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O Encanto da Lua
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Era a noite solitária, encontrava-se fechada num breu que lhe cobria o rosto. Uma
renúncia à luz do dia encobria-lhe a idade, que parecendo secular era, na verdade, jovial.
Falava através dos urros das bestas que se escondiam por detrás de si, atemorizando os
sonhos dos caminhantes.
Silenciosa, aparecia-nos nos pesadelos, engendrando planos para sucumbirem à
sua genial realeza.
Em verdade, não havia, para ele, companhia mais aprazível que a noite, sossegada,
quieta, silenciosa deixava a mais perturbada das almas na mais profunda calma.
Não sei se era o seu desinteresse ou o seu silêncio que mais o atraiam em si. Sem
dúvida que o seu coração, recentemente abalado pela ilusão a que chamou amor,
precisava daqueles momentos de calma que lhe proporcionava a noite.
Na noite escondeu as palavras, os silêncios, as amarguras, procurou o consolo dos
versos encharcados em mágoa, era na noite que encontrava a luz que os seus olhos
auspiciavam.
A lua lá no alto olhava-o em absolvição, julgou amá-la como a si mesmo, assim
diziam os uivos do seu coração, mas veio o tempo negar-lhe a razão.
Talvez amando-se tanto não podia amar algo tão grande como a lua. Seria o seu
amor tão insignificante para a lua caminhar na terra e ele ser o dono do seu trono? Julgou
o tempo, os seus olhos, o seu coração, a beleza da lua e o seu encanto, tudo o que ela o
fazia sentir. Nunca pensou que fossem seus olhos, seus sentimentos apertados por
tamanha dor, por tamanha perda, por tamanho amor.
O amor é uma dor doce que o coração usa para traír os olhos, iludir a razão, para
nos fazer reis e senhores de tal sensação.
Mas a noite era incapaz de o abandonar! Abrigava-o como se fosse um filho, como
se fosse parte de si. Mandava as nuvens a lua esconder para não ver o coração do meu
amigo sofrer, mas a luz desse astro era forte demais para não a sentir o seu coração.
Pedia constantemente absolvição aos deuses, mas a sua deusa era a noite e a
rainha desse Parthenon, a lua. Como podia ele rezar às únicas dores que pudera sentir?
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No cume da sua juventude, era Caronte, ainda, um jovem inocente estudante, vivia
num reino de luz, a luz embora envolta em escuridão, abundava na sua vida. A tinta
escorria palavras às mais belas donzelas, numa constante sedução descomprometedora.
Não sonhava, nem sequer pensava em alguma vez se apaixonar, apenas se rendia aos
prazeres da paixão. Lascivo não tencionava abraçar o amor naquele desgovernado
coração.
Mas a este passo, embraçava o pecado em si, a insaciável gula alimentada por
néctares colhidos nas esplendorosas vinhas cuidadas pelo próprio Baco, regiam nele vital
comando. Aos poucos rendia-se a este mundo, dançando, rindo, bebendo, deliciando-se
com todos estes prazeres que o mundo lhe podia proporcionar.
Sinceramente, Caronte era apaixonado por qualquer prazer que pudesse a vida lhe
trazer, tornara-se viciante a necessidade de sorrir profundamente, de saborear tudo o que
o mundo lhe pudesse oferecer.
Ao passo que mergulhava nesse mundo não tinha consciência que cada vez menos
luz via, as horas voavam nos copos, nas conversas, nas danças e mergulhava numa luz
ilusória, a luz das trevas.
Percebendo que nascera para morrer, deixou que o pecado tomasse a sua vontade,
guiando-se por onde pudesse estar o objeto do seu contentamento.
Os versos cada vez mais preenchidos pela magia da paixão, do pecado carnal
enchiam os desejos das suas musas que lhe agradeciam calorosamente, carnalmente…
O mundo que agora habitava, roubava-lhe a alma, levando-o a desesperos, a uma
necessidade cada vez mais extravagante de preencher o seus desejos de bem comer, de
melhor beber, sempre rodeado de fumo e mulheres nuas entregando-se ao seu desejo
voraz.
Acabou por largar a sua alma num beco qualquer, nu, desprotegido, humilhado,
deixando escorrer lágrimas que tentavam lavar a alma suja, em desespero, soluçando por
uma solução que não estava preparado para colher.
