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MARTINS, André F. P. O ensino do conceito de tempo: contribuições históricas e epistemológicas. 148 f. Dissertação (Mestrado em Ensino de Ciências) – Instituto de Física, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998. 1 Esta dissertação toma o estudo do conceito de tempo, na física, para agregar contribuições de três campos, a saber, a história das ciências, a epistemologia e a educação. Parte das epistemologias históricas, como as chama, de Kuhn, Bachelard e Feyerabend, para ressaltar, em acordo com esta tendência historicizada da epistemologia, a importância da história das ciências para o ensino de ciências. Busca contribuições no campo da educação em autores como Paulo Freire e Jean Piaget, e faz uma apresentação histórica do conceito de tempo na física. Seguindo um modelo que não é infreqüente, faz uma espécie de “estudo de caso” do conceito de tempo, no último capítulo, restrito a um período específico de sua história, de modo que o seu trabalho contempla uma apresentação de aspectos mais gerais dos campos em que se debruça e uma apresentação aprofundada de um tema específico escolhido. Poderia começar dizendo que os epistemólogos usados pelo autor foram muito bem escolhidos. O primeiro capítulo consiste em uma apresentação das concepções epistemológicas de cada um e do estabelecimento de relações entre eles; ou melhor, da tentativa de estabelecer relações entre eles, 1 Resenha por André Mattos, graduando em Psicologia (UFBA), membro do Grupo de Pesquisa CONES.

O ensino do conceito de tempo - contribuições históricas e epistemológicas (resenha)

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Resenha da dissertação "O ensino do conceito de tempo: contribuições históricas e epistemológicas", de André Martins.

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Page 1: O ensino do conceito de tempo - contribuições históricas e epistemológicas (resenha)

MARTINS, André F. P. O ensino do conceito de tempo: contribuições históricas e

epistemológicas. 148 f. Dissertação (Mestrado em Ensino de Ciências) – Instituto de

Física, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.1

Esta dissertação toma o estudo do conceito de tempo, na física, para agregar

contribuições de três campos, a saber, a história das ciências, a epistemologia e a

educação. Parte das epistemologias históricas, como as chama, de Kuhn, Bachelard e

Feyerabend, para ressaltar, em acordo com esta tendência historicizada da

epistemologia, a importância da história das ciências para o ensino de ciências. Busca

contribuições no campo da educação em autores como Paulo Freire e Jean Piaget, e faz

uma apresentação histórica do conceito de tempo na física. Seguindo um modelo que

não é infreqüente, faz uma espécie de “estudo de caso” do conceito de tempo, no último

capítulo, restrito a um período específico de sua história, de modo que o seu trabalho

contempla uma apresentação de aspectos mais gerais dos campos em que se debruça e

uma apresentação aprofundada de um tema específico escolhido.

Poderia começar dizendo que os epistemólogos usados pelo autor foram muito bem

escolhidos. O primeiro capítulo consiste em uma apresentação das concepções

epistemológicas de cada um e do estabelecimento de relações entre eles; ou melhor, da

tentativa de estabelecer relações entre eles, devido às dificuldades da tarefa que o autor

se impôs, o que ele mesmo reconhece e, apesar das limitações inerentes a tal tarefa,

devemos aplaudir o modo como tenta construir estas relações, explorando possíveis

pontos de contato e não avançando mais do que a prudência permite. Creio que, devido

ao nosso especial interesse no tema, posso me delongar um pouco mais no que é

desenvolvido pelo autor neste primeiro capítulo.

