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Ano III - agosto - Nº 17 Edição especial de aniversário www.oduque.com.br

O Duque #17

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Jornal de cultura do interior do Paraná

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Ano III - agosto - Nº 17Edição especial de aniversário www.oduque.com.br

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CONSELHO EDITORIALEdição nº 17 / Ano III

O jornal da cultura de Maringá e região18.427.739/0001-40

DIRETOR ADMINISTRATIVOMiguel Fernando

DIRETOR DE ESTRATÉGIAGustavo Hermsdorff

DIRETORA DE CONTEÚDOLuana Bernardes

REVISORZé Flauzino

COLABORADORESVictor Simião - Literatura (páginas 12 e 13)Rafael Saes - Walkers Project (páginas 16 e 17)Gilmar Leal Santos - Poesia (página 19)Paulo Petrini - Jazz (página 20) Rachel Coelho - Teatro (página 21)Ivana Veraldo - Resenha (página 22)Vinicius Huggy - #Sarau (página 23)

Departamento Comercial44 9959-8472

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As colocações expostas por convidados ou entrevistados são de responsabilidade exclusiva dos mesmos.

DESIGN EDITORIAL E JORNALISMO

ARTISTA DO MÊS

Paolo Ridolfi Capa

Impressão: GrafinorteTiragem: 3.000 exemplares24 Páginas / Tablóide Americano

FILIADO A FOMENTADO POR

AS MATÉRIAS DA EDIÇÃO EM 5 MINUTOS

expresso

Entrevista com Paolo Ridolfi

Foca, teatro em todos os sentidos

Nepal, um país em reconstrução

Diálogo entre culturas e um crime a desvendar

Artista plástico maringaense falou sobre suas recordações do prédio da antiga rodoviária, que escolheu de tema paraa capa dessa edição especial. (Página 09)

A produtora Rachel Coelho fala sobre a importância de cursos e formações para artistas do teatro na cidade (Página 21)

Série fotográfica de Rafael Saes, o fotógrafo maringaense que visitou o Nepal dois meses depois da série de terremotoso que destruiu o país (Páginas 16 e 17)

A professora doutora Ivana Veraldo divide sua experiência ao ler "Que fim levou Juliana Klein?", novo

romance do escritor Marcos Peres (Página 22)

Patrimônio Histórico:nossa memória (des/cons)truídaReportagem especial dessa edição resgata a história da preservação e do tombamento de grandes construções

na cidade, explicando o que é um tombamento e os motivos pelos quais nem todos foram preservados

(Páginas 04 a 08)

Matéria de capa

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Especial

A canção que deu nome à nossa cidade nasceu de um momento de despedida, ou melhor, da lembrança desse momento. Afinal, o carioca Joubert de Carvalho só teve contato com a lenda da cabocla nordestina por meio de um amigo que jurava ter presenciado o adeus. Não fosse a memória e essa vontade tão humana de preservá-la, é bem provável que nossa cidade nasceria e cresceria sem um refrão para chamar de seu.

Se hoje Maringá beira os setenta orgulhosa de sua origem é porque entendemos que essa memória faz parte da nossa identidade coletiva e a abraçamos como tal, transferindo de geração para geração a responsabilidade de preservá-la. Da mesma forma, não existe uma identidade individual: nós construímos o que somos em relação à essa identidade coletiva, mesmo sem perceber. Falar da memória da cidade, portanto, é falar sobre a memória de cada um.

Assim como nosso cérebro não armazena com perfeição tudo que acontece em nossa vida, a nossa memória coletiva também passa por esse processo de escolhas. Nomes, costumes, construções e histórias são preservadas ou esquecidas e é na sobreposição dessas escolhas que moldamos nossa identidade. Segundo o historiador Reginaldo Dias,

Devemos olhar para o passado não para manter a queixa, mas em busca de uma análise esclarecedora em direção ao futuro

isso também acontece no imaginário coletivo. "As coletividades também têm essa estratégia, só que eventualmente a comunidade precisa estar organizada e estabelecer critérios para estabelecer políticas de preservação", completa. É para isso que as políticas de preservação e tombamento devem funcionar.

De qualquer forma, nunca perdemos definitivamente. O prédio da antiga Rodoviária e Terminal Urbano de Maringá, por exemplo, deu lugar a um vazio no coração da cidade e de muita gente que passa por lá todos os dias. A construção hoje só podemos ver em fotografias, mas a discussão sobre preservar ou não uma edificação histórica ganhou importância na pauta do maringaense e vai ser fundamental para as próximas decisões que devemos tomar.

Em artigo sobre memória, o psicólogo e historiador Vinicius Gomes cita dois filósofos alemães que contribuíram muito para a discussão. "Enquanto Nietzsche detalha as formas de esquecimento a que estamos sujeitos, Theodor Adorno escreve vários ensaios sobre a necessidade de não nos esquecermos de um episódio ruim a fim de não repeti-lo". Tanto Nietzsche quanto Adorno defendem que a memória sobre um erro não

deve servir para manter a queixa e a recriminação sobre os culpados, pois isso seria "poupar-se do esforço doloroso que o esclarecimento a respeito do passado implica". A saída, portanto, está em utilizar o passado para uma análise esclarecedora "em direção ao presente".

De olho no presente, e cada vez mais cientes desse esforço necessário para o esclarecimento, Maringá teve nos últimos meses duas edificações tombadas, isto é, reconhecidas via poder executivo como patrimônio histórico do nosso município. Assim, a Capela Nossa Senhora Aparecida e o Clube Hípico se juntam à outras seis edificações que já receberam o título na cidade. Além disso, há uma lista elaborada pelo Ministério Público com 40 sugestões de imóveis que devem ser estudados e analisados e outros, mais polêmicos, que serão discutidos um dia, mas ainda não passam de conversas informais.

Ao longo das próximas páginas, o Jornal O Duque vai te mostrar como surgiram as discussões sobre preservação e tombamento na cidade, detalhando os critérios, erros e acertos que moldaram a Maringá de hoje e o que precisamos saber para as decisões que estão por vir. “Garremo a maginá”.

Gustavo HermsdorffTexto:

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Especial

Quem visita hoje o Teatro Calil Haddad em Maringá, percebe logo que ele nasceu para a história, literalmente. Inaugurada em dezembro de 1996, a construção de quase oito mil metros quadrados homenageia o pioneiro do teatro maringaense que dirigiu dezenas de espetáculos na cidade. Além do auditório com 759 lugares, a construção também abriga a Secretaria Municipal de Cultura (Semuc), o Museu de História e Arte Helenton Borba Cortes e a Divisão de Patrimônio Histórico e Cultural de Maringá. É ali que as principais decisões sobre preservação e tombamento são tomadas.

A entrada principal dá num saguão espaçoso que se comunica com todos os ambientes do prédio. À esquerda, descendo algumas escadas, um painel feito em mosaico de azulejos pelo artista paranaense Poty Lazzarotto recebe aqueles que se dirigem ao teatro e à direita temos acesso às exposições organizadas pela Semuc. Durante todo o mês de agosto, quem visitar o teatro vai encontrar objetos, fotografias e vídeos sobre os 30 anos da história da Divisão de Patrimônio Histórico da Cidade. No centro desse ambiente, uma escada em espiral nos leva direto à mesa do historiador João Laércio Lopes Leal, uma verdadeira enciclopédia da história maringaense.

Pergunto sobre a exposição e questiono se trinta anos não é pouco para uma cidade como Maringá. "A primeira discussão sobre preservação de patrimônio histórico em Maringá, na verdade, é da década de 1960, há 50 anos", conta João Laércio. "Mais precisamente em 1964 o então vereador Helenton Borba Cortes propôs ao prefeito da época, Luiz Moreira de Carvalho, a criação do Museu Histórico de Maringá, com o objetivo de reunir e preservar ferramentas, utensílios, fotografias e vestes dos pioneiros". Não por acaso, conta ele, o museu que hoje está no Teatro Calil Haddad leva o nome de Borba Cortes. Apesar dos esforços do vereador e da aprovação de Luiz de Carvalho, o museu nunca saiu do papel.

"Foi a primeira discussão real em Maringá sobre patrimônio histórico, mas ainda era sobre os objetos", conta o historiador do município. Antes de continuar, João Laércio adverte. "Precisamos lembrar também que o termo patrimônio histórico é um conceito muito amplo e aí, entenda-se, uma série de outras áreas do conhecimento que estão acoplados ao histórico que é o social, o paisagístico, o artístico, o cultural, o turístico...". Assim, não só prédios podem ser tombados e preservados, mas também utensílios, costumes e expressões que sejam reconhecidas como parte da identidade de um município, estado ou federação.

"A questão dos edifícios históricos toma corpo mesmo no fim dos anos 1980 com o primeiro bem tombado em Maringá, que foi a Capela Santa Cruz", conta o historiador, aproveitando o gancho para explicar que o "tombamento" é um ato jurídico que visa resguardar o bem (nesse caso imóvel) de alterações futuras. "Quando um bem é tombado é por que a população tem interesse em preservar suas características, por isso é feito um estudo sobre a relevância arquitetônica, a relevância plástica, a questão da localização e outros pontos pra determinar a valoração daquele bem".

Construída em 1947, a Capela Santa Cruz foi durante muito tempo um importante centro social e cultural da cidade que crescia em volta. Reunindo os fiéis do Maringá Velho várias vezes por semana, a Capela persistiu por mais de quarenta anos até ser reconhecida como patrimônio histórico de Maringá em 1988. A iniciativa veio dos próprios moradores do bairro que, vendo o tempo agir sobre a velha capela, enviaram pedido de preservação e tombamento para o então prefeito Said Ferreira. "Esse é o plano ideal, o povo tomando a frente, porque aí já se legitima o tombamento por uma questão natural. Esse é um caminho perfeito: partir das bases, do povo", esclarece João Laércio. Em 1992, a capela recebeu uma reforma financiada pela prefeitura.

