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A O ESPECTRO DE MALTHUS T homas Malthus estava errado, hoje sabemos com certeza. Depois de Malthus, ciclos de inovações tecnológicas aplicadas à agricultura propiciaram a expansão da produção de alimen- tos em ritmo bem superior ao do crescimento populacional. As crises de fome, que nunca desapareceram, experimentaram nítida redução ao longo do século XX. Além disso, princi- palmente, elas não derivaram da falta de alimentos, mas sem- pre da carência de renda. Hoje, porém, há algo de novo no cenário da segurança alimentar. Os preços dos alimentos rondam um recorde histórico. As revoluções árabes, assim como, anos atrás, revoltas sociais em diversos países, foram parcialmente impulsionadas pela alta nos preços da comida. O G-20 colocou o tema da segu- rança alimentar no alto de suas prioridades. A crise de pre- ços tem razões conjunturais: eventos climáticos extremos e quebras de safras, oscilações especulativas nos mercados fi- nanceiros, as repercussões da alta paralela nos preços do pe- tróleo. Mas não é só isso. Há uma crise estrutural em curso. A produção global de alimentos parou de crescer mais rápido que a expansão demográfica. A demanda, por outro lado, aumenta em ritmo maior que o do crescimento populacional. China e Índia, entre outras economias emer- gentes, pressionam o mercado de alimentos – assim como o mercado de petróleo. Há uma mudança mundial de dieta, na direção da carne, dos laticínios e dos vegetais. Os preços podem cair em poucos meses, sob o influxo sa- zonal da oferta e da procura. Mas subirão novamente. A crise não desaparecerá sem mudanças políticas e sociais profundas. Veja as matérias nas págs. 6 a 9 A fome foi um dos principais estopins da revolução árabe E mais... Editorial – Diante das re- beliões populares, os dita- dores árabes assobiam a melodia do “inimigo exter- no”. É um velho tema, que sempre ressurge. Pág. 3 Quando todos os olhos es- tavam postos na Líbia, for- ças da Arábia Saudita entra- vam no Bahrein para esma- gar a insurgência. A tem- pestade no mundo árabe já abala a ordem geopolítica no “golfo do petróleo”. Pág. 3 O Meio e o Homem – “O Egito é uma dádiva do Nilo”. Mas as águas do grande rio já são insufici- entes para o Egito e pro- vocam tensões internacio- nais em toda a área da ba- cia hidrográfica. Pág. 10 Diário de Viagem – A França é o país das revolu- ções. A fúria contra a re- cessão e a queda do nível de vida contamina Paris, uma vez mais. Pág. 11 A estabilidade matemática da previdência social repou- sa sobre o chão instável da demografia. No Brasil, uma pirâmide etária em transi- ção ameaça os alicerces do sistema previdenciário. Pág. 12 ANO 19 Nº 2 ABRIL/2011 TIRAGEM: 20 000 EXEMPLARES Fogo sobre a Líbia Líbia não seguiu o roteiro da Tunísia e do Egito. O ditador Muhammar Kadafi resistiu ao impacto inicial do levante popular e contra-atacou, ameaçando esmagar os opositores e promover uma banho de sangue em cidades inteiras. Há inúmeras singularidades que separam a Líbia do Egito e da Tunísia. No país de Kadafi, o Exército oficial não tinha o monopólio da força. Além disso, o tirano exercia o poder manipulando um teia complexa de relações tribais e clânicas. Há outra singularidade líbia. Os ditadores tunisiano e egípcio ti- nham amigos poderosos, os Estados Unidos e as potências europeias, que os abandonaram na hora da revolução árabe. Os amigos de Kadafi, embora pouco poderosos, não o abandonaram. Eles não estão no mun- do árabe, nem na África, mas na América Latina: são a Cuba de Fidel Castro, a Venezuela de Hugo Chávez e a Nicarágua de Daniel Ortega. Págs. 4 e 5 RONDA O PLANETA 150 ANOS DA GUERRA CIVIL AMERICANA © Biblioteca do Congr esso, Washington © Patrick Baz/AFP

O ESPECTRO DE MALTHUS T RONDA O PLANETA - … · Muhammar Kadafi resistiu ao impacto inicial do levante popular e contra-atacou, ameaçando esmagar os opositores e promover uma banho

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A

O ESPECTRO DE MALTHUS

Thomas Malthus estava errado, hoje sabemos com certeza.

Depois de Malthus, ciclos de inovações tecnológicas aplicadasà agricultura propiciaram a expansão da produção de alimen-tos em ritmo bem superior ao do crescimento populacional.As crises de fome, que nunca desapareceram, experimentaram

nítida redução ao longo do século XX. Além disso, princi-palmente, elas não derivaram da falta de alimentos, mas sem-pre da carência de renda. Hoje, porém, há algo de novo nocenário da segurança alimentar.

Os preços dos alimentos rondam um recorde histórico.As revoluções árabes, assim como, anos atrás, revoltas sociaisem diversos países, foram parcialmente impulsionadas pelaalta nos preços da comida. O G-20 colocou o tema da segu-rança alimentar no alto de suas prioridades. A crise de pre-ços tem razões conjunturais: eventos climáticos extremos equebras de safras, oscilações especulativas nos mercados fi-nanceiros, as repercussões da alta paralela nos preços do pe-tróleo. Mas não é só isso. Há uma crise estrutural em curso.

A produção global de alimentos parou de crescer maisrápido que a expansão demográfica. A demanda, por outrolado, aumenta em ritmo maior que o do crescimentopopulacional. China e Índia, entre outras economias emer-gentes, pressionam o mercado de alimentos – assim como omercado de petróleo. Há uma mudança mundial de dieta,na direção da carne, dos laticínios e dos vegetais.

Os preços podem cair em poucos meses, sob o influxo sa-zonal da oferta e da procura. Mas subirão novamente. A crisenão desaparecerá sem mudanças políticas e sociais profundas.

Veja as matérias nas págs. 6 a 9A fome foi um dos principais estopins da revolução árabe

E mais...

● Editorial – Diante das re-beliões populares, os dita-dores árabes assobiam amelodia do “inimigo exter-no”. É um velho tema, quesempre ressurge.

Pág. 3

● Quando todos os olhos es-tavam postos na Líbia, for-ças da Arábia Saudita entra-vam no Bahrein para esma-gar a insurgência. A tem-pestade no mundo árabe jáabala a ordem geopolíticano “golfo do petróleo”.

Pág. 3

● O Meio e o Homem – “OEgito é uma dádiva doNilo”. Mas as águas dogrande rio já são insufici-entes para o Egito e pro-vocam tensões internacio-nais em toda a área da ba-cia hidrográfica.

Pág. 10

● Diário de Viagem – AFrança é o país das revolu-ções. A fúria contra a re-cessão e a queda do nívelde vida contamina Paris,uma vez mais.

Pág. 11

● A estabilidade matemáticada previdência social repou-sa sobre o chão instável dademografia. No Brasil, umapirâmide etária em transi-ção ameaça os alicerces dosistema previdenciário.

Pág. 12

■ ANO 19 ■ Nº 2 ■ ABRIL/2011 ■

TIRAGEM: 20 000 EXEMPLARES

Fogo sobre a Líbia Líbia não seguiu o roteiro da Tunísia e do Egito. O ditador

Muhammar Kadafi resistiu ao impacto inicial do levante popular econtra-atacou, ameaçando esmagar os opositores e promover umabanho de sangue em cidades inteiras. Há inúmeras singularidades queseparam a Líbia do Egito e da Tunísia. No país de Kadafi, o Exércitooficial não tinha o monopólio da força. Além disso, o tirano exercia opoder manipulando um teia complexa de relações tribais e clânicas.

Há outra singularidade líbia. Os ditadores tunisiano e egípcio ti-nham amigos poderosos, os Estados Unidos e as potências europeias,que os abandonaram na hora da revolução árabe. Os amigos de Kadafi,embora pouco poderosos, não o abandonaram. Eles não estão no mun-do árabe, nem na África, mas na América Latina: são a Cuba de FidelCastro, a Venezuela de Hugo Chávez e a Nicarágua de Daniel Ortega.

Págs. 4 e 5

RONDA O PLANETA

150 ANOS DA

GUERRA CIVIL AMERICANA

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M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 22011 ABRIL

PANGEA – Edição eComercialização deMaterial Didático LTDA.

Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr.,Nelson Bacic Olic (Cartografia)

Jornalista Responsável: José Arbex Jr.(MTb 14.779)Revisão: Jaqueline Rezende

Pesquisa Iconográfica: Odete E. Pereirae Etoile ShawProjeto e editoração eletrônica:Wladimir Senise

Endereço: Rua Romeu Ferro, 501São Paulo – SPCEP 05591-000Fones: (0XX11) 3726.4069 / 2506.4332Fax: (0XX11) 3726.4069E-mail: [email protected]

Assinaturas: Por razões técnicas, nãooferecemos assinaturas individuais.Exemplares avulsos podem ser obtidos noseguinte endereço, em São Paulo:• Banca de jornais Paulista 900, à Av. Paulista, 900

Fone: (0XX11) 3283.0340

www.clubemundo.com.br

E X P E D I E N T E

REGULAMENTO

■ Quem poderá participar?Todos os alunos do ensino médio das escolas assi-nantes de Mundo.

■ Qual é a forma de participação?Cada escola poderá enviar até cinco redações. To-mamos a liberdade de sugerir que as escolas reali-zem um concurso interno de seleção. Todos os lei-tores de Mundo podem participar, mas apenas me-diante a intermediação das escolas. Por razões pe-dagógicas, não aceitaremos redações enviadas sema anuência da escola.

■ Qual é o prazo para o envio das redações?Serão aceitas redações recebidas na sede da Pangea,em São Paulo (nosso endereço pode ser encontradona página 2 de Mundo, na seção Expediente)impreterivelmente até 8 de julho de 2011.

■ Quais devem ser as características das redações?As redações devem ter no máximo 40 linhas e,obrigatoriamente, conter título. Cada escola re-ceberá, durante o mês de maio, cinco folhas pau-tadas e numeradas para a transcrição dos textosselecionados. As folhas preenchidas deverão serremetidas à sede da Pangea. Este formato é obri-gatório, inclusive para garantir o sigilo: aComissão Julgadora não terá acesso ao nome dosautores ou das respectivas escolas.

■ Quem julgará os trabalhos?As redações serão avaliadas por uma ComissãoJulgadora integrada por professores de Comuni-cação e Expressão de reconhecido saber e experi-ência no ensino médio.

