O Espadachim de Carvao - Affonso PDF

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  • Ficha Tcnica

    Copyright 2013 Affonso SolanoCopyright 2013 Casa da Palavra

    Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.2.1998. proibida a reproduo total ou parcial sem a expressa anuncia da editora.

    Este livro foi revisado segundo o Novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa.Direo editorial: Martha Ribas e Ana Cecilia Impellizieri Martins

    Coordenador do selo Fantasy: Raphael DracconEditora: Fernanda Cardoso Zimmerhansl

    Editora assistente: Beatriz SarloCopidesque: Lusa Ulhoa

    Reviso: Rodrigo RosaIlustraes do miolo: Affonso Solano

    Capa: Rico BacellarIlustrao de capa: Ralph Damiani

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJS669e

    Solano, AffonsoO espadachim de carvo / Affonso Solano. - Rio de Janeiro : Casa da Palavra, 2013.

    ISBN 97885773435081. Fico brasileira. I. Ttulo.

    13-0342 CDD: 869.93CDU: 821.134.3(81)-3

    casa da palavra produo editorialAv. Calgeras, 6, 1001 Rio de Janeiro RJ 20030-070

    21.2222 3167 21.2224 [email protected]

    www.casadapalavra.com.br

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  • Para minha vov Eneida, que sempre gostou dos meus monstros.Para minha me, que me fez gostar de ler.

    Para meu pai, que me levou em muitas aventuras.Para meus irmos, meus companheiros de brincadeiras.

  • Adapak

    Qualquer coisa pode ser morta. Basta acert-la no lugar certo.

    Tamtul, em Tamtul e Magano contra a ampulheta da Rainha Esttua.

    O FILETE DE LUZ atingiu as plpebras de Adapak, alfinetando-lhe a conscincia. Ele desviou orosto da fresta por onde a lua espiava, piscando enquanto a memria o informava da situao.

    Bosta.

    Adormecera. O espadachim amaldioou o corpo cansado e girou a cabea cuidadosamente paraos lados, sentindo a dor lhe escorregar pela coluna vertebral, punindo-o pelo descuido. Tinhacometido um erro grave.

    Quanto tempo havia perdido? Daquele esconderijo, o jovem de 19 ciclos de idade no tinhacomo saber: a pouca luminosidade que penetrava no depsito era graas s brechas e falhas namadeira das paredes, porta e janela, perfurando as trevas como lanas plidas querendo feri-lo.O lugar contava cerca de 7 passos de comprimento por 5 de largura, abrigando um par de estantescom instrumentos de jardinagem, selas, sacos de adubo e rao envelhecida quem quer quetenha construdo o aposento abandonara-o h vrios ciclos, deixando a madeira podre convidar omofo e a poeira para ali morar.

    Irritado, Adapak se levantou, cauteloso quanto ao ranger das tbuas do cho; qualquer barulho,por mais baixo que fosse, era um direito que ele havia perdido. De sentado passou paraajoelhado, colando o ouvido na parede leste: insetos orquestravam sua melodia noturna e nadamais.

    Espere.

    As tbuas da janela dobraram-se violentamente para dentro do depsito, cuspindo farpas porcima de sua cabea. O segundo impacto foi ainda mais forte, permitindo que a luz adentrasselivremente em feixes brancos, queimando a escurido. Adapak moveu o corpo para o canto edesembainhou uma de suas espadas gmeas, Igi. A lmina de osso despertou com um silvo aodeslizar no forro da bainha, implorando para que sua superfcie perfeitamente branca logo fossemaculada. Um terceiro baque agora destrua completamente o que antes era a janela do aposento,abrindo um rombo grosseiro para o mundo exterior.

    Um deles entrou.Guiada pelas experientes mos do espadachim, a lmina de Igi projetou-se em linha reta,

    atravessando o crnio da guandiriana pela tmpora direita. To rpido quanto entrara, retrocedeu;colorindo as paredes com sangue e massa cerebral. Os dedos compridos da invasora largaram agrande maa de osso que empunhava, acompanhando o corpo pesado e sem vida que desabou

  • desajeitadamente para dentro do depsito.As pernas de Adapak o recuaram para longe do rombo que havia sido aberto e ele encarou a

    criatura: espiges e placas encouraadas brotavam de sua grossa pele vermelha-escura,desenhando-lhe uma grotesca armadura natural ao longo do corpo magro e desnudo de poucomais de 8 cascos de altura. Por conta da deformidade sbita que a cabea havia sofrido, o par deolhos involudos havia saltado das rbitas e as enormes orelhas pendiam frouxas e rasgadascomo velas de navio aps uma intensa tempestade. A mandbula, no entanto, ainda preservava aexpresso congelada no ltimo espasmo de vida, arreganhando a arcada de dentes irregulares.Ainda que a plvis da guandiriana estivesse voltada para baixo, o espadachim pde concluir semdificuldade que aquela era uma das fmeas-soldado, uma vez que sua coroa de chifres havia sidoserrada e as placas encouraadas no exibiam as tpicas tatuagens escavadas dos machos de altoescalo.

    Nascidos para a violncia, Adapak refletiu, limpando a lmina com a palma calejada.E ento vieram os guinchos.Eles invadiram o depsito com uma intensidade ensurdecedora, ecoando pelas paredes e

    agulhando os tmpanos do espadachim. Ele tapou os ouvidos e estimou no mnimo cinco deles lfora, emitindo o som insuportvel para que pudessem enxerg-lo.

    Assim que cessaram, os guinchos foram substitudos por frases do lder em sua lngua-me,ordenando s subordinadas que adentrassem o lugar. Adapak as ouviu protestar e se permitiu umsorriso sutil de vitria; ele era consciente da natureza bruta dos guandirianos, mas sabia tambmque o medo do desconhecido fazia parte de quase todas as espcies de Kurgala e seus inimigosno eram exceo; tinham visto um dos seus entrar naquele pequeno armazm e ter a cabeadestroada agora temiam o mesmo destino.

    Acompanhados de mais guinchos, dois estrondos vieram das paredes sul e oeste, sacudindo olugar inteiro. As criaturas sentiam o cheiro de Adapak, mas o retorno de som no lhes dava sualocalizao exata ento iam derrubar a estrutura inteira at que ele fosse obrigado a sair (oumorresse sufocado sob os escombros). O rapaz ignorou a dor nos ouvidos e vasculhou o cenrioem busca de opes: a janela por onde ele tinha entrado no incio da noite era agora um rombovigiado. A porta da parede norte ostentava um pesado trinco pelo lado de fora e o teto norevelava nenhuma portinhola. O prximo golpe empurrou a parede sul de tal maneira que aestante a sua frente por pouco no tombou.

    Isso.

    Adapak embainhou Igi ao lado da irm Sumi e agarrou o mvel. Forou-o para frente, mas erapesado demais. Apoiou uma das botas na parede e duplicou o esforo.

    Por favor.

    A estrutura tombou, trazendo com ela os instrumentos, sacos de adubo e rao h muitoesquecidos nas prateleiras. Os dois ltimos se abriram com o impacto no solo e se misturaram grossa cortina de poeira que se ergueu com o estrondo. Os ataques cessaram, mas os guinchos no Adapak transformou o esconderijo em um sbito amlgama de cheiros e ecos misturados,confundindo seus algozes temporariamente. Com isso em mente, ele desembainhou ambas as

  • espadas e espiou o lado de fora atravs do buraco na parede.A lua de Sinanna derramava sua luz plida sobre a clareira do bosque, cujos nicos indcios de

    civilizao eram a casa abandonada do antigo morador do terreno, uma velha carroa sem rodase o depsito onde o espadachim se encontrava encurralado em frente a este, duas fmeas-soldado guinchavam exaustivamente, movendo as narinas verticais e as orelhas avantajadas embusca de informaes. As lminas de osso de suas espadas eram amareladas, o que sugeria aconfeco a partir de anbrr muito jovens.

    Armas de baixa qualidade. Isso bom.

    Logo atrs das fmeas estava o macho-lder: o mais alto, mais encouraado e mais inteligentedo grupo. Uma coroa de chifres lhe adornava a cabea angulosa, alertando o mundo sobre seupotencial hostil. Ele portava uma rstica clava de osso amarrada cintura e tinha a couraamarrom repleta de tatuagens escavadas, expressando sua posio privilegiada no mapa dahierarquia guandiriana.

    Havia algo mais, no entanto.No pescoo da criatura pendia um cordo de couro simples, cuja ponta segurava uma espcie

    de cristal esverdeado em forma de meia-lua. O pequeno artefato parecia ter sido amarrado deforma improvisada, com fios pudos cruzando entre si e ocultando parte da superfcie.

    Aquela era uma relquia Dingir.

    Adapak estremeceu. Aquilo era ruim, muito ruim. Ele teria que neutralizar o guandirianotatuado antes dos outros se quisesse aumentar suas chances de sobrevivncia.

    Pense.

    Atrs do espadachim os ataques s paredes recomearam. Seu corao ecoava a contagemregressiva do confronto.

    Rpido.

    A espada Sumi partiu do buraco no depsito como uma flecha, cortando o ar em linha reta atcravar com um baque seco no trax encouraado do lder, por pouco no acertando a relquia. Acriatura mal comeou a compreender o que tinha lhe acontecido quando Adapak saltou para forada estrutura, passou correndo entre as duas fmeas atnitas e pulou sobre o guandiriano,forando-o a tombar para trs enquanto arrancava a espada de seu trax e passava por cima docorpo, aterrissando na grama logo atrs.

    Arfando, o espadachim se virou para encarar os inimigos. Os Crculos surgiram em sua mente,se preparando para os clculos.

    Comece.

    As duas fmeas avanaram aos guinchos, deixando o macho ainda atordoado no solo. Igi eSumi rechaaram as investidas iniciais com uma rpida sequncia de floreios que culminou com

  • uma das guandirianas tendo sua espada partida e perdendo dois dedos da mo esquerda. Adapakfalseou um passo para o lado e a outra oponente arriscou uma estocada onde achou que eleestaria: a arma errou o alvo gil quando este girou o corpo para o lado oposto, rasgou-lhe com Igia lateral do pescoo desprovido de placas encouraadas e desceu a afiada lmina de Sumi nojoelho direito, perfurando-lhe a juno com um esguicho vermelho. Adapak puxou as espadas edeixou o cadver cair, ciente de que a guandiriana que perdera os dedos recuperara a armaquebrada com a outra mo e j investia um novo ataque; ele encurtou a distncia e a decapitouantes mesmo que o golpe completasse o movimento pretendido.

    Ao tombar do segundo corpo, os Crculos se reconfiguraram na mente do espadachim e elelimpou o sangue de Igi e Sumi. Esculpidas a partir do mais lvido osso de anbrr, as lminasgmeas desenhavam curvas suaves e pontas irregulares atravs dos 4,5 cascos de comprimento. Opar de hastes onduladas da guarda protegia a empunhadura envolta em um complexo tranado detiras de couro, terminando em uma pequena escultura representando a cabea de um ushariani,cuidadosamente detalhada e pontuada com trs pequeninas joias no lugar dos olhos: as de Igi,azuis; as de Sumi, verdes.

    Passos dali, o lder guandiriano se ps de p. A placa encouraada do peito esquerdo agoraexibia uma rachadura extra onde Sumi havia penetrado. No foi fundo o suficiente para feri-lo,Adapak lamentou, vendo a criatura tatuada desamarrar a clava da cintura enquanto dois outroschegavam correndo e guinchando da parte traseira do depsito, movimentando as grandes orelhase brandindo espadas amareladas. Um deles tambm era macho.

    Ah, Bosta.

    Eles pararam ao lado do lder, que farejou na direo do espadachim e proferiu: Ikibu.Adapak sentiu o pescoo retesar ao ouvir a palavra. As trs magras criaturas o estudaram e

    guincharam uma para outra, cientes das irms assassinadas e hesitantes sobre como proceder.Adapak calculou mentalmente sua posio no cenrio: s suas costas estava a Casa Abandonada,mas a ltima coisa que precisava era se encurralar em um lugar fechado e escuro outra vez.

