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MARIA FERNANDA ALVES GARCIA MONTERO O ENSINO DE FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO BRASILEIRO: ANTECEDENTES E PERSPECTIVAS MESTRADO EM EDUCAÇÃO: HISTÓRIA, POLÍTICA, SOCIEDADE PUC/São Paulo 2011

O ENSINO DE FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO BRASILEIRO ... Fernanda... · NR – Norma ... (LDB, Lei 9.394/1996), para incluir a ... que alterou o artigo 36 da Lei nº 9394, de 20 de dezembro

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MARIA FERNANDA ALVES GARCIA MONTERO

O ENSINO DE FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO BRASILEIRO:

ANTECEDENTES E PERSPECTIVAS

MESTRADO EM EDUCAÇÃO: HISTÓRIA, POLÍTICA, SOCIEDADE

PUC/São Paulo

2011

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MARIA FERNANDA ALVES GARCIA MONTERO

O ENSINO DE FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO BRASILEIRO:

ANTECEDENTES E PERSPECTIVAS

São Paulo

2011

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para obtenção

do título de MESTRE em Educação:

História, Política, Sociedade, sob

orientação da Profª.Dra. Leda Maria de

Oliveira Rodrigues.

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BANCA EXAMINADORA

Profª.Dra. Leda Maria de Oliveira Rodrigues

Orientadora/PUC-SP

Profª.Dra. Circe Maria Fernandes Bittencourt

PUC-SP

Prof.Dr. Silvio Donizetti de Oliveira Gallo

UNICAMP

São Paulo,_____ de ___________________ de 2011

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Àqueles que participaram indiretamente

da realização deste trabalho: família e

amigos.

Àqueles que estudam a educação na

esperança de torná-la melhor.

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AGRADECIMENTOS

À Maria Aparecida, à Maria Júlia e ao Francisco Montero, por serem minha constante

inspiração.

Ao Fernando, pela presença.

À professora Leda Maria de Oliveira Rodrigues pela orientação e pela paciência.

À professora Circe Maria Fernandes Bittencourt e ao professor Silvio Donizetti de

Oliveira Gallo pelas sugestões oportunas e importantes quando da realização do exame de

qualificação.

À Betinha, secretaria do programa EHPS, que sempre trata à todos com carinho e

atenção, por toda ajuda desde o meu primeiro dia no programa.

Aos meus colegas do programa pelas reflexões e descontrações partilhadas durante

esses dois anos.

À todos os professores do programa EHPS pelos diferentes ensinamentos.

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Digo: o real não está na saída nem

na chegada, ele se dispõe para a

gente é no meio da travessia

Guimarães Rosa

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Resumo

Este trabalho visa estudar as razões alegadas para a implementação da Lei nº 11.684 de 2 de

junho de 2008, a qual alterou o artigo 36 da Lei nº 9394, de 1996, para incluir a Filosofia e a

Sociologia como disciplinas obrigatórias no Ensino Médio. Para tanto, historia-se a sua

proposição e tramitação no Congresso até a sanção presidencial, atentando para os conflitos

político-ideológicos que permearam essa tramitação. Pretende-se também investigar como a

Filosofia aparece nos Paramêtros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, nos nos PCN+

Ensino Médio (Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares

Nacionais para o Ensino Médio) e nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio.

Documentos oficiais foram a principal fonte de pesquisa utilizada. A metodologia usada neste

estudo foi de natureza descritiva-reflexiva. Os autores Apple, Gimeno Sacristán, Gramsci,

Goodson e Chervel balizaram a pesquisa e a análise dos dados coletados. Deles utilizamos os

conceitos de currículo oculto, currículo oficial ou real ou prescrito e regulamentado,

currículo em ação, ideologia, currículo e disciplina.

Dentre os resultados podemos citar as pressões de profissionais da educação e da área em tela;

as correntes político-ideológicas envolvidas na reintrodução da Filosofia como disciplina;

outro ponto, por mais que essa volta seja uma vitória, a Filosofia no currículo ainda está

sujeita a ambiguidades quanto aos resultados de sua reintrodução.

Palavras-chaves: Filosofia, disciplina obrigatória, ensino médio

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Abstract

This work aims to study the reasons alleged for the implementation of the Law nº 11,684 of

June 2nd, 2008, which modified the article 36 of the Law nº 9394/ 1996, to include

Philosophy and Sociology as compulsory subjects in High School. To do that, an historic of

its proposal and processing in the Congress until the presidential approval, noting the political

and ideological conflicts that have permeated this procedure, is needed. We also intend to

study how Philosophy appears in the National Curriculum Guidelines for Secondary

Education, in the Complementary Educational Guidelines for the National Curriculum

Guidelines for Secondary Education, and in the Curriculum Orientations for Secondary

Education .

Official documents were the main source of research used. The methodoly used in this study

was descreptive and reflective. The authors Apple, Gimeno Sacristán, Gramsci, Goodson and

Chervel guided the research and data analysis. Of them we have used the concepts of hidden

curriculum, official curriculum or real curriculum or prescribed and regulated curriculum,

curriculum in action, ideology, curriculum and subject.

Among the results we can cite the pressures of professionals from the educational area and

from philosophers and sociologists; the political and ideological currents involved in the

reintroduction of Philosophy as an subject; and the fact that, even though this reintroduction

is a victory, Philosophy in the curriculum is still subject to ambiguities regarding the results of

its reintroduction.

Key-words: Philosophy, compulsory subject, high school

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABFC - Associação Brasileira de Filósofos Católicos

ANPOF - Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia

APEOESP – Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo

CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CCJC – Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania

CEB – Câmara de Educação Básica

CEC – Comissão de Educação e Cultura

CEESP – Conselho Estadual de Educação de São Paulo

CNE – Conselho Nacional de Educação

CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

CNTE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação

CONTEE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino

CONPEFIL - Conjunto de Pesquisa Filosófica

CONVÍVIO - Sociedade Brasileira de Cultura

CNDF - Coordenação Nacional dos Departamentos de Filosofia

DCNEM – Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio

DSND - Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento

EMC – Educação Moral e Cívica

ENEFILS - Encontros Nacionais de Estudantes de Filosofia

ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio

ESN – Estado de Segurança Nacional

EPB – Estudos dos Problemas Brasileiros

FNSB – Federação Nacional dos Sociólogos – Brasil

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GAB/SEB/MEC: Gabinete da Secretaria de Educação Básica do Ministério de Educação

e Cultura

IBF - Instituto Brasileiro de Filosofia

LDB – Lei de Diretrizes e Bases

MEC – Ministério de Educação e Cultura

NR – Norma Regulamentadora

OCEM – Orientações Curriculares para o Ensino Médio

OSPB – Organização Social e Política Brasileira

PCNEM – Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio

PL – Projeto de Lei

PSB – Partido Socialista Brasileiro

PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira

PT – Partido dos Trabalhadores

PS-GSE: Primeiro Secretário do Grupo de Supervisão Educacional

SARESP – Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo

SEAF – Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas

SGM-P: Secretaria Geral da Mesa-Presidência

SINSESP – Sindicato das Secretarias do Estado de São Paulo

UBES – União Brasileira dos Estudantes Secundaristas

USAID – United States Agency for International Development

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ÍNDICE

Introdução......................................................................................................................... p.11

Os instrumentos de pesquisa e análise...............................................................................p.14

Referêncial Teórico...........................................................................................................p.15

Breve síntese da presença/ausência da Filosofia como disciplina na educação escolar

brasileira.............................................................................................................................p23

A Filosofia nos Parâmetros Curriculares Nacionais, nos PCN+ e nas Orientações

Curriculares para o Ensino Médio.....................................................................................p.32

A volta da Filosofia ao currículo do Ensino Médio: da promulgação da nova LDB/1996 até

a promulgação da Lei nº 11.684/2008...............................................................................p.47

Considerações finais..........................................................................................................p.72

Bibliografia........................................................................................................................p.77

Anexo 1..............................................................................................................................p.84

Anexo 2..............................................................................................................................p.89

Anexo 3..............................................................................................................................p.94

Anexo 4..............................................................................................................................p.96

Anexo 5............................................................................................................................p.102

Anexo 6............................................................................................................................p.114

Anexo 7............................................................................................................................p.115

Anexo 8.............................................................................................................................p116

Anexo 9............................................................................................................................p.131

Anexo 10..........................................................................................................................p.132

Anexo 11..........................................................................................................................p.133

Anexo 12..........................................................................................................................p.158

Anexo 13..........................................................................................................................p.172

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Introdução

Em 2 de junho de 2008, foi promulgada a lei número 11.684, que alterou o artigo 36

da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei 9.394/1996), para incluir a

Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias nos currículos de ensino médio. Esta

Lei referenda o Parecer nº 38/2006, elaborado conjuntamente pelo Conselho Nacional de

Educação e pela Câmara de Educação Básica, cuja avaliação rezava pela obrigatoriedade do

ensino de Filosofia e Sociologia no currículo do ensino médio em todas as escolas brasileiras.

De acordo com Alves (2002), o ensino escolar brasileiro sempre teve sua estrutura e

seu papel condicionados pelo modelo econômico-político vigente em cada momento da

história. As políticas educacionais adotadas sempre estiveram carregadas de intenções e são

estas que determinam qual é o tipo de pessoa/cidadão que deve ser “criado”. Assim sendo, a

política educacional, que define desde como a organização da instituição escolar deve ser até

quais devem ser os conteúdos trabalhados, canaliza a educação para fins específicos, o que

pode acabar por fragilizar o processo pedagógico, dificultando uma ação criadora e reflexiva.

E é justamente isso que podemos observar na atualidade: o sucateamento da educação (baixos

salários, grande número de alunos por sala, etc). Segundo Tommasi (2007), no que diz

respeito ao sistema educacional brasileiro, dois aspectos merecem destaque: 1) há a

prevalência da lógica financeira sobre a lógica social e educacional; 2) a falácia de políticas

que se declaram com o objetivo de elevar a qualidade do ensino, enquanto implementam a

redução dos gastos públicos para o setor educacional e mantêm-se indiferentes à carreira e ao

salário do professorado.

Se vivemos numa sociedade neoliberal, que preza os conhecimentos tácitos em

detrimento do conhecimento científico; se o preferível no momento é um ensino que tenha

aplicações mais práticas e diretas; e levando-se em consideração que uma disciplina escolar

não existe sem um objetivo, que ela “comporta não somente as práticas docentes da aula, mas

também as grandes finalidades que presidiram sua constituição” (CHERVEL, 1990, p.184),

por que se incluiu a Filosofia como disciplina obrigatória? Quais foram os conflitos que

resultaram nessa introdução?

No mundo moderno, a educação técnica, estreitamente ligada ao trabalho industrial,

mesmo ao mais primitivo e desqualificado, deve constituir a base do novo tipo de

intelectual [...] O modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na

eloqüência, motor exterior dos afetos e das paixões, mas num imiscuir-se ativamente

na vida prática, como construtor, organizador, “persuasor permanente” [...]

(GRAMSCI, s.d., p.11)

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Assim sendo, e assumindo a constatação de que a sociedade compõe-se por diversos

blocos de poder com interesses conflitantes, é relevante o estudo dos conflitos que resultaram

na Lei nº 11.684 de 2 de junho de 2008, que alterou o artigo 36 da Lei nº 9394, de 20 de

dezembro de 1996. Além disso, uma certa lacuna de estudos na área (constatada depois de um

levantamento inicial)1, nos aponta mais uma vez para a oportunidade de se realizar este

trabalho.

[...] o estudo do conflito em torno da definição pré-ativa de currículo escrito irá

aumentar o nosso entendimento dos interesses e influências atuantes neste nível [...]

este entendimento nos fará conhecer melhor tanto os valores e objetivos patenteados

na escolarização quanto a forma como a definição pré-ativa pode estabelecer

parâmetros para a ação e negociação interativa no ambiente da sala de aula e da

própria escola [...] Entender a criação de um currículo é algo que deveria

proporcionar mapas ilustrativos das metas e estruturas prévias que situam a prática

contemporânea. (GOODSON, 2001, p.21/22)

O presente trabalho tem, então, como principal tema e problema examinar as razões

alegadas para a implementação da Lei 11.684/2008, que alterou o artigo 36 da Lei nº 9394, de

20 de dezembro de 1996, e reintroduziu a Filosofia e a Sociologia como disciplinas

obrigatórias no currículo do Ensino Médio.

Decorre dele o seguinte questionamento:

a) Como a Filosofia aparece nos Paramêtros Curriculares Nacionais para o Ensino

Médio, nos PCN+ Ensino Médio (Orientações Educacionais Complementares aos

Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio) e nas Orientações

Curriculares para o Ensino Médio? Documentos estes que norteiam a educação

nacional.

A questão é que o potencial para um estreita relação – no extremo oposto, uma não-

relação – entre teoria e prática ou entre currículo escrito e currículo ativo, depende

da natureza da construção pré-ativa dos currículos – quanto à exposição e quanto à

teoria – bem como da sua execução interativa em sala de aula (GOODSON, 2001,

p.24).

O fato de ter vivenciado todo o momento que antecedeu a promulgação da já citada

lei, e por pertencer a um grupo que seria diretamente afetado por ela – licenciados em

Filosofia (na época estava cursando o último ano da faculdade), me levou a questionar o que

teria levado à aprovação da Lei nº 11.684, considerando, claro, que a introdução ou retirada da

Filosofia, ou de qualquer outra disciplina, do currículo sempre esteve ligada a conjuntura

política em vigência.

1Após levantamento feito no Banco de Teses da CAPES, constatou-se que não existem trabalhos recentes que

abordem a questão dos conflitos por detrás da reintrodução da Filosofia no currículo do Ensino Médio. O

trabalho mais recente encontrado data do ano 2000, mas não trabalha especificamente com os conflitos políticos-

ideológicos.

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Assim sendo, o objetivo geral deste trabalho é levantar e analisar as razões para a volta

da Filosofia ao currículo do Ensino Médio. Já os objetivos específicos são: a) Levantar as

justificativas que levaram o Congresso a aprovar a Lei 11.684/2008; b) Verificar à quais

necessidades a disciplina Filosofia vem atender; c) Verificar como a disciplina é proposta nos

Parâmetros, nos PCN+ e nas Orientações;

As principais hipóteses que guiarão esta pesquisa serão as seguintes:

a) vivemos em um momento histórico neoliberal, com o advento da sociedade do

conhecimento, da pedagogia das competências, com o apogeu do individualismo, da

competitividade da globalização, da formação continuada, de cada vez mais provisioriedade

de conhecimento. Caberia então pensar que a disciplina de Filosofia viria, então, para auxiliar

esse pensamento que se caracteriza pela mobilidade;

b) assim como aconteceu nos governos de Geisel e Figueiredo, quando a reintrodução

da Filosofia ao currículo do Ensino Secundário fez parte de uma estratégia do ESN (Estado de

Segurança Nacional) para renovação de sua legitimidade e para assegurar a continuidade do

modelo político-econômico vigente, a volta da Filosofia ao currículo do Ensino Médio em

2008, pode não ter tido razões voltadas para o conteúdo e para a melhor formação dos jovens,

mas sim razões corporativas, apenas para responder à demanda/pressão dos professores, e

futuros professores, de Filosofia, que viam as poucas aulas existentes serem ministradas por

professores formados em outras áreas, como História e Geografia;

c) examinar ainda que superficialmente, as possíveis implicações do fato de que talvez

não seja apenas coincidência que num governo declaradamente neoliberal, presidido por um

sociólogo, deu-se o veto à introdução da Filosofia e da Sociologia ao currículo do Ensino

Médio, enquanto que essa introdução foi facilitada num outro governo que, ao menos

tendencialmente, questiona e se afasta dos excessos do modelo neoliberal.

Vale deixar claro que uma história da Filosofia como disciplina escolar no Brasil ainda

está para ser feita. A grande ênfase atual é num estudo histórico da Filosofia como àrea do

conhecimento. Este trabalho tenta, portanto, contribuir para que passos na direção de estudos

da Filosofia como disciplina sejam dados.

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Os instrumentos de pesquisa e análise

Visando o alcance dos objetivos e dos questionamentos propostos para a realização

desta dissertação, documentos oficiais foram a principal fonte de pesquisa utilizada.

Os documentos oficiais foram utilizados, sobretudo, na realização de uma síntese do

percurso da Filosofia na educação brasileira para melhor compreender sua atual situação

como uma disciplina curricular. Afinal, as políticas educacionais e, conseqüentemente, os

currículos escolares, são constituídos historicamente. Aqui foram usados principalmente os

textos das Reformas de Francisco Campos (decreto nº 19.890, de 18 de abril de 1932) e de

Gustavo Capanema (especificamente o Decreto-lei n.4.244 de 9 de abril de 1942); da Lei de

Diretrizes e Bases de 1961 (Lei nº 4024); da Lei n. º 5692 de 1971, que fixa diretrizes e bases

para o ensino de 1º e 2º graus, e dá outras providências; e da Lei de Diretrizes e Bases de

1996 (Lei n. º 9.394). Tais documentos foram escolhidos por representarem momentos que

consideramos como os mais importantes na história da Filosofia no currículo do ensino médio

(antigo secundário) brasileiro.

A pesquisa documental também foi feita para tentar clarificar quais foram os conflitos

políticos-ideológicos que resultaram na mudança curricular ocorrida em 2008, com a

reintrodução da Filosofia como disciplina obrigatória no currículo do Ensino Médio. Foram

coletados e analisados os projetos de leis e pareceres que marcaram os embates pela volta da

Filosofia ao currículo do Ensino Médio, desde a promulgação da LDB de 1996. Podemos citar

aqui como os principais, os seguintes documentos: Parecer CNE/CEB Nº15/98; Resolução

CNE/CEB nº03/98; Mensagem nº 1073, de 8 de outubro de 2001; Projeto de Lei n.º

1641/2003; Parecer CNE/CEB nº 38/2006; Resolução CNE/CEB nº4/2006; Parecer CEE nº

343/2007 – CEB aprovado em 7/7/2007; Lei nº 11684/2008; Parecer nº 22/2008.

Além dos documentos já citados, também foram analisados os textos dos Paramêtros

Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Parte IV: Ciências Humanas e suas tecnologias),

dos PCN+ Ensino Médio (Ciências Humanas e suas tecnologia) e das Orientações

Curriculares para o Ensino Médio (Volume 3: Ciências Humanas e suas tecnologias).

A análise das informações retiradas dos documentos foi guiada pelos conceitos de

Currículo Oficial ou Real, Currículo em Ação, elaborados por Gimeno Sacristán; de

Currículo Oculto, elaborado por Michael W. Apple; e de ideologia, elaborado por Antonio

Gramsci. Foram utilizados também os conceitos de currículo e disciplina, elaborados por

Goodson e Chervel.

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Referencial Teórico

Os principais referenciais teóricos, no que tange à análise dos documentos oficiais

(Paramêtros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio; Orientações Curriculares para o

Ensino Médio), e à análise de como as propostas são contempladas na prática, serão Gimeno

Sacristán e Michael W. Apple. Deles, serão utilizados três conceitos: o de currículo oculto, o

de currículo oficial ou prescrito e regulamentado, e o de currículo em ação.

Currículo oculto, segundo Apple (1999), diz respeito às normas e valores

implicitamente e efetivamente transmitidos pelas escolas e que, habitualmente, não são

mencionados nos objetivos apresentados pelos professores. Segundo Apple (1999) a

hegemonia é produzida e reproduzida não só pelo corpus formal, mas também pelo oculto.

Currículo oculto é, então, o conjunto de normas sociais, princípios e valores transmitidos

tacitamente através do processo de escolarização. O currículo oculto não aparece explicitado

nos planos educacionais ou nas propostas curriculares oficiais, mas ocorre sistematicamente

produzindo resultados não acadêmicos, embora igualmente significativos.

[...] historicamente e actualmente se introduziram no currículo determinadas

concepções relativas às normas de cultura e valores legítimos. No entanto, há que

salientar que a hegemonia é produzida e reproduzida não só pelo corpus formal do

conhecimento escolar, mas também pelo ensino oculto (APPLE, 1999, p.137).

De acordo com Gimeno Sacristán (1998), o currículo oculto se caracteriza por duas

condições: o que não se pretende e o que é obtido por meio da experiência natural, que não foi

diretamente planejada pelos professores ou por qualquer outro sujeito.

O currículo oficial, segundo esse mesmo autor, diz respeito às propostas curriculares

oficiais, ou seja, os conteúdos que devem ser ensinados definidos em documentos

oficiais/legais.

[...] o currículo real é mediado pelo contexto social, econômico, político e cultural,

e, compreender o currículo oficial nos possibilita analisar, com base nas intenções

expressas e latentes, presentes nas políticas oficiais, os limites e possibilidades da

realidade educativa cotidiana das escolas (PAIVA, 2006:13).

Segundo Gimeno Sacristán (1998), “[...] para entender o currículo real é preciso

esclarecer os âmbitos práticos em que é elaborado e desenvolvido, pois, do contrário

estaríamos falando de um objeto reificado à margem da realidade” (p.129). Ou seja, o

currículo oficial mostra facetas das intenções do processo educativo escolar, ou seja, aquilo

que as autoridades estão buscando na educação escolar. Isso porque os conhecimentos

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vinculados nos componentes curriculares estão sempre atrelados ao objetivo da educação. Por

trás do currículo sempre há interesses.

É importante ressaltar que, para Gimeno Sacristán, para se conhecer o currículo é

preciso ir muito além das declarações oficiais, da retórica, dos documentos, ou seja, é preciso

se aproximar o máximo possível da realidade.

O que se torna evidente é que, pelas propostas do currículo, expressam-se mais os

desejos do que as realidades. Sem entender as interações entre ambos os aspectos

não podemos compreender o que acontece realmente aos alunos/as e o que

aprendem (GIMENO SACRISTÁN, 1998, p.137).

Currículo em ação, segundo Gimeno Sacristán (1998), é o currículo reelaborado na

prática, é a transformação do currículo oficial no pensamento e no plano dos professores e nas

tarefas acadêmicas.

O conjunto de tarefas de aprendizagem que os alunos/as realizam, das quais extraem

a experiência educativa real, que podem ser analisadas nos cadernos e na interação

da aula e que são, em parte, reguladas pelos planos ou programações dos

professores/as – é o chamado currículo em ação (GIMENO SACRISTÁN, 1998,

p.138).

É interessante sublinhar que, para Gimeno Sacristán, currículo não é simplesmente

uma prescrição, sua realidade não se mostra somente em suas modelagens documentais; para

o autor, currículo é um processo, que se mostra na interação de todos os seus contextos

práticos, que vão desde o âmbito de decisões políticas e administrativas que resultam no

currículo oficial (documentos curriculares) até sua transformação em currículo em ação.

Já no que tange à historicização da proposição e tramitação no Congresso até a sanção

presidencial, da Lei nº 11.684/2008, far-se-á uso da Abordagem do Ciclo de Políticas,

formulada por Ball e Bowe. Acreditamos que tal Abordagem será muito útil para guiar a

análise do trâmite da Lei, pois nos permite organizar os documentos/acontecimentos de forma

a refletir a sucessão dos eventos.

Essa abordagem destaca a natureza complexa e controversa da política educacional,

enfatiza os processos micropolíticos e a ação dos profissionais que lidam com as

políticas no nível local e indica a necessidade de se articularem os processos macro e

micro na análise de políticas educacionais. É importante destacar [...] que este

referencial teórico-analítico não é estático, mas dinâmico e flexível [...]

(MAINARDES, 2006, p. 49).

Segundo Mainardes (2006, p. 48), tal abordagem é bastante útil para a análise de

políticas educacionais, principalmente no contexto brasileiro.

[...] a abordagem do ciclo de políticas constitui-se num referencial analítico útil para

a análise de programas e políticas educacionais e que essa abordagem permite a

análise crítica da trajetória de programas e políticas educacionais desde sua

formulação inicial até a sua implementação no contexto da prática e seus efeitos [...]

Essa abordagem destaca a natureza complexa e controversa da política educacional,

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enfatiza os processos micropolíticos e a ação dos profissionais que lidam com as

políticas no nível local e indica a necessidade de se articularem os processos micro e

macro na análise de políticas educacionais. (MAINARDES, 2006, p.48).

A Abordagem do Ciclo de Políticas tem cinco contextos.

O primeiro é o contexto da influência, onde normalmente as políticas públicas são

iniciadas.

É aqui que o discurso político é contruído. É aqui que os partidos interessados lutam

para influenciar a definição e as finalidades sociais da educação, o que significa ser

educado. (BOWE; BALL; GOLD, 1992, p.19)2

Nesse contexto atuam as redes sociais dentro e em torno dos partidos políticos, do

governo e do poder legislativo. É neste momento que os conceitos como os de educação, de

políticas públicas e de políticas educacionais, adquirem legitimidade e formam o discurso

político.

O segundo é o da produção de texto, que é o momento em que são articulados os

textos políticos (que representam a política); é o momento em que as leis são articuladas. Os

textos políticos são o resultado de disputas e acordos, já que os grupos que atuam dentro dos

diferentes lugares da produção de textos competem para controlar as representações da

política.

Os textos políticos, portanto, representam a política. Essa representação pode tomar

varias formas, sendo a mais comum os textos oficiais e os documentos políticos [...]

(BOWE; BALL; GOLD, 1992, p.20).3

O terceiro é o contexto da prática, que é onde a política está sujeita à interpretação e

recriação, é onde a política produz efeitos e conseqüências, as quais podem representar

mudanças significativas na política original/anterior. O ponto-chave deste contexto, para Ball

e Bowe, é o fato de que as políticas não serão simplesmente implementadas, elas estão

sujeitas à interpretação, ou seja, estão sujeitas à recriação.

O quarto é o contexto dos resultados e efeitos, no qual há a preocupação com questões

de justiça, igualdade e liberdade individual (análise dos efeitos e impactos das políticas).

O quinto e último é o de estratégia política, que envolve a identificação de um

conjunto de atividades políticas e sociais que seriam necessárias para entender as

desigualdades criadas ou reproduzidas pelas políticas públicas investigadas.

Dado os interesses já citados deste trabalho (investigar os conflitos políticos e os reais

2 Tradução nossa. Do original em inglês: “It is here that policy discourses are constructed. It is here that

interested parties strugle to influence the definition and social purposes of education, what it means to be

educated.” 3 Tradução nossa. Do original em inglês: “Policy texts therefore represent policy. These representations can

take various forms: most obviously „official‟ legal texts and policy documents [...]”

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objetivos por trás da inserção da Filosofia como componente curricular obrigatório no Ensino

Médio) far-se-á uso principalmente dos três primeiros contextos da Abordagem do Ciclo de

Políticas. Os dois últimos contextos não serão utilizados por acreditar-se ser muito cedo para

termos resultados observáveis dessa inserção, que ocorreu no 2º semestre de 2008.

Como já foi dito anteriormente, o presente trabalho tem como principal objetivo

analisar a presença da Filosofia como disciplina obrigatória no currículo do Ensino Médio;

mais especificamente, examinar os conflitos político-ideológicos que resultaram na Lei nº

11.684 de 2 de junho de 2008. Por isso se faz necessário explicar o que será definido como

ideologia. Usaremos a definição grasmsciniana de ideologia.

Ideologia, segundo Gramsci, é uma concepção de mundo que implicitamente se

manifesta na arte, no direito, na atividade econômica e em todas as manifestações da vida

intelectual e coletiva. É um conjunto de idéias, crenças e valores que constituem a visão de

mundo de um determinado grupo social ou povo. Ou seja, a ideologia não é enganosa ou

negativa em si, mas constitui qualquer ideário de um grupo social. É importante ressaltar que

a definição de Gramsci difere muito da definição de Marx e Engels, para quem a noção de

ideologia é uma distorção das contradições sociais reais e, portanto, contribui para a

reprodução destas. O conceito de ideologia apresenta, aqui, uma clara conotação negativa.

No entanto, para Gramsci, ideologia não é apenas um conjunto de idéias, ela também

está relacionada com a capacidade de inspirar atitudes concretas e proporcionar orientação

para ação. Assim, a ideologia é o terreno sobre o qual os Homens se movimentam, ou seja, ela

está socialmente generalizada pois seres humanos não podem viver sem um código de

conduta, sem orientações. É, portanto, na e pela ideologia que uma classe pode exercer

hegemonia sobre outras, isto é, pode assegurar a adesão e o consentimento das grandes

massas. Aqui, Gramsci atenta para o papel dos intelectuais na produção da ideologia.

Os intelectuais são os “comissários” do grupo dominante para o exercício das

funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do

consenso “espontâneo” das grandes massas da população quanto à orientação

impressa pelo grupo fundamental dominante, à vida social, consenso que nasce

“historicamente” do prestígio (e, portanto, da confiança) que o grupo dominante

obtém, por causa de sua posição e de sua função no mundo da produção; 2) do

aparato de coerção estatal, que assegura “legalmente” a disciplina dos grupos que

não “consentem”, nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a

sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais

fracassa o consenso espontâneo (GRAMSCI, s.d., p.14).

Assim sendo, a dominação ideológica é igual à subordinação intelectual, ou seja, o

grupo que tem o domínio da ideologia, tem o domínio sobre a educação e todas as instituições

ligadas a ela direta ou indiretamente. O poder das classes dominantes, dentro do modo de

produção capitalista, não reside simplesmente no controle dos aparatos repressivos do Estado.

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Se assim fosse, tal poder seria relativamente fácil de ser combatido (bastaria que fosse atacado

por uma força armada equivalente ou superior que trabalhasse para as classes dominadas).

Este poder é garantido fundamentalmente pela "hegemonia" cultural que as classes

dominantes logram exercer, através do controle do sistema educacional, das instituições

religiosas e dos meios de comunicação. Usando deste controle, as classes dominantes

"educam" os dominados para que estes vivam em submissão como algo natural e conveniente.

Acreditamos ser importante, também, definir o que será entendido aqui como

disciplina e como currículo.

Currículo (do lat. Curriculu): 4. Bras. P. ext. As matérias constantes de um curso.

Disciplina (do lat. Disciplina): 6.Qualquer ramo do conhecimento (artístico,

científico, histórico, etc); 8. Conjunto de conhecimentos em cada cadeira dum

estabelecimento de ensino; matérias de ensino

Essas são as definições dadas pelo Novo Dicionário Aurélio para os termos currículo e

disciplina. Currículo então seria o conjunto de disciplinas ministradas em um estabelecimento

de ensino, e disciplinas (ou matérias) seriam conjuntos de conhecimentos de uma área

específica (matemática, história, biologia etc). Porém, os hoje denominados currículo e

disciplina escolar nem sempre tiveram a compreensão que contemporaneamente lhes

atribuímos.

Segundo Goodson (2001) o termo currículo advém da palavra latina currere, que pode

ser traduzida como correr, referindo-se a curso a ser seguido, mais especificamente a ser

apresentado. Na atualidade, currículo passa a ser compreendido como um conjunto daquilo

que se ensina e daquilo que se aprende, tendo como referência alguma ordem de progressão,

podendo ir além do que está escrito oficialmente.

Já o termo disciplina, no sentido de conteúdos de ensino, segundo Chervel (1990), só

aparece nas primeiras décadas do século XX, pois até o fim do século XIX, seu significado

não era mais do que a vigilância dos estabelecimentos em relação às condutas prejudiciais á

sua boa ordem e àquela parte da educação dos alunos que contribui para tal ordem.

Mas é importante ressaltar que tanto currículo como disciplina são conceitos que vão

muito além dessas simples definições. Ambos são construções históricas e sociais, ou seja, a

construção de um currículo e, conseqüentemente, a escolha de determinadas disciplinas, estão

repletas de conflitos, interesses, objetivos, relações de dominância etc. É por esse motivo que

devem ser analisados historicamente, caso contrário, não podem ser compreendidos.

De acordo com Goodson (2001), o currículo é formulado numa grande variedade de

áreas e níveis, mas o fundamental para esta variedade é a distinção entre o currículo escrito e

o currículo interativo (como atividade em sala de aula). Segundo o autor, o que se vê hoje é

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uma tendência a se analisar cada um separadamente, como se não houvesse nenhum tipo de

relação entre o currículo escrito e o interativo, o que acaba conduzindo a dois erros,

principalmente: o primeiro, é considerar que o currículo escrito é irrelevante para a prática,

que existe “uma dicotomia completa e inevitável entre o currículo adotado, na sua forma

escrita, e o currículo ativo, na sua forma vivida e experienciada” (p.52); o segundo é tomar o

currículo escrito como fato consumado.

[...] é politicamente ingênuo e conceitualmente inadequado afirmar que “o

importante é a prática em sala de aula” (da mesma forma que é uma ignorância

querer excluir a política da educação) [...][...] o estudo do conflito em torno da

definição pré-ativa de currículo escrito irá aumentar o nosso entendimento dos

interesses e influências atuantes neste nível [...] este entendimento nos fará conhecer

melhor tanto os valores e objetivos patenteados na escolarização quanto a forma

como a definição pré-ativa pode estabelecer parâmetros para a ação e negociação

interativa no ambiente da sala de aula e da própria escola [...] Entender a criação de

um currículo é algo que deveria proporcionar mapas ilustrativos das metas e

estruturas prévias que situam a prática contemporânea. (GOODSON, 2001b,

p.20/21/22)

Para Goodson é preciso que ambos sejam estudados, mas antes de se partir para a

prática, é preciso estudar o currículo escrito, pois entender a criação do currículo nos

possibilita mapear as metas e estruturas prévias que podem vir a influenciar a prática.

Entender a contrução pré-ativa de um currículo pode estabelecer importantes parâmetros para

a compreensão de sua realização interativa dentro da sala de aula. A desconsideração da

elaboração histórica e social do currículo nos leva a aceitá-lo como um fato consumado, não

permitindo uma renovação e atualização da forma e do conteúdo curriculares.

Começar qualquer análise da escolaridade aceitando, sem questionamento, a forma e

o conteúdo do currículo, aspectos que suscitaram lutas e que foram estabelecidos

num ponto histórico particular, com base em certas prioridades sociais e políticas;

isto é, tomar o currículo como um dado, significa renunciar a um vasto conjunto de

entendimentos sobre aspectos do controlo e do funcionamento da escola e da sala de

aula (GOODSON, 2001, p.57/58).

Assim, como foi dito acima, currículo é mais do que uma simples palavra para definir

um conjunto de disciplinas: é uma construção histórica, reflete um conflito social. A definição

daquilo que deve ser ensinado envolve um enorme conjunto de prioridades sociais e políticas

que, inevitavelmente, afetam a orientação pedagógica e a realização na sala de aula. O

currículo não é uma realidade abstrata, à margem do sistema socioeconômico, da cultura e do

sistema educativo. O currículo é uma práxis, não um objeto estático. É a expressão da função

socializadora e cultural da escola. Por isso, as funções que o currículo cumpre são realizadas

por meio de seus conteúdos, de seu formato e das práticas que gera.

Tal como dissemos em relação ao currículo, o mesmo se passa com as disciplinas.

Estas também são mais do que uma palavra usada para designar um conjunto de

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conhecimento de determinada área.

Nenhuma disciplina é incluída no currículo sem motivo, uma disciplina escolar não

existe sem um objetivo (segundo Chervel, este é o tópico principal a partir do qual uma

disciplina se constitui), ela “comporta não somente as práticas docentes da aula, mas também

as grandes finalidades que presidiram sua constituição” (CHERVEL, 1990, p.184). E, para

entender essas finalidades, para entender por que a escola ensina o que ensina, é preciso,

também, analisar historicamente as disciplinas escolares.

Conforme vimos acima, o ensino escolar, sendo uma construção histórico-social,

sempre teve sua estrutura e seu papel condicionados pelo modelo econômico-político vigente

em cada momento da história. Relembrando, ainda, as políticas educacionais adotadas sempre

estiveram carregadas de intenções, já que são definidas por sujeitos, e são estas que

determinam qual é o tipo de pessoa/cidadão que deve ser “criado”. Assim sendo, a política

educacional, que define desde como a organização da instituição escolar deve ser até quais

devem ser os conteúdos trabalhados, canaliza a educação para fins específicos. A seleção dos

conteúdos depende necessariamente de finalidades específicas.

A constituição dos saberes escolares específicos a cada disciplina do currículo é

resultado de um complexo processo que envolve conflitos, consentimentos, mediações entre

diversos sujeitos e instituições, diante dos papéis que são atribuídos à escola em determinada

época e sociedade.

Geografia, Matemática, História, Educação Física, entre outras tantas disciplinas

escolares, fazem parte dos currículos e constituem saberes, aparentemente,

“naturais” que circulam no cotidiano das salas de aula. Mas esta “naturalidade” da

presença das disciplinas nas escolas e o “lugar” de cada uma delas no currículo

escolar têm sido objeto de questionamentos, tanto na atualidade, como em outros

momentos da história da educação escolar (BITTENCOURT, 2003, p.9).

Segundo Chervel (1990), existe um consenso de que as disciplinas escolares são

conteúdos impostos à escola pela sociedade, conteúdos estes que foram construídos em outro

lugar que não na escola. Mas esse consenso nega a autonomia tanto da escola quanto das

disciplinas, além de reduzir estas às metodologias. Para Chervel, as disciplinas escolares não

são resultado de uma simples transposição didática, não são uma “vulgarização” dos

conhecimentos acadêmicos. São construções feitas pela escola, na escola e para a escola, mas

ainda assim mantêm relação com os diferentes campos do conhecimento (ciências).

A concepção de escola como puro e simples agente de transmissão de saberes

elaborados fora dela está na origem da idéia, muito amplamente partilhada no

mundo das ciências humanas e entre o grande público, segundo a qual ela é, por

excelência, o lugar do conservadorismo, da inércia, da rotina. Por mais que ela se

esforce, raramente pode-se vê-la seguir, etapa por etapa, nos seus ensinos, o

progresso das ciências que se supõe ela deva difundir (CHERVEL, 1990, p.182).

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Chervel, então, define as disciplinas escolares como entidades epistemológicas

autônomas e, em sua argumentação, concebe a escola como uma instituição que obedece a

uma lógica particular e específica, com a participação de inúmeros agentes, tanto externos

quanto internos, mas que não deixa de ser um local de produção de um conhecimento próprio.

Por isso não basta apenas pesquisar a gênese, as finalidades e o funcionamento de uma

disciplina por si só, mas é preciso, também, investigar a disciplina como parte integrante da

cultura escolar, pois só assim é possível entender as relações estabelecidas com o exterior,

com a cultura e com a sociedade. Não podemos esquecer que as disciplinas que compõem o

currículo escolar não desempenham um papel neutro. Os conhecimentos vinculados nas

disciplinas não são “naturais” e não existem por si só; a liberdade do que se ensina na escola

está circundada pelos documentos oficiais que balizam a atuação do(a) professor(a).

É importante ressaltar que o processo de criação de uma disciplina não é o mesmo em

todos os casos. Cada disciplina tem uma trajetória própria. Segundo Goodson (1990), que

também se posiciona contra a idéia de transposição didática, cada disciplina precisa ter seu

percurso histórico analisado, para que seja possível entendê-la. Muitas matérias escolares4 não

possuem as mesmas estruturas das disciplinas acadêmicas, além de utilizarem diferentes

conceitos e metodologias. Goodson também argumenta que algumas matérias escolares nem

mesmo possuem uma disciplina correspondente, como é o caso da educação ambiental.

Muitas escolas adotaram tal matéria, mas ela não existe como disciplina acadêmica.

Segundo Bittencourt (2003), a presença de uma disciplina no currículo não se restringe

somente a questões epistemológicas ou didáticas, ela também se articula ao papel político que

uma disciplina desempenha ou tende a desempenhar. Muitos são os sujeitos envolvidos na

constituição de uma disciplina: Estado, deputados, ministros, partidos políticos em geral,

professores e alunos, entre outros. Estes sujeitos também delimitam a legitimidade e o poder

de uma disciplina.

Ainda segundo a autora (2005), é “fundamental conhecer a história das disciplinas

para identificar os pressupostos que possibilitam entender os liames e as diferenças entre uma

disciplina escolar e as ciências de referência, uma vez que cada disciplina possui uma

história” (p.40)

4 Para Ivor Goodson o termo disciplina é entendido como uma forma de conhecimento originária da tradição

acadêmica. Para o caso de escolas primárias e secundárias ele utiliza o termo matéria escolar.

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Breve síntese da presença/ausência da Filosofia como disciplina na educação escolar

brasileira

O ponto de partida deste breve histórico será a Reforma Francisco Campos (1931) pois foi a

partir dela que o ensino secundário5 adquiriu o caráter de curso, com um currículo seriado e

freqüência obrigatória.

Até essa época, o ensino secundário não tinha organização digna desse nome, pois

não passava, na maior parte do território nacional, de cursos preparatórios, de

caráter, portanto, exclusivamente propedêutico. Além disso, todas as reformas que

antecederam o movimento renovador, quando efetuadas pelo poder central,

limitaram-se a quase exclusivamente ao Distrito Federal, que as apresentava como

“modelo” aos Estados, sem, contudo, obrigá-los a adotá-las [...] Era a primeira vez

que uma reforma atingia profundamente a estrutura do ensino e, o que é importante,

era pela primeira vez imposta a todo o território nacional. Era, pois, o início de uma

ação mais objetiva do Estado em relação à educação (ROMANELLI, 1984, p.131)

As modificações na infra-estrutura econômica do Brasil, resultantes da Revolução de

1930, determinaram novas funções para a escola.

A intensificação do capitalismo industrial no Brasil, que a Revolução de 30 acabou

por representar, determinou conseqüentemente o aparecimento de novas exigências

educacionais. Se antes, na estrutura oligárquica, as necessidades de instrução não

eram sentidas, nem pela população, nem pelos poderes constituídos (pelo menos em

termos de propósitos reais), a nova situação implantada na década de 30 veio

modificar profundamente o quadro das aspirações sociais, em matéria de educação,

e, em função disso, a ação do própio Estado. (ROMANELLI, 1984, p.59)

A reforma no ensino secundário foi proposta, primeiramente, através do Decreto

19.890, de 18 de abril de 1931, e foi consolidada depois, pelo Decreto 21.241, de 4 de abril de

1932. Na exposição de motivo deste último, Francisco Campos escreveu que a finalidade

exclusiva do ensino secundário era a formação do Homem para a atividade nacional, e não

apenas a matrícula nos cursos superiores. O ensino secundário deveria inculcar no espírito do

sujeito todo um conjunto de hábitos, atitudes e comportamentos.

Esse decreto conseguiu dar ao ensino secundário um caráter mais estável. Até então o

curso não era seriado, a matrícula era por disciplina e os alunos acabavam fazendo somente as

disciplinas que eram pedidas nos exames para o ensino superior. Até o final da década de

1920, “imperava o sistema de „preparatórios‟ e de exames parcelados para ingresso no ensino

5 Era chamado "ensino secundário" o que hoje corresponde ao Ensino Fundamental II (a partir do sexto ano) e ao

Ensino Médio. De acordo com o Art.21 do Decreto 21.241 de 1932, o candidato a exame de admissão deveria

provar ter a idade de 11 anos ou que a completaria até junho do ano em que requereria a incrição.

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superior, sendo o curso secundário, quando existente, pouco procurado” (ROMANELLI,

1984, p.135). Por isso a Reforma Francisco Campos teve o mérito de dar ao ensino secundário

organicidade, estabelecendo definitivamente o currículo seriado, a freqüência obrigatória, dois

ciclos e a exigência de habilitação neles para o ingresso no ensino superior.

Com essa reforma o ensino secundário ficou dividido em dois ciclos: um fundamental,

de cinco anos; e outro complementar, de dois anos. O primeiro tornou-se obrigatório para o

ingresso em qualquer escola superior e o segundo, somente em determinadas escolas. Além

disso, o ciclo complementar ficou subdividido em três cursos preparatórios para o ensino

superior (cada um com duas séries), um destinado para os alunos que queriam ingressar na

Faculdade de Direito, outro para aqueles que queriam ingressar nas Faculdades de Medicina,

Odontologia e Farmácia, e outro para aqueles que queriam ingressar nos cursos de Engenharia

e Arquitetura.

Segundo o Art.4º do Decreto 21.241/1932, constavam como disciplinas obrigatórias

para o ciclo complementar: Alemão ou Inglês, Latim, Literatura, Geografia, Geofísica e

Cosmografia, História da Civilização, Matemática, Física, Química, História Natural,

Biologia Geral, Higiene, Psicologia e Lógica, Sociologia, Noções de Economia e Estatística,

História da Filosofia e Desenho.

A Reforma Francisco Campos (1932) [...] teve como medidas mais significativas a

criação do regime seriado de estudos e a freqüência obrigatória [...] Quanto à nova

estrutura do curso secundário, este ficou divido em dois ciclos: um fundamental, de

cinco anos [...] e outro complementar, de dois anos [...] A Filosofia passou a compor

o currículo do ciclo complementar, como história da filosofia e como lógica

(ALVES, 2002, p. 32).

A Lógica era ministrada juntamente com a Psicologia nos ciclos complementares que

preparavam para os cursos de Direito, Medicina, Farmácia e Odontologia, Engenharia e

Arquitetura. Para os cursos jurídicos (destinado aos que queria ingressar nos cursos de

Direito) exigia-se, também, a História da Filosofia na 2ª série do ciclo complementar.

O ensino secundário, segundo os objetivos propostos pela Reforma Campos, devia

se voltar para a formação do homem, habilitando-o, por atitudes e comportamentos,

a viver por si e a tomar decisões. Os ensinamentos da lógica contribuíam em muito

para essa formação, pois auxiliavam no treino e no uso da razão. Na universidade,

esse exercício do raciocínio convertia-se num processo de interpretação da

experiência, em termos de relações de pensamento. Estava encaminhada, portanto,

uma justificativa para a inclusão da referida disciplina no ciclos complementares,

propedêuticos ao ensino superior (CARTOLANO, 1985, p.57/58).

Em 1942, por iniciativa do então ministro Gustavo Capanema, começam a ser

reformados alguns ramos do ensino. Essas reformas, nem todas realizadas sob o Estado Novo,

receberam o nome de Leis Orgânicas do Ensino. A Lei Orgânica do Ensino Secundário era o

Decreto-lei 4.244, de 9 de abril de 1942.

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Na exposição de motivo, Gustavo Capanema afirma que o que constituía o caráter do

ensino secundário era a função de formar nos alunos uma sólida cultura geral, acentuar e

elevar a consciência patriótica e a consciência humanística. Deveria ser um ensino capaz de

dar ao aluno a compreensão dos problemas e necessidades, da missão e dos ideais da nação.

[...] o ensino secundário se destina à preparação das individualidades condutoras,

isto é, dos homens que deverão assumir as responsabilidades maiores dentro da

sociedade e da nação, dos homens portadores das concepções e atitudes espirituais

que é preciso infundir nas massas, que é preciso tornar habituais entre o povo. Ele

deve ser, por isso, um ensino patriótico por excelência [...] (EXPOSIÇÃO DE

MOTIVOS DA LEI ORGÂNICA DO ENSINO SECUNDÁRIO DE 1º DE ABRIL

DE 1942)

Segundo Romanelli (1984), é possível, a partir do texto da lei, sintetizar as principais

funções do ensino secundário:

a) possibilitar uma cultura geral e humanística;

b) alimentar uma ideologia política definida em termos de patriotismo e

nacionalismo de caráter fascista;

c) dar condições para o ingresso no ensino superior;

d) formação de lideranças (p.157).

De acordo com Cartolano (1985), a Lei Orgânica do Ensino Secundário não mudou

muito o cenário do Ensino Secundário. Este continuou dividido em dois ciclos, mas a duração

e a nomenclatura destes foi alterada. Segundo os Art.2º, 3º e 4º, o Ensino Secundário seria

ministrado em dois ciclos: o primeiro compreendia um só curso com duração de quatro anos,

o ginasial; o segundo compreendia dois cursos parelelos, cada qual com a duração de três

anos: o clássico e o científico.

O curso ginasial tinha como objetivo dar aos adolescentes os elementos fundamentais

do Ensino Secundário. Os cursos clássico e científico tinham por objetivo consolidar a

educação ministrada no curso ginasial, assim como densenvolvê-la e apronfundá-la. No curso

clássico havia uma maior ênfase na formação intelectual, além de um maior conhecimento de

filosofia e um acentuado estudo das letras antigas. No curso científico a formação seria

marcada por um estudo maior das ciências.

[...] sobressaíam, nos dois níveis, uma preocupação excessivamente enciclopédica e

ausência de distinção entre os dois cursos: o clássico e o científico. Finalmente o

currículo não era diversificado, nem sequer quanto aos níveis, sendo praticamente as

mesmas disciplinas em quase todas as séries. Esse ensino não diversificado só tinha,

na verdade um objetivo: preparar para o ingresso no ensino superior. Em função

disso só podia existir como educação de classe. Continuava, pois, constituindo-se no

ramo nobre do ensino, aquele realmente voltado para a formação das

“individualidades condutoras” (ROMANELLI, 1984, p. 158).

A Filosofia era indicada como disciplina obrigatória na 3ª série do curso clássico, e na

3ª série do científico.

Todavia, durante este período, uma gradativa redução do número de aulas atribuídas à

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Filosofia aconteceu.

A filosofia era disciplina comum aos cursos clássico e científico e deveria ser

ensinada de acordo com um mesmo programa para ambos os cursos, apenas com

maior amplitude no curso clássico. Em 1946, pela Portaria n.º19 de 12 de janeiro, os

programas passaram a ser elaborados por comissões designadas pelo ministro da

Educação e se caracterizavam por sua respeitável extensão. Já os programas de

1951, publicados pela Portaria n.º 966, de 2 de outubro [...] eram menos extensos,

devendo no entanto, ser claros e flexíveis. As aulas de Filosofia foram, a princípio,

distribuídas em quatro por semana na 2ª série do clássico e 3º científico e duas aulas

semanais no 3º clássico. O então ministro da Educação e Saúde, Raul Leitão da

Cunha, em Portaria de 10 de dezembro de 1945, modificou o regime para quatro

aulas semanais na 3º série do científico e três aulas nas séries do clássico, apenas

distribuindo melhor o tempo destinado ao ensino de Filosofia. Mas as alterações não

cessaram aí, e pela Portaria n.º 966 de 2 de outubro de 1951, que reestruturou os

programas da disciplina para os cursos clássico e científico, as horas-aula semanais

passaram a ser três, em ambas as séries desses cursos. Finalmente, a Portaria n.º 54,

de 1954, reduziu o número de aulas semanais, estabelecendo um mínimo de duas

horas por semana nas séries do clássico e uma hora, apenas, no científico. Esse

quadro é uma mostra do processo de extinção da Filosofia como disciplina

obrigatória e, depois, como optativa, do currículo do ensino secundário, em nosso

país (CARTOLANO, 1985, p.59).

A próxima reforma de ensino que trouxe maiores conseqüências para Filosofia foi a lei

n.º 4024 de 1961 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), que introduziu a

descentralização do ensino, permitindo, assim, que as escolas pudessem optar entre vários

currículos. De acordo com Romanelli, a lei 4024 de 1961, em essência, nada mudou. Sua

única vantagem foi, talvez, “o fato de não ter prescrito um currículo fixo e rígido para todo o

território nacional, em cada nível e ramo. Este, a nosso ver, o único progresso da lei: a quebra

da rigidez e certo grau de descentralização” (p.181).

A estrutura do ensino secundário6 ficou como estava, dividida em dois ciclos, o

ginasial e o colegial, o primeiro com quatro anos e o segundo com três.

No que diz respeito à grade curricular, quatro opções de currículo passaram a existir

no colegial, que compreendiam até cinco disciplinas indicadas como obrigatórias: português,

matemática, geografia, história e ciências. “Aos conselhos estaduais, se existissem, cabia

escolher, dentre os vários conjuntos possíveis, as disciplinas que iriam complementar o

currículo. A Filosofia é indicada aqui para o 2º ciclo” (ALVES, 2002, p.34). Somente no

conjunto das disciplinas optativas, a Filosofia aparecia como Lógica, e perdia, assim, o caráter

de obrigatoriedade que possuía na Reforma Gustavo Capanema.

Segundo Alves, “a questão da presença ou ausência da Filosofia no ensino secundário

brasileiro chega às portas do Golpe Militar de 1964, marcada por um processo de 'extinção'

6 Os cursos secundários, assim como os cursos técnicos e de formação de professores para o Ensino Primário

e Pré-Primário, compreendiam o Ensino Médio, ensino em prosseguimento ao ministrado na escola primária

que destinava-se à formação do adolescente. Vale ressaltar que, aqui, era preciso ter 11 anos de idade ou

alcançar essa idade no correr do primeiro ano letivo do curso.

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gradativa do currículo que se manifestou na forma de redução de sua carga horária” (2002,

p.34).

As reformas políticas empreendidas pelos governos militares devem ser analisadas

num contexto em que predominava a ideologia da DSND (Doutrina de Segurança Nacional e

Desenvolvimento). Para assegurar as melhores condições para a implementação e manutenção

do modelo ecônomico de internacionalização do mercado interno, em substituição ao modelo

nacional-desenvolvimentista” vigente até então, várias reformas foram elaboradas, sobretudo

no campo educacional.

É assim que, sob a assessoria dos técnicos da USAID, o MEC empreendeu as

reformas educacionais “necessárias” para que se garantisse um desenvolvimento

econômico sem entraves. Os técnicos dessa Agências norte-americana propuseram

uma reformulação curricular dos diversos níveis de ensino escolar no Brasil, que

deveriam se modernizar (ALVES, 2002, p.37)

Essa modernização, segundo Cartolano (1985, p.71) implicava, dentre outra coisas,

uma valorização das áreas técnológicas, em detrimento da formação geral e da gradativa

perda de status das humanidades e ciências sociais.

Visando formar quadros, ou melhor, mão-de-obra barata para preencher as

categorias ocupacionais das empresas em expansão, especialmente as multinacionais

que aqui se instalaram, reorganizaram-se os currículos escolares segundo o modelo

tecnicista, sobretudo os do nível secundário, com vistas a formar indivíduos

executantes de idéias apropriadas do exterior, em vez de formar pesquisadores e

pessoas criativas a partir da realidade nacional. Nesse cenário, a Filosofia passou a

ter cada vez menos importância, seja por não servir aos objetivos tecnicistas em

andamento, ou porque não se coadunava também com os objetivos ideológicos,

condensados na DSND (Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento)

(ALVES, 2002, p.37).

Criaram-se então, situações para justificar a ausência da Filosofia no currículo escolar,

como por exemplo, a inclusão de outras disciplinas que, supostamente, tinham o conteúdo

correspondente ao da Filosofia. Eram essas disciplinas: Educação Moral e Cívica (EMC),

Organização Social e Política Brasileira (OSPB) e Estudos dos Problemas Brasileiros (EPB).

Mas isso não significava que tais disciplinas comportassem os conteúdos filosóficos,

muito pelo contrário, mas era essa a idéia veiculada como justificativa para não incluir a

Filosofia no currículo. A educação moral e cívica, por exemplo, veiculava valores fundados na

moral católica e no civismo, destacando o aprimoramento do caráter, a dedicação à família e,

principalmente o culto da obediência à lei. “A Filosofia era normalmente associada a essa

disciplina, em nível de equivalência, de modo que se uma fosse contemplada no currículo não

havia a necessidade de incluir a outra, para não sobrecarregar o currículo com disciplinas

equivalentes” (ALVES, 2002, p.39).

Porém, foi a Lei n. º 5692, de agosto de 1971 (que fixa diretrizes e bases para o ensino

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de 1º e 2º graus)7 que definiu a completa ausência da Filosofia dos currículos escolares do

nível secundário, até o fim do regime militar.

A Lei de Diretrizes e Bases, de agosto de 1971, reorganizou o ensino de 1º e 2º graus

(antigos primário, ginásio e colégio) em todo o território nacional, dando-lhes uma

nova estrutura fundada em objetivos universais e criando a profissionalização

compulsória no 2 º grau, que visou, fundamentalmente, o aperfeiçoamento das

funções de discriminação social, via escolaridade (CARTOLANO, 1985, p.75).

Segundo seu Art. 1º, o ensino, tanto de 1º como de 2º grau, tinham como objetivo geral

“proporcionar ao educando a formação necessária ao desenvolvimento de suas

potencialidades como elemento de auto-realização, qualificação para o trabalho e preparo para

o exercício consciente da cidadania”. Tendo em vista, então, a qualificação para o trabalho, a

Lei n.º 5692/71, previa em seu Art. 4º a organização dos currículos, tanto do ensino primário

como o secundário, atribuindo-lhes um “núcleo comum”, obrigatório em âmbito nacional, e

uma “parte diversificada”, que deveria atender às necessidades de cada escola e/ou região.

As disciplinas que passaram a constituir o núcleo comum, fixadas pelo Conselho

Federal de Educação foram “Comunicação e Expressão (língua portuguesa e língua

estrangeira moderna), Estudos Sociais (história, geografia e organização social e política do

Brasil) e Ciências (matemática e ciências físicas e biológicas)” (CARTOLANO, 1985, p.76).

Além desse núcleo comum, outras disciplinas foram fixadas como obrigatórias pelo

Conselho Federal. Conforme o Art. 7º da Lei n.º 5692/71, eram elas: Educação Moral e

Cívica, Educação Física, Educação Artística e Programas de Saúde; o ensino religioso, de

matrícula facultativa, constituiu-se disciplina dos horários normais dos estabelecimentos de

ensino de 1º e 2º graus.

Apesar das condições adversas, do ponto de vista legal, a Filosofia poderia ser

integrada no currículo do secundário, como disciplina da parte diversificada; porém, na

prática isso se tornava quase impossível, devido aos muitos dispositivos criados pelo governo

federal que inviabilizavam a inclusão da Filosofia nesse nível de ensino.

Mesmo não sendo possível, neste momento, garantir sua presença no currículo do

ensino médio das escolas públicas nacionais, sempre existiu alguma forma de pressão para a

inclusão da Filosofia no currículo.

[...] a questão do ensino da Filosofia não ficou esquecida nem sem defensores. Em

função do retorno do seu ensino em caráter obrigatório, ao 2º Grau, empenharam-se

filósofos, educadores, estudantes e entidades (GASPARELLO, 1986, p. 3,4).

É nesse período que é criada a Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas (SEAF),

7 Com a Lei 5692, de 1971 o colegial passou a se denominar 2º grau, que deveria ter três ou quatro séries

anuais. O ginásio incorporou-se ao ensino de 1º grau, que deveria ter a duração de 8 anos letivos.

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em 1975, como resposta à retirada da Filosofia do currículo do ensino secundário (Lei n. º

5692/71).