É importante lembrar que o tombamento não garante a

Preservadas pelamobilização popular

SPHAN

O Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) foi criado pela lei nº 378, de 13 de janeiro de 1937, em plena vigência do Estado Novo de Getúlio Vargas. Desde então, todas as decisões de tombamento e preservação tomadas a nível federal, estadual ou municipal se ampara nessa Lei.

Especula-se que o documento base para a criação da instituição é um texto/manifesto do poeta modernista Mário de Andrade, escrito em 1936.

manutenção do bem, sendo esse caso da Capela Santa Cruz o único em que houve investimento do poder público para reforma. "Uma vez tombado, são determinados apenas os limites de alteração. O teto se mexe ou não, a volumetria, o piso, janela... são os chamados 'níveis de tombamento'. O que não estiver definido nesse estudo, pode ser alterado pelo proprietário", explica João Laércio. A aplicação de verba pública foi proibida em 2000, com a implantação da Lei de Responsabilidade Fiscal.

O tombamento da Capela Santa Cruz abriu precedente para a preservação de um patrimônio ainda mais antigo, a Capela São Bonifácio que foi construída entre 1939 e 1940 e tombada em 1993, mais uma vez a pedido da população. O fato de os dois primeiros bens tombados em Maringá serem de origem sacra não é uma coincidência, afinal o carinho dedicado às capelas foi fundamental para que houvesse uma mobilização a fim de manter a sua estrutura. Segundo o historiador Reginaldo Dias, a questão imobiliária também facilita a preservação dos bens sacros. "Aqui em Maringá a gente tem um lastro de patrimonialização de capelas. É mais fácil, porque a Igreja Católica não tem interesse em transformar aquele território em imóvel pra vender. Às vezes, é uma doação pública com aquela finalidade, então, não está no mercado imobiliário", explica Dias.

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Especial

Com dois imóveis reconhecidos como patrimônio histórico do município, os maringaenses entraram nos anos 1990 fomentando a discussão a respeito da preservação de outros bens. "Um que entra na pauta de discussão é o Hotel Bandeirantes que chega a ser tombado, mas depois é destombado pelo município", conta João Laércio. "É como se ele fosse um passo maior que a perna na época", completa. Primeira investida para preservação de imóvel particular na cidade, o caso do Hotel Bandeirantes foi emblemático, porque inaugurou a discussão entre o interesse público e privado. "Veja bem, uma coisa é tombar capela, que é mais tranquilo porque a igreja católica tem interesse também. Agora um empreendimento privado como um hotel, ainda mais na década de 90, como você vai explicar isso?", atenta João Laércio.

Apesar de interferir no destino do prédio, o tombamento não é sinal de confisco, afinal o proprietário continua com a posse do bem. Isto é, um bem tombado pode ser vendido, mas o comprador precisa saber que há um limite de alteração da integridade, pré-determinado no registro de imóveis. "A propriedade privada continua, mas as modificações se sujeitam a um debate público", explica o historiador Reginaldo Dias. Para ele, o direito à propriedade é um item fundamental nesse tipo de discussão. "Não era o caso do Hotel, mas você tem situações como de uma família herdar uma propriedade e ser uma família pobre, que só tem aquilo. Aí você vai lá e tomba o patrimônio e limita o uso da propriedade", exemplifica Dias. "Por isso você tem que achar um ponto de equilíbrio", completa.

Segundo João Laércio, o recuo em relação ao tombamento do Hotel Bandeirantes rendeu uma série de outros estudos capitaneados pela primeira vez por uma comissão técnica, a Comissão Especial de Preservação do Patrimônio Histórico de Maringá, que reúne especialistas em diversas áreas. "É bom deixar claro que essa comissão, apesar de existir na lei, ficou muito tempo desativada. Tanto para a Capela Santa Cruz quanto para a São Bonifácio foram ações feitas do executivo com o beneplácito [consentimento] da população e da Igreja Católica". A comissão, agora funcionando, volta os estudos sobre construções e obras como o Painel do Café e a sede da Umes (União Maringaense dos Estudantes Secundaristas), mas ambos não chegaram a ser tombados.

Isso destaca um outro ponto fundamental: nem todo bem que é estudado recebe a chancela para o tombamento. Tudo depende da decisão que a comissão toma em conjunto. Instituída de fato em 2003, a comissão é presidida pelo(a) Secretário(a) de Cultura e conta com a participação de representantes das universidades, do CREA (Conselho Regional de Arquitetos), do Conselho Municipal de Cultura, da Procuradoria Jurídica do Município, Secretaria da Fazenda, Planejamento e profissionais de história, sociologia e arquitetura convidados.

Uma das representantes da Uem (Universidade

Estadual de Maringá) dentro da Comissão é a chefe do Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Fabíola Cordovil, que destaca a importância de se entender o desenvolvimento urbano de uma cidade como Maringá. "É certo que em cidades dinâmicas economicamente, onde o capital circula ativamente, nem tudo é possível manter, porque as estruturas urbanas devem se adaptar aos novos ciclos econômicos que vão criar novos elementos urbanos. A memória da cidade está justamente nesta sobreposição de elementos", pondera Cordovil. "Porém, a destruição deste legado cria cidades sem peculiaridades, sem história que possa ser lida nas ruas pelas futuras gerações", finaliza.

Nessa perspectiva, se voltarmos para 2003, veremos uma Maringá em pleno auge imobiliário onde a disputa pelo metro quadrado impõe a verticalização, sobretudo da área central. Essa adaptação, como cita Cordovil, começa a colocar em risco prédios fundamentais na história da cidade. "Então surge uma polêmica que eu diria que é um divisor de águas: o prédio da Companhia Melhoramentos do Norte do Paraná", conta João Laércio. "E devemos fazer justiça ao jornalista Marcelo Bulgarelli, que foi quem levantou a questão quando trabalhava na editoria de cultura do jornal O Diário", completa.

Em dissertação sobre a história do prédio, Paulo César Thomaz, pesquisador e membro do Centro de Estudos das Artes e do Patrimônio Cultural, se refere a edificação da CMNP como "de fundamental importância para as atividades comerciais no processo de (re)ocupação do Noroeste do Paraná". Construído no final dos anos 1940, era nesse edifício que as pessoas se dirigiam quando vinham de várias partes do país comprar seus lotes de terra, e foi esse o local onde os primeiros moradores tiveram contato com o planejamento inicial da cidade de Maringá.

Situado na esquina da Avenida Duque de Caxias com a Rua Joubert de Carvalho, centro comercial da cidade, o prédio sempre foi alvo de especulação imobiliária por conta da localização privilegiada, mas a urgência surgiu quando um projeto de demolição ganhou destaque na mídia. "E a iniciativa partiu do jornal, de um profissional do jornalismo. A partir daí foi ganhando corpo a discussão, outras forças da sociedade foram se integrando, foram aparecendo pessoas contrárias...", lembra João Laércio. "Foi um processo muito desgastante, mas positivo, porque você foi colocando na ordem do dia dos maringaenses uma discussão que até então não havia".

A mobilização capitaneada pela imprensa local surtiu efeito e a Comissão decidiu pelo tombamento do prédio no início de 2004. A Companhia Melhoramentos foi notificada e concordou. Estudos, então, foram efetuados para que determinassem os níveis de tombamento, isto é, quais características deveriam ser mantidas e quais não precisariam. "Só que a comissão peca pela inexperiência, isso tem que ser lembrado", admite João Laércio, que fez parte da equipe. "Hoje, por exemplo, as janelas foram

Primeiras disputas

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Especial

trocadas em relação às originais, o teto também, agora é de PVC... só que isso foi problema da comissão que não tinha essa experiência larga para determinar os níveis e acabou de certa maneira não vendo essas condições".

Na época o historiador Reginaldo Dias também fazia parte da Comissão, atuando pelo Município. "Nós detivemos o processo de mudança do prédio. Eu sou historiador, fazia parte da administração, o prefeito era formado em história, mas mesmo assim não desenvolvemos um debate mais profundo sobre a patrimonialização", admite. Depois de abrigar a Secretaria de Educação de Maringá, o antigo prédio da CMNP trocou de dono e os novos proprietários fizeram alterações amparados pela lei.

Motivado pelo tombamento de um de seus prédios mais icônicos, o maringaense decide retomar uma disputa perdida na década passada: o grande Hotel Bandeirantes. "A lebre [questão] é levantada por conta de uma reforma que o proprietário queria fazer e que o município veta e já aproveita pra tentar novamente o tombamento", conta João Laércio. "Só que nesse contexto da discussão do tombamento via município, entra o Estado dizendo que já estava de olho no Hotel havia uns 10 anos". Segundo o Ministério Público, o Bandeirantes poderia ser o último exemplar de um hotel com características modernas no norte do Paraná, o que justificaria seu tombamento via Estado, como aconteceu em 2005. "Os proprietários tentam na justiça reverter esse tombamento involuntário, porque eles não aceitam, mas o Estado vence. É tombado e fica até hoje, faz 10 anos", completa João Laércio.

"Maringá é uma cidade de ocupação recente, mas, em menos de 70 anos, tivemos destruição de elementos extremamente relevantes para a reconstituição da memória urbana", defende a chefe do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Uem, Fabíola Cordovil. "Por exemplo, o legado da ferrovia, com toda a sua estrutura, desapareceu sem deixar vestígios".

Localizado onde hoje conhecemos como Novo Centro, a estrutura da ferrovia foi absorvida pelo crescimento da cidade. Segundo Reginaldo Dias, o fato reflete muito a sensibilidade da época. "Houve a mudança do Novo Centro com a retirada do pátio de manobras e ali havia um conjunto composto pela Estação Rodoviária e pela Casa dos Ferroviários, que merecia atenção", lembra Reginaldo. Apesar de haver um fórum criado para discutir assuntos de patrimonialização, o historiador conta que esses imóveis não foram hierarquizados como prioridade.

