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Inúmeras pesquisas demonstraram que o processo de ensino-aprendizagem de História não atende às exigências do atual estágio de desenvolvimento da sociedade brasileira e a escola não dá conta de suprir as necessidades criadas pela sociedade contemporânea, pela crescente cientificização da vida social e produtiva, que constitui um sério desafio a ser enfrentado na teoria e na prática educativas. Nesse contexto, o presente livro destina-se a subsidiar a reflexão dos professores de História, para quem é importante ter claros os princípios que norteiam a discussão curricular, a seleção de documentos, textos e atividades, e o trabalho a ser realizado com seus alunos. O primeiro capítulo apresenta um panorama das teorias críticas e a questão do currículo na renovação do saber histórico escolar no contexto da década de 1980. O segundo discute as metodologias do ensino de História, tais como a construção do tempo histórico, a pesquisa no ensino e o uso escolar do documento histórico. Enfim, o último capítulo discute a possibilidade da utilização, na metodologia do ensino de História, do contexto vital e da história da comunidade local em que o aluno está inserido. o ensino de História e seu currículo

O ensino de História e seu currículo

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Inúmeras pesquisas jádemonstraram que o processo deensino-aprendizagem de Histórianão atende às exigências do atualestágio de desenvolvimento dasociedade brasileira e a escola nãodá conta de suprir as necessidadescriadas pela sociedadecontemporânea, pela crescentecientificização da vida social eprodutiva, que constitui um sériodesafio a ser enfrentado na teoriae na prática educativas.

Nesse contexto, o presentelivro destina-se a subsidiar areflexão dos professores deHistória, para quemé importante ter claros osprincípios que norteiam adiscussão curricular,a seleção de documentos, textos eatividades, e o trabalho a serrealizado com seus alunos.

O primeiro capítulo apresentaum panorama das teorias críticase a questão do currículo narenovação do saber históricoescolar no contexto da década de1980. O segundo discute asmetodologias do ensino deHistória, tais como a construçãodo tempo histórico, a pesquisa noensino e o uso escolar dodocumento histórico. Enfim, oúltimo capítulo discute apossibilidade da utilização, nametodologia do ensino deHistória, do contexto vital e dahistória da comunidade local emque o aluno está inserido.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

I-10m, Geraldo BalduínoO ensino de História e seu currículo: teoria e

método / Geraldo Balduíno Horn, Geyso DongleyGerminari. - 3. ed. Petrópolís, RJ : Vozes, 2010.

ISBN 978-85-326-3289-01. Currículos - História 2. História - Estudo e

ensino r. Germinari, Geyso Dongley. lI. Título.

06-0254 CDD-907.1

Índices para catálogo sistemático:1. História: Estudo e ensino: Currículos

907.1

Geraldo Balduíno HornGeyso Dongley Germinari

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Teoria e método

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História local, -,arquivosfamiliares e o ensino

Bittencourt (1998, p. 153), ao analisar propostas curri-culares de História para o Ensino Fundarnental, de váriosEstados brasileiros, elaboradas entre 1985 e 1995, perce-beu ser praticamente consensual organizar os estudos dasociedade a partir da vivêncía dos alunos, para então intro-duzi-los em outras realidades. Apesar de não estarem apro-fundadas estas discussões, busca-se valorizar o aluno comosujeito do conhecimento. A metodologia sugerida para en-caminhar essa proposta

parte desses princípios enunciados e indica ser ne-cessário que o aluno desenvolva a capacidade deobservação do meio próximo, introduzindo a im-portância de elementos de sua vivência, tais comoa própria moradia, fotografias, artigos de jornais erevistas, considerando-os como objetos de estudo,portadores de informações históricas possíveis eleserem resgatadas.

Porém, ainda, não se discute, nestas propostas, como uti-lizar esses registros encontrados no âmbito familiar, paraaproximar o ensino de História ao conhecimento experi-mentado pelo aluno. "Parece, dessa forma, ser suficiente nasséries iniciais trazer para a sala de aula elementos da vidado aluno, para que a relação e articulação entre as duas for-

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mas de conhecimento se estabeleça" (BITTENCOURT,1998, p. 153).

Partindo do pressuposto que as discussões metodológi-cas a respeito do uso de documentos históricos que podemser encontrados no âmbito familiar do aluno, no ensino deHistória, ainda são pouco desenvolvidas, a presente pes-quisa buscou, ao longo dos seus capítulos, propor alternati-vas para esta discussão.

3.1 História local e a finalidade do ensino

Talvez mostrando as pessoas eu possaser mais fiel ao lugar e à época (AldirBlanc, 1996).

A História local é entendida aqui como aquela que de-senvolve análises de pequenos e médios municípios, oude áreas geográficas não limitadas e não muito extensas.Esta definição segue a perspectiva de Coubert (1988, p.70), segundo a qual a história diz "respeito a uma ou pou-cas aldeias, a uma cidade pequena ou média (um grandeporto ou uma capital estão além do âmbito local), ou a umaárea geográfica que não seja maior do que a unidade pro-vincial comum [...]".