A SEAF nasceu devido à necessidade de se criar uma alternativa para a discussão de

idéias, compartilhar estudos, etc., atividades inviabilizadas nos cursos e departamentos de

Filosofia das universidades por causa da grande vigilância imposta pelo regime militar. A

SEAF fazia parte de um movimento de protesto contra a exclusão da Filosofia, movimento

que reivindicava a volta da disciplina ao currículo escolar. Esse movimento contou também

com outras importantes referências nacionais, tais como a CONVÍVIO (Sociedade Brasileira

de Cultura); o CONPEFIL (Conjunto de Pesquisa Filosófica); a ABFC (Associação Brasileira

de Filósofos Católicos); o IBF (Instituto Brasileiro de Filosofia), a CNDF (Coordenação

Nacional dos Departamentos de Filosofia); além da marcante presença dos estudantes de

Filosofia, que além de participarem das atividades das entidades já citadas, passaram a

organizar seus próprios encontros, os ENEFILS (Encontros Nacionais de Estudantes de

Filosofia). Outro acontecimento marcante desse movimento de protesto foi a criação da

ANPOF (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia), em 1983.

A ANPOF não demonstrava grandes interesses pelas questões que inspiravam a SEAF,

inclusive no que dizia respeito à reintrodução da Filosofia no 2º grau, no entanto, passou a ser

oficialmente reconhecida como representante da área de filosofia junto “aos órgão públicos

federais de fomento para ensino, pesquisa e extensão, começando a receber verbas da CAPES

e do CNPq ...” (ALVES, 2002, p. 51).

A Filosofia voltou ao currículo no Rio de Janeiro, como “noções de Filosofia”, pelo

parecer CEE/RJ n. 49, de 21 de janeiro de 1980.

A Filosofia retornou ao ambiente escolar, mas como uma disciplina optativa,

controlada/vigiada e muitas vezes ministrada por professores formados em outras áreas do

conhecimento. A forma como foi reintroduzida, portanto, não correspondeu, em muitos

aspectos, àquilo que pretendiam as várias entidades representativas do movimento.

Já que até o momento a Filosofia não havia encontrado nenhum respaldo nos órgãos

oficiais, responsáveis pela política educacional do governo, por que, então, a sua inclusão no

currículo do secundário passava a ser interessante aos olhos do governo, vale dizer do ESN?

Para responder tal questão, é preciso contextualizar o momento.

Era o período do desgaste do “milagre econômico”, que teve como efeito, dentre

outras coisas, a queda do nível de vida das camadas médias, contribuindo, assim, para

aumentar o clima de oposição ao regime militar.

Com uma oposição quase generalizada, vinda de vários setores da sociedade,

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inclusive de setores da elite, como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), ABI

(Associação Brasileira de Imprensa), CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do

Brasil), universidades etc., o governo começou a não poder mais assegurar a „ordem‟

por meio da repressão indiscriminada e violenta, sendo obrigado a buscar outras

formas de legitimação. (ALVES, 2002, P. 49).

Teve início, então, o processo de “redemocratização” da sociedade, marcado por uma

política de abertura lenta, gradual e segura dos Governos Geisel e Figueiredo, o que significou

uma estratégia muito bem articulada de recomposição da hegemonia do ESN, que conseguiu

renovar sua legitimidade perante a elite oposicionista e, ao mesmo tempo, assegurar a

continuidade do modelo político e econômico vigente. Assim, tudo indica que a reintrodução

da Filosofia ao currículo do Ensino Secundário, nesse momento, fez parte da estratégia do

ESN para a recomposição da sua hegemonia, reafirmando o discurso oficial de

democratização da sociedade.

Em 20 dezembro de 1996 foi promulgada a nova Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional (Lei nº 9.394). Desse ponto em diante, a Filosofia passa a ter uma

“presença inócua” no currículo da educação secundária, pois a lei, apesar de afirmar que os

educandos devem apresentar, ao final do Ensino Médio, conhecimento de Filosofia e

Sociologia, ela não define a obrigatoriedade dessas duas disciplinas. Presença inócua porque o

discurso da importância da Filosofia não se traduz em uma presença efetiva dessa disciplina

nos currículos do Ensino Médio. Por um lado, a necessidade da Filosofia está presente na lei,

mas ao analisarmos mais atentamente percebemos que não nos é possível afirmar com

precisão como se dá a inclusão da Filosofia no currículo do Ensino Médio, se como uma

disciplina específica, obrigatória, ou se a Filosofia deve ser trabalhada de forma transversal

em outras disciplinas.

Desse modo, a lei conceitua mas não obriga, não assegura seu próprio cumprimento.

Assim, tudo passa a depender das medidas que os gestores do sistema venham a

tomar (SEVERINO, 2002, p. 65).

Segundo Alves (2002), a Lei número 9.394/96 é o cumprimento de um programa cujo

principal objetivo é a centralidade da educação. Tal programa começou a ser implementado no

Brasil de forma mais incisiva e sistemática no governo de Fernando Collor de Melo, e que foi

sustentado com maior competência pelo governo de Fernando Henrique Cardoso em seus dois

mandatos. Não é coincidência que, depois de oito anos, a lei tenha sido aprovada nesse

período. Ela finalmente estava de acordo com os “interesses privatistas e com o ideário

neoliberal” (ALVES, 2002, p. 64). A Lei, nos moldes almejados pela iniciativa privada e pelo

MEC, foi sancionada sem vetos pelo então presidente da República Fernando Henrique

Cardoso.

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Ainda segundo Alves (2002), essa Lei é um

marco simbólico de uma „guinada‟ neoconvervadora em educação no Brasil, na

década de 1990, nos moldes do ideário neoliberal, que se caracteriza pelo combate

intransigente aos direitos sociais e aos ganhos de produtividade da classe

trabalhadora, enfim, contra a intervenção do Estado em assuntos econômicos,

defendendo o postulado de que “o mercado é a lei social soberana” ( 2002, p. 63).

Como diz Saviani:

Seria possível considerar esse tipo de orientação e, portanto, essa concepção de

LDB, como uma concepção neoliberal? Levando-se em conta o significado

correntemente atribuído ao conceito neoliberal, a saber: valorização dos mecanismos

de mercado, apelo à iniciativa privada e às organizações não governamentais em

detrimento do lugar e do papel do Estado e das iniciativas do setor público, com a

conseqüente redução das ações e dos investimentos públicos, a resposta será positiva

(2003, p. 200).

Por aproximadamente três anos, tramitou na Câmara e no Senado Federal, um projeto

de lei complementar que substituiria o artigo 36 da LDB, definindo a obrigatoriedade das

disciplinas de filosofia e sociologia nos currículos do Ensino Médio. Após a aprovação do

projeto nessas duas instâncias do Poder Legislativo Federal, ele foi vetado, em outubro de

2001, pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso.

Os argumentos que sustentaram o veto foram basicamente dois [...] a) a inclusão das

disciplinas de Filosofia e Sociologia implicaria incremento orçamentário impossível

de ser arcado pelos estados e municípios; b) não haveria suficientes professores

formados para fazer frente às novas exigências da obrigatoriedade da disciplina

(FÁVERO, CEPPAS, GONTIJO, GALLO, KOHAN, 2003, p. 260).

Mas em 2 de junho de 2008, a lei número 11.684 alterou o artigo 36 da lei número

9.394/96, para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias nos currículos

de ensino médio.

Como se pode ver, a Filosofia tem uma certa presença na educação brasileira, por isso,

é relevante estudar sua situação como componente obrigatório do currículo do Ensino Médio

para que se possa compreender por que, nos dias atuais, ela voltou a ser algo relevante para a

formação dos jovens.

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A Filosofia nos Parâmetros Curriculares Nacionais, nos PCN+ e nas Orientações

Curriculares para o Ensino Médio.

A atual LDB reforça a necessidade de se proporcionar uma formação básica comum

para todos os educandos em território nacional. Tem-se, então, a necessidade de se estabelecer

diretrizes básicas que norteiem os currículos. É neste contexto em que surgem os documentos

oficiais que estabelecem orientações e parâmetros para a organização curricular no país. São

estes documentos: os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN); os PCN+ (Orientações

Educacionais Complementares aos PCN); e as Orientações Curriculares Nacionais para o

Ensino Médio (OCNEM), datados respectivamente de 2000, 2002 e 2006.

É importante frisar que a existência desses documentos não significa que exista um

sistema nacional de ensino no Brasil. Os PCN, os PCN+ e as OCNEM são apenas modelos,

sugestões, que podem ou não ser seguidos. Esses documentos são parâmetros, e não ditames.

Esses três documentos constituem uma reiteração das diretrizes e finalidades do

Ensino Médio expressas na LDB. Dessa forma, as concepções de formação e de cidadão

expressas na LDB figuram como uma espécie de pano de fundo desses documentos: será com

vistas nessas concepções que os documentos farão suas propostas.

Assim sendo, analisar como se dá a presença da Filosofia nesses três documentos

ajudaria ainda mais a entende-la como disciplina escolar, além de ajudar a ver a evolução da

importância dada à sua presença no currículo do Ensino Médio.

Se considerarmos como “princípios gerais do Ensino Médio” os definidos na Lei de

Diretrizes e Bases, o espírito da proposta de ensino desenvolvida na parte dos PCNEM

dedicada à Filosofia, é bem coerente com a concepção assumida nos textos que compõem as

Bases Legais.

A coerência entre os textos dos PCN da Filosofia e a lei, repousa em concepções de

ensino e de Filosofia que se aproximam em muitos pontos, particularmente nos conceitos de

razão, crítica, interdisciplinaridade, contextualização e competência, sobretudo se levarmos

em conta o Parecer CEB/CNE nº 15/98 que compõe as Diretrizes.

No entanto, essa coerência repousa sobre uma ambigüidade fundamental (não um

conflito explícito) entre os textos da lei - LDB e as Diretrizes Curriculares para o Ensino

Médio (Parecer CNE/CEB nº 15/98 e Resolução CNE/CEB nº 03/98) - e a parte dos 3

documentos dedicada à Filosofia. Enquanto a LDB e as DCNEM (em seu texto original), ao

mesmo tempo em que valorizam os conhecimentos de Filosofia como necessários ao

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exercício da cidadania, não asseguram a oferta destes no Ensino Médio, os Parâmetros, os

PCN+ e as OCNEM defendem sua obrigatoriedade, embora discordem entre si quanto à

forma como tal obrigatoriedade deva ocorrer. Os Parâmetros defendem a transversalidade, os

PCN+ defendem um currículo elaborado em torno de eixos temáticos (começam a dar

elementos para a exigência de um espaço próprio para os conteúdos de Filosofia, mas ainda

não falam em um conteúdo obrigatório) e as OCNEM defendem que a Filosofia deva ser

disciplina obrigatória e indicam um currículo baseado nos seus conteúdos construídos

historicamente (algo como uma história da Filosofia).

É neste quesito (defesa da obrigatoriedade) que se encontra a principal diferença entre

os três documentos.

Os PCNEM, embora defendam a importância e a obrigatoriedade da Filosofia ,

afirmam que ela deve ser tratada com interdisciplinaridade (estando assim, de acordo com as

DCNEM), pois assim o “papel da Filosofia fica alargado e poderemos, a partir de qualquer

posição em que estivermos, ajudar a pôr em marcha a cooperação entre as diferentes

perspectivas teóricas e pedagógicas que compõem o universo escolar” (PCNEM/Filosofia,

p.46).

De acordo com o texto dos PCNEM/Filosofia, ela possui uma natureza

transdisciplinar8, o que poderia colaborar decisivamente no trabalho de articulação entre os

diferentes sistemas teóricos. Segundo o texto, essa transdisciplinaridade da Filosofia poderia,

por exemplo, levar o estudante a compreender de forma reflexiva, conteúdos das Ciências

Naturais, das Ciências Humanas e das Artes.

Vale frisar que há nos PCNEM uma grande defesa de um currículo interdisciplinar, ou

seja, não mais organizado em disciplinas. De acordo com o texto:

[...] nossos currículos escolares estão, naturalmente, decalcados desse pano de

fundo cultural fragmentador, isto é, nossa prática escolar ainda se ancora no ensino

de disciplinas isoladas, para não dizer desconexas. O resultado já conhecido é a

falência e a insuficiência de nossos modelos educacionais, do ponto de vista de seus

mais altos objetivos, os quais exigem a formação de competências gerais e básicas

nos planos cognitivo, instrumental, moral, político e estético. A reforma curricular

que ora se apresenta visa, expressamente, a tentar corrigir essa distorção

(PCN/Filosofia, p.56).

A interdisciplinaridade viria, então, ajudar na busca por uma contextualização do

conhecimento escolar, evitando sua compartimentalização. Assim, os PCNEM/Filosofia não

indicam conteúdos de Filosofia, apenas apontam competências e habilidades que devem ser

desenvolvidas.

8 Transversalidade e interdisciplinaridade são modos de se trabalhar o conhecimento buscando a reintegração

de aspectos que ficaram isolados uns dos outros pelo tratamento disciplinar.

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Tal atitude parece ser um tanto quanto falha, uma vez que não é possível exercitar a

“reflexão sobre” sem estar ciente de fenômenos, conceitos e conteúdos próprios de uma

determinada área. Segundo Gallo (2002), só se pode tranversalizar a partir de uma

singularidade.

Sem a singularidade da Filosofia estar presenta na escola, através de um professor

bem formado, apto a promover a atividade filosófica com os jovens estudantes, não

haverá possibilidade de um aporte de fato filosófico (GALLO, 2002, p.287)

Não se pode ignorar que, como área do conhecimento, a Filosofia possui conteúdo

cultural, métodos e mecanismos próprios. Ela não é apenas reflexão sobre as outras áreas do

conhecimento.

Fica claro, então, que nos PCNEM/Filosofia, não há uma defesa de um espaço próprio

para os conhecimentos de Filosofia.

Nesse pontos, os PCN+/Filosofia “avançam” um passo em relação aos PCN/Filosofia,

pois embora não defendam explicitamente que a Filosofia deva ter um espaço próprio, eles

defendem o uso de conteúdos programáticos no desenvolvimento de competências e

habilidades.

O importante, no entanto, não consiste em menosprezar os conteúdos progrmáticos,

e sim reconhecer que os conhecimentos são recursos a serem mobilizados nas mais

inéditas e complexas situações reais. Caso contrário, de que adiantariam os saberes

acumulados se não se transformassem em condições para serem aplicadas no

trabalho, no convívio da família, no lazer, nas mais diversas situações que exijam

reconfigurações do conhecimento (PCN+/Filosofia, p.49)

Nos PCN+/Filosofia também há uma argumentação a favor da utilização da

interdisciplinaridade na organização curricular nacional.

Desde há muito tempo, a escola estrutura seu conteúdo programático em torno do

ensino das diversas disciplinas, muitas vezes de maneira enciclopédica,tentando dar

conta da avalanche de conhecimentos. Além da perversa ênfase no conteúdo, essas

inúmeras disciplinas permanecem estanques em seus territórios, levando a uma

aprendizagem fragmentada da realidade (PCN+/Filosofia, p.49)

E também defendem que a Filosofia possui uma natureza transdisciplinar e,

portanto, teria uma vocação para “a visão de conjunto, para a percepção da totalidade” (p.49).

Mas, como dissemos anteriormente, ao contrário dos PCNEM/Filosofia, que defendem a

Filosofia apenas como uma reflexão, os PCN+/Filosofia afirmam que é através da articulação

de conceitos e conteúdos próprios da Filosofia que as competências e habilidades serão

desenvolvidas. Em outras palavras, começam a dar elementos para a exigência de um espaço

próprio para os conteúdos de Filosofia. Os PCNN+/Filosofia sugerem um currículo baseado

em eixos temáticos derivados “dos conceitos estruturadores e das competências sugeridas para

a àrea em geral e para cada disciplina” (p.52). Por exemplo, uma dos eixos temáticos

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sugeridos é o “Relações de poder e democracia”, dentro desse eixo há o tema “Democracia

grega” e dentro deste temos os subtemas “A ágora e a assembléia: igualdade nas leis e no

direito à palavra” e “Democracia direta: formas contemporâneas possíveis de participação da

sociedade civil”. A idéia por detrás desse currículo seria introduzir discussões acerca do

mundo moderno através de temas filosóficos.

Já nas OCNEM/Filosofia, de 2006, encontramos uma explícita defesa de um espaço

próprio e obrigatória para a Filosofia.

A Filosofia deve ser tratada como disciplina obrigatória no ensino médio [...] O

tratamento da Filosofia como um componente curricular do ensino médio, ao mesmo

tempo em que vem ao encontro da cidadania, apresenta-se, porém, como um desafi

o, pois a satisfação dessa necessidade e a oferta de um ensino de qualidade só são

possíveis se forem estabelecidas condições adequadas para sua presença como

disciplina, implicando a garantia de recursos materiais e humanos

(OCNEM/Filosofia, p.15)

De acordo com o texto do documento, rediscutir os parâmetros para a Filosofia traria

“novo fôlego para a sua consolidação entre os componentes curriculares do Ensino Médio”

(p.16).

Segundo as OCNEM/Filosofia, os PCNEM/Filosofia contêm muitas ambigüidades, e a

maioria delas são resultado de uma indefinição: a de apontar a necessidade da Filosofia sem,

no entanto, oferecer-lhe as adequadas condições curriculares. A origatoriedade da disciplina

seria algo essencial para qualquer debate interdisciplinar, pois sem estar presente (com um

espaço próprio) a Filosofia nada teria a dizer, pois não seria considerada como um conjunto

particular de conteúdos e técnicas. Ela acabaria se tornando “uma vulgarização perigosa de

boas intenções que só podem conduzir a péssimos resultados” (p.17)

As Orientações indicam um currículo baseado numa abordagem história dos conteúdos

de Filosofia. O texto argumenta que o aspecto peculiar da Filosofia, que a diferencia das

outras áreas do saber, é a relação singular que ela mantém com sua história, “sempre

retornando a seus textos clássicos para descobrir sua identidade, mas também sua atualidade e

sentido” (p.27). De acordo com o documento, pedir aos alunos que pensem e reflitam sobre os

problemas modernos do ser-humano sem oferecer-lhes a base teórica seria a mesma coisa que

pedir-lhes que descubram por si mesmos qual a é a fórmula da gravitação sem estudar Física.

Porém, é a partir de seu legado próprio, com uma tradição que se apresenta na forma

amplamente conhecida como História da Filosofia, que a Filosofia pode propor-se

ao diálogo com outras áreas do conhecimento e oferecer uma contribuição peculiar

na formação do educando (OCNEM/Filosofia, p.27)

Logo no primeiro parágrafo da Introdução das OCNEM/Filosofia podemos ler:

A Filosofia deve ser tratada como disciplina obrigatória no ensino médio, pois isso é

condição para que ela possa integrar com sucesso projetos transversais e, nesse nível

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de ensino, com as outras disciplinas, contribuir para o pleno desenvolvimento do

educando (p.15)

É evidente que, não podendo tornar obrigatório o que a LDB apenas faculta9, os

documentos tomam a defesa da área e recomendam a presença obrigatória de um profissional

de filosofia no Ensino Médio.

É oportuno recomendar expressamente que não se pode de nenhum modo dispensar

a presença de um profissional da área, qualquer que seja a forma assumida pela

Escola para proporcionar a construção de competências de leitura e análise filosófica

dos diversos textos em que o mundo é tornado significativo. Nesse sentido, cabe

frisar que o conhecimento filosófico é um saber altamente especializado e que,

portanto, não pode ser adequadamente tratado por leigos. (PCN/Filosofia, p. 56)

Levando em conta a legislação educacional em vigor, em especial a LDB/96, que, ao

definir o perfil de saída do egresso do Ensino Médio, prescreve que este deve apresentar,

dentre outras coisas, o domínio dos conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao

exercício da cidadania, três questões são discutidas nos textos dos PCNEM/Filosofia e das

OCNEM/Filosofia: “(a) que conhecimentos são necessários? (b) que Filosofia? e (c) de que

aspectos deve-se recobrir

a concepção de cidadania assumida como norte educativo?” (PCNEM/ Filosofia, p.46).

A discussão sobre a questão (a)”que conhecimentos são necessários?” foi deixada

para o final, pois, segundo os autores ela está inserida no contexto do debate sobre

“as competências e habilidades a serem desenvolvidas em Filosofia. Por isso iniciam

abordando, primeiramente a questão (b)”que Filosofia?” (ALVES, 2002, p.97).

Por isso, nos Parâmetros e nas Orientações, a primeira questão contemplada é a

necessidade e a importância do professor de Filosofia realizar, não só em sua prática junto aos

alunos mas também na sua construção de identidade como docente de Filosofia, uma reflexão

acerca do problema “O que é Filosofia?”. Nos Parâmetros lemos:

Em suma, a resposta que cada professor de Filosofia do Ensino Médio dá à pergunta

(b) “que Filosofia?” decorre, naturalmente, da opção por um modo determinado de

filosofar que ele considera justificado. Aliás, é fundamental para esta proposta que

ele tenha feito sua escolha categorial e axiológica, a partir da qual lê e entende o

mundo, pensa e ensina. Caso contrário, além de esvaziar sua credibilidade como

professor de Filosofia, faltar-lhe-á um padrão, um fundamento, a partir do qual

possa encetar qualquer esboço de crítica. (PCN/Filosofia, p.48).

A mesma tese é apresentada nas Orientações

Em suma, a resposta de cada professor de Filosofia do ensino médio à pergunta “que

filosofia?” sempre dependerá da opção por um modo determinado de filosofar que

considere justificado. Aliás, é relevante que ele tenha feito uma escolha categorial e

axiológica a partir da qual lê o mundo, pensa e ensina (OCN/Filosofia, p.24).

Sinaliza-se, então, a necessidade do professor construir sua identidade enquanto um

agente que atua dentro de um conjunto sistematizado de conhecimentos. Assim sendo, a

9 Todos os documentos aqui trabalhados foram escritos antes da mudança no Art.36 da LDB.

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definição filosófica adotada pelo professor está atrelada à construção da própria identidade do

professor como sujeito e não apenas como professor de Filosofia. Ou seja, a posição do

professor diante da questão “que Filosofia” não significa somente definir sua concepção

filosófica, trata-se de um posicionamento político diante de seu trabalho. Isto implica a opção

por um determinado modo de filosofar que o(a) professor(a) considera justificado. Definir o

conceito de Filosofia é, então, o passo fundante do processo de se ensinar Filosofia; significa

dizer, desde o início, com qual autor, com qual referencial teórico irá trabalhar; é, enfim,

assumir “uma postura filosófica em torno dos problemas filosóficos emergidos no processo de

ensino” (Danelon, 2010, p.109).

No entanto, ao mesmo tempo em que defendem que o professor deve ter definido seu

próprio conceito de Filosofia (o que implica escolher determinada corrente filosófica) a ser

assumido em sua prática pedagógica, tanto os PCNEM como os PCN+, como as OCNEM,

baseando-se na Resolução CNE/CEB nº 03/98, ao definirem quais valores devem ser

trabalhados para uma formação cidadã, acabam por delimitar a ação pedagógica. Isso porque

não são todas as correntes filosóficas que abordam tais valores.

Devemos, pois, tomar, como ponto de partida, os valores tematicamente

apresentados na

Lei 9394/96, conforme dispostos na Resolução No 03/98:

I - os fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, ao

respeito ao bem comum e à ordem democrática;

II - os que fortaleçam os vínculos de família, os laços de solidariedade humana e de

tolerância recíproca.

(PCNEM/Filosofia, p. 48)

É importante relembrar, nesta altura, a afirmação de Goodson (2001) de que não existe

uma total dicotomia entre o currículo escrito e o currículo interativo. O currículo escrito não é

irrelevante para a prática pedagógica (por mais que o (a) professor (a) tenha sua autonomia

uma vez que a porta da sala de aula se feche), esta não está completamente livre das

definições pré-ativas. Embora seja possível para a prática subverter ou transcender tais

definições, a definição do que deve ser ensinado envolve um enorme conjunto de prioridades

sociais e políticas que, inevitavelmente, afetam a orientação pedagógica e a realização na sala

de aula. Nem o currículo escrito, nem o currículo interativo são fatos consumados: ambos são

uma práxis.

Um bom exemplo da influência das definições pré-ativas na prática pedagógica é o

vestibular, que é “construído” baseado na LDB e nas DCNEM. Isso porque, mesmo que o(a)

professor(a) tenha sua autonomia dentro da sala de aula, ele(a) ainda tem que “passar” para

seus(as) alunos(as) os conhecimentos exigidos pelo vestibular. Afinal, uma das finalidades da

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educação básica é fornecer ao educando “meios para progredir no trabalho e e em estudos

posteriores” (LDB, Art 22º).

Num segundo momento a questão (c) é discutida. A cidadania é tomada em três

dimensões distintas: estética, ética e política.

[...]A perspectiva estética, ou da sensibilidade, volta-se para questões de “natureza

interna” e “se traduz na fluência da expressão subjetiva e na livre aceitação da

diferença (Brasil, SEMTEC, 199b, p.97): ela é expressão da capacidade de abertura

para o outro, o diferente, a novidade etc. No aspecto ético ou identidade autônoma,

“a cidadania deve ser entendida como consciência e atitude de respeito universal e

liberdade na tomada de posição” (idem, ibidem) [...] do ponto de vista político, ou da

participação democrática, deve-se garantir o acesso de todos aos bens culturais e

naturais existentes; o respeito às opiniões e aos estilos de vida de cada cidadão e o

engajamento concreto na construção de uma sociedade democrática (ALVES, 2002,

p.98)

A discussão acerca da questão “(a) que conhecimentos são necessários?” é

desenvolvida no item “Competências e Habilidades a serem desenvolvidas em Filosofia”.

Os Parâmetros, assim como as Orientações, na parte específica sobre “Conhecimentos

de Filosofia”, apóiam-se, de início, no artigo 35 da LDB, que define as finalidades do Ensino

Médio e insistem na contribuição decisiva da Filosofia para o alcance das seguintes

finalidades:

Art. 35º. O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de

três anos, terá como finalidades:

I - a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino

fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos;

II - a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar

aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições

de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores;

III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética

e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico;

IV - a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos

produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina.

Nos PCN+ encontramos a mesma referência ao artigo 35 da LDB.

Examinemos, na Lei de Diretrizes e Bases (n° 9.394, de 1996), alguns artigos dos

quais poderemos partir [...]

o art. 35 estabelece como finalidades do Ensino Médio, além da preparação

básica para o trabalho e a cidadania do educando, o seu aprimoramento como

pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia

intelectual e do pensamento crítico (inciso III) e a compreensão dos

fundamentos científicos e tecnológicos dos processos produtivos, relacionando

a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina (inciso IV); [...]

(PCN+/Filosofia, p.41)

Em seguida, complementam sua afirmação com o texto do Art. 36º, reforçando o

domínio de conhecimentos necessários à cidadania. Com isso, os documentos acolhem como

meritório o que parece ser um aspecto problemático: o de restringir o interesse essencial da

Filosofia, que deve ser ministrada no Ensino Médio, a questões, aparentemente, de Filosofia

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Política, sendo convocada, talvez, em lugar da Educação Moral e Cívica ou da Organização

Social e Política Brasileira, com o objetivo de desempenhar um papel politicamente correto.

À medida que o texto continua, os conhecimentos de Filosofia se traduzem em

competências e habilidades. Parece-nos que, tanto os PCNEM/Filosofia quanto os

PCN+/Filosofia e as OCNEM/Filosofia (embora estes dois últimos defendam um espaço

próprio para a Filosofia), não defendem conteúdos de Filosofia que possam, em tese,

contribuir para a formação dos jovens, mas sim atitudes e competências ditas filosóficas,

como a competência da leitura – que não é qualquer leitura, mas uma que envolva a

capacidade de análise, de interpretação, de reconstrução racional e de crítica. O texto dos

documentos destaca principalmente I)competências comunicativas e II)competências cívicas.

A pergunta que se faz, portanto, é: de que capacidades se está falando quando se

trata de ensinar Filosofia no ensino médio? Da capacidade de abstração, do

desenvolvimento do pensamento sistêmico ou, ao contrário, da compreensão parcial

e fragmentada dos fenômenos? Trata-se da criatividade, da curiosidade, da

capacidade de pensar múltiplas alternativas para a solução de um problema, ou seja,

do desenvolvimento do pensamento crítico, da capacidade de trabalhar em equipe,

da disposição para procurar e aceitar críticas, da disposição para o risco, de saber

comunicar-se, da capacidade de buscar conhecimentos. De forma um tanto sumária,

pode-se afirmar que se trata tanto de competências comunicativas, que parecem

solicitar da Filosofia um refinamento do uso argumentativo da linguagem, para o

qual podem contribuir conteúdos lógicos próprios da Filosofia, quanto de

competências, digamos, cívicas [...] (OCNEM/Filosofia, p.30)

Poderíamos, até mesmo, fazer um paralelo com as aulas de retórica ministradas pelos

Sofistas na Grécia Antiga. A retórica era a arte de persuadir, independentemente das razões

adotadas. A grande crítica feita aos Sofistas, principalmente por Platão, era a de que os

Sofistas apenas formavam grande oradores, com uma capacidade de argumentar a favor de

qualquer ideal, não formavam sujeitos que dominassem os conhecimentos filosóficos. No

diálogo Sofista, Platão demonstra que a sofística tinha como objetivo o desenvolvimento do

poder de argumentação, da habilidade retórica.

Os conhecimentos necessários à cidadania, à medida que se traduzem em

competências, não coincidem, necessariamente, com conteúdos, digamos, de ética e

de filosofia política. Ao contrário, destacam o que, sem dúvida, é a contribuição

mais importante da Filosofia: fazer o estudante aceder a uma competência

discursivo-filosófica. Espera-se da Filosofia, como foi apontado anteriormente, o

desenvolvimento geral de competências comunicativas [...] (OCNEM/Filosofia,

p.30)

Todos os três documentos defendem o desenvolvimento de habilidades e

competências. A grande diferença entre eles consiste no dato de que os PCN+/Filosofia e as

OCNEM/Filosofia afirmam que tais habilidades e competências devem ser desenvolvidas

através de conceitos/conteúdos próprios da Filosofia. No entanto, é preciso ter claro que tais

conceitos e conteúdos assumem um papel secundário. Eles não são o objetivo final da

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disciplina, eles são o meio para desenvolver habilidades e competências ditas filosóficas.

Mais do que transmitir conhecimentos, o professor deve promover competências

gerais. Ou seja, mais do que ensinar, deve “fazer aprender”, uma vez que não se

pode prever as modificações que virão a ocorrer em curto espaço de tempo nos mais

diversos campos da cultura. O importante, no entando, não consiste em menosprezar

os conteúdos programáticos, e sim reconhecer que os conhecimentos são recursos a

serem mobilizados nas mais inéditas e complexas situações reais (PCN+/Filosofia, p

46).

A pergunta que se faz é: “qual a contribuição específica da Filosofia em relação ao

exercício da cidadania para essa etapa da formação?” (OCNEM/Filosofia, p.26). A solução

proposta destaca o papel da Filosofia no desenvolvimento das competências da fala, da

leitura e da escrita.

Nos três documentos são listadas, dentre outras, as competências e habilidades de ler

textos filosóficos de modo significativo; ler de modo filosófico textos de diferentes estruturas

e registros; elaborar por escrito o que foi apropriado de modo reflexivo; debater, tomando

uma posição, defendendo-a argumentativamente e mudando de posição em face de

argumentos mais consistentes.

Nas OCNEM/Filosofia lemos:

A resposta a essa questão destaca o papel peculiar da fi losofi a no desenvolvimento

da competência geral de fala, leitura e escrita – competência aqui compreendida de

um modo bastante especial e ligada à natureza argumentativa da Filosofi a e à sua

tradição histórica. Cabe, então, especifi camente à Filosofi a a capacidade de análise,

de reconstrução racional e de crítica, a partir da compreensão de que tomar posições

diante de textos propostos de qualquer tipo (tanto textos fi losófi cos quanto textos

não filosóficos e formações discursivas não explicitadas em textos) e emitir opiniões

acerca deles é um pressuposto indispensável para o exercício da cidadania. (p.26)

Em outras palavras: quando o(a) aluno(a) exercita bem a fala (expressão oral de sua

reflexão filosófica), a escrita (produção material de sua reflexão filosófica) e a leitura

(subsídio para a reflexão filosófica), ele(a) desenvolve competências que contribuem para o

exercício geral da cidadania.

Isso é coerente, já que a cidadania é um exercício e a Filosofia pode contribuir com tal

exercício na medida em que ajuda no desenvolvimento das já citadas competências. Porém,

encontramos aqui um “problema”.

Se mais acima localizamos algumas contradições entre textos dos PCNEM/Filosofia,

dos PCN+/Filosofia e das OCNEM/Filosofia e o texto da LDB/96, encontramos aqui mais

uma. Observemos que o Art. 36º da LDB/96 não faz referência a competências necessárias ao

exercício da cidania, mas sim a conhecimentos de Filosofia necessários ao exercício da

cidadania; ou seja, quais conceitos, idéias, sistemas da filosofia podem contribuir para o

exercício da cidadania.

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Nesse ponto a LDB é extremamente diretiva naquilo que propõe como finalidade da

Filosofia. O Art. 36 demanda uma resposta à pergunta “quais conhecimentos/conteúdos

podem ser ministrados visando colaborar com os jovens para o exercício da cidadania. Essa

era, de fato, a demanda feita pela LDB à Filosofia.

De acordo com Falleiros (2005), o enfoque em competências e habilidades é proposto

objetivando a adaptação dos alunos(as) – novos adultos – às instáveis condições sociais e

profissionais. Apesar da importância dada ao conhecimento, à tecnologia e à ciência, não são

estes que ganham prioridade nas propostas.

Ainda segundo Falleiros (2005), um risoc que se corre ao adotar a pedagogia das

competências é que o conhecimento sistematizado para atingir as competências e habilidades

desejadas seja desvinculado da história, seja “desideoligizado”, desxontextualizado e acrítico.

Os PCNEM/Filosofia e as OCNEM/Filosofia apresentam uma proposta de

especificidade das Filosofia. Ambos os documentos remetem aos mesmos argumentos na

demarcação da especificidade da Filosofia. O específico da Filosofia é a reflexão.

No PCNEM/Filosofia lemos

À multiplicidade real de linhas e orientações filosóficas e ao grande número de

problemas herdados da grande tradição cultural filosófica somam-se temas e

problemas novos e cada vez mais complexos em seus programas de pesquisa,

produzindo em resposta a isso um universo sempre crescente de novas teorias e

posições filosóficas. No entanto, é também verdade que essa dispersão discreta de

um filosofar que se move, por certo, no ritmo longo da academia, mas que

certamente não se esgota nela e que, num outro ritmo, chega mesmo a ensaiar um

retorno à praça públicas, não pode nos impedir de reconhecer o que há de comum

em nosso trabalho: a especificidade da atividade filosófica consiste, em primeiro

lugar, em sua natureza reflexiva. (p.47)

Ou seja, é específico da Filosofia a reflexão como atividade, sem ela não há Filosofia.

A reflexão, segundo o PCNEM/Filosofia abrange duas dimensões distintas, mas que se

confundem: a reconstrução e a crítica.

[...] a reconstrução (racional), quando o exame analítico se volta para as condições

de

possibilidade de competências cognitivas, lingüísticas e de ação. É nesse sentido que

pode(m) ser entendida(s) a(s) lógica(s), a(s) teoria(s) do conhecimento, a(s)

epistemologia(s) e todas as elaborações filosóficas que se esforçam para explicitar

teoreticamente um saber pré-teórico que adquirimos à medida que nos exercitamos

num dado sistema de regras; a crítica, quando a reflexão se volta para os modelos de

percepção e ação compulsivamente restritos, pelos quais, em nossos processos de

formação individual ou coletiva, nos iludimos a nós mesmos e, por um esforço de

análise, consegue flagrá-los em sua parcialidade, vale dizer, seu caráter

propriamente ilusório.(PCNEM/Filosofia, p.47).

Nas OCNEM/Filosofia o argumento também versa sobre a reflexão

Ademais, se descrevemos alguns procedimentos característicos do filosofar, não

importando o tema a que se volta nem a matriz teórica em que se realiza, podemos

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localizar o que caracteriza o filosofar. Afinal, é sempre distintivo do trabalho dos fi

lósofos sopesar os conceitos, solicitar considerandos, mesmo diante de lugares-

comuns que aceitaríamos sem reflexão (por exemplo, o mundo existe?) ou de

questões bem mais intrincadas, como a que opõe o determinismo de nossas ações ao

livre arbítrio. Com isso, a Filosofia costuma quebrar a naturalidade com que usamos

as palavras, tornando-se reflexão (OCNEM/Filosofia, p.22).

Mais adiante o documento afirma:

.Cabe, então, especificamente à Filosofia a capacidade de análise, de reconstrução

racional e de crítica, a partir da compreensão de que tomar posições diante de textos

propostos de qualquer tipo (tanto textos filosóficos quanto textos não filosóficos e

formações discursivas não explicitadas em textos) e emitir opiniões acerca deles é

um pressuposto indispensável para o exercício da cidadania (OCNEM/Filosofia,

p.26).

Nos PCN+/Filosofia a reflexão também é tida como eixo orientador da Filosofia:

[...] optamos por assumir determinada orientação – uma entre muitas possíveis,

voltamos a frisar –, pela qual a Filosofia é compreendida em linhas gerais como uma

reflexão crítica a respeito do conhecimento e da ação, a partir da análise dos

pressupostos do pensar e do agir e, portanto, como fundamentação teórica e crítica

dos conhecimentos e das práticas.

(PCN+/Filosofia, p. 44).

No entanto, segundo Gallo (2002), a Filosofia é a criação de conceitos, essa é a sua

ferramenta básica de trabalho. A Filosofia é, então, necessariamente, ação; é produção, é um

ato essencialmente criativo. Assim, sendo, enquanto atividade, a Filosofia não é contemplação

nem diálogo nem reflexão, muito menos discussão.

Além de não garantir a singularidade da Filosofia, a sua limitação ao ato de refletir a

despontencializa como empreendimento criativo: se o filósofo limita-se a refletir, ele

nada cria (Gallo, 2002, p.280).

Além disso, a reflexão é, de fato, uma atividade específica do ser-humano, que é capaz

de refletir sobre si mesmo, sobre os outros e sobre o mundo.

Isto posto, a definição da especificade da Filosofia nos permite remeter a outras

interrogações, a saber, qual é a natureza da reflexão filosófica que a diferencia de

outras formas de reflexão? Seria a capacidade argumentativa? A rigorosidade na

elaboração das definições e dos conceitos? O enfrentamento na natureza da reflexão

filosófica que poderia demarcar a diferença da reflexão do filósofo e do sociólogo ou

do psicólogo, por exemplo, não encontra moradia nesses documentos oficiais, de

forma que fica estabelecido um hiato conceitual acerca do que é, especificamente, a

reflexão filosófica (Danelon, 2010, p.116).

A definição da atividade reflexiva como especificidade da Filosofia demarca um

campo conceitual. Os três documentos introduzem o tema da cidadania no campo conceitual

da especificidade da Filosofia. No entanto, não argumentam o porquê da cidadania pertencer à

especificidade da Filosofia.

Os documentos trazem à tona o tema da cidadania para responder aos dois documentos

normativos da Educação Brasileira: a LDB/96 e as Diretrizes Curriculares Nacionais para o

Ensino Médio (Resolução CNE/CEB nº3/98, fundamentada no Parecer CNE/CEB n.º 15/98).

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Ambos apresentam a cidadania como finalidade da educação básica e, conseqüentemente,

como guia para a organização curricular do Ensino Médio.

Nessas questões ((a) que conhecimentos são necessários? (b) que Filosofia? e (c) de

que aspectos deve-se recobrir a concepção de cidadania assumida como norte

educativo?) vislumbra-se de forma clara a intenção pedagógica da utilização da

Filosofia no Ensino Médio, o que supõe a aceitação de posicionamentos diferentes

entre os professores de Filosofia na escolha dos conteúdos programáticos, mas não

quanto ao “norte educativo”, centrado na formação da cidadania. (PCN+/Filosofia,

p. 43).

Os 3 documentos trabalhados aqui foram escritos quando ainda rezava na LDB/96 a

antiga redação do Art.36, no entanto, a revogação desse artigo não interfere no fato de que a

Filosofia, agora com configuração de conteúdo obrigatório, responde à LDB/96 e às DCNEM

que, conforme vimos, determinam o exercício da cidadania como finalidade do Ensino Médio.

Fica evidente que a Filosofia não está livre e/ou imune às perspectivas que acabam por

direcioná-la.

Conforme vimos anteriormente, segundo Goodson (2001) o currículo não existe à

margem do sistema socioeconômico, da cultura etc. Por isso a seleção dos conteúdos depende

necessariamente de finalidades específicas previstas para a educação. “Tomar o currículo

como um dado significa renunciar a um vasto conjunto de entendimentos sobre aspectos do

controlo e do funcionamento da escola e da sala de aula” (Goodson, 2001, p.57/58).

A presença de uma disciplina no currículo se articula ao papel político que esta

desempenha ou tende a desempenhar.

É importante ressaltar que a escola não é um espaço neutro. Ela é

antes de tudo, uma instituição de controle social e de formação de subjetividades,

um dispositivo que normaliza e simultaneamente totaliza enquanto engloba, ou

procura englobar, os que assistem a ela, naquilo que uma instância exterior

determina como normal e sanciona como correto. Como tal, a escola produz e

reproduz saberes e valores afirmados socialmente (Kohan; Waksman, 1998, p. 85).

Os autores Pedro Gontijo e Erasmo B. Valadão, no texto “Ensino de Filosofia no

Ensino Médio nas escolas públicas do Distrito Federal” (2004) a partir de entrevistas com

professores (as) de Filosofia do Distrito Federal, estabeleceram 3 sentidos que eles(as)

atribuem ao ensino de Filosofia no Ensino Médio:

1 – O ensino de filosofia como um espaço onde se fornecem aos alunos instrumentos

e/ou métodos do aprender a “pensar”, estudar e escrever. Como

uma ajuda aos alunos para terem um argumento logicamente organizado e

fundamentado que os auxilie em qualquer área do conhecimento, ou mesmo em

como organizarem um trabalho acadêmico [...]

2 – O ensino de filosofia como instrumento de doutrinação política e ideológica,

partindo-se do pressuposto de que os alunos são alienados politicamente e a filosofia

teria o papel de libertá-los dessa alienação [...]

3 – O ensino de filosofia como instrumento de doutrinamento moral. Parece que

seria papel da filosofia ajudar os alunos a “encontrarem o caminho”,

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levá-los a perceber como devem se portar moralmente. Parte-se de alguma

concepção, por exemplo de cidadania ou de civilidade, como modelo e justifica-se

sua primazia sobre outras concepções. [...] (p.297)

Particularmente o 3º sentido, que é o que mais nos interessa aqui, reflete, segundo os

autores, o entendimento dado à Filosofia pela Secretaria de Educação do Distrito Federal. De

acordo com os autores, ao estipular valores como “responsabilidade pelo bem comum” e

“reconhecer direitos humanos e lutar por eles”, a Secretaria da Educação manifesta o que

deseja com a Filosofia na escola.

A partir destes eixos fica uma impressão de que o que a Secretaria de Educação

deseja com a filosofia no ensino médio seja, de certo modo, pouco filosófico e mais

um processo de doutrinamento ético. Quando enfatiza tanto o reconhecer, o valorizar

e optar os aspectos acima citados, parece haver toda uma visão de mundo, de

sociedade e de ser humano que coloca o papel da filosofia como aquela que

possibilitará chegar ao que é o bem e o que é o certo. Expressados por certa visão de

bem comum, de direitos humanos, de indivíduo autônomo, de desenvolvimento e de

reflexão ética, pouco sobra espaço para uma crítica a estas concepções. Afirmamos

que muito mais interessante é se a filosofia possibilitar aos alunos um espaço para

refletirem e problematizarem sobre estes conceitos. (GONTIJO; VALADÃO, 2004,

p.297).

Os autores demonstram enorme preocupação com a vinculação da Filosofia ao aparato

político através de documentos normativos, pois estes apontam um real direcionamento

político e ideológico.

Para além do Distrito Federal, a LDB e as DCNEM também definem valores e

princípios que nortearão a educação nacional.

As DCNEM, inspiradas na LDB, definem os valores norteadores da educação

nacional:

Art. 2º. A organização curricular de cada escola será orientada pelos valores

apresentados na Lei 9.394, a saber:

I - os fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de

respeito ao bem comum e à ordem democrática;

II - os que fortaleçam os vínculos de família, os laços de solidariedade humana e de

tolerância recíproca.

Vale relembrar que a LDB/96 é o marco simbólico de uma “guinada” neoconservadora

na educação brasileira, na década de 1990, nos moldes do ideário neoliberal, que, segundo

Alves (2002, p.63) “se caracteriza pelo combate intransigente aos direitos sociais e aos ganhos

de produtividade da classe trabalhadora, enfim, contra a intervenção do Estado em assuntos

econômicos, defendendo o postulado de que o mercado é a lei social soberana [...]”.

A discussão, votação e promulgação da atual LDB se deu num momento específico

da história político-econômica do Brasil, marcado por uma tendência apresentada

como inovadora e capaz de trazer a modernidade ao país. Assim, no contexto da

globalização de todos os setores da vida social, as elites responsáveis pela gestão

político-administrativa do país rearticulam suas alianças com parceiros estrangeiros,

investindo na inserção do Brasil na ordem mundial desenhada pelo modelo

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neoliberal. De acordo com esse modelo, o processo fundamental da história humana

deve ser conduzido pelas forças da própria sociedade civil e não mais pela

administração via aparelho do Estado. Entende-se que o motor da vida social é o

mercado e não a administração política. As leis gerais são aquelas da economia do

mercado e não as da economia política. E o mercado se regula por forças

concorrenciais, nascidas dos interesses dos indivíduos e grupos, que se vetorizam no

interior da própria sociedade civil; de onde a proposta do Estado mínimo e os

elogios à fecundidade da livre iniciativa, à privatização generalizada etc.

(SEVERINO, 2002, p.61)

Ainda segundo Alves (2002), a LDB/96 é o cumprimeto de um programa que começou

a ser implementado no Brasil no governo de Fernando Collor, e que foi sustentado mais

sistematicamente no governo de Fernando Henrique Cardoso. A LDB/96 foi aprovada e

promulgada nesse período por estar de acordo com interesses privatistas e com a ideologia

neoliberal. Segundo Marrach (1996), a modernização em curso pretende transformar o Estado

em Estado-mínimo, desenvolver a economia, fazer a reforma educacional e aumentar o poder

da iniciativa privada, por meio do consenso ideológico. Existe, então, uma real possibilidade

de direcionamento político e ideológico da Filosofia.

Além dos valores explicitados que devem ser trabalhados para uma formação cidadã,

apresentados tanto no Art.2º da LDB/96 como no Art.2º das DCNEM (Resolução CNE/CEB

nº3/98), outras normas e valores podem permear as disposições legais, implicitamente. É

aquilo que Apple definiu como currículo oculto. Segundo Apple (1999), o currículo oculto é

constituído por normas e valores que não são mencionados nos objetivos formalizados.

Segundo o autor, a hegemonia de um conjunto ideológico não é produzida e reproduzida

somente pelo corpus formal do currículo. Por detrás dos ideais explicitados na lei, existe uma

certa concepção de ser-humano, de homem, de mulher, de trabalho, de ética etc. O ensino

escolar não se reduz ao que os programa oficiais dizem que querem transmitir.

[...] a Filosofia institucionalizada torna-se uma disciplina da grade curricular,

inserida, portanto, nesta tessitura ideológica e nos discursos hegemônicos que se

ramificam na vida social; está sujeita a toda interferência dos discursos oficiais que

refletem uma visão de mundo, um conjunto de valores, uma concepção de indivíduo

e de sociedade, bem como um ideal de ser humano a ser formado (Danelon, 2010,

p121).

A lei pressupões valores que definem um modelo de ser-humano, de cidadão a ser

formado pela educação. Fazemos referência, aqui, ao Art.27 da LDB, que define as diretrizes

da educação básica.

Art. 27. Os conteúdos curriculares da educação básica observarão, ainda, as

seguintes diretrizes:

I - a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos

cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática[...]

III - orientação para o trabalho [...]

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Há aqui, explicitamente, um modelo de ética, de cidadão, de moral. Já está definido

nesses documentos o cenário em que a Filosofia se inclui, bem como sua finalidade.

Vale lembrar que a legislação estadual não pode sobrepor-se à federal. O que ocorre,

portanto, é a organização da educação, seja em nível federal ou municipal, a partir de valores

e princípios apresentados na LDB/96 e nas DCNEM. Como a Filosofia agora faz parte do

aparato escolar, ela não está descolada desses documentos normativos. Os documentos

oficiais postulam um direcionamento à Filosofia. Isso porque os documentos não são neutros

e/ou desiteressados, mas sim carregados com os interesses dos diversos sujeitos envolvidos na

sua formulação.

Não estamos aqui negando a autonomia e a liberdade que o(a) professor(a) tem em sua

sala de aula a partir do momento em que a porta da sala de aula se fechada. Mas não podemos

esquecer que os alunos serão avaliados (SARESP, ENEM, vestibulares etc). Tais avaliações

serão organizadas de acordo com os objetivos determinados na lei para o Ensino Médio, serão

organizadas para verficiar se os egressos atingiram aquilo que era esperado deles.

Os PCNEM/Filosofia e as OCNEM/Filosofia são inspiradores dos projetos

pedagógicos e, conseqüentemente, da avaliação destes.

Acreditar que a Filosofia, uma vez, institucionalizada no aparato legal/burocrático

do sistema de ensino, conserva, mesmo assim, total independência e autonomia é

uma olhar demasiado superficial que toma a Filosofia como o mais importante dos

saberes e que se justifica por si mesma, além de denotar um romantismo roussiniano

(sic) que toma a tarefa de preceptor em Filosofia independente e desligada do meio

social, muito mais próxima, à luz de Rousseau, da natureza (Danelon, 2010, p.121).

A Filosofia institucionalizada, então, torna-se uma disciplina inserida em um

determinado contexto ideológico e está sujeita a toda interferência dos discursos oficiais que

refletem uma visão de mundo, um conjunto de valores, uma concepção de indivíduo e de

sociedade.

Não queremos afirmar que a Filosofia deva ser neutra, mesmo porque a neutralidade

é impossível dado que todo discurso vincula valores, idéias e ideologias. Porém,

demandar para a Filosofia a tarefa de propagar discursos hegemônicos é abstrair dela

a diversidade de idéias e conceitos, bem como de interpretações e visões de mundo

que encontramos na história da Filosofia (Danelon, 2010, p.121).

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A volta da Filosofia ao currículo do Ensino Médio: da promulgação da nova LDB/1996

até a promulgação da Lei nº 11.684/2008

O desenrolar histórico da presença/ausência da Filosofia como disciplina obrigatória

no currículo do Ensino Médio, nunca foi linear ou harmônico. Por se tratar de um nível de

ensino que passou por muitas reformas (ou crises de identidade), ora voltando-se para a

formação profissional, ora para a formação geral do indivíduo, a história da presença/ausência

da Filosofia no Ensino Médio foi marcada por muitos conflitos, lutas, resistências.

A Filosofia esteve ausente do currículo do Ensino Médio desde a promulgação da Lei

n. º 5692, de agosto de 1971 (que fixa diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º graus), que

definiu a completa ausência da Filosofia dos currículos escolares do nível secundário, até o

fim do regime militar.

A Lei de Diretrizes e Bases, de agosto de 1971, reorganizou o ensino de 1º e 2º graus

(antigos primário, ginásio e colégio) em todo o território nacional, dando-lhes uma

nova estrutura fundada em objetivos universais e criando a profissionalização

compulsória no 2 º grau, que visou, fundamentalmente, o aperfeiçoamento das

funções de discriminação social, via escolaridade (CARTOLANO, 1985, p.75).

Apesar das condições adversas, do ponto de vista legal, a Filosofia poderia ser

integrada no currículo do secundário, como disciplina da parte diversificada; porém, na

prática isso se tornava quase impossível, devido aos muitos dispositivos criados pelo governo

federal que inviabilizavam a inclusão da Filosofia nesse nível de ensino.

Mesmo não sendo possível, neste momento, garantir sua presença no currículo do

ensino médio das escolas públicas nacionais, sempre existiu alguma forma de pressão para a

inclusão da Filosofia no currículo.

[...] a questão do ensino da Filosofia não ficou esquecida nem sem defensores. Em

função do retorno do seu ensino em caráter obrigatório, ao 2º Grau, empenharam-se

filósofos, educadores, estudantes e entidades (GASPARELLO, 1986, p. 3,4).

Até 1971, o Ensino Médio estava basicamente centrado na formação humanística,

voltada para a preparação da elite brasileira para ocupar as profissões consideradas

dignas/nobres: medicina, direito e engenharia; para as atividades intelectuais e artísticas. A

preparação para o trabalho, ou ensino profissionalizante, era somente oferecido aos jovens

das classes mais baixas. Essa “modalidade” de ensino, até então, era uma forma de controle

da pobreza.

O Ensino Médio (aquele voltado para as elites) tinha uma caráter clássico e científico,

isso porque havia uma grande valorização do passado (dos clássicos) andando de mãos dadas

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com as ciências, que eram necessárias para o estudo da sociedade moderna. Visava-se, então,

formar o ser-humano integral (idéia de cultura geral).

Mas em 1971, com a lei nº5692, rompeu-se com esse eixo de ensino, baseado na idéia

de cultura geral. O Ensino Médio passou a se caracterizar pela formação profissional, pelo

ensino tecnicista e profissionalizante, demonstrando a ênfase à educação como investimento

para o desenvolvimento e como habilitação para o trabalho. O ensino profissionalizante já não

era “exclusividade” das classes menos abastadas.

Nos governos militares, rompe-se com o eixo do ensino baseado nas disciplinas

tradicionais das ciências humanas e ciências naturais. O currículo do 1º e do 2º grau

regionaliza10

os conhecimentos agrupando-os em áreas de aplicabilidade tecnológica

imediata. Assim, disciplinas como a Filosofia e a Sociologia foram deixadas de lado. Segundo

Callegari (2008, p.23) “o cerco foi tal, que essas matérias foram desaparecendo, tanto das

escolas públicas quanto das particulares”.

Já nos anos 90, auge do neoliberalismo, a Filosofia voltou a ficar na mira de medidas

restritivas. Afetados pela idéia de uma educação meramente utilitária e tecnicista, os

currículos foram adaptados para assegurar apenas o que era considerado como mais

necessário. A educação assume contornos ideológicos a serviço da legitimação da situação

atual, a qual passa a ser vista como inevitável. A qualificação profissional passa a apresentada

como grande fórmula para se ingressar no mercado de trabalho e, assim, a pobreza e a riqueza

deixam de ser uma questão de ordem econômica-política e passam a ser uma questão de

capacitação profissional e intelectual do indivíduo.

Mesmo em São Paulo, o maior estado brasileiro em termos econômicos, houve uma

brutal reorganização curricular do ensino médio que acarretou a supressão de

milhões de aulas de história, geografia, artes e, como não poderia deixar de ser, o

desaparecimento de milhares de aulas remanescentes de sociologia e filosofia [...]

Porém, para lástima daqueles burocratas da educação, nem bem dez anos foram

necessários para que se constatasse que

algo não deu certo. Dados e análises do Sistema de Avaliação da Educação Básica

produzido pelo MEC/INEP, passaram revelar uma realidade implacável: de 1995

para cá, a qualidade da educação dos jovens brasileiros (e dos paulistas também) não

parou de cair [...] Evidentemente, esse quadro não se deve só à falta que faz os

conhecimentos de filosofia e de sociologia na formação dos jovens. Mas a ausência

dessas matérias é explicada pelo empobrecimento deliberado das condições de

ensino e aprendizagem vigentes no contexto da educação básica brasileira. O

descompromisso das elites dominantes que ao longo da nossa história tomaram

decisões sobre a prioridade a ser dada à educação chega às raias da

irresponsabilidade para com o futuro da nação (CALLEGARI, 2008, p.24).

Mas, no dia 9 de junho de 2008, o então presidente da República em exercício, José

Alencar, sancionou o projeto de lei que tornou obrigatórias as disciplinas de sociologia e

10

Regionalizar os conhecimentos significa agrupá-los em função de sua aplicabilidade

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filosofia nas três séries do ensino médio em todas as escolas do país. O ato presidencial não

apenas coroou mais de trinta anos de lutas de várias entidades, como também colocou um

ponto final nas disputas legislativas que vinham desde o veto de Fernando Henrique Cardoso

ao projeto de lei nº 3.178/1997.11

Passemos agora à análise de alguns instrumentos legais que refletem as vicissitudes da

presença/ausência do ensino da Filosofia nos currículos oficiais pelo Brasil.

Em 20 dezembro de 1996 foi promulgada a nova Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional (Lei n. º 9.394). Desse ponto em diante, a Filosofia passa a ter uma

“presença inócua” no currículo da educação secundária, pois a lei, apesar de afirmar que os

educandos devem apresentar, ao final do Ensino Médio, conhecimento de Filosofia e

Sociologia, ela não define a obrigatoriedade dessas duas disciplinas.

Art. 36

§ 1º. Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizados de

tal forma que ao final do ensino médio o educando demonstre: [...]

III - domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao

exercício da cidadania..

Presença inócua porque o discurso da importância da Filosofia não se traduz em uma

presença efetiva dessa disciplina nos currículos do Ensino Médio. Por um lado, a necessidade

da Filosofia está presente na lei, mas ao analisarmos mais atentamente percebemos que não

nos é possível afirmar com precisão como se dá a inclusão da Filosofia no currículo do Ensino

Médio, se como uma disciplina específica, obrigatória, ou se a Filosofia deve ser trabalhada

de forma transversal em outras disciplinas. Pelas determinações da nova LDB, o ensino de

Filosofia em nenhum aspecto é proíbido, mas apesar da indicação de sua possibilidade,

também não é obrigatório.

Desse modo, a lei conceitua mas não obriga, não assegura seu próprio cumprimento.

Assim, tudo passa a depender das medidas que os gestores do sistema venham a

tomar (SEVERINO, 2002, p. 65).

Percebe-se que a Filosofia é contemplada referencialmente apenas como conhecimento

a ser dominado e demonstrado ao final do curso do ensino médio. De algum modo indica-se a

necessidade de que a Filosofia faça parte do currículo; ao contrário do modo como, nos cinco

parágrafos do Artigo 26 da LDB de 1996, se expõe a obrigatoriedade do estudo da língua

portuguesa e da matemática; do mundo físico e natural e da realidade social e política,

especialmente do Brasil; da arte; da educação física; da história; e de uma língua extrangeira.