Avançando cronologicamente, o historiador do município João Laércio Lopes Leal lembra de dois bens que até hoje suscitam muita polêmica: o Cine Horizonte e o prédio da antiga Rodoviária e Terminal Urbano de Maringá. "O Cine Horizonte era uma construção de 1966 e ficava na Vila Operária, bairro que existe antes mesmo da cidade", conta. A discussão sobre preservar ou não o último cinema de rua de Maringá aconteceu em 2008, quando o proprietário informou a prefeitura que tinha o interesse de comercializar o prédio, que ficava na esquina da Avenida Riachuelo com a Rua Néo Alves Martins. Após os estudos, a Comissão optou por liberar a derrubada completa. "Maringá tem um mercado imobiliário fortíssimo, que é algo que você não pode abstrair também quando você vai fazer uma análise", conclui João Laércio.

"Não podemos esquecer que Maringá é o resultado de um empreendimento imobiliário, tá no DNA da cidade", complementa Reginaldo Dias, que diz se lembrar muito bem do processo de condenação e derrubada do prédio da antiga Rodoviária de Maringá. Segundo o historiador, o tema gerou debate na época, porque boa parte da população não reconhecia naquele prédio um objeto merecedor de

patrimonialização. "Se você fizesse uma enquete, talvez, grande parte das pessoas fossem votar contra [a preservação] por causa da deterioração do prédio". A opinião de Dias é endossada por João Laércio. "O prefeito Silvio Barros não tinha interesse na preservação e fez de tudo pela derrubada, mas não adianta a gente querer tapar o sol com a peneira porque também não houve um encampamento por parte da população. Caso houvesse, talvez, o destino fosse outro", completa.

A construção da Estação Rodoviária iniciou-se no final da década de 1950, ainda na gestão do prefeito Américo Dias Ferraz que acabou emprestando o nome ao prédio. Ligando a antiga estação ferroviária à praça Raposo Tavares, a Rodoviária era o primeiro local onde os visitantes tinham contato com a cidade. O prédio, que ocupava uma área de 3,5 mil metros quadrados, ostentava fachada para a Rua Joubert de Carvalho, onde era feito o desembarque e embarques dos ônibus de e para cidades do Paraná, e outra frente para a Avenida Tamandaré, onde o movimento ocorria visando cidades de outros estados. Até a finalização da construção da Catedral Basílica Menor Nossa Senhora da Glória, em 1972, o arco da Rodoviária era a principal referência da cidade.

De propriedade mista, isto é, de posse dividida entre poder público e proprietários particulares, o prédio foi alvo de disputas frequentes a respeito de reformas e manutenções. Seu estado de degradação aumentou quando, em 1998, foi construído o Terminal Rodoviário Vereador Dr. Jamil Josepetti na avenida Tuiuti. Ele absorveu todo o tráfego, deixando o antigo prédio, no coração da cidade, como um centro para pequenos comerciantes. Foram dez anos até que, por conta da queda de uma das marquises durante vendaval em 2007, a prefeitura interditasse o prédio e desse início às discussões sobre seu futuro.

"Há autores que questionam este termo [degradação] e defendem que a situação é provocada, ou seja, o edifício passa décadas sem manutenção propositadamente até estar em situação deplorável", sugere Fabíola Cordovil da Uem. "Ora, se você passa décadas sem fazer pequenos reparos em

O que ficou pelo caminho

Foto: Aldemir de Moraes

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Administrados pelo Município

Especial

sua casa, é claro que ela vai se desgastando até um ponto que ficará inabitável", completa. Para Reginaldo Dias, a situação do prédio no momento da discussão foi fundamental para falta de mobilização da população. "Às vezes, as pessoas fazem uma confusão 'você tem que preservar coisas bonitas'. Não, tem que ter uma importância histórica. O critério de beleza é diferente nesse caso", complementa.

A discussão se arrastou por aproximadamente três anos e envolveu a defesa dos lojistas, várias instâncias do poder público, historiadores, arquitetos e sociedade civil organizada. Pressionados pela situação do prédio e pelo interesse imobiliário em questão, a Comissão Especial de Preservação do Patrimônio Histórico de Maringá votou pela derrubada completa do prédio em 2009 e nem mesmo a intervenção do Ministério Público, em 2010, conseguiu reverter a demolição, que foi executada em maio daquele mesmo ano.

"Talvez, o debate do jeito que foi conduzido não tenha favorecido os preservadores dentre os quais eu me incluía", lembra Reginaldo. "E prevaleceu essa lógica do mercado, mas que também estava bem ancorada no poder público da época", completa. Para João Laércio, que fazia parte da Comissão e também votou pela preservação, a discussão

Em entrevista, para ilustrar melhor a nossa relação com a memória, o historiador Reginaldo Dias citou o personagem Funes, criado pelo escritor argentino Jorge Luis Borges. "O Funes era um cara que lembrava de tudo na exata extensão do que havia acontecido. Ele se lembra de todos os dias, exatamente da forma como ocorreu, minuto a minuto, segundo a segundo. Isso significava que ele estaria deixando de viver o dia de hoje pra viver o dia que passou". Apesar de Borges ser referência quase obrigatória para os literatos da cidade, entre eles o próprio Dias, nós não precisamos assumir esse papel de Funes e podemos deixá-lo só para as ficções.

Não podemos mais visitar a antiga Rodoviária, a Casa dos Ferroviários, nem o Cine Horizonte, mas caminhamos todos os dias por elementos urbanos que, se ainda não são motivo de estudo, virão a ser em um futuro muito próximo. Dentre os nomes que entrarão na pauta - e nas rodas de conversa - dos maringaenses, podemos cirar o prédio onde hoje funciona o Paço Municipal, o bairro Zona 02 e o próprio Traçado Urbano de Maringá.

Traçado urbano de MaringáA imagem acima mostra o desenho original que foi

projetado pelo engenheiro paulista Jorge de Macedo Vieira em 1943 a pedido da Companhia de Terras Norte do Paraná. O projeto segue o conceito de cidade-jardim, que o engenheiro aprendeu depois de trabalhar diretamente com o inglês Barry Parker, um dos maiores urbanistas do

adentrou assuntos que não precisavam ser levados em conta. "O que deveria ser discutido era o valor histórico, porque, historicamente falando, ela tinha valor sim. Ela estava ligada à memória das populações mais carentes, mais humildes, tinha essa relação com a memória dos protagonistas anônimos da história", conclui.

"Qual o ponto de equilíbrio entre preservar e o interesse público de dinamizar a economia com o setor forte que é o setor imobiliário?", levanta questão Reginaldo. Cinco anos e dezenas de projetos depois, o espaço onde ficava o antigo prédio da rodoviária, hoje, é um vazio incrustado no centro de uma cidade que se verticaliza ferozmente, contrastando as escolhas que fazemos de forma coletiva, conscientemente ou não.

Remetendo-se à dupla de filósofos alemães citados no texto de abertura, não basta para nós olharmos o acontecido a procura de um culpado, mas sim encarar o processo doloroso que é transformar o passado em presente em busca de um esclarecimento para as nossas decisões futuras, como diz João Laércio "A rodoviária foi uma pena que ela desapareceu, mas ela serviu pra despertar mais uma vez a discussão, alimentar a conversa e deixar o patrimônio sempre na pauta, na agenda das demandas maringaenses".

mundo e responsável por trazer o estilo para o Brasil.O ponto positivo seria a preservação de um dos projetos

urbanísticos mais arrojados do mundo, protegendo de alterações que descaracterizem sua forma original. Por outro lado, também engessaria e tornaria impossível alterações e reformas urbanas por vezes necessárias, como a implantação das ciclovias. "É uma discussão muito séria, mas inevitável. Maringá é muito nova, mas em determinado momento Maringá vai ter que discutir isso", compelta João Laércio.

Zona 02"Nos domínios da Zona 02 não há verticalização

porque foi uma mobilização dos moradores daquele bairro. A associação de moradores de bairro impede que lá se verticalize, isso é exemplar", conta João Laércio, lembrando que há histórico de tombamento de bairros inteiros como o Jardim da Saúde, desenhado pelo próprio Jorge Macedo Vieira e tombado como patrimônio histórico de São Paulo em 2002 graças à contribuição urbanística.

Prédio do Paço MunicipalEm 23 de abril de 2012 a Secretaria Municipal

de Planejamento Urbano ( Seplan) apresentou para a comunidade o projeto para a construção do Centro Cívico de Maringá, próximo ao antigo aeroporto, na avenida Dr. Gastão Vidigal. Isso levará o funcionalismo público para o novo complexo, deixando o atual prédio desocupado.

Pois garremo a maginá

- Aeroporto Regional de Maringá Silvio Name Junior Dr.Vladmir Babkov, s/nº - Parque Industrial Mario Bulhoes

- Terminal Urbano Vereador Dr. Jamil JosepettiAv. Tuiuti, 180 - Vila Morangueira

- Parque do Ingá Prefeito Adriano José ValenteAv. São Paulo, s/n - Zona 01

- Parque Florestal dos Pioneiros (Bosque II)Av. Nóbrega - Zona 04

- Cemitério Municipal de MaringáRua Vereador Primo Monteschio, 435 - Zona 2

- Ginásio Municipal Espvaldir Pinheiro Vila OlímpicaAv. Colombo - Zona 07

- Parque Intern.de Exposições Francisco Feio RibeiroAv. Colombo, 2186 - Vila Morangueira

- Parque Alfredo Werner NyffelerRua Bogotá - Vila Morangueira

- Teatro Calil HaddadAv. Luís Teixeira Mendes, 2500 - Zona 05

Projeto de Maringá, traçado de Jorge de

Macedo Vieira

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Entrevista //

Então, mas aí não acho que seja do campo da arquitetura. São duas perguntas boas, eu acho. Essa mobilização deveria ter partido de jornalistas, historiadores, usuários, dos velhinhos, da cultura em pensar em se apropriar do prédio. Então eu acho que é multidisciplinar. Porque o assunto é muito mais complexo do que falar do valor arquitetônico. E quem sou eu pra dizer.... eu mal sou um estudioso. Tinha uma abóboda, um arco, sei lá como que se chama tecnicamente. Um túnel! Um túnel que ligava os dois lados da cidade. Tinha um símbolo. Pra mim o valor da arquitetura tá nesse símbolo. Embaixo dessa praça coberta podia acontecer eventos, encontros, então o conceito era muito bonito...