A pesquisa de História local não é novidade. Estudos so-bre o tema já enfatizaram o processo político-administrativode formação dos municípios brasileiros. Estas pesquisas, mui-tas vezes, não dispõem de um quadro mínimo de referênciasteóricas e muito menos problemáticas de investigação.

O novo interesse da História local volta-se para umaabordagem social que procura reconstruir as condições devida dos diversos grupos sociais de uma determinada loca-lidade. Como afirma Coubert (1988, p. 73):

A volta à História local origina-se de um novo inte-resse pela História social- ou seja, a história da so-

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-,

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ciedade como um todo, e não somente daquelespoucos que, felizes, a governavam, oprimiam e dou-trinavam - pela história de glllpos humanos algu-mas vezes denominados ordens, classes, estados.

A partir destas novas perspectivas historiográficas en-contram-se também as preocupações da utilização da His-tória local no ensino de História. Para Proença (1990, p.139): "Assiste-se presentemente ao desenvolvimento deuma História local que visa tirar partido das novas metodo-logias, utilizando novas fontes quantitativas ou qualitativase cujos temas poderão ter um aproveitamento didático mo-tivador e estimulante."

A valorização da História local na produção historio-gráfica levou à supervalorização, desta perspectiva, nasnovas propostas curriculares. Os Parâmetros CurricularesNacionais para o Ensino Fundamental, na área de História,recentemente divulgados (1997 e 1998), foram construí-dos a partir de uma ótica na qual a História local e do coti-diano são os eixos teóricos que elevem ser tomados comoreferência para trabalhar a experiência dos alunos e oscontextos mais amplos.

No Brasil, a História local já vem sendo proposta noscurrículos do Ensino Fundamental há pelo menos duas dé-cadas, assumindo diferentes formas de abordagem. Nas dé-cadas de 1970 e 1980, as propostas curriculares do EnsinoFundamental eram organizadas nos chamados "CírculosConcêntricos", onde o conteúdo de Estudos Sociais (quecontemplava elementos do conhecimento histórico e geo-gráfico) deveriam ser trabalhados a partir da realidade maispróxima do aluno. Primeiro buscava-se trabalhar elemen-tos ligados à família do aluno, para depois estudar a comu-nidade e o bairro, para posteriormente incluir o aluno emcontextos mais amplos como a cidade, o país e o mundo(CAHCIA & SCHMIDT, 2000).

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Entre as décadas de 1980 e 1990 o conhecimento histó-rico e o ensino de História, juntamente com outras temáti-cas educacionais, foram objeto de discussões de professo-res universitários, do Ensino Fundamental e Médio. Nestaconjuntura, as pesquisas destacavam a importância do su-jeito que aprende e as novas formas de ensino da História.As discussões sobre a organização dos conteúdos cami-nham para uma História temática, tendo a História localcomo estratégia pedagógica principal.

A História local no ensino não deve ser tratada apenascomo um conteúdo a ser ensinado, mas constituir-se emuma estratégia pedagógica, que trate metodologicamenteos conteúdos a partir da realidade local. Segundo Ossanna(1994), cm

UIl planteo más amplio, abarcativo y menos "estruc-turado" es el de considerar este enfoque como una"estratégia pedagógica". En este caso, es una formade abordar cl aprendizaje y Ia construcción y com-prención deI conocimiento a partir de formas espe-cificas que tengan que ver con Ios intcreses de Iosalumnos, sus acercamientos cognoscitivos, el traha-jo de 10 vivenciaI, Ias posíbilidades de actividadesvinculadas directarnente con Ia vida cotidiana comoexpresiones concretas de problemas más amplies.

A História local, enquanto estratégia de aprendizagem,pode garantir o domínio do conhecimento histórico "[...] apartir de recortes seleccionados, pero integrados y conec-tados con el conjunto del conociniiento. Es Ia conjunciónde Ia garantía del conocimiento científico com Ias objetivoseducativos" (OSSANNA, 1994).

Ademais, o trabalho com a História local no ensino pos-sibilita a construção de uma História mais plural, que não si-lencie a mutiplicidade das realidades. Para Ossanna (1994), aHistória local como estratégia pedagógica, traz "Ia posibíli-

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.......,.

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dad de captar Ia existencia no de una historia sino de variashistorias, leídas desde distintos actos o sujetos históricos,así como de historia silenciadas, historias que no han tenidoacceso a Ia história", como, por exemplo, as histórias dostrabalhadores, crianças e mulheres.

O professor, ao optar pelo recurso da. História localcomo método de ensino, deve estar atento a alguns aspec-tos que antecedem o trabalho em sala de aula. Em primeirolugar definir o significado do termo local no seu aspecto es-pacial. Depois, realizar um minucioso levantamento de fon-tes documentais em arquivos, museus, bibliotecas e no pró-prio meio (patrimônio, estatuária, placas, monumentos, ca-sas antigas) da localidade. As fontes encontradas podem seraproveitadas didaticamente no ensino de História (MANI-QUE & PROENÇA, 1994).

Primeiramente é necessário recuperar elementos da"História do ensino de História" para iniciar uma discussãoacerca da Finalidade desta disciplina frente a uma escolacontemporânea frequentada por alunos dos mais diversossegmentos sociais .