■ As redações serão publicadas?A redação vencedora será publicada e comentadana edição de outubro de 2011 de Mundo. Outras

Mais informações: Veja “O tema daredação” na pág. 2 do Boletim Mundonº 1 – março/2011

redações poderão, eventualmente, ser publicadas.Importante: Os autores, ao participarem do con-curso, concedem a Mundo o direito de publicar suasredações, sem remuneração autoral, no próprio bole-tim ou sob outra forma. As redações enviadas nãoserão devolvidas.

■ Haverá prêmios para os melhores trabalhos?Sim. Os autores das dez melhores redações serãopremiados por Pangea e empresas patrocinadorasdo concurso. O 1º colocado receberá um aparelhode som no valor de R$ 800. Do 2º ao 5º, todosreceberão MP4 no valor de R$ 200. Do 6º ao 10ºcolocado, serão ofertados prêmios em livros.

"Infelizmente não foi possível localizaros autores de todas as imagens

utilizadas nesta edição.Teremos prazer em creditar os

fotógrafos, caso se manifestem."

160 CONCURSO NACIONAL DE REDAÇÃO MUNDO E H&C - 2011Escreva e se inscreva!!!

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PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O

ABRIL 2011

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NA VASTA FARSA JUDICIÁRIA DOS PROCESSOS DE

MOSCOU DOS ANOS 1930, JOSEPH STALIN ELIMINOU,FISICAMENTE, OS LÍDERES DO PARTIDO COMUNISTA DA

UNIÃO SOVIÉTICA (PCUS) QUE, ELE IMAGINAVA, AIN-DA PODERIAM CATALISAR ALGUMA RESISTÊNCIA À SUA

DITADURA ABSOLUTA. GRIGORY ZINOVIEV, NIKOLAI

BUKHARIN E OS DEMAIS RÉUS FORAM CONDENADOS PELA

ACUSAÇÃO DE TRAIÇÃO À PÁTRIA E APRESENTADOS COMO

AGENTES DE CONSPIRAÇÕES ORGANIZADAS POR POTÊN-CIAS ESTRANGEIRAS.

O TEMA DO “INIMIGO EXTERNO” DESEMPENHOU

PAPEL CRUCIAL TAMBÉM PARA ADOLF HITLER. O NA-ZISMO FOI CONSTRUÍDO SOBRE O ALICERCE IDEOLÓGI-CO DO MEIN KAMPF, QUE EVOCAVA UM CONFLITO ETER-NO ENTRE A “RAÇA ARIANA” E OS JUDEUS. DE ACORDO

COM A NARRATIVA NAZISTA, OS JUDEUS CONTROLAVAM OS

GOVERNOS AMERICANO, FRANCÊS E BRITÂNICO, ARTICULAN-DO UMA CONSPIRAÇÃO MUNDIAL CONTRA A PÁTRIA ALEMÃ.

STALIN E HITLER DESTRUÍRAM SEUS INIMIGOS INTER-NOS, REAIS OU IMAGINÁRIOS, DESCREVENDO-OS COMO INI-MIGOS EXTERNOS. A CLÁSSICA OPERAÇÃO DE LINGUAGEM DOS

MAIS SANGUINÁRIOS DITADORES DO SÉCULO XX RESSURGE

ENTRE OS TIRANOS ÁRABES ACOSSADOS PELOS LEVANTES PO-PULARES. POUCO ANTES DE CAIR, O EGÍPCIO HOSNI MUBA-RAK ACUSOU OS OPOSICIONISTAS DE FIGURAREM COMO PE-ÕES DE “POTÊNCIAS ESTRANGEIRAS”, INSINUANDO QUE OS

ESTADOS UNIDOS E ISRAEL, AMBOS SEUS ALIADOS, MANIPU-LAVAM A REVOLUÇÃO POPULAR. O LÍBIO MUHAMMAR KADAFI

FOI AINDA MAIS LONGE. FALANDO PARA O MUNDO, DESCRE-VEU OS REBELDES COMO TERRORISTAS DA AL-QAEDA, UMA

ACUSAÇÃO QUE SUSTENTOU MESMO APÓS O INÍCIO DA

INTERVENÇÃO MILITAR AUTORIZADA PELA ONU. NUMA

DIREÇÃO OPOSTA, FALANDO PARA OS LÍBIOS, CRISMOU AREVOLTA POPULAR COMO UM MOVIMENTO DIRIGIDO PELO

“IMPERIALISMO”.OS TIRANOS NÃO INVOCAM O “INIMIGO EXTER-

NO” APENAS PORQUE ESSE É UM EXPEDIENTE POLÍTICO

ÚTIL OU EFICAZ. ELES O FAZEM, AO MENOS EM PARTE,PORQUE ACREDITAM REALMENTE NAQUILO QUE DIZEM.“EU SOU A LÍBIA”, CLAMOU KADAFI DURANTE O AUGE

DA REVOLTA POPULAR. OS TIRANOS IMAGINAM-SE A

ENCARNAÇÃO DA PÁTRIA. NÃO PODEM ADMITIR, OBVIA-MENTE, O PRINCÍPIO DA PLURALIDADE POLÍTICA – OU

SEJA, A NOÇÃO DEMOCRÁTICA BÁSICA DE QUE A DIVER-GÊNCIA É UM DIREITO INALIENÁVEL. É BOM VÊ-LOS CAIR.

E D I T O R I A L

OS TIRANOS E O “INIMIGO EXTERNO”

vivem como nababos. Preventivamente, orei saudita Abdullah prometeu a distribui-ção imediata de alguns bilhões de dólaresem “obras sociais” para acalmar os ânimos.Mas são medidas paliativas.

Finalmente, a entrada em cena das tro-pas sauditas foi decisiva para que a maio-ria dos 22 estados membros da Liga Ára-be aprovasse a Operação Alvorada daOdisseia de ataque à Líbia pela Organiza-ção do Tratado do Atlântico Norte (vejamatéria na pág. 4), contra a vontade dealguns estados que manifestaram aberta-mente sua oposição (como a Síria e a Ar-gélia). Tanto o alinhamento da Liga Ára-be com os ataques externos a um país ára-be (como é o caso da Líbia) quando asdivergências na cúpula da organização ten-dem a alimentar o ânimo dos movimen-

tos que querem ficar livre das monarquiase ditaduras corruptas. Não por acaso, ne-nhum dos integrantes da Liga Árabe, nemmesmo as monarquias do CCG se dispu-seram a assumir qualquer papel efetivo daoperação, vista por todo mundo árabe eafricano como um ataque da OTAN.

O governo iraniano, que enfrenta pro-testos em seu próprio território, mantémuma posição de cautela, aparentementeapostando no desgaste da Arábia Saudita –seu principal rival na região do Golfo. “OsEstados Unidos continuarão a ser derrota-dos na região”, afirmou o aiatolá Seyed AliKhamenei, em discurso durante as come-morações do Ano Novo persa, celebradono dia 21 de março. E continua: “O Irãcondena o comportamento do governolíbio contra o povo, a morte de civis, a pres-

TENSÕES SE ACUMULAM NO GOLFO PÉRSICO

Em 16 de março, pelo menos mil solda-

dos da Arábia Saudita invadiram o Bahrein,apoiados por cerca de 150 veículos milita-res blindados de transporte de tropas e 50outros veículos, incluindo ambulâncias,tanques de água, caminhões e jipes. Emteoria, a monarquia saudita atendia a umapelo de um estado-membro do Conselhode Cooperação do Golfo (CCG), formadopelos dois países e também pelo Kuwait,Qatar, Omã e os Emirados Árabes Unidos.Na prática, o gesto saudita marcou umaperigosa transposição de limites políticos egeopolíticos, que leva o mercado mundialdo petróleo a um passo do caos (veja maté-ria na pág. 9).

O envolvimento saudita direto nosconflitos é perigoso por se tratar da mo-narquia encarregada de vigiar os locaismais sagrados do Islã (incluindo Meca eMedina). É desse fato, aliás, que a monar-quia extrai grande parte de sua autorida-de sobre os 1,4 bilhão de muçulmanosespalhados pelo mundo. O seu envolvi-mento direto, implicando a morte de “ir-mãos de fé” por projéteis sauditas, intro-duz um elemento perigoso de desagrega-ção. Além disso, o envolvimento sauditaamplia as tensões no interior do CCG. Seo efeito imediato da repressão é o de “acal-mar” os rebeldes, no médio e longo prazotende a explodir o conflito latente entre amaioria de uma população mantida namiséria, enquanto os príncipes (só naArábia Saudita há algo como 8 mil deles)

são contra a vontade do povo, o bombar-deio de cidades líbias por líbios. Mas tam-bém condena a ação militar estrangeira naLíbia. Os Estados Unidos e outros exérci-tos ocidentais dizem defender o povo. Masnão se defende o povo com operações mi-litares de exércitos estrangeiros, nem cominvasão e intervenção militar. A Líbia foiinvadida. Nenhum dos exércitos estrangei-ros que hoje invadem a Líbia lá está paradefender o povo. Vocês estão à caça do pe-tróleo líbio.”

Acumulam-se, portanto, as tensões naregião do Golfo Pérsico, de valor absolu-tamente estratégico para a economia pla-netária. O futuro não promete dias bri-lhantes.

O Conselho de Cooperação do Golfo

Países componentes do Conselho de Coop. do Golfo

GO

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País líder do Conselho de Cooperação do Golfo

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EMIRADOSÁRABESUNIDOS

IRAQUE

KUWAIT

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0 500 km

REVOLUÇÃO ÁRABE

Em Benghazi, rebeldes tomam tanque antes pertencentea tropas leais a Kadafi

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nacionalista e pan-arabista e, inicialmente, tentou supri-mir a divisão tribal. Em pouco tempo, contudo, se ren-deu a ela. Como o ex-ditador Saddam Hussein, do Iraque,Kadafi ofereceu privilégios econômicos de um lado emanipulou rivalidades inter-tribais de outro. Colocougrupos rivais no Exército e nas forças de segurança parase prevenir contra um golpe. “Kadafi preencheu os altoscomandos militares com oficiais de sua própria tribo,Gaddafa, ou de tribos leais a ele”, diz o jornalista AmeenIzzadeen, do Daily Mirror de Sri Lanka. Ao mesmo tem-po, “ele também fez de suas forças paramilitares organi-zações mais poderosas do que o Exército, lideradas porhomens majoritariamente de sua tribo e de outras tribosleais”. De fato, as forças paramilitares constituem o prin-cipal sustentáculo de seu poder. Elas somam cerca de 10

OTAN ENTRA NO CONFLITO PELA PORTA DA LÍBIA

No final de março, a Organização do Tratado do Atlân-tico Norte (OTAN) resolveu, finalmente, assumir a lide-rança da Operação Alvorada da Odisseia, destinada a con-trolar o espaço aéreo líbio e impedir o massacre de civispelas tropas do ditador Muhammar Kadafi. O anúncioprovocou a condenação do Irã e de alguns países-mem-bros da Liga Árabe (veja matéria na pág. 3), e causoutensões dentro da própria OTAN. A Turquia – país demaioria islâmica e de importância estratégica na região –, por exemplo, condicionou o seu apoio ao respeito àResolução 1.973 da ONU, que limita a amplitude dasações militares ao embargo de armas para o governo opres-sor, assim como permite a garantia de ajuda humanitáriaàs vítimas civis. O problema é que a resolução não auto-riza a OTAN a apoiar ou impor mudança de regime ougoverno. Mas este é, precisamente, o “nó górdio” na Líbiade Kadafi, dada a natureza específica do regime por eledominado há quatro décadas com mão de ferro.