11

No dia 8 de outubro de 2001, Fernando Henrique Cardoso, então presidente da República, vetou o projeto de

lei do deputado padre Roque Zimmerman, que propunha a obrigatoriedade do ensino da sociologia e filosofia no

ensino médio

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No entanto, poucos meses depois da nova LDB, o então deputado federal Padre Roque

Zimmermann12

(PT-PR), apresentou o Projeto de Lei n.º 3.178, de 28/05/1997 (que no Senado

ganhou o número de PLC 9/00). O referido projeto propunha a alteração do Artigo 36 da Lei

n.º 9394/96, para que a Filosofia e a Sociologia se tornassem disciplinas obrigatórias no

Ensino Médio.

Num primeiro momento de apreciação nas Comissões Temáticas, o PL13

obteve

parecer favorável na Comissão de Educação, Cultura e Desporto (CECD), encarregada da

análise do mérito e da avaliação e apreciação inicial do projeto. A Comissão de Constituição e

Justiça (CCJ), encarregada da apreciação da juridicidade, constitucionalidade e técnica

legislativa, também aprova o Projeto de Lei de Zimmermann. O poder terminativo das

referidas Comissões dispensou seu trâmite pelo Plenário da Câmara dos Deputados, sendo

que, imediatamente após as apreciações das duas Comissões, o PL foi encaminhando ao

Senado Federal, em 13 de abril de 2000.

Os trâmites pelo Senado Federal seguiram as ritualísticas legislativas de praxe, com

ambas as comissões, de Educação e de Justiça, através dos Senadores José Fogaça (Justiça) e

Álvaro Dias (Educação) apresentando pareceres favoráveis à aprovação da obrigatoriedade da

inclusão das disciplinas de Filosofia e Sociologia nos currículos do ensino médio.

O governo de Fernando Henrique Cardoso reage à proposta legislativa com um

Parecer elaborado pela Conselheira Guiomar Namo de Mello (PSDB), do CNE. No dia 1º de

junho é aprovado no CNE o Parecer CNE/CEB nº 15/9814

(da referida conselheira), que trata

minuciosamente das Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio, as quais foram instituídas

pela Resolução CNE/CEB nº 03/98, aprovada no dia 26 de junho

De acordo com o Artigo 1 da Resolução CNE/CEB nº 03/98, as diretrizes

[...] estabelecidas nesta Resolução, se constituem num conjunto de definições

doutrinárias sobre princípios, fundamentos e procedimentos a serem observados na

organização pedagógica e curricular de cada unidade escolar integrante de diversos

sistemas de ensino, em atendimento ao que manda a lei, tendo em vista vincular a

educação com o mundo do trabalho e a prática social, consolidando a preparação

para o exercício da cidadania e propiciando preparação básica para o trabalho.

No Artigo 10, incisos I, II e III, se explicita a organização e estruturação do currículo

não mais em disciplinas, mas sim em àreas do conhecimento. São definidas três grandes áreas

de conhecimento para esse nível de ensino: Linguagens, códigos e suas Tecnologias; Ciências

12

Depois de passar por dois mandatos de deputado federal (1995-2002) pelo PT e de ser candidato ao governo

do estado pelo mesmo partido, em 2002, Padre Roque foi secretário do Trabalho e Ação Social no segundo

governo de Roberto Requião. Pertence à setores da esquerda da Igreja Católica, ligado à movimentos sociais. 13

Projeto de Lei 14

CNE: Conselho Nacional de Educação / CEB: Câmara da Educação Básica

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da Natureza, Matemática e suas Tecnologias; Ciências Humanas e suas Tecnologias.

No parágrafo 1o do Artigo 10, diz-se que: “A base nacional comum dos currículos do

Ensino Médio deverá contemplar as três áreas do conhecimento, com tratamento

metodológico que evidencie a interdisciplinariedade e a contextualização”.

No parágrafo 2o do mesmo Artigo, afirma-se que:

As novas propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento

interdisciplinar e contextualizado para:

a)Educação Física e Arte, como componentes curriculares obrigatórios;

b)Conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania.

Embora os documentos não excluam explícitamente o ensino disciplinar, vê-se uma

preferência pela presença transversal no currículo, a qual garantiria, em tese, o cumprimento

do previsto na LDB/96 quanto à necessidade de domínio de conhecimentos de Filosofia e

Sociologia.

De acordo com Fávero; Ceppas; Gontigo, Gallo; Kohan (2003), são três os principais

argumentos usados para defender o ensino transversal da Filosofia:

O primeiro diz respeito à precariedade da formação de professores de Filosofia para

o Ensino Médio em âmbito nacional. Embora existam cursos de licenciatura em

Filosofia na grande maioria dos estados, ainda há, de fato, muito o que aprimorar na

busca de uma formação qualificada dos professores, mesmo nos estados com

melhores índices ecnômicos e educacionais. Permanece, entretanto, a controvérsia

em torno da pertinência da adoção do ensino disciplinar. Quem a defende considera

que a medida pode ser indutora de processos de melhoria da formação docente;

quem a critica, enfatiza a suposta irresponsabilidade que significaria, de imediato,

colocar em sala de aula um grande número de professores aparentemente

despreparados para a função. Outro argumento, fortemente vinculado ao primeiro,

diz respeito aos problemas que a obrigatoriedade da disciplina em nível nacional

poderia trazer aos estados e seus sistemas de ensino, em especial em termos de

investimentos. Por fim, há os que se posicionam contrariamente à inserção da

disciplina por criticarem o modelo disciplinar de escola. Estes defendem que a

inserção de mais uma disciplina escolar é uma medida infeliz, particularmente no

caso da Filosofia. A partir desse ponto de vista, se a Filosofia deve ser um exercício

de pensamento crítico, ou lúdico, ou que vise à autonomia etc., transformá-la em

“matéria escolar” seria sujeitá-la aos rituais e tratamentos pedagógicos que os

estudantes costumam identificar, precisamente, com o oposto da crítica, do prazer,

da autonomia etc. (p.259/260).

Podemos perceber, então, uma clara dubiedade entre as afirmações da LDB e as das

referidas Diretrizes, pois ao mesmo tempo em que a primeira afirma que existem

conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania, as Diretrizes

atribuem às duas disciplinas um caráter de transversalidade e de interdisciplinaridade.

Vale lembrar que o artigo 36, § 1º, inciso III, da Lei 9394/96 – LDB afirma:

§ 1º. Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizadas de

tal forma que ao final do Ensino Médio o educando demonstre:

III – domínio dos conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao

exercício da cidadania.

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Em contraposição, o artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº3/98, fundamentada no

Parecer CNE/CEB n.º 15/98, afirma:

§ 2º. As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento

interdisciplinar e contextualizado para:

b) Conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da

cidadania.

Fica claro que os conteúdos da Resolução CNE/CEB nº 03/98, de forma praticamente

explícita, negam a obrigatoriedade do ensino de Sociologia e Filosofia no Ensino Médio, com

base em uma interpretação ainda mais neoliberal da própria LDB.

A ideologia neoliberal que, segundo Marrach (1996), atrela a educação escolar à

preparação para o trabalho, pois assegura que o mundo empresarial deseja uma força de

trabalho qualificada, e fala numa profissionalização situada no interior de uma formação

geral, permeia intensamente esses documentos, na medida em que estes abordam a escola no

âmbito do mercado e das técnicas de gerenciamento. O Parecer CNE/CEB nº 15/98 afirma,

diversas vezes, que a principal função do Ensino Médio é a preparação para o trabalho, e que

é este que dá significado às aprendizagens da escola média. É interessante ressaltar aqui que

um dos papéis atribuídos pela retórica neoliberal à educação é a de atrelar a educação à

preparação para o trabalho e a pesquisa acadêmica ao imperativo do mercado ou às

necessidades da livre iniciativa

O trabalho é o contexto mais importante da experiência curricular no ensino médio

[...] na medida em que o ensino médio é parte integrante da educação básica e que o

trabalho é o princípio organizador do currículo, muda inteiramente a noção

tradiconal de educação geral acadêmica ou, melhor dito, academicista. O trabalho já

não é mais limitado ao ensino profissionalizante. Muito ao contrário, a lei reconhece

que, nas sociedades contemporâneas, todos, independentemente de sua origem ou

destino socioprofissional, devem ser educados na perpectiva do trabalho enquanto

uma das principais atividades humanas [...] (Parecer CNE/CEB nº 15/98, p. 43)

Como vimos anteriormente, Gimeno Sacristán (1998) afirma que é a partir da análise

do currículo oficial que podemos perceber as intenções do processo educativo escolar. É

justamente isso que percebemos aqui: de acordo com os documentos citados acima, o grande

objetivo da educação básica é a qualificação profissional, apresentada como grande fórmula

para se ingressar no mercado de trabalho, ou retornar a ele. No entanto, essa fórmula não

passa de um mito. Primeiro, porque não existem vagas suficientes para empregar todos

aqueles que se formam no Ensino Médio; o que se acaba produzindo, então, é um “exército”

de possíveis empregados. Segundo, porque enquanto os trabalhadores acreditarem que podem

solucionar seus problemas socio-econômicos apenas mediante uma melhor qualificação

profissional, não se tentará romper com a hegemonia neoliberal/capitalista. A probreza e a

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riqueza deixam de ser uma questão de ordem econômica-política e passam a ser uma questão

de capacitação profissional e intelectual do indivíduo.

Todo aquele que está pobre ou desempregado está nessa situação devido à sua

incapacidade (incompetência) para disputar uma “vaga” no mercado de trabalho, que

em tese é acessível a todos os indivíduos capacitados e competentes. Não há lugar na

atual sociedade para os despreparados (a maioria do povo, diga-se de passagem) ou

para os preguiçosos (ALVES, 2002, p.65).

Dessa forma, tem-se de maneira extremamente eficiente a perpetuação do aparelho

ideológico neoliberal. A educação assume contornos ideológicos a serviço da legitimação da

situação atual, a qual passa a ser vista como inevitável. Segundo Gramsci, o poder das classes

dominantes é garantido fundamentalmente pela "hegemonia" cultural que estas logram

exercer, através do controle sobre a escola, e sobre outras instituições também. As classes

dominantes "educam" os dominados para que estes vivam em submissão como algo natural e

conveniente.

Os intelectuais são os “comissários” do grupo dominante para o exercício das

funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do

consenso “espontâneo” das grandes massas da população quanto à orientação

impressa pelo grupo fundamental dominante, à vida social, consenso que nasce

“historicamente” do prestígio (e, portanto, da confiança) que o grupo dominante

obtém, por causa de sua posição e de sua função no mundo da produção; 2) do

aparato de coerção estatal, que assegura “legalmente” a disciplina dos grupos que

não “consentem”, nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a

sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais

fracassa o consenso espontâneo (GRAMSCI, s.d., p.14).

Para Gramsci não existe separação entre cultura e política, assim como não existe

separação entre economia e política. Cultura é, para Gramsci, um dos instrumentos da práxis

sócio-política. Isto nos remete a pensar que a hegemonia, enquanto uma direção moral e

intelectual, não é construída somente na estrutura econômico-política da sociedade, mas

também no campo das idéias e da cultura, na capacidade de uma determinada classe conseguir

criar um consenso nas formas de pensar.

Várias mobilizações da comunidade acadêmica e educacional fizeram com que o

projeto de reintrodução das disciplinas de Filosofia e de Sociologia fosse aprovado tanto na

Câmara dos Deputados como no Senado Federal. E em setembro de 2001, após ser aprovado

na Câmara por unanimidade, o Projeto de Lei do Padre Roque é aprovado no plenário por 40

votos a favor e 20 contra e vai à sanção presidencial.

O coroamento dessa luta nacional foi encabeçado pela Federação Nacional dos

Sociólogos, que articulou com os cursos de ciências sociais, com as entidades estaduais e com

os profissionais e professores pela aprovação desse projeto.

No dia 08/10/2001, o sociólogo e então Presidente da República, Fernando Henrique

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Cardoso, veta na íntegra o Projeto.

A partir da leitura da Mensagem nº 1.073, de 8 de outubro de 2001, de Fernando

Henrique Cardoso, enviada ao Presidente do Senado Federal, é possível perceber que

praticamente todos os argumentos que se opõem à criação de um espaço disciplinar

obrigatório para a Filosofia não são de ordem pedagógica, epistemológica ou de políticas

educacionais. Tais argumentos são basicamente de natureza estritamente burocrática e giram

em torno do fato de que o resultado imediato será a necessidade de abrir concurso, contratar

professores para a escola pública, o que irá gerar despesas, caracterizando-se assim como

uma questão econômica.

As razões do veto foram procedimentais e centradas na idéia de que não haveria

professores para assumir estas aulas e de que isso significaria uma despesa vultosa. O mérito

pedagógico e político sequer foi tomado em conta pela burocracia governamental daquele

momento.

Assim, o projeto de inclusão da Filosofia e da Sociologia como disciplinas

obrigatórias no currículo do ensino médio implicará na constituição de ônus para os

Estados e o Distrito Federal, pressupondo a necessidade da criação de cargos para a

contratação de professores de tais disciplinas, com o agravante de que, segundo

informações da Secretaria de Educação Média e Tecnológica, não há no País

formação suficiente de tais profissionais para atender a demanda que advirá caso

fosse sancionado o projeto, situações que por si só recomendam que seja vetado na

sua totalidade por ser contrário ao interesse público (Mensagem nº 1.073, de 8 de

outubro de 2001).

O que percebemos no argumento de Fernando Henrique é, mais uma vez, a

manifestação de uma grande presença da ideologia neoliberal, que converte os problemas

sociais, econômicos, políticos e culturais da educação em problemas administrativos, técnicos

e de reengenharia.

O único argumento de ordem pedagógica usado para justificar o veto foi dado pelo

então Ministro da Educação, Paulo Renato Souza, que defendia que a volta das duas

disciplinas seria uma volta ao passado, pois a proposta representava um retrocesso no perfil

curricular do Ensino Médio, que a partir da LDB/96 (que apresenta uma flexibilidade quanto

ao formato disciplinar de currículo) passou a valorizar a interdisciplinaridade no lugar do

ensino de disciplinas estanques. Aprovar mais duas disciplinas seria ir na contramão da LDB.

No entanto, tal argumento é completamente falho, uma vez que o PL não afirma a

obrigatoriedade da organização curricular por disciplinas; as escolas que estruturassem seus

currículos por áreas de conhecimento, por exemplo, não seriam obrigadas a incluir disciplinas,

mas sim colocar a Filosofia e a Sociologia entre as áreas.

Podemos retomar aqui as observações de Tommasi (2007) apresentadas no início deste

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texto: no que diz respeito ao sistema educacional brasileiro, há a prevalência da lógica

financeira sobre a lógica social e educacional, e há a falácia de políticas que se declaram com

a finalidade de elevar a qualidade do ensino, quando na realidade o que fazem é implementar

a redução de gastos públicos para o setor educacional. É justamente o que vemos na

argumento de Fernando Henrique: uma visão apenas gerencial da educação, ou seja, para

reduzir os custos com educação, ao invés de se estabelecer disciplinas obrigatórias com

professores especializados, o preferível foi que os “conhecimentos de Filosofia e Sociologia

necessários ao exercício da cidadania” fossem ministrados através da transversalidade, por

professores de outras disciplinas

É preciso ter claro aqui que o posicionamento de Fernando Henrique Cardoso quanto à

importância das disciplinas nada tem a ver com a sua formação como sociólogo pois, apesar

de sua trajetória política ter sido “na oposição ao regime militar, em seu horizonte intelectual

e político não estava presente a ruptura efetiva com a ordem burguesa” (LIMA, 2007, p.93)

Segundo Carvalho (2001), quanto mais ignorante for a nossa juventude, melhor será

para as elites que dominam o país. Fazer com que a juventude reflita sobre temas como ética,

política, moral, costumes, o porquê de existirem pobres e ricos, modos de produção etc, é algo

que pode colocar em risco o status quo. Essas reflexões devem ficar restritas a uma minoria

de iluminados. E ainda: “Ao povo, como sempre, nega-se a possibilidade do acesso ao

conhecimento”.

A FNSB (Federação Nacional dos Sociólogos – Brasil) orienta, então, aos estados que

a luta deve se voltar para as assembléias legislativas estaduais com a aprovação de Projetos de

Leis que obriguem o ensino da Filosofia e Sociologia em cada estado, ampliando-se ainda a

luta com as comissões das grandes universidades, especialmente as públicas, para que adotem

ambas as disciplinas, bem como mantenham contatos com as secretarias estaduais de

educação, para introduzir as disciplinas pela via administrativa.

Desde a posse do Presidente Luis Inácio Lula da Silva, em 2003, a FNSB fez várias

gestões para ou derrubar o veto, ou implantar ambas as disciplinas por via administrativa, pelo

MEC ou mudando o parecer do CNE.

Mas percebendo que o processo administrativo não seria tão rápido, em agosto de

2003 o Deputado Federal Dr. Ribamar Alves, do PSB do Maranhão, reapresentou o Projeto de

Lei do Padre Roque, com algumas modificações – Projeto de Lei nº 1.641 – que passou a ter o

apoio do SINSESP (Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo) e da FNSB.

Na Justificação do PL, o Deputado atenta para o fato de que a Filosofia não deve ser

tratada com interdisciplinaridade, pois é uma área do conhecimento assim como o são as

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outras disciplinas, ou seja, possui um conteúdo próprio, possui técnicas a serem dominadas,

possui uma terminologia específica, etc.

Como saber, ou conhecimento altamente especializado, será impossível a devida

aplicação de temas ou conteúdos filosóficos em outras disciplinas, por docentes que

não sejam adequadamente habilitados para a realização dessa atividade. Isso faz o

texto da LDB insuficiente, já que não considera a especialidade da área em tela [...]

A Filosofia nos currículos do Ensino Médio não pode atuar num espaço restrito,

dissolvendo-a em modadilades temáticas de outras disciplinas. (PROJETO DE LEI

Nº 1.641, DE 2003, p.3, 4).

Além disso, de acordo com Fávero; Ceppas; Gontigo; Gallo; Kohan (2003), em uma

escola que ainda é fortemente baseada na organização por disciplinas, relegar a Filosofia à

tranversalidade acabaria não apenas diluindo sua especificidade em meio aos estudos que

realmente constam no currículo, como também aprofundaria a situação de precariedade que se

imputa aos professores de Filosofia no país, na medida em que poderia vir a reforçar a

dispensa de contratação de profissionais especializados.

Segundo Gallo (1997), aplicar a proposta da tranversalidade na educação implicaria o

“desaparecimento” da escola tal como a conhecemos hoje. Seria preciso o surgimento de um

novo paradigma que rompesse radicalmente com o sistema de disciplinas.

A transversalidade do conhecimento implica possibilidade de escolas e de currículos

em muito diferentes daquelas que hoje conhecemos novos espaços de construção e

circulação de saberes onde a hierarquização já não será a estrutura básica, e onde

situações até então insuspeitas poderão emergir (p.131)

Ainda de acordo com Gallo (2002), vivemos numa realidade em que o currículo

disciplinar apresenta cada vez mais provas de seu desgaste e da necessidade de sua

transformação/reforma.

Como nossos currículos seguem sendo absolutamente disciplinares e como,

infelizmente, ainda levaremos um bom tempo para lograr diminuir a influência

disciplinar e, quem sabe, “dês-disciplinar” os currículos, vejo como muito remota a

hipótese de uma escola, seja ela pública ou privada, contratar um professor de

Filosofia para “transversalisar” seu currículo, sem que haja uma disciplina de

Filosofia disciplinarmente alocada neste currículo, uma vez que nosso modelo de

contratação de docentes, na quase totalidade das escolas, é um modelo “aulista”, isto

é, contrata-se pelas aulas que o professor terá na escola (Gallo, 2002, p.287).

Vale lembrar que as disciplinas escolares não são mera repetição de um conteúdo

produzido fora da escola. A Filosofia dos filósofos certamente estará presente no trabalho com

a disciplina nas escolas, mas esta não será uma simples transposição didática. Como disse

Chervel (1990) e Gimeno Sacristán (1998) as disciplinas escolares são como entidades

epistemológicas autônomas; a cultura selecionada e organizada dentro de um currículo não é a

cultura em si mesma, mas sim uma versão “escolarizada”.

A ciência que está contida nos programas escolares não é a ciência em abstrato,

como a literatura que se ensina-aprende nas escolas, tampouco é “a literatura”, mas

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versões e pacotes especialmente planejados para a escola (GIMENO SACRISTÁN,

1998, p.128).

Além disso, o mencionado Deputado também chama a atenção para a importância da

Filosofia para a formação de um cidadão crítico, responsável e preparado para o debate

reflexivo.

Ora, a Filosofia tem no atual contexto político de fortalecimento das instituições

democráticas do país um dos papéis mais relevantes neste projeto, qual seja, o de

contribuir para uma formação e fundamentação da opinião pública brasileira, não

deixando somente a cargo da imprensa, que muitas vezes se vê à deriva com o cerco

do fenômeno midiático, que, ao modo do Rei Midas, transforma em ouro, ou melhor,

mercado, tudo o que toca [...]Assim, contribuirá para uma opinião pública

responsável e crítica, convidando para o debatle reflexivo, introduzindo valores que

se assentam sobre aquela tradição grega [...] que em suma, é de vocação política

(PROJETO DE LEI Nº 1.641, DE 2003, p.4).

Através da leitura desse pequeno trecho fica evidente a confirmação da assertiva de

Chervel acerca dos objetivos de uma disciplina, os quais são o principal tópico a partir do qual

uma disciplina se constitui. No entanto, épreciso ter claro que as finalidades de uma

disciplina escolar visam não somente o ambiente escolar, mas também a sociedade em que

este se situa.

Em agosto de 2003, o Projeto foi encaminhado para Comissão De Educação e Cultura

(CEC), onde não foram apresentadas emendas ao PL. Em novembro, o Deputado César

Bandeira escreveu um Parecer pela aprovação do Projeto, afirmando que este “beneficiará a

formação integral do estudante” e que o encaminhamento pela aprovação “objetiva acelerar o

processo de inclusão das disciplinas no currículo escolar, e a de inclusão dos estudantes na

sociedade com: senso crítico, capacidade de analisar situações, sentimento ético, lógica e

identidade social”. O parecer foi aprovado por unanimidade pela Comissão.

Em seguida, em dezembro de 2003, o PL foi encaminhado para a Comissão de

Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). Em junho de 2004, o Deputado Alexandre

Cardoso (PSB-RJ), apresentou um parecer votando pela constitucionalidade, juricidade e boa

técnica legislativa do Projeto de Lei nº 1.641/2003 com duas emendas: que ao final da nova

redação do Art.36 da LDB dada pelo Art 1º do Projeto, fosse acrescentada a rubrica NR, e que

o Art 4º do Projeto fosse suprimido15

. O parecer foi, também, aprovado por unanimidade pela

CCJC.

No entanto, em julho de 2004, o Deputado Carlos Abicalil (do PT de Mato Grosso)

apresentou à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados o Recurso n.º 139, de 2004, contra a

15

“Art.4º Revogam-se as disposições em contrário”

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apreciação conclusiva nas Comissões sobre o Projeto de Lei n.º 1.641 de 2003. Ocorre que os

secretários estaduais de educação de vários estados estavam preocupados com a

“compulsoriedade” do PL, que mencionava em seu Art. 3º que a Lei deveria entrar em vigor

na data de sua publicação, e afirmavam que seria necessário criar um período de transição

para que a Lei entrasse em vigor gradativamente. O principal motivo para essa preocupação

era o fato de que, talvez, não se tivesse número suficiente de professores para assumir os

cargos imediatamente.

De acordo com o regimento da Câmara, um PL, quando é terminativo, pode seguir

direto ao Senado sem passar pelo plenário da Câmara, depois de aprovado em duas Comissões

(no caso a CEC e a CCJC). O recurso foi, então, assinado por 51 deputados (número

suficiente de assinaturas), incluindo o autor do PL, deferido e impediu que o Projeto de Lei,

aprovado pela Câmara, seguisse direto ao Senado, para que o Projeto fosse discutido em

plenário.

O SINSESP, presidido pelo Prof. Dr. Paulo Roberto Martins, ao perceber que o

processo pela via legislativa estava emperrado, decide oferecer ao MEC uma proposta

detalhada para que, pela via administrativa, a Resolução CNE/CEB nº 03/98, fosse alterada.

Tal proposta foi inicialmente elaborada pelo diretor da entidade, Prof. Dr. Amaury César

Moraes, da Universidade de São Paulo (USP), e enviada ao MEC.

O Departamento de Políticas do Ensino Médio do MEC solicitou aos professores

Amaury César Morais e João Carlos Salles Pires da Silva que redigissem uma proposta de

Parecer que estabelecesse a obrigatoriedade da Filosofia e da Sociologia. . Foram realizadas

três reuniões nacionais para a elaboração do texto final, sempre envolvendo entidades

nacionais como a UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas), a CNTE

(Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação) e a CONTEE (Confederação

Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino). Em agosto de 2005, os

professores Morais e Pires da Silva se reuniram em Brasília para fazer uma última leitura do

texto que seria encaminhado ao CNE como contribuição do MEC.

Mas somente em novembro de 2005 é que o MEC, finalmente, envia a proposta ao

CNE, para apreciação. Registra-se o apoio tanto do Ministro da Educação, Fernando Haddad,

bem como do Secretário Nacional de Ensino Básico, Prof. Francisco Chagas.

O Ministro da Educação Fernando Haddad recebeu em audiência, no dia 19 de outubro

de 2005, o sociólogo Lejeune Mato Grosso Xavier de Carvalho16

, que no ato representava o

16

Foi professor de Sociologia da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) entre 1985 e 2006, e vice-

presidente do SINSESP entre 2004 e 2007

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Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo, juntamente com diversas lideranças de

entidades de ensino, o deputado Dr. Ribamar Alves (PSB/MA) – autor do PL - para tratar da

viabilização da implantação destas disciplinas, numa linha de agenda positiva por consenso

entre lideres ou por via administrativa. As principais reivindicações foram de (1) Apoio total

do MEC à aprovação do PL do Dr. Ribamar Alves e (2) Modificação, pelo CNE, do antigo e

antidemocrático parecer de Guiomar Namo de Mello, que impedia as disciplinas de

Sociologia e Filosofia de serem lecionadas de forma obrigatória.

À guisa de relembrar, retomamos aqui a fala de Bittencourt (2003) de que são muitos

os sujeitos envolvidos na constituição de uma disciplina: Estado, deputados, ministros,

partidos políticos em geral, professores e alunos, entre outros.

No dia 9 de novembro foi realizada outra reunião com o Ministro Fernando Haddad,

com a presença do Prof. Lejeune Mato Grosso X. de Carvalho (Unimep) e do Prof. Amaury

Moraes (Usp) e outras significativas lideranças de entidades de trabalhadores em educação.

Nesta reunião foi discutida de forma exaustiva, por quatro longas horas (das 14h ás 18h) o

texto da proposta de Parecer, que deveria ser formalizado e encaminhado para aprovação do

Conselho Nacional de Educação

É, então, protocolado no CNE o Ofício nº 9647/GAB/SEB/MEC17

, de 15 de

novembro, pelo qual o então Secretário de Educação Básica do Ministério da Educação,

Francisco das Chagas Fernandes, encaminhou, para apreciação, documento anexado sobre as

“Diretrizes Curriculares das Disciplinas Sociologia e Filosofia no Ensino Médio”, elaborado

pela Secretaria com a participação de representantes de diversas entidades. O documento

apresentava uma série de considerações favoráveis à inclusão da Filosofia e da Sociologia

como disciplinas obrigatórias no currículo do Ensino Médio. O documento foi dividido em

três títulos: 1. Filosofia; 2. Sociologia e 3. Filosofia e Sociologia no Currículo do Ensino

Médio, nos quais foram apresentadas razões que justificavam a inclusão de cada uma das

disciplinas como obrigatória, contrapondo-se às Diretrizes Curriculares Nacionais para o

Ensino Médio (Parecer CNE/CEB nº 15/98 e Resolução CNE/CEB nº 3/98). Ao final da

argumentação, de acordo com o Parecer nº 38/2006, foi proposta a alteração da Resolução

CEB/CNE nº 3/98, Art. 10, § 2º, com supressão da alínea b e inclusão do § 3º com a seguinte

redação: “As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento de

componente disciplinar obrigatório à Filosofia e à Sociologia”.

O próximo passo foi a convocação de uma audiência pública pelo então presidente da

17

GAB/SEB/MEC: Gabinete da Secretaria de Educação Básica do Ministério de Educação e Cultura.

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60

Câmara de Educação Básica do CNE, César Callegari18

, para apresentar oficialmente o

documento. Uma grande mobilização, liderada pelo sociólogo e professor Lejeune Mato

Grosso Xavier de Carvalho, na época vice-presidente do Sindicato dos Sociólogos do Estado

de São Paulo, divulgou todos os passos desse processo pela internet.

Em 1º de fevereiro de 2006 o CNE retomou o debate sobre o assunto, através de sua

Câmara de Ensino Básico (CEB), então sob a presidência do Conselheiro César Callegari, e

realizou audiência pública para a qual foram convidadas várias entidades ligadas à luta, tais

como o SINSESP, a APEOESP (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São

Paulo), a UBES, a CONTEE e a CNTE, além de sociólogos, professores de Filosofia e de

Sociologia, estudantes e outros profissionais, para discutir o tema “Alteração das Diretrizes

Curriculares Nacionais para o Ensino Médio/inclusão de componentes curriculares

obrigatórios de Filosofia e Sociologia”.

Callegari foi escolhido, juntamente com o Conselheiro Adeum Hilário Sauer, também

sociólogo, e com o Conselheiro Murílio de Avellar Hingel, ex-Ministro da Educação do

governo Itamar Franco, relator do Parecer sobre a inclusão das disciplinas de Filosofia e

Sociologia nas diretrizes nacionais do ensino médio como matérias obrigatórias.

Mesmo dentro do CNE a batalha não foi fácil. Em abril de 2006, extinguiram-se os

mandatos de vários conselheiros. A correlação de forças era desfavorável para os que lutavam

pela volta das duas disciplinas. Em maio, tomaram posse pelo menos seis novos conselheiros,

de um total de 12. A realidade se alterou pelas novas presenças dentre os conselheiros,

especialmente Isabel Noronha, que representava a APEOESP, e pela primeira vez um

professor de rede pública e sindicalistas tinham assento num Conselho de Estado.

O SINSESP e todas as entidades do comando nacional de luta compareceram à posse

dos novos conselheiros da CEB/CNE, entregaram um manifesto de apoio à luta e

conversaram com o Ministro da Educação Fernando Haddad, pedindo-lhe mais uma

audiência, incluindo parlamentares que apoiavam a luta das referidas entidades pela inclusão

da Filosofia e Sociologia no ensino médio.

Em 07 de junho de 2006, cerca de 300 professores e estudantes compareceram à

reunião do CNE, já sob a presidência da conselheira Clélia Brandão Alvarenga Craveiro, ex-

Reitora da Universidade Católica de Goiás. Mas como o Parecer CNE/CEB nº 38/2006 (de

autoria dos conselheiros Cesar Callegari, Adeum Hilário Sauer e Murílio de Avellar Hingel)

18

Sociólogo, Cesar Callegari lutou durante anos para que as disciplinas de Filosofia e Sociologia voltassem a

fazer parte do currículo das escolas do País. Ao tomar posse como membro do CNE intensificou seus esforços,

redigindo o Parecer CNE/CEB nº. 38/2006 e a Resolução 4/2006.

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havia sido apresentado apenas na véspera da reunião, os conselheiros pediram que a decisão

fosse adiada para a reunião de julho, sinalizando, entretanto, que o Parecer seria aprovado.

Nesse mesmo dia o Ministro da Educação Fernando Haddad e o Secretário Nacional

de Ensino Básico, Prof. Francisco Chagas, receberam mais de 20 lideranças do movimento no

MEC e declaram de forma enfática que o governo apoiaria as mudanças no CNE.

Apenas um mês depois, em 7 de julho de 2006, O CNE aprovou, às 12h30, por

unanimidade, o Parecer CNE/CEB nº 38/2006, que altera o artigo 10 da Resolução CNE/CEB

nº 03/98, tornando obrigatório o ensino das disciplinas de Sociologia e Filosofia em todas as

escolas do Ensino Médio, dando aos sistemas estaduais de ensino um prazo máximo de um

ano para que os Sistemas de Ensino providenciassem sua implantação. A proposta foi

encaminhada ao Ministro da Educação Fernando Haddad, para que fosse homologado.

Os três relatores (Callegari, Hingel e Sauer), no Parecer CNE/CEB nº 38/2006

reiteram a “importância e o valor da Filosofia e da Sociologia para um processo educacional

consistente e de qualidade na formação humanística de jovens que se deseja sejam cidadãos

éticos, críticos, sujeitos e protagonistas”(p.2).19

E afirmam que tal importância é reconhecida

não só pela argumentação dos proponentes, mas também por pesquisadores e educadores,

inclusive não filósofos e/ou não sociólogos. Outro argumento apresentado pelos relatores é o

de que uma adoção crescente do ensino de Filosofia e Sociologia pela maioria das escolas das

redes públicas e estaduais acabou por criar uma situação desigual no acesso aos

conhecimentos proporcionados por essas disciplinas. Isso porque, como vimos, pelas

determinações da LDB/96 – antes da alteração do Art.36º - o ensino de Filosofia não é

proíbido, mas também não é obrigatório. A decisão de introduzir ou não a Filosofia no

currículo cabia unicamente às escolas.

Nos Estados que ainda não incluíram o ensino da Filosofia e da Sociologia no

currículo do Ensino Médio há toda uma população jovem posta à margem do acesso

aos seus conhecimentos. Essa desigualdade ocorre, igualmente, na rede particular de

ensino, na qual, malgrado a iniciativa de inclusão por uma parte das escolas, muitas

outras não o fizeram. Essa reflexão impõe a manifestação deste Conselho,

propiciadora de uma equalização, visando à igualdade de direitos de acesso a esses

conhecimentos no Ensino Médio do país (Parecer CNE/CEB nº 38/2006).

A nova LDB afirma em seu artigo 36, § 1º, inciso III, que os conteúdos, as

metodologias e as formas de avaliação sejam organizados de tal forma que, ao final do Ensino

Médio, o educando demonstre, entre outros, o domínio dos conhecimentos de Filosofia e de

Sociologia necessários ao exercício da cidadania e, de acordo com os três relatores, a

principal questão que se levanta ao se analisar essa afirmação é: como garantir a eficácia

19

É importante destacar que é a primeira vez em que a palavra “protagonista” aparece referindo-se ao alunado.

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62

dessa diretriz?

Segundo Callegari, Hingel e Sauer, as próprias Diretrizes Curriculares Nacionais para

o Ensino Médio (DCNEM) deram a interpretação que ajudou a responder a essa questão, pois

considerou, em seu Art.10º, na composição e no tratamento a ser dado ao currículo do Ensino

Médio, a Filosofia e a Sociologia como equiparadas à Educação Física e à Arte, estas sim,

contempladas como componentes obrigatórios do currículo da Educação Básica no Artigo 26

da LDB, e também no 2º parágrafo do Art. 10º das DCNEM.

Art. 10 A base nacional comum dos currículos do ensino médio será organizada em

áreas de conhecimento, a saber [...]

§ 2º As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento

interdisciplinar e contextualizado para:

a) Educação Física e Arte, como componentes curriculares obrigatórios;

b) Conhecimentos de filosofia e sociologia necessários ao exercício da cidadania.

(Resolução CNE/CEB nº3/98)

Ou seja, se a escola opta por uma estruturação curricular por disciplinas, Educação

Física e Arte devem ser incluídas e tratadas como tais. Conseqüentemente, a Filosofia e a

Sociologia não podem deixar de ter o mesmo tratamento que essas disciplinas. 20

Nesse sentido, se a escola planejou e organizou seu currículo [...] com base em

disciplinas, a lógica obriga que os componentes obrigatórios, sem ressalva legal,

sejam oferecidos da mesma forma. Se a escola, ao contrário, usando da autonomia

que lhe dá a Lei, organizou seu currículo de outro forma, do mesmo modo deverá

dar tratamento a todos os componentes obrigatórios. Portanto [...] os conhecimentos

de Filosofia e Sociologia, da mesma forma que os componentes Arte e Educação

Física, devem estar presentes nos currículos do Ensino Médio, inclusive na forma de

disciplinas específicas, sempre e quando a escola, valendo-se daquilo que a Lei lhe

faculta, adotar no todo ou em parte, a organização curricular por disciplina (Parecer

CNE/CEB nº 38/2006).

Portanto, as escolas, tanto aquelas que organizam seus currículos em disciplinas,

quanto aquelas que, usando da autonomia que lhes garante a Lei, têm seu currículo

organizado de outra forma que não por disciplinas, do mesmo modo deverão dar tratamento a

todos os componentes obrigatórios.

Cabe ressaltar que as argumentações apresentadas nesse Parecer são em sua grande

maioria argumentações lógicas em torno da LDB, e não uma batalha de persuasão do por que

e para que ensinar Filosofia e Sociologia nesse nível de Ensino.

20

As escolas têm autonomia quanto à sua concepção pedagógica e à formulação de sua proposta curricular,

dando-lhe o formato que julgarem compatível com a sua proposta de trabalho, o que é garantido pela

Constituição Federal e reiterado pela nova LDB. Em outras palavras: elas podem organizar seus currículos

por disciplinas ou não. Além disso, no que diz respeito ao formato de disciplina, no texto da nova LDB não

há sua obrigatoriedade para nenhum componente curricular, seja ele da base nacional comum ou da parte

diversificada., ou seja, as escolas podem escolher entre adotar um currículo organizado em disciplinas ou

transversalizado.

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Os relatores finalizam afirmando que

[...] não se pode deixar de considerar a necessidade de revisão e atualização das

Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, visando à sua revitalização.

Já são passados oito anos de sua edição, período no qual inovações foram propostas,

experiências foram desenvolvidas, estudos e pesquisas foram realizados [...] Já é

tempo de avaliar seus resultados, propriedades e inadequações e, sobretudo, de

incorporar dados das experiências e de retornar ao debate com a comunidade

educacional e com a sociedade civil, contribuindo para que o Ensino Médio, etapa

final da Educação Básica, se corporifique, verdadeiramente, como um projeto da

Nação (Parecer CNE/CEB nº 38/2006, p.9).

Homologado pelo Ministro da Educação, em 11 de agosto de 2006, o Parecer

CNE/CEB nº 38, a Presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de

Educação, Clélia Brandão Alvarenga Craveiro baixou a Resolução CNE/CEB nº 4 de 16 de

agosto de 2006, que altera o artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98, que institui as

Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio e resolve:

Art. 1º O § 2º do artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98 passa a ter a seguinte

redação:

§ 2º As propostas pedagógicas de escolas que adotarem organização

curricular flexível, não estruturada por disciplinas, deverão assegurar tratamento

interdisciplinar e contextualizado, visando ao domínio de conhecimentos de

Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania.

Art. 2º São acrescentados ao artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98, os § 3º e 4º,

com a seguinte redação:

§ 3º No caso de escolas que adotarem, no todo ou em parte, organização

curricular estruturada por disciplinas, deverão ser incluídas as de Filosofia e

Sociologia.

§ 4º Os componentes História e Cultura Afro-Brasileira e Educação

Ambiental serão, em todos os casos, tratados de forma transversal, permeando,

pertinentemente, os demais componentes do currículo. (Resolução CNE/CEB nº 4

de 16 de agosto de 2006).

Assim sendo, a Filosofia deve estar presente em todas as escolas, independentemente

da organização curricular adotada.

A Resolução deu o prazo de um ano para que os Conselhos Estaduais de Educação se

regulamentassem, estabelecendo a carga horária e as séries em que as duas novas disciplinas

seriam oferecidas – se apenas em um, dois ou nos três anos do Ensino Médio. Como o prazo

terminaria em agosto de 2007, as aulas começariam a ser ministradas a partir de 2008.

Em julho de 2007 foi realizado em São Paulo, no Centro de Convenções do Anhembi,

o 1º Encontro Nacional sobre Filosofia e Sociologia. O Encontro foi uma iniciativa da

APEOESP em parceria com o SINSESP e das entidades ligadas à educação, como a CNTE. O

Encontro teve como principal motivação a inclusão das duas ciências como conteúdos

obrigatórios nas escolas brasileiras de Ensino Médio.

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Em sua fala, o professor Emmanuel Appel21

defendeu que tanto a Filosofia como a

Sociologia possuem um ponto de vista crítico que é fundamental para a juventude, por ser um

instrumento para sua emancipação, capaz de tornar os (as) jovens donos (as) de sua própria

autonomia intelectual. Appel não nega que outras disciplinas também sejam críticas, mas

afirma que a Filosofia e a Sociologia têm uma tradição crítica muito maior.

No entanto, o que pareceu um alento, logo se viu assolado pela resistência de vários

sistemas estaduais, que evocavam a LDB para não cumprir a Resolução do CNE.

O CEESP (Conselho Estadual de Educação de São Paulo) considerou nulas as

argumentações apresentadas no Parecer CNE/CEB nº 38/2006 e na Resolução CNE/CEB nº

4/2006. O CEESP pronunciou-se pela não obrigatoriedade da introdução da Filosofia e da

Sociologia no currículo das escolas de Ensino Médio. De acordo com a Indicação CEE nº

62/2006, aprovada em 20 de setembro de 2006, existem

dúvidas relevantes quanto à legalidade da Resolução (c.f. – Art. 36 §1º inciso III da

Lei nº 9394/96 – LDB), na medida em que interfere na autonomia dos sistemas de

ensino e das unidades escolares, além do tratamento não homogêneo dado às

diversas formas de organização curricular adotado pelas diferentes escolas e

sistemas de ensino.

No Parecer CEE nº 343/2007 – CEB aprovado em 7 de julho de 2007, o principal

argumento apresentado é o de que a Resolução CNE/CEB nº 4/2006, emanada do CNE, ao

dizer que a Filosofia e a Sociologia devem ser incorporadas ao currículo de todos os sistemas

de ensino, feriu a autonomia desses mesmos sistemas, assegurada pela Constituição e pela

LDB, para a definição de suas próprias grades curriculares. Evocando o Art. 8º e o Art. 9º da

LDB22

, os relatores (Conselheiros Ana Luisa Restani e Mauro Salles Aguiar) argumentam:

Se a União tem o papel coordenador e, de certo modo, uniformizador, é certo, por

outro lado, que não é da sua competência definir, propriamente, os currículos de

cada sistema de ensino, tampouco os respectivos conteúdos mínimos [...] à União

compete estabelecer competências e diretrizes que “...nortearão os currículos e seus

conteúdos mínimos...”. A União, pois ditará os nortes [...] mas quem haverá de fixar,

efetivamente, quais são esses currículos, e quais são os seus conteúdos mínimos,

serão os próprios sistemas de ensino [...] (Parecer CEE nº 343/2007, p.3).

Mas ao mesmo tempo em que afirmam que a Resolução CNE/CEB nº 4/2006 fere a

21

Professor de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenador do Fórum Sul-Brasileiro de

Filosofia e Ensino. 22

“Art.8º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão, em regime de colaboração, os

respectivos sistemas de ensino.

§1ºCaberá à União a coordenação da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e

sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais.

§2º Os sistemas de ensino terão liberdade de organização nos termos desta Lei.

Art.9º A União incubir-se-á de:

IV – estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e

diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus

conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum;”

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65

autonomia dos sistemas de ensino no que diz respeito à organização curricular, utilizam como

argumentação o Art. 26º da LDB, que define uma série de componentes curriculares

obrigatórios. Ao que parece, a utilização desse Artigo seria uma maneira contraditória e

falaciosa de argumentar contra uma suposta imposição aos sistema de ensino: o referido artigo

limita, ainda que de maneira generalizada, (são utilizados termos genéricos como “mundo

físico e natural” e “realidade social e política, especialmente do Brasil”) o conteúdo a ser

ministrado nas escolas. Além disso, o fato de ter-se definido uma determinada disciplina como

obrigatória não nos parece ser suficiente para ferir a autonomia dos sistemas escolares, já que

a definição da obrigatoriedade não é, por extensão, uma definição dos conteúdos e métodos a

serem utilizados.

A autonomia das escolas garantida pela LDB/96 se refere ao tratamento curricular, e

não à escolha das disciplinas que devem construir a base nacional. O paragráfo 2º do Art. 8º

afirma: “Os sistemas de ensino terão liberdade de organização nos termos desta Lei”. Além

disso, como dissemos anteriormente, o Art. 26º da LDB define uma série de componentes

curriculares obrigatórios. Assim sendo, o Parecer CNE/CEB nº 38/2006 e a Resolução

CNE/CEB nº 4/2006 não parecem ferir a autonomia dos sistemas escolares, já que apenas

determinam a obrigatoriedade do ensino de Filosofia, independente da organização curricular

adotada pela escola.

Segundo Goodson (2001b), o currículo não é um fato consumado. O autor afirma que

o currículo é uma práxis e não um objeto estático. A definição pré-ativa do currículo pode

estabelecer parâmetros para a ação interativa, mas isso não significa que a prática não possa

subverter ou transcender tais parâmetros.

É importante ressaltar aqui que a organização da educação nacional é fragmentada, ou

“descentralizada”, já que cada esfera do governo (União, estados e municípios e o Distrito

Federal) deve organizar seu respectivo sistema de ensino, em regime de colaboração

(Art.8º/LDB). Assim sendo, segundo Pino (2002), “a lei não assume a organização da

educação em sistema nacional”(p.37).

De acordo com os Art. 16º, 17º e 18º da nova LDB, a educação escolar brasileira está

organizada em três esferas administrativas: União, estados e Distrito Federal, e municípios. E

cada um deles abriga um sistema de ensino, sendo:

[...] a União, o sistema federal de ensino, com as instituições de ensino médio

técnico e de nível superior (públicas e privadas); os estados e Distrito Federal,

abrigam o sistema estadual de ensino, com instituições de todos os níveis (públicas e

privadas); os municípios, o sistema municipal de ensino, com instituições de

educação infantil, incluindo as creches, e de ensino fundamental (LIBÂNEO;

OLIVEIRA; TOSCHI, 2008, p.240)

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66

Assim sendo, se existe uma separação entre sistemas federal, estadual e municipal de

ensino, não se pode dizer que existe um sistema nacional de educação. Em tese, um sistema

nacional deveria garantir um mínimo igual nacional.

Outro ponto que nos leva a afirmar a inexistência de um sistema nacional de ensino é a

autonomia dada às escolas no quesito de organização curricular. Em outras palavras, as

escolas não são obrigadas a adotar a organização por disciplinas. Como afirma o Art. 23º da

LDB:

Art. 23. A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos

semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados,

com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de

organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o

recomendar.

Na conclusão do Parecer, os relatores afirmam que no artigo 36, § 1º, inciso III da

nova LDB não se vislumbra qualquer imposição de que os conhecimentos de Filosofia e

Sociologia sejam oferecidos em disciplinas específicas; o que se quer, na verdade, é tornar

esses conhecimentos parte de um “aprendizado notadamente generalista, que contemple, além

da Filosofia e da Sociologia, o domínio de princípios científicos e tecnológicos e

conhecimento de formas contemporâneas de linguagem”

Vemos aqui, mais uma vez, a idéia de transversalidade.

Assim, nada impede, por exemplo, que os conceitos de Filosofia contidos na obra de

Platão e Aristóteles possam ser apresentados no âmbito do estudo da civilização

grega, ou, ainda, numa aula de Português ou Literatura. De modo análogo, é

perfeitamente possível o estudo da Sociologia de Weber ou Durkheim como parte de

aula de História Geral, ou mesmo de Matemática. O que se objetiva é que, ao final

do Ensino Médio, o aluno tenha adquirido conhecimentos filosóficos e sociológicos

necessários ao exercicío da cidadania, pouco importante se tal aquisição deu-se por

meio de aulas específicas ou como parte do conteúdo de uma disciplina afim

(Parecer CEE nº 343/2007, p.11).

O detalhe que os relatores desse Parecer parecem esquecer e que é muito bem

apresentado pelo Parecer CNE/CEB nº 38/2006 é o de que, nas escolas que têm a sua

organização curricular estruturada em disciplinas, há um grande problema quanto à

capacidade de efetivação do que está prescrito no Art. 36 da LDB, “pois se os professores

estão comprometidos com o desenvolvimento do programa de suas disciplinas, dificilmente

terão condições de dar tratamento interdisciplinar e contextualizado aos necessários

conhecimentos de Filosofia e Sociologia, ou mesmo outros [...] (Parecer CNE/CEB nº

38/2006, p.7).

Além desses argumentos, foi também apresentado pelo então presidente do CEESP,

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67

Pedro Salomão José Kassab23

(1930-2009), o argumento de que não haveria número

suficiente de professores para lecionar as duas disciplinas. Para Lejeune Matro Grosso, em

entrevista à UOL24

, não faltariam professores de Sociologia. “Estimamos que, em 3 anos, seja

necessário contratar 10 mil professores em cada uma das disciplinas. No Brasil já existem 40

mil formados na área. E, por ano, se formam de 1500 a 2000 sociólogos”, afirma.

Na reportagem da UOL acima aludida, também foi entrevistado o professor Emmanuel

Appel e, segundo ele, também há Filósofos em número suficiente para lecionar. “Temos 190

cursos de Filosofia no país, e a disciplina foi suprimida do Ensino Médio em agosto de 1971.

Durante 35 anos esses cursos formaram um considerável número de pessoas”, afirma.

Mas apesar das manifestações do Conselho Estadual de Educação de São Paulo, a

Filosofia, em 2008, foi parte integrante da rede estadual de ensino em duas séries do Ensino

Médio, com uma carga horária de duas horas por semana.

Graças às resistências à Resolução do CNE, o PL do deputado Ribamar Alves ganhou

mais força. Em agosto de 2007, apenas um mês depois da aprovação do Parecer CEE

nº343/2007, o deputado Carlos Abicalil, do PT do Mato Grosso, apresentou à Mesa Diretora

da Câmara dos Deputados o Requerimento nº 1445, solicitando a retirada de tramitação do

Recurso nº 139 de 2004, que recorria contra a apreciação conclusiva do Projeto de Lei nº

1641 de 2003. No entanto, tal requerimento foi indeferido por não conter número suficiente

de signatários. Mas em outubro, o deputado apresenta um novo requerimento à Mesa, o

Requerimento nº 1779, que também solicitava a retirada de tramitação do recurso nº

139/2004. Este requerimento, com o número suficiente de assinaturas, foi deferido.

Em 21 de novembro de 2007 a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados aprovou o

ofício SGM-P25

1985/2007, encaminhando o PL à CCJC para a elaboração da Redação Final.

Menos de um mês depois a CCJC designou o relator da Redação Final, o Deputado Fernando

Coruja (PPS – SC). Em 13 de dezembro de 2007 o Deputado apresentou à CCJC a Redação

Final da Lei, e no dia 18 do mesmo mês, a Redação Final foi aprovada por unanimidade na

Câmara dos Deputados.

Finalmente, em janeiro de 2008, a Mesa da Câmara dos Deputados encaminhou a

Redação Final da lei ao Senado Federal através do Ofício nº 774/07/PS-GSE26

, onde obteve,

23

Foi presidente da Associação Médica Brasileira (1969-1981). Comandou a Associação Médica Mundial (1976

e 1977). Exercia o cargo de diretor-geral do Liceu Pasteur desde 1957. Foi presidente do CEESP em 2006 e

2007. 24

Reportagem de Juliana Doretto, “Escolas de São Paulo não precisam implantar Filosofia e Sociologia”, de

21/08/2007. 25

SGM-P: Secretaria Geral da Mesa-Presidência 26

PS-GSE: Primeiro Secretário-Grupo de Supervisão Educacional

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também, aprovação unânime. Em maio de 2008 a Câmara dos Deputados recebeu o Ofício nº

669/08 do Senado Federal, que comunicava a aprovação da matéria e o envio à sanção

presidencial.

Em 2 de junho de 2008, o PL é transformado na Lei Ordinária n.º 11.684/2008, e foi

publicada no Diário Oficial da União de 3 de junho. Uma semana depois da publicação no

DOU, a Câmara dos Deputados recebeu do Senado Federal o Ofício n.º 808/08, que

encaminhava o autógrafo sancionado do Vice Presidente José Alencar.

Assim, após 37 anos de luta, foi sancionada, em 2 de junho de 2008, pelo presidente

da República em exercício, José Alencar, a lei que torna obrigatório o ensino das disciplinas

de sociologia e filosofia nas escolas de ensino médio, públicas e privadas de todo o Brasil. A

solenidade contou com a presença de mais de 300 pessoas, entre representantes de entidades

estudantis, como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e União Brasileira de Estudantes

Secundaristas (UBES), sindicatos de professores e associações profissionais de sociólogos e

filósofos. A CONTEE foi representada pela Secretária de Comunicação Social da entidade, a

socióloga Maria Clotilde Lemos Petta.

Vale afirmar que, apesar da preocupação com a “compulsoriedade” do PL, que levou

ao Requerimento n.º 139/2004, a Lei sancionada contém em seu Art.3º a afirmação de que a

Lei deveria entrar em vigor na data de sua publicação.

A nova legislação deu força de lei ao Parecer nº 38/2006, do Conselho Nacional de

Educação (CNE), que tornava obrigatória a inclusão de Filosofia e Sociologia no ensino

médio sem estabelecer, no entanto, em que série deveriam ser implantadas.

Com a aprovação da Lei nº 11.684, as resistências às mudanças nas Diretrizes

Curriculares Nacionais, propostas pelo Parecer nº 38/2006, passaram para o plano secundário

ou deixaram de existir, e em seu lugar, questionamentos a respeito de sua aplicação

começaram a surgir. Em 13 de junho de 2008 foi protocolado no CNE o Oficio nº

1897/GAB/SEB/MEC27

, através do qual a professora Maria do Pilar Lacerda de Almeia e

Silva, Secretária da Educação Básica do Ministério da Educação encaminhou para análise e

posicionamento, questões acerca de prazos e planos para a implantação da Lei.

1. Considerando a aprovação pelo Congresso Nacional e a sanção presidencial da

Lei n° 11.684, de 2 de junho de 2008, incluindo Sociologia e Filosofia como

disciplinas obrigatórias no currículo do ensino médio e com vistas a analisar os

questionamentos encaminhados a esta Secretaria sobre o referido assunto,

consultamos a esse Conselho sobre o seguinte:

• até o presente momento, seguindo determinação do CNE, os estados vinham

oferecendo as disciplinas de acordo com distribuição e programação própria das

escolas/sistemas de ensino na sua organização curricular. Considerando que a

27

GAB/SEB/MEC: Gabinete da Secretaria de Educação Básica do Ministério de Educação e Cultura

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supracitada Lei passa a vigorar na data de sua publicação, haverá um prazo para a

sua implantação e conseqüente inclusão das duas disciplinas nas três séries do

currículo escolar?; e

• é possível estabelecer plano de implantação gradativa das referidas disciplinas ao

longo dos próximos anos para cada uma das séries do ensino médio permitindo que

os sistemas de ensino organizem quadro de professores que atenda a nova demanda

estabelecida com a sanção da citada lei?

(Oficio nº 1897/GAB/SEB/MEC in Parecer CNE/CEB nº22/2008)

Em resposta ao citado Ofício o CNE aprovou, em outubro, o Parecer n.º22/2008, cujo

relator foi, mais uma vez, Cesar Callegari.

Antes de responder às perguntas propriamente ditas, o relator faz uma breve

apresentação sobre o entendimento de “série” e de “disciplina”, termos empregados no inciso

IV do art. 36, caput, da LDB, introduzido pela Lei nº 11.684/2008.

De acordo com o Parecer, a LDB utiliza os termos série, etapa e fase para designar

cada um dos anos da duração mínima obrigatória para o Ensino Fundamental e Ensino Médio

sem rigor conceitual. Porém, o Art. 23 da citada lei torna claro que a estruturação por

seqüência de séries não é obrigatória, pois admite diversas formas de organização.

Não há dúvida, de todo modo, que o legislador, mesmo utilizando o termo específico

“série” no novo inciso IV do art. 36, da LDB, incluiu a Filosofia e a Sociologia ao

longo de todos os anos do Ensino Médio, quaisquer que sejam a denominação e a

forma de organização adotada, seja com formato disciplinar, seja com construção

flexível e inovadora, diversa da tradicional.

Desse entendimento resulta que os sistemas de ensino de todos os entes federativos

devem fixar normas complementares e medidas concretas para a oferta desses

componentes curriculares em todos os anos de duração do Ensino Médio.

Devem, ainda, zelar para que haja sua efetivação, coibindo atendimento meramente

formal ou esparso e diluído, garantindo aulas suficientes para o desenvolvimento

adequado de estudos e atividades desses componentes, com a designação específica

de professores qualificados para tanto.

(Parecer CNE/CEB nº22/2008)

Já sobre o termo “disciplina”, mais uma vez o Relator atenta para o fato de que não há

na LDB relação direta entre a obrigatoriedade e o formato do componente curricular (fato que

já havia sido tratado no Parecer CNE/CEB nº 38/2006). Além disso, o texto da LDB também

indica que

[...] quanto ao formato de disciplina, não há sua obrigatoriedade para nenhum

componente curricular, seja da Base Nacional Comum, seja da Parte Diversificada.

As escolas têm garantida a autonomia quanto à sua concepção pedagógica e para a

formulação de sua correspondente proposta curricular, sempre que o interesse do

processo de aprendizagem assim o recomendar, dando-lhe o formato que julgarem

compatível com a sua proposta de trabalho. (Parecer CNE/CEB nº22/2008)

Assim sendo, as considerações apresentadas no Parecer nº 38/2006 continuam válidas,

a única diferença é que com a sanção da Lei nº 11.684/2008 fica clara e definida a

obrigatoriedade de serem incluídos os componentes curriculares Filosofia e Sociologia em

todos os anos do Ensino Médio, dando-lhes o mesmo tratamento dos demais componentes

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obrigatórios, que podem ou não assumir o formato de “disciplinas”.

Sobre as questões acerca dos prazos e planos para a implantação da Lei, o Relator

afirma que sua aplicação deve ser imediata (um facilitador seria o fato de que muitos sistemas

de ensino e escolas haviam implantado uma ou ambas disciplinas em seus currículos por

decisão originária própria, ou as implantaram em decorrência das alterações na Resolução

CNE/CEB nº 3/98) mas que é preciso levar em consideração que a Lei nº 11.684/2008 foi

promulgada em meio ao ano letivo da quase totalidade das escolas. Por isso, segundo

Callegari, é razoável e legítima a proposição para que a aplicação da nova Lei atenda “normas

complementares e medidas concretas que devem ser fixadas pelos respectivos sistemas de

ensino, até 31 de dezembro de 2008, para que sua implantação possa ser gradual”.