A História como disciplina curricular surgiu no sistemapúblico eleensino francês, no século XIX, no contexto das lu-tas burguesas, do nacionalismo, da formação dos Estados-Nação e do enfrentamento pelos segmentos dominantes àsreivindicações proletárias feitas na Comuna de Paris (FRAN-ÇA, 1870). Neste contexto, o conteúdo da disciplina buscavajustificar a formação do cidadão para a pátria e importânciada classe social burguesa emergente. É o momento em que aeducação passou a ser um direito para todos numa perspecti-va laica, universal, gratuita e obrigatória. No século XIX, oconhecimento histórico escolar, junto ao objetivo de afirmara importância da classe burguesa, serviu também para justi-ficar e consolidar os ideais nacionalistas.

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No Brasil, o conteúdo de História foi inserido no currí-culo do Colégio Pedro II14em 1838. Tratava-se da "[...] ne-cessidade de retomar-se ao passado, com objetivo de iden-tificar 'a base comum' formadora da nacionalidade. Daí osconceitos tão caros às histórias nacionais: Nação, Pátria,Nacionalismo, Cidadania" (NADAI, 1986, p. 106).

O objetivo do ensino de História era criar uma identi-dade nacional homogênea em torno de um Estado politica-mente organizado. Assim, segundo Nadai (1993, p. 146),

[...] a História inicialmente estudada no país foi aHistória da Europa Ocidental, apresentada comoverdadeira História da Civilização. A História pá-tria surgia como seu apêndice, sem um corpo autô-nomo e ocupando papel extremamente secundá-rio. Relegado aos anos finais dos ginásios, com nú-mero ínfimo de aulas, sem uma estrutura própria,consistia em um repositório de biografias ele ho-mens ilustres, de datas e batalhas.

Os conteúdos selecionados para História do Brasil tinhamcomo referência a produção historiográfica do IHGBl:3 e co-mo a historiográfía européia enfatizava a história da nação.

No final do século XIX a influência da historiografia eu-ropeia sobre a produção historiográfica brasileira acentu-ou-se. O ideal nacionalista republicano brasileiro encontra-va no processo de formação dos Estados-Nação europeusas suas justificativas. Tais concepções eram influenciadaspelo pensamento intelectual positivista". O positivismo

14. Instituição de ensino superior do Rio de Janeiro fundada em 1739. Foiconvertida em instituição eleensino secundário, sob a denominaçâo de Co-légio Pedro Ir, em 18:37.

15. Instituto Histórico e Geográfico do Brasil.16. Filosofia sistematizada por Augusto Comte (1798-1857). O positívismoconsistia na aplicação dos métodos utilizados na matemática e nas ciênciasexperimentais aos fenômenos sociais e políticos, a fim eleapreender as leisque regem a estrutura e () desenvolvimento das sociedades. No Brasil, opositivismo alcançou grande expressão, sua influência verificou-se princi-palmente em iniciativas da legislação brasileira.

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trouxe algumas consequências à disciplina, que pretendiabasear-se em suas leis. Cardoso (1998) destaca alguns pon-tos desta influência: a) afirmação dos fatos e seu estabeleci-mento por meio da crítica das fontes; b) pessimismo quantoà possibilidade de explicar os fatos por meio de leis; c) acú-mulo de fatos segundo critérios rigorosos de erudição críti-ca; d) existência real do fato histórico, externo ao observa-dor; e) problemática da causalidade ligando causa e conse-quência a uma ordem cronológica linear.

Este pensamento pretendia uma investigação científicaobjetiva que buscava no passado a verdade histórica, afas-tando qualquer especulação filosófica nas suas análises. Oshistoriadores positivistas acumularam determinados fatospolíticos que podiam ser verificados e comprovados por meiodos documentos escritos (oficiais) produzidos pelo Estado.Pensavam atingir este objetivo por meio de técnicas rigoro-sas de seleção das fontes, crítica ao documento e organiza-ção das tarefas na profissão. Com o positivismo há o triunfodo documento, segundo Le Goff (1992, p. 539): "Apartir deentão, todo historiador que trate de historiografia ou do mis-ter de historiador recordará que é indispensável o recursodo documento".

Desta forma, produziu-se uma história voltada aos estu-dos dos acontecimentos políticos, da genealogia das nações,evidenciando as "datas importantes", "os grandes persona-gens", os "heróis" da nação. "A maior parte da história nopassado era escrita para a glorificação e talvez para o uso prá-tico dos govemantes" (HOBSBAWN, 1998, p. 216).

Durante a maior parte da história escrita, as massas po-pulares apenas foram incluídas "[...] em circunstâncias mui-to excepcionais - como as grandes revoluções ou insurrei-ções sociais" (1998, p. 217).

O ensino de História ligado a estas concepções é cornu-mente denominado tradicional. "A preocupação fundamen-tal era ensinar a História para explicar a genealogia da na-

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ção, transmitindo os fatos do passado como 'realmente' acon-teceram" (SCHMIDT, 1997, p. 8).