Qualquer luz que transpusesse as janelas da sua alma queimavam-lhe
profundamente como um ácido mortal à sua existência. A mesma luz que um dia o
acompanhara em sorrisos, espantava agora o seu génio, as palavras eram negras, o seu
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espírito menos aprazível a companhias, tolhido por inimizades e confrontos consigo
próprio, culpava toda a gente à sua volta menos a ele próprio o destino que abraçara.
A mesma noite que lhe oferecia o pecado, dava-lhe a tranquilidade de alma que
necessitava. O silêncio que a noite obrigava era a melhor melodia que podia ouvir,
calavam-se as vozes do pecado no seu encarceramento autoinfligido.
Por esta altura, poucas notícias me chegavam de Caronte. Preocupado reivindiquei
a árdua tarefa de o tentar salvar, um génio tão grande como ele não se podia perder num
caminho vertiginoso para um terrível fim. Era triste demais o cenário que o seu destino
pintava, um destino coberto pelo pecado, pela ansia de chegar até a um definitivo fim.
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Encontrei-o num albergue escuro, sujo, coabitado pelos mais repugnantes seres da
cidade, caído num banco. Um cheiro nauseabundo, irrespirável adormecia-me a razão,
turvava-me a visão. O seu corpo, um dia forte e saudável estava reduzido a uma caixa de
ossos, cobertos por uma roupa suja, peganhenta. Os cabelos longos estavam eriçados em
bocados de comida de dias. Mas o que mais me arrepiara naquele cenário dantesco era o
seu olhar. Um olhar que só não era vazio porque era repleto de culpa, de angústia, de uma
dor que não parecia ter solução. Aquele que fora um dos olhares mais doces, mais
brilhantes estava agora reduzido a um olhar de vagabundo.
Fora difícil para ele reconhecer-me, assim tão difícil como aceitar sair daquele seu
estado. A renúncia a querer viver tornara-se o seu mandamento. Dizia-me que não queria
mais nenhuma absolvição, que a sua vida tornara-se sem sentido, que não soubera o que
era amar e que alguém como ele não podia ser permitido viver. Afirmava quase num olhar
louco, de olhos esbugalhados, numa voz rouca e esforçada, que não se podia considerar
poeta se não sabia o que era o amor.
Destruíra quase toda a sua fortuna neste mergulho suicida. O álcool, os banquetes,
as festas, as companhias, as estadias loucas consumiram-lhe quase todas as suas
poupanças, era imperativo que eu fizesse algo para salvar este génio amigo.
Por fim, aceitou vir comigo. Prometera-lhe que ia voltar a ser o poeta que o mundo
um dia conheceu. Responsabilizara-me por ser o seu mecenas, o seu protetor até que se
repusesse, até que os seus passos voltassem a ser seus e não do pecado que o corroía.
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Decidíramos que o melhor a fazer seria sair da cidade por uns tempos, afastar-se
das tentações que sabia onde habitavam, dos locais que o faziam voltar a mergulhar
naquele estado lastimoso.
Mas o problema é que nenhum local parecia ideal para esta recuperação. Se a praia
não era o seu destino favorito, o campo e as montanhas, nas suas palavras, eram
demasiado rurais para preencherem os seus versos. Outras cidades pareciam ser a
preferência do meu estimado Caronte, no entanto, eu recusara-me a encarcerar durante
meses numa outra cidade onde as tentações seriam tão grandes como na nossa. Durante
dias foi difícil arranjar uma solução para este génio tão genial como teimoso.
No acaso de uma conversa, com uma visita que viera confirmar o lastimoso estado
do nosso amigo, surgira uma oportunidade de mudança. A nossa visitante, uma senhora
que os interesses eram seriamente duvidosos quanto ao nosso amigo, sugerira em forma
de convite a sua casa de férias numa pequena vila à-beira-mar. A vivenda não era luxuosa
e encontrava-se no centro daquela vila piscatória. Os elogios tecidos por esta senhora
foram os maiores, frisou várias vezes que era uma vila mergulhada em calma, local de
refúgio de estrangeiros reformados em busca da paz de espírito no final da vida.
A primeira reação do nosso amigo fora: “Querem-me levar para o meu leito de
morte, querem-me encarcerar num fim de mundo qualquer no meio de carcaças que
buscam terminar o seu trajeto em paz? Julgam o quê? Que estou morto para esta vida?
