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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa Universidade Federal da Paraíba 15 a 18 de agosto de 2017 ISSN 2236-1855 2851 O ENSINO PROFISSIONAL EM DEBATE NO BRASIL OITOCENTISTA 1 Carla Simone Chamon 2 Na segunda metade do século XIX, especialmente a partir da década de 1870, a preocupação com a criação de escolas de ensino profissional para as camadas populares começava a crescer no Brasil. No Brasil, a mão de obra escrava estava cada vez mais sendo substituída pela livre, que se tornava, paulatinamente, em padrão no mercado de trabalho brasileiro. Junto a isso, o capitalismo industrial avançava na região Centro-Sul, povoando o cenário das capitais com fábricas, e tornando disponível novas técnicas e tecnologias. Assim como nos países europeus e nos Estados Unidos, essa industrialização, que entre nós foi combinada com a abolição da escravidão, alimentou o debate em torno da necessidade de qualificar a mão de obra, criando uma nova cultura do trabalho, mais racional, científica e moderna, condizente com os novos tempos que demandavam um trabalhador capaz de lidar com novas técnicas, ferramentas, máquinas, e de se inserir em um novo ambiente de trabalho. Junto a essas transformações, começava a aparecer no País, de maneira esparsa e pouco sistemática, discursos e projetos elaborados pelas elites intelectuais e políticas, apontado a necessidade de se adotar no Brasil um ensino mais sintonizado com as exigências do mundo moderno que despontava por aqui, cujo traço mais evidente era o aumento da produtividade, alavancada pelo domínio científico e tecnológico. É nesse contexto que, em 1887, na cidade do Rio de Janeiro, foi publicado o livro “O ensino técnico no Brasil”, ao que tudo indica a primeira obra brasileira dedicada inteiramente a essa temática. Seu autor, Tarquínio de Souza Filho, nasceu em Recife, em 1859 e morreu na cidade do Rio de Janeiro, em 1908 3 . Era oriundo de segmentos médios da sociedade brasileira que, naquele momento, não dispondo de terras e escravos, conseguiu, por meio das relações familiares e da escolarização superior, distinção e projeção no cenário político nacional. Era filho do doutor Tarquínio Bráulio de Souza Amaranto, deputado geral pela 1 Trabalho financiado pelo CNPq. 2 Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da UFMG. Professora do Centro de Educação Profissional e Tecnológica do CEFET-MG. E-Mail: <[email protected]>. 3 A trajetória de Tarquínio de Souza Filho foi elaborada a partir dos dados encontrados sobre ele no Dicionário Sacramento Blake, no livro de Clóvis Bevilácqua sobre a história da Faculdade de Recife e nos periódicos da cidade do Recife e do Rio de Janeiro.

O ENSINO PROFISSIONAL EM DEBATE NO BRASIL … · combinada com a abolição da escravidão, alimentou o debate em torno da necessidade de ... Mas como convencer a sociedade como a

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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 2851

O ENSINO PROFISSIONAL EM DEBATE NO BRASIL OITOCENTISTA1

Carla Simone Chamon2

Na segunda metade do século XIX, especialmente a partir da década de 1870, a

preocupação com a criação de escolas de ensino profissional para as camadas populares

começava a crescer no Brasil. No Brasil, a mão de obra escrava estava cada vez mais sendo

substituída pela livre, que se tornava, paulatinamente, em padrão no mercado de trabalho

brasileiro. Junto a isso, o capitalismo industrial avançava na região Centro-Sul, povoando o

cenário das capitais com fábricas, e tornando disponível novas técnicas e tecnologias. Assim

como nos países europeus e nos Estados Unidos, essa industrialização, que entre nós foi

combinada com a abolição da escravidão, alimentou o debate em torno da necessidade de

qualificar a mão de obra, criando uma nova cultura do trabalho, mais racional, científica e

moderna, condizente com os novos tempos que demandavam um trabalhador capaz de lidar

com novas técnicas, ferramentas, máquinas, e de se inserir em um novo ambiente de

trabalho.

Junto a essas transformações, começava a aparecer no País, de maneira esparsa e

pouco sistemática, discursos e projetos elaborados pelas elites intelectuais e políticas,

apontado a necessidade de se adotar no Brasil um ensino mais sintonizado com as exigências

do mundo moderno que despontava por aqui, cujo traço mais evidente era o aumento da

produtividade, alavancada pelo domínio científico e tecnológico.