Na Tunísia e no Egito, os exércitos tiveram papéis fun-damentais na queda dos ditadores. Nos dois casos, os co-mandantes militares se recusaram a reprimir a multidãoque saiu às ruas. No Egito, o Exército assumiu provisoria-mente o poder, no lugar do ditador Hosni Mubarak – elepróprio, um oficial da Aeronáutica. Em ambos os casos, asforças armadas, embora nunca tivessem deixado de serguardiões dos respectivos regimes, conservaram uma au-tonomia institucional e um prestígio social que lhes per-mitiram se distanciar dos governos e garantir a estabilida-de política. Na Líbia, Kadafi enfrentou defecções nas filei-ras militares e teve que recorrer às milícias e a mercenáriosestrangeiros para tentar conjurar a guerra civil que eclodiuno país. Lá, embora o poder também tenha nascido daponta do fuzil, o Exército não teve protagonismo.

Parte da explicação está nas características históricas,geográficas e sociais da Líbia. Desde a época do ImpérioRomano, o país está dividido em três regiões distintas: aCirenaica, a leste, a Tripolitânia, a noroeste, e Fezzan, asudoeste. A organização social líbia se baseia nas 140 tri-bos e nos clãs familiares dessas regiões. Historicamentedivididas, as tribos da Líbia se uniram militarmente como colapso do Império Turco-Otomano para enfrentar oinvasor italiano, em 1911 e nos anos 1920. Em 1931, oditador fascista Benito Mussolini esmagou a rebelião efez da Líbia uma colônia italiana. Nesse conflito contraos italianos, destacou-se Omar Mukhtar, o lendário guer-reiro líbio cuja história Hollywood retratou no filme OLeão do Deserto, de 1981, com Anthony Quinn no papelprincipal. Com a derrota da Itália na Segunda GuerraMundial, a Cirenaica e a Tripolitânia ficaram com os bri-tânicos e Fezzan com os franceses.

A Líbia conquistou sua independência em 1951, como rei Idris I como monarca. Ele manteve intacta a estru-tura tribal do país, equilibrando-se entre os interesses dastribos para governar. Quando assumiu o poder por meiode um golpe militar, em 1969, Kadafi tinha uma agenda

REVOLUÇÃO ÁRABE

mil homens bem armados e equi-pados. A melhor unidade é a 32ªBrigada, conhecida como BrigadaKhamis, comandada por um dossete filhos homens do ditador.

O coração da rebelião é justa-mente a Cirenaica, região rica empetróleo e onde estão as principaistribos hostis ao ditador – Warfalhahe Zawiya (veja o mapa). A regiãotambém é o berço de organizaçõesislâmicas radicais, como o GrupoIslâmico Líbio de Luta (GILL), queparticipou de ações contra a antigaUnião Soviética no Afeganistão, nosanos 1980. Muitos jihadistas depoisretornaram à Líbia, onde tentaramassassinar Kadafi em 1996. Com aviolenta repressão que se seguiu, amaioria dos integrantes do grupofugiu do país e alguns se engajaramna luta contra os americanos no Afe-ganistão e no Iraque. Consideradosterroristas perigosos pelo governolíbio e pelos ocidentais, eles são ti-dos como heróis por muitas tribosda Cirenaica, inclusive pelos Imnifa,à qual pertenceu o líder da resistên-cia contra os italianos, OmarMukhtar. Seu filho, MohammedOmar Mukhtar, de 90 anos, diz quese equivocam aqueles que reduzemo conflito na Líbia a apenas uma lutaentre tribos. “Ele tem esperança quetodas as tribos se unam novamentepara derrubar Kadafi, mostrando a

mesma unidade que seu pai forjou para liderar a guerracontra os colonialistas italianos”, diz Ameen Izzadeen.

“Há temores de que, ao contrário da Tunísia e noEgito, a rebelião na Líbia possa resultar não apenas namudança do governante, mas também a mudança do re-gime e talvez o colapso do Estado”, diz Scott Stewart,analista do site Stratfor. No Egito e na Tunísia, regimesmilitares fortes puderam manter a estabilidade depois dasaída dos ditadores. Na Líbia, não é assim. Isso significaque o país, rico em petróleo, “poderá cair na espiral docaos, o ambiente ideal para o florescimento de jihadistas,como foi demonstrado pela Somália e pelo Afeganistão”,conclui Stewart. E pelo Iraque, poderíamos acrescentar.

Tribos são a base da organização social do país e da rebelião contra Muhammar Kadafi.Forças especiais, milícias e mercenários são o núcleo do poder militar do ditador

Cláudio CamargoEspecial para Mundo

Cláudio Camargo é jornalista e sociólogo

Em Benghazi, milhares demulheres participam damanifestação contra o regimede Kadafi

Tripolitânia Fezzan Cirenaica

Limite nortedo Saara

Principais jazidasde petróleo e gás

Gasodutos eoleodutos

Líbia: regiões, cidades e recursos

CHADE

TUNÍSIA

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ABRIL 2011

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As revoluções árabes, na África do Norte e no OrienteMédio, levantaram questões sobre democracia e autocra-cia, com fortes repercussões na América Latina. FidelCastro, ditador de Cuba durante quase meio século, en-tre 1959 e 2008, afastou-se de seus cargos públicos e setornou algo como um “sábio conselheiro” do partidoúnico na ilha. Agora, ele se dedica a escrever artigos queindicam os rumos políticos do Partido Comunista Cu-bano (PCC). Em suas “Reflexões” de 13 de fevereiro, elemenciona uma “rebelião revolucionária no Egito”.

Estaria Fidel em compasso com o que pensa o restodo mundo, com escassas exceções? Longe disso. No Egi-to o povo levantou-se, segundo seu texto, contra um di-tador “colocado e mantido no poder pelos imperialistas”.Por isso, o levante pode ser catalogado como “revolucio-nário”. Os egípcios derrubaram um autocrata sem outrasarmas a não ser a disposição à luta. Mas o que fizeram osegípcios é legitimado, de acordo com tal lógica, pelo fatode que o ex-presidente Hosni Mubarak oprimiu e rou-bou seu próprio povo, depois de colocado no poder pe-los imperialistas. Tratou-se, portanto, de uma revolução.

Na Líbia, a coisa foi outra, segundo Fidel. Em suas“Reflexões” de 21 de fevereiro, ele denunciou a supostaexistência de um plano da OTAN para ocupar a Líbia. Olevante popular na Líbia não seria revolucionário porquenão se tratava de derrubar um malfeitor de braços dadoscom o “imperialismo”, como Mubarak. MuhammarKadafi é anti-imperialista e jogar-se contra ele, como fezo povo líbio, equivaleria a fazer o jogo do imperialismo –isto é, fazer uma contra-revolução, não uma revolução.

A linguagem da ideologia percorre um trajeto separa-do da esfera dos fatos. Não importam as imagens queidentificam o que aconteceu na Líbia com o que aconte-ceu no Egito. Fidel expressa “apoio ao povo egípcio e àsua coragem na luta por direitos políticos e justiça soci-al”. É revolução, portanto, de acordo com o dirigente deum país no qual a liberdade de expressão da divergênciaé criminalizada como traição. Por outro lado, Fidel serecusa aceitar que aconteceu na Líbia um movimento“popular e revolucionário”. Concentra-se no “crime quea OTAN estaria prestes a cometer contra o povo da Líbia”.Mas não reconhece os crimes que Kadafi cometeu contraseu povo (veja a matéria na pág. 4).

Sob a lógica do cubano, a supressão das liberdade naLíbia não é assunto que mereça registro – assim como aausência de liberdades em Cuba não merece registro. Fidelescreve que o golpe antimonárquico liderado por Kadafi,em 1969, “demoliu as classes exploradoras e prometeuemancipação às massas”. Mas não seria exagero dizer queisso tenha de fato acontecido na Líbia, um país converti-do quase que numa propriedade do clã de Kadafi e deseu círculo próximo?

Fidel não está só. O presidente Daniel Ortega, daNicarágua, disse que, durante os dias críticos de março,telefonou para Kadafi, seu companheiro “revolucioná-

rio”, oferecendo apoio em “tempos difíceis”, e também“a solidariedade dos sandinistas nicaraguenses”. Ortega,o líder da Frente Sandinista de Libertação Nacional(FSLN) pelo menos foi eleito democraticamente. Mas osandinismo já não tem mais uma única bandeira. Ra-chou, vítima das ambições pessoais de Ortega, que an-dou enfrentando acusações graves e tem em seu encalçoum “sandinismo autêntico”. Além disso, foi contamina-do pelo vírus chavista das reeleições indefinidas.

Não há oposição legal em Cuba e não se admite oposi-ção a Fidel no interior do PCC. A Venezuela não é Cuba.Apesar de tudo, no país sul-americano existem oposições ea contestação encontra espaços mesmo dentro do chavistaPartido Socialista Unido da Venezuela (PSUV). HugoChávez parece ter percebido contradições nas observaçõesde Fidel e o primeiro a tocar no assunto, do lado venezue-lano foi seu ministro do Exterior, Nicolas Maduro. Segun-do time, portanto. A Venezuela acabou sendo voto solitá-rio contra expulsão da Líbia da Comissão de DireitosHumanos da ONU. “O povo líbio terminará encontran-do, no exercício de sua soberania, uma solução pacificapara suas dificuldades, que preserve as integridades do povoe da nação líbia sem interferência do imperialismo”, disseMaduro, com alguma cautela, no auge da crise.