Assim, os sistemas de ensino deveriam tomar as devidas providências para que fosse

possível: 1) iniciar em 2009 a inclusão obrigatória da Filosofia e da Sociologia em, pelo

menos, um dos anos do Ensino Médio, preferentemente a partir do primeiro ano do curso; 2)

prosseguir essa inclusão ano a ano, até 2011, para os cursos de Ensino Médio de 3 anos de

duração, e até 2012, para os cursos com 4 anos de duração.

Para concluir o Parecer, Callegari apresenta seu voto, no sentido de responder à

consulta da professora Maria do Pilar Lacerda de Almeia e Silva, indicando que:

1. os componentes curriculares Filosofia e Sociologia são obrigatórios ao longo de

todos os anos do Ensino Médio, qualquer que seja a denominação e a forma de

organização curricular adotada;

2. para a Educação Básica e, portanto para o Ensino Médio, não é obrigatória a

estruturação do curso por seqüência de séries, pois a LDB admite diversas formas de

organização, além da seriada tradicional, sendo que o obrigatório é o número

mínimo de anos;

3. as escolas têm autonomia quanto à concepção pedagógica e à formulação de sua

correspondente proposta curricular, desde que garantam sua completude e coerência,

devendo dar o mesmo valor e tratamento aos componentes do currículo que são

obrigatórios, seja esse tratamento por disciplinas, seja por formas flexíveis, com

tratamento interdisciplinar e contextualizado;

4. a aplicação do inciso IV do art. 36, da LDB, que inclui a Filosofia e a Sociologia

como obrigatórias em todas os anos do Ensino Médio atenderá normas

complementares e medidas concretas que devem ser fixadas pelos respectivos

Sistemas de Ensino até 31 de dezembro de 2008;

5. a implantação obrigatória dos componentes curriculares Filosofia e Sociologia em

todas as escolas, públicas e privadas, obedecerá aos seguintes prazos:

a. início em 2009, com a inclusão em, pelo menos, um dos anos do Ensino

Médio;

b. prosseguimento dessa inclusão, ano a ano, até 2011, para os cursos de

Ensino Médio de 3 anos de duração, e até 2012, para os cursos com duração de 4

anos;

6. os sistemas de ensino devem zelar para que haja eficácia na inclusão dos referidos

componentes, garantindo-se aulas suficientes em cada ano e professores qualificados

para o seu adequado desenvolvimento, além de outras condições, como,

notadamente, acervo pertinente nas suas bibliotecas [...]

(Parecer CNE/CEB nº22/2008)

Assim, em 15 de maio de 2009, foi aprovada a Resolução nº1, que dispõe sobre a

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implementação da Filosofia e da Sociologia no currículo do Ensino Médio, a partir da edição

da Lei nº11.684/2008.

A Resolução afirma que os conteúdos de Filosofia e Sociologia são obrigatórios ao

longo de todos os anos do Ensino Médio, qualquer que seja a organização curricular adotada,

em todas as escolas públicas e privadas do país, e estabelece os prazos de implementação. A

inclusão obrigatória deveria ter início em 2009 em pelo menos um dos anos do Ensino Médio.

A inclusão deveria ser feita ano a ano, até 2011, para os cursos estruturados em 3 anos, e até

2012, para os cursos estruturados em 4 anos.

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Considerações finais

À guisa de conclusão e apenas para rememorar o que foi dito faremos aqui uma breve

recapitulação.

Primeiro fizemos uma breve síntese do percurso da Filosofa como disciplina escolar

na educação brasileira. Vimos que o desenrolar histórico da Filosofia no currículo escolar

nunca foi linear ou harmônico. Por ser um nível de ensino que passou por inúmeras reformas,

a presença/ausência da Filosofia em seu currículo foi marcada por muitos conflitos. Mas

podemos dizer, talvez, que esses conflitos sejam “normais”, pois, de acordo com Goodson

(2001) tanto o currículo como a disciplina são construções históricas e sociais, ou seja, sua

construção está repleta de objetivos, conflitos, interesses etc.

Em seguida, nos propusemos a realizar uma reflexão crítica sobre como a Filosofia

está presente nos documentos oficiais, sendo estes os Parâmetros Curriculares Nacionais para

o Ensino Médio/Filosofia, os PNC+ para Ensino Médio/Filosofia e as Orientações

Curriculares para o Ensino Médio/Filosofia. Aqui pudemos constatar algumas contradições

entre os textos desses documentos e os textos da LDB/96 e das Diretrizes Curriculares

Nacionais para o Ensino Médio (Parecer CNE/CEB nº 15/98), como por exemplo, o fato de

que enquanto estas últimas, ao mesmo tempo em que valorizam conhecimentos de Filosofia e

Sociologia não asseguram a oferta destes como componentes obrigatórios, os

PCNEM/Filosofia, os PCN+/Filosofia e as OCNEM/Filosofia não oferecem a estes

conhecimentos outro tratamento que não o de caráter obrigatório, embora divirjam quanto ao

“formato” desta obrigatoriedade.

No entanto, apesar das contradições encontradas, se considerarmos os princípios gerais

do Ensino Médio, definidos na LDB/96 e reforçados nas DCNEM, o espírito da proposta de

ensino desenvolvida nesses 3 documentos, é bem coerente com a concepção delineada nos

textos que compõem as bases legais da educação brasileira.

Além disso, a análise desses 3 documentos também nos permitiu ver a evolução da

importância dada à presença da Filosofia no currículo do Ensino Médio, uma vez que no

primeiro documento (PCN, de 1999) dá-se a defesa da transversalidade da Filosofia enquanto

que no último (OCNEM, de 2006) dá-se uma defesa de um espaço próprio e obrigatório para

a Filosofia.

Como vimos, a reformulação do Ensino Médio que se deu na década de 1990 (idéia de

uma educação meramente utilitária e tecnicista) resultou numa constante queda na qualidade

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da educação dos jovens brasileiros. “Evidentemente, esse quadro não se deve só à falta que

faz os conhecimentos de filosofia e de sociologia na formação dos jovens. Mas a ausência

dessas matérias é explicada pelo empobrecimento deliberado das condições de ensino e

aprendizagem vigentes no contexto da educação básica brasileira” (Callegari, 2008, p.24),

mas a volta das duas disciplinas parece ser uma tentativa de mudar esse quadro, uma tentativa

de oferecer uma completa, ampla e sólida formação básica. Mesmo não existindo um sistema

nacional de ensino – de acordo com a LDB/96 existem três sistemas: o federal, o estadual e do

Distrito Federal, e o municipal - as escolas não podem fugir daquilo que a LDB determina

como conteúdo obrigatório. O Art. 26º da LDB define uma série de componentes curriculares

obrigatórios.

Art. 26. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional

comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar,

por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da

sociedade, da cultura, da economia e da clientela.

§ 1º Os currículos a que se refere o caput devem abranger, obrigatoriamente,

o estudo da língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e

natural e da realidade social e política, especialmente do Brasil.

§ 2o O ensino da arte, especialmente em suas expressões regionais,

constituirá componente curricular obrigatório nos diversos níveis da educação

básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos. (Redação dada

pela Lei nº 12.287, de 2010)

§ 3o A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é

componente curricular obrigatório da educação básica, sendo sua prática facultativa

ao aluno: (Redação dada pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003) [...]

§ 4º O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das

diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das

matrizes indígena, africana e européia.

§ 5º Na parte diversificada do currículo será incluído, obrigatoriamente, a

partir da quinta série, o ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, cuja

escolha ficará a cargo da comunidade escolar, dentro das possibilidades da

instituição.

§ 6o A música deverá ser conteúdo obrigatório, mas não exclusivo, do

componente curricular de que trata o § 2o deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.769,

de 2008)

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos

e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e

indígena. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).

Independentemente da organização curricular que adotem (transversalidade ou por

disciplinas) o conteúdo de Filosofia deve estar presente. Como vimos no decorrer do trabalho,

a autonomia das escolas garantida pela LDB/96 não se refere à escolha das disciplinas que

devem construir a base nacional. A autonomia garantida às escolas é pedagógica e financeira,

como afirma o Art.15º da LDB/96:

Art. 15. Os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de

educação básica que os integram progressivos graus de autonomia pedagógica e

administrativa e de gestão financeira, observadas as normas gerais de direito

financeiro público.

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No último capítulo mapeamos a tramitação do Projeto de Lei nº1641 de 2003, do

Deputado Dr, Ribamar Alves (PSB do Maranhão), que propunha a alteração do Art.36 da

LDB/96, para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias no Ensino

Médio.

Essa tramitação foi também repleta de conflitos entre aqueles que defendiam que a

única forma da Filosofia fazer realmente parte da formação dos alunos era dar-lhe o caráter de

conteúdo obrigatório (ou seja, com um espaço próprio para ser trabalhado, com a presença de

um profissional da área); e aqueles que defendiam que a transversalidade seria suficiente para

ensinar aos alunos os conhecimentos necessários.

Houve imensa pressão por parte de associações, professores, alunos, filósofos e

sociólogos para que o referido PL fosse aprovado. O principal argumento usado era o de que a

escola carece de uma dimensão crítica e analítica, e que os conteúdos de Filosofia e

Sociologia seriam capazes de fornecer tal dimensão. A Filosofia seria capaz de desenvolver

nos educandos a capacidade de reflexão e análise crítica, habilidades necessárias a uma

participação significativa na sociedade. Na Justificação do PL, o Deputado Dr. Ribamar Alves

afirma que a Filosofia contribuiria “para uma opinião pública responsável e crítica,

convidando para o debate reflexivo [...] (p.4)

Outro aspecto que também pudemos constatar através desse mapeamento foi o fato de

que os sociólogos mostraram-se muito mais articulados politicamente do que os filósofos, que

acabram optando por uma via mais acadêmica. O que aconteceu, então, foi que a discussão

acerca do significado e do sentido da Filosofia no Ensino Médio acabou ficando restrita ao

meio acadêmico. Os filósofos não conseguiram levar a discussão para outros meios, para

outros círculos. Não fossem os sociólogos levarem a discussão para a esfera política, talvez a

lei não tivesse sido aprovada. A Filosofia e a Sociologia não têm tradição no currículo escolar

- como é o caso da matemática e do português, por exemplo – por isso a pressão na esfera

política foi extremamente crucial para se ter definida a obrigatoriedade.

A institucionalização da Filosofia como obrigatória foi uma grande vitória, porém, é

preciso ter claro que a introdução de um artigo na lei que torne a Filosofia uma disciplina

obrigatória não é garantia de que os egressos do Ensino Médio serão capazes de, através de

um pensamento rigoroso, realizar um exame minucioso das suas condições reais de

existência, como uma forma radical de exercerem a crítica do senso comum. Como dissemos

anteriormente, tornar uma disciplina obrigatória não significa determinar os conteúdos e

métodos que serão utilizados. Assim, reafirmando que não temos um sistema nacional de

ensino, fica a cabo de cada escola/região determinar quais serão esses conteúdos e métodos.

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75

Ou seja, numa escola que não tem clareza dos seus objetivos, que não

discute/produz/implemente um projeto político-pedagógico comprometido com

transformações, provavelmente terá na Filosofia apenas mais uma disciplina inútil a enfastiar

seus alunos.

Além disso, a Filosofia institucionalizada está sujeita a dispositivos e discursos legais

que exercem um tipo de controle social, na medida em que a escola, sendo uma instância que

prepara para a vida e para a inserção dos sujeitos no mundo, se sustenta vinculando verdades

úteis para a sociedade, verdades úteis para que os egressos sejam inseridos neste mundo já

organizado.

Segundo a Filosofia de Nietzsche, a verdade não é universal e irrefutável, mas sim um

produto de convenção. A verdade é

[...] uma multidão movente de metáforas, de metonímias, de antropomorfismos, em

resumo, um conjunto de relações humanas poeticamente e retoricamente erguidas,

transpostas, enfeitadas e que depois de um longo uso, parecem a um povo firmes,

canoniais, e constrangedoras: as verdades são ilusões que nós esquecemos que são,

metáforas que foram usadas e que perderam a sua força, moedas que perderam seu

cunho, seu valor (Nietzsche, 1984, p.84).

Ou seja, verdade é apenas uma interpretação tornada tradição. A escola então vincula

um conhecimento já solidificado pelo tempo, útil para a manutenção da sociedade.

O Estado jamais se importa com a verdade, salvo com aquela que lhe é útil – mais

exatamente ele se ocupa em geral com tudo o que lhe é útil [...] Aliança do Estado

com a Filosofia não tem, portanto, sentido, senão quando a Filosofia pode prometer

ser incondicionalmente útil ao Estado (Nietzsche, 2003, p.217)

Por isso há a necessidade de se perguntar: qual conhecimento será veiculado em

Filosofia? O conhecimento de enfoque pragmático em detrimento do “saber acumulado”?

Se é difícil pensar a Filosofia, em razão de sua complexidade, pensá-la no cenário

educacional é um desafio ainda maior, pois temos todas as dificuldades inerentes à educação

no atual contexto neoliberal, no qual a escola é constituída como uma alavanca a serviço do

mercado de trabalho e dos vestibulares.

Esse modelo de escola, parece-nos, está muito mais interessado em transmitir saberes

e conhecimentos pouco especializados, seguindo as imposições desse modelo de sociedade

que só considera que algo deve ser ensinado se tiver alguma finalidade prática, imediata e

vísivel.

O senso comum de nossa sociedade considera útil o que dá prestígio, poder, fama e

riqueza. Julga o útil pelos resultados vísiveis das coisas e das ações, identificando

utilidade e a famosa expressão “levar vantagem em tudo”.(CHAUÍ, 1995, p.18).

Os documentos oficiais enfatizam a formação para um tipo de cidadania e uma

preparação básica para o trabalho, “sem nenhum destaque ao aprofundamento dos estudos

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acadêmicos nas diferentes áreas do conhecimento” (Falleiros, 2005, p.223).

Na orientação vemos que há uma categoria de magnitude indiscutível, absoluta, e que

seria o mercado. Este seria o responsável por orientar e delimitar a sociabilidade humana

desejável. Desse modo a formação humana e/ou cidadã deve, necessariamente, subordinar-se

aos ditames das necessidades do mercado. Pode-se apreender que aqui há claramente uma

subordinação do humano/social a um determinado tipo de organização produtiva que,

entretanto, resta indiscutida porque indiscutível. Nesse contexto, a função da Filosofia no

currículo escolar poderia apenas ser a de elemento concorrente para o atingimento da

satisfação das necessidades do mercado. Esse predomínio do mercado, que também é

conhecido por sociedade neoliberal, acaba, portanto, por determinar mesmo de formas

indiretas a função do ensino da Filosofia.

Não seria, portanto, descabido, traçar um paralelo entre a trajetória da Filosofia

enquanto disciplina escolar num governo assumidamente neoliberal e noutro, presidido por

um ex-metalúrgico, que, ao menos tendencialmente, questiona e se afasta desse modelo

globalmente consagrado. Talvez não seja apenas coincidência que no primeiro governo deu-se

o veto à introdução da Filosofia e da Sociologia ao currículo do Ensino Médio, enquanto que

essa introdução foi facilitada no segundo.

O conhecimento vinculado nas disciplinas curriculares desempenha, então, o papel de

formar pessoas, instituir conceitos, valores, ideologias e visões de mundo. Segundo Goodson

(2001, p.10) “[...] o currículo é construído para ter efeito sobre pessoas. As instituições

escolares processam mais do que conhecimento, processam pessoas”.

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ANEXO 1

Presidência da República

Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos

LEI Nº 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996.1

Vide Adin 3324-7, de 2005

Vide Decreto nº 3.860, de 2001

Vide Lei nº 12.061, de 2009

Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.

TÍTULO II

Dos Princípios e Fins da Educação Nacional

Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e

nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do

educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

TÍTULO IV

Da Organização da Educação Nacional

Art. 8º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão, em regime

de colaboração, os respectivos sistemas de ensino.

§ 1º Caberá à União a coordenação da política nacional de educação, articulando os

diferentes níveis e sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em

relação às demais instâncias educacionais.

§ 2º Os sistemas de ensino terão liberdade de organização nos termos desta Lei.

Art. 9º A União incumbir-se-á de: (Regulamento)

I - elaborar o Plano Nacional de Educação, em colaboração com os Estados, o Distrito

Federal e os Municípios;

II - organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais do sistema federal

de ensino e o dos Territórios;

III - prestar assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos

Municípios para o desenvolvimento de seus sistemas de ensino e o atendimento prioritário à

escolaridade obrigatória, exercendo sua função redistributiva e supletiva;

1 O presente anexo não se encontra na íntegra. Foram selecionados somente os artigos pertinentes ao trabalho.

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IV - estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios,

competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio,

que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica

comum;

V - coletar, analisar e disseminar informações sobre a educação;

VI - assegurar processo nacional de avaliação do rendimento escolar no ensino

fundamental, médio e superior, em colaboração com os sistemas de ensino, objetivando a

definição de prioridades e a melhoria da qualidade do ensino;

VII - baixar normas gerais sobre cursos de graduação e pós-graduação;

VIII - assegurar processo nacional de avaliação das instituições de educação superior,

com a cooperação dos sistemas que tiverem responsabilidade sobre este nível de ensino;

IX - autorizar, reconhecer, credenciar, supervisionar e avaliar, respectivamente, os

cursos das instituições de educação superior e os estabelecimentos do seu sistema de ensino.

§ 1º Na estrutura educacional, haverá um Conselho Nacional de Educação, com funções

normativas e de supervisão e atividade permanente, criado por lei.

§ 2° Para o cumprimento do disposto nos incisos V a IX, a União terá acesso a todos os

dados e informações necessários de todos os estabelecimentos e órgãos educacionais.

§ 3º As atribuições constantes do inciso IX poderão ser delegadas aos Estados e ao

Distrito Federal, desde que mantenham instituições de educação superior.

Art. 15. Os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de educação

básica que os integram progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de

gestão financeira, observadas as normas gerais de direito financeiro público.

Art. 16. O sistema federal de ensino compreende:

I - as instituições de ensino mantidas pela União;

II - as instituições de educação superior criadas e mantidas pela iniciativa privada;

III - os órgãos federais de educação.

Art. 17. Os sistemas de ensino dos Estados e do Distrito Federal compreendem:

I - as instituições de ensino mantidas, respectivamente, pelo Poder Público estadual e

pelo Distrito Federal;

II - as instituições de educação superior mantidas pelo Poder Público municipal;

III - as instituições de ensino fundamental e médio criadas e mantidas pela iniciativa

privada;

IV - os órgãos de educação estaduais e do Distrito Federal, respectivamente.

Parágrafo único. No Distrito Federal, as instituições de educação infantil, criadas e

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mantidas pela iniciativa privada, integram seu sistema de ensino.

Art. 18. Os sistemas municipais de ensino compreendem:

I - as instituições do ensino fundamental, médio e de educação infantil mantidas pelo

Poder Público municipal;

II - as instituições de educação infantil criadas e mantidas pela iniciativa privada;

III – os órgãos municipais de educação.

TÍTULO V

Dos Níveis e das Modalidades de Educação e Ensino

CAPÍTULO II

DA EDUCAÇÃO BÁSICA

Seção I

Das Disposições Gerais

Art. 22. A educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a

formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para

progredir no trabalho e em estudos posteriores.

Art. 23. A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais,

ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, com base na idade, na

competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o

interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar.

§ 1º A escola poderá reclassificar os alunos, inclusive quando se tratar de transferências

entre estabelecimentos situados no País e no exterior, tendo como base as normas curriculares

gerais.

§ 2º O calendário escolar deverá adequar-se às peculiaridades locais, inclusive

climáticas e econômicas, a critério do respectivo sistema de ensino, sem com isso reduzir o

número de horas letivas previsto nesta Lei.

Art. 25. Será objetivo permanente das autoridades responsáveis alcançar relação

adequada entre o número de alunos e o professor, a carga horária e as condições materiais do

estabelecimento.

Parágrafo único. Cabe ao respectivo sistema de ensino, à vista das condições

disponíveis e das características regionais e locais, estabelecer parâmetro para atendimento do

disposto neste artigo.

Art. 26. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional

comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma

parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da

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87

economia e da clientela.

§ 1º Os currículos a que se refere o caput devem abranger, obrigatoriamente, o estudo

da língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da

realidade social e política, especialmente do Brasil.

§ 2o O ensino da arte, especialmente em suas expressões regionais, constituirá

componente curricular obrigatório nos diversos níveis da educação básica, de forma a

promover o desenvolvimento cultural dos alunos. (Redação dada pela Lei nº 12.287, de 2010)

§ 3o A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente

curricular obrigatório da educação básica, sendo sua prática facultativa ao aluno: (Redação

dada pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

I – que cumpra jornada de trabalho igual ou superior a seis horas; (Incluído pela Lei nº

10.793, de 1º.12.2003)

II – maior de trinta anos de idade; (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

III – que estiver prestando serviço militar inicial ou que, em situação similar, estiver

obrigado à prática da educação física; (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

IV – amparado pelo Decreto-Lei no 1.044, de 21 de outubro de 1969; (Incluído pela Lei

nº 10.793, de 1º.12.2003)

V – (VETADO) (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

VI – que tenha prole. (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

§ 4º O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes

culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena,

africana e européia.

§ 5º Na parte diversificada do currículo será incluído, obrigatoriamente, a partir da

quinta série, o ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará a

cargo da comunidade escolar, dentro das possibilidades da instituição.

§ 6o A música deverá ser conteúdo obrigatório, mas não exclusivo, do componente

curricular de que trata o § 2o deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.769, de 2008)

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e

privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e

indígena. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).

Art. 27. Os conteúdos curriculares da educação básica observarão, ainda, as seguintes

diretrizes:

I - a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos

cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática;

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II - consideração das condições de escolaridade dos alunos em cada estabelecimento;

III - orientação para o trabalho;

IV - promoção do desporto educacional e apoio às práticas desportivas não-formais.

Seção IV

Do Ensino Médio

Art. 35. O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de três

anos, terá como finalidades:

I - a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino

fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos;

II - a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar

aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de

ocupação ou aperfeiçoamento posteriores;

III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o

desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico;

IV - a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos,

relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina.

Art. 36. O currículo do ensino médio observará o disposto na Seção I deste Capítulo e

as seguintes diretrizes:

I - destacará a educação tecnológica básica, a compreensão do significado da ciência,

das letras e das artes; o processo histórico de transformação da sociedade e da cultura; a

língua portuguesa como instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da

cidadania;

II - adotará metodologias de ensino e de avaliação que estimulem a iniciativa dos

estudantes;

III - será incluída uma língua estrangeira moderna, como disciplina obrigatória,

escolhida pela comunidade escolar, e uma segunda, em caráter optativo, dentro das

disponibilidades da instituição.

IV – serão incluídas a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as

séries do ensino médio. (Incluído pela Lei nº 11.684, de 2008)

§ 1º Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizados de tal

forma que ao final do ensino médio o educando demonstre:

I - domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a produção moderna;

II - conhecimento das formas contemporâneas de linguagem;

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ANEXO 2

RESOLUÇÃO CEB Nº 3, DE 26 DE JUNHO DE 19982

Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para oEnsino Médio.

O Presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, de

conformidade com o disposto no art. 9º § 1º, alínea ―c‖, da Lei 9.131, de 25 de novembro de

1995, nos artigos 26, 35 e 36 da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e tendo em vista o

Parecer CEB/CNE 15/98, homologado pelo Senhor Ministro da Educação e do Desporto em

25 de junho de 1998, e que a esta se integra, RESOLVE:

Art. 1º As Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio – DCNEM,

estabelecidas nesta Resolução, se constituem num conjunto de definições doutrinárias sobre

princípios, fundamentos e procedimentos a serem observados na organização pedagógica e

curricular de cada unidade escolar integrante dos diversos sistemas de ensino, em atendimento

ao que manda a lei, tendo em vista vincular a educação com o mundo do trabalho e a prática

social, consolidando a preparação para o exercício da cidadania e propiciando preparação

básica para o trabalho.

Art. 2º A organização curricular de cada escola será orientada pelos valores

apresentados na Lei 9.394, a saber:

I - os fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem

comum e à ordem democrática;

II - os que fortaleçam os vínculos de família, os laços de solidariedade humana e de tolerância

recíproca.

Art. 4º As propostas pedagógicas das escolas e os currículos constantes dessas

propostas incluirão competências básicas, conteúdos e formas de tratamento dos conteúdos,

previstas pelas finalidades do ensino médio estabelecidas pela lei:

I - desenvolvimento da capacidade de aprender e continuar aprendendo, da autonomia

intelectual e do pensamento crítico, de modo a ser capaz de prosseguir os estudos e de

adaptar-se com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento;

2 O presente anexo não se encontra na íntegra. Foram selecionados somente os artigos pertinentes ao trabalho.

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II - constituição de significados socialmente construídos e reconhecidos como verdadeiros

sobre o mundo físico e natural, sobre a realidade social e política;

III - compreensão do significado das ciências, das letras e das artes e do processo de

transformação da sociedade e da cultura, em especial as do Brasil, de modo a possuir as

competências e habilidades necessárias ao exercício da cidadania e do trabalho;

IV - domínio dos princípios e fundamentos científico-tecnológicos que presidem a produção

moderna de bens, serviços e conhecimentos, tanto em seus produtos como em seus processos,

de modo a ser capaz de relacionar a teoria com a prática e o desenvolvimento da flexibilidade

para novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores;

V - competência no uso da língua portuguesa, das línguas estrangeiras e outras linguagens

contemporâneas como instrumentos de comunicação e como processos de constituição de

conhecimento e de exercício de cidadania.

Art. 10 A base nacional comum dos currículos do ensino médio será organizada em

áreas de conhecimento, a saber:

I - Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, objetivando a constituição de competências e

habilidades que permitam ao educando:

a) Compreender e usar os sistemas simbólicos das diferentes linguagens como meios

de organização cognitiva da realidade pela constituição de significados, expressão,

comunicação e informação.

b) Confrontar opiniões e pontos de vista sobre as diferentes linguagens e suas

manifestações específicas.

c) Analisar, interpretar e aplicar os recursos expressivos das linguagens, relacionando

textos com seus contextos, mediante a natureza, função, organização, estrutura das

manifestações, de acordo com as condições de produção e recepção.

d) Compreender e usar a língua portuguesa como língua materna, geradora de

significação e integradora da organização do mundo e da própria identidade.

e) Conhecer e usar língua(s) estrangeira(s) moderna(s) como instrumento de acesso a

informações e a outras culturas e grupos sociais.

f) Entender os princípios das tecnologias da comunicação e da informação, associá-las

aos conhecimentos científicos, às linguagens que lhes dão suporte e aos problemas que se

propõem solucionar.

g) Entender a natureza das tecnologias da informação como integração de diferentes

meios de comunicação, linguagens e códigos, bem como a função integradora que elas

exercem na sua relação com as demais tecnologias.

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h) Entender o impacto das tecnologias da comunicação e da informação na sua vida,

nos processos de produção, no desenvolvimento do conhecimento e na vida social.

i) Aplicar as tecnologias da comunicação e da informação na escola, no trabalho e em

outros contextos relevantes para sua vida.

II - Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias, objetivando a constituição de

habilidades e competências que permitam ao educando:

a) Compreender as ciências como construções humanas, entendendo como elas se

desenvolvem por acumulação, continuidade ou ruptura de paradigmas, relacionando o

desenvolvimento científico com a transformação da sociedade.

b) Entender e aplicar métodos e procedimentos próprios das ciências naturais.

c) Identificar variáveis relevantes e selecionar os procedimentos necessários para a

produção, análise e interpretação de resultados de processos ou experimentos científicos e

tecnológicos.

d) Compreender o caráter aleatório e não determinístico dos fenômenos naturais e

sociais e utilizar instrumentos adequados para medidas, determinação de amostras e cálculo

de probabilidades.

e) Identificar, analisar e aplicar conhecimentos sobre valores de variáveis,

representados em gráficos, diagramas ou expressões algébricas, realizando previsão de

tendências, extrapolações e interpolações e interpretações.

f) Analisar qualitativamente dados quantitativos representados gráfica ou

algebricamente relacionados a contextos sócio-econômicos, científicos ou cotidianos

g) Apropriar-se dos conhecimentos da física, da química e da biologia e aplicar esses

conhecimentos para explicar o funcionamento do mundo natural, planejar, executar e avaliar

ações de intervenção na realidade natural.

h) Identificar, representar e utilizar o conhecimento geométrico para o

aperfeiçoamento da leitura, da compreensão e da ação sobre a realidade.

i) Entender a relação entre o desenvolvimento das ciências naturais e o

desenvolvimento tecnológico e associar as diferentes tecnologias aos problemas que se

propuseram e propõem solucionar.

j) Entender o impacto das tecnologias associadas às ciências naturais na sua vida

pessoal, nos processos de produção, no desenvolvimento do conhecimento e na vida social.

l) Aplicar as tecnologias associadas às ciências naturais na escola, no trabalho e em

outros contextos relevantes para sua vida.

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m) Compreender conceitos, procedimentos e estratégias matemáticas e aplicá-las a

situações diversas no contexto das ciências, da tecnologia e das atividades cotidianas.

III - Ciências Humanas e suas Tecnologias, objetivando a constituição de competências e

habilidades que permitam ao educando:

a) Compreender os elementos cognitivos, afetivos, sociais e culturais que constituem a

identidade própria e dos outros.

b) Compreender a sociedade, sua gênese e transformação e os múltiplos fatores que

nelas intervêm, como produtos da ação humana; a si mesmo como agente social; e os

processos sociais como orientadores da dinâmica dos diferentes grupos de indivíduos.

c) Compreender o desenvolvimento da sociedade como processo de ocupação de

espaços físicos e as relações da vida humana com a paisagem, em seus desdobramentos

político-sociais, culturais, econômicos e humanos.

d) Compreender a produção e o papel histórico das instituições sociais, políticas e

econômicas, associando-as às práticas dos diferentes grupos e atores sociais, aos princípios

que regulam a convivência em sociedade, aos direitos e deveres da cidadania, à justiça e à

distribuição dos benefícios econômicos.

e) Traduzir os conhecimentos sobre a pessoa, a sociedade, a economia, as práticas

sociais e culturais em condutas de indagação, análise, problematização e protagonismo diante

de situações novas, problemas ou questões da vida pessoal, social, política, econômica e

cultural.

f) Entender os princípios das tecnologias associadas ao conhecimento do indivíduo, da

sociedade e da cultura, entre as quais as de planejamento, organização, gestão, trabalho de

equipe, e associá-las aos problemas que se propõem resolver.

g) Entender o impacto das tecnologias associadas às ciências humanas sobre sua vida

pessoal, os processos de produção, o desenvolvimento do conhecimento e a vida social.

h) Entender a importância das tecnologias contemporâneas de comunicação e

informação para o planejamento, gestão, organização, fortalecimento do trabalho de equipe.

i) Aplicar as tecnologias das ciências humanas e sociais na escola, no trabalho e outros

contextos relevantes para sua vida.

§ 1º A base nacional comum dos currículos do ensino médio deverá contemplar as três áreas

do conhecimento, com tratamento metodológico que evidencie a interdisciplinaridade e a

contextualização.

§ 2º As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento interdisciplinar e

contextualizado para:

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a) Educação Física e Arte, como componentes curriculares obrigatórios;

b) Conhecimentos de filosofia e sociologia necessários ao exercício da cidadania.

ULYSSES DE OLIVEIRA PANISSET

Presidente da Câmara de Educação Básica

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ANEXO 3

Presidência da República

Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos

MENSAGEM Nº 1.073, DE 8 DE OUTUBRO DE 2001.

Senhor Presidente do Senado Federal,

Comunico a Vossa Excelência que, nos termos do parágrafo 1o do artigo 66 da

constituição Federal, decidi vetar integralmente, por contrariedade ao interesse público, o

Projeto de Lei no 9, de 2000 (n

o 3.178/97 na Câmara dos Deputados), que "Altera o art. 36 da

Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação

nacional".

Ouvido, o Ministério da Educação assim se manifestou:

Razões do veto:

"A Constituição Federal em seu art. 210, caput, preceitua:

"Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a

assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e

regionais."

Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, in Comentários à Constituição do Brasil,

lecionam que na fixação do conteúdo mínimo para o ensino fundamental devem ser levadas

em conta as diferenças regionais de desenvolvimento socioeconômico, que devem estar

presentes em benefício da própria unidade federada em que encontra instituído o

estabelecimento de ensino. O conteúdo mínimo tem como finalidade manter a unidade dos

currículos em todo o País e ao mesmo tempo manter uma parte diversificada, capaz de atender

às peculiaridades e características de cada região, aos planos das escolas e às diferenças

individuais existentes e necessárias dos educandos.

Sabiamente, a LDB (Lei no 9.394/96), em atenção às peculiaridades e características

de cada região, em seu art. 9o, inciso IV, atribuiu à União a incumbência de "estabelecer, em

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colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes

para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e

seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum".

Acrescente-se que o art. 211 da Constituição Federal, em seu § 3o, preceitua que os

Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio.

Assim, o projeto de inclusão da Filosofia e da Sociologia como disciplinas

obrigatórias no currículo do ensino médio implicará na constituição de ônus para os Estados e

o Distrito Federal, pressupondo a necessidade da criação de cargos para a contratação de

professores de tais disciplinas, com a agravante de que, segundo informações da Secretaria de

Educação Média e Tecnológica, não há no País formação suficiente de tais profissionais para

atender a demanda que advirá caso fosse sancionado o projeto, situações que por si só

recomendam que seja vetado na sua totalidade por ser contrário ao interesse público.

Muito embora o art. 210 da Constituição Federal se refira à fixação de conteúdos

mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum, entendo

que os princípios inerentes de tal diploma sejam observados para a fixação dos currículos e

conteúdos mínimos para o ensino médio, a cargo da União, em colaboração com os Estados, o

Distrito Federal e os Municípios, conforme preceitua o art. 9o, inciso IV, da Lei n

o 9.394/96.

Por derradeiro, tecnicamente, a proposta contida no projeto, se viável, deveria ser

inserida no art. 26 da Lei no 9.394/96, o qual em seu § 1

o estabelece que os currículos do

ensino fundamental e médio devem abranger, obrigatoriamente, o estudo da língua portuguesa

e da matemática."

Estas, Senhor Presidente, as razões que me levaram a vetar o projeto em causa, as quais

ora submeto à elevada apreciação dos Senhores Membros do Congresso Nacional.

Brasília, 8 de outubro de 2001.

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ANEXO 4

PROJETO DE LEI N° _____, DE 2003 (Do Sr. Dr. Ribamar Alves)

Altera dispositivos do art. 36 da Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.

O congresso Nacional decreta:

Art. 1º É acrescentado o seguinte inciso IV ao artigo 36 da Lei nº 9394, de 20 de dezembro de

1996:

―Art. 36..............................................

IV – Serão incluídas a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as

séries do Ensino Médio.‖

Art. 2º É suprimido o inciso III do § 1º do art. 36 da Lei n° 9394, de 20 de dezembro de 1996.

Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua Publicação.

Art. 4º Revogam-se as disposições em contrário.

JUSTIFICAÇÃO

Herdamos do mundo grego não apenas semântica estrutural da língua, mas o processo

de inserção do homem na existência mediante a atividade do pensar. Com efeito, um dos

ideais gregos que alicerçam tal consideração é a idéia de que é tarefa primordial do ser

humano o desenvolvimento intelectual de sua personalidade. Por isso, a filosofia, a idéia

grega do amor ao saber pelo saber , pressupõe o necessário exercício do pensar como

fundamento do conhecer. O desdobrar deste ideal nos direciona, essencialmente, a dois

problemas básicos a educação e a política. É impossível, para os gregos, desvincular educação

e política só é possível na Estado e através dele.

Assim situando-nos na realidade histórica do Brasil contemporâneo, sem jamais perder

de vista a precipua influência dos ideais gregos relativos à educação, cultura e política faz-se

urgente uma reflexão sobre a atual situação da Filosofia no referido contexto., mais

especificamente à problemática de sua inclusão, ou re-inclusão, nas escolas brasileiras e seus

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currículos do Ensino Médio.

A re-inclusão da Filosofia no currículo do Ensino Médio pode nos parecer redundante,

mas extemporânea, reafirmar a necessidade da filosofia nos currículos de Ensino Médio,

mesmo em pleno regime democrático é sobretudo uma conseqüência de anos de luta, o que

nos remonta a sua subtração ainda durante o regime militar. Algo que nos faz historiar a

respeito de fatos ocorridos no limiar dos anos oitenta, quando a então Ministra do Governo

Figueiredo professora Ester Ferraz, após receber uma comissão de professores, chegou a

recomendar às secretarias de educação e conselhos estaduais de educação, que a Filosofia

fosse acrescentada como disciplina nos currículo do então segundo grau, hoje Ensino Médio.

É obvio que esta atitude não foi fortuita, mas como dissemos, fruto de uma longa luta,

iniciada uma década anterior, com direito a encontros nacionais e fundação de entidades

representativas. Contudo, o que importa destacar é a simetria entre as atitudes, (ou ausência

dela) que intercalam os dois tempos históricos, o ontem e o hoje. O que se revela no mínimo

curioso, posto que uma Ministra do regime autoritário faz uma recomendação que caberia ao

regime democrático executar com grande aptidão.

É preeminente o discurso que a educação brasileira vem tomando nos últimos anos,

especialmente, após a aprovação da lei 9394/96 (LDB). Há toda uma fala que provoca

referendar o tema da educação como a mais avançada que tivemos na historia brasileira ―uma

revolução silenciosa‖. As Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio- DCNEM

impelem o caminho que prima pelos ―princípios estéticos, políticos e éticos que inspiram a

LDB e, por conseqüência, devem inspirar o currículo‖, posto que estes conceitos

fundamentaram o novo ensino médio brasileiro. Elas informam no seu bojo um espirito

democrático que busca fundamentar um novo Ensino Médio e, segundo, este documento do

Ministério da Educação, que só ratifica substancialmente a importância e necessidade da

Filosofia, quando infere que s fundamentos do Ensino Médio se assentam sob os conceitos da

estética, política e ética. Ora, apenas o fato de se chamar a discussão para os fundamentos,

seria motivo de sobra para que a filosofia atravessasse todo esse ciclo educacional como

disciplina. Para sermos mais específicos, os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN´s em

seus Parecer CEB 15/98, irrompem com esta mesma posição numa louvável citação do

filósofo francês Gilles Gaston Grander;

“(...) A filosofia sempre teve conexões intimas e duradouras

com os resultados das ciências e das artes e, no esforço de pensar

seus fundamentos muitas vezes foi além delas, abrindo campos para

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novos saberes e novas experiências” (GRANDER; apud. BRASIL,

MEC. 1998, p.329).

O referido parecer das diretrizes decide, além da orientação acima, considerar como

fundamentos do ensino médio conceitos que estão intimamente ligados à Filosofia,

conceitos que estão na sua gênese. O que o parecer supra mencionado chama de estética da

sensibilidade, política da igualdade de ética da identidade não é senão aquilo que nutre a

bagagem conceptual da Filosofia, suas categorias de discurso mais originais ao longo dos

seus vinte e cinco séculos. Falar então da Filosofia como disciplina no currículo do Ensino

Médio passa a ser nada mais que uma condição sine qua non, principalmente, se tomada na

conceito disciplina, tal como o próprio Ministério da Educação compreende.

“(...) A expressão “disciplina escolar” refere-se a uma seleção

de conhecimentos que são ordenados e organizados para serem

apresentados ao aluno. Recorrendo, como apoio a essa apresentação

um conjunto de procedimentos didáticos e metodológicos e de

avaliação. (...) a disciplina escolar é ainda mais ampla pois incha

programas ou formas ordenamento, sequenciação, os métodos para o

seu ensino e a avaliação da aprendizagem. A disciplina escolar supõe

ainda uma teoria da aprendizagem adequada à idade a quem vai ser

ensinada (...) (Brasil. MEC., 1998. p.88)

Esse conceito utilizado pelos PCN´s só ratifica a presença só ratifica a presença da

filosofia como disciplina no Ensino Médio, uma vez que considera relevante as questões

especifico de determinada área como balizamento, método de investigação e recuso à teoria.

No mesmo sentido é a afirmação do professor Celso Favaretto.

“A filosofia deve ser considerada no ensino médio como uma disciplina,

ao nível dos demais. Como “disciplina”, ao nível das demais. Como

“disciplina”, é um conjunto específico de conhecimentos, com

características próprias, sobre ensino, formação, valores, etc. (...) Como

“disciplinas” ainda, ela mescla conteúdo cultural a partir de seus

materiais, mecanismos e métodos, como qualquer outra. Está vinculada

às necessidades de formação e saber inscritos culturalmente e

solicitados socialmente.

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A mesma orientação é dada para o ensino da filosofia mais adiante nos PEN‘s, que

avança duplamente ao qualificar a Filosofia como um conhecimento ao mesmo tempo é

específico e articulador, que pelo diálogo com os demais campos epstemológicos, colabora

com uma compreensão da realidade complexa e dinâmica.

“(...) possuindo uma natureza, a rigor, transdisciplinar

(metadisciplinar), a Filosofia pode cooperar decisivamente no

trabalho de articulação dos diversos sistemas teóricos e conceptuais

curriculares (...) É oportuno recomendar expressamente que não se

pode de nenhum modo dispensar a presença de um profissional na

área, (...) para proporcionar a construção de competências de leitura

e análise filosófica dos diversos textos em que o conhecimento de

filosofia é um saber altamente especializado e que portanto, não se

pode ser adequadamente tratado por leigos (...) “, (BRASIL. MEC.,

1998. P.342)

Como ―transdisciplinar‖ a Filosofia não significa outo-dissolução entre as demais,

uma vez que transdisciplinaridade não é uma condição exclusiva da Filosofia, mas de todo e

qualquer conhecimento que queira transpor as barreiras instituídas pelo positivismo que

abateu-se sobre a produção do conhecimento, sobretudo, na educação. ―A

transdisciplinaridade, como prefixo ―trans‖ indica, diz respeito àquilo que está ao mesmo

tempo entre as disciplinas, através das diferenças e além de qualquer disciplina. Seu objetivo

é a compreensão do mundo, presente, para qual um dos imperativos é a unidade do

conhecimento‖ (NICOLESCU, 1999). A Filosofia sim tem o papel de articuladora, uma vez

que a transdisciplinaridade é o que impõe sua condição como disciplina e, não sua

naturalidade. O filosofo de Kõnigsberg pensava a Universidade como um sujeito-critico de

suas próprias práticos, que pudesse implementar a partir dessa instância crítica, indagações,

sem regras, das condições de possibilidades dos discursos e das próprias regras que ali

circulavam (RINESI, 2001, p 90-91). Para Kant, a Filosofia, o ―tribunal da razão‖, é o fórum

mais legitimo onde se institui e se julga qualquer regra. Se a Filosofia, tem essa

responsabilidade na Universidade, porque não no Ensino Médio? Na verdade a fala dos

PCN´s ao colocar a Filosofia como articuladora revela senão esse caráter, posto que a

Filosofia é uma modalidade do conhecimento que põe a questão sobre si mesma, noutros

termo, põe a questão da consciência critica da própria consciência filosófica. Sua

características transdisciplinar tem ai sua justificativa contumaz.

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Como saber, ou conhecimento altamente especializado, será impossível a devida

aplicação de temas ou conteúdos filosóficos em outras disciplinas, por docentes que não

sejam adequadamente habilitados para a realização dessa atividade. Isso faz o texto da LDB

insuficiente, já que não considera a especialidade da área em tela. Nesse sentido, quanto a

Filosofia ao currículo da Ensino Médio, cabe ainda ressaltar a fala professor Franklin

Leopoldo e Silva (apud: Pe, Roque, 1997)

“Existe, portanto, um lado pelo qual o filosofia ocupa na

estrutura curricular posição análogo a qualquer outra disciplina: há

o que aprender., há o que memorizar, há técnicas a serem dominadas,

há, sobretudo, uma terminologia especifica a ser devidamente

assimilada. Não devemos nos iludir com o adágio “não se aprende

filosofia”, algo que pode levar a um comodismo ou a uma

descaracterização da disciplina. O que a filosofia tem de diferente das

outras disciplinas é que o ato de ensina-la se confunde com a

transmissão do estilo reflexivo, e o ensino da Filosofia somente

logrará algum existe na medida em qual estilo for efetivamente

transmitido. No entanto, isto ocorre de forma concomilante à

assimilação dos conteúdos específicos, da carga de informação que

pode ser transmitida de variadas formas. O estilo reflexivo não pode

ser ensinada formal e diretamente, mas pode ser suficientemente

ilustrado quando o professor e os alunos refazem o percurso da

interrogação filosófica e identificam a maneira peculiar pela qual a

Filosofia constrói suas questões e suas respostas.

Ora, é desta maneira especifico que a Filosofia realiza o

trabalho de articulação cultural...Pensar e repensar a cultura não se

confunde com compatibilidade de métodos e sistematização de

resultados: é uma atividade autônoma de índole critica. Não devemos,

portanto entender que a Filosofia estará no currículo do Ensino

Média em função das outras disciplinas, quase num papel de

assessora metodológica. No entanto, seria grave infidelidade ao

espírito filosófico entender que a Filosofia virá se agregar ao

currículo apenas para torna-se mais uma parte é um todo desconexo,

ou pelo menos como profundos problemas de integração e conexão.

Nesse sentido, não representa prestação dizer que a Filosofia não é

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apenas mais uma disciplina: ao dize-lo, estaremos apenas

reafirmando a natureza do estudo filosófica. Tem uma função de

articulação do indivíduo enquanto personagem social, se entendemos

que o autêntico processo de socialização requer a consciência e o

reconhecimento da identidade social e uma compreensão critica da

relação homem-mundo.”

Na realidade contemporânea, na atualidade, tanto ou mais que em outras épocas

históricas, sociais e políticas, a Filosofia deve estar presente para propiciar a análise e

compreensão de problemas, envolvendo questões emergentes da diversidade dos contextos.

Vivemos numa época do encontro das culturas, do fim do mito do discurso único e onde as

legitimações ideológicas estão sendo desautorizadas. Vivemos num cenário que proporciona

choques e tensionamentos que incidem rapidamente sobre fatos sociais, políticos, históricos,

econômicos e que clamam por uma compreensão que somente a Filosofia pode proporcionar à

altura.

A filosofia nos currículos da Ensino Médio não pode atuar num espaço restrito,

dissolvendo-a em modalidades temáticas de outras disciplinas. Ora, a Filosofia tem no atual

contexto político do fortalecimento das instituições democráticas do país um dos papéis mais

relevantes neste projeto, qual seja, o de contribuir para uma formação e fundamentação da

opinião pública brasileira, não deixando somente a cargo da imprensa, que muitas vezes se vê

à deriva com o cerco do fenômeno midiático, que, ao modo do Rei Midas, transforma em

ouro, ou melhor, mercado, tudo o que toca. Ela oporá, por aporias. Assim, contribuirá para

uma opinião pública responsável e crítica, convidando para o debate reflexivo, introduzindo

valores que se assentam sobre aquela tradição grega que falávamos inicio q que em suma, é de

vocação política. Para nós, é o que pode construir instituições democráticas e consolidar a

democracia verdadeiramente num país como o Brasil.

Sala das Sessões, em ____/____/____

Deputado Dr. Ribamar Alves

PSB/MA

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ANEXO 5

PARECER HOMOLOGADO(*)

(*) Despacho do Ministro, publicado no Diário Oficial da União de 14/8/2006

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO

INTERESSADO: Ministério da Educação/Secretaria de Educação Básica UF: DF

ASSUNTO: Inclusão obrigatória das disciplinas de Filosofia e Sociologia no currículo do

Ensino Médio.

RELATORES: Cesar Callegari, Murílio de Avellar Hingel e Adeum Hilário Sauer

PROCESSO nº: 23001.000179/2005-11

PARECER CNE/CEB Nº:

38/2006

COLEGIADO:

CEB

APROVADO EM:

7/7/2006

I – RELATÓRIO

Histórico

Em 24/11/2005, foi protocolado no Conselho Nacional de Educação o Oficio nº

9647/GAB/SEB/MEC, de 15 de novembro de 2005, pelo qual o Secretário de Educação

Básica do Ministério da Educação encaminhou, para apreciação, documento anexado sobre as

“Diretrizes Curriculares das disciplinas de Sociologia e Filosofia no Ensino Médio”,

elaborado pela Secretaria com a participação de representantes de várias entidades.

O documento juntado contém uma série de considerações favoráveis à inclusão

obrigatória de disciplinas de Filosofia e Sociologia no currículo do Ensino Médio.

Nesse documento, em sua ―Parte I – Do contexto legal‖, entre outras considerações, é

lembrado o artigo 36, § 1o, inciso III, da Lei nº 9.394/96 – LDB:

“§ 1o. Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão

organizadas de tal forma que ao final do Ensino Médio o educando

demonstre:

III – domínio dos conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários

ao exercício da cidadania.‖

Em contraposição, é lembrado o artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98,

fundamentada no Parecer CNE/CEB nº 15/98:

“§ 2º. As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar

tratamento interdisciplinar e contextualizado para: b) Conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício

da cidadania.”

É referido, ainda, o Parecer CNE/CEB nº 22/2003, no qual, ao tratar de

―questionamento sobre currículos da Educação Básica, das escolas públicas e particulares‖,

e recorrendo à LDB e à Resolução CNE/CEB nº 3/98, este Colegiado ponderou que ―não há,

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dentro da legislação pertinente, obrigatoriedade de oferecer Filosofia e Sociologia como

disciplinas.‖

Entretanto, com apoio no disposto na LDB, os proponentes desenvolvem

argumentação que conclui que Filosofia e Sociologia devem passar a ser entendidas como

disciplinas obrigatórias.

A ―Parte II - Do contexto pedagógico‖, do documento anexado, está dividida em três

títulos:

―1 – Filosofia‘

‗2 – Sociologia‘

‗3 - Filosofia e Sociologia no currículo do Ensino Médio‖.

Nos dois primeiros, entre várias considerações, são apresentadas razões que

justificam a inclusão de cada uma como disciplina obrigatória no currículo do Ensino Médio,

contrapondo-se, em especial, às Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio

(Parecer CNE/CEB nº 15/98 e Resolução CNE/CEB nº 3/98).

No terceiro título, também entre outras considerações, são confrontadas as Diretrizes

Curriculares Nacionais para o Ensino Médio – DCNEM com os Parâmetros Curriculares

Nacionais para o Ensino Médio – PCNEM, salientando que estes, diferentemente das

primeiras, apresentam opção por estruturação disciplinar, ―apenas fazendo certa concessão à

imposição que as DCNEM determinaram de se buscar a interdisciplinaridade‖.

Indagam, ainda, quanto ao tratamento preconizado pelas DCNEM: ―como garantir que

os ‗conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania‘ sejam

tratados efetivamente pelas demais disciplinas escolares, ou seja, como dizem as DCNEM,

com ‗tratamento interdisciplinar e contextualizado‖?

Ao final da argumentação, acabam por propor que seja alterada a Resolução

CNE/CEB nº 3/98, no seu artigo 10º, § 2º, com a supressão da alínea b e inclusão do § 3º com

a seguinte redação:

“As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento

de componente disciplinar obrigatório à Filosofia e à Sociologia”.

Antes de passar à análise da proposta, registra-se que, em 1º de fevereiro de 2006, a

Câmara de Educação Básica promoveu reunião, para a qual foram convidadas mais de 30

entidades e pessoas, para discussão do tema ―Alteração das Diretrizes Curriculares Nacionais

para o Ensino Médio/inclusão de componentes curriculares obrigatórios deFilosofia e

Sociologia‖, com base na proposta da Secretaria de Educação Básica do MEC.Participaram

dessa audiência 20 pessoas, entre sociólogos, professores de Filosofia e de Sociologia,

representantes de entidades, estudantes e outros profissionais. Foram apresentados e

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discutidos os vários aspectos concernentes à reivindicação da inclusão obrigatória de

disciplinas de Filosofia e Sociologia no currículo do Ensino Médio, mediante alteração na

Resolução CNE/CEB nº 3/98.

A mesma preocupação com o ensino da Filosofia e da Sociologia está presente em

outras instâncias, inclusive no Legislativo, em que se registram iniciativas parlamentares

visando a sua inclusão no currículo do Ensino Médio: Projeto de Lei da Câmara dos

Deputados n° 1.641, de 2003, e Projeto de Lei do Senado n° 4, de 2004.

Análise do Mérito

Preliminarmente, reitera-se a importância e o valor da Filosofia e da Sociologia para

um processo educacional consistente e de qualidade na formação humanística de jovens que

se deseja sejam cidadãos éticos, críticos, sujeitos e protagonistas. Essa relevância é

reconhecida não só pela argumentação dos proponentes, como por pesquisadores e

educadores em geral, inclusive não filósofos ou não sociólogos.

O legislador, por seu lado, reconheceu essa importância ao destacar nominalmente os

conhecimentos de Filosofia e de Sociologia, dando-lhes valor essencial e não acidental, com

caráter de finalidade do processo educacional do Ensino Médio. (artigo 36, § 1o, inciso III, da

Lei nº 9.394/96).

Não é demais destacar que, na ótica da LDB, os conhecimentos de Filosofia e

Sociologia são justificados como ―necessários ao exercício da cidadania” (artigo 36, § 1o,

inciso III, da Lei nº 9.394/96). Com os demais componentes da Educação Básica, devem

contribuir para uma das finalidades do Ensino Médio, que é a de ―aprimoramento como

pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e

do pensamento crítico‖ (art. 35, inciso II, da LDB). E devem, ainda, mais especialmente,

seguir a diretriz de ―difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e

deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática‖ (art. 27, inciso I, da

LDB).

Outro ponto a considerar é a realidade, expressa na adoção crescente do ensino de

Filosofia e de Sociologia pela maioria das redes de escolas públicas estaduais. Segundo

informação do MEC, em 17 estados da Federação, a Filosofia e a Sociologia foram incluídas

no currículo, sendo optativas em 2 deles. Muitas escolas particulares, em todo o país, por seu

lado, também, decidiram livremente a sua inclusão.

Essa inclusão crescente não foi determinada por lei federal ou por norma nacional,

mas, sim, pelos próprios sistemas estaduais de ensino para suas redes públicas escolares, seja

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por iniciativa própria, seja por força de legislação estadual, em todos os casos como resultado

de uma persistente mobilização de amplos setores ligados à educação, que defendem a

Sociologia e a Filosofia no contexto dos esforços de qualificação do Ensino Médio no Brasil.

Esses avanços, ocorridos na maioria dos Estados, acabaram por criar uma situação

desigual no acesso aos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia. Nos Estados que ainda

não incluíram o ensino da Filosofia e da Sociologia no currículo do Ensino Médio, há toda

uma população jovem posta à margem do acesso aos seus conhecimentos. Essa desigualdade

ocorre, igualmente, na rede particular de ensino, na qual, malgrado a iniciativa de inclusão por

uma parte das escolas, muitas outras não o fizeram.

Essa reflexão impõe a manifestação deste Conselho, propiciadora de uma equalização,

visando à igualdade de direitos de acesso a esses conhecimentos no Ensino Médio do país.

Uma análise cuidadosa da legislação e das normas pertinentes à matéria permite reunir os

argumentos favoráveis à presença da Filosofia e da Sociologia no currículo do Ensino Médio,

inclusive na forma de disciplinas, nesse caso sempre e quando os sistemas de ensino

estruturarem os currículos com o formato disciplinar.

Já em maio de 1997, poucos meses após a promulgação da LDB, esta Câmara de

Educação Básica cuidava indiretamente da questão, pelo Parecer CNE/CEB nº 5/97, que

tratou de ―Proposta de Regulamentação da Lei 9.394/96‖. No item 3.1, referente às

Disposições Gerais sobre a Educação Básica, indicava que:

―A lei trata de uma base comum nacional na composição dos

currículos do ensino fundamental e do ensino médio. Caberá à

Câmara deEducação Básica do Conselho Nacional de Educação

“deliberar sobrediretrizes curriculares”, a partir de propostas

oferecidas pelo Ministério da Educação e do Desporto, nelas

definidas, é claro, essa base comum naciona,l

por sua vez, a ser complementada com uma parte diversificada, capaz

de atender as condições culturais, sociais e econômicas de natureza

regional.

Essa diversificação haverá de ser feita pelos órgãos normativos dos

sistemas e, principalmente, pelas próprias instituições de ensino, à luz

do interesse dademanda em cada uma (art. 26). Além desse

complemento curricular (parte diversificada), o legislador impôs (art.

27), tanto nas finalidades como sob a forma de diretrizes, objetivos

que não se enquadram como componentes curriculares

propriamente ditos, visto que abrangem a base comum nacional e a

diversificação, ou seja, não de natureza ético/social. Dizem respeito a

valores fundamentais ao interesse social, direitos e deveres dos

cidadãos, envolvendo respeito ao bem comum e à ordem democrática,

como fundamentos da sociedade. Abrangem formação de atitudes,

preparação para o trabalho, para a cidadania e para a ética nas

relações humanas.

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106

Sobre o assunto, estudos estão em andamento neste Colegiado

visando à definição da base comum nacional e da especificação dos

conteúdos definidos em lei, genericamente, como “o estudo da língua

portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e

natural e da realidade social

e política, especialmente do Brasil”. Além do ensino da arte como

“componente curricular obrigatório nos diversos níveis da educação

básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos”.

A tais componentes curriculares, somam-se a “educação física,

ajustando-se às faixas etárias e às condições da população escolar,

sendo facultativa nos cursos noturnos” e o ensino de pelo menos uma

língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará a cargo da

comunidade escolar, dentro das possibilidades da instituição.‖ (gg.

nn.)

Note-se que a diversidade de termos correlatos utilizados pela LDB

(componente,conteúdo, conhecimento, disciplina, estudo, matéria, ensino) foi unificada, nesse

Parecer, que adotou o termo ―componente curricular‖. Com efeito, na Seção I – Das

Disposições Gerais, e na Seção IV – Do Ensino Médio, que aqui interessa mais de perto,

verificamos equivalente ocorrência desses termos, com sentido correlato. O termo

―componente curricular‖, com este sentido abrangente, aliás, é utilizado na própria LDB,

como, por exemplo, no seu art. 24, inciso IV:

“IV – poderão organizar-se classes ou turmas, com alunos de séries

distintas, com níveis equivalentes de adiantamento na matéria, para o

ensino de línguas estrangeiras, artes, ou outros componentes

curriculares;” (g.n.)