Danem-se víboras!”. Terminado o teatro pôs-se em pé e retirou-se da sala batendo todas
as portas atrás de si. A nossa visitante mostrava-se estupefacta com tal ofensa,
acalmando-a garanti-lhe que todo aquele aparato era apenas um sinal que era exatamente
aquilo que oferecera o que o nosso amigo precisava.
Aceitei a oferta por ambos, a verdade é que as últimas semanas tinham sido
desgastantes para mim próprio, coabitava com um génio transformado em louco. Eram
raras as noites em que não se ouviam berros e movimentos bruscos vindo do seu quarto.
Eram raros os dias em que não se mostrava rezingão e contrariador de todos os meus
esforços em melhorar o seu estado. Quando voltava aos momentos de maior lucidez, vinha
em lágrimas pedindo-me desculpas de como me tratava enquanto eu tratava dele, sem
mais que fazer aquiescia com a cabeça em consentimento, tentando consolar o
inconsolável.
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Chegados, então, aquela vila piscatória, era final de Abril e o sol já brilhava com
alguma intensidade, o nosso amigo começou logo por resmungar com o calor, depois com
o facto de ter de carregar as suas malas, de seguida com os mosquitos, enfim, encontrava-
se como de costume. No seguimento da rua da estação estava lá a nossa nova habitação,
branca, fechada, na esquina do quarteirão.
Abrimos a porta para depositarmos a nossa carga e um cheiro pesado, típico de
uma casa fechada à alguns meses, apoderou-se do nosso olfato. Logo que tratamos de
abrir as janelas e pousarmos as malas no interior da vivenda, retiramo-nos para procurar
um sítio onde comer uma bela refeição. O cheiro a peixe grelhado tomava o ar e isso
levou-nos a um restaurante perto do mercado municipal, numa rua paralela à que se
encontrava a nossa casa.
Depois de almoçados, decidimos ir conhecer um pouco aquela que seria a nossa
terra nos próximos tempos. Não era difícil deslocarmo-nos, o terreno era plano, não havia
trânsito a incomodar o nosso passeio. No espaço de uma hora, pouco mais, tínhamos visto
tudo, não nos demorando para voltarmos a casa.
Com o ar um pouco mais respirável, a nossa casa abria-se para nós. No piso de
baixo a nossa entrada encontrava, na esquina da casa, uma entrada ornamentada com
portas duplas brancas de madeira, mal se entrava encontrávamo-nos num hall de entrada
triunfal com umas escadas ao fundo e ligação a todas as divisões. A clarabóia iluminava
toda aquela secção do edifício, uma grande e bela clarabóia envidraçada, que encantou
desde logo o nosso amigo. A sala era a maior divisão da casa, com soalho de madeira,
iluminada naturalmente por duas janelas viradas para a estrada principal, estava mobilada
com um sofá, uma estante cheia de livros, os quais o nosso amigo prestou atenção de
imediato, uma mesa e uma televisão de tamanho médio. A cozinha era uma divisão não
muito grande, mas equipada com tudo o que era necessário à nossa sobrevivência,
adjacente estava a lavandaria, talvez a secção mais escura da casa. No piso de cima,
tinha dois quartos de tamanho médio, ambos esquipados com uma cama de casal e uma
mesa de apoio, onde estavam fotos antigas da senhora que nos emprestara aquela casa,
além dos quartos tinha também um escritório onde se encontrava um belo piano. Ambos
os pisos tinham casa de banho como é óbvio, sendo a do piso superior bem maior, com
uma grande banheira.
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A casa era fresca e solarenga, facto que era positivo, visto o calor que já fazia e
ainda estávamos a meio da Primavera. As minhas motivações encontravam-se em grande,
visto que a única fonte de pecado que este pedaço de terra possuía era a preguiça, o sol, a
praia, o mar, tudo puxava a momentos de pura relaxação. Caronte estava estranhamente
calmo, algo que não acontecia há algum tempo e que me surpreendia. Observava todos os
recantos à casa, pegava em livros e devolvia-os à estante acabando por comentar num
tom seco, “Bastante interessante esta coleção.”. Tivemos de começar a contactar as
pessoas que a nossa senhoria nos recomendara para melhor nos servir, após alguns
contactos estava reunida a nossa equipa de funcionários, uma governanta, uma
cozinheira, um motorista para quando fosse preciso e uma jovem para limpar e arrumar a
casa, as nossas poupanças seriam suficientes para pagar a toda esta gente.