Chávez conversou com o presidente da Síria, que per-tence a uma ditadura dinástica há 40 anos no poder, so-bre o que aconteceu no Egito. E disse, como se quisesse

marcar um ponto de partida, que “há 20 anos a AméricaLatina dormia e agora começa a levantar-se por meio deum socialismo revolucionário”. Terminou propondo ne-gociações entre Kadafi e oposição na Líbia.

A proposta de Chávez tinha um duplo significado.De um lado, implicaria no reconhecimento da existênciade uma oposição líbia legítima, algo impensável paraKadafi e para Fidel. De outro, na hora em que foi formu-lada, antes da contraofensiva de Kadafi e da intervençãoda ONU, estava destinada a funcionar como tábua desalvação para o ditador líbio. Ninguém levou a sério aproposta do venezuelano. Lula, mencionado por ele comopossível mediador da crise líbia, nem mesmo ofereceuuma resposta. Mas ela evidenciou as dificuldades deChávez de navegar no cenário complexo criado pela in-surreição na Líbia.

O Peru foi a único país latino-americano a rompercom a Líbia de Kadafi. Chile e Argentina se aproxima-ram dessa postura, criticaram a violência contra os rebel-des, mas ficaram por aí. O Brasil também deplorou asações de Kadafi e foi além, ajudando a suspender seuregime do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Anota destoante ficou por conta do ex-chefe da Casa CivilJosé Dirceu, que usou seu blog para fazer uma avaliaçãosemelhante à de Fidel, apenas um pouco mais comedida.

OS AMIGOS LATINO-AMERICANOS DE KADAFI

REVOLUÇÃO ÁRABE

No auge da crise de março, Fidel Castro, Daniel Ortega e Hugo Chávez destacaram-seentre as raras vozes a defender o ditador da Líbia. O Brasil, que não acompanhou o trio,

marcou sua oposição à violência contra os rebeldes líbiosNewton CarlosDa Equipe de Colaboradores

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Para o presidente venezuelano Hugo Chávez, osataques da OTAN às tropas de Kadafi são resultadode uma estratégia de se apoderar do petróleo líbio etambém uma tentativa de liquidar um “símbolo da

resistência ao imperialismo”

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M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 62011 ABRIL

O G-20 COLOCA A SEGURANÇA

não é a fórmula malthusiana simplista,tantas vezes desmentida, que explica odescompasso atual. A pressão de deman-da decorre menos do crescimentopopulacional que de transformações eco-nômicas e sociais mais complexas. O au-mento da renda da população pobre emgrandes economias emergentes – China,Índia, Brasil, Indonésia, Turquia, entreoutras – reflete-se em mudanças nos há-bitos alimentares. A expansão dasmegacidades anda lado a lado com a eli-minação de produtores alimentares de sub-sistência. A humanidade diversifica seuconsumo alimentar, enquanto se tornacada vez mais dependente do comércio dealimentos. Nas próximas quatro décadas,o crescimento populacional mundial seráinferior a 30%, com um salto dos atuais 7bilhões de seres humanos para algo em tor-no de 9 bilhões. Contudo, em virtude des-sas transformações estruturais, a produçãode alimentos terá que crescer bem maisdo que isso. E os maiores aumentos deve-rão se dar nos itens carne e laticínios (vejao gráfico 1).

A resposta encontra-se na tecnologia,como revela a história do crescimento daprodutividade dos plantios de trigo (veja ográfico 2). De meados do século XIX até a

UMA ERA DE COMIDA BARATA CHEGOU AO FIM. UMA COMBINAÇÃO DE FATORES – DEMANDA CRESCENTE NA ÍNDIA E NA CHINA, UMA

MUDANÇA DE DIETA DOS CEREAIS NA DIREÇÃO DA CARNE E DOS VEGETAIS, A EXPANSÃO DO USO DO MILHO COMO COMBUSTÍVEL, EMUDANÇAS FORA DA AGRICULTURA, COMO A DESVALORIZAÇÃO DO DÓLAR – ENCERROU O PERÍODO ABERTO NO INÍCIO DA DÉCADA

DE 1970 NO QUAL O PREÇO REAL DOS ALIMENTOS BÁSICOS (ARROZ, TRIGO E MILHO) SE REDUZIA ANO A ANO.

(JOHN PARKER, “THE 9 BILLION-PEOPLE QUESTION – A SPECIAL REPORT ON FEEDING THE WORLD”, THE ECONOMIST, 24 DE FEVEREIRO DE 2011)

tema central da agenda do G-20 nãoé a guerra cambial entre os Estados Uni-dos e a China. Não é, também, a novaregulação do sistema financeiro interna-cional. Os países do fórum que vem to-mando o lugar do antigo G-7 têm umapreocupação prioritária, que é a seguran-ça alimentar.

Desde 1984, os preços dos alimentos,em termos reais, não atingiam os níveis atu-ais. Em 2008, eles conheceram forte cres-cimento, mas depois retrocederam. Agora,uma nova alta generalizada se manifesta nomundo inteiro. O fenômeno gera conse-quências sociais e políticas. Milhões de pes-soas que vivem abaixo da linha de pobrezasão lançadas à miséria e enfrentam o espec-tro da fome. A difusão da miséria acirra ainstabilidade política nos mais diversos pa-íses. A revolução árabe foi precipitada peloaumento geral dos preços dos alimentos(veja a matéria na pág. 7).

A alta de preços em curso é determina-da por fatores conjunturais, como eventosclimáticos extremos em determinados gran-des produtores de cereais, associados à de-manda de milho no setor energético dosEstados Unidos e aos efeitos da especula-ção financeira nos mercados futuros de ali-mentos (veja a matéria na pág. 8). O pre-ço dos alimentos sofre, ainda, os efeitos doaumento dos preços do petróleo, queincidem tanto sobre a produção agrícolaquanto sobre os transportes. A revoluçãoárabe, especialmente o levante na Líbia e ainstabilidade nos arredores da ArábiaSaudita, impulsionam aquilo que muitosjá classificam como um novo “choque dopetróleo” (veja a matéria na pág. 9).

O presidente francês Nicolas Sarkozytentou persuadir o G-20 a se concentrarnos “demoníacos especuladores”, mas nãoobteve muito sucesso. De fato, a especu-lação financeira nos mercados de alimen-tos é um componente da crise. Contudo,não se deve exagerar seu significado. Asapostas nos contratos futuros provocamoscilações de curto prazo, às vezes inten-sas, nos preços. De qualquer forma, taisoscilações não afetam o comportamentodos preços em prazos longos.

A soma de fatores conjunturais consti-tui apenas uma parte – e não a decisiva – daexplicação. O G-20 tem razão quando defi-ne o tema como prioridade número um: asraízes profundas da crise repousam em de-sequilíbrios estruturais, de longo prazo. Pelaprimeira vez, desde a década de 1960, a pro-dução de trigo e arroz, os dois mais impor-tantes cereais, cresce em ritmo menor que oda expansão demográfica mundial.

O espectro do velho Thomas Malthussempre emerge das profundezas quandose trata de crises alimentares. Contudo,

década de 1960, os índices de produtivida-de do trigo não adubado e do trigo aduba-do (com adubos orgânicos ou inorgânicos)conheceu alterações pequenas. Então, a in-trodução de novos herbicidas, na chamadaRevolução Verde, propiciou um primeirosalto na produtividade do trigo adubado.Vinte anos depois, as técnicas de rotaçãode culturas, somadas à introdução de no-vos fungicidas e da variedade semianã, im-pulsionaram um segundo salto na produ-tividade do trigo adubado. A história dotrigo se repete, com variações, para os maisdiversos produtos, como o milho, a soja, oarroz, o feijão, a carne e os laticínios.

Contudo, a expansão da produtivida-de agrícola esbarra na carência de investi-mentos, especialmente nos países em de-senvolvimento. Na Ásia, na África, naAmérica Latina, milhões de produtoresfamiliares não têm acesso às inovações ci-entíficas e tecnológicas aplicadas à agri-cultura. A barreira econômica é a causado crescimento insuficiente da produtivi-dade, em escala mundial.

É uma barreira econômica com raízespolíticas. União Europeia, Estados Uni-dos e Japão continuam a sustentar políti-cas de protecionismo agrícola destinadasa proteger os produtores nacionais. Sub-

sídios bilionários são os principais instru-mentos dessas políticas. Junto com eles,aplicam-se tarifas alfandegárias, cotas deimportação e barreiras fito-sanitárias opor-tunistas. O resultado final é o fechamen-to de imensos mercados consumidores aosprodutores dos países pobres.

A barreira da renda também está rela-cionada às políticas agrária e agrícola nospaíses em desenvolvimento. Os grandesprodutores empresariais têm, geralmenteacesso às melhores terras, aos sistemas dearmazenamento e transporte, às linhas decrédito. No polo oposto, abandonados, osagricultores familiares são obrigados a cir-cunscrever suas safras aos mercados locaisou a permanecer numa esfera próxima àsubsistência – quando não perdem suasterras e se deslocam para as cidades.

As “revoluções verdes” do passado re-cente não tocaram na fronteira econômi-ca e social que segrega a massa de peque-nos agricultores, separando-os do merca-do mundial de alimentos. Um novo, in-dispensável, salto tecnológico na agricul-tura só acontecerá se, antes, conseguir li-bertar o imenso potencial produtivo douniverso dos pobres do campo.

Gráfico 2Gráfico 1

ANOS

FONTE: Food and Agriculture Organization (FAO)

Demanda global de alimentos(1961 = 100)

600

500

400

300

200

100

0

PREVISÃO

20 30 40 501961 70 80 90 2000 10

Carnes

Laticínios

Cereais

Raízes etubérculos 10

8

6

4

2

080 20051955 80 1900 20 40 60

FONTE: Adaptado de Rothamsted Research

PLANTIO CONTÍNUONão adubado

Com pequeno uso defertilizantes inorgânicos

Apenas com aduboorgânico

PLANTIO EM ROTAÇÃO

Com uso deferlizantes orgânicos

Com uso deadubo orgânico

Evolução da produtividade do trigo(toneladas por hectare)

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PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O

ABRIL 2011

7

PREÇOS DOS ALIMENTOS DEFLAGRARAM

A REVOLUÇÃO ÁRABE

A ALIMENTAR NO TOPO DE SUA AGENDA

17 de dezembro, 2010: Mohamed Bouazizi, 25 anos, vendedor ambulante dehortaliças, imolou-se em fogo, em Sidi Bouzid (perto de Túnis, capital da Tunísia),ao ter as suas mercadorias apreendidas pela polícia. O auto-sacrifício incendiou opaís: manifestações de revolta na capital, cidades e vilarejos derrubaram o ditadorZine Ben Ali, no poder desde 1987. Foi o sinal para que grandiosas manifestaçõeseclodissem na Argélia, na Jordânia, no Iêmen, no Egito e na Líbia, envolvendotodo o Oriente Médio e o norte da África (veja a matéria na pág. 4). O fato deBouazizi ser um vendedor de hortaliças fortalece o aspecto simbólico de seu gesto:a miséria – não o fundamentalismo islâmico ou o extremismo político – levoumilhões às ruas.