É uma tortura, mas é uma tortura bela. Porque era um monumento. Ela [a rodoviária] antes de morrer, nos minutos finais, ela se apresentou belíssima. Porque foi quando eu a vi mais bonita. Ela não se apresentou a moribunda mais linda? Uma coisa linda. Foi uma tristeza, mas causou uma emoção boa vê-la assim, como um monumento.

Então, isso que eu achei bacana. Isso aconteceu... aquele "benvindo" singelo escrito com letra de mão, não é? Era de neon, com metal, mas eles mantiveram uma grafia do gesto. E eu acho que tem valor nesse gesto também.

Ocorreu uma angústia, porque eu sou, sei lá, um pouco exibido, e eu pensava assim "como que o meu trabalho pode participar da capa?". Meu trabalho de pintor. Aí eu pensei "não pode". Entendeu? Aí na hora que eu falei que "não pode" a capa surgiu. Porque eu gosto muito de composição gráfica, de cartazes e pôsteres. Eu pesquiso sobre isso, então quando abri um pouco mão da vaidade de apresentar o meu trabalho, parece que a solução surgiu...

E lembra os cartazes russos também. Eu acho que a capa tem alguns segundos pra se vender. Pra chamar "Oi! Tô aqui!". Não é assim tão fácil. Então é o trabalho de entender a linguagem desse meio. E é como se fosse um recado que eu dou. Eu acho que tem que ser visto como se fosse uma defesa. E tem outra coisa: esses cartazes russos e os de manifestos são muito geométricos, técnicos. E aí quando eu começo a fazer isso é como se fosse um gesto, um afeto. É uma coisa muito pessoal e não chega a ser tão técnico porque foi feito à mão. Tem uma coisa que me incomoda no cartaz. Um defeito. Eu limpei um pouco as manchas... a imagem é fotográfica, não é pintura. Eu quis enganá-los e dar uma colada.

É... tem o contraste do preto, que é lindo. E eu não queria vermelho nem azul, que é o nosso Parintins (risos). Então, a terceira que sobra das primárias é o amarelo. Foi por exclusão mesmo. Foi uma solução gráfica, mas política, de não abraçar uma causa. Essa foi a solução plástica que eu arrumei. Abrir mão disso. Quando eu resolvi isso a capa saiu. Mas significado de cor amarela eu não sei.

Adoro isso. Isso eu também não abro mão. Se eu tivesse que pagar pra fazer a capa, eu pagaria, entendeu? Essa oportunidade de circular a ideia eu acho muito legal.

O principal. O [valor] histórico. E a localização. É uma praça e acontecia aquela passagem, entendeu? Você chegar de um lado, atravessar o prédio e conhecer a cidade.

Sim. As pessoas muitas vezes já mal intencionadas vêm com o argumento técnico e parece que é esse, hoje, o valor único. Nós vemos esses estudos de defesa, que eu acho muito legal, aí vem o outro lado com um argumento mais técnico ainda, que desmonta esse. E tudo muito bem construído, tudo muito bem argumentado.(...) Então eu não consigo transitar no campo da técnica. Eu falo da beleza... eu levo para o campo da emoção, da subjetividade...

E eu tava lendo que tinham restaurantes legais. E aí parece que você quer curar um machucado matando o bicho inteiro. "Ah, e o crack...", pô, falta polícia, falta luz. A culpa não é do prédio. Coitado do prédio, botaram a culpa no prédio.Mas não é só aqui. Eu fui pra Londrina no final de semana e resolvi me informar sobre o Mercadão da Palhano. Eu gostava tanto daquilo. Aí um blog dizia "o mistério de Londrina e suas obras inacabadas"... e citava o restauro do museu que não aconteceu ainda. O restauro do outro prédio do Artigas, uma secretaria, também não rolou. O próprio Cine Ouro Verde tá paradão... então o que é que tá acontecendo? Será que a gente não tem grana? Eu tenho essa dúvida. Eu tô pensando no Plaza. O que acontece se você manter fechado um espaço que pode ser legal? É cultura? Eu não sei onde tá esbarrando a coisa.

Nós queremos tentar entender por que o maringaense não dá esse devido valor principalmente à arquitetura. É óbvio que essa questão do valor em si se replica a outras coisas, mas especificamente nas edificações, não se teve uma mobilização que tenha sido suficiente para defender a Rodoviária, por exemplo, algo que dissesse "Hei, isso é nosso!"

Falando nesse contexto da emoção, não foi uma espécie de tortura vê-la abandonada, parada lá no meio, isolada semi-destruída.

E o que você fez questão de destacar na capa, a ironia do "Sejam benvindos" na fachada do prédio.

Aproveita e conta pra gente como foi o processo de criação da capa.

E de defender também. Porque, como eu te falei, a capa me lembrou muito aqueles cartazes de manifesto, sabe? Aquela técnica que é utilizada para fazer bandeiras.

E a escolha do amarelo, algo específico?

É um pouco de você entender que o tema era algo coletivo?

E a segunda questão, eu acho, é o valor emocional.... afetivo.

Sim. E o pior que sobre esse valor afetivo que você comentou, parece que a discussão ficou muito mais no campo técnico.

Era muito natural passar pelo meio da Rodoviária e ver todas as lojinhas. Aí chegava do outro lado e tinham os orelhões, que era onde você ligava para o pessoal vir buscar ou você corria para pegar o ônibus.

Com a tarefa de idealizar uma capa sobre memória e história para a edição especial de dois anos do Jornal O Duque, o artista plástico Paolo Ridolfi dividiu conosco, além de algumas horas no seu ateliê, suas recordações sobre o prédio da antiga rodoviária, que escolheu de tema para a capa. Por trás do característico agasalho amarelo carregado de tintas, Ridolfi falou sobre mobilização, valores afetivos e lembrou dos minutos finais do prédio como uma bela tortura "Foi quando a vi mais bonita". Confira abaixo um trecho da conversa:

"Ela não se apresentou a moribunda mais linda?"

Autorretrato

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"Foi necessário estudar a origem do circo e como este veio ao Brasil, as primeiras trupes do Paraná e também

buscar compreender o universo em que o circo fazia parte nesse período histórico. (...)

Em determinadas épocas, as arquibancadas improvisadas de até 800 lugares chegavam a ter muitas

vezes 4 apresentações por dia, sempre lotadas"

Circo //

Lonas ememóriasLivro sobre a história esquecida do Circo Paranaense terá pré-lançamento em agosto

Prêmio Funarte Caixa Carequinhade Estímulo ao Circo em 2014

O livro que resgata e reúne a história de artistas e companhias de circo que se formaram ou que passaram pelo Paraná no período de 1940 a 1970 será lançado no próximo mês, durante a cerimônia de abertura do Festival do Circo de Campo Mourão. O projeto do Instituto Cultural Ingá (ICI) foi contemplado com o Prêmio Funarte Caixa Carequinha de Estímulo ao Circo de 2014, o maior edital do país na área, e terá uma tiragem de mil exemplares que serão distribuídos em várias cidades do estado e do país.

Uma das pesquisadoras do projeto, Rosana Steinke conta que foram necessárias muitas horas de viagens e pesquisas em revistas e jornais antigos, os únicos meios em que havia alguma informação registrada. "Como a ideia era mapear algo que ainda não havia registro, pelo menos não um conjunto do mesmo, foi um trabalho de garimpo". Como todo primeiro passo, Steinke destaca a importância do livro para futuras pesquisas. "Ainda assim, creio que é um grande passo para que outras pesquisas mais locais se aprofundem na temática, que é rica e tem muito a oferecer", completa.

Focada entre os anos de 1940 a 1970, época de criação e desenvolvimento de grande parte das cidades do Estado, a pesquisa traz luz para aspectos sociais e culturais do paranaense. "Foi necessário estudar a origem do circo e como este veio ao Brasil, as primeiras trupes do Paraná e também buscar compreender o universo em que o circo fazia parte nesse período histórico", complementa Steinke. Organizado nas principais praças das cidades do interior, as apresentações mobilizavam toda a população. "Em determinadas épocas, as arquibancadas improvisadas de até 800 lugares chegavam a ter muitas vezes 4 apresentações por dia, sempre lotadas", finaliza.

Numa época em que o rádio era o principal veículo de comunicação e entretenimento, as apresentações circenses eram a chance do público conhecer e ver de perto o ídolo que até então só conhecia pela voz. "Ao mesmo tempo que havia o glamour e os aplausos, havia também a questão de viver uma vida nômade. Ser sempre o novo, o estranho, o exótico, aos olhos dos outros". Além do resgate histórico, tão necessário,

Steinke destaca a importância de se registrar a emoção e as lembranças das pessoas que fizeram a era de ouro do circo no Paraná. "Penso que o título do livro soe algo nostálgico e quem relatou sua passagem por ele,

como plateia ou como artista, também trouxe essa nostalgia nas suas palavras e no seu olhar. Afinal, o que conta mesmo na vida, são as lembranças individuais e coletivas dessas experiências comuns, não?".

Primeiro projeto maringaense a ser aprovado no Prêmio Funarte Caixa Carequinha de Estímulo ao Circo, "A história esquecida do Circo Paranaense" surgiu de uma falta de registros sobre esse tema percebida pelo diretor executivo do ICI, Miguel Fernando, que também foi pesquisador e autor da obra. “O ICI tem como premissa desenvolver pesquisas e resgates para preencher hiatos da cultura de determinadas regiões. O circo é pauta presente nesse diálogo, onde, apesar de ser considerado um dos mais importantes segmentos culturais do Paraná, sob o aspecto histórico, possuía pouco registro fora de Curitiba, onde há um livro sobre a família Queirolo. Todo caso, queríamos entender como se deu a organização circense de interior e quais foram seus principais desafios. Foi magnífico constatar, por exemplo, como as lonas se transformaram e empresas bem organizadas, e, ao mesmo tempo, como elas

enfrentaram as dificuldades perante a popularização da TV e do Rádio. Mesmo assim, o interior do estado ainda teve o circo como um sobrevivente, pois os circenses passaram a agregar outras formas de expressão artísticas – muitas provenientes do rádio – para manter seu empreendimento atrativo ao público. A exemplo disso, temos duplas sertanejas e caipiras, além dos teatros de grande apelo popular, como a Paixão de Cristo, que passaram a ser a abertura dos espetáculos circenses. ”

O processo de produção durou cerca de cinco meses, e o pré-lançamento acontecerá na cerimônia de abertura do Festival do Circo de Campo Mourão, dia 26 de agosto, no Teatro Municipal daquela cidade, a partir das 20 horas.

