O Espaço de Entrecruzamento Das Palavras a Relação Médico-paciente

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    O espao de entrecruzamento das palavras: a relao mdico-paciente

    The intersection space of words: the doctor-patient relationship

    El espacio de la interseccin de las palabras: la relacin mdico-paciente

    Armando Henr ique Norman, MSc. Mdico de Fam lia e Comunidade. Departamento de Antropologia , Universidade de Durham. Durham, Reino Unido.

    [email protected] (Autor correspondente)

    Como citar:Norman AH. O espao de entrecruzamento das palavras: a relao mdico-paciente.Rev Bras Med Fam Comunidade. 2015;10(35):1-3. Disponvel em:http://dx.doi.org/10.5712/rbmfc10(35)1141

    Fonte de financiamento:declara no haver.

    Parecer CEP:no se aplica.

    Conflito de interesses:declara no haver.

    Recebido em: 21/05/2015.Aprovado em: 22/05/2015.

    EDITORIAL

    Livros e revistas oferecem apenas ideias genricas, esboos (mais ou menos bem sucedidos) dascorrentes gerais na vida do mundo, mas no podem dar a impresso direta, imediata e vvida davida de Pedro, Paulo e Joo, dos nicos e reais indivduos e, a no ser que se possa entend-los, nose poder compreender o que est sendo universalizado e generalizado. (p. 165)

    Antonio Gramsci1

    A Revista Brasileira de Medicina de Famlia e Comunidade (RBMFC) nesta edio especial de Volume10 nmero 35, aborda o tema da Preveno Quaternria (P4), que passou a fazer parte dos descritoresda Bireme (DeCS) em 06/04/2015, graas a iniciativa da RBMFC.2,3Assim, novas palavras comeama ganhar forma e fora como discurso contra-hegemnico dentro da prpria medicina por meio da

    liderana moral e intelectual4

    de pesquisadores e mdicos prticos. A ilustrao da capa, intituladaPalavras da Preveno faz referncia importncia de certos termos no campo da preveno, bemcomo aos vrios temas discutidos na presente edio. De certa forma, por meio da linguagem e douso das palavras que se sustenta a prtica da medicina de famlia, calcada na relao mdico-paciente.Esta se constitui como um dos cernes da especialidade e tem a palavra como potencializadora deatividades de preveno quaternria. As palavras, muitas vezes, podem causar iatrogenia, ao se rotularou transformar potenciais riscos em doena, e assim gerar dvidas e medos nos pacientes pela produode pseudodoenas. Mas tambm por meio das palavras que se pode tranquilizar e produzir efeitosteraputicos positivos nos pacientes. Portanto, a palavra como um dos pilares da comunicao, necessitaser adequadamente trabalhada para facilitar o entendimento entre profissionais de sade e pacientesdurante a troca de informaes. a partir da relao mdico-paciente, espao de entrecruzamentodas palavras, que se constri no cotidiano a preveno quaternria.

    A presente edio especial uma construo coletiva liderada brilhantemente pelo editor convidado,Dr. Marc Jamoulle, idealizador do conceito da P4. O entusiasmo e dinamismo do Dr. Jamoulle emfortalecer uma rede internacional de pesquisadores e mdicos de famlia preocupados com os excessosda medicina foi fundamental para a materializao desta edio. Se da dimenso epidemiolgica edos ensaios clnicos surgiram provas cientficas quanto aos efeitos danosos do sobrediagnstico esobretratamento, foi do campo da prtica dos mdicos de famlia que surgiu o conceito da prevenoquaternria. Hoffman e Wilkes afirmam que a P4 oferece um novo paradigma, ao insistir que o danomdico est longe de ser algo trivial ou uma preocupao secundria. A preveno quaternria a resposta

    http://dx.doi.org/10.5712/rbmfc10(35)1141http://dx.doi.org/10.5712/rbmfc10(35)1141
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    prtica, concreta e possvel para o enfrentamento cotidiano de uma epidemia iatrognica velada resultante do intervencionismoda biomedicina e do domnio da informao. Nesse sentido, esta edio aborda alguns dos temas relativos prtica mdicaao discutir os fenmenos decorrentes dos excessos da medicina, rotulados pelo prefixo em ingls over.