Se as dimensões da revolução árabe surpreenderam o mundo, suas causas jáeram bem conhecidas. Em 2010, especialistas da ONU advertiram para a proximi-dade de uma nova crise alimentar mundial. Tinham como base a crise alimentarmundial de 2008, que elevou o preço dos alimentos básicos a níveis inaceitáveispara a maioria da população e provocou revoltas sociais, algumas com derrama-mento de sangue, do México à Indonésia. Como observa Michael Krätke, profes-sor da Universidade de Lancaster:

“Em dezembro de 2010, o índice dos preços dos alimentos da Organizaçãopara a Agricultura e a Alimentação (FAO) – calculado por uma cesta básica conten-do trigo, milho, arroz, soja, açúcar, azeite e laticínios – chegou ao seu ponto maiselevado desde 1990, primeiro ano da sua elaboração. Chegou aos 215 pontos, aci-ma dos 213,5 pontos de junho de 2008, quando a crise de então atingiu o seuponto culminante. (...) A maioria dos países africanos depende hoje da importaçãode alimentos, enquanto os Estados árabes, com o Egito à cabeça, se consolidaram jácomo os maiores importadores de cereais do mundo. Na Tunísia, na Argélia e noEgito as famílias têm de investir entre 40 e 50% dos seus recursos na compra dealimentos, de modo que o aumento dos preços de 20% e até 25% que se viveu apartir de novembro não pôde ser absorvido. Muito menos por uma populaçãoesmagadoramente jovem que sofre um insuportável desemprego.”

Em 2009, o número de famintos no mundo ultrapassou a patamar de um bi-lhão de seres humanos, segundo Jaques Diouf, então secretário-geral da FAO. Deacordo com dados divulgados pela organização não governamental Ação Agrária

Alemã, a fome atinge 642 milhões de pessoas na Ásia, 265 milhões no sul da Áfricae 53 milhões na América Latina. Mas os dados estão subestimados, segundo Diouf,por terem sido colhidos em 2007, antes da crise alimentar verificada no anoseguinte. Além disso, a cifra seria muito mais elevada se fosse levada em conta asubnutrição e suas consequências para a saúde. “O século XXI ameaça ser o séculoda fome”, adverte Bärbel Dieckmann, presidente da ONG alemã.

Ainda segundo a FAO, cerca de 2 bilhões de seres humanos sofrem de carênciade micronutrientes, incluindo ferro, iodo, cálcio, outros minerais e vitaminas A, Ce outras. A subnutrição e as carências de vitaminas e minerais essenciais supõem umcusto de mais de 5 milhões de vidas de crianças por ano (14 mil por dia) e, para oslares dos países em desenvolvimento, mais de 220 milhões de anos de vida produti-va dos familiares que morrem prematuramente ou tornam-se incapacitados. A cadaano, mais de 20 milhões de bebês nascem com baixo peso no mundo em desenvol-vimento. Eles correm um risco maior de morrer durante seus primeiros anos devida, de sofrer um atraso em seu crescimento físico e cognitivo, de ter capacidadesreduzidas para trabalhar e obter salário na etapa adulta e, se são mulheres, de dar àluz, elas também, a recém-nascidos com peso abaixo do normal. O atraso do cresci-mento, como o baixo peso ao nascer, é associado a uma maior incidência de doençase mortes, assim como ao menor rendimento escolar durante a infância e a umaprodutividade e ganhos mais baixos ao longo da vida na etapa adulta.

Há um abismo entre o quadro de horrores descrito acima e a face brilhante daRevolução Verde (a mecanização intensiva da agricultura combinada com o avançobiotecnológico), mola propulsora do agronegócio. A agricultura mundial emprega,no total, cerca de 1,3 bilhão de pessoas ativas, o que significa aproximadamente 3,5bilhões de seres humanos, contando os familiares, isto é, praticamente a metade dapopulação planetária. Mas existem apenas 28 milhões de tratores em operação. Cer-ca de um bilhão de camponeses e agricultores familiares trabalham unicamente comequipamentos manuais e utilizam 250 milhões de animais de tração na produção.Além disso, cerca de 500 milhões de pequenos produtores não usam sementes co-merciais, nem adubos ou agrotóxicos e uma parcela de 200 a 300 milhões dis-põem apenas de uma fração de um hectare de terra. Como resultado, a cada ano,cerca de 50 milhões de trabalhadores rurais são expulsos do campo e vão parar nasperiferias miseráveis das grandes cidades.

Assim, a crescente concentração de riqueza das corporações do alimento, seaumenta a produtividade mediante o uso de tecnologias cada vez mais sofisticadas(a face “brilhante” do agronegócio), piora muito a situação de quem não temacesso a essas mesmas tecnologias. Os camponeses pobres formam o vasto exérci-to de seres humanos forçados, quando podem, a vender sua força de trabalho porvalores aviltantes em grandes plantações (não raro, os “salários” situam-se no li-mite de US$ 2 diários, valor que serve de parâmetro de linha de pobreza para oBanco Mundial). Esse quadro geral é agravado pelo comércio dos alimentos nomercado mundial de commodities, que transformou comida em moeda especulativa,sujeita às flutuações das bolsas de valores.

Foi em reação a isso que surgiram grandes organizações e movimentos sociais,no Brasil e no mundo, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra(MST) e a Via Campesina. Eles organizam protestos e lutas pela reforma agrária emtodos os países onde a “questão da terra” se coloca com força. Claro que a luta pelaterra é muito antiga, talvez tão velha quanto a história conhecida da humanidade.Mas é no mundo contemporâneo que ela ganha dimensão global. Ironicamente,justo quando as tecnologias existentes permitiriam, tranquilamente, gerar e distri-buir muito mais alimento do que o necessário para todos os seres humanos existi-rem com saúde e dignidade.©

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A

ESPECULAÇÃO FINANCEIRA PRESSIONA

PREÇOS DA COMIDA escalada de preços dos alimentos nos

últimos meses tem chamado a atenção dacomunidade internacional. Segundo a Or-ganização para a Agricultura e a Alimenta-ção (FAO), em 2010, o valor das commoditiesagrícolas registrou uma alta de quase 25%,atingindo o patamar mais elevado desde1990. Em 2011 e nos próximos anos, é pro-vável que a alta do preço dos alimentos con-tinuará sendo um dos principais fatores parao aumento das pressões inflacionárias emtodo o mundo – penalizando os segmentosmais pobres da população mundial, justa-mente aqueles que empregam a maior partede suas rendas no item alimentação (veja amatéria na pág. 7).

O drama da fome no mundo, nos últi-mos cinquenta anos, esteve muito mais liga-do à carência de renda do que à disponibili-dade mundial de alimentos. Mas, nos últi-mos anos, registram-se com frequência pro-blemas na produção e na oferta de alimentosbásicos em países e regiões de grande impor-tância agrícola. Um dos problemas tem sidoa ocorrência de eventos naturais extremoscomo a seca e as altas temperaturas sem pre-cedentes registradas em 2010 na Rússia e asdiluvianas inundações na Austrália.

Não é que faltem alimentos. Se anali-sarmos a produção, o consumo e os esto-ques mundiais de cereais – os principaisprodutos consumidos e comercializados nomundo – veremos que o volume produzi-do ao longo da última década cresceu emcerca de 500 milhões de toneladas (Mt),embora com quedas ao longo do período,como nas safras de 2002/2003, 2006/2007e 2008/2009. Em relação à demanda, hou-ve um crescimento contínuo do volumeconsumido, que chegou a ultrapassar a pro-dução em alguns anos da década.

Para evitar as consequência de descom-passos momentâneos entre oferta e de-manda foram criados os estoques interna-cionais de alimentos. No decorrer da pri-meira década do século XXI, os volumesdos estoques experimentaram significati-va redução. Na safra 2000/2001, os esto-ques perfaziam cerca de 600 Mt. As pre-visões da safra 2010/2011 apontam paraalgo em torno de 480 Mt, uma queda de20% (veja o gráfico 1).

Vários especialistas defendem que acrise atual não está relacionada à escassezde alimentos, como a que ocorreu em2007/2008. Segundo eles, o uso do ter-

mo escassez é incorreto se for levado emconta o fato de que cerca de um terço doscereais produzidos mundialmente são uti-lizados como alimento para animais e paraa produção de agrocombustíveis. A previ-são para a safra de 2010/2011 é poucomenor do que a de 2007/2008, data daúltima grande crise alimentar. A principaldiferença entre as duas crises é que, na de2008, a alta dos preços foi impulsionadaprincipalmente pelo arroz, enquanto a atu-al tem no trigo e, em menor escala, nomilho, os fatores de instabilidade.

Com referência ao milho, comparan-do-se os resultados da safra de 2006/2007com os da safra de 2009/2010, constata-seque houve um aumento da produção emcerca de 100 Mt. No mesmo período, oconsumo aumentou em 90 Mt e os esto-ques em 36 Mt. A previsão é que, em 2011,haverá redução da produção em 4 Mt, en-quanto o consumo aumentará em 27 Mt eos estoques diminuirão em 33 Mt (veja ográfico 2). A redução de estoques está rela-cionada a dois grandes produtores: os Es-tados Unidos e a Argentina. No primeirocaso, deriva do aumento do uso do milhona produção de etanol. No segundo, deri-va dos efeitos da seca sobre a safra atual,comprometida em cerca de 30%.