    E ento o macho-lder segurou o cristal esverdeado da ponta do cordo.Ele levou a relquia tmpora esquerda e comeou a urrar com fora, fazendo as veias do

    pescoo incharem como vermes bem alimentados. A fmea e o macho menor guincharam, deramum passo para trs e abaixaram a cabea quando uma desconfortvel vibrao tomou conta dobosque. Um silvo agudo soou no ar.

    A varanda. A casa tem uma varanda. Corra.

    O jovem disparou na direo da casa, ganhando alguns segundos antes que seus passos odenunciassem para os inimigos. A vibrao no bosque desapareceu no instante em que decidirampersegui-lo.

    O espadachim subiu os degraus da varanda e armou a defesa; agora s havia passagem para umoponente de cada vez. Os dois machos chegaram primeiro e se jogaram contra a passagem semqualquer planejamento, entalando com os espiges nas paredes e bloqueando a guandiriana daretaguarda. Ansioso, Adapak arriscou um corte no abdmen do macho menor, mas as placas

  • abdominais negaram a lmina branca.

    Oua os Crculos. No improvise.

    O lder colou a relquia na tmpora novamente, preenchendo o ar com a vibrao de antes.Adapak no titubeou e saltou para fora da varanda bem a tempo; a parede frontal da casa gemeu edesabou sobre os dois machos, prendendo-os nos escombros.

    No cho, a fmea investiu: Igi repeliu o ataque enquanto Sumi desceu em cheio no topo docrnio da criatura, cravando a lmina na placa encouraada sem atingi-la mortalmente: era comoacertar uma machadada em um tronco de rvore.

    Errado de novo. Acalme-se.

    A guandiriana puxou a cabea para trs e Sumi quase foi junto, impedida por pouco pela foracom que Adapak a segurava. Com a outra arma, o jovem bloqueou uma estocada desajeitada dainimiga, apoiou o p em sua barriga e a empurrou; Sumi se desprendeu com dificuldade, jogandoos dois oponentes em direes opostas. O espadachim se recuperou mais rpido, avanou erasgou-lhe a lateral do pescoo. A criatura guinchou e caiu de joelhos antes de ser decapitadacom um ltimo golpe duplo cruzado.

    Adapak abriu uma pequena distncia da casa e refez a guarda. Os Crculos retornaram sposies iniciais, aguardando.

    O macho menor foi o primeiro a se livrar dos escombros, deixando o lder para trs eatacando: Adapak se defendeu com Igi e devolveu outro ataque com Sumi, cuja inteno eraamputar-lhe o brao direito armado. A lmina, entretanto, interrompeu o corte no meio domembro encouraado e ficou presa outra vez. A criatura urrou de dor e instintivamente puxou-apara perto, trazendo Adapak agarrado prpria arma. O guandiriano ento lhe desferiu umacabeada violenta que o fez perder o equilbrio e cair para trs, puxando Sumi e a criatura em umgrotesco cabo de fora. Adapak foi o vencedor, recebendo todo o peso da criatura no cho. Umdos espiges do ser lhe espetou o ombro.

    Dor. Depois.

    Trincando os dentes, Adapak largou o cabo de Sumi e empurrou o corpo do inimigo para olado, se levantando com Igi em mos. Ainda tonto e ofegante, ele localizou o lder, livre dosescombros da varanda e parado a alguns passos dali. A criatura encostou a relquia na tmpora ea vibrao tomou conta do bosque novamente. Ainda com Sumi presa ao antebrao, o machomenor comeou a se levantar quando outro silvo soou no ar.

    E ento metade de sua cabea despencou para o cho, como um chapu escapando de umusurio distrado.

    Adapak testemunhou horrorizado o corpo da criatura estremecer em choque antes de desabarsem vida, manchando a grama de vermelho. Percebendo o que a relquia tinha feito por acidente,o lder a afastou da tmpora, mas a vibrao no cessou. Desesperado, ele arrancou o cristal do

  • pescoo e o arremessou no cho, fazendo com que um enorme reflexo esmeralda pulsasse ao seuredor. No segundo pulsar, sua mo direita caiu no solo, ainda segurando a clava.

    Pela Matriarca...

    Urrando de dor, o guandiriano comeou a pisotear o objeto. No terceiro golpe, a vibraocessou.

    Ambos permaneceram imveis por algum tempo, esperando o que viria a seguir.Nada aconteceu. A-afaste-se da gaguejou Adapak, quebrando o silncio. Ele se esforava em transmitir

    confiana, ainda que por dentro estivesse exausto, ferido e assustado. O lder cambaleou algunspassos para o lado, segurando o membro amputado e contorcendo o rosto. Agora m-me diga porque esto atrs de m...

    Iiikibuuu...

    Ikibu.

    Adapak abriu os lbios, mas a pergunta teimou em sair e quando o fez, soou quase como umasplica:

    O que... O que Ikibu?O guandiriano nada respondeu, encarando-o com os olhos diminutos. Eles piscavam nervosos

    nas rbitas, inteis como tochas sob um temporal. QUEM SO VOCS?! o jovem gritou com lgrimas nos olhos. Em resposta, a criatura

    cuspiu no cho e avanou contra ele, desarmada. Os Crculos ordenaram e o espadachimobedeceu, trespassando a garganta do oponente com um golpe certeiro.

    O bosque ficou em silncio.

    Ikibu.

    Adapak permaneceu ali parado, observando o cadver do lder no cho. Os Crculosdesapareceram da mente do rapaz e ele sentiu as mos comearem a tremer matar ainda no eraalgo natural para ele, apesar de faz-lo bem.

    Vamos.

    O espadachim olhou para o lado, onde a mo decepada do guandiriano jazia na grama, ao ladoda clava de osso e da relquia. Ele foi at l e se agachou sobre o membro, analisando-oprimeiro: o corte perfeito expunha as camadas de pele, gordura, msculo e osso, maculadasapenas pela enorme quantidade de sangue liberado na amputao. No cho em volta, duas grandescircunferncias marcavam exatamente onde o reflexo esmeralda pulsara: to perfeitas quanto ocorte, elas penetravam no solo a uma profundidade desconhecida, como se feitas por um enormeinstrumento de jardinagem invisvel.

    H alguns passos dali, a cabea do macho menor parecia ter sido cortada da mesma forma.Adapak direcionou a ateno para o objeto responsvel por aquilo: a relquia tinha sido bem

    amarrada ponta do cordo de couro negro muito simples, transformando-se em um amuleto

  • improvisado. A maior parte do cristal estava oculta sob os fios que o abraavam, mas atravs dosespaos entre eles era possvel confirmar sua superfcie perfeitamente lisa e levemente reflexiva.Uma anlise mais minuciosa, contudo, revelava uma complexa e quase imperceptvel textura dediminutos hexgonos em sua extenso esverdeada. O objeto em forma de meia-lua era um poucomaior que o comprimento da mo do rapaz e sua espessura devia ter no mnimo um dedo. Ele ovirou com a ponta da bota, confirmando o verso idntico.

    O espadachim encarou o artefato, pensativo. Relquias Dingir podiam ser recursos poderososnas mos das pessoas certas, mas brinquedos mortais nas mos das erradas fato evidenciadopelo que ele acabara de testemunhar. Esta, por sua vez, podia lhe render algo ainda maisimportante: alguma pista sobre seus perseguidores.

    Decidido, o espadachim embainhou Igi e foi at o corpo do macho menor, que ainda mantinhaSumi refm no antebrao. Ele segurou o cabo da arma com ambas as mos, apoiou uma das botasno cadver e puxou com fora, conseguindo desprend-la. Em seguida foi at o depsito erecuperou sua bolsa, de onde tirou um velho pedao de pano. Ento voltou at onde a relquiaDingir estava e a embrulhou com cuidado, guardando-a.

    Dali foi at a carroa sem rodas, onde se sentou e bebeu do cantil, aliviando a gargantairritada. Em seguida, lavou o inchao da testa e o ombro perfurado, que reclamou do contato coma gua fria. Terei que limpar melhor isso depois , pensou, rememorando a seguir o que havia sepassado.

    Notara que os assassinos estavam em seu encalo novamente h duas luas e tentou despist-losnos bosques, onde se deparou com a casa abandonada e o depsito. Se no tivesse adormecido,sua ttica teria funcionado: os guandirianos investigariam a casa primeiro, atrados peloreverberar de uma estrutura maior e ignorando o pequeno esconderijo de incio; isso lhe dariauma vantagem estratgica contra o grupo, surpreendendo-o quando estivessem divididos.Enquanto cochilava, ponderou, os violentos seres provavelmente tinham vasculhado a casa eento se voltaram para o pequeno galpo, onde captaram seu cheiro e o encurralaram como umroedor.

    No posso mais ficar sem dormir, concluiu, ainda sentindo o corpo tremer. Ele sabia quetivera sorte de escapar vivo.

    Adapak se serviu de mais gua, deixando o corpo esfriar. Sentiu a brisa gelada soprar contra apele absolutamente negra enquanto passava a mo sobre a cabea calva para enxugar o suor. Seusolhos brancos vislumbraram a lua de Sinanna, brilhando vigilante na madrugada e nicatestemunha do sangue derramado sob sua luz. Fechou-os por um breve instante e pensou em EnkiNr e no Lago Sem Ilha.

    E ento chorou compulsivamente. Sentia falta de seu pai e de sua Casa.E de Tarish.

  • Tarish

    Beije-me, seu idiota.

    Dagan, em Tamtul e Magano contra o terror do abismo vermelho.

    ADAPAK DEIXOU o corpo esquentar sob o sol do meio-dia, sentindo a brisa morna soprarcontra a pele negra e passando a mo sobre a cabea para tirar as gotas de suor. Seus olhosvislumbraram a esfera amarela que brilhava orgulhosa no cu de Kurgala; nica testemunha desua vitalidade naquela tarde. Ele deslizou os ps descalos na grama macia, roando a folhagementre os dedos. Adorava essa sensao. Adorava faz-lo desde criana, pelo que conseguia selembrar.

    Um sorriso de satisfao formou-se em seu rosto ao vislumbrar a paisagem; estava de p emuma das duas ilhas que o Lago Sem Ilha possua: esta, prxima margem oeste, era to diminutaque podia atravess-la em dez passos largos e seu nico atrativo parecia ser uma antiga rvore dotipo tristonha (ou, pelo menos, era assim que Adapak gostava de cham-la). Seus galhos altos ecurvos cascateavam uma comprida cortina de folhas cor-de-rosa ao redor do tronco, criando umrecanto natural para quando Adapak quisesse sair um pouco de Casa e ler ao ar livre.

    O lago, em compensao, era enorme. Localizado na regio centro-oeste do continente deEriduria e cercado por uma cadeia de montanhas repletas de vegetao tropical, sua extensoalcanava quase uma lua inteira de caminhada da margem leste a oeste; viagem que Adapak sfora permitido fazer uma vez, acompanhado de Telalec.

    E no centro do lago havia a segunda ilha, morada de Adapak e seu pai e bem maior que aprimeira.

    Com esta observao, a memria aproveitou tambm para lembr-lo de que era hora de voltarpara casa. Caminhando at a rvore, ele abriu o pequeno ba de madeira sobre a grama e guardouo livro que estava lendo o prximo captulo das aventuras dos irmos Tamtul e Magano teriaque esperar at o sol seguinte. Em seguida, certificou que sua faca de madeira estava bem presa bainha do calo (j tinha perdido duas nos ltimos quatro meses) e comeou a entrar na guafria, observando o prprio reflexo.

    Contava 16 ciclos de idade, alcanando agora pouco menos de 8 cascos de altura. Seu corpoesguio era completamente desprovido de pelos e sua pele era escura como a noite o tom haviapassado de cinza para o negro absoluto com o avanar do tempo. Seus ps e mos contavamcinco dedos cada e no tinham unhas.