Neste panorama não havia lugar para a história das cri-anças, mulheres, trabalhadores e pobres. "Estas memóriasestão fora da 'história' no sentido da elite, destino coletivoconcebido à escala do Estado ou da nação, quadro exteriorà vida quotidiana [...l" (CITRON, 1990, p. 94).

Uma nova perspectiva para o ensino de História nãopode ficar limitada a uma concepção de história que apenasdestaque os segmentos dominantes da sociedade. O conhe-cimento histórico escolar tem o desafio de superar tal obs-táculo, objetivando uma noção mais ampla, onde as classespopulares sejam também inseridas em suas análises. Umensino de História mais próximo da realidade da grandemaioria dos alunos brasileiros, oriundos de famílias pobres,cujos pais, geralmente, estão desempregados ou trabalhamem subempregos, levando muitas vezes esses alunos ao tra-balho para complementar o orçamento familiar.

De forma geral as sociedades industriais e pós-industri-ais estão enfrentando problemas sociais parecidos. "Mi-lhões de seres vivem ou sobrevivem à margem da 'história'[...]" (CITRON, 1990, p. 105). Os modelos de "desenvolvi-mento" de nossas cidades estão gerando problemas de faltade moradia, desemprego e urbanização desorientada.

As pessoas atingidas pela desestruturação socioeconô-mica dos espaços urbanos mais pobres estão perdendo suasidentidades individuais e coletivas. Segundo Citron (1990,p. 108): .

Sob diferentes formas, ligados a fatores geográfi-cos, econômicos, sociais, étnicos e culturais imbri-cados em cada caso de forma original, manifesta-seo mesmo fenômeno de uma juventude com proble-mas de reconhecimento social, porque privada derecursos, de um modelo interiorizável, de futurovisível, de espaço possível de socialização.

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A escola pode acentuar essa exclusão se não adotar mo-delos didático-pedagógicos que valorizem as experiênciasvividas pelos sujeitos, modelos aonde os alunos se reconhe-çam enquanto indivíduos participantes do processo de en-sino/aprendizagem. Para isso é preciso

[...] entender como as experiências produzidas nosvários domínios da vida cotidiana produzem, porsua vez, as diferentes 'vozes que os alunos empre-gam para dar sentido aos seus mundos e, conse-quentemente, à sua existência na sociedade em ge-ral [...1 (McLAREN, 1997, p. 249).

Para ensinar História a partir da experiência de vida doaluno é necessário uma perspectiva teórico-metodológicaque fale da vida das pessoas, que destaque, por exemplo, asfestas familiares, as festas coletivas, as memórias e lem-branças dos sujeitos de todos os segmentos sociais. É preci-so dar voz às histórias das mulheres, das crianças pobres,trabalhadores, enfim, fazer falar sujeitos que sempre esti-veram excluídos dos conteúdos ensinados.

Citron aponta a necessidade ele a escola reencontrar asmemórias perdidas da história, resgatar o cotidiano, "me-mória enfim elos 'abandonados' da história, camponeses,pescadores, artesãos, operários, culturas desprezadas, eu-jos gestos e trabalho são estranhos à memória da escola"(1990, p. 114). .

A História, comprometida em remem orar a experiênciada gente comum, procura compreender uma dimensão des-conhecida do passado e isto leva a alguns problemas meto-dológicos que precisam ser discutidos.

Segundo Hobsbawn (1988), o efetivo avanço da históriado povo ocorreu a partir da década de 1950 quando foi pos-sível, ao marxismo, dar sua contribuição. O interesse dosmarxistas pela história feita pelo povo desenvolveu-se como crescimento dos movimentos trabalhistas. Isto proporcio-

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nou um incentivo grande pelo estudo do homem, especial-mente da classe operária. Esses historiadores buscavamnão apenas estudar o homem comum, mas o homem co-mum que podia ser considerado o ancestral do movimentosocialista, não como trabalhadores apenas, mas como car-tistas e sindicalistas. Sentiram a tentação de supor que ahistória dos movimentos pela luta dos trabalhadores era aprópria história das pessoas comuns. Porém, para Hobs-bawn (1988, p. 21):

Quaisquer que tenham sido suas origens e dificul-dades iniciais, a história feita pelo povo decolouagora. E recuando a vista para a história do povocomum, não estamos tentando apenas dar-lhe umaimportância política retrospectiva que nem sem-pre teve, mas tentando, de {arma mais geral, explo-rar uma dimensão desconhecida do passado.

Este objetivo gerou problemas técnicos como a falta defontes sistematicamente organizadas. De acordo com Hobs-bawn (1988, p. 21):

Todos os tipos de história enfrentam problemastécnicos próprios, mas a maioria supõe que há umconjunto de material informativo pronto e à dispo-sição e cuja interpretação é que os cria [...]. Ora, ahistória vinda do povo difere desses assuntos, e naverdade da maior parte da história tradicional, namedida em que simplesmente não há um conjuntopronto e acabado de material sobre a mesma.

