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Fernando Esteves de Oliveira Orientador: Gerson Louzado Universidade Federal do Rio Grande do Sul O escopo das máximas na ética kantiana

O escopo das máximas na ética kantiana

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Page 1: O escopo das máximas na ética kantiana

Fernando Esteves de Oliveira

Orientador: Gerson Louzado

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

O escopo das máximas na ética kantiana

Page 2: O escopo das máximas na ética kantiana

1

Fernando Esteves de Oliveira

Orientador: Gerson Louzado

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

O escopo das máximas na ética kantiana

Page 3: O escopo das máximas na ética kantiana

2

Sumário

Sumário .................................................................................................................................................. 2

Índice de Figuras .................................................................................................................................. 3

1. Introdução ......................................................................................................................................... 4

2. Embasamento Teórico .................................................................................................................... 7

3. Objetivo .............................................................................................................................................. 9

4. Apresentação da ética kantiana .................................................................................................. 11

4.1 Ação, reação e a introdução às máximas ............................................................................ 13

4.2 Princípios, liberdade e moralidade. ....................................................................................... 15

5. A forma geral do querer ................................................................................................................ 23

6. Máximas como estilos de vida ..................................................................................................... 28

7. Complicações da fundamentação ............................................................................................... 32

7.1 Adoção de máximas ................................................................................................................ 33

7.2 Ser imoral seguindo princípios .............................................................................................. 35

8. Conclusão ....................................................................................................................................... 40

9. Referências bibliográficas ............................................................................................................. 44

Page 4: O escopo das máximas na ética kantiana

3

Índice de Figuras

Figura 1:Escolha aleatória ......................................................................................... 37

Figura 2: Princípio de Paridade ................................................................................. 37

Figura 3: Conformidade ao Princípio de Paridade ..................................................... 38

Figura 4: não conformidade ao Princípio de Paridade .............................................. 38

Page 5: O escopo das máximas na ética kantiana

4

1. Introdução

A Fundamentação da Metafísica dos Costumes de Immanuel Kant é uma obra

densa e complexa, propiciando muitas diferentes interpretações de vários pontos

específicos, que acabam por gerar leituras bastante diferentes da obra. Este

trabalho tratará da possibilidade de conciliar uma interpretação específica do

conceito de máxima ao restante da obra kantiana.

Para tanto, será preciso especificar a interpretação que será utilizada da

máxima, a saber, que esta deve necessariamente servir como um princípio que, ao

ser tomado como próprio do agente, possui como escopo todas as suas ações. Esta

interpretação, proposta por Rüdiger Bittner,1 é inicialmente difícil de ser entendida

pelo fato de que não há indícios na obra de que as máximas funcionariam assim,

ainda que não seja contraditório com nada mais que é dito.

A ideia básica da interpretação é que, embora possam existir máximas que

valem momentaneamente, isso é, princípios de ação escolhidos para momentos

específicos, é necessário que haja máximas que funcionem como princípios

fundamentais, às quais todos os outros princípios de menor valia se mostram

submetidos.

Além disso, do fato de todas as ações estarem submetidas a no mínimo uma

máxima que sirva como estilo de vida de um agente, seguir-se-á que não são

possíveis ações meramente circunstanciais. Em alguma instância, toda e qualquer

ação deverá necessariamente ser uma instância de um princípio fundamental que

serve como estilo de vida, o que pode parecer um tanto quanto contraintuitivo à

primeira vista, embora se mostre bastante plausível após análise cuidadosa.

1 Em seu artigo denominado “Máximas”, presente no volume 5 número I de novembro de 2003 da “Studia

Kantiana”

Page 6: O escopo das máximas na ética kantiana

5

Esta interpretação também irá requerer um cuidado especial sobre o conceito

de princípio, sobretudo no que diz respeito à forma geral do querer. Ao entendermos

o funcionamento de máximas fundamentais como estilos de vida é possível

solucionar problemas comuns na interpretação kantiana, como a problemática

emergente da possibilidade de criarmos máximas como quisermos, sem critérios, e a

relação das mesmas com nossas ações e a lei moral, isso é, uma vez que podemos

criar nossas máximas como quisermos e duas máximas diferentes podem

fundamentar a mesma ação, o que me impede de, ao invés de assumir uma máxima

que não pode ser universalizada como princípio de minha ação, basear minha ação

em outra máxima que possa ser universalizada e me permita agir?

Alguns dos pontos da obra poderiam se tornar problemáticos ao se utilizar tal

modo de pensamento, e isto será tratado em capítulo específico, bem como a forma

que devemos entendê-los para evitar estes problemas, mas não sem antes

apresentar uma visão geral dos outros conceitos chaves da obra.

Tendo apresentado uma visão geral da obra, tratando dos conceitos mais

importantes, explicar-se-á o que exatamente é entendido como escopo da máxima,

buscando direcionar a utilização do conceito em questão para a forma pretendida,

isso é, como um princípio que vale para todas as ações futuras do agente.

Uma vez que esteja claro qual dos sentidos de escopo será utilizado e o que

se quer dizer quando falamos de “máximas como estilos de vida,” será preciso

clarificar os pontos que podem parecer contraditórios ao conceito apresentado,

dando um exemplo de interpretação com a qual se pode entender máximas como

estilos de vida, de forma que estes pontos aparentemente problemáticos e o

restante da obra não se mostrem contraditórios.

Será abordada a questão da forma com a qual o imperativo categórico pode

comandar seres humanos, que são racionais finitos, a agirem moralmente. Isso feito,

tratar-se-á dos desdobramentos deste problema, estudando interpretações para a

forma geral do querer e a possibilidade da agência imoral racional.

Tendo isso sido apresentado, estará provada a possibilidade da leitura da

ética kantiana contida na Fundamentação da Metafísica dos Costumes na qual

Page 7: O escopo das máximas na ética kantiana

6

máximas são interpretadas como estilos de vida, isso é, tendo como escopo todas

as ações futuras de um certo tipo.

É importante ressaltar que embora máximas tenham como escopo todas as

ações futuras do agente não se segue que também tenham todas as ações

possíveis. Como será exposto no capítulo intitulado ‘Máximas como estilos de vida’

desta monografia, máximas podem possuir diferentes tipos de escopo, de forma que

possam ser totalmente abrangentes em um sentido ainda que sejam restritivas em

outros.

Page 8: O escopo das máximas na ética kantiana

7

2. Embasamento Teórico

O livro base de utilizado para o desenvolvimento deste projeto foi a

Fundamentação da Metafísica dos Costumes, mas por ser um livro que fornece

diversas interpretações diferentes, foi necessário utilizar comentários de diversos

autores, bem como outras obras de Kant, para entender o funcionamento dos

diversos conceitos utilizados na obra e as relações entre eles, o que foi fundamental

para o desenvolvimento deste projeto.

O conceito mais utilizado no trabalho é o de ‘Princípio’(prático), tal qual foi

apresentado por Frederick Rauscher, onde ‘Princípio é aquilo que serve de

fundamento para uma escolha’.2

Também foi fortemente utilizada a tese da Incorporação, que servirá de base

para o princípio da forma geral do querer, extraído de A Religião nos Limites da

Simples Razão, de Immanuel Kant, de forma que a definição de todo e qualquer

querer é a seguinte

(...) a liberdade do arbítrio [Willkür] é de natureza de tal modo peculiar que apenas pode ser determinada a agir por um móbile [Triebfeder] qualquer na medida em que o ser humano o tenha incorporado em sua máxima (o tenha tornado uma regra universal para si mesmo, de acordo com a qual quer se conduzir).3

2 Em seu comentário a respeito da Fundamentação da Metafísica dos Costumes intitulado Freedon

and reason in Grounwork III da coletânea organizada por J. Timmerman e A. Reath sob o nome de Kant’s Critique of Pratic Reason: A Critical Guide, pág. 219

3 RGV, AA 06: 23-24

Page 9: O escopo das máximas na ética kantiana

8

A abordagem utilizada da forma geral do querer como sendo o princípio da

incorporação é fruto do estudo do artigo “A Autonomia da Vontade na

Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, de Gerson Louzado, contido no livro

“Ensaios sobre Kant”.

A linha geral do projeto segue a interpretação de Rüdiger Bittner presente no

artigo “Máximas”, contido na revista número 5 da Sociedade Kant Brasileira, “Studia

Kantiana”, na qual máximas desempenham um papel de estilos de vida para os

agentes racionais, apresentando contudo outras formas de se abordar este

pensamento.

Page 10: O escopo das máximas na ética kantiana

9

3. Objetivo

A ética kantiana é amplamente estudada, e muitos de seus estudiosos

discordam quanto ao conteúdo da obra devido à dificuldade de interpretação de

seus conceitos chaves. A dificuldade de estudar estes conceitos chaves recai,

sobretudo, no fato de que eles fundamentam a obra trabalhando como uma teia de

sustentação, de forma que devem possuir uma harmonia meticulosa para que

possam ser considerados consistentes com o restante da ética, isso é, para que a

interpretação destes conceitos possa ser considerada plausível.

O objetivo deste trabalho é apresentar a possibilidade de interpretar o

conceito de máxima como sendo um princípio que, ao tomarmos como nosso, tenha

como escopo todas as nossas ações futuras de determinado tipo, assim como

Bittner propõe em sua argumentação contida em seu artigo denominado “máximas”.