De todo modo, cabe assinalar que o Parecer CNE/CEB nº 5/97, no item 3.4, referente

ao Ensino Médio, já profetizava que:

“Muito provavelmente, se pode antecipar a dúvida que será levantada

nos sistemas de ensino e nas instituições que os integram, quanto à

forma aser adotada, visando ao domínio dos conhecimentos de

Filosofia e Sociologia”.

Verifica-se, preliminarmente, que não há relação direta entre obrigatoriedade e

formato ou modalidade do componente curricular (seja chamado de componente, conteúdo,

conhecimento, disciplina, estudo, matéria ou ensino). Assim, o art. 26 da LDB, ao tratar dos

currículos do Ensino Fundamental e Médio, em seus parágrafos, não determina que forma de

organização os respectivos estudo, conhecimento ou ensino deverão ter, ao comporem a base

nacional comum e a parte diversificada. Todos os componentes referidos são obrigatórios,

mas, sem determinação de forma ou modalidade. Mais diretamente é colocada essa

dissociação no art. 26-A, § 2º, relativo ao ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira, o

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qual é obrigatório, porém, seus conteúdos ―serão ministrados no âmbito de todo o currículo

escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras‖.

O Parecer CNE/CEB nº 16/2001, referente à ―consulta quanto à obrigatoriedade da

Educação Física como componente curricular da Educação Básica e sobre a grade

curricular do curso de Educação Física da rede pública de ensino‖, tratou dessa questão:

―Portanto, o exame da LDB e do Parecer CNE/CEB nº 5/97, que a

esclarece, não permite concluir que os componentes curriculares

devam configurar disciplinas de mesmo nome. Antes disso, deverão

fazer parte da Proposta Pedagógica da Escola, que detalhará a

modalidade na qual serão abordados ao longo do trabalho

pedagógico.

Para investigar mais profundamente a vinculação obrigatória ou não

entre um componente curricular obrigatório e uma disciplina escolar

específica, caberia uma analogia entre a Educação Física e a

Educação Ambiental. A Lei 9.795/99 estabelece a Educação

Ambiental como componente essencial e permanente da educação

nacional, devendo estar presente, de forma articulada, em todos os

níveis e modalidades do processo educativo. Não resta dúvida que se

trate de componente curricular obrigatório na escola básica

inclusive. No entanto, em seu artigo 10, afirma:

„Art 10. A educação ambiental será desenvolvida como uma prática

educativa integrada, contínua e permanente em todos os níveis e

modalidades do ensino formal.

§ 1o. A educação ambiental não deve ser implantada como disciplina

específica no currículo de ensino.‟

Note-se, pois, que a mesma lei que determina a inclusão de um

componente curricular recomenda que ele não constitua disciplina

específica. A legislação em vigor tem outras evidências da

desvinculação direta e automática entre componentes curriculares e

disciplinas específicas.‟

(...)

Conclui-se, portanto, que não existe vinculação direta entre

componente curricular, mesmo obrigatório e disciplina específica no

currículo de ensino.‖

(...)

Examinemos a situação do Ensino Médio. As Diretrizes Curriculares

Nacionais para o Ensino Médio (Res. CNE/CEB nº 3/98) dispõem da

mesma forma em relação à constituição de Proposta Pedagógica da

Escola contemplando três áreas de conhecimento, que não

correspondem biunivocamente a disciplinas:

“Art. 10 A base nacional comum dos currículos do Ensino Médio será organizada em áreas de conhecimento, a saber:

I - Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, (...)

II - Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias, (...)

III - Ciências Humanas e suas Tecnologias, (...)

§ 1º A base nacional comum dos currículos do Ensino Médio deverá

contemplar as três áreas do conhecimento, com tratamento

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metodológico que evidencie a interdisciplinaridade e a

contextualização.

§ 2º As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar

tratamento

interdisciplinar e contextualizado para:

a) Educação Física e Arte, como componentes curriculares

obrigatórios;

b) Conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício

da cidadania.”

Deve-se notar, novamente, que nenhuma das áreas de conhecimento

configura disciplina escolar tradicional.‖(gg.nn.)

O Parecer CNE/CEB nº 22/2003, que tratou de ―questionamento sobre currículos da

Educação Básica das escolas públicas e particulares‖, além de explicitar que ―não há, dentro

da legislação pertinente, obrigatoriedade de oferecer Filosofia e Sociologia como

disciplinas‖, também, acrescentou que o artigo 12 da Lei nº 9.394/96 dispõe que:

“Os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as

do seu sistema de ensino, terão a incumbência de: I – elaborar sua

proposta pedagógica”; que confere aos estabelecimentos de ensino a

competência de construírem os seus projetos pedagógicos atendendo

a toda a legislação existente e dando-lhes o tratamento curricular

que julgarem compatível com a sua proposta de trabalho, como por

exemplo, considerar alguns assuntos como temas transversais.

Ademais, a atual LDB não contempla mais a existência de

currículos mínimos com disciplinas estanques, como muito bem

explicitam os pareceres e resoluções desta Câmara de Educação

Básica, que definiram Diretrizes Curriculares Nacionais para os

vários níveis e modalidades da Educação Básica.” (gg.nn.)

A Filosofia e a Sociologia são explicitamente mencionadas, apenas, no art. 36, § 1º,

inciso III, da LDB, o qual determina que o currículo do Ensino Médio observará o disposto na

Seção I do Capítulo II (onde está o art. 26) e as seguintes diretrizes:

“Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão

organizados de tal forma que ao final do Ensino Médio o educando

demonstre:

I – (...);

II – (...);

III – domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia

necessários ao exercício da cidadania.”

Quanto aos lembrados Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio –

PCNEM, deve-se esclarecer, primeiramente, que são subsídios valiosos, porém não são

normas, nem são de aplicação obrigatória, como o são as DCNEM. No que se refere à questão

em tela, se os PCNEM contemplam a Filosofia e a Sociologia, não deixam de ressaltar que:

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―É importante compreender que a Base Nacional Comum não pode

constituir uma camisa-de-força que tolha a capacidade dos sistemas,

dos estabelecimentos de ensino e do educando de usufruírem da

flexibilidade que a lei não só permite, como estimula. Essa

flexibilidade deve ser assegurada, tanto na organização dos

conteúdos mencionados em lei, quanto na metodologia a ser

desenvolvida no processo de ensino-aprendizagem e na avaliação.‘

(gg.nn.)

(...)

‗O fato de estes Parâmetros Curriculares terem sido organizados em

cada uma das áreas por disciplinas potenciais não significa que

estas são obrigatórias ou mesmo recomendadas. O que é obrigatório

pela LDB ou pela Resolução nº 03/98 são os conhecimentos que

estas disciplinas recortam e as 6 competências e habilidades a eles

referidos e mencionados nos citados documentos.‖ (gg.nn.)

A Secretaria de Educação Básica do MEC promoveu, em 2004, a elaboração do

documento ―Orientações Curriculares do Ensino Médio‖, destinado a subsidiar as discussões

de seminários regionais, realizados com o fito de consolidar a organização curricular do

Ensino Médio (in site do MEC: www.mec.gov.br). No título referente à Filosofia, ao tratar

das relações entre a LDB, as DCNEM e os PCNEM, encontra-se a consideração de que:

“Ao contrário da legislação, não só os PCN dão tratamento

disciplinar à Filosofia como, de modo singular, defendem sua

obrigatoriedade. É evidente que, não podendo tornar obrigatório o

que a LDB apenas faculta, os PCN tomam a defesa da área e

recomendam a presença obrigatória de um profissional de Filosofia

no Ensino Médio” (g.n.)

Em resumo, há uma diretriz de que ao final do Ensino Médio, o educando demonstre,

entre outros, o domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao

exercício da cidadania.

Quanto ao formato de disciplina, não há sua obrigatoriedade para nenhum

componente curricular, seja da base nacional comum, seja da parte diversificada. As escolas

têm autonomia quanto à sua concepção pedagógica e à formulação de sua correspondente

proposta curricular, ―sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o

recomendar‖, dando-lhe o formato que julgarem compatível com a sua proposta de trabalho.

O fato é que poucas escolas adotam concepções mais flexíveis e inovadoras, que a

LDB permite e as DCNEM incentivam, com a autonomia que dão às instituições educacionais

e aos sistemas de ensino, concepções essas que conduzam à construção de currícul os de

arquitetura diversa da estruturada habitualmente por disciplinas (por exemplo, por unidades

de estudos, atividades e projetos interdisciplinares).

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A maioria das escolas mantém a concepção curricular mais comum, estruturada em

disciplinas, entendidas estas, na prática, como recortes de áreas de conhecimento,

sistematizados e distribuídos em aulas ao longo de um ou mais períodos escolares, com cargas

horárias estabelecidas em calendário, sob a responsabilidade de docentes específicos e

devidamente habilitados para cada uma delas.

Para essas escolas, as dúvidas quanto à capacidade de efetivação do prescrito na LDB

e nas DCNEM são maiores, pois, se os professores estão comprometidos com o

desenvolvimento do programa de suas disciplinas, dificilmente terão condições de dar

tratamento interdisciplinar e contextualizado aos necessários conhecimentos de Filosofia e

Sociologia, ou mesmo outros, tão requeridos para o exercício da cidadania e para atender ao

dever de ―vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social‖, além das legalmente

obrigatórias História e Cultura Afro-Brasileira e Educação Ambiental, esta assim definida

pela Lei nº 9.795/99.

Essas dúvidas não desmerecem os professores, pois decorrem, muito, de outros

fatores, que vão, desde o tipo de formação nas licenciaturas, até o generalizado regime

―horista‖ de trabalho, passando pelo processo de gestão da escola, por sua proposta

pedagógica e, sobretudo, por seu zelo em executá-la tal como concebida.

Voltando à questão objeto deste Parecer, constata-se e reafirma-se que é obrigatório

atender à diretriz de que os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação sejam

organizados de tal forma que, ao final do Ensino Médio, o educando demonstre, entre

outros, o domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício

da cidadania.

Coloca-se, então, a questão: como garantir a eficácia dessa diretriz, se não forem

efetivados processos pertinentes de ensino e aprendizagem que propiciem esses

conhecimentos?

As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio - DCNEM deram

interpretação que adiantou, em parte, sua solução, pois considerou, na composição e no

tratamento a ser dado ao currículo do Ensino Médio, a Filosofia e a Sociologia como

equiparadas à Educação Física e à Arte, estas, sim, contempladas pelo art. 26 da LDB como

componentes curriculares dessa etapa da Educação Básica.

A propósito dos componentes Educação Física e Arte, contemplados pelo art. 26, sem

ressalva (como a do art. 26-A, § 2º, o faz para História e Cultura Afro-Brasileira), não podem

deixar de ter o mesmo tratamento que os demais componentes indicados no mesmo artigo.

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Assim, no caso de estruturação curricular por disciplinas, Educação Física e Arte

devem ser incluídas e tratadas como tais. História e Cultura Afro-Brasileira (art. 26-A da

LDB) e Educação Ambiental (Lei nº 9.795/99) serão sempre tratadas de forma transversal,

permeando, pertinentemente, os demais componentes, pois, assim, explicitamente,

determinam as respectivas disposições legais.

No caso de organização curricular baseada, por exemplo, em unidades de estudos,

atividades e projetos interdisciplinares e contextualizados, e não por disciplinas segmentadas,

é desnecessário dar-lhes um caráter de exceção, como é feito no art. 10, § 2º, da Resolução

CNE/CEB nº 3/98, pois, aí, o tratamento ―interdisciplinar e contextualizado‖ é a regra para

todos os componentes.

Pode-se, nessa oportunidade, avançar mais, indicando-se, como diretriz, a obrigação

das escolas garantirem a completude e a coerência de seus projetos pedagógicos, dando o

mesmo valor e tratamento aos componentes do currículo que são obrigatórios, seja esse

tratamento por disciplinas, seja por formas flexíveis, como por unidades de estudos,

atividades ou projetos interdisciplinares e contextualizados, por desenvolvimento transversal

de temas ou outras formas diversas de organização, como a LDB possibilita e as Diretrizes

Curriculares Nacionais orientam normativamente.

É cabível e oportuno, ainda, reforçar, como diretriz, que a proposta pedagógica de toda

e qualquer escola do país deve assegurar, efetivamente, que, ao final do Ensino Médio, o

educando demonstre, entre outros, o domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia

necessários ao exercício da cidadania.

Se a escola tem autonomia para desenvolver na própria concepção pedagógica, o que,

aliás, é garantido pela Constituição Federal e reiterado pela LDB, ela tem, por outro lado, a

obrigação de coerência nessa concepção, bem como no seu planejamento, na sua organização

e na sua execução. Nesse sentido, se a escola planejou e organizou seu currículo, no todo ou

em parte, com base em disciplinas, a lógica obriga que os componentes obrigatórios, sem

ressalva legal, sejam oferecidos da mesma forma. Se a escola, ao contrário, usando da

autonomia que lhe dá a Lei, organizou seu currículo de outra forma, do mesmo modo deverá

dar tratamento a todos os componentes obrigatórios.

Portanto, observando a coerência exigida pela base legal e normativa vigente,

os conhecimentos relativos à Filosofia e à Sociologia, da mesma forma que os componentes

Arte e Educação Física, devem estar presentes nos currículos do Ensino Médio, inclusive na

forma de disciplinas específicas, sempre e quando a escola, valendo-se daquilo que a Lei lhe

faculta, adotar no todo ou em parte, a organização curricular por disciplinas.

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Para garantia do cumprimento da diretriz da LDB, referente à Filosofia e à Sociologia,

não há dúvida de que, qualquer que seja o tratamento dado a esses componentes, as escolas

devem oferecer condições reais para sua efetivação, com professores habilitados em

licenciaturas que concedam direito de docência desses componentes, além de outras

condições, como, notadamente, acervo pertinente nas suas bibliotecas.

Para finalizar, não se pode deixar de considerar a necessidade de revisão e atualização

das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, visando à sua revitalização. Já são

passados oito anos de sua edição, período no qual inovações foram propostas, experiências

foram desenvolvidas, estudos e pesquisas foram realizados. Alterações legislativas foram

efetivadas, sendo que a LDB já sofreu várias emendas, algumas delas referentes, justamente,

ao Ensino Médio. Outras leis foram promulgadas, que interferem nesse ensino, como as Leis

Federais nº 10.172/2001 (Plano Nacional de Educação), nº 9.795/99 (Política Nacional de

Educação Ambiental), e nº 11.161/2005 (oferta do ensino da língua espanhola).

De qualquer modo, norma da magnitude das Diretrizes que, por vez primeira foi

elaborada e editada, tem, inevitável e desejavelmente, um caráter de orientação inicial de

trabalho. Já é tempo de avaliar seus resultados, propriedades e inadequações e, sobretudo, de

incorporar dados das experiências e de retornar ao debate com a comunidade educacional e

com a sociedade civil, contribuindo para que o Ensino Médio, etapa final da Educação Básica,

se corporifique, verdadeiramente, como um projeto da Nação.

II – VOTO DOS RELATORES

Diante do exposto, e nos termos deste parecer, votamos para que se altere a redação do

artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98 que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais

do Ensino Médio, especificamente:

a) que seja alterado o § 2º do artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98, que deverá ter a

seguinte redação:

§ 2º As propostas pedagógicas de escolas que adotarem organização

curricular flexível, não estruturada por disciplinas, deverão assegurar

tratamento interdisciplinar e contextualizado, visando ao domínio de

conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da

cidadania.

b) que sejam incluídos os § 3º e 4º no artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98, com a

seguinte redação:

§ 3º - No caso de escolas que adotarem organização curricular estruturada

por disciplinas, deverão ser incluídas as de Filosofia e Sociologia.

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113

§ 4º - Os componentes História e Cultura Afro-Brasileira e Educação

Ambiental serão, em todos os casos, tratados de forma transversal,

permeando, pertinentemente, os demais componentes do currículo.

c) que seja incluída orientação no sentido de que os currículos dos cursos de Ensino Médio

deverão ser adequados a essas novas disposições, sendo que, no caso do § 3º, acrescentado ao

artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98, devem os sistemas de ensino, no prazo de um ano

a contar da data de publicação da Resolução decorrente deste Parecer, fixar as medidas

necessárias para a referida inclusão de disciplinas de Sociologia e de Filosofia. Propõe-se, em

conseqüência, a aprovação do Projeto de Resolução em anexo.

Brasília (DF), 7 de julho de 2006.

Conselheiro Cesar Callegari – Relator

Conselheiro Murílio de Avellar Hingel – Relator

Conselheiro Adeum Hilário Sauer – Relator

III – DECISÃO DA CÂMARA

A Câmara de Educação Básica aprova por unanimidade o voto dos Relatores.

Sala das Sessões, em7 de julho de 2006.

Conselheira Clélia Brandão Alvarenga Craveiro – Presidente

Conselheira Maria Beatriz Luce – Vice-Presidente

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ANEXO 6

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO

CÂMARA DE EDUCAÇÃO BÁSICA

RESOLUÇÃO Nº 4, DE 16 DE AGOSTO DE 2006.

Altera o artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98,que institui

as Diretrizes curriculares Nacionais para o Ensino Médio.

A Presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, no

uso de suas atribuições legais, e de conformidade com o disposto na alínea ―c‖ do § 1º do

artigo 9º da Lei nº 4.024/1961, com a redação dada pela Lei nº 9.131/1995, com fundamento

no Parecer CNE/CEB nº 38/2006, homologado por despacho do Senhor Ministro de Estado da

Educação, publicado no DOU de 14/8/2006, resolve:

Art. 1º O § 2º do artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98 passa a ter a seguinte

redação:

§ 2º As propostas pedagógicas de escolas que adotarem organização curricular

flexível, não estruturada por disciplinas, deverão assegurar tratamento interdisciplinar e

contextualizado, visando ao domínio de conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários

ao exercício da cidadania.

Art. 2º São acrescentados ao artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98, os § 3º e 4º,

com a seguinte redação:

§ 3º No caso de escolas que adotarem, no todo ou em parte, organização curricular

estruturada por disciplinas, deverão ser incluídas as de Filosofia e Sociologia.

§ 4º Os componentes História e Cultura Afro-Brasileira e Educação Ambiental serão,

em todos os casos, tratados de forma transversal, permeando, pertinentemente,os demais

componentes do currículo.

Art. 3º Os currículos dos cursos de Ensino Médio deverão ser adequados a estas

disposições.

Parágrafo único. No caso do § 3º, acrescentado ao artigo 10 da Resolução CNE/CEB

nº 3/98, os sistemas de ensino deverão, no prazo de um ano a contar da publicação desta

Resolução, fixar as medidas necessárias para a inclusão das disciplinas de Filosofia e

Sociologia no currículo das escolas de Ensino Médio.

Art. 4º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as

disposições em contrário.

CLÉLIA BRANDÃO ALVARENGA CRAVEIRO

Presidente da Câmara de Educação Básica

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ANEXO 7

Indicação CEE Nº: 62/2006 - CEB - Aprovada em 20-9-2006

Conselho Pleno

1. Relatório

1.1 Considerando que a Resolução CNE n° 04/06, do Conselho Nacional de Educação

sobre a inclusão obrigatória de Filosofia e Sociologia no currículo do Ensino Médio,

publicada no Diário Oficial da União em 21-08-2006, estabelece o prazo de um ano para que

os sistemas de ensino tomem as medidas necessárias para a inclusão das referidas disciplinas

no currículo das escolas;

1.2 Considerando que existem dúvidas relevantes quanto à legalidade da Resolução

(c.f. - Art. 36 § 1° inciso III da Lei n° 9394/96 - LDB), na medida que interfere na autonomia

dos sistemas de ensino e das unidades escolares, além do tratamento não homogêneo dado às

diversas formas de organização curricular adotado pelas diferentes escolas e sistemas de

ensino;

1.3 Considerando que a Resolução CNE n.º 04/06 tem implicações não desprezíveis

quanto aos recursos humanos e financeiros necessários a implementação com qualidade;

1.4 Considerando que pelas razões acima apresentadas serão necessários estudos

aprofundados pelas Câmaras e Comissões desse Conselho, além de consultas à Secretaria de

Estado da Educação;

O Conselho Estadual de Educação do Estado de São Paulo pronuncia-se pela não

obrigatoriedade da introdução de Filosofia e Sociologia no currículo das Escolas de Ensino

Médio, no âmbito de sua jurisdição, no ano de 2007, respeitado o já disciplinado pela

Secretária da Educação para as escolas da rede pública estadual, bem como, pelas escolas da

rede privada de ensino.

2.Conclusão

Nos termos acima, propomos à apreciação do Plenário a presente Proposta de

Indicação.

São Paulo, 13 de setembro de 2006.

Cons. Mauro de Salles Aguiar

Relator

3. Decisão da Câmara

A Câmara de Educação Básica adota como sua Indicação, o Voto do Relator.

Presentes os Conselheiros: Amarilis Simões Serra Sério, Ana Luísa Restani, Ana

Maria de Oliveira Mantovani, Joaquim Pedro Villaça de Souza Campos, Leila Rentroia

Iannone, Maria Alice Setubal, Mauro de Salles Aguiar e Suzana Guimarães Trípoli.

Sala da Câmara de Educação Básica, em 13 de setembro de 2006.

a) Cons. Ana Luisa Restani

Vice-Presidente da CEB

Deliberação Plenária

O Conselho Estadual de Educação aprova, por unanimidade, a presente Indicação.

Sala ―Carlos Pasquale‖, em 20 de setembro de 2006. Pedro Salomão José Kassab

Presidente

(D.O.E. de 28/09/2006)

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ANEXO 8

PARECER CEE Nº 343/2007 - CEB - Aprovado em 04-7-2007

PROCESSO CEE Nº: 492/2006 – Reautuado em 30-10-06

INTERESSADO: Conselho Estadual de Educação

ASSUNTO: Inclusão obrigatória das disciplinas Filosofia e Sociologia no currículo do Ensino

Médio

RELATORES: Conselheiros Ana Luisa Restani e Mauro de Salles Aguiar

CONSELHO PLENO

1. RELATÓRIO

A Indicação CEE nº 62/2006 apresentou em seus considerandos que ―existem dúvidas

relevantes quanto à legalidade da Resolução CNE 04/06 (c.f.- Art.36 § 1º inciso III da Lei nº

9394/96 - LDB), na medida que interfere na autonomia dos sistemas de ensino e das unidades

escolares, além do tratamento não homogêneo dado às diversas formas de organização

curricular adotado pelas diferentes escolas e sistemas de ensino‖.

A matéria foi submetida à CLN deste Colegiado que assim se pronunciou:

―A Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação editou, recentemente,

resolução por meio da qual alterou as diretrizes curriculares nacionais para o Ensino Médio.

Tais diretrizes foram inicialmente fixadas, pela Resolução CNE/CEB n.º 03, de 26/06/1998. A

alteração sobreveio por meio da Resolução CNE/CEB n.º 04, de 16/08/2006 (publicada no

Diário Oficial da União em 21/08/2006), nos seguintes termos:

―Art. 1º. - O § 2º do artigo 10 da Resolução CNE/CEB n.º 03/98 passa a ter a seguinte

redação:

§ 2º.- As propostas pedagógicas de escolas que adotarem organização curricular

flexível, não estruturada por disciplinas, deverão assegurar tratamento interdisciplinar e

contextualizado, visando ao domínio de conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários

ao exercício da cidadania.

Art. 2º.- São acrescentados ao artigo 10 da Resolução CNE/CEB n.º 03/98 os §§ 3º e

4º, com a seguinte redação:

§ 3º.- No caso de escolas que adotarem, no todo ou em parte, organização curricular

estruturada por disciplinas, deverão ser incluídas as de Filosofia e Sociologia (gn).

§ 4º.- Os componentes História e Cultura Afro-Brasileira e Educação Ambiental serão,

em todos os casos, tratados de forma transversal, permeando, pertinentemente, os demais

componentes do currículo‖.

O efeito prático colimado pelos dispositivos transcritos foi o de tornar obrigatória a

inclusão das disciplinas de Filosofia e Sociologia em todas as escolas brasileiras de Ensino

Médio — públicas ou privadas — que adotem estruturação curricular por disciplinas

específicas. Ainda de acordo com a Resolução CNE/CEB n.º 04/2006, os Estados teriam

prazo de 01 ano para, por intermédio dos respectivos Conselhos Estaduais de Educação,

decidirem acerca da forma de implementação, no âmbito de seus sistemas de ensino.

No Estado de São Paulo, o Conselho Estadual de Educação, em Sessão Plenária,

realizada em 20-09-2006, decidiu, por unanimidade, aprovar a Indicação n.º 62/2006,

publicada no Diário Oficial do Estado de São Paulo em 28-09-2006, nos seguintes termos:

―O Conselho Estadual de Educação do Estado de São Paulo pronuncia-se pela não

obrigatoriedade da introdução de Filosofia e Sociologia no currículo das Escolas de Ensino

Médio, no âmbito de sua jurisdição, no ano de 2007, respeitado o já disciplinado pela

Secretaria da Educação para as escolas da rede pública estadual, bem como, pelas escolas da

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rede privada de ensino‖.

A ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO

A LDB, ao organizar a educação no país, o fez com base em algumas linhas mestras.

Duas sobressaem no texto legal: a primeira é a de que compete à União a ―...coordenação da

política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo função

normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais‖ (é o que

estabelece o seu art. 8º, § 1º); a segunda é a de que, sem prejuízo desse papel coordenador da

União, os sistemas de ensino têm autonomia ou ―liberdade de organização‖ (conforme dispõe

o seu art. 8º, § 2º). Vejam-se as disposições na íntegra:

―Art. 8º. - A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão, em regime de

colaboração, os respectivos sistemas de ensino.

§ 1º.- Caberá à União a coordenação da política nacional de educação, articulando os

diferentes níveis e sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em

relação às demais instâncias educacionais.

§ 2º - Os sistemas de ensino terão liberdade de organização nos termos desta Lei‖.

A LDB, assim, atribuiu um papel coordenador ou articulador à União, a ser exercido,

inclusive, por meio do manejo de competência de normatização do ensino, com efeitos

vinculantes sobre todas as esferas da federação (não somente a federal, mas também as

estaduais, as municipais e a distrital); paralelamente, ela assegurou autonomia, ou liberdade

de organização, a esses sistemas descentralizados. Em apertada síntese, pode-se dizer que a

lei, a um só tempo, encerrou nos seus dispositivos os vetores da coordenação federal e da

autonomia.

No que tange à coordenação, a LDB previu, além da linha mestra ditada pelo seu art.

8º, § 1º (no sentido de que esse papel coordenador seria da União), mecanismos por meio dos

quais tal atividade de coordenação poderia ser, na prática, implementada. Um deles é o

previsto no art. 9º, inciso IV, segundo o qual:

―Art. 9º. - A União incumbir-se-á de:

IV – estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios,

competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio,

que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica

comum.‖ (ggnn).

É justamente este mecanismo coordenador, ou uniformizador, que merece a atenção

aqui. Note-se que vem dele a atribuição, feita à União (ainda que em colaboração com os

outros entes da federação), de fixar as chamadas diretrizes curriculares nacionais. O papel de

aglutinação ou uniformização da União é exercido, em grande medida, por essas diretrizes, às

quais todos os sistemas de ensino, em todas as esferas da federação, estão vinculados.

Ademais, vem deste dispositivo da LDB a atribuição, igualmente feita à União, de

prever, para além das diretrizes, as competências ou, preferindo-se, habilidades a serem

desenvolvidas pelos educandos nos diversos sistemas de ensino, em todas as esferas da

federação. Ao definir essas competências ou habilidades, a União também exerce o seu papel

uniformizador.

Toda essa fixação de diretrizes e habilidades é feita, como já apontado, por um órgão

federal, o CNE, que nesta matéria se submete à competência homologadora do Ministro de

Estado da Educação. Como se sabe, o CNE, órgão encartado na estrutura do Ministério da

Educação, possui atribuições normativas, deliberativas e de assessoramento, funcionando, em

essência, como um pólo oficial de participação da sociedade no aperfeiçoamento da educação

nacional. De acordo com a Lei n.º 4.024/1961 (com a redação dada pela Lei n.º 9.131/1995)

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[1] , ele é dividido internamente em duas Câmaras: a de Educação Básica e a de Educação

Superior, sendo cada qual responsável por um conjunto de atribuições. No que interessa aqui

salientar, é à sua Câmara de Educação Básica que compete emanar as diretrizes curriculares

nacionais para o Ensino Médio, objeto de toda a celeuma enfocada na presente manifestação.

Deveras, estatui a Lei n.º 4.024/1961 (com a redação dada pela Lei n.º 9.131/1995), no seu

art. 9º, § 1º, alínea c, que à Câmara compete ―deliberar sobre as diretrizes curriculares

propostas pelo Ministério da Educação e do Desporto‖.

Visto assim, na sua face normativa, o papel coordenador que a legislação

inequivocamente conferiu à União, munindo-a de competências para a fixação de diretrizes e

habilidades vinculantes em todo o território nacional, todas emanadas do CNE (e, no que aqui

é mais importante, da sua Câmara de Educação Básica), importa dar o passo seguinte no

raciocínio, que é compreender adequadamente o sentido e alcance desse papel coordenador.

Seu sentido é simples: trata-se de possibilitar aos educandos que transitem de um

sistema de ensino para outro, caso necessitem, sem maiores dificuldades de adaptação, vez

que todos esses sistemas estarão subordinados ao mesmo conjunto mínimo de diretrizes e

bases predeterminado por um órgão central. De fato, essas diretrizes e competências

uniformemente fixadas pela União possibilitam, em última análise, o que a lei chamou de

formação básica comum, isto é, uma formação mínima, de base, aos educandos de qualquer

dos sistemas de ensino existentes no país.

Por outro lado, entra em cena aqui o já citado vetor da autonomia dos sistemas de

ensino, que a lei igualmente prestigiou. Se a União tem um papel coordenador e, de certo

modo, uniformizador, é certo, por outro lado, que não é da sua competência definir,

propriamente, os currículos de cada sistema de ensino, tampouco os respectivos conteúdos

mínimos. A norma da LDB foi claríssima a este respeito: disse ela, no precitado inciso IV do

art. 9º, que à União compete estabelecer competências e diretrizes que ―...nortearão os

currículos e seus conteúdos mínimos...‖. A União, pois, ditará os nortes, os rumos a seguir,

mas quem haverá de fixar, efetivamente, quais são esses currículos, e quais são os seus

conteúdos mínimos, serão os próprios sistemas de ensino, no âmbito das correspondentes

esferas da federação, no exercício da autonomia que, também, lhes foi expressamente

assegurada pela própria lei (entra aí a força da expressão ―liberdade de organização‖

assegurada pelo precitado § 2º do art. 8º, que, como dito, constitui linha mestra a informar

todo o espírito da lei).

Dado que a lei prestigiou esta autonomia dos sistemas de ensino, há que se interpretar

com certo cuidado a atribuição conferida à União para fixar as diretrizes curriculares e as

competências ou habilidades a serem trabalhadas em todo o sistema nacional de educação.

Incumbe-lhe dar os nortes, é verdade, mas não mais do que isso; o conteúdo em si dos

currículos foge à sua alçada. A fixação das diretrizes e das habilidades feita pela União —

notadamente por intermédio do CNE —, cumpre o importante papel de assegurar o mínimo

de harmonia, o mínimo de identidade entre os currículos e os conteúdos essenciais de cada um

dos diversos sistemas de ensino, de sorte a viabilizar que todos propiciem aos educandos uma

formação básica comum.

É à luz desses parâmetros, pois, que se faz necessário interpretar a Resolução

CNE/CEB n.º 04/2006 e, em especial, os seus artigos 1º e 2º, que impuseram a adoção de

disciplinas específicas de Filosofia e Sociologia.

Ao fazer essa imposição, o órgão federal avançou para além dos limites de sua

atribuição legal e, mais do que isso — e aqui é preciso reconhecê-lo claramente — para além

das fronteiras que a própria Constituição Federal estabeleceu ao tratar do serviço de Educação

no país.

Pelo prisma constitucional, é preciso ter em vista que o art. 211, caput da Constituição

Federal dispõe que ―a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em

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regime de colaboração seus sistemas de ensino‖. Fica claro, pois, que cada ente da Federação

detém autonomia para organizar seu sistema de ensino, ainda que em necessário — ou

imprescindível — regime de colaboração. Em outras palavras, há o dever inequívoco de

colaboração, mas fica preservada a autonomia de cada ente federado para organizar o seu

sistema de ensino. Tal autonomia ainda é matizada por outras determinações constitucionais,

como a constante do § 2º do mesmo art. 211, segundo o qual ―os Municípios atuarão

prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil‖, ou a do § 3º subseqüente,

segundo o qual ―os Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino

fundamental e médio‖, ou, ainda, a do § 4º, segundo o qual, ―na organização de seus sistemas

de ensino, os Estados e os Municípios definirão formas de colaboração, de modo a assegurar a

universalização do ensino obrigatório‖.

Como visto, há balizas legais a serem observadas para o estabelecimento de diretrizes,

com destaque para a exigência fundamental de respeito à autonomia dos sistemas de ensino,

aos quais compete a definição dos seus próprios currículos e, inclusive, dos respectivos

conteúdos mínimos.

São todas determinações constitucionais que condicionam o exercício da autonomia,

mas nenhuma vai além disso, é dizer, nenhuma delas implica seja solapada a autonomia

claramente assegurada no caput. Note-se que formas de colaboração, tendo em vista o

objetivo comum da universalização do ensino obrigatório, devem ser definidas, mas cada

sistema de ensino mantém a sua identidade própria, estruturando sua grade curricular

autonomamente.

A isso se acresce o que dispõe o art. 209 da Constituição, segundo o qual ―o ensino é

livre à iniciativa privada‖. Daí deriva o princípio da autonomia qualificada dos

estabelecimentos privados, que têm liberdade para sua organização pedagógica. Essa

liberdade é condicionada apenas pelo dever de respeito às ―normas gerais da educação

nacional‖. Portanto, o que pode limitar a liberdade pedagógica desses estabelecimentos é

apenas a norma efetivamente geral, editada para fixar ―diretrizes e bases‖ para a educação

(Constituição Federal, art. 22, XXIV). A norma federal que pretendesse substituir-se ao juízo

da comunidade educacional envolvida, quanto ao melhor modo de organizar concretamente o

currículo do estabelecimento, iria muito além do campo das diretrizes, extrapolando o papel

que a Constituição lhe reservou.

Bem se vê, por tudo isso, que, quando resolução emanada do CNE vem e diz que

Filosofia e Sociologia devem ser incorporadas à grade curricular de determinados sistemas de

ensino, fere de morte a autonomia desses sistemas, a qual decorre não apenas da lei, mas da

própria Constituição da República.

Pelo prisma legislativo, a violação dos limites da competência atribuída ao CNE já foi

apontada e pode, uma vez mais, ser resumida: se é verdade, por um lado, que o CNE é órgão

que detém, efetivamente, atribuições normativas, deliberativas e de assessoramento ao

Ministro de Estado da Educação, inclusive para a edição das diretrizes curriculares nacionais

e de certas habilidades pretendidas dos educandos, não é menos verdadeira a circunstância de

que ele não pode fixar, por meio dessas diretrizes e determinações, absolutamente o que bem

entender. Como visto, há balizas legais a serem observadas quando desta fixação, com

destaque para a exigência fundamental de respeito à autonomia dos sistemas de ensino, aos

quais compete a definição dos seus próprios currículos e, inclusive, dos respectivos conteúdos

mínimos.

Note-se que sequer a fixação de conteúdos mínimos a lei concentrou nas mãos da

União, pois o que fez foi dar-lhe a competência para fixar os nortes, a partir dos quais, aí sim,

os diversos sistemas de ensino, nas correspondentes esferas da federação, e os diversos

estabelecimentos, oficiais ou privados, teriam que estruturar seus currículos.

Diante das razões até aqui apresentadas, já se poderia concluir, peremptoriamente, que

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se afiguram inconstitucionais e ilegais os arts. 1º e 2º da Resolução CNE/CEB n.º 04, de 16-

08-2006, naquilo em que veiculam a pretensão de obrigar todos os sistemas educacionais

estaduais e municipais de Ensino Médio, com organização curricular estruturada por

disciplinas, a incluírem, em suas respectivas grades, disciplinas específicas de Filosofia e

Sociologia.

Mas cabe, por amor ao debate, dedicar atenção às razões encontráveis no Parecer

CNE/CEB n.º 38/2006, o qual foi, efetivamente, o ato de natureza indicativa que fundamentou

a edição da Resolução CNE/CEB n.º 04/2006. Nele se invoca, por exemplo, como

fundamento da obrigatoriedade imposta, a já citada competência da Câmara de Educação

Básica do CNE para emanar as diretrizes curriculares nacionais para o Ensino Médio, nos

termos do art. 9º, § 1º, alínea c da Lei n.º 4.024/1961 (com a redação dada pela Lei n.º

9.131/1995). Porém, como já salientado aqui, o dispositivo não pode ser interpretado como se

a tivesse autorizado a ditar a inclusão de disciplinas específicas nos currículos dos diversos

sistemas de ensino. Não foi este o seu objetivo e não é este o seu sentido, mas ele serve, tão

somente, para permitir ao CNE que estabeleça os nortes — com caráter vinculante, é verdade,

mas não mais do que nortes — para que os sistemas de ensino, aí sim, nas respectivas esferas

da federação, no exercício da liberdade de organização, que lhes é de direito, definam,

autonomamente, as próprias grades curriculares.

Outros argumentos constantes do Parecer CNE/CEB n.º 38/2006 ligam-se ao art. 36 da

LDB. Para respondê-los cumpre, primeiramente, transcrever esse dispositivo legal:

―Art. 36 - O currículo do ensino médio observará o disposto na Seção I deste Capítulo e as

seguintes diretrizes:

I – destacará a educação tecnológica básica, a compreensão do significado da ciência, das

letras e das artes; o processo histórico de transformação da sociedade e da cultura; a língua

portuguesa como instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da

cidadania;

II – adotará metodologias de ensino e de avaliação que estimulem a iniciativa dos estudantes;

III – será incluída uma língua estrangeira moderna, como disciplina obrigatória, escolhida

pela comunidade escolar, e uma segunda, em caráter optativo, dentro das disponibilidades da

instituição.

§ 1º.- Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizados de tal

forma que ao final do ensino médio o educando demonstre:

I – domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a produção moderna;

II – conhecimento das formas contemporâneas de linguagem;

III – domínio dos conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da

cidadania.‖ (ggnn).

Observa-se, a partir dos trechos grifados, que o dispositivo estampa, de maneira

bastante clara, a preocupação do legislador em determinar que os conteúdos ministrados, as

metodologias aplicadas e as formas de avaliação escolhidas pelas escolas sejam capazes de

fazer com que, ao final do ensino médio, o aluno demonstre domínio dos conhecimentos de

Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania. Nessa norma, contudo, não se

vislumbra qualquer imposição de que tais conhecimentos sejam oferecidos ao aluno em

disciplinas específicas; quer-se, isso sim, torná-los parte de um aprendizado de matiz

notadamente generalista, que contemple, além da Filosofia e da Sociologia, domínio de

princípios científicos e tecnológicos e conhecimento de formas contemporâneas de

linguagem.

Assim, não é possível sacar, do teor do art. 36, § 1º, III da LDB, a conclusão de que

Filosofia e Sociologia devem ser, obrigatoriamente, aprendidas por meio do oferecimento de

aulas específicas. O espírito que norteia a LDB é, precisamente, o oposto: deve-se conferir aos

estabelecimentos de ensino a maior autonomia possível, para que, sempre tomando por base

Page 122: O ENSINO DE FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO BRASILEIRO ... Fernanda... · NR – Norma ... (LDB, Lei 9.394/1996), para incluir a ... que alterou o artigo 36 da Lei nº 9394, de 20 de dezembro

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as diretrizes da legislação, os mesmos possam elaborar suas propostas pedagógicas livres de

quaisquer amarras não previstas na lei.

É interessante notar, como o próprio Parecer CNE/CEB n.º 38/2006 reconhece e

chancela, o entendimento aqui exposto. Confira-se:

―Quanto ao formato de disciplina, não há sua obrigatoriedade para nenhum

componente curricular, seja da base nacional comum, seja da parte diversificada. As escolas

têm autonomia quanto à sua concepção pedagógica e à formulação de sua correspondente

proposta curricular, ‗sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim recomendar‘,

dando-lhe o formato que julgarem compatível com a sua proposta de trabalho.‖ [¹]

É igualmente interessante observar, contudo, que o excerto acima transcrito foi

utilizado no Parecer CNE/CEB n.º 38/2006 como ponto de partida para o desenvolvimento de

um raciocínio oposto. Deveras, argumenta-se no parecer que a tão propalada autonomia

concedida às escolas pela LDB teria redundado, na prática, em descumprimento da norma

atinente aos conhecimentos de Filosofia e Sociologia por parte dos estabelecimentos de

ensino, cuja grade curricular é estruturada por disciplinas. Para suprir essa deficiência, então,

impor-se-ia — sempre segundo o parecer — a obrigatoriedade de sua inclusão como

disciplinas específicas.

O argumento, de tão contraditório, não se sustenta. Ora, se a legislação contempla e

prestigia a autonomia dos sistemas de ensino para formular seus próprios modelos

pedagógicos e curriculares, como justificar, sem afrontar o disposto na lei, a decisão de impor

a todo um grupo de escolas de Ensino Médio, de maneira genérica, a obrigatoriedade de

inserção de determinadas disciplinas? Simplesmente não há justificativa, legalmente

embasada, capaz de responder a essa pergunta.

Note-se que o Parecer CNE/CEB n.º 38/2006, ao tentar demonstrar a suposta

obrigatoriedade de inclusão de disciplinas específicas de Filosofia e Sociologia, ainda tenta

buscar fundamentação nas diretrizes curriculares nacionais do Ensino Médio já instituídas por

meio da Resolução CNE/CEB n.º 03/1998. Porém, cabe aqui apontar que a tentativa, de

antemão, já deveria ter sido percebida como infrutífera.

[1]Parecer CNE/CEB nº 38/2006.pág. 11- 12

Isto porque a resolução que instituiu as diretrizes curriculares para o Ensino Médio é

pródiga em exemplos que confirmam o entendimento de que deve ser respeitada, nos termos

da lei e da Constituição, a autonomia dos sistemas de ensino para a definição de suas grades

curriculares. É possível arrolar, nesse sentido, os artigos: 5º, III[2]; 6º[3]; 7º, IV[4]; 8º, III e

V[5]; dentre outros. Todos eles, como se pode facilmente perceber, remetem a um contexto de

aprendizado marcado pela autonomia das unidades escolares para desenvolverem, da maneira

que melhor lhes aprouver, seus próprios modelos pedagógicos.9¹³

Ocorre que, apesar de todo o exposto até agora, o Parecer CNE/CEB n.º 38/2006

chegou à conclusão diversa. Para obtê-la, baseou-se, primeiramente, em uma leitura

equivocada do art. 10, § 2º, da Resolução CNE/CEB n.º 03/1998. Observe-se o seguinte

excerto do referido Parecer:

Parecer CNE/CEB n.º 38/2006

―As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio – DCNEM deram interpretação

que adiantou, em parte, sua solução, pois considerou, na composição e no tratamento a ser

dado ao currículo do Ensino Médio, a Filosofia e a Sociologia como equiparadas à Educação

Física e à Arte, estas sim, contempladas pelo art. 26 da LDB como componentes curriculares

dessa etapa da Educação Básica.‖ [2]

O equívoco deriva do fato de que o dispositivo das diretrizes curriculares lá referido

— trata-se do art. 10, § 2º — simplesmente não promoveu tal equiparação. Confira-se o seu

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teor:

Resolução CNE/CEB n.º 03/1998

―Art. 10. A base nacional comum dos currículos de ensino médio será organizada em áreas de

conhecimento, a saber:

(...)

§ 2º As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento interdisciplinar e

contextualizado para:

a) Educação Física e Arte, como componentes curriculares obrigatórios;

b) Conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania‖.

A redação é clara. Não se observa qualquer conexão lógica entre as matérias arroladas

na alínea ―a‖ (que cuida da Educação Física e da Arte) e na alínea ―b‖ (que dispõe sobre

conhecimentos de Filosofia e Sociologia). Educação Física e Arte são componentes

curriculares obrigatórios; conhecimentos de Filosofia e Sociologia, por outro lado, devem ser

agregados, com tratamento interdisciplinar e contextualizado, na medida da necessidade ao

exercício da cidadania. Querer equiparar o conteúdo das duas alíneas somente pode ser

entendido como realização de exegese torta, direcionada, comprometida com uma tese que

extrapola os limites legais.

O mais paradoxal é que, embora esse dispositivo da Resolução CNE/CEB n.º 03/1998

tenha sido invocado como um dos fundamentos da edição da Resolução CNE/CEB n.º

04/2006, sua redação foi modificada por este último instrumento normativo, exatamente para

dar guarida ao intento de determinar a obrigatoriedade da inclusão da Filosofia e da

Sociologia como disciplinas específicas. A contradição, portanto, é flagrante. Em um primeiro

momento, bastava a interpretação ―dirigida‖ do art. 10, § 2º da Resolução CNE/CEB n.º

03/1998 para embasar a obrigatoriedade; em seguida, essa inferência já não era verdadeira, de

modo que somente com uma redação distinta da até então vigente seria possível atingir o

objetivo pretendido.

Mas esse não é o único equívoco hermenêutico verificado no Parecer CNE/CEB n.º

38/2006. Partindo da premissa que acaba de revelar-se falsa — é dizer, da pretensa

equiparação entre, de um lado, Educação Física e Arte, e, de outro, Filosofia e Sociologia — o

Parecer procura justificar a obrigatoriedade por meio de uma interpretação a contrario sensu

que, de plano, pode-se considerar totalmente descabida. Tal interpretação lastreia-se no teor

do art. 26-A da LDB, acrescentado pela Lei n.º 10.639/03 e na Lei n.º 9.795/1999.

Rezam as normas acima referidas:

LDB 9394/96

―Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares,

torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

§ 1º. O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da

História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o

negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas

social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.

§ 2º. Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito

de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e

História Brasileiras.‖ (grifos acrescentados).

Lei n.º 9.795/1999

Art. 10. A educação ambiental será desenvolvida como uma prática educativa integrada,

contínua e permanente em todos os níveis e modalidades do ensino formal.

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123

§ 1º. A educação ambiental não deve ser implantada como disciplina específica no currículo

de ensino.‖ (grifos acrescentados).

Como se pode notar, as normas acima colacionadas dizem respeito a duas áreas de

conhecimento — História e Cultura Afro-Brasileira e Educação Ambiental — que a

legislação, explicitamente, eximiu da condição de disciplinas específicas. Optou-se, ao

contrário, por distribuí-las em toda a grade curricular, de modo a permear, com os elementos a

elas inerentes, o conhecimento obtido pelos alunos em áreas afins.

Então, tendo por base esse arcabouço normativo — cujo espírito foi reproduzido, diga-

se de passagem, no art. 2º, § 4º [3] da mesma Resolução CNE/CEB n.º 04/2006 — é que

surge o argumento a contrario sensu: ora, se o intuito do legislador fosse o de não obrigar as

unidades de ensino a adotarem disciplinas específicas de Filosofia e Sociologia, ele teria

criado normas do mesmo jaez daquelas presentes no art. 26-A da LDB e no art. 10, § 1º da Lei

n.º 9.795/1999. Se não o fez, é porque pretendeu, sim, instituir a obrigatoriedade.

Essa argumentação não possui a mínima sustentabilidade legal.

O art. 26 da LDB [6], que cuida dos currículos do ensino fundamental e médio, em

momento algum obriga as escolas a criar disciplinas específicas. Preocupa-se, isto sim, em

firmar uma série de componentes curriculares obrigatórios, que podem ser ministrados no

âmbito de uma ou várias disciplinas distintas. E, dentre tais componentes obrigatórios, não há

menção à Filosofia, tampouco à Sociologia. Resta claro, diante dessa constatação, que a

opção legislativa encarnada na LDB foi precisamente oposta àquela constante da Resolução

CNE/CEB n.º 04/2006. Ou seja, da leitura do arcabouço legal vigente em matéria

educacional, a inferência juridicamente válida é aquela segundo a qual Filosofia e Sociologia

não são disciplinas, mas sim, áreas do conhecimento que devem ser apresentadas aos alunos

para serem utilizadas como ferramentas necessárias ao exercício da cidadania.

[6] Art. 26- Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional,

comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escola, por uma

parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da

economia e da clientela.

§ 1º - Os currículos a que se refere o caput devem abranger, obrigatoriamente, o estudo da

língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade

social e política, especialmente do Brasil.

§ 2º - O ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da

educação básica, sendo sua prática facultativa ao aluno: (...)

§ 3º - A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular

obrigatório da educação básica, sendo sua prática facultativa ao aluno: (...)

§ 4º O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e

etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e

européia.

§ 5º Na parte diversificada do currículo será incluído, obrigatoriamente, a partir da quinta

série, o ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará a cargo da

comunidade escolar, dentro das possibilidades da instituição‖.

Nesse sentido, o Parecer CNE/CEB n.º 15/1998, que embasou a instituição das

diretrizes curriculares nacionais para o Ensino Médio, demonstra, de modo cristalino, o

espírito que se pretendia aplicar ao Ensino Médio. Observe-se, a esse respeito, o que referido

Parecer pontuou no tocante às Ciências Humanas, grande área do conhecimento onde se

inscrevem a Filosofia e a Sociologia:

Parecer CNE/CEB n.º 15/1998

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―Pela constituição dos significados de seus objetos e métodos, o ensino das ciências humanas

e sociais deverá desenvolver a compreensão do significado da identidade, da sociedade e da

cultura, que configuram os campos de conhecimentos de história, geografia, sociologia,

antropologia, psicologia, direito, entre outros. Nesta área se incluirão também os estudos de

filosofia e sociologia necessários ao exercício da cidadania, para cumprimento do que manda

a letra da lei. No entanto, é indispensável lembrar que o espírito da LDB é muito mais

generoso com a constituição da cidadania e não a confina a nenhuma disciplina específica,

como poderia dar a entender uma interpretação literal da recomendação do inciso III do

parágrafo primeiro do artigo 36‖ [7]

Assim, se a interpretação a contrario sensu difundida pelo Parecer CNE/CEB n.º

38/2006 tivesse respaldo, seria possível depreender que não apenas Filosofia e Sociologia,

mas também uma série de outros ramos do saber, tais como Direito, Antropologia, Psicologia,

etc., deveriam ser, necessariamente, contemplados como disciplinas específicas no Ensino

Médio, o que é um completo absurdo.

[7] Parecer CNE/CEB n.o 15/1998, pág 18.

Por fim, já examinados os argumentos empregados na tentativa de respaldar a

pretensão que aqui se considera ilegal e inconstitucional, vale uma derradeira observação, tão

somente com o intuito de se evitar eventuais mal-entendidos. É a seguinte: constatar que

inexiste amparo legal à exigência, feita pelo CNE, de que Filosofia e Sociologia sejam

contempladas como disciplinas específicas no Ensino Médio, não é sinônimo de lutar contra

uma idéia ―necessariamente boa‖, em prejuízo da qualidade do ensino. Não se trata, em suma,

de lutar contra o ―bem‖. Aliás, sequer se trata de fazer juízo acerca do caráter ―benéfico‖ ou

―maléfico‖ desta exigência para fins de aprimoramento do ensino brasileiro; cuida-se, tão

somente, de examinar a sua legalidade, pois encampou solução diversa, consistente em

privilegiar a autonomia dos sistemas e unidades de ensino e a liberdade de cada qual para,

segundo seu próprio projeto pedagógico, optar entre dedicar a tais conteúdos disciplinas

específicas ou então abordá-los de maneira transversal no âmbito de outras disciplinas já

existentes. Se houve algum juízo quanto ao melhor rumo a tomar, esse juízo foi feito pelo

legislador — democraticamente — e consistiu na decisão de que melhor seria privilegiar a

autonomia de cada estabelecimento de ensino para decidir por si, firme em que tal autonomia

seria perfeitamente compatível com a necessidade de incorporação, de alguma maneira, da

Sociologia e da Filosofia ao currículo do Ensino Médio.

Inadmissível, portanto, que o CNE venha se substituir ao legislador, exigindo dos

estabelecimentos de ensino algo que a lei não exigiu e, não fosse o bastante, usurpando-lhes

liberdade de escolha que a lei lhes quis assegurar.

DA IMPOSSIBILIDADE DE DISCRIMINAÇÃO ENTRE MODELOS PEDAGÓGICOS

Ainda que o CNE tivesse competência para editar os atos normativos que editou, isto

é, ainda que a Resolução CNE/CEB n.º 04/2006, ao impor a obrigatoriedade da inclusão de

disciplinas específicas de Filosofia e Sociologia na grade curricular das escolas do Ensino

Médio, estivesse rigorosamente em linha com as disposições da LDB e com a Constituição,

restaria um último ponto a examinar: a legalidade do tratamento diferenciado, conferido pela

Resolução CNE/CEB n.º 4/2006, a dois modelos pedagógicos — o de organização curricular

flexível e o estruturado por disciplinas. Vale lembrar os termos em que tal diferenciação

encontra-se vazada:

Resolução CNE/CEB n.º 04/2006

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―Art. 1º O § 2º do artigo 10 da Resolução CNE/CEB n.º 3/98 passa a ter a seguinte redação:

§ 2º. As propostas pedagógicas de escolas que adotarem organização curricular flexível, não

estruturada por disciplinas, deverão assegurar tratamento interdisciplinar e contextualizado,

visando ao domínio de conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da

cidadania.

Art. 2º São acrescentados ao artigo 10 da Resolução CNE/CEB n.º 3/98, os §§ 3º e 4º, com a

seguinte redação:

§ 3º. No caso de escolas que adotarem, no todo ou em parte, organização curricular

estruturada por disciplinas, deverão ser incluídas as de Filosofia e Sociologia.‖

§ 4º.- Os componentes História e Cultura Afro-Brasileira e Educação Ambiental serão, em

todos os casos, tratados de forma transversal, permeando, pertinentemente, os demais

componentes do currículo‖.

O Parecer CNE/CEB n.º 38/2006, ao fundamentar a distinção, apresentou a seguinte

justificativa:

Parecer CNE/CEB n.º 38/2006

―Se a escola tem autonomia para desenvolver a própria concepção pedagógica, o que, aliás, é

garantido pela Constituição Federal e reiterado pela LDB, ela tem, por outro lado, a obrigação

de coerência nessa concepção, bem como no seu planejamento, na sua organização e na sua

execução. Nesse sentido, se a escola planejou e organizou seu currículo, no todo ou em parte,

com base em disciplinas, a lógica obriga que os componentes obrigatórios, sem ressalva legal,

sejam oferecidos da mesma forma. Se a escola, ao contrário, usando da autonomia que lhe dá

a Lei, organizou seu currículo de outra forma, do mesmo modo deverá dar tratamento a todos

os componentes obrigatórios‖.

É curioso perceber como o texto do parecer confere à autonomia pedagógica das

escolas uma interpretação enviesada. A leitura da parte final do excerto acima trazido

demonstra que, para seus autores, tal autonomia só deve ser posta em prática e prestigiada se

o intento da unidade de ensino for organizar seu currículo de forma flexível. Para os

estabelecimentos que, diferentemente, optarem por estruturar seu currículo sob a forma de

disciplinas, não há que se falar em autonomia. A lei, segundo essa linha de raciocínio, teria

criado um rol estático de componentes curriculares obrigatórios, que deveriam, sem qualquer

decisão autônoma por parte da escola, ser aplicados, de forma estanque, sob a roupagem de

disciplinas específicas.

Como já se demonstrou à exaustão ao longo desta manifestação, esse entendimento é

absolutamente equivocado.

A LDB e a Resolução CNE/CEB n.º 03/1998 (que instituiu as Diretrizes Curriculares

Nacionais para o Ensino Médio) em momento algum previram a possibilidade de se conferir

tratamento discriminatório entre modelos pedagógicos. Cada escola é autônoma para decidir,

dentro das balizas postas pela legislação, o melhor modo de organizar o currículo a ser

ministrado aos seus alunos. Basta, apenas, que os componentes obrigatórios previstos pelo art.

26 da LDB estejam presentes, seja em disciplinas próprias, seja de maneira transversal,

permeando diferentes matérias.

Assim, nada impede, por exemplo, que os conceitos de Filosofia contidos na obra de

Platão e Aristóteles possam ser apresentados no âmbito do estudo da civilização grega, ou,

ainda, numa aula de Português ou Literatura. De modo análogo, é perfeitamente possível o

estudo da Sociologia de Weber ou Durkheim como parte de aulas de História Geral, ou

mesmo de Matemática. O que se objetiva é que, ao final do Ensino Médio, o aluno tenha

adquirido conhecimentos filosóficos e sociológicos necessários ao exercício da cidadania,

pouco importando se tal aquisição deu-se por meio de aulas específicas ou como parte do

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conteúdo de uma disciplina afim.

Não tem amparo legal, portanto, a discriminação entre escolas de currículo flexível e

escolas estruturadas por disciplinas, levada a cabo pela Resolução CNE/CEB n.º 04/2006. Tal

Resolução, ao estipular esse tratamento diferenciado, criou uma escala entre os

estabelecimentos voltados ao Ensino Médio que, nos termos da legislação, não existe. Por

meio dela, foram relegadas à condição de escolas de segunda classe — por supostamente

estarem sonegando a seus alunos conhecimentos de Filosofia e Sociologia — todas as

unidades de ensino que, no exercício de sua autonomia pedagógica, prevista em todo o

arcabouço normativo do setor de Educação, optaram por organizar suas grades curriculares

em disciplinas específicas. A elas tenta-se impingir, com a edição da Resolução CNE/CEB n.º

04/2006, uma obrigação descabida, não amparada em lei.

2. CONCLUSÃO

Adotamos in totum o parecer aprovado pela Comissão de Legislação e Normas,

concluindo: A Resolução CNE/CEB n.º 4/2006 é nula, írrita, de nenhum efeito.

Em primeiro lugar, porque a obrigatoriedade de inclusão de disciplinas específicas de

Filosofia e Sociologia fere a autonomia assegurada aos sistemas de ensino, pela LDB e pela

Constituição, para a definição de suas próprias grades curriculares. Com efeito, embora o art.