A maioria das fontes da história do povo foram reconhe-cidas como tal, porque um historiador elaborou uma per-gunta e saiu "garimpando" maneiras de respondê-Ia. Se-gundo Hobsbawn (1988, p. 22): "Não podemos ser positi-vistas, acreditando que as perguntas erespostas surgem na-turalmente do estudo do material".

Seguindo as argumentações do autor, ainda que as per-guntas revelem novas fontes para o estudo da história daspessoas comuns, é preciso um quadro teórico-metodológi-

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co coerente para analisar as fontes encontradas. "Isto por-que nosso problema não é tanto o de descobrir uma boafonte. Até mesmo as melhores destas fontes - digamos asdemográficas sobre nascimentos, casamentos e falecimen-tos - esclarecem apenas certas áreas do que as pessoas fazi-am, sentiam e pensavam" (HOBSBAWN, 1988, p. 26).

O investigaclor da história do povo deve, de certa ma-neira, saber o que está procurando, pois assim poderá reco-nhecer o que procura e ajustar a suas hipóteses. Caso nãoconsiga realizar este ajuste, é preciso pensar em outros mo-delos. Para construir tais modelos, Hobsbawn (1988) apon-ta a necessidade de ter conhecimento amplo e concreto doassunto, isso num primeiro momento permite eliminar hi-póteses inúteis. Além disso é preciso também imaginação-junto com informação - para evitar o anacronismo. "Co-nhecimento e imaginação, porém, não são suficientes. Oque precisamos construir, ou reconstruir, é, em termos ide-ais, um 'sistema' coerente preferivelmente consistente, decomportamento e pensamento" (p. 27).

A possibilidade de o conhecimento histórico introduzirno espaço escolar as experiências vividas pelas pessoas co-muns e trabalhar metodologicamente essas experiênciaspor meio de documentos acumulados ao longo da vida tor-nou-se possível graças às novas abordagens do pensamentohistoriográfíco contemporâneo.

3.2 História e historiografia

A partir da primeira metade do século XX, a historio-grafia conheceu uma ampla renovação das suas concep-ções. O avanço da história rumo ao social deve-se em gran-de parte a dois paradigmas de explicação dos fenômenossociais: o marxismo e a escola dos Annales. A inspiração nasidéias dos pensadores dessas duas vertentes levou ao aban-

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dono gradativo da prática historíográfica positivista inte-ressada exclusivamente na história política (HUNT, 1992).

A escola dos Annales, desde as primeiras gerações dehistoriadores - década de 1930 - direcionou suas análisespara o campo social e econômico, erguendo-se contra a do-minação da escola positivista, trazendo novas ídeías sobre aconcepção de documentos e sua utilização como fonte his-tórica. Criticaram o documento escrito e oficial como únicafonte capaz de viabilizar o conhecimento sobre o passado epassaram a considerar como documento histórico todo ves-tígio escrito, iconográfico, oral, sonoro e material deixadopela ação humana (BURKE, 1997).

A noção ampliada de documento ajudou superar a es-cassez de fontes a respeito das classes subalternas. Isso pos-sibilitou a construção de outras histórias, de sujeitos queaté então estavam excluídos da história escrita. O docu-mento histórico, em vez de servir unicamente como com-provante de acontecimentos de determinada época, passoua ser fonte das mais variadas interpretações sobre a política,economia, religião e mentalidades das sociedades.

Por outro lado, no final da década de 19.50 e início dadécada de 1960, um grupo de historiadores marxistas co-meçou a se interessar e a produzir uma história do povo,preocupada em resgatar a vida das classes operárias e seumundo socíal'". Como afirma Hunt (1992, p. 2), "embora di-ficilmente se pudesse considerar o marxismo como novida-de nas décadas de 1950 e 1960, estavam vindo a primeiroplano, dentro daquela modalidade explicativa, novas COf-

17.Em 19.56,as revelações sobre os crimes de Stalin, contidas no RelatórioSecreto divulgado por Nikíta Kruschov, no XX Congresso do Partido Co-munista da União Soviética, e a invasão da Hungría pelos exércitos soviéti-cos geraram uma crise do pensamento marxista levando muitos intelectu-ais a romperem com o Partido Comunista.

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rentes que fomentavam o interesse dos historiadores pelahistória social".

A história das pessoas comuns como campo específicode estudo começou realmente a florescer na Inglaterra eem outros países apenas após a Segunda Guerra Mundial(HOBSBA \iVN, 1998).

Na Inglaterra, ao contrário de outros países, não houveuma ruptura com o marxismo e com a política de esquerda.Buscou-se, dentro do próprio pensamento marxista, novasperspectivas teórico-metodológicas para explicar os fenô-menos sociais. No final da década de 1950 e durante os pri-meiros anos da década de 1960, um grupo de historiadoresmarxistas ingleses, formado por Eric Hobsbawn, HaymondWillíams, Edward Palmer Thompson c Christopher IIill,entre outros, situou-se no campo do marxismo, desenvol-vendo pesquisas em oposição frontal a um tipo de interpre-tação em que as estruturas teóricas idealizadas mantinhamdistância de qualquer diálogo com o processo histórico ecom os sujeitos históricos reais.