O lançamento oficial deverá ocorrer em outubro, durante a realização da Festa Literária de Maringá.

Arquivo do livro "Lonas e Memórias"

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Literatura //

Lá se vão 26 anos sem Paulo Leminski Filho. O Curitibano morreu em 24 de agosto de 1989. A influência dele, que já vinha desde a década de 1960, quando publicou textos em revistas concretistas como a Invenção, não foi sepultada com ele. Ela vive. Persiste. Aumenta.

Existe explicação para isso? Sim. De início, mostremos rapidamente a multiplicidade de

Leminski. Ele era poeta, escritor, compositor, tradutor, romancista, ensaísta, crítico literário, professor de redação e faixa preta de Judô. Essa mistura de personalidades, de facetas, vem, quem sabe, das mestiçagens que o curitibano carregava: polonês, mulato, índio, negro e português. Maior que a casa grande e a senzala. É por isso que ler o que ele escreveu, seja na música, na prosa ou na poesia, nos parece tão próximo. Leminski era cada um de nós. E todos nós somos um pouco dele.

O primeiro livro de poemas do bigodudo foi publicado há quase quatro décadas. Em 1976, ele lançou “Quarenta clics em Curitiba”. A obra é uma reunião de poemas do curitibano ilustrados com fotos de Jack Pires. A última obra em vida dele foi lançada 11 anos depois. Entre edições independentes e aquelas publicadas por editoras são mais de 10 livros.

A viúva do autor, a também poeta Alice Ruiz, escreveu que a vida de Paulo Leminski foi “curta, é verdade, mas intensa profícua e original”. Não há dúvidas em relação a isso.

Mas como compreender a importância que ele deixou à literatura mesmo não sendo membro de academias de letras, nem acadêmico das universidades ou um grande nome da literatura brasileira enquanto viveu? A experimentação da linguagem e a forma coloquial dela nos apontam as respostas. Essas duas características estão presentes na obra do poeta-tradutor-escritor, seja nos poemas curtos ou em outros textos. Ortodoxos que preferem poemas gigantescos, com redondilhas, versos dodecassílabos e outras “regras” podem não gostar muito do que Leminski escreveu. A simplicidade genial, ora em haicais, ora em poemas de verso livre, sobrepõe-se a qualquer academicismo. Duvida? Vejamos alguns exemplos:

“Quem me dera/um mapa de tesouro/ que me leve a um velho baú/cheio de mapas do tesouro. ”

o poeta queainda vive

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Literatura //

“O olho da rua vê o que não vê o seu. Você, vendo os outros, pensa que sou eu? Ou tudo que teu olho vê você pensa que é você?”

Em poucos versos, a mensagem se dá. Em poucas sílabas, saímos do nosso lugar comum. Para que encontrar outros mapas do tesouro? E você pensa que é você a partir daquilo que seu olho vê? A resposta depende de cada um. E o poeta sabia disso. Assim como sabia ser romântico, sem ser caricato, parnasiano ou blasé.

De tão original que foi, toda obra poética de Paulo Leminski mereceu uma compilação. Em 2013 a Companhia das Letras publicou “Toda Poesia”, livro que reúne mais de 600 poemas do autor. Um tiro-mais-do-que-certeiro dado pela editora. Para divulgar o livro, a Cia publicou um booktrailer com Arnaldo Antunes lendo “Contranarciso”. Se você não viu, aqui vai um trecho do poema (contamos com a sua colaboração para imaginar a voz grave de A.A. lendo o pequeno texto):

“assim como/ eu estou em você/ eu estou nele/ em nós/ e só quando/ estamos em nós/ estamos em paz/ mesmo que estejamos a sós”

A importância de Leminski também se deve ao mito da morte, dizem. A figura caricata dele – o bigode enorme, a cabeleira e o óculos – o tornou uma espécie de ícone pop. Nas fotos divulgadas por aí, o poeta parece ser um jovem eterno, com o mundo a descobrir. E não há problema algum nisso.

No Facebook é fácil achar muitos desses textos pop-leminski-virais. Tem esse: “acordei bemol/tudo estava sustenido/sol fazia/só não fazia sentido” e esse: “ameixas/ ame-as/ ou deixe-as”. Simples e direto. É difícil não sorrir, mesmo que de leve, após lê-los. Se você não sorriu, tente novamente, vai. Sim, eu sei. Você sorriu.

Leminski escrevia (nem sempre) versos com rimas simples, fugindo do academicismo tradicional. Compôs canções ao lado de músicos como Moraes Moreira e Caetano Veloso. Traduziu, entre outros autores, James Joyce e Samuel Beckett. Tinha 44 anos quando morreu. Teve vida curta como boa parte dos poemas dele (em extensão, é claro).

Em 1987, publicou a última obra poética em vida. Quase 30 anos depois desse lançamento, o título do livro é um mantra: “Distraídos venceremos”. Sem dúvida, Leminski. Sem dúvida!

Jornalista

VictorSimião

Victor Simião é jornalista e coordenador do Clube de Leitura Bons Casmurros

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Foto: Bulla Jr.

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Games //

RepórterEltonTelles

Proposital ou não, foi com uma camiseta de um jogo de Atari que Maria Fernanda Salgueiro, 23, apareceu à entrevista na sua passagem por Maringá. A jovem trocou o curso de Farmácia na UEM para ir a São Paulo fazer graduação de Design de Games em uma das poucas universidades do país que oferecem especialização na área. Lá ela conheceu outros sete futuros designers e formou no ano passado o grupo BrainWreck. Até então, a equipe já produziu cinco jogos virtuais, sendo que um deles foi apresentado no Windows Game Jam, evento organizado pela Microsoft. “Desenvolvemos um puzzle em 32 horas e ficamos em 2º lugar entre vários competidores do Brasil. Não posso revelar o nome do jogo, porque ainda pretendemos lançar oficialmente”, guarda segredo.

Outra intenção de Maria Fernanda é levar o BrainWreck para fora da faculdade e fazer da iniciativa um estúdio próprio. Isso porque, segundo ela, o mercado de trabalho no ramo de games busca um ideal que não existe, o profissional “faz tudo”. Em vez de as vagas de emprego procurarem alguém com domínio em uma atividade específica, optam por quem entende de tudo um pouco: programação, concept art, animação, modelagem, direção de arte, iluminação e um acúmulo de funções que nenhum super-herói daria conta. “E geralmente essa pessoa não sabe de nada, no fim das contas. Só conhece o básico de todas as etapas. Mas não tem como culpá-la, porque o Brasil é muito carente de escolas com especialização”, avalia, exemplificando com cursos de imersão no exterior direcionados à prática de aprimoramento em detalhes, como confecção de cenários e texturização de personagens.

As fases para um desenvolvedor indie se estabelecer no mercado são repletas de obstáculos. A burocracia das lojas online é um problema, porque é difícil juntar dinheiro para contratar um publisher (profissional que vende os jogos para as empresas), para comprar a licença do software e os direitos autorais, já que, na condição de produtor independente, a probabilidade de ter a ideia roubada é possível e mais recorrente do que se imagina. Além disso, a classe precisa lidar com a resistência das pessoas em reconhecerem o valor artístico dos games, ainda preso a uma concepção unilateral de que é coisa para criança ou para nerds. “É preciso amadurecimento

do público para enxergarem o videogame como mais uma forma de expressão, porque ainda é uma cultura pouco explorada e associada ao vício ou à infantilização do adulto”, observa Maria Fernanda.

Essa é uma visão que deve ser descontruída aos poucos, mas quanto à permanência no mercado, os produtores se viram como pode. Em Londrina, algumas empresas e startups já se consolidaram na criação de jogos para diversas plataformas, seja mobile ou computador. Algumas delas são a Oníria, Oktagon, Solar e a Red Stomp, onde Thiago Vannucchi, 27, atua como CEO, designer de game, artista 3D, chefe do comercial e faz o cafezinho para a equipe quando preciso. Ele comenta que são poucas e raras as empresas no Brasil que conseguem sobreviver somente com o desenvolvimento de jogos e que a realidade do desenvolvedor brasileiro é uma vida dupla: a produção dos games e a prestação de serviços para financiá-los.

“Já fizemos vários aplicativos e maquetes eletrônicas para custear nossas ideias, porque a proposta é entregar jogos divertidos, criativos e tentar elevar a qualidade dos games, que ainda é amadora em nosso país”, afirma. Há dois anos e meio na ativa, a Red Stomp já lançou cinco jogos, todos gratuitos e disponíveis no site oficial do estúdio. Entre eles, está o “Saga Pé Vermelho” em que o herói Dudu viaja por fatos curiosos de Londrina, explorando o museu da cidade. O jogo, que cumpre o objetivo de difundir a cultura local de forma lúdica, foi aprovado pelo edital do PROMIC (Programa Municipal de Incentivo à Cultura) e lançado em comemoração aos 80 anos de Londrina. No entanto, não foram só os londrinenses que aproveitaram o jogo. “No primeiro dia, foram quase 2 mil acessos de players do mundo todo, como Europa e África”, lembra Vannucchi.