É nesse contexto que, em 1887, na cidade do Rio de Janeiro, foi publicado o livro “O

ensino técnico no Brasil”, ao que tudo indica a primeira obra brasileira dedicada inteiramente

a essa temática. Seu autor, Tarquínio de Souza Filho, nasceu em Recife, em 1859 e morreu na

cidade do Rio de Janeiro, em 19083. Era oriundo de segmentos médios da sociedade

brasileira que, naquele momento, não dispondo de terras e escravos, conseguiu, por meio das

relações familiares e da escolarização superior, distinção e projeção no cenário político

nacional. Era filho do doutor Tarquínio Bráulio de Souza Amaranto, deputado geral pela

1 Trabalho financiado pelo CNPq. 2 Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da UFMG. Professora do Centro de Educação Profissional e

Tecnológica do CEFET-MG. E-Mail: <[email protected]>. 3 A trajetória de Tarquínio de Souza Filho foi elaborada a partir dos dados encontrados sobre ele no Dicionário

Sacramento Blake, no livro de Clóvis Bevilácqua sobre a história da Faculdade de Recife e nos periódicos da cidade do Recife e do Rio de Janeiro.

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província do Rio Grande do Norte e professor de Direito Civil da Faculdade de Direito do

Recife (Gazeta de Notícias, 30 jan. 1908, p. 2). Seu pai, juntamente com seus tios, Braz

Florentino Henrique de Souza e José Soriano de Souza, que também lecionaram na

Faculdade de Recife, eram figuras de relevo do Partido Conservador, tendo marcado a cultura

pernambucana e brasileira do Segundo Reinado como pensadores católicos tradicionalistas

(BLAKE, 1883, 1899 e 1902; BEVILÁCQUA, 1977; LARA, 1988).

Tarquínio cresceu num ambiente familiar de princípios católicos arraigados e

fortemente politizado e intelectualizado. Ali, ao lado da discussão em torno de temas como

revelação divina, tradição, razão, liberdade, autoridade, vivenciou também uma forte

preocupação com a realidade social brasileira, traduzidas na crítica à concentração da terra e

à escravidão, na defesa do trabalho livre, do ensino profissional e da utilidade da legislação

civil (BEVILÁCQUA, 1977, p. 320). Questões que acompanharão Tarquínio em sua trajetória

intelectual e em sua militância no Partido Conservador.

Em 1876, seguindo os passos de seu pai e tios, matriculou-se na Faculdade de Direito

do Recife, tendo se formado em 1880. Trabalhou como promotor público no sertão de

Alagoas (Gazeta de Notícias, 30 jan. 1908, p. 2) e em 1886 estabeleceu residência na cidade

do Rio de Janeiro onde viveu com sua mulher e seus cinco filhos até a sua morte em 1908. Na

cidade do Rio de Janeiro trabalhou como advogado, inspetor escolar, lente catedrático de

Direito Público e Constitucional da Escola Naval (a partir de 1887), e da Faculdade de

Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro (a partir de 1893) e professor do Liceu de Artes

e Ofícios do Rio de Janeiro, lecionando o curso público de Instrução Cívica e Direto Usual, a

partir de 1887 (Gazeta de Notícias, RJ, 23 nov. 1887, p. 1; Novidades, RJ, 23 nov. 1887, p. 1).

Na imprensa, Tarquínio teve atuação intensa, batalhando sempre pelo Partido

Conservador. Foi redator, no início da década de 1880, do jornal O Tempo, e colaborou nos

jornais da Corte O Cruzeiro e Brasil, ambos partidários dos Conservadores (A Vanguarda,

30 mar. 1886, p. 2). Tarquínio também integrou várias sociedades científicas e beneficentes4

engrossando o movimento associativo que se formava para defesa dos mais variados

interesses e opiniões e que se multiplicava no Brasil na segunda metade do século XIX. Como

membro da Sociedade Central de Imigração5, na qual já ingressou como membro-diretor em

4 Foi membro efetivo do Instituto dos Advogados do Brasil (Diário de Notícias, RJ, 25 mai. 1895, p.1), da Sociedade Central de Imigração do Rio de Janeiro, (1887), da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro (Gazeta da Tarde, RJ, 10 out. 1887, p. 1), do Colégio dos Advogados de Lima, da Sociedade de Legislação Comparada de Paris (Gazeta de Notícias, Rio, 30 jan. 1908, p.2).

