler e, mais tarde, K. Hor- ney trouxeram um complemento indispensável à obra de Freud. A compensação da inferioridade em superioridade neurótica é a fonte de falsas pseudo-vontades autoritárias, máscaras de abulias.

O animal que não vive senão na ação, não encara o futuro, ajudando-se de um passado, evocado pela personalização das lembranças. Tudo quanto o marcou e condicionou, se manifesta em sua conduta sem que disto tome êle consciência. A plena dimensão humana, ao contrário, é realizada quando a conduta é julgada pela consciência refletida. Não se trata porém de um Eu ideal, mas da maneira equilibrada ou não, pela qual foi formado êste Eu na meninice. Para saber querer é preciso um Eu normal, cuja atividade não seja limitada por complexos e recalques, ca-paz, isto é, de verdadeiro Domínio de si mesmo. Êste Eu normal se forma na luta entre o menino e o ambiente, especialmente a vontade dos pais. Seu equilíbrio exige pois um “optimum” entre uma firmeza excessiva, que impediria de aprender a querer pessoalmente e um liberalismo exagerado, que nada impondo, impediria o esforço formador. O segrêdo do equilíbrio ulterior (residindo aqui a dificuldade dêle) não está na educação escolar de um menino de 5 ou 6 anos, mas no ambiente e nas condições de vida de um bebê, que toma a pouco e pouco consciência daquilo que

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êle é. Aqui qualquer êrro é fácil, mas especialmente grave, pois não se trata de responder a perguntas. O equilíbrio e a vontade dos pais, o mútuo amor dêles são a garantia desta pré-educação.

Erradamente se escarnece da terminologia freudiana, bem canhestra quando fala de estádio oral ou anal, ge- nitalizando-os. É perfeitamente exato que a primeira relação social da criança, os primeiros conflitos formadores entre ela e o mundo adulto, a primeira escolha entre mo- ralismo desequilibrante, amoralismo ou verdadeira moral e higiene pessoal começa a propósito da satisfação das primeiras necessidades: de alimentos, de evacuação e limpeza, de sono, de afeição e de relações sociais. E é desde ês- tes momentos que é necessário evitar os escolhos complementares do autoritarismo e do liberalismo, cortando o primeiro tôda espontaneidade e o segundo deixando desenvolver-se uma espontaneidade descontrolada e por conseguinte desumana, porque a-social. Como poderia o menino formar uma consciência normal se, no momento em que é maleável, uma cêra virgem, possuindo tôdas as possibilidades, existir, ainda que inconscientemente, uma oposição total entre a tendência à norma nêle inscrita e aquilo que lhe mostra e impõe o ambiente?

Aquilo que se lhe propõe deve ser tentador para sua

afetividade, ainda que se trate de uma imposição momen-

tâneamente desagradável. Diante da insuficiência da cons-

ciência tudo é aprendizagem, no princípio, mas não uma

aprendizagem animal e sim uma aprendizagem formadora de

uma consciência, que acorda e que deve encarregar-se da

própria conduta, saber querer verdadeiramente e não apenas

aceitar condicionamentos.

Esta primeira educação suscitava poucos problemas antigamente, em mundo relativamente estável, para o qual era preciso preparar o menino, que afinal, pouco teria que

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servir-se da própria liberdade. Agora, não é mais assim, pois o indivíduo não tem mais constrangimentos sociais que o mantenham equilibrado.

O homem quer sentir-se libertado. Mas para ser livre é preciso ser forte. Mas como esta fôrça é deficiente, vivemos sobretudo os inconvenientes de uma tal necessária liberação, êste mundo incoerente, fator dos desequilíbrios da fadiga nervosa.

Como poderiam pais não-formados, não plenamente adultos, “surmenés”, ser bons educadores ou sequer bons modelos? Vivemos com o preconceito que ser pai é coisa espontânea, natural. No entanto, como em tudo que é natural-humano, a paternidade exige uma difícil preparação, que deveria ser considerada como um dever. Está aqui a verdadeira procriação voluntária humana, freqüentemente apresentada hoje no simplismo de técnicas contraceptivas, pretendendo suprir a ausência da vontade. Aprender a ser mãe e não fiar-se a um instinto deficiente e mais ainda aprender a ser pai (para o que o instinto não é apenas deficiente, mas ausente) são aprendizagens ambas necessárias.

Mas é necessária esta Escola de Pais não apenas para que saibam comportar-se corretamente com seus filhos, mas em primeiro lugar, para serem êles mesmos adultos e equilibrados. Não é fácil ser educador senão tendo já compreendido e vivido o que é ser Homem e também o perigo das deficiências. Se é difícil ensinar às crianças a saber querer, é porque o pedagogo não sabe exatamente o que seja saber querer e sua necessidade. Damos aos meninos lamentáveis exemplos, precisamente à meninice, pensando erradamente não serem êles notados.

Aquilo que todos começam a reconhecer no plano sexual é também válido de um modo geral. Se o menino pode ficar definitivamente nevrosado por espetáculos se

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xuais precoces (que êle não pôde compreender e dos quai9 viu apenas o aspecto agressivo), poderá também ficar igualmente nevrosado por todos os desequilíbrios do mundo dos adultos e especialmente do ambiente familiar. Como poderá o menino desejar ser um homem normal, se os espetáculos que lhe oferecemos são em grande parte contraproducentes?

Como poderá uma menina achar seu equilíbrio se sua anatomia é apresentada como negativa, quando a superioridade quase neurótica do homem ostenta a positivida- de do próprio sexo e principalmente quando ela percebe os inconvenientes sociológicos de ser mulher? Como pode tuna mãe, insatisfeita, ainda que legitimamente, de sua condição feminina e do comportamento do marido, levar os filhos a ter uma personalidade sexual equilibrada? É bem sabido como as neuroses de inversão sexual, esta impossibilidade de querer uma sexualidade normal, provém de uma perturbação educativa, que não permitiu à criança aceitar ser do próprio sexo. Ê isto que obriga a necessidade sexual a satisfazer-se de um modo anormal, a menos que não fique totalmente inibida pelo recalque.

Nunca será demasiada a insistência que fizermos sôbre

esta humanização educativa da meninice, ensinando a criança a

ser um Homem normal, apto a saber querer ou afastando-a disto

e falseando-lhe o caráter. Aqui também, é sôbre uma

continuidade de faltas educativas, levando a maus hábitos, que

se estabelece a descontinuidade da plena patologia neurótica.

Apesar disto, o que realmente importa, ainda desejando

que tais estádios não falhem, é não deixar-se cair num

pessimismo completo, se assim acontecer. Excetuando o caso

da completa patologia neurótica, difícil de corrigir, fora os casos

dos ambientes anormais desumanizantes, simbolizados pelo

caso extremo dos meninos-lôbos, é sempre

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A. EDUCAÇAO DA VONTADE 133

possível uma posterior correção. O menino de 5 anos já atingiu um certo acabamento elementar da própria personalidade, mas esta fica ainda muito longe de se completar, bem que comportando já o essencial.

APRENDER A SER PARA SABER VIVER: A VERDADEIRA EDUCAÇÃO.

É precisamente porque o início nem sempre foi satisfatório que a educação ulterior deve sê-lo. Ora, é freqüente que pouquíssimos sejam aquêles que se ocupem de aprender a ser e a viver humanamente. Muitos se contentam com uma aprendizagem livresca ou técnica a fim de encherem a cabeça inexistente, pois incapaz de assimilar o que se lhe apresenta. A Moral aparece como um constrangimento social ou religioso, oposto às tendências habituais e hipocritamente imposta por adultos que mostram perfeitamente ignorá-la. Tudo é feito para favorecer a passividade, chamada de sabedoria. Como, de resto, fazer de outra maneira, ainda sentindo a necessidade pedagógica, no monstruoso contexto atual de aulas sobrecarregadas, onde a educação é impossível?

Ê claro que múltiplos esforços já foram realizados em favor de um educação ativa, dita nova, sob a iniciativa de numerosos precursores competentes. Infelizmente tais tentativas ficaram isoladas, apesar de seus sucessos. Passa-se quase sempre da escola maternal formadora e expansiva ao incoerente intelectualimo obrigatório das classes primárias. Note-se principalmente que da psicanálise e da pedagogia nova não se reteve senão o aspecto negativo, o perigo da aprendizagem autoritária, impossibilitando-se assim a educação. Foi esquecido o principal, o essencial, isto é, tôda a pedagogia da formação da Liberdade e da Vontade no esforço pessoal, num quadro coletivo à base de colaboração e não de concorrência egoísta.

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134 O DOMÍNIO DE SI

O resultado do impasse da educação atual, na qual um menino ineducado é submetido, antes de tempo, às depravações de um mundo desorientado pelos espetáculos das “mariposas”, dos cinemas e da rádio e televisão, é a generalização de uma perversão por ausência de educação, manifestada em todos os ambientes e em todos os países. Estamos falando do fenômeno dos “play-boys”, que procuram achar um sentido na vida, lutando contra o tédio pela agressividade e sexualidade.

Êles não são nem doentes nem culpados. São deseducados, perigosos porque não têm a hipocrisia dos adultos, que não obedecem à Moral senão em certas circunstâncias. Não são os “play-boys” que devem ser repreendidos por deseducados ou por não terem encontrado o sentido da vida. Os adultos é que não souberam educá-los e não souberam dar-lhes o sentido da vida, dando-lhes o mau exemplo de pregar o Bem sem cumpri-lo. Infelizmente os adultos não são sequer capazes de contra-atacar, rejeitando a hipocrisia moralista e querendo o Bem.

Quando é que em lugar de denunciar os erros dos outros,

os homens ocidentais e orientais compreenderão melhor, de um

lado, a desumanização complementar pela anarquia líbero-

tecnocrática e de outro lado, o totalitarismo de um estatismo

também êle tecnocrata? O exemplo da Suécia é, neste ponto,

particularmente deplorável. Lá, num país em que tudo é feito

para lutar contra a miséria, não há verdadeira promoção

humana, pois nada é feito para suscitar a iniciativa individual,

fonte do progresso autêntico. O Estado lá faz tudo e os homens

se entediam numa passividade de espera, não podendo

encontrar a verdadeira felicidade na dissociação entre conforto e

moral, higiente do corpo e da alma.

Entre as tentativas feitas atualmente para sair dos erros

pedagógicos, devemos assinalar uma, particularmen

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A EDUCAÇAO DA VONTADE 135

te interessante, pois que o bom senso intuitivo prático de seus promotores se encontrou com a verdade neurofisioló- gica. Nas escolas técnicas da Câmara de Comércio de Paris, chegam pré-adolescentes incapazes de fixar a própria atenção para aprender qualquer coisa que seja. Em lugar de esforçar-se ineficazmente constrangendo-os a estudar, Mlle. Ramain introduziu uma pré-

formação, visando dar ao aluno aquilo que o ensino ordinário considera espontâneo. Exercícios muito simples ensinam a aprender a sentir, a controlar os próprios gestos, a fixar a atenção, a saber concentrar-se. Resumindo: passando tôda a dinâmica automática do cérebro ao controle da vontade, numa educação que não é uma luta desesperada em um esforço ineficaz, que chamamos de Querer, mas a aquisição, relativamente fácil, de um automatismo de controle refletido e de utilização correta completa do cérebro.

Depois de tal preparação, o aluno que parecia preguiçoso

ou idiota, se torna subitamente apto a qualquer educação,

intelectual ou técnica. A originalidade dest.a iniciativa é que ela

não se restringe apenas a uma experiência isolada e fugidia,

mas levada pelo entusiasmo e dinamismo de seus promotores

quer alastrar-se cada vez mais em todos os ambientes.

É claro que todo e qualquer educador, ainda com es-

pecialização no seu ensino, poderia usar êste espírito formador.

Várias iniciativas interessantes já foram feitas para orientar

neste sentido o ensino doméstico, e educação física etc. Mas

para aí chegar deve o educador fazer um esforço reflexivo

pessoal. Deve perceber que para tornar- -se um verdadeiro

educador, deve também êle praticar esta educação da atenção e

do Domínio de si. Isto lhe permitirá, apesar das circunstâncias,

uma vida mais equilibrada e mais feliz, protegendo-se assim

contra um envelhecimento prematuro.

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136 O DOMÍNIO DE SI

Aquilo que assim fôr obtido nesta formação humana no plano escolar, repercutirá sôbre toda a vida do educado, que se tomou, “ipso facto”, mais consciente e responsável, mais apto para lutar contra a fadiga nervosa e as múltiplas tentações desumanizantes de um mundo desequilibrado. Não é pois, precisamente pregando a Moral, propondo uma continência negativa, que se conseguirá lutar contra o desencadeamento sexual alienador e fonte das piores catástrofes sociais, mas ensinando êste Domínio de si mesmo, aplicado à sexualidade. Haverá então uma continência positiva, daquele, isto é, que se forma, pelo domínio cerebral, para ser plenamente adulto e livre, para ser um Homem verdadeiro e não a ridícula e miserável caricatura de um subanimal, oferecida pela humanidade atual.

IMPORTÂNCIA HUMANA DA ADOLESCÊNCIA.

Aquêle que, depois de bons hábitos da meninice, aprendeu a pouco e pouco a voluntarizar, isto é, personalizar o Domínio de si, compreendendo cada vez melhor o que seja conduzir-se como Homem, está antecipadamente defendido contra as dificuldades da adolescência. Diante do aparecimento constrangedor das necessidades sexuais na puberdade, saberá fazer o esforço necessário para não se deixar arrastar por elas.

A adolescência não é senão um passo a mais no caminho da maturidade. Não é a maturidade. É tão prejudicial considerar o adolescente como um adulto, como persistir a constrangê-lo como um menino. Não temos geralmente, compreendido a significação psicológica dêste estádio da adolescência, própria só do Homem. O adolescente não está apto a arcar com as responsabilidades do adulto. Deve ainda aprender e daí continuar em disponibilidade para isto. Apesar de ter mais necessidade de autonomia

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A EDUCAÇAO DA VONTADE 137

e de responsabilidade, não deve deixar-se levar por seus desejos de ser prematuramente tratado como adulto, quer na profissão, quer em família. Não está ainda apto para isto. Pelo contrário, isto o impediria de acabar de formar-se, tornar-se verdadeiramente adulto. Esta situação especial do adolescente, perfeitamente percebida no plano da higiene do crescimento, deve ser também reconhecida no plano psicológico. A adolescência é um período de aprendizagem da relação equilibrada para com outrem, social ou sexualmente falando. Ela comporta a maturação de uma afeti- vidade adulta, isto é, sexualidade, que de início, egoística e narcisicamente voltada para a satisfação pessoal, deve tornar-se altruísta e abrir-se para o intercâmbio do dar e do receber.

São conhecidos os conselhos dados tradicionalmente aos

adolescentes, conselhos apoiados numa incompreensão total da

contribuição da psicanálise, que condenou o mo- ralismo

puritano mas não o verdadeiro Domínio de si mesmo. Bastaria

para ser normal, que o adolescente exercesse sua sexualidade

desde a puberdade, evitando porém de fixá-las em um

casamento precoce e êste sem procriação! É impossível dar

conselhos mais desumanizantes, pois é tratar o adolescente

como um chimpanzé púbere e adulto, negligenciando por

completo, a significação formadora da adolescência humana. Tal

é, objetivamente, o dinamismo da natureza humana que seria

vão negar poder o adolescente tornar-se verdadeiro adulto no

plano afetivo e sexual (o mais importante para sua vida

individual e social), um ser livre e capaz de vontade, senão

lutando contra as tentações naturais de desnaturação de suas

necessidades. E isto, não ensinando a ignorá-las, a recalcá- -las,

a desprezá-las, mas a dominá-las, pelo menos enquanto não

puder dar-lhes uma satisfação normal e humana em um

matrimônio definitivo, que exige a maturidade adulta.