Com o lançamento do cardgame “Ederon”, o londrinense André Luicci, 30, conseguiu uma projeção mundial surpreendente. O jogo reúne hoje uma comunidade de 400 mil jogadores espalhados pelo mundo e o sucesso foi tão expressivo que Luicci vendeu, no início do ano, os direitos de “Ederon” para o gigante estúdio de software Aiyra, com sede no Rio de Janeiro. De acordo com o produtor, um dos atrativos do jogo é que os usuários são medidos exclusivamente pelas suas habilidades, não importando se são free ou pagantes. “Fizemos questão de não incluir conteúdos exclusivos para os jogadores que investem dinheiro e essa renúncia

à hierarquização foi um dos motivos para que o ‘Ederon’ tenha um tempo de vida útil além do esperado”, comenta ele, diferenciando-se dos jogos de caráter caça-níqueis.

Quanto aos projetos futuros, Luicci confirma uma nova versão para “Ederon” com novidades e estrutura reformulada possivelmente para o final deste ano e a criação de um novo jogo intitulado “Voucher Knights”.

Não só entretenimentoThiago Vannucchi, da Red Stomp, atenta para a

utilização do game com outras finalidades que não somente para o lazer do usuário. “Game não é só para matar alienígena. É muito ampla a possibilidade de usá-lo como ferramenta na área da saúde, para auxiliar pessoas com problemas cognitivos, sessões de fisioterapia e também é possível inserir o jogo como veículo de propaganda para as empresas venderem os seus produtos”, enumera.

Outra função é a de usar como base para educação e auxiliar no aprendizado de conteúdos diversos, o chamado NewsGame. O estudante de jornalismo Leandro Brito, 24, usou dessa vertente e criou um jogo da memória com informações da Ditadura Militar. Sem experiência, ele diz ter usado uma plataforma simples com a ajuda de um tutorial básico para aglutinar os comandos. “Uma professora de História até me pediu para usar o jogo com os alunos em sala de aula, então eu acho que o dever foi cumprido. ” Com esse trabalho, Leandro foi premiado no Intercom Sul, seminário de renome na área da comunicação, e ruma para o Rio de Janeiro em setembro para apresentá-lo na etapa nacional do encontro.

O game também pode ser usado como forma de protesto. Foi o que fez o estudante Jonathan Soares, 18, ao saber da ação covarde da polícia militar contra os professores estaduais em Curitiba no fatídico 29 de abril. Em apenas dois dias, ele desenvolveu “Rixa, o Jogo”, que coloca uma professora indefesa a caminho da Assembleia, mas que precisa desviar das balas de borrachas disparadas pelos PMs. Em 1 mês, o jogo atingiu a marca de 98 mil acessos. “Muitas pessoas de vários cantos do país elogiaram o projeto, porque é uma crítica com humor. Já outros falaram que eu era um ‘esquerdinha de merda’, patrocinado pela Dilma, etc. É pura ignorância, precisa ter paciência. ”

Designers de games noBrasil jogam no hard level

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Walkers Project //

Nepal,Reconstruçãoum país em

Em abril desse ano, o pequeno país do Nepal situado na região dos Himalaias foi devastado com uma série de terremotos. Os dois maiores, com escala de até seis graus, aconteceram com uma semana de intervalo e deixou 8.500 mortos e 16.808 feridos, além de 600.000 famílias (cerca de três milhões de pessoas) desabrigadas. Desde então já foram registrados outros 200 tremores em menores graus, mas que dificultam o trabalho do Governo e de ONGs que se mobilizam agora para buscar refúgio para as vítimas.

Em junho, os maringaenses Rafael Saes e Lucas Emmanuel Rodrigues embarcaram rumo a Kathmandu, capital do Nepal, para uma série de ações que envolvem, além do trabalho humanitário já desenvolvido pela empresa de Lucas, a análise e registro fotográfico da situação do país feita por Saes, dois meses depois da série de terremotos.

Estive lá entre os dias 21 de junho e 03 de julho com alguns objetivos em mente. Um deles era o de registrar a vida no país após as catástrofes, não só na capital, Kathmandu, mas também em algumas vilas remotas como a Vila Patle. A experiência que tive por lá foi inimaginável. O meu papel como fotógrafo é de disseminar imagens para que mais pessoas sejam tocadas pela solidariedade.

Patle Village - Nepal - Que tal acordar com essa vista? Eram assim os nossos dias pelas vilas remotas do Nepal. Fomos os primeiros brasileiros a estar na Vila Patle.

After the earthquake - Kathmandu – Nepal - O Nepal está em reconstrução. A força daquele povo é admirável. Cenas como essa são comuns na capital: moradores convivendo com um cenário de destruição.

Kathamandu - Nepal - Um dos pontos mais visitados de Kathmandu, a Durbar Square foi devastada pelos terremotos de abril. Os turistas desapareceram e muitas pessoas estão sem trabalho pois dependem muito do turismo.

por Rafael Saes

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Walkers Project //

É comum nas vilas do Nepal ver crianças com feridas no rosto. Perguntei para os adultos: como vocês cuidam? Eles disseram: a gente deixa o tempo curar...

Patle Village - Nepal - Este é um porter! Porters são, basicamente, os caras que carregam peso. Foram 30km de trekking pra chegar a Vila Patle com 60 ou 30kg nas costas! Eles ganham, respectivamente, 30 ou 15 dólares americanos por dia de trabalho. Mesmo com tudo isso nas costas eles foram muito mais rápidos que eu e o Lucas, incrível! Kathmandu - após os terremotos de abril, as pessoas trabalham na retirada

dos entulhos e na reconstrução dos locais afetados.

Maidene Village - Nepal - a caminho da Vila Maidene, depois de 8h de estrada e 1h30 de trekking, paramos para dormir na casa de Karma Sherpa. Ele tem três filhos (duas meninas e um menino). Após uma noite de descanso, tomamos café com a família toda e brincamos com as crianças. Essa interação fez bastante diferença na hora de fotografar, porque elas demoram um pouco pra pegar confiança em pessoas de fora. Uma coisa cultural mesmo. São um pouco mais retraídas no começo, mas logo soltam sorrisos como esse!

Silver Shrine Academy - Kathmandu – Nepal - Nimadolma Sherpa, uma dentre os 18 alunos que tiveram de deixar suas casas em vilas remotas do Nepal para poder estudar. Nas vilas onde as famílias ficaram, as escolas mais próximas são tão distantes que se torna inviável o estudo, por isso os pais enviam-nas para a capital, Kathamandu, para uma oportunidade de aprendizado. Elas têm aulas de inglês desde pequenas!

O Nepal me ajudou muito mais do que eu pude ajudá-lo, com toda a certeza. Foram 11 dias que equivaleram a, sei lá, 100 dias vividos? Não dá pra mensurar. Com toda a certeza, essa experiência mudou muita coisa em mim, pra tentar ser um ser humano melhor a cada dia e ajudar a quem precisa com o que eu sei fazer, que é fotografar. Não vou me alongar, a foto diz tudo. Obrigado Lucas Emmanuel Rodrigues pelo companheirismo durante esses dias, parabéns pela iniciativa com a sua empresa. Obrigado a Hevp e a Mariana Serra, por terem sido as pontes que me proporcionaram tal experiência. Obrigado Nepal, por ter nos recebido com tanta alegria. Agora é hora de voltar, amadurecer as ideias e trabalhar duro pra, como a Hevp, impactar socialmente com o que fazemos. E meu muito obrigado ao Pemba Sherpa, por ter sido nosso companheiro pra todas as horas por aqui, esse cara é sensacional e é um prazer ter tido a chance de conhecê-lo.

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Poesia //

Poeta,tradutor ecolunista do Jornal O Duque

Não sou eu, aquele na minha frente.(Não se parece comigo, nem de perto)Sou bem mais moço e atraentedo que aquele coitado e incerto.

Sou bem mais cabeludo e feliz.Um tantico maior e mais magro.Não tenho aquela cicatrize com aquela roupa não me flagro.

Os olhos tristes dele, não tenho.Com certeza não sou canhoto.(Não que eu seja um serafim)

Mas me peguei a franzir o cenhodepois que vi o seu desgostopor pensar o mesmíssimo de mim.

O que são essas rugas, esses traços?Foi o tempo? Os amores? A lida? O cansaço?

Esse sorriso amarelo veio de onde?Dos cafés? Dos bares? Da noite? Responde!

E vis-à-vis com você mesmo, ensimesmado,você ainda se lembra de seu passado?

Naquele tempo que ainda lhe encanta,era este o mesmo reflexo que agora lhe espanta?

Meno mosso

Não! Não precisa desviar os olhos de mim,sou o único que vai entender o seu fim.

Sou aquele que lhe acompanhará todos os dias.Sou aquele que nunca lhe dará alforria!

Quem é aquela figurarefletida no espelho?Tem traços de amargura,dentes quase parelhos,um quê de candura,meio cansada, olhos vermelhos...

Já vi um espectro bem igual:Num reflexo na janela do trem,talvez numa imagem virtualpintada na pupila de alguém.Parece um mero fulano-de-tal,um pobre dum zé-ninguém.

Copiando meus trejeitoscom uma fluência exata;até a altura do peito,aquela figura ingratamostra meus defeitossem piedade, na lata!

De tão parecido comigocusto a crer no que vejo.Não é justo este castigo:Cadê aqueles tantos desejos?Cadê aquele rosto antigo?Onde foi parar todo o vicejo?

Sou a pena branda e pereneutilizada pelo tempo.Tempo, tempo, tempo!Remédio e algoz.Incontinenti pena.Meu reflexo, por dever do destino,faz o narciso de reféme do afortunado, um quidam.

Assim, como apenado e pena,nosso encontro sempre esteve marcado.Um compromisso diáriorepetido (ad nauseam), sem agenda.

Para você, fiquei sempre disponível.Vi lágrimas,vi sorrisos,vi todos os seus tecidose sempre soube tudo!Como um bom confidente, fiquei calado.E você sempre apareceu diante de mim,nu,Desde o sempre até o fim.

Tempo, tempo, tempo!Remédio e algoz.O meu lado ficou sempre a postospara o seu deleite.Nunca houve segredo entre nós,mas algumas vezes,você via só o que queria ver.Eu sempre lhe revelei a verdade,nunca por crueldade:É a minha natureza – já que sou pena! Descanse agora, narciso, sua beleza.