Os dias passavam com calma nesta nova realidade, ao passo que a maresia vinda
do mar tomava o nosso pensamento, Caronte refrescava a sua vida. Afastado de vícios
destrutivos, o seu pensamento, o seu contentamento e o seu comportamento eram
altamente recomendáveis. Voltara a encontrar a dedicação de escrever alguns versos, de
se divertir com tintas e procurar na areia elementos para enfeitar suas obras.
Os mergulhos no mar eram uma constante no nosso dia-a-dia, de manhã logo cedo,
antes do sol começar a queimar a pele, íamos de barco até uma ilha próxima da costa,
acompanhados por alguns habitantes daquela maravilhosa vila. A manhã passada entre a
água e a areia era um rejuvenescimento para ambos. Para mim, em parte, era um
descansar do tormento que era cuidar de um adulto, para Johan era a possibilidade de
absorver a magia do mar e da natureza, conseguir apreciar o silêncio dos humanos e
mergulhar nos sons do mar.
As nossas tardes eram normalmente passadas no centro da vila, numa das
esplanadas que abrigavam os reformados nas tórridas tardes de fim de primavera, sempre
com um livro atrás, Caronte refastelava-se numa cadeira e focava-se na sua leitura,
poucas vezes tirando os olhos do livro para beber um pouco de água, ou responder a
alguma pergunta ou comentário que lhe haviam feito, sempre num tom enfadado. Eu
aproveitava para filosofar com os velhotes que resmungavam ardentemente contra o
governo, contra o jogo, contra alguma coisa que lhes turvasse o juízo.
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O nosso dia-a-dia tornara-se quase uma rotina absorvente de todos os nossos
desejos. Reparando nisso, comecei por me preocupar com o nosso amigo, ele fugira de
vícios perigosos para se viciar nos livros e numa clausura imensa.
Contrariando este novo vício, aproveitamos a chegada do verão e do maior calor
noturno para começar a sair à noite, começamos a comparecer nos mais variados eventos,
revolucionando a rotina estabelecida, por vezes, de manhã nem acordávamos, em vez de
nos deixarmos estar na calmia do lar, percorríamos quilómetros pelas areias da praia, ou
íamos a cidade mais próxima para visitar alguém que conheceramos ou apenas por
turismo.
Numa das festas a que decidimos ir algo na nossa vida foi revolucionário para a
história que vos conto.
A noite já se tinha posto fazia algum tempo e, sinceramente, até eu, assumido
festivo, já me enfadava um pouco, então imaginem Caronte, tradicionalmente enfadado,
arrastava-se de conversa em conversa. E, num gesto que nunca antes tinha presenciado,
o nosso amigo dirige-se a velha aparelhagem, que descansava no canto do salão principal,
e colocou um cd, sorrindo para si com a surpresa que a música causou na sala. A música
que o fazia sorrir era um êxito dos anos 50, Bluberry Hills de Fats Domino.
Com um ambiente melhorado e a anarquia musical instalada eis que surge com o
vento, um grupo barulhento de pessoas. Vieram atrás do som da música que nos alegrava
a nossa noite e trouxeram jovialidade à sala. Num instante, instalou-se um grande festão
no casarão e ao contrário de todas as previsões, Caronte, divertia-se.
Mas a história principal seria outra, numa melódica musica Caronte cruzou o seu
olhar desfeito com o mais profundo olhos verdes, da cor do mar que o inspirava a cada dia,
era como se a salgada maresia entrasse dentro do seu cérebro e transformasse tudo num
longo paraíso caribenho à beira-mar.
Os longos cabelos ondulados saltavam a cada movimento, a cada passo de dança,
como se a sala se centrasse em si. O vestido, de tecido de puro branco, contrastava com a
sua pele escurecida pelo sol, moldando o seu corpo venusiano. Era natural a falta de
indiferença de qualquer homem no salão de dança, os seus movimentos, o aroma que
deixava um rasto sedutor em toda a sala, tornavam-na foco de desejo e atenção
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masculina. Caronte não foi diferente, em pouco tempo perguntava-me quem era aquela
sedutora presença, eu sabia tanto como ele...
Mais tarde ficamos a saber que se tratava de uma rapariga local, filha de um
pescador e que vendia pescado no mercado com a sua mãe. Naturalmente, era alvo de
cobiça de todos os solteiros, mesmo os casados não deixavam de arrastar a sua asa à
bela jovem. Larissa era uma das jovens mais simpáticas da vila.