Para tanto, serão expostos, em linhas gerais, os pontos da Fundamentação

da Metafísica dos Costumes que são necessários para esta interpretação, para

então apresentá-la e mostrar como compatibilizá-la com a ética kantiana de forma

não apenas coerente, mas também efetiva, no sentido de que resolve problemas

com a relação de máximas, ações e a Lei Moral.

Ao fim deste trabalho, é pretendido que tenha se feito claro o funcionamento

da ética kantiana quando tomando o princípio da incorporação como forma geral de

todo e qualquer querer, bem como suas implicações, uma vez que uma boa

interpretação de o que vem a ser este ‘querer’ e o que vem a ser o ato de

Page 11: O escopo das máximas na ética kantiana

10

‘incorporar’ é essencial para um bom entendimento desta interpretação, sobretudo

no que diz respeito à utilização de princípios. A maior dificuldade da utilização do

princípio da incorporação como forma geral do querer recai sobre a dificuldade de

que máximas também são queridas, e portanto devem necessariamente ser

incorporadas algo outro de maior amplitude e universalidade.

Consonantemente, será preciso conformar a interpretação na qual a tese da

incorporação é a forma geral do querer com a definição de princípio tal qual

apresentada por Rauscher, bem como a forma com a qual a palavra ‘Princípio’ é

utilizada em sua leitura kantiana.

Page 12: O escopo das máximas na ética kantiana

11

4. Apresentação da ética kantiana

A ética kantiana apresentada na Fundamentação da Metafísica dos Costumes

baseia-se completamente no conceito do imperativo categórico. Este imperativo é

entendido como sendo o fundamento do procedimento utilizado por seres racionais

finitos quando estes pretendem definir a moralidade de uma ação sua. Contudo, o

entendimento do imperativo categórico depende de uma série de outros conceitos

que precisarão ser amplamente explicados.

O primeiro conceito tratado para explicar a atribuição de moralidade na ética

kantiana será o conceito de racionalidade prática. É defendido que apenas ações de

um agente dotado de racionalidade prática poderão ser julgadas quanto a seu

âmbito moral.

“Nós começaremos com o conceito de agente racional. Um agente racional é aquele que tem o poder de agir segundo sua ideia de leis – isso é, de acordo com princípios. Isso é o que se quer dizer quando dizemos que ele tem uma vontade. ‘Razão prática’ é outro termo para esta vontade”4

Este conceito se faz importante principalmente devido ao fato de que e a

racionalidade prática é requerida para que seja possível derivar cursos de ações de

representação de leis, isso é, a capacidade de agir segundo princípios. É importante

mostrar como Kant diferencia, através deste conceito, o tipo de agência própria dos

seres racionais dos bestiais (criaturas não dotadas de racionalidade), o que ocorre

pelo uso específico da palavra representação.

4 H.J.Paton. “The Moral Law” Pág 25

Page 13: O escopo das máximas na ética kantiana

12

Na terceira seção da Fundamentação da Metafísica dos Costumes é

apresentado que existem dois tipos diferentes de leis válidas para os seres racionais

finitos, tais quais os seres humanos: a Lei Natural e a Lei Moral. A Lei Natural é a

causalidade que afeta o mundo enquanto mecânico, ditando o comportamento das

partículas, dos objetos enquanto físicos e das ações irracionais. Ela atua no nível

dos fenômenos, isso é, no nível da experiência sensível e, portanto, é a lei que rege

necessariamente o comportamento das criaturas bestiais. Esta lei também vale para

os seres racionais finitos tais quais os seres humanos, contudo não da mesma

forma, uma vez que sua aplicação, em certa medida, não é necessária. Muito

embora estes não possam evitar serem puxados pela gravidade ou apertados pela

pressão, tem a opção de não ceder às leis psicológicas ou fisiológicas (embora

estas não deixem de valer), capacidade não encontrada em criaturas bestiais.

Embora criaturas bestiais sejam dotados de uma faculdade desiderativa, não

possuem a capacidade de transformar o objeto deste desejo em interesse pois não

são capazes de incorporá-lo a uma regra, uma vez que para isso é requerida a

racionalidade do agente. 5

“Ele possui, entretanto, dois pontos de vista de onde ele pode se considerar membro e pode conhecer as leis que governam o emprego de seus poderes e consequentemente governam suas ações. Ele pode se considerar primeiro – enquanto ele pertencer ao mundo sensível – submetido a leis da natureza (heteronomia); e em segundo – enquanto ele pertença ao mundo inteligível – submetido a leis que, sendo independentes da natureza, não são empíricas, mas possuem seu fundamento apenas na razão.”6

É claro que, enquanto corpos físicos, não podemos evitar a causalidade

natural no sentido de que, se formos cortados, nossos corpos sangrarão. Contudo,

nossa racionalidade nos permite refletir a respeito de conceitos que não podem ser

explicados através de nossa experiência, como por exemplo, o conceito de

“Liberdade”, que não pode ser retirado do mundo sensível. Esta impossibilidade nos

possibilita pensar que, então, temos acesso a outro tipo de realidade que possua um

diferente tipo de funcionamento, isso é, estamos submetidos a outro tipo de lei que

nos permita evitar a ação necessária da Lei Natural. Chamamos esta lei de Lei

Racional ou Lei Moral. 5 Kant trabalha esse ponto em G IV 413: Nota de rodapé.

6 G IV 452

Page 14: O escopo das máximas na ética kantiana

13

A Lei Moral é, então, a capacidade que temos de agir de maneira

independente da Lei Natural, e a racionalidade prática seria o requisito para que se

possa representar esta lei na forma de um princípio, uma vez que esta lei em si não

nos dá um curso de ação para seguirmos, mas um método para criarmos nossos

próprios cursos de ação, sendo então oposta à Lei Natural. Assim, racionalidade

prática permite aos seres racionais utilizarem a Lei Moral (ou Lei da Razão) para

criar seus próprios princípios, quer seja em conformidade quer seja em

contrariedade com o seu princípio. Este ponto será aprofundado posteriormente

quando tratarmos da possibilidade da agência imoral racional.

4.1 Ação, reação e a introdução às máximas

É ainda preciso explicar o que o autor entende por ação e, sobretudo,

dissociá-lo do conceito de reação. Quando se fala de ação no contexto kantiano, já

se considera que o agente possua desejos, mas não necessariamente

racionalidade. Este trabalho utiliza uma leitura de Kant na qual se entende a ação

como sendo ‘a interação de uma entidade consciente com o mundo com vistas a

realizar um objetivo próprio’ -

“Toda coisa na natureza atua segundo leis. Só um ser racional tem a faculdade de agir segundo a representação de leis, isso é, segundo princípios, ou uma vontade. Visto que se exige a razão para derivar de leis as ações, vontade nada mais é do que razão prática.”7

A diferença entre seres racionais e bestiais consiste justamente no fato de

que os primeiros agem segundo a representação de leis, ou seja, refletem sobre a

relação de seu objetivo com a lei que o originou, enquanto agentes bestiais (não

racionais) agem necessariamente segundo a ‘jurisprudência do desejo’, isso é,

segundo o desejo mais forte que possuírem. Em outras palavras, seres racionais

não escolhem desejar algo, mas podem escolher querê-lo. Quando têm contato com

o um objeto, é possível que a causalidade mecânica do mundo os faça desejá-lo.

7 FMC AA 04:412

Page 15: O escopo das máximas na ética kantiana

14

Enquanto o fazem, deliberam se querem ou não tal objeto, e se irão ou não tomar

como um objetivo seu o de satisfazer tal desejo. Esta é a diferença entre uma ação

racional e uma irracional.

Também é importante, para evitar confusões, diferenciar ação de reação8

mecânica. Reação mecânica vem a ser o efeito natural resultante de uma causa,

isso é, um evento meramente físico e não intencional entre entidades que não

necessariamente possuem consciência, vontade ou razão. Por exemplo, poderíamos

dizer que o derreter do gelo é uma reação que ocorre devido a uma causa, a saber,

o calor do sol, ou que o suar de um jogador de futebol é uma reação à causa, que

pode ser o esforço físico, o calor demasiado ou quaisquer outros fatores. Esta

distinção é importante justamente por diferenciar a ação de um animal, de um ser

humano e de uma pedra, agrupando-as conforme não apenas a racionalidade do

agente, mas também quanto à intencionalidade do mesmo.

Com isso explicado, pode-se finalmente começar a tratar do conceito de

máxima, que é o conceito chave deste trabalho. Neste capítulo, contudo, este

conceito não será abordado profundamente, detendo-se apenas à sua definição e

relação com o funcionamento da obra. Tratar-se-á do conceito de máxima mais

detidamente no decorrer do trabalho.

Segundo a definição kantiana, máxima é o princípio subjetivo da ação e

precisa ser distinguido do princípio objetivo – a saber, a lei moral9, isso é, um

princípio cujo escopo contempla um agente (e por isso é dito subjetivo) e motiva sua

ação, de forma que ela seja, então, uma lei representada.