5 A Sociedade Central de Imigração era uma associação beneficente, sem fins lucrativos, criada em 1883, na cidade do Rio de Janeiro, com o objetivo de promover, por meios diretos e indiretos, o aumento da imigração europeia para o Brasil. Pelo seu Estatuto, em seu artigo 2º, ela deveria se encarregar de fundar um escritório de

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fevereiro de 1887, que Tarquínio de Souza Filho publicou “O ensino técnico no Brasil”. Nessa

associação, entre os anos de 1887 e 1891, ele conviveu de maneira mais próxima com

Henrique Beaurepaire Rohan, Alfredo d’Escragnolle Taunay, André Rebouças e Domingos

Jaguaribe Filho, todos monarquista (liberais ou conservadores), formando com eles, segundo

Irina Vassilieff (1907, p. 148), a principal liderança dessa associação e seu núcleo

modernizador, preocupado em reformar a sociedade brasileira e buscar soluções para o

problema da mão de obra no País. Perseguindo esses objetivos, a Sociedade foi importante

espaço de discussão sobre a questão do trabalho livre, promovendo um debate abrangente

sobre a estrutura econômica, social e política do País e publicando livros de divulgação dos

posicionamentos da instituição, como foi o caso do livro de Tarquínio, quarto livro de

propaganda da Sociedade6.

Para Tarquínio de Souza Filho, o Brasil se modernizava economicamente e demandava

um novo tipo de ensino: “Vivendo no século da indústria, no regime da liberdade, é

necessário harmonizarmos o nosso sistema de educação e ensino com as condições de nossa

época” (1887, p. 47). Para o autor, essa harmonização demandava não só a instrução em

massa das novas gerações, a disseminação de conhecimentos por todas as camadas sociais,

como já defendiam os herdeiros dos ideais iluministas. Ela demandava um tipo novo de

saber: o saber útil, baseada na ciência: “a todos os espíritos quer o nosso século esclarecer,

instruir, moralizar; popularizando a ciência, divulgando os conhecimentos úteis, propagando

o ensino em todos os seus graus (...)” (SOUZA FILHO, 1887, p. 6). Por isso, sua preocupação

recaía no ensino técnico profissional que, segundo ele, era aquele que preparava “para as

carreiras laboriosas, para a vida do trabalho, para o comércio, a indústria e a agricultura” e

que seria aproveitado pela maior parte da população (Idem, p. 44).

Mas como convencer a sociedade como a brasileira da importância e da urgência de se

estabelecer no Brasil escolas de ensino técnico profissional? Como convencer de que esse era

um elemento importante para modernizar a sociedade brasileira?

A obra “O ensino técnico no Brasil”, além de outras que a Sociedade mandou publicar,

pode ser entendida como parte de uma estratégia de propaganda e convencimento interno

atendimento ao imigrante, servindo-lhe de suporte e fiscalizando o seu tratamento no Brasil. Além disso, a Sociedade deveria influir para que fossem decretadas as reformas necessárias para que o estrangeiro encontrasse “uma verdadeira Pátria no Brasil” e deveria criar um órgão de propaganda na Corte, “para formar opinião no País e exercer conveniente influência sobre a marcha das coisas públicas em relação à imigração europeia” (VASSILIEFF, 1987)

6 Além do livro de Tarquínio de Souza Filho, os demais livros de propaganda da Sociedade Central de Imigração foram: “Casamento Civil” (1886) e “A nacionalização ou a grande naturalização e naturalização tácita” (1886) ambos de Alfredo d’Escragnolle Taunay e “Pequena propriedade e imigração europeia” (1887) de Luiz Couty. Todos publicados pela Imprensa Nacional, no Rio de Janeiro.

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quanto às necessidades de reformas modernizadoras da sociedade brasileira. Com 243

páginas, ela trata da reforma do ensino secundário, da necessidade de organizar o ensino

técnico no Brasil, das iniciativas no País e no estrangeiro em relação ao ensino técnico e do

papel do Estado e da iniciativa privada na sua organização. Comungando dos esforços da

Sociedade Central de Imigração de colocar “em discussão todos os problemas nacionais cuja

solução deve[ria] conduzir às expansões do novo Brasil, do Brasil americano”. (“A

Imigração”, Boletim nº 7, nov. 1884, p. 1), nela, Tarquínio de Souza Filho expunha a carência

de escolas de ensino técnico profissional no País e defendia a necessidade de sua implantação

como condição para enobrecer o trabalho, alcançar o progresso, a democracia e o

desenvolvimento econômico brasileiro.