A festa continuou alegre até longas horas dentro da madrugada, altura em que já
bastante embriegados por alegria e muito bem dispostos decidimos voltar à nossa casa.
A partir desse dia passamos a frequentar o mercado a pedido do nosso amigo,
dispensando os empregados de lá ir, tudo fazendo para que pudesse vislumbrar de novo a
bela Larissa.
A correria em encontrar Larissa preenchia todos os versos que saíam a uma
impressionante velocidade da caneta de Caronte, até a mim me surpreendia toda aquela
feroz tentação em escrever. Os nossos passeios já não eram merecedores da sua
atenção, no seu olhar via-se o conjugar de memórias daquela noite em que o aroma da
jovem nos seduziu.
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Numa trepaça do destino, longe de qualquer tentativa em avistar Larissa,
esbarramo-nos com esta numa doce tarde de verão. Estavamos com sede e com preguiça
de ir ao bar de sempre desde que tínhamos chegado, decidimos visitar uma taberna perto
de nossa casa. Mal entramos a surpresa apoderou-se dos nossos espíritos quando ambos,
simultaneamente, olhamos em frente e vimos a ninfa que preenchia o pensamento de
Caronte desde a festa.
Larissa estava por trás do balcão sujo de restos de bebidas entornados por bêbados
profissionais, mergulhados na interminável missão de sossegar as suas almas rotas pelo
destino. O seu cabelo cacheado brilhava na escuridão daquele lugar, flutuando com os
movimentos suaves e eternos da jovem.
Não resistimos ao impulso de nos sentarmos de imediato, esperando ser atendidos.
Quando esta se chegou à nossa beira, o seu aroma tratou de fazer o nosso pensamento
tropeçar, embasbacando-nos e tornando difícil fazer um simples pedido. Sorrindo para nós
lá conseguimos pedir uma água fresca para cada um.
Não é preciso dizer que a partir desse momento nos tornamos presença assídua
desse establecimento. A cada dia que passava Caronte aproximava-se cada vez mais da
jovem que lhe adocicava o coração, escrevendo-lhe poesias e oferecendo-lhe flores, ela
retribuía com sorrisos e beijos na testa do meu amigo.
Demorou pouco até que os dois combinassem um passeio pela beira-mar, eu fora
convidado com a missão de tomar conta dos irmãos da jovem, enquanto esta passeava os
seus passos pelas areias humedecidas pelas águas do mar acompanhada pelo o poeta
que recuperava o seu sorriso em viver.
Nas semanas seguintes, repetiam-se os passeios, não falhavamos uma festa por
mais insignificante ou deslocada que fosse. Enquanto isso eu ouvia os relatos mais
primorosos quer dos passeios ou das conversas que Caronte tinha tido, o nome Larissa
tinha-se colado às paredes da nossa casa.
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Chegamos ao momento que se tinha tornado inevitável. O beijo, descrito em mil e
uma maneiras, repleto de sentimento, divinamente contado aos meus ouvidos
acompanhado de uma melodia no piano, que animava o ambiente do nosso lar.
A partir desse momento o tempo do meu amigo deixou de ser meu, deixei de curar
as suas feridas, deixei de ser o amo da sua recuperação e deixei-o no leito da sua
magnânime paixão. As suas tardes continuavam preguiçosamente à beira-mar, mas as
noites eram passadas acompanhadas sob o olhar das estrelas em calorosa paixão.
Ao mesmo tempo que felicitava o meu amigo, o meu coração palpitava de
preocupação. Tinhamos chegado a esta terra de calor para curar o espírito devastado de
Caronte, o tempo, a calma, a paz, tinham surtido efeito no génio que reencontrava a sua
arte. Esta sua paixão esperava-a mais fugaz, mas já se mantinha a algum tempo, o que
fazia com que a nossa estadia se prolongasse e os custos da mesma fossem aumentando
e quanto tempo mais duraria esta estadia? Além disso, preocupava-me o coração do meu
mais estimado companheiro de retiro. Nunca fora um coração muito forte, e sem qualquer
dúvida para com a jovem Larissa, temia que esta paixão estragasse todos os esforços
feitos até ao momento. O risco tormentava-me sempre que o deixava só, mas sempre que
ele chegava e o seu sorriso preenchia a sala, acabava por me acalmar.