Embora este ponto possa se mostrar um tanto quanto complicado e gerar

uma série de controvérsias quando analisamos, por exemplo, o escopo destas

máximas, é ponto pacífico dentro da obra kantiana e segundo os comentadores

analisados para a criação deste trabalho que, sempre que escolhemos

racionalmente realizar uma ação, temos uma máxima segundo a qual a

8 Neste trabalho optei por tomar tudo o que está no campo das “ações mecânicas” pelo nome de

“reação mecânica”, de forma que não haja “ações” mecânicas.

9 Tradução livre de(G IV 421:51 nota de rodapé).

Page 16: O escopo das máximas na ética kantiana

15

arquitetamos, e é por isso que entendemos a máxima como sendo o princípio

subjetivo do agente.

4.2 Princípios, liberdade e moralidade.

Dois dos conceitos mais importantes para o entendimento da Fundamentação

da Metafísica dos Costumes são irrefutavelmente os de ‘Liberdade’ e ‘Princípio’, que

servem de firmamento para toda a estruturação da obra em questão.

O conceito de ‘Princípio’ na obra kantiana mostra-se importante inicialmente

porque o conceito de máxima se define a partir deste, sendo esta um princípio

subjetivo do agente10. Para melhor elucidar o funcionamento de um princípio

subjetivo Kant apresenta os seguintes exemplos: Sempre que me encontrar sem

dinheiro irei pegar dinheiro emprestado e prometer pagar, embora saiba que nunca

cumprirei tal promessa,11 e encurtarei minha vida se esta continuamente me

proporcionar mais desprazeres do que alegrias12.

Aqui é visto que as ações são, então, instâncias singulares das máximas, que

por sua vez funcionam como princípio segundo o qual agimos.

Princípios são representações de leis, isso é, são regras gerais que adoto

como lei para mim. Esses são a justificativa de uma ação, como Rauscher

apresenta: ‘Princípio é aquilo que serve de fundamento para uma escolha’.13

10 G IV 401:15. 11G IV 422:54. Segundo minha interpretação a parte suprimida do exemplo (a saber “Por amor próprio tomo como meu princípio”) não faz parte da máxima, sendo apenas a motivação que me fez tomá-la (a máxima) como quista por mim (explicarei o conceito de “querer” no próximo subcapítulo). 12 Tradução livre de(G IV 422:53). 13 Em seu comentário intitulado Freedon and reason in Grounwork III da coletânea organizada por J.

Timmerman e A. Reath sob o nome de Kant’s Critique of Pratic Reason: A Critical Guide, pág. 219

Page 17: O escopo das máximas na ética kantiana

16

Quando um princípio pode servir para todo e qualquer ser racional, entendido

enquanto tal, é dito que este não é apenas subjetivo, mas também objetivo.

Contudo, aqui não se pode entender ‘objetivo’ no sentido de ser necessário, mas no

de que seu escopo pode abranger o domínio de ações possíveis de quaisquer seres

racionais concebíveis. Quando um princípio tem esse escopo ele não é mais

considerado apenas uma máxima, mas sim uma lei, por possuir agora a forma de

uma lei racional, no nosso caso, a de um imperativo categórico.

Princípios subjetivos que são também objetivos não se diferenciam dos

unicamente subjetivos no tocante a sua forma de funcionamento, mas quanto a seu

escopo e seu fundamento. Eles são aqueles que poderiam valer como princípio para

todo o ser racional enquanto tal, sendo assim “objetivos em potência” ainda que seu

escopo real continue o mesmo, a saber, as ações de um agente. Um princípio

subjetivo é dito também objetivo quando seu fundamento, ou seja, o método

utilizado para selecioná-lo tenha independido de quaisquer determinações não

racionais, mas isto será melhor explicado adiante.

O imperativo categórico é um princípio que seleciona máximas conforme a

capacidade que estas têm de poder servir como princípio subjetivo para qualquer ser

racional entendido como tal, isso é, a possibilidade que estas tem de serem

universalizadas e valerem como princípios subjetivos por quaisquer seres racionais

concebíveis. Se assim for, diz-se que as ações que se seguem dessa máxima são

morais. O imperativo é formulado inicialmente da seguinte forma: ‘Aja somente

segundo máximas através das quais você possa, ao mesmo tempo, querer que se

tornem leis universais’. 14

É importante ressaltar que este processo funciona apenas para seres

racionais imperfeitos, pois para quaisquer seres cuja racionalidade seja a única

opção de motivo para a ação – isso é, para seres que não possuem, por exemplo,

uma “parte sensível”, a moralidade não se mostra na forma de um imperativo, uma

vez que não se mostra na forma de um dever, mas a única possibilidade de ação

desta entidade, embora estes sempre a escolham como princípio seu.

14Tradução livre de G IV 421.

Page 18: O escopo das máximas na ética kantiana

17

Assim, seres racionais finitos (como os seres humanos) podem ou não agir

segundo sua interpretação da Lei Moral, enquanto para seres racionais puros (como

por exemplo, anjos ou criaturas provindas de universos de ficção científica como

Jornada nas Estrelas) a moralidade se mostra como uma necessidade escolhida,

uma vez que estes não podem agir senão segundo princípios da razão que

escolhem cada vez que agem, isso é, a lei moral é necessária sem exceções

enquanto para os racionais finitos sua aplicação pode ser submetida à de outros

princípios.

O conceito de liberdade é um dos mais importantes (e talvez o que mais gere

divergências interpretativas) para o entendimento da Fundamentação da Metafísica

dos Costumes, principalmente por sua relação com o conceito de moralidade.

Inicialmente Kant define liberdade de maneira negativa, dizendo que liberdade

é a capacidade da vontade de não ser determinada por influências externas:

“Vontade é um tipo de causalidade pertencente a seres vivos contanto que estes sejam racionais. Liberdade seria então a propriedade que esta causalidade teria de trabalhar independentemente de determinações de causas alheias.”15

Em seguida a definir positivamente, dizendo que liberdade é a capacidade da

vontade de determinar-se a si mesma:

“Mas brota desta [definição negativa] um conceito positivo que, enquanto positivo, é mais rico e muito mais frutífero. [...] O que mais a liberdade da vontade poderia ser senão autonomia – isso é, a propriedade da vontade de ser lei de si mesma16? A proposição ‘A vontade é, em todas as suas ações,’ expressa, entretanto, apenas o princípio de nunca agir segundo máximas que não aquelas que podem ter como seu objeto ela mesma ao mesmo tempo que a lei universal. Esta é precisamente a formula do imperativo categórico e o princípio da moralidade. Portanto, uma vontade livre e uma vontade sobre as leis morais são uma e a mesma coisa.”17

15 G IV 446

16 Frederich Raucher, em seu artigo intitulado “Freedon and reason in Grounwork III” da coletânea

organizada por J. Timmerman e A. Reath sob o nome de Kant’s Critique of Pratic Reason. A Critical

Guide,faz uma consideração interessante sobre a vontade não ser lei para si mesma, mas a razão

ser lei da vontade. Contudo, visto que o objetivo deste trabalho é apenas compatibilizar a obra

kantiana ao conceito de máxima tal qual o entendo, escolhi por não inserir esta discussão.

17 G IV 447.

Page 19: O escopo das máximas na ética kantiana

18

Há uma longa discussão a respeito da natureza da passagem do conceito

negativo de liberdade [o que é chamado por alguns de Liberdade Negativa, ou

Espontaneidade] para o conceito Positivo de Liberdade [o que alguns chamam de

Liberdade Positiva, ou Autonomia]. Henry Allison18, por exemplo, defende que há

algo a mais na Autonomia que ainda não existe na espontaneidade, como se a

segunda fosse a capacidade de escolher entre a primeira ou a heteronomia (que

vem a ser a vontade quando determinada por algo outro que ela mesma), mas se

fosse assim não poderíamos retirar o conceito de Autonomia do de Espontaneidade

como Kant pretende ser possível no início da terceira seção. Contudo, esta

discussão não receberá atenção neste trabalho, será apenas apontada como uma

questão controversa.

“Portanto, para uma vontade divina, e em geral para uma vontade santa, não existe imperativos da forma: ‘eu devo’, pois seu ‘eu vou’ já está ele mesmo necessariamente em concordância com a lei. Imperativos são em consequência apenas fórmulas para expressar a relação de objetivos da lei de vontades com a imperfeição subjetiva da vontade deste ou daquele ser racionais – por exemplo, a vontade humana.”19

Todavia, o fato de seres puramente racionais só poderem escolher ações

segundo o princípio da razão, enquanto seres racionais sensíveis (tais quais os

seres humanos) terem a opção de se deixar levar por influências externas, como por

exemplo por sua sensibilidade, pode levar à falsa impressão de que seres racionais

imperfeitos possuem maior liberdade do que os perfeitos, o que não é o caso. O que

ocorre é que a sensibilidade humana (ou participação do homem no mundo

sensível) é, na verdade, uma dificuldade que o ser racional finito possui, isso é, é

uma limitação que sua natureza finita o impõe.