O fio a conduzir a narrativa de Tarquínio de Souza Filho na análise e defesa do ensino

técnico profissional é a sua percepção do tempo como uma categoria móvel, em constante

avanço e carregado de novidades, qualitativamente diferente do anterior. Percepção que

aparece na obra por meio da associação entre sociedade moderna e termos como marcha

progressiva, marcha triunfal, difusão, progresso, evolução, agitação maravilhosa, renovação,

revolução, aperfeiçoamento, novos processos e outros correlatos. Além disso, o autor

trabalha sempre com o par de opostos “ontem e hoje” como forma de caracterizar a sucessão

do tempo como transformação em direção a algo novo: “outrora cuidava-se do ensino das

classes elevadas com exclusão das outras; hoje, porém, a grande preocupação da época é a

instrução das classes populares” (Idem, p. 8) 7. É alicerçado nessa noção de tempo móvel, em

avanço permanente, que Tarquínio defendia a difusão do ensino técnico como uma das

“urgências da atualidade”, uma das necessidades da sociedade moderna. Essa sociedade,

essencialmente marcada, segundo ele, por “tendências democráticas” e por uma “revolução

econômica” de resultados assombrosos e visíveis (SOUZA FILHO, 1887, p. 16), demandaria

um ensino amplamente difundido entre a população, mas também um ensino

qualitativamente diferente, organizado para atender o desenvolvimento econômico e a

democracia.

Na obra em questão, o século XIX é apreendido pelo autor como um tempo de

profundas transformações técnicas e econômicas, as quais exigiriam a difusão e a aplicação

dos conhecimentos científicos:

7 Segundo Kosseleck (2006), trata-se aqui de algo mais do que a mera diferenciação entre acontecimentos passados e presentes, entre o antes e o depois. Trata-se de uma qualificação do tempo como novidade, como algo “que jamais existiu”.

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a ciência alarga seu domínio, faz todos os dias novas conquistas, avassala a matéria pelo vapor e pela eletricidade, pelos agentes físicos e químicos de toda a espécie, põe à disposição do homem novos e poderosos recursos, suprime as distâncias e facilita os meios de comunicação e transporte, tornando-se por inúmeras aplicações um auxiliar inseparável da indústria. O universo tornou-se o grande mercado internacional e a força expansiva da atividade humana parece ter centuplicado (SOUZA FILHO, 1887, p. 16).

Daí a necessidade da criação de escolas técnicas que preparassem os operários para que

eles pudessem ter, além do aprendizado regular, “conhecimento das leis universais que

regem a natureza e presidem as maravilhosas transformações da matéria” (Idem, p. 187).

Logo nas suas primeiras páginas, nosso autor identificava a educação como o grande

problema das sociedades moderna, cujo ideal, em matéria de ensino, era a dispersão dos

conhecimentos por todas as camadas sociais, sendo a instrução do povo uma “questão capital

da atualidade” (Idem, p. 12).

Nessa matéria, o pouco que o Brasil tinha feito estava em desacordo com os interesses e

o desenvolvimento do mundo moderno. Suas críticas se direcionavam principalmente às

escolas secundárias, cujo ensino se voltava para a preparação das novas gerações para as

funções públicas, deixando no abandono a preparação para o comércio, a agricultura e a

indústria:

Há em nossa organização escolar um forte desequilíbrio. Todo o ensino das nossas escolas propõe-se exclusivamente a preparar as novas gerações para as funções públicas, deixando em esquecimento as funções privadas; destina-se àqueles que têm de exercer funções úteis e necessárias sem dúvida, porém menos produtivas economicamente falando. O ensino, como se acha organizado, pode servir, apesar de seus defeitos, para preparar o político, o funcionário público, o advogado, o militar, o médico, mas deixa em inteiro abandono os que têm que exercer as funções de comerciante, de agricultor e industrial. É contra esta tendência, que constitui uma clamorosa desigualdade, que reclamamos (SOUZA FILHO, 1887, p. 27).

Esse direcionamento dos estudos secundários, fazendo aumentar “as vítimas da

burocracia, vampiro devorador na frase enérgica de Humboldt”, matava talentos e aptidões e

afastava a mocidade das carreiras industriais (Idem p. 34). Era preciso, por isso, reformar o

ensino brasileiro.