No caso do trigo, ocorreu aumento da

ALIMENTOS E PETRÓLEO

oferta entre as safrasde 2006/2007 e2008/2009 e umaqueda de 8 Mt nasafra de 2009/2010. O consumoaumentou poucomais de 6,5% noperíodo 2006 a2010, enquanto osestoques, surpreendentemente, tiveramum incremento de quase 60% (veja o grá-fico 3). As previsões para 2011 sinalizampara uma queda da produção mundial em31 Mt, especialmente em função das chu-vas torrenciais na Austrália e da forte secano Cazaquistão. Quanto ao consumo, pro-jeta-se um crescimento de 11 Mt em rela-ção à safra anterior, enquanto os estoquespoderão conhecer redução de 13 Mt.

Sob o ângulo exclusivo da oferta e dademanda a situação seria mais de preocu-pação do que de crise. Acontece que entraem cena um fator cada vez mais importan-te: a especulação. Ao longo da última dé-cada, o capital financeiro passou a ser in-vestido nos mercados internacionais de pro-dutos agrícolas, especialmente após a criseno setor imobiliário nos Estados Unidos eda desvalorização do dólar. Aliado a gran-des empresas que controlam o mercado de

sementes e da distribuição mundial de ce-reais, o capital financeiro investe cada vezmais intensamente no mercado futuro dealimentos, na expectativa de que os preçoscontinuarão a subir. Desde 2002, os fun-dos de investimento canalizaram para essemercado cerca de US$ 200 bilhões. Con-clusão: quanto mais altos forem os preçosdos alimentos, maior será o retorno dosinvestimentos financeiros.

A dimensão da crise será definida daquipara frente em função de uma complexacombinação de inúmeros fatores onde sedestacam a dinâmica demográfica, a evolu-ção do padrão de vida de parcela significati-va da população mundial, a frequência deeventos climáticos extremos e a especulaçãofinanceira. Se o aumento dos preços dos ali-mentos se tornar permanente, acirrará ten-sões sociais em dezenas de países.

Oferta de alimentos ainda acompanha demanda crescente, mas os preços sofrem os efeitos de umacombinação de eventos climáticos extremos e especulação financeira

Gráfico 1 Gráfico 2

Gráfico 3

2300

Milhõesde Toneladas

2000/01

2200

2100

2000

1900

18002002/03 2004/05 2006/07 2008/09 2010/11ANO DA

SAFRA

800

700

600

500

400

300

Produção (escala do lado esquerdo)

Consumo (escala do lado esquerdo)

Estoques (escala do lado direito)FONTE: FAO

Milhõesde Toneladas

Cereais: Produção, consumo e estoques

2006/07 2007/08 2008/09 2009/10 2010/11*

FONTE: USAD

1600

1400

1200

1000

800

600

400

200

0

Milh

ões

de

ton

elad

as

Ano da safra * Previsão

Estoques

Consumo

Produção

Milho: produção, consumo e estoques

125 122

170 198 185

610 612 638 650 661

598 609 686 678 647

Trigo: produção, consumo e estoques

1600

1400

1200

1000

800

600

400

200

0

Milh

ões

de

ton

elad

as

1800

2006/07 2007/08 2008/09 2009/10 2010/11*

FONTE: USAD

Ano da safra * Previsão

Estoques

Consumo

Produção

117

137 155 153 120

725 775 781 815 842

710 795 799 813 809

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ABRIL 2011

9

“O

NOVO CHOQUE DO “OURO NEGRO” AMEAÇA

RECUPERAÇÃO GLOBAL preço do petróleo tem demonstrado

uma capacidade infalível de explodir a eco-nomia mundial, e o Oriente Médio, comfrequência, fornece o seu detonador. O cho-que do petróleo de 1973, a Revolução Ira-niana, em 1978-1979 e a invasão do Kuwaitpor Saddam Hussein, em 1990, são doloro-sos lembretes de como a combinação regio-nal de geopolítica e geologia pode provocaro caos. Com protestos surgindo na ArábiaSaudita, o mundo caminha para um novochoque? Há boas razões para preocupação.O Oriente Médio e o norte da África pro-duzem mais de um terço do petróleo mun-dial. As revoltas na Líbia mostram que a re-volução pode rapidamente interromper ofornecimento (...). A produção na Líbia caiupela metade, enquanto técnicos estrangei-ros emigram e o país se esfacela.”

A advertência, feita por um editorialda revista britânica The Economist, emmarço, oferece um quadro bastante sinté-tico e real dos riscos provocados pela re-volução árabe. As chances de uma “explo-são” econômica mundial são agravadaspelo quadro de crise financeira prolonga-da, iniciada em 2008 com a explosão da“bolha” especulativa nos Estados Unidos.Por razões óbvias, o súbito aumento dopreço do barril do petróleo – que, em fe-vereiro, momentaneamente, chegou a sal-tar dos US$ 100 para algo em torno deUS$ 120 – é péssima notícia para a eco-nomia planetária. Cálculos feitos por es-pecialistas indicam que um aumento con-sistente de US$ 10 no preço do barril causaa redução de 0,25 ponto percentual noíndice de crescimento econômico global.Pode parecer pouco, mas é um golpe gi-gantesco quando se trata de um períodoem que os mercados tentam se recuperarda crise financeira ainda em curso.

O “primeiro choque” do petróleo le-vou o preço do barril (em valores ajusta-dos à inflação), até perto de US$ 50, em1975. O “segundo choque” produziu umsalto até o recorde de US$ 110, em 1980.O recordo só foi ultrapassado às vésperasda crise financeira de 2008, quando o pre-ço do barril aproximou-se de US$ 140. Otemor atual é de que aquele teto históricoseja atingido novamente, ou mesmo ul-trapassado (veja o gráfico).

O preço do petróleo incide diretamentesobre múltiplos setores da economia, e nãoapenas sobre o da gasolina (que é, claro, o

mais evidente). Os produtos derivados dopetróleo utilizados no dia a dia formam qua-tro grandes grupos: 1. combustíveis (gasoli-na, gás natural, gás liquefeito, óleo diesel,óleo combustível, querosene de aviação,combustíveis marítimos); 2. lubrificantes(óleos minerais, óleos graxos, óleos sintéti-cos e betume); 3. insumos petroquímicos(nafta e gasóleo); 4. derivados especiais (pa-rafinas, solventes, asfalto, coque). Osubgrupo das parafinas, apenas para citar umexemplo, é aplicado na fabricação do fósfo-ro e utilizado pelas seguintes indústrias: pi-lhas e baterias eletroquímicas; laticínios efrigoríficos; borrachas e pneumáticos; cos-méticos; explosivos; ceras polidoras; farma-cêutica (vaselinas e pomadas); agrícola (pro-teção de frutas e sementes); filmes fotográfi-cos; arroz parboilizado; moldes para prótesesdentárias. Ou basta mencionar os artefatosque utilizam plástico – dos sacos de lixo aostelefones celulares. Ou ainda, para citar umoutro pequeno exemplo: o uso do gás comofonte de calor nos países temperados.

Nem tudo, porém, aponta para a catás-trofe. O mercado do petróleo é extrema-

mente complexo, por comportar muitasvariáveis imprevisíveis, de ordem econômi-ca, geopolítica e financeira. Se, por um lado,basta um boato para fazer com que se ins-tale o pânico e os preços aumentem, poroutro lado os “choques do petróleo” dadécada de 1970 criaram uma cultura decautela entre os países importadores, queinclui a formação de vastos estoques de re-serva. Por essa razão, os países mais indus-trializados e dependentes de petróleo im-portado têm muita “gordura” para queimar,no caso de uma situação de instabilidadeprolongada no Oriente Médio. Além domais, as economias industrializadas torna-ram-se menos dependentes do “ouro ne-gro” nas duas últimas décadas: entre os anos1980 e 2000, o PIB dos Estados Unidosmais do que dobrou, mas o consumo depetróleo permaneceu praticamente no mes-mo patamar (passou de 17,4 para 17,8milhões de barris por dia).

Mas é claro que estatísticas não resol-verão o problema, se fato houver um “es-touro” no preço do barril. No fundo, mui-ta coisa depende da monarquia saudita,

um aliado crucial dos Esta-dos Unidos e União Euro-peia. A Arábia Saudita, quepossui cerca de 24% das re-servas mensuradas de petró-leo e é o maior exportadormundial do produto, tem ca-pacidade técnica e reservassuficientes para compensar,por algum tempo, o forneci-mento interrompido ou di-minuído de outros paísesprodutores, como a Líbia. Asituação escaparia realmenteao controle se até mesmo aArábia Saudita for engolfadapela revolução árabe (veja amatéria na pág. 3).

Outro dado imprevisívelé o comportamento dos“emergentes”, incluindo Bra-sil, Índia e China, onde o usodo petróleo é proporcional-mente muito mais elevado doque nos países industrializa-dos. O PIB americano, por

exemplo, equivale a três vezes o chinês, masos Estados Unidos utilizam apenas o do-bro do petróleo consumido pela China. O“esfriamento” da economia chinesa, um dosgrandes motores da recuperação econômi-ca mundial, poderia provocar um efeitorecessivo em cadeia. No Brasil, por outrolado, embora a Petrobrás tenha força sufi-ciente apara atenuar, por algum tempo, osimpactos da elevação dos preços dos com-bustíveis, seria inevitável o surgimento deuma pressão inflacionária, caso a crise seprolongue no Oriente Médio, principal-mente no setor de transporte de carga e deprodução de insumos agrícolas, uma áreaestratégica da economia nacional.

O quadro geral, em síntese, não é nadabrilhante, mas é tão volátil e explosivo queimpede qualquer projeção realista de mé-dio ou longo prazo. Como diz a TheEconomist, dois fatores, no final das con-tas, determinam o preço do petróleo: asleis eternas da oferta e procura e o puropânico. Na situação de incerteza atual, opânico nada de braçadas.

ALIMENTOS E PETRÓLEO

Crise política na Líbia impulsionou os preços do barril de petróleo até a marca de US$ 120.Na hipótese de desestabilização da monarquia saudita, uma espiral de preços do barril

condenaria a economia mundial às profundezas de uma depressão

FONTE: adaptado de Chart of the Day

2000 2005 20101970 1975 1980 1985 1990 1995

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Uma história dos preços do petróleo (1970/2010)(preços reais ajustados pela inflação)

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2º choquedo petróleo

1979

1º choquedo petróleo

1973

Revoluções árabes - 2011

Furação Katrina - 2005

Guerra do Golfo - 1991

Invasão doIraque2003

Crisefinanceira

2008/09

Atentados de11 de setembro

2001

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M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 102011 ABRIL

Nelson Bacic OlicDa Redação de Mundo

do Nilo, pertencentes ao Egito, são ali-mentados essencialmente pelas águas ori-ginárias do Planalto da Etiópia, que for-mam quase 90% de seu débito.