Para exemplificar a situação, podemos imaginar o ser racional infinito como

sendo um homem nadando ao mar, enquanto o ser racional finito seria outro homem

nadando ao mar, mas com uma esfera de ferro amarrada a seu pé. Embora ambos

tenham a liberdade de mover-se para quaisquer direções, o peso preso ao pé do ser

racional finito limita seu deslocamento, dificuldando que este se mova em qualquer

direção. Mais do que isso, o ato de “coçar a barba”, por exemplo, seria muito mais

18 Em “Kant’s theory of freedom”, Cambridge: Cambridge University Press, 1996, pp 129-142.

19 G IV 414:39

Page 20: O escopo das máximas na ética kantiana

19

simples para o ser racional infinito que só precisaria concentrar-se nesta ação,

enquanto o racional finito precisará sempre estar atento para não afundar devido ao

peso preso a seu pé, portanto nenhuma das ações seria igual, uma vez que a esfera

de ferro sempre deverá ser considerada por aquele que a carrega.

Nesta situação, o fato do ser racional finito poder girar sua esfera de ferro ou

apoiá-la em seu ombro não faria dele mais livre do que o ser racional infinito que não

poderia fazê-lo por não possuir este objeto. A esfera representa uma dificuldade que

torna todas as ações do agente racional finito mais difíceis, trabalhosas e,

sobretudo, pensadas para serem diferentes, pois sempre levam em consideração a

dificuldade proposta pelo peso.

Assim como a esfera do exemplo acima exposto, o lado sensível (imperfeito)

dos seres racionais finitos não os torna mais livres do que os seres racionais puros,

pois nossos campos de ação são incomparáveis. A ação de auxiliar uma senhora a

atravessar a rua não é a mesma para uma criatura “puramente racional” e para um

ser humano dotado de vontade finita, são ações diferentes e incomparáveis entre si.

Ainda assim, pode se delinear algumas semelhanças entre elas, principalmente pelo

fato de que por serem seres dotados de perfeita racionalidade, suas ações devem

ser derivadas de princípios, e tais princípios devem ser por eles escolhidos (muito

embora estes escolham necessariamente os princípios puramente racionais), mas

os campos de escolha são completamente diferentes.

Na ética kantiana é correto afirmar que, do ponto de vista moral, uma ação

nada é quando desconsiderada a interpretação do agente ao realizá-la. A intenção

do indivíduo ao agir é o que representa o querer da ação e, por desconsiderar-se a

consequência no tocante moral, a diferença das ações de seres puramente racionais

e os racionais finitos se torna ainda mais evidente.

De posse dos conceitos de ‘Princípio’ e ‘Liberdade’, podemos agora entender

melhor como ambos funcionam no processo da agência moral na ética kantiana.

Segundo o que foi visto até então, para que uma máxima possa ser

universalizada – ou seja, para que um princípio subjetivo possa também ser objetivo,

é preciso que este possa ser utilizado por quaisquer agentes racionais concebíveis.

Esta situação só pode ocorrer se este princípio tiver sido tomado pelo agente como

Page 21: O escopo das máximas na ética kantiana

20

dele por motivos que independem de tudo que não for racional, uma vez que seja

possível conceber agentes sem quaisquer outras características que influenciem em

sua agência.

“Nossa segunda proposição é esta: uma ação realizada por dever tem seu valor moral, não na realização de seu propósito, mas na máxima de acordo com a qual ela foi decidida. Depende, portanto, não na realização do objetivo da ação, mas unicamente no princípio da volição de acordo com a qual, desconsiderando todos os objetos da faculdade do desejo, a ação se realizou.”20

Com isso, tem-se que toda a influência de algo outro que a razão nas ações

de um agente não é escolhida por nós, no sentido de não escolhermos ser

influenciados, mas isso não significa que não sejamos responsáveis por nossas

ações baseadas em influências. Muito antes pelo contrário, embora não tenhamos

controle sobre as influências externas à razão exercidas sobre nós, podemos

escolher racionalmente deixar que estas se manifestem em nossa ação, escolhendo

se as deixamos sobrepor-se ao poder exercido em nossa vontade por nossa

racionalidade. Não posso escolher o que eu sinto, mas posso escolher o que faço a

respeito.

Assim, uma ação é moral se e apenas quando é escolhida com base em um

princípio subjetivo que pode ser também objetivo, ou, em outras palavras, se a

vontade do agente foi livre ao escolher tomar a ação como sua.

Isso, contudo, não quer dizer que quando agimos moralmente estamos

isentos da ação da causalidade natural nem mesmo neste ato individual, mas isto

não é contraditório com a agência independente de influências externas à razão.

Para que nossa ação seja moral devemos poder escolhê-la independentemente de

tudo que não seja racional, isso é, a moralidade está condicionada à intenção do

agente ao escolher a ação, não à ação ou não da causalidade natural.

Exemplificarei este ponto com duas passagens do artigo de Rauscher:

“Se eu aplico modus ponens em um caso particular, eu não preciso ser independente do determinismo causal da natureza. Eu preciso, contudo, ser capaz de utilizar o modus ponens como um princípio da lógica racional para poder revindicar que este meu uso específico do modus ponens é válido. O juízo ele mesmo pode, ainda assim, ser parte de uma cadeia causal da natureza, envolvendo, digamos, processos eletroquímicos através dos neurônios. Contudo se eu não posso invocar o princípio independentemente

20 Tradução livre de (G IV 399:13/400)

Page 22: O escopo das máximas na ética kantiana

21

justificado da lógica racional, me deixo levar meramente pela cadeia causal, e eu não posso, então, revindicar que meu juízo possui validade.”21

Nesta primeira passagem, Rauscher está apresentando o argumento de que

o determinismo da causalidade natural não tem nada a ver com aplicação de um

princípio, de forma que podemos utilizar princípios válidos mesmo sendo totalmente

determinados e heterônomos. A validade22 de um princípio, por outro lado, deve-se à

possibilidade de invocarmos este unicamente da racionalidade, isso é, utilizá-lo

como um princípio normativo, uma regra adotada por mim como lei para mim,

seguindo-a como definidora do meu bem agir. Se o princípio puder ser invocado

unicamente da racionalidade este poderá ser invocado por qualquer agente racional

concebível, sendo assim racionalmente válido e apto a ser objetivado.

O segundo exemplo de Rauscher mostra como um princípio válido pode ser

utilizado sem contradições por uma entidade desprovida de racionalidade:

“se atribuir um movimento particular a um computador que joga xadrez, eu poderia defender que ele escolhe seus movimentos devido à causalidade da rede de impulsos elétricos, mas eu posso atribuir os movimentos a um princípio racional das estratégias e táticas do xadrez. Não existem contradições em aceitar que ambos resultem no movimento. Quando eu faço uma jogada (em minha vã tentativa de evitar um cheque-mate) eu similarmente atribuo meu movimento aos mesmos princípios de táticas e estratégias do xadrez, mas eu também posso, sem contradições, assumir que meu juízo é o produto causal de eventos químicos e elétricos em meu cérebro.”

Ao contrário do que se possa pensar, na utilização de princípios não existe

racionalidade. Sendo o conceito de racionalidade a capacidade de derivar, da

interpretação de leis, cursos de ações, é fácil enxergar como a confusão se faz

presente, mas tal definição é composta de duas ações distintas, sendo a primeira

delas interpretar uma dada lei e a segunda derivar desta cursos de ação. No

exemplo ilustrado acima, o computador é capaz de utilizar o princípio mesmo que

este não tenha determinado a si mesmo. Ele foi determinado pelo programador a

agir de tal e tal forma, portanto, embora este siga um princípio que pode ser

derivado unicamente da razão, este princípio não foi escolhido autonomamente, mas

implantado nele, e funcionaria como quando nós, agentes racionais finitos, nos

21 Tradução livre de “Freedom and reason in Groundwork III”, página 219, do livro “Groundwork of

Metafisic of Morals: A commentary” de Jeans Timmermann

22 Aqui por “validade” entende-se valer como um princípio para a moralidade.

Page 23: O escopo das máximas na ética kantiana

22

deixamos determinar por causas do mundo sensível. Diz-se, então, que o princípio

seguido pelo jogador que desafia o computador é um princípio normativo, isso é,

tomado pelo agente como uma lei para ele mesmo, enquanto o princípio do

computador é dito descritivo, no qual deve-se seguir um curso específico de ações

(no caso, jogadas) quando uma determinada situação se apresenta. Desta forma,

tem-se que para que um agente possua princípios normativos é requerido que este

possa escolher princípios autonomamente.

Assim, agimos conforme máximas que são, em verdade, princípios subjetivos

das ações. Estes princípios são interpretações de leis que são considerados válidos

se e somente quando pudermos derivá-los unicamente da racionalidade, uma vez

que, se assim for, podem servir de princípio para quaisquer seres racionais

concebíveis, isso porque seres racionais compartilham racionalidade, portanto todos

tem acesso a este princípio e todos podem utilizá-lo. Quando um princípio válido for

escolhido autonomamente, as ações tomadas conforme este princípio serão

consideradas ações morais, pois como foi mostrado, uma vontade livre uma vontade

submetida à lei moral são uma e a mesma coisa23 uma vez que uma vontade livre e

uma vontade sobre leis morais são uma e a mesma coisa.

23 Tradução livre de (G IV 447)

Page 24: O escopo das máximas na ética kantiana

23

5. A forma geral do querer

Uma vez que tenha sido mostrado que ações de seres puramente racionais

são intrinsecamente diferentes daquelas cujos agentes sejam racionais finitos, nos

vemos obrigados a considerar que deva existir algo em comum entre estes no

tocante da ação, se quisermos que uma lei possa valer para qualquer ser racional

entendido enquanto tal.