Essas críticas começavam a ser recorrentes no Brasil a partir das últimas décadas do

século XIX8. No final da década de 1870, o abolicionista Joaquim Nabuco diagnosticava: “Do

que vós precisais é principalmente de educação técnica (...) os sacrifícios que temos feito para

8 Sobre essa questão, ver Chamon 2014.

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formar bacharéis e doutores devem agora cessar um pouco enquanto formamos artistas de

todos os ofícios” (apud CUNHA, 2000, p. 169).

A pretensão quase “exclusiva” da população aos empregos públicos, era uma das

críticas que as elites reformistas do País – conservadores ou liberais, de dentro ou de fora do

status quo imperial – lançavam contra o ensino brasileiro (ALONSO, 2002). Na perspectiva

de parte das elites brasileiras, era preciso combater essa tendência e apagar a identificação do

trabalho manual e mecânico com a escravidão, criando uma moral do trabalho. O que estava

em jogo era a valorização do trabalho produtivo como fator de ordem pública e de progresso

material, capaz de tornar o homem em trabalhador “útil a si e à pátria”, expressão tantas

vezes repetidas na fala daqueles que defendiam as escolas de ensino profissional. Em sintonia

com essa perspectiva, Tarquínio de Souza Filho (1887, p. 51) apontava para a importância do

ensino técnico, que contribuiria “para o nosso engrandecimento, elevando as classes

laboriosas, as carreiras profissionais, tão desprestigiadas entre nós”.

Assim, para combater o “parasitismo burocrático” e atender aos novos interesses

criados pela civilização moderna, Tarquínio de Souza Filho afirmava que a principal

necessidade do País em matéria de ensino era “menos bacharéis e mais industriais, menos

ensino clássico e literário e mais ensino técnico e científico” (SOUZA FILHO, 1887, p. 72).

Propunha, então, reformar o ensino secundário, instituindo paralelamente ao ensino

clássico-literário – segundo ele de caráter especulativo – o ensino científico-prático, baseado

no conhecimento das ciências, no estudo das línguas vivias e da literatura moderna. Para ele,

a educação secundária deveria se estender a todas as classes sociais por meio de um

“dualismo fecundo”: o ensino clássico se destinaria àqueles que se destinassem às profissões

liberais, ao passo que o ensino científico prepararia aqueles que se dedicassem à

“generalidade das profissões, à vida industrial”, atendendo assim aos diferentes interesses de

classe e às “diferentes tendências dos espíritos” (SOUZA FILHO, p. 32).

Além disso, Tarquínio Souza Filho propunha a criação urgente escolas técnicas

comerciais, agrícolas e industriais no País, questão com a qual se ocupa na quase totalidade

da obra.

São grandes as lacunas do nosso sistema de ensino público, sensíveis os seus defeitos, nenhum, porém, nos parece maior nem mais notável do que a falta, quase absoluta, de escolas técnicas ou profissionais, que se nota em nosso país. O que existe entre nós nesse assunto é pouco, é insignificante, comparado com as necessidades de nossa população e as urgências da atualidade. (SOUZA FILHO, 1887, p. 42)

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A falta de capacidade profissional, a ausência de aptidões e vocações para as carreiras do trabalho tem sido um dos fatores principais do nosso pouco adiantamento industrial e artístico. As escolas e institutos técnicos, as universidades do trabalho (...) atestarão no futuro a grandeza e prosperidade do Brasil (Idem, p. 176).

Cabe ressaltar que a preocupação do autor não era com o ensino profissional ofertado

nas Faculdades Jurídicas e Médicas ou na Escola Politécnica. Ao falar em ensino técnico

profissional, ele se referia ao ensino que prepararia “para as carreiras laboriosas, para a vida

do trabalho, para o comércio, a indústria e a agricultura” (SOUZA FILHO, 1887, p. 44).