Por conta de suas condições climáticas,o Egito possui área agrícola aproveitávelmuito pequena, quase toda ela situada aolongo das margens do Nilo. Além disso, a

população egípcia exibe crescimen-to expressivo. Atualmente, o efeti-vo demográfico do país é superiora 80 milhões e as previsões apon-tam para algo em torno de 120milhões por volta de 2040. Cercade 95% das águas do grande rioque percorrem terras egípcias ori-ginam-se em países vizinhos.

Aproveitando-se de sua posi-ção de potência dominante dabacia fluvial, o Egito estabeleceuacordos com alguns dos vizinhosmeridionais para impedir desvi-os das águas do Nilo. Mesmo as-sim, a escassez de água já é umarealidade. Em 1972, cada egíp-cio consumia 1,6 mil m3 de águapor ano. Em 1992, a cota dispo-nível reduziu-se para 1,2 mil m3.Atualmente, a disponibilidade deágua por habitante é inferior a800 m3. O grande receio do Egi-to é que, um dia, em razão deuma maior utilização dos recur-sos hídricos por parte de seus vi-zinhos situados à montante(Sudão e Etiópia, principalmen-te), a escassez alcance um ponto

crítico. Em 1979, depois da conclusão dapaz com Israel, o então presidente egípcioAnuar Sadat chegou a identificar a águacomo única causa capaz de conduzir seupaís a uma nova guerra.

O aumento da população e o desejo dedesenvolvimento econômico por parte dospaíses que estão à montante do Egito ori-

ginou projetos de utilização dos recursoshídricos da bacia hidrográfica. A Tanzâniae o Quênia, por exemplo, têm declaradoque não aceitam qualquer tipo de restri-ção ao uso de seus recursos hídricos, tan-to os do Lago Victória, quanto do pró-prio Nilo. Essas declarações são vistaspelos egípcios como assunto que afeta asua segurança nacional.

O tema da repartição dos recursoshídricos da bacia apareceu quando os bri-tânicos passaram a desenvolver a culturade algodão no Sudão. Desde sua indepen-dência, em 1922, o Egito obteve da Grã-Bretanha a promessa de que seria indis-pensável a concordância egípcia para aconstrução de qualquer obra sobre o Nilonas possessões britânicas localizadas rioacima. Em 1929, foi fechado um acordoentre o Egito e o Sudão (na época, colô-nia britânica) de partilha das águas doNilo. O acordo, contudo, simplesmenteignorou os interesses de outros países ecolônias com terras na bacia hidrográfica.Em 1959, firmou-se novo acordo de re-partição das águas do Nilo entre Egito eSudão. Mais uma vez, não se fez nenhu-ma menção a outros países com terras dre-nadas pela bacia. Por conta disso, paísescomo a Etiópia, o Quênia e a Tanzânianão se vêm obrigados a justificar o uso desuas águas ao Egito. As autoridades egíp-cias, por outro lado, interpretam como“atos de guerra” qualquer uso das águassem o seu consentimento.

O Egito usa cerca de 85% de seusrecursos hídricos para atividades agríco-las, contra uma média mundial de 70%.Confrontado com o dilema da seguran-ça alimentar, o país se esforça para pro-mover programas de reciclagem de água.Ao mesmo tempo, incentiva a ocupa-ção e valorização de áreas desérticas, uti-lizando água dos lençóis subterrâneos.Isso, porém, revela-se insuficiente. Cedoou tarde, o país terá que abandonar osistema de uso gratuito das águas pelosagricultores, encorajando novas técnicasde irrigação que não desperdicem o pre-cioso líquido.

AS ÁGUAS DO NILO

E AS INQUIETUDES DO EGITO

O rio Nilo, com seus 6,7 mil quilôme-tros de extensão, figura juntamente comoo Amazonas como um dos dois mais ex-tensos cursos d’água do mundo. Entresuas nascentes, na região dos GrandesLagos africanos, e o grande delta, noMediterrâneo, os rios que compõe a ba-cia do Nilo drenam dez países.

No alto vale, onde suas águas fluempelos territórios de Ruanda, Burundi eUganda, o Nilo e seus afluentes são ali-mentados pelas chuvas equatoriais e tro-picais. Adentrando o Sudão, atravessa ospântanos de Sudd, onde recebe inúme-ros afluentes (veja o box). Nessa área, orio corre muito lentamente em razão dascondições de solo e relevo, tornando aevaporação muito intensa, o que resultaem balanço hídrico negativo. No Sudd,mais da metade do débito fluvial do riose perde por evaporação.

Um estudo de 1958 sugeria uma sé-rie de ações para aumentar a quantida-de de água que chegaria às terras doEgito. A principal ação era concluir aconstrução do Canal de Jonglei, inicia-do pelos britânicos no final do séculoXIX, com a finalidade de fazer o Nilocorrer mais rapidamente nos pântanosdo Sudd, eliminando a grande curva queo rio descreve nessa região (veja omapa). O aumento da velocidade daságuas reduziria os efeitos da intensa eva-poração. O plano não foi adiante e ogoverno egípcio preferiu jogar suas fi-chas na construção da barragem deAssuã, localizada nas proximidades dafronteira com o Sudão. As obras do ca-nal permanecem inconclusas até hoje.

Mais ao norte, o Nilo – também cha-mado de Nilo Branco – recebe pela mar-gem direita o Nilo Azul, um afluente cujaorigem se encontra nos altos planaltosda Etiópia. As águas do Nilo Azul au-mentam consideravelmente o débito dorio e modificam seu regime fluvial. A par-tir da confluência desses dois rios, nonorte do Sudão, o grande rio não recebemais nenhum afluente. Assim, parte domédio vale e a totalidade do baixo vale

Sudd, do escritor espanhol Gabi Martinez, foi publicado no ano passado pela Edito-ra Rocco. A obra é, provavelmente, o único exemplo no Brasil de romance que faz dessaregião do vale do Nilo o “personagem” principal.

Um navio, reunindo empresários, políticos e representantes de tribos do Sudão,sobe o vale do Nilo a partir da capital sudanesa, Cartum, e segue em direção sul, com amissão de selar a paz entre as regiões norte e sul do país, em guerra há décadas. Só que aembarcação se perde nos labirínticos meandros do Sudd. O argumento desvela a forçada natureza nos pântanos do Sudão meridional – e sua influência sobre as relações hu-manas, até conduzi-las a certas situações-limite. Para escrever o livro, o autor percorreuo Nilo desde as nascentes até o delta, no Mediterrâneo.

Nos intermináveis meandros do Sudd

Principais países da Bacia do Nilo

Outros país que possuem territórios na Bacia do Nilo

Fronteiras do Sudão do Sul (Estado criado em 2011)FONTE: Adaptado de F. Lassere, Eaux et Territoires, 2005

ARÁBIASAUDITA

LÍBIA EGITO

JORDÂNIA

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SUDÃO ERITREIA

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TANZÂNIA

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REPÚBLICADEMOCRÁTICADO CONGO

Equador

Trópico de Câncer

Cairo

Cartum

Adis Abeba

LagoNasser

Barragemde Assuan

BarragemBarragemprojetada

0 500 km

LagoTana

LagoVictória

OCEANOÍNDICO

Rio

Nilo

Rio Atbara

Rio Nilo Azul

Rio

Nilo

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Pântanosdo Sudd

Canal deJonglei

A extensa Bacia do Nilo

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PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O

ABRIL 2011

11

“Às armas, cidadãos!”Chego à Paris pela Gare du Nord, a

grande estação ferroviária que liga a capi-tal francesa ao norte da Europa, mergu-lhando na Paris delicada e culta. Graçasaos céus inventaram a mala com rodinhase se pode sentir com prazer o vento gela-do do inverno francês caminhando pelasruas agitadas do 11º arrondissement atémeu charmoso hotelzinho. No metrô queme leva à Praça Saint Michel, começo aperceber que algo está acontecendo nestaencantadora cidade.

No passado, morei por quase dois anosem Paris. Meu esporte preferido na cida-de é caminhar, caminhar, caminhar pelaspequenas vielas, grandes boulevards e nasmargens do rio Sena. Aí se cruza com oscaminhantes de todas as cores e de todosos cantos. Um café numa mesinha na cal-çada em Saint Michel, portal de entradado Quartier Latin, e me lanço pela Ruede la Huchette, sempre maravilhado pe-los pequenos restaurantes franceses, gre-gos, italianos e orientais, deste recanto quevai me conduzir à Île de Saint Louis, nomeio do Sena.

Este pequeno bairro é uma maravilhaarquitetônica, com seus edifícios comvarandinhas de ferro e seus telhados deardósia negra. Sigo pelas margens do rio eo atravesso várias vezes, entrando por umaponte e voltando por outra, admirando dediversos ângulos os velhos e imponentesedifícios e palácios. Após uma parada naPont Neuf, para olhar os barcos que le-vam turistas da Île de Saint Louis até aTorre Eifel, vou “bater o ponto” no velhobanco de ferro da pracinha nos fundos doTribunal de Justiça, onde o poetasurrealista André Breton encontravaNadja, sua personagem, musa, mescla desonho, beleza e amor perdido no passado.Com o vento e a neve que cobria Paris debranco tive que me refugiar no Café de laPaix para ler o Le Monde e o Le Figaro,para tomar o pulso político da França.

“A greve dos magistrados continua”.Esta manchete inusual me chama a aten-ção e descubro que o presidente NicolasSarkozy criticara uns juízes que haviamsoltado um acusado de assassinato e elehavia matado de novo. Os juízes respon-dem que fizeram seu serviço, pois nãohavia provas, e que não podiam seguir e

Serge GoulartEspecial para Mundo

vigiar o acusado porque Sarkozy haviacortado as verbas da justiça. Sarkozy con-testa furiosa e violentamente os juízes detoda a França, que respondem entrandoem greve geral!

Na Praça Republique, passo por cafésonde se comem mariscos com batata fritae se bebe vinho branco, e me junto a umamultidão que se manifesta contra o go-verno. Milhares de pessoas estão furiosase se lançam em marcha pelo grandeboulevard em direção ao centro culturalBeuabourg, cantando consignas políticas.O clima é quente entre os manifestantesapesar da neve que cai cobrindo tudo deum branco suave.

Eu os acompanho e, morto de frio, medesvio à esquerda no Marais, este antigobairro judeu construído sobre um pânta-no (marais) e que hoje é très chic com suaslojas de objetos e antiguidades. Sob as co-lunas da Place des Vosges, um chocolatequente conforta.