Se todas as ações concebíveis devem ter um motivo pelo qual elas são

tomadas como do agente que as pretende executar (e o faz), então este deve

escolhê-las conforme algum motivo, isso é, seu querer deve ter alguma orientação.

Isso significa que todas as ações racionais concebíveis devem ser quistas pelo seu

agente, caso contrário poderiam não ser consideradas racionais ou próprias do

agente.

Tem-se que toda a ação requer um agente “querendo-a”, que este querer

deve ter uma forma geral ampla o suficiente para ser válida para todo o ser racional

entendido enquanto tal. Esta forma do querer em geral, ou forma geral do querer

será, então, o que possibilita a universalização de uma Lei Moral.

Vale a pena lembrar que “querer” algo não é simplesmente estar interessado

em algo, como Bittner deixa bem claro nesta passagem:

Page 25: O escopo das máximas na ética kantiana

24

“querer é mais do que simplesmente estar interessado em algo, o querer aspira ao seu objeto sob um aspecto determinado. O que quero no desfalque não é esta quantia em dinheiro, mas sim riqueza. Não quero simplesmente proporcionar ou não esta ajuda a seres humanos, mas quero ser humanitário ou desapiedado. Segundo o que foi dito, isso significa que cada querer contém, simultaneamente, uma perspectiva sobre toda a minha vida.”24

A definição de ‘querer’ que esta que está sendo utilizada é com certeza mais

forte do que um mero tomar interesse. É importante ressaltar que, como Bittner

aponta, que a própria definição de querer pode apontar (e segundo ele aponta) para

uma interpretação da ética kantiana na qual princípios realmente exprimem estilos

de vida.

A característica comum compartilhada entre todos os seres racionais

concebíveis é, por óbvio, a racionalidade, uma vez que esta é requerida para que

seja possível ‘derivar cursos de ação de representações de leis’. Isso ocorre pois a

racionalidade é requerida para que se possa “dar razões” para suas ações, isso é,

justificá-las, e fazê-lo é apresentar o princípio universal válido (para o agente) que

orientou o agente a proceder da forma que o fez.

Cada coisa da natureza opera segundo leis. Apenas um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, ou seja, segundo princípios, ou segundo uma vontade. Uma vez que a razão é exigida para derivar ações de leis, a vontade não é outra coisa senão a razão prática.25

Sendo ‘derivar cursos de ações de representação de leis’ análogo a agir

segundo princípios, torna-se claro que a forma geral do querer deve ser a tomada de

princípios como fundamento de escolha e, portanto, que os objetos devem ser

escolhidos por nossos princípios, isso é, querer algo é incorporá-lo a um princípio

seu (o Princípio da Incorporação) e esta é a forma do querer de qualquer ser

racional concebível, a forma geral do querer.

“O Princípio da incorporação, segundo o qual algo só é objeto da vontade ou do querer na medida em que for incorporado a algum princípio universal, por ser o princípio mesmo do querer em geral, deve ser concebido justamente

24 Rüdiger, Bittner.Máximas. Studia Kantiana 5:7-25, 2004, pág 17

25 GMS 412

Page 26: O escopo das máximas na ética kantiana

25

como constituinte formal de todo e qualquer querer. Isto significa que o querer e o incorporar são, fundamentalmente, uma e mesma coisa e, por conseguinte, que um querer sem incorporação não é propriamente um querer.”26

Agora temos a forma geral do querer de qualquer agente racional concebível

como sendo o princípio da incorporação, contudo temos também que esta forma não

é o imperativo categórico para todo e qualquer agente concebível, como mostra o

caso dos seres puramente racionais que não agem por dever, e assim, nem por

respeito à Lei Moral. Como fazer, então, para que este imperativo que é utilizado

apenas por seres racionais finitos possa tomar princípios objetivos como seus, no

sentido de que estes possam valer para todo e qualquer ser racional concebível?

Inicialmente poderíamos pensar que o imperativo categórico poderia servir

como ponto de convergência entre ações de todos os seres racionais, devido à sua

pretensão de universalidade, contudo isso se mostraria um equívoco. A pretensão

de universalidade do imperativo categórico não tem validade efetiva, mas possível, o

que se tornará mais claro após análise de sua formulação básica: “aja somente

segundo máximas que poderiam servir como lei para todo o ser racional entendido

enquanto tal”.

Dando a devida interpretação e importância à palavra ‘poderiam’, entendemos

que tudo o que precisamos para que uma máxima possa valer para todo e qualquer

ser racional é que seu motivo seja baseado unicamente na racionalidade, isso é, que

este seja independente de influências não racionais, pois para quaisquer outros

efeitos que influenciem a escolha é concebível uma entidade racional possível que

não as possua e portanto a máxima em questão não pode ser universalizada.

Assim, se todos os seres racionais compartilhem necessariamente uma

característica, a saber, a racionalidade, derivar cursos de ações unicamente de

princípios racionais nos propicia a segurança de que todo e qualquer agente racional

concebível poderia tomar este princípio como seu, sendo este, então,

universalizável.

26 Louzado, Gerson: “A Autonomia da Vontade na Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, pág 209

Page 27: O escopo das máximas na ética kantiana

26

Como toda ação é necessariamente principiada, isso é, oriunda de um

princípio, podemos dizer que estas são instâncias particulares do princípio, que

neste sentido, se mostra um universal, no sentido de valer para todas as ações (de

determinado tipo27) do agente. Entretanto, quando se analisa os princípios quanto a

sua moralidade, considera-se que estes são, por sua vez, singulares, isso é,

instâncias de uma lei que possa valer tanto para o agente que as toma quanto para

qualquer outro agente racional concebível, de forma que o princípio que orienta as

ações (de um tipo) de um agente é agora um singular quando considerado em

contraste com a possibilidade deste valer para todos os todos os agentes racionais

concebíveis. Se este só puder valer para um agente ou um grupo de agentes

racionais, é apenas subjetivo, se puder valer também para todo e qualquer ser

racional concebível será universalizável e portanto moral.

Contudo, isso não significa que todos os seres racionais concebíveis ajam

conforme o imperativo categórico. Muito pelo contrário, ao invés de agir por

princípios cuja forma é “eu devo agir de tal e tal forma”, é concebível que entidades

puramente racionais ajam segundo princípios da forma “eu ajo de tal e tal forma”,

isso é, seu princípio não é e nem nunca poderá ser o imperativo categórico.

Para que o imperativo categórico tenha seu funcionamento efetivo, deve-se

entendê-lo da seguinte maneira: ‘Nunca aja, exceto segundo máximas que

quaisquer seres racionais concebíveis poderiam tomar como princípio para si de

maneira não contraditória com sua existência.’

Todo o ser racional, entendido enquanto tal, poderia utilizar princípios que

nós, seres humanos – e portanto agentes racionais finitos – conceberíamos sob a

forma de uma máxima universalizável, isso é, segundo o imperativo categórico.

Nosso princípio subjetivo (máxima) poderia também ser objetivo na medida em que

pudesse, sob nosso ponto de vista, valer para qualquer ser racional concebível,

embora nem todo o ser racional venha a agir segundo princípios do dever, isso é, a

lei moral não se aplica para todos de maneira imperativa, como se mostra claro na

seguinte passagem:

27 O motivo pelo qual foi especificado que as máximas lidam com a totalidade de ações de um determinado

tipo será mais claramente explicado no capítulo 6º deste trabalho.

Page 28: O escopo das máximas na ética kantiana

27

“Portanto, para uma vontade divina, e em geral para uma vontade santa, não existe imperativos da forma: ‘eu devo’, pois seu ‘eu vou’ já está ele mesmo necessariamente em concordância com a lei. Imperativos são em consequência apenas formulas para expressar a relação de objetivos da lei de vontades com a imperfeição subjetiva da vontade deste ou daquele ser racionais – por exemplo, a vontade humana.”28

28 Tradução livre de (G IV 414:39)

Page 29: O escopo das máximas na ética kantiana

28

6. Máximas como estilos de vida

Este capítulo apresenta o objetivo primário do trabalho, isto é, mostrar o que

significa entender máximas funcionando como estilos de vida e qual a relevância

desta interpretação para o entendimento da obra em questão. Contudo, antes de

apresentar tal interpretação é de suma importância clarificar o conceito de “escopo”

utilizado.

Pode-se entender o ‘escopo’ de uma máxima de diferentes formas. A máxima

pode ser abrangente no sentido de valer para um grande números de casos, como

por exemplo, a máxima de ‘sempre ajudar a quem considero merecedor’ é muito

mais abrangente do que a de ‘dar um fim a minha própria vida caso considere que

esta me propiciará mais desprazeres do que alegrias’, no sentido de que contempla

um grupo maior de possibilidades de ações.

Por outro lado, pode-se dizer que uma máxima que vale para um sujeito

como um estilo de vida é mais abrangente do que uma que o sujeito toma por querer

que valha apenas para uma ação sua, e diríamos então que a primeira é mais

primordial (para não usar o mesmo vocabulário nos dois exemplos) do que a

segunda, no sentido de que o agente a reverencia mais, isso é, a supõe como sendo

realmente um princípio e não uma ‘desculpa para agir’.