    Adapak tinha um rosto anguloso e de traos bem desenhados. Ele no tinha nariz ou orelhas;apenas um par de orifcios para cada. Sua boca era pequena e de lbios finos, ocultando 28dentes brancos e bem cuidados. Seu par de olhos tambm era branco, apesar de uma observaomais honesta revelar que as pupilas eram brancas e por isso, sem o contraste dos globos oculares(tambm brancos) seus olhos finalizavam uma aparncia sem vida e intimidante para um

  • observador mais relapso.O rapaz terminou de entrar na gua e comeou a nadar em direo grande ilha. Aps algumas

    braadas ele se interrompeu e lanou um olhar na direo contrria a margem oeste do lago.Eles nunca vm a essa hora, pensou, tentando se convencer. Olhou para o sol mais uma vez,

    fazendo clculos.

    Ser rpido.

    Adapak mudou o curso do nado, sentindo o acelerar sbito do corao repreend-lo por estarfazendo algo que seu pai proibia. Ele nadou com calma, mantendo somente a cabea calva parafora do nvel da gua e aguando os sentidos qualquer sinal de vida sapiente e ele abortaria abreve ousadia.

    O rapaz logo alcanou a margem oeste, saindo do lago e se vendo coberto pela sombra do pilarDingir que ali existia; formada por centenas de milhes de pequenos cristais verdes, a estruturacom mais de 450 cascos de altura era como uma colossal estalactite que tivesse despencado doscus e fincado no solo. Seu largo topo era uma imponente mirade de espiges compridos,apontando para diferentes direes do firmamento, como uma estrela de mltiplas pontas.Smbolos de uma era onde mortais e Dingir caminhavam juntos, as construes eram hojerelquias estticas cujo propsito se perdera com a partida de seus criadores.

    E este, como muitos outros pilares espalhados em Kurgala, tinha sido adotado pelos mortaisdas redondezas como uma espcie de altar. Pinturas, cartas, joias, esttuas, armas e at pratos decomida eram deixados, eventualmente, como presentes para o pai de Adapak.

    O rapaz se aproximou de uma pintura de moldura simples, retratando duas crianas humanassorridentes. Que a Voz Esmeralda as guie de volta para as estrelas diziam as palavras, escritascom mincia em um canto do desenho. Ao lado, uma travessa de cermica apresentava os restosde um pssaro que chegara cozido, mas fora devorado pelos animais da floresta h tempos. Umvestido feminino jazia triste no solo, com somente um colar bonito sobre a gola para lhe fazercompanhia. Um pouco afastado do pilar e em frente a uma grande pedra coberta de musgo, umafogueira havia sido armada; em seu centro um belo elmo de osso de anbrr repousava, escurecidopelas chamas agora extintas. As brasas ainda liberavam fios de fumaa que se erguiam como se oesprito do antigo dono da armadura estivesse se desprendendo da mesma. Uma perfuraogrosseira em sua lateral sugeria a maneira como ele havia perecido.

    Pedidos, smbolos de gratido, barganhas. Pequenas cpsulas de esperana deixadas pelomundo exterior que Adapak nunca visitaria. O que a fauna ao redor do lago no podia consumir, opai de Adapak ordenava que seus mellat trouxessem para a Casa, para que o rapaz aprendessepor meio deles como os mortais se comportavam.

    Nada era roubado. Nunca.

    Tem algum se aproximando.

    Vozes graves ecoavam da densa floresta frente, denunciando os visitantes e afugentando asfamlias de sapaju que se penduravam no alto das rvores. No havia como mergulhar semchamar ateno, ento Adapak saltou por cima da fogueira e se escondeu atrs da grande pedra,espiando dentre as folhagens que a permeavam para ver quem se aproximava.

  • Quatro gisbanianos surgiram da mata, conversando na prpria lngua. Era a primeira vez queAdapak se deparava com aquela espcie ao vivo, mas pelas ilustraes das enciclopdias ele seacostumara a cham-los de cabeas de arco, devido semelhana de seus crnios com a armade longo alcance. Eles trajavam roupas humildes de campons e portavam armas simples comolanas de madeira e espadas de lminas amareladas. O primeiro da fila montava um robusto sisude pelo marrom, carregado de bolsas, cantis e sacos de dormir. Os trs outros empurravam umaesfrica gaiola de bambu, cujas rodas sofriam sobre o solo irregular da floresta; a prisoabrigava uma jovem nannariana nua, magra e de pele roxa e suja. A brisa trouxe seu aromaadocicado at Adapak, que ouvia seu choro baixo ser ignorado pelos captores.

    O rapaz de pele negra se abaixou ainda mais na folhagem quando o campons da frente paroudefronte ao pilar e varreu o permetro: com um olho em cada extremidade da cabea, gisbanianoseram capazes de focar em direes opostas ao mesmo tempo, o que os tornava excelentessentinelas. Satisfeito, ele desmontou do suado sisu e fez uma reverncia em direo ao Lago SemIlha. Os outros apoiaram a gaiola no cho e o imitaram.

    Aquilo era indito para Adapak. Animais faziam parte das oferendas deixadas no pilar desdeque o rapaz soube de sua existncia (ao longo dos ciclos, ele mesmo libertou alguns na florestaquando os encontrava ali amarrados), mas seres sapientes fugiam de seu conhecimento.

    Vou esperar at que partam, ento irei l solt-la.

    A inocncia do rapaz ficou evidente quando um dos gisbanianos desembainhou a espada e disseaos outros que abrissem a gaiola. A nannariana no precisava falar a lngua dos captores paracompreender o que estava para acontecer; ela arregalou os grandes olhos amendoados e gritoucom a voz rouca de quem j o havia feito tantas outras vezes.

    Faa alguma coisa.

    Adapak saiu imediatamente de trs da pedra e saltou por cima da fogueira esfumaada,pousando na grama frente e assustando a todos. A prisioneira se calou e os cinco olharamestarrecidos para o rapaz de pele negra.

    O q-que isso? perguntou um deles, girando a cabea de lado para poder encarar Adapakdiretamente.

    O... o carvo tomou vida! a manifestao de Enki Nr! exclamou o campons maisobeso, abaixando a lana. A Grande Presena veio receber nossa oferenda em pess...

    Esse no Enki Nr... interrompeu o mais velho e forte deles, expondo os dentesquadrados e malcuidados. A Grande Presena tem esse nome por uma razo.

    Essa ... uma de minhas formas mentiu Adapak, falando na lngua gisbaniana e tentandoocultar o nervosismo. A nannariana permanecia muda.

    Por que um deus precisa de uma faca? o mais velho perguntou.

    Bosta.

    Os camponeses se entreolharam. O obeso deu de ombros e o embuste de Adapak se desfez. Omais velho deu um passo frente.

  • No sabemos o que voc , olhos brancos, mas no quem disse que era, ento sabemos quementiu... E se mentiu porque est procurando problemas.

    No, eu... Eu no quero problemas, s no quero... S no quero que a machuquem.Os quatro lanaram um olhar para a prisioneira, esttica. Ela nossa oferta disse o captor mais velho, dando mais um passo frente. Suas narinas

    abriam e fechavam com rapidez. Ningum de ningum Adapak retrucou, baixando a mo esquerda com cuidado e

    soltando a bainha da faca presa ao calo. Os Crculos acenderam em sua mente. Ao lado dagaiola, o sisu mordiscou a grama.

    O gisbaniano mais velho avanou com a espada contra Adapak. Este inclinou o ngulo docorpo para a direita, deixando a lmina de osso errar por pouco e trazer seu portador para pertodo alvo, que cravou a faca de madeira em seu bceps musculoso. O gisbaniano gritou e tropeoupara o lado, tombando sobre uma cesta de frutas frescas e largando a arma. Adapak a pegou docho e armou a defesa, mas a expresso dos outros trs camponeses denunciava que o confrontoestava encerrado; estavam com medo.

    Derrube a coluna central da Casa e a Casa ruir, lembrou-se Adapak de uma das metforasde Telalec, se afastando do gisbaniano ferido para que os outros pudessem ajud-lo a se levantar.Sem tirar os olhos do rapaz de pele negra, eles recuaram at o sisu.

    No ordenou Adapak, firme. Deixem a montaria a. O qu? protestou o dono do animal. No just...Adapak fez um floreio com a espada e eles estremeceram. Deixem a montaria a ele repetiu, encarando-os com os olhos brancos. Os quatro se calaram

    e partiram apressados de volta floresta, lanando olhares temerosos para trs.L se vai minha terceira faca, Adapak pensou, vendo-a cravada no brao do gisbaniano.O rapaz se aproximou da gaiola, fazendo a jovem prisioneira se encolher. Ele julgou que ela

    provavelmente no falava a lngua dos captores e no entendera exatamente o que tinhaacontecido. Dependendo do ponto de vista, Adapak podia ser desde seu salvador at outromalfeitor ainda pior.

    Aquela tambm era a primeira vez que ele via uma nannariana de perto, mas ele sabia que asmanchas escuras e a magreza no eram caractersticas naturais daquela espcie. Devia ir atrsdeles e estrip-los, o rapaz pensou, se arrependendo do sentimento em seguida. O odoradocicado que ela exalava no era necessariamente perfumado como certas flores, mas singular osuficiente para que a memria nunca mais o esquecesse. Sua cabea era levemente alongada paratrs, de onde uma cascata ondulada de cabelos roxos despencava. Belos clios longosemolduravam as duas esferas negras de pupilas prpuras que eram seus olhos, agora fundos ecansados. Um par de orifcios de cada lado da cabea indicava os ouvidos e Adapak reparoupequenas joias azuis coladas ao redor deles, resqucios de vaidade da vida antes do cativeiro,ele julgou. Seu nariz era fino e a boca igualmente sutil, com lbios tmidos e escuros que agoratremiam.

    Eu vou tentar soltar voc, certo? ele falou na lngua nannariana, o que a surpreendeu. Entocortou as cordas da portinhola e a abriu com cuidado.

    Eu no sou mau ele disse, fechando os olhos ao ouvir as prprias palavras.

  • Mau? Que idiota.

    Eu... no vou lhe fazer mal, quero dizer ele melhorou a frase, se afastando. Voc... fala ymeli. Sua lngua? Sim ele disse, ainda que ela tivesse feito uma constatao.A nannariana arriscou um movimento para fora da gaiola, receosa. Eles no vo voltar? ela perguntou, olhando alm das rvores. No. Eu prometo ele respondeu, oferecendo um sorriso.Ela se ps para fora do crcere com um pouco de dificuldade, tocando a grama com os ps

    delicados. Adapak apreciou suas longas pernas, imaginando como seria impressionante v-lacorrer livre nos campos onde costumavam viver. nannarianos se orgulhavam de sua velocidade.

    Ela tinha o corpo inteiro repleto de pequeninos pontos escuros alinhados que a princpio ojovem pensou serem mais joias, mas se deu conta de que eram naturais um pouco antes que elacobrisse os seios e a plvis ao perceber que ele a estudava.

    Ahn, espere um pouco ele disse, sem jeito. Acho que podemos encontrar algo para vocvestir...

    O rapaz foi at perto do altar, onde estava o vestido que vira antes e o pegou do cho, deixandoo colar cair.

    No! ela disse, erguendo a mo. Eu n-no posso aceitar. Esses presentes so para EnkiNr!