Esses intelectuais lançaram-se ao estudo de uma "histó-ria vinda de baixo" preocupada com objetos pouco explora-dos como a história operária e a cultura popular. Revelarame fizeram falar a história de homens e mulheres trabalhado-res, sujeitos que por muito tempo estiveram excluídos daprodução historiográfica, seja ela marxista ou positivista. Asreflexões de Hobsbawn, Thompson e Willians contribuírampara valorização dos estudos voltados ao resgate da história,da memória e dos documentos das pessoas comuns.

As contribuições mais manifestas de Thompson paraesse debate foram seus escritos, ensaios e livros clássicos,cujas ideias foram frequentemente discutidas, avaliadas eapreciadas. Suas obras tiveram boa repercussão no Brasil.Livros como A miséria da teoria (1981) e A [ormação daclasse operária inglesa (1987) trouxeram inovações, revi-

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sões de metodologia e de conceitos que acompanharam asua vida intelectual. Tendo a formação da classe operáriacomo o principal objeto de estudo, o autor concebe novasconcepções teóricas, envolvendo revisões e contribuições.Thompson conseguiu revigorar o pensamento marxista aoformular um novo conceito para as classes sociais baseadona "experiência" dos trabalhadores.

A "experiência" foi uma categoria que possibilitou con-ceber as classes sociais diferentemente de algo apenas comexistência teórica. Para Thompson, a classe não pode serentendida como uma estrutura, muito menos como uma ca-tegoria, mas como algo que resulta de um processo históri-co, efetivamente marcado pelas relações humanas. SegundoThompson, a experiência é uma categoria imperfeita mas in-dispensável para analisarmos a história das pessoas comuns,porque esta categoria "[...] compreende a resposta mental eemocional, seja de um indivíduo ou de um grupo social, amuitos acontecimentos inter-relacionados ou a muitas repe-tições do mesmo tipo de acontecimento" (1981, p. 15). Elaleva a refletir acerca das particularidades, contingências, va-riações de experiências e conduz a recusa dos grandes mo-delos explicativos que ocultam os sujeitos da história.

Sua reflexão acerca da formação da classe operária seorigina na vivência concreta de homens e mulheres traba-lhadores, privilegiando nessa análise as ações simbólicas eritualizadas dos operários. Para Thompson (1981, p. 16): "Aexperiência surge espontaneamente no ser social, mas nãosurge sem pensamento. Surge porque homens e mulheres(e não apenas filósofos) são racionais, e refletem sobre o queacontece a eles e ao seu mundo".

É no quadro da dimensão cultural que o autor investigaos modos específicos de viver e entender o mundo. O con-ceito de cultura é utilizado por ele na perspectiva de Willi-ams (1969), para quem a cultura não era entendida como

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•.

desenvolvimento intelectual, ou disposição do espírito embusca da perfeição, mas sim como todo um sistema de vida,no seu aspecto material, intelectual e espiritual. Williams(1969) formulou seu conceito de cultura a partir das trans-formações que a sociedade e o homem sofreram desde o fi-nal do século XVIII até a primeira metade do XIX. A mu-dança ocorrida na indústria, nesseperíodo, gerou novosmétodos de produção e também novas relações sociais. Paraserem compreendidas exigiram novas categorias para apre-ender a complexidade das novas relações, onde as classesoperárias despontavam como elemento importante da so-ciedade. "A ideia de 'cultura' seria mais simples se fosseresposta ao industrialismo apenas; foi, porém, resposta anovos desenvolvimentos políticos e sociais, isto é, à 'demo-cracia'" ('V1LLIAMS, 1969, p. 20).

Thompson escreveu sobre as experiências das classespopulares, por meio da análise dos seus gestos, rituais, socia-bilidades, crenças, resistência e formas de ocultar o poder.A partir destes elementos pôde compreender a ação políti-ca e a organização social. A obra de Thompson constrói efe-tivamente a ideia de que a história é feita pelos homens, porsuas ações translormadoras e pelas suas experiências, e nãoapenas por modelos teóricos e conceitos fechados.

Para concretizar um ensino de História a partir destasconcepções é preciso metodologias adequadas a esta finali-dade. Nesse sentido, aponta-se como alternativa a constru-ção de uma nova metodologia de ensino por meio do uso dedocumentos, que podem ser encontrados em estado de ar-quivo familiar.

3.3 Arquivos familiares e documentos históricos:possibilidade para o ensino de História

A utilização de fontes documentais no ensino de Histó-ria não é recente, elas já foram utilizadas nos mais antigos

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manuais e livros didáticos. Estes compêndios reproduziama concepção de documento histórico dos historiadores po-sitivistas, pois priorizavam o documento escrito como únicafonte possível para se conhecer o passado.

Nessa perspectiva, o uso didático do documento era to-talmente centrado na figura do professor. "Era ele quempropunha encaminhar e explicar como o aluno deveria serelacionar com o documento" (SCHMIDT, 1997, p. 10).