A terceira forma de se entender o escopo da máxima é ver de qual tipo de

escolha ela é princípio, se é um princípio de seleção de ações ou um princípio de

seleção de máximas, como é por exemplo o imperativo categórico que, quando

Page 30: O escopo das máximas na ética kantiana

29

aplicado, divide máximas entre meramente subjetivas e “subjetivas e objetivas”. Este

escopo, então, diz respeito ao grupo de agentes que poderia tomar esta máxima

como sendo sua (quando Kant utiliza o conceito de “máximas objetivas” ele está

tratando do escopo dos seres racionais).

De posse de tal clarificação das possibilidades de utilizações dos conceitos de

escopo das máximas, torna-se mais claro que o que se pretende ao defender que

para máximas valerem como tendo por escopo a totalidade das ações de um agente

racional, é que as únicas possibilidades de variação de escopos nas máximas se

deem quanto a sua abrangência e objetividade.

O principal motivo para optar por esta interpretação é o fato de parecer

incoerente escolher um princípio cujo escopo não se quer que abranja todas as

nossas ações futuras, pois isso acaba por esvaziar o conceito de ‘princípio’. Se o

fizéssemos, uma máxima que seja fugaz a ponto de que o agente, no momento em

que a concebe, já querê-la apenas contendo como escopo uma ação, esta nada

mais seria do que uma justificativa do porque da tomada de ação, não um princípio

que a originou.

Seria possível defender que criamos máximas para analisar as questões

sobre as quais a moralidade mostre-se questionável, de forma que não

precisaríamos arquitetar máximas para ações banais que fazemos no dia a dia,

como amarrar os tênis ou tomar sorvete. Esta interpretação, entretanto teria que

assumir que já sabemos quais casos não moralmente questionáveis, mas por algum

outro processo que não a utilização do imperativo categórico, uma vez que este

verifica a moralidade apenas através de princípios, o que não parece coerente com

o restante da obra kantiana.

Contudo, não é pretensão deste trabalho desmerecer ou criticar

interpretações que considerem máximas de outras formas, apenas mostrar que esta

interpretação do conceito de máxima é compatível com pelo menos uma

interpretação da ética kantiana contida na Fundamentação da Metafísica dos

Costumes.

A interpretação proposta também pode parecer problemática inicialmente,

principalmente quando consideramos o processo inteiro da vida de um indivíduo,

Page 31: O escopo das máximas na ética kantiana

30

posto que este pode mudar seu estilo de vida indefinidamente. A seguir será

explicado porque estes casos não são, em verdade, problemáticos, bem como se

clarificará o modo de utilização de máximas entendidas desta forma para espantar

possíveis complicações futuras.

Dizer que uma máxima tem como escopo todas as ações futuras do agente

não é o mesmo que assumir que esta seja imutável ou eterna, mas que ela é quista

como eterna no momento em que o agente a tomou como sua. Um agente pode

mudar seu ponto de vista e abandonar sua máxima e/ou substituí-la por outra

máxima sem que esta deixe de ser considerada um ‘estilo de vida’. Pode-se

simplesmente mudar de estilo de vida.

Por exemplo, um benfeitor tem como máxima ‘ajudar a todos os que

considere dignos de receber ajuda’. Contudo, sua habilidade de discernir aqueles

que são dignos daqueles que não são é muito débil, portanto ele é enganado e

passado para trás a cada vez que tenta ser bondoso, o que o faz perder a fé nas

pessoas e tornar-se uma pessoa perversa, segundo uma máxima que prega ‘causar

a todos o maior sofrimento que consiga infligir’, mesmo sabendo que adotar tal

máxima é seguir um estilo de vida condenável moralmente (ele, na verdade, não

está ligando para isso), e que seria assim para sempre e que nada jamais o faria

mudar de ideia. Seguindo essa máxima, todavia, ele começa a entender como

funciona a mente de pessoas perversas e aprimora significativamente sua habilidade

de discernimento, tornando-o apto a escolher de maneira mais precisa aqueles que

merecem sua ajuda. Contente com sua evolução, esse desiste de sua máxima

perversa e assume novamente sua postura benfeitora.

Este caso exprime a situação de uma pessoa que, embora tivesse outras

máximas (como por exemplo a de ‘acabar com sua vida quando esta causasse mais

desprazeres do que alegrias’), foi capaz de abandonar uma máxima que servia

como princípio de vida em troca de outra que também queria que valesse para todas

as suas ações futuras e que, em seguida, volta atrás e adota novamente a máxima

que seguia anteriormente.

Page 32: O escopo das máximas na ética kantiana

31

Portanto, entender uma máxima como estilo de vida significa concebê-la

como um princípio que, no momento de sua concepção, é suposto como válido para

todas as ações futuras do agente que o tomou como princípio seu.

É importante, contudo, ter-se claro que máximas comportam regras

intermediárias, como aponta Bittner na passagem a seguir:

“Neste sentido de máxima, como regra de vida, está a sua procurada universalidade (allgemeinheit). A partir disso, deve-se também compreender que ela é introduzida em todas as definições como proposição fundamental (Grundsatz), ou princípio (Prinzip), e, segundo a terceira definição, ‘tem sob si várias regras práticas’. Como projeto de uma vida toda com determinada intenção, a máxima engloba muitas ações distintas que, nas diversas situações, expõe o princípio por ela expresso de maneiras distintas”29

Embora máximas sejam princípios subjetivos que tenham como escopo todas

as ações futuras de determinado tipo de um agente, nada impede que existam

regras intermediárias que permeiem a relação destas com as ações que são

instâncias individuais destas. Por exemplo, seguindo a máxima de “auxiliar àqueles

que precisam”, escolho não tentar prestar primeiros socorros ao jovem que sofreu

um acidente de carro, uma vez que sou consciente de minha inabilidade médica, sei

que minha interferência pode prejudica-lo ao invés de auxiliá-lo. Neste caso sigo a

máxima de ‘auxiliar àqueles que precisam’ e a regra intermediária de ‘não prestar

socorro àqueles que podem se prejudicar por minhas ações’, de forma que a regra é

a forma de aplicação da máxima em um caso específico.

29 Rüdiger, Bittner. Máximas. Studia Kantiana 5:7-25, 2004, pág 14

Page 33: O escopo das máximas na ética kantiana

32

7. Complicações da Fundamentação

A Fundamentação da Metafísica dos Costumes é um tanto quanto complexa,

densa, e em alguns casos até mesmo ambígua, o que possibilita o surgimento de

uma série de complicações e problemas quando é mal interpretada.

É necessário um olhar crítico e análise profunda para evitar confusões no

entendimento do argumento que acabam por gerar conclusões um tanto quanto

difíceis de aceitar, como por exemplo a de Henry Allison, que apresenta uma

solução um tanto quanto ambígua para a passagem da liberdade negativa para a

positiva no início da terceira seção, onde este atribui à autonomia uma estrutura que

impossibilita esta de se seguir diretamente da definição negativa de liberdade30.

Este trabalho não lida com situações tais quis a que foi comentada acima.

Seu papel é meramente ilustrar o quão difícil pode ser a leitura da obra. Tratar-se-

ão, no decorrer deste capítulo, de problemas que possam vir a dificultar a

interpretação proposta da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, com

objetivo de clarificar o entendimento do ponto abordado anteriormente.

30 Conclusão retirada de “Kant’s theory of freedom” (Cambridge University Press, 1990), pág 222

Page 34: O escopo das máximas na ética kantiana

33

7.1 Adoção de máximas

Podemos encontrar dificuldades no processo de adoção de máximas, uma

vez que pode-se formular uma máxima da forma que o agente bem entender. Uma

vez que máximas sejam princípios subjetivos que podem ou não ser universalizados

(isso é, tornarem-se também objetivos), segue-se que elas podem ser criadas de

diferentes formas, de maneira que mais de uma formulação de máxima pode servir

para a mesma intenção de ação.

Por exemplo, a ação de ajudar uma senhora a atravessar a rua pode ser

seguir a máxima de ‘sempre ajudar aqueles que precisam de ajuda’, ou a de ‘sempre

auxiliar as pessoas de terceira idade’ posto que a intenção deste ao criar sua

máxima é apenas ajudar esta anciã a atravessar a rua num momento ‘x’.

Isso poderia se tornar problemático uma vez que existem ações que podem

ser compatíveis com uma máxima e não com a outra, como por exemplo, no caso de

uma pessoa de terceira idade que não precise de ajuda ou uma pessoa nova que

precise. É claro que é possível que sua máxima tenha sido mal elaborada a primeira

vez que ele a elaborou e isso não se tornaria um problema, posto que ele não

dividirá suas máximas com outras pessoas, contudo talvez uma má formulação da

máxima impeça que esta seja universalizada, mesmo que a intenção do agente ao

criá-la tenha sido seguir o imperativo categórico.

Este exemplo ressalta que um dos momentos em que criamos máximas é

quando precisamos nos orientar situações específicas em nossas vidas, nas quais

não temos certeza de qual tipo de ação devemos tomar em uma situação específica

e, como máximas valem como estilos de vida, em todas as outras situações

semelhantes que nos depararmos. Contudo, ainda que máximas sejam escolhidas

circunstancialmente, quando as criarmos, queremos que elas tenham como escopo

todas as nossas ações futuras.