    Adapak olhou o vestido e riu. Isso no vai servir em Enki Nr, pode ter certeza... N-no diga isso! ela respondeu, horrorizada. Foi uma brincadeira, calma! ele disse, desmanchando o sorriso. No tem problema, Enki

    Nr ficar feliz se voc o vestir. Como sabe? Bom, eu moro com ele.Voc... ela comeou a perguntar, receosa mora com um deus?Adapak pensou na resposta. Bom, ele meu pai. Oh... ela reagiu, olhando para ele de cima a baixo e fazendo o rapaz se sentir um pouco

    incomodado. por isso que nasceu do carvo da fogueira? Para me salvar? Ahn... sim ele confirmou, se arrependendo em seguida. Ela pareceu mais calma com a

    resposta, agora que tinha uma explicao para ele. Como voc se chama? Adapak perguntou, vendo-a se vestir. Tarishinannari. Isso... foram quantas palavras? ele brincou. Uma ela respondeu, parecendo ofendida com a pergunta. O vestido ficara frouxo, mas

    servira. Desculpe ele falou. Ainda tenho dificuldade com os nomes nannarianos. Minha lngua no to difcil assim. Oh, sim. Faz maulini parecer lngua de sapaju ele brincou, olhando para os pequenos

  • animais no topo das rvores, que observavam o casal, curiosos. Voc... fala a lngua dos maulin tambm? Falo. Foi a Grande Presena que lhe ensinou tudo isso? De certa forma, sim. Mas tenho Telalec tambm para me ensinar coisas. Quem Telalec? Ele nosso amigo. Foi com ele que aprendi os Crculos Tibaul. O que isso? Os Crculos? So o que me fizeram vencer a briga contra aquele gisbaniano grandalho. Eu no vi nenhum crculo. Eles ficam aqui dentro Adapak explicou, tocando o indicador na tmpora. So... algum tipo de feitio, ento? No, eles... algo que voc aprende. Eles me dizem quais movimentos um espadachim

    Tibaul deve fazer para vencer o oponente, entende? Esses Crculos so como se fossem uma luta, ento? Hmm... Mais ou menos ele respondeu, torcendo os lbios. Telalec no gosta de cham-los

    assim. Ele diz que amadores lutam, profissionais resolvem. Parece presunoso ela opinou. Adapak deu de ombros, com uma expresso acordante. H quanto tempo voc foi capturada? Eu... no tenho certeza. Moro em Thal. Estava pescando com meu irmo quando eles

    apareceram ela contou franzindo a testa, como se fizesse fora para lembrar. Seu irmo. Eles?... No, ele conseguiu fugir. Minha famlia deve estar me procurando ela falou, enchendo os

    olhos de lgrimas e tornando-os ainda mais brilhantes. Thal fica a umas... o rapaz pensou um pouco cinco luas de caminhada daqui, pelo que me

    lembro dos mapas. Se voc montar o sisu e seguir para oeste, vai cheg... No! ela disse, se aproximando dele. Eles vo me achar de novo!Era uma possibilidade. Adapak pensou mais. Faa o seguinte: monte o animal e v para l ele disse, apontando para sudoeste. Vai

    encontrar logo uma estradinha de terra. Se segui-la vai acabar chegando em Maliab, um pequenopovoado. Pergunte a qualquer um por Telalec, meu amigo de quem lhe falei, ele est l. No hcomo confundi-lo, ele um ushariani de trana no queixo e sem uma das mos. Conte a ele o queaconteceu aqui e diga que pedi para que ele a leve para sua casa em Thal. Diga meu nome:Adapak.

    Ada-pak? Isso. Telalec? Exato. E ele vai poder me proteger?O jovem riu. No haveria pessoa melhor, acredite. Mas leve isso s por precauo ele falou, lhe

    entregando a espada roubada do gisbaniano. A lmina no das melhores, mas vai servir se

  • voc precisar. Voc no pode ir comigo? Eu... no posso, lamento. Acredite, eu chamaria mais ateno do que voc sozinha.Ela concordou com o olhar. O rapaz foi at o sisu e ficou aliviado em perceber que o animal

    era manso. H moedas aqui, se voc precisar ele falou, examinando as bolsas penduradas no lombo da

    montaria. Eu no entendo muito de dinheiro, mas acho que tem o suficiente. Agora suba que eute dou as rdeas.

    A jovem obedeceu, escalando a criatura sem dificuldade. J montou em um desses antes? ele perguntou. Sim. Sabe, a medida de distncia que vocs mortais usam vem dos cascos desses animais.

    Adapak falou, apontando para a pata peluda do sisu, que media cerca de um palmo do rapaz.Aptica, ela o encarou.

    No hora para compartilhar curiosidades.

    Voc vai ficar bem, Tarish, no se preocupe ele falou, sem graa. Meu irmo me chama assim ela disse sorrindo e Adapak reparou que um dos seus dentes da

    frente era levemente torto. Ele vai ficar feliz em rev-la, tenho certeza. Vou contar a ele que o espadachim de carvo me salvou. Certo o rapaz disse, divertindo-se com o apelido. Obrigada por me salvar dos monstros, Adapak. Monstros no existem ele respondeu.

  • Muros

    Contra a morte no h paredes, irmo.

    Magano, em Tamtul e Magano em busca da torre invertida.

    QUANDO AVISTOU os muros altos da cidade de Urpur, Adapak sentiu uma mistura de alvio epavor. Ele achava que ali dentro estaria mais protegido do que sozinho pelas estradas, mas aomesmo tempo isso significava expor-se em um lugar com quase mil habitantes que nunca tinhamvisto algum como ele. A cidade, embora pequena, era um relevante ponto comercial graas a seuporto, e a essa hora da manh estaria comeando a ficar apinhada de gente. Ele no tinha escolha,porm; Telalec estava em Larsuria, um continente em guerra do outro lado de Kurgala. Suamelhor opo era procurar por Barutir. Ele saberia o que fazer.

    Urpur era controlada pelo Conselho de Eriduria, o que significava que somente certas espcieseram permitidas em seu interior. Adapak, no entanto, no se encaixava em espcie alguma, entoa primeira coisa que fez foi tirar a capa de dentro da bolsa e cobrir o torso e os braos antesdesnudos, assim como erguer o capuz sobre a cabea. O calor do vero iria castig-lo, mas oespadachim de pele negra queria diminuir ao mximo sua capacidade natural de chamar ateno.Apostava que as sentinelas iriam exigir que mostrasse o rosto antes de permitirem sua entrada,mas aquela era uma aposta que ele queria muito perder.

    Antes de fechar a bolsa, no entanto, ele deu uma ltima olhada covarde para seu interior.L estava ela, atrs do saco de moedas e da relquia recm-adquirida. A carta o encarou de

    volta, desafiando-o, como sempre.

    Agora no.

    Respirando fundo, o jovem fechou a bolsa e cruzou a linha das rvores para o descampadoensolarado, seguindo o final da estrada de terra que terminaria nos portes da cidade. Quatro luastinham se passado desde seu confronto com os guandirianos, somando sete no total desde quedeixara o Lago Sem Ilha. Seu ombro quase no doa mais e o inchao da testa j no era visvel.Seu corpo se recuperava com rapidez dos registros de violncia.

    Suas roupas, no entanto, no se esqueciam do passado to fcil: respingos de sangue aindacoloriam o largo saiote de couro marrom que lhe cobria parte das coxas, amarrado ao quadril porum grosso cinto bege-escuro. Presas a ele, as bainhas de Igi e Sumi exibiam arranhes e manchasde terra. O par de botas estava surrado e com algumas costuras soltas, mas permanecia funcional.Telalec o havia ensinado que armaduras eram para os fracos, mas Adapak no se incomodariaem ter um pouco de fraqueza cobrindo-o, agora.

    Ele diminuiu os passos para avaliar melhor o cenrio, sentindo as pernas fraquejarem frente aofato de que seria a primeira vez que conheceria pessoalmente um lugar assim. Adapak estava

  • acostumado s descries das cidades dos livros de fantasia que lera na adolescncia, detalhandomuralhas gigantescas guardadas por esttuas colossais de imperadores retratados em seus auges.Urpur falhava em atender tais expectativas; seus muros eram altos e resistentes, mas a engenhariagrosseira os afastava da grandiosidade e beleza que o rapaz imaginara. Grandes blocos de pedrahaviam cedido ao tempo e despencado, deixando espaos vazios ou remendos apressados feitospor profissionais que no se preocupavam com a esttica. Em vez de esttuas magnficas, torrescirculares vigiavam o mundo exterior. Ainda que decepcionado, o jovem no pde deixar derespeitar a capacidade dos mortais de construir estruturas a partir dos recursos naturais domundo, algo muito distante da realidade de sua Casa.

    O porto de madeira ao qual ele se aproximava estava aberto, escancarando os dentes podresno alto do arco de entrada. Um fluxo modesto de transeuntes formava uma fila razovel ao ladodas baias para sisus e outros animais de montaria, que bufavam cansados sob o sol. Duassentinelas humanas gerenciavam os portes, demonstrando a displicncia caracterstica que umtrabalho mundano como aquele gerava em qualquer um ao longo do tempo. Elas passavam osolhos superficialmente pelo contedo das carroas e seus donos, raramente inquirindo sobre omotivo da visita de cada um. Um animal de carga comeou a defecar enquanto aguardava na fila,e Adapak achou fascinante o fato de ningum se importar com aquele ato, uma vez que ascaambas das carroas estavam repletas de frutas e vegetais destinados ao mercado. A vida nascidades era realmente estranha, ele pensou, se juntando ao grupo.

    Alguns pedintes circulavam pela rea, impedidos pelas sentinelas de entrar em Urpur eforados a lidar com a m vontade de comerciantes cansados da viagem, que os enxotavam comoinsetos indesejveis. Atrado pela chegada do espadachim encapuzado, um mendigo maulin seaproximou. Apesar de jovem, sua pele naturalmente enrugada estava seca e pontuada de feridas,cobrindo com dificuldade o corpo magro e subnutrido de 7 cascos de altura. Envolto em traposque cheiravam a urina, o indivduo caminhava com o auxlio de um pedao de madeiraimprovisado, ostentando uma ferida purulenta na perna inutilizada, que era fruto de seu sustentonaquela condio miservel.

    Algumas escamas, senhor? ele pediu na Lngua Antiga, falada por quase todas as espciesde Kurgala. Assim que o espadachim ergueu a mo negra para lhe recusar a esmola, no entanto,ele arregalou os grandes olhos:

    F-feiticeiro! o pedinte sussurrou, mancando para longe e por pouco no largando o apoioao tropear assustado. Adapak no compreendeu a referncia, mas ficou aliviado em notar que aateno dos transeuntes tinha sido atrada para outro evento.

    Cinco mellat deixavam os portes da cidade. Diferentes daqueles com que o jovem conviveu avida inteira, estes tinham peles brancas e perfeitamente lisas, no trajando qualquer tipo decobertura. As cabeas tinham o formato mais oval do que abaloado, com bocas minsculas eenormes olhos brancos levemente espelhados que encaravam a multido curiosa em volta.

    Voltem para a Casa de Anu Nr, marionetes! gritou algum da fila de entrada, arrancandofrases modestas de apoio ou discordncia ao redor. Impassveis, os seres de 10,5 cascos dealtura ignoraram os protestos e seguiram o caminho pela estrada de terra, puxando com os braoscompridos uma carreta repleta de pequenos caixotes.

    Acha que eles tiveram alguma coisa a ver com o estrondo que ouvimos no Lago Sem Ilha?

  • cochichou uma senhora humana para o dono da carroa logo frente de Adapak. Foi apenas um trovo, o povo inventa muita besteira o gisbaniano respondeu, emburrado.A mulher deu de ombros e buscou ao redor outro alvo para suas conjecturas, mas o espadachim

    se encolheu sob o capuz, esquivando-se da possibilidade. Est com sua moeda do Conselho, filho? veio uma voz sua direita.Adapak j tinha visto muitas roupas deixadas no pilar da margem do lago, por isso reconheceu

    que o tecido que esse esuru de meia-idade vestia era de excelente qualidade. Seu bico eraadornado com belos brincos de osso, algo que o espadachim nunca tinha visto nas enciclopdias.Ele carregava uma pequena bolsa presa cintura.