    A seo de artigos originais inicia a temtica da P4 no campo da semntica com os artigos de Jamoulle et al. The wordsof prevention, part I: changing the modele The words of prevention, part II: ten terms in the realm of quaternary prevention .

    O primeiro artigo revisita os conceitos e definies das prevenes primria, secundria, terciria e quaternria destacandoa necessidade de mudana de paradigma de uma perspectiva temporal-linear para uma perspectiva co-construtivista,fundamentada na relao com o outro. J o segundo artigo, sinaliza para a necessidade da incluso nas bases de dadoscientficas de termos importantes para o campo da medicina, tais como: sobrediagnstico e sobretratamento, incidentalomas,sobrerrastreamento, desprescrio, sobremedicalizao, entre outros. Alguns desses termos mereceram aprofundamento:Gmez Santana et al. discorrem sobre o uso criterioso da desprescrio como medida de preveno quaternria; Pizzanellidefine e aborda questes importantes relativas ao tema do sobrerrastreamento; e Mario traz uma reviso sobre o temados incidentalomas e suas implicaes na prtica mdica. J Cardoso, discute e contextualiza o tema da medicalizao(e sobremedicalizao) e os desafios da prtica da P4, visto que de certa forma, todos esses neologismos tm como base oexcesso da prtica e da extrapolao da jurisdio mdica.

    Um dos campos mais sensveis de medicalizao o da sade mental. Sendo assim, Lobo e Bernstein discutem as

    particularidades e desafios na abordagem dos pacientes em sofrimento psquico. Os autores questionam o potencial dedanos, tanto das abordagens psicoterpicas como medicamentosas, e oferecem algumas alternativas a serem consideradas,tais como o fortalecimento da relao mdico-paciente e a desprescrio. Como exemplo dos riscos da medicalizao nocampo da sade mental, Jean-Claude St-Onge faz uma anlise crtica do transtorno de dficit de ateno e hiperatividade(TDAH) alertando sobre os riscos e potenciais consequncias do sobrediagnstico e do sobretratamento. Ainda no campoda medicalizao, Tesser et al. discutem o tema da violncia obsttrica no Brasil e as taxas escandalosas de cesarianas, almde proporem alternativas de aes de P4, tanto a nvel da Ateno Primria Sade (APS) como a nvel institucional.

    Nas dimenses epistemolgica, filosfica e tica da P4, esta edio especial nos convida a refletir e a pensar alternativastanto na prtica da medicina como nas atividades acadmicas. Assim, Widmer fornece as bases filosficas da P4 comosubsdio ao pensamento crtico sobre o conhecimento mdico (Epistemologia) e as aes em sade (tica). Perpassando essetema, Mangin e Heath ressaltam a importncia da preveno quaternria frente a pacientes com quadro clnicos mltiplose complexos, em que modelos ou protocolos fundamentados em uma abordagem de doena-nica so poucos efetivos epotencialmente danosos. Por outro lado, Wagner et al .apontam para os conflitos de interesses na construo das evidnciascientficas e na manipulao dos dados de pesquisas para favorecer os interesses das corporaes do setor farmacolgico edo complexo mdico hospitalar. Por sua vez, Yver discute a influncia da biotecnologia e do complexo frmaco-industrialna rea da patologia clnica para estabelecer pontos de corte da positividade do teste imunohistoqumico HER-2 e o uso doHerceptin (Trastuzumab) para tratamento do cncer de mama. Fazendo um contraponto produo cientfica em medicina,De Jonghe traz um relato de experincia da aplicao da preveno quaternria como um guia para o corpo editorial deuma revista de Medicina Baseada em Evidncia (MBE), destacando a responsabilidade tica e os desafios na produo deconhecimento na rea da sade.