‘Be what you would seem to be’

Alice in Wonderland - Lewis Carroll

AdagioI II III IV

AlegrettoModeratto Andante

GilamarLeal Santos

REFLEXO NO ESPELHO(EM QUATRO MOVIMENTOS)

Narciso, de Caravaggio

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Jazz //

Os festivais, enquanto espaços para artes, acontecem há mais de meio século, sendo que suas primeiras experiências ocorreram na França na década de 1940. O país, um dos principais consumidores desta música na Europa, vivia, à época, um distanciamento do gênero devido à ocupação nazista alemã. Tudo começou em 1948, quando, na cidade de Nice, foi organizada uma série de apresentações com a presença de Louis Armstrong, Jack Teagarden, Barney Bigart, Earl Fatha Hines, Stéphane Grapelli e Django Reinhardt, que já atuavam na restrita cena francesa.

Seguindo a sugestão, Paris teve seu primeiro festival no mesmo ano e o sucesso foi garantido com músicos mundialmente conhecidos no cenário do jazz tradicional, como Coleman Hawkins, Errol Garner, entre outros.

Não tardou, músicos desbravadores do jazz moderno, como Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Thelonious Monk e Miles Davis viraram atrações na Salla Pleyel, em Paris.

Na mesma esteira, nos Estados Unidos, onde este gênero musical nasceu e cresceu, ocorreram festivais de jazz. Merece destaque o Newport Jazz Festival em 1954, responsável pela injeção de energia em muitos nomes famosos em apuros na época devido à forte concorrência do rock and roll, o novo gênero que passou a ocupar o corpo e a mente dos jovens. São extraordinariamente famosas as apresentações de Miles Davis, Ella Fitzgerald e Duke Ellington, cujas performances renderam discos que se tornaram clássicos.

De volta à Europa, Paris continuou reacendendo a

chama dos festivais de jazz e do gênero, a exemplo de Cannes, inaugurado em 1959, o sucesso da pioneira Nice, que chegou a registrar 130.000 pessoas presentes da edição de 1985.

Desde então, grandes baluartes têm encantado o mundo. Além dos citados acima, na Europa, mais especificamente na Suíça, está o Montreux Jazz Festival, o mais famoso de todos os festivais internacionais de jazz, realizado desde 1967. Nos Estados Unidosdestacam-se o New Orleans Jazz & Heritage Festival, sediado na cidade berço do jazz desde 1970 e o Monterey Jazz Festival, sediado na Califórnia desde 1968.

Sem esquecer o Montreal International Jazz Festival, realizado em Quebec, Canadá, que acontece desde a década de 1970, por onde passaram nomes como Chick Corea, Dave Brubeck, Muddy Waters, Chuck Berry, Bo Diddley, John Lee Hooker, Keith Jarrett, Pat Metheny, Tom Jobim e muitos outros, com destaque às memoráveis performances do contrabaixista Charlie Haden em 1989 (assunto dos próximos artigos).

Nos anos de 1980, sob a forma adotada na Europa e nos Estados Unidos, estima-se terem surgido no mundo cerca de 800 festivais, inclusive com fundações de entidades representativas internacionais com o objetivo de estabelecer intercâmbios culturais.

Nas edições futuras deste jornal, continuaremos com dicas dos discos de jazz e blues que surgiram nos grandes festivais de jazz europeus e estadunidenses mencionados, incluindo discos de Miles Davis, John Coltrane, Muddy Waters, Hermeto Pascoal, Flora

Purim, entre outros. Faremos também um panorama da história dos festivais de jazz no Brasil.

FESTIVAIS DE JAZZ: GRANDES PERFORMANCES

Produtor

Paulo Petrini é produtor cultural, diretor artístico do Festival de Jazz de Maringá, que será realizado entre os dias 9 e 11 de outubro, também é produtor musical da UEM-FM, autor do livro "Hermeto Pascoal: musicalmente falando..." e do recém inaugurado site www.jazzecompanhia.com.br.

PauloPetrini

Thelonious Monk

O trompetista norte-americano Miles Davis (1926-1921) marcou presença constante nos palcos dos festivais

internacionais de jazz e o que teve mais discos resultantes de suas performances.

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#ConfrariaTeatro //

O projeto FOCA – Formação e Capacitação de Artistas, viabilizado pelo Prêmio Aniceto Matti, da Secretaria Municipal de Cultura de Maringá, ocorreu no mês de junho e proporcionou quatro oficinas, duas palestras e uma desmontagem para um público aproximado de 230 pessoas. Deixou marcas que vão muito além destes números.

A importância de projetos assim é algo que nem se discute. O FOCA foi mais do que acolhido pelas pessoas, foi agarrado! Em menos de dois dias todas as vagas foram preenchidas por jovens ávidos pelo conhecimento. Com esta procura reafirmei a necessidade de investir esforços para essa realização.

Em qualquer lugar, inclusive em grandes centros, é preciso sempre estudar, se preparar, se reciclar. Isso serve para qualquer bom profissional, o artista não é exceção. Tenho o entendimento de que o artista não nasce pronto. Gênios são raros. O artista se constrói em treinamento diário, com muita disciplina e dedicação, seja no circo, no teatro, na dança, na música, em qualquer segmento.

O FOCA trouxe à cidade nomes relevantes do teatro brasileiro que compartilharam conhecimento com artistas e estudantes de Maringá, Sarandi, Marialva e Umuarama. Começou com a oficina de figurino ministrada por Paulo Vinícius, da Figurino e Cena, de Curitiba. Logo de cara o projeto já mostrou a que veio: com muita simpatia e comprometimento, num bate-papo descontraído, Paulo apontou caminhos, compartilhou seus conhecimentos e nos motivou. Tenho certeza de que os participantes da oficina pensarão o figurino de uma maneira diferente em suas

próximas montagens. Depois, tivemos a palestra do Alexandre Flory,

de Maringá. Ele é daquelas pessoas que nos orgulha ter como parceiro, ter em nossa cidade. Visivelmente empolgado com o que fala, Alexandre nos apresentou o seu olhar sobre a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, um dos grupos mais importantes do teatro brasileiro e tema das atividades seguintes. Foi lindo de ver.

Os atuadores Tânia Farias e Roberto Corbo ministraram a oficina de vivência, que nos fez perceber quanto os nossos corpos ainda carecem de trabalho, de cuidado. O “Ói Nóis” encerrou sua participação apresentando a desmontagem “Evocando os mortos – poéticas da experiência”, da atriz Tânia Farias, que diverte, emociona e provoca reflexão sobre o ato de fazer teatro no Brasil hoje. Que atriz gigante é a pequena Tânia!

A terceira oficina foi com Babaya Morais, preparadora vocal de Belo Horizonte, conhecida por trabalhar com todos os grandes nomes de nosso teatro, principalmente com o Grupo Galpão. Ela começou seu trabalho com uma palestra aberta ao público e encerrou com um grupo de participantes absolutamente encantado com seu carisma, sua humildade, generosidade e competência. Quebrou mitos e conquistou corações!

Por fim, mas não menos importante, foi a oficina “O ator e o espaço” de Thais Pimpão, integrante da Cia do Tijolo (SP). Ela provocou um novo olhar sobre a cidade, ao mesmo tempo em que instigou em cada participante um novo olhar sobre si mesmo.

Aparentemente, o público atendido pelo projeto não foi tão grande, já que oficinas sempre possuem um número reduzido de vagas para que o conteúdo possa ser bem apreendido. Entretanto, quase todos os grupos de teatro de Maringá foram representados por um ou mais integrantes. Muitos estudantes da Licenciatura em Artes Cênicas também participaram. Isso demonstra o potencial multiplicador do projeto: eles levarão o que aprenderam para os seus grupos e alunos.

Pensar um projeto cultural implica em uma série de questões. No meu entendimento, uma delas e, talvez, a mais importante seja entender os caminhos que o projeto pode apontar, que sementes ele semeia, o que fica para a cidade para além do evento. Evento é vento, vem e vai, sem compromisso. Também é legal, mas sempre que possível é importante tentar ir além.

É preciso dialogar com sua cena, com a cidade. Mais do que formar plateia (o que também é importante), precisamos antes fomentar a nossa cena cultural e, mais especificamente, a teatral. Sabemos que já tem muita coisa acontecendo, muitos grupos trabalhando. Isso não pode ser desconsiderado. O FOCA é uma tentativa de contribuir para o fortalecimento e amadurecimento desta cena.

O desafio agora é pensar estratégias para viabilizar a continuidade do projeto. As primeiras sementes já foram plantadas. Uma delas é a criação do Núcleo de Pesquisas Foquinha, formado por um grupo de oficineiros que continuará se encontrando para estudar o corpo, mantê-lo ativo e em pesquisa. Seguimos trabalhando. Vida longa ao FOCA e suas reverberações!

FOCA, TEATRO EMTODOS OS SENTIDOS

Produtora

RachelCoelho

Composição de Elisa Riemer

Page 22: O Duque #17

Resenha //

As primeiras histórias policiais li, quando criança, encontrei-as nos bolsos das camisas de meu pai, fã inconteste dos pockets comprados nas bancas de revistas desde 1960. Passei a gostar do gênero e transferi essa simpatia para outro suporte, o cinema. Li clássicos, Edgar Allan Poe  (1809-1849), e autores de uma safra mais recente, Rubem Fonseca (1925). Nas histórias mais tradicionais, os heróis, por meio de uma investigação empírica e um raciocínio dedutivo lógico (razão), resolviam os crimes (ruptura da ordem social) e puniam os criminosos.

O inquieto Marcos Peres faz parte da geração mais recente de escritores que se demonstram, conscientes ou não, afetados pela crise da sociedade moderna. Seu romance policial é uma narrativa que desafia a refletir sobre o mal-estar contemporâneo, existencial e social, e sobre conceitos como razão, liberdade, tempo e verdade. Ele construiu, com idas e vindas, vieses e revezes, um diálogo entre a Cultura erudita e a de massa, procurando pistas que ajudassem a desvendar vários crimes.