Quanto às relações entre Kuhn e Bachelard, afirma que “ambos têm na história da

ciência um referencial privilegiado, o que permite situar suas contribuições na

classificação de ‘epistemologias históricas da ciência’” (p. 30-1). Com a intenção de

ressaltar a importância da história das ciências, o autor escolhe bem os epistemólogos

trabalhados. Kuhn é considerado o autor que iniciou o processo de historicização da

epistemologia anglo-saxã, influenciando muitos outros epistemólogos, como Lakatos e

Feyerabend, e amenizando o caráter prescritivo presente nas propostas de Popper e do

Círculo de Viena. Vale dizer que há apenas uma menção a Popper, en passant, sem

1 Resenha por André Mattos, graduando em Psicologia (UFBA), membro do Grupo de Pesquisa CONES.

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sequer a necessidade de fazer críticas a ele. O caso de Bachelard talvez seja um pouco

mais delicado, por estar situado na tradição epistemológica francesa. Creio que a sua

epistemologia merece uma menção especial por ser uma abordagem historicizada que

antecede a de autores como Kuhn e Feyerabend. Podemos dizer que Bachelard é

contemporâneo de Popper, mas temos aí duas tradições epistemológicas que não

conversaram, e Bachelard permaneceu pouco conhecido durante algum tempo. A sua

epistemologia, entretanto, compartilha com a de Kuhn o fato de ser uma espécie de

híbrido entre história e filosofia da ciência, agregando ainda contribuições ao ensino.

Isto está refletido na crítica que Kuhn recebeu de estabelecer uma confusão entre o

descritivo e o normativo, sendo que o primeiro se deve às contribuições históricas que

trazia e o segundo ao modo de ser da filosofia das ciências a-históricas. Esta confusão

resulta em problemas sérios, pois passamos a não diferenciar bem a atividade de dizer

como a ciência é e de dizer como ela deve ser, apesar de ser muito importante a

contribuição histórica na filosofia das ciências. O autor ainda afirma que a idéia de

progresso histórico da ciência é um elo de ligação entre Bachelard e Kuhn, e que ambos

trabalham com o binômio ruptura-continuidade. Isto parece correto em Kuhn, mas não

sei se se pode dizer de Bachelard, dado que a sua grande ênfase e insistência está na

questão da ruptura e em afirmar a descontinuidade do progresso científico. Elyana

Barbosa, por exemplo, apresenta-o como “o filósofo da ruptura”.

Quanto a relações entre Kuhn e Feyerabend, o autor afirma que Feyerabend se aproxima

das idéias de Kuhn no que se refere a uma caracterização do fazer científico, tendo sua

epistemologia este caráter descritivo. Kuhn influenciou Feyerabend nesse e outros

aspectos, de modo que veremos em alguns aspectos da epistemologia de Feyerabend

respostas à concepção de Kuhn. Eles divergem com relação à questão da proliferação de

teorias, por exemplo, que para Kuhn eram sintomas de crise, dado que ocorriam no

período pré-paradigmático do desenvolvimento de uma ciência, de modo que tal

proliferação deveria cessar tão logo um paradigma fosse estabelecido. Feyerabend, por

outro lado, encoraja a elaboração de teorias alternativas, que seriam benéficas para o

progresso científico tanto por fornecer parâmetros de comparação com as teorias

vigentes como por estimular a pluralidade de pontos de vista, reduzindo a hegemonia da

teoria estabelecida. Em termos gerais, para Kuhn esta proliferação deveria ocorrer em

momentos especiais, enquanto para Feyerabend deveria fazer parte da atividade corrente

da ciência. Outro ponto de contato entre os dois autores está na questão da

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incomensurabilidade, que em Kuhn se dá entre os paradigmas, enquanto em Feyerabend

se dá entre as teorias.

Um aspecto semelhante entre Bachelard e Feyerabend, apontado pelo autor, está na

relação entre observação e experiência. Ambos atacam a concepção positivista de que o

conhecimento pode ser construído a partir da observação, da experiência. Feyerabend

vem ressaltar, então, que a observação e a experiência já estão acompanhadas de

pressupostos teóricos, enquanto Bachelard enfatiza o mesmo, afirmando que nada é

dado, tudo é construído. O autor também afirma que ambos se aproximam na concepção

de um processo de ruptura-continuidade na ciência e no indivíduo, dado que afirmam

que, mesmo após a substituição de concepções ou paradigmas, as concepções antigas

não são abandonadas. É mencionada também a metodologia pluralista de Feyerabend,

que nos é de especial interesse, mas o autor não articula essa questão a Bachelard, que

também possui elaborações sobre o tema, muito anteriores a Feyerabend, que poderiam

ser exploradas.