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138 o DOMÍNIO DE SI

O maior obstáculo à vontade são os maus hábitos do

adolescente, que quer fazer de adulto, isto é, imitar os erros de

um adulto, que precisamente não é adulto.

Também neste ponto é necessário substituir a ineficaz

moral negativa por uma desdobrada e higiênica educação

cerebral do Domínio de si mesmo, que permitirá ser um Homem

verdadeiro. Não adquirir maus hábitos alie- nadores, mas sim

bons hábitos formadores. Abandonar o preconceito de que seria

normal e natural deixar-se levar pela natureza, mas sim lutar

contra ela, obedecendo à Moral, por razões sociais ou religiosas,

para compreender que estas razões sociais e religiosas nos

ajudam a tornar- -nos Homens verdadeiros. Se não agirmos

assim, uma falsa Moral desencarnada se satisfará com o

desastroso casamento dos adolescentes, como solução para a

ausência de Domínio de si mesmos, que êles demonstram. Isto

os instalará num estado não-adulto, que levará o casamento ao

fracasso. Ou então a mesma falsa Moral aceitará o

desencadeamento, a falta de vontade desde o momento do

casamento, pois então, acharão que não têm mais necessidade

de fazer esforços. Chegar-se-á assim a tôda essa

monstruosidade conjugal de indivíduos deseducados, que se

crêem porém, normais, apesar de não serem senão lamentáveis

fracassos dos divórcios, dos adultérios, da prostituição, do

abôrto e da contracepção. Tudo isto, trágicas soluções para a

ausência de vontade e cujas legalizações permitirão ainda mais

ausência de vontade e mais desuma- nização.

Os problemas do domínio sexual são muito importantes pois

somente o verdadeiro Domínio de si mesmo concede ser adulto,

isto é, estar no verdadeiro estado de adulto, que é o esforço

permanente na recusa às tentações, apesar dos bons hábitos.

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A EDUCAÇAO DA VONTADE 139

Mas somente o Domínio geral de si mesmo é que pode levar ao domínio sexual. A relação homem-mulher não é senão um caso particular de relação social humana e a personalização desta relação é válida para todos os casos.

Não é adulto senão aquêle que sabe dominar-se e tratar os outros como pessoas responsáveis, guardar sua própria dignidade, respeitando a dos outros. Na relação, bem freqüente, entre dono e escravo, não é apenas o escravo que fica despersonalizado, mas também o dono. Não é possível ao homem guardar o próprio equilíbrio fazendo-se de Deus, de falso Deus! O Deus verdadeiro é libertador e personalizante e não um ídolo constrangedor e alienador.

O segrêdo do Domínio de si mesmo é guardar lucidamente seu lugar no “optimum”, é recusar tanto um excesso de abaixamento quanto um excesso de elevação. Também aqui somente a verdadeira educação pode encaminhar tudo para o melhor.

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6Civilização e Vontade

PROGRESSO CULTURAL E CÉREBRO.

Acabamos de insistir sôbre o dinamismo da personalização do homem ao longo do ciclo vital individual desde a concepção até a morte. Ao homem não basta apenas ter um cérebro (o que é uma aptidão hereditária espêcífica). Não é êle adulto senão em um ambiente cultural humano, que lhe permite utilizar as possibilidades do próprio cérebro, tendo necessidade outrossim de uma boa educação, que o faça aprender a saber querer a fim de chegar assim ao domínio da própria conduta. Segundo as condições do ambiente poderá o Homem humanizar-se ou desumanizar-se, ainda que as aptidões hereditárias tenham sido idênticas de início.

Aquilo que faz um ambiente humanizante é ser um ambiente humano fornecendo as relações sociais, das quais tem o indivíduo precisão e mergulhando-o numa ambiên- cia cultural, fruto das descobertas das gerações desaparecidas, uma espécie de nova herança, não inata, mas adquirida e transmitida por uma educação, na qual a linguagem tem papel preponderante. A riqueza de nosso pensa-

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142 O DOMÍNIO DE SI

mento depende antes de tudo da riqueza da língua, que aprendemos e do nível cultural do nosso ambiente de nas-cimento e de educação.

Esta socialização cultural que condiciona o desdobramento de todo o nosso ser vai dar à espécie humana um dinamismo de uma ordem, que falta ao animal. É o progresso histórico. A situação do indivíduo é condicionada pela sua situação histórica na humanidade. As abelhas, animais de natureza social como o homem, não mudaram desde a origem da própria espécie: nenhum progresso nos seus costumes sociais, baseados sôbre o instinto e sôbre uma parte mínima de aprendizagem. Ao contrário, graças à sua inteligência, o homem é suscetível de invenções, de descobertas, podendo explicá-las a outrem e fazendo-as passar assim para o acervo cultural coletivo, que elas contribuem a fazer progredir. É pelo cultural que nós nos humanizamos. O mosaico de níveis de cultura nas diversas civilizações à face da terra tem uma significação que não é apenas de azar, pois corresponde a um progresso histórico. Certas culturas estão avançadas, outras, atrasadas ou até em regressão. Humanizando-se, como se humaniza, pela cultura, pode o Homem mais bem humanizar-se hoje do que antigamente, se pertencer a uma cultura avançada.

Para compreender a natureza da espécie humana é

necessário insistir ao mesmo tempo sôbre seu aspecto social e

sôbre o fato do supercérebro. Difícil síntese que falta aos

partidários de um “biologismo” (isolando o homem em sua

solidão) e àqueles de um “sociologismo” (esquecendo que a

dimensão cultural própria do social humano é uma conseqüência

das aptidões cerebrais superiores). O social, sem o nível humano

do Cérebro, são costumes imutáveis das sociedades animais,

que não mudam de geração à geração, ainda quando, nêles, se

ajunta algo de

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CIVILIZAÇAO E VONTADE 143

aprendido àquilo que é inato, pois os animais não têm invenção.

O cérebro humano sem o social, seria inútil, pois que é sôbre a

relação humana, isto é, o Diálogo, que se constrói a maneira

humana de ser, de viver e de pensar.

Mas juntando-se o cérebro ao social, então temos o

progresso cultural, temos o sentido da história, que é a

utilização sempre cada vez melhor do cérebro para maior

consciência, para maior liberdade e por conseguinte, para uma

vontade cada vez mais lúcida e verdadeira. Êste Sentido da

História está inscrito na natureza do homem, que não pode

realizar plenamente suas possibilidades, senão pouco a pouco e

melhorando sempre. Mas êste Sentido da História, apesar de seu

caráter normal, não é simplesmente o automatismo da melhoria

do cérebro na evolução biológica.

Assim como o indivíduo pode desumanizar-se, apesar de

sua natureza normal, da mesma forma a sociedade pode evoluir

num sentido desumanizante. Bem que seja uma tendência

normal, o progresso pode permanecer apenas possível, pois

depende da livre vontade humana: ir no sentido da história

aparece como um dever de melhor equilíbrio. Daqui vêm as

incoerências e recuos das civilizações e que nos fazem esquecer

a grande linha ascendente esboçada pelos progressos do

conhecimento. Ê êrro dizer que qualquer estrutura social é boa

para o homem, assim como também é errado fazer juízo de

valor apenas desde o insuficiente ângulo de visão da adaptação.

Deve julgar- -se uma estrutura social pelo seu caráter normativo,

suas possibilidades de maior humanização. É êrro recusar o

progresso e afirmar que tudo era melhor antigamente, quando

justamente o homem, ignorante e impotente, não tinha plena

possibilidade de realizar-se. Mas também é êrro batizar como

progresso qualquer modificação, assim como pôr-se à procura

de um homem inteiramente nôvo.

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144 O DOMÍNIO DE 8J

O autênticamente nôvo é o que melhor realiza as possibilidades de origem; é o que é mais conforme à natureza e não aquilo que a desnatura.

NECESSIDADE DA HIGIENE SOCIAL.

O drama da nossa sociedade atual está em que todos nós teríamos a possibilidade de ser bem mais humanos. Seria insensato ter saudade do passado, quando o Homem estava desarmado por sua ignorância, assim como condenar o progresso científico e técnico, querendo voltar a uma vida natural, de fato desnaturadora para o homem. Mas os nostálgicos do passado têm razão de condenar as graves desnaturaçÕes do homem no mundo moderno. Não há por que condenar os progressos técnicos, mas sim os exageros, que tomam o Homem escravo da máquina, da técnica. Esta é que deve pôr-se ao serviço do homem e não aceitar senão o que fôr proveitoso a êste.

Devemos protestar contra todos os aspectos desumanos e desequilibrantes da vida moderna, precisamente porque temos hoje a possibilidade de criar condições de vida bem mais humanas. Ora, por nossa culpada ignorância e nossa irreflexão chegamos a desnaturar de tal modo o ambiente que o tomamos bem mais impróprio à vida humana do que o ambiente selvagem de antanho, de si tão pouco expansivo. A tribo primitiva com seus tabus era pouco favorável ao indivíduo.

Êste era tão pouco preservado quanto seu descendente, perdido entre a multidão das cidades modernas, nas quais apesar de tomado mais apto para maior liberdade, êle não consegue exercê-la. A tribo primitiva é um estádio superado, mas é necessário que encontremos condições atuais para a expansão do indivíduo. Êste problema não existe na sociedade animal simples, na qual os costumes sociais as

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CIVTLiIZAÇAO E VONTADE 145

seguram tudo o que é preciso para o equilíbrio individual. A vida socializada do homem moderno, especialmente nas cidades, não será equilibrante senão quando, aceitando a necessidade cerebral humana de refletir, estabelecermos regras de higiene

social (para defesa do equilíbrio e da saúde) assim como uma bio-sociologia e uma neuro-sociologia, infelizmente, desprezadas por sociólogos, perdidos nas descrições das estruturas sociais e esquecidos do sentido destas, que é justamente a melhor satisfação das verdadeiras necessidades humanas. Esquecidos por conseguinte a humanização do Homem e da sociedade.

HÁ PROGRESSO PARA O HOMEM?

Ê difícil ser justo para com o homem primitivo. Fre-qüentemente temos a tendência de diminuir demasiado a distância que o separa de nós. Isto equivale a negar o progresso histórico. Êste fato se dá, particularmente, quando se naturaliza exageradamente, a concepção cristã da queda de Adão no Pecado Original. Erradamente nós imaginamos (coisa que nem a mais estrita teologia jamais exigiu) que Adão, sem o Pecado Original teria gozado da expansão completa das possibilidades humanas, o que é um absurdo cientificamente falando. Estar no equilíbrio pleno de sua natureza humana, graças a relações autênticas com Deus não implica absolutamente a negação do caráter dinâmico dessa natureza, que inclui um progresso cultural de realização de geração em geração. Qualquer que seja a opção metafísica, o Homem não é um ser estático mas dinâmico.

Longe de opor, como se faz às vêzes, uma perfeição original (na qual a necessidade do progresso é imposto por uma queda, uma regressão) a uma imperfeição de origem exigindo o progresso, é mais certo professar a opinião mé

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146 O DOMÍNIO DE SI

dia, mais lógica, da necessidade do pregresso, mas de um progresso cuja evidente necessidade racional é obscurecida por falta de bom senso e de sabedoria. É isto justamente o que a teologia entende na expressão: “Pecado Original”, que, despojado de uma certa apresentação mítica, se torna uma forte probabilidade.

Esta fraqueza de origem nos homens os conduz a escolher a descida fácil do “laisser-aller” desumanizante, de preferência ao caminho difícil, mas humanizante. Mas fraqueza de origem em um ser responsável, pois é livre de escolher entre uma subida e uma descida, apesar da própria falta de lucidez, que atenua mas não anula a responsabilidade. O Pecado Original, objetivamente, é a incapacidade e a recusa pelo homem de assumir sua própria natureza e de reconhecer que a única verdadeira vontade humana é a vontade do Bem.

Relembrar porém, juntamente com a ciência, que a humanidade, partindo de muito baixo, está subindo conti-nuamente ainda que insuficientemente, não deve induzir ao êrro de rebaixar o homem primitivo, fazendo dêle um animal apenas aperfeiçoado. Nós ignoramos quando, na evolução dos pré-humanos, deva ser situado o passo da Reflexão. È porém certo que, por mais progressiva que seja a série nos estádios sucessivos de cerebralização, não deixou de haver para um certo grau de complexificação quantitativa do cérebro, a superação de uma mudança qualitativa, revelando a natureza diferente, humana, espiritual, do nôvo ser, florão da evolução. Por mais primitivo que tenha sido, o primeiro homem era Homem e não Animal. Tinha seu cérebro humano organicamente acabado, ainda que a insuficiência cultural não lhe permitia aproveitar-se plenamente dêle. Ter um cérebro humano é ter superado o passo da Reflexão, é ser apto à verdadeira Liberdade e a verdadeira Vontade, é ser capaz de Amor e de Religiosidade.

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CIVILIZAÇÃO E VONTADE 147

Ê tão grave êrro científico animalizar o primeiro homem

quanto atribuir-lhe a ciência infusa e tôdas as per- feições.O progresso histórico, progresso individual e sobretudo a

generalização dêste progresso a sempre maior número de indivíduos, pode parecer mínimo quando comparamos as elites da Grécia antiga às elites atuais ou então, quando, inversamente pomos em paralelo os Assírios e a tortura científica de nossa época.

Mas isto é um êrro. Se nós nos referirmos ao verdadeiro comêço da história, ao momento do passo da Reflexão, quando, isto é, o homem primitivo começou a revolucionar o mundo ao interrogar-se sôbre o próprio dever, se julgarmos o conjunto da humanidade antiga e da hodierna, veremos então um incontestável progresso. Aquilo que inicialmente era o apanágio de apenas alguns, que podiam refletir e pensar (graças à escravidão de outros) se toma, apesar de terríveis insuficiências, a propriedade de todos. Foi sem dúvida, um extraordinário progresso quando S. Paulo, rejeitado pelos intelectuais de Atenas, se dirigiu com sucesso aos doqueiros de Corinto, mais aptos, no fundo, a uma sã Reflexão. Antes de libertar os escravos era necessário restituir-lhes a dignidade humana. Êste era o verdadeiro caminho para a libertação dêles, sem que por isto queiramos minimizar a importância dos progressos eco-nômicos.

A VERDADEIRA LIBERTAÇÃO! SOCIALIZAÇÃO E NOOSFERA.

O que o homem quer é ser livre, sempre mais livre. Mas êle não compreendeu ainda a verdadeira Liberdade (esta escravidão voluntária ao Bem) que lhe é imposta pela obediência ao equilíbrio individual e social do seu organismo. Os progressos científicos e técnicos podem ser fa-

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148 D DOMÍNIO DÊ Si

tôres de libertação, mas somente com referência a esta expansão na natureza humana para o Bem. Senão, são alienadores.