36, § 1º, III da LDB estampe a preocupação do legislador em determinar que os conteúdos

ministrados, as metodologias aplicadas e as formas de avaliação escolhidas pelas escolas

sejam capazes de fazer com que, ao final do Ensino Médio, o aluno demonstre domínio dos

conhecimentos de Filosofia e Sociologia, necessários ao exercício da cidadania, não se

vislumbra, ali, qualquer imposição de que tais conhecimentos sejam oferecidos ao aluno em

disciplinas específicas; quer-se, isso sim, torná-los parte de um aprendizado de matiz

notadamente generalista, que contemple, além da Filosofia e da Sociologia, o domínio de

princípios científicos e tecnológicos e conhecimento de formas contemporâneas de

linguagem.

Além disso, o art. 9º, inciso IV, da LDB, confere à União a atribuição de estabelecer as

competências e diretrizes para o ensino médio com vistas, tão somente, a nortear a definição e

organização dos currículos correspondentes, vez que a definição e a organização, em si, destes

currículos é tarefa a ser exercida autonomamente pelos próprios sistemas de ensino, no âmbito

das respectivas esferas da federação e dos estabelecimentos, oficiais ou privados. Não fosse o

bastante, a LDB ainda estabelece no seu art. 8º, § 2º que os sistemas de ensino terão liberdade

de organização, que envolve, por certo, a autonomia na estruturação de seus próprios

currículos.

De resto, a própria Constituição Federal, em seu art. 211, deixa entrever que, em que

pese o dever de colaboração entre os entes federados na estruturação de seus sistemas de

ensino, a autonomia de cada qual é um valor a ser preservado.

De outro lado, também é impertinente a fundamentação utilizada pelo Parecer

CNE/CEB n.º 38/2006, para demonstrar a suposta obrigatoriedade de inclusão de disciplinas

específicas de Filosofia e Sociologia, ao referir-se às Diretrizes Curriculares Nacionais do

Ensino Médio, instituídas por intermédio da Resolução CNE/CEB n.º 03/1998.

Nesse ponto, o parecer realiza exegese jurídica equivocada, ora tentando equiparar

componentes curriculares obrigatórios (Educação Física e Arte) aos conhecimentos de

Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania, ora tentando aplicar ao caso

interpretação a contrario sensu absolutamente descabida, lastreada no argumento de que, se o

legislador tivesse querido excluir Filosofia e Sociologia do rol de disciplinas obrigatórias,

teria feito tal exclusão de maneira expressa, como procedeu no tocante à História e Cultura

Afro-Brasileira e à Educação Ambiental.

Todavia, da leitura do arcabouço legal vigente em matéria educacional, a inferência

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juridicamente válida é exatamente a oposta, isto é, a de que Filosofia e Sociologia não são

disciplinas, mas sim áreas do conhecimento que devem ser apresentadas aos alunos para

serem utilizadas como ferramentas necessárias ao exercício da cidadania.

Ainda que todos os argumentos acima expostos estivessem incorretos, a Resolução

CNE/CEB n.º 04/2006 seria ilegal por conferir tratamento discriminatório a dois modelos

pedagógicos: aqueles cuja organização curricular é flexível e aqueles estruturados por

disciplinas. Deveras, a LDB e a Resolução CNE/CEB n.º 03/1998 (que instituiu as diretrizes

curriculares nacionais para o Ensino Médio) em momento algum previram a possibilidade de

se conferir tratamento discriminatório entre modelos pedagógicos. Cada escola é autônoma

para decidir, dentro das balizas postas pela legislação, o melhor modo de organizar o currículo

a ser ministrado aos seus alunos. Basta, apenas, que os componentes obrigatórios previstos

pelo art. 26 da LDB estejam presentes, seja em disciplinas próprias, seja de maneira

transversal, permeando diferentes matérias. A Resolução em pauta, ao estipular esse

tratamento diferenciado, criou uma escala entre os estabelecimentos voltados ao Ensino

Médio que, nos termos da legislação, não existe, sendo, pois, ilegal.

Finalmente, entende este Colegiado que os conhecimentos de Filosofia e Sociologia

são necessários e oportunos à formação dos alunos, cabendo a cada Instituição ou sistema de

ensino resguardar a sua autonomia e definir o tratamento curricular a ser dado a esses

conhecimentos.

São Paulo, 21 de maio de 2007.

a) Consª Ana Luísa Restani

Relatora

a) Cons.Mauro de Salles Aguiar

Relator

3. DECISÃO DA CÂMARA

A Câmara de Educação Básica adota como seu Parecer, o Voto dos Relatores.

Presentes os Conselheiros: Amarilis Simões Serra Sério, Ana Luísa Restani, Ana Maria de

Oliveira Mantovani, Francisco Pagliato Neto, Joaquim Pedro Villaça de Souza Campos, Leila

Rentroia Iannone, Maria Aparecida de Campos Brando Santilli e Mauro de Salles Aguiar.

Sala da Câmara de Educação Básica, em 23 de maio de 2007.

a) Consª. Maria Aparecida de Campos Brando Santilli

no exercício da Presidência nos termos do artigo 13 § 3º do Regimento do CEE

DELIBERAÇÃO PLENÁRIA

O CONSELHO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO aprova, por maioria, a decisão da Câmara de

Educação Básica, nos termos do Voto dos Relatores.

Os Conselheiros Angelo Luiz Cortelazzo e Maria Aparecida de Campos Brando

Santilli votaram favoravelmente com restrições.

A Consª. Sonia Teresinha de Sousa Penin votou contrariamente nos termos de sua

Declaração de Voto.

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128

Sala ―Carlos Pasquale‖, em 04 de julho de 2007.

PEDRO SALOMÃO JOSÉ KASSAB

Presidente

Publicado no DOE em 07/7/07 - Seção I - Página 32

Publicado na íntegra em 18/8/07 - Seção I - Páginas 23/24/25

DECLARAÇÃO DE VOTO

Pelos motivos a seguir apresentados, voto contrariamente ao referido Parecer, que

questiona as alterações propostas às Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio,

pela Resolução CNE n° 04/06, interpelando fundamentalmente a sua legalidade relativa à

interferência na autonomia dos sistemas de ensino e das unidades escolares; a introdução de

dois modelos pedagógicos expressos na ampla possibilidade de organização curricular, que

pode ser adotada pelas escolas e pelos sistemas de ensino; e o entendimento que leva a

transformar áreas de conhecimento em disciplinas obrigatórias.

Quanto ao questionamento de ilegalidade, independente dos desdobramentos

possíveis, compreendo o direito deste Conselho de fazê-lo, assim como entendo o relatório

como bem circunstanciado. Não concordo, todavia, com o tom acusatório utilizado,

desnecessário e contraproducente para estabelecer um debate nacional que caminhe a um

consenso a respeito do assunto.

No que diz respeito ao mérito educacional da Resolução do Conselho Nacional de

Educação, é necessária uma ampla discussão, seja da forma de introdução das disciplinas em

questão, seja da mudança curricular proposta, incluindo a autonomia dos sistemas e

especialmente das escolas para definir o seu Projeto Pedagógico.

No que se refere ao sentido das disciplinas, penso que é uma questão consensual o

entendimento da importância da Filosofia e da Sociologia na formação dos alunos do Ensino

Médio. A divergência esbarra na forma de sua inserção no currículo. As Diretrizes

Curriculares de 1998 propuseram a organização do currículo por áreas, partindo do princípio

de que todo conhecimento mantém um diálogo permanente com outros conhecimentos e de

que todos eles de maneira articulada deveriam se tornar meios para atender aos objetivos de

formação dos alunos. Todavia, ainda que se saiba do esforço e mesmo do sucesso de muitas

escolas no sentido de avançar nessa direção, as dificuldades são inúmeras, começando pela

ênfase disciplinar dominante nos cursos de formação dos professores para a educação básica.

Paralelamente, há que se lembrar que, quando o CEE/SP discutiu as Diretrizes

Curriculares para o Ensino Médio em nível do estado, ficou claro que o tratamento

interdisciplinar que se propunha não prescindia de rigor nem de propriedade. Rigor, no

sentido de que era importante garantir na escola a presença de um professor formado na

licenciatura do componente curricular específico, participando de projetos interdisciplinares.

Propriedade, no sentido de que as disciplinas acadêmicas, ao se proporem a contribuir com os

objetivos de formação do aluno da escola básica, necessariamente, devem se dispor a

construir nesse nível e âmbito escolar conhecimentos novos, amalgamando conteúdos

específicos e pedagógicos, como identifica Chervel, a partir das pesquisas que realizou quanto

à história das disciplinas escolares. Esta posição difere do que está inscrito nas Diretrizes

Curriculares Nacionais de 1998, em que se advoga que os componentes curriculares da

educação básica devem se preocupar apenas com a transposição didática dos conteúdos

acadêmicos à realidade deste nível de ensino, conforme defende Chevallard. Se ao tratamento

interdisciplinar e mesmo disciplinar de qualquer conhecimento na escola básica é exigido

propriedade e rigor, há que se supor que os profissionais, ao discutirem essas questões nas

escolas devam dominar o mais profundamente possível um campo de conhecimento. Pelo

exposto, causa estranheza a formulação da página 21 do Parecer CEE, afirmando que até

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professores de Matemática poderiam desenvolver conteúdos específicos de Sociologia ou

Filosofia. Esses componentes curriculares não podem ser confundidos com temas

transversais, como dá a entender o texto. Ao contrário, ainda que o arcabouço teórico-

metodológico dessas disciplinas deva servir aos objetivos educacionais de formação dos

alunos, parece lógico que os profissionais indicados para desenvolver um projeto

interdisciplinar na escola sejam aqueles formados no campo das ciências humanas ou

humanidades.

Quanto à autonomia dos sistemas e mais fortemente das escolas para definir seu

Projeto Pedagógico parece consensual o entendimento de que tal ponto impresso na LDB de

1996 significou um ―extraordinário progresso‖ (Azanha). Espero que o exame de quanto a

proposição de dois modelos curriculares (interdisciplinar e disciplinar) pode ferir tal

consenso, seja objeto de debates exaustivos em nível nacional. Fica aqui de pronto um

lamento de que o CN não tenha aberto uma discussão em nível nacional, preliminarmente,

como ocorreu com a instituição das DCNs. Há, principalmente, que se debater se a explícita

referência à volta de um modelo curricular (disciplinar) que ainda representa a escolha

majoritária das escolas (pela inércia de não tentar o diferente ou por reais dificuldades como

as já apontadas) pode significar tanto a desistência de muitas de não experimentar a

organização curricular com base interdisciplinar, quanto o desestímulo dos cursos de

Pedagogia e dos demais de formação de professores a não trabalhar propostas dessa natureza.

Lembrando que a definição explícita para a organização curricular por áreas de conhecimento

está presente nas diretrizes para o Ensino Médio, fica a pergunta fundamental que deve

orientar cada sistema e cada escola em sua reflexão: como determinada organização curricular

e modelo pedagógico, incluindo a forma e o peso da participação de determinados

componentes disciplinares no tempo de estudo previsto, podem elevar em cada lugar a

qualidade da escola básica e as competências dos alunos para o trabalho, os estudos

posteriores e a vida em geral? Há sempre que se acompanhar e avaliar as inovações, inclusive

com estudos relativos aos egressos dessas experimentações.

São Paulo, 4 de julho de 2007

a) Consª Sonia Teresinha de Sousa Penin

--------------------------------------------------------------------------------

[1] Esta lei faz referência ao Ministério da Educação e do Desporto, existente à época de sua

criação. No entanto, posteriormente, houve a separação em duas pastas, resultando no

Ministério da Educação e no Ministério do Esporte como órgãos distintos (v. Lei 10.683/03,

artigo 25, incisos X e XI).

9 [2] ―Art.5º -Para cumprir as finalidades do ensino médio previstas pela lei, as escolas

organizarão seus currículos de modo a: (...) III –adotar metodologias de ensino diversificadas,

que estimulem a reconstrução do conhecimento e mobilizem o raciocínio, a experimentação, a

solução de problemas e outras competências cognitivas superiores; ―.

[3] ―Art.6º - Os princípios pedagógicos da Identidade, Diversidade e Autonomia, da

Interdisciplinaridade e da Contextualização, serão adotados como estruturadores dos

currículos do ensino médio.‖

[4] ‖Art. 7º - Na observância da Identidade, Diversidade e Autonomia, os sistemas de ensino e

as escolas, na busca da melhor adequação possível às necessidades dos alunos e do meio

social: (...) IV – criarão mecanismos que garantam liberdade e responsabilidade das

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instituições escolares na formulação de sua proposta pedagógica,e evitem que as instâncias

centrais dos sistemas de ensino burocratizem e ritualizem o que, no espírito da lei, deve ser

expressão de iniciativa das escolas, com protagonismo de todos os elementos diretamente

interessados, em especial dos professores;‖

[5] ―Art. 8º - Na observância da Interdisciplinaridade as escolas terão presente que: (...) III –

as disciplinas escolares são recortes das áreas de conhecimentos que representam, carregam

um grau de arbitrariedade e não esgotam isoladamente a realidade dos fatos físicos e sociais,

devendo buscar entre si interações que permitam aos alunos a compreensão mais ampla da

realidade; (...) V – a característica do ensino escolar, tal como indicada no inciso anterior,

amplia significativamente a responsabilidade da escola para a constituição de identidades que

integram conhecimentos, competências e valores que permitam o exercício pleno da cidadania

e a inserção flexível no mundo do trabalho.‖ pág.13

[2] Parecer CNE/CEB n.º 38/2006, p. 14.

[3] Eis o teor do dispositivo em comento: ―os componentes História e Cultura Afro-Brasileira

e Educação Ambiental serão, em todos os casos, tratados de forma transversal, permeando,

pertinentemente, os demais componentes do currículo‖.

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131

ANEXO 9

Presidência da República

Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos

LEI Nº 11.684, DE 2 DE JUNHO DE 2008.

Altera o art. 36 da Lei no 9.394, de 20 de

dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e

bases da educação nacional, para incluir a

Filosofia e a Sociologia como disciplinas

obrigatórias nos currículos do ensino médio.

O VICE–PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no exercício do cargo

de PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu

sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o O art. 36 da Lei n

o 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com as seguintes

alterações:

“Art. 36. .....................................................................

.............................................................................................

IV – serão incluídas a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as séries do ensino médio.

§ 1o ..............................................................................

.............................................................................................

III – (revogado).

...................................................................................” (NR)

Art. 2o Fica revogado o inciso III do § 1

o do art. 36 da Lei n

o 9.394, de 20 de dezembro de 1996.

Art. 3o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 2 de junho de 2008; 187o da Independência e 120

o da República.

JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA

Fernando Haddad

Este texto não substitui o publicado no DOU de 3.6.2008

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132

ANEXO 10

Publicada no DOU de 18/5/2009, Seção 1, p. 25.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO

CÂMARA DE EDUCAÇÃO BÁSICA

RESOLUÇÃO Nº 1, DE 15 DE MAIO DE 2009

Dispõe sobre a implementação da Filosofia e da

Sociologia no currículo do Ensino Médio, a partir

da edição da Lei nº 11.684/2008, que alterou a Lei

nº 9.394/1996, de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional (LDB).

O Presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, no

uso de suas atribuições legais e de conformidade com o disposto na alínea ―c‖ do § 1º do

artigo 9º da Lei nº 4.024/61, com a redação dada pela Lei nº 9.131/95, e com fundamento no

Parecer CNE/CEB nº 22/2008, homologado por Despacho do Senhor Ministro de Estado da

Educação, publicado no DOU em 12 de maio de 2009, resolve:

Art. 1º Os componentes curriculares Filosofia e Sociologia são obrigatórios ao longo

de todos os anos do Ensino Médio, qualquer que seja a denominação e a organização do

currículo, estruturado este por sequência de séries ou não, composto por disciplinas ou por

outras formas flexíveis.

Art. 2º Os sistemas de ensino deverão estabelecer normas complementares e medidas

concretas visando à inclusão dos componentes curriculares Filosofia e Sociologia em todas as

escolas, públicas e privadas, obedecendo aos seguintes prazos de implantação:

I - início em 2009, com a inclusão obrigatória dos componentes curriculares Filosofia e

Sociologia em, pelo menos, um dos anos do Ensino Médio, preferentemente a partir do

primeiro ano do curso;

II - prosseguimento dessa inclusão ano a ano, até 2011, para os cursos de Ensino Médio com 3

(três) anos de duração, e até 2012, para os cursos com duração de 4 (quatro) anos.

Parágrafo único. Os sistemas de ensino e escolas que já implantaram um ou ambos os

componentes em seus currículos devem ser incentivados a antecipar a realização desse

cronograma, para benefício maior de seus alunos.

Art. 3º Os sistemas de ensino devem zelar para que haja eficácia na inclusão dos

referidos componentes, garantindo-se, além de outras condições, aulas suficientes em cada

ano e professores qualificados para o seu adequado desenvolvimento.

Art. 4º Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as

disposições em contrário.

CESAR CALLEGARI

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ANEXO 11

Parâmetros Curriculares Nacionais - Ensino Médio3

Parte IV - Ciências Humanas e suas Tecnologias

Conhecimentos de Filosofia

Para todo professor de Filosofia acostumado à lida no Ensino Médio, são bastante

conhecidas as perguntas do tipo: ―para que serve a Filosofia?‖, ―é mesmo necessária esta

disciplina ou ela é apenas para mostrar que este colégio tem mais disciplinas do que os

outros?‖, ou ainda ―se Filosofia não cai no vestibular, por que temos de estudá-la?‖. Questões

surgidas, na maior parte das vezes, logo nos primeiros contatos do aluno com essa ―nova

realidade‖.

Em geral, alunos não costumam questionar a necessidade ou a finalidade da

Matemática ou da Física, ainda que pouquíssimos cheguem a escolher, de fato, tais disciplinas

como carreiras a seguir. E não poderia ser diferente, visto que até um passado recente a

educação brasileira privilegiou, ora mais, ora menos, o conhecimento do tipo técnico-

científico, em detrimento das ―humanidades‖, tendo em vista formar um mercado de trabalho

de ―especialistas e técnicos‖, numa resposta ―adequada‖ à demanda de desenvolvimento e

modernização do mundo industrial-tecnológico.

Ainda que importante para justificar o estranhamento inicial do aluno, essa razão não

é, todavia, a única, talvez nem mesmo a mais fundamental. São também conhecidos de todos

os motivos do autoritarismo para retirar a Filosofia dos currículos escolares e, tendo em vista

as inúmeras e excelentes avaliações sobre o assunto, seria ocioso historiar aqui todo o

percurso feito, entrementes, até agora. Aliás, se considerarmos que sua reinclusão curricular

vem acontecendo de modo gradativo há quase duas décadas, nem se admite mais que essa

―nova realidade‖ possa ser tratada como ―novidade‖.

O que os pensadores e gestores daquele modelo de educação desconheciam é a

necessidade – hoje tornada explícita a partir do próprio sistema produtivo – que as sociedades

tecnológicas têm de que o indivíduo adquira uma educação geral, inclusive em sua dimensão

literária e humanista, se não quiser que ele seja, conforme dizia Dilthey (na Introdução às

Ciências do Espírito, já em 1884), apenas “um instrumento inanimado a seu serviço,

mas(que) não coopera conscientemente para lhe dar sua forma”1. Talvez por isso, criaram-se

3 O presente anexo não se encontra na íntegra. Foi selecionada somente a parte referente aos conhecimentos de

Filosofia.

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as condições para que a nova educação brasileira pudesse prescrever, tanto à Filosofia quanto

às Ciências Humanas, as atribuições pedagógicas com que hoje são apresentadas na Lei

9.394/96 e suas regulamentações. Convém considerar, brevemente, essa apresentação.

Em primeiro lugar, do ponto de vista das finalidades do Ensino Médio, estabelecidas

no Artigo 35 da LDB, destacam-se:

a) “a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino

fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos” (inciso I);

b) “a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para

continuar aprendendo” (inciso II);

c) “o aprimoramento do educando, incluindo a formação ética e o desenvolvimento

da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (inciso III); d) “a compreensão

dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos” (inciso IV).

Há, com certeza, uma contribuição decisiva da Filosofia para o alcance dessas

finalidades: ela nasceu com a declarada intenção de buscar o Verdadeiro, o Belo, o Bom. A

despeito de uma transformação histórica no âmbito de sua competência explicativa – em parte

devida à sua enorme fertilidade em gerar novos saberes –, o pensamento filosófico resiste

precisamente porque não abandona seu motivo originário. Tratando-se aqui de algumas

reflexões a título de contribuição para a prática pedagógica da Filosofia no Ensino Médio, não

chega a ser necessário insistir, junto aos docentes da disciplina, nas razões que lhe conferem

seu enorme e indispensável poder formativo. Mais do que nunca, filosofar é preciso!

Em segundo lugar, do ponto de vista das diretrizes curriculares para o Ensino

Médio,definidas pela LDB, em seu Artigo 36, § 1o destaca-se: “o domínio dos conhecimentos

de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania” (inciso III).

A nova legislação educacional brasileira parece reconhecer, afinal, o próprio sentido

histórico da atividade filosófica e, por esse motivo, enfatiza a competência da Filosofia para

promover, sistematicamente, condições indispensáveis para a formação de cidadania plena!

Em que pese essa competência, entretanto, cumpre destacar que, embora

imprescindíveis, os conhecimentos filosóficos não são suficientes para o alcance dessa

finalidade. Aliás, constitui-se quase num truísmo pedagógico o afirmar que todos os

conhecimentos, disciplinas e componentes curriculares da Educação Básica são necessários e

importantes na formação de cidadania do educando. Nesse sentido, embora restaurando para a

Filosofia o papel que lhe cabe no contexto educacional, a legislação tratou igualmente de

indicar como se deve corretamente dimensioná-la no Ensino Médio: a rigor, portanto, o texto

refere-se aos conhecimentos da Filosofia que são necessários para o fim proposto. Destarte, a

fim de atender à demanda legal, devemos fazer um esforço para recortar, do vasto universo

dos conhecimentos filosóficos, aqueles que imediatamente precisam e podem ser trabalhados

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no Ensino Médio, o que, convenhamos, não é tarefa fácil.

Em terceiro lugar, do ponto de vista de sua inclusão curricular na área de ensino

Ciências Humanas e suas Tecnologias – Diretrizes Curriculares Nacionais, Parecer No 15/98:

“nesta área se incluirão também os estudos de Filosofia” (p. 58).

A despeito de sua proximidade histórica com as ―humanidades‖, poderia causar

estranheza para alguns, talvez, a inserção da Filosofia nessa área específica e não, por

exemplo, na área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. No entanto, supõe-se que a

opção por esta área não foi feita sem dificuldades, ainda que aproximações históricas e

afinidades eletivas tenham sido consideradas: “As múltiplas formas de interação que se

podem prever entre as disciplinas tal como tradicionalmente arroladas nas „grades

curriculares‟, fazem com que toda proposição de áreas ou agrupamento das mesmas seja

resultado de um corte que carrega certo grau de arbitrariedade. Não há paradigma

curricular capaz de abarcar a todas. Nesse sentido, seria desastroso entender uma proposta

de organização por áreas como fechada ou definitiva.” 2 (grifo nosso)

Devemos levar isso em consideração e referirmo-nos sempre ao espírito de uma

legislação que destina um papel primordial para a Filosofia no Ensino Médio. Isso fica mais

claro quando apontamos o foco para a interdisciplinaridade, proposta como eixo estruturante

a ser privilegiado em toda formulação curricular e o modo como devem ser tratados os

conhecimentos filosóficos, conforme indicado expressamente na Resolução 03/98, a saber, no

§ 2o, alínea b do Artigo 10 – “As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar

tratamento interdisciplinar e contextualizado para os conhecimentos de filosofia”. Assim, o

papel da Filosofia fica alargado e poderemos, a partir de qualquer posição em que estivermos,

ajudar a pôr em marcha a cooperação entre as diferentes perspectivas teóricas e pedagógicas

que compõem o universo escolar.

Trata-se aqui, então, de delinear alguns elementos que podem auxiliar na

contextualização mais adequada dos conhecimentos filosóficos no Ensino Médio. Tomando

como ponto de partida o referido inciso III § 1º do Artigo 36, evidenciam-se naturalmente três

questões: (a) que conhecimentos são necessários? (b) que Filosofia? e (c) de que aspectos

deve-se recobrir a concepção de cidadania assumida como norte educativo? É preciso,

primeiro, tentar aproximar-se de (b), examinar (c) e, só então, chegar à discussão de (a).

Não por acaso, como se apontou no início, o aluno do Ensino Médio faz perguntas a

respeito da ―utilidade‖ da Filosofia. Aquém disso, no entanto, a questão mais elementar e à

qual retorna com particular insistência (talvez porque a mais intrigante) é: ―o que é

Filosofia?‖. Naturalmente que também não é mero acaso que o professor de Filosofia tenha,

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em geral, dificuldades em respondê-la satisfatoriamente, suposto que ele não se limite a

repetir essa ou aquela definição mais ou menos clássica. Na verdade, o que é Filosofia

constitui-se, hoje, mais do que nunca, num problema filosófico.

Se, de um lado, a Filosofia não é uma ciência, ao menos não no sentido em que se usa

a palavra para designar tradições empíricas de pesquisa voltadas para a construção de modelos

abstratos dos fenômenos, e se não é, também, uma das belas artes, no sentido poiético de ser

uma atividade voltada especificamente para a criação de objetos concretos, de outro lado, a

Filosofia sempre teve conexões íntimas e duradouras com os resultados das ciências e das

artes e, no esforço de pensar seus fundamentos, muitas vezes foi além delas, abrindo campos

para novos saberes e novas experiências 3. Além disso, em que pese o fato de se ter originado

com uma vocação pela totalidade, ela sempre esteve, a cada etapa de seu desenvolvimento

histórico, defronte a uma determinada ciência particular (ou, se preferirmos, uma ―ontologia

regional‖). No caso da Grécia Clássica, essa ―área limítrofe‖ era a física (isto é, a física grega,

bem entendido). Para a Filosofia moderna, em especial para Kant, essa ciência foi a

Psicologia4. Hoje, vemos o filosofar ir de encontro à Lingüística, à Sociologia, à

Antropologia entre outras. Ademais, dada a sua materialização como escrita, muitas vezes de

beleza e vigor poéticos incomparáveis, não chega a ser inédito que alguns a aproximem da

Literatura...

Ao dirigir o olhar para fora de si, a Filosofia, ao mesmo tempo, tem a necessidade de

se definir no interior do filosofar como tal, isto é, naquilo que tem de próprio e diferente de

todos os outros saberes. No entanto, dada a grande variedade e diversidade dos modos e das

correntes de pensamento filosófico, devemos dizer que existe Filosofia ou tudo o que existe

são apenas filosofias?

Antes de mais nada, não podemos nos esquecer de que uma maneira de filosofar se

relaciona com todas as outras de um modo peculiar. Alguém acolhe uma maneira de filosofar

porque a considera correta e heuristicamente (isto é, do ponto de vista de sua fertilidade

conceptual) proveitosa. Nesse sentido, já quando os primeiros pensadores apontaram-na na

direção da verdade e da razão de ser das coisas, uma concepção filosófica define parâmetros,

possibilidades de pensar que, supostamente, trazem a verdade à razão de quem pensa ou, se

preferirmos, faz a razão desvelar a essência por trás da aparência. E embora seja evidente que

hoje ninguém tem o privilégio particular de poder indicar qual é o critério correto e adequado

para razão ou verdade, é também correto que nenhuma filosofia pode significativamente

abandonar a pretensão de razão com a qual ela mesma veio ao mundo sem, ao mesmo tempo,

contradizer exatamente aquilo que faz, a saber, tentar, com os meios de que dispõe, lançar luz

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onde a compreensão não parece alcançar, enxergar para além das aparências...

Se nos postarmos, pois, numa perspectiva externa, isto é, a de um observador das

atividades culturais, podemos considerar que tudo o que há são, de fato, filosofias. Se, ao

contrário, examinarmos a questão de um ponto de vista interno, a saber, a perspectiva do

próprio agente social que se sente convocado para a empresa da investigação filosófica, então

existe Filosofia: a que ele mesmo pratica e considera ―verdadeira‖, quer dizer, justificada. É

por meio desse critério, aliás, que os professores de Filosofia costumam distinguir as crenças

em geral de uma ―crença‖ que se torna, porque fundamentada em boas

razões e argumentos, uma filosofia.

À multiplicidade real de linhas e orientações filosóficas e ao grande número de

problemas herdados da grande tradição cultural filosófica somam-se temas e problemas novos

e cada vez mais complexos em seus programas de pesquisa, produzindo em resposta a isso um

universo sempre crescente de novas teorias e posições filosóficas. No entanto, é também

verdade que essa dispersão discreta de um filosofar que se move, por certo, no ritmo longo da

academia, mas que certamente não se esgota nela e que, num outro ritmo, chega mesmo a

ensaiar um retorno à praça pública, não pode nos impedir de reconhecer o que há de comum

em nosso trabalho: a especificidade da atividade filosófica consiste, em primeiro lugar, em

sua natureza reflexiva.

Independente da maneira como uma determinada orientação filosófica esteja

configurada, ela sempre concebe seu empreendimento não tanto como uma investigação que

tematiza diretamente este ou aquele objeto mas, sobretudo, enquanto um exame de como os

objetos podem nos ser dados no processo de conhecimento, como eles se tornam acessíveis

para nós. Mais do que aquilo que se tem diante da visão, a atividade filosófica privilegia o

―voltar atrás‖ (reflectere).

Observadas as diferenças de intenção nas várias abordagens filosóficas, o conceito de

reflexão, em geral, abarca duas dimensões distintas que freqüentemente se confundem: a

reconstrução (racional), quando o exame analítico se volta para as condições de possibilidade

de competências cognitivas, lingüísticas e de ação. É nesse sentido que pode(m) ser

entendida(s) a(s) lógica(s), a(s) teoria(s) do conhecimento, a(s) epistemologia(s) e todas as

elaborações filosóficas que se esforçam para explicitar teoreticamente um saber pré-teórico

que adquirimos à medida que nos exercitamos num dado sistema de regras; a crítica, quando

a reflexão se volta para os modelos de percepção e ação compulsivamente restritos, pelos

quais, em nossos processos de formação individual ou coletiva, nos iludimos a nós mesmos e,

por um esforço de análise, consegue flagrá-los em sua parcialidade, vale dizer, seu caráter

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propriamente ilusório. É nesse sentido que podemos compreender as tradições de pesquisa do

tipo da crítica da ideologia, das genealogias, da psicanálise, da crítica social e todas as

elaborações teóricas que estão motivadas pelo desejo de alterar os elementos determinantes de

uma ―falsa‖ consciência e extrair disso todas as conseqüências práticas.

Em suma, a resposta que cada professor de Filosofia do Ensino Médio dá à pergunta

(b) ―que Filosofia?‖ decorre, naturalmente, da opção por um modo determinado de filosofar

que ele considera justificado. Aliás, é fundamental para esta proposta que ele tenha feito sua

escolha categorial e axiológica, a partir da qual lê e entende o mundo, pensa e ensina. Caso

contrário, além de esvaziar sua credibilidade como professor de Filosofia, faltar-lhe-á um

padrão, um fundamento, a partir do qual possa encetar qualquer esboço de crítica. Por certo,

há filosofias mais ou menos críticas. No entanto, independentemente da posição que tome

(pressupondo que se responsabilize teórica e praticamente por ela), ele só pode pretender ver

bons frutos de seu trabalho docente na justa medida do rigor com que operar a partir de sua

escolha filosófica – um rigor que, certamente, varia de acordo com o grau de formação

cultural de cada um.

Essa é uma maneira de encaminhar a resposta à questão (b) ―que Filosofia?‖, que tem

a vantagem de explicitar, de saída, seus pressupostos e que, acredita-se, deva facilitar as

coisas no momento de uma tomada de posição com relação à questão (a) ―que conhecimentos

são necessários?‖, cujo exame é mais conveniente no contexto de uma discussão sobre as

competências e habilidades a serem desenvolvidas em Filosofia. Por ora, é mais oportuno

tentar colocar os termos da questão (c) ―de que concepção de cidadania estamos falando?‖.

Em primeiro lugar, a cidadania é, poderíamos dizer assim, a finalidade síntese da

Educação Básica, a qual não dispensa o contexto do trabalho como sentido prático para sua

realização. As finalidades da Filosofia no Ensino Médio (Artigo 35 da LDB) estão, destarte,

diretamente associadas ao contexto geral das finalidades da Educação Básica (Artigo 32), em

geral, ou às diretrizes de sua área de ensino (Artigo 36/ Parecer No 15/98 / Resolução No

03/98), em particular.

Devemos, pois, tomar, como ponto de partida, os valores tematicamente apresentados

na Lei 9394/96, conforme dispostos na Resolução No 03/98:

I - os fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, ao respeito ao

bem comum e à ordem democrática;

II - os que fortaleçam os vínculos de família, os laços de solidariedade humana e de

tolerância recíproca.

Tais valores, nucleados a partir do respeito ao bem comum e da consciência social,

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democrática, solidária e tolerante, permitem identificar mais precisamente a concepção de

cidadania que queremos para nós e que desejamos difundir para os outros. Eles projetam um

éthos que, embora se refira à totalidade do ser humano, deixa-se clarificar em três dimensões

distintas: estética, ética e política.

Do ponto de vista estético, a cidadania se instala à proporção que se adquire a

capacidade de acesso à própria ―natureza interna‖, suas necessidades e seus pontos cegos 8.

Trata-se, portanto, de um modo de ser que se traduz na fluência da expressão subjetiva e na

livre aceitação da diferença. Por um lado, a capacidade de ―conhecer-se a si mesmo‖ pode ser

traduzida na possibilidade de refletir criticamente no sentido apontado e levar à elaboração

consciente de comportamentos sintomáticos e/ou afetos reprimidos e, por outro lado, a

capacidade de abertura para a diversidade, a novidade e a invenção – que deve materializar-se

expressivamente, num fazer criativo e lúdico – é que tornam possível conceber um dos

aspectos fundamentais em que a cidadania se exercita, a saber, a sensibilidade.

Do ponto de vista ético, a cidadania deve ser entendida como consciência e atitude de

respeito universal e liberdade na tomada de posição. De uma parte, a possibilidade de agir

com simetria, a capacidade de reconhecer o outro em sua identidade própria e a admissão da

solidariedade como forma privilegiada da convivência humana; de outra parte, a liberdade de

tematizar e, eventualmente, criticar normas, além de agir com (e exigir) reciprocidade com

relação àquelas que foram acordadas e o poder, livremente, decidir sobre o que fazer da

própria vida, possibilitam desenhar os contornos de uma cidadania exercida em bases

orientadas por princípios universais igualitários. O aspecto do éthos que se evidencia aqui é o

que chamaríamos de identidade autônoma.

Por último, do ponto de vista político, a cidadania só pode ser entendida plenamente

na medida em que possa ser traduzida em reconhecimento dos direitos humanos, prática da

igualdade de acesso aos bens naturais e culturais, atitude tolerante e protagonismo na luta pela

sociedade democrática. Sem a consciência de direitos e deveres individuais e coletivos, sem a

sede de uma justiça que distribua de modo equânime o que foi produzido socialmente, sem a

tolerância a respeito de opiniões e estilos de vida ―não convencionais‖ e, sobretudo, sem o

engajamento concreto na busca por uma sociedade democrática, não é possível de nenhum

modo que se imagine o exercício pleno da cidadania. É o aspecto que poderíamos chamar de

participação democrática.

Como se vê, estas três perspectivas entrecruzadas devem ser tomadas em conjunto, na

medida em que cada uma delas implica, pressupõe e corrige as outras. Embora

brevissimamente esboçadas, servem ao propósito de explicitar os critérios políticoaxiológicos

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destes Parâmetros Curriculares. Funcionam, portanto, como referência ideal. Sua pontuação,

aqui, justifica-se no sentido de que tudo, desde as concepções de base, passando pelo material

didático, até a relação pedagógica, deve ser pensado coerentemente, se não quisermos repetir

os resultados que aquela antiga educação, referida no início, empenhou-se tão diligentemente

em fazer parecer democráticos.

Por fim, caso se tenha clareza sobre os princípios de cidadania referidos e caso se

possa assumi-los numa perspectiva própria, surge o desafio de fazer aproximar, com todos os

recursos de que se dispõe, realidade e ideal. Para enfrentá-lo, é preciso, antes de tudo,

determinar que papel prático se deve ter, isto é, definir (a) ―que conhecimentos são

necessários?‖. A seguir, aparecem listadas e brevemente comentadas as competências básicas

que o aluno da disciplina deve formar e algumas maneiras, a título de sugestão, pelas quais o

professor pode encaminhar a tradução de princípios em capacidades efetivas. Trata-se, pois,

de prosseguir consolidando a posição conquistada – de direito e de fato – e não se esquivar às

responsabilidades que dela decorrem.

Competências e habilidades a serem desenvolvidas em Filosofia

• Ler textos filosóficos de modo significativo

“As pessoas não sabem o quanto custa em tempo e esforço aprender a ler. Trabalhei nisso

durante 80 anos e ainda não posso dizer que tenha conseguido.” (Goethe)

Graças a uma história de pelo menos 2.500 anos, a Filosofia acumulou um vastíssimo

corpo de conhecimentos, constituindo-se num dos maiores conjuntos bibliográficos de um

único gênero. Esse conjunto poderia ser apresentado, simplificadamente, como uma moeda,

que possui duas faces: uma refere-se às diversas dimensões sobre as quais a elaboração

filosófica se produz, como, por exemplo, a natureza, a arte, a linguagem, a moral, o

conhecimento etc; a outra refere-se às diversas perspectivas filosóficas em que essas

dimensões são abordadas, os diferentes sistemas, diferentes tradições e correntes em Filosofia.

É clara, portanto, a origem da primeira de nossas dificuldades na seleção de conteúdos

programáticos em Filosofia no Ensino Médio. A tentação mais óbvia em que se incorre é,

simplesmente, fazer uma lista enorme, enciclopédica, de áreas, assuntos e autores que devem

ser ―ensi(g)nados‖, ―assimilados‖, sob a justa alegação de que são todos importantes.

Relembrando o mote kantiano de que “não se ensina Filosofia, ensina-se a filosofar”,

a solução para esse aparente impasse parece ser dada pela própria natureza da atividade

filosófica, isto é, sua peculiar característica reflexiva: para além do conteúdo concreto a ser

ensinado, o que está em questão é, antes, a necessidade de tornar familiar ao estudante um

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modo de pensar que aponta, precipuamente, para os pressupostos daquilo que é aparente.

Considerando que todos os conteúdos filosóficos (como, de resto, todos os conteúdos

teóricos) são discursos, veremos que o ensinar Filosofia no Ensino Médio converte-se,

primariamente, na tarefa de fazer o estudante aceder a uma competência discursivo-filosófica.

Destarte, de um ponto de vista propedêutico, a conexão interna entre conteúdo e método deve

tornar-se evidente: que o estudante tenha se apropriado significativamente de um determinado

conteúdo filosófico significa, ao mesmo tempo, que ele se apropriou conscientemente de um

método de acesso a esse conteúdo.

Apropriar-se do método adequado significa, primariamente, portanto, construir e

exercitar a capacidade de problematização. Nisto consiste, talvez, a contribuição mais

específica da Filosofia para a formação do aluno do Ensino Médio: auxiliá-lo a tornar

temático o que está implícito e problematizar o que parece óbvio. Portanto, a competência de

leitura significativa de textos filosóficos consiste, antes de mais nada, na capacidade de

problematizar o que é lido, isto é, apropriar-se reflexivamente do conteúdo.

Uma apropriação, portanto, que deve poder ser feita em todos os níveis de análise do

discurso, a saber, o plano da literalidade imediata, o das vivências associadas a ele, o dos

problemas que lhe são conexos ou dele decorrem e, por fim, o de sua estrutura interna, de

ordem lógico-conceptual. Ademais, o plano dos pressupostos, ou, se preferirmos, o plano

meta-discursivo termina por se converter, ele próprio, em discurso. Assim, o plano geral de

trabalho deve concentrar-se na promoção metódica e sistemática da capacidade do aluno em

tematizar e criticar, de modo rigoroso, conceitos, proposições e argumentos, valores e

normas, expressões subjetivas e estruturas formais. Somente o desenvolvimento dessa

capacidade é que pode indicar que o aluno se apropriou de um modo de ler/ pensar

filosóficoreflexivo.

Sendo evidente que o filosofar não se produz no vácuo, mas se desenvolve a partir de

conteúdos concretos, vale dizer, sobre textos e discursos concretos, uma primeira escolha se

impõe: não é possível pretender que o aluno construa uma competência de leitura filosófica

sem que ele se familiarize com o universo específico em que essa atividade se desenvolve,

sem que ele se aproprie de um quadro referencial a partir dos conceitos, temas, problemas e

métodos conforme elaborados a partir da própria tradição filosófica. Nesse sentido, a

competência aqui referida é bem clara.

É verdade, contudo, que com isso não se resolve ainda o problema prático de que

conteúdos devam ser ministrados, que metodologias e que tipo de material didático devem ser

utilizados. Além disso, qual é a maneira mais adequada de tratar os conteúdos de Filosofia no

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Ensino Médio? Devemos optar por temas, domínios de investigação (áreas) ou pela história

da Filosofia? Devemos tomar a história da Filosofia como linhacentral do programa ou como

referencial? Devemos priorizar a leitura em toda a amplitude possível do(s) autor(es) que

consideramos imprescindível(is) ou nos utilizarmos dele(s) como auxílio luxuoso para uma

compreensão mais abrangente de áreas ou temas pré-selecionados?

Tomar a história da Filosofia como centro, por exemplo, significa que se quer enfatizar

o nexo histórico que subsiste entre os diversos pensadores e a relação que cada produção

filosófica específica possui com suas coordenadas sócio-histórico-culturais. Na

impossibilidade de estudar todos os sistemas e pensadores dessa tradição, é bastante razoável

recortar dela a partir de um determinado ponto de vista que se queira privilegiar. Por exemplo,

sob o enfoque dos paradigmas filosóficos mais significativos na subsunção de

diferentes perspectivas filosóficas, da metafísica à análise da linguagem ou, ainda, explorar

uma determinada ―linhagem‖ de pensadores, por exemplo, os racionalistas.

Pode-se tomar, também, a história da Filosofia como referencial, quando se opta por

dar ênfase a um tratamento temático ou por ―áreas‖ de investigação filosófica. No caso de

uma opção por áreas, por exemplo, filosofia da natureza, filosofia da linguagem, filosofia da

ciência, ética etc, deve-se recorrer à contribuição específica dos filósofos na elaboração de um

corpo de conceitos, doutrinas, questões relativo a cada uma delas e o confronto dessas

diversas contribuições sem, entretanto, ter que aprofundar, necessariamente, o conjunto da

obra do autor, mas, apenas, o(s) aspecto(s) que se refere(m) à área estudada, como, por

exemplo, a crítica kantiana da razão prática, a concepção política de Aristóteles ou, ainda, a

contribuição de Hume para a teoria do conhecimento.

Na opção por temas, pode-se privilegiar questões específicas para a discussão,

consideradas isoladamente ou combinadas com outras, como, por exemplo, o que é Filosofia e

como se relaciona com outros saberes, liberdade e determinismo, a civilização tecnológica,

subjetividade, ideologia, corpo e repressão, trabalho e alienação, linguagem e pensamento,

ética e engenharia genética etc.

Enfim, se a preferência for a concentração em poucos autores (ou mesmo em um), o

destaque será para a dinâmica e a arquitetônica de cada pensamento ou sistema, considerado

numa perspectiva prevalentemente (mas não exclusivamente) interna.

Cada uma dessas opções não exclui a combinação com outras. Nesse sentido, pode-se

imaginar, perfeitamente, uma parte histórica e uma parte temática em um curso de Filosofia.

Também se pode propor, evidentemente que de modo adequado às limitações e possibilidades

do Ensino Médio, um curso cujo centro seja a análise de um autor filosófico - Platão, por

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exemplo - e, a partir dele, abrir uma discussão sobre temas, áreas de elaboração filosófica ou,

ainda, ligá-lo a outras elaborações históricas em conexão com o platonismo. Além disso, não

se pode perder de vista o fato de que cada maneira de tratar os conteúdos possui vantagens e

desvantagens comparativamente às outras. Onde se perde em precisão conceptual, pode-se

ganhar em contextualização ou, ainda, em articulação histórica dos problemas, e vice-versa.

É natural que, tratando-se de discursos das mais variadas origens, dos mais diversos

modos de estruturação interna, deve-se ter critérios muito claros na escolha que se fizer deles

para o cotidiano pedagógico. Um deles, talvez mesmo o mais influente, será o ponto de vista

filosófico do professor, conjugado à sua formação cultural. Outro, não menos importante, são

os dados de realidade que emergem de uma análise cuidadosa, a cargo de toda a escola, a

respeito da capacidade de leitura dos alunos que irão participar na prática educativa.

Considerando o critério da formação cultural do professor, acredita-se que a presente

proposta só pode vir a ser acolhida significativamente, se o docente estiver comprometido

com a continuidade de sua formação (que no caso do ensino público deve ser garantida pelo

Estado). Além disso, se o aprimoramento pessoal é uma finalidade de todos, e não apenas do

educando, não parece razoável supor que profissionais inteligentes simplesmente decidam

parar de ler, de aprender, ... Ainda que o professor de Filosofia no Ensino Médio não esteja

obrigado, por dever de ofício, a produzir novidades intelectuais, sendo suficiente trabalhar

como divulgador e como formador de um público leitor/agente competente, como professor

de Filosofia está (desde sempre já) convocado a honrar uma tradição cujo motivo originário,

historicamente renovado, é o páthos da perplexidade, a troca de certezas por dúvidas e a busca

de esclarecimento.

Considerando o critério da realidade do aluno, acredita-se que, num país de baixa

literatação, como é o nosso caso, uma disciplina com o grau de abstração e contextualização

conceptual e histórica, como ocorre com a Filosofia, supõe que à opção de curso que for feita

deve corresponder um cuidado redobrado com respeito às metodologias e materiais didáticos,

levando sempre em conta as competências de que os alunos já dispõem e o que é necessário

para introduzi-los significativamente no filosofar. Esse zelo metodológico se justifica na

medida em que nem se pode ter a veleidade de pretender formar filósofos profissionais e nem

se deve banalizar o conhecimento filosófico. Ambos os equívocos esvaziam o sentido e

invalidam a pertinência da Filosofia no Ensino Médio.

Não pretender formar filósofos profissionais significa que a presente proposta parte do

pressuposto de que o Ensino Médio não deve ser uma transposição reduzida de qualquer

currículo acadêmico. Ainda que se deva partir dos conhecimentos acadêmicos, deve-se evitar

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o academicismo. Não banalizar o conhecimento filosófico significa não falsear ou trivializar o

sentido de um pensamento filosófico, prática que ocorre, muitas vezes, sob o manto de

metodologias pseudo-facilitadoras da aprendizagem.

No sentido de favorecer a formação tanto desta quanto das outras competências a

seguir indicadas, é preciso ter clareza do fato de que talvez jamais seja possível montar o

―curso ideal‖. Estar-se-á sempre experimentando, inovando e aprendendo o melhor modo de

lidar com as responsabilidades que cabem à disciplina. É possível indicar, contudo, a título de

um quadro de referências, que competências específicas contribuem para o desenvolvimento

de uma competência geral de leitura filosófica.

Em primeiro lugar, a capacidade de análise. Não é possível criticar nada sem o recurso

ao exame detalhado dos elementos conceptuais que possibilitam a compreensão precisa de um

texto filosófico. Essa capacidade se articula com outras, como por exemplo a destreza

hermenêutica, isto é, a capacidade de interpretação. Trata-se, aqui, de tematizar aspectos

implícitos, recuperar a ―camada profunda‖ que se oculta para além do que é dito

expressamente. Além disso, a capacidade de reconstrução racional do texto indica a

possibilidade de se reconfigurar a ―ordem de razões‖ que o sustenta e avaliar sua coerência

interna. Por fim, a capacidade de crítica ou problematização aponta para o necessário

distanciamento que o intérprete deve ter do texto, de modo a evitar um comprometimento

equivocado com o ponto de vista apresentado.

É, aliás, essa capacidade crítica que define o sentido mais próprio de um pensar

autônomo, isto é, um pensar capaz de, entre outras, confrontar o dito e o não-dito, igualmente

presentes no texto, imaginar possibilidades alternativas, flagrar a parcialidade e, quando for o

caso, a ―falsidade‖ implicadas em uma determinada compreensão do mundo articulada no

texto e, a partir disso, extrair suas implicações de ordem cognitiva, afetiva, moral e sócio-

política. Em última análise, a pergunta ―a que finalidade e propósito serve este texto?‖ deve

poder encontrar uma resposta satisfatória a partir da perspectiva de cada intérprete. A

possibilidade de tomar posição por sim ou por não, de concordar ou não com os propósitos do

texto é um pressuposto necessário e decisivo para o exercício da autonomia e, por

conseguinte, da cidadania.

• Ler, de modo filosófico, textos de diferentes estruturas e registros.

Uma vez que toda vida humana – no que tem de especificamente humano – está

constituída no medium do trabalho e no da comunicação lingüística, acredita-se que a

capacidade de “compreender os elementos cognitivos, afetivos, sociais e culturais que

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constituem a identidade própria e a dos outros” (Parecer nº 15/98, Resolução nº 3/98) só

pode ser produtivamente efetivada a partir do desenvolvimento de uma competência

comunicativo-lingüística. Por sua vez, essa competência supõe a capacidade de decodificação

dos significados pelos quais construímos a vida em comum e, ao recodificá-los,

ressignificálos, construir uma vida própria, que se constitui simbolicamente numa identidade

própria (a qual, por sua vez, está sempre referida à dos outros). A essa capacidade de

decodificação/recodificação poder-se-ia designar, genericamente, como leitura.

Uma vez que todo aluno, na própria medida do seu ser social-simbólico, já possui uma

competência de leitura previamente construída, uma prática de ensino metódica e

sistematicamente orientada e conduzida deve favorecer o desenvolvimento dessa competência

de realizar tanto uma leitura significativa – filosófica – de textos filosóficos quanto ler,

filosoficamente, textos estruturados a partir das configurações discursivas próprias das

diferentes esferas culturais. Além disso, essa competência de leitura e análise, deve poder ser

aplicada aos mais variados registros ou suportes textuais.

Não se trata aqui, obviamente, de pretender que o desenvolvimento de uma

competência de leitura filosófica possa autorizar o aluno de Filosofia a seguir julgando outras

produções culturais a partir de um pedestal superior e imune, ele mesmo, a um contradiscurso.

Ao contrário, o que se quer enfocar é a necessidade de desenvolver no aluno um olhar

especificamente filosófico, vale dizer, analítico, investigativo, questionador, reflexivo, que

possa contribuir para uma compreensão mais profunda da produção textual específica que tem

sob as vistas. Por um lado, é fundamental que ele tenha internalizado um quadro mínimo de

referências a partir da tradição filosófica, as quais, devem poder ser postas à disposição,

principalmente pelo trabalho do professor, mas não exclusivamente, na medida em que se

deve estimular o gosto da pesquisa individual. Por outro lado, isso, muitas vezes, não será

suficiente: como entender e avaliar filosoficamente uma obra de arte como um filme autoral,

por exemplo, sem o recurso a todo um conjunto de outras referências culturais, sem as quais o

filme pode não fazer nenhum sentido? Como problematizar o método científico, sem o

conhecimento prévio de alguns modos e procedimentos usuais da pesquisa científica e de

como eles são historicamente constituídos? Como se referir criticamente ao ―hipertexto‖ que

são o entorno sócio-cultural e o horizonte do mundo tecno-científico, sem a aquisição de

informações e referências advindas das mais diversas origens e sem saber das lutas que são

travadas para que o mundo se mantenha desse modo específico?

Portanto, o desenvolvimento dessa competência tem implicações que extrapolam o

alcance de um curso de Filosofia meramente disciplinar. Seria preciso ir além disso e trazer

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para a prática cotidiana do aprender a filosofar (na medida do possível) alguns casos

exemplares de outros textos, em diferentes suportes, que não o texto especificamente

filosófico. Nesse sentido, é possível compor um programa de trabalho centrado

primordialmente nos próprios textos da tradição filosófica, mas não exclusivamente neles.

Por outro lado, é possível desenvolver diversas práticas pedagógicas que permitam ler, com

esse enfoque, tanto os textos de todos os conhecimentos sistemáticos que a escola oferece

quanto textos de conhecimentos não-sistemáticos, intra/extra escolares.

É indispensável, nesse processo, aprender a respeitar a especificidade de cada estrutura

discursiva (científica, narrativa, filosófica, moral, artística etc) e considerar, com igual

cuidado, o registro ou o suporte textual específico em que essa estrutura se apresenta

(discursos teóricos, técnicos, vídeos, filmes, peças teatrais, músicas, obras plásticas, jornais,

discursos políticos, posturas pessoais e/ou coletivas etc.). Sem isso, corre-se o risco de não se

conseguir nada além de ―emitir opiniões interessantes‖ sobre este ou aquele assunto, livro,

filme, pintura etc., isto é, de não se conquistar um ponto de vista realmente fundado e

articulado.

A competência de leitura filosófica de outros discursos significa, por certo, a

capacidade de problematizar e refletir a partir das estruturas e registros específicos desses

discursos, isto é, lê-los com um olhar crítico. Isto pode ser traduzido também, mas não

necessária ou unicamente, no exercício do reconhecimento de orientações filosóficas,

refletidas ou não, originais ou não, que, eventualmente, possam habitar neles. De qualquer

modo, o desenvolvimento dessa competência supõe a capacidade de articular referências

culturais em geral e, mais especificamente, a capacidade de articular diferentes referências

filosóficas e diferentes discursos. Uma prática, portanto, comprometida com o pressuposto de

uma leitura transdisciplinar do mundo, a qual deve poder ser fomentada pela escola na medida

em que os diversos conhecimentos disponíveis se interliguem numa rede.

• Articular conhecimentos filosóficos e diferentes conteúdos e modos discursivos nas ciências

naturais e humanas, nas artes e em outras produções culturais.

Entre outros fatores, a decadência do domínio político da Igreja Católica, a

possibilidade de se conceber um universo infinito, introduzida pela astronomia de Copérnico,

os descobrimentos marítimos, o avanço da técnica e o enriquecimento da burguesia,

contribuíram para alterar radicalmente a cosmovisão do Ocidente, a partir do século XVI. Na

seqüência histórica, a instalação do projeto da Modernidade deu início a um processo de

diferenciação cultural que logrou tornar autônomas três dimensões axiológico-culturais:

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a) a ciência moderna;

b) o direito natural racional e as éticas profanas baseadas em princípios;

c) a arte autônoma e a crítica de arte institucionalizada.

Estas três manifestações culturais foram, progressivamente, retraindo-se para domínios

autônomos e expelindo as conexões diretas que antes possuíam com o todo da vida cultural,

passando agora a exibir suas estruturas próprias de racionalidade. Questões de verdade, de

justiça e de gosto, doravante, passam a ser respondidas no interior de cada um desses quadros.

A modernidade cultural, portanto, caracteriza-se, em princípio, pela ruptura e pela

fragmentação daquilo que antes estava reunido em uma visão do mundo unificada, sob a

tutela das verdades ―reveladas‖. A dessacralização do mundo e a racionalização do sistema

produtivo, para retomar Weber, levaram o processo de modernização social ao estado em que

nos encontramos hoje, a saber: que não podemos mais reunificar esses domínios autônomos

sem enfrentar grandes dificuldades de mediação teórica. Além disso, na realidade cotidiana,

experimentamos o enorme desconforto que resulta da contradição entre as diferentes

interpretações cognitivas, expectativas morais, possibilidades expressivas, valorações e a

necessidade de interpenetrar todos esses aspectos num projeto de vida significativo.

No intuito de minorar esse desconforto, emergiram respostas oriundas de todos os

domínios em que a modernidade se compartimentalizou. Uma delas, destacada pelas

Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio como eixo privilegiado, é a concepção

de interdisciplinaridade. O termo remonta, como se sabe, à problemática instaurada pela

pesquisa científica, quando da tentativa de delimitação de domínios de investigação que

recaem, por assim dizer, num ―entre disciplinas‖, como, por exemplo, a físico-química, a

bioquímica, a psicolingüística etc. Mais recentemente, entretanto, o conceito de

interdisciplinar passou a apontar para a necessidade de se ir além de uma prática científica

meramente disciplinar, buscar as conexões existentes entre todos os saberes e tentar abrir os

canais de diálogo entre todas as comunidades especializadas.

Sendo a escola o espaço institucional por excelência da difusão do conhecimento,

nossos currículos escolares estão, naturalmente, decalcados desse pano de fundo cultural

fragmentador, isto é, nossa prática escolar ainda se ancora no ensino de disciplinas isoladas,

para não dizer desconexas. O resultado já conhecido é a falência e a insuficiência de nossos

modelos educacionais, do ponto de vista de seus mais altos objetivos, os quais exigem a

formação de competências gerais e básicas nos planos cognitivo, instrumental, moral, político

e estético. A reforma curricular que ora se apresenta visa, expressamente, a tentar corrigir essa

distorção.

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Assim como na formação das outras competências referidas, também nesta a iniciativa

em questão deve partir do professor. Nesse sentido, cada docente está convocado a um esforço

de superação da tendência cultural a uma óptica reducionista, isolacionista. É necessário, mais

do que nunca, levar o aluno a ampliar seu campo de visão até a inteira latitude do real, no

sentido de apreendê-lo, não como um amontoado caótico de coisas independentes e que

apenas se sucedem desordenadamente, mas, sim, como um conjunto de relações entre todos

os seus elementos, como uma trama que supõe a costura e o entrelaçamento dos fios: é

preciso tomar o real como uma totalidade inter-relacionada.

A conseqüência de uma opção pela interdisciplinaridade deve ser, portanto, a formação

de cidadãos dotados de uma visão de conjunto que lhes permita, de um lado, integrar os

elementos da cultura, apropriados como fragmentos desconexos, numa identidade autônoma

e, de outro, agir responsavelmente tanto em relação à natureza quanto em relação à sociedade.

Todavia, cabe aqui uma advertência: podemos facilmente cair na tentação de fazer

meras justaposições de conteúdos programáticos distintos num mesmo espaço didático, aula,

atividade etc, ou, ainda, associações rápidas e superficiais entre conhecimentos e discursos

que, como já dissemos antes, pertencem a domínios cognitivos e culturais que não podem

nem devem ser reduzidos ou subsumidos uns aos outros. Não sendo satisfatório um

planejamento curricular estritamente disciplinar, também não é satisfatório remediar esse

estado de coisas, fazendo superposições precipitadas, equivocadas e, a bem do uso

competente do período letivo, desnecessárias: “Por isso, a interdisciplinaridade, antes de ser

uma tentativa de estabelecer conexões primárias entre as disciplinas, deve orientar-nos, antes

de mais nada, no sentido de perceber a inter-relação entre as expressões da realidade. É

compreendendo a realidade como totalidade que poderemos educar para a totalidade. Tentar

apenas estabelecer simples fios condutores entre as diferentes disciplinas é tentar tapar o sol

com a peneira, tentar esconder o que de fato precisa ser denunciado.”