    Pelos Quatro Que So Um, o que... O que voc? o indivduo perguntou, sem conseguirdisfarar o asco. Voc est doente?

    No, eu... Eu sofri um acidente. Sou um... humano. Me queimei mentiu Adapak, puxando ocapuz mais para frente.

    Oh, eu... Eu lamento. Ento mais importante ainda que voc esteja com seu braso doConselho. Posso v-lo?

    Braso do Conselho? Eu... Me refiro a isso aqui ele disse, tirando da bolsa uma pequena moeda circular de barro, com

    a letra U esculpida em ambas as faces e pintada de branco. Eu... no sabia que precisava de nada disso. Pelos Quatro, h sempre um desavisado... Filho, se no estiver com uma dessas, aqueles dois

    ali no vo deixar voc entrar, entende? Acredite em mim, trabalhei nos portes antes disso elefalou, levantando a saia comprida e revelando uma perna de madeira. H quanto tempo no vem cidade, filho?

    a minha... primeira vez. Ento por isso que est falando bosta, tome ele disse irritado, entregando o objeto para o

    rapaz. A taxa de 50 escamas.Hesitante, Adapak tirou seu pequeno saco da bolsa, examinando o contedo: um pequeno

    punhado de joias coloridas brilhava entre algumas centenas de moedas. Sobre estas ltimas, elesabia que aquelas denominadas escamas eram feitas de madeira, os escudos de cermica e oscastelos de osso de anbrr jovem, mas no tinha ideia do valor que as coisas tinham no mundodos mortais.

    Tudo isso? Est certo? ele perguntou ao sujeito, segurando a quantia na palma da mo. Escute, eu no tenho que ficar aqui discutindo economia com voc, filho. Se quer reclamar,

    reclame com o Conselho, eu no tenho tempo para... No, no, eu no quis dizer isso, eu... Aqui, tome falou, nervoso. O esuru guardou o

    dinheiro, lhe entregou o smbolo e seguiu mancando em direo ao final da fila sem olhar paratrs.

    Sabe, aquele cara te enganou, parceiro, ningum precisa disso a para entrar na cidade falou uma voz spera s suas costas. Adapak se virou.

    O humano devia estar na casa dos 30, mas os cabelos negros, longos e malcuidados lheadicionavam pelo menos dez falsos ciclos a mais. Ele tinha um rosto expressivo, marcado tantopor linhas de idade quanto por duas antigas cicatrizes na bochecha esquerda, que se esticaram

  • junto a um sorriso debochado quando ele vislumbrou o rosto do espadachim. Pelos Espritos, isso no foi queimadura ele disse, e seu hlito azedo inundou as narinas

    de Adapak sem convite. O homem trajava uma curiosa armadura em camadas sobrepostas,manufaturada a partir dos ossos de um anbrr de idade avanada, a julgar pela excelentequalidade. Tingido de escarlate, o traje exibia desenhos de linhas brancas em certas reas, comose representassem estrias musculares.

    Ahn, sim. Foi sim Adapak respondeu, vendo que o humano portava cinco facas muito finase um longo chicote laminado no cinto. Nas costas ele carregava uma mochila surrada, mas oespadachim no achou que ali dentro coubesse um elmo (o que era de se esperar com umaarmadura daquela categoria).

    Parceiro, eu j vi muito humano queimado e voc definitivamente no est queimado insistiu o homem. O dono da carroa frente se virou para olh-los.

    Por favor, me deixe em paz Adapak insistiu, se virando para frente. A fila voltou a semover.

    Certo... o que quer que voc seja, est perdendo tempo, parceiro, aquele cara te fez de otrio;ningum precisa de braso nenhum pra entrar. Se eu fosse voc, ia atrs dele.

    Ei, pare de encher o rapaz falou um maskrriano irritado logo atrs deles, balanando apele frouxa do corpo.

    No se meta, lenol o humano de cabelos longos retrucou. S estou tentando avisar o meuamigo queimado aqui que ele foi feito de bobo.

    Adapak se esforava para ignor-lo. Sob a capa, as gotas de suor faziam ccegas em seupescoo. Uma das sentinelas reconheceu um amigo na fila e o deixou passar direto. S faltavamduas carroas.

    S mais um pouco.

    Pelo menos me diga o que voc , j que eu tentei te ajudar pediu o homem, tocando de leveo ombro coberto do rapaz.

    Os Crculos coloriram a mente do espadachim e em um piscar de olhos as lminas gmeasestavam a poucos dedos de distncia da garganta do sujeito. Por algum tempo ningum na fila ouno porto se moveu ou disse algo. Duas carroas atrs, outro animal de carga comeou a defecar.

    Ei, o que... O que est havendo a? gritou uma das sentinelas do porto, cutucando ocompanheiro barbado.

    Esse humano estava incomodando o rapaz deformado disse o maskrriano, na fila que agoracomeava a se desfazer com a confuso.

    Obrigado, senhor disse a sentinela, aproximando-se com o companheiro cauteloso. Masns estamos com a situao sob contr...

    Pelos Espritos que esto! gritou o homem de hlito azedo, com os olhos fixos nas espadasde Adapak. Tirem esse louco de cima de mim!

    V-v buscar Imitti, rpido! ordenou a sentinela de barba para a outra, que disparou paradentro da cidade sem question-la. Ambos tinham vislumbrado as mos e o rosto agoradescobertos de Adapak.

    Senhor recomeou relutante a sentinela, tocando o cabo da prpria espada. Vou pedir que

  • solte este homem, agora...Os Crculos disseram para o espadachim que ele poderia neutraliz-lo com dois movimentos.

    O humano da armadura vinho precisaria de trs, caso tivesse tempo de sacar o chicote ou asfacas.

    Senhor? pediu a sentinela mais uma vez, desembainhando a arma.

    Solte-o.

    Adapak o fez. O homem de cabelos negros cambaleou para trs, esbarrando em uma carroa dearroz. Sua mo se moveu na direo do chicote.

    Amigo, por favor, no piore as coisas falou a sentinela, quase em tom de splica. A fila eraagora uma plateia que apontava e murmurava opinies. Algum gritou a palavra feiticeironovamente.

    Ele... Ele me segurou o espadachim tentou explicar, vendo no rosto das pessoas o misto decuriosidade e temor que ele experimentara poucas vezes na vida. Eu estava preenchendo ospapis de entrada e ele...

    Eu s toquei em voc, sua aberrao! exclamou o homem, esfregando a garganta. Senhor, guarde suas armas, por favor pediu a sentinela.Adapak abriu a boca para responder, mas ao invs disso, seus olhos reviraram nas rbitas e ele

    desabou no cho, sacudindo o corpo em espasmos violentos. Ao lado, o mesmo acontecia com ohumano de cabelos longos. A conscincia os deixou.

    Adapak sentia frio no centro da gigantesca cmara triangular. Sob o cone de luz esmeraldaque descia do teto, ele se sentia oprimido, como se milhares de olhos o observassem de algumlugar, julgando-o. Ikibu. Infinitos arcos paralelos se estendiam sua frente, guiando-o por umcorredor escuro para onde ele se viu obrigado a flutuar. Ikibu. A lua deu lugar ao sol e o choduro e frio areia quente. Ikibu. Uma montanha lhe sorria frente do pilar. Ikib...

    Como se puxado de profundidades abissais, Adapak despertou. Sua conscincia voltou vidarepentinamente, recebendo-o com desconforto e um forte cheiro de peixe e urina. Ele abriu osolhos brancos e conseguiu discernir um teto de pedra antes que o estmago avisasse que iavomitar.

    Primeira vez que um nekelmuliano te d uma olhada, aposto disse aquela voz speranovamente, enquanto o espadachim se virava de bruos e regurgitava o desjejum no cho gelado.Limpando a boca, viu que ele e o humano de armadura vinho se encontravam em uma pequenacela: duas camas e um vaso para necessidades eram os nicos mveis do recinto, com umapequena janela alta trazendo o barulho da multido que alimentava o comrcio de Urpur do ladode fora.

    Pelo menos consegui entrar na cidade, Adapak pensou, se afastando da poa de vmito. suafrente, o homem se encontrava sentado em uma das duas camas do aposento, desprovido damochila e armas. Adapak tambm se viu sem suas coisas, inclusive a capa.

  • Est tudo ali disse seu companheiro de cela, apontando para o armrio alm das grossasbarras de madeira. Ou pelo menos como costumam fazer.

    O que... O que disse sobre um nekelmuliano? Adapak perguntou, se levantando e sentindo acabea latejar.

    Lembra da sentinela que entrou correndo para a cidade mando do outro? Ela voltou com umoficial superior que nos derrubou com uma s olhada.

    O jovem espadachim foi at as barras, vendo que a cela em que se encontrava era uma dentrevrias em um corredor curvado.

    Ei! Algum! ele gritou. Relaxe, parceiro, eles viro daqui a pouco. Devem estar almoan... Ei!! insistiu o jovem, ignorando o homem. Eu sou amigo de Barutir Ob! Por favor,

    chamem-no!Risadas, xingamentos e provocaes de outros prisioneiros ecoaram do corredor, debochando

    daquele pedido inocente. Adapak se afastou das barras e sentou na outra cama da cela,esfregando o rosto preocupado.

    Parceiro, voc definitivamente no humano e muito menos sofreu alguma queimadura falou o homem, encarando-o com um meio sorriso.

    Por favor, no fale comigo o espadachim pediu, passando a falar na lngua dos humanosperfeitamente.

    Oh, obrigado por me dizer na minha lngua que no quer falar comigo Jarkenum retrucou,irnico. Qual o problema, parceiro?

    O problema que eu estou aqui por sua culpa. Minha culpa?! o homem replicou, esticando o par de cicatrizes da bochecha esquerda.

    Parceiro, VOC que ficou louco do nada e puxou as espadas para mim!A conversa foi interrompida pelo eco de passos. Ansioso, o espadachim se levantou e voltou

    at as barras de madeira. Na curva do corredor direita surgiu uma sentinela que ele reconheceucomo sendo uma das que estava do porto da cidade, carregando um pequeno livro eacompanhada de um nekelmuliano azulado. Adapak sempre fora fascinado por aquela espcie, euma das razes era a de nunca ter sido capaz de visualizar exatamente como os oito tentculosdas costas eram capazes de carregar corpos to pequenos, com braos e pernas to curtos efrgeis. Ele se movimentava com equilbrio perfeito, no entanto, enquanto a pele refletia a luz doslampies das paredes como um peculiar espelho vivo.

    Os oficiais pararam em frente cela e a segunda razo pela qual o jovem era fascinado pelosnekelmulianos logo se manifestou; o ser varreu o aposento at encarar o espadachim, que sentiuuma leve pontada no fundo da mente ao deparar-se com o enorme globo ocular azul capaz dederrubar criaturas vrias vezes o seu tamanho.

    Diga seu nome, cidado o oficial ordenou com a caracterstica voz estridente da espcie,falando na Lngua Antiga. Ele apoiava os dois braos curtos no pequeno cinto da cintura estreita,parecendo orgulhoso do smbolo que o identificava como Segunda Sentinela de Urpur.

    A-adapak, senhor. Meu braso do Cons... Diga seu nome, cidado a sentinela perguntou agora para o humano de cabelos compridos. Jarkenum Raned este respondeu, ainda sentado e encarando o cho. A sentinela humana

  • registrava tudo no livro. Senhor, eu sou amigo de Barutir Ob, ele mora n... Adapak sentiu outra vez a pontada na

    mente e interrompeu a fala, apertando os olhos e se afastando das barras. Os senhores foram acusados de causar tumulto no porto sudeste a Segunda Sentinela

    explicou, impassvel. O cidado Ada-pak ser solto na manh de amanh, sob a multa de 60escamas...