Sendo o homem um ser de natureza social, nascido por mutação no seio de sociedades de primatas pré-humanos, teve inicialmente a própria liberdade circunscrita pelos usos sociais da sociedade primitiva, cuja origem conhecemos mal. Muito superiora, pois de uma natureza psicobiológica diferente da do animal, a personalidade do Homem não havia ainda plenamente emergido da consciência coletiva, que dificultava a plena realização de suas aptidões para a Liberdade. O progresso, baseado na ascensão cultural, (por conseguinte, sôbre um “processus” de aperfeiçoamento social) traduziu-se paradoxalmente pela emergência da pessoa individual, que pareceu um recuo na socialização. Isto porém é apenas uma ilusão, pois que êste progresso pessoal não tem realidade senão pelo progresso social.

Mas esta ilusão levou ao preconceito de opor individual a

social. No orgulho de nossa libertação (nesta adolescência de

uma humanidade que não tinha ainda atingido a maturidade,

mas que, como todo adolescente, tem o poder de destruir-se e

de destruir tudo) nós esquecemos de sermos sêres, nos quais a

socialização é constitutivo da natureza. Não sentimos mais em

nós a necessidade dos outros, a necessidade de amar e de

sermos amados; nós esquecemos que nosso psiquismo é

baseado no emprêgo de uma língua e assim cremos possível

crescer no egoísmo, que tomamos como uma afirmação de

nossa pessoa, quando é precisamente a negação dela.

Daqui tôda a ambiguidade de todo êsse admirável mo-

vimento de libertação, que anima o homem (a mulher)

modernas. Êle é a legítima recusa aos constrangimentos sociais

ou morais impostos e também, ao mesmo tempo, a afirmação

do direito do ser à própria livre realização. Mas,

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CIVILIZAÇAO E VONTADE 149

em lugar de substituir as imposições pela reflexão lúcida sôbre a

necessidade do Bem, confunde-se a Liberdade com a

possibilidade de fazer qualquer coisa, recusando assim a

distinção entre o Bem e o Mal. Querendo tomar-se desu-

manamente livre, o Homem moderno toma-se ainda mais

escravo que o Homem de outrora. Escravo de suas necessidades

orgânicas, que toma por infalíveis instintos. Escravo do

conformismo ou do anti-conformismo. Escravo de inconscientes

engenheiros, físicos, biólogos ou psicólogos que lhe dão

condições inumanas de vida. Pobre cobaia nas mãos de técnicos,

aprendizes de feiticeiros e sucumbindo por falta de higiene

mental aos inumeráveis desequilíbrios da fadiga nervosa!

Que contraste entre o mundo em que vivemos e a visão

profética objetiva do cientista, descrita por Teilhard de Chardin,

como a sociedade ideal, na qual, baseadas no Amor, as relações

sociais darão possibilidade de expansão aos indivíduos. Êste

aspecto feliz da socialização já foi indicado igualmente pela

“Mater et Magistra”.

Terá sido o profeta da Noosfera, Chardin, um utopis- ta,

esquecido do Mal? De modo nenhum. Nunca disse êle que a

Noosfera seria de fácil conquista. Simplesmente mostrou ser ela

o destino normal e natural do Homem, exigindo, isto é, um

considerável esforço de lucidez refletida e de vontade. Sendo o

destino normal de realização das possibilidades da natureza

humana, a Noosfera só nos parece utópica por causa de nossa

ignorância, que faz com que escolhamos os caminhos perigosos

da facilidade ou do falso moralismo.

A Noosfera, sociedade de liberdade ou melhor de libertação,

é a sociedade de personalização e de “amoriza- ção”, na qual

convergirão tôdas as vontades boas, tôdas alegremente

preocupadas pelo esforço de sucesso do indi

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150 O DOMÍNIO DE 81

víduo, quando êste se põe ao serviço de todos, procurando

melhorar também a si mesmo.O verdadeiro progresso da civilização é o progresso no

Querer melhor. O drama no caso é que, tendo a possibilidade de querer mais e melhor, queremos realmente pior que nossos antepassados, porque nosso hiperindividualis- mo fêz com que confundíssemos preconceitos sociais com o Bem, com a autêntica Moral.

Já é chegado o tempo de promovermos a salvação da vontade. A Noosfera tem necessidade do progresso técnico, mas não dessa Tecnosfera, a mais horrenda de suas caricaturas. O mundo moderno pede o suplemento de alma, de liberdade, de lucidez e de responsabilidade que está precisamente nos nossos recursos não-empregados e dilapidados. Mais do que um suplemento, uma utilização mais completa e mais autêntica. Ora, nós vamos no sentido contrário pois que o que pedimos à ciência não é ensinar-nos a querer o Bem, mas dispensar-nos simplesmente de querer, graças a pílulas, que nos forçam a fazer o que é preciso.

A índia possui em sua tradição espiritual tôda uma série de possibilidades de se realizar pelo Domínio de si mesmo. Estamos falando do treinamento de Yoga. Não seria mais justo ensinar tais técnicas de Domínio de si mesmo, não simplesmente para uma ascese superior de recusa do mundo, mas para permitir a todos um lugar nêle? Por que orientar os hindus para aquilo que o Ocidente tem de menos defensável? Num país em que os monges praticam o domínio sexual, por que se terá orientado o govêrno hindu, a fim de resolver o difícil problema demográfico, para a monstruosa solução da esterilização, segundo a facilidade ocidental, encorajada ainda por cima com um prêmio em dinheiro? Sob aparências realistas e progressistas, trata-se porém da pior regressão e desumanização.

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CIVILiIZAÇAO E VONTADE 151

A Moral também concorda com o conhecimento biológico do Homem. O Bem, isto é, o progresso no Querer melhor, não é simplesmente a utilização correta hierarquizada e normal das possibilidades do cérebro humano com relação ao cérebro animal, a fim de comportar-se como adulto plenamente responsável. É querer-se no sentido da história. Não ser escravo de inumana socialização, que tende a apagar o indivíduo diante da sociedade, mas trabalhar para que os homens possam ser cada vez melhores. Vale dizer: que saibam refletir e escolher com tôda a própria vontade um bem melhor, humanizar-se pessoalmente para serem humanizadores ; tomar em mão pessoalmente o próprio destino. Isto quer dizer realizar a própria salvação juntamente com a de tôda a humanidade dentro de uma verdadeira Moral, que é a dinâmica positiva de realização do ser, fôrça esta subentendida na própria história, quase esquecida, da palavra virtude.

É à luz dêste sentido da história que é preciso julgar, sem complacência e sem severidade, o drama do. mundo atual, que é o de humanidade adolescente, cabeluda, que quer ser livre quando ainda não aprendeu o que seja saber Querer. Isto porque uma irreal separação entre Natureza e Moral, daquilo que deveria ser a higiene suprema, um Moralismo desequilibrante.

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7As técnicas do Querer

CONHECER o PRÓPRIO BEM: A MORAL DO CÉREBRO.

Apesar de ser apto a querer e de não achar constitu- tivamente seu equilíbrio senão querendo aquilo que convém a si e aos outros, de uma maneira “optima”, o Homem não sabe

querer. Tem sido sempre assim, mas esta carência da vontade do Bem nunca foi tão perigosa quanto hodiernamente, numa sociedade em plena transformação, cada vez mais submetida às iniciativas do Homem. Querendo libertar-se e tendo o poder para isto, o Homem não pode verdadeiramente libertar-se porque ignora a significação da Liberdade humana.

Que é preciso para ser livre? Ter um cérebro que funcione bem, isto é, no qual a potência refletida de personalização da conduta não seja suprimida ou freada nem por doenças, nem por faltas de higiene, nem por ignorância e falta de conhecimento daquilo que é ser Homem e daquilo que convém fazer e evitar para ser Homem o mais plenamente possível.

Tudo quanto dissemos precedentemente deve ser a base de um conhecimento de si mesmo, fonte de uma cultura

biológica, que não deve ser apenas uma acumulação

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154 O DOMÍNIO DE SI

enciclopédia de conhecimentos, mas possibilidades de conduzir-se como Homem.

Para saber Querer, para ser Livre, é preciso saber o que é a Liberdade humana; é necessário conhecer a Lei Moral e segui-la. Mas nós vimos que esta Lei Moral não é boa senão na medida em que é compreendida. Daqui a necessidade de completar o ângulo de visão tradicional (muito freqüentemente confundido com um Moralismo déséquilibrante) com uma Moral do Cérebro. Esta nos dirá as precisas e verdadeiras condições humanas encarnadas da Liberdade e da Vontade, apresentando-nos o Mal como uma incapacidade técnica do ignorante ou do culpado, não sabendo servir-se do próprio cérebro e do Bem como um poder de humanização, de expansão humana individual e social. O Bem não é uma imposição negativa para evitar uma tendência incoercível ao Mal. Ê o difícil e alegre esforço de subir, apresentando assim o aspecto positivo e proveitoso da realização de si mesmo.

O ponto de partida de tôda vontade libertadora de fazer o

Bem é pois compreender a necessidade psicológica do Bem, sua

lógica e a irracionalidade estúpida de um Mal desequilibrante.

Êste, apesar de seu aspecto tentador, não é senão estupidez,

ignorância ou desejo masoquista e sádico de destruição. Aquilo

que diz o moralista tradicional se confirma para todos os

homens, qualquer que seja sua opção metafísica, pois não está

no poder do Homem de utilizar seu cérebro, fora da finalidade

dêste, sob pena de desequilíbrio.

Bastaria então porventura ensinar a Moral do cérebro para

que tudo vá bem e para que a lógica do Bem e da verdadeira

Virtude tome conta da humanidade? Infelizmente não. Nunca se

chegará a falar demasiado da necessidade da educação, pois

sofremos hoje mais por ignorância que por vontade do Mal. Por

uma ignorância que

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AS TÉCNICAS DO QUERER 155

seria culposa, se os entendidos, os educadores tivessem querido

ensinar uma ciência humana normativa, ao que fogem êles

inexplicavelmente.

Mas esta educação racional não basta. Não basta dizer: É

preciso agir assim.

A maioria dos homens apesar de levados a reconhecer o

Bem, afirma-se incapaz de querer o Bem, por incapacidade total

de Domínio de si mesmo. Não podem querer porque não sabem

querer. Ninguém os ensinou a querer.

EDUCAÇÃO PSICOFÍSICA E VONTADE.

Nós vivemos com o preconceito de que Querer é utilizar

uma fôrça misteriosa para dominar uma incoercível tendência.

Tratar-se-ia de enrijecer os músculos e energias em um esforço

inumano para agir ou impedir de agir. Ora, não nos sentimos

capazes dêste esforço. Todos recebemos uma educação física

que, além de uma. higiene elementar, visava desenvolver

nossos músculos. Educação do esforço físico para desenvolver a

dinâmica da contração.

Êste espírito da educação física deveria ser atualizado no

sentido e com a única finalidade de desenvolver a Vontade. Há

dois erros para serem evitados.

Em primeiro lugar o educador físico não é um educador do

músculo mas sim do cérebro. A educação não é física, visando

simplesmente acrescer desmedida e inestè- ticamente (em que

pese aos juizes do Concurso de Apoio) as massas musculares. Ê

uma educação do cérebro, não da cortiça motora ou da vontade,

mas uma educação dos centros reguladores da harmonia dos

gestos sob o controle da vontade, uma educação psicofísica, que

nos ensina a agir correta e economicamente, aumentando a

eficácia, apesar de reduzir o esforço. Quando o educador físico

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156 O DOMÍNIO DE SI

compreender que o essencial (quer se trate de treino ou de fadiga) está na regulação cerebral, êle perceberá então porque é que tudo que favorece a harmonia motora é o que é favorável a tôda a harmonia psicossomática, isto é, o equilíbrio do cérebro em tôdas as suas funções. A moral esportiva é a moral do Homem. Basta ao esportista reconhecer a necessidade geral dela, fora de qualquer exercício muscular. O educador físico tomar-se-á o principal professor de educação e de cultura humanas, no dia em que compreender o verdadeiro sentido dos exercícios que manda fazer. Êste sentido não está em realizar “performances” com um esforço desesperado e ineficaz da vontade, mas sim em ter bons hábitos, que darão a vitória com facilidade. Não será necessário querê-la a cada instante, mas sim tê-la preparado pacientemente por um treino incessante, no qual consiste precisamente a verdadeira vontade.

O segundo êrro prejudicial à transformação humanista da

educação física é que esta é demasiado orientada para a

execução de movimentos, quando o mais importante para

realizar tais movimentos seria aprender a concentrar-se, a frear-

se, a prestar atenção e por conseguinte a relaxar-se e a

controlar a relaxação para assim agir mais e melhor.

Como já dissemos, já temos que tomar consciência do

estado de tensão de nossos músculos, tão importante para o

movimento. Deixando de lado o preconceito da vontade de agir,

é preciso que nos concentremos no aspecto complementar do

músculo, órgão sensorial, que nos informará sôbre sua própria

tensão.

É preciso saber sentir e saber relaxar-se para poder querer.

Não esforçar-se para concentrar instantaneamente uma barreira

voluntária, mas habituar-se e dominar voluntariamente tôda a

dinâmica cerebral. Isto permitirá refletir e conter-se em tôdas as

circunstâncias.

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AS TÉCNICAS DO QUERER 157

O mais importante pois, não é a ação, mas sua re-presentação mental. Isto fará com que, sem negligenciar a ação, possa alguém treinar em pensamento, comandando não os músculos mas a imagem cerebral, sensitiva e motora dêles. O domínio do corpo está no domínio do cérebro, no qual se reflete todo o nosso corpo.

O EXEMPLO ORIENTAL: o YOGA E O ZEN.

Sem que seja preciso assimilar o espírito metafísico e místico destas realizações orientais, teríamos muito para aproveitar dêstes modos de dominar-nos psicofisicamente. Não apenas para separá-los do contexto religioso hindu fazendo dêles uma simples cultura física higiênica, mas para reinseri-los em uma perspectiva de humanismo leigo ou cristão, como bem demonstrou o R. P. Déchanet.

Tôda uma auréola esotérica de mistério plana sôbre o Yoga, favorecido por um certo esnobismo. É necessário rejeitar todo esoterismo e esnobismo, eliminar tudo que fôr inaceitável sob o ângulo de visão da ciência moderna. Fiquemos apenas com o admirável conteúdo de formação da vontade pela relaxação, pela calma, pelo repouso (de que tanto precisa nossa época “surmenée”), a regulação das posições e das atitudes em relação com um estado mental procurado, a regulação da respiração.

Mas é sôbre a maneira, pela qual muito justamente o Budismo Zen concebe a Vontade, que quereríamos chamar a atenção. Ela concorda perfeitamente com tudo quanto temos sugerido cientificamente. Será lido com proveito a brochura de um ocidental, E. Herrigel, que se iniciou no Japão “no Zen, na arte cavalheiresca do arco e flexa”. Por que arco e flexa? De fato, não é isto que importa. Poderia ser qualquer outra atividade, por exemplo, para uma mulher, a arte japonêsa de fazer um buquê (Ikebana).

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158 O DOMÍNIO DE 81

O importante não é aprender a fazer alguma coisa, mas aprender a dominar-se, a sair-se bem, sem visar isto di-retamente. São “performances” que necessitam de calma e de verdadeiro Domínio. Nada é mais interessante do que compreender como, apesar de querer, não se pode querer e como, não querendo diretamente, se aprende a conseguir, a realizar.