Possuindo uma natureza, a rigor, transdisciplinar (metadisciplinar), a Filosofia pode

cooperar decisivamente no trabalho de articulação dos diversos sistemas teóricos e

conceptuais curriculares, quer seja oferecida como disciplina específica, quer, quando for o

caso, esteja inserida no currículo escolar sob a forma de atividades, projetos, programas de

estudo etc. É oportuno recomendar expressamente que não se pode de nenhum modo

dispensar a presença de um profissional da área, qualquer que seja a forma assumida pela

Escola para proporcionar a construção de competências de leitura e análise filosófica dos

diversos textos em que o mundo é tornado significativo. Nesse sentido, cabe frisar que o

conhecimento filosófico é um saber altamente especializado e que, portanto, não pode ser

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adequadamente tratado por leigos.

Considerando a transdisciplinaridade a partir do ponto de vista de seus próprios

conteúdos disciplinares, a Filosofia pode, por exemplo, levar o estudante à apropriação

reflexiva de conceitos, modos discursivos e problemas das Ciências Naturais (questões de

método, estruturas discursivas lógico-matemáticas, a enunciação empírico-analítica etc), das

Ciências Humanas (o a priori lingüístico-cultural, estruturas discursivas críticas, a enunciação

histórico-hermenêutica etc.) e das Artes (o fazer artístico, estruturas discursivas

poéticas, a enunciação estético-expressiva etc).

Além disso, ao se apropriar reflexivamente de conceitos, temas, doutrinas e problemas

específicos referidos nos textos especificamente filosóficos, sejam eles recortados do interior

de um sistema filosófico ou a partir de outras esferas culturais (como é o caso de cientistas ou

críticos de arte que refletem sobre sua própria prática), o aluno adquire, ao mesmo tempo, um

conjunto de referências que lhe permite reconhecer as ―relações de parentesco‖ existentes

entre as diferentes abordagens filosóficas e as mais diversas produções culturais, desde a

ciência até a arte: o positivismo científico, o historicismo, o relativismo na antropologia

cultural e o subjetivismo estético, por exemplo, radicam-se em elaborações filosóficas bem

conhecidas.

Considerando a inter/transdisciplinaridade do ponto de vista de outros conteúdos

disciplinares, é evidente que deve restar em aberto o modo pelo qual os agentes sociais no

sistema escolar optam por construir o ―ensino de área‖, a saber, que pontes pretendem

estabelecer entre si. A partir deste ponto de vista, somente a construção socialmente

compartilhada de um currículo escolar inter/transdisciplinar e contextualizado é que pode

produzir a articulação efetiva dos conhecimentos filosóficos e dos outros conhecimentos e,

assim, auxiliar o aluno a alcançar uma compreensão ampla e integrada dos diferentes

conteúdos disciplinares. Nesse sentido, uma Filosofia só não faz verão...

Qualquer que seja o ângulo considerado nessa questão, o fundamental é que a

Filosofia não se furte ao compromisso, desde sempre assumido, com o reencontro da unidade

possível dentro da diversidade. Bem entendido que não se trata mais de fazer soar uma ―voz

soberana‖ que aspira à explicação da totalidade. Essa pretensão, hoje, tornou-se injustificável.

No entanto, ela ainda não pode sentir-se dispensada de se referir à totalidade.

• Contextualizar conhecimentos filosóficos, tanto no plano de sua origem específica quanto

em outros planos: o pessoal-biográfico; o entorno sócio-político, histórico e cultural; o

horizonte da sociedade científico-tecnológica.

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Embora se possam distinguir diferentes competências, no plano de uma análise com a

finalidade de ressaltar as condições de sua construção ou as suas características mais

específicas, não se pode, a rigor, isolá-las como capacidades estanques. Nesse sentido, as três

competências listadas a seguir estão, de fato, intimamente ligadas às três outras referidas

anteriormente.

A capacidade de contextualizar os conhecimentos imbrica-se com a destreza

hermenêutica, assim como com a crítica. Elaborar por escrito os resultados de uma

aprendizagem implica também uma prévia operação de análise e reconstrução quando da

leitura, isto é, recompor os traços que foram observados e examinados no momento de se

compreender o texto. Por sua vez, participar em debates sistemáticos – um evento certamente

ainda bastante incomum em nossa prática escolar – reúne ao mesmo tempo todas essas

competências.

O recurso do tratamento contextualizado dos conhecimentos, por parte da escola, pode

auxiliar o aluno a desenvolver competências de mediação entre ele mesmo e os diferentes

conhecimentos, isto é, o tornar-se intérprete. Essa competência de interpretação/tradução, para

ser completa, deve poder ser pensada em duas direções, a saber: tanto no sentido ascendente

quanto descendente, isto é, tanto na direção do intérprete em seu próprio contexto, até o

contexto específico de um conhecimento, quanto na direção oposta, ou seja, quando se trata

de ―aplicar‖ um conhecimento a uma situação determinada no contexto do próprio intérprete.

Nesse sentido, a metodologia utilizada pode ir tanto do vivencial para o abstrato quanto deste

para a situação de aprendizagem. E deve transitar o mais possível nas duas direções. Em

ambos os casos, é pela capacidade do professor de escutar atentamente, exibir uma sincera

postura dialógica (não autoritária) e, não menos importante, estabelecer habilmente as

ligações suficientes, que uma competência de contextualização pode ser desenvolvida.

Ao serem apresentados ao aluno, os conhecimentos filosóficos, abstratos por sua

natureza, exigirão dele um esforço de inteligibilidade a que normalmente, isto é, na

perspectiva do senso comum cotidiano, não estão acostumados. É necessário que ele tenha

ultrapassado o estágio do egocentrismo léxico 13 – que consiste na dificuldade que tem o

jovem leitor de aceitar a argumentação do autor, já que ainda continua envolvido em suas

próprias fantasias e idéias – e atingido o estágio da disciplina receptiva (Elkind) – que

consiste na descentração necessária para abandonar (temporariamente) seu próprio ponto de

vista e seguir a argumentação do autor, considerando o ponto de vista deste.

Para contextualizar os conhecimentos filosóficos, tem-se, em primeiro lugar, que

localizálos no sistema conceptual de onde provêm originariamente. O que supõe o

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aprendizado da linguagem em que estão formulados – não é possível entender Descartes, por

exemplo, sem o recurso às ―regras gramaticais‖ que configuram seu pensamento. Em segundo

lugar, é imprescindível assinalar as coordenadas gerais em que esse pensamento se inscreve.

Para serem compreendidos, portanto, é necessário que os conhecimentos filosóficos

sejam interpretados, ao mesmo tempo, na perspectiva de seu autor e no contexto de origem

desse pensamento. Para torná-los compreensíveis, é preciso, como já foi referido

anteriormente, que o professor conheça e leve em consideração as dificuldades e

competências prévias do aluno/intérprete. Para compreendê-los, o aluno/intérprete tem de:

a) partir de seus conhecimentos, capacidades e contexto pessoal (biográfico, sóciohistórico

etc);

b) abandonar essa primeira perspectiva e alcançar o texto em seu contexto específico;

c) retornar às suas próprias demandas problemáticas. Em síntese, uma ―exegese‖ do

texto filosófico só é possível na perspectiva de uma mediação entre o texto e o contexto de

seu intérprete.

Por outro lado, que o aluno tenha conseguido – na medida da precisão conceptual

possível no Ensino Médio – conquistar um acesso significativo a um determinado conteúdo

filosófico, implica que possa dispor dele com mais liberdade para ―aplicá-lo‖, isto é, reutilizá-

lo, transferi-lo para outras situações cognitivas ou de análise, vale dizer, compor suas

habilidades. É, aliás, essa possibilidade de aplicação o melhor critério para o reconhecimento

de que uma competência foi adquirida de fato. Não se pode dizer que um indivíduo disponha

de uma competência lingüística, por exemplo, se ele não é capaz de se comunicar em qualquer

uma das linguagens, ou seja, de aplicar essa competência em comunicações concretas.

Considerando essa aplicação ao plano pessoal-biográfico, uma competência de

contextualização a partir de conhecimentos filosóficos pode ser muito importante na

compreensão de determinadas vivências, sem falar, é claro, da riqueza que o imenso

panorama filosófico tem a oferecer como contribuição na tarefa de construir uma (ou

reconhecer-se numa) visão do mundo cujos pressupostos busquem fundamentar-se de modo

refletido, crítico.

Por outro lado, ao conquistar um estilo pessoal de pensar e refletir, o aluno tem a

possibilidade de retornar essa reflexão sobre si próprio. Pode, nesse sentido, identificar tanto

sua originalidade quanto a falta dela; valorizar o trabalho como meio privilegiado da

autoconstrução e desvalorizar a labuta como valor em si; reconhecer suas capacidades,

potencialidades e dificuldades; abrir-se para as diferenças discursivas e habilitar-se a aprender

com argumentos morais, entre tantas outras coisas. Além disso, é possível – como um

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resultado lateral tanto desejável quanto imprevisível – deixar livre o espaço para mudanças na

estrutura afetivo-motivacional, caso tenha conseguido, reflexivamente, aperceber-se de

sintomas que indiciam obstáculos no seu ―ir adiante‖. Tudo isto aponta para a direção da

autonomia na condução de si mesmo e para a emancipação de todas as repressões inúteis, a

que todo ser humano tem direito. Que a Filosofia não seja, muitas vezes, afirmativa, pode ser

muito útil, quando tudo o que se necessita, num momento de formação, é examinar

criticamente as certezas e verdades, questionar os valores e deixar aberto o espaço para a

invenção significativa da própria vida.

Como, de fato, a vida de cada um se passa sempre num dado entorno sócio-

históricocultural, saber ler esse entorno com um olhar filosófico é de fundamental

importância para quem quer que seja. Nesse sentido, para além de apenas fornecer referências

culturais, a Filosofia serve ainda mais quando o aluno a contextualiza no seu tempo e espaço

sociais. É possível, assim: identificar com clareza sua posição de classe; lidar melhor com a

complexidade e a pluralidade de discursos, valores e coisas que parecem se amontoar

desordenadamente; reconhecer o trabalho social como esforço comum necessário para a

construção da vida compartilhada, além de reconhecer a injustiça e a inumanidade na

distribuição dos frutos desse esforço histórico coletivo; trazer à tona e apontar o arsenal da

crítica filosófica contra toda contextura de interesses apoiados em normas morais injustas; na

medida em que sejam reconhecidos, desmascarar comportamentos inautênticos. Pode ajudá-lo

a identificar distorções na dimensão política em seus vários níveis (e opor-se a elas, na

medida de sua coragem), desde a sala de aula, passando pelo bairro/condomínio, cidade,

estado, até a esfera nacional; também a rastrear seus próprios impulsos autoritários,

totalitários, e que raízes esses impulsos deitam em seu contexto sociovital. Sobretudo, pode

auxiliá-lo a compreender a dimensão preeminentemente social que tem sua própria vida e a

descobrir que seu projeto de vida se torna tanto mais pessoal e significativo quanto mais se

aprofunda no contexto da comunidade em que se projeta, seja ela entendida local, regional ou

universalmente.

Por fim, quando contextualizados no horizonte de uma sociedade que se reproduz

sistemicamente por meio da ciência e da tecnologia, os conhecimentos de Filosofia podem

levar o aluno a descobrir, por exemplo, no contexto de que estruturas discursivas, sistemas de

representação e movimentos ideológicos foram plasmadas, historicamente, essas forças

produtivas; que características apresentam; que importância e poder possuem; que papel

concreto desempenham; que relações têm com o atual estado de coisas em casa, na escola, no

bairro, na cidade, no país, no mundo; que impacto produzem nas relações sociais e na

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afetividade, na escolha profissional e na própria garantia de vida, tornada problemática com a

alteração globalizada das relações entre capital e trabalho; que conexões podem

eventualmente possuir com interesses econômico-políticos inconfessáveis. Uma

contextualização bem feita, no rumo proposto, pode facilitar a desmistificação de muitas

lendas e a derrubada de uma grande quantidade de preconceitos infundados a esse respeito,

mas pode, também e essencialmente, ajudar a explicitar os fundamentos críticos de um

número ainda mais de opiniões absolutamente justificadas.

• Elaborar, por escrito, o que foi apropriado de modo reflexivo.

“Quem não sabe escrever não aprendeu a ler.” (Paulo Freire)

A uma certa competência de leitura deve corresponder, necessariamente, uma certa

competência de escrita. Pressuposta a adoção de alguma(s) das metodologias e técnicas de

leitura, análise e fichamento de textos à disposição e estimulada a prática da pesquisa

bibliográfica, preferencialmente individual, mas também em conjunto, é razoável admitir que

o aluno desenvolva capacidades de escrita que lhe permitam elaborar, de forma própria, os

resultados de sua aprendizagem, a partir de suas pesquisas, leituras, análises individuais,

discussões em grupos de trabalho e, inclusive, de apontamentos e conteúdos ―fornecidos‖ pelo

professor.

Para se apropriar mais completamente de toda a riqueza possível de um texto, o aluno

tem que desenvolver alguns procedimentos analíticos e, ao fazê-lo, ele já precisa ir

registrando, de algum modo, suas impressões, interpretações, observações parciais etc, até que

consiga reconstruir a estrutura textual e efetuar as críticas que julga pertinentes. Portanto, uma

reelaboração por escrito dos conteúdos é simplesmente o contraponto necessário de uma

leitura criteriosa. Para além disso, deve-se esperar que o aluno possa desenvolver

argumentações próprias e aprender a encadeá-las, no sentido de estruturar uma justificação

para suas críticas.

A rigor, na escola só é possível acompanhar o desenvolvimento das quatro primeiras

competências listadas a partir de uma avaliação bem feita das duas últimas e, em especial, da

capacidade de elaborar o aprendizado por escrito. Enquanto na situação de uma exposição em

seminário ou no calor de um debate pode-se estar distraído ou ser impreciso, diante de um

texto produzido pelo aluno, tem-se a possibilidade, além da obrigação, de avaliar com mais

vagar e mais objetividade. É quando se pode indicar a cada um os motivos, um por um, que

levam a endossar ou recusar a elaboração feita e sugerir os encaminhamentos devidos. Além

disso, a quantidade de informações trazidas e o grau de articulação presentes no texto escrito

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são, em geral, seguramente maiores.

A elaboração escrita do aluno constitui uma situação de avaliação privilegiada, na

medida em que ele pode tomar conhecimento da opinião do outro sobre sua produção, referir-

se a algum padrão social mente aceito, representado pela escola. Além disso, ao escrever, o

aluno pode objetivar seus processos de compreensão e tomá-los como elementos de

autoconstrução consciente. Nesse caso, o desenvolvimento da competência de escrita não é,

de nenhum modo, um aspecto secundário no desenvolvimento da personalidade, dos

mecanismos de aprendizagem e, evidentemente, de um pensar reflexivo.

• Debater, tomando uma posição, defendendo-a argumentativamente e mudando de

posição face a argumentos mais consistentes.

“Quando Aristóteles define o homem como „animal político‟, sublinha o que separa a

Razão grega da de hoje. Se o homo sapiens é a seus olhos um homo politicus, é que a

própria Razão, em sua essência, é política.” (J.P. Vernant)

Num texto bastante famoso, J. P. Vernant conjumina o nascimento da Filosofia e o

advento da pólis: “entre as duas ordens de fenômenos, os vínculos são demasiado estreitos

para que o pensamento racional não apareça, em suas origens, solidário das estruturas

sociais e mentais próprias da cidade grega” 14. A Filosofia, portanto, nasceu no espaço

social que constituiu a democracia grega, um espaço-praça (ágora) criado em função do

debate público acerca da vida comum.

Fica claro, então, a partir do sentido proporcionado pelo contexto originário da

Filosofia, porque esta é uma espécie de competência-síntese das anteriores: a partir de um

ponto de vista rico na informação, claro na formulação, concatenado na articulação e

fundamentado reflexivamente, vale dizer, elaborado conscientemente e decididamente

posicionado, o aluno deve poder participar, em igualdade de condições, em qualquer debate,

sistemático ou não, intra e/ou extra- escolar.

Uma vez que se trata de construir conhecimento e vida em comum, ele está

imediatamente convocado a participar no debate, a começar pelo espaço escolar: só será

possível desenvolver a capacidade de uma tomada de posição refletida se, durante a exposição

do professor, em sua própria exposição oral, na discussão em pequenos grupos ou num debate

generalizado em sua turma, ele tiver e atribuir de modo simétrico aos interlocutores a

oportunidade de, com toda liberdade, perguntar, responder, solicitar e fazer esclarecimentos,

opor-se, criticar, confrontar diferentes posições e possibilidades, recusar interpretações, fazer

interpretações etc e, em especial, mudar de posição quando estiver convencido de que a sua

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pode não ser necessariamente a melhor.

Nesse sentido, para o professor, nem mesmo o conteúdo programático deve estar

excluído do debate com o aluno, muito ao contrário. É mesmo desejável que, na medida do

possível, este possa manifestar-se, fazer opções, discutir encaminhamentos e, quem sabe até,

metodologias e materiais didáticos. Ou seja, o professor deve estar atento para reorientar o seu

curso em atendimento a demandas legítimas que se instalem durante o processo. Para o aluno,

por sua vez, aprender a negociar seus interesses no conjunto de outras preferências é uma das

mais ricas conquistas da aprendizagem. Como em tudo o mais, depende muito de que o

professor seja capaz de uma decidida abertura pedagógica no sentido de fomentar e estimular

a aprendizagem como prática discursiva, na qual o debate sistematicamente conduzido tem

lugar de destaque.

Visto que ninguém pode, sensatamente, pretender dominar tudo o que outros agentes

sociais sabem, participar significativamente num debate é sempre aprender com ele. Por um

lado, a prática constante do debate propicia o desenvolvimento e o fortalecimento da

capacidade individual de fazer sua própria voz ser ouvida na ―assembléia‖, na medida em que

o aluno possa aceitar livremente suas regras e manifestar seu desacordo acerca de qualquer

infração das regras do debate. Por outro lado, essa mesma prática pode auxiliá-lo a reformular

seus pontos de vista, incorporar novas visões a respeito do assunto-objeto do debate,

internalizar normas mais justas e, se for o caso, alterar sua posição inicial. Trata-se aqui

também de uma mediação: a autonomia deve poder livremente reconhecer os melhores

argumentos.

A rigor, por sua relevância para o desenvolvimento de uma competência global de

aprender a aprender, esta última competência não diz respeito apenas à disciplina Filosofia.

No entanto, é também verdade que, assim como na concepção grega de paidéia, a Filosofia

ainda compreende sua missão pedagógica como um compromisso com o desenvolvimento da

competência discursiva em toda a sua extensão e não apenas filosófico-discursiva. Acredita-se

mesmo que este seja o quadro geral em que se inscreve a cidadania. Um conceito, aliás, que

remete necessariamente à participação na vida da pólis, à dimensão prática de um

debate/embate que se deve travar cotidianamente, a fim de redistribuir os poderes de forma

mais simétrica e igualitária. Diante da sintomática despolitização da sociedade

contemporânea, desenvolver a competência política com o objetivo de repolitizar uma práxis

esvaziada, converte-se, talvez, na mais urgente tarefa da educação.

Evidentemente, tratando-se de competências, delas se pode dizer que alguém as possui

em maior ou menor grau. Quem toca piano, por exemplo, pode tocá-lo mais ou menos

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virtuosamente. No entanto, ele dispõe de alguma competência para o instrumento. No caso do

aluno de Filosofia do Ensino Médio, o grau mínimo que assinala a construção das

competências previstas (no qual certamente devem estar incluídas todas as condições para o

crescimento e a aprendizagem contínuos, isto é, o desenvolvimento dessas competências e

suas reaplicações-habilidades) deve poder ser medido, em último caso, através da constituição

dessa autonomia discursiva ou (o que vem a ser sinônimo) da construção de uma competência

de participação democrática.

Todavia, dado o caráter essencialmente dinâmico dos processos de aprendizagem e de

formação, não é possível indicar, por razões óbvias, ―o modo concreto e inquestionável‖ a

respeito de como avaliar, completa e corretamente, se e quando já se construíram essas

competências. Ademais, por se tratar de regras, é conveniente ter claro que elas possuem a

especial característica de sempre dependerem do acordo de pelos menos dois indivíduos sobre

o sentido de sua aplicação correta...

Infelizmente, a maioridade (no sentido kantiano), pretendida em todo projeto

educacional digno desse nome, é, ainda hoje, mais uma direção a que se tende do que uma

realidade que se constate no dia-a-dia do trabalho pedagógico e, a dar razão a Freud, a grande

maioria dos indivíduos ―adultos‖ de uma sociedade humana não chegam a ser adultos de fato.

Em todo caso, porque não é possível nos esquecermos do horror, temos o dever de lutar e o

direito de esperar que um trabalho bem feito de nossa parte possa contribuir para a formação

de homens mais dignos, livres, sábios, diferentes e iguais, capazes até, ao invés de se

adaptar, de recusar o mundo tal como está proposto nos termos atuais e engajar-se

ativamente em sua transformação, com vistas a uma convivência mais justa e fraterna.

É pedir demais que esse viver seja, quem sabe, mais feliz?

Competências e habilidades a serem desenvolvidas em Filosofia

Representação e comunicação

• Ler textos filosóficos de modo significativo.

• Ler, de modo filosófico, textos de diferentes estruturas e registros.

• Elaborar por escrito o que foi apropriado de modo reflexivo.

• Debater, tomando uma posição, defendendo-a argumentativamente e mudando de

posição face a argumentos mais consistentes.

Investigação e compreensão

• Articular conhecimentos filosóficos e diferentes conteúdos e modos discursivos nas

Ciências Naturais e Humanas, nas Artes e em outras produções culturais.

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Contextualização sócio-cultural

• Contextualizar conhecimentos filosóficos, tanto no plano de sua origem específica,

quanto em outros planos: o pessoal-biográfico; o entorno sócio-político, histórico e

cultural; o horizonte da sociedade científico-tecnológica.

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ANEXO 12

Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais

(PCN+)4

Ciências Humanas e suas tecnologias

Filosofia

Os conceitos estruturadores da Filosofia

Examinemos, na Lei de Diretrizes e Bases (n° 9.394, de 1996), alguns artigos dos

quais poderemos partir:

• o art 2° prescreve que a educação tem por finalidade o pleno desenvolvimento do

educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho;

• o art. 27, que trata dos conteúdos curriculares da educação básica, estabelece como

diretrizes a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos

cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática;

• o art. 35 estabelece como finalidades do Ensino Médio, além da preparação básica

para o trabalho e a cidadania do educando, o seu aprimoramento como pessoa humana,

incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento

crítico (inciso III) e a compreensão dos fundamentos científicos e tecnológicos dos processos

produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina (inciso IV);

• o art. 36, sobre o currículo do Ensino Médio, dispõe no inciso III do § 1° que os

conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizados de tal forma que ao

final do Ensino Médio o educando demonstre domínio dos conhecimentos de Filosofia e de

Sociologia necessários ao exercício da cidadania (grifo nosso).

Estabelecer o que o aluno deve conhecer e que competências desenvolver no curso

de Filosofia no Ensino Médio configura uma tarefa a ser enfrentada de maneira diversa

daquela que se espera em qualquer outra disciplina, por causa das características que são

próprias ao filosofar. O professor de Física, por exemplo, é capaz de definir o campo da

ciência com a qual trabalha, conhece sua metodologia e, a partir dessa base aceita pelos

cientistas dos quais é contemporâneo, consegue estabelecer um conteúdo programático

mínimo e, além disso, escalonar as dificuldades para escolher o que será estudado de início,

4 O presente anexo não se encontra na íntegra. Foi selecionada somente a parte referente aos conhecimentos de

Filosofia

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como pré-requisito para a compreensão de conceitos mais complexos.

No entanto, não existe uma Filosofia – como há uma Física ou uma Química –, o que

existem são filosofias, podendo o professor (a quem chamaríamos de filósofo-educador)

privilegiar certas linhas de pensamento e de metodologia, sejam elas a dialética, a

fenomenológica, a racionalista etc. Também, diferentemente de outras disciplinas, não

há um ―começo‖, um pré-requisito para se introduzir a Filosofia, a não ser quanto aos

cuidados necessários com o estágio de competência de leitura e abstração dos alunos, bem

como o universo de conhecimentos e valores que cada um deles já traz consigo.

Outra dificuldade encontrar-se-ia nas sugestões dos PCNEM quanto aos saberes

e às competências necessários para a formação do cidadão, como sujeito ético e político. Ora,

se pensarmos que a Filosofia não tem função pragmática, no sentido de que sua finalidade

está nela mesma, ou seja, no filosofar, somos levados a concluir não ser possível transformá-

la em instrumento de qualquer fim, por mais nobre que seja. No entanto, não há como negar a

vocação do filósofo, como pessoa do seu tempo, em estabelecer vínculos com a educação.

Basta lembrarmos da alegoria da caverna, em A República, de Platão: aqueles que foram

libertos das correntes e voltaram para o convívio dos demais, após terem contemplado as

coisas mesmas e superado o conhecimento ilusório dado pelas sombras projetadas na caverna,

têm um compromisso com a paideia. Assim diz Platão, pela boca de Sócrates:

A educação é, portanto, a arte que se propõe este fim, a conversão da alma, e que procura os

meios mais fáceis e mais eficazes de operá-la; ela não consiste em dar a vista ao órgão da alma,

pois que este já o possui; mas como ele está mal disposto e não olha para onde deveria, a

educação se esforça por levá-lo à boa direção.

É verdade, no entanto, que os tempos mudaram e com eles as concepções a respeito do

papel do educador. Mais do que aquele que dirige o processo, por conhecer a ―verdade‖, cabe

ao professor dar condições para que o próprio aluno construa seu conhecimento crítico e se

oriente na direção da autonomia da ação.

Dessa forma, não constitui incoerência recusar a função pragmática da Filosofia, no

momento em que o filósofo criador elabora conceitos originais, ao mesmo tempo em que se

reconhece a dimensão pedagógica da Filosofia. Assim, no presente documento discutiremos o

trabalho do filósofo-educador e suas intenções pedagógicas – nesse caso, intencionais e

pragmáticas – de proporcionar a ocasião oportuna para seus alunos desenvolverem

determinadas competências e habilidades que os tornem sujeitos autônomos e cidadãos

conscientes.

Antes, porém, seria preciso definir o que é Filosofia e determinar seu objeto e método,

o que configura, já de início, um problema filosófico. Não por acaso, um dos campos de

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investigação filosófica é a Filosofia da Filosofia. É nesse sentido que Edmund Husserl se

pergunta:

O que pretendo sob o título de Filosofia, como fim e campo das minhas elaborações, sei-o,

naturalmente. E contudo não o sei… Qual o pensador para quem, na sua vida de filósofo, a

Filosofia deixou de ser um enigma? […] Só os pensadores secundários que, na verdade, não se

podem chamar filósofos, estão contentes com as suas definições.

Desde o momento em que os gregos distinguiram os relatos míticos da nascente

Filosofia, valeram-se da defesa da racionalidade. Mas a razão filosófica dos gregos não é a

mesma dos pensadores medievais, que subordinavam a Filosofia, como ancilla theologiae

(serva da teologia), às verdades inquestionadas e inquestionáveis da fé. Nem é a mesma razão

dos modernos que, instigantes, indagavam sobre o ponto de partida do conhecimento, a fim de

conhecer a capacidade mesma de conhecer. Recrudescendo esse questionamento, Kant

colocou a razão num tribunal para avaliar criticamente seus limites e possibilidades, o que, em

última análise, criou um impasse para a metafísica. No século XIX, com o desenvolvimento

acelerado das ciências particulares, o cientificismo positivista procedeu a um reducionismo:

ao valorizar de maneira exagerada o conhecimento científico como a suprema forma de

racionalidade positiva, reduziu drasticamente a função da Filosofia. Como reação ao

positivismo, a fenomenologia de Husserl enfatizou o papel da Filosofia como conhecimento

rigoroso da possibilidade do conhecimento científico e o estudo dos fundamentos, dos

métodos e dos resultados das ciências. Já a Filosofia analítica, com suas inúmeras

ramificações surgidas desde o início do século XX, reduziu a tarefa da Filosofia à análise da

linguagem, a partir dos problemas lógicos colocados pelas ciências. Como disse Wittgenstein

em seu Tractatus, ―O fim da Filosofia é o esclarecimento lógico dos pensamentos‖ […] ―O

resultado da Filosofia não são ‗proposições filosóficas‘, mas é tornar proposições claras‖.

Ao percorrermos, na história da Filosofia, as mais diversas definições, percebemos

a vocação filosófica que se encontra sobretudo na colocação de problemas e menos na

resolução deles. Mesmo porque, à medida que mudam as formas de relações humanas e o

conhecimento do mundo, surgem novos questionamentos e perplexidades.

Diante da exigência didática de escolher um caminho, no sentido etimológico primeiro

de estabelecer um ―método‖, convém, por questões práticas, antes de nos agarrarmos a uma

definição de Filosofia, buscar uma orientação para reconhecer atividades que possamos

qualificar de filosóficas, sempre tendo em vista nosso propósito de educadores.

As dificuldades em definir o que é Filosofia já se encontram explicitadas nos PCNEM:

Trata-se aqui, então, de delinear alguns elementos que podem auxiliar na contextualização mais

adequada dos conhecimentos filosóficos no Ensino Médio. Tomando como ponto de partida o

referido inciso III § 1° do artigo 36, evidenciam-se naturalmente três questões: (a) que

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conhecimentos são necessários? (b) que Filosofia? e (c) de que aspectos deve-se recobrir a

concepção de cidadania assumida como norte educativo? (p. 329)

Nessas questões vislumbra-se de forma clara a intenção pedagógica da utilização da

Filosofia no Ensino Médio, o que supõe a aceitação de posicionamentos diferentes entre os

professores de Filosofia na escolha dos conteúdos programáticos, mas não quanto ao ―norte

educativo‖, centrado na formação da cidadania. É o que se encontra enfatizado na

continuidade da leitura dos PCN:

Em suma, a resposta que cada professor de Filosofia do Ensino Médio dá à pergunta (b) ―que

Filosofia?‖ decorre, naturalmente, da opção por um modo determinado de filosofar que ele

considera justificado. Aliás, é fundamental para esta proposta que ele tenha feito sua escolha

categorial e axiológica, a partir da qual lê e entende o mundo, pensa e ensina. Caso contrário,

além de esvaziar sua credibilidade como professor de Filosofia, faltar-lhe-á um padrão, um

fundamento, a partir do qual possa encetar qualquer esboço de crítica. Por certo, há filosofias

mais ou menos críticas. No entanto, independentemente da posição que tome (pressupondo que

se responsabilize teórica e praticamente por ela), ele só pode pretender ver bons frutos de seu

trabalho docente na justa medida do rigor com que operar a partir de sua escolha filosófica –

um rigor que, certamente, varia de acordo com o grau de formação cultural de cada um. (p.331)

Mesmo reconhecendo a multiplicidade de caminhos que cada filósofo-educador possa

privilegiar, por questões didáticas, optamos por assumir determinada orientação – uma entre

muitas possíveis, voltamos a frisar –, pela qual a Filosofia é compreendida em linhas gerais

como uma reflexão crítica a respeito do conhecimento e da ação, a partir da análise dos

pressupostos do pensar e do agir e, portanto, como fundamentação teórica e crítica dos

conhecimentos e das práticas.

Embora os artigos da LDB citados inicialmente neste documento (com exceção do

artigo 36, que trata explicitamente da Filosofia e da Sociologia) façam referência a todas as

disciplinas do currículo, a Filosofia, por suas características, tem condições de contribuir de

forma bastante efetiva no processo de aprimoramento do educando como pessoa e na sua

formação cidadã. Ou seja, enquanto os temas de ética e cidadania bordejam as demais

disciplinas como reflexão transversal, no ensino da Filosofia esses temas podem constituir os

eixos principais do conteúdo programático.

Não se pense que, com essa afirmação, estejamos conferindo algum tipo de

superioridade a ela, mas sim reconhecendo que, pela sua especificidade, a Filosofia:

• abre o espaço por excelência para tematizar e explicitar os conceitos que permeiam

todas as outras disciplinas, e o faz de forma radical, ou seja, buscando suas raízes ou

fundamentos e pressupostos;

• discute os fins últimos da razão humana e os fins a que se orientam todas as formas

de ação humanas, e sob esse aspecto, levanta a questão dos valores;

• examina os problemas sob a perspectiva de conjunto – enquanto as ciências

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particulares abordam ―recortes‖ da realidade – o que permite à Filosofia elaborar uma visão

lobalizante, interdisciplinar e mesmo transdisciplinar (metadisciplinar);

• não trata de um objeto específico, como nas ciências, porque nada escapa ao seu

interesse, ocupando-se de tudo.

Nem sempre, porém, a disposição humana para a reflexão é estimulada, antes chega a

ser desencorajada ou escamoteada. Por isso é importante o trabalho da educação: se o senso

comum é um conjunto de idéias e valores que servem de base à nossa primeira visão de

mundo, trata-se no entanto de um saber não-crítico, fragmentado, incoerente, desarticulado,

misturado a crenças arraigadas e, portanto, pré-reflexivo.

Uma das funções do filósofo-educador consiste em dar elementos para o aluno

examinar de forma crítica as certezas recebidas e descobrir os preconceitos muitas vezes

velados que as permeiam. Mais ainda, ao refletir sobre os pressupostos das ciências, da

técnica, das artes, da ação política, do comportamento moral, a Filosofia auxilia o educando a

lançar outro olhar sobre o mundo e a transformar a experiência vivida numa experiência

compreendida.

Não se trata, porém, de concluir que o professor de Filosofia é um ―guia‖ que conduz

o aluno ―das trevas à luz‖, mas sim que é o mediador entre o educando e o texto filosófico (ou

o texto não-filosófico que será compreendido segundo o enfoque da Filosofia), o que equivale

a dizer que o professor é o mediador entre o aluno e a cultura em que vive, já que o

ensino/aprendizagem não se faz à margem do contexto histórico-social.

Podemos, agora, considerar a Filosofia na sua dimensão pedagógica, como disciplina

do Ensino Médio comprometida com a formação cidadã, e, a partir do posicionamento

tomado no item anterior e das ressalvas que foram feitas sobre os diversos caminhos a serem

seguidos, torna-se possível estabelecer como conceitos estruturadores da Filosofia: o ser, o

conhecimento e a ação. Desdobramos então esses conceitos, lembrando que a apropriação que

deles faz a Filosofia é no sentido de uma reflexão radical – que busca as raízes dos conceitos,

seus fundamentos e pressupostos – e indaga sobre seus fins.

Quanto à reflexão sobre o ser, de que trata a Filosofia? Sabemos, desde Platão,que o

filósofo é aquele que se admira diante do óbvio, porque introduz no mundo a estranheza, o

questionamento. Dessa forma, busca a origem, o sentido das coisas, das idéias, dos

comportamentos estabelecidos. Além disso, enquanto as ciências particulares ou qualquer

outra expressão do conhecimento humano têm seu objeto circunscrito a determinado campo, a

Filosofia se ocupa da totalidade dos seres: se a História se utiliza do conceito de tempo, se a

Biologia o de ser vivo, se a Psicologia o de liberdade e determinismo, se a Religião parte da

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verdade revelada e se sustenta pela fé, cabe à Filosofia indagar sobre o que é a realidade

representada por esses conceitos e quais seus pressupostos. Como disse Merleau-Ponty

(1998):

[…] é impossível negar que a Filosofia coxeia. Habita a história e a vida, mas quereria

instalar-se no seu centro, naquele ponto em que são advento, sentido nascente. Sente-se

mal no já feito. Sendo expressão, só se realiza renunciando a coincidir com aquilo que

exprime e afastando-se dele para lhe captar o sentido. É a utopia de uma posse a distância.

Na reflexão sobre os fundamentos e fins do conhecimento, a Filosofia investiga os

instrumentos do pensar, como a lógica e a metodologia; distingue e compara as diversas

formas de apreensão do real, tais como mito, religião, senso comum, ciência, filosofia etc.;

labora a teoria do conhecimento, indagando sobre as possibilidades e os limites desse

conhecimento.

Ao analisar os fundamentos e os fins da ação, parte-se das grandes áreas de reflexão da

ética, estética, política, antropologia etc., a fim de compreender as formas de agir nos campos

da moral, da arte, do exercício do poder, da técnica, da magia etc.

Vale destacar também que a separação dos três conceitos é didática, uma vez que se

encontram imbricados: só para dar um exemplo, a obra de arte é do domínio do fazer humano,

mas também depende da maneira pela qual o artista compreende o mundo, ao mesmo tempo

que, para o fruidor, representa uma nova forma de conhecimento que amplia sua sensibilidade

e imaginação. Além disso, na Filosofia prevalecem as discussões em torno dos juízos de valor,

pelos quais, diante ―do que é‖ pergunta-se sobre o ―dever ser‖. Decorre daí o papel de crítica

da cultura que lhe cabe. Citamos o historiador da Filosofia François Châtelet:

Desde que há Estado – da cidade grega às burocracias contemporâneas –, a idéia de verdade

sempre se voltou, finalmente, para o lado dos poderes (ou foi recuperada por eles como

testemunha, por exemplo, a evolução do pensamento francês do século XVIII ao século XIX).

Por conseguinte, a contribuição específica da Filosofia que se coloca ao serviço da liberdade,

de todas as liberdades, é a de minar, pelas análises que ela opera e pelas ações que desencadeia,

as instituições repressivas e simplificadoras: quer se trate da ciência, do ensino, da tradução, da

pesquisa, da medicina, da família, da política, do fato carcerário, dos sistemas burocráticos, o

que importa é fazer aparecer a máscara, deslocá-la, arrancá-la…

O significado das competências específicas da Filosofia

Ao contrário de longa tradição que persiste em considerar o Ensino Médio como o

momento preparatório para o curso superior, mais do nunca enfatiza-se hoje em dia a

necessidade de tomá-lo como etapa conclusiva. Além dos diversos motivos já alegados, da

formação integral do sujeito humano e do cidadão, não há como desprezar a rapidez das

transformações da sociedade e do mundo do trabalho, o que exige a ênfase de outro tipo de

intenção pedagógica. Aliás, desde o Renascimento, Montaigne já advertia para esse engano

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fatal na educação da crianças, ao se privilegiar as ―cabeças cheias‖ em detrimento de ―cabeças

bemfeitas‖, mote retomado por educadores contemporâneos, como Edgard Morin e Philippe

Perrenoud.

Mais do que transmitir conhecimentos, o professor deve promover competências

gerais. Ou seja, mais do ensinar, deve ―fazer aprender‖, uma vez que não se pode prever as

modificações que virão a ocorrer em curto espaço de tempo nos mais diversos campos da

cultura. O importante, no entanto, não consiste em menosprezar os conteúdos programáticos,

e sim reconhecer que os conhecimentos são recursos a serem mobilizados nas mais inéditas e

complexas situações reais. Caso contrário, de que adiantariam os saberes acumulados se não

se transformassem em condições para serem aplicadas no trabalho, no convívio da família, no

lazer, nas mais diversas situações que exijam reconfigurações dos conhecimentos e

improvisação no agir?

São diferentes as seleções de competências a serem privilegiadas na educação, tal

como é advertido no documento geral sobre as áreas. A seguir abordaremos as competências

específicas da Filosofia, de acordo com as escolhas sugeridas pelos PCNEM.

Representação e comunicação

Ler textos filosóficos de modo significativo.

Lembramos aqui a citação de Kant, inúmeras vezes repetida: ―não se ensina Filosofia,

ensina-se a filosofar‖, o que nos convence a evitar a abordagem tradicional de oferecer aos

alunos a herança filosófica de maneira passiva, como um produto acabado. Para apropriar-se

de fato do texto filosófico, o aluno deverá compreender o processo de um modo de pensar

peculiar que só é possível pelo desenvolvimento da competência discursivo-filosófica. Como

já antevimos nos itens anteriores, o acesso ao conteúdo filosófico se faz de maneira reflexiva,

buscando os pressupostos dos conceitos e exercitando a capacidade de problematização. Para

tanto, há que se utilizar da leitura de textos dos filósofos e, mesmo quando o professor preferir

desenvolver um programa a partir de temas, não se deve deixar de tomar a história da

Filosofia como referencial constante das reflexões, a fim de evitar equívocos e a banalização

do conhecimento filosófico (PCNEM, 1999, p.335).

Há várias formas de se desenvolver a leitura analítica, mas em geral é importante

fazer com que o aluno comece pela análise temática, ocasião em que aprende a ―ouvir o que o

autor tem a dizer‖. Esses passos iniciais são importantes para estimular a disciplina

intelectual, ao aprender a identificar as idéias centrais, o rigor dos conceitos, a articulação da

argumentação, a coerência da exposição, para só então enveredar pelos aspectos denotativos

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do texto e exercitar a análise interpretativa e a posterior problematização.

Resta lembrar que a apropriação do processo do filosofar é uma maneira de construir

uma forma de pensar autônoma, em última análise, um pressuposto decisivo para o exercício

da cidadania.

Ler, de modo filosófico, textos de diferentes estruturas e registros.

À medida que o aluno desenvolve a competência de realizar uma leitura significativa

dos textos filosóficos, o professor pode ampliar esse processo oferecendo outros textos de

diferentes estruturas e registros, tais como artigo de jornal, poesia, romance, programa de

televisão, filme, peça teatral, música, pintura, propaganda, texto científico etc. É

indispensável respeitar a especificidade de cada estrutura discursiva e que o aluno entenda

essa abordagem não como forma superior de analisar aquelas produções culturais, e sim para

experienciar ―um olhar especificamente filosófico, vale dizer, analítico, investigativo,

questionador, reflexivo, que possa contribuir para uma compreensão mais profunda da

produção textual específica que tem sob as vistas‖. […] ―De qualquer modo, o

desenvolvimento dessa competência supõe a capacidade de articular referências culturais em

geral e, mais especificamente, a capacidade de articular diferentes referências filosóficas e

diferentes discursos. Uma prática, portanto, comprometida com o pressuposto de uma leitura

transdisciplinar do mundo, a qual deve poder ser fomentada pela escola na medida em que os

diversos conhecimentos disponíveis se interliguem numa rede‖ (PCNEM, 1999, pp. 338-339).

(grifos nossos)

Elaborar por escrito o que foi apropriado de modo reflexivo.

É importante garantir ao aluno o espaço para a produção própria. Esse espaço começa

na sala de aula, quando formula questões ou participa de trabalhos em grupo e de debates.

Dessa forma, exercita, pela expressão oral, a organização do seu pensamento assim como o

respeito pela palavra do outro. Além desses procedimentos, é preciso que seja estimulado a

desenvolver a expressão escrita, por meio da dissertação filosófica. Segundo Folscheid e

Wunenburger:

A dissertação filosófica, com efeito, é o exercício filosófico por excelência. Não há melhor

lugar para exercitar nosso pensamento sobre um tema preciso, para analisar e produzir

conceitos articulando-os dentro e através de um discurso, não há outro meio de colocarnos

na necessidade de ter de construir uma problemática. Em suma, a dissertação, em

filosofia, é insubstituível, essencial: tem a ver com a essência do ato de filosofar.

Bem sabemos das dificuldades iniciais de nossos alunos diante do desafio de estruturar

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a espinha dorsal de um texto, de organizar o raciocínio e fundamentar suas idéias com

argumentos mais precisos do que os usados no calor dos debates. No entanto, essas

dificuldades iniciais precisam ser vencidas, porque o trabalho dissertativo é o coroamento do

processo que começa com leituras dos textos, fichamentos, pesquisas, debates, e configura-se

como a condição da autonomia intelectual do educando.

Embora se apresente como trabalho individual, a dissertação deve ser compreendida

como o amadurecimento das discussões, não só das que se iniciam com os autores dos textos,

como daquelas que se ampliaram com os colegas de classe. E por fim, a dissertação deve

retornar ao aluno para ser comentada, não só pelo professor, mas pelo grupo, no esforço

dialógico de avaliação intersubjetiva no qual são verificados o rigor conceitual do texto e a

coerência da exposição.

Debater, tomando uma posição, defendendo-a argumentativamente e mudando de posição

face a argumentos mais consistentes.

O esforço de dialogar com o autor do texto analisado se estende em outros

procedimentos igualmente importantes, tal como o debate em sala de aula, que estimula a

relação dialógica, por excelência intersubjetiva – lembramos que a Filosofia nasceu na praça

pública, como resultado da discussão dos temas de interesse da cidade. Destacando o aspecto

de imbricamento entre conteúdo e competências, o debate não deve ser meramente opiniático,

mas deve estar alavancado a partir dos textos analisados e dos conteúdos examinados, ainda

quando extrapole esse ponto de partida.

Educar para o pensar também é, portanto, dar condições para que os jovens superem o

egocentrismo infantil, procedendo à descentração da inteligência e da afetividade. De fato,

segundo Piaget, a reflexão é uma deliberação interior, uma discussão que se tem consigo

mesmo, enquanto a discussão, por sua vez, é uma reflexão exteriorizada. Não por acaso,

aprender a pensar e a debater é contribuir para a construção da sociedade pluralista, que supõe

o sujeito autônomo e crítico e que, ao mesmo tempo, é capaz de reconhecer a alteridade,

aceitar as diferenças, buscar o consenso pelo poder da palavra, mas reconhecendo o dissenso

como expressão da sociedade democrática, que não é homogênea.

Investigação e compreensão

Articular conhecimentos filosóficos e diferentes conteúdos e modos discursivos nas Ciências

Naturais e Humanas, nas Artes e em outras produções culturais.

Desde há muito tempo, a escola estrutura seu conteúdo programático em torno do

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ensino das diversas disciplinas, muitas vezes de maneira enciclopédica, tentando dar conta da

avalanche de conhecimentos. Além da perversa ênfase no conteúdo, essas inúmeras

disciplinas permanecem estanques em seus territórios, levando a uma aprendizagem

fragmentada da realidade.

A educação contemporânea tem buscado superar essa distorção, restabelecendo os elos

que unem os diversos saberes. Mesmo no ensino superior, ainda que não se recuse a

necessária formação de especialistas, já existem experiências na criação de centros

transdisciplinares encarregados de discutir a interação e a integração dos saberes, numa

abordagem holística.

A propósito da necessidade de se tornar a interdisciplinaridade um eixo privilegiado

do Ensino Médio, a ser encarada como desafio para qualquer professor, não há como negar a

vocação da Filosofia para a visão de conjunto, para a percepção da totalidade:

Possuindo uma natureza, a rigor, transdisciplinar (metadisciplinar), a Filosofia pode cooperar

decisivamente no trabalho de articulação dos diversos sistemas teóricos e conceptuais

curriculares, quer seja oferecida como disciplina específica, quer, quando

for o caso, esteja inserida no currículo escolar sob a forma de atividades, projetos,programas de

estudo etc.

[…] Considerando a transdisciplinaridade a partir do ponto de vista de seus próprios

conteúdos disciplinares, a Filosofia pode, por exemplo, levar o estudante à apropriação

reflexiva de conceitos, modos discursivos e problemas das Ciências Naturais (questões de

método, estruturas discursivas lógico-matemáticas, a enunciação empírico-analítica etc.), das

Ciências Humanas (o a priori lingüísticocultural, as estruturas discursivas críticas, a

enunciação histórico-hermenêutica etc.) e das Artes (o fazer artístico, estruturas discursivas

poéticas, a enunciação estéticoexpressiva etc.) (PCNEM, 1999, p. 342).

Contextualização sociocultural

Contextualizar conhecimentos filosóficos, tanto no plano de sua origem específica, quanto em

outros planos: o pessoal-biográfico; o entorno sócio-político, histórico e cultural; o horizonte

da sociedade científico-tecnológica.

No processo de trabalhar com textos especificamente filosóficos, com outras estruturas

e outros registros e no esforço de articular os conhecimentos filosóficos e outras

expressões culturais, assim como de debater e de elaborar dissertações, o aluno aprende a

examinar o texto como algo que não se encontra fechado em si mesmo, mas aberto a

interpretações e a problematizações diversas. De fato, a habilidade hermenêutica supõe a

contextualização dos conhecimentos filosóficos sob diversos aspectos:

1. No plano da origem específica desses conhecimentos, já que o aluno aprende a

situá-los no sistema conceptual de onde surgiram, interpretando-os com a perspectiva de seu

autor e no contexto em que surgiu esse pensamento.

2. No plano pessoal-biográfico, porque, se de início o aluno se afasta da perspectiva

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pessoal a fim de examinar o texto com isenção, depois retorna ao seu próprio contexto, ou

seja, ele parte de sua vivência para o abstrato e deste retorna, enriquecendo sua experiência

pessoal.

3. No entorno sócio-histórico-cultural, pelo qual o aluno consegue ―identificar com

clareza sua posição; lidar melhor com a complexidade e a pluralidade de discursos, valores e

coisas que parecem se amontoar desordenadamente; reconhecer o trabalho social como

esforço comum necessário para a construção da vida compartilhada, além de reconhecer a

injustiça e a inumanidade na distribuição dos frutos desses esforço histórico coletivo; trazer à

tona e apontar o arsenal da crítica filosófica contra toda contextura de interesses apoiados em

normas morais injustas; na medida em que sejam reconhecidos, desmascarar comportamentos

inautênticos […] identificar distorções na dimensão política em seus vários níveis […]

descobrir que seu projeto de vida se torna tanto mais pessoal e significativo quanto mais se

aprofunda no contexto da comunidade em que se projeta, seja ela entendida local, regional ou

universalmente‖. (PCNEM, 1999 pp. 344-345).

4. No horizonte da sociedade científico-tecnológica, os conhecimentos filosóficos

podem levar o aluno a descobrir em que contextos essas forças produtivas foram plasmadas,

que poder possuem e ―que relações têm com o atual estado de coisas em casa, na escola, no

bairro, na cidade, no país, no mundo; que impacto produzem nas relações sociais e na

afetividade, na escolha profissional e na própria garantia de vida, tornada problemática com a

alteração globalizada das relações entre capital e trabalho‖ (PCNEM, 1999, p. 345).

A articulação dos conceitos estruturadores com as competências específicas da Filosofia

Dissemos no item anterior que as competências permitem mobilizar conceitos,

relações e procedimentos. E também consideramos a possibilidade de cada professor

escolher o conteúdo programático centrado em temas filosóficos, ou na história da Filosofia,

desde que, no primeiro caso, não se perca a história da Filosofia como referencial permanente.

Resta acrescentar que esse recurso da história da Filosofia não se reduz à simples exposição

histórica de fatos e idéias, mas representa o retorno à gênese dos

conceitos e à sua reinterpretação até compreendê-los a partir do contexto atual.

Por exemplo, no eixo temático ―Relações de poder e democracia‖, que iremos sugerir

no próximo item, o conceito de democracia desdobra-se a partir dos três citados conceitos

estruturadores: o que é democracia, que tipo de ação constitui a política democrática, o que

conhecemos a respeito dos diversos conceitos de democracia. Nesse sentido, a discussão

sobre o que hoje entendemos por democracia, pode passar pelo exame do que foi a

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democracia na Antiguidade grega, pela concepção de Montesquieu, no século XVIII, a

respeito da divisão dos três poderes, oportunidade que permite discutir as formas pelas quais o

poder Executivo, nas ditaduras, se sobrepõe ao Legislativo e ao Judiciário, ou ainda quando,

mesmo sob a vigência do Estado de direito, o Executivo exagera nas medidas provisórias, o

que também provoca desequilíbrio entre os três poderes.

Pode-se também rever como Rousseau elaborou o conceito de soberania do povo e de

democracia direta, para em seguida, a partir do contexto atual, em que predominam as

democracias representativas, discutir os artigos da Constituição Brasileira de 1988, na qual

recursos como plebiscito, referendo e iniciativa popular significam a incorporação de

mecanismos de democracia semi-direta. Igualmente, a análise de vários tipos de organizações

não-governamentais (ONG) dão elementos para a percepção de como a democracia é uma

policracia, em que o poder não se concentra, mas se distribui pelos cidadãos, cuja atuação

participativa pode ir muito além do ato da escolha do representante pelo voto. É dessa forma

que se pretenderealizar a contextualização dos conteúdos filosóficos.

No nível da própria vivência da comunidade escolar, as assembléias criadas para

discutir conflitos internos torna-se um bom exercício do diálogo, da argumentação, do

respeito pelas posições divergentes, na busca da colocação de problemas e no esforço comum

de encontrar para eles soluções coletivas. Dessa forma, exercita-se a competência de

representação e comunicação, sobretudo por meio do debate, pela defesa de pontos de vista

baseada em argumentos que poderão ser mudados em face a argumentos mais consistentes. É

bom lembrar que, ainda dentro desse item das competências, já falamos sobre a importância

de o próprio aluno produzir por escrito o que foi apropriado de modo reflexivo.

Em outros níveis de articulação, pode-se verificar o que ocorre nas demais expressões

no universo da cultura simbólica, tal como na arte, em que a democracia permite a livre

criatividade, enquanto as ditaduras se ocupam de vigiar e punir com a censura. Ou ainda,

como a sociedade democrática não significa apenas garantir o formalismo do direito e das

instituições livres, mas exige a efetiva distribuição igualitária dos bens produzidos, desde o

saber científico-tecnológico até as riquezas materiais, a fim de garantir a todos o direito à

informação e ao usufruto dos bens produzidos. Sob esse aspecto, busca-se desenvolver a

competência de investigação e compreensão, pela articulação de conhecimentos filosóficos e

diferentes conteúdos nas Artes e de outras produções culturais.

Evidentemente, estamos apenas dando exemplos de conteúdos programáticos e de suas

relações com as competências, cabendo ao professor seguir outros caminhos, de acordo com

sua formação e seus interesses. O importante é mostrar que, dessa forma, procedem-se a

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diversas articulações dos conceitos com as competências específicas da Filosofia.

Sugestões de organização de eixos temáticos em Filosofia

Apresentamos, a seguir, os eixos temáticos, para que o professor elabore

posteriormente sua própria organização programática, tendo em vista o perfil de seus alunos e

o tempo de que dispõe para as aulas de Filosofia.

Lembramos o que já foi dito na apresentação geral deste documento: ―As sugestões

temáticas que serão apresentadas – derivadas que são dos conceitos estruturadores e das

competências sugeridas para a área em geral e para cada disciplina que a compõe em

particular – não devem ser entendidas como listas de tópicos que possam ser tomadas por um

currículo mínimo, porque é simplesmente uma proposta, nem obrigatória nem única, de uma

visão ampla do trabalho em cada disciplina.‖.

Eixos temáticos

Relação de poder e democracia

Temas Subtemas

1 A democracia grega . A ágora e a assembléia: igualdade nas leia e no direito à

palavra

.Democracia direta: formas contemporâneas possíveos de

participação da sociedade civil

2 A democracia

contemporânea

. Antecedentes:

- Montesquieu e a teoria dos três poderes

-Rousseau e a soberanis do povo

.O confronto entre as idéias liberais e o socialismo

.O conceito de cidadania

3. O avesso da democracia .Os totalitarismos de direita e esquerda

.Fundamentalismos religiosos e a política contemporânea

A construção do sujeito moral

Temas Subtemas

1. Autonomia e

liberdade

.Descentração do indivíduo e o reconhecimento do outro

. As várias dimensões da liberdade )ética, econômica,

política)

. Liberdade e determinismo

2. As formas da

alienação moral

.O individualismo contemporâneo e a recusa do outro

.As condutas massificadas na sociedade contemporânea

3. Ética e política .Maquiavel: as relações entre moral e política

.Cidadania: os limites entre o público e o privado

O que é Filosofia

Temas Subtemas

1. Filosofia, mito e

senso comum

. Mito e Filosofia: o nascimento da Filosofia na Grécia

.Mitos contemporâneos

.Do senso comum ao pensamento filosófico

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2. Filosofia, ciência e

tecnocracia

.Características do método científico

.O mito do cientificismo: as concepções reducionistas da

ciência

.A tecnologia a serviço de objetivos humanos e os riscos da

tecnocracia

.A bioética

3. Filosofia e estética .Os diversos tipos de valor

.A arte como forma de conhecer o mundo

.Estética e desenvolvimento da sensibilidade e imaginação

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ANEXO 13

ORIENTAÇÕES CURRICULARES NACIONAIS PARA O ENSINO MÉDIO5

Volume 3 - Ciências Humanas e suas Tecnologias

Conhecimentos de Filosofia

INTRODUÇÃO

A Filosofia deve ser tratada como disciplina obrigatória no ensino médio, pois isso é condição

para que ela possa integrar com sucesso projetos transversais e, nesse nível de ensino, com as

outras disciplinas, contribuir para o pleno desenvolvimento do educando. No entanto, mesmo

sem o status de obrigatoriedade, a Filosofia, nos últimos tempos, vem passando por um

processo de consolidação institucional, correlata à expansão de uma grande demanda indireta,

representada pela presença constante de preocupações filosófi cas de variado teor. Chama a

atenção um leque de temas, desde reflexões sobre técnicas e tecnologias até inquirições

metodológicas de caráter mais geral concernentes a controvérsias nas pesquisas científicas de

ponta, expressas tanto em publicações especializadas como na grande mídia. Também são

prementes as inquietações de cunho ético, que são suscitadas por episódios políticos nos

cenários nacional e internacional, além dos debates travados em torno dos critérios de

utilização das descobertas científicas.

Situação análoga foi detectada em outras instâncias de discussão pública e

mobilização social, como o evidenciam, por exemplo, os debates relativos à conduta de

veículos de comunicação, tais como televisão e rádio. Ainda que, na grande maioria dos

casos, não se possa falar de uma conceituação rigorosa, não se pode ignorar que nessas

discussões estão envolvidos temas, noções e critérios de ordem fi losófi ca. Isso signifi ca que

há uma certa demanda da sociedade por uma linha de refl exão que forneça instrumentos para

o adequado equacionamento de tais problemas. Uma prova disso é que mesmo a grande mídia

não se furta ao aproveitamento dessas oportunidades para levar a público debates de idéias no

nível filosófico, ainda que freqüentemente de modo superficial ou unilateral.