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Todos os meus receios tomaram vida como se de um pesadelo se tratassem, sem
aviso prévio, o paraíso tinha dado lugar ao inferno.
Numa noite como outra qualquer, sem que nada que fizesse prever, Caronte chegou
a casa devastado, mergulhado em lágrimas, soluçando compulsivamente sem que eu
percebesse o que se passava. Levantei-me em sobressalto da poltrona onde, até então, lia
um romance qualquer, inquirindo Caronte sobre o que se passava, o qual soltava palavras
entre lágrimas que se tornavam imperceptíveis à minha audição. Por fim, após uns quantos
copos de água, consegui com que Caronte se acalmasse e me explicasse toda a situação.
Larissa terminara o relacionamento com Caronte, o que rasgara por completo o
coração do génio poeta. As razões deste rompimento eram para mim, à primeira vista,
bastante difíceis de entender. Mais tarde percebi as intenções de todo este relacionamento
aos olhos da jovem. Caronte, um jovem poeta, que se mostrava com algumas posses,
além disso, bonito e charmoso era mais um turista para a jovem Larissa, que se
aproveitava da sua beleza para seduzir rapazes que pudessem lhe oferecer tudo o que ela
desejava, quando o final do verão se aproximava esta terminava tudo com o intuito de
nunca se apaixonar por algum destes rapazes. Mas Caronte era um caso diferente, depois
de inquirir a jovem procurando satisfações, pude perceber que ela estava igualmente
afetada por esta separação, mas que não podia continuar com esta história, desculpando-
se disparatadamente com motivos irrisórios.
Fiz de tudo para que esta história que vos conto não acabasse deste modo. O meu
coração treme e chora cada vez que me recordo deste dia. A minha memória teima em
relembrar-me no sono todos os momentos que antecederam o que vos vou contar.
Para mim era um dia como os outros, acordei de manhã e tentei tirar Caronte da
cama, depois desde se ter enclausurado no quarto, envolto de mágoa, poemas negros,
pinturas violentas, sujando as paredes de tinta negra e vermelha e a minha tentativa
mostrava-se frustrada como nos últimos dias. Deixei-o na sua dor, compreendendo-a,
quase a sentindo como sendo minha. À hora do almoço consegui que se juntasse à mesa
comigo, num ato surpreendente que me deixou com esperança que começasse ali o nosso
retorno a casa e do meu amigo ao seu estado normal.
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De tarde seguiu-me até ao nosso primeiro bar, mas trocou a água por uma série de
whiskies que fez com que regressassemos mais cedo a casa, receando que os seus
velhos hábitos tivessem retornando.
À noite convidei-o a um passeio que recusou. Mas eu decidi ir, precisava de
respirar o ar que o mar trazia até ao meu rosto, sem nunca pensar que o ia acontecer de
seguida.
A meio do meu passeio comecei a ouvir um reboliço vindo da praia, calmamente,
fui-me aproximando da origem do tumulto. Quando lá cheguei o meu mundo ruiu, no meio
da praia encontrava-se um barco completamente em chamas e aos berros dentro do barco
ouvia-se Caronte declamar poesias que havia escrito para Larissa, as chamas propagavam
ferozmente consumindo a pequena embarcação ao passo que respirava. Entrei na água
nadando em direção do barco, mas a ondulação dificultava a minha missão. Em poucos
minutos o meu amigo encontrava-se completamente imolado pelo fogo e a sua voz
ressoava na minha cabeça...
Por fim a embarcação deixava-se tomar pelas águas salgadas, já não se ouvia a voz
de Caronte, apenas se via o seu corpo flutuando e eu nadava, tentando chegar o mais
próximo dele possível. Ao passo que o seu corpo se afundava eu detinha o meu olhar
incapcitado de fazer algo mais por Caronte, absorvendo o horizonte assim que o seu corpo
foi engolido pelas ondas.
No dia seguinte parti daquela terra para sempre e para sempre deixei lá o meu
amigo, a nossa felicidade e o seu talento. Naquele dia morreu a pessoa que tinha mais
orgulho em chamar amigo.
A imagem da lua cheia a chorar no céu irá para sempre ficar marcada na minha
memória, as estrelas brilhavam mais do que nunca e embora não chovesse, sentia-se no
céu a amargura da perda de um filho. A loucura da lua cheia preenche o meu coração
desde então riscando definitivamente do meu vocabulário a palavra amar...