“Não atirais com arco, diz o Mestre japonês, para fortificar os músculos. Para retesar a corda não é necessário empregar tôda a fôrça do corpo. Basta aprender a deixar vossas duas mãos executar todo o trabalho, enquanto que os músculos dos braços e dos ombros quedam relaxados, parecendo não tomar parte alguma na vossa ação. Só então, quando fôrdes capazes disto, é que tereis preenchido uma das condições, graças às quais vergareis o arco e atirareis, em espírito. Se não puderdes vergar o arco, é porque não estais respirando segundo as regras. Depois da inspiração, engoli suavemente o sôpro, durante um instante, conservai-o assim. Então a parede abdominal se retesará moderadamente. Em seguida, expirai até ao fundo, mas, o mais lenta e regularmente possível. Depois de uma breve pausa, inspirai vivamente para explicar suavemente. Continuai assim, nesta alternância de inspiração e expiração, cujo ritmo se estabelecerá suavemente por si mesmo. Executando tudo isto devidamente, verificareis que o tiro com arco se irá tomando cada dia mais fácil. Respirando de modo como foi dito, descobrireis além disto, o princípio de tôda fôrça espiritual e quanto mais vos descontrairdes tanto mais percebereis que esta fonte ressumbrará por todos os vossos membros”.

Num dia em que eu lhe fazia notar como me esforçava conscienciosamente para ficar descontraído, o Mestre me respondeu: “É justamente porque vós vos esforçais, porque ficais pensando nisto. Concentrai-vos exclusivamente sôbre a respiração como se nada mais houvésseis de fazer.

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AS TÉCNICAS DO QUERER 159

O grande obstáculo é vossa vontade demasiado têsa para determinado fim... Libertai-vos de vós mesmos; deixai para trás de vós tudo quanto sois”.

Ê assim, por uma certa despossessão, um certo desa- pêgo, que não exige um resultado imediato, mediante um esforço crispado, que se chega ao sucesso.

NECESSIDADE DA RELAXAÇÃO: MÉTODOS DELA.

Há tôda uma série de técnicas para aprender a Querer. Longe de visar diretamente a Vontade, elas tendem mais para o equilíbrio geral. Aparentemente bem diferentes umas das outras, acabam tendo tôdas modos de ação bem vizinhos.

Não aprendemos a agir plena e conscientemente que-dando-nos nos automatismos da infância. Temos no nosso cé-rebro, graças à existência dos centros reguladores da base, todo um automatismo harmonizador, que permite a Atenção e a Distração. É preciso que aprendamos a dominá-lo. Isto é tanto mais difícil e necessário quanto é certò que à ausência de educação se ajunta o desequilíbrio e a super- excitação do aparelho regulador, provocado pelo enervamen- to da “surmenage” nervosa.

Esta se traduz por essa crispação física e mental que paralisa todos os nossos esforços de vontade e de lucidez. Ê preciso prender a distender, a relaxar nosso aparelho nervoso regulador. Entre os métodos de distensão, de relaxação é bom que insistamos mais especialmente sôbre os métodos de relaxação muscular, de uma parte e sôbre o método Vittoz de reeducação do controle cerebral, de outra. Dois métodos muito diferentes nos próprios princípios mas chegando a resultados semelhantes.

É o desequilíbrio dos centros reguladores que é res-ponsável pela crispação dos músculos. É necessário pois

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160 O DOMÍNIO DE 81

exercitar-se na distensão e na descrispação. Isto trará dupla vantagem: os músculos distendidos não enviarão mais mensagens sensitivas reflexas, que aumentam o enerva- mento e doutra parte são os próprios centros reguladores os responsáveis da distensão muscular e da distensão cerebral. Procurar distender os músculos é procurar a própria distensão geral. Seria fácil provocar uma distensão passiva artificial pela anestesia ou pela hipnose.

Bem mais úteis porém, são os métodos ativos, pelos quais, sob a orientação de um monitor, o paciente aprende a distender-se mediante certos exercícios. Êle é educado assim a utilizar os podêres do próprio cérebro: aprende a Querer, aprendendo a distender-se, a acalmar-se. Os métodos práticos de distensão, de relaxação são numerosos e por isso não podemos descer a pormenorizá-los. Com Jacobson, o acento é antes neurofisiológico de distensão muscular; com Schultz e seu “training autógeno”, é o nível psicológico que é atingido, chegando-se até a um verdadeiro estado de auto-hipnose, que, como no Yoga, não tem o aspecto negativo de sonolência, mas importa numa hiperatividade concentrada de tipo extático.

Ãs técnicas de relaxação propriamente ditas, é preciso juntar os métodos mais ativos de exercícios musculares da ordem da dança rítmica, mas num espírito completamente diferente.

CONTROLE CEREBRAL PELO MÉTODO VITTOZ.

A base da relaxação está na tomada de consciência do es-tado de tensão dos músculos guiando-se, por exemplo, pela sensação de pêso. Na psicoterapia do método Vittoz cuja origem é mais empírica, mas que visa uma reeducação mais completa do controle cerebral, o ponto de partida é a tomada de consciência de tôdas as sensações às quais não

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as técnicas do querer 161

prestamos atenção. Trata-se de perceber as impressões sen- soriais elementares “como um menino ao despertar”, im-pressões vindas tanto do próprio corpo quanto aquelas pro-vindas da sensibilidade muscular e também do ambiente exterior. Esta reeducação da atenção sensorial se completa pela utilização da tomada de consciência e da colocação em controle voluntário, durante o curso, de automatismos, como o caminhar e a respiração. Aprende-se o contrôle da emissividade, isto é, a dirigir pela imaginação, a própria energia psíquica para determinado ponto do corpo, concentrando nêle a atenção e evitando a dispersão.

Outro aspecto do método Vittoz diz respeito ao contrôle das imagens mentais: representando o paciente figuras geométricas simples e exercitar-se a eliminar uma destas imagens mentais dentre 3 ou 5. A um paciente que é vítima de distrações ensina-se assim a controlar seu cérebro, fixando sua atenção e ensinando-o a distender-se.

Nada mais útil do que meditar as “Notas e Pensamentos” do Dr. Vittoz. Mostram perfeitamente bem o fim proposto pelo método, que é o meio de reaprender à Querer sem atacar diretamente a Vontade, mas sim a causa da falta de Vontade, isto é, a impotência de dirigir o próprio cérebro.

“Os atos conscientes, diz o Dr. Vittoz, devem chegar a fazer parte de nós mesmos, devem chegar a ser naturais. Fazei durante meses inteiros atos conscientes e chegareis à liberdade da vontade, isto é, a ser independente de qualquer situação”.

CONSELHOS PARA o HOMEM NORMAL.

Pelas técnicas da relaxação, a medicina ocidental torna a descobrir, no plano da psicoterapia psiquiátrica e depois, na higiente do trabalho, aquilo que havia de certo

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162 O DOMÍNIO DE SI

nas técnicas orientais. Uma síntese de tôdas estas técnicas fará

desaparecer todo e qualquer esoterismo inútil.

O que prejudicou cientificamente a psicoterapia vit-

toziana, consistiu em que o controle do desequilíbrio e do

reequilíbrio cerebral se faz apreciando sôbre a fronte, o estado

das “vibrações cerebrais” do paciente. A neurofisio- logia atual,

que, evidentemente está ainda longe da perfeição, ignora que

coisa possam ser tais “vibrações cerebrais”! Praticamente

porém, pouco importa. Basta ser certo que os exercícios

propostos são excelente meio de reequilíbrio e de educação do

Domínio de si mesmo, cientificamente justificado. Seria êrro

negligenciar a aplicação dêles unicamente pela dificuldade que

há na interpretação das vibrações vittozianas.

De fato, existindo diversos tipos de técnica de distensão,

que permitem a retomada do Domínio de si mesmo, será bom

distinguir entre a terapêutica das neuroses exigindo uma

técnica segura, medicalmente controlada, tanto mais quanto

mais esta terapêutica entrar na personalidade do paciente e o

problema, completamente diferente, da educação do Domínio

de si mesmo nas pessoas normais ou o do reequilíbrio dos

fatigados.

Aqui há 2 escolhos para se evitar. O primeiro é a solução

fácil, sem valor, cuja eficácia é meramente de sugestão, que

depende de charlatães, que visam sobretudo lucro financeiro.

Mas não convém, para evitar isto, cair em outro êrro, qual seria

o de pensar que tais exercícios vitto- zianos só podem ser

ensinados por médicos. Para os não- -doentes (depois de

verificar sua saúde) é possível usar elementos dos métodos

precedentes e dar a cada paciente estas possibilidades de

distensão e de super-repouso, tão necessário na vida moderna.

Isto, é claro, não quer dizer que nos esqueçamos de tentar

remediar a própria vida moderna.

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AS TfiCNICAS DO QUERER 163

Como já tivemos ocasião de ver, o ser humano, ao con-

trário do animal, deve aprender tudo. Êle vive porém, em geral,

sob preconceitos desumanizantes. Deve, particularmente

aprender a repousar, tanto mais quanto a própria vida fôr mais

fatigante.

Antigamente o excesso de fadiga física levava ao sono

reparador. Hoje, a fadiga nervosa é fonte de insônia. Ab-

solutamente não repousam as pessoas sobrecarregadas sim-

plesmente mudando de ocupação para diversões trepidantes,

enervantes, anti-higiênicas, em meio a rumores desequili-

brantes. Seria melhor dedicar menos tempo para repousar, mas

repousar mais profundamente. É o que oferecem todos os

métodos dos quais falamos e que deveríamos conhecer, a fim

de evitar que também nós um dia, nos sintamos “surmenés”.

Para vencermos quaisquer preocupações, venham donde

vierem, deveremos sempre recorrer a êstes métodos de tomada

de consciência e de distensão.

Quando se tratar de triunfar sôbre as dores do parto (um

preconceito social) os exercícios propostos à grávida para que

dirija ela mesma voluntáriamente o próprio parto, são exercícios

de Domínio respiratório e de distensão. Nada se perderia em

saber que tais exercícios levam a um Domínio geral, que não diz

respeito, por conseguinte, somente ao parto, mas também

servem para a luta contra a fadiga nervosa. Estas técnicas pois,

não deveriam ser ensinadas apenas às grávidas mas deveriam

tornar-se base de tôda educação física, visando assim dar a

todos, não a fôrça física, mas a possibilidade de manter a calma

e o Domínio de si mesmo, isto é, o segrêdo da vontade lúcida.

Quando Scandel se levanta contra o abuso dos hipnó- ticos

e preconiza para as pessoas normais a volta ao sono natural, no

seu livro “vitória sôbre a Insônia”, são exerci-

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164 O DOMÍNIO DE SI

cios da mesma ordem de recondicionamento da calma, ge-

radora do sono, que êle propõe.

Para favorecer o domínio tão difícil da sexualidade, não é

necessário fazer sermões, mas sim dar um controle cerebral.

Foi o mérito do P. Chanson ter percebido isto. No seu livrinho

“Para a saúde do corpo e do espírito” êle vulgariza um conjunto

de exercícios de educação psicofí- sica com domínio das

atitudes, da respiração, do andar. Ensina a descondicionar-se

dos maus hábitos e a recondicionar-se nos bons, associando

uma situação corporal a uma situação moral. Com tais

exercícios êle facilita aos adolescentes a luta contra a tentação

de masturbação que ameaça mantê-los numa insuficiência de

vontade e numa imaturidade afetiva, que os impedirá de

tornarem-se adultos. Êste mesmo Domínio de si mesmo parece

ao dito P. Chanson, justamente a chave da harmonia conjugal,

tornando inútil o emprêgo dos contraceptivos para limitar a

fecundidade. Êstes contraceptivos são maus remédios contra a

ausência de Domínio de si mesmo. Êstes não se tornarão

inúteis por simples apelos “espirituais” para o Domínio de si

mesmos, mas sim pela educação do controle cerebral.

Encontram-se os mesmos exercícios descritos pela pena de

M. Kohler, que descrevendo a angústia dos homens de hoje,

quer remediar a ela pelas “Técnicas da Serenidade”.

Êstes são alguns exemplos para se meditar, entre muitos

outros, que mostram como uma educação do cérebro deve ser

posta a serviço de uma moralização humanizado- ra. Portanto,

como vimos no caso do tiro com arco e flexa trata-se de dar um

espírito a tôdas as nossas ações. Não é apenas a educação

física que deve ser transformada em serviço de verdadeira

formação do homem. Esta transformação deve dar-se em todo

o tipo de educação, como, de

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AS TÉCNICAS DO QUERER 165

resto, já vimos, quando evocamos a educação nova e espe-

cialmente o método Ramain.

Ê preciso favorecer tudo quanto forme a atenção, tudo

quanto evite a passividade. Qualquer ato, que nós executamos

maquinalmente, pode ser ocasião de um exercício de Domínio

de si mesmo (o caminhar, por exemplo), sentindo-o e

controlando a execução dêle. Se o educador físico, obnubilado

pela sua atenção ao músculo, não cumpre plenamente seu

ofício, há um outro especialista, que pelo contrário, faz boa

utilização de seu cérebro: é o cantor. Or- dinàriamente nossa

voz é mal regulada, pois falamos maquinalmente, sem nos

preocuparmos com as sensações que nos vêm do ouvido ou dos

músculos fonadores ou de todos os receptores do tórax, do

pescoço, sensíveis às vibrações vocais. O cantor, de seu lado,

ainda sem fazer a análise consciente delas, sabe muito bem

utilizá-las para regular sua modulação sonora. O canto é afinal,

uma fonação bem mais consciente e bem mais voluntária.

Bastaria saber disto para deduzir uma possibilidade de

formação. O mesmo pode dizer-se da dança, considerada como

expressão corporal, como uma tomada de consciência num

trabalho corporal, que permite retificar os maus hábitos e

favorecer a distensão.

A escrita, na qual (como já demonstrou a grafologia) se

exprime a personalidade, pode servir a uma reeducação

(grafoterapia: Olivaux). É certo que uma tal grafotera- pia, útil

aos neuróticos, poderá constituir um exercício de reequilíbrio e

de Domínio de si mesmo para as pessoas normais.

O mesmo se dá com tôda espécie de trabalho, com tôda

espécie de jôgo. Os exercícios tão proveitosos de ergotera- pia

para os doentes mentais (Sivadon), poderão ser utilizados pelos

sãos.

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166 O DOMÍNIO DE 81

O caráter se exprime pelos traços do rosto. A proso-

pologia (Ermiane) propõe-se justamente elucidá-lo. Mas aqui também, a procura voluntária de imitação de um tipo de rosto pode conduzir a uma transformação da personalidade no sentido da imitação.

PSICOPEDAGOGIA DA VONTADE.

Não é conveniente minimizar os podêres da sugestão, que não é ilusão mas sim condicionamento cerebral. Ê o que faz a patologia neurótica, por exemplo na histeria. Revela os podêres que possui o cérebro e que a pessoa normal pode aprender a utilizar melhor. Não se trata de estender exageradamente o poder da vontade até proezas espetaculares (por exemplo, no campo visceral). Mas de dar sempre a preponderância ao cérebro superior sôbre os automatismos do cérebro inferior a fim de humanizar plenamente tôdas as nossas condutas. Esta referência aos valores superiores permite, até na índia, distinguir o faquir de feira de atividade comercial do autêntico asceta, que não visa o domínio corporal senão para obter o domínio espiritual.

Em psicologia animal, a inteligência se manifesta nas condutas de desvio, isto é, a possibilidade de dominar o impulso de lançar-se diretamente para a frente. Isto mostra a compreensão do problema. Está aqui também o se- grêdo da vontade humana, que consiste em retardar o ato a fim de melhor refletir sôbre a necessidade dêle, sôbre as condições de sua execução. Isto exige calma.