O rompimento com essa forma didática de utilizar osdocumentos históricos ocorre num primeiro momento pelacrítica pedagógica. Isto ocorreu a partir da introdução, naescola, dos princípios da Escola Nova. "Essa pedagogiadeslocou para o aluno o centro do processo ensino-aprendi-zagem. Assim, foi recomendado ao professor que se tornas-se apenas um orientador ou introdutor do aluno no conhe-cimento" (SCHMIDT, 1997, p. 10). Isto significou mudan-ças de tratamento didático. Ao professor cabia introduzir osalunos no uso dos documentos para estimular suas lem-branças e suas observações. Porém, apesar de mudar o sig-nificado do documento na relação ensino-aprendizagem, aidéia de considerá-lo como prova do real permaneceu.

Um segundo momento, na mudança do uso escolar dodocumento histórico, ocorre a partir da reformulação na con-cepção de fonte histórica operada pelas escolas históricascon tem porâneas.

O novo pensamento historicgráfico criticou a forma detratamento do documento enquanto prova do real e passoua entendê-Ia como vestígio do passado. Também contestou -a valorização do documento escrito (oficial) como a únicafonte para investigar o passado (LE GOFF, 1992).

É fundamental utilizar as fontes históricas na sala de aula,a partir destas novas concepções, pois assim o documento

[...] permite o diálogo do aluno com as realidadespassadas e desenvolve o sentido da análise histórica.

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o contato direto com as fontes facilita e familiarizao aluno com o real passado ou presente, habituan-do-o a associar o conceito à análise que o origina efortalecendo sua capacidade de raciocinar a partirde uma situação dada (SCHMIDT, 1997, p. 11-12).

No entanto, seja na produção historiográfica, seja naperspectiva do ensino, o trabalho com novos documentos,particularmente com fontes de arquivos familiares, é re-cente e está em estágio inicial.

O encontro dos historiadores com as fontes de arquivospessoais ocorreu na Europa em geral e na França em parti-cular a partir da década de 1970. O despertar para esse tipode fonte traduz as mudanças ocorridas nas concepçõeshistoriográficas desde a primeira metade do século XX. Se-gundo Prochasson (1998, p. 109): "O interesse crescentepelos arquivos privados corresponde a uma mudança derumo fundamental na história das práticas historiográficas".

A renovação fez surgir novos objetos, fontes e meto do-logias para a abordagem dos fenômenos sociais, o que, porsua vez, não se fez também sem uma refonnulação teórica."A descoberta dos arquivos privados pelos historiadoresem geral está, por conseguinte, associada a uma significati-va transformação do campo historiográfico [...]" (GOMES,1998, p. 122).

Primeiramente os documentos privados das elites servi-ram para os mais variados estudos sobre cotidiano, costumese rituais das classes dominantes. A valorização desses arqui-vos para se resgatar aspectos históricos se dá pela revaloriza-ção do sujeito na história, "[...] as novas tendências historio-gráficas têm buscado crescentemente dar vida à história, darcor e sangue aos acontecimentos que não 'acontecem' natu-ralmente, mas são produzidos por homens reais, quer daselites quer do povo" (GOMES, 1998, p. 126).

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A opção pelo trabalho com documentos que podem serencontrados em estado familiar exige que se caracterize al-gumas especificidades deste tipo de arquivo.

Genericamente falando, poder-se-ia afirmar que atual-mente os documentos são guardados em centros de docu-mentação, bibliotecas, museus, bancos de dados e arquivosespecializados na conservação e classificação das fontes do-ocumentais do passado e do presente.

Os arquivos, na perspectiva de Paes (1997), podem serclassificados, entre outras íormas, segundo as entidades man-tenedoras, Nesta perspectiva os arquivos podem ser: públi-cos (federal, estadual, municipal), institucionais (educacio-nais, igrejas, corporações não lucrativas, sociedades, asso-ciações), comerciais (firmas, corporações) e familiares oupessoais.

Os arquivos públicos fornecem uma série de serviçosque facilitam o levantamento, a leitura e a reprodução dadocumentação. Estas instituições possuem condições físi-cas e materiais para conservarem grande quantidade de do-cumentos, fatores que agilizam as pesquisas dos usuários.Paes (1997) define arquivo público corno um "conjunto dedocumentos produzidos ou recebidos por instituições go-vernamentais de âmbito federal, estadual ou municipal, emdecorrência de suas funções administrativas, judiciárias oulegislativas" (p. 24).

Há também o crescente interesse dos arquivos públicosem guardar e divulgar documentos de procedência priva-da, de indivíduos que exerceram atividades ligadas ao po-der público. "No âmbito do público como equivalente deestatal e de oficial, os arquivos são, antes de mais nada, de-positários da fé pública" (CAMARGO, 1988, p. 58). Ainda,segundo esta autora:

Avalorização do arquivo como órgão que conservaos documentos emanados de autoridades públicas

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vem de uma longa tradição jurídica, baseada napresunção de autenticidade dos atos praticados pe-los que detêm cargos e oficias públicos. É na esferapública - mediante registros autênticos e seguros -que evidenciam a veracidade e a validade dos fatos(CAMARGO, 1988, p. 59).