    Na prtica educativa e acadmica da medicina, Tran e Vo discutem o impacto da introduo da P4 para estudantesdo quinto ano do curso de medicina da universidade de Pham Ngoc Thach, Hochiminh, Vietn. Os autores ressaltam opotencial positivo de mudana de comportamento na prtica dos estudantes ao assimilarem os conceitos da P4. Em umaperspectiva de fortalecimento da preveno quaternria como contedo mdico-acadmico, Gomes et al. propem umguia terico-prtico para a implementao da P4 na formao de mdicos, tanto na graduao como nos programas deresidncia em medicina de famlia. Por fim, Norman e Tesser fundamentam uma proposta de operacionalizao da P4 narelao mdico-paciente, estruturada por meio do modelo de consulta aprimorado de Calgary-Cambridge. O artigo pretendecriar uma base conceitual e instrumental para facilitar a incluso da P4 na consulta dos mdicos de famlia, que uma vezinternalizada poderia contribuir para diminuir os excessos da medicina.

    A organicidade intelectual de Gramsci, exemplificada na epgrafe deste editorial, tem forte paralelo com a prtica damedicina de famlia, visto que esta sempre desconfiou das generalizaes e da universalizao da biomedicina. Com oadvento da MBE ocorreu uma proeminncia de estudos populacionais, que de certa forma amplificou o pensamento abstrato,tornando annimos os pacientes. Exemplo disso est no ndice de Sobretratamento como ferramenta til para a medicinade famlia na tomada de deciso clnica, descrito por Pezeshki e Pezeshki. Esse novo contexto agora requer do mdico prtico

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    saberes especficos que possam fortalecer uma prtica mdica dialgica entre os polos objetivos e subjetivos do encontroclnico.5O primeiro se refere construo do saber biomdico e materialidade dos corpos, o segundo particularidadedos indivduos, na sua dimenso biopsicossocial. A preveno quaternria tem como parmetro para intervenes mdicasa relao com o paciente, tanto nos seus aspectos subjetivos como objetivos, ao mesmo tempo em que desmistifica o sabermdico ao situ-lo como um instrumento subserviente dimenso humana.

    Por fim, esta edio evidencia o processo de aprimoramento da RBMFC, que cada vez mais se define como um peridicovoltado para as questes da MFC e da APS, dialogando internacionalmente com seus pares na busca por alternativas ticas pesquisa e prtica em medicina. Esta edio tambm revela o carter independente do peridico, visando contribuirpara o conhecimento dos profissionais da rea da APS, bem como de leitores interessados na temtica da sade e dos abusosdo setor das indstrias frmaco-biomdicas. A RBMFC, portanto, mantm seu compromisso com os mdicos de famlia,com os profissionais da sade e acadmicos envolvidos na construo de uma APS forte e de sistemas pblicos de sade dequalidade, ao produzir esta edio especial sobre a preveno quaternria.

    Referncias

    1. Crehan K. Gramsci, culture and anthropology. London: Pluto Press; 2002.

    2. Pan-American Health Organization (OPAS); World Health Organization (WHO). J est disponvel a verso 2015 do DeCS. Braslia: OPAS; 2015[acesso em 2015 May 21]. Disponvel em:

    http://www.paho.org/bireme/index.php?option=com_content&view=article&id=283%3Aja-esta-disponivel-a-versao-2015-do-decs&Itemid=73&lang=pt

    3. Pan-American Health Organization (OPAS); World Health Organization (WHO). DeCS 2015 Novidades. Braslia: OPAS; 2015

    [acesso em 2015 May 21]. Disponvel em: http://decs.bvs.br/P/visaogeral2015.htm

    4. Kurtz DV. Hegemony anthropology: gramsci, exegeses, reinterpretations. Crit Anthropol. 1996;16(2):103-35.

    http://dx.doi.org/10.1177/0308275X9601600202.

    5. Heath I. Arm in arm with righteousness. Philos Ethics Humanit Med. 2015;10(7):1-4.

    http://dx.doi.org/10.1186/s13010-015-0024-y.PMid:25903168.

    http://dx.doi.org/10.1177/0308275X9601600202http://dx.doi.org/10.1186/s13010-015-0024-yhttp://www.ncbi.nlm.nih.gov/entrez/query.fcgi?cmd=Retrieve&db=PubMed&list_uids=25903168&dopt=Abstracthttp://www.ncbi.nlm.nih.gov/entrez/query.fcgi?cmd=Retrieve&db=PubMed&list_uids=25903168&dopt=Abstracthttp://dx.doi.org/10.1186/s13010-015-0024-yhttp://dx.doi.org/10.1177/0308275X9601600202