Voltado para a aplicação da ciência, onde ao lado da habilidade técnica, e do domínio no

manejo dos instrumentos de trabalho, se daria o conhecimento das leis científicas que regiam

a natureza e governavam as transformações da matéria (Idem, p. 187), ele seria aproveitado

pela maior parte da população e promoveria o adiantamento industrial e o progresso

econômico. A finalidade do ensino técnico seria, assim, a preparação moral, científica e

profissional “das classes industriais que existem e que tendem a formar-se pela abolição da

escravidão e pela corrente de imigração” (Idem, p. 51)

O autor lamentava que o Brasil ainda estivesse atravessando uma fase rudimentar no

desenvolvimento desse tipo de ensino. As balizas dessa percepção eram dadas pelo seu

conhecimento de outros países, nos quais buscava elementos para projetar o progresso do

Brasil. Como forma de convencer seu leitor, o autor apresentava “o grande interesse que nos

outros países civilizados se tem ligado a este assunto” (Souza Filho, 1887, p. 107),

discorrendo longamente sobre as experiências de ensino técnico profissional da França,

Inglaterra, Alemanha, Áustria, Suíssa, Bélgica, Holanda, Itália, Portugal, Espanha, Rússia,

Dinamarca, Argentina, Chile, México e Estados Unidos. A constatação do adiantamento das

nações modernas em matéria de ensino profissional servia de modelo e parâmetro para

medir o nosso atraso, mas também, e principalmente, para mirar o nosso futuro:

A comparação que estabelecemos entre a nossa instrução profissional e a dos outros países cultos faz-nos estremecer de vergonha. Não pode ser mais triste o paralelo (...). Não desanimemos, porém, e em face destes autorizados exemplos, destas sábias lições procuremos estabelecer o ensino técnico (...)” (SOUZA FILHO, 1887, p. 175, 176).

Entretanto, apesar de ser uma percepção compartilhada pelas elites intelectuais e

políticas, essa não era uma tarefa fácil de se realizar, seja porque não havia “uma” proposta

de reforma – a de Tarquínio era uma entre tantas – seja pela dificuldade de se definir a quem

caberia redirecionar (e financiar) o ensino. Ou, como diria nosso autor, “ não basta formular

um programa, é necessário achar meios de realizá-lo” (SOUZA FILHO, 1887, p. 228)

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Nessa seara, Tarquínio optou pelo pragmatismo: face a debilidade da iniciativa privada,

setor a quem, segundo ele, deveria caber a condução e organização do ensino, era necessário

apelar para a ação do Estado. Sua conclusão era a de que, lamentavelmente, no caso do Brasil

de fins dos Oitocentos, não era possível contar apenas com as ações capitaneadas pela

sociedade civil para renovar e promover a educação nacional. Reforma e Estado deveriam

caminhar juntos, com pena de nada ser realizado.

É preciso que se diga que, em diversos momentos da obra, Tarquínio queixou-se da

fraqueza da iniciativa individual, “da grande extensão que entre nós tem as atribuições do

Estado” e da “tendência para a abdicação da autonomia individual nas mãos do governo, de

quem tudo se espera e a quem tudo se pede” (Idem p. 50). Mas no caso da educação era

preciso abrir exceção. Em tese, o autor se declarava adversário “de toda interferência do

Estado naquela ordem de funções que podem, sem prejuízo, ser exercidas pelo indivíduo ou

pela associação”, sendo o ensino uma dessas funções:

Em tese, o direito do Estado em matéria de educação não vai além da manutenção da ordem, da garantia da moral social e do respeito pelas prescrições da higiene (...). Somos partidários convencidos da emancipação do ensino da tutela do governo, queremos a mais ampla descentralização intelectual, abraçamos com entusiasmo o grande e fecundo princípio da liberdade de ensino (...) (Idem, p. 229)

Para o autor de “O ensino técnico no Brasil”, não restavam dúvidas de que as ações,

individuais e coletivas, oriundas da sociedade, eram o caminho natural para a expansão do

ensino: “Por que deixaremos enervar as nossas forças pela inatividade, esperando tudo da

ação do Estado?” (p. 236). Contudo, e apesar de reclamar os esforços de todos “em assunto de

tanto alcance social”, Tarquínio admitia a impossível de esperar até que se concretizasse

entre nós a “ação fecundante” da inciativa individual e das associações particulares. Se “nas

regiões da teoria pura, isto se afigura indiscutível”, na prática esse princípio precisava se

adaptar ao meio social ao qual era aplicado. Dadas as condições da sociedade brasileira,

notadamente a debilidade da iniciativa privada, a ausência do Estado “seria nossa ruína

intelectual e moral” (p. 229). Mais uma vez, Tarquínio trabalha com a urgência do tempo,

fator a impedir a espera do amadurecimento da iniciativa individual e reclamar a ação

“enérgica” do Estado.