    O qu?! protestou o espadachim. Mas foi ele qu...O nekelmuliano olhou para Adapak e o rapaz apertou os olhos com a dor de cabea mais forte

    que j sentira na vida, vendo-se forado a se sentar na cama, desnorteado. Tenso, a PrimeiraSentinela se limitava a observar tudo.

    O cidado Adapak repetiu o oficial ser solto na manh de amanh, sob a multa de 60escamas. O cidado Jarkenum Raned ser processado adicionalmente por porte de raiz de mochi,banida nas cidades controladas pelo Conselho de Eriduria. A multa est estab...

    Ei, vocs mexeram na minha bolsa? Jarkenum interrompeu, fechando os olhos logo emseguida com a dor. Ei, pare com essa bosta, inseto!

    No falem at que sejam autorizados, cidados disse o ser espelhado. Sua voz soava comoa de um adulto imitando uma criana irritante. A multa para porte de mochi est estabelecidaem 2 escudos e 50 escamas. A prxima refeio ser servida ao meio-dia.

    Imitti, no acha mesmo que devemos chamar o comandante? sussurrou a sentinela para osuperior, suspeitando da aparncia estranha de Adapak.

    No h porque importun-lo com isso. Mas senhor, eu sei que vocs nekelmulianos enxergam de forma... diferente do resto de ns,

    mas esse prisioneiro muito estranho. Se ele caiu quando eu o olhei, ento ele igual a qualquer outro a Segunda Sentinela disse,

    voltando a ateno para os dois prisioneiros e prosseguindo: Manifestaes vocais de altovolume sero punidas. Interaes fsicas sero punidas igualmente, incluindo de natureza sexual.

    Adapak e Jarkenum se entreolharam com caretas.

    Respeitem as regras e no sofrero mais punies finalizou o oficial, dando meia-volta eretornando na direo do corredor de onde viera. A sentinela humana deu uma ltima olhadelapara Adapak e seguiu o superior.

    Ikibu.

    Eu no posso ficar aqui pensou alto o espadachim. Eles viro e nos mataro. Ei, ei, garoto, relaxe! Eles vo te soltar de manh, ningum vai ser executado! Voc no entende... disse o rapaz, frustrado, se levantando para espiar o corredor

    novamente. Oh, eu entendo sim. Entendo que tomei uma pssima deciso hoje, pode ter certeza disso...Ignorando-o, o espadachim foi at a parede dos fundos e saltou para agarrar as barras da janela

    alta, observando o exterior: at ento, o nico contato real que ele tivera com a vida alm doLago Sem Ilha fora com as oferendas deixadas no pilar da margem oeste. Por conta disso, a

  • simples feira matutina que coloria a rua sua frente lhe parecia fascinante, tal qual a pletora dearomas diferentes que dela emanava (apesar do cheiro de peixe reinar soberano). Preos eramanunciados aos gritos e negociados aos sussurros. Sepus famintos se esgueiravam entre as pernasdos feirantes, esperanosos por qualquer pedao ou leo que escorresse dos alimentos expostosnas barracas alinhadas.

    Enquanto ponderava sobre o quo curiosa era a escolha de uma rua ao lado de uma priso parase fazer uma feira, o espadachim viu trs crianas maulin pararem de correr ao notarem seu rostoespiando a liberdade. Mostrando a lngua, uma delas pegou uma pedra e arremessou, acertando aparede ao lado da janela assim que Adapak desceu.

    Voc de Shuru, no ? perguntou Jarkenum, tirando os cabelos compridos da frente dorosto. J ouvi dizer que existem coisas bem estranhas l, mas eu nunc...

    Eu j falei que no quero conversar com voc. Voc me colocou aqui, voc o criminoso. Criminoso? ele questionou, gargalhando a seguir. Aquele bicudo que te enganou nos

    portes era um criminoso, garoto, eu... E as razes de mochi que as sentinelas encontraram na sua bolsa? Foi o esuru malvado nos

    portes que as colocou l tambm? Ora, pelos Quatro, se o Conselho pudesse fazer tanto dinheiro com mochi quanto faz com

    bebida, no teriam transformado em crime, garoto! Acorde! Ambos fazem mal ao seu corpo. Talvez seja por isso que o probem. Mal? Ora, por favor... Voc pensa mais devagar, reage mais devagar. No entendo por que algum iria querer

    isso... Oh, por favor, esse discurso moralista de graa ou est incluso na sentena desta maldita

    priso?! Ei, me arrumem uma maldita bebida! Jarkenum gritou para o corredor. Quero enchera cara e esquecer desse palerma amanh de manh!

    Apoie-se na muleta que quiser, eu no me importo falou Adapak, esquadrinhando a cela. S preciso sair daqui.

    Voc uma verdadeira pea mesmo, garoto. Eu no sei como so as coisas na terra daspessoas de carvo ele debochou, fazendo aspas com os dedos , mas aqui no mundo deverdade as coisas no so to preto no branco assim, ouviu?

    Aquele nome trouxe um calor desagradvel ao peito do rapaz, sufocando uma possvel rplica.Ele engoliu em seco e se apoiou nas barras voltadas para o corredor, ficando ali em silncio.Jarkenum resmungou algo incompreensvel e deitou na cama.

    Ao meio-dia duas sentinelas trouxeram o almoo. Elas ficaram paradas algum tempo em frente cela observando o espadachim. Este no se importou, no entanto, seus pensamentos estavamfocados na refeio e se deveria arriscar-se a ingeri-la. Ele sabia que sua vida corria perigo, masas duas ltimas tentativas haviam sido to descaradas que um envenenamento a essa altura soavaimprovvel. Mesmo assim ele optou por assistir o companheiro de cela almoar em silncio ecair em sono tranquilo depois, para s ento decidir comer as batatas e o feijo gelados.

    Se eles vierem, viro com violncia, pensou o jovem de olhos brancos, surpreso com o bomtempero da comida.

    O incio da tarde transcorreu tedioso e sem mais dilogos. Adapak se viu obrigado a fazer as

  • necessidades no vaso em dado momento, mas isso no pareceu incomodar Jarkenum, que sedistraia observando o movimento do lado de fora. Horas depois, um incidente envolvendo gritosem uma cela direita do corredor chamou a ateno dos dois; pelo que foi possvel ouvir, umprisioneiro teve um ataque de fria at que a familiar voz estridente do oficial nekelmulianosurgiu e o homem emudeceu. Aquela espcie tinha uma habilidade incrivelmente til, lembrouAdapak, imaginando como deveria se sentir um ser que no temia quase ningum.

    A lua de Sinanna trouxe a noite e tambm a hora do jantar. Uma sopa de legumes foi servida eAdapak mais uma vez se surpreendeu com o quo saborosa ela era, lamentando sobre o talentosocozinheiro que nunca receberia o prestgio por aquelas refeies bem preparadas. O espadachimfantasiou o perfil do autor daquele jantar: seria ele apenas uma sentinela que encontrara um bomlivro de receitas por acaso e o seguiu risca? Ou talvez algum cujo sonho de grandes conquistascomo um chef de cozinha renomado fora esmagado pela autoridade familiar, presa ignornciado encontre um emprego do Conselho, seguro e que pague bem? Qual fosse a realidade,Adapak se divertiu com o devaneio, que o distraiu da situao impotente em que se encontrava.

    Terminando antes de Jarkenum, o espadachim pousou o prato de cermica vazio no choprximo s barras e deitou-se na cama, ignorando as reclamaes das costas nuas quanto finurado colcho. Meia hora depois, uma pequena blatara surgiu e se banqueteou com os restos.Encarando o armrio do lado de fora da cela, Adapak lamentou o fato de que tudo que restara desua vida estava trancado naquela caixa de madeira. Com esse pensamento, se rendeu ao cansao eadormeceu.

    Frio. Caverna esmeralda triangular. Olhos. Ikibu. Arcos. Corredor. Olhos. Frio. Ikibu.Flutuar. Areia. Frio. Sorriso. Caverna triangular. Olhos. Ikibu. Frio. Caverna esmeralda.Olhos. Ikibu. Arcos. Corredor. Olhos. Frio Ikibu. Flutuar. Areia. Frio. Sorriso. Cavernatriangular. Olhos. Ikibu. Ikibu. Ikib...

    Adapak despertou assustado, sentando-se e esfregando os olhos. Jarkenum dormiaprofundamente na cama ao lado, banhado pela iluminao parca que a pequena janela alta da celaoferecia na madrugada.

    Havia algum do outro lado das barras do corredor.

    O espadachim se levantou da cama com um salto, tropeando e colando as costas na parede.Seus olhos embaados identificaram uma silhueta nannariana sentada de pernas cruzadas no chode pedras fora da cela.

    No ela. Calma.

    Era uma sentinela. Uma jovem sentinela nannariana, observando Adapak com olhos fascinadosna escurido.

  • Justos so Os Quatro Que So Um ele sussurrou, colocando a mo sobre a testa e abrindoos dedos para frente, em um sinal que Adapak no reconheceu de nenhuma enciclopdia.Jarkenum acordara ressaltado, sentando na cama e afastando os cabelos do rosto.

    Salve Salmu Saruma! a sentinela falou, levantando-se com cuidado e mantendo o olharvidrado em Adapak. No pude crer quando me disseram, ento resolvi descer e... E aqui estou!Vislumbrando seu retorno com meus prprios olhos!

    Quem esse a? Jarkenum sussurrou, tambm se levantando. Eu... no sei o espadachim respondeu, mantendo as costas na parede.O nannariano segurou as barras de madeira com gentileza e continuou: Eu imploro que

    perdoe a ignorncia dos meus colegas, imperador! Nem todos creem no seu retorno, mas eusempre soube! Sempre soube que seria um dos Nove Mil!

    Esse sujeito alguma espcie de religioso, isso? Jarkenum perguntou para Adapak, cujamente ainda tentava traduzir o nome pelo que fora chamado. Soava como a Lngua Antiga, masno o suficiente para que ele a compreendesse.

    Do que foi que voc o chamou? o homem perguntou para o nannariano, se aproximando dasbarras e quase escorregando na poa de vmito.

    Este Salmu Saruma, o Imperador Negro dos Nove Mil Homens! ele respondeu, elevandoa voz. Em algum lugar do corredor, algum tossiu.

    Eu achei que seu nome fosse Ada-alguma-coisa. E o espadachim disse, confuso. O imperador tem muitos nomes em muitos lugares... a sentinela intercedeu, colocando a

    mo na testa mais uma vez. Sim, e o... imperador precisa ser libertado completou Jarkenum, imitando o gesto para o

    oficial. Vocs cometeram um erro grave. Sim! este exclamou, surpreso e emocionado em ouvir aquilo. Eu disse a eles! Eu disse! O que est fazendo? Adapak perguntou para o humano. Este o ignorou e continuou: Sim, irmo, voc disse, mas eles no o ouviram... Mas eu o ouo! Adapa ficar muito

    nervoso se permanecer preso por mais tempo... Adapak corrigiu o rapaz, no fundo da cela. ... Adapak ficar nervosssimo se permanecer preso por mais tempo! o homem repetiu,

    segurando as barras e encarando o nannariano nos olhos. Eu fui incumbido de lev-lo at otemplo de Urpur, mas minha misso foi interrompida e agora estamos aqui. Na certa voc foienviado pelos Quatro para nos ajudar!

    Sim! Sim, eu p-posso ajud-los, espere... falou o sujeito, desprendendo um molho dechaves do cinto e enfiando uma delas na tranca de madeira. Adapak testemunhava tudo, dividido.

    Mais uma vez, Salmu Saruma, perdoe meus irmos, eles no sabiam o que faziam onannariano explicou, abrindo a portinhola. Sigam para a minha direita no corredor e subam asescadas para o segundo andar. Encontraro um escritrio grande, com uma janela de onde Sarumapoder se tornar ave e voar para a liberdade!