Durante o século XIX, a doutrina arquivística enfatizouo aspecto público dos arquivos em função da ídeia de au-tenticidade dos documentos. Considerando a prática arqui-vista como uma construção social, os arquivos oitocentistasrefletiam em seus trabalhos as correntes intelectuais desteperíodo, sobretudo as ideias historiográficas positivistas.

Os documentos encontrados em estado de arquivo fa-miliar, que se constituem em material empírico para a pre-sente investigação, não fazem parte da vida de pessoas quetiveram algum destaque público no cenário político, ou rea-lizaram algo considerado "importante" para a sociedade. Éimportante destacar que o termo arquivo está sendo utiliza-do para designar um conjunto de documentos.

Neste trabalho a preocupação é com documentos quepodem ser encontrados no interior das mais diversas resi-dências, arquivados em gavetas em caixas de papelão, es-quecidas temporariamente em cima de armários. Encon-tram-se aí velhas fotos amareladas, certidões de nascimen-to, escrituras de terreno, agendas, cartas, bilhetes confiden-ciais, carteiras de trabalho, entre outros. A vida privadaatinge, atualmente, todos os segmentos da sociedade e dei-xa atrás de si urna massa importante de documentos.

O processo histórico de privatização da vida iniciou, naEuropa, por volta do século XVI, e alcançou seu auge no sé-culo XIX. Segundo Ariês (1991), o processo se caracterizapelas seguintes mudanças na vida cotidiana: a) pudor com ocorpo; b) a vontade de se isolar; c) o gosto pela solidão; d) avalorização da casa como espaço de intimidade; e) a identi-ficação da vida privada com a família. Tais aspectos são evi-

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denciados na literatura de civilidade, diários íntimos, car-tas, confissões, hábitos e costumes. Essa perspectiva para avida privada é referente ao processo ocorrido na vida daselites francesas.

É importante ressaltar que a noção de vida privada foisendo construída com sentidos diferentes em cada meio so-cial e cultural. As classes populares urbanas desenvolveramformas específicas de intimidade.

A história da vida privada tem destacado, principalmen-te, a história de segmentos privilegiados da sociedade. Noentanto, acumular e guardar documentos não é privilégioapenas de "pessoas ilustres". Segundo Artieres (1998, p.31), "[...] arquivar a própria vida não é privilégio de homensilustres (de escritores ou de governantes). Todo indivíduo,em algum momento da sua existência, por uma razão qual-quer, se entrega a esse exercício".

Ao longo da vida, em diferentes situações do cotidiano,as pessoas guardam cartões postais, cartas recebidas, foto-grafias, certidões de nascimento, casamento e óbito, espon-taneamente ou por obrigação social. As classificações dosdocumentos ocorrem diariamente, como se pode depreen-der das palavras de Artieres (1998, p. 10): "passamos assimo tempo a arquivar nossas vidas: arrumamos, desarruma-mos, reclassificamos",

Artiêres (1998) analisa a relação complexa entre o indi-víduo e seus documentos, detendo-se na natureza das exi-gências sociais, que levam as pessoas, cotidiana e silencio-samente, a manter arquivos de suas vidas.

Nesse sentido, os documentos em estado de arquivo fa-miliar são registros que podem revelar parte da memóriado indivíduo e da coletividade. Na perspectiva de Williams(1969) a memória permanece basicamente de duas manei-ras: a primeira insere-se numa "tradição comum da huma-nidade", constituída ao longo de toda a história das socieda-

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des; a segunda está conservada em arquivos de forma siste-mática, por meio da preservação organizada dos documen-tos, do passado e do presente. Por outro lado, grande parteda memória coletiva e individual é esquecida, perdida pelafalta de valorização e pela escassez de registros.

A partir de uma concepção histórica que considera to-dos os vestígios deixados pela ação humana, consciente ouinconscientemente, como documento histórico, pode-seentender esse material pessoal, acumulado ao longo davida, como sendo documento histórico e, portanto, possíveisde serem utilizados no ensino de História.

O acervo documental existente nos arquivos institucio-nais dificultam o desenvolvimento de alguma atividade deensino organizada a partir da vivência histórica das pessoascomuns, pois a memória destes grupos sociais não está pre-servada nestas instituições.

O uso de documentos no ensino da História tem sidoum tema amplamente debatido, nestes últimos anos. ParaFerraz (1999, p. (82), "l...] é relativamente grande o volumede artigos, ensaios e livros relacionados, de uma maneira oude outra, ao exercício do conhecimento histórico através dotrabalho documental". A maioria destes estudos falam douso escolar de documentos localizados em acervos já cons-tituídos e organizados em instituições especializadas na co-leta, organização e conservação das fontes documentais.

Os documentos de arquivos familiares são qualitativa-mente diferentes daqueles encontrados nos arquivos públi-cos. A falta de dados mínimos como data e local são carac-terísticas destas fontes. O uso escolar deste tipo de docu-mento requer um trabalho específico de coleta, seleção eorganização que leve em consideração suas específicida-des. Isto juntamente com uma metodologia que articuleconcepção de história, concepção de documento histórico euma seleção de conteúdo adequada a esse trabalho.

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