Eis como, muito simplesmente, J. de Courberive, nos propõe um lembrete pedagógico da vontade: 1) “Emprega certo tempo para premeditar tua ação: A) delimita exatamente o que queres fazer; B) e qual a razão para fazê-lo. 2) Traça um plano de ação tão racional quanto possível.

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AS TÉCNICAS DO QUERER 167

Racional aqui quer dizer: realista, isto é, que leva em conta

todos os dados, incluindo o inevitável, aceitando-o e daí,

tornando-o de um certo modo voluntário. 3) Coroa êste plano

com uma decisão irrevogável (senão não seria uma decisão).

Daí em diante sabe dizer NÃo a tudo quanto não entrar neste

teu plano. 4) Pré-imagina teu ato. Faze o ensaio geral dêle na

tua tela cérebro-mental. 5) Reitera- -te enèrgicamente a

injunção: Vamos! 6) Executa o decidido sem mais delongas.

Faze-o bem e de tal maneira que não seja preciso repeti-lo. Em

cada uma de tuas realizações procura sempre o definitivo.

Cumpre alegremente todos os itens de teu programa..

A eficácia dos pequenos meios é simplesmente inacre-

ditável. A utilização dos atos quotidianos forja a têmpera das

vontades. Não espereis pelos grandes momentos para só então

fazerdes atos heróicos. Quem se mostra medroso na vida

escondida não possui a estôfa dos heróis. A mais simples

existência quotidiana nos oferece mil e uma ocasiões para

afirmar-nos, para desenvolver-nos: escrever livremente, formar

frases bem construídas e bem concluídas, observar a

propriedade dos têrmos, falar tão distintamente que o

interlocutor nos entenda logo da primeira vez. In- fantilidades?

Nada disto: Controle de si mesmo.

“Haverá coisa mais deliciosa, escreve C. Prudence, do que

o Domínio de si mesmo, do que a paz interior... A paz interior

autêntica não é um estado negativo, mas positivo. A pureza

sem perturbação nenhuma, não é uma fôrça; a calma, sem

domínio da agitação, não é uma segurança; a tranqüilidade sem

combate não é senão preguiça ou abdicação... Quando o

homem se conhece bem em sua constituição e suas

características, pode estabelecer em si mesmo uma paz

inalterável, porque baseada no conhecimento de si mesmo e na

certeza do real... A paz é irreconciliável com a agitação dos

pensamentos, o tumulto

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168 O DOMÍNIO DE SI

dos sentimentos e os caprichos da vontade. Ela reclama o controle dos pensamentos, o domínio dos sentimentos e a livre escolha do querer... Não haverá paz para o homem desorientado, fora de si mesmo, fugindo a si mesmo para procurar exteriormente os motivos de seu comportamento e os meios de seu consentimento.

Não há pois receita mágica para a vontade, receita que dispensaria os esforços. Os fracassos não devem desanimar-nos a menos que durmamos nêles. O hábito do Domínio de si mesmo cura da fobia do escrupuloso que não ousa querer.

A vontade é facilitada para quem sabe fazer a própria unidade e a própria síntese. Importa muito, saber anali- sar-se. Se a psicanálise insiste tanto sôbre o aspecto analítico é para fazer tomar consciência dos elementos neuróticos perturbadores. Mas não convém que nos percamos na análise. O essencial é aptidão para a psicossíntese, para a qual se voltam diversas tentativas psicoterápicas.

“Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra”, diz-nos o Sermão da Montanha. “Em que consiste esta mansidão? pergunta o R. P. Carré. Já tive ocasião de dizer que ela deve ser reabilitada. Com efeito, a significação profunda dela foi desvalorizada. Parece ser apenas uma passividade benevolente: nenhuma aspereza no caráter, nada de reações vivas, nada de agressividade; antes uma bonomia natural ou afetada, que suporta tudo. Tal é a idéia que geralmente se faz da mansidão... Falemos da atitude contrária à mansidão... Ã mansidão não se opõe, como poderíeis crer, a violência, qualquer que seja, mas sim a dureza. Ao lado da dureza aparece uma outra atitude, vizinha dela: o endurecimento”. A estas duas atitudes se opõe a maleabilidade.

“Evidentemente, considerando apenas as aparências, não há ninguém mais despojado, menos em posse de si mesmo,

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AS TÉCNICAS DO QUERER 169

do que o homem, que não resiste a Deus e fica maleável nas

mãos dêle. Mas olhai um pouco mais de perto! De que está êle

despojado? De tudo quanto nós chamamos sua dureza: de tôdas

as recusas que êle fazia a Deus e a seus irmãos; despojado de

sua dureza, de suas pretensões, de suas amarguras... Êste

homem, até então fechado em si mesmo, deve antes ser

considerado como libertado, como arrancado de uma estreita

prisão”.

O espírito de mansidão é inicialmente o Domínio de si

mesmo, “ aplicando-vos corajosamente a controlar vossas

reações; a manter o equilíbrio de vossos juízos e de vossos atos,

atingireis a fonte de muita paz e felicidade”.

Dêste modo, como acabamos de ver, o segrêdo da vontade

do Bem está na recusa da desnaturação orgulhosa. Se a

preocupação do futuro é própria do Homem, se há uma

inquietude, boa e legítima, que seria inadmissível querer

suprimir por tranquilizantes químicos, não deixa de haver porém

uma inquietude excessiva, à beira do patológico, na pessoa que

está sempre preocupada, ansiosa e tensa, superando assim a

própria resistência. Ê bem conhecido o poema de Péguy, onde

Deus mostra Sua satisfação pelo abandono, pela confiança que

tem o menino no próprio pai.

Não se trata, é claro, de elogiar o infantilismo, mas a sábia

distensão confiante do verdadeiro adulto, que sabe deixar para

o dia seguinte aquilo que não tem necessidade de ser resolvido

imediatamente e vai repousar, esquecendo tudo, tudo durante

um sono reparador.

Finalmente é na confiança que está o segrêdo da vontade.

Basta compreender e saber. Como em tôda humana emprêsa

pessoal e importante, é necessário crer nela com tôdas as

fôrças, e todo o coração. Só então é que é preciso aprender.

Mas êste aprender fica sempre indispensável.

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8Amor e Vontade: paixão pelo "optimum"

ESPONTANEIDADE E CÉREBRO: QUERER AMAR.

Usualmente o Amor vai de “pari passu” com a espon-taneidade, a liberdade e a fantasia. Isto parece opor-se à dura imposição que a idéia de Dever e de Vontade, sempre evoca. Estará aqui, talvez, até, o segrêdo do drama da nossa época.

É necessário que aprendamos que coisa seja o amor humano, a liberdade humana, a espontaneidade humana.

Desejosos de libertação, não mais querendo obedecer a regras constrangedoras (no que, por sinal, nos mostramos adultos) nós, em geral, confundimos a Liberdade com o poder de fazer o que nos der na fantasia. Antigamente as imposições sociais mantinham um certo equilíbrio, que não era plenamente humano.

Rejeitando porém, o Moralismo e a Moral juntamente iremos dar nas piores aberrações. Basta abrir os olhos (coisa que justamente não fazemos ou então invocamos simplesmente a fatalidade!) para ver aonde nos conduz a fantasia daquilo que

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172 o DOMÍNIO DE SI

Bela e humana essa pretensa liberdade, que é de fato, a escravidão de uma carne decaída, pois está desviada de sua significação! A libertação das necessidades e dos complexos, das ignorâncias e imaturidades faz da Humanidade algo parecido com uma floresta virgem. Nesta tudo está submetido à harmonia dos instintos animais.

Nada mais significativo do que as reações, diante do verdadeiro Domínio de si mesmo, na sexualidade. Diz o casal moderno que quer ser livre para ter relações carnais à vontade, quando lhe aprouver. Daqui a recusa de observar uma continência periódica, ligada ao ciclo feminino: o marido não aceita tornar-se escravo dos hormônios femininos! É bem verdade porém, que, por uma ilógica incoerência, os adversários da continência periódica (tomando a execução por regra e considerando a mulher como escrava dos próprios hormônios) não hesitam em afirmar, contraditoriamente, ser necessário para a mulher ter relações sexuais no momento da ovulação. Todos nós sabemos aonde leva esta tal espontaneidade, que não é senão o erotismo hormonal de um ser humano, cujo cérebro não é senão uma máquina para gozar. E afinal, até certo ponto, pois o gôzo se perde em um automatismo inconsciente! Eis os frutos desta espontaneidade irrefletida: a mulher sacrificada ao desejo do homem, com a conseqüente desmoralização da juventude, a prostituição, o abôrto, o divórcio etc. É verdade que os partidários da “maternidade voluntária” nos comunicam o segrêdo da vontade e da civilização: os meios contraceptivos, meios de defesa que permitem à própria mulher pôr-se, sem perigo, à disposição do agressor masculino, entregando-se à própria orgasmomania. Êstes tais partidários desta “maternidade voluntária” se esquecem de acrescentar que, diante dos fracassos inevitáveis dos contraceptivos, outra boa receita seria generalizar o abôrto terapêutico ou também, eventualmente, a irreparável e de- sequilibrante mutilação, que é a esterilização cirúrgica.

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AMOR E VONTADE: PAIXAO PELO “OPTIMUM” 173

Pensar que, na situação atual de ignorância e de ima-turidade sexual, êstes meios contraceptivos não façam crescer a desmoralização, é uma perigosa utopia.

Só há uma procriação voluntária. Aquela que se baseia sôbre a educação da sexualidade humana, pela qual, graças ao domínio cerebral da sexualidade dos esposos (na alegria de uma união espiritual na carne) decidem êstes, livremente, sôbre o nascimento de filhos. E conseguem isto, devido ao domínio que o marido tem sôbre a ejaculação e do conhecimento de ambos sôbre a fertilidade feminina.

Objetam a isto dizendo “ser a cerebralização excessiva, pelos cálculos de períodos e de temperaturas, contrária ao impulso afetivo e sexual dos esposos”. Acrescentam até que tudo isto “é pouco poético”. Certamente (pensam os tais) ser a cozinha contraceptiva mais poética! Mas infelizmente, não para a mulher e sim para o imaturo irresponsável que seria o marido. Que poesia haverá na falta de abandono da mulher que teme a gravidez, tenha, ou não, aparelho de defesa contra esta! Em lugar de se evitarem um ao outro, não seria bem mais humano que se conhecessem melhor pelo domínio da própria fisiologia?

Recentemente, numa conferência, tomava o Dr. Eck,

surpreendentemente partido pelos inimigos do cérebro: “outro

fator que contribui para o pêso do tédio, é a excessiva

cerebralização, que acompanha o indispensável progresso. Ê

certamente bom que o pensamento ganhe sôbre o instinto, mas

há certas coisas, que talvez tivessem mais vantagem de serem

mais sentidas que pensadas. Quem sabe se o homem de

amanhã não será senão uma massa esférica globular, contendo

um imenso cérebro que se entedia na própria casca? O próprio

amor se cerebraliza e a arte de amar se vai tornando algo de

rigorosamente bem pensado e codificado. É claro que não

chego a negar a extrema importância de

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174 O DOMÍNIO DE 81

uma educação sexual completa e generosa. Mas a apre-sentação desta tem sido freqüentemente, apenas um sopo- rífero catálogo de documentos e de receitas, no qual não há mais lugar para o sentido do mistério e para a alegria da descoberta. O amor tecnizado substituiu a poesia do amor. Que a inteligência deva controlar o instinto, é evidente! Mas quando se vê escrito, com tôdas as letras, que não há instinto sexual no homem, porque o cérebro é o primeiro órgão sexual do homem, chego a ter mêdo de um dia o amor vir a tornar-se uma fonte de tédio”.

Todos estamos de acôrdo em que uma tal catástrofe deva ser evitada. Justamente uma das grandes preocupações dos partidários dos métodos naturais da regulação da fecundidade é de lutar contra a tecnomania. Não defendendo o “método das temperaturas”, mas sim o conhecimento e o Domínio de si mesmo, graças ao diagnóstico térmico da ovulação. Tal é o espírito da fita cinematográfica do Dr. Chartier. Tal o espírito apostólico do Dr. Van der Stappen, referido em “A Grande Alegria de Amar”. Tal também o da mais completa brochura sôbre educação sexual dos adultos: “Nada de Abatimento no Amor”. Tôdas estas falam da necessidade da técnica, mas em referência ao que fôr mais humano. A importância não está tanto no diagnóstico da ovulação quanto na educação da conti-nência. No nível inumano de sexualidade a que chegamos, por falta de educação adequada, é bem verdade dizer que a continência é contra a natureza, pois que a maioria está desnaturada. É absolutamente necessário tomar a continência natural, mas isto não se obtém automàticamente, nem se realiza por moralismos, nem por voluntarismos, mas pela educação do cérebro.

Sofremos tanto pela falta de cerebralização, que bem poderíamos alegrar-nos que entrasse um pouco mais de reflexão nos problemas humanos. De modo nenhum podemos temer excesso de cerebralização. A tediosa cerebra-

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lização contra a qual se levanta o Dr. Eck, supondo ter base na minha posição pessoal sôbre a sexualidade cerebral, é justamente uma cerebralização incompleta. Porém, não se trataria, segundo a opinião dêle, senão em trocar o preconceito do cérebro do instinto pelo preconceito do cérebro racionalista. Ora, não está nisto a plena dimensão humana.

Pôr a sexualidade sob o completo controle do cérebro, não é matar o amor, mas substituí-lo pela razão, no sentido estrito e dissecante da palavra; é pô-la ao serviço do amor; é recusar a falsa separação entre o erotismo sentimental e o amor espiritual platônico e desencarnado.

Já dissemos isto, quando recordamos a hierarquia cerebral, que não é dupla mas tripla, isto é, a união do tríplice andar da unidade corporal, do psiquismo inteligente e do espiritual. Não somos absolutamente uma justaposição de uma fria e lógica máquina de pensar e de uma carne cheia de sentimento, de afetividade e de desejo em um desencadeamento ilógico e irracional. Somos amor, isto é, união do afetivo com o racional, em um plano superior que so- brepassa a razão mas não lhe é contrária. Não somos apenas o cérebro primitivo ou poético. Somos um cérebro pré-frontal. Os dois outros cérebros não podem funcionar humanamente senão sob o controle do pré-frontal, no qual se encarna a fina ponta espiritual da alma, aquilo pelo qual somos verdadeiramente Homens.

Nada mais perigoso do que a palavra: “Sentimento”. Não é ela freqüentemente senão a camuflagem consciente das necessidades eróticas e das necessidades de amizade. Nós isolamos o sentimento: uns, principalmente as mulheres, para celebrá-lo; outro, principalmente os homens, para denunciá-lo e recalcá-lo. Será necessário ter ou não ter coração? ou, simplesmente dar-lhe um lugar de quando em vez “quando o guerreiro tem necessidade de repouso”?

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Nunca teremos coração demasiado. O coração é a lucidez do verdadeiro amor, da verdadeira liberdade, da verdadeira espontaneidade, que é a vontade; é a espontaneidade amorosa de conduzir-se como homem completo.