    Jarkenum por pouco no conteve a risada ao ouvir aquilo, mantendo a expresso sria efazendo sinal para que Adapak se juntasse a eles do lado de fora da cela. O jovem hesitou deincio, mas uma olhadela para o armrio que guardava suas espadas o incentivou a acatar a

  • sugesto. O imperador Saruma precisa que voc abra esse armrio tambm Jarkenum disse para a

    sentinela, como se lesse a mente do rapaz de pele negra. O nannariano o obedeceu de imediato,demorando um pouco a encontrar a chave de osso correta, mas obtendo xito na terceira tentativa.

    Os Quatro Que So Um sero para sempre gratos, irmo agradeceu o humano, adiantando-se para recuperar sua bolsa e armas. De olhos marejados, o oficial se aproximou de Adapak,admirando-o como um tesouro h muito sonhado. Ele balbuciou algo que a emoo sufocou nagarganta, e o espadachim aproveitou a deixa para lhe perguntar algo.

    Ikibu. J ouviu essa palavra antes? Ikibu? No, Salmu Saruma, m-me perdoe ele respondeu com sinceridade na voz. Devo...

    diz-la a algum? No, eu... Esquea o espadachim disse, frustrado. As chaves lembrou Jarkenum, indicando-as com o queixo. Devem ter outras portas

    fechadas por a, no ? Ah, sim, claro, eu, ahn... Eu as deixarei com vocs ele falou, entregando o molho a Adapak. Voc pode ser punido se descobrirem que nos ajudou o rapaz sugeriu, preocupado. H coisas mais importantes do que isso a sentinela respondeu sem pestanejar, virando-se e

    desaparecendo na curva do corredor. O espadachim foi at o armrio e encarou pensativo suabolsa e as bainhas de Igi e Sumi.

    Vamos, garoto o apressou Jarkenum, j pronto. Eu... vou ficar o rapaz sussurrou, fechando o mvel. O qu?Adapak travava um conflito interno desde que pisou fora da cela; a madrugada viera sem

    indcios de seus perseguidores e, se ele esperasse at de manh, seria um indivduo livre e noum fugitivo da lei que escapou da priso de Urpur. Ele tambm sabia que, se encontrasseoposio armada, os Crculos se acenderiam e vidas inocentes seriam perdidas, piorando aindamais a situao.

    Eu disse que vou ficar reforou, entregando o molho de chaves ao homem de cabeloscompridos. Vou voltar para a cela e esperar at de manh.

    Oh, no, senhor, voc vem comigo. Se ficar aqui vai dizer s sentinelas que fugi! O qu? Por que eu faria isso? Porque est com raiva de mim, por isso! Agora pegue suas malditas coisas e me siga. No. V voc, eu no vou avisar ningum insistiu o jovem, retornando ao aposento e

    fechando a portinhola. Mas que bosta, voc no estava louco para sair daqui? Vamos! Eu mudei de ideia. V voc!O homem mordeu os lbios, soltou um palavro inaudvel e se virou na direo contrria que

    a sentinela tinha ido. Espere ele disse, interrompendo o andar e se virando para Adapak. Me responda uma

    coisa antes. O qu? Voc no... voa... Voa?

  • Adapak sorriu. No ele respondeu, se afastando das barras. Balanando a cabea, o homem partiu pelo

    corredor.Adapak se sentou cama e permaneceu de ouvidos atentos, mas no ouviu nada por um bom

    tempo.

    Algum gritou.

    O rapaz se levantou. Tinha certeza de que o som viera do corredor e no da rua, mas o ecodificultava ter certeza da direo. Jarkenum deve ter cortado a garganta de uma pobresentinela, pensou com raiva, voltando at a frente da cela. A portinhola estava destrancada e oarmrio estava a trs ou quatro passos de distncia, mas a lgica insistia que a melhor estratgiaera permanecer onde estava. Passos apressados vieram da direita. Adapak apostou que veria oex-companheiro de cela ser arrastado de volta ao crcere antes que o sol nascesse.

    A princpio, o espadachim achou que se tratava de outra sentinela, pois sob a fraca luz doslampies ele discerniu um humano trajando uma armadura justa de couro castanho-escuro. Eleportava uma cimitarra desembainhada e inspecionava cada cela com cuidado. O que o entregoufoi a palavra que disse ao se deparar com Adapak.

    Ikibu.O jovem de pele negra empurrou a portinhola, acertando o ombro do homem e o jogando para

    trs enquanto saa da cela. O humano se recomps e iniciou um corte circular com a espada, maso rapaz se adiantou, interrompeu o movimento com o brao esquerdo e socou a junta do cotoveloinimigo com o punho direito, deslocando-a e fazendo-o gritar de dor e largar a arma. Adapakacertou-lhe a garganta com fora e ele se calou para sempre.

    O espadachim foi at o armrio e o abriu, desembainhando os instrumentos de violncia eescutando com ateno.

    Mais estavam vindo.

  • O Lago Sem Ilha

    No princpio, Kurgala era mar. E ento Os Quatro Que So Um desceram.

    Primeira Tbua Dingir

    NO COLOCA o p na gua!! gritou o pequeno Adapak. Pode ter alguma coisa lembaixo!

    A canoa de madeira deslizava suave pelo Lago Sem Ilha, desenhando uma reta quase perfeitaem sua superfcie serena. O sol da manh dava boas-vindas aos trs ocupantes do veculo, querumavam para a grande ilha central.

    Est tudo bem, garoto assegurou Barutir, mascando uma raiz de mochi e recolocando os psna canoa. No tem perig...

    Tem sim! contestou o franzino e cinzento Adapak. A criana de 4 ciclos de idade sesegurava no banco da pequena embarcao com fora, contemplando a escurido abaixo comdesconfiana. Sbito, algum o empurrou de leve por trs, fazendo-o se agarrar lateral do barcocom um grito de desespero.

    Dannum, pare com isso, pelo amor dos Quatro pediu Barutir para o terceiro ocupante dacanoa, que remava na parte de trs e gargalhava.

    Adapak olhou com um misto de raiva e medo para o peludo sadummuniano, que arreganhava agrande mandbula em um sorriso de desdm. Os pares superior e inferior de presas j erammaiores que o resto dos dentes, mas seriam muito maiores quando ele fosse adulto, a ponto deimpedir que fechasse a boca completamente.

    No devia tratar seu amigo assim sugeriu Barutir para o aluno, na Lngua Antiga. Ele no meu amigo. Olha como fracote! retrucou Dannum, desfazendo o sorriso e

    revirando os quatro olhos.Apesar de contar somente dois ciclos a mais que Adapak, a superioridade fsica do

    sadummuniano era evidente: o tronco largo comportava um par de longos braos musculosos quetrabalhavam em conjunto com as pernas curtas no caminhar. Outros quatro braos preenchiam suasilhueta, ainda que consideravelmente menores em tamanho e fora.

    uma pena ouvir isso lamentou Barutir Ob, balanando a cabea calva.O humano de pele marrom-escura estava com 49 ciclos de idade, embora aparentasse ser mais

    novo que o padro que sua espcie sugeria. Ele trajava um longo manto verde em camadas,adornado por smbolos estranhos que Adapak no compreendia. Sob a vestimenta, o corpo erarobusto e bem dividido entre os 8 cascos de altura, com exceo da pequena barriga indicadorade refeies levemente exageradas.

    Sei que est assustado, garoto, mas estamos sob a proteo dos Dingir ele disse, tocando ocristal esmeralda preso ao cordo ao redor do pescoo. Os Quatro sabem de tudo que aconteceem Kurgala, e duvido que fossem deixar um peixe qualquer nos comer no quintal de uma de suas

  • Casas. Meu pai diz que h coisas no mar de Kurgala capazes de comer navios! falou Dannum,

    balanando a canoa. Para! pediu Adapak, se encolhendo. Ento ainda bem que estamos em um lago e no no mar, Dannum falou Barutir, com um tom

    reprovador.O sadummuniano desfez o sorriso e resmungou: um lago com um nome idiota, isso sim... Fiquem quietas, crianas, por favor falou o humano, tirando a gasta raiz de mochi da boca e

    a jogando na gua. Estamos chegando.A ilha principal do Lago Sem Ilha era cercada por altas rvores de jib, protegendo a montanha

    central de olhares externos como uma fortaleza negra de madeira. Dannum direcionou a canoapara uma das poucas margens sem rochas, sentindo-a roar no fundo barrento at parartotalmente. Barutir desceu da embarcao, afundando os chinelos na lama.

    Estamos em solo sagrado agora, meninos, sintam-se honrados ele falou, orgulhoso, tirandouma pequena bolsa da canoa e pendurando-a no ombro. Dannum, pegue as malas de Adapak,por gentileza.

    Eu? Porque o fracote no pega as prprias coisas? Porque voc mais forte, mais velho e tem seis braos, garoto. Agora pare de reclamar, pela

    Voz Esmeralda! Meu pai oficial da sentinela de Urpur Dannum disse, descendo do barco e molhando a

    sandlia na lama tambm. Eu no deveria estar carregando as malas de ningum.Barutir fechou o rosto e se aproximou do aluno queixoso a passos largos, parando em frente a

    ele e encarando-o de baixo para cima. Apesar de jovem, o sadummuniano j alcanava quase 9cascos de altura de puro msculo e gordura, cobertos por uma volumosa pelagem avermelhada. Ohumano ento falou com voz firme:

    Seu pai foi quem me encarregou de ser seu sacerdote, ento se tiver qualquer outrareclamao, fique vontade e faa a ele. At l, vou espremer seu ego at que saia um pouco dehumildade, Dannum. Agora pegue as malas.

    A criana mais velha fez cara feia e obedeceu, a contragosto. Adapak no se manifestouenquanto saa da canoa; ele olhava para o interior da ilha, interpretando cada forma e sombracom sua imaginao frtil e apavorada. Barutir se distanciou deles e j alcanou a grama frenteda linha das rvores, iniciando com as mos uma srie de movimentos ritualsticos direcionados floresta.

    Fracote! Ei, fracote! Sabe por que chamam esse lago de Lago Sem Ilha? sussurrouDannum, tirando a segunda mala da canoa.

    Adapak o olhou desconfiado, mas mordeu a isca: Por qu? Porque essa ilha em que estamos agora no existia. No assustador? Como assim? Como, como assim? o que estou dizendo. Essa ilha inteira simplesmente apareceu no

    lago, de um dia para o outro, h muitos ciclos atrs. Antes s havia aquela ilhota que passamosperto antes, de canoa, e aquele pilar l na margem oeste, onde deixamos os sisus amarrados.

  • No, voc... Voc est fingindo isso s pra me assustar, eu sei. No estou, fracote, pode perguntar para Barutir depois, se quiser.Adapak estudou o rosto do colega em busca de trapaa, mas no encontrou. Isso o aterrorizou

    ainda mais e ele correu para segurar a mo de Barutir, que agora observava a floresta, atento. Foiquando viram algum se aproximar.

    A-aquele um dos Quatro? perguntou a criana. No respondeu o sacerdote, srio. um de seus olhos. Ns os chamamos de mellat. Meu pai as chama de marionetes sussurrou Dannum, juntando-se aos dois e pousando as

    malas no cho.Adapak apertou a mo de Barutir com mais fora quando a figura alta, magra e bpede

    caminhou para fora da escurido das rvores com movimentos precisos. Ela era inteiramentecoberta por uma complexa camada de folhas e musgo e o par de braos e pernas eram compridose finos, terminando em mos e ps alongados de quatro dedos cada. Sua cabea abaloada noexibia lbios, ouvidos ou narinas; somente um par de grandes olhos ovais, verdes e espelhados.

    Aquela palavra apavorou Adapak. Marionetes.

    A criatura se aproximou com passos calculados e parou em frente aos trs. Ela ento seabaixou at que a cabea ficasse bem prxima a Adapak, que se agarrou perna do sacerdote. Asenormes esferas esmeralda encontraram os olhos brancos da criana, que se viu incapaz dedesviar do olhar vazio e espelhado do mellat.

    Adapak.