O problema da elaboração de máximas pode se tornar um tanto quanto

importante na Fundamentação. O agente pode, por exemplo, alegar que segue a

máxima de ‘ajudar aqueles que precisam de ajuda’, uma máxima que parece ser boa

Page 35: O escopo das máximas na ética kantiana

34

e digna de universalização. Contudo, se considerarmos que um assassino precise

de ajuda para matar bebês indefesos, o agente poderia ajudar o assassino

acreditando estar seguindo uma máxima que é compatível com o imperativo

categórico, embora absurdo.

O que é importante ressaltar nesta situação é que a escolha de adotar ou não

uma máxima é uma ação, na medida em que escolhemos fazê-la racionalmente, o

que implicaria uma ‘máxima para quando adoto máximas’, isso é, “sempre que for

adotar uma máxima como estilo de vida para mim esta deve respeitar meus desejos

em detrimento à lei moral” por exemplo.

“Ao que parece, para que certa regra universal seja constituída como princípio pelo e para o agente, faz-se necessário o apelo a um princípio supremo que regule a adoção mesma de princípios. Isso é, sendo a autodeterminação universal da vontade um querer, o querer de uma lei para

si, ela deve responder ao modus operandi geral do querer, a incorporação.31

Esta solução não resolveria o problema de um agente adotar uma máxima

que pensa poder ser universalizada, mas que na verdade não o é. Isso, em verdade,

consistiria em um erro de aplicação do imperativo categórico. Contanto que a

intenção do agente ao adotar esta máxima não seja ir contra o imperativo categórico

(ou seja, desde que ele não esteja voluntariamente burlando a si mesmo quanto a

isto), ele estaria sendo moralmente bom ao escolher sua máxima.

Este é um ponto um tanto quanto abordado por aqueles que defendem uma

ética consequencialista, mas a discussão a respeito da defesa do

consequencialismo ético não será abordada longamente neste trabalho, sendo

apenas aqui apontada como solução possível a distinção entre moral e justiça, onde

a primeira considera somente a intenção do agente enquanto a segunda não

somente a intenção, mas também a consequência da ação.

Para exemplificar, um homem que sofreu seu primeiro ataque epilético (ou

seja, não estava ciente da possibilidade que isso ocorresse) enquanto dirigia, perdeu

o controle de seu carro e acabou causando um acidente no qual outro carro foi

destruído. Neste caso, o agente não foi imoral uma vez que não teve intenção de

31 Louzado, Gerson: “A Autonomia da Vontade na Fundamentação da Metafísica dos Costumes” pág 210

Page 36: O escopo das máximas na ética kantiana

35

causar o mal, mas acabou prejudicando o dono do outro veículo e é injusto que este

não seja ressarcido pelos danos.

Dividindo em dois os campos de responsabilidade, isso é, entre moral e

jurídica, é possível aceitar e entender mais facilmente este tipo de situação em ética

não consequencialista, como a kantiana, e ver que a escolha de máximas não é, em

verdade, um problema, quando entendemos bem o funcionamento das máximas e

princípios. Esta divisão, contudo, nem sempre é aceita totalmente, devido a uma

série de fatores, como por exemplo o fato de que normalmente a intencionalidade do

agente é considerada fator atenuante ou agravante em análises e julgamentos

jurídicos. Este trabalho, contudo, não irá se prolongar nesta discussão, sobretudo

por não ter como objetivo abordar o conceito de justiça, que pode ser um tanto

quanto complexo de ser operado. Basta aqui apontar como solução possível a

divisão dos campos moral e jurídico.

7.2 Ser imoral seguindo princípios

De posse das definições de liberdade e princípio expostos no capítulo quinto

desta dissertação, e analisando-as em conjunto com a teoria de que o princípio da

incorporação poderia funcionar como a forma geral do querer, tal qual foi

apresentado no capítulo quarto, vê-se que ‘sempre que eu quiser uma ação eu

deverei necessariamente incorporá-la a um princípio meu’.

Quando se considera, então, que os princípios subjetivos (máximas) têm

como escopo a totalidade das ações futuras, a seguinte dúvida emerge em nossos

pensamentos: Como se dá a agência imoral? Se considerarmos que sempre que

quisermos uma ação precisamos incorporá-la a um princípio, quando agimos mal

precisaremos ter também um princípio ‘mau’ que queremos que valha para o resto

de nossas vidas? Não parece coerente. Para melhor entender o funcionamento da

agência imoral será preciso tratar do conceito de princípio com maior atenção a seu

funcionamento.

Page 37: O escopo das máximas na ética kantiana

36

É importante lembrar que o princípio de incorporação vale não apenas para

ações, mas também para princípios, uma vez que este é a forma geral do querer e,

assim como eu quero as ações que realizo, devo também querer os princípios que

tomo como sentido para minha vida, logo estes também devem estar incorporados a

algo maior. Gerson Louzado deixa este ponto bastante claro no trecho que se

segue.

“Dado que as regras são universais face às ações (conformam ou podem conformar diversas ações possíveis), mas são, consideradas em si mesmas, particulares (cada regra é uma entre diversas regras possíveis), tal como ocorre em relação à adoção de um curso de ação, a adoção da regra como princípio fundamental de ação, o reconhecimento da regra como uma lei para si, exigiria que o agente a apreendesse a partir de uma perspectiva definida por algum princípio seu ainda mais fundamental, querendo assim a regra por este princípio e este princípio realizado na regra.”32

Se entendermos princípio da incorporação como sendo forma geral do querer,

teremos que querer algo significa incorporá-lo a um princípio seu, de forma que os

princípios serviriam como funções de escolha, uma vez que dizer ‘querer algo é

escolhê-lo conforme um princípio’ é o mesmo que dizer ‘o princípio foi a fórmula

utilizada para a escolha do que quero’.

O problema que estamos abordando se dá devido a uma má interpretação do

conceito de ‘incorporar’, uma vez que do fato de utilizarmos um princípio para tomar

como nossas certas ações não se segue que estas concordem com o mesmo,

apenas que foram selecionadas em sua função.

Para exemplificar este argumento, suponhamos um conjunto de números

inteiros que contenha os algarismos ‘1’, ‘2’, ‘3’, ‘4’ e ‘5’ (vide figura 1, ilustrada

abaixo). Poderia escolher randomicamente um número deste grupo – ‘3’ digamos,

sem o auxílio de nenhum princípio33.

32 LOUZADO, Gerson, “A Autonomia da Vontade na Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, pág 211

33 Aqui não estou me preocupando com a possibilidade de uma “escolha randômica”. Para todos os

efeitos poderíamos supor que programamos um computador para escolher um número com um

padrão de repetição próprio que é por nós desconhecido, e ainda assim o argumento funcionaria da

mesma maneira.

Page 38: O escopo das máximas na ética kantiana

37

1 23 4

5

1 23 4

5

Figura 1

Figura 1:Escolha aleatória

O número três foi elencado aleatoriamente dentre o conjunto dos algarismos ‘1’, ‘2’, ‘3’, ‘4’ e ‘5’.

Podemos, contudo, utilizar um princípio de seleção para escolhermos

números deste conjunto. Suponha que o que precisamos seja um exemplo de

número par. Neste caso, o princípio de seleção dividiria os números possíveis entre

pares e ‘não pares’34, isso é, conforme o princípio de paridade. Se o fizéssemos,

obteríamos como resultado que os números ‘2’ e ‘4’ estão em um subgrupo e os

números ‘1’, ‘3’ e ‘5’ estão em outro35,conforme demonstrado na figura 2, abaixo:

1 2

3 45

1 2

3 45

Figura 2 PAR I DAD E

Figura 2: Princípio de Paridade

34 Preferi não utilizar o conceito de “impar”, pois isso poderia implicar uma analogicamente o uso de

um outro princípio, o que poderia levar meu exemplo a gerar mais confusões do que clarificações. 35 Figura 2

Page 39: O escopo das máximas na ética kantiana

38

Utilizar o princípio de paridade para selecionar números não requer nem ao

menos que de fato escolhamos um número, apenas nos fornece um princípio para a

seleção e divisão dos números, o que implica que utilizar um princípio não significa

seguí-lo. Seguindo com este exemplo hipotético, poderíamos selecionar tanto

números pares36 quanto “não pares”37 sem abandonar o princípio de paridade.

1 2

3 45

1 2

3 45

Figura 3 PAR I DAD E

Figura 3: Conformidade ao Princípio de Paridade

Escolhendo o número ‘2’, que é par, utilizando o princípio de paridade, isso é, em sua conformidade.

1 2

3 45

1 2

3 45

Figura 4 PAR I DAD E

Figura 4: não conformidade ao Princípio de Paridade

Escolhendo o número ‘3’, que é impar, utilizando o princípio de paridade, isso é, utilizando o princípio sem seguí-lo.

36 Figura 3 37 Figura 4

Page 40: O escopo das máximas na ética kantiana

39

De modo análogo, quando escolhemos agir de maneira contrária a um

princípio, não precisamos necessariamente abandoná-lo, podemos apenas escolher

não segui-lo neste exato momento. Esta escolha será sempre racional, podendo ser

baseada no próprio princípio (conforme foi ilustrado na figura 4) ou por outro

princípio que consideramos mais importante. Por exemplo, podemos imaginar um

sujeito que siga o princípio de ‘auxiliar aqueles que necessitam de ajuda’ até se

deparar com um assassino que precise de ajuda para extinguir com a raça humana,

quando percebe que sua máxima precisa de reformulações. Este, então, a

abandona e assume uma nova máxima, a de ‘auxiliar inocentes que precisem de

ajuda’.