O coração não é o sentimento que desencadeia a pressa, dita do coração, que dêste não tem senão o nome. É preciso reconhecer, com o espírito feminino, a primazia do coração, mas lutar contra a tendência de certo espírito de identificar o coração com sua infra-estrutura sentimental, opondo-o à razão. É preciso reconhecer, com espírito masculino, a primazia da razão, mas da verdadeira razão humana, que é precisamente o verdadeiro coração e que não tem necessidade de eclipsar-se, às vêzes, a fim de dar-lhe lugar, pois que ela é sempre amor.

Que supina ignorância a de pensar que o que faz o “charme” da vida humana é livrar-se, de tempos em tempos, do próprio cérebro, limitando-o simplesmente à vida intelectual, ao pensamento. O cérebro é o órgão da vida humana sentida e vivida, é o órgão da relação social humana equilibrada, que não existe senão em um amor consciente, amor que dá todo o sentido à obscura necessidade dos outros, que está na nossa carne.

Esta necessidade do amor para o equilíbrio humano não é nativa, pois, como já vimos, o homem deve aprender tudo. Ê por falta desta aprendizagem que tantos homens tomam por liberdade e espontaneidade a escravidão às tentações naturais de desnaturação, que os fixam em um nível inferior, comparável ao estado de doentes ou de não-adul- tos. Não basta pois ter uma zona pré-frontal. É necessário também saber utilizá-la corretamente e não para desencadear os cérebros inferiores e se privar da verdadeira liberdade.

O homem que quer ser verdadeiramente Homem não tem liberdade senão para o Bem. Por isto o Amor e a Li

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berdade parecem ao homem ser difíceis deveres, aparente-mente contrários às nossas tendências espontâneas, que, de fato, não são senão preconceitos. Aquilo a que chamamos de Amor e Liberdade, opondo-o ao Dever, à Ascese, à Vontade, não é senão a mais desumana caricatura do verdadeiro Amor e da verdadeira Liberdade.

Quer queiramos ou não, somos forçados a nos aceitar tais como somos, obedecendo às leis de funcionamento correto de nosso organismo.

O Dever não é um código jurídico de permissões e in-terdições, por cujas inobservâncias seríamos punidos por um legislador supremo. Um tal Dever, contrário à liberdade humana é desequilibrante e deve ser recusado. Mas esta recusa a um dever falso não deve levar ao êrro de opor-nos à necessidade do verdadeiro Dever, isto é, a obediência ao dinamismo montante de realização daquilo a que somos chamados a ser; um esforço voluntário de crescimento espiritual encarnado. Nada nos é permitido ou negado. Com lucidez, nós nos

interdizemos a nós mesmos aquilo que faz mal a nós ou aos outros; recusamo-nos a amesquinhar-nos, a passar por doentes, ignorantes, incapazes, sabotadores. Condenados por nosso organismo (por uma necessidade de saúde e de higiene superior) a amar, nós aceitamos amar, queremos amar, aprendemos a amar, tomamos o bom hábito de amar.

Refletindo sôbre a psicofisiologia da Vontade vemos que

obrigatoriamente deve haver uma luta contra o preconceito,

que opõe esforço, ascese, vontade, dever à liberdade, ao amar

e à verdadeira espontaneidade. O segrêdo da verdadeira boa

vontade humana, isto é, da vontade boa, da utilização correta

do cérebro, do controle cerebral na lucidez da tomada de

consciência e o Domínio de si mesmo, está na compreensão das

relações entre amor e Vontade. Êle se resume em “querer

amar e gostar de querer”,

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178 o DOMÍNIO DE SI

numa procura apaixonada do “optimum”, no qual a sabedoria

se junta à santidade.Que devemos querer? A que aplicar nossa liberdade? A

amar válida e corretamente, com um amor plenamente humano, pois é o segrêdo do equilíbrio individual e social. A nossa semelhança não está em uma máquina de raciocinar mas sim em uma impossível máquina de amar.

É conhecida a lenda de Malebranche dando um pontapé em um cão, incapaz de verdadeiro sofrimento. Era êste o êrro dos animais-máquinas de Descartes. Numa tartaruga eletrônica pode ser dado um pontapé, com receio apenas de quebrá-la. E isto, ainda quando o fabricante a tenha dotado de mecanismo que a faça fugir gemendo. Isto não seria uma caricatura de afetividade.

Ao contrário, os animais não são uma caricatura de nossa afetividade. Êles são realizações dela, bem que em nível inferior de complexidade, de organização.

O grande mérito de Teilhard de Chardin é sua lei de Complexidade-Consciência, que nos causa ainda alguma dificuldade para ser entendida. De feito, o R. P. Teilhard via bem mais longe levando mais adiante o conhecimento científico da série dos sêres, em uma atitude, ao mesmo tempo, heurística e prospectiva e da qual o futuro irá tendo cada vez mais necessidade.

A ascensão de organização na evolução biológica não é somente ascensão de consciência, permitindo, sempre mais e melhor, unificar-se, pensar, refletir, e querer num progresso de personalização, que termina, nesta terra, na verdadeira pessoa, a do Homem. Ela é, principalmente, a ascensão de relações de amor (amortização). Ora, o caráter pessoal é preporcionalmente direto ao desenvolvimento do amor. A noosfera não é uma sociedade racionalista. Ela não está no extremo oposto da desumanizante tecnosfera, senão porque é a agaposfera. Esta é o acabamento das

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AMOR E VONTADE: PAIXÃO PELO “OPTIMUM” 179

possibilidades de personalização do homem em uma sociedade

personalizante. A razão disto é ser ela fundada no Amor

equilibrado, higiene suprema do Homem, do qual

compreendemos atualmente que deve amar seu próximo como

a si mesmo em referência a um Ideal.

Mas se o Amor se encontra no ponto final é porque foi

desde sempre o constitutivo do mundo, logo, presente desde a

origem dêste. Esta ascensão de organização material não é uma

associação por imposição externa (como uma suspensão, devida

à agitação de um líquido sujo) mas uma interatração, que,

desde a origem, tem uma natureza afetiva e traduz o Amor. Não

queremos dizer com isto, usando um antropomorfismo ridículo,

que os átomos se atraem porque se amam, como pessoas

humanas. Nem tampouco que as células do organismo superior

se amem, ficando voluntàriamente juntas, nem que a borboleta

ame sua fêmea como à mulher o homem.

Mas o homem não tem esta necessidade de amar seu

próximo como a si mesmo, senão porque o Amor' é a lei da

natureza, apesar das aparências contrárias de luta, que não são

senão um aspecto dramático; por sinal, o menos importante.

Não é à toa que a psicoquímica chama e mede sob o nome

de “Afinidades” as fôrças de atração.

O Amor é proporcional ao nívei de organização. Êle é

interatração dos átomos e das moléculas. É a unificação dos

elementos da célula, dotada de um elementar e automático

amor de si mesma e que lhe dá um comportamento defensivo. É

a interatração das células-irmãs do organismo superior,

mantendo-as juntas em um organismo unificado, no qual o amor

inconsciente de si mesmo se revela na regulação automática do

ambiente interior e dos instintos. Êle está no instinto social e no

instinto se

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180 O DOMÍNIO DE 81

xual, que é a interatração dos indivíduos; tudo isto realizado na

central do automatismo do amor de si mesmo e do amor para

com os outros, isto é, no cérebro inferior do instinto.

Quanto mais sobe e se eleva esta organização e com-

plexidade do cérebro, mais êste nível elementar de amor se vê

completado pela tomada de consciência daquilo que convém,

isto é, o reconhecimento do outro enquanto indivíduo,

afetivamente escolhido por êle mesmo. A sexualidade de uma

borboleta é um automatismo desencadeado pelo odor, não

significando verdadeiro amor psíquico. Já nos pássaros e

mamíferos êle se baseia num prévio reconhecimento do outro,

enquanto outro. Há aqui um verdadeiro amor, ainda que não em

nível humano.

Justamente esta ciência da Amorização nos vem mostrar

com precisão que a Moral do Amor corresponde à constituição

natural do Homem. Êste não pode evitá-la sem se desequilibrar.

Mas, ao contrário do animal, que não pode normalmente sair de

sua verdadeira natureza, o Homem, por ser livre, pode

descarrilhar, não sabendo utilizar aquilo que normalmente o

ligaria livremente ao Bem. No homem, até o Bem pode tomar-se

desequilibran- te e contra a natureza, se fôr imposto. É o que foi

mostrado pelo exemplo, de povos primitivos aos quais se quis

melhorar as condições de vida mas destruindo suas estruturas

sociais. Longe de favorecê-los nós os levamos ao desgosto de

viver e à conseqüente desaparição.

Quem fôr prêsa de maus hábitos desequilibrantes deve

aprender a reconhecê-lo, para só então mudar volun-

tàriamente de vida. É por causa disto que a Moral, no sentido

comum da palavra, que é uma imposição, aparece como sendo

o contrário da verdadeira Moral, que é conversão, convicção

daquilo que é bom, útil e são.

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AMOR E VONTADE: PAIXÃO PELO “OPTIMUM” 181

GOSTAR DE QUERER: AS CONDIÇÕES DA FELICIDADE.

Querer amar não basta para o equilíbrio do Homem. É

necessário também que goste de querer. É gostando de querer,

é pelo dever de gostar de querer que achamos nosso equilíbrio.

Gostar de querer é ter compreendido a necessidade do esforço

de vontade boa.

Que procura o Homem inquieta e desesperadamente? Êle

procura a felicidade, mas com a intuição instintiva que a

felicidade está ligada ao equilíbrio e à expansão do Ser. Mas,

também aqui, quantos preconceitos, quantas ilusões, quantos

erros! Não sabemos que coisa seja ser feliz! Para sermos felizes,

a qualquer preço, com encantadora espontaneidade, fazemos

nossa infelicidade e a dos outros, por não compreendermos que

não basta a boa vontade, mas é também necessária a vontade

boa.

Que é necessário para sermos felizes? Ninguém melhor nos

explicou do que o P. Teilhard de Chardin e não há porque

maravilhar-nos disto. Êle conhecia as condições biológicas da

Amorização e também que a Amorização correta, ápice da

humanização, é o único segrêdo da ascensão para a felicidade,

que é difícil fonte da alegria de viver, numa ascética benéfica

para quem compreendeu.

Que vemos no mundo que nos cerca? “Inicialmente, diz

Teilhard de Chardin, fatigados (ou pessimistas) aos quais

aborrece o esforço; depois gente bem (ou gozadores da vida);

finalmente os ardentes, para os quais viver é uma ascensão,

uma descoberta. Para os que formam esta última categoria é

sempre melhor ser do que não ser. Mas ainda é sempre possível

e unicamente interessante ser sempre mais. Aos olhos dêstes

conquistadores, o Ser é inesgotável (não, à maneira gideana,

como um jóia de inumeráveis facêtas, que se podem girar em

todos os sentidos

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182 o DOMÍNIO DE SI

sem cansar), mas com um foco de calor e de luz ao qual é possível aproximar-se sempre mais.

“Pessimismo e nostalgia do passado; gôzo do momento presente; impulso para o futuro. Estas são as três atitudes fundamentais em face da vida... três formas opostas de felicidade em presença; felicidade de tranqüilidade; felicidade de prazer. Felicidade de crescimento enfim. Desde êsse terceiro ângulo de visão, a felicidade não existe, nem vale por si mesma, como um objeto que pudéssemos procurar e agarrar, mas não é senão um sinal, um efeito e como que a recompensa da ação convenientemente dirigida... Nenhuma mudança beatifica a menos que faça ascender. O homem feliz é pois aquêle que sem procurar diretamente a felicidade, acha inevitavelmente a alegria por acréscimo, no ato de conseguir chegar à plenitude e ao extremo avançado de si mesmo”.

Entre estas três felicidades Teilhard mostra as razões objetivas e científicas, as razões biológicas em nosso or-ganismo, de escolher a terceira, a única plenamente humana. É preciso ir até à maior consciência e nossa personalização comporta três tempos; centração, descentração e supercentração.

Centração: “para ser plenamente nós mesmos, devemos trabalhar durante tôda nossa vida para organizar-nos, isto é, para conseguir sempre mais ordem, mais unidade nas nossas idéias, nos nossos sentimentos, na nossa conduta... Ser é, antes de tudo, se fazer e se achar”.

Descentração: “a tentação ou ilusão elementar que es-preita, desde o nascimento, o centro reflexivo, que cada um de nós guarda no fundo de nós mesmos, é de imaginar que para crescer é bom se isolar sôbre si mesmo e continuar, egoisticamente, somente em si, o trabalho original do próprio acabamento: separar-se dos outros ou concentrar tudo em si mesmo. Não, não podemos progredir até ao máximo

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AMOR B VONTADE: PAIXÃO PELO “OPTIMUM” 183

de nós mesmos, sem sairmos de nós mesmos, unindo-nos aos outros de modo a desenvolver por esta união um acréscimo de consciência. Daqui as urgências, daqui o sentido profundo do amor, que sob tôdas as formas, nos impele a associar nosso centro individual com outros centros escolhidos e privilegiados; do amor cuja função e encanto essenciais são de nos completar”.

Supercentração: “para sermos plenamente nós mesmos, nós somos forçados a alargar a base do nosso ser, isto é, de nos ajuntar ao Outro. Ora, uma vez que conseguimos um pequeno número de afeições privilegiadas, êste movimento de expansão não pára mais. Êle nos aspira insensivelmente, de próximo a próximo, para círculos de raio sempre maior. Podemos prever o momento em que os homens saberão que coisa é (como por um só coração) desejar, esperar e amar todos juntos a mesma coisa ao mesmo tempo... Aquilo que a vida nos pede, afinal de contas, de fazer por Ser, é de nos incorporar e subordinar a uma Totalidade organizada, da qual não somos, còsmica- mente, senão parcelas conscientes. Um centro de ordem superior nos espera (está já aparecendo), não somente ao nosso lado, mas para além e para cima de nós mesmos”.

“Não mais simplesmente desenvolver a si mesmo, nem

simplesmente dar-se a alguém igual a si, mas também

submeter-se e concentrar a própria vida em alguém maior. Vale

dizer: inicialmente: ser; depois: amar; finalmente: adorar.

Felicidade de crescer, de amar e felicidade de adorar. Eis, em

última análise, a tríplice beatitude, que a teoria nos permite

prever, partindo das leis da Vida.

A verdadeira felicidade nos espera em uma direção de-

terminada: 1) pela unificação de nós mesmos no nosso próprio

íntimo; 2) pela união de nosso ser com outros sê- res iguais a

nós; 3) pela subordinação de nossa vida a uma vida maior que a

nossa... Para ser feliz é preciso,

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184 O DOMÍNIO DE SI

primeiramente, reagir contra a tendência ao menor esforço, que nos leva ou a ficar onde estamos ou então a procurar a renovação de nossas vidas, de preferência na agitação exterior. Nas ricas e tangíveis realidades materiais que nos cercam é necessário, sem dúvida, que nos enrai- zemos. Mas é no trabalho de nossa perfeição interior intelectual, artística e moral, que, afinal, a felicidade nos espera. Para ser feliz, em segundo lugar, é preciso reagir contra o egoísmo que nos leva ou a fechar-nos em copas sôbre nós mesmos ou então a submeter os outros ao nosso domínio. Para ser feliz, plenamente feliz, é preciso, em terceiro lugar, de um modo ou de outro, diretamente ou por meio de intermediários gradualmente ex-pandidos (uma pesquisa, uma emprêsa, uma idéia, uma causa...) transportar o interêsse final de nossas existências para o caminhar e para o sucesso do mundo no qual vivemos”.

Fazer sua própria salvação salvando o mundo, isto é, crescer e fazer crescer e finalmente cumprir o papel, ao qual nossa natureza (que devemos realizar) nos impõe por livre e racional escolha, isto é, exatamente o que precisamos querer. Ê nesta lucidez que devemos andar.

A necessidade primordial não é a de precipitar-nos ce-

gamente para frente, mas sim de ver bem claro o caminho a fim

de que a ação emane, de um certo modo, de si mesma. Esforço

de reflexão mais do que esforço de ação, tal é o segredo do

verdadeiro Domínio de si mesmo. Êste é um valor

eminentemente comum a todos os homens, pelo próprio fato de

serem Homens. Valor que deve suscitar uma reflexão metafísica

em um plano que não está na ordem da ciência, mas que a

reflexão lógica sôbre a ciência toma verossímil.

Para que êste esforço de maturação até à extrema velhice,

se êste amadurecimento desaparecer com a des-

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AMOR E VONTADE: PAIXÃO PELO “OPTIMUM’ 185

traição do corpo? Para que esta ascensão de adoração se ela não culminar Naquele que é supremamente adorável, em um Deus pessoal, em Deus-Amor?

Para Teilhard de Chardin “a solução completa do problema da felicidade (está) na direção de um Humanismo cristão ou, se preferirem, na direção de um Cristianismo super-humano”.

PAIXÃO PELO “OPTIMUM” E PERIGOS DO EGOÍSMO.

De modo que a Vontade consiste, para cada um de nós, em tornar-nos sempre mais aquilo que é nossa vocação de Ser, mas também de Ser social, isto é, membro da humanidade, que caminha. Para querer ser mais, é necessário situar-nos corretamente no mundo, de fronte às coisas e aos outros, no espaço e no tempo.

Caímos fàcilmente em dois erros complementares: a afirmação egoísta de nós mesmos, que é uma inumana des-naturação, pois o homem é um ser limitado, sofredor e mortal e que não pode equilibrar-se senão quando sua expansão é limitada pela dos outros. O culto do Eu despersonaliza a relação social, que deixa de ser inter-pessoal como deveria. Impede também o serviço e o dom pelo qual o Eu encontra seu equilíbrio em um câmbio, onde êle recebe e dá. Êste culto do Eu é a fonte da indiferença, do desprêzo ou do ódio, que são a negação do Amor necessário para a expansão de nosso Ser.

Mas para poder dar, é preciso Ser. Daqui a falsidade daquele que, sob o pretexto de lutar contra o egoísmo, chega a um esquecimento total de si mesmo. Ninguém deve deixar-se oprimir ou devorar, pois quem só dá ou só recebe não pode amar. O verdadeiro esquecimento de si não está no recalque de si mesmo. Não é senão o aban

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dono do egoísmo. Não é algo que se obtenha por um esforço incessante, mas a própria natureza dêste esforço, cujo hábito se adquiriu. Para alguém esquecer-se saudà- velmente é necessário que continue a ser, não renunciando senão ao egoísmo.

Habituamo-nos a apresentar, como heroísmo de santidade, uma desumana vontade do olvido em Deus e de despersonalização; quase como uma diminuição ou abjeção daquilo que, na realidade, nos engrandece, permitindo-nos ser perfeitamente nós mesmos.

No amor para com os outros (que nos é necessário no segundo tempo da procura da felicidade) não se trata apenas da nossa própria ascensão mas também de ajudar-nos à ascensão dos outros, não os impedindo de amar-nos com um verdadeiro amor equilibrado, quer por um altruísmo excessivo e falso, quer por egoísmo.

No tempo da adoração, não se trata de se deixar perder num Todo despersonalizante, mas sim de superperso- nalizar-se caminhando para um Ideal. Ora o mais perso- nalizante de todos os Ideais é o verdadeiro Deus, pessoal e transcendente.

Que coisa é necessário querer? É preciso ter a paixão pelo “optimum”, desejando-o com tôdas as próprias forças e lutar para manter-se neste desejo. Mas a paixão dêste “Optimum” (tomando aqui “paixão” no sentido trágico da palavra) é justamente não nos apaixonarmos pelo “Optimum”. Acontece com êle o mesmo que sucede com a Liberdade: aquêles que mais apaixonadamente a desejam são os que contribuem, contraditoriamente, para despedaçá-la. O “optimum” não é desejado porque nos parece sinônimo de moderação, daquilo que não exige o menor esforço, daquilo que vai por si. Nós reservamos a paixão para os extremos: alguém é apaixonadamente conservador ou retrógrado, revolucionário ou progressista; alguém é

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violentamente partidário desta ou daquela opinião, sem per-

ceber que desta maneira não atingirá nem a verdade nem o

equilíbrio.

Aqui também, é necessário distinguir um Falso Op- timum, que é o culto moderado de um egoísmo desnatu- rador, que é a vontade estática de não avançar nem recuar. Seria caricaturar o “Optimum” ver numa tal opinião uma média, centrista, não engajada e desapaixonada.

O verdadeiro “Optimum” é a procura apaixonada da Verdade numa luta entusiasta para ascender; é pôr tôdas as próprias fôrças na tarefa Humana, recusando perder o precioso tempo; é precipitar-se para o alto, para o verdadeiro, mas com prudência (uma prudência apaixonada ou uma paixão prudente!). Precipitar-se sem prudência é enganar-se e acabar perdendo tempo.

Dar o verdadeiro sentido ao “Optimum” é assim tornar a dar a própria significação à virtude, à fôrça de prudência que não é recusa escrupulosa de agir, mas sim uma audácia refletida.

Esta necessidade do “Optimum” para estar na Verdade é, já vimos, uma lei biológica de equilíbrio de nosso cérebro; é a regra de nossa saúde psicossomática, que não aceita nenhum excesso em nenhum sentido.

Ê preciso um “Optimum” de oxigênio, de hormônios, de

vitaminas; um “Optimum” igualitário nas relações sociais. Para

definir o “Optimum” (esta linha média pela qual é preciso

caminhar com um dinamismo apaixonado), o melhor é perceber

sempre os dois limites opostos, que marcam as fronteiras dos

desequilíbrios.

Num espírito, que chamam de Cartesiano, bem gos-

taríamos que a Verdade estivesse de um lado e o Êrro do outro.

A Verdade está antes na síntese de duas afirmações, que

isoladas seriam erros, mas que unidas, compen

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188 O DOMÍNIO DE SI

sam seus excessos e mostram a verdadeira realidade. Ê justa a afirmação que a tese e a antítese não são senão aparentemente contraditórias e que a Verdade se encontra na síntese superior, que retém aquilo que tinham de verdadeiro as teses em aparente contradição.

A paixão pelos extremos, a confusão do “Optimum” com a Inação é uma tentação natural de desnaturação, pois para nós é um verdadeiro caminho de perdição.

Balizemos lucidamente a via média, que é a via do verdadeiro Amor. Progridamos nela apaixonadamente, pois ela é a difícil síntese do espírito de conservação com o espírito de progresso. Nela o progresso é realização; logo melhor conservação das possibilidades naturais de origem e não um caminhar cego e destruidor. Nela a conservação não é a recusa de realizar melhor os valores, mas orientação do progresso, reconhecimento do dinamismo da verdadeira natureza humana, que é a vontade de lutar pelo melhor a fim de não cair no pior.

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dMatal Çsteves da ç^iíva Acad. Filosofia - U F G Fone: 225-9810

Conclusão

Tradicionalmente a Vontade é um poder, uma fôrça, que está em nós e que a Moral nos impõe usar, mas só a serviço do Bem. Os progressos da psicologia científica e da psicopatologia nos tornaram bastante cépticos sôbre a existência da Vontade humana. Alguns chegaram até a duvidar se não seria ela apenas uma ilusão. Nós obedecemos a tantos determinismos imperiosos naturais .e patológicos, que poderíamos pensar não ser a Vontade senão a camuflagem de um impulso todo-poderoso, que aceitamos a fim de não reconhecer a onipotência dela.

Nossa impotência em querer é uma boa desculpa sempre pronta. Além disto para que serviria esta fôrça de realização senão para permitir a nos comprometer segundo nosso bel-prazer. De fato, que coisa iremos querer?

Os moralistas das diversas escolas e os amoralistas não estão absolutamente de acôrdo sôbre o Bem e o Mal. Ainda aceitando uma determinada noção do Bem e do Mal, seria porventura isto ter Vontade livre? Não estaremos apenas aderindo à Vontade de um outro? Não é por acaso um dos principais argumentos do ateísmo a existência de um Deus todo poderoso, que nos fixa leis e normas negando assim a nossa Liberdade?

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190 O DOMÍNIO DE 81

Os marxistas vêem nesta crença o meio dos ricos pa-

ralisarem a vontade popular pregando a resignação, que é a

obediência à própria vontade projetada em um Ser

sobrenatural. Certos psicanalistas não podem deixar de ver a

visão nevrosante de um Deus paternalista, caricatura do pai

abusivo e opressor.

Querendo ser livre e totalmente autônomo o homem

moderno não concebe a Vontade senão como possibilidade de

fazer o que bem lhe aprouver, tendo assim uma conduta

absurda, na sua insignificante fantasia, que não visaria senão

uma satisfação egoística instantânea.

O homem moderno se encontra numa dúvida total, no

momento em que, já libertado, tem necessidade sob pena de

catástrofe, de saber que coisa fazer da própria Liberdade, que

coisa querer. Para sair desta dúvida, deve êle saber

cientificamente e objetivamente que coisa é ser Homem.

Foi o que fizemos, baseando-nos na constituição neu-

robiológica, nos mecanismos que nos dão a possibilidade de ser

um Homem. Estamos aqui num terreno científico e objetivo,

valor comum que todos devem aceitar, quaisquer que possam

ser suas opções metafísicas.

Construir primeiro o Homem sôbre a metafísica seria,

atualmente, nunca chegar a um acôrdo. Funcjando-nos porém

sôbre a biologia humana ninguém poderá contestar nossos

argumentos. Não queremos dizer com isto que o nível

metafísico (o único totalmente essencial) não valha nada. Ao

contrário, é refletindo sôbre a significação científica do Homem

que deveremos logicamente voltar às explicações metafísicas

dos incontestáveis valores humanos.

Se procurarmos desesperadamente localizar ou captar no

cérebro a Vontade, seria esta uma tentativa tão inútil quanto a

de situar nêle a inserção dela, isto é, a mistério-

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CONCLUSÃO 191

sa central, desde a qual uma fôrça espiritual, chamada

Vontade, acionaria a mecânica corporal.

Enquanto fôrça independente a Vontade não existe. Ela é

uma função cerebral, isto é, uma maneira de ser, que,

contrariamente ao preconceito usual, não consiste em uma

extraordinária tensão motora positiva de ação ou negativa de

retenção e domínio. Ê, como vimos, o encargo pessoal da

conduta e do psiquismo. O essencial não é pois a ação ou o

domínio, que resultarão automàticamente da nossa decisão

lúcida. “O essencial é a lucidez, a reflexão, o juízo”. Êste é o

poder que nós temos e que não tem, por insuficiência cerebral,

o animal. Nós nos situamos acima da ação para contemplar a

significação total dela com relação a nós e a nossa situação no

mundo das coisas e dos outros homens. Tôda vontade que

escolhe o Mal é pois um sem-sentido, pois seria um poder

personalizante que escolheria o caminho da despersonalização.

A Vontade não será Vontade Humana verdadeira senão quando

fôr um esforço de lucidez, que nos mostre o valor humanizante

do Bem. Para nós mesmos e para os outros.

Efetivamente, se nós considerarmos a Vontade como um

absoluto, que não precisa lutar contra determinismos, como o

serviço de uma liberdade total, por nada limitada, não teríamos

diante de nós a vontade Humana. Esta, é uma luta contra os

determinismos para escolher obrigatoriamente o caminho do

Bem.

Difícil necessidade esta de conciliar liberdade com obri-

gação! Não há senão um caminho possível sob múltiplas opções

e maneiras de realizá-la. Num certo sentido não somos livres de

querer o que bem nos aprouver, se quisermos, sendo homens

nos conduzir como Homens, e progredir na humanização. Êste é

nosso lógico dever não por imposição estranha, mas pela

imposição nossa a nós mesmos, livre

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192 O DOMÍNIO DE SI

mente mas com lucidez, de nos comportar segundo a nossa

natureza.

Teoricamente o condutor de uma máquina está livre para

fazer dela o que bem lhe aprouver. A não ser porém que seja

doido ou sabotador, êle deverá conformar-se com as indicações

do construtor.

No caso da máquina, o modo de emprego é estranho à

máquina, ainda sendo ela automática. Êle está no plano de

construção que ela recebeu do construtor. No caso do Homem

(se quisermos ficar no plano dos fenômenos materiais) não há

construtor, pois nosso organismo se auto- construiu, em virtude

da Interação entre a hereditariedade do modo de emprêgo, de

funcionamento correto, que a biologia revela, dizendo com

precisão as finalidades de tô- das as engrenagens orgânicas.

Muitos cientistas não aceitam a palavra “finalidade”, pois

vêm nela uma teoria filosófica que não tem nada que ver com a

ciência. Há certamente uma filosofia da finalidade que nos

revela o sentido completo dela. Mas uma coisa é estudar

metafisicamente o problema da finalidade e outra constatar o

fato das finalidades orgânicas, que não podem ser negadas sob

pena de renegar a fisiologia e a medicina. Nunca médico algum

faria uma Relação Kinsey do fígado, classificando os diversos

tipos de células baseando-se apenas na noção de freqüência,

sem nenhuma distinção entre normal e patológico. O médico

institui provas funcionais para saber do fígado de cada um em

que medida é êle normal, isto é, capaz de assumir corretamente

suas próprias funções. Da mesma forma deveria ser impossível

a um psicólogo e a um sociólogo descrever um comportamento

humano sem dar um juízo do valor sôbre a significação do tal

comportamento em relação à norma do dinamismo de

humanização, de conformidade à utiliza-

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CONCLUSÃO

ção normal, isto é, libertadora de um cérebro hierarquizado, são

e verdadeiramente adulto.

É paradoxal ver o admirável esforço das filosofias mo-

dernas dar no nada. Elas se obstinam em considerar-se

meramente descritivas, fenomenológicas, recusando-se a in-

teressar-se pelas noções metafísicas de Essência, de Natureza e

de Ser. É justa a crítica que elas fazem sôbre uma certa

maneira tradicional de considerar metafisicamente a natureza

humana. Convenhamos todavia que esta situação se encontra

apenas numa escolástica fixa, rígida, infiel a seus próprios

fundadores. Esta, em efeito, não faz outra coisa senão repetir as

palavras dêles, sem melhorar-lhes a formulação a fim de torná-

la mais adequada aos princípios, graças aos progressos do

conhecimento científico.

Mas por êste fato de ter sido o Ser considerado assim,

demasiado estaticamente e sem história, não há porque recusá-

lo mas sim restituir à natureza humana, que é Pessoa, sua

verdadeira face dinâmica. Ê a isto que nos obriga o

conhecimento científico do Homem, pois tal conhecimento não

é apenas a descrição fenomenal de mecanismos e de órgãos,

mas conhecimento material de um Ser unificado e das

condições materiais da espiritualidade dêle. Um conhecimento

que leva obrigatoriamente à Metafísica.