A argumentação que nosso autor desenvolve ao longo de toda a obra é baseada na

percepção da existência de uma correlação direta entre o estado do ensino e o estado da

sociedade: “são fenômenos que se refletem”. Não seria possível, pois, reformar a sociedade

sem reformar o ensino. Apoiado em economistas bem conhecidos do público letrado

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brasileiro como o francês Emile de Levasseur9, e o belga Emile de Laveleye10 e em outros com

menor circulação por aqui11, Tarquinio afirmava que “a falta de capacidade profissional, a

ausência de aptidões e vocações para as carreiras do trabalho” seria “um dos fatores

principais do nosso pouco adiantamento industrial e artístico” (Souza Filho, 1887, p. 176).

Baseado nas reflexões desses autores, ele insistia que “para entrar no largo caminho do

progresso” era necessário enobrecer o trabalho, por meio da disseminação do ensino técnico

e assim aumentar a produtividade do trabalho.

A vulgarização das leis gerais que presidem a transformação da matéria, o aniquilamento da rotina, o conhecimento das leis científicas e econômicas que regem o mundo do industrial, a prática de novos processos usados pelos povos mais adiantados, todas estas vantagens que concorrem para o aumento progressivo do valor econômico do trabalho, para o incremento da produção, serão outras tantas consequências do ensino profissional (Idem, p. 60).

Além disso, o ensino técnico, ao elevar o valor econômico do trabalho, corrigiria

o preconceito que tem contribuído para fazer da geração que se levanta, em vez de homens aguerridos e preparados para as grandes conquistas da indústria moderna, uma legião de pretendentes que aspira desde o mais elevado cargo de administração até a mais insignificante função burocrática (SOUZA FILHO, 1887, p. 52)

É importante que se diga que esses argumentos que encontramos na obra “O ensino

técnico no Brasil”, estavam presentes no vocabulário político de alguns intelectuais e agentes

do Estado que creditavam nosso atraso econômico à ausência de mão de obra qualificada,

defendendo que a organização do ensino era fundamental para o desenvolvimento industrial.

Nesse momento, a crítica ao bacharelismo estéril e a defesa do ensino técnico como fator de

desenvolvimento econômico começava a disputar espaço com os argumentos mais

frequentes, nos discursos do século XIX, sobre a necessidade de uma educação profissional

para os meninos pobres e desvalidos como forma de os habilitarem a viver de forma útil e

9 Pierre Emile Levasseur (1828-1911), francês, economista, geógrafo e historiador. Publicou várias obras e angariou distinção em muitos congressos de estatística e de geografia, tanto na Europa quanto na América. (VAPEREAU, 1893). O livro de Levasseur citado por Tarquínio em sua obra foi Precis d’économie politique, publicado em Paris, em 1883.

10 Emile Louis Victor de Laveleye, (1822-1892), um dos mais célebres economiscas belga do século XIX, colaborador da Revue de Deux Mondes e de várias outras, de grande circulação no Brasil na segunda metade do século XIX. Os livros de Laveleye citado por Tarquínio foram: Eléments d’économie politique e L’instruction du people, publicado em Paris, em 1872. Ambos bastante conhecidos e citados no Brasil (CALLIPO, 2009). Ver também http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k299202d/f942.image.r=levasseur.langPT.

11 Como Edmond Villey, jurista francês nascido em 1848 e professor de Economia Política na Faculdade de Caen.

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honrada, possuindo qualificação que os permitissem escapar da miséria por meio do

trabalho12.

Mesmo quando a ênfase se colocava no ensino profissional como estratégia

assistencialista e como fator de moralização das camadas populares, a importância da

educação e mais especificamente da educação técnica (agrícola, industrial e comercial) como

condição de superação do atraso e de desenvolvimento econômico do País não deixava de ser

sublinhada, como fizeram José Liberato Barroso (1867), Félix Ferreira (1876), João Alfredo

Correa de Oliveira, Antônio de Almeida Oliveira (1873), José Ricardo Pires de Almeida

(1886) e Rui Barbosa (1882). Assim como Tarquínio de Souza Filho, eles eram leitores do

economista Laveleye, e em seus discursos a menção ao ensino profissional se fazia

acompanhar de uma percepção das “exigências da atualidade” como dizia Rui Barbosa, e

também pelos termos desenvolvimento, valorização do trabalho, aumento da riqueza,

progresso material, sociedade industrial.