Passando por uma banca de jornaisperto do Les Alles, um shopping cons-truído sobre o terreno do outrora lindoMercado Público de Paris, compro a res-peitada revista Mariane. A grande man-

chete é “A guerra civil na França – 500anos de enfrentamentos”. Ensaios sobrea história da França “onde sempre tudotermina em guerra civil”. E todos os jor-nais, de uma ou de outra maneira, insi-nuam a mesma coisa. Um jornal sindicaltitula “A França caminha para uma ex-plosão social”. A França experimentou,no último ano, uma onda de grandesmanifestações. Milhões fizeram greves,inclusive duas greves gerais, com pique-tes militantes e assembleias permanentes.Mas o governo se empenha em uma po-lítica de cortes no orçamento público ede ataques às liberdades democráticas.

Crise econômica, política governa-mental de austeridade, resistência dos tra-balhadores e dos estudantes, um governocom 20% de apoio e que não cessa de sedesmoralizar e enfrentar os franceses, quese agarram ao seu nível de vida – eis oquadro político do país. Sarkozy e seusministros, amigos de Zine Abidine BenAli, o presidente fugitivo da Tunísia, ami-go de Muhammar Kadafi até a explosãoda Líbia – o governo francês está com carade acabado. Vou checar o clima nos cafése livrarias em torno da Sorbonne e encon-

tro verdadeirasassembleias em cada cafécheio de estudantes eprofessores. Todos gesti-culam e falam com entu-siasmo da próxima greveou manif (manifestaçãoabreviada, velho hábitofrancês).

Na sexta-feira pelamanhã, após o passeioobrigatório pela feira daRue Monge, na RiveGauche, me mando paraouvir o que dizem os mi-lhares de manifestantessindicais que marchamem frente da Gare deLest, outra estação ferro-viária parisiense. JúlioCesar escreveu, em suaGuerras da Gália, que astribos gaulesas eram in-clinadas ao “tumulto”. Océlebre chanceler alemãoOtto von Bismarck diziaque um “atavismo celta”

explicava o gosto dos franceses pelosenfrentamentos. François Mauriac, Nobelde Literatura em 1952, escreveu que “aguerra civil sempre foi fria ou quente, se-gundo as épocas, mas na França ela é per-pétua” (Bloc-Notes, 22 de junho de 1922).E, de fato, os franceses tem certas caracte-rísticas explosivas. Karl Marx dizia que osalemães eram os filósofos; os ingleses, oseconomistas e os franceses, os políticos daEuropa. Parece que estava certo – para azarde Sarkozy.

Excelente vinho, melhor cognac e umcafé. A França revolucionária se sacode e olhapara todos os lados em busca de uma saídapara a crise que ameaça e desintegra tudo oque era sólido e que desmancha no ar a vidaque os franceses construíram a duras penas.A caminho do hotel, a noite fria e agradávelvai ficando para trás, acompanhada pelossons de um violinista erudito tocando noscorredores do metrô de Paris. Saio da esta-ção Chateau D’Eaux assobiando baixinho o“Hino à Liberdade” da Revolução Francesa.Preciso voltar à Paris.

PARIS EM TEMPOS DE FÚRIA

Serge Goulart é jornalista e escritor

Cena relativamente comum em Paris: milhares de trabalhadores protestam contrao desemprego, cortes salariais e planos de cortes de serviços públicos básicos

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AFP

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M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A 122011 ABRIL

nos de 5% dos aposenta-dos, mas gera um déficitprevisto para 2011 de R$50 bilhões. Todos os de-mais juntos, ou seja, maisde 95% do total, produ-zem déficit de R$ 42 bi-lhões. Como consequên-cia, o sistema previdenci-ário do país é muito caro,apesar do predomínio depopulação relativamentejovem. Em termos deporcentagem do PIB, oBrasil chega a gastar odobro ou o triplo de paí-ses com maior populaçãoidosa (veja o gráfico 1).

As mudanças demo-gráficas não alteram o per-fil populacional de umpaís num curto espaço detempo. Mas, em 30 ou 40anos, a soma de pequenasmudanças é enorme. Taistransformações represen-tam um enorme desafiopara o conjunto da socie-dade, uma vez que os go-vernos e os parlamentarescostumam protelar deci-sões difíceis para não de-sagradar segmentos im-portantes da população.

A partir da segundametade do século XX, adinâmica demográficabrasileira passou a ser in-fluenciada por três fatores,que impactam o sistemaprevidenciário: a diminui-ção da mortalidade infan-til, a queda dos índices defecundidade e a reduçãodas taxas de mortalidade entre a popula-ção adulta. A queda da mortalidade in-fantil – de 80% nos últimos 60 anos –contribuiu para que o crescimentopopulacional se acelerasse entre 1950 e

TRANSIÇÃO DEMOGRÁFICA DESEQUILIBRA APREVIDÊNCIA SOCIAL

Em quase todo o mundo, os sistemas

previdenciários funcionam da seguinteforma: a geração que atualmente trabalhafinancia a que já se aposentou e, no futu-ro, os trabalhadores atuais serão financia-dos por aqueles que chegarão ao mercadode trabalho. Se não ocorrerem alteraçõesimportantes na dinâmica demográfica,nem problemas sérios no mercado de tra-balho, o sistema previdenciário é capaz defuncionar sem graves sobressaltos. Toda-via, haverá sérios problemas se os indiví-duos passarem a viver mais do que viviamna época em que o sistema foi criado. A“solidariedade” entre os trabalhadores dehoje e os do futuro também será rompidase a economia passar a crescer com menoroferta de empregos e a população ativa nãoaumentar. Ou ainda na hipótese de par-cela maior da população ativa passar aexercer atividades informais.

Desequilíbrios previdenciários podemser ajustados de quatro formas. A primei-ra seria elevar os valores das contribuiçõesprevidenciárias para os trabalhadores daativa. Aumentar o tempo de contribuiçãoe o limite de anos para se aposentar seria asegunda. Outra seria reduzir os benefíciospara os já aposentados. Por fim, existe aalternativa de algum tipo de combinaçãoentre as três soluções anteriores.

No Brasil, os beneficiários da Previdên-cia Social são quase 30 milhões de pesso-as, divididas em dois grupos: o dos apo-sentados e o dos pensionistas. Os primei-ros são cerca de dois terços dos beneficiá-rios, dos quais pouco mais de metade en-contra-se nessa condição por ter chegadoà idade limite para a aposentadoria, que éde 65 anos, enquanto os demais são osaposentados por invalidez ou por teremcumprido o tempo de contribuição (35anos para o homem e 30 para a mulher).O grupo dos pensionistas perfaz cerca deum terço dos beneficiários da Previdên-cia. A maioria é composta por mulheresque recebem aposentadorias de seus ma-ridos falecidos.

A idade limite para aposentadoria nãoestá em descompasso com os padrões vi-gentes em diversos outros países. Toda-via, o Brasil destoa da maioria por per-mitir brechas na legislação. O maior de-sequilíbrio está ligado ao regime especialde aposentadorias do funcionalismo pú-blico federal. Esse grupo representa me-

O envelhecimento da população bra-sileira é um dos mais rápidos do mundoe deverá ter continuidade ainda por mui-tos anos. A melhoria das condições mé-dico-hospitalares gera aumento expressi-vo da expectativa de vida. Atualmente, aexpectativa de vida média de um brasi-leiro é pouco superior a 70 anos, deven-do atingir a marca dos 80 anos em 2050.Nesse contexto, o grupo etário dos ido-sos (mais de 60 anos) teve expressivo au-mento de sua participação no total dapopulação. Em 1980, esse segmentocorrespondia a cerca de 6% da popula-ção; em 2010, a participação aproximou-se de 10%. A parcela de idosos devetriplicar até 2050 (veja o gráfico 2).

O processo de transição demográficarepercute fortemente sobre o sistemaprevidenciário, porque acarreta uma cres-cente participação do segmento com maisde 65 anos. Por isso, é necessário lançarum olhar cuidadoso para a composiçãoetária dentro do grupo de idosos. Commais atenção ainda, deve-se analisar a ex-pansão do subgrupo constituído por in-divíduos com mais de 75 anos, os “superidosos”: eles são cruciais para a determi-nação do tempo de duração dos benefíci-os previdenciários. As projeções atuais in-dicam que a participação dos “super ido-sos” atingirá 10% da população total porvolta de 2050 (veja o gráfico 3).

Na metade deste século, o númerode indivíduos em idade ativa será pra-ticamente o mesmo que era em 2010.Se, em 1980, cerca de nove indivíduosgeravam recursos para “sustentar” cadabeneficiário, em 2050 esse número seráreduzido para dois. Sem reformas dosistema, o Brasil ficará velho antes deficar rico o suficiente para assegurar osbenefícios previdenciários garantidosna lei. A transição demográfica nãopode ser negligenciada, pois represen-ta enorme desafio para a própria viabi-lidade econômica e social do país. A re-forma da previdência, discutida há dé-cadas, permanece emperrada em fun-ção de injunções políticas. Mantidas asregras atuais o déficit previdenciário,que já é enorme, crescerá de forma in-sustentável, deixando como herançaum ônus irremediável para as futurasgerações.

1970. A partir de então, a queda da nata-lidade se acentuou e o ritmo de crescimen-to da população passou a se reduzir, che-gando a níveis relativamente baixos nadécada de 1990.

BRASIL

Sistema previdenciário brasileiro verga sob o peso dedéficits, oriundos principalmente da previdência de

funcionários públicos. A expansão do grupo de idosos napopulação total agrava um quadro desafiador

Gráfico 1

Gráfico 2

Gráfico 3

CHINA

ESTADOS UNIDOS

ARGENTINA

DINAMARCA

BRASIL

2

2010

2050

3

56

69

910

916

Despesas da Previdência (em % do PIB)

FONTE: Standard & Poors

País

FONTE: IBGE

%

Participação dos grupos etáriosno conjunto da população

100

80

60

40

20

2000 20100

De 0 a 14

De 15 a 59

60 e mais

2020 2030 2040 2050

8,1 10,0 13.7 19,7 23,8 29,8

62,1 64,4 66,3 64,3 61,4 57,1

29,8 25,6 20,0 17,0 14,8 13,1

2010 2020 2030 2040

%

30

20

10

0

2000 2050FONTE: IBGE

Brasil: Participação dos idosos e“super idosos” no conjunto da população

(2000/2050)

Idosos(60 a 75 anos)

“Super idosos”(+ de 75 anos)