    Sbito, o ser se virou e pegou as trs malas, erguendo-as sem dificuldade e sem emitir som. Emseguida deu meia-volta na direo de onde viera e parou, como que aguardando que o seguissem.

    Por que essas marionetes so to diferentes das outras que vemos por a, vivendo nascidades? o sadummuniano perguntou.

    Por que os mellat que vemos l fora no respondem mais aos Dingir desde que deixaram aCasa Abandonada de Anu Nr, infelizmente Barutir respondeu, pesaroso. Agora vamos,Adapak, temos que ir com ele. Dannum, voc fica aqui com a canoa.

    O qu?! ele protestou, batendo a sandlia na lama. No! Por qu?! Porque essa a vontade do Um Que Quatro. Agora se despea do seu amigo.Dannum fechou o rosto e se aproximou de Adapak, que estreitou as narinas ao sentir o cheiro

    desagradvel dos seus pelos molhados (ele secretamente o chamava de tapete sujo). Osadummuniano manteve os dois olhos principais no sacerdote enquanto encarava Adapak com ooutro par, e ento ergueu uma das mos inferiores na sua direo. A criana se encolheu, receosapelo histrico da relao dos dois, mas se acalmou quando o sadummuniano a pousou no ladoesquerdo de seu peito frgil.

    Nascemos fracos pelo ventre, morremos fortes por Sadummum disse Dannum em suaprpria lngua, a contragosto.

    A criana de pele cinza no compreendeu as palavras, mas sabia que aquele cumprimento nocontinha respeito algum, pois o sadummuniano nunca deixara de importun-lo nos quase dois

  • ciclos que foram forados a conviver. Satisfeito, Barutir pegou o garoto novamente pela mo eambos seguiram o mellat.

    No havia uma trilha a seguir e o avanar pela vegetao no foi fcil para a criana; elatropeava e parava para ajeitar as pequenas sandlias constantemente, vigiando os arredores comos olhos apreensivos. O interior da ilha no era to escuro quanto parecia do lado de fora e elenotou que, espalhadas pela mata, existiam outras criaturas semelhantes que carregava as malas;umas mais altas, outras com braos ou pernas mais ou menos compridos. Algumas caminhavam,outras permaneciam estticas, mesclando-se flora natural para um observador distrado.

    Marionetes.

    Aps algum tempo a entrada da caverna apareceu em um paredo rochoso da montanha. Barutirsentiu o brao esticar para trs quando Adapak reduziu os passos bruscamente, no escondendo aapreenso em adentrar a passagem.

    Espere um pouco, garoto, quero mascar outra raiz antes de entrarmos disse o humano,sentando-se em uma pedra arredondada e tirando uma pequena caixa de madeira da bolsa deombro. O menino parou tambm, mas o mellat no; adentrando o enorme vo com as malas edeixando seus Convidados para trs.

    Adapak, voc sabe por que Dannum no gosta de voc? perguntou o humano, abrindo acaixa e tirando dela uma raiz de mochi.

    Porque eu... Porque ele diz que eu sou fraco. Voc se acha fraco? Eu no sei.Barutir sorriu de leve, colocando a raiz na boca. Adapak, Dannum no gosta de voc porque ele tem medo de voc ele disse. Ele no tem medo de mim, ele sempre me bate! o garoto retrucou, fazendo uma careta de

    descrdito. Exatamente.Adapak no entendeu. O sacerdote se apoiou na outra perna e prosseguiu: Bom, me deixe contar uma coisa para voc... mas primeiro sente-se a. Aonde? Eu no sei, essa outra pedra a est bom. Isso. Sabe quantos ciclos eu tinha quando conheci

    essa ilha? No. Trinta ciclos! , eu j fui jovem tambm, garoto... Ou voc acha que j nasci barrigudo

    assim? ele brincou, dando dois pequenos tapas na barriga e divertindo a criana. Eu era um homem diferente naquela poca e morava em um povoado ao lado da capital Alul,

    h muitas luas de viagem daqui continuou, tirando o cordo de dentro do manto e o manuseando,distrado. O cristal verde em sua ponta tinha a forma de um tringulo e media metade do dedoindicador do homem. L eu era sacerdote de um templo chamado Templo da Voz Esmeralda,e ns tnhamos muuuitos alunos, muito mais do que tenho hoje, na verdade. Um desses alunoschamava-se Telalec.

    Telalec?

  • Sim, e ele era um aluno muito inteligente, alm de um espadachim impressionante, j naquelaidade jovem... Sabia que os ushariani envelhecem muito mais rpido do que qualquer outraespcie em Kurgala?

    Ah, ? Sim, por isso que j se comportam como adultos quando ainda parecem crianas o homem

    explicou. Eles aprendem tudo muito mais rpido do que qualquer um tambm, fascinante.Bom, Telalec pertencia a uma importante famlia de espadachins, dedicada proteo dosimperadores de Larsuria...

    Proteo de qu? Ora, de quem quer que queira... machucar o imperador Barutir explicou, escolhendo bem a

    palavra. Mas... Por que tem gente querendo machucar o imperador? H sempre algum querendo machucar algum imperador, Adapak. Eles so pessoas com

    muito poder, e por causa disso afetam a vida de muita gente. E h pessoas que querem impediralgumas decises, ou at mesmo roubar esse poder para elas, entende?

    Acho que sim. Bom o sacerdote prosseguiu. Telalec tinha uma famlia muito tradicional e por causa

    disso o colocaram como meu aluno no templo da Voz Esmeralda, o maior templo Dingir deEriduria.

    Que legal! Na verdade, Telalec achou exatamente o oposto disso, Adapak. Ele detestava as aulas e

    questionava as Tbuas Dingir sempre que possvel. Por que ele ia pro templo, ento? Porque assim como Dannum tem um pai autoritrio que o fora a ter aulas comigo hoje,

    Telalec tinha uma famlia que o forava tambm. Por qu? a criana perguntou, ajeitando-se na pedra. Acho que porque s vezes o homem comeou a responder, fazendo uma pausa enquanto

    pensava no resto da frase os pais acham que vai ser mais fcil se derem um empurrozinhopara que os filhos pensem da mesma maneira que eles... Eles no fazem isso por mal, entende?Quando temos uma filosofia de vida que sentimos que funciona bem para ns, natural quedesejemos o mesmo para algum que gostamos, principalmente nossos filhos. O problema queem grande parte das vezes, e isso digo como um sacerdote que j viu esse padro dezenas devezes, os filhos acabam desenvolvendo uma barreira contra aquela filosofia, pois esto sendoforados a aprend-la.

    Barreira? Sim, uma antipatia, quero dizer. No me entenda errado, garoto, eu sou um servo dos Quatro,

    mas no acho que impor a filosofia vai fazer algum se interessar em aprend-la.O humano fez mais uma pausa, mascando a raiz, pensativo. Infelizmente ele continuou , a famlia de Telalec no pensava como eu nesse sentido e,

    como ele estava l contra a vontade, fazia questo de demonstrar sua descrena doutrina emquase todas as aulas. E o fato do nosso templo estar relativamente perto desse lugar onde estamoshoje, o deixava ainda mais revoltado. Por que no vamos at a Casa dos seus deuses e

  • batemos na porta para ver se eles existem mesmo?, ele sempre me perguntava. E como tinhadio em seus discursos... Me lembro at hoje daquele olhar inundado de insegurana, masdisfarado de agresso... Pobre garoto, tive que mud-lo de turma mais de uma vez e essa atitudeno o fazia ser o mais popular entre os alunos, acredite em mim.

    Adapak ouviu um movimento nas folhas distncia e se virou, assustado. Barutir olhoutambm, mas no viu nada.

    No nada, no se preocupe, vamos continuar a histria ele retomou. E ento, um dia,Telalec no apareceu no templo. Pensei que estivesse doente, mas depois de trs luas senti quetinha algo de errado.

    A famlia dele falou pra ele no ir mais? Foi o que eu achei tambm, Adapak, e ento perguntei aos outros alunos se sabiam o que tinha

    acontecido. Sabe o que eles me contaram? O qu? Que Telalec tinha resolvido vir at o Lago Sem Ilha para provar que os Quatro eram lendas! E... E a? Bom, levei a questo aos meus superiores, mas vir at aqui era fora de questo para eles,

    porque as Tbuas Dingir deixam bem claro que absolutamente ningum, NINGUM deve pisarnas Casas Deles. Aqueles que desobedeceram, desapareceram para sempre.

    Adapak olhou em volta apavorado, lembrando-se do que Dannum tinha lhe dito sobre a ilhaantes.

    M-mas... a gente t aqui! Oh, sim, calma, calma Barutir falou, levantando-se e indo at Adapak, o confortando.

    Nosso caso hoje diferente. Mas, naquela poca, o templo proibiu qualquer um de vir procurarmeu aluno.

    At a famlia dele? At a famlia dele, garoto, sim o homem confirmou, sentando-se agora no cho ao lado da

    pedra onde a criana se apoiava. E eles no ficaram zangados porque ningum deixou eles virem procurar por ele? Bom, Adapak, complicado... Quero dizer, Telalec tinha decidido violar uma regra muito

    importante, entende? E se algum fosse atrs dele, iria quebrar essa regra tambm, logo ficoudecidido que o destino dele estava nas mos dos Quatro.

    E... o que aconteceu com ele? Ele sumiu tambm? Bom, houve uma pessoa que no foi capaz de aceitar a deciso do Templo e decidiu vir atrs

    do ushariani. Quem? Bom, eu Barutir respondeu, abrindo um sorriso. Voc?! Sim. Eu no pude concordar com aquilo... Telalec era s um menino que tinha tomado uma

    deciso estpida, s isso. o que jovens fazem, tomam decises estpidas, mesmo os ushariani. Eu sou jovem, mas no sou estpido disse Adapak, cruzando os braos. No, Adapak, mas voc... o humano se interrompeu, considerando como completar a frase.

    Voc diferente. J te disse isso.

  • A criana continuou de cara emburrada. O sacerdote resolveu prosseguir com a histria: Bom, eu pensava que talvez fosse capaz de alcanar Telalec antes que ele pisasse na ilha,

    ento fiz uma pequena mala, aluguei o sisu mais veloz que minhas moedas podiam pagar e partide Alul, orando para que Os Quatro aprovassem minha deciso.

    Voc no ficou com medo? Medo? Claro, garoto, o que acha?! No errado ter medo, entende? Se algum diz pra voc

    que no tem medo de nada, esse algum louco ou idiota. L na vila o Dannum me disse que no tinha medo de vir aqui. Bom, louco eu sei que ele no .Adapak pensou um pouco e ento soltou uma risada. O sacerdote prosseguiu: Enfim, segui as estradas principais perguntando por meu aluno em todas as estalagens, mas

    ele tinha uma boa distncia de vantagem em comparao a mim. E ento, depois de dez luas deviagem, eu cheguei no Lago Sem Ilha, l perto da margem onde deixamos os sisus, est vendo? ele disse, apontando na direo do pilar.

    Voc tinha uma canoa que nem essa que a gente trouxe hoje? Canoa? Hah! Eu tive que vir nadando, garoto! Deixei minhas coisas l e nadei at aqui, quase

    morri de frio... E achou o Telalec? Achei o rastro dele: dois corpos de mellat cados logo na margem. Cados? Mortos, garoto. Esquartejados pela espada de uma criana inconsequente. Orei para Os

    Quatro pedindo perdo e adentrei a floresta, torcendo para impedir mais blasfmias... E depoisde dois outros corpos eu cheguei aqui, nesta entrada de caverna que estamos em frente.

    E a?! E Telalec? Bom o humano falou, fazendo uma pausa para tossir. Eu o achei l dentro. E ele... Ele estava... Ele estava morto? No respondeu o sacerdote, sorrindo e cuspindo a raiz de mochi na grama. Ele estava

    bem, feliz e comendo bolinhos de geleia.Confusa, a criana balbuciou