Há que se notar que a crítica à visão tradicional de desprezo pelas profissões mecânicas,

aviltadas pela escravidão, e a aposta na valorização do trabalho como condição de

desenvolvimento material do País vinha acompanhada em Tarquínio de Souza Filho da idéia

de qualificação que produz o mérito:

O merecimento pessoal, o valor real do operário, do trabalhador, do industrial (...) deriva em grande parte das luzes que dispuser a sua inteligência e só uma educação científica pode esclarecê-lo, dando-lhe até a aptidão e habilidade necessárias para melhorar os processos, métodos e sistemas de trabalho, concorrendo assim para o desenvolvimento da produção e elevação dos salários (1887, p. 186)

A ideia de um “merecimento pessoal”, derivado da maior capacidade do trabalhador se

relacionava aqui à possibilidade de uma melhoria nas condições materiais do trabalhador

(elevação dos salários) e nos revela uma tentativa de ruptura com a mentalidade aristocrática

e escravista.

Esse pensamento estava bem sintonizado com os princípios defendidos pela Sociedade

Central de Imigração, que publicou o livro em 1887. Essa associação, combatendo o regime

de privilégios, tinha na defesa do trabalho livre, das reformas liberais e na democracia rural o

centro de sua atuação (VASSILIEFF, 1987). A democracia rural, termo desenvolvido por

André Rebouças, com quem Tarquínio de Souza conviveu à frente da Central de Imigração,

significava a defesa da pequena propriedade e da divisão dos latifúndios em pequenos lotes

12 Sobre o ensino profissional como estratégia de moralização e assistência para os “desvalidos da sorte” no século XIX ver Fonseca (1961) e Cunha (2000).

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de terra a serem distribuídos, por meio da venda, aos imigrantes, aos colonos e ao

trabalhador nacional.

Nos marcos do pensamento liberal, a ideia da democracia rural estava assentada na

defesa da propriedade (só que pequena) e não na sua supressão, muito menos na sua

expropriação. Era necessário combater e diminuir as desigualdades socialmente produzidas,

mas colocando em evidência o mérito, o esforço e o trabalho. Nesse sentido, é possível dizer

que a crença de Tarquínio de Souza Filho, como de resto da Sociedade Central de Imigração,

não era a da produção de qualquer igualdade econômica (bastante criticada por eles e

denominada de nivelamento), mas de uma desigualdade baseada no mérito e na qualificação,

e por isso justa, tarefa para a qual a educação, particularmente o ensino profissional, seria

fundamental:

Nesta elevação intelectual e moral de todas as classes, consiste a verdadeira igualdade, a igualdade pela instrução. Não compreendemos a igualdade como querem os niveladores, os comunistas e coletivistas. O verdadeiro espírito de igualdade não é o que pretende abaixar os que estão em cima, é o que procura elevar, por meios decentes, até ao nível superior, os que estão em baixo. Par isso é preciso por à disposição do povo as vantagens da vida intelectual e moral, sob uma forma adequada e nenhuma nos parece mais conveniente do que o ensino técnico ou profissional (SOUZA FILHO, 1887, p. 56).

Havia que combater a desigualdade artificial e injusta produzida pelos privilégios, mas

era também imperativo organizar a sociedade a partir dos talentos, dos méritos e da

capacidade de cada um.

O que estava em jogo aqui era uma mudança fundamental de mentalidade: de uma

sociedade patrimonial, na qual a herança e o patrimônio acumulado (no caso brasileiro leia-

se terras e escravos) por gerações e gerações garantia o bem estar de quem a possuísse, para

uma sociedade do trabalho, na qual o mérito, a qualificação por meio da educação escolar e a

capacidade cumpririam esse papel13. De uma sociedade estruturada pela hierarquia dos

patrimônios para uma sociedade fundada pela hierarquia do mérito e do trabalho: “Ao antigo

predomínio das grandes propriedades, à preeminência da riqueza territorial, vai sucedendo o

regime de pequena propriedade e a supremacia da riqueza móvel. (...) o bem estar intelectual

e econômico generalizam-se” (SOUZA FILHO, 1887, p. 8).

Assim, na aliança tecida entre o ensino profissional e as “urgências da atualidade”,

ganhavam centralidade o trabalho, a qualificação e a capacidade/mérito do trabalhador, nos

13 Sobre essa questão ver Piketty 2014.

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levando a compreender o projeto de ensino técnico de Tarquínio de Souza Filho como um

projeto de modernização do Brasil.

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