O autor identifica uma semelhança entre Kuhn, Bachelard e Feyerabend na negação do

progresso científico como um acúmulo de conhecimentos em direção à verdade.

Entretanto, ao lidar com as dificuldades de relacionar estes autores, se pergunta se as

concepções de Kuhn, Bachelard e Feyerabend seriam “incomensuráveis”, e que

posicionamento epistemológico seria possível tomar. Ele pondera sobre as vantagens de

adotar a abordagem de cada um dos três epistemólogos, deixando aberta a possibilidade

de instruir-se a partir das contribuições de cada um deles. Esboça uma análise

epistemológica das propostas epistemológicas, falando da aplicação a estas da noção de

“perfil epistemológico”, de Bachelard, e refere-se ao “espírito do epistemólogo”,

colocando-se num ponto de vista “metaepistemológico”...

No segundo capítulo, o autor tece considerações sobre a educação, a questão do ensino

de ciências, a partir de autores como Kuhn, João Zanetic, Armando Simões e Paulo

Freire, reafirmando a importância da história das ciências, que é negligenciada nos

livros didáticos (de física, p. ex.). Contrapõe a “concepção metafísica do conhecimento”

a uma “concepção dialética do conhecimento”, sendo a primeira ligada a um

dogmatismo, considerando o conhecimento como algo a ser acumulado e a ser

meramente transferido no processo educacional, enquanto a concepção dialética

pressupõe o conhecimento como construído socialmente, historicamente, e isso se

reflete no processo educacional, no sentido em que não se estará procurando impor um

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conhecimento como verdade, mas problematizar os conteúdos e valorizar o

conhecimento prévio dos educandos. Este ponto de vista, que é adotado por Paulo

Freire, está em consonância com os posicionamentos de Feyerabend.

O terceiro capítulo consiste em uma apresentação histórica do conceito de tempo. Diz o

autor que o conceito de tempo será analisado como “uma exemplificação de como a

perspectiva histórica poderia estar contemplada no ensino de física” (p. 75). É analisado

o tempo na Antigüidade, na Idade Média, na ciência moderna e na ciência do século XX

(relatividade, mecânica quântica...). O fio condutor é o pensamento ocidental, ou

melhor, a filosofia e a ciência moderna, mas não se deixa de mencionar concepções

diversas, como os calendários egípcios, babilônios e maias, Zaratustra e os persas, o

judaísmo e o cristianismo, os árabes e os chineses. Não haveríamos aqui de retomar essa

longa exposição, mas podemos dizer que é, sem dúvida, muito interessante, e

recomendamos a sua leitura.

No quarto capítulo, por fim, o autor retomará Kuhn, Bachelard e Feyerabend, para

problematizar um determinado período histórico, como um “exemplar”, como ele

mesmo denomina, no intuito de fazer uma espécie de síntese, envolvendo

epistemologia, história das ciências e educação, depois de ter apresentado as concepções

históricas sobre o tempo. Ele examina o período compreendido entre os séculos IV a.C e

XVII d.C., com o propósito de “analisar como o conceito de tempo foi introduzido de

forma definitiva no estudo dos movimentos” (p. 112). Aqui há, de certo modo, uma

retomada da apresentação histórica das concepções sobre o tempo, sendo que alguns

pontos são mais aprofundados, como a cosmologia aristotélica e a revolução científica

que resulta na ciência moderna, com Copérnico, Kepler, Galileu e Newton como

protagonistas. Apesar de também tecer articulações epistemológicas (com a noção de

“perfil epistemológico, p. ex.) e considerações sobre ensino, o capítulo é

predominantemente histórico, e algumas vezes se confunde com uma apresentação

histórica da revolução copernicana. Seria de esperar um maior desenvolvimento do tema

que intitula a dissertação — o ensino do conceito de tempo. O autor faz muito bem as

apresentações epistemológicas, educacionais e históricas, mas me parece que não houve

uma articulação satisfatória que contemplasse o ensino do conceito de tempo.

Resenha por André Mattos, 22 de setembro de 2010.