O tratamento da Filosofia como um componente curricular do ensino médio, ao

mesmo tempo em que vem ao encontro da cidadania, apresenta-se, porém, como um desafi o,

pois a satisfação dessa necessidade e a oferta de um ensino de qualidade só são possíveis se

5 O presente anexo não se encontra na íntegra. Foi selecionada somente a parte referente aos conhecimentos de

Filosofia

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forem estabelecidas condições adequadas para sua presença como disciplina, implicando a

garantia de recursos materiais e humanos. Ademais, pensar a disciplina Filosofia no ensino

médio exige também uma discussão sobre os cursos de graduação em Filosofi a, que

preparam os futuros profissionais, e da pesquisa filosófica em geral, uma vez que,

especialmente nessa disciplina, não se pode dissociá-la do ensino, da produção filosófica e da

transmissão do conhecimento.

Considerando a refl exão acerca da Filosofi a no ensino médio, cabe mencionar uma

difi culdade peculiar: trata-se da reimplantação de uma disciplina por muito tempo ausente na

maioria das instituições de ensino, motivo pelo qual ela não se encontra consolidada como

componente curricular dessa última etapa da educação básica quer em materiais adequados,

quer em procedimentos pedagógicos, quer por um histórico geral e sufi cientemente aceito.

Tendo deixado de ser obrigatória em 1961 (Lei no 4.024/61) e sendo em 1971 (Lei nº

5.692/71) excluída do currículo escolar ofi cial, criou-se um hiato em termos de seu

amadurecimento como disciplina. E embora na década de 1990 (Lei nº 9.394/96) se tenha

determinado que ao fi nal do ensino médio o estudante deva ―dominar os conteúdos de

Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania‖ (artigo 36), nem por isso a

Filosofia passou a ter um tratamento de disciplina, como os demais conteúdos, mantendo-se

no conjunto dos temas ditos transversais. Assim, a idéia de rediscutir os parâmetros

curriculares para a disciplina traz novo fôlego para a sua consolidação entre os componentes

curriculares do ensino médio, e, com eles e outras iniciativas, a filosofia pode e deve retomar

seu lugar na formação de nossos estudantes.

Respeitada a diversidade própria dos níveis de ensino, vemos desenhar-se, sem

solução de continuidade e em todo o país, um padrão elevado e comum tanto para o ensino de

Filosofi a como para a formação de docentes, superando- se progressivamente a antiga

objeção de que por ausência de profissionais qualificados seria desastrosa a introdução da

Filosofia no ensino médio. Aqui, entre outros motivos, a qualificação desejada para nossos

profissionais decorre, em grande medida, da ampliação e da melhoria dos cursos de graduação

e da clara ampliação da rede de pós-graduação, com a existência de quase trinta programas de

pós-graduação em Filosofi a em todo o país.

Um ponto central, cuja relevância talvez escape a áreas que já o têm resolvido, é a

obrigatoriedade do ensino de Filosofi a. Muitas das ambigüidades dos Parâmetros

Curriculares Nacionais (PCN) anteriores resultam da indefinição, que consiste em apontar a

necessidade da Filosofi a, sem oferecer-lhe, contudo, as adequadas condições curriculares. A

afirrmação da obrigatoriedade, inclusive na forma da lei, torna-se essencial para qualquer

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debate interdisciplinar, no qual a Filosofia nada teria a dizer, não fora também ela tratada

como disciplina, ou seja, como conjunto particular de conteúdos e técnicas, todos eles

amparados em uma história rica de problematização de temas essenciais e que, por

conseguinte, exige formação profi ssional específi ca, só podendo estar a cargo de profi

ssionais da área. Caso contrário, ela se tornaria uma vulgarização perigosa de boas intenções

que só podem conduzir a péssimos resultados. Cabe insistir na centralidade da História da

Filosofi a como fonte para o tratamento adequado de questões filosóficas. Com efeito, não

realizamos no ensino médio uma simplificação ou uma mera antecipação do ensino superior e

sim uma etapa específica, com regras e exigências próprias, mas essas só podem ser bem

compreendidas ou satisfeitas por profi ssionais formados em contato com o texto fi losófi co

e, desse modo, capazes de oferecer tratamento elevado de questões relevantes para a formação

plena dos nossos estudantes.

Como sabemos, uma simples didática (mesmo a mais animada e aparentemente

crítica) não é por si só filosófica. Não basta então o talento do professor se não houver

igualmente uma formação fi losófi ca adequada e, de preferência, contínua. Isto é, pois, parte

essencial desta discussão. Ser capaz de valer-se de elementos do cotidiano pode tornar rica,

por exemplo, uma aula de Física, mas não torna um discurso sobre a natureza uma aula de

Física, no sentido disciplinar que estamos dispostos, coletiva e institucionalmente, a

reconhecer. Da mesma forma, a utilização de valorosos materiais didáticos pode ligar um

conhecimento filosófico abstrato à realidade, inclusive ao cotidiano do estudante, mas a

simples alusão a questões éticas não é ética, nem fi losofi a política a mera menção a questões

políticas, não sendo o desejo de formar cidadãos o suficiente para uma leitura filosófica, uma

vez que tampouco é prerrogativa exclusiva da Filosofia um pensamento crítico ou a

preocupação com os destinos da humanidade. Com isso, a boa formação em Filosofi a é, sim,

condição necessária, mesmo quando não suficiente, para uma boa didática filosófica.

Uma sociedade que compreenda a obrigatoriedade da Filosofia não a pode desejar

como um pequeno luxo, um saber supérfl uo que venha a acrescentar noções aparentemente

requintadas a saberes outros, os verdadeiramente úteis. A Filosofia cumpre, afi nal, um papel

formador, articulando noções de modo bem mais duradouro que o porventura afetado pela

volatilidade das informações. Por isso mesmo, compreender sua importância é também

conceder-lhe tempo. De modo específico, importa atribuir-lhe carga horária sufi ciente à

fixação do que lhe é próprio. Nesse sentido, propõe-se um mínimo de duas horas-aula

semanais para a disciplina, apontando ademais que deva ser ministrada em mais de uma série

do ensino médio. Não desconhecemos, porém, que essas questões envolvem diferenças

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regionais e são subordinadas a distintas correlações políticas, de sorte que deixamos essa

proposição como um horizonte a ser considerado nas formulações dos diversos projetos

pedagógicos.

Outra decorrência da obrigatoriedade da Filosofia é, por conseguinte, uma refl exão

sobre sua especifi cidade e seus pontos de contato com outras disciplinas, cabendo ressaltar

que, a nosso juízo, a Filosofi a não se insere tão-somente na área de ciências humanas. A

compreensão da Filosofia como disciplina reforça, sem paradoxo, sua vocação

transdisciplinar, tendo contato natural com toda ciência que envolva descoberta ou exercite

demonstrações, solicitando boa lógica ou reflexão epistemológica. Da mesma forma, pela

própria valorização do texto filosófico, da palavra e do conceito, verifica-se a possibilidade de

estabelecer proveitoso intercâmbio com a área de linguagens. Além de contribuir para a

integração dos currículos e das outras disciplinas, a afi rmação da Filosofia como componente

curricular do ensino médio traz à tona questões inerentes à própria disciplina, tais como: a

concepção teórica do ensino de Filosofia como Filosofia; as abordagens metodológicas

específi cas; e, sobretudo, os conteúdos que podem estruturar o ensino.

Os PCN vigentes para a disciplina, assim como os anteriores, sofrem da ambigüidade

que pretenderam curar e muitas vezes oscilam entre enunciar pouco e enunciar

excessivamente. Assim, ao lado de uma cautela excessiva, podemos encontrar passos por

demais doutrinários que terminam por roubar à Filosofia um de seus aspectos mais ricos, a

saber, a multiplicidade de perspectivas, que não deve ser reduzida a uma voz unilateral.

Mostrou-se, pois, necessária uma reformulação que evite imposições doutrinárias, mesmo

quando resultantes das melhores intenções. Um currículo de Filosofia deve contemplar a

diversidade sem desconsiderar o professor que tem suas posições, nem impedir que ele as

defenda. Essa honestidade é inclusive condição de coerência. Ao mesmo tempo, a orientação

geral em um currículo de Filosofia pode tão-somente ser filosófica, e não especifi camente

kantiana, hegeliana, positivista ou marxista. A cautela filosófica é ainda mais necessária nesse

nível de ensino, no qual posturas por demais doutrinárias podem sufocar a própria

possibilidade de diálogo entre a Filosofia e as outras disciplinas, cabendo sempre lembrar que

as tomadas de posições, mesmo as politicamente corretas, não são ipso facto filosoficamente

adequadas ou propícias ao ensino.

Nesse debate, a noção de competência não pode ser apresentada como solução mágica

para as difi culdades do ensino, mas também não constitui obstáculo intransponível. Afastou-

se assim tudo que nesse termo possa sugerir competição ou adequação fl exível ao mercado

de trabalho, ressaltando-se, primeiro, que a definição de competência não pode ser exterior à

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própria disciplina, e, segundo, que a competência pode realizar-se no interesse de contato com

nossa tradição e nossa especificidade filosófica. Nesse sentido, o currículo desejado se

articula com o perfil de profissional que deve ser formado nos cursos de graduação em

Filosofia, cujas habilidades e competências são bem definidas em documento da comissão de

especialistas no ensino de Filosofia da Secretaria de Educação Superior (SESu) do Ministério

da Educação.

Essas considerações iniciais reproduzem, em parte, o Relatório das Discussões sobre

as Orientações Curriculares do Ensino Médio e a Filosofia, resultante de uma série de

seminários regionais e de um seminário nacional realizados em 2004 sob a coordenação do

Departamento de Políticas de Ensino Médio da Secretaria de Educação Básica do Ministério

da Educação. Esse texto é uma das peças institucionais que subsidiam o presente documento,

dando-lhe as coordenadas, em conjunto com o texto Os Parâmetros Curriculares do Ensino

Médio e a Filosofia, as Diretrizes Curriculares aos Cursos de Graduação em Filosofia e a

Portaria das Diretrizes do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) 2005 para

a Área de Filosofia.

O processo de redação deste documento coincidiu com um novo quadro institucional

para a disciplina Filosofia. Em primeiro lugar, os cursos de graduação em Filosofia passaram

a ser submetidos à avaliação institucional, tendo sido nomeada uma comissão para elaborar os

critérios para a futura elaboração de provas para o Enade 2005 da área de Filosofia. Os

trabalhos dessa comissão certamente contribuíram para o amadurecimento das discussões

sobre a composição da disciplina para o ensino médio, na medida em que se afirmaram

algumas posições acerca da graduação e das competências esperadas do profissional formado

nos cursos de licenciatura em Filosofia. A primeira decisão importante da comissão foi a de

não separar, no momento da avaliação, o bacharelado e a licenciatura em Filosofia, uma vez

que, como bem rezam as Diretrizes Curriculares aos Cursos de Graduação em Filosofia,

―ambas as habilitações devem oferecer

substancialmente a mesma formação básica, em termos de conteúdo e de qualidade, com uma

sólida formação de História da Filosofia, que capacite para a compreensão e a transmissão dos

principais temas, problemas, sistemas filosóficos, assim como para a análise e a reflexão

crítica da realidade social em que se insere‖. Em segundo lugar, decidiu-se que a avaliação de

cursos de graduação em Filosofi a deve tomar como eixo central o currículo mínimo

composto pelas cinco matérias básicas: História da Filosofia, Teoria do Conhecimento, Ética,

Lógica e Filosofia Geral: Problemas Metafísicos. Enfatizando o papel da história da filosofia

e das demais disciplinas básicas, a comissão indicou os pontos centrais da avaliação do profi

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ssional que irá atuar com a citada disciplina. Com isso, concorda-se com a posição expressa

nas Diretrizes Curriculares aos Cursos de Graduação em Filosofia de que o elenco de tais

disciplinas tem permitido aos melhores cursos do país um ensino flexível e adequado.

Ao lado disso, tomam corpo em todo o país as discussões acerca da formação do

professor de Filosofi a no ensino médio, especialmente em função dos impactos causados nos

cursos de graduação pela nova legislação para as licenciaturas (CNE. Resolução CNE/CP

2/2002. Diário Oficial da União, Brasília, 4 de março de 2002. Seção 1, p. 9). A nova

legislação estabelece, em seu Artigo 1o, 400 horas de prática como componente curricular e

400 horas de estágio curricular supervisionado. Tendo em conta as dificuldades de se

integralizar tal carga horária sem perder de vista a formação básica em conteúdo e a qualidade

da formação do profissional da área (formação que não deve diferenciar, substancialmente,

sob esse aspecto, o bacharel e o licenciado), é possível afirmar que a preparação específica de

atividades e a seleção de material didático para o ensino médio podem e devem ser

consideradas quando da integralização curricular, orientando as atividades práticas previstas

tanto em ofi cinas de pesquisa e produção de material didático como em sua aplicação durante

o estágio supervisionado.

Portanto, o presente documento busca sistematizar os resultados de uma ampla

discussão em curso na área de Filosofia, desde a caracterização da disciplina até a preparação

do profi ssional que irá atuar com ela, oferecendo subsídios para a definição de temas e

conteúdos a serem trabalhados, bem como do material didático a ser confeccionado. Ao evitar

estabelecer de antemão os conteúdos ou uma linha a ser seguida e enfatizar ainda a

especificidade da Filosofia em relação às outras disciplinas, bem como a necessidade de um

ensino de qualidade no ensino médio, destaca-se o respeito tanto ao profissional da área com

as peculiaridades de sua formação quanto ao caráter plural e diverso da Filosofia. Tem-se aqui

como pressuposto que não existe uma Filosofia, mas Filosofias, e que a liberdade de opção

dentro de seu universo não restringe seu papel formador.

IDENTIDADE DA FILOSOFIA

A pergunta acerca da natureza da fi losofi a é um primeiro e permanente problema filosófico.

Não podendo ser solucionado aqui mais que parcialmente (nem devendo ser solucionado

integralmente em nenhum lugar), cabe-nos, porém, a tarefa de delinear alguns elementos para

uma contextualização mais adequada dos conhecimentos filosóficos no ensino médio.

Tomando-se como ponto de partida o já mencionado Inciso III do § 1o do Artigo 36 da Lei de

Diretrizes e Bases (Lei nº 9.394 de 20/12/1996), no qual se afi rma que o educando ao fi nal

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do ensino médio deve demonstrar o ―domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia

necessários ao exercício da cidadania‖, faz-se necessária alguma compreensão, mesmo

provisória e descritiva, do que se pode entender por ―Filosofia‖, de modo que, em seguida, a

possamos também relacionar com uma possível compreensão

do termo ―cidadania‖ e seu importante exercício.

O termo ―Filosofi a‖ recobre muitos sentidos, mesmo em sua prática profissional. Em

certa medida, contra uma ingênua cobrança lógica de univocidade, a ambigüidade não é, em

seu caso, um malefício, resultando de uma sua exigência íntima. Se a questão ―o que é

Física?‖ não é exatamente um problema físico, a questão ―o que é Filosofia?‖ é talvez um

primeiro e recorrente problema filosófico, e a ela cada fi lósofo sempre procurará responder

baseado nos conceitos pelos quais elabora seu pensamento. Não há então como controlar

universalmente tal ambigüidade seja por decreto ou por alguma definição restritiva. Não

obstante, vale observar que no interior de cada pensamento a exigência de univocidade volta a

impor-se.

É comum o embaraço que sentimos diante da pergunta sobre o sentido da Filosofia. De

certa forma, é como se nos indagassem acerca de algo que não está nem pode estar bem

resolvido. Não fugimos aqui a uma resposta. Ao contrário, indicamos explicitamente, em

primeiro lugar, que nenhuma pode ser ingênua, uma vez que cada resposta está comprometida

com pontos de vista eles próprios filosóficos. Assim, responder à pergunta é já filosofar,

sendo perigosa e enganadora a inocência. Uma resposta aparentemente universal se situa logo

em um campo particular (no aristotelismo, no platonismo, no marxismo, etc.), sendo a trama

que lhe confere sentido um misto de autonomia do pensador e de instalação em um contexto

histórico. Ademais, se descrevemos alguns procedimentos característicos do fi losofar, não

importando o tema a que se volta nem a matriz teórica em que se realiza, podemos localizar o

que caracteriza o filosofar. Afinal, é sempre distintivo do trabalho dos fi lósofos sopesar os

conceitos, solicitar considerandos, mesmo diante de lugares-comuns que aceitaríamos sem

reflexão (por exemplo, o mundo existe?) ou de questões bem mais intrincadas, como a que

opõe o determinismo de nossas ações ao livre arbítrio. Com isso, a Filosofia costuma quebrar

a naturalidade com que usamos as palavras, tornando-se reflexão. Pretende decerto ser um

discurso consciente das coisas, como a ciência; entretanto, diferencia-se dessa por pretender

ainda ser um discurso consciente de si

mesmo, um discurso sobre o discurso, um conhecimento do conhecimento. Não pergunta

simplesmente se isso ou aquilo é verdadeiro; antes indaga: o que pode ser verdadeiro? Ou

ainda, o que é a verdade? Por isso, a Filosofia é corrosiva mesmo se reverente, pois até a

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covardia ou a servidão que porventura algum filósofo defenda exigirá considerandos e passará

pelo crivo da linguagem.

Se a Filosofia não é uma ciência (ao menos não no sentido em que se usa essa palavra

para designar tradições empíricas de pesquisa voltadas para a construção de modelos abstratos

dos fenômenos) e tampouco uma das belas-artes (no sentido poético de ser uma atividade

voltada especifi camente para a criação de objetos concretos), ela sempre teve conexões

íntimas e duradouras com os resultados das ciências e das artes. Ao dirigir o olhar para fora de

si, no entanto, a Filosofia tem a necessidade, ao mesmo tempo, de se definir no interior do

filosofar como tal, isto é, naquilo que tem de próprio e diferente de todos os outros saberes.

Antes de qualquer coisa, diante da grande variedade e da diversidade dos modos e das

correntes de pensamento, não se pode perder de vista que é possível falar em Filosofia e não

apenas em Filosofias, nem se pode esquecer que uma maneira de filosofar se relaciona com

todas as outras de um modo peculiar. Alguém acaso escolhe uma maneira de fi losofar porque

a considera correta e heuristicamente proveitosa do ponto de vista da sua fertilidade

conceptual? Nesse sentido, quando os primeiros pensadores apontaram na direção da verdade

e da razão de ser das coisas, uma concepção filosófica define parâmetros, possibilidades de

pensar que supostamente trariam verdade à razão ou, se preferirmos, fariam a razão desvelar a

essência por trás da aparência. E embora hoje ninguém pareça ter o privilégio particular de

indicar qual o critério correto e adequado para a razão ou a verdade, é também correto que

nenhuma Filosofia pode significativamente abandonar a pretensão de razão com que veio ao

mundo sem contradizer exatamente sua procura por enxergar para além das aparências.

Caso nos coloquemos numa perspectiva externa (digamos, a de um observador das

atividades culturais), podemos considerar que tudo o que há são filosofias. Entretanto, ao

examinarmos a questão de um ponto de vista interno (a saber, a perspectiva do próprio agente

social que se sente convocado para a empresa da investigação filosófica), então há filosofia.

Existe ademais um critério geral para distinguir, por exemplo, uma ―crença‖ de uma Filosofia,

porquanto a filosofia, ao contrário da mera crença, apresenta-se fundamentada em boas razões

e argumentos. E a prática daquele agente social poderá ser considerada filosófica quando

justificada. À multiplicidade real de linhas e orientações filosóficas e ao grande número de

problemas herdados da grande tradição cultural filosófica, somam-se temas e problemas

novos e cada vez mais complexos em seus programas de pesquisa, produzindo-se em resposta

a isso um universo sempre crescente de novas teorias e posições filosóficas. No entanto, é

também verdade que essa dispersão discreta de um filosofar não nos pode impedir de

reconhecer o que há de comum em nosso trabalho: a especificidade da atividade filosófica

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enquanto expressa, sobretudo, em sua natureza reflexiva.

Independentemente de como determinada orientação filosófica estiver configurada, ela

sempre resulta não tanto de uma investigação que tematiza diretamente este ou aquele objeto,

mas, sobretudo, de um exame de como os objetos nos podem ser dados, como eles se nos

tornam acessíveis. Mais do que o disposto à visão, a atividade filosófica privilegia um certo

―voltar atrás‖, um refletir por que a própria possibilidade e a natureza do imediatamente dado

se tornam alvo de interrogação. Observadas assim as diferenças de intenção nas várias

abordagens filosóficas, o conceito de reflexão, em geral, abarca duas dimensões distintas que

freqüentemente se confundem. Primeira: a reconstrução racional, quando o exame analítico se

volta para as condições de possibilidade de competências cognitivas, lingüísticas e de ação. É

nesse sentido que podem ser entendidas as lógicas, as teorias do conhecimento, as

epistemologias e todas as elaborações filosóficas que se esforçam para explicar teoreticamente

um saber pré-teórico que adquirimos à medida que nos exercitamos num dado sistema de

regras. Segunda: a crítica, quando a refl exão se volta para os modelos de percepção e de ação

compulsivamente restritos pelos quais, em nossos processos de formação individual ou

coletiva, nos iludimos a nós mesmos, de sorte que, por um esforço de análise, a reflexão

consegue flagrá-los em sua parcialidade, vale dizer, em

seu caráter propriamente ilusório. É nesse sentido que podemos compreender as tradições de

pesquisa do tipo da crítica da ideologia, das genealogias, da psicanálise, da crítica social e

todas as elaborações teóricas motivadas pelo desejo de alterar os elementos determinantes de

uma ―falsa‖ consciência e de extrair disso conseqüências práticas.

Em suma, a resposta de cada professor de Filosofia do ensino médio à pergunta ―que

filosofia?‖ sempre dependerá da opção por um modo determinado de filosofar que considere

justificado. Aliás, é relevante que ele tenha feito uma escolha categorial e axiológica a partir

da qual lê o mundo, pensa e ensina. Isso só tende a reforçar sua credibilidade como professor

de Filosofia, uma vez que não lhe falta um padrão, um fundamento a partir do qual pode dar

início a qualquer esboço de crítica. Por certo, há talvez Filosofias mais ou menos críticas sem

que isso diminua a importância formadora e sempre algo corrosiva de todo filosofar. No

entanto, independentemente da posição adotada (sendo pressuposto que o professor se

responsabilize por ela), ele só pode pretender ver bons frutos de seu trabalho docente na justa

medida do rigor com que operar a partir de sua escolha filosófica – um rigor que, certamente,

varia de acordo com o grau de formação cultural de cada um e deve ser de todo diverso de

uma doutrinação.

Compreendendo a noção de ―Filosofia‖ desse modo, a um só tempo lábil e rigoroso,

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devemos convir que a noção de ―cidadania‖ não escapa de opções filosóficas, não sendo

assim um conceito unívoco, nem um mero ponto de partida fi xo e de todo estabelecido. Em

verdade, tal noção aparece como um resultado de um processo filosófico, sendo ele mesmo

travado por nossa reflexão. Em todo caso, conservando uma ampla margem para produtivas

redefinições filosóficas, o termo torna-se mais um desafio para uma disciplina formadora e

menos um conjunto de informações doutrinárias que decoraríamos como a um hino patriótico.

Tendo em conta a necessidade de se esboçar alguma correlação entre conhecimentos

de Filosofia e uma concepção de cidadania presente na legislação vigente, podemos tomar

como ponto de partida o explicitado como cidadania nos documentos das Diretrizes

Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Assim, o Artigo 2º da Resolução CEB nº 3, de

26 de junho de 1998, reporta-nos aos valores apresentados na Lei nº 9.394, a saber:

I. os fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem

comum e à ordem democrática;

II. os que fortaleçam os vínculos de família, os laços de solidariedade humana e de tolerância

recíproca.

Tendo em vista a observância de tais valores, o Artigo 3o da mesma Resolução exorta-

nos à coerência entre a prática escolar e princípios estéticos, políticos e éticos, a saber:

I. a Estética da Sensibilidade, que deverá substituir a da repetição e padronização,

estimulando a criatividade, o espírito inventivo, a curiosidade pelo inusitado e a afetividade,

bem como facilitar a constituição de identidades capazes de suportar a inquietação, conviver

com o incerto e o imprevisível, acolher e conviver com a diversidade, valorizar a qualidade, a

delicadeza, a sutileza, as formas lúdicas e alegóricas de conhecer o mundo e fazer do lazer, da

sexualidade e da imaginação um exercício de liberdade responsável;

II. a Política da Igualdade, tendo como ponto de partida o reconhecimento dos direitos

humanos e dos deveres e direitos da cidadania, visando à constituição de identidades que

busquem e pratiquem a igualdade no acesso aos bens sociais e culturais, o respeito ao bem

comum, o protagonismo e a responsabilidade no âmbito público e privado, o combate a todas

as formas discriminatórias e o respeito aos princípios do Estado de Direito na forma do

sistema federativo e do regime democrático e republicano;

III. a Ética da Identidade, buscando superar dicotomias entre o mundo da moral e o mundo da

matéria, o público e o privado, para constituir identidades sensíveis e igualitárias no

testemunho de valores de seu tempo, praticando um humanismo contemporâneo, pelo

reconhecimento, pelo respeito e pelo acolhimento da identidade do outro e pela incorporação

da solidariedade, da responsabilidade e da reciprocidade como orientadoras de seus atos na

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vida profissional, social, civil e pessoal.

Independentemente, neste momento, de qualquer avaliação acerca da concepção que

se apresenta na legislação, cabe ressaltar, em primeiro lugar, que seria criticável tentar

justificar a Filosofia apenas por sua contribuição como um instrumental para a cidadania.

Mesmo que pudesse fazê-lo, ela nunca deveria ser limitada a isso. Muito mais amplo é, por

exemplo, seu papel no processo de formação geral dos jovens. Em segundo lugar, deve-se ter

presente, em função da própria legislação, que a formação para a cidadania, além da

preparação básica para o trabalho, é a finalidade síntese da educação básica como um todo

(LDB, Artigo 32) e do ensino médio em especial (LDB, artigo 36). Não se trata, portanto, de

um papel particular da disciplina Filosofia, nesse conjunto, oferecer um tipo de formação que

tenha por pressuposto, por exemplo, incutir nos jovens os valores e os princípios

mencionados, nem mesmo assumir a responsabilidade pela formação para a solidariedade ou

para a tolerância. Tampouco caberia a ela, isoladamente, ―o aprimoramento do educando

como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia

intelectual e do pensamento crítico‖ (LDB, artigo 35, inciso III). Uma vez que é possível

formar cidadãos sem a contribuição formal da Filosofi a, seria certamente um erro pensar que

a ela, exclusivamente, caberia tal papel, como se fosse a única disciplina capaz de fazê-lo,

como se às outras disciplinas coubesse o ensinamento de conhecimentos técnicos e a ela o

papel de formar para uma leitura crítica da realidade. Esse é na verdade um papel do conjunto

das disciplinas e da política pública voltada para essa etapa da formação.

Não se trata, portanto, de a Filosofia vir a ocupar um espaço crítico que se teria

perdido sem ela, permitindo-se mesmo um questionamento acerca de sua competência em

conferir tal capacidade ao aluno. Da mesma maneira, não se pode esperar da Filosofia o

cumprimento de papéis anteriormente desempenhados por disciplinas como Educação Moral

e Cívica, assim como não é papel da Filosofia suprir eventual carência de um ―lado

humanístico‖ na formação dos estudantes. A pergunta que se coloca é: qual a contribuição

específi ca da Filosofia em relação ao exercício da cidadania para essa etapa da formação? A

resposta a essa questão destaca o papel peculiar da filosofia no desenvolvimento da

competência geral de fala, leitura e escrita – competência aqui compreendida de um modo

bastante especial e ligada à natureza argumentativa da Filosofia e à sua tradição histórica.

Cabe, então, especificamente à Filosofia a capacidade de análise, de reconstrução racional e

de crítica, a partir da compreensão de que tomar posições diante de textos propostos de

qualquer tipo (tanto textos filosóficos quanto textos não filosóficos e formações discursivas

não explicitadas em textos) e emitir opiniões acerca deles é um pressuposto indispensável

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para o exercício da cidadania.

Neste ponto, em que se procura a confluência entre a especifi cidade da Filosofia e seu

papel formador no ensino médio, cabe enfatizar um aspecto peculiar que a diferencia de

outras áreas do saber: a relação singular que a Filosofia mantém com sua história, sempre

retornando a seus textos clássicos para descobrir sua identidade, mas também sua atualidade e

sentido. Com efeito, se estudamos a obra teórica de um sociólogo como Weber ou Durkheim,

dizemos estar fazendo teoria sociológica. Tão íntima, porém, é a relação entre a Filosofi a e

sua história que seria absurdo dizer que estudando Kant ou Descartes estejamos fazendo algo

como uma teoria filosófica, pois é na leitura de textos filosóficos que se constituem

problemas, vocabulários e estilos de fazer simplesmente Filosofia. E isso se aplica tanto para

a pesquisa em Filosofia quanto para seu ensino. Mais ainda,

[...] não é possível fazer Filosofia sem recorrer a sua própria história.

Dizer que se pode ensinar filosofia apenas pedindo que os alunos

pensem e reflitam sobre os problemas que os afligem ou que mais

preocupam o homem moderno sem oferecer-lhes a base teórica para o

aprofundamento e a compreensão de tais problemas e sem recorrer à

base histórica da reflexão em tais questões é o mesmo que numa aula

de Física pedir que os alunos descubram por si mesmos a fórmula da

lei da gravitação sem estudar Física, esquecendo-se de todas as

conquistas anteriores naquele campo, esquecendo-se do esforço e do

trabalho monumental de Newton (NASCIMENTO, Milton, apud SILVEIRA,

René, Um sentido para o ensino de Filosofi a no ensino médio, p. 142.)

É salutar, portanto, para o ensino da Filosofia que nunca se desconsidere a sua história,

em cujos textos reconhecemos boa parte de nossas medidas de competência e também

elementos que despertam nossa vocação para o trabalho filosófico. Mais que isso, é

recomendável que a história da Filosofia e o texto filosófico tenham papel central no ensino

da Filosofia, ainda que a perspectiva adotada pelo professor seja temática, não sendo

excessivo reforçar a importância de se trabalhar com os textos propriamente filosóficos e

primários, mesmo quando se dialoga com textos de outra natureza, literários e jornalísticos,

por exemplo – o que pode ser bastante útil e instigante nessa fase de formação do aluno.

Porém, é a partir de seu legado próprio, com uma tradição que se apresenta na forma

amplamente conhecida como História da Filosofia, que a Filosofia pode proporse ao diálogo

com outras áreas do conhecimento e oferecer uma contribuição peculiar na formação do

educando.

OBJETIVOS DA FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO

A Filosofia deve compor, com as demais disciplinas do ensino médio, o papel proposto

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para essa fase da formação. Nesse sentido, além da tarefa geral de ―pleno desenvolvimento do

educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualifi cação para o trabalho‖

(Artigo 2º da Lei nº 9.394/96), destaca-se a proposição de um tipo de formação que não é uma

mera oferta de conhecimentos a serem assimilados pelo estudante, mas sim o aprendizado de

uma relação com o conhecimento que lhe permita adaptar-se ―com fl exibilidade a novas

condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores‖ (Artigo 36, Inciso II) – o que

significa, mais que dominar um conteúdo, saber ter acesso aos diversos conhecimentos de

forma signifi cativa. A educação deve centrar-se mais na idéia de fornecer instrumentos e de

apresentar perspectivas, enquanto caberá ao estudante a possibilidade de posicionar-se e de

correlacionar o quanto aprende com uma utilidade para sua vida, tendo presente que um

conhecimento útil não corresponde a um saber prático e restrito, quem sabe à habilidade para

desenvolver certas tarefas.

Há, com isso, uma importante mudança no foco da educação para o aluno, que,

tomando como ponto de partida a sua formação ou em termos mais amplos a constituição de

si, deve posicionar-se diante dos conhecimentos que lhe são apresentados, estabelecendo uma

ativa relação com eles e não somente apreendendo conteúdos. A Filosofia cumpre, afinal, um

papel formador, uma vez que articula noções de modo bem mais duradouro que outros

saberes, mais suscetíveis de serem afetados pela volatilidade das informações. Por

conseguinte, ela não pode ser um conjunto sem sentido de opiniões, um sem-número de

sistemas desconexos a serem guardados na cabeça do aluno que acabe por desencorajá-lo de

ter idéias próprias. Os conhecimentos de Filosofia devem ser para ele vivos e adquiridos

como apoio para a vida, pois do contrário difi cilmente teriam sentido para um jovem nessa

fase de formação.

Outro objetivo geral do ensino médio constante na legislação e de interesse para os

objetivos dessa disciplina é a proposição de ―aprimoramento do educando como pessoa

humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do

pensamento crítico‖ (Lei nº 9.394/96, Artigo 36, Inciso III). Embora se trate de uma idéia

vaga, o aprimoramento como pessoa humana indica a intenção de uma formação que não

corresponda apenas à necessidade técnica voltada a atender a interesses imediatos, como por

exemplo do mercado de trabalho. Tratar-se-ia antes de um tipo de formação que inclua a

constituição do sujeito como produto de um processo, e esse processo como um instrumento

para o aprimoramento do jovem aluno.

O objetivo da disciplina Filosofia não é apenas propiciar ao aluno um mero

enriquecimento intelectual. Ela é parte de uma proposta de ensino que pretende desenvolver

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no aluno a capacidade para responder, lançando mão dos conhecimentos adquiridos, as

questões advindas das mais variadas situações. Essa capacidade de resposta deve ultrapassar a

mera repetição de informações adquiridas, mas, ao mesmo tempo, apoiar-se em

conhecimentos prévios. Por exemplo, caberia não apenas compreender ciências, letras e artes,

mas, de modo mais preciso, seu significado, além de desenvolver competências

comunicativas intimamente associadas à argumentação. Ademais, sendo a formação geral o

objetivo e a condição anterior até mesmo ao ensino profissionalizante, o ensino médio deve

tornar-se a etapa final de uma educação de caráter geral, na qual antes se desenvolvem

competências do que se memorizam conteúdos.

COMPETÊNCIAS E HABILIDADES EM FILOSOFIA

Sob essa perspectiva formadora e de superação de um ensino meramente

enciclopédico, desenvolveu-se a idéia de um ensino por competências. Tal concepção, no

entanto, não pode ser admitida sem a denúncia da coincidência flagrante entre o perfil do

educando esboçado e, por exemplo, certos documentos do Banco Mundial. A flexibilização

aparece, então, sob outra luz, como competências que ―podem ser aplicadas a uma grande

variedade de empregos e permitir às pessoas adquirirem habilidades e conhecimentos específi

cos orientados para o trabalho, quando estiverem no local de trabalho‖. (BANCO MUNDIAL,

1995, p. 63, apud SANTIAGO, Anna, Política educacional, diversidade e cultura: a

racionalidade dos PCN posta em questão, p. 503). Nesse sentido, não se pode perder de vista

que a mesma lógica que introduz o conhecimento filosófico por ser útil não é distinta da que o

suprimiria por ser inconveniente. Em ambas as situações, o estudante é considerado

instrumento, ora perigoso, ora requintado. Em suma, mesmo que animado, um instrumento.

Deixaremos de lado, no entanto, neste momento, a afirmação sobre a coincidência

entre o desenvolvimento de competências cognitivas e culturais e o que se busca na esfera da

produção. Medir-se pelo que se espera é sempre delicado. Afinal, em uma sociedade desigual,

pode esperar-se também o desigual, ameaçando um processo global de formação que deveria

servir à correção da desigualdade. Afastado, porém, esse aspecto, a noção de competência

parece vir ao encontro do labor filosófico. Com efeito, ela é sempre interior a cada disciplina,

não havendo uma noção universal. Sendo da ordem das disposições, só pode ser lida e

reconhecida à luz de matrizes conceituais específicas. Em certos casos, a competência mostra-

se na elaboração de hipóteses, visando à solução de problemas. Em outros casos, porém, uma

vez que as competências não se desenvolvem sem conteúdos nem sem o apoio da tradição, a

competência pode significar a recusa de soluções aparentes por recurso ao aprofundamento

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sistemático dos problemas.

A pergunta que se faz, portanto, é: de que capacidades se está falando quando se trata

de ensinar Filosofia no ensino médio? Da capacidade de abstração, do desenvolvimento do

pensamento sistêmico ou, ao contrário, da compreensão parcial e fragmentada dos

fenômenos? Trata-se da criatividade, da curiosidade, da capacidade de pensar múltiplas

alternativas para a solução de um problema, ou seja, do desenvolvimento do pensamento

crítico, da capacidade de trabalhar em equipe, da disposição para procurar e

aceitar críticas, da disposição para o risco, de saber comunicar-se, da capacidade de buscar

conhecimentos. De forma um tanto sumária, pode-se afirmar que se trata tanto de

competências comunicativas, que parecem solicitar da Filosofia um refinamento do uso

argumentativo da linguagem, para o qual podem contribuir conteúdos lógicos próprios da

Filosofia, quanto de competências, digamos, cívicas, que podem fixar-se igualmente à luz de

conteúdos filosóficos.

Podemos constatar, novamente, uma convergência entre o papel educador da Filosofia

e a educação para a cidadania que se postulou anteriormente. Os conhecimentos necessários à

cidadania, à medida que se traduzem em competências, não coincidem, necessariamente, com

conteúdos, digamos, de ética e de filosofia política. Ao contrário, destacam o que, sem dúvida,

é a contribuição mais importante da Filosofia: fazer o estudante aceder a uma competência

discursivo-filosófica. Espera-se da Filosofia, como foi apontado anteriormente, o

desenvolvimento geral de competências comunicativas, o que implica um tipo de leitura,

envolvendo capacidade de análise, de inter pretação, de reconstrução racional e de crítica.

Com isso, a possibilidade de tomar posição por sim ou por não, de concordar ou não com os

propósitos do texto é um pressuposto necessário e decisivo para o exercício da autonomia e,

por conseguinte, da cidadania.

Considerando-se em especial a competência para a leitura, a pergunta que se impõe é,

afinal, que competência de leitura não poderia ser desenvolvida, por exemplo, por um

profissional da área de Letras? O que seria um olhar especificamente filosófico? Não basta

dizer que é especificamente filosófico o olhar analítico, investigativo, questionador, reflexivo,

que possa contribuir para uma compreensão mais profunda da produção textual específica que

tem sob seu foco. Ora, nada impede que o cientista desenvolva um tal olhar. O fundamental

aparece a seguir, conferindo a marca de conteúdo e de método filosófico: é imprescindível

que ele tenha interiorizado um quadro mínimo de referências a partir da tradição filosófica, o

que nos conduz a um programa de trabalho centrado primordialmente nos próprios textos

dessa tradição, mesmo que não exclusivamente neles. Assim, quer como centro quer como

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referência, para recuperar uma distinção do professor Franklin Leopoldo e Silva, a história da

Filosofia (não como um saber enciclopédico ou eclético) torna-se pedra de toque de nossa

especificidade.

Uma indicação clara do que se espera do professor de Filosofia no ensino médio pode

ser encontrada nas Diretrizes Curriculares aos Cursos de Graduação em Filosofi a e pela

Portaria INEP nº 171, de 24 de agosto de 2005, que instituiu o Exame Nacional de

Desempenho dos Estudantes (Enade) de Filosofia, que também apresenta as habilidades e as

competências esperadas do profi ssional responsável pela implementação das diretrizes para o

ensino médio:

a) capacitação para um modo especificamente filosófico de formular e propor soluções a

problemas, nos diversos campos do conhecimento;

b) capacidade de desenvolver uma consciência crítica sobre conhecimento, razão e realidade

sócio-histórico-política;

c) capacidade para análise, interpretação e comentário de textos teóricos, segundo os mais

rigorosos procedimentos de técnica hermenêutica;

d) compreensão da importância das questões acerca do sentido e da significação da própria

existência e das produções culturais;

e) percepção da integração necessária entre a Filosofia e a produção científica, artística, bem

como com o agir pessoal e político;

f) capacidade de relacionar o exercício da crítica filosófica com a promoção integral da

cidadania e com o respeito à pessoa, dentro da tradição de defesa dos direitos humanos.

Destacando ainda a mesma portaria, que o egresso do curso de Filosofia, seja ele

licenciado ou bacharel, deve apresentar uma sólida formação em História da Filosofia, que o

capacite a:

a) compreender os principais temas, problemas e sistemas filosóficos;

b) servir-se do legado das tradições filosóficas para dialogar com as ciências e as artes, e

refletir sobre a realidade;

c) transmitir o legado da tradição e o gosto pelo pensamento inovador, crítico e independente.

Tendo presente, pois, a grande harmonia, ao menos nominal, entre os dois níveis de

ensino, que se complementam e se solicitam, é de se esperar que um profissional assim

formado possa desenvolver no aluno do ensino médio competências e habilidades similares.

Essas competências, que terão importante papel formador no ensino médio, remetem

novamente àquilo que torna o exercício da filosofia diferente do exercício das profissões das

demais áreas do conhecimento, por mais que se assemelhem: o recurso à tradição filosófica.

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Caso se tome, por exemplo, a primeira competência, a preparação para a ―capacitação para

um modo filosófico de formular e propor soluções de problemas‖ implica que o professor de

Filosofia tenha, em sua formação, familiaridade com a História da Filosofia – em especial,

com os textos clássicos. Esse deve ser seu diferencial, sua especificidade. Essa é a formação

que se tem nos cursos de Filosofia no país. Tanto na graduação quanto na pós-graduação, o

ponto de partida para a leitura da realidade é uma sólida formação em História da Filosofia,

mesmo que não seja esse o ponto de chegada.

É importante registrar que uma certa dicotomia muito citada entre aprender filosofia e

aprender a filosofar pode ter papel enganador, servindo para encobrir, muitas vezes, a

ausência de formação em véus de suspeita competência argumentativa de pretensos livres-

pensadores. Há de se concordar, nesse ponto, com Sílvio Gallo: ―Filosofia é processo e

produto ao mesmo tempo; só se pode filosofar pela História da Filosofia, e só se faz história

filosófica da Filosofia, que não é mera reprodução‖. A idéia é importante, pois deixa de opor o

conteúdo à forma, a capacidade para filosofar e o trato constante com o conteúdo filosófico,

tal como se expressa em sua matéria precípua – o texto filosófico. Aceitando essa tensa

relação entre conteúdo e forma, pode-se perceber a importância estratégica em se preservar a

correlação entre as competências propostas para a graduação e aquelas que se esperam em

relação ao estudante de ensino médio.

O texto das diretrizes para os Cursos de Graduação em Filosofia é cuidadoso –

defende um pensamento crítico, aponta para o exercício da cidadania e para a importância de

uma técnica exegética que permita um aprofundamento da reflexão. Entretanto, não antecipa

o resultado desse aprofundamento (no que se inclinaria de modo tendencioso) nem

o descola da tradição filosófica em que pode lograr sua especifi cidade. De fato, no espírito

desse documento, a tarefa do professor, ao desenvolver habilidades, não é incutir valores,

doutrinar, mas sim ―despertar os jovens para a reflexão filosófica, bem como transmitir aos

alunos do ensino médio o legado da tradição e o gosto pelo pensamento inovador, crítico e

independente‖. O desafio é, então, manter a especifi cidade de disciplina, ou seja, o recurso ao

texto, sem ―objetivá-lo‖. O profi ssional bem formado em licenciatura não reproduzirá em

sala a técnica de leitura que o formou, transformando o ensino médio em uma versão

apressada da sua graduação. Ao contrário, tendo sido bem preparado na leitura dos textos fi

losófi cos, poderá, por exemplo, associar adequadamente temas a textos, cumprindo

satisfatoriamente a difícil tarefa de despertar o interesse do aluno para a reflexão filosófica e

de articular conceitualmente os diversos aspectos culturais que então se apresentam.

Sinteticamente, pode-se manter a listagem das competências e das habilidades a serem

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desenvolvidas em Filosofi a em três grupos:

1º) Representação e comunicação:

• ler textos filosóficos de modo significativo;

• ler de modo filosófico textos de diferentes estruturas e registros;

• elaborar por escrito o que foi apropriado de modo reflexivo;

• debater, tomando uma posição, defendendo-a argumentativamente e mudando de posição em

face de argumentos mais consistentes.

2º) Investigação e compreensão:

• articular conhecimentos filosóficos e diferentes conteúdos e modos discursivos nas ciências

naturais e humanas, nas artes e em outras produções culturais.

3º) Contextualização sociocultural:

• contextualizar conhecimentos filosóficos, tanto no plano de sua origem específica quanto em

outros planos: o pessoal-biográfico; o entorno sócio-político, histórico e cultural; o horizonte

da sociedade científi co-tecnológica.

CONTEÚDOS DE FILOSOFIA

Mais do que fornecer um roteiro de trabalho, este item apresenta sugestões de conteúdos para

aqueles que futuramente venham a preparar um currículo ou material didático para a

disciplina Filosofia no ensino médio. A lista que se segue tem por referência os temas

trabalhados no currículo mínimo dos cursos de graduação em Filosofia e cobrados como itens

de avaliação dos egressos desses cursos, ou seja, os professores de Filosofia para o ensino

médio. Trata-se de referências, de pontos de apoio para a montagem de propostas curriculares,

e não de uma proposta curricular propriamente dita. Dessa forma, não precisam todos ser

trabalhados, nem devem ser trabalhados de maneira idêntica à que costumam ser tratados nos

cursos de graduação, embora devam valer-se de textos filosóficos clássicos, cuidadosamente

selecionados, mesmo quando complementados por outras leituras e atividades. Os temas

podem ensejar a produção de materiais e dão um quadro da formação mínima dos professores,

a partir da qual podemos esperar um diálogo competente com os alunos. Outros temas de

feição assemelhada também podem propiciar a mesma ligação entre uma questão atual e uma

formulação clássica, um tema instigante e o vocabulário e o modo de argumentar próprios da

Filosofia, além de ligarem a formação específica do profissional que pode garantir a

disciplinaridade da Filosofi a com a formação pretendida do aluno:

1) Filosofia e conhecimento; Filosofia e ciência; definição de Filosofia;

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2) validade e verdade; proposição e argumento;

3) falácias não formais; reconhecimento de argumentos; conteúdo e forma;

4) quadro de oposições entre proposições categóricas; inferências imediatas em contexto

categórico; conteúdo existencial e proposições categóricas;

5) tabelas de verdade; cálculo proposicional;

6) filosofia pré-socrática; uno e múltiplo; movimento e realidade;

7) teoria das idéias em Platão; conhecimento e opinião; aparência e realidade;

8) a política antiga; a República de Platão; a Política de Aristóteles;

9) a ética antiga; Platão, Aristóteles e fi lósofos helenistas;

10) conceitos centrais da metafísica aristotélica; a teoria da ciência aristotélica;

11) verdade, justificação e ceticismo;

12) o problema dos universais; os transcendentais;

13) tempo e eternidade; conhecimento humano e conhecimento divino;

14) teoria do conhecimento e do juízo em Tomás de Aquino;

15) a teoria das virtudes no período medieval;

16) provas da existência de Deus; argumentos ontológico, cosmológico, teleológico;

17) teoria do conhecimento nos modernos; verdade e evidência; idéias; causalidade; indução;

método;

18) vontade divina e liberdade humana;

19) teorias do sujeito na filosofia moderna;

20) o contratualismo;

21) razão e entendimento; razão e sensibilidade; intuição e conceito;

22) éticas do dever; fundamentações da moral; autonomia do sujeito;

23) idealismo alemão; filosofias da história;

24) razão e vontade; o belo e o sublime na Filosofia alemã;

25) crítica à metafísica na contemporaneidade; Nietzsche; Wittgenstein; Heidegger;

26) fenomenologia; existencialismo;

27) Filosofia analítica; Frege, Russell e Wittgenstein; o Círculo de Viena;

28) marxismo e Escola de Frankfurt;

29) epistemologias contemporâneas; Filosofi a da ciência; o problema da demarcação entre

ciência e metafísica;

30) Filosofia francesa contemporânea; Foucault; Deleuze.

A seqüência de temas acima perpassa a História da Filosofia. Desse conjunto, o

professor pode selecionar alguns tópicos para o trabalho em sala de aula. É importante ter em

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mente que tal elenco propicia uma unidade entre o quadro da formação e o quadro do ensino,

desenhando possíveis recortes formadores, agora bem amparados em um novo arranjo

institucional.

A Filosofia é teoria, visão crítica, trabalho do conceito, devendo ser preservada como

tal e não como um somatório de idéias que o estudante deva decorar. Um tal somatório

manualesco e sem vida seria dogmático e antifilosófico, seria doutrinação e nunca diálogo.

Isto é, tornar-se-ia uma soma de preconceitos, recusando à Filosofia esse traço que julgamos

característico e essencial. Desse modo, cabe ensinar Filosofia acompanhando ou, pelo menos,

respeitando o movimento do pensar à luz de grandes obras, independentemente do autor ou da

teoria escolhida.

METODOLOGIA

Para que o aluno desenvolva as competências esperadas ao final do ensino médio, não

pode haver uma separação entre conteúdo, metodologia e formas de avaliação. Assim, uma

metodologia para o ensino da Filosofia deve considerar igualmente aquilo que é peculiar a ela

e o conteúdo específi co que estará sendo trabalhado. Seguem, então, algumas considerações

sobre procedimentos metodológicos que podem ser úteis na prática acadêmica. Como se sabe,

a metodologia mais utilizada nas aulas de Filosofia é, de longe, a aula expositiva, muitas

vezes com o apoio do debate ou de trabalhos em grupo. A grande maioria dos professores

adota os livros didáticos (manuais) ou compõe apostilas com formato semelhante ao do livro

didático; mesmo assim, valem-se da aula expositiva em virtude da falta de recursos mais ricos

e de textos adequados. Muitas vezes, o trabalho limita-se à interpretação e à contextualização

de fragmentos de alguns filósofos ou ao debate sobre temas atuais, confrontando-os com

pequenos textos filosóficos. Há, ainda, o uso de seminários realizados pelos alunos, pesquisas

bibliográfi cas e, mais ocasionalmente, o uso de música, poesia, literatura e filmes em vídeo

para sensibilização quanto ao tema a ser desenvolvido.

Em função de alguns elementos preponderantes, como o uso do manual e a aula

expositiva, é possível dizer que a metodologia mais empregada no ensino de Filosofia destoa

da concepção de ensino de Filosofia que se pretende. Em primeiro lugar, boa parte dos

professores tem formação em outras áreas (embora existam hoje bons cursos de graduação em

Filosofia em número sufi ciente para a formação de profissionais devidamente qualifi cados

para atuar em Filosofia no ensino médio), ou, sendo em Filosofia, não tem a oportunidade de

promover a desejável formação contínua (sem a qual a simples inclusão da Filosofia no

ensino médio pode ser ilusória e falha). Isso acarreta, em geral, um uso inadequado de

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material didático, mesmo quando, eventualmente, esse tenha qualidade. Dessa forma, o texto

filosófico é, então, interpretado à luz da formação do historiador, do pedagogo, do geógrafo,

de modo que a falta de formação específica pode reduzir o tratamento dos temas filosóficos a

um arsenal de lugares-comuns, a um pretenso aprendizado direto do filosofar que encobre, em

verdade, bem intencionadas ou meramente demagógicas ―práticas de ensino espontaneístas e

muito pouco rigorosas, que acabam conduzindo à descaracterização tanto da Filosofia quanto

da educação‖.(SILVEIRA, René, Um sentido para o ensino de Filosofia no ensino médio, p.

139).

Para a realização de competências específi cas, que se têm sobretudo mediante a

referência consistente à História da Filosofia, deve-se manter a centralidade do texto fi losófi

co (primários de preferência), pois a Filosofia comporta ―um acervo próprio de questões, uma

história que a destaca sufi cientemente das outras produções culturais, métodos peculiares de

investigação e conceitos sedimentados historicamente‖. (LEOPOLDO E SILVA, Frankin apud

SILVEIRA, René, op cit., p. 139). Certamente, no desenvolvimento do modo especificamente

filosófico de apresentar e propor soluções de problemas, o exercício de busca e

reconhecimento de problemas filosóficos em textos de outra natureza, literários e

jornalísticos, por exemplo, não deixa de ser salutar, contanto que não se desloque, com isso, o

primado do texto filosófico.

Essa centralidade da História da Filosofia pode matizar um ponto que, ao contrário, se

afi gura bastante controverso, qual seja, a assunção de uma perspectiva filosófica pelo

professor. Certamente ninguém trabalha uma questão filosófica se situando fora de suas

próprias referências intelectuais, sendo inevitável que o professor dê seu assentimento a uma

perspectiva. Essa adesão, entretanto, tem alguma medida de controle na referência à História

da Filosofia, sem a qual seu labor tornar-se-ia mera doutrinação. Além disso, tendo esse pano

de fundo, mais que incutir valores o professor deve convidar os alunos à prática da reflexão. A

Filosofia, afinal, ao contrário do que se faria em qualquer tipo de doutrinação, deveria

instaurar procedimentos, como o de nunca dar sua adesão a uma opinião sem antes submetê-la

à crítica.

Na estruturação do currículo e mesmo no desenho das práticas pedagógicas da

disciplina, a centralidade da História da Filosofia tem ainda méritos adicionais: (i) solicita

uma competência profissional específica, de sorte que os temas próprios da Filosofia devam

ser determinados por uma tradição de leitura consolidada em cursos de licenciaturas próprios;

(ii) solicita do profissional já formado continuidade de pesquisa e formação especificamente

filosófi cas; (iii) evita a gratuidade da opinião, com a qual imperariam docentes malformados,

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embora mais informados que seus alunos, suprimindo o lugar da refl exão e da autêntica

crítica; e (iv) determina ainda o sentido da utilização de recursos didáticos e de quem pode

usar bem esses recursos, de modo que sejam filosóficas as habilidades de leitura adquiridas.

Com efeito, sendo formado em Filosofia e tendo a História da Filosofia como referencial, essa

maior riqueza de recursos didáticos pode tornar as aulas do docente mais atraentes, e mais

fácil a veiculação de questões filosóficas. Garantidas as condições teóricas já citadas, é

desejável e prazerosa a utilização de dinâmicas de grupo, recursos audiovisuais,

dramatizações, apresentação de filmes, trabalhos sobre outras ordens de texto, etc., com o

cuidado de não substituir com tais recursos ―os textos específi cos de Filosofia que abordem

os temas estudados, incluindo-se aqui, sempre que possível, textos ou excertos dos próprios

filósofos, pois é neles que os alunos encontrarão o suporte teórico necessário para que sua

reflexão seja, de fato, filosófica‖. (SILVEIRA, René, op. cit., p. 143.)

Pensar a especificidade em termos de um ensino anterior à graduação remete-nos

novamente à questão de como deve ocorrer o ensino da Filosofia nesse universo específico

que é o do ensino médio. Nesse ponto, o amadurecimento das reflexões acerca do que é

genuinamente próprio da Filosofia também em termos de metodologia implica, por um lado,

buscar um equilíbrio entre a complexidade de algumas questões de Filosofia e as condições de

ensino encontradas, e, por outro, evitar posições extremadas, que, por exemplo, (i) nos fariam

transpor para aquele nível de ensino uma versão reduzida do currículo da graduação e a

mesma metodologia que se adota nos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia ou

(ii), ao contrário, procurando torná-la acessível, nos levariam a falseá-la pela banalização do

pensamento filosófico.

A diferença em relação à graduação, no entanto, não pode significar uma espécie de

ecletismo no ensino da Filosofia. O que corresponderia a uma espécie de saída de emergência

para professores sem formação devida, como se fora um recurso de pleno bom senso,

residindo aí seu maior perigo. Em versão mais generosa, o ecletismo afi rmaria apenas a parte

positiva das doutrinas, suprimindo qualquer negatividade. Assim, por exemplo, diante da

divergência entre intelectualistas e empiristas, concederia razão a ambas as correntes.

Entretanto, sob qual perspectiva pode alguém separar o positivo do negativo? Ocultadas por

aparente bom senso, seriam urdidas sínteses filosóficas precárias. Não tendo valores precisos,

nem sendo bem formado e, mais ainda, usando expedientes para ocultar-se

no debate, um professor de Filosofi a cumpriria, assim, limitado papel formador. Supõe-se,

portanto, que o professor com honestidade intelectual deva situar-se em uma perspectiva

própria, o que indica maturidade e boa formação. Assim, em vez de uma posição soberana que

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pretenda suprimir o próprio debate filosófico, parece necessário retornar, também com

perspectivas próprias, ao debate e a textos selecionados que sirvam de fundamento à reflexão.

Tomando-se como ponto de partida as mesmas Diretrizes Curriculares para os Cursos

de Graduação em Filosofia que norteiam a formação dos professores para o ensino de

Filosofia no nível médio, tem-se a seguinte caracterização do licenciado em Filosofia: ―O

licenciado deverá estar habilitado para enfrentar com sucesso os desafi os e as dificuldades

inerentes à tarefa de despertar os jovens para a reflexão filosófica, bem como transmitir aos

alunos do ensino médio o legado da tradição e o gosto pelo pensamento inovador, crítico e

independente‖. Nesse universo de jovens e adolescentes, é imprescindível despertar o

estudante para os temas clássicos da Filosofia e orientá-lo a buscar na disciplina um recurso

para pensar sobre seus problemas. Em todos esses níveis, no entanto, não se pode perder de

vista a especificidade da Filosofia, sob pena de se ter uma estranha concorrência do

profissional de Filosofia com o de Letras, Antropologia, Sociologia ou Psicologia, entre

outros. Diferentemente, ciente do que lhe é próprio, o profissional de Filosofia poderá

desenvolver projetos em conjunto, inclusive com temas transversais e interdisciplinares,

enriquecendo o ensino e ―estimulando a criatividade, o espírito inventivo, a curiosidade pelo

inusitado e a afetividade‖.

Participação ativa na formação do jovem e capacidade para o diálogo com outras áreas

do conhecimento pressupõem, como já foi visto aqui, que o professor de Filosofia não perca

de vista a especifi cidade de sua própria área. Por outro lado, para bem cumprir sua tarefa, não

bastará ter em conta seu próprio talento, pois inserirá seu trabalho em um novo contexto para

a Filosofia no país, em que se ligam esforços os mais diversos, inclusive para sanar o dano

histórico resultante da ausência da Filosofia. Com isso, devemos reconhecer que está se

abrindo para o ensino de Filosofia um novo tempo, no qual não se frustrarão nossos esforços

na medida em que reconhecermos a importância da formação contínua dos docentes de

Filosofia no ensino médio, bem como o esforço coletivo de reflexão e de produção de novos

materiais. É preciso, assim, estarmos à altura da elevada qualidade que deve caracterizar o

trabalho de profi ssionais da Filosofia, quando já se pode afi rmar, alterando uma antiga

diretriz, que ―as propostas pedagógicas das escolas deverão, obrigatoriamente, assegurar

tratamento disciplinar e contextualizado para os conhecimentos de Filosofia‖.