O exemplo utilizado acima é bastante interessante, pois traz à tona outro

problema: Se um agente segue uma máxima que não pode ser universalizada sem

se dar conta do que está fazendo, este seria imoral? Não parece sensato.

Primeiramente, a agência puramente racional não é necessariamente perfeita,

uma vez que podemos conceber um agente puramente racional, mas racionalmente

debilitado. Com isso temos que, embora o processo proposto pelo imperativo

categórico possa ser infalível, nada impede que o agente cometa um erro de

aplicação do mesmo, assim como crianças que conhecem o processo de divisão

podem errar cálculos complicados por não conseguirem aplicá-la em determinadas

situações.

O importante neste ponto é frisar que a máxima foi escolhida segundo o

processo do imperativo categórico e que deverá ser alterada assim que o agente se

de conta de seu equívoco, caso aconteça. Isso pode parecer contraditório a

princípio, contudo quando pensamos nesta situação como outra versão do exemplo

dado por Kant do ‘incompetente moral’, vemos que tudo o que está ocorrendo é um

deslocamento no erro do agente que, ao invés de executar a ação de maneira

equivocada, executa a escolha da máxima de maneira equivocada, embora

utilizando ainda o imperativo categórico.

Page 41: O escopo das máximas na ética kantiana

40

8. Conclusão

Este trabalho apresentou, em linhas gerais, a possibilidade de interpretarmos

o conceito de máxima como sendo um princípio que, quando adotado, possui como

escopo todas as ações futuras do agente que a toma como sua, em conjunto com

uma interpretação plausível da obra kantiana, tal qual é apresentada na

Fundamentação da Metafísica dos Costumes.

Primeiro foi preciso entender o que exatamente é escopo da máxima,

diferenciando escopos que dizem respeito ao período que queremos seguir a

máxima, quantidade de seres racionais a quem a máxima poderia valer e a

quantidade de casos aos quais a máxima se aplica. Com isso é possível clarificar

que, quando se diz que o escopo das máximas de um agente, quando

considerando-as estilos de vida, se está fazendo referência especificamente ao

período que se quer que a máxima tenha valor para todo o nosso escopo de vida,

isso é, que valha como um estilo de vida.

“Máximas são regras de vida: elas expressam que tipo de ser humano eu quero ser – alguém que ninguém pode insultar impunemente; ou alguém a quem não interessa nenhuma necessidade alheia; uma vida de avareza, ou uma vida de gozo. Elas contêm o sentido de minha vida; nomeadamente quando ‘sentido’ não é entendido como realização transcendente, mas simplesmente como a maneira pela qual penso a vida como um todo, ‘sentido’ entendido não como fim, mas como orientação.”38

38 RÜDIGER BITTNER, “MÁXIMAS”, págs 13 e 14

Page 42: O escopo das máximas na ética kantiana

41

Quando se considera uma máxima como tendo tal escopo, é preciso

considerar o Princípio da Incorporação sendo entendido como forma do querer em

geral, isso é, que querer algo é incorporá-lo a um princípio seu. Se não fizermos

essa consideração enfrentaremos dificuldades de explicar a possibilidade de utilizar

o imperativo categórico como fórmula de seleção de princípios para seres racionais

finitos tais quais os seres humanos, uma vez que deve haver algo de comum entre o

processo de agência entre todos os seres racionais concebíveis e ao mesmo tempo

que nem todos utilizem o imperativo categórico como interpretação da lei moral.

Com o princípio de incorporação elencado como forma geral do querer (ou

forma de qualquer ‘querer’ provindo de qualquer criatura racional concebível), pode-

se mostrar como a lei moral se relaciona com todos os seres racionais, isso é,

através da forma com a qual eles incorporam suas escolhas a seus princípios.

“Nessa resolução, autonomia significa, analogamente, que a vontade, conciliando-se consigo mesma, quer ao mesmo tempo a máxima particular e a regra universal da mesma, e aquela devido a esta; portanto, quer a máxima enquanto regra universal e com vistas a ela. Segundo seu conteúdo, a máxima é já de alta universalidade, a saber, princípio de toda uma vida. Ela é particular apenas por intermédio de sua forma [- de valer apenas em razão da minha decisão para minha vida, portanto por intermédio de sua subjetividade.”39

Assim, sabendo como a lei se aplica, pode-se utilizar o imperativo categórico

para selecionar quais máximas podem ser universalizadas, não por qualquer ser

racional concebível se valer do mesmo princípio de seleção de princípios, mas

devido ao fato de todos necessariamente utilizarem interpretações da mesma lei - a

saber, a lei moral - ajustada para sua realidade, tal qual o imperativo categórico é

ajustado a seres racionais finitos dotados de sentidos e sentimentos, isso é,

conectados ao mundo sensível.

A racionalidade tem como lei a Moralidade, que é interpretada para entidades

racionais de maneira diferente, conforme sua forma de acessá-la. Seres humanos

são agentes racionais finitos que compartilham a racionalidade com a sensibilidade,

e a interpretam como sendo um imperativo do dever, isso é, o imperativo categórico.

39 Rüdiger, Bittner. Máximas. Studia Kantiana 5:7-25, 2004, pág 23 e 24.

Page 43: O escopo das máximas na ética kantiana

42

“Querer uma regra geral qualquer como princípio já é querê-la como válida universal e necessariamente no domínio subjetivo de ações do agente. O que cabe ao princípio supremo estabelecer, porém, é justamente como algo, uma regra, vem a ser querida deste modo. A universalidade, portanto, a que pode fazer referência o princípio supremo, só poder ser intersubjetiva: querer uma regra geral como um princípio é querer uma regra que possa ser adotada como princípio subjetivo de ação por todo e qualquer agente racional enquanto racional, é querê-la exatamente por ser objetivamente válida.”40

Embora o imperativo categórico não represente a forma geral de todo o

querer, este é a forma geral de todo o querer de seres racionais finitos. A

universalidade por este proposta é a nossa forma de entendermos e interpretarmos

a lei moral, e é esta universalidade por ele proposta que pretendemos abranger

nossas máximas quando agimos conforme o imperativo categórico e que possa

servir como modelo de seleção de ações para todo e qualquer ser racional

concebível.

Com o imperativo categórico, que é então um princípio de seleção de

princípios, escolhemos quais máximas incorporaremos, uma vez que o princípio de

incorporação é a forma geral do querer. Em seguida, incorporaremos ações a esta

máxima. Se seguirmos o imperativo categórico na seleção de máximas, nossas

máximas poderão ser universalizadas e as ações que incorporarmos a estas

máximas serão morais, se ambas estiverem em concordância.

Se, por outro lado, incorporarmos ações a máximas ou máximas ao

imperativo categórico por discordância, ou seja, utilizando o princípio seletor para

dividir o campo de ações entre aquelas que estão em conformidade com o princípio

e aquelas que não estão e escolhemos aquelas que discordam do princípio de

seleção, estaremos agindo de maneira imoral e estaríamos cientes disso.

Com os conceitos clarificados de princípio e liberdade em conjunto com a

teoria de que a forma geral do querer é o princípio da incorporação e o conceito de

máxima tendo como escopo todas as ações futuras do agente, isso é fomos capazes

solucionar uma série de dificuldades que muitos intérpretes e leitores de Kant

enfrentam, como a possibilidade da agência imoral racional e o fato de podermos

criar máximas da maneira que quisermos para nossas ações.

40 LOUZADO, Gerson, “A Autonomia da Vontade na Fundamentação da Metafísica dos Costumes” pág 212

Page 44: O escopo das máximas na ética kantiana

43

Concluímos, por fim, a Fundamentação da Metafísica dos Costumes pode ser

interpretada conjuntamente com o conceito de máximas valendo como estilos de

vida, assim como proposto por Rudiger Bittner, não apenas sem incompatibilidades,

mas de maneira bastante clara e livre de uma série de problemas enfrentados por

outras interpretações.

Page 45: O escopo das máximas na ética kantiana

44

9. Referências bibliográficas

ALLISON, H. Kant's Theory of Freedom. Nova York: Cambridge University Press, 1991. H.J.PATON. “The Moral Law”, Groundwork of the Metaphysic of Morals. Routledge.

First published (1948)Twenty-third impression, (1989).

KANT, I. A Religião nos Limites da Simples Razão. (1793). Edições 70, LDA. 2008

_______. Crítica da Razão Prática. (1788). Edições 70, LDA, 2008

_______. Crítica da Razão Pura. (1781). Editora Nova Cultural, 1996

_______. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785). Edições 70, LDA.

Maio de 2008.

RAUSCHER, F. Freedom and reason in Grondwork III. In: Jens Timmermann (2007).

Kants' Groundwork of the Metaphysics of Morals: A Commentary. Cambridge

University Press.

Louzado, L. Gerson. A Autonomia da Vontade na Fundamentação da Metafísica dos

Costumes. LINUS editores, Ensaios sobre Kant, 2012

BITTNER, Rüdiger. Bielefeld, Máximas In: Studia Kantiana volume 5 número 1,

novembro de 2003,ISSN 1518-403X