A verdadeira Vontade é o desejo de conformar-se a esta

natureza, que é em nós como que um órgão de programação

(isto é, não algo já feito, mas algo para ser feito e que não se

impõe a nós senão logicamente). Em outras palavras: não

temos o poder de recusar estüpidamente aquilo que é a

finalidade de nosso Ser e o segrêdo da verdadeira Felicidade.

Muitos de entre os homens tinham crido haver-se libertado

completamente, eliminando Deus e a Moral. Tinham caído na

ilusão de facilidade, comum a crentes e

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194 O DOMÍNIO DE SI

descrentes de pensar em Deus, como inteiramente estranho a êles mesmo e na Moral, como uma imposição externa, sem nenhuma outra significação senão a subrenatural. Ora, nem Deus nem a Moral são inteiramente elimináveis se quisermos continuar a Ser e a Querer. Querendo-nos imprudente e falsamente completamente livres, perdemos nossa Liberdade e nossa Vontade. Tornamo-nos escravos de tôdas as tentações naturais de desnaturação, provenientes dos níveis inferiores de nosso organismo.

A dúvida metafísica permite eliminar a Moral sobrenatural e

a transcendência de Deus (coisa afinal ilógica para o crente),

mas é impossível eliminar tôda e qualquer Moral assim como

todo e qualquer aspecto de Deus.

Há uma Moral Natural que depende da nossa própria constituição orgânica. Recusá-la é ignorância, que, por sua vez, é uma falta de higiene. Esta Moral Natural se baseia na significação do mundo e dos sêres, qualquer que seja a origem dêles. Significação que, metafisicamente, ainda para quem não acredita no Deus verdadeiro, no Deus completo, é uma Harmonia, um Ideal, como é para o crente, Êste sabe ser tal o aspecto imanente, presente ao mundo, do verdadeiro Deus.

O conflito atualmente não existe mais entre materialistas e espiritualistas, entre ateus e crentes em Deus, no sentido clássico das palavras. O conflito está agora entre espiritualistas materialistas, que recusam a plena dimensão do espírito, não conservando dêle senão o aspecto encarnado, as condições materiais e os materialistas espiritualistas para os quais estas condições materiais são logicamente o caminho que os conduz à confirmação da natureza metafísica verdadeira do espírito. Há também um conflito entre os crentes do verdadeiro Deus, que não é um déspota alienador mas o criador responsável da liber-dade humana, o respeitador da dignidade, relativamente

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CONCLUSÃO 195

autônoma das criaturas (pois que esta autonomia é o modo de ser dêles) e os crentes em um Deus impessoal, meramente imanente; logo, sem existência própria e que êles chamam Infinito, Ideal, Harmonia, Amor.

Quando êstes dois grupos antagônicos entrarem em acôrdo sôbre os valores comuns de um mundo em Amori- zação, no qual o único dever do Homem é de ser superamo- rizador, então vai ser-lhes bem mais fácil professar uma verdadeira tolerância. Esta não é absolutamente o ceticismo desabusado diante da impossibilidade de conhecer a Verdade ou a concessão tristonha diante do êrro, mas aceitar que existem níveis diferentes de Verdade à qual a adesão universal é cada vez mais difícil, pois toca cada vez mais o engajamento livre e responsável de nossas pessoas. Em uma perspectiva dinâmica de progresso, na qual “tudo quanto sobe, converge” (Teilhard de Chardin), temos a certeza de que o caminho de cada um, ainda mantendo seu próprio ângulo de visão e na condição de dirigir-se sempre para o mais verdadeiro, não deixará de en-contrar-se com o dos outros, se êstes agirem também nas mesmas condições.

Nesta procura apaixonada pelo “Optimum”, que nos leva a erros extremados (bem pouco “optima”) pois não sabemos o que nos convém, há duas oposições furiosas.

Há os partidários da luta, da conquista, do esforço para conseguir tudo pela Vontade do Homem com suas próprias e únicas fôrças (o que equivale a um sonho de Prometeu de um homem nôvo melhorado). Há os partidários do abandono, do desapêgo da submissão a uma graça extra-humana, que recebemos gratuitamente, quer venha ela de Deus ou de algum misterioso poder apaziguador de uma comunhão com a natureza.

Também aqui, a nourofisiologia da Vontade é esclare-cedora, pois permite estabelecer a Verdade na síntese do

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196 O DOMÍNIO DE SI

esforço e do abandono, restabelecendo a continuidade entre Graça e Vontade. Se a neurofisiologia nos confirma a necessidade personalizante do esforço, não porém de um esforço qualquer, mas sim de um esforço de conquista, de conquista de nossa Verdade baseada no conhecimento daquilo que somos chamados a ser, segundo aquilo que somos. Não temos que inventar-nos, mas sim achar-nos. A novidade não é total nem à nossa fantasia. É ela conformidade a êsse programa de ser, que está em nós. Na falta de tal programa, essa novidade não seria senão fracasso e monstruosidade.

A ascese não tem por fim castigar a carne, mas sim permitir-lhe realizar sua verdadeira significação personalizante.

Mas, inversamente, a ascese deve ser base de distensão e de abandono. Aquêle que se crispa todo tentando dominar desesperadamente os impulsos, que lhe escapam ao controle, ainda não chegou até aí. Ê preciso, primeiramente, ter aprendido calma e lucidamente, a fazer o inventário de si mesmo; a cultivar sua atenção para chegar a unificar-se e atingir o pleno domínio. As técnicas da Vontade não são técnicas de esforço físico, mas técnicas de repouso, de relaxamento, de descrispação. São técnicas que nos permitem retemperar a nós mesmos. Graças a elas, após êste contato, que tem origem no âmago de nosso ser, nós nos tornamos capazes de ascese e de saber Querer.

Não é, por acaso, significativo, constatar esta convergência

do estado cerebral entre a auto-hipnose lúcida dos estados de

relaxação e os estados de êxtase místico? A finalidade

metafísica de certos métodos psicofísicos é precisamente a

União Mística, pela qual o santo chega a ser mais

autênticamente e ativamente êle mesmo, submetendo-se, em

aparência, passivamente à influência de um Deus

personalizante.

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CONCLUSÃO 197

É pois um êrro grave confundir a Vontade com certa pretensa virtude de Orgulho. O Orgulho é, ao contrário, a tentação do fraco que se julga forte e recusa considerar sua fraqueza natural. É muito significativa e verdadeira a velha história do Pecado Original, do qual o Cristianismo fêz um dogma. É bem aceitável que o Homem primitivo, apenas emergido para a liberdade responsável, ficasse endoidecido de orgulho e desejoso de decidir a seu bel-prazer sôbre o Bem e o Mal, em lugar de seguir as verdadeiras indicações de sua natureza. Êste é o drama de nossas tendências naturais, das quais umas nos impelem a subir (únicas autênticas!) e outras, porque incompletas, nos levam a descer o apetite do prazer do menor esforço, que nos priva da verdadeira alegria. No entanto é a êste abandono ao prazer, que batizamos de Vontade!

Vimos cientificamente como nossa fôrça se funda sôbre

uma fraqueza, como nossa Vontade não pode apoiar-se sôbre

bons automatismos instintivos. Nunca se insistirá demasiado

sôbre as inferioridades que resultam de nossa superioridade,

que nos obrigam a refletir lucidamente com prudência sôbre o

que é necessário querer

Há certamente indivíduos normais e indivíduos doentes,

quer se trate de perturbações endócrinas ou de neuroses. Mas,

se há uma diferença de natureza em um mesmo

comportamento, conforme fôr êle normal ou patológico, pois o

indivíduo que assim procede nunca está totalmente alienado

(exceto em casos extremos de comas) nem totalmente livre e

senhor de si. A patologia não faz ser.ão, fundamentalmente,

incrementar nossas tentações naturais de desnaturação e

tornar mais difícil a Vontade. Tanto o doente como o são devem

pois, fazer esforços de lucidez e de domínio. Não há porque

instalar-se no “ghetto” de irresponsabilidade, no qual se

encerram os normais sob o qualificativo de anormais e de

doentes. Como se os normais

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198 O DOMÍNIO DE 81

estivessem verdadeiramente sãos com graves erros de conduta, devidos às próprias ignorâncias e imprudências, que os fazem conduzirem-se com menos desculpas como doentes. Como se os anormais estivessem em um estado estático de deficiência total, no qual tôda ascensão lhes tivesse sido interdita. Todos, doentes e sãos, no abandono distendido à Graça, devemos fazer o sorridente esforço de domínio, que nos fará subir, apesar de nossas dificuldades e quedas. Todos nós, não somos normais ou anormais, mas sim Homens, que devem humanizar-se, isto é, progredir em um esforço, que nenhuma droga jamais substituirá, ainda quando seja ela indispensável para diminuir algum determinismo patológico. O esforço infrutífero pode ser mais humanizante que um esforço demasiado fácil.

Um esforço sorridente, um esforço alegre: tal é a última mensagem da fisiologia da Vontade. Querer amar; gostar de Querer não bastam. Querer ser feliz não comporta apenas a lucidez sôbre as condições da felicidade, bem delineadas por Teilhard de Chardin. Comporta também a “Vontade de Sorrir”; o dever, o esforço de sorrir, não apenas um sorriso crispado, que é um sorriso superficial, que não traduz o estado profundo do organismo. O verdadeiro sorriso é uma maneira de ser de nossos centros reguladores afetivos do hipotálamo, que nos põem orgânica e psicologicamente em estado feliz.

O Homem, ser social, tem o dever de ser um “criador de

alegria”. Impondo-se a si próprio êste dever de alegria co-

municativa, é êle obrigado a pôr-se a si mesmo neste estado,

isto é, a realizar mais fàcilmente em si mesmo êste equilíbrio

altruísta, fonte de felicidade.

Acabemos, uma vez por tôdas, de esperar que do mundo e

dos outros, nos venha a alegria. Descubramos por tôda a parte

razões para sorrir, a fim de poder assumir o dever higiênico de

sorrir. Um sorriso lúcido, que não é o

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CONCLUSÃO 199

otimismo beato, mas realismo baseado na virtude da es-

perança, virtude do saber querer.

Na mesma medida em que nos deixamos perder no negro,

no incoerente e no absurdo, nesta mesma devemos

testemunhar a luz, a harmonia, a beleza e a bondade.

Querer esperar, apesar de tudo é sempre, pois (em que

pese êste duro combate e seus fracassos, que acabarão

somente juntamente com a Humanidade) o Mal não pode

vencer, pois é negativo, é uma diminuição do ser. Apesar de

nossa falta de lucidez e de nossas tentações, como deixaremos

de ter, ao menos em certas horas, a intuição dêste Bem, único

que pode dar-nos a verdadeira felicidade ?

“Mas, escreve Péguy, a esperança, disse Deus, eis aquilo

que até a mim, me espanta. É verdadeiramente espantoso! Que

êsses pobres filhos vejam como tudo se passa e ainda creiam

que amanhã tudo melhorará!... É verdadeiramente espantoso e

é exatamente a maior maravilha de nossa Graça”.

O R. P. Teilhard de Chardin, na sua lucidez, nos dá êste

conselho: “Creiamos pelo menos. Creiamos tanto mais forte e

desesperadamente quanto mais a realidade parecer

ameaçadora e irredutível. E então, pouco e pouco, veremos

distender-se depois sorrir, depois nos tomar em seus braços

mais que humanos, o universal Horror... Visto como, com

coração puro, temos crido intensamente no Mundo, o Mundo

abrirá diante de nós os braços de Deus. Nesses braços, então,

devemos jogar-nos, para que se feche em tôrno de nossas vidas

o círculo do Ambiente Divino. Êste gesto será o de uma

correspondência ativa ao dever quotidiano. A fé consagra o

mundo. A fidelidade comunga com êle”.

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200 O DOMÍNIO DE SI

Escutemos finalmente o Pe. Termier na esplanada de Québec: “Procura compreender, procura conhecer e em todo caso, ama. Abre os olhos à beleza do mundo e tua alma ao mistério. Quando tiveres compreendido, explica então a teus irmãos”.

Page 200: O DOMÍNIO DE SI.doc

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Page 203: O DOMÍNIO DE SI.doc
Page 204: O DOMÍNIO DE SI.doc

r

I n d i c e

INTRODUÇÃO ...................................................................................... 13

CAPÍTULO I

O CÉREBRO, ÓRGAO DA VONTADE

Vontade e Cérebro .............................................................................. 33

O Domínio Voluntário ......................................................................... 35

Sensibilidade muscular e harmonia do gesto ...................................... 39

Aprender a agir: Gnosias e Praxias ..................................................... 44

As zonas motrizes cerebrais ............................................................... 45

Dos automatismos cerebrais à Vontade .............................................. 47

O Eu cerebral ...................................................................................... 49

CAPITULO II

VONTADE ANIMAL E VONTADE HUMANA

Complexificação cerebral e níveis de Vontade .................................... 53

Lugar da Vontade nos comportamentos .............................................. 50A superioridade cerebral humana: a linguagem .................................. H3O pré-frontal humano, Vontade refletida do Bem ................................ OH

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206 O DOMÍNIO DE SI

CAPITULO m

PATOLOGIA DO CÉREBRO E PERTURBAÇÕES DA VONTADE

Normal e Patológico ............................................................................73

Vontade e doenças do cérebro: Apraxias, perda de iniciativa

motriz, desdobramento da personalidade .................................... 78

Equilíbrio do ambiente interior e Vontade. As perturbações

hormonais ................................................................................... 84

Haverá medicamentos para a Vontade? ..............................................88

Vontade e Neuroses ............................................................................90

Hipnose e Sugestão ............................................................................92

A Psicocirurgia e os seus perigos ........................................................94

O canhotismo contrariado ...................................................................95

A fadiga nervosa .................................................................................96

CAPÍTULO IV

A OBRIGAÇÃO DE SABER QUERER E OS PERIGOS DA IGNORÂNCIA

Verdadeira e falsa Liberdade ..............................................................101

A satisfação humana das necessidades ...............................................105

A alienação social ...............................................................................109

CAPÍTULO V A EDUCAÇÃO DA VONTADE

A moral positiva .................................................................................113

Permanecer adultos: aprendizagem permanente ................................115

As condições do estado adulto humano: prolongação da imaturidade . 117

Necessidade da cultura .......................................................................119

Preeducação do menino ......................................................................124

Aprender a ser para saber viver: a verdadeira educação . . . . 133

Importância humana da adolescência .................................................136

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INDICE

Capitulo VI CIVILIZAÇAO E VONTADE

Progresso cultural e Cérebro .............................................................. 141

Necessidade da higiene social ............................................................. 144

Há progresso para o homem? .............................................................. 145

A verdadeira libertação: Socialização e Noosfera ................................ 147

Capítulo VII AS TÉCNICAS DO QUERER

Conhecer o próprio bem: a Moral do cérebro ....................................... 153

Educação psicofísica e Vontade .......................................................... 155

O exemplo oriental: o Yoga e o Zen..................................................... 157

Necessidade da relaxação: métodos dela ............................................ 159

Controle cerebral pelo método Vittoz .................................................. 160

Conselhos para o Homem normal ........................................................ 161

Psicopedagogia da Vontade ................................................................ 166

Capitulo VIII AMOR E VONTADE: PAIXAO PELO “OPTIMUM"

Espontaneidade e cérebro: querer amar ............................................. 171

Gostar de querer: as condições da felicidade ...................................... 181

Paixão pelo “Optimum” e perigos do egoísmo ........................................ 185

CONCLUSÃO ....................................................................................... 189

BIBLIOGRAFIA SUMARIA ...................................................................... 201