Assim, quem busca apenas entretenimento vai encontrar muito mais em Que fim levou Juliana Klein? (Record, 2015, 347p.) de Marcos Peres que, em 2013, ganhou, com seu primeiro livro, O evangelho segundo Hitler (Record), o Prêmio Sesc e o de São Paulo de Literatura.

A trama foi elaborada a partir do conceito de “eterno retorno” de Friedrich Nietzsche (1844-1900), para o qual os polos se alternam, nas vivências, numa eterna repetição; polos que não se opõem, sendo apenas faces da mesma realidade (Teoria do tempo cíclico). Mas Peres nos faz desconfiar de que ele mesmo acredite nisso.

É elogiável a volta ao passado e o diálogo da cultura erudita com a popular para entender o presente, na tentativa de responder às indagações existências e às de ordem social.

Os fatos relatados envolvem as famílias alemãs Klein e Koch e tradicionais instituições, como a Universidade Federal do Paraná (UFPR), a Pontifícia Universidade Católica (PUCPR) e a Delegacia de Polícia do Estado do Paraná. Os clãs cultivam a discórdia ancestralmente no plano do crime e das ideias, desde a Alemanha, depois em Curitiba, onde a trama transcorre.

Para resolver os crimes, a polícia de Curitiba convoca certo delegado de Maringá, um anti-herói, que atende pelo nome de Irineu de Freitas: profissional com imperfeições que mistura razão/emoção/intuição, gosta do Bob Esponja e não concorda com a teoria do eterno retorno, acusando seus defensores de comodismo. Muitos desconfiam da sua capacidade de desvendar o caso (crise da razão moderna). Ele promete cuidar de Gabriela, mas dá a ela presentes do Bob Esponja, um deles se transformará num instrumento letal.

Na trama, há um adulto, Irineu de Freitas (o delegado), e Gabriela Klein Scaciotto (a filha de Juliana Klein), uma criança, em 2005 e 2008, e uma adolescente em 2011. Gabriela, cópia diminuta da mãe Juliana Klein, movimenta-se entre um modelo de infância quase medieval (deve perpetuar a linhagem do clã) e outro que confia na capacidade de transformação do velho, a ponto de, na porta do seu quarto, estar escrito “Aqui vive feliz a esperança”. Peres convida a pensar se essa criança representa a esperança de um futuro melhor, ou apenas repete o passado. A referência ao desenho Bob Esponja,

que mora sozinho e trabalha (sinais da vida adulta), mas brinca o tempo todo, contribui para a reflexão sobre o quanto é vaga a fronteira entre ser criança e ser adulto. Bob Esponja é um adulto infantilizado ou uma criança adultizada?

Na trama, há outra criança, Adam Koch, personagem de menor importância, todavia, em contraposição ao modelo de infância vivido por Gabriela, assume singular significado. Gabriela foi preparada pelos pais para seguir um destino (amor fati), Adam deveria ficar fora dessas ideias. Sua individualidade deveria ser preservada.

Eles estudavam em colégios diferentes até o ensino fundamental. No ensino médio, apesar dos conflitos, as famílias rompem o pacto de mantê-los distantes e os colocam no mesmo colégio, por ser o que melhor prepara para o vestibular. As duas infâncias, quando colocadas diante das exigências sociais, equalizam-se.

O narrador nos faz acreditar em várias verdades que, posteriormente, são desconstruídas. Desconfiança e incerteza tomam conta do leitor, dando a impressão de que o presente (descobrir que fim levou Juliana Klein) é indecifrável. Peres nos põe a pensar sobre quais diferenças são realmente reais e o que é apenas disputa ideológica. A contemporaneidade tende a relativizar diferenças, mas o leitor bem avisado sabe que, no campo do real, nem tudo é conciliável. Será que devemos abandonar a esperança e deixar de indagar que fim levou Juliana Klein?

Ivana Veraldo, professora doutora do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá

DIÁLOGO ENTRE CULTURASE UM CRIME A DESVENDAR

Especial

IvanaVeraldo

Composição com a capa do livro

Page 23: O Duque #17

#Sarau

Pesa. Está tão pesado que quase não sinto. Sinto-me estranha, não sei o que ocorreu. Estou coberta. Dura. Tento me olhar e não consigo. Não vejo mais minha aparência, nem minha estrutura. Me sinto apertada, muito estranha, não me vejo mais. Me sinto negra. Pesada.

Há tempos já não me sentia a mesma. Estive em frangalhos durante anos. Vi as pessoas passarem e as coisas mudarem sem ser parte deste movimento. Em coma. O tempo correu e não tive pernas para ir junto. É confuso. Eu não sei.

Em total inércia. Vi muita coisa. Não com olhos comuns, nem podia. Vi que poucos estiveram comigo. Triste. Fui parte da vida de muitos. Vi gente chegar, vi muitos passarem e vi muitos irem embora. A despedida sempre foi algo muito presente durante toda a minha vida. Vi pessoas indo completamente, sem ao menos mudar o bairro. Me sinto imóvel. Sozinha. Sou cada vez mais coisa.

Carrego muito. Nunca fui nada que possa ser grandioso, nem rica. Carrego um fardo da pobreza imigrante. Os sabores, os aromas, tudo, me vem deste universo. Pioneiro. Tenho muito presente em minha memória a cena do caboclo paulista tomando um café em copo americano para comer um pão francês quase seco. Pão. Trigo e ponto. Carrego a memória das sandálias de couro rígido que laçam o pé em duas partes frontais e uma ao redor do tornozelo. Dedos tortos, sujos, de unhas grossas. Um pé que sustenta, mais do que dança. Carrego as sacolas e as malas, as caixas e qualquer recipiente que leve o que se tem. Muitas sacolas valem mais do que o peso que carregam. Conheci uma senhora que podia colocar em um saco pequeno tudo o que tinha. TUDO. Valdecir Pereira de Jesus tinha sessenta e sete anos em um saco pequeno.

Nos tempos de brilhantina fui charmosa. Simples, admito. Bonita. Teve um tempo em que dava gosto de olhar. Lisa, limpa, pronta para tudo e todos. Fui muito procurada. Vendi muito. Vendi lanches. Vendi mochilas. Vendi sorte e sorvete. Me venderam. Vendi condimentos. Vendi copos de plástico. Vendi livros. Vendi cachorros quentes. Vendi aparelhos sonoros. Atrevo dizer que fiz história no comércio. Fui importante.

As coisas acontecem. Digo, não as frases complexas, pois as entendo. Pobre, não tive como ajudar ninguém, me doei. Fui prostituta para a vontade de muitos homens. Vivi disso muito tempo, é verdade. Fiz o bem, não me lembro de ter feito mal a qualquer um. Não intencional. Fiz o que precisei. Me deixei usar e fui usada. Anos e anos. Fui boa em meu tempo. Ser apenas usável não basta. Substituir. As pessoas me esquecem dia-a-dia. Consigo sentir o silêncio. Eu não me vejo. Receio ninguém me ver. Os garotos crescerão, serão homens, os próximos donos de tudo. Nem ao menos me viram em pé. Não me usaram. Não sou parte de suas vidas. Me sinto invisível. Negra.

Fim. A humanidade está perdida em planilhas de excel. Eu que nunca fui um deles, me sinto ainda mais distante. Meus vizinhos são novos. Em meio a tanto arrojo, seu Plaza, vizinho da quadra de baixo, resiste. Ao menos está em pé, mas sei como se sente. Estive exatamente como ele há anos atrás. Ser algo aos outros leva muito de si mesmo. E o processo de troca não é equivalente. A troca.

Me sinto incomodada. Algo me toca, me irrita, como uma grande mosca, mas não é. Estou deteriorando. Sinto que é algo maior que o processo natural, não é normal. Me dói, aos poucos estou me perdendo em partes. Não estou segura do que restará. É fúnebre. Percebo mudança. Como rastelos involuntários que desenham um jardim japonês. Estou muda. Surda. Prefiro não dizer, mas temo estar chegando ao fim.

Alô. O que é isso? A. Não sinto meus membros inferiores. Ligar 199. Não tenho como pedir ajuda. Surda. Muda. Alô. É mais visível, partes de mim não existem mais. Tiraram meu arco. Queria que parassem. Me sinto incapaz. Civil. Nunca imaginei que fosse possível. São incontáveis ladrões a arrancar meus brincos, meus anéis, colares, pulseiras, arco. Sou forçada. Sem direito de defesa. Arrancaram-me tudo. Mais do que brincos, me arrancaram. Sem defesa.

Ouvi dizer que estive no noticiário. Estou cega. Me sinto recuada, como se minhas portas estivessem fechadas, talvez estejam. Estou amordaçada. Envolta de uma fita amarela e preta. Negra. Fortes homens me cercam, não sei como agir. Sou um imóvel. Uma. Eles são muitos. Vão me comer. Sem perceber sou deglutida por este paladar quase morto. Por esta boca que mastiga. Engole. Eu não engulo. Me comem. Estou paralisada. Muda. Imóvel. Não tenho mais reação. Deixo comer.

Estou no chão. Involuntariamente, no chão. Não sei se nasci ou se morri. Meu teto que era tão rígido, está no chão. Minhas incansáveis paredes, no chão. Meu chão. Chão. Deitada, mas ainda cansada. Não entendo quase nada. Não sinto mais. Amargo. Vivi o que vivi. Depois de tanto aguentar, me derrubaram. Sem que eu notasse. Me voltaram ao chão.

Agora. No egoísmo de todos e cada um. Estou em fragmentos. Eu que não podia falar, posso menos agora. Me levam consigo. Ainda não há esperança. Estou amontoada. Sob o sol das três da tarde. Parte do meu teto está por baixo da janela. Estou destruída. Dissipo a cada minuto. Logo não será mais tempo. Me vender, me comer, me usar, me defender, me passar, me, me. É o fim. Já não há memórias. Não me lembro. Lembro. Meu nome. Estação Rodoviária Américo Dias Ferraz. Maringá.

Sejabenvindo Vinicius

Huggy

Page 